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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
MARILIA DA CONCEIÇÃO REIS DE MOURA
CONSTRUÇÕES CULTURAIS NAS PRÁTICAS ALIMENTARES
DA FESTANÇA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE –
MATO GROSSO
CUIABÁ - MT
OUTUBRO / 2005
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MARILIA DA CONCEIÇÃO REIS DE MOURA
CONSTRUÇÕES CULTURAIS NAS PRÁTICAS ALIMENTARES
DA FESTANÇA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE–
MATO GROSSO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal
de Mato Grosso, como requisito parcial para
obtenção de título de Mestre em História sob a
orientação da Professora Dra. Regina Beatriz
Guimarães Neto.
CUIABÁ –MT
OUTUBRO / 2005
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3
Ficha catalográfica preparada por Tereza Antonia Longo Job – CRB1 - 1252
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Professora Dra Regina Beatriz Guimarães Neto / UFMT
(Presidente)
____________________________________________________
Professor Dr. Antônio Torres Montenegro / UFPE
(Examinador Externo)
__________________________________________________
Professora Dra. Leni Caselli Ansai / UFMT
( Examinadora Interna)
___________________________________________________
Professor Dr. Vitale Joanoni Neto / UFMT
(Suplente)
M929c
Moura, Marilia da Conceição Reis de.
Construções culturais nas práticas alimentares da festança em Vila Bela da Santíssim
a
Trindade Mato Grosso. / Marilia da Conceão Reis de Moura. Cuia: s.ed. 2005.
294p.Ilust.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade
Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre e
m
História sob a orientação da Professora Drª. Regina Beatriz Guimarães Neto.
1 – População negra – Vila Bela da Santíssima Trindade / MT 2 – Práticas alimentares
das festas de santos – Vila Bela da Santíssima Trindade / MT. 3 – Identidade étnica
MT. 4 – Práticas culturais das cozinheiras e festeiras de Vila Bela da Santíssim
a
Trindade / MT. I – Título.
CDU: 394.1(817.2)
4
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho com muito carinho,
amizade e gratidão: às cozinheiras-festeiras da
Festança, pela maneira delicada e solidária com
que sempre me receberam; à Regina Beatriz,
pela compreensão e sensibilidade; a Antônio,
Romênia e Gustavo, pelo tanto que esperaram e
apoiaram. Foram bases para a realização desta
pesquisa.
5
AGRADECIMENTOS
Ao apresentar por meio da escrita, algumas idéias
1
sobre as práticas culturais da
população de Vila Bela da Santíssima Trindade - MT, no período da Festança.
2
consideramos de fundamental importância, manifestar a alegria de ter realizado essa pesquisa
e apresentar meus agradecimentos aos moradores de Vila Bela, a quem sinto profundo
respeito e gratidão, e a todos que sempre me receberam e me auxiliaram com orientações,
informações, e conversas “concentradas e desconcentradas”.
À professora Drª. Regina Beatriz Guimarães Neto, orientadora da dissertação,
agradeço as valiosas contribuições, compreensão e dedicação.
Aos professores da banca examinadora: Pro. Drª. Regina Beatriz Guimarães Neto,
Profª Drª Leny Caselli Ansai, Prof. Dr. Antônio Torres Montenegro, Prof. Dr. Vitali Joanoni
Neto e aos professores da Pós-Graduação/Mestrado em História – UFMT, por terem me
possibilitado entender o oficio de historiador e assim ter condições de percorrer alguns
caminhos da História.
Á
Matildes Dias Koike e posteriormente Mônica Acendino, secretárias da Pós-
Graduação em História da UFMT, pela gentileza e paciência.
Á Paulo Micelli, Osvaldo Machado Filho,.Ezequiel Westphall, Carlos Rafael
Camuñas, Errol L. Montes Pizarro, Adolfo Alban Achinte, Ana Lenir Prota, Lucila Além
Brito, Ricardo Reis Medeiros, Rosângela Batista Reis, Tereza, Dora e Maria Caroline de
1
Montenegro, Antônio Torres. Reflexões sobre a obra de Brockman, John; Einstein; Gertrude
Stein;Wittgenstein e Frankenstein. In História e Memória: Metodologia das Fontes. Cuiabá: UFMT, 2003.
Estudos e discussões propostos por Montenegro, relacionados à idéia que se tem sobre a realidade, levou-nos à
reflees sobre a existência e possibilidades das diferentes produções do real, e de que o mundo é uma criação,
invenção que se dá de acordo com as nossas redes de relações sociais e culturais.
2
Festança é o termo usado pelos moradores de Vila Bela para designar as festas dos santos
6
Mello Batista, Érika Borges, Maria de Lourdes Castrillon, pela amizade, companheirismo e
pelas tantas palavras de incentivo.
Aos colegas da Pós-Graduação em História da UFMT, pelas discussões e reflexões,
relacionadas aos aspectos da operação historiográfica, no sentido de repensar a História.
Ao Romeu Sebasto da Costa Arruda, pela boa vontade e disposição que sempre
demonstrou em encaminhar e agilizar minha disponibilidade no Estado para efeito de
qualificação profissional.
Aos funcionários das bibliotecas, museus e entidades procuradas no decorrer da
pesquisa, pelo apoio material e humano.
Á Andréia de Cássia Heinst e Inêz Deliberaes Montecchi pelas sugestões embasadas
em suas experiências, a Vianez Zago Lazzari, Neuseli Nardelli, Camila Belizário, pela
solidariedade e disposição nas atividades de digitação e informatização e a Tereza Antonia
Longo Job, pela gentileza e boa vontade na organização da ficha catalográfica.
A Antônio Eustáquio de Moura pelas pertinentes discussões e sugestões relacionadas à
temática pesquisada, e pela disponibilidade nas inumeráveis correções referentes às
referências bibliográficas.
Á Nemézia, Isaias, Ivone, Ivete, Luzia e demais componentes das famílias Profeta e
Gonçalves de Paula, por terem me acolhido de uma maneira tão calorosa e solidária, e a todos
os moradores de Vila Bela, que gentilmente me receberam e pacientemente me facilitaram a
ultrapassagem pelas dificuldades surgidas no decorrer da pesquisa. E não posso deixar de
colocar, as águas do rio Guaporé, ao me permitirem tornar em alguns momentos “flâneur”.
Ao meu filho Gustavo, e minha filha Romênia, pela paciência e carinho com que me
acompanharam em todo o processo da pesquisa.
Meus agradecimentos.
7
s negros vilabelenses, perdemos nossa terra,
perdemos nosso espaço. Perdemos quase tudo. Só nos
resta agora o espaço da Festança.”
(Fragmento do relato de uma moradora de Vila Bela)
8
RESUMO: CONSTRUÇÕES CULTURAIS NAS PRÁTICAS ALIMENTARES
DA FESTANÇA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE–MT
Os estudos desenvolvidos ao longo desta pesquisa, focalizando o período de 1970 a 2000, se
deram em torno das práticas culturais das cozinheiras, festeiros e festeiras, promesseiros e
promesseiras, e demais pessoas envolvidas com os processos de escolha, preparação,
distribuição e degustação das comidas, bebidas, doces, bolos e biscoitos, durante a Festança,
quando ocorrem anualmente, na segunda quinzena de julho, as homenagens ao Divino
Espírito Santo, para São Benedito, e à Santíssima Trindade. Essas festas, realizadas por
moradores de Vila Bela da Santíssima Trindade-Mato Grosso, cidade localizada no Vale do
rio Guaporé, fronteira com a Bovia, podem ser focalizadas como um conjunto de práticas
culturais, espaços onde parte da população se coloca como personagem mais importante no
cenário de uma representação do passado, que se atualiza no presente por meio da memória e
experiências vivenciadas nos rituais religiosos, nas pticas alimentares e nas redes afetivas.
Tendo em vista a combinação de regras básicas do fazer historiográfico, que dão
inteligibilidade ao que se quer provar, traçamos os caminhos dessa dissertação por meio de
observações e narrativas orais e escritas, onde múltiplas e diferentes leituras evidenciaram e
permitiram uma reconstrução de experiências, de valores sociais, econômicos e culturais, em
que a Festança pode ser vista como um sinal diacrítico, onde parte da população local se
identifica como “ ser um negro de Vila Bela”.Os diferentes rituais são produções reveladoras
da diversidade, de experiências que se entrelaçam, registros da coexistência de diferentes
grupos étnicos e culturas distintas, num espaço e temporalidade em que ocorrem processos de
trocas, assimilações, adaptações e abandonos de traços culturais. São reapresentações em que
se fazem presentes expressões de sociabilidades; estratégias de poderes das Irmandades; redes
de solidariedade; religiosidade; processos de aprendizagem e de socialização. Como parte da
Festança, as práticas alimentares constituem um patrimônio cultural da população de Vila
Bela, que num processo dinâmico vai renovando e ajustando os saberes e bitos tradicionais
à modernidade.
Palavras-chave: Vila Bela da Santíssima Trindade- MT; população negra; práticas
alimentares das festas de santos; identidade étnica.
9
ABSTRACTY: CULTURAL CONSTRUCTIONS IN THE PRACTICES
ALIMENTARYS OF THE VILA BELA DA SANTISSIMA TRINDADE-MT
FESTIVITIES
The studies which took place during this research project from 1970 to 2000 were concerned
with the cultural practices of women cooks, ”festeiros” and “festeiras”,promesseiros” and
promesseiras” and other persons involved with the processes of choice, preparation,
distribution and consumption of the meals, beverages, candies, cakes and cookies during the
festivities that take place annually during the last two weeks of July in honor of the Divine
Holy Ghost, Saint Benedict and the Holy Trinity. These festivities held by the residents of
Vila Bela da Santissima Trindade- Mato Grosso, which is a city located in the valley of the
Guaporé river near the border with Bolivia, can be described as a set of cultural practices or
spaces where part of the population sees itself as the most important character in a staged
representation of a past which is brought up to date through the memories and experiences of
religious rituals, alimentary practices and affective relations. With the combination of basic
historiographic rules in mind, which give inteligibiity to our hypothesis, we base this
dissertation on observations and oral and written narratives where multiple and different
readings evidenced and allowed a reconstruction of experiences and social, economic and
cultural values in which the aforementioned festivity can be seen as a diacritic sign where part
of the population identifies itself as being a black person from Vila Bela”. The different
rituals, from which we have highlighted the processes of selection, preparation, distribution
and consumption of meals, beverages, candies, cakes and cookies are productions which
reveal the diversity of intertwined life experiences and registries of the coexistence of
different ethnic groups and cultures within a space and temporality where processes of
interchange, assimilations, adaptations and abandonment of cultural traits take place. These
rituals are representations which exhibit expressions of sociability, power strategies among
members of the “brotherhoods”, solidarity links, religiosity and learning and socialization
processes. The alimentary practices associated with the Festivity constitute a cultural
patrimony of the people of Vila Bela, who- in a dynamic process- renew and adjust their
knowledge and traditional habits.
Keywords: Vila Bela da Santíssima Trindade - MT; black population; religious festivities;
cultural practices alimentarys; ethnic identity.
10
ABREVIATURAS
ABN - Anais da Biblioteca Nacional
ABHO - Associação Brasileira de História Oral
APEMT – Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.
CECAB Centro de Estudos do Caribe no Brasil
CDS – Centro de Desenvolvimento Sustentável
DID-BN – Divisão de Informação Documental da Biblioteca Nacional
DNER – Departamento Nacional de Estradas e Rodagem
EDUFU – Editora da Universidade Federal de Uberlândia
EDUC – Editora da Universidade Católica
EDUSP – Editora da Universidade de São Paulo
ICHS – Instituto de Ciências Humanas e Sociais
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INTERMAT- Instituto de Terras de Mato Grosso
NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional
PUC Pontifícia Universidade Católica
RIHGSP – Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
RTIHGEB - Revista Trimensal do Instituto Histórico Geográphico e Ethnográphico
do Brasil
RTGH – Revista do Instituto Histórico e Geográphico
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso
11
UFU – Universidade Federal de Uberlândia
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UFPR – Universidade Federal do Paraná
UNB – Universidade de Brasília
UNEMAT - Universidade Estadual do Estado de Mato Grosso
UNICAMP – Universidade de Campinas
USP – Universidade de São Paulo
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................15
Construções Culturais na Festança em Vila Bela da Santíssima Trindade – MT....................15
1.1 – PERCURSOS POR VILA BELA: PRÁTICAS CULTURAIS EM DIFERENTES
TEMPOS..................................................................................................................................28
1.1 – Julho: Vila Bela no tempo da festança............................................................................29
1.2 – Primeiros tempos: Cotidiano marcado pela carestia e circularidade nas práticas
alimentares...............................................................................................................................36
1.3 – Tempos dos negros: estratégias para garantir a vida......................................................59
1.4 – Práticas alimentares no tempo do extrativismo..............................................................70
1.5 – Política de Ocupação e Fluxos Migratórios nos rumos dos moradores de Vila Bela.....83
2 – FESTAA: SIGNIFICAÇÕES E REPRESENTAÇÕES..............................................99
2.1 – A Festa do Divino Espírito Santo.................................................................................114
2.2 – A festa para São Benedito............................................................................................130
2.3 – Representação da Dança do Congo..............................................................................146
2.4 – O encanto do Chorado..................................................................................................154
2.5 – O canto da Alvorada.....................................................................................................162
2.6 – A Festa da Sanssima Trindade...................................................................................167
3 – COMIDAS, DOCES, BISCOITOS E BEBIDAS DA FESTAA: ESPAÇOS DE
PRÁTICAS CULTURAIS....................................................................................................171
3.1 – Território da Festança: terra, símbolos e hábitos culturais...........................................175
3.2 – Preparação da festa: redes de solidariedade cultural....................................................185
13
3.3 – Memórias e práticas culturais nas comidas da Festança..............................................205
3.4 – Doces, bolos e biscoitos: sociabilidades e afirmação de identidades...........................220
3.5 – Bebidas para a Festança...............................................................................................233
4 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES..................................................................................250
ANEXOS..............................................................................................................................255
5 – GLOSRIO..................................................................................................................257
6 – FONTES.........................................................................................................................263
6.2 – Relação dos documentos utilizados: relatos de viagens, crônicas, atas, merias,
documentação e publicações oficiais, revistas, obras de propaganda..................................265
6.3 – BIBLIOGRAFIA........................................................................................................274
14
LISTAS DE FOTOS
Foto 1 – Vista Parcial de Vila Bela da Santíssima Trindade................................................16
Foto 2 – Convite para a Festança........................................................................................100
Foto 3 – Visita da Folia do Senhor Divino.........................................................................118
Foto 4 – Imperador e Imperatriz do Divino Espírito Santo / Festança de 1998.................120
Foto 5 – Foliões do Divino Espírito Santo durante o almoço no Centro Comunitário.......124
Foto 6 – Rei e Rainha de São Benedito na Festança de 1996.............................................135
Foto 7 – Juiz, Juíza e Dançantes do Congo na Festança de São Benedito..........................136
Foto 8 – Preparação do Sopão.............................................................................................138
Foto 9 – Dançantes do Congo tomando sopão....................................................................139
Foto 10 – Embaixada do Congo no Centro Comunitário....................................................143
Foto 11 – Mesa separada para os festeiros antigos..............................................................144
Foto 12 – Cozinheira da Festança.......................................................................................191
Foto 13 – Trabalho masculino durante a Festança..............................................................194
Foto 14 – Trabalho feminino durante a Festança................................................................194
Foto 15 – Aprendizagem infantil durante a Festança.........................................................195
Foto 16 – Cozinha da Festança na casa de dona Andreza..................................................195
Foto 17 – Cozinha da Festança no Centro Comunitário....................................................198
Foto 18 – Distribuição da comida no Centro Comunitário................................................203
Foto 19 – Mesa com os Dançantes do Congo....................................................................204
Foto 20 – Processo de Preparação dos biscoitos para Festança........................................223
Foto 21 – Modelo de etiqueta colocado na Garrafa de Canjinjin.......................................242
15
INTRODUÇÃO
Construções culturais na Festança em Vila Bela da Santíssima Trindade - MT.
Mire, veja! O mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, aindao foram terminadas, mas que elaso sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
Isso me alegra, montão.
(GUIMARÃES ROSA, Grande Sertão e Veredas, 1984, p. 21)
Dialogar com Guimarães Rosa, por meio das histórias do seu personagem Riobaldo,
emGrandes Sertões, Veredas,foi um precioso suporte para o início de algumas reflexões
sobre as construções culturais de parte da população de Vila Bela da Santíssima Trindade,
envolvida com as atividades referentes à escolha, preparação, distribuição e consumo das
comidas, bebidas, doces, bolos e biscoitos na Festança. E a partir desse diálogo, perceber que
nos diferentes textos consultados, tanto escritos como orais, as palavras como imagens,
nomeando os fatos, produzindo significados, recriaram outras histórias, a partir de coisas
remexidas, temperadas. Por isso também histórias inacabadas.
Primeira capital de Mato Grosso no século XVIII, Vila Bela da Santíssima Trindade
destaca-se pela sua população, composta de grande número de afro-descendentes.
3
3
Segundo Roland (2000), institucionalizou-se o conceito de afro-descendentes, que se refere aos descendentes
dos africanos escravizados, especialmente nas Américas. Dessa forma o conceito não tem apenas uma referência
geográfica, mas contém um sentido político que se liga à proposta das reparações. Bandeira no livro Território
Negro em Espaço Branco:. Estudo Antropológico de Vila Bela(1988, p.24), usou o termo étnico preto para
designar a comunidade de Vila Bela. Segundo a autora, a preferência da população local é pelo uso do termo
preto, por considerarem o mesmo como conotativo de raça, e o termo negro como conotativo de inferioridade
social e cultural. De acordo com os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia ), o censo do
ano 2000, apontou que a população total do município de Vila Bela, era de 12.665 habitantes. Segundo o critério
“auto declarado,” técnica usada pelo IBGE, se auto declararam: brancos, 3.767; pretos 1.671; amarelos 97;
pardos 6.781; indígenas 84 e 265 pessoas não se declararam. Informações obtidas no IBGE-Cuiabá.
16
Também é uma cidade muito apreciada pelas suas belezas naturais, como o rio
Guapo
4
cujas águas banham a sede do município e fazem parte da bacia Amazônica, pela
paisagem circundante, onde se destaca a serra Ricardo Franco, antes denominada serra do
Grão Pará,
5
e especialmente pelas festas em homenagem ao Divino Espírito Santo, São
Benedito e Santíssima Trindade, realizadas na segunda quinzena dos de julho.
Foto 1 - Vista Parcial de Vila Bela da Santíssima Trindade
Fonte: Prefeitura Municipal de Vila Bela da Santíssima Trindade
4
Segundo relatos de moradores locais, até o final da década de 1970, a maior parte da cidade estava situada em
terras à margem direita do rio Guaporé, mas atualmente estende-se também pelas áreas da margem esquerda.
Uma ponte de madeira, construída em 1993, de aproximadamente 130 metros de comprimento, liga as duas
partes da cidade. A comunicação anteriormente era feita por meio de canoas, e a partir da década de 1970, até a
construção da ponte, através de uma grande balsa. Segundo Maldi, o rio Guaporé e as fortificações construídas
pelo governo colonial português ao longo do seu curso, foram determinantes na consolidação das fronteiras com
as terras de colonização espanhola (1993, p.26). Maiores informações ver SIQUEIRA, Elizabeth Madureira.
ALVES da COSTA, Lourença. COELHO de CARVALHO, Cathia. O Processo Histórico de Mato Grosso.
Cuiabá: UFMT. 1990. p.107.
5
De acordo com Fonseca, essa cordilheira era chamada pela população local, de Serra do Matto Grosso, Serra da
Villa e Serra do Verde, por nela ter origem o rio desse nome (1986, p.100). Ricardo Franco e demais
companheiros da Comissão de Limites, denominaram-na de Serra do Grão Pará. A Serra do Grão-Pará teve o
nome mudado para Serra Ricardo Franco, em 1876, uma homenagem a Ricardo Franco de Almeida Serra, que
foi um dos responsáveis pela Comissão de Limites, instituída pelo governo colonial português no século XVIII.
Ricardo Franco fez também vários trabalhos cartográficos como o “Mappa Geográphico da Capitania de
Matto Grosso”, e participou da construção e defesa do Forte de Coimbra diante dos ataques espanhóis. Morreu
em 1809 e foi enterrado na igreja de Santo Antônio dos Militares, localizada às margens do rio Guaporé na
cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade-MT. (FURTADO, 1960, p. 90). Ressalta-se também que, em 04 /
11 / 1997, pelo Decreto Estadual nº 1.796, foi instituído pelo governo do Estado de Mato Grosso, o “Parque
Estadual da Serra Ricardo Franco”, numa área de 158.620,85 ha, dessa referida serra.
17
Essas festas podem ser vistas como um conjunto de práticas culturais, em que parte da
população se coloca como personagem mais importante no cenário de uma representação do
passado que se atualiza no presente, por meio da memória e experiências vivenciadas nos
rituais religiosos, nas práticas alimentares, nas redes afetivas. Vida da cidade que desfilando
uma série de rituais, transforma o seu espaço num lugar cultural-religioso, impregnado de
“símbolos produtores de usos e significados.
6
O objeto da pesquisa, focalizando o período de 1970 a 2000, e visando analisar as
práticas culturais das cozinheiras, festeiros e festeiras, promesseiros e promesseiras, e demais
pessoas envolvidas com os processos de escolha, preparação, distribuição e consumo das
comidas, doces, biscoitos, bolos e bebidas, nessas festas dos santos, nos instigaram a buscar
em alguns autores suportes teóricos que pudessem dar melhores respostas às inquietações que
esta temática desperta, propiciando algumas análises sobre representações e deslocamentos
construídos pela população local em meio aos diferentes processos de migração e mestiçagem
que aconteceram em Vila Bela.
Nessa perspectiva, buscamos inicialmente as alises de Edward Said, quando aponta
que no mundo atual as constrões culturais têm inscritas narrativas que revelam novas
posturas intelectuais e poticas, em que se priorizam as diferenças, a diversidade, as trocas
culturais, e a produção das identidades não homogêneas, além do espaço nacional e étnico.
Pois, em parte, devido ao imperialismo, as culturas encontram-se imbricadas, híbridas e
extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo (1995, p.26 – 28).
7
De acordo com os estudos de Maciel e Menasche (2004), as construções culturais
sobre uma cozinha em paises colonizados, do qual podemos incluir o Brasil, implicam um
6
Ver a relação entre símbolos e a produção de significados e usos em (CHARTIER,1991, p.5).
7
Ver sobre a tetica no texto Colonialidad, Conocimiento y Diáspora Afro:Andina: construyendo
etnoeducación e interculturalidad en la universidad Catherine. Walsh (en prensa, s/d). Walsh afirma que: “esta
ponencia nolo refleja mi pensamiento individual, sino tambn el pensamiento que hemos venido
construyendo en forma compartida y colectiva en el Fondo Documental Afro-Andino de la Universidad Andina
Simón Bolivar, sede Ecuador; un espacio de pensamiento desde América Latina y región andina y desde y con
los pueblos afros.”
18
somatório de influências. Um processo complexo, com associações, confrontos e exclusões,
indicadores dos deslocamentos de hábitos, costumes, necessidades, em que no conjunto das
práticas alimentares, incluindo plantas, animais e temperos, as preferências, interdições,
prescrições, devem ser vistas não como meras “contribuições”, mas sim, parte de um processo
colonial que confrontou povos diferentes e conseqüentemente, sistemas alimentares muito
diversos. Essas autoras destacam as críticas de Roberto DaMatta, sobre os usos do “mito
fundador”, como conformador da cozinha brasileira, sem se levar em conta as diversidades, o
que não quer dizer que se deixe de considerar que essa cozinha seja o resultado de uma grande
mistura de elementos, das mais diversas procedências.
Sobre a cozinha da Festança de Vila Bela, além da diversidade, consideramos também
os processos de adaptações e empréstimos, tendo em vista que “uma das características da
modernização é essa interação e adequação de grupos e sociedades tradicionais aos novos
tempos, à procura de novos signos para diferenciarem-se e restabelecerem a especificidade de
seu patrimônio cultural”. (CANCLINI, 1997, p.247)
Na reflexão historiográfica e nos possíveis caminhos da produção da escrita,
recorremos a Michel de Certeau, quando discorre sobre as regras da disciplina da História,
onde a paisagem da pesquisa deve estar inscrita (2002, p.9 –74).
As operações historiográficas estabelecem as relações de um lugar sócio-institucional
da produção do discurso, de práticas científicas e de uma escrita, que permitem explorar a
produção do texto histórico, em que as análises e as práticas de pesquisa se mostrem
constitutivas do mesmo. Em outras palavras, uma pesquisa em que esteja inserida: a rede
intelectual na qual o pesquisador dialoga com seus pares, as regras metodológicas a que se
submeteu, e as operões da escrita que norteiam a produção do texto. São operações que
exigem deslocamentos primordiais, criando um novo lugar e significado para os objetos
selecionados (GUIMARÃES NETO, 2004).
19
Vistas como parte do patrimônio cultural da festa, as práticas alimentares que
focalizamos passando por constantes processos de ressignificações, o que não significa um
fechamento às transformações,
8
o foram investigadas sob o critério de alguma
autenticidade, mas sim pelo que representam para a população de Vila Bela.
Neste sentido, o tempo e a memória são fatores fundamentais na constituição dessas
práticas alimentares, vistas como experiências culturais dos indivíduos, onde estão imbricadas
mobilidades, diante da escolha de alguns ingredientes, nas maneiras de preparar as comidas,
bebidas, doces e biscoitos, e de permitirem às pessoas, principalmente aquelas mais
envolvidas na dinâmica da festa, a buscarem no passado elementos que reinscritos no
presente, auxiliam na seleção, preparação, distribuição das iguarias. Representam
experiências, práticas sociais que mesmo vivenciadas numa temporalidade convencional,
modificaram-se e continuam a se modificar.
Sobre o tempo, Norbert Elias o conceitua como social, situado nos contextos dos
saberes e das práticas, portanto não pode ser definido como algo fixo, homogêneo, porque
está imbricado com a natureza, com a sociedade e o individuo. Pode ser visto como uma
instituição, cujo caráter varia conforme o estágio de desenvolvimento atingido pelas
sociedades, sendo que, o indivíduo aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua
sociedade e a orientar sua conduta em função deles. A imagem mnêmica e a representação do
tempo num dado indivíduo dependem, pois, do nível de desenvolvimento das instituições que
representam o tempo e difundem seu conhecimento, assim como das experiências que o
indivíduo tem delas desde a mais tenra idade (1988, p.11 –18).
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de fato, e sim
apropriar-se de algumas reminiscências, imagens passadas como elas se apresentam, porque é
8
Ver CANCLINI (1997, p.202).
20
necessário reconstituir as experiências, garantia da memória (BENJAMIM, 1987, p.223 –
231).
As fontes orais, importantes suportes para o desenvolvimento metodológico deste
trabalho, permitiram reflexões sobre a legitimidade e o caráter histórico das mesmas,
entendendo-se que nem tudo o que é dito pode ser considerado fonte histórica, pois a memória
é seletiva, parcial e interessada. Tanto as fontes escritas como as orais, devem passar pela
reflexão crítica, trazendo um conjunto de queses que nos permitem trabalhá-las como
documentos. (GUIMARÃES NETO, 2000, p.99 – 102)
De acordo com as análises trico-metodológicas sobre a memória, apresentadas por
Antônio Torres Montenegro (2004), muitos são os caminhos que nos possibilitam revisitar o
passado, muitas as perguntas com as quais podemos interrogá-lo e as perplexidades que as
mesmas nos colocam. São questões imbricadas no presente, à história vivida, às formas como
as relações sociais, poticas, culturais e econômicas se constroem e se transformam. Nesse
sentido, os documentos devem ser vistos como construções, em que as marcas, os registros da
história vivida constituem um permanente combate de informações, com que se produz a
trama histórica. Estão inscritas na operação historiográfica, ou seja, no ato de transformar
alguma coisa que tinha uma posição e seu papel, em alguma outra coisa que funciona
diferentemente. Nesta passagem da pesquisa ao texto, no ato de produção de um outro
discurso, o do historiador, está contida uma escrita que desnatura e inverte o tempo da prática.
Convém enfatizar sobre o caráter metodológico da História Oral, onde predominam
reflexões indicando que as lembranças, experiências, são pistas para se conhecer o passado.
Transformadas em linguagem, tornam-se realidade á medida que, e porque se fala, porque o
sentido se constrói na própria narrativa, por isso se diz que ela constitui (no sentido de
produzir) racionalidades. (ALBERTI, 2003, p.10.).
21
Nesse sentido, os relatos tendem a demonstrar que a meria pode ser identificada
como um processo de construção e reconstrução de lembranças nas condições do tempo
presente. De acordo com Lucilia de Almeida Neves, o ato de relembrar insere-se nas
possibilidades múltiplas de elaborações das representações e da reafirmação das identidades
constrdas na dinâmica da história. Cada relato expressa versões do indivíduo sobre o mundo
no qual vive ou viveu, porque o ser humano tem múltiplas raízes: familiares, étnicas,
regionais, nacionais, religiosas, partidárias, ideológicas. A vida é uma totalidade, componente
específico de um amálgama maior que é a coletividade. (2000, p.109 – 116).
Observando os rituais da Festança percebemos que boa parte dos moradores de Vila
Bela, quanto mais envolvidos na dinâmica das festas, mais representam, mais retomam o
passado e, por intermédio desta criação cultural, procuram apresentar-se resistindo ao tempo
marcado pelo relógio. Encenam nesse sentido a vivência do tempo da festa, visível em uma
figuração cultural marcada pelo tocar do sino, pela cadência dos ofícios religiosos, pelas
atividades da Folia do Divino, pelos cantos e danças do Congo e do Chorado, pelos fogos de
artifício e cânticos que assinalam o início das Alvoradas e ainda, pelos instantes em que
escolhem, preparam, distribuem e consomem as comidas, os biscoitos e bolos, as bebidas e os
doces.
Gostar de Vila Bela foi um tempero fundamental na realização da pesquisa. Esta
presença do bem-querer contribuiu para que as facilidades fossem vistas como dádivas e as
dificuldades, obstáculos a serem ultrapassados, ambos acompanhados de reflees sobre o
ofício de historiador.
Refletir sobre as práticas culturais no período das festas dos santos, elegendo as
comidas, doces, biscoitos e bebidas, levou-nos a diversos contatos com os habitantes de Vila
Bela, dentre os quais destacamos as conversas informais com moradores locais mais antigos,
donas de casas, jovens, lideranças comunitárias, e alguns festeiros e festeiras atuais. As
22
observões foram organizadas em um caderno de campo, onde anotávamos diariamente as
informações e comentários obtidos sobre o cotidiano da cidade e sobre a Festança.
Com a autorização dos festeiros e festeiras, observamos as cozinhas e dispensas, os
momentos da preparação, distribuição do escaldado e café da manhã para os Foliões do
Divino, do sopão para os dançantes do Congo e distribuição de bebidas durante a Alvorada,
nas visitas da Folia do Divino e na entrega dos festeiros e festeiras pelos dançantes do Congo.
Acompanhamos também a preparação, distribuição e degustação dos biscoitos, bolos e
bebidas após as rezas; e dos almoços e jantares tanto em casas de festeiros como no Centro
Comunitário.
Nos próprios locais onde estavam sendo feitas as iguarias, conseguimos a relação dos
nomes de algumas cozinheiras que participam ou que já participaram das cozinhas das festas.
De posse desta relação, selecionamos algumas, seguindo o critério estabelecido de idade mais
avançada e conseqüentemente maior experiência nessa cozinha. Num segundo momento, fora
do contexto festivo, procuramos essas senhoras para conversas iniciais, momentos em que
sondamos as disponibilidades de fornecerem informações. Posteriormente, em suas
residências, realizamos entrevistas semi-estruturadas, sendo que algumas foram realizadas na
cidade de Cáceres, pelo fato de algumas dessas senhoras atualmente residirem nesta cidade.
O roteiro das entrevistas, apesar de seguirmos tópicos pré-estabelecidos, foi bastante
flexível. Foram gravados em fita cassete, relatos de cozinheiras-festeiras
9
e de algumas
lideranças da cidade.
10
Além das fontes orais, foram utilizadas fontes documentais, das quais
priorizamos narrativas de viajantes, de Presidentes de Província, documentos oficiais, que
abordassem costumes alimentares da população de Vila Bela, tais como: sobre o consumo
9
Cozinheiras-festeiras pelo motivo de em sua maioria já terem sido festeiras.
10
. Apresentamos abaixo, a relação nominal das cozinheiras festeiras e demais pessoas procuradas para
fornecerem informações: Catarina Bispo de Freitas; Gregória Matos de Ramos; Andreza Pires de Almeida; Rosa
de Lima Frazão de Almeida; Ana Jonas Coelho de Brito; Cira Geraldes de Assunção; Maria Benedita Moraes
Alvarez; Cecília Aranha de Almeida; Nemézia Profeta Ribeiro de Almeida; Isaias Gonçalves de Paula; Maria
Madalena de Albuquerque; Laurice Carneiro Geraldes; Zeferino Profeta da Cruz Neto; Antônio Jesus de
Oliveira; Adão de Albuquerque; Carlos Bento de Oliveira.
23
alimentar de caças, peixes, frutas, ervas e raízes locais; sobre a criação de gado, porcos e
demais animais domésticos; sobre o plantio de alimentos, sobre a produção nos engenhos;
sobre as práticas comerciais e demais atividades relacionadas à produção e consumo
alimentar.
Os dados obtidos foram vistos como um conjunto de narrativas, que para serem mais
bem entendidas, necessitaram muitas vezes do auxilio de outros campos do conhecimento,
como da Antropologia, Sociologia, Geografia, Filosofia e Literatura.
De acordo com a documentação analisada, percebe-se que essas práticas culturais dos
moradores de Vila Bela se constituíram através das diferentes experiências reproduzidas em
diferentes tempos e frentes de trabalho e migrações, pelos diferentes grupos étnicos e sociais.
Essa diversidade cultural nos remeteu às análises de Ilka Boaventura Leite (2005),
quando dissertando sobre a identidade cultural brasileira, enfatiza que não se deve tratar as
diversidades como misturas. O conceito de um Brasil miscigenado, mestiço,o se sustenta
como garantia de uma sociedade mais democrática, caso não se respeite e reconheça as
experiências históricas e práticas culturais dos diferentes grupos étnicos existentes na
sociedade brasileira.
Em Vila Bela, não podemos deixar de observar que mesmo com a predominância do
negro, marcando o perfil da população desde os tempos da colonização portuguesa, a
mestiçagem foi uma de suas características, semelhante ao observado na população da
Capitania de Mato Grosso, de acordo com os estudos de Maria de Lourdes Bandeira
(1988)
11
e de Leny Caselli Ansai.
12
Partindo dessa premissa e considerando a ocorrência de
11
De acordo com Bandeira (1988, p. 50 – 51), em 1780, a população de Vila Bela e seus arraiais somava 5.199
habitantes, segundo o Mapa Geral da População da Capitania de Mato Grosso. Esse mesmo mapa registra 795
habitantes do Forte Príncipe da Beira, e missões de índios adjacentes, que somados aos da cidade e arraiais de
Vila Bela totalizam 5.994 habitantes. Consta desse mapa uma observação de que “ três quartas partes, ou mais
ainda” dos habitantes da Capitania, são negros, mulatos ou outros mestiços das muitas diferentes espécies que
há nestes paizes, sendo a mais considerável parte a dos que tem aliança com os ditos negros de África sugeitos
ao cativeiro.” A estimativa censitária de 1800, apontava para Vila Bela, conforme Virgílio Correia Filho, uma
população de 7.105 almas, constituída de 504 brancos, 131 índios, 5.163 pretos, 1.307 mulatos. Nesse número
incluem-se 3.980 escravos, dos quais 3.848 eram pretos e 132 mulatos.
24
processos de trocas culturais e a circulação de informações entre os diferentes grupos étnicos
e sociais em Vila Bela, analisamos a Festança como um complexo cultural onde a diversidade
cultural faz-se presente por meio de algumas práticas tais como o jeito de preparar e dar sabor
aos licores, a utilização das especiarias, raízes e a aura de significados colocados em algumas
bebidas, como o Canjinjin; o tempero especial das comidas; o sabor dos biscoitos e doces; a
necessidade de teras mãos leves e certa habilidade para a confecção do biscoito de Ramos;”
e “o carinho e o amor como ingredientes fundamentais para tudo dar certo e ficar saboroso.
13
Essas práticas podem ser consideradas também como sinais diacríticos, estratégias criadas,
recriadas e nomeadas ao lado da Festança, como representações que possam identificar
segmentos da população, como “os negros de Vila Bela.”
Segundo as análises de Manuela Carneiro da Cunha, não se pode manter a idéia de
uma tradição cultural que se adapta a novos meios ambientes e se perpetua como pode, diante
dos obstáculos impostos por um novo meio. A noção que se depreende é que a tradição
cultural serve de reservatório, onde se irão buscar à medida das necessidades no novo meio,
traços culturais isolados do todo, que servirão essencialmente como sinais diacríticos para
uma identificação étnica. A tradição cultural seria, assim, manipulada para novos fins, e não
uma instância determinante. (1996, p. 87 – 89).
Ao lado dessas formulações, necessário refletir sobre as análises de Chartier (2001,
p.169 – 170), sobre a questão da produção da identidade, quando coloca que nos tempos
atuais existe uma tendência em identificar história e memória, de construir histórias
particulares vinculadas aos desejos e expectativas de comunidades, em particular aquelas que
foram marginalizadas, ou às identidades reprimidas, que, com o uso dos recursos do passado,
tentam fundamentar sua identidade reconquistada ou afirmada, seja em vel da identidade
12
Segundo Leni Caselli Ansai (2004, p. 64), “a base da população da capitania de Mato Grosso, da qual Vila
Bela fazia parte, era predominantemente indígena, formada por diversos grupos que poucos brancos procuravam
dominar. Marcava também o perfil demográfico da capitania uma presença significativa do escravo negro trazido
para as lavras de ouro. Desse modo, a mestiçagem foi uma de suas características principais.”
13
Relatos de Catarina Bispo de Freitas e Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1998
25
nacional dos novos Estados-Nações, ou das identidades étnicas, religiosas, sexuais, etc.
Chartier assegura que, as expectativas por parte desses indivíduos e comunidades devem ser
respeitadas, assim como o reconhecimento de suas identidades como legitimas, o que não
significa que sejam razões suficientes para considerar que a história que produzem pertençam
à história, tal como a define Michel de Certeau, apoiada em operações técnicas controláveis, e
verificáveis mediante regras compartilhadas.
Sobre a operação historiográfica de transformar uma pesquisa num texto histórico,
encontramos apoio teórico nas análises de Regina Beatriz Guimarães Neto, quando coloca a
importância do saber transitar pelos caminhos da teoria, documentação e metodologia,
requisitos fundamentais para o pensamento. São questões que segundo a autora, estão no
centro dos debates historiográficos contemporâneos, abrindo-se a diferentes abordagens
metodológicas e aproximações com outras áreas de conhecimento. Novas tendências que
indicam profundos deslocamentos, rupturas teóricas e mudanças conceituais articuladas com
as discussões provenientes das críticas direcionadas às meta-narrativas, a partir de uma
epistemologia da diferença. São pontos a serem observados, porque possibilitam à imaginação
criadora através das metáforas, reinscrever palavras que representem melhor a trama.
Esclarece também que a prática de se recontar as histórias, apresenta-se para o historiador
como possibilidades de se entrar na dimensão da invenção da experiência humana ou seja,
relatar ações e feitos, acontecimentos que efetivamente ocorreram, procurando ser um
“descobridor” / artífice da palavra, numa interação com a ação ( práksis e léksis), a fim de
poder fazer perdurar e fixar à memória os feitos humanos, articulando as ligações essenciais
entre o “real” e o relato, problemática da relação entre narrativa e história. ( GUIMARÃES
NETO,2000, p.108 – 114).
Nesse processo devemos estar cientes de que estamos lidando com as certezas e
incertezas, as diversidades, o diferente, o heterogêneo, “operando com as coisas”e
26
significados, na perspectiva de que estão em rede. Toda pesquisa histórica se encontra
associada a um lugar de produção em que os aspectos sócio-econômicos, políticos e culturais
são instituintes. (MONTENEGRO, 2003, p.05). Necessário estar com a razão aberta,
complementando um pensamento que separa por um pensamento que une, ou seja, distinguir
sem separar, percebendo que existem espaços de inter-relação dialógica entre a ordem, a
desordem e a organização, elementos que estão presentes e em ação no mundo físico,
biológico e humano. (MORIN, 1996, p.10 – 14).
No sentido de dar visibilidade a trama proposta, dividimos a narrativa em três
catulos:
No primeiro catulo, procuramos realizar um percurso pela história de Vila Bela,
através das descrições produzidas por viajantes, Presidentes de Província, pesquisadores da
cultura local, doculo XVIII até final do século XX, no sentido de entender circularidades e
influências de práticas culturais nas festas atuais. Priorizamos as observações relacionadas às
práticas alimentares; aos usos e à perda do espaço territorial, aos deslocamentos de moradores
para outras localidades, às atividades e ajustamentos da população diante dos processos de
modernização, por meio da reestruturação dos saberes e hábitos tradicionais. ltiplas
reapresentações de experiências, de acordo com os grupos sociais dos quais esses homens e
mulheres são partes, em diferentes temporalidades.
No segundo capítulo, apresentamos uma descrição das práticas sociais do complexo
cultural da Festança, vista como um sinal diacrítico. Descrevemos as festas do Divino Espírito
Santo, São Benedito e Santíssima Trindade, por meio dos rituais como o da Folia do Divino,
as rezas, a Alvorada, dança do Chorado, dança do Congo, os processos de escolha,
preparação, distribuição e consumo das comidas, bebidas, doces, bolos e biscoitos, espaços
fundamentais de sociabilidades e de constantes processos de reelaborações culturais.
27
No terceiro capítulo, apresentamos algumas construções culturais de parte da
população de Vila Bela da Santíssima Trindade, envolvida com as atividades referentes à
escolha, preparação, distribuição e consumo das comidas, bebidas, doces, bolos e biscoitos da
Festança. As fontes principais foram, além das observações realizadas no decorrer da
Festança, os relatos escritos e orais, vistos como um conjunto de experiências caracterizadas
pela diversidade e heterogeneidade, que permitiram diferentes transcursos pela história de
Vila Bela. A Festança e seus rituais foram considerados como espaços em que as relações
sociais apresentam-se vinculadas pelo compromisso com o sagrado, e a diferentes
representações, de acordo com “processos de seleções e combinações sempre renovadas,
produto de encenações, em que o que é escolhido e adaptado, é dado de acordo com o que os
receptores podem escutar ver e compreender”. (CANCLINI, 1997, p.200 – 201).
28
1. PERCURSOS POR VILA BELA: PRÁTICAS CULTURAIS EM DIFERENTES
TEMPOS
“O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo”, uma flor, um
pássaro, uma dama, um castelo, ummulo. Também se pode bordar nada.
Nada em cima de invisível a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro.”
(José Américo Motta Peçanha, 1992)
Iniciamos um percurso por Vila Bela da Santíssima Trindade enfatizando algumas
práticas culturais de seus moradores, relacionadas a costumes e recursos alimentares, por
meio das descrições de alguns viajantes, relatórios de Presidentes de Província, estudos de
diversos autores sobre a cultura local e recordações de alguns moradores da cidade.
Reapresentações em que estão plasmadas experiências, expressões de pensamentos, valores,
normas, comportamentos, temporalidades, contextos e escolhas de diferentes grupos sociais,
do qual esses sujeitos são parte.
Entendemos que as explicações sobre essas diferentes mobilidades, suas ligações com
a temporalidade e o conhecimento podem ser explicadas pelas assertivas de Norbert Elias, ao
sugerir que uma reflexão sobre o tempo e a idéia de um universo dividido em setores
hermeticamente fechados, deva ser substituída pelo reconhecimento das imbricões tuas e
a interdependência entre natureza, sociedade e indivíduo. Para Elias, o saber resulta de um
longo processo de aprendizagem, que não teve um começo na história da humanidade. Todo
indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora, constrói a partir de um patrimônio de
saber já adquirido, o qual ele contribui para aumentar. (1998, p.10)
.
Buscamos ainda as reflexões de Antônio Torres Montenegro, ao explicar que diversos
são os caminhos que possibilitam revisitar o passado. Perplexidades, indagações, imbricadas
ao presente, à história vivida, às formas como as relações sociais, poticas, culturais e
econômicas se arquitetam e se transformam, num tempo em que a produção do real institui
29
um presente sem distâncias geográficas, medido pela velocidade e marcado pelas
permanências e rupturas, que se recriam de diferentes formas. (2001, p.9).
É oportuno elencar também as análises de Nestor Garcia Canclini, ao observar que as
práticas culturais não são depositárias da verdade, são sempre re-apresentações, encenações
na qual se escolhe e se adapta o que vai ser representado. (1997, p.200 – 2001).
Colocando como cenário os conceitos apresentados, inscrevemos alguns relatos sobre
representações culturais dos moradores de Vila Bela, protagonistas de diferentes identidades
em diferentes tempos e grupos sociais.
[...] quadros sucessivos que olhados de perto se mostram animados pela
intersubjetividade de homens, mulheres, falias e grupos culturais que não
deveriam perder a sua face nem se reduzir às classificações. Que desejos e
pensamentos habitaram o cotidiano e que ideais e paixões animaram os
gestos destes atores
? (BOSI, 1992, p.26).
1.1 – Julho: Vila Bela no tempo da festança
Observar a Festança através de seus rituais permite que se faça reflexões sobre um
conjunto de representações, em que moradores de Vila Bela no espaço de seu patrimônio
cultural, “a cultura da festa”,
14
vão gradativamente tecendo suas experiências através do
tempo, em processos sempre renovados de combinações, modificações e seleções de suas
fontes (CANCLINI, 1997, p.200 – 201), de acordo com as necessidades impostas pela
modernização.
No mês de julho, sobretudo em meados da segunda quinzena, a cidade se transforma,
envolvida pelo ritmo das festas em homenagens aos santos. Encontramos referências a esse
costume em alguns documentos, como nos Anais de Vila Bela de 1734.
14
Sobre “Cultura da Festa” ver Glória Moura (1998, p.14).
30
[...] a 21 de novembro se benzeu a capella de Nos(s)a Senhora May dos
Homens que nessa villa fabricou o Juis de Fora comcorrendo alguns dos
moradores destas Minnas com suas esmollas para ella, e sendo Sua
Excelência que primeiro a fes e no seguinte dia da benção se deu princípio à
solemnidade de hum Tríduo e ao depois continuando huma novena, se
findou com outro dia de festividade. (CÔRTE – REAL, 1940, p.22).
Alguns viajantes que passaram pela cidade deixaram relatos sobre estas
comemorações. Francis Castelnau em 1845 encontrou a população festejando Santo Annio,
assim como João Severiano da Fonseca, que por volta de 1877, registrou em fins de julho, as
homenagens ao Divino Esrito Santo, Santo Antônio, São Jo, Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito. (SEVERIANO DA FONSECA, 1881, p.136; CASTELNAU, 1949, p.365).
Além das homenagens aos santos, acontecia também nesses períodos festivos, a desobriga,
15
ou seja, a realização de batizados, casamentos, crismas.
Para Maria de Lourdes Bandeira, a concentração do calendário das festas dos santos
comunitários em um dado período, pode ter tido como pretexto a vinda dos padres na
desobriga, mas certamente atendia a outras motivações e interesses relacionados com a
própria comunidade. Situadas na estação das secas, no período de junho a setembro, as festas
eram realizadas entre meados de setembro e final de outubro, o que de certo modo, reforçava
o ajustamento da data com a vinda dos padres. Entretanto, a presença do padre, embora
desejada e buscada, não era colocada como condição ou pré-requisito de realização da
festança, que sempre se realizava entre o peodo de rado e plantio, após o peodo das
colheitas e término de extração da poaia. Uma possível associação do ciclo de culto aos santos
comunitários ao ciclo agrário. (1988, p.249 – 255).
Sobre o atual calenrio festivo, marcado para o mês de julho, relacionamos alguns
comentários, como o de Isaias Gonçalves de Paula:
15
Visita periódica de padres a locais desprovidos de clero, com o fim de desobrigar, ou seja, proporcionar
ocasiões aos fiéis católicos de receberem os sacramentos, principalmente o batismo e matrimônio (FERREIRA,
1986, p.570). Segundo informações de alguns moradores de Vila Bela, desobriga era a visita esporádica do
padre ou mesmo do bispo, à cidade.
31
[...] mudaram de características com a mudança da capital. Antes cada santo
era festejado no seu dia. Depois, a cidade ficou à mercê dos leigos, pois com
os brancos, foram embora também os padres. E os negros foram obrigados a
agruparem seus santos e aproveitarem a ocasião que o Senhor Bispo vinha
em desobriga, para fazer os casamentos, batizados, primeira eucaristia,
crismas, uma vez por ano, quando festejavam também os santos de devoção.
Comemorava-se o Divino Espírito Santo, São Benedito, Santíssima
Trindade, Nossa Senhora do Rosário, protetora dos negros, Nossa Senhora
do Carmo, Mãe de Deus, Nossa Senhora do Pilar, Santa Ana, Imaculada
Conceição.
16
Dona Gregória, afirma que houve a transferência das comemorações para o mês de
julho, calendário atual, na gestão do Sr. Tito Profeta, prefeito da cidade entre 1981 e 1985.
Quando o Tito foi prefeito, é que ele fez uma reuno e a festa foi pro s de
julho, porque tinha muita gente de férias, os alunos que estudavam fora, ai
tinham tempo de participar da festa. Antes era qualquer mês, quando o padre
vinha, era o tempo. Era outubro, era setembro, era agosto. Só o vi de maio
pra trás, porque eras das águas. Aí, fazia todos os santos, por isso falava
Festança. Era a semana inteira de festas. Tinha o Senhor Divino, depois dois
dias de São Benedito, Senhora do Rosário, missa de Nossa Senhora do
Carmo, de Nossa Senhora da Conceição, Mãe de Deus, ai no domingo era da
Santíssima Trindade. Era a semana inteira de missa com o objetivo de por
ser um mês de ferias, facilitar a vinda das pessoas para a festa
.
17
Observa-se que o ciclo da Festaa, nos tempos atuais, compreende dois peodos
interdependentes: o período preparatório, de mobilização da comunidade através da Folia do
Divino, ensaios dos dançantes do Congo, abrangendo 30 a 40 dias, novenas, preparação
litúrgica para a semana da festa, ensaios do Coral Consciência Negra, e o período de
realização das festas, com duração de 8 dias. Esses festejos compreendem um conjunto de
rituais como as rezas, missas, visitas da Folia do Divino, Dança do Congo, Dança do
Chorado, Alvoradas, distribuição de comidas, doces, biscoitos e bebidas, onde têm papel
destacado as Irmandades de São Benedito e do Divino Espírito Santo, os festeiros do ano,
lideranças religiosas católicas, poticas, assim como a própria comunidade.
18
16
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1999.
17
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
18
Relatos de moradores de Vila Bela apontam que até a década de 1960, nessas festas estavam incluídas também
homenagens a Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora
do Rosário e Mãe de Deus.
32
Com a aproximação da semana da festa, grande mero de pessoas passam a chegar à
cidade, para participarem dos eventos e são esperadas pelos parentes e amigos, sendo que
muitos se emocionam pelas possibilidades dos reencontros. Para Isaias, Vila Bela representa o
aconchego: “Moro em Cáceres faz mais de dez anos, mas é aqui na Vila que venho me
reencontrar. Chego cansada, mas assim que chego acaba o cansaço”.
19
Para Dona Maria Benedita, também moradora de Cáceres: “Quando eu chego em Vila
Bela, o que mais toca o meu coração é chegar em minha terra natal. Meu coração fica até
doendo. E quando eu encontro com o meu irmão Manoel! E também com as outras pessoas!
Todos me tratam bem, eu não tenho do que me queixar”.
20
Encontros, reencontros, são expressões muito usadas na tentativa de se explicar as
sensações. Demonstram a importância da relação familiar e comunitária, e ainda, como são
importantes para a sustentação das tradições no espaço da festa. De acordo com o Sr.
Zeferino, a Festança é:
Uma coisa boa para o povo conservar, porque é a continuidade das tradições.
Para a cidade é muito bom estas festas, vai ser um pólo para o turismo,
enriquecer também o Estado, porque é a identidade do Mato Grosso. E o que
faz a identidade é a cultura do povo. Vai criar aquele amor por Mato Grosso,
pelo Brasil. Ninguém inova nada. A festa é um modo de concentração de
vilabelenses que estão fora, como no Rio de Janeiro, São Paulo, Cáceres,
Cuiabá, Guaja-Mirim, que é um povo muito bom.
21
As afirmativas do Sr. Zeferino apontam a necessidade de adaptações da Festança aos
novos tempos e a novos fins. Nesse contexto, de acordo com as necessidades impostas, a idéia
de uma tradição cultural se adaptando aos novos tempos. Daí a ênfase dada à participação de
pessoas oriundas de Vila Bela, independente de estarem ouo morando na cidade. Por isso,
19
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1998.
20
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
21
Relato do sr Zeferino Profeta da Cruz Neto. Vila Bela, 1998.
33
o destaque àqueles que residem em Guajará-Mirim, localidade com grande concentração de
grupos familiares oriundos de Vila Bela.
22
Dentre as inúmeras observações sobre a Festança, deparamos com algumas indicando
outros significados para as representações destas comemorações, como: a legitimação de
processos de uma potica cultural da festa, implementada pelo poder político, por meio de
discursos de representantes do Estado, que se fazem presentes,
23
como também observações
em artigos para a imprensa e folder, situando a Festança como algo tradicional, um
patrimônio do Estado e que, como tal, precisa ser conservada. Ressaltamos as observações
abaixo:
Resgatar a riqueza histórica e cultural de Vila Bela da Santíssima Trindade
era um compromisso pessoal que agora temos a honra de cumprir.[...]
Primeira capital de Mato Grosso, preservou durante séculos as manifestações
culturais de seu povo, talvez até mesmo pelo isolamento a que o município
esteve submetido até o momento. Buscamos, assim, ressaltar os laços
históricos, unindo à nova expansão da fronteira agrícola e industrial,
construindo ousadamente o Brasil que todos sonhamos. As nossas festas, os
nossos costumes, o nosso passado, a nossa especialíssima condição de maior
centro de preservação da cultura negra estarão, a partir de agora, ao alcance
de todos (AZEVEDO et al., 2001).
Refletindo sobre essa relação da Festança colocada como um patrimônio do Estado,
buscamos as análises de Canclini, ao colocar que uma potica cultural deve levar em conta
que um patrimônio pode possuir algumas características como: o arcaico, ou o que pertence
ao passado e é reconhecido como tal por aqueles que hoje o revivem, de um modo
deliberadamente especializado; o residual, que se formou no passado e ainda se encontra em
atividade dentro dos processos culturais, e o emergente, que designa novos significados e
22
Sobre Guajará Mirim, cidade localizada no Estado de Ronnia vale destacar os festejos anuais em
homenagem ao Divino Esrito Santo que ai são realizados, como também em outros municípios do Estado..
Considerada a mais antiga tradição popular da região, é mantida pela população ribeirinha e possui fortes laços
culturais e étnicos vinculados aos negros de Vila Bela. Maiores informações ver: SOMBRA, Maria Eliene
Sombra (2005). Durante o período em que realizamos a pesquisa, observamos chegarem a Vila Bela ônibus
especiais vindos de Guajará-Mirim, com grupos de pessoas, independente dos laços de parentesco, interessadas
em participar da Festança.
23
Principalmente na segunda e na tea-feira, dias consagrados às homenagens a São Benedito, representantes
do poder político estadual como Governador do Estado ou seu representante, deputados e outros, se fazem
presentes.
34
valores, novas práticas e relações sociais. Levar em conta também que, a inserção da cultura
nas relações sociais mudou com a modernidade, onde os vínculos com a tradição não se
efetuam através de uma relação ritual, de devoção a obras únicas, com um sentido fixo, mas
mediante o contato instável com mensagens que são difundidas em múltiplos cenários e
propiciam leituras diversas. (CANCLINI, 1997, p.197 – 199).
Aproximando-se os dias da festa, gradativamente vão-se agregando na cidade
vilabelenses e não vilabelenses que vivem nas diversas partes do município, como em cidades
mais próximas como Pontes e Lacerda, Cáceres, ou mais distantes como Cuiabá, capital do
Estado, Porto Velho, Guajará-Mirim, cidades localizadas no Estado de Rondônia e ainda de
outros Estados.
Essa presença maciça de pessoas pode trazer certa aflição aos festeiros e festeiras,
preocupados com a confecção de comida que dê com fartura para todas as pessoas. É o que
podemos perceber através das palavras de Dona Gregória, quando relata suas experiências na
direção da preparação e confecção do banquete em sua casa, no ano em que seu esposo, o Sr
Manoel, foi Rei na festa para São Benedito, em 1996:
Meu marido quando foi festeiro, Bia falou assim: “_Comadre, vem três
ônibus de Cuiabá, dois de Cáceres e três de Guajará-Mirim.” Aí, eu fiquei
assim pensando. Eu ia conversar com a comadre e ela falava: “_ Comadre,
você está muito apavorada!”Naquele ano (1996), acho que foi o ano que veio
mais gente. Foi no primeiro ano em que o Joel foi prefeito, e ele esparramou
convite por tudo quanto é lado. Veio tanta gente! Eu fiquei assim, menina,
quando via os ônibus chegando. Pensava: Será que esta comida vai dar? Até
que chegou o dia d’eu dar a janta. Mas eu fiquei num estado de nervo.
Nervosa mesmo. Mas na hora que eu vi tudo pronto, despachando, eu fiquei
mais calma. Minha filha falava pra mim assim: “- Mamãe, a senhora está
nervosa demais. Está a ponto de bater um derrame!” Fiquei nervosa, e acho
que todo festeiro fica nervoso, mas depois que tudo pronto, sei lá.
24
Nesse período, que se estende por quase duas semanas, desde o inicio das visitas da
Folia do Divino Espírito Santo em casas da cidade, até as homenagens aos santos
comemorados, as danceterias, os bares existentes, e aqueles que são criados especialmente
24
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela, 1999.
35
para funcionarem durante a semana da festa, as barraquinhas
25
instaladas próxima à praça
central da cidade, agitam a vida da cidade. É dicil encontrar hospedagem nos hotéis e
pousadas, pois é grande a presença de turistas, estudiosos da cultura mato-grossense,
profissionais ligados aos meios de comunicação, vendedores ambulantes, moradores de
cidades vizinhas.
De acordo com dona Laurice Carneiro Geraldes, mesmo assim, são momentos de paz
e segurança, decorrentes de um tempo e espaço delimitados como territórios sagrados,
marcados pelas homenagens aos santos:
Durante o transcurso da Festança,o acontecem brigas, confusões. As
pessoas de fora, os turistas, podem até ficar, como ficam, a noite toda, nos
bancos da praça, porque não acontece problema algum, porque é o momento
da festa, para os santos.
26
Os efeitos dessa concentração de pessoas, que atinge o seu ápice na festa para São
Benedito, na segunda e terça feiras, após as comemorações do Divino Espírito Santo, chegam
até as rodas de bate papo defronte das casas ou na praça de frente da igreja, onde moradores
mais idosos observam e tecem comentários sobre a cidade fora de seu ritmo normal, e os
jovens, sobre a movimentação desse tempo, tão diferente do cotidiano, porque é o tempo da
festa. Momentos que deixam plasmadas diferentes visões de mundo,
mas que permitem
“processos de interações, combinações e transculturações, geradoras de novos significados e
temas culturais” (VELHO, 1995, p.229).
25
Nestas barraquinhas as pessoas vendem comidas, bebidas, souvenir e demais mercadorias que normalmente
são procuradas nos eventos populares. São propriedades tanto de pessoas da cidade como de comerciantes
ambulantes de outras localidades.
26
Relato de dona Laurice Carneiro Geraldes. Cáceres, 1999.
36
1.2. Primeiros tempos: Cotidiano marcado pela carestia e circularidade nas práticas
alimentares
Documentação sobre o período que denominamos de “primeiros tempos,
27
início do
culo XVIII, apontam a presença dos grupos étnicos branco, negro e indígena, nas terras
onde se localiza o município de Vila Bela. A crescente ocupação desse espaço, área territorial
entre a Chapada dos Parecis e o rio Guaporé, indica que a efetiva descoberta de ouro atraiu
um intenso fluxo migrario,
28
o que fez surgirem vários povoados, como os de Nossa
Senhora do Pilar, São Francisco Xavier, Santa Anna, Ouro Fino, Lavrinhas, São Vicente,
pontos de apoio e de aglutinação daqueles que cada vez mais se adentravam pelas terras, áreas
de ocupação tradicional de povos indígenas. (VOLPATO, 2000, p.34).
A febre de riquezas atraiu centenas de aventureiros, que na busca de novas lavras,
foram expulsando os indígenas e de maneira precária, criando os núcleos de povoamento. O
eixo-minerador que localizava-se nas terras banhadas pelos rios alto-paraguaios, deslocou-se
no sentido oeste, fazendo surgir novos arraiais no vale do Guaporé, bacia amazônica, região
conhecida como Mato Grosso, em terras consideradas como castelhanas (COSTA, 2001, p.6).
Dentre os povos indígenas que ocupavam essas terras, ressaltamos os Nambiquara. Em
seus estudos sobre os Nambiquara do Vale do Guaporé, Moreira da Costa, coloca que eram
freqüentes os confrontos da população migrante com os indios. Após a descoberta do ouro nas
terras de Vila Bela, uma parcela do povo Paresi foi escravizada, enquanto que os grupos
Nambiquara, mesmo vivendo mais próximos dos arraiais, continuaram de certa maneira,
27
Primeiros tempos a partir da presença dos grupos étnicos, branco e negro, porque todas as terras onde se
localiza o município de Vila Bela, eram anteriormente áreas de grupos indígenas. Segundo as descrições de
Alexandre Rodrigues Ferreira, os povos indígenas que habitavam as margens dos rios e áreas da Serra dos
Parecis, foram quase todos extintos pelos sertanistas ou aldeiados pelos missionários espanhóis (1974, p.27-29).
28
“Não obstante as diligências e medidas que tomou o ouvidor Villas Lobo, para impedir a imigração, que desde
logo, principiou a se effectuar, passou-se muita gente às minas de Matto Grosso”.(ROHAN, 1910, p.61)
37
protegidos, por causa da representação de que eram índios selvagens e antropófagos”. (2000,
p.34).
Antonil descreve que “os paulistas nunca abandonavam a caça ao índio, nunca
deixando de procurá-los em suas penetrações no sertão. Davam tanto valor ao ouro como ao
braço indígena, mas o negro foi a força de trabalho essencial na mineração”(1967, p.90), pois,
com as dificuldades de captura dos índios, passaram a utilizar a mão de obra negra no trabalho
das minas e como remadores dos comboieiros. É o que podemos também perceber em cartas
de Rolim de Moura, quando diz que:[...] a quem não cesso de representar a necessidade que
têm estas minas, de pretos, e quem em se lhe facilitar a introdução, se funda o seu aumento;
[...] ” (1983, v.2, p.84,).
29
Sobre a crescente presença de escravos africanos, os relatos de
Gonçalves da Fonseca, indicam que:
Compõem-se os moradores de todas estas estâncias, ou arraiaes de sete casas
de gente branca, seis de mesclada e da plebe ínfima, que são bastardos,
mulatos, e pretos libertos há maiormero; de sorte que, pelo rol da
confissão, se sabe haver entre brancos, e os mais acima nomeados oitenta
pessoas. Negros de Guiné escravos consta pelo livro da matricula da
capitação, haver o número de mil e cem. [...]. (GONÇALVES DA
FONSECA, 1866, p.356)
Muitos desses negros escravos fugiam para as matas do Guaporé, formando quilombos
em território indígena, como nas terras dos Nambiquara do Vale do Guaporé, mantendo
guerras freqüentes com esse grupo, a fim de raptar suas mulheres e saquear suas roças
(MOREIRA DA COSTA, 2000, p.32 – 55).
Reino do Eldorado ou da miséria? Indaga Lylia Galetti, quando descreve o cotidiano
nas regiões auríferas de Mato Grosso (2000, p.61). Continuando a descrição, Galetti diz que:
de acordo com os relatos dos cronistas, “o brilho do ouro contrastava com um cotidiano
29
MOURA, Rolim de. 1754,vol 1, p. 122-123. Em carta a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Rolim de
Moura coloca que:[...] mas para facilitar o dito comércio é ciscunstância essencial a introdução de negros,
pois como Vossa Excelência sabe muito bem, os brancos sem eles em toda a parte da América, e principalmente
em minas quase se pode dizer que são inúteis”.
38
marcado pelas doenças, privações de todos os tipos, mortes violentas em confronto com os
indígenas.” (2000, p.61).
Sobre o cotidiano nas terras da Capitania de Mato Grosso, ressaltamos inicialmente os
estudos de Leny Caselli Ansai (2004), quando esclarece que nesse período, o convívio que
mesmo se pretendesse pacífico, de diferentes grupos humanos, independente do lugar social
que ocupavam, expunham as pessoas aos perigos das doenças, resultantes da troca de vírus e
bactérias e todas as suas manifestações nos difíceis caminhos coloniais. Além dessas trocas
naturais, o dia a dia nas minas, nas matas, nos rios, mostrava-se extremamente perigoso e o
grande risco que acompanhava a todos era a morte prematura por acidente, por doença ou por
ataque de animais.
Vila Bela durante o peodo das enchentes, entre os meses de janeiro e mao, se
alagava com as cheias dos rios Guaporé, Sararé, Galera, e ribeirões, fazendo com que as
febres, doenças respiratórias como “constipações”, atacassem a população. Com o avanço do
verão, era o momento das “carneiradas, que englobavam as febres podres”, malignas e
intermitentes, as “corrupções”,garrotilhos”, pontadas, disenterias, e outras moléstias, que
infestavam a vila e os arraiais. Descrevendo as observações de Alexandre Rodrigues Ferreira,
Ansai destaca que, segundo esse viajante, algumas das doenças que abatiam a população,
como as “obstruções”, eram ocasionadas pelo sedentarismo, as inquietações do espírito, e a
ingestão de alimentos grosseiros de uso cotidiano, como a farinha, biscoito de milho feito com
farinha azeda, canjica, feijão cozido com toucinho, carne de porco, batata, cará, inhame,
aipim, e outras raízes “flatulentas”, comidas puras ou acompanhadas de mel de engenho,
chocolate e mocotó. Também contribuíam para a obstrução, na visão de Ferreira, as águas
impuras e o excesso de umidade, além do fato comum de dormirem descobertos ao
sereno.(ANSAI, 2004, p.96 – 110).
39
Encontram-se nos Anais de Vila Bela, indicações de que: “muitas das doenças
procediam não só de estarem estes ares ainda brutos, mas principalmente pella falta de víveres
para o sustento ainda dos que produz o Paiz. Não havia mais que feijão, e toucinho, e ainda
este com trabalho se alcançava dos sítios antigos da chapada, e com mais falta, e trabalho se
conseguirão as galinhas, e era o su(s)tento ordinário a caça de aves do matto, e o peixe do rio
que neste anno foi bastante.”( CÔRTE-REAL, 1940, p.19).
Por volta de 1736, nas terras auríferas de Vila Bela, “um alqueire de milho era vendido
a seis oitavas; um de feijão a dez e vinte oitavas; uma libra de carne verde a duas oitavas; uma
de toicinho salgado a duas e meia oitavas; um frasco de aguardente a quinze oitavas; um prato
de sal a quatro oitavas; uma libra de açúcar a sete oitavas; uma galinha a seis oitavas; uma
caixeta de marmelada a cinco oitavas; um barril de sal de ¾, a vinte e sete oitavas de ouro”.
(CORREIA FILHO, 1994, p.246).
Diante dos altos preços das mercadorias provenientes das dificuldades com o
abastecimento, alguns moradores passaram a se preocupar com o plantio de lavouras de
mantimentos, e para isso deslocando negros escravos, [...] “dos quais somente seiscentos é
que se poderão empregar nas faisqueiras e lavras, por se ocupar o resto em lavouras de
mantimentos; cujas fazendas se acham estabelecidas na planície em circunferência da
chapada, entre esta e o Sararê”. (GONÇALVES DA FONSECA, 1866, p.356).
Gonçalves da Fonseca coloca como um dos motivos dos altos preços as constantes
remessas da produção aurífera do Mato-Grosso para Cuyabá, como pagamento pelo
fornecimento de mercadorias para a população do Mato Grosso. “Escravos e gêneros secos e
molhados, que vindos da cidade do Rio de Janeiro, chegavam em Cuiabá com exorbitantes
preços, acrescidos das parcelas de direitos e fretes de conduções”. (1866, p.356). Dentre os
produtos importados o de maior importância era o negro, pois era a força de trabalho essencial
nos trabalhos de mineração. E, dentre os gêneros secos e molhados, o sal:
40
Um alqueire de sal, que embarrilado no Rio de Janeiro, sai custando 2$ 200;
posto no Mato-Grosso pelo caminho do Cuyabá faz de despesa 28$240, que,
junto ao seu primeiro custo importa 30$940, e o mais acomodado é por vinte
e cinco oitavas de ouro: pois que em muitas ocasiões tem valido a trinta e
duas; e já houve aperto, em que cada prato de mesa, valeu cheio de sal seis
oitavas. (GONÇALVES DA FONSECA, 1866, p.357).
Os altos preços de fazendas, secos e molhados, cujos custos eram os mesmos do
transporte do sal, os preços dalvora e ferramentas que impediam os empreendimentos em
novas descobertas auríferas e os altos preços dos alimentos produzidos nas localidades
circunvizinhas, levavam os moradores de Vila Bela e povoados próximos, a viverem em
contínua penúria.
Acresce à exorbitância das fazendas de fora, o alto preço de viveres e mais
mantimentos do país, porque o sustento ordirio, que consiste em feio,
toucinho e farinha, corre cada alqueire d’esta e dos legumes a duas oitavas, e
cada porco em sua perfeita criação a vinte cinco oitavas. Do sustento
particular, quando é vaca, é por duas oitavas a arroba, galinhas a três quartos
cada uma, patos e capões a meia oitava. Peixe, se alguma pequena porção
aparece, é salpresado e se vende por um pro extraordinário, sobre o ser a
melhor vianda para a saúde n’aquelle extravagante clima. (GONÇALVES
DA FONSECA, 1866, p.357).
Diante dos problemas apontados, percebe-se que num espaço em que a regra era viver
em função da extração do ouro, a população supria a falta de víveres e a carestia, com os
hábitos de coleta, de caça, que faziam parte do cotidiano das pessoas.
A produção das pequenas roças de feijão, milho, abóbora, batata-doce, mandioca, que
cresciam juntos aos caminhos próximos das minas não eram suficientes para o suprimento das
necessidades alimentares da crescente população, que pagava a preço do ouro, os gêneros de
primeira necessidade, um estímulo às atividades comerciais. De acordo com Antonil, as áreas
mineradoras sempre eram um terreno fértil para o comércio, que atraia elementos de todas as
camadas sociais. Alguns produtos comercializados eram considerados essenciais, como o
fumo e a aguardente, porque era opinião corrente de que o uso dos mesmos pelos escravos,
ajudavam a suportar melhor a permanência e o trabalho nos ribeiros, ainda que mal vestidos e
41
mal alimentados.Dentre os produtos comercializados, os comestíveis, a aguardente, a garapa e
os doces, eram os que revelavam as habilidades especiais das “negras cozinheiras e mulatas
doceiras”, e proporcionavam grandes lucros. (1967, p.90 - 91).
No sentido de controlar as atividades comerciais, existia uma legislação na
Repartição
30
do Mato Grosso, sendo que em 1779, a Câmara de Vila Bela da Santíssima
Trindade, relacionou uma série de pessoas multadas no exercício de atividades de pequeno
comércio, tanto na capital como nos arraiais de Pilar, Ouro Fino e São Vicente. Dentre essas
pessoas, boa parte eram mulheres, o que demonstra a participação da mulher seja forra ou
cativa, no comércio de gêneros alimentícios e bebidas, etc. (MATTOS, p.9 – 11).
As dificuldades cotidianas relacionadas ao consumo alimentar e a situação de carestia
permitiram também o desenvolvimento de atividades comerciais para o abastecimento com
outras localidades: boiadas com considerável número de reses, vindas de Cuiabá;
carregamentos de fazendas, secos e molhados, sal e ferragens, vindos do Pará; contatos
comerciais com as psperas missões jesuíticas espanholas dos Mojos e Chiquitos, que am
da prata forneciam gêneros alimentícios, gado bovino e cavalar, a troco do ouro (ROHAN,
1910, p.71 – 72).
Na província de Chiquitos havia o gado vacum e cavalar, mantimentos, e na província
de Mojos, também o gado vacum e cavalar, mantimentos, panos de algodão, cachaça, açúcar,
e o chocolate. Ressalta-se que este crescente comércio paralelo com os espanhóis, fora dos
interesses estratégicos do governo português, era extremamente viável para a população na
região, que tinha suas necessidades de produtos amenizadas. (FRANCO, 1858, p.337).
31
30
Esclarecendo sobre a formação da Capitania de Mato Grosso, Carlos Alberto Rosa explica que em 1772, a
mesma foi dividida pelo governo colonial português, em dois “Termos” ou “Repartições”: o de Cuiabá e o de
Mato Grosso. Maiores esclarecimentos ver o texto de Carlos Alberto Rosa. O urbano colonial na terra da
conquista. (2003, p.39-45).
31
GONÇALVES da FONSECA, 1866, p.383. [...] Na aldeia de S. Raphael, uma população de cerca de cinco mil
índios chiquitos, administrados por dois missionários da religião de Santo Ignácio, os índios se ocupam na
cultura de suas terras, em que lavram mantimento, algodões e assucar, e também em apascentar gado vaccum e
42
Sobre a alimentação dos negros escravos, maioria da população (BANDEIRA, 1988,
p.50-51), buscamos inicialmente as informações de Mafalda Zemella, quando descreve sobre
o consumo na região das Gerais, caracterizado pela relação entre número de habitantes e
classe social do consumidor. Mesmo sendo uma abordagem referente à população das Gerais,
alguns aspectos dos dados apontados pela autora, podem ser anexados ao contexto dos
moradores nas terras de Mato Grosso. “Os produtos usados pelos escravos, não eram os
mesmos dos senhores, e os altos preços dos gêneros alimentícios, levavam tanto a classe
servil quanto os livres a viverem em geral mal alimentados [...]” (1990, p.173). Também
Rugendas, em abordagens sobre a comida dos escravos, diz que:
A alimentação dada pelos senhores aos escravos, consiste em farinha de
mandioca, feijão, carne seca, toicinho e banana. É mais vantajoso deixa-los
preparar seus alimentos nos campos do que fazê-los perder muito tempo em
voltar para casa. [...] de manhã, antes de sua partida, e de noite ao voltarem,
o-lhes farinha de mandioca e feio, quanto à alimentação do dia, cabe-
lhes consegui-las. (1972, p.83 -87.).
As pesquisas de Cascudo, sobre a alimentação do negro escravo de Minas Gerais,
Mato Grosso e Gos, indicam que o angu de milho, toucinho e alguma carne semanal, era o
alimento básico, seja trabalhando na mineração ou na lavoura. Em algumas ocasiões a caça, a
pesca, e o uso da farinha, usada principalmente no pirão feito com o caldo dos alimentos, que
depois de cozidos, eram engrossados com farinha de mandioca ou fubá de milho. Também era
costume colocar muito alho na comida de quem trabalhava nas minas e áreas alagadas, como
também servirem doses de cachaça e de café, consideradas bebidas tônicas, medicinais.
(CASCUDO, 1967, p.224 – 231). Em alguns engenhos, os escravos costumavam aproveitar a
escuma que sobrava no processo de purificação do caldo da cana, preparando uma garapa que
cavallar, de cuja criação tem sete fazendas ( estâncias lhe chamam os hespanhoes d’aquella província)
pertencentes a esta missão.[...]
43
era consumida com farinha, banana, aipim, feijões, ou guardada em potes até azedar, e se
transformar em um tipo de bebida com teor alcoólico (ANTONIL, 1967, p.203).
Encontramos nas correspondências de Rolim de Moura, algumas observações sobre a
comida dos negros escravos. [...]pois é de saber que o sustento ordinário, que geralmente
nestas minas se costuma dar a um negro, é uma quarta de milho por semana, e aqueles que
melhor os tratam acrescentam a isso dois pratos de feijão, também por semana”. (1983, p. 86,
v.3). De acordo com Bandeira, parcela da população negra submetida a esse regime alimentar,
morria aos magotes ou envelheciam precocemente, devido não só o trabalho insalubre e as
doenças, como também pela fome. Raros eram aqueles que sobreviviam a essas condições de
vida e conseguiam chegar aos trinta, quarenta anos. Mesmo assim, inválidos, doentes e
esfomeados. Para ilustrar suas conclusões, Bandeira destaca um comentário de Rolim de
Moura, Capitão General da Província de Mato Grosso, sobre a vida do escravo em Vila Bela.
“A vida do escravo era curta e massacrada principalmente nestas minas aonde envelhecem e
se envalidam mais depressa” (ROLIM DE MOURA apud BANDEIRA, 1982, p.98). As
dificuldades cotidianas enfrentadas pela população e conseqüentemente extensivas à
população negra escrava, abrem espaço para algumas reflexões sobre os recursos alimentares
no peodo em que Vila Bela foi capital da Província.
Rolim de Moura procurava implementar as instruções da Secretaria do Conselho dos
Negócios Ultramarinos, num momento em que o principal objetivo de Portugal era garantir a
posse territorial do interior da colônia, impedir o avanço espanhol, efetivar as diretrizes
básicas do Tratado de Madri, numa área extremamente conflituosa.(SOUTO, 1985, p.25-42 ).
Percebe-se que as ações do governo colonial português em Mato Grosso, demonstram que a
finalidade geopotica se sobrepunha às ecomicas. Segundo as análises de Otávio
Canavarros, o objetivo principal da Metrópole era o de criar através de uma potica de
conquista da região e montagem de um aparelho burocrático, um terririo protetor das minas
44
gerais. Estas ações envolviam também as terras onde se localizava Vila Bela, área limítrofe
com as missões jesuíticas, em terras da coroa espanhola. Estes objetivos poticos levaram o
governo colonial a instituir Vila Bela como capital da Província, a partir de 19 de março de
1752 (CANAVARROS, 2004).
32
Construída em terreno alagadiço, sua insalubridade sempre
foi conhecida. Porém, a escolha do sitio estava ligada à proximidade das missões de Chiquitos
e Moxos, obviamente por questões de defesa (COSTA, 2001, p.10).
Às faldas das missões jesuítas espanholas, em território chiquitano, a capital situava-se
em um lugar de total insalubridade, porém fundamentalmente estratégico.Orientados pela
Coroa Portuguesa, os governantes promoveram uma vigorosa política de ocupação e defesa,
plantando fortificações, presídios, povoações, vilas e arraiais por toda a aurífera raia
fronteiriça, tanto na região do Guaporé como na banhada pela bacia Paraguaia. Era
preocupação garantir os territórios auríferos conquistados aos vizinhos castelhanos,
principalmente no vale do Guaporé, pela proximidade com as missões de Moxos, habitadas
por cerca de 22 mil almas.(COSTA, 2001, p.7).
Maria de Lourdes Bandeira ressalta que Vila Bela era um ponto focal da política de
fronteiras com a Espanha, pois, por via fluvial definia o ponto de inflexão das fronteiras a
oeste de Tordesilhas, ligando-se ao norte com Belém, ao sul com São Paulo, e através de
Cuiabá, por rotas terrestres, à Bahia e Rio de Janeiro. Em termos de Brasil, definiu um
contraponto de tensão polarizadora da unidade territorial, visualizável no mapa de rotas
fluviais e terrestres. (1988, p.80).
A partir dessas análises, percebe-se que as preocupações relacionadas com o
abastecimento alimentar da população, por parte do governo de Rolim de Moura, primeiro
Capitão General da Província, estavam inscritas num objetivo político de conquista territorial.
Em algumas de suas cartas, enfatiza a necessidade de se incentivar o plantio de alimentos e a
32
Ver também BANDEIRA (1988, p.80.)
45
criação de gado, não só para a resolução da situação de penúria e crise alimentar, mas
principalmente para efetivar a ocupação das áreas fronteiriças com as terras pertencentes à
Espanha ou em poder dos missionários espanhóis. Assegurar as diretrizes básicas do Tratado
de Madri, através de alguns princípios básicos como o “Uti-Possidetis
33
, efetivando o poder
potico metropolitano, exercido numa área longínqua do sertão, considerada o “antemural do
Brasil.” (VOLPATO, 1987, p.59)
Este movimento dos meus vizinhos, sem embargo de desacomodar por
muitos prinpios, principalmente pela despesa, que me obriga a fazer
estando esta Provedoria tão empenhada, como já tenho representado a Vossa
Excelência, por outra parte me deu o motivo, que desejava para pôr uma
guarda no Sitio das Pedras, e por meio dela poder atalhar logo qualquer
intento seu, que nos seja prejudicial: embaraçar-lhe, que tornem a ocupar as
aldeias, que deixaram, caso que as demarcações se não fam, a dar calor a
se situarem mais moradores por este rio, e os que cuidarem em se
estabelecerem melhor e plantarem com a conveniência de vender para a
mesma guarda, a qual ainda depois das demarcações feitas, não há de ser
inútil, principalmente nos primeiros anos, enquanto o rio se não povoar
melhor, pois receio, que os padres façam sempre diligências para passar à
nossa banda a buscar gentio, cacau, baunilha, e canoas, das quais coisas se
proviam até agora da nossa parte; porque da sua ou aso , ou pouco.
(ROLIM DE MOURA, 1983, v.3, p.59-60).
Entretanto ao lado dos objetivos poticos, as dificuldades referentes à alimentação dos
moradores de Vila Bela, apontavam a necessidade de efetivas medidas do governo, no sentido
de amenizar a penúria de cerca de 2.227 habitantes, dos quais 1.175 eram escravos, e 1.052
livres, distribuídos entre mulatos, pretos forros, índios e brancos, que conviviam com a
carestia, porque a quantidade de alimentos disponíveis não eram suficientes para o consumo
das pessoas (BANDEIRA, 1988, p.50). Também Virgilio Correia Filho, indica essa situação
de carestia, ao descrever sobre os Anais de Vila Bela:
33
SIQUEIRA, 2002,p.50.Pressuposto demarcatório, do Tratado de Madri, assinado em 1750, cujo principio
sico era a pose pelo uso. Daí era fundamental a ocupação das terras por meio de vilas, povoados e fortes, em
toda a extensão oeste de Mato Grosso.
46
[...] em princípios de 1754, o preço da carne desceu a oitava e meia por
arroba, depois que Antônio da Costa Aranha levou outra boiada para o
consumo dos moradores da vila. O tabelamento ordenado pela Câmara,
nessa ocasião, reduziu também a carne de porco fresca aoitenta réis de
ouro a libra e a cem réis de ouro o toucinho salgado que até ali corria pela
carestia, e falta de sal, a quarto de ouro.(1994, p.328 – 329)
Nesse período, continua Correia Filho, as mercadorias chegavam até Vila Bela e
povoados adjacentes, via Cuiabá, que se ligava a São Paulo e ao Rio de Janeiro por
dilatados” e demorados caminhos. Os preços extremamente onerosos, devido o alto valor dos
fretes, cobrados em dobro, a irregularidade dos carregamentos, faziam com que a população
passasse por períodos curtos de abundância e largos períodos de escassez. Destaca que muitas
vezes faltou o sal, o que interrompia o abate de gado, e a produção de peixe seco, principal
fonte de proteína da dieta básica imposta aos escravos das chapadas.
No sentido de amenizar essa situação de carestia, Rolim de Moura, passou a pleitear
algumas ações como: abertura do rio Guaporé à navegação, o que favoreceria a vinda das
moões do Pará, barateamento das mercadorias, controle do contrabando, escoamento das
riquezas regionais, articulação ecomica, potica e militar entre as Províncias de Mato
Grosso e do Pará.
[...] As coisas no seu princípio, todas experimentam maiores dificuldades; e
o podia fugir desta regra geral o comércio com o Pará a que se ajuntou o
embaraço da proibição dos ouros em pó; mas com o tempo, sempre espero
venha a ser muito mais fácil do que se faz do rio de janeiro para o Cuiabá,
que ainda neste principio; não tem comparação nenhuma os perigos, e
dificuldades deste com os daquele; às vezes os mesmos que andam no
caminho o fazem e pintam mais feio para terem a utilidade dele com menos
companheiros. O que certa há de acabar de o franquear, e utilizar muito a
esta Capitania, se que me parece, é a Companhia de Comércio estabelecida
no Pa e ao mesmo tempo, a abundância, irá também fazendo, mais
moda, e saudável esta habitação que até aqui ainda que com passos lentos,
se vai sempre aumentando;[...]. (MOURA, 1983, v.2, p.217-218,)
Vários carregamentos passaram a vir do Pará, via rios Madeira- Mamoré- Guaporé,
trazendo fazendas, secos, molhados, sal e ferragens (BANDEIRA, 1988, p.100 – 105), sendo
que, em 1758, foi estabelecido o comércio com a Província de São Paulo, através dos
47
comerciantes de Araritaguaba (Vila de Porto Feliz) (CORREIA FILHO, 1994, p.325 – 329).
34
Alguns alimentos consumidos, como a carne, provinham não só da caça de aves,
animais da região, peixes, como também das reses importadas de Cuiabá. (CORREIA FILHO,
1994, p. 329). Percebe-se a importância do consumo da carne bovina e dos suínos, como um
costume alimentar básico da população, através de uma detalhada legislação relacionada à
criação e abate de rês, vaca ou novilha, existente nos registros do Código de Posturas da
Cidade, como pelas normas referentes à criação de porcos. Destaca-se que a maior parte da
criação de porcos, era feita por mulheres negras, citadas nas Posturas como as negras forras
que mais se fundam nestas porcadas. (ROSA; JESUS, 2003, p.210).
No que diz respeito à potica de incentivo ao cultivo de roças, a população aos poucos
passou a se sustentar com os mantimentos produzidos na localidade, amenizando a situação
de carestia.
[...] sem embargo dos que os meios, e da grande falta de gente, vai, contudo
recebendo aumento esta Vila, e se acha já com mais de quarenta moradas de
casas dentro dela; e pelas suas vizinhaas, à borda deste rio, rios
lavradores estabelecidos, que fabricam mantimentos necessários para os seus
moradores
. (MOURA, 1983, v.2, p.56)
A agricultura florescia, iam se estabelecendo fazendas de gado vaccum, onde também
se criava carneiros. Do cacau e da baunilha, que cresciam pelas margens do Guaporé, se fazia
chocolate para o consumo; e além de todos estes recursos locais, os comerciantes de
Araritaguaba ( hoje villa de Porto Feliz, às margens do Tietê) passaram a chegar com suas
canoas de mercadorias até Vila Bella.” ( ROHAN, 1910, p.77).
Neste período, Rolim de Moura procurou incentivar também o povoamento em
Casalvasco (BANDEIRA, 1988, p.107),
35
e mostrou-se contrário à proposta de se criar um
34
Ver também ROHAN, Marechal Visconde de Beaurepaire. Annaes de Matto Grosso. Revista do
IHGSP.vol.15.São Paulo:Typographia do Diário Official.1912,p.77.
48
registro, na cachoeira São Jo, no rio Madeira, onde deveriam ser pagos os direitos de
entrada de toda mercadoria vinda do Pará, com exceção de escravos, que por serem a base de
todo o estabelecimento das minas, o gerariam aos comerciantes nenhum imposto. Numa
correspondência para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, faz referencias à instalação
deste registro ou local de cobrança de impostos, localizado em uma região desértica e distante
das minas, o que demandaria muita despesa para a Fazenda Real (ROLIM DE MOURA,
1983, v.2, p.82). Por isso a proposta da instalação de núcleos populacionais localizados às
margens dos rios, como uma rede de apoio pelo trajeto de Vila Bela até o Pará. Ressalta-se
que o trajeto entre Pará e Mato Grosso aterrorizava as pessoas, principalmente os índios,
utilizados como remeiros nas embarcações, porque essa atividade propiciava alto índice de
óbitos, ocorridos durante a viagem, ou mesmo quando após o rmino das mesmas, se
dirigiam aos seus respectivos povoados, infeccionados pelas costumeiras moléstias (COSTA,
2001, p.9).
Vila Bela era considerada um dos “Pilares Mestres da Amazôniaao lado de Barcelos
(Amazonas) e Belém do Pará (CELESTINO DE ALMEIDA, 1992, p.63 – 85),
36
e esteve a
partir de 1755 até 1778, com o seu comércio via Madeira- Mamoré- Guaporé, controlado pela
Companhia Geral de Corcio do Grão Pará e Maranhão, que importava produtos
principalmente manufaturados vindos do mar do Norte, do Báltico, e do Mediterrâneo,
ligando a capital ao mercado de Belém do Pará, e abastecendo a região com mercadorias
35
Segundo Bandeira, a fazenda de gado de Custódio José da Silva, situada às margens do rio Barbado, foi
expropriada em 1783, pelo governo de Pereira e Cáceres, que aí fundou a povoação e a Fazenda Real de
Casalvasco. Grande número de escravos foram deslocados para essa localidade, destinada à criação extensiva de
gado para o abastecimento das guarnições militares e comissariado de fronteiras.Com a decadência de Vila Bela,
formou-se em Casalvasco uma pequena comunidade negra existente até os dias atuais.
36
Neste estudo sobre o processo de formação, funcionamento e reprodução da sociedade colonial portuguesa
que se desenvolveu na Amazônia Ocidental (Capitania do Rio Negro), a partir da política pombalina, a autora
destaca através da correspondência de Mendonça Furtado, a preocupação de: estender a administração
portuguesa até os confins da Amazônia; transformar as aldeias missionárias em vilas e lugares lusitanos,
povoadas com índios, os novos vassalos do rei ou o povo, necesrios para ocuparem os novos núcleos, de
acordo com a política ilustrada pombalina; e a criação de uma Companhia Geral do Corcio, que resolveria
dois problemas básicos ou seja, a introdução dos escravos negros e a intensificação do comércio de exportação.
O aumento da produção agrícola seria uma conseqüência natural destas medidas.
49
como anéis, louças, ferramentas, sal, panos de algodão, bestas,vestuário. (VOLPATO, 1987,
p.59).
Mantimentos básicos, como feijão, mandioca, milho, e algumas criações de animais,
que dependiam do fornecimento local, gradativamente passaram a ser encontrados em sítios
vizinhos à capital da Província, assim como iam sendo formadas fazendas de gado e alguns
engenhos de farinha e de aguardente Nas proximidades do rio Aguapeí,
37
importante divisor
das terras de Portugal e Espanha, formou-se uma fazenda de gado para o abastecimento da
capital. Também nas vizinhanças de Vila Bela, em área localizada na margem direita do rio
Guaporé e próximo ao rio Alegre, foram criadas cerca de vinte roças distribuídas entre
grandes e pequenas, sendo que em uma delas havia um engenho de açúcar e em duas,
engenhos para a fabricação de farinha de milho, além de outras engenhocas. (ROLIM DE
MOURA, 1983, v.3, p.119)
Alguns relatos desse governante indicam o estabelecimento de alguns sítios à borda do
rio, fornecendo o mantimento básico necessário, e alguns princípios de fazendas de gado,
permitindo que o seu almoço cotidiano fosse acompanhado de leite, “de gado criado nos
campos algum dia reputados como inúteis para a criação do mesmo, mas que hoje se
reconhece o contrário”. (ROLIM DE MOURA, 1983, v.3, p.191).
Consideramos que esses relatos indicam a importância de se explorar racionalmente a
região, levando em conta os interesses coloniais portugueses, alinhados à necessidade de
amenizar a situação de penúria alimentar da população. Por isso, deixa implícita a importância
da vinda de pessoas para a formação de sítios nas áreas próximas aos rios, não só para o
suprimento de alimentos básicos, como também para garantir a posse das terras portuguesas.
37
Segundo os relatos de Rolim de Moura, o rio Aguapeí, com suas cabeceiras na Serra do Paraguai ou dos
Chiquitos, era um importante divisor das terras de Portugal e Espanha. Os pastos situados em terras banhadas por
este rio, eram considerados os melhores do Distrito de Mato Grosso. Nesta área foi estabelecida uma fazenda de
gado para o abastecimento de Vila Bela (ROLIM DE MOURA, 1983 ,v.2, p.117 -119).
50
Para explicar as características desse processo colonizador, onde estavam imbricados
interesses poticos determinados pela coroa portuguesa, de resguardar e dilatar as fronteiras,
ao lado das necessidades locais de suprimento alimentar da população, buscamos os estudos
de Malta Castro, quando coloca que as terras coloniais eram vistas como um mundo diferente
do universo europeu, onde era necessário conquistar, ocupar, fixar as pessoas na região,
explorar e apropriar-se das riquezas naturais, criar outras paisagens, intervindo na natureza
adversa e substituindo com coisas produzidas para atender os propósitos da colonização,
através do trabalho, realizado preferencialmente pelos negros escravos, aos quais cabia a
tarefa de alimentar e concretizar a riqueza colonial. (MALTA CASTRO, 2001, p.68 – 69).
De acordo com as análises de Lylia Galetti, nestes relatos estão presentes um
deslocamento da visão da pujante natureza e do não trabalho para a idéia de que a própria
empresa colonial criaria o paraíso mediante a transformação da natureza, que mesmo adversa
e bela, necessitava ser dominada pelo branco e transformada pela mão humana de escravos
preferencialmente negros. (2000, p.140).
Em carta a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Rolim de Moura afirma também a
necessidade da instalação da Provedoria em Vila Bela, o que facilitaria o trabalho da
Ouvidoria, dando melhores condições aos oficiais de estruturarem a vinda de pessoas para
formar sítios na região de acordo com os padrões coloniais. As pretensões da potica
portuguesa indicava a necessidade de povoar toda a área dos rios, ocupação que além de
assegurar a posse das terras, evitaria as invasões dos espanhóis, principalmente dos jesuítas
missionários que sempre organizavam diligências para passar para o lado português em busca
do gentio, do cacau, da baunilha e de canoas. Os custos e trabalhos com a efetivação deste
povoamento, eram muito altos e muitas vezes frustrados, nessas terras de minas, “onde quem
possuíam negros, só buscava as paragens onde existisse o ouro, não ocorrendo uma efetiva
idéia de fixação na terra e dedicação ao plantio, a não ser por parte de alguns indivíduos
51
falidos ou daqueles que tinham posse de índios.” (ROLIM DE MOURA, 1983, v.3, p.119 -
120).
Em seus estudos sobre a agricultura no Brasil colonial, José Graziano da Silva aponta
que os pequenos agricultores, eram considerados marginais pelas autoridades e pela ideologia
dominante na época, à margem das atividades direcionadas para a exportação. Sem a posse
legal da terra, dedicavam-se ao plantio, na maioria das vezes sem escravos, com precários
instrumentos de trabalho, limitando-se a produzir gêneros para sua própria subsistência e
vendendo os excedentes no mercado interno. (GRAZIANO DA SILVA, 1978, p.15 – 29).
Acreditamos que essas descrições podem ser adequadas ao contexto de Vila Bela,
onde as roças de alimentos existentes continuavam o suficientes para o suprimento das
necessidades do contingente de indivíduos que enfraquecidos se tornavam muito mais
susceptíveis às doenças. Diante da constante escassez de gêneros alimentícios, os habitantes
da região recorriam aos recursos naturais disponíveis como “a caça, pesca, coleta de frutos,
raízes e ervas, para complementar a dieta alimentar fornecida por plantações rudimentares de
alguns poucos gêneros, como feijão, mandioca e milho.” (LACERDA; ALMEIDA apud
CASCUDO, 1967, p.121 – 123).
38
No entanto, convém ressaltar que, ao lado dos inúmeros
relatos sobre a situação de carência alimentar da população de Vila Bela e povoados, da
nomeação das matas e florestas como lugares inóspitos, despertam a atenção a auto-
suficiência existente nas terras indígenas, naquelas dominadas pelos negros, e nos quintais de
Vila Bela.
No Diário da Diligencia, do ano de 1795, feito pelo escrivão da bandeira instituída
pelo governo para destruir o quilombo do Piolho ou Quariterê, encontra-se anotado que:
Num belíssimo terreno muito superior, tanto na qualidade das terras, como
nas altas e frondosas mattarias, as excellentes, e actualmente cultivadas
margens dos rios Galera, Sararé e Guaporé, abundante de caça e o rio de
38
Também este assunto é enfocado por FRANCO, Ricardo de Almeida. Reflexões sobre a Província de Matto
Grosso. RIGH. Tomo II. São Paulo: p.377 e MALTA DE CASTRO (2001, p.110).
52
muito peixe, cujo rio é da mesma grandeza do rio Branco, a bandeira
encontrou no quilombo grandes plantações de milho, feio, favas,
mandioca, “manduim” (amendoim), batatas, “caraz”, e outra raízes, assim
como muitas bananas, ananazes, abobras, fumo, gallinhas e algodão de que
faziam panos grossos e fortíssimos com que se cobriam. (PINTO, 1938,
p.41).
39
Luiza Rios Ricci Volpato, em seus estudos sobre os quilombos de Mato Grosso,
comenta:
Os componentes da bandeira haviam se impressionado com a capacidade
organizativa e produtiva do aldeamento: num período em que Vila Bela,
Cuiabá e os Destacamentos de fronteira enfrentavam constantes surtos de
quebra de produção, quando a fome se alastrava penalizando a população, o
quilombo contava com uma agricultura bem estruturada e produtiva, que
mantinha seus habitantes abastecidos. (1996, p.266).
De acordo com Maria de Lourdes Bandeira, as práticas culturais do Quariterê,
importante quilombo localizado nas terras de Vila Bela, tinham por bases o trabalho
cooperativo e a solidariedade social, que definiam a produção, distribuição e consumo,
garantias de uma economia de abundância. (1988, p.118 – 119).
Deslocando as descrições sobre a fartura alimentar para o contexto de algumas nações
indígenas da Repartição de Mato Grosso encontram-se nos relatos de Rolim de Moura,
algumas observações como: “ [...] por esta banda de Mato Grosso, os índios todos são
inclinados à lavoura, e me consta partes que se tem trazido dos matos, que nas suas terras
fazem muito grandes e têm grandes abundancias de mantimentos.” (1983, v.3, p. 99).
Acrescentamos também as observações de Afonso de E. Taunay, descrevendo o cotidiano das
nações Parecis e Mahibarez, localizadas próximas de Vila Bela, quando coloca que “estes
povos viviam de suas lavouras de mandiocas, milho, feijão, batatas, ananazes, do qual faziam
39
Roquete Pinto faz referências ao Diário da Diligencia que”[...} por ordem do Illustríssimo e Excellentíssimo
João d’Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, Governador e Capitão General da Capitania de Mato-Grosso,
se fez no anno de 1795, a fim de se destruírem vários Quilombos, e buscar alguns logares em que houvesse
ouro”.(1938, p.41)
53
seus vinhos; e caça de veados, emas, e demais animais silvestres.” ((TAUNAY, 1891, p.188 –
198).
Ainda sobre os ingenas, existem registros de que o povo Nambiquara, constituídos
em vários grupos, ocupavam espaços ecologicamente distintos, na Serra do Norte, Vale do
Guaporé e Chapada dos Parecis. Com hábitos culturalmente diferenciados, esses grupos
formavam pequenas unidades poticas independentes e economicamente auto-suficientes.
(MOREIRA DA COSTA, 2000, p.32).
Sobre os quintais em Vila Bela, Lacerda e Almeida, membro da Comissão de
Demarcação de Limites, instituída pela Coroa Portuguesa, passando pela cidade em 1788,
mencionou ter encontrado nos quintais de muitas casas, uma escie de bananeira
denominada “banana da terra”, cuja fruta era utilizada pela população, para suprir a falta do
pão. Era consumida assada, antes de estar em perfeita maturação. (LACERDA; ALMEIDA
apud CASCUDO, 1967, p.123).
Nos registros de Ricardo de Almeida Franco, membro desta comissão estão
observações de que as casas em Vila Bela possuíam grandes quintais, com criações de porcos,
galinhas, vacas, plantio de legumes, hortaliças, arroz, feijão e milho. Algumas árvores
frutíferas, como ata, fruta do conde, coco da Bahia, melão, melancia, caju, laranja, ananaz,
abacaxi, jabuticaba, mangaba, figo e parreiras. Em alguns sítios localizados pelos lados da
serra do Grão Pará fabricava-se a farinha de mandioca, açúcar, aguardente. Observou também
que havia muita fartura de peixes, principalmente nas águas dos rios Guaporé e Verde.
(FRANCO, 1858, p.377).
São interessantes as observações do Visconde de Taunay ao relatar que, circundando a
capela de Santo Antônio, “existiam majestosos e já seculares tamarineiros, gameleiras e
poucas das laranjeiras do formoso pomar com que a circundaram os dous Albuquerques.
Aquelle poético templo rodeado de tão fallado laranjal, conforme nos referira Riedel e
54
cantado pelos dous poetas freternos, nos dá o Sr. João Severiano valiosa noticia” (TAUNAY,
1891, p.89).
Sobre a prática do plantio de hortaliças, supõe-se que a mesma se estendia até em
alguns quintais dos arraiais circunvizinhos a Vila Bela. Vale ilustrar o caso da preta forra
Ivana Cabangu, moradora no arraial de Ouro Fino, que cultivava uma horta e por isso,o
hesitou em pegar água no quintal do vizinho, motivo de intriga que aconteceu entre essa forra
e o dono da água roubada. (MATTOS, s/d, p.11).
Ainda sobre os recursos e variedades alimentares existentes nas aldeias indígenas,
quilombos e quintais de Vila Bela destacamos a pesquisa realizada por Leni Caselli Ansai
sobre os estudos do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, sobre os modos curativos
europeu e americano para as doenças que acometiam a população na capitania de Mato
Grosso. Vários dos recursos terapêuticos de acordo com o modo americano, apresentados por
Ferreira, reuniam os conhecimentos empíricos dos negros e indígenas, e provinham de
recursos existentes nas matas e quintais. Um entrecruzamento de conhecimentos de povos e
culturas diferenciados, em um rico processo transcultural, que culminou em um modo de
viver próprio, que permitiu aos habitantes da capitania compartilhar saberes e explorar os
ecossistemas amazônicos. (ANSAI, 2004, p.110 – 117).
Para compreender a contradição existente entre as possibilidades alimentares
existentes na rica variedade da flora e fauna de Vila Bela e arredores, e a constante situação
de carestia vivida pela população, buscamos as reflexões de Mafalda Zemella sobre o
abastecimento das Gerais e consumo das populações mineradoras. As descrições dessa autora
podem ser deslocadas para o contexto de Vila Bela, quando enumera as mercadorias
essenciais e supérfluas para os habitantes nas áreas mineradoras. Zemella coloca num
primeiro grupo, os gêneros essenciais à subsistência tais como: cereais, carne, sal, açúcar,
toucinho, sendo imprescindíveis a carne e o sal. No segundo e terceiro grupo estavam as
55
mercadorias indispensáveis ao trabalho nas minas, defesa, vestuário, calçado, utensílios e
móveis para a casa, arreios para animais etc. Os produtos considerados supérfluos e caros,
consumidos pelos grupos de mais posse, eram a pinga e o tabaco, mas de vital importância
para os mineradores.(ZEMELLA, 1990, p.174).
No âmbito comercial, existia uma preocupação das autoridades da Província de Mato
Grosso em controlar efetivamente as atividades comerciais da população. No período de 1772
a 1788, durante o governo de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, Capitão
General e Governador da Província de Mato Grosso, foram adotadas severas medidas como:
taxas em todas as mercadorias vindas do Pará, para impedir os preços exorbitantes dos
gêneros e extorsões dos comerciantes, efetivação de uma lei que não permitia na vila e
arraiais, mais de 12 a 14 vendas, “por serem pela mór parte, receptáculos de roubos.”
(FRANCO, 1858, p.377).
Essa legislação pode ser explicada através das análises de Laura de Mello e Souza,
quando afirma que as vendas existentes nas regiões mineradoras eram vistas pelas autoridades
da época como pontos de ligação entre o comércio e os quilombos, esconderijo de negros
fugidos, locais alegres de batuques e amores, como também pontos privilegiados de
contrabando. Tanto as negras quitandeiras ou de tabuleiros, como as vendas, foram objeto de
luta incessante empreendida pelas autoridades coloniais, pelo temor que despertavam como
locais ou formas, onde se estabeleciam os vínculos dos indivíduos pobres e desclassificados.
As vendas eram vistas como espaços reservados a uma espécie de “anti-sociedade”, ou seja,
locais de lazer, de namoro, desordens, de necios ocultos. Entretanto segundo a autora, estes
locais vistos pelas autoridades como redutos de infratores, representava para seus
freqüentadores espaços onde estavam presentes traços da coesão social e da solidariedade.
(MELLO E SOUZA, 1990, p.177- 180).
56
Encontram-se nas Posturas da Câmara de Vila Bela, medidas proibindo as atividades
comerciais das negras quituteiras. Destacamos nessas leis a referência às mulheres índias.
São colocadas proibições à presença de negras, cativa ou forra, mulata ou
índia, que se acharem em lavras ou faisqueiras gerais, sem estarem ocupadas
no exercício de minerar, ainda que seo achem com instrumentos de
tavernas e comestíveis, porque regularmente os escondem no mato, seja
presa e condenada em 30 dias de cadeia e 6 oitavas de condenação para as
despesas da Câmara, e demais no prêmio que se taxar ao rendeiro do
ver.(ROSA;JESUS, 2003, p.206).
Com o passar do tempo, gradativamente, os regulamentos que disciplinavam a vida
cotidiana na capital e nos povoados, os conflitos fronteiriços com os espanhóis, a insatisfação
com a carestia, os transtornos com as grandes enchentes do rio Guaporé, as pragas nas
plantações, as secas esporádicas e as epidemias como febres e sezões (ROHAN, 1910, p.67 –
71), eram elementos que traziam desassossego, principalmente quando relacionados ao
fornecimento de mercadorias. Passaram a ser assunto das rodas poticas e financeiras não
na Província, mas também na distante Bem do Pará, cuja economia possuía fortes ligações
comerciais com Vila Bela.
Com o objetivo de solucionar esse problema, Francisco de Souza Coutinho em 1797,
apresentou um plano de navegação regular via Madeira -Mamoré, propondo também o
povoamento nas áreas encachoeiradas do Salto, Girau, Ribeirão e Bananeira, todas situadas no
rio Madeira, por casais de trabalhadores brancos, lavradores, que receberiam incentivos do
governo como a facilitação da compra de escravos, meios de se estabelecerem no local
escolhido em terras recebidas como doação e próximas às cachoeiras, ferramentas, gêneros
alimentícios no primeiro ano, passagens gratuitas, moratória das dívidas por determinado
tempo, liberdade de levar casais de índios como mão de obra e isenção de recrutamento dos
filhos para as atividades militares.Essas famílias ficariam incumbidas de prestar ajuda em
caso de ataques dos índios e invasão dos espanhóis, fornecer víveres, acolhida e socorro aos
comerciantes. (COUTINHO, 1840, p.283 – 306).
57
Sobre os fretes, Coutinho propôs que, os custos até a primeira cachoeira seriam por
conta da Real Fazenda, e daí em diante, por conta de cada comerciante, sendo que, o da última
cachoeira até Vila Bela seria por conta do poder político local (COUTINHO, 1840, p.283 –
306). Esses planos nunca foram efetivados, mas o governo português autorizou o
estabelecimento de postos ou destacamentos ao longo das cachoeiras do rio Madeira, no
sentido de ajudar os comerciantes nas arriscadas travessias.
No início do século XVIII, a política portuguesa baseada no mercantilismo, no pacto
colonial e nos acordos e empréstimos feitos com a Inglaterra, ao lado da grave crise
econômica brasileira, provocada pela queda da produção do ouro e crise na agricultura
tradicional, também atingiu a Província de Mato Grosso e conseqüentemente Vila Bela.
Segmentos da população local se deslocou para outras paragens, a procura de certa
estabilidade ecomica. Outros voltaram-se à produção de açúcar e aguardente, atividade que
proporcionava um retorno mais rápido que a pecuária. De acordo com Taunay, mesmo com a
já existente Provisão Régia de 12/06/1743 que ordenava a destruição de todos os engenhos e
proibia a fabricação de outros, os mesmos passaram a florescer nas margens dos rios Guaporé,
Alegre, Barbado, e eram vistos pela população como uma atividade ecomica importante.
(TAUNAY, 1891, p.68 – 69).
Os efeitos desta crise ecomica, aliados às possibilidades da capital ser transferida
para Cuiabá, traziam certo desassossego à população, pois desde a fundação da cidade
existiam debates entre aqueles indivíduos favoráveis à mudança da capital, alegando
insalubridade do clima e distância da cidade dos principais centros econômicos e
administrativos do país e aqueles relativamente bem estruturados economicamente e
politicamente, contrários à mudança.
Os poticos de Vila Bela chegaram a enviar uma carta ao rei de Portugal informando
sobre as vantagens de a cidade continuar a ser capital, pelo fato de encontrar-se muito
58
próxima da fronteira; das Províncias dos Mojos e Chiquitos; ser cercada de rios navegáveis;
possuir um razoável contingente populacional, e muitos escravos trabalhando nas atividades
mineradoras. A mudança da capital para Cuiabá, poderia trazer prejuízos aos cofres reais e
aos vassalos do rei, devido o enfraquecimento comercial de fazendas e escravos, e
conseqüentemente a convivência com a situação de carestia. (PAIVA, 1988, p.8).
Entretanto, cada vez mais, funcionários burocratas, mineiros, comerciantes, artesãos e
outros trabalhadores livres, deslocavam-se para outras localidades como Cuiabá, fato que
trouxe a gradativa diminuição da população em Vila Bela, e dos pequenos núcleos urbanos
adjacentes. Em 1818, Vila Bela foi elevada à categoria de cidade, passando a se chamar Matto
Grosso, com um contingente populacional de 2.354 habitantes, que ainda podia contar com
alguns estabelecimentos rurais produzindo o arroz, o feijão, o milho, a cana de açúcar, a
mandioca. (BANDEIRA, 1988, p.91).
A crescente decadência da exploração do ouro, como o deslocamento do eixo de
demarcações de fronteiras, a argumentação da insalubridade do clima, o envolvimento de
representantes do governo de Vila Bela nas ações poticas favoráveis à anexação da Província
de Chiquitos à Província de Mato Grosso (GOYCOCHÊA, 1943, p.88 – 103), o
endividamento da cidade, foram justificativas utilizadas pelo governo provincial para efetivar
oficialmente a transferência da capital para Cuiabá, em 28 de agosto de 1835, no governo de
Francisco de Paula Magessi.
De acordo com a perspectiva que seguimos neste capítulo, ou seja, analisar aspectos
das práticas culturais dos moradores de Vila Bela, relacionadas às práticas alimentares, tendo
em vista a heterogeneidade étnica e cultural da população, a interdependências entre a
natureza, grupos sociais e indivíduos, apresentamos algumas observações: Apesar do contexto
de violência existente entre os diferentes grupos étnicos e sociais, percebe-se um intenso
diálogo intercultural em que as práticas culturais da alimentação da população de Vila Bela
59
podem ser vistas como estratégias onde nas escolhas alimentares utilizadas estavam presentes,
os processos de inclusões e exclusões, fatores climáticos, interesses da economia e potica
colonial, realidade regional, diversidade criadora dos grupos sociais locais e experiências dos
indivíduos. Destacamos nesse contexto, as ações das mulheres índias, negras e brancas, que
provavelmente nos espaços domésticos e comerciais e demais atividades voltadas à
alimentação, introduziram e mesclaram costumes e práticas culturais. Convém ressaltar
também as trocas culturais efetivadas nos contatos comerciais realizados entre a população de
Vila Bela com os povos das missões jesuíticas fronteiras, e com os demais comerciantes de
outras regiões do país. D
Diferentes processos de comunicação e intermbio, onde as práticas cotidianas como:
[...] meios de transporte, produtos, modos de vestir, de falar, doenças, lendas, técnicas,
religiões, sentimentos, deslocam-se lado a lado com as práticas alimentares, introduzidas por
meio de novos ingredientes, temperos, sabores e modos de preparar os alimentos” (AMADO;
FIGUEIREDO, 2000, p.13).
1.3 – Tempos dos negros: estratégias para garantir a vida
A “transição
40
, ou seja, a transferência da capital da província para Cuiabá, levou a
população de Vila Bela
41
a processos de adaptação aos novos tempos, por meio de estratégias
para enfrentar os desafios colocados nesse novo contexto. Esta época é denominada por
Maria de Lourdes Bandeira, como “um tempo dos negros”, embora esta autora explique que:
A saída de boa parte da população branca, não implicou em si mesma na
constituição da comunidade negra, porque esta resultou de decisões coletivas
40
Termo usado por moradores de Vila Bela indicando a transferência da capital para Cuiabá.
41
No ano de 1828, a população urbana de Vila Bela totalizava-se em 1595 pessoas, sendo 1093 livres e 502
escravos. Essa população estava subdividida em 124 brancos, 54 índios, 480 pardos livres e 22 escravos, 480
negros escravos e 435 livres. (BANDEIRA, 1988, p.57)
60
formuladas politicamente pelos negros, a partir da redefinição de sua
identidade étnica, frente à nova situação de alteridade advinda da decadência
econômica e desarticulação local dos mecanismos de controle do corpo
social branco. A mudança da capital, privou a população branca que ficou
em Vila Bela, dos meios de controle social e de rearticularem-se no novo
quadro político, econômico e social. Isso ficou historicamente demonstrado
pela formação da comunidade de pretos numa sede de município que
enquanto tal dispunha de mecanismos político-administrativos, com que o
Estado assegurava amplamente a organicidade do poder da classe
dominante, e com uma população branca compelida a redefinir suas relações
com os pretos livres, de modo a assegurar a reprodução da vida social e a sua
própria existência, em termos da continuidade da ordem social e econômica
e sua inserção privilegiada nessa ordem. (1988, p.23).
Continuamos com as assertivas de Bandeira, quando destaca que nesse contexto
descrito, as irmandades religiosas de negros, como a de São Benedito, passaram a ter mais
força e expressão, enquanto que as dos brancos, como a do Santíssimo Sacramento, decaíram,
perdendo as condições de manutenção e reprodução de seus valores. As festas religiosas se
transformaram num espaço de resistência étnica, pois possibilitavam a celebração pública de
práticas culturais dos pretos, sendo que aquelas tradicionalmente brancas, como a do Divino,
da Padroeira e dos Santos, passaram a veicular conteúdos culturais dos pretos. (1988, p.130).
No que diz respeito às relações de trabalho, entre os senhores que partiram e os
escravos que ficaram, dissolveram-se as relações de escravidão, como também a separação
entre esses escravos e a terra que trabalhavam. A propriedade formal da terra tornou-se
economicamente inoperante, o trabalho do escravo liberado, e do preto livre lhes pertencendo,
por meio do uso da terra. (1988, p.131).
As atividades principais passaram a ser fundamentadas na solidariedade,
principalmente por meio de uma agricultura a partir de relações comunitárias com a terra, com
o sistema de mutirão favorecendo a manutenção dos princípios da coesão. O abastecimento,
através do plantio para o consumo, a criação de algumas cabeças de gado remanescentes do
rebanho trazidos pelos portugueses no século XVIII para a fazenda Casalvasco, de galinhas e
61
porcos, a pesca, caça e coleta, a produção dos pequenos engenhos de açúcar, garantiam a vida
da população de Vila Bela.
Os contatos comerciais com as províncias dos Mojos e dos Chiquitos eram realizados
para a compra de pequenas quantidades de sal, farinha de trigo, boiadas pequenas e outros
produtos. Esporadicamente a população local negociava também com os comerciantes que
chegavam de Cuiabá ou do Pará, via rios Madeira-Mamoré, trazendo produtos como
ferramentas, pólvora, armas e sal. (BANDEIRA, 1988, p.123 – 181). Dentre os produtos
adquiridos, o sal
42
ainda se mantinha como o produto principal, porque am de ser escasso na
cidade, era essencial não para a conservação dos alimentos, como para a alimentação das
reses existentes.
Por volta de 1856, esse comércio externo praticamente se extinguiu, e a população de
Vila Bela passou a se dedicar basicamente ao plantio do arroz, milho, mandioca, que
juntamente com o peixe, compunham a dieta alimentar básica. As roças eram preparadas de
julho a setembro, e o plantio se dava entre agosto e outubro. Plantavam o feijão, quiabo,
abóbora, melancia, banana, mamão, maxixe. A colheita era feita no período de janeiro a abril,
sendo que o milho era colhido de janeiro a março e o arroz de março a abril. Também eram
realizadas coletas de frutas do cerrado e da mata, como a mangaba, bocaiúva, seputã, tucum e
outras. As plantações de laranja e café da época colonial que se expandiram em algumas áreas
das matas, eram coletadas como plantas nativas, como também o mel e o palmito, produtos
muito procurados e valorizados. O cultivo da cana de açúcar era feito somente por algumas
famílias, sendo o açúcar um produto escasso, mas existindo fartura da rapadura e do melado
da cana. Na época da seca, coletavam ovos de tracajá e tartarugas, e pescarias para a
42
Cascudo destaca as observações de John Luccock, em 1818, sobre a escassez do sal, que se estendia, por todo
o interior da América do Sul. O sal marinho, produto raro e caro, era enviado de Setúbal ( Portugal), e
considerado artigo de extraordinário luxo, valendo moeda ainda em 1819. Seu consumo era restrito aos colonos e
mestiços, sendo que. a população nativa tinha o costume de usar o sal de cinzas de palmeira, “a decoada”, ou a
água do mar represada. (1967, p.128-129).
62
confecção do peixe seco. Também caçavam animais como a capivara, veado, caititu e
tatu.(BANDEIRA, 1988, p.256-318).
Relatos de Presidentes de Província sobre a população de Vila Bela nesse período,
com algumas informações relacionadas a alimentação, nos levaram às alises de Maria Inês
Malta Castro, sobre os discursos e as ações das elites letradas do país, referentes a Mato
Grosso. Perpassados pela exaltação das riquezas locais, necessidade de se assegurar a
integridade e o domínio sobre o território herdado do período colonial, afirmam que, ao lado
das idéias de civilização e progresso, estava a necessidade de ações efetivas do Estado com
objetivos de incorporar Mato Grosso ao conjunto da nação. (MALTA CASTRO, 2001, p.152-
155). Apresentamos algumas descrições de Presidentes de Província, que representam a
natureza em Vila Bela por meio da decadência, do ar doentio, da insalubridade, da pobreza e
má alimentação da população, onde um passado de glórias defrontava-se com um presente de
abandono, de falta de ações do governo.
Em 1862, o Presidente de Província Herculano Ferreira Penna, descreveu o estado de
miséria da população, o abandono dos sítios, a crescente ruína e marasmo da cidade:
o é de se esperar que se possão restaurar hoje, que o distrito tem apenas
1500 a 2000 habitantes, vivendo em um estado visinho de miséria; que os
maiores sítios e engenhos tornaram-se taperas; que os prédios da cidade
estão caindo em ruínas, e que parece incurável o marasmo que consome.
43
Também Francisco Cardoso Junior em 1873, menciona os terrenos encharcados, a
insalubridade da cidade e as condições de vida da população local, onde estavam presentes a
pobreza, doenças, má alimentação e abandono das lavouras devido os ataques dos índios:
Desde que se passa o rio Uruguay (?), em Villa Maria muito principalmente
o Jaurú, torna-se bastante sensível a differença do clima. As noites são frias e
abundantes de orvalho, com quanto as preceda um dialido e ardente. O
43
PENNA, Herculano Ferreira. 1862. Relatórios de Presidentes de Província e Governadores de Estado.
www.crl.uchicago.edu/info/brazil. Brazil.crl.edu/bsd/422/000039.html
, 17-06-2003.
63
terreno torna-se firme e secco até a borda de 10 léguas mais ou menos
distante da cidade, onde começa a várzea ou pântano que borda o rio
Guaporé. Apesar da planura do terreno, e de algumas lagoas, há nos
subúrbios da cidade o encharcamento do terreno; não é muito ou tal que dê
lugar a presumir-se ser especialmente causa da insalubridade da cidade. O
povo, extremamente pobre, em quase sua totalidade alimenta-se mal. Talvez
por isso o desenvolvimento das enfermidades. Com os assaltos dos índios a
população abandonou os estabelecimentos de lavouras que tinham nas
matas, em lugares provavelmente mais saudáveis, e amontou-se dentro da
cidade. Ninguém se atreve a residir 1/2 légua distante dela, dahi uma vida
inativa, uma alimentação escassa, e o effeito não interrompido das
exhalações que se desprendem dos pântanos que contornam a velha
povoação.
44
Nas descrições dos viajantes, que passaram por Mato Grosso durante o século XIX,
encontram-se referencias à ausência da ação governamental tanto imperial e, mais tarde,
republicano. Descaso que contribuiu para que lugares antes prósperos, como Vila Bela se
transformassem em pousos decadentes e improdutivos. Ressaltam os recursos naturais
existentes nas cercanias da antiga capital, a sociabilidade da população, as relações da mesma
com o meio ambiente, considerado “doentio,” e alguns hábitos alimentares. Um conjunto de
descrições que indicam também, [...] um conhecimento científico de caráter utilitário sobre a
geografia e a natureza, ao se descrever aspectos do mundo social, hábitos, e costumes da
população, a partir de critérios condizentes com a visão de mundo e de natureza que eram
portadores.” (MALTA CASTRO, 2001, p.107-196).
Para os estrangeiros que percorriam as diferentes regiões do Brasil na primeira metade
do século XIX, naturalistas ou não, os trópicos revelavam surpresas, pela grandiosidade da
natureza vista com fascínio. (MALTA CASTRO, 2001, p.74 – 75).
Taunay deixou relatos de que existiam nas redondezas de Vila Bela, seis engenhos de açúcar
cuja produção era suficiente para suprir as necessidades das famílias e para se negociar o
excedente. Na cidade haviam oito lojas de fazendas, oito alfaiates, seis sapatarias, quatro
ourives, doze vendas, oito carpinteiros, seis pedreiros, cinco ferreiros, o que demonstrava uma
44
JUNIOR, Francisco Cardoso. 1873. Relarios de Presidentes de Província e Governadores de Estado.
www.crl.uchicago.edu/info/brazil. Brazil.crl.edu/bsd/422/000039.html
, 17-06-2003.
,
64
certa demanda de bens de consumo. Nas matas eram encontrados e extraídos o anil, a jalapa, a
erva-mate, a baunilha, a copaíba, a almacega, a manã e o “sangue de drago”, e próximo dos
rios, eram encontradas a poaia, e madeiras como o cedro, óleo, jacarandá, vinhático, piuva,
jequitibá, condarú, coração de negro, louro, aroeira. Além da piscosidade dos rios Guaporé e
Verde, eram encontradas nos arredores da cidade caças como a anta, a onça, o tamanduá,
veado, tatu, quati, macaco, cutia, preá, preguiça, porco do mato, capivara, jaraticaca, lontra,
ariranha, hirara, e aves como papagaios, emas, araras, pombas, marrecos, patos, garças, rolas,
jacu, cardeal, bicudo, canário, beija-flor, seriema, azulão, bem-te-vi.
Na cidade, encontrou uma população de cerca de 800 pessoas, todas negras, “de cor
tão dominante, que os que não o eram mereciam contagem à parte”, formando um mero de
14 pessoas, mais dois brancos. As ruas haviam perdido o calçamento por causa das
inundações, existindo muitos matagais com fedegoso, vassourinha, e bessimas gramas, como
se fosse um imenso tapete. Os moradores viviam da lavoura, e os pequenos arraiais como
Chapada e Pilar estavam sendo gradativamente abandonados, como também a estrada para
Cáceres, antes povoada por lavradores, fazendeiros e engenhos.
Nas margens do rio Galera havia muita ipecacuanha, seringais nas margens do rio
Guaporé, como também alguma plantação de milho e outros cereais. Poucas pessoas estavam
vivendo na Fazenda Nacional de Casalvasco, que supria as forças militares com gado vacum.
O arraial de Lavrinhas, estava se transformando num espaço cada vez mais desolado e
abandonado. Fez referências sobre o gênio dócil e polido dos habitantes de Vila Bela,
portadores de uma índole hospitaleira e um modo de falar, um português mais castiço que de
todos os lugares da Capitania”.(TAUNAY, 1891,, p.68-69).
Joaquim Ferreira Moutinho,outro viajante que passou pela cidade, destacou que foi
convidado a participar das refeições em rias casas.Enfatiza que, além de ser bem recebido,
dava gosto conversar com as pessoas, por serem humildes e obsequiosas, e pelo modo de
65
falar,mais limado” que o restante da Província. Mencionou alguns produtos naturais
existentes nas matas e áreas próximas dos rios, com o anis, cacau, café, baunilha, ipecacuanha
e madeiras nobres. Deixou registrado que os quintais das moradias possuíam pés de laranja,
ananaz, melão, melancia, caju, jabuticaba, mangaba, ata, uva, figo, coco, fruta do conde.
Destacou à piscosidade dos rios e variedade de animais silvestres pelas matas, deixando
observações sobre a carestia e ao alto preço do sal. Segundo esse viajante, a fome e a miséria
abatiam a população. Ressaltou ter presenciado a morte de uma porca, excessivamente magra
e pesteada, que desapareceu instantaneamente, levada pelas pessoas para ser usada como
alimento. Sobre o interior do palácio dos governadores, colocou que a sala de audiências
havia sido transformada em dispensa, e tinha em suas paredes anotações marcando as entradas
e saídas diárias de toucinho e carne seca, para a alimentação da tropa. Menciona a falta do sal,
vendido a 10 e 15$000 a medida, ou 450$000 o alqueire, aliviada com a chegada de um
comerciante da Bovia, que passou a vender esse gênero a 5$000 a medida. ( MOUTINHO,
1869, p.150-159).
Continuando com as descrições de viajantes, encontramos nos relatos de Severiano da
Fonseca, quando em 1875, passou por Vila Bela, registros sobre as variedades da flora da
região, a existência de sítios, lavouras e algumas engenhocas como as de Paulo dos Santos,
Antunes Maciel e Samuel. Deixa enumerado a existência de exuberantes plantações de
mandioca, cará, e cana de açúcar, utilizada na confecção de rapadura, aguardente e
especialmente do restillo
45
, bebida da terra. Na margem oposta do rio Guaporé, não encontrou
nenhuma roça, chácara ou plantação, devido às cheias anuais do rio, mas pés de laranjas e de
bananas, e nos arredores da cidade, muitas goiabeiras, araçazeiros e a marmelada, uma
coberta de espinhos e a outra lisa. Também a existência de muita caça, aves como os mutuns,
perdizes, jacus, jaós e peixes como o matrincham, jacundás, e outros. Na cidade, pés de
45
Segundo informações em entrevista realizada em maio de 1999, de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida,
Restillo é a primeira pinga que sai do alambique e apresenta-se como uma bebida muito forte.
66
coqueiros da Bahia, cajueiros, figueiras, castanheiras do Pará, chamadas de tocary, limoeiros,
limeiras, frutas-de-conde, caneleiras da Índia. Convidado a participar das refeições com
algumas famílias percebeu que a alimentação básica era composta de arroz, feijão, e frutas.
O abastecimento com carne fresca de gado se dava somente quando alguma rês era
abatida para o consumo da tropa e das autoridades e o uso de bebidas alcoólicas era muito
freqüente, principalmente nos setores mais pobres da população.
Ressalta também em suas
observações, sobre a alimentação oferecida no quartel da guarnição aos soldados enfermos
que ali se alojavam. Uma dieta composta de farinha, rapadura e sal, algumas vezes carne seca
e bacalhau, feijão, arroz, e em raríssimas ocasiões a carne verde, sendo um verdadeiro
acontecimento para toda a cidade o abate de uma rês, trazida de Casalvasco.
Era costume dos soldados para completarem a dieta alimentar, recorrerem aos frutos
silvestres, caça ou peixe, e laranjas, goiabas e bananas encontradas nos quintais. Continuando
com sua descrição, Fonseca relaciona o período de fartura em Vila Bela com a presença dos
capitães generais na cidade: “Havia commercio, havia lavoura; não havia fome nem miséria,
com a transferência da capital, acabaram-se quase todas as fontes de vida, os engenhos, as
roças, as povoações e as minas. Morreu o comércio, a lavoura, a criação e a pouca indústria
que havia no pais; sendo que a cidade ficou povoada apenas por aqueles que, por falta de
meios ou por conveniência, não puderam buscar outra comarca onde a vida lhes fosse mais
próspera.”
(FONSECA, 1881, p.111-114).
Fawcett, por volta de 1908, passou pela cidade, acompanhado de sua expedição, e
deixou a seguinte observação:
A cidade, já há muito tempo abandonada, era agora apenas uma triste
coleção de casas e igrejas antigas. Uns negros moravam nas casas meio em
ruínas de suas silenciosas ruas; pareciam viver de parcos recursos. Durante o
dia trabalhavam em pequenas plantações de cana e mandioca; à noite
barricavam-se em suas casas receosos dos índios que rondavam pelas ruas
.
(FAWCETT, 1954, p. 170).
67
Assinalou a existência de lontras, “bufeos” no rio Guaporé e grande quantidade de
peixes, tartarugas, e arraias, no rio Verde. Nas matas do Guaporé, ricas em caças, a expedição
encontrou um pequeno grupo de negros, provavelmente num engenho, fabricando um açúcar
preto feito do caldo de cana. (FAWCETT, 1954, p.170-180).
46
Cândido Mariano Rondon, ao inaugurar a estação telegráfica em 1908, deixou anotado
que Vila Bela era uma cidade desolada, triste, com as ruas Santo Annio, São Luiz, do Fogo
e do Mercado, transformadas em pequenos caminhos de mato ralo:
Ruas onde o matto cresce casas em derrocada, onde residem 340 habitantes,
sede de paludismo e em guerra com os índios dos arredores que por duas
vezes já a invadiram, em pleno dia, eis como encontrei Villa Bella no anno
de 1906, quando a visitei, após a construcção do ramal de Cuyabá a
Cáceres.(
RONDON, 1912, p.31).
Rondon faz observações sobre os campos próximos da cidade de Matto Grosso,
povoados da palmeira guariroba do campo, Imyra yoroba, arbor amara ( cocos oleracea),
cujo palmito era muito apreciado pelos viajantes. Destaca dentre as variedades vegetais, a
infinidade de pés de burytis, assahy, bacaba (oenocarpus bacaba)e de poaia ( Psichotria
ipecacuanha).( RONDON, 1912, p.35).
Também Silvio Milanese,
47
encarregado da instalão de uma estação de meteorologia
em Vila Bela, em 1923, registrou que a população local convivia com as continuas “tropelias
46
. Em seu relato, FAWCETT faz referências às coleções de prata antiga reunidas em caixas de madeira, numa
das igrejas em ruínas. Afirma também ter levado para a Inglaterra como presente para a esposa, os restos de uma
cadeira, um grande móvel com dossel trabalhado, provavelmente usada pelo bispo nas grandes cerimônias.
Destaca que antes da restauração da cadeira, mandou desinfetar-la, para que não houvesse a possibilidade de
ficar algum resquício do mal (a corrupção) que assolou Vila Bela. Acreditando ser decorrência do uso da cadeira,
um sacrilégio por ser protestante e estar usando uma cadeira sagrada por um prelado católico romano, a esposa
de Fawcett passou a sofrer de males misteriosos. Decidiram então, oferecer a cadeira ao oratório de Brompton,
ao sul de Kensington-Londres. Interessante observar também nos relatos desse viajante, o fascínio pelos morros
da serra Ricardo Franco, vistos como um mundo perdido, cobertos por densa floresta.Fawcett afirma que as
fotografias desse serra, junto de algumas informações, que forneceu a Conan Doyle, foram fontes de inspirações
a esse autor, que resultou no romance “O Mundo Perdido”, publicado em 1912 em folhetim no Strand Magasine,
e mais tarde em livro com grande popularidade.
47
HUGO, Vitor. Relatório do professor Silvio Milanese sobre a fundação de uma estação de meteorologia em
Vila Bela de Mato Grosso, em 1923. Desbravadores. 2º Vol. Humaitá: Edição da Missão Salesiana, 1959.
p.348-352.
68
dos gentios”, motivo dos constantes deslocamentos para a sede do município. Enfatizou a
necessidade de que a União olhasse de perto para “a remota região”, e apesar das dificuldades
relatadas, elogiou a calorosa e bella recepção que a boa gente” preparou-lhe como forma de
agradecimento pela instalação da estação meteorológica na cidade.
Frederico Rondon, por volta de 1936, deixou relatos de sua passagem por Vila Bela,
onde a população de 300 habitantes vivia da lavoura, pecuária para o consumo, e extração da
poaia, cujo comércio nas safras dava novo alento à cidade. Segundo ele existiam belos
campos nos arredores da cidade, com áreas de pastagens comparadas como as melhores do
Estado. Muitas lagoas perenes como a de Buriti, e outras transformadas em pastagens na
época das secas. Apesar de toda esta exuberância, existiam poucos retiros, suficientes apenas
para o número reduzido do gado existente. As terras localizadas às margens do rio Sararé,
excelentes para a lavoura, estavam despovoadas. Alguns sítios próximos aos rios Guaporé,
Alegre, e Barbados, como o Sítio Pedreira, possuíam alguns moradores, “engenho de
madeira
48
” e fabricação de cachaça e rapadura. Deixou também relacionado: Sítio Dona
Maria, antes grande estabelecimento, tendo ainda seis ranchos e uma pequena lavoura; Sítio
dos Bastos, com 3 famílias, campos, pastagens, lavouras, criações; Sítio do Chapéu de Sol,
Sítio da Passagem, do Areão e Joaquina Gomes, com moradores; Morcego, com 6 moradores;
Porto Esperança, Carlos Augusto e Manoel Caetano, com 3 moradores; Os sítios Barranco
Alto e Piuva, Fazendinha, Monjolo, Aguassú e Tamarineiro estavam abandonados. Destacou
também que o café colhido nos velhos cafezais existentes próximos ao Guaporé, e a erva-mate
encontrada nativa nas encostas da serra Ricardo Franco, eram utilizados para o consumo local,
assim como a baunilha, a copaíba, a salsaparrilha, o tocary, a castanha do Pará e o azeite de
aguassú, feito em casa. (RONDON, Frederico, 1938, p.116-119 e 129).
48
Os engenhos, nem sempre produziam somente o açúcar, apesar de rotulados de “engenho”. De acordo com
Costa Filho, grande parte destes estabelecimentos provavelmente fabricava também a farinha de mandioca, o
fubá de milho etc. (apud ARRUDA, 1990:309- nota 108). ABDALA, Mônica Chaves. Receita de Mineiridade:
a cozinha e a construção da imagem do mineiro. Uberlândia: EDUFU, 1997. p.58.
69
Para compreender estes relatos buscamos as análises de Maria Inês Malta Castro, ao
comentar que as leituras sobre Mato Grosso, realizadas pelos viajantes e poticos sejam
estrangeiros ou brasileiros, expressavam olhares muitas vezes distantes da realidade. Para o
estrangeiro Mato Grosso representava um território vazio, mesmo quando os espaços eram
habitados e para o brasileiro, uma parte do Brasil que precisava ser integrada à nação. Para
ambos, a natureza pródiga regional, tornava as pessoas inertes, e Vila Bela com suas belas e
ricas paisagens simbolizava um domínio da natureza sobre as pessoas, onde as ruínas, a
estagnação e a decadência traduziam a incapacidade da população local de se ajustar aos
novos tempos e à dinâmica de sociedades em que a busca do lucro e a faina incessante davam
o tom de todas as ações. E isso era explicado como indolência e lassidão moral destes
moradores de ermos distantes, perigosamente integrados à natureza selvagem. (MALTA
CASTRO. 2001. p.116-120).
Entretanto, pode-se considerar que para os moradores de Vila Bela, esse tempo foi de
vital importância, porque permitiu a ocorrência de práticas culturais baseadas nos princípios
comunitários, com o plantio coletivo de gêneros alimentícios como feijão, milho, mandioca,
amendoim, e demais atividades integradas aos recursos proporcionados pela natureza, por
meio da coleta, caça, pesca.
Um aspecto importante a ressaltar diz respeito às descrições de alguns viajantes sobre
o tratamento dispensado aos visitantes pelos moradores de Vila Bela. Estudos de Leila Mezan
Algranti, sobre a sociabilidade da população do interior brasileiro, esclarecem que desde os
tempos coloniais, além dos períodos de festividades, oportunidades que as pessoas,
principalmente as mais pobres, possuíam para exercerem a confraternização e divertimento,
era costume principalmente em áreas mais interioranas, oferecerem hospedagem a viajantes e
forasteiros, talvez o único contato com o mundo exterior que as pessoas desfrutavam.(
ALGRANTI, 1997, p.115).
70
1.4 – Práticas alimentares no tempo do extrativismo
Neste ponto de construção da trama, em que as fontes orais foram importantes
suportes, cabe destacar como referencial teórico as análises de Antônio Torres Montenegro,
sobre “Os fragmentos da memória na construção de narrativas históricas,” para explicar os
relatos utilizados, fontes provenientes de diferentes experncias e temporalidades.
“Pensar a história nos remete aos princípios que norteiam nossa concepção
de conhecimento e sua produção, tomando como referência o paradigma que
considera o real uma construção cultural, o que vemos, sentimos e ouvimos,
resultado do que aprendemos a partir do universo social em que estamos
inscritos. Montenegro coloca também que,o documento não é o passado,
um meio para se chegar a uma realidade, mas um registro, uma construção,
em que as marcas da história vivida, constituem um permanente combate de
informações, com os quais o historiador terá de lidar para produzir a trama
histórica. Dessa forma os relatos orais se constituem como prodão de uma
fonte, que cobra do historiador uma prática e materializa-se em
procedimentos analíticos que possibilitam deslocamentos, a construção de
uma nova ordem de significados e, portanto um outro entendimento do que é
dito. No interior desse conjunto complexo de movimentos, está a escrita do
historiador que não pode nem deve ser confundida com a escrita do relato
oral ou de qualquer outra fonte.(MONTENEGRO, 2004, p.1-
13).
49
Partindo desta perspectiva dissertada pelo autor, apresentamos os relatos do sr.
Antônio:
A vida era muito difícil naquele tempo. A gente ficava poaiando, mas na
época das festas, tava todo mundo aqui na Vila. Natal e Ano Novo, a gente
passava na mata, trabalhando normal porque era época da chuva. A gente ia
novembro e voltava em abril, conforme, né!
50
Seu Antônio foi um poaieiro, e por meio de suas lembranças, pode-se perceber
algumas das transformações que aconteceram na vida da população de Vila Bela, a partir do
momento em que por meio do extrativismo vegetal, as experiências de vida individuais e
coletivas foram sendo gradativamente deslocadas de um cotidiano dedicado às atividades
49
Montenegro, Antônio Torres. Os fragmentos da meria na construção de narrativas hisricas, segundo o
referido pesquisador, texto resultado do trabalho de pesquisa desenvolvido através do projeto “ Memórias da
terra: a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e as Esquerdas ( 1954-1970).
50
Relato do Sr. Antônio Jesus de Oliveira. Vila Bela, 1999.
71
comunitárias em terras livres, para um viver moldado na exploração de força de trabalho.
Reapresenta um novo tempo, provavelmente com o mesmo significado para a maioria da
população desses trabalhadores itinerantes que estavam nas matas, trabalhando no
extrativismo. Tempo sinalizado pelo antes e depois das chuvas, tendo as festas dos santos
como a marca da temporalidade, o momento do retorno para o convívio familiar e com os
grupos sociais.
Também seu Adão explica suas experiências nas atividades extrativistas.
Eu me chamo Adão de Albuquerque dos Santos, tenho 89 anos enasci em 6
de março de 1910, em Guajará-Mirim no território de Rondônia. Cheguei
aqui com a idade de 11 pra 12 anos. Não me lembro de mais nada. Já
trabalhei na extração da poaia, do caucho, da seringa. O caucho é uma
madeira que a árvore é grande, vai do outro lado da rua, fica muito alta.
Trabalhei na caçada e matava uns 40 caimãs, o jacaré, a lontra. Matava
lontra pra “quebra torto”, de manhã, às 11 horas pra almoço e a tarde pra
janta. Trabalhei na extração da seringa. A gente cortava o tronco pra sair o
leite. Depois que recolhia esse leite, defumava no fogo. Ajudei minhae,
trabalhei pro Marcelão. Agora acabou tudo. Minha mulher já foi comigo pra
mata da poaia. Não tirou nada, trouxe uns 15 k de poaia. Descontaram
tudo.Trabalhei com a dona Grundi, uma alemã que está viva até hoje, e com
o Marcelão, pai da Neita. Ficaram ricos com isso Por aqui era muita mata de
poaia. Na Borda mesmo tinha. E ia até a dois, ts dias daqui. Poaia é um
arvoredinho assim, que a gente arrancava nas águas, trabalhava pro patrão.
Já morreram tudo. Eles pagavam nós e vendiam a poaia pra Cáceres, Cuiabá.
Eles é que levavam até Lacerda, de carro de boi. Na extração da poaia, a
gente comia arroz, feijão, carne, e caça como queixada, anta. Tinha muita
caça. A falia ficava aqui. Mas minha mulher foi comigo e não tirou
quase nada. Fora da época da poaia, eu mexia com roça de arroz, milho,
feijão, banana. Não vendia. Agora tão vendendo tudo. Uma vez, vendi uns
alqueires de arroz, mas foi pra fazer o funeral de uma menina minha.Na
seringa já trabalhei também, cortando ela pra tirar o leite. Agora, acabou
tudo. Agora não tem mais, porque desmataram e derrubaram tudo
51
Pode-se dizer que ambos os depoentes, sãoportadores de memórias que esculpem no
tempo uma história. Que fazem emergir dos dilaceramentos uma recomposição da sociedade e
do poder, da cultura e dos sistemas simbólicos, abrindo cenários para se interpretar a teia de
acontecimentos.” (GROSSI; FERREIRA, 200, p.30-33).
51
Relato do sr. Adão de Albuquerque dos Santos. Vila Bela, 1999.
72
Lembranças que permitem uma reflexão sobre o tempo em que os recursos naturais
em Mato Grosso passaram a serem vistos sob a perspectiva do lucro e da riqueza que
poderiam gerar para o Estado e para o Brasil. ( MALTA CASTRO, 2001,p.201).
52
Para os moradores de Vila Bela, as atividades extrativistas como a da ipecacuanha ou
poaia,
53
borracha,
54
de penas e peles de animais silvestres, representaram as possibilidades de
um novo tempo, fonte de benefícios ecomicos e sociais. Dominando quase todas as
florestas da planície do Vale do Guaporé, na parte de Mato Grosso, em áreas que eram
exploradas pelas empresas privadas que tinham contratos de exploração concedidos pelos
sucessivos governos estaduais, ao longo de século XIX e metade do XX (PUHL, 2003, p.20-
25), as atividades extrativistas, principalmente com o ciclo extrativo da poaia, estabeleceram
na região um clima de franca hostilidade entre poaieiros e índios (BANDEIRA, 1988, p.75),
levando a população de Vila Bela, a deslocar as atividades agrícolas dos sítios, para as
margens do rio Guaporé e capões próximos à Vila. (BANDEIRA, 1988, p.258)
Sobre a população indígena do Vale do Guaporé, destacamos os estudos de Ribeiro da
Costa. Segundo essa autora, desde o século XVIII os Nambiquara eram representados pela
52
.A autora coloca que os recursos naturaiso na realidade recursos sociais, assim definidos tendo em vista
homens e mulheres vivendo em sociedade, em lugares e tempos diferentes.o se pode esquecer também que a
natureza é um valor, não é natural no processo histórico. Ela pode ser natural na sua existência isolada, mas no
processo histórico ela é social. O valor da natureza está relacionado com a escala de valores estabelecida pela
sociedade para aqueles bens que antes eram chamados naturais. (MALTA E CASTRO, 2001, p.201).
53
A poaia é uma planta muito procurada, devido suas propriedades medicinais. A raiz contém um alcalóide, a
emetina, que entra na fórmula de fabricação de expectorantes, vomitivos e também contra a desinteria amebiana.
Era encontrada nas matas próximas dos cursos dágua, nos Estados de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo. Em Mato Grosso, nas áreas que iam do município de Barra dos Bugres
até Vila Bela da Santíssima Trindade. No início do século XX, a produção da ipeca já havia diminuído, e a área
de coleta estava reduzida entre os limites do Oeste de Mato Grosso, nas áreas próximas das bacias dos rios
Paraguai e Guaporé. Por volta de 1978, praticamente havia acabado, porque as terras passaram a ser ocupadas
pelas grandes fazendas, pelos agricultores do sul do pais, pela pecuária extensiva, fazendo com que praticamente
desaparecesse do Brasil, a exploração de uma planta tão preciosa. Pequenas quantidades de raízes da ipeca
podem ser encontradas, ainda que raramente, em alguns raizeiros ou seja, pessoas que vendem remédios naturais,
em algumas feiras livres, localizadas principalmente na cidade de Cáceres-MT. (MARCEL,1980, p.7-18).
54
Mato Grosso possuía as famosas Mangabeiras, árvores nativas de onde era extrdo o látex branco-azulado,
com o qual de fabricava borracha de excelente qualidade. A extração desse látex acompanhou os mesmos altos e
baixos de expano da borracha amazonense. As regiões onde era extrdo, localizavam-se às margens dos rios
que formam as bacias dos rios Paraguai e Amazonas. O escoamento da produção próxima dos rios da bacia
hidrográfica do Amazonas, também seguiam para os mercados consumidores, via rio Paraguai- Estuário do
Prata. Com a construção da ferrovia Madeira – Mamoré, passou a seguir via porto de Manaus. (MADUREIRA
SIQUEIRA; ALVES DA COSTA; CARVALHO, 1990, p.34).
73
imagem do índio selvagem, com hábitos antropofágicos, o que contribuiu para que
mantivessem os não índios afastados de seus territórios, retardando assim, a invasão. A partir
do século XX, os trabalhadores dos Postos Telegráficos, missionários protestantes e católicos,
seringalistas e seringueiros, empresas colonizadoras, a construção de estradas, e
representantes da FUNAI chegaram até as terras Nambiquara e entrelaçaram-se às teias de
suas memórias, com dinâmicas próprias que interagindo com outras, em constantes ações
recíprocas, trouxeram elementos que exerceram influência na ordem social desse povo, que ao
se relacionarem com outros atores sociais, entrelaçaram-se a outras linhas que dimensionaram
o tecido histórico, permeado por variados interesses poticos. Tanto a exploração da poaia
(cephaelis ipecacuanha), como da borracha, incluindo a extração da madeira, peles e penas de
animais silvestres, tornaram-se lucrativas nas matas do Vale do Guaporé, até Vila Bela, e
foram realizadas nas terras ocupadas pelos Nambiquara. Os contatos com os poaieiros, cada
vez mais freqüentes e violentos, levou à redução paulatina do extenso território tradicional
desse povo indígena e o externio de grande parcela da sua população. ( MOREIRA DA
COSTA, 2000, p.37-168 ).
Sobre esses contatos com os indígenas, apresentamos a perspectiva de poaieiros,
moradores de Vila Bela, inicialmente por meio das lembraas do Sr. Antônio:
Nesta época, aqui tinha muita terra e pouca gente. [...] Ali onde é a Cascata,
aquela mata ali, era pura poaia, tinha muita poaia. Baunilha eu nunca achei,
já vi alguma aqui pro rio Guaporé. Na época da seca eu ia pra lavoura
trabalhar pros outros, ou fazer outros servos. Trabalhei nesta estrada ai,
daqui até o Porto Esperidião. Era um Matão. Abrimos de machado,
derrubando mata na foice. Era mata pura. Até Lacerda tinha índio. Pra
não. Eles ficavam vigiando.Era os Parecis, os Nambiquaras e os Cabixis.Os
Nambiquaras eram muito bravos. Os Parecis eram mais civilizados. Era
muito índio, e ficavam vigiando a gente. Quando a gente encontrava com
eles, se fazia careta, metia bala, e eles corriam. Muitos companheiros
morreram flechados pelos índios, na mata da poaia. Dois companheiros,
quando fomos fazer o rancho, o sapiri, foram apanhar palha bem perto e
quando chegamos estavam mortos com flechadas. Enterramos por
mesmo e no outro dia fomos cobrar até o acampamento dos índios. Metemos
bala para morrerem. Não sei quantos. Se a gente não metesse bala não
conseguia trabalhar. Os índios atacavam também as ras, mas eram muito
74
medrosos também. Pra atacar, tinham que estar perto da gente, e por isso o
podíamos mostrar medo. A gente passava e via eles, mas não podia mostrar
medo.
55
Mesmo com as dificuldades enfrentadas, para a população de Vila Bela as atividades
extrativistas desempenharam relativa importância, funcionando como um meio de expansão
econômica de alguns grupos familiares, dependência de outros e ligação da cidade com outras
praças comerciais. (BANDEIRA, 1988, p.166-170).
No período após a decadência do ouro, entrou a era da borracha, da poaia, da
extração de peles de animais. , tiravam peles de animais para vender.
Inclusive do boi. O boi existia, mas o que valia era o couro, a carne não valia
nada. Então, vendiam pra Corum, Cáceres, Cuiabá. Vendiam tamm
peles de ariranha, de onça, de jacaré, isso aí é que era o comércio que existia.
E lavoura. Lavoura de milho, de mandioca, de fumo para o comércio, depois,
tinha também os produtos que eram extraídos da natureza. Depois disso aí,
entrou a fase da extração da madeira, da castanha, do peixe. Antigamente
o tinha venda de peixe. Aí, começou a entrar essas coisas e foi dando jeito
de saída. E a agropecuária (porco, galinha, cabrito, ovelha, gado), pequenas
indústrias de cachaça, açucarado, melado, rapadura. E o povo ia vivendo.
Naquela vida simples e pacata que as famíliaso precisavam,o tinham
muita coisa porque o tinham os gastos que tem hoje.Não tinha telefone,
televisão, luz pra pagar todo mês e outras exigências como dico, dentista.
Tudo corria num processo comum da natureza, do jeito que podia.
56
Percebe-se que o sr. Zeferino, pouco a pouco vai deslindando o passado, descrevendo
experiências repassadas ou presenciadas, por meio de suas lembranças. Suas representações
de natureza e da utilização dos recursos naturais, confirmam o conceito de que as concepções
de natureza são elaborações históricas e, portanto, referenciadas a sociedades, culturas,
tempos e lugares distintos .( MALTA CASTRO, 2001, p.201).
Também alguns viajantes que passaram por Vila Bela, no período extrativista vegetal
e animal, deixaram importantes observações. Esperidião da Costa Marques, descreveu as
espécies vegetais encontradas nas florestas e nas matas do rio Guaporé e seus afluentes, como
a erva-mate, a poaia, a baunilha, a copaíba, a salsaparrilha, o tocary, as inúmeras variedades
55
Relato do sr Annio Jesus de Oliveira. Vila Bela, 1999.
56
Depoimento do sr Zeferino Profeta da Cruz Neto. Vila Bela, 1998.
75
de plantas têxteis, oleaginosas, aromáticas, madeiras, plantas medicinais, frutíferas e próprias
para a tinturaria. Destacou a seringueira, árvore del oro para os bolivianos”, e fez uma
minuciosa explanação sobre a exploração da borracha no Vale do Guaporé, que encontrada a
partir do rio Galera, despertou o interesse dos industriais e empreendedores nacionais e
estrangeiros.
A exploração dos seringais às margens do Baixo Guaporé, tanto na margem brasileira
como na boliviana, impulsionada a partir de 1877, propiciou a presença na região de vários
grupos de trabalhadores brasileiros comandados pelos exploradores da borracha.
Esses trabalhadores, cerca de 1850, viviam esporadicamente em barracões, constrdos
em locais onde existiam capela, engenho e alambique, casaria para empregados, num espaço
em que conviviam trabalhadores brasileiros e bolivianos. A alimentação básica era o arroz,
pouco feijão, devido às dificuldades para adquiri-lo e também pouco consumo da carne de
porco e toucinho, um costume só dos brasileiros.
Os gêneros alimentícios eram vendidos no Vale do Guaporé, de acordo com a moeda
boliviana. Uma arroba (tratava-se da arroba boliviana de 25 libras) de arroz com casca era
vendida por 5 bolivianos, nos armazéns localizados nas áreas de exploração da borracha. A
farinha de mandioca era vendida por 5 bolivianos a arroba, uma de feijão por 8 bolivianos,
uma de carne seca por 10 bolivianos, uma de queijo por 25 bolivianos, uma de manteiga por
16 bolivianos, uma de sal marítimo por 16 bolivianos, um kilo de rapadura por 3 bolivianos.
O fumo era vendido em maços e aos pesos.
Explica que a carne, após o processo de separação
de toda a gordura, era colocada para secar. A gordura misturada com sebo, a “manteca ou
graxa”, era muito apreciada no preparo da comida nas casas bolivianas. (MARQUES, 1906,
p.363-370).
Além da borracha, Marques coloca que das matas da região extraia-se também a poaia,
pequeno arbusto cujas raízes têm propriedades medicinais e já era conhecida também pela
76
população indígena e pelos moradores de Vila Bela. Sua exploração realizada com o objetivo
de ganhos lucrativos levou vários grupos familiares a se dedicar a esta atividade, realizada no
período chuvoso, de novembro a abril, às vezes até julho, nas áreas dos vales dos rios Galera e
Guaporé, até os campos do Bority. As feitorias, ponto de encontro diário dos poaieiros,
possuíam ranchos, locais onde eram guardados os objetos pessoais, ferramentas, alimentos e
onde passavam a noite. Nestes ranchos, faziam a “matula”, que era composta de feijão, arroz
sem sal, carne seca, ou de caça, farinha, açúcar ou rapadura, e muitas vezes mel, palmito e
frutas, coletados nas matas. (MARQUES, 1906, p.363-370).
Nesses ranchos usava-se o angico, laranjeira do mato e caneleira, como “lenha” para
cozinhar os alimentos, enriquecidos com a caça abundante tal como o veado, a paca, a
tartaruga, o tatu, a jacutinga, a capivara, e o caititu. Palmito e frutas, como bananas, caju,
cacau do mato, goiabinha, ata do mato, jaracatiá, e castanha do Pará, eram também muito
apreciadas pelos poaieiros. Para fazer uma boa farofa, utilizavam ovos de inhambu ou de jaó.
O mel era muito utilizado, não só para o consumo no local de extração, porque algumas vezes,
no final da safra, os poaieiros dedicavam parte do último dia na mata, para saírem à cata de
colméias já localizadas anteriormente. Enchiam de mel pequenas garrafas e latas, que
levavam para os familiares. (MALTA CASTRO, 2001, p.265).
A exploração de caráter sazonal da poaia, ditava o ritmo e a intensidade da itinerância
dos trabalhadores, pois a coleta exigia um deslocamento constante dentro das matas à procura
dos arbustos, de onde arrancavam as raízes. Essa atividade caracterizou-se pela utilização da
mão-de-obra livre e assalariada, assim como da indígena, sendo que os poaieiros contratados
por safra ficavam cerca de seis meses, no período das chuvas, na mata fechada, e no restante
do ano, ou seja, de novembro a abril, desempregados ou subempregados à espera da nova
safra. (PERARO, 2001, p.34). Seu. Annio explica minuciosamente o cotidiano nas matas da
poaia :
77
A gente pegava o saraquá
57
e arrancava a raiz da poaia o dia inteiro. Almo
era 6 horas da manhã pra sair. Era o arroz, feijão e carne. Muita carne. Cada
um fazia a sua comida, que almoçava. Quando voltava, quem queria ficava
até mais tarde, a gente tomava banho, jantava, ia conversar, dormia. As
mulheres às vezes ia com a gente. Viria já foi e trabalhava comigo. A
poaia que a mulher trazia era dela era particular. O contrato era com os
homens. A ferramenta era nossa e a matao era de ninguém, naquele
tempo. Ali onde é a Cascata, era pura poaia. Hoje acabou. Pra frente tinha
era muita, mas muita poaia. A vida era muito dicil.!
58
Toda a poaia coletada pelos trabalhadores era reunida em fardos, posteriormente
transportados até Cáceres, inicialmente pelos próprios produtores, com extrema dificuldade,
por terem que atravessar o território dos índios Cabixis. (MOREIRA da COSTA, 2000, p.34 e
65).
59
Segundo as descrições de Frederico Rondon os índios que faziam incursões em Vila
Bela pertenciam à nação Nambiquara, sendo constantes suas abordagens, principalmente na
estrada de Vila Bela para Cáceres e entre o rio Guaporé e Vila Bela.(RONDON, Frederico,
1938, p.130-138).
Através da venda da poaia, algumas poucas famílias acumularam capital razoável,
vindo do excedente da produção convertido em dinheiro e da mais valia daqueles que
vendiam a mão de obra, ou seja, de uma maioria, descapitalizada. Neste contexto, os
moradores de Vila Bela viveram profundas contradições e enfrentamentos com a população
indígena, que estava com seus espaços sendo gradativamente invadidos pelo extrativismo
comercial (BANDEIRA, 1988, p.256-318). Alguns moradores, como o senhor Adão,
reinscreve este cenário de disputas.
57
Instrumento que servia para retirar as raízes da poaia. MARCEL(1980, p.36).
58
Relato do sr Annio Jesus de Oliveira. Vila Bela, 1999.
59
Segundo a autora os primeiros contatos dos Nambiquara com a sociedade colonial foram registrados por
Antônio Pires de Campos, e já nessa época eram denominados de Cabixis; Cabixis bravos; Cavihis e
Nhambiquaras. Moreira da Costa, apresenta também uma minuciosa relação sobre a onomástica Nambiquara,
contendo informações a respeito das designações empregadas desde oculo XVIII até o atual.
78
Sou de 6 de março de 1910. Tou com 89 anos e sou um dos mais velhos
daqui. Minha neta já tem filho. Conheci o Major Rondon, mas não sei se era
o filho ou se era ele. Me deu uma caixa de fósforo no posto velho. A linha
que tinha de telefone foi ele que pôs. Aqui não tinha gente de fora, mas
agora, os daqui mesmo tão acabando. Nestes matão tudo aqui tinha poaia.
Tinha também o caucho, seringa, tudo tirava aqui.[...] O dinheiro era
custoso. Fui conhecer dinheiro de poucos anos pra cá. Trabalhava pro patrão
e não via o dinheiro, porque patrão dava calça, camisa, comida e aí nem via
a cor do dinheiro. O patrão descontava as compras de mercado, caro! Os
patrão daqui era o Marcelão, a dona Gundi. Os índios vinham até aqui na
Vila. Agora os Cabixi já acabou. Os Nhambiquara eram mais bravos. Os
índios atacavam, mas só por volta de 6 da manhã, ou das 11 horas. Se
atacassem a noite, Ave Maria! Tinham acabado com Vila Bela.Trabalhei
também na construção do campo de aviação e na estrada pra Cáceres. Tudo
na enxada, na foice. Não tinhaquina, pra ir derrubando, destocando,
tirando a madeira. Hoje já trabalham folgado. Tem até máquina pra
plantar!Eu já fui duas vezes emceres. Fui pra servir o governo. Gastamos
5 dias daqui até lá. Nós era em 8 homens.
60
Tanto a extração da poaia quanto à da borracha, foram itens importantes na pauta de
exportações de Mato Grosso, integrados aos mercados financeiros e de produtos (MALTA
CASTRO, 2001, p.201-279), garantindo fluxos de trocas com outros núcleos urbanos,
atendendo às necessidades que a produção de consumo direto não satisfazia. Até as primeiras
décadas do século XX, parte da produção era trocada principalmente por sal, armas, cartuchos
para confecção de munição, instrumentos agrícolas, tecidos, remédios, complementos para
arreios de animais. Da década de 1940 em diante, outros produtos foram incluídos como o
querosene, açúcar, sabão e o óleo. (BANDEIRA, 1988, p.256-318).
Cabe destacar a participação das mulheres nas atividades de extração da poaia, seja
ficando na cidade juntamente com os demais familiares, ou trabalhando nas matas. Seu
Antônio faz comentários sobre a presença de sua esposa dona Viria, mas certamente muitas
outras mulheres participaram anonimamente desta lida, garantia para uma melhor renda
familiar e poder de compra dos bens básicos de consumo, e por que não, de alguns produtos
que as tornassem mais belas, principalmente no período das festas.
60
Relato do sr Adão de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
79
Quando a mulhero ia com a gente, ficava aqui na cidade, pegava o que ia
consumir com o fornecedor e quando a gente voltava, tinha que pagar as
contas. Agora, a poaia que a mulher trazia, quando ia com a gente, era dela,
era particular, porque o contrato era com os homens. O que fazia era para
ela.
61
Esclarece-se que a maioria dos produtos, com exceção daqueles que o poaieiro e
família cultivavam nas roças no período de entressafra da poaia, eram fornecidos pelo patrão,
inclusive aqueles usados para a alimentação, e descontados no final da safra, no acerto das
dívidas contraídas.
Para dona Andreza, as atividades nas matas da poaia eram muito duras, principalmente
para as mulheres:
Antes d’eu casar fui na mata da poaia umas quatro vezes. Depois que eu
casei eu fui uma vez. Lá na mata a comida a gente fazia de noite. Punha o
feijão no fogo com a carne, aí a carne amolecia com o feijão. De manhã,
fazia o arroz, temperava o feijão e carne, comia e ia embora pra mata. Não
levava comida pra mata e nem água. Chega no mato, acha água nos
rregos. A gente poaiava o dia inteiro. À tardinha, chegava pra casa e
depois que fazia a janta, jantava, colocava o feijão pra amanhã. A carne seca
era levada da cidade. Tanta carne seca!A gente ficava na mata toda a época
da chuva. A gente tomava chuva o dia inteiro. Ficava com a roupa molhada
no corpo o dia todo. Quando chegava, secava a roupa no fogo, fazia fogo
assim. Amanhã cedo vestia a roupa de novo. No domingo descansava. Ia
lavar a roupa, ia comer uma comida melhor, melhor porque os homens iam
pra mata caçar passarinho, uma coisa assim. Passarinho como pato, jacu,
inhambu, jaó e tinha muito. E tinha índio também. Ave Maria! Tinha
bastante na mata. Mas a gente ficava assim mesmo. Eles flexavam a gente,
matavam a gente na mata da poaia. Teve um dia que índio matou três
homens de uma vez. Eu não vio, não foi onde nós estávamos. Foi em
outra mata. E o porco do mato que mata a gente! É muito perigoso o porco
do mato. Quando a gente escutava o porco do mato, estalando, batendo o
dente, a gente subia em cima da árvore, porque senão ele matava mesmo.Ah!
Naquele tempo, antes d’eu casar, eu tinha medo mesmo. Quando chegava o
porco, eu chorava mesmo. Eu ia poaiar com a minha irmã Dita, aí eu
chegava e chorava mesmo. Quando vinha o porco, todo mundo subia nas
árvores. Euo sabia subir, eles me botavam , eu caia. Ai eu gritava:Dita,
eu vou morrer!Aí me colocavam num galho, até o porco passar. Tinha o
porco, a onça brava. Ave Maria! Tinha tudo quanto é fera. Quando adoecia,
remédio a gente fazia de coisa lá do mato. Esta imagem de Santo Annio aí,
eu botava numa lata. E como andou em mata da poaia, que o tem conta.
Era pra nos livrar dos índios. A gente andava pra tudo quanto é canto com
ela. Depois que parou de poaiar, dei a imagem pra minha filha Maria
Antônia. Quando a gente chegava aqui, entregava a poaia pro patrão, que era
o meu irmão Marcelo. Aí, ele levava pra Cáceres, ia vender as raízes. A
61
Relato do sr Antonio Jesus de Oliveira. Vila Bela, 1999.
80
gente muitas vezes o recebia nem um cruzeiro. Tudo era pra pagar o que
comia na mata. Eu, no primeiro ano,o tirei saldo de nada, nem pra
comprar nada. Só pra pagar o que comi. Eu chorava, porqueo deu pra
comprar nenhum vestido. Isso eu estava com uns 10 pra 11 anos. Parei de
poaiar com 18 anos.
62
Dona Andreza recria um cenário, em que os acontecimentos vão sendo produzidos de
acordo com seu interesse ou do grupo social do qual faz parte. Suas experiências nos
transportam até os caminhos úmidos da extração da poaia, onde homens e mulheres,
enfrentando as condições adversas de trabalho, tendo como apoio a fé em Santo Annio e as
relações solidárias, bases de sustentação de um trabalho cujo resultado será apropriado pelos
patrões. Reapresenta um universo feminino em que estavam presentes: a dupla jornada de
trabalho, as tarefas domésticas, a composão do cardápio alimentar, utilização dos recursos
naturais na cura das doenças, os tempos de trabalho, de lazer e de descanso.
Revive os perigos da mata, a presença e disputa de espaços com os índios. Mostra
caminhos palmilhados de emoções onde a relãotica com o sagrado ajudava a enfrentar as
dificuldades cotidianas e aguardar o futuro, não de salvação, mas de entrega das raízes da
poaia, pesadas e repesadas, ao patrão. Momentos em que os sonhos, nem que fosse a compra
de um corte de tecido para um vestido, poderiam ser interrompidos.
Também nas lembranças do senhor Adão, estão redesenhadas imagens deste tempo,
em que o cotidiano era recortado e os sonhos muitas vezes interrompidos, pela violência entre
a população de Vila Bela e o povo indígena, na luta pelo espaço.
Os índios atacavam muito e eu mesmo como já escapei deles nessa estrada
que ia praceres! Tava eu e meu iro trabalhando na abertura dessa
estrada, e numa época, mandei telegrama pro meu sobrinho me mandar filó,
pra eu me livrar das abelhas que tinha demais. Ai, nós estava quebrando
umas pedras quando procurei o filó e o encontrei. Falei pro capataz que o
rato era o índio. O capataz duvidou, zangou comigo, pois como índio ia
chegar no meio de tanta gente, mais de 15 homens? Respondi que embora
fosse mais velho do que eu, estava enganado, porque eu havia visto o rastro
do índio, e que era ele que tinha pegado o filó. Não acreditaram. Falei que
62
Relato de dona Andreza Profeta de Almeida. Vila Bela, 1999.
81
não ia teimar porque meu pai havia morrido por causa de teima. Pus uma 44
na cintura, mostrei o rastro, subi em cima de um pau, e o índio igual sombra,
de tocaia. Atirei, mas ele correu. Flechou, acertando um companheiro. Viajei
pra Vila com esse companheiro machucado, de carro de boi, umas 6 horas de
viagem. Agora não, você vai e volta de ônibus a tarde. tava escurecendo,
quando chegamos por volta das 6 horas da tarde. Botaram ele num teco-teco,
ai na fronteira, maso aentou. Morreu no avo, na viagem, da flechada
do índio. Flechada no umbigo. A mãe dele já morreu, e acho que agora, a
ir, guarda a camisa dele até hoje, toda manchada de sangue. Agora os
índios andam até de moto! Índio aqui era bravo. Os Nambiquara. Tinha
muitos, agorao. Eu fui na maloca dos índios. Chegamos, tinha um
campo de aviação lá onde ficamos. Chegamos até onde estava a mulher
sentada com uma lata. Não demorou muito, chegou o marido, com uma
flecha. Nós estávamos com um índio manso, que conversou na língua deles e
amansou ele.
63
Seu Zeferino faz vários percursos, em diferentes temporalidades e sentidos, de como
eram forjadas as experiências, nesse contexto em que a violência gradativamente passava a
ser naturalizada:
Em 1875 foi o ano que chegaram aqui os últimos moradores deo Vicente,
contava os mais antigos. Veio José Fernandes Leite, Davi Francisco da
Silva, Amâncio, vieram tudo pra Vila Bela. Com bastante ouro. Dona Jacinta
veio pequenina. A mãe dela colocou ela na bruaca, ela contava essa história.
Antigamente, como euo tinha conhecimento, eu aceitava essa história
como uma lenda. Mas depois eu vi realmente que não era lenda, então hoje
eu admiro aquelas coisas que Dona Bernarda também contava. E fico
orgulhoso desse povo herói aqui da região do Guaporé, resistindo a todas
essas dificuldades. Foi muito importante para o país, ficou como marco, um
marco da fronteira do Brasil, que o estava ainda bem assegurada à
fronteira. Os índios atacavam sempre no fim do ano e isso foi até 1956. Os
Nambiquaras é que atacavam, e os Parecis eram mais mansos.Tinha um
garimpo aqui perto de Vila Bela, que hoje é reserva, fica ali. É no município
de Vila Bela, mas é Pontes e Lacerda que explora. Era uma reserva e aí os
fazendeiros também tomaram conta. Miranda de Brito, tem o Andrada.Na
época, tinha o seu Grerio de Campos, que viajava e depois chegava com
os índios, uns 50, 60, 80 índios, trazendo bola de seringa, poaia. Eles
ficavam perdidos aí, depois voltavam de novo. Gostavam muito de jogar
bola. Ficavam aí, jogavam bola. Já joguei muita bola com eles. Ajudavam
também nalgum serviçinho, mas no mais pescavam, comiam caça que eles
matavam, faziam as casas. Um salãozão, onde acendiam um fogueio.
Comiam tatu, o que caçavam na beira das matas da cidade. Passavam muito
tempo ali, depois iam embora.Os Nambiquaras pareciam meio vermelhos
porque eles passavam urucum no corpo. Eles eram muito sagaz, bravos. Eles
o deixavam a gente ver eles. Eram rápidos, via eles assim, eles sumiam. O
pessoal tinha um medo deles que pelava. Falar em Nambiquara, o pessoal
corria. Várias vezes tiveram que brigar com eles, porque eram muito bravos.
O pessoal saiu de São Vicente corrido deles. Segundo o que me falaram,
63
Relato do sr.Adão de Albuquerque dos Santos. Vila Bela, 1999.
82
esses índioso eram tão bravos assim, mas devido à exploração de gente ai,
eles ficaram bravos e ai quando viam que a população de Vila Bela estava
retirando, diminuindo, ai é que ficaram mais bravos. A população foi só
regredindo, eles foram chegando, maso conseguiram tomar Vila Belao.
Várias vezes eles chegavam na cidade meia noite com flechas e a gente
estava dentro de casa e ouvia a zoada deles. Uma vez, o povo estava
festando, esta festa de Natal, uma índia estava subida numa goiabeira, uma
tal de Maria Coroca. Isaias sabe dessa história. Soltaram fogos em cima dela
e ela assustou e caiu da árvore na beira do poço, bateu as costas, aí deu um
calombão nas costas dela e ela andava corcunda. Quando ela veio, ela era
mais mansa. Era mulher de um capitão.Antigamente o povo, tinha muitos
homens que eram muito trabalhadores e a comunidade gostava muito porque
eram pessoas fortes que resolviam os problemas. Outros eram valentes,o
tinham medo de nada, iam, viajavam. Tinham que chamar eles para resolver
um problema, como do índio que atacava. Eram aquelas pessoas que
entendiam, conhecia o mato, por isso eram chamados, tinha-se fé neles.
Segundo os mais antigos, na mina de São Vicente, a mina só acabou
porque um velho que tinha, antigo, de cento e poucos anos morreu. Ai, os
índios viram que o velho não estava mais, invadiram a cidade lá. Eles
tinham medo deste velho. O velho conhecia as manobras dos índios, era
danado, sentia até o cheiro dos índios.
64
Essa “
cultura de contato”, própria de um espaço transcultural e híbrido, desenvolvida
através de relações desiguais, conflituosas, de coerção, implicava também alianças,
cumplicidades e trocas de saberes, necessários à sobrevivência comum.( ANSAI, 2004,p.37).
De acordo com Guimarães Neto, é necessário refletirmos sobre as diversas
temporalidades e formas de ocupação do território amazônico, que se entrelaçam, registrando
a coexistência de grupos étnicos e culturas distintas, em um universo marcado pelo conflito e
pela violência. Geografia imaginada, a Amazônia, para além das designações político-
administrativas, sugere-nos a criação de um espaço marcado pelas interações, pelas
passagens, pelas combinatórias das trajetórias sociais. Ao mesmo tempo que se estabelece a
rede de diferenciações pode-se ter como ponto de partida da análise os espaços sociais que se
combinam e se desdobram um no outro, armando a dinâmica das interações entre as
personagens que os habitam. (GUIMARAES NETO, 1981, p.49-69). Continuando nas trilhas
das reflexões de Guimarães Neto, pode-se afirmar que a violência que permeava as relações
64
Relato do sr Zeferino Profeta da Cruz Neto. Vila Bela, 1998.
83
entre os grupos sociais e étnicos localizados nas terras de Vila Bela
65
não impediram que
fossem criadas redes de práticas culturais, que favoreceram a aculturação e interferiram seja
no cotidiano ou em ocasiões especiais, num espo em que as dificuldades se estendiam no
dia a dia, desde para a aquisição de alguns produtos básicos para o uso diário, como para as
ocasiões das festas. É o que podemos apreender nos relatos de dona Cecília:
Em 1937, ano que nasceu uma irmã que eu tenho aí, minha mãe falou que ia
à cidade comprar sal com a cunhada dela. Meu pai estava adoentado, ai ele
ficou aqui e nós esperando o sal e os dias todo comendo sem sal. Ela chegou
aqui com um litro de sal, e repartiu com o cunhado. Vila Bela foi uma cidade
tão difícil! Uma vez eu ia fazer uma festa de Santa Cecília. Aí eu falei pro
meu marido pra irmos até a Vila comprar arroz, porque aqui no sítio
chamado Manga,o tinha. Chegamos na Vila e não achamos nem um litro
de arroz pra comprar. Então, pra fazer uma festa mesmo, desta festa aí, tinha
que trabalhar a roça, pra ter o mantimento. Porque se fosse pra comprar ali
como , onde ia achar? Era difícil de achar.
66
1.5. Política de Ocupação e Fluxos Migratórios nos rumos dos moradores de Vila Bela
Narrativas de alguns moradores de Vila Bela, das quais destacamos inicialmente as
palavras do Sr. Annio, estão observações sobre a potica de ocupação efetuada pelo Estado
nas terras do município, até então vistas pela população como um espaço de terras livres.
As terras eram do Estado, só podia ser do Estado. Cada um pegava um
pedaço pra plantar. Tinha pouca fazenda por aqui. [...] Nas terras não tinha
ninguém, só nós daqui mesmo. Tinha muita terra e pouca gente. Faz pouco
tempo que começou a chegar gente e a tomar Vila Bela de nós. Aqui, cada
um pegava um pedaço de terra, mas euo peguei. Aqui era só nós negros
mesmo
67
.
Já o sr. Zeferino apresenta estratégias, usadas por sua família para a legitimação e
manutenção do patrimônio familiar:
65
Nações indígenas Pareci; Nambiquara e Chiquitos, afro-descendentes, migrantes de várias regiões brasileiras.
(PUHL, 2003).
66
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
67
Relato do Sr Antônio Jesus de Oliveira- Totó. Vila Bela, 1999.
84
Aqui onde estamos pertencia aos meus avós que sempre trabalharam em
pecuária, sempre lutaram com usina de açúcar, rapadura, melado, pinga.
Meu avô em primeiro lugar comprou essas terras, porque Vila Bela entrou
em decadência e as terras ficaram aqui largadas. A documentação destas
terras aqui de Vila Bela foram todas para Manaus. Levaram o livro de
registro e ficou tudo de novo sem documento. Depois que veio a decadência,
meu avô comprou de D. Pedro II umas terras, por volta de 1860, mais ou
menos. Por sinal tem até no mapa do Brasil, no mapa do exército, o nome da
fazenda aqui, destas terras. Eu tenho o mapa que mostra a terra. Em 1950,
meu pai comprou do Estado de Mato Grosso, o lote Pedreira, que chegava da
beira do rio Guaporé até a serra, num lugar chamado Mineira, subindo a
serra. Com o tempo, de uns vinte e cinco anos para trás, mais ou menos,
começou a chegar o pessoal interessado em abrir fazenda, como o Gustavo
de Carvalho, que comprou um pedaço de terra do meu pai. Depois o Gustavo
vendeu pros Lemos, fazendeiro de Araçatuba, que está aqui até hoje. É uma
pessoa boa, trabalhadora, adquirindo influência. Eu também continuo com
terra, mas só com um pedaço pequeno. Tenho vontade de fazer algo assim
para passeio, lazer, criar vaca leiteira, cabrito. Aqui é um lugar estratégico,
tem muita coisa antiga, muros de pedra, parece que foi
muito importante.
Todos que vêm aqui apreciam muito o lugar, acham muito bonito.
68
Para explicar os contextos reinscritos nos relatos apresentados, buscamos as
explicações de Guilherme Velho, quando diz que as frentes de expansão regional, podem ser
definidas como o avanço de um conjunto de segmentos sociais no decorrer de uma atividade
de exploração econômica, em áreas já ocupadas por grupos indígenas ou populações
tradicionais. Essa expansão pode se dar em função da exploração vegetal, mineral, pastoril
como do deslocamento não só de grupos de empreendedores, de cidades, instituições poticas
e jurídicas, mas também de populações pobres, não indígenas, mestiças, como de garimpeiros,
vaqueiros, seringueiros, castanheiros e de pequenos agricultores. (VELHO, 1979, p.115).
Pesquisando sobre a questão fundiária em Mato Grosso, Eudson de Castro Ferreira
coloca que a potica de colonização a partir da década de 1940, estabeleceu o marco de
retomada do crescimento demográfico de Mato Grosso, iniciado no século XVIII, mas que se
estagnou com o esgotamento das minas de ouro. Essa colonização tinha por objetivo
incorporar as fronteiras agrícolas do Estado á economia nacional., absorvendo e assentando
68
Relato do Sr. Zeferino Profeta da Cruz Neto. Vila Bela, 1998.
85
no meio rural mato-grossense definido como espaço vazio, os excedentes populacionais,
desempregados, subempregados das demais regiões brasileiras. Impulsionada a partir de 1930,
com a Marcha para o Oeste, essa proposta de colonização relacionava as possibilidades de
crescimento de Mato Grosso a partir da revalorização e especulação das terras, por meio de
ações de particulares e do governo Estadual, o que deu inicio a uma potica com pretensões
de retomar o crescimento demográfico de Mato Grosso, e implementar uma estrutura viária
para a região Centro-Oeste, que favoreceria o alargamento da fronteira agrícola. Essa política
expansionista incentivou o processo colonizador no Estado, por meio da propaganda à
migração e desenvolvimento da pecuária extensiva. No início da década de 1950,terras
devolutasforam reservadas para a fundação de núcleos coloniais, com várias colonizadoras
particulares contratadas para medir, lotear, vender e povoar essas terras e implantar-nos recém
criados núcleos, escolas, postos de saúde, campos de pouso e estradas de penetração.
(FERREIRA, 1986, p.64-67).
A Fundação Brasil Central, criada pelo decreto lei n° 5.801 de setembro de 1943,
implementou essa potica, abrindo estradas, criando cidades, aglutinando e sedentarizando
populações. Vastas áreas passaram a ser valorizadas, dando espaço às ações especulativas,
com as terras valorizadas como mercadorias. ( TAURINES, s/d).
69
Nesse período desenvolveu-se em Vila Bela um comércio local de pequeno porte, não
em função das necessidades dos moradores locais, mas também dos sonhos daqueles que
viam nessa política governamental as possibilidades de melhoria nas condições de vida para a
população da cidade. Segundo o Sr. Zeferino Profeta da Cruz, por volta de 1958, o Hotel
69
Segundo Taurines, nas terras que compreendiam o município de Vila Bela estiveram as seguintes
colonizadoras: 20/02/1953- Consórcio Industrial Bandeirante de Incentivo à Borracha S.A. próxima dos rios
Camararé e Primavera; 10/06/1953 -Cia Comercial de Terras Sul Brasil, e Núcleo Colonial Jauru, na área
próxima ao município de Cáceres e Pontes e Lacerda; 10 /09/1953, Colonizadora Camararé Ltda, próxima do rio
Camareré na linha telegráfica até o rio Langaiara;21/11/1953- Cia Pan-Americana de Administração S.A,
próxima ao rio Cabixi até Rondônia e da serra dos Parecis até o rio Camararé; 25/03/1954, Colonização e
Melhoramentos Mato Grosso Ltda, próxima do rio Galera até a barra do rio Guaporé e rio Póca. Desses projetos
colonizadores, apenas o do Núcleo Colonial de Jauru se firmou, sendo que os outros se esvaziaram ou se
desvirtuaram. (TAURINES, s/d)
86
Alvorada, propriedade de seu pai, Sr. Marcelo Profeta da Cruz, recebia muitos hóspedes que
eram principalmente os compradores de borracha, de poaia, comerciantes e pessoas que
chegavam de Cáceres e da fronteira. Também visitas especiais para a população local, como
os padres missionários Venance, Galibert e Aimé, no desenvolvimento de suas atividades
missionárias.
“L’hôtel de Zéphérino: C’est lá que nous logeons, mon Dieu, avec um
certain confort. Um petit hall précède um large couloir, qui sert de salle
commune; sur la gauche, quatre chambres, dont les murs et cloisons
s’arrêtent à 40 ou 50 centimètres de la toiture, comme dans les maisons
árabes. Nous sommes seuls; em prévision des hôtes éventuels cependant, on
a mis nos lits dans la même chambre, à droite et à gauche.Si les chouettes ne
chantent pas trop fort leur plainte monotone, nous pourrons dormir. Et
d’abord une petite sieste. Dehors la pluie, laissons pleuvoir.” (
ROUSSEL,
1999, p.55).
70
Nesse contexto, a consolidação do patronato na região, a abertura do vale do rio
Guaporé à especulação fundiária, com a compra e venda de terras, mediadas pelo
Departamento de Terras do Governo de Mato Grosso, vieram acompanhados pela efetiva
desconsideração aos direitos de posse dos moradores de Vila Bela, pois o discurso patronal
enfatizava que, as terras dessa população, em sua maioria composta de negros, eram
consideradas de acordo com a potica oficial “espaços vazios”.(BANDEIRA,1988, p.256-
318).
Segundo Guimarães Neto, principalmente durante as décadas de 1950 e 1960, os
governos da maioria dos Estados da União Federal do Brasil, sobretudo os da Amazônia,
encontravam-se envolvidos com grandes falcatruas na venda e distribuição de terras
pertencentes ao Estado, coniventes com as ações de desmando e exploração de trabalhadores
70
. “É lá que nos acomodamos, meu Deus! Com certo conforto. Um corredor pequeno precede uma passagem
grande, como se fosse uma sala comum. Na esquerda, quatro quartos, da qual as paredes param a 40 ou 50 cm da
cobertura, como nas casas árabes. Nós estamos sós, mas prevendo possíveis anfitriões, colocaram nossas camas
no mesmo quarto, á direita e à esquerda. Se as corujas não cantarem muito forte a reclamação monótona delas,
nós poderemos dormir. Primeiro uma soneca pequena. Fora, a chuva. Deixemos chover!” (ROUSSEL, 1999,
p.55 )[Tradução minha.]
87
dos grandes proprietários de terra, impunidade no campo. Mato Grosso é representativo
dessas situações de ilegalidade de compra e venda de terras, em que o seu próprio
Departamento de Terras apresentava como o maior agenciador de títulos forjados,
incentivando a grilagem” de terras públicas, indígenas e de camponeses. A partir de finais
da década de 60, os governos ditatoriais reestruturam os órgãos federais de planejamento
regional, determinam poticas estaduais, criam novas políticas territoriais, os programas de
desenvolvimento agropecuário e agromineral da Amazônia e de “colonização”. As poticas
oficiais voltam-se para a classificação das diversas áreas através de grandes eixos de
investimentos econômicos, denominadas “pólos de desenvolvimento”, apoiando-se no capital
nacional e estrangeiro. ( GUIMARAES NETO, 1981, p.52).
Nesse período, principalmente no que se referia ao abastecimento, eram muitas as
dificuldades cotidianas enfrentadas pelos moradores de Vila Bela, relata Isaias.
Eram grandes as dificuldades, devido às péssimas condições da estrada,
principalmente para o escoamento da produção. E a gente passava muitas
dificuldades, necessidades mesmo, por causa da falta de estrada,
principalmente na época das águas. Em 1958, essa estrada chegou até aqui
na Vila, foi no governo de Fernando Correia da Costa. Nessa época, a
riqueza da cidade era a cultura das verduras, o peixe, e as roças para o
consumo. As famílias doavam alimentos cultivados para as pessoas idosas,
doentes, impossibilitadas de trabalharem. Existia também uma lancha que
fazia o transcurso nos rios Guaporé-Madeira-Mamoré. O chefe desta lancha
era o Sr. Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha, que morava em Guajará-Mirim,e
avisava qual o dia que viria avo, ou lancha aqui pra Vila. Ali na beira do
rio, próximo do perto, existia um barrao, onde ficavam os funciorios do
Servo de Navegação do Guaporé (SNG). Havia também trilhos até o rio,
pra facilitar o carregamento das mercadorias; um armazém muito grande,
com muita mercadoria, tudo ali, próximo da igreja de Santo Antônio dos
Militares, hoje em ruínas. Existiam os comerciantes nessa época, que mesmo
período das águas, traziam mercadorias pra Pontes e Lacerda, e chegavam
até aqui na Vila, depois de oito dias de estrada. Essas pessoas é que
abasteciam o comércio daqui, com sal, arroz, óleo, cerveja, outras bebidas,
que completavam o que existia aqui. Passou ao faltar coisas na cidade. Os
moradores daqui tinham o maior carinho com essa falia de comerciantes,
e quando chegavam por aqui, eram recebidos até com festa. Foi uma época
em que passamos a viver com menos crise de mercadorias. Eu vivi esse
período. A carne de gado, aquele que tinha seu boi, matava, destrinchava a
carne. Era uma carne sadia, eram aquelas costelas com carne, com tudo que
a gente tinha direito. Mas, a gente comia era mais as carnes de porco, peixe e
frango caipira. Era comum a gente ir pescar de anzol e não de rede ou de
88
fisga. Quando eu era pequena, eu ia pescar junto com meu pai. Passava o dia
com ele numa canoa. Quando me dava sono, ele forrava o fundo do barco e
eu dormia até. Isso eu estava com uns três pra quatro anos. Aprendi a pescar
com meu pai
Era comum aos sábados, os jovens descerem o rio em
grupos, pra pescar. Era o que chamávamos de “pascana”.
71
Nos anos 60, as terras nas quais está situado o munipio de Vila Bela, foram sendo
gradativamente ocupadas por grandes empreendimentos agrícolas e posteriormente por grupos
de trabalhadores em busca de melhores condições de vida. Cabe aqui, fazer um paralelo entre
o trabalho cotidiano relembrado por dona Andreza, em função da presença desses
trabalhadores na sede do município.
A quando aposentei, ainda mexia com bar.Fiquei com o bar. Era uma
peãozada que ficava aqui a noite toda, nessa casa. Cozinhava, e dia de
sábado era até o amanhecer. Era a peãozada que vinha pras fazendas. Foi
quando começou as fazendas aqui. Era dicil! Eu vendia comida. Cansei,
mas como cansei! Sábado era festa a noite toda, até o amanhecer, até as 8
horas. O pessoal dançando, comendo. Ai, eu fui ficando cansada, entreguei o
cargo. Uma vida muito apertada. Agora estou em casa.
72
A expansão capitalista que irrompeu no vale do Guaporé, a partir do final da década de
60 e início dos anos 70, invadiu as terras comunitárias e o modo de produção tradicional da
comunidade negra de Vila Bela, através dos grandes empreendimentos agrícolas, dos grupos
familiares de trabalhadores em busca de melhores condições de vida, maior circulação de
pessoas, informações e experiências. (BANDEIRA, 1988, p.316). São elementos que
propiciaram novas configurações nas práticas culturais tanto cotidianas como nas festas dos
santos, num contexto que se apresentava para a população local como uma nova
temporalidade, ou seja, “o tempo do branco.”
Num espaço em que a identidade negra, havia sido recriada como expressão
coletiva de interesses comuns, sobrepostos às difereas de classe que
cortavam internamente o grupo, os brancos passaram a definir os negros
como preguiçosos, libidinosos, sem princípios étnicos e morais, pouco
71
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1998.
72
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela; 1999.
89
inteligentes, sem iniciativa e racistas. As práticas culturais negras nomeadas
como africanas e primitivas e o atraso econômico do município
conseqüência da ocupação negra. Os brancos se autodefinem como
superiormente organizados, trabalhadores, empreendedores, progressistas,
detentores de princípios éticos e morais superiores, agentes civilizadores
com direito ao domínio das estruturas econômicas e políticas de poder.
(BANDEIRA, 1988, p.316).
Boa parte da população tradicional do Vale do Guaporé, em decorrência dessa potica,
perdeu quase todas as terras, deslocando-se para a sede do município de Vila Bela ou para
outras localidades. Ocupantes tradicionais e posseiros de terras devolutas não tituladas,
sofreram ameaças à sua sobrevivência, juntamente com os diversos grupos ingenas, por
causa do processo de ocupação da fronteira noroeste do Brasil promovida pelas poticas de
incentivos fiscais aos latifundiários, da abertura e construção de rodovias e pela intensa
migração de trabalhadores sem terra de outras regiões do país. Essa disputa pelo espaço do
Vale do Guaporé, aconteceu através dos conflitos pela terra em áreas aptas para o cultivo, pela
especulação imobiliária e a concorrência pelo subsolo com seus minérios de ouro e metais de
valor estratégico Os espaços agrários foram reconfigurados, produzindo-se uma nova
dinâmica demográfica induzida, desterritorializando populações tradicionais e constituindo
novas territorialidades. (PUHL, 2003, p.20-21).
A partir dos governos militares, foram criados órgãos estatais como a SUDAM
(Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia ); BASA (Banco de Desenvolvimento
da Amazônia ); SUDECO (Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste),
incentivos fiscais e isenções tributárias, para que se efetivassem os grandes projetos agro-
pecuários, estímulos poticos e econômicos para a formação e crescimento de grandes
fazendas, empresas agro-pecuárias, de extrativismo e de mineração. Essas medidas visavam
incorporar vastas áreas da Amazônia Legal e conseqüentemente as fronteiras agrícolas de
Mato Grosso à economia nacional, como também absorver e assentar no meio rural mato-
90
grossense os excedentes populacionais desempregados e subempregados de outras regiões
brasileiras. (BANDEIRA, 1988, p.256-318).
As terras situadas entre a margem esquerda do rio Guaporé e os limites com a Bolívia,
transformaram-se em áreas de grandes propriedades agro-pecuárias. Em meados de 1970, a
expansão dessas atividades deu origem a núcleos populacionais ao norte de Vila Bela, como
Padronal e Nova Alvorada, sede dos novos distritos criados em 1977 e posteriormente
emancipados.
73
Também em torno do povoado de Pontes e Lacerda, que em poucos anos se
emancipou, e se transformou em pólo de rápido desenvolvimento agrícola e área de garimpos.
(BANDEIRA, 1988, p.256-287).
Destacamos nessa trama, o relato do sr. Carlos Bento de Oliveira, sobre as
dificuldades enfrentadas pelos moradores de Vila Bela, diante da perda gradativa do espaço
territorial.
Sou Carlos Bento de Oliveira, “Azul”, e tenho 38 anos de idade. A gente está
fazendo aqui esta apresentação, mostrando o que aconteceu na época em que
os migrantes vieram pra nossa cidade. Então a gente começou a ver, quando
os poderosos vieram pra cá, que a gente era pequeno, tinha pouco
conhecimento das coisas lá de fora. E hoje estamos revendo, lembrando as
coisas que já perdemos prarias destas pessoas. E a cidade está devastada,
arrasada, acabada, nas mãos de pessoas que realmente não têm condições de
desenvolver uma cidade. Então, por isso estou depondo estas colocações.Na
época, eles chegavam em Brasília e conseguiam um documento lá, do
governador, com o presidente da República. Vinham pra cá, sobrevoavam e
conheciam a área.. Ali eles já demarcavam a área e posseavam da
propriedade, de 20, 30 mil alqueires de terra. Ai, eles colocavam a fazenda.
E hoje, nas terras aqui, a maioria dos fazendeiros são paulistas, mineiros,
paranaenses, enfim. Eles chegavam, posseavam das terras, traziam
maquinário pesado para abrir a fazenda. Já trabalhei na época, em muitas
fazendas. Fui po, vaqueiro de um grande latifundiário, o Jo Arantes,
inclusive muito amigo meu. Era dono da Cobral, hoje é da família dele
ainda, que é o imperador Valter Arantes, um grande e poderoso de São Paulo
e que reside aqui na região. Trabalhei 5 anos com esse fazendeiro.E esses
fazendeiros quase não ficam aqui. Moram lá nos grandes centros e aqui só
fica a gerência. Tinha também o Benedito Canellas, que já foi senador, e
tem uma área aqui na divisa do rio Verde com a Bolívia. Tem o José Reis,
uma das pessoas cuja propriedade hoje foi vendida para um grupo
ecomico forte do Paraná. Eso residindo na fazenda. São humildes,
73
No censo de 1980, foram registrados 1.290 habitantes em Padronal; 2.404 em Nova Alvorada e 14. 406 em
Pontes e Lacerda. O fluxo populacional de Pontes e Lacerda foi tamm conseqüência da abertura dos garimpos
e chegada da frente de expano. Dados obtidos no IBGE.1999.Cáceres-MT.
91
deixam algum beneficio para a cidade. E tem muitos outros, que já venderam
a propriedade. O finado Mineirão, o Zigomar, o Valter Arantes, o Renato
Arantes, iro do Valter, o Garol, o Chio, enfim rios, que são os mais
fortes que temos aqui. Só criame de gado, com áreas de aproximadamente
20 a 30 mil alqueires, com uma quantia imensa de reses. Hoje a base de gado
que o Garol Maia tem dá uma base de quase 50 mil reses, o Bento Ferraz
Pacheco, 45 mil cabeças de gado., fora o que tem arrendado por ai nas
pequenas fazendas. Estas são as pessoas que abrangem a nossa região. As
madeiras que saem daqui é tudo debaixo do pano. Não tem uma fiscalização,
não fica nada de imposto pra cidade. Já saiu muito mogno, hoje está escasso,
já saiu muita cerejeira. Hoje a região está precária destas madeiras de lei.
Agora, ta saindo mais é o cedrinho, e ainda tem estas madeiras mais frágeis.
A garapa fica aqui, nas pequenas serrarias, mas as melhores madeiras saem
tudo pra aqueles que têm melhores condições de pagar os melhores preços.
Estas madeiras vão pra Pontes e Lacerda e são beneficiadas lá. De lá vão
para o exterior e pro Brasil todo. Vão para o porto de Santos e de lá pro
exterior. Aqui existia uma empresa de nome Rover, uma grande serraria,
uma multinacional. Ela faliu, mas de mentira. Fecharam a fábrica e foram
embora.O governo esquece da gente. Estamos aqui. Hoje pelo menos
existem pessoas de curso superior que estão vindo pra Vila Bela, vendo esta
situação e levando a nossa mensagem. O presente de Vila Bela está difícil de
explicar, mas eu acho que o futuro vai ser uma grande emoção pro povo,
porque nós vamos ter que mudar o quadro desta cidade, que está abandonada
muito tempo. Doze anos abandonada. Nós o aentamos mais esta
dificuldade. Estamos trabalhando pra ver se recuperamos o nosso patrimônio
e nossas raízes, que estão defasados. Nós precisamos unir pra poder a gente
sentir que Vila Belao é aquela cidade de marcação, mas o berço do Estado
e que se encontra hoje numa situação difícil, sem estrada, sem acesso com o
mundo lá fora. E aí, nós estamos tentando mudar este quadro, porque hoje eu
vejo a minha cidade dormindo. Então são essas as minhas palavras.
74
No sentido de compreender as narrativas apresentadas, encontramos explicações nas
análises de Antônio Torres Montenegro, quando diz que: as representações da memória
realizam-se em diferentes temporalidades, como uma reconstrução descritiva do passado,
revivendo experiências e acontecimentos, possibilitando ao leitor transportar-se para o
cenário, ao contexto reinventado. O queo significa que num mesmo relato não venham a
aparecer passagens em que predominem apenas juízos de valor ou avaliações generalizantes,
como também o ouvinte possa ser de certo modo impedido de conhecer maiores detalhes do
tema ou assunto abordado. (TORRES MONTENEGRO, 2001, p.39-54)
As lembranças conduzem o indivíduo a cenas vividas em conjunto, imagens que se
tornaram presentes num tempo em que se presencia o acontecido. No entanto, no decorrer da
74
Relato de Carlos Bento de Oliveira – Azul. Vila Bela, 1999.
92
vida, momentos vividos vão fazendo parte de uma construção permanente da existência,
passando-se a lembrar do que aconteceu mediante o contato com pessoas, lugares, vozes,
músicas, que levam o sujeito a associar impressões vivazes. Para o narrador, torna-se
impossível narrar tudo, lembrando-se ele apenas de partes significativas do passado.
(GROSSI; FERREIRA, 2001, p.31-32).
As reinterpretações apresentadas pelos moradores de Vila Bela sobre a vida cotidiana
diante desse processo de abertura de extensas fazendas, perda do espaço e deslocamento da
população local das terras que eram utilizadas para plantar, coletar e caçar, podem ser
explicadas pelas análises de Regina Beatriz Guimarães Neto, em seus estudos sobre a
ocupação na Amazônia:
Atras dos incentivos das políticas governamentais, intensificaram-se as
demandas sociais por terra, impulsionando o movimento de expansão e
conquista das áreas denominadas fronteira agrícola na Amazônia,
associado, sobretudo às frentes de trabalho nas zonas de colonização,
mineração e exploração madeireira. Foram implantadosrios núcleos de
projetos de colonização, estratégia de domínio do território amazônico. Em
Mato Grosso, nas décadas de 1970 e 1980, nos territórios cobertos pela BR-
163, Cuiabá-Santarém e pela BR-Cuiabá-Porto Velho, eixo rodoviário do
qual as terras do município de Vila Bela fazem parte, ocorreram vários
deslocamentos de pequenos agricultores e demais trabalhadores sem terra,
atividades em garimpos, derrubadas de florestas para os grandes fazendeiros,
trabalho nas madeireiras da rego. (
GUIMARÃES NETO, 1981, p.52-
54).
O povoamento e expansão das atividades agro-pecuárias que atingiram gradativamente
todo o município de Vila Bela alteraram as ligações entre as práticas culturais da população e
sua base territorial, fazendo com que: os grupos familiares que trabalhavam nas suas terras ou
desenvolviam uma agricultura itinerante nas terras comunitárias resguardadas pela
propriedade coletiva e do trabalho, fossem expropriados de seus meios de produção
(BANDEIRA, 1988, p.256-318). Dona Maria Madalena deixa algumas impressões sobre a
vida de sua família nesse período.
93
Antes de morarmos aqui, morávamos no Monjolo. Ai viemos pra cá pra
estudar, morávamos com os outros. Ai meu pai resolveu mudar pra cá, e não
voltamos mais. Monjolo hoje eu acho que é uma fazenda. Agora é. O pessoal
tirou Monjolo e ficou só acho que Barranco Alto, porque antes Monjolo era
junto de Barranco Alto. Compraram e ampliaram. Tudo é de um dono só.
Todos aqui tinham sua terra, eu acho. Meu tio, que mora ao lado do Tito,
tinha terra também. Ai foram vindo pra cá, todos foram mudando, mudando.
Todos foram ficando sem as terras
.
75
Vila Bela foi integrada a este processo de ações governamentais, apreendidas pela
população como modernização e progresso. Chegaram as redes bancárias no município com a
abertura das agências do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, órgãos de
administração ligados ao poder Federal e Estadual, modernização do seu núcleo urbano, com
a implantação de redes de água em 1978, instalação de poço artesiano, distribuição de energia
elétrica por meio de motores, uma iniciativa da Prefeitura Municipal, passando para quatro
horas em 1972, seis horas em 1980, até tornou-se responsabilidade do Estado, em 1986.
Pavimentação e melhoramento das ruas, urbanização da praça da Matriz, construção da
Escola Estadual, ampliação da rede escolar municipal rural, inauguração do posto telefônico
com ligações interurbanas, construção da cadeia pública para a guarnição da polícia,
ampliação do quadro de funcionários estaduais de ensino, da receita, da segurança e da
saúde.(BANDEIRA, 1988, p.256-318) Foi interligada a outras regiões do pais, por meios de
transportes mais rápidos, além da já existente comunicação através de embarcações via rios
Guaporé-Madeira, até a localidade de Guajará –Mirim, ( Rondônia). Por meio das descrições
do sr. Antônio, pode-se ter uma iia dessas viagens.
Viajei 3 anos de barco pra Guajará-Mirim, trabalhando. Era de 8 a dia pra
subir o rio e 5 dias pra descer, isso nas épocas de cheia. Nessa época era
mais fácil. Mas, em época de seca, era mais difícil, demorava de 15 dias
mais ou menos pra chegar. Nas cachoeiras, a gente punha embarcação nos
canais mais fundos. A viagem era dia e noite. Não parava. A lancha cabia
mais de 100 pessoas. Além das pessoas que estavam viajando, tinha as
cargas, e o pessoal que trabalhava, uns 12. Tinha comida, era que nem hotel.
A viagem é linda! Principalmente a noite. A lancha era do governo de
75
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
94
Rondônia, e trazia mercadorias como sabão, fumo, açúcar, sal e levava
borracha. Viajavam brasileiros e bolivianos. Os índios só ficavam olhando o
barco da beira do rio.
76
Além das embarcações, (MARQUES, 1906, p.364),
77
passavam por Vila Bela o avião
Maguary, vindo de Guajará-Mirim e na década de 1950, aviões da FAB (Força Aérea
Brasileira), segundo dona Antônia Brito Maciel, natural de Vila Bela, antiga professora na
escola do Forte da Conceição, e atualmente, moradora em Guajará-Mirim. Destaca também
que em 1975, aconteceu a última viagem do barco via Guaporé-Guajará Mirim:
Nos períodos de 1960 a 1970, era mais fácil para as pessoas em Vila Bela
viajarem de avo, porque além das passagens serem baratas, no avo da
Cruzeiro do Sul, havia o avião da FAB( Foa Aérea Brasileira ) que fazia o
servo de correio, o avo Catalina, do pelotão do exército do Forte Príncipe
da Beira, onde as viagens eram gratuitas
. .
78
Na trilha dessas viagens, também dona Gregória nos brinda com suas recordações:
[...]o padre que vinha aqui era mais de Guajará. A pra gente daqui da Vila,
pra tratar de saúde, era mais em Guajará. Tinha o avião da FAB, tinha o da
Cruzeiro, e tinha também a lancha. A viagem de lancha erao barata, que
o dava nem pra pagar a comida que você comia. Porque daqui até lá era de
8 a 15 dias. Você ia dormindo, comendo, bebendo. Tinha lanche. Estou
falando porque viajei de lá pra cá de lancha. Fui de avião da FAB. De avião
da FAB, o pagava a passagem, mas da Cruzeiro sim. Eu acho que era
baratinho.Isso eu não sei.Todo mês tinha lancha. Padre, médico, vinha mais
deGuajará. Aqui não tinha estrada, nem sonhava de ter hospital, a base era
mais Guajará. A pra estudar. Tem muita gente de Vila Bela lá. Iam direto
pra lá, tudo por causa da lancha, né!
79
Compreender as singularidades das diferentes narrativas desses moradores de Vila
Bela, como também as linhas que revelam as ligações de cada um com o coletivo, nesse
momento de perda do espaço territorial, nos levam novamente às análises de Grossi e
Ferreira, sobre como se enreda no tempo uma memória, e qual o significado da mesma.
76
Relato do sr. Antônio Jesus de Oliveira. Vila Bela, 1999.
77
De acordo com os relatos de Marques, em 1900 a lancha a vapor ‘Guaporé”, vinda de Guajará-Mirim, chegou
até Vila Bela, iniciando a navegação a vapor pelo rio Guaporé.
78
Relatos de dona. Antônia Brito Maciel. Vila Bela, 1998.
79
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
95
A memória rne fragmentos espalhados, ou seja, tempos de experiências,
com suas descontinuidades, fissuras, fragmentações. Fatos e personagens,
que se envolvem e se interligam no enredo expressivo do mundo vivido. As
lembranças são “as cenas fulgor, penetrando num território estriado por
marcas que delineiam, contornam e modulam a paisagem, ou seja,cleos
que cintilam marcas dotadas de significação”, para uma pessoa. Seriam
lugares da emergência simbólica nos quais se acumulam a história, por
conter vozes de outra épocas, subjugadas nas malhas da letra que registra.
(
GROSSI; FERREIRA, 2001, p.25-29).
No que diz respeito á realização das festas dos santos, o fato da maioria dos festeiros e
festeiros, possuírem terras, favorecia a realização das mesmas, como podemos observar no
relato de dona Catarina: “ Os festeiros do passado, pra eles “largarem a festa deles”,
plantavam as roças deles, de arroz, feijão, amendoim, pra quando chegasse na época, não
precisavam comprar. Já compravam outras coisas.
80
Segundo dona Ana Jonas, alguma coisa mudou, quando afirma que: “ eu acho que
mudança, porque antes parecia que era difícil, mas era bastante fácil.As variedades para a
festas continuam, mas não é muitos que fazem o biscoito de Ramos. Os doces de mamão e de
batata, ainda fazem.”
81
Essa mudança nos usos da terra pode ser analisada por meio de alguns dados
fornecidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estastica), importantes pistas que
indicam os processos de especulação das terras do município de Vila Bela, e a transformação
da maior parte das terras devolutas em grandes latifúndios. O censo econômico indica que a
partir da década de 1960, ocorreu um gradativo crescimento de estabelecimentos rurais
caracterizados por grandes áreas, aumento da criação de bovinos, lavouras temporárias de
arroz, milho, feijão, cana de açúcar e alguma produção relacionada à horti-fruticultura, como
o abacaxi, abóbora, melancia, tomate e outros. Em 1991, Vila Bela contava com 12.970
habitantes, sendo 4. 116 na área urbana e 9. 572 na área rural, e em 1996, foram registrados
80
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
81
Relato de dona Ana Jonas Coelho de Brito. Vila Bela, 1999.
96
um total de 10.430 pessoas. Por meio da variação do fluxo populacional no município,
percebe-se que o mesmo foi a partir da década de 1960, atingido pelos efeitos da potica
Federal e Estadual baseadas nas propostas de uma frente de expansão com atividades
direcionadas à pecuária de grande porte, exploração madeireira e plantio em larga escala
direcionado à comercialização.
Em 1991, no levantamento dos municípios de baixa capacidade de retenção da
população, Vila Bela figurava entre aqueles que embora tenham crescido a taxas inferiores ou
iguais a 1,0%, ainda mantinha a maior parte da população na área rural, evidenciando-se
também um gradativo processo em andamento, de transformações na sua estrutura produtiva,
com a expulsão dos pequenos produtores da área rural.
82
As terras ocupadas por grandes
fazendas e caracterizadas por baixa densidade demográfica favoreceram o surgimento de
conflitos referentes à posse da terra, porque além de parte da população local ser expulsa das
áreas consideradas “espaços vazios,” chegaram ao município grupos de trabalhadores e suas
famílias à procura de terra. (BANDEIRA, 1988. P.256-331).
Segundo moradores locais e os dados da Relão Nominal dos Projetos de
Assentamentos Criados,
83
existem no município assentadas pelo INCRA, 240 famílias na
localidade denominada Seringal e 720 famílias na localidade chamada Ritinha. Os moradores
do Morumbi ainda não foram assentados e nas localidades de Formosa e Liberdade, as
propriedades foram adquiridas de outras pessoas e os moradores ainda não têm título das
terras.
No lado esquerdo do rio Guaporé, na chamada faixa da fronteira com a Bolívia,
existem mais de vinte comunidades como Ponta do Aterro, Palmarito, Santa Rita, São Simão
e cinco destacamentos militares, incluindo Casalvasco. São áreas de terras férteis,
82
Dados obtidos no censo agro-pecuário e populacional do IBGE – Cáceres-MT.
83
Fonte: Relação Nominal dos Projetos de Assentamentos Criados. Cuiabá: Superintenncia Regional do
INCRA-MT, 1997. Bocaina - 300.0000 h/portaria n.01.97 /Colônia dos Mineiros -5.234,4000 h/portaria 097/
02.12. 96 /Formosa - 14.000,0000 h/portaria 456/28. 05.87 / Ritinha - 5.575,0000 h/portaria 100 / 20.11. 97 /São
Sebastião - 500,0000 h/portaria. 050/17. 06.97.
97
caracterizadas pela existência de grandes fazendas, cuja atividade principal é a pecuária e
extração de madeira, e a maior parte da mão de obra utilizada é boliviana, os chamados
“Chiquitos”.(FERNANDES SILVA, 2001/2002 p.179-212).
84
À direita do rio Guaporé, nos
assentamentos e áreas próximas das margens deste rio, estão fixados grupos familiares
oriundos de vários estados brasileiros e mesmo de outros municípios mato-grossenses. A
grande maioria dos negros, expulsos de suas terras, deslocou-se para a sede do município de
Vila Bela ou para outras localidades como Cáceres, Cuiabá, Guajará-Mirim-RO.
85
A intensificação da presença dos grandes fazendeiros, o crescimento populacional
urbano,
86
a perda do espaço, a exploração não sustentável dos recursos naturais, as disputas
pelo poder político local, o descaso dos poderes municipal e estadual diante dos problemas
enfrentados pelos moradores da cidade, um maior contato da população local com os grupos
de famílias de diversas localidades do Brasil, os crescentes processos de trocas culturais, de
interação com a sociedade nacional e com o mercado econômico simbólico, a chegada dos
meios de comunicação com novas informações, tecnologia, valores sociais, influenciaram a
vida cotidiana, levando a população a elaborar posicionamentos próprios e adaptações a esta
modernização. De acordo com as palavras do senhor Zeferino, representam um novo tempo,
que exige novas estratégias de enfrentamentos, num espaço em que a população local virou
hisria:
84
Segundo a autora, a história do povo conhecido como Chiquito ou Chiquitano, está indissociavelmente ligada
à história da Missão de Chiquitos, um grande conglomerado de vários aldeamentos, na Bolívia oriental, que
associou inúmeros grupos indígenas. Os Chiquitanos foram ao lado dos Mojos, bases de sustentação das
reduções jesuíticas em terras coloniais espanholas. Maiores informações sobre os Chiquitanos ver: BLOCK,
David. La cultura reduccional de los llanos de Mojos. Sucre: Historia Boliviana. 1997 / MORENO, Alcides
Parejas.Chiquitos: um paseo por su História. Santa Cruz de la Sierra: Asociación Pro Arte y Cultura, 2004 /
NASINI C, P. Ivan. Historia de los Pueblos Indígenas em América y Bolívia. Camiri: APG-Teko Guarani,
2002.
85
Informações obtidas através de moradores locais.
86
Fonte: IBGE-Cáceres-MT.2000. Dados Populacionais de Vila Bela da Santíssima Trindade no período de
1950 /2000. 1950: 2.848 habitantes, sendo 2.415 na área rural e 433 na área urbana; 1960: 2.712 habitantes,
sendo 1.047 na área rural e 655 na área urbana; 1970: 9.476 habitantes, com 828 na zona rural e 8.668 na zona
urbana; 1980: 5.191 habitantes, sendo 1.697 na área rural e 7.291 na urbana; 1990: 13.693 habitantes, com 4.116
na zona rural e 9.577 na zona urbana; 2000:
98
Hoje eu vejo que o negro igual a carne no meio do arroz, porque já não
tem muita gente já. Os negros de Vila Bela em si o podem mais bater no
peito e dizer: Aqui é meu. Por que Vila Bela é de todo mundo.Agora, essa
especialidade, esse negro que nasceu em Vila Bela, existe pra uma festa,
uma história. Como outra coisa hoje não tá adiantando mais. Hoje tem que
tentar saber as raízes, procurar estudar, saber a procedência, a história da
cidade, pra estar formando uma idéia do passado. Hoje o negro de Vila Bela
tem que estudar pra chegar a ter certas condições, ter um liberamento
econômico. O negro de Vila Bela está se cruzando, miscigenando. Daqui uns
cinco, seis anos, Vila Bela esta misturada. Daqui a dez anos, a senhora vai
encontrar outra cara, um outro tipo de gente sentada aqui igual estamos
agora, lhe contando alguma coisa, porque Vila Bela vai formar uma outra
raça de gente, morena, que vai segurar um pouco esta tradição. Branco vai
ter muito, mas sempre com aquela raiz, aquela mistura, com outros traços.
Os traços do Brasil, de uma época técnica, do computador, onde tudo é mais
pido. O pessoal daqui hoje, tá entrando no processo do resto do país.
87
87
Relato do sr Zeferino Profeta da Cruz Neto. Vila Bela, 1998.
99
2. FESTANÇA: SIGNIFICADOS E REPRESENTAÇÕES
“Mas a nossa festa é mais religiosa do que qualquer outra festa. É tudo coisa
daqui mesmo. É uma tradição, é uma devoção, uma oração. E muito bem
feito, com muito respeito.
(Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela,
1998)
88
Relatos de moradores de Vila Bela, nomeiam a Festança como momentos de louvor e
de compromissos, “uma coisa boa do povo conservar, porque é a continuidade das
tradições,
89
onde as lembranças de cada ritual sugerem uma representação do Sagrado, tendo
os santos como intermediários, além de demonstrações de ligações da comunidade “com os
santos festejados e consagrados, por serem secularmente do lugar, de suas gentes, de suas
tradições” (BRANDÃO,1982, p.64). É o que podemos perceber nas narrativas de Dona
Nemézia Profeta Ribeiro:
Quando chegam na minha casa, eu me sinto obrigada a abrir a casa. Estou
abrindo a casa para o Deus Supremo, para a Santíssima Trindade. O povo foi
na minha casa, estão lá dançando, cantando, celebrando com alegria,né!
Através da daa, da comida, da bebida, da música,da alegria,! Falando
assim das tradições dessa festa que é um conjunto de festas tradicionais com
devoção aos santos. Do Divino Espírito Santo, São Benedito, e Três Pessoas.
E os outros santos também, e a Virgem Maria.Também eram celebradas a
Mãe Deus, Nossa Senhora do Rosário,Nossa Senhora do Carmo. Isso se
estendia durante toda uma semana e justamente por isso, têm uma resistência
muito forte do povo negro, da tradição de Vila Bela.
90
Alguns convites e cartazes,
91
semelhantes ás colocações de dona Nemézia, indicam
que, dentre os rituais enumerados, estão as práticas alimentares, momentos em que as pessoas,
empenhadas nos processos de preparação, distribuição e degustação das comidas e bebidas,
festejando os santos de devoção, revelam sentimentos, sensações de alegria e de prazer, de
acordo com o que a alimentação pode proporcionar às pessoas num tempo de festa.
88
Relatos de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
89
Relato do sr. Zeferino Profeta da Cruz Neto. Vila Bela, 1998.
90
Relatos de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
91
Convite e cartazes para a Festança de 1997- 1998.
100
Foto 2- Convite para a Festança
Sobre o ato de comer e o de beber por prazer, buscamos inspirações nas abordagens de
Savarin. Arguto observador de seu tempo, ao perceber que a Revolução Francesa havia
modificado também o ato de comer, com o gosto se impondo sobre o ato das pessoas
meramente se nutrirem, foi até a mitologia grega, e lançou mão de Gastéria, a décima musa,
aquela que preside os prazeres do gosto, e que detêm em suas mãos o domínio do universo.
Exigente, essa musa somente se faz presente, onde os alimentos figuram como fonte de prazer
101
e alegria, envolvendo as pessoas responsáveis pela confecção das iguarias para satisfazerem
os paladares. Por isso, apresenta-se nos banquetes em que os indivíduos na magia do
encontro, se aproximam, apertam as mãos com cordialidade, prazerosos pelos momentos de
sociabilidade e pela perspectiva da saciedade. Ainda segundo Savarin, o culto a Gastéria
exigia um ritual que se iniciava com um festim gastronômico restrito aos sacerdotes, e
terminava com um banquete popular, onde “todas as mãos se encontravam e se apertavam
com cordialidade, e só se viam faces alegres, pois não há festas verdadeiras se o povo não as
goza” (SAVARIN, 1995, p.299 –303).
O cardápio para a Festança, organizado pelos festeiros e festeiras e preparado pelas
cozinheiras, é composto de arroz com lingüiça, saladas de verduras e legumes, feijão com
couro de porco, churrasco, mandioca cozida, farofa de banana e torresmo, doces de mamão,
de leite, de laranja, biscoitos ou sequilhos, biscoito de Ramos”, bolo de arroz, licores de leite,
de folha de figo, de pequi, de jenipapo, bebidas comoleite de Tigre”, chicha, pinga e o
Canjinjin. Também o escaldado, feito para os foliões do Divino Esrito Santo e o sopão, para
os dançantes do Congo, como para todos aqueles que estiverem presentes no momento da
distribuição.
92
Dentre essas comidas, doces, bolos, biscoitos e bebidas, algumas são
identificadas por parte dos moradores como representação das “tradições dos negros de Vila
Bela”.
93
De acordo com as descrições de dona Maria Madalena, é a comida da festa”.
Continuando, coloca que: “esta tradição é muito antiga, do tempo dos escravos. Uma vez, eu
vi a história de que o pessoal ia parar com essa festa, pois tem festeiro que não acha bom, mas
isso é tradição de Vila Bela. Se acabar a festa, acaba tudo”.
94
Segundo Isaias, para falar de Vila Bela e de suas tradições, é necessário estudar o seu
folclore e sua singular importância na história da população negra local.
92
Dados obtidos nas entrevistas e nas observações realizadas durante a pesquisa de campo, em 1998,1999, 2000.
93
De acordo com informações obtidas nas entrevistas e nas observações realizadas durante a pesquisa de campo,
em 1998/1999/ 2000.
94
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque.Vila Bela,1999
102
Pois é através deste estudo que ficamos conhecendo as nossas raízes, a
formação de um povo que soube preservar suas culturas e as exteriorizar
através de daas, cantos, poesias, lendas, estórias, mitos, crendices,
supertições, artesanatos, usos, costumes, comidas típicas, enfim, uma série
de tradições, que são transmitidas de geração para geração, dentro do
anonimato. Em algumas localidades interioranas, como Vila Bela, ainda é
possível apreciar na sua pureza algumas manifestações folclóricas e
religiosas, que foram resgatadas pelos nossos ancestrais e que estamos
tentando a dura pena, conser-las com carinho e amor, aquilo que sobrou,
porque a melhor parte da nossa cultura perdeu-se no espaço. E hoje, restam-
nos somente a lembrança gravada em nossas merias e o presente que é
representado e vivido em nossos dias, através das festividades, que após a
transferência da capital para Cuiabá, mudaram de características.
95
Essa idéia da Festança, como um evento folclórico, levou-nos a refletir sobre
algumas análises apresentadas por Néstor Garcia Canclini (1997, p.213 – 214), contrapondo
as concepções assinaladas na “Carta do Folclore Americano.”
96
Canclini apresenta uma nova perspectiva de se analisar o tradicional-popular, onde
deve-se levar em conta as interações entre a cultura popular com a cultura de elite e com as
indústrias culturais. O desenvolvimento modernoo suprime as culturas populares
tradicionais, que desenvolvem-se, transformando-se. O popular não é monopólio dos setores
populares, pois não há um conjunto de indivíduos, grupos, propriamente folclóricos, mas
situações mais ou menos propícias para que se participe de um comportamento folcrico. A
evolução das festas tradicionais, da produção e venda de artesanato, são indicadores de que
essas práticas culturais não são exclusivas dos grupos, porque existem intervenções externas
nesses eventos. Em decorrência, os fenômenos culturais folclóricos ou tradicionais são
constituídos por processos híbridos e complexos. (CANCLINI, 1997, p.215 – 221).
Ainda sobre o significado da Festança, seguimos as análises de Gloria Moura, quando
estudando as construções de identidades em algumas festas quilombolas, lembra que os rituais
religiosos e as festas são os eventos de maior importância e significação para as comunidades
95
Fragmentos de um texto escrito por Isaias Gonçalves de Paula. Cáceres, 1999.
96
Segundo a Carta do Folclore Americano, o folclore é constituído por um conjunto inalterável de bens e
formas culturais tradicionais, de caráter oral e local, ou seja, uma essência da identidade e do patrimônio cultural
de cada país, cujos maiores adversários, seriam os meios massivos e o “progresso moderno, elementos que
podem desintegrar o patrimônio e proporcionar a perda da identidade. (CANCLINI,1997, p.215-221).
103
quilombolas, constituindo a denominada cultura da festa. São momentos em que a
população passa a viver processos de criação e recriação de sua identidade étnica, em torno de
práticas culturais, em que o calendário festivo perpassa todo o ano civil e sobrepõe a ele um
outro ano religioso/sagrado, responsável por manter o espírito da diferença. Quando acaba
uma festa, já se está pensando na próxima, porque “esse tempo da festa” é um tempo que não
pode ser interrompido, sob pena de romperem seus laços com as raízes de sua própria
identidade. Daí, a necessidade de entender e interpretar os significados veiculados por meio
dos símbolos, dos rituais, como momentos de reencontros, de dançar e cantar as músicas
diferenciadas, como também de se apropriar do que não é próprio do grupo. (MOURA, 1998,
p.14 – 19).
A partir dessas reflexões, é possível definir as festas dos santos de Vila Bela, “como
situações especiais em que a coletividade interrompe sua rotina e cria um tempo de exceção,
em que revive a sacralidade da existência em comum e redefine o sentido desta mesma
existência em função das contingências históricas do momento.”(ALMEIDA, 2001, v.2,
p.658).
Esse costume de se festejar santos e santas de devoção,
97
“festas como festejos e como
religião, em dias e em situações ora seqüentes, ora combinadas, em que o sagrado e o profano,
o solene e o festivo, comportamentos separados e disfaados nos tons cinzentos do cotidiano
da sociedade, são alegremente reunidos nos dias e horas de comemorações dos santos
padroeiros
(BRANDÃO, 1982, p.61–78), são momentos significativos para algumas
comunidades,
98
como podemos constatar em Vila Bela porque são espaços de expressão das
97
São muitos os estudos que focalizam as festas de santos. Destacamos alguns: ISTVÁN, Jancsó. KANTOR,
Iris. (org) Festa, Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Vols. I-II, São Paulo: HUCITEC-FAPESP-
EDUSP - Imprensa Oficial, 2001 / MAYNARD, Alceu Araújo. As Festas do Divino Espírito Santo no Estado de
São Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo:1959.p. 267-301./
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: FUNART, 1978.
98
SALLES, Vicente.A Escravidão Africana e a Amazônia. Anais da Biblioteca Nacional. v.101. Rio de
Janeiro: 1981, p.173 –186. Convém destacar os estudos de Salles relacionados às festas de Santos comemorados
pela população negra na Amazônia, devido a comunicação que existiu entre Vila Bela e a Província do Grão-
Pará e Maranhão. Em municípios próximos de Bem, e em algumas outras localidades,. Salles destaca algumas
104
identidades do grupo e de sua luta pelos valores considerados representativos, reforçados
internamente e reafirmados para que sejam vistos.
No sentido de compreender melhor essas questões, foram fundamentais as explicações
de Roger Chartier, quando aponta como uma das grandes tensões do mundo contemporâneo, a
afirmação de identidades com o recurso do passado, por parte dos grupos e comunidades,
partindo de histórias particulares vinculadas aos desejos e expectativas dos mesmos. De
acordo com Chartier (2001, p.169 – 171) devemos respeitar essas representações, considerar a
sua legitimidade. Entretanto, não são razões suficientes para se afirmar que a história que
produzem com o fim de sustentar suas reivindicações, pertença à história, que para ser
reconhecida, deve apresentar um estatuto científico, ou seja, serem produzidas de acordo com
as regras historiográficas definidas por Michel de Certeau.
Viver as tradições do grupo, realizar as celebrações dos santos de devoção, conhecer
as histórias contadas pelos mais velhos, dançar e cantar as músicas, ambas apresentadas como
tradicionais, mesmo quando são introduzidos ou ressignificados outros traços culturais,
permitem revelar as múltiplas relações que têm lugar na sociedade local, os valores
relacionados ao parentesco, história dos ancestrais, respeito aos mais velhos e aos seus
conhecimentos, às lideranças femininas, à utilização do meio ambiente, observação ao
calendário agrícola, à produção artesanal, ao conhecimento das plantas, às relações de
afetividade. A festa com seus ritos e símbolos, costumes, comportamentos, gestos herdados,
apontando para as negociações simbólicas entre a comunidade e os outros grupos com os
quais interage, são espaços em que se estabelece um diálogo entre o sagrado e o não sagrado.(
MOURA, 1998, p. 14-19.)
festas de Santos organizadas pela população negra e Irmandades de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos. Festas de promessa; das irmandades, com a coroação do Rei, Rainha, Pncipe, escolhidos dentre
os irmãos da mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário; traços da congada africana no império de São
Benedito, Ceme, Marambirê, Alenquer, Alue, Folia com as figuras do mestre, mordomos, banda composta de
violino, violão, cavaquinho e pandeiros; distribuição de bebidas; homenagens a São Benedito, Divino Espírito
Santo,o Sebastião, Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Nossa Senhora da Conceição,o
Raimundo.
105
Percebe-se que em Vila Bela, a Festança representa um espaço negro”, onde os
santos são homenageados, por meio de uma série de rituais formadores dacultura da festa”:
os desfiles dos cortejos dos festeiros acompanhados pela população pelas ruas da cidade, a
presença e ações das Irmandades, as rezas, as ladainhas, os cânticos, as alvoradas, a dança do
Congo, do Chorado, os fogos de articio, o dobrar dos sinos, os leilões, e os banquetes.
Alguns documentos descrevem as práticas religiosas da população local desde o
período colonial. Nos Anais de Vila Bela de 1734, existem indicações sobre uma festa,
“função de cavalhadas e outros festejos de fora, realizados numa capelinha de palha dedicada
a Santo Antônio, constrda próxima do porto às margens do rio Guaporé. Encontram-se
também referências à realização de uma solenidade processional à imagem de Nossa Senhora
do Rozário, em 12 de julho de 1753; comemorações referentes à Semana Santa e Paschoa do
Espírito Santo na capela de Santo Antônio em 1754; e a 21 de novembro por ocasião em que
se benzeu a capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, a realização de hum Tríduo e ao
depois continuando huma novena, que se findou com outro dia de festividade.( CÔRTE-
REAL, 1940, p.19-22).
Nas Posturas Municipais de Vila Bela, de 1753, nos regulamentos elaborados pela
Câmara Municipal relacionados às procissões, festas religiosas e profanas, estão descrições
sobre a responsabilidade da Câmara em assistir essas festas, conforme as Ordenações do
Reino:
[...] com o Real Estandarte à festividade do mártir São Sebastião, à ladainha
de São Marcos, às três ladainhas de Maio, à festa do Corpo de Deus, à do
Anjo Custódio, do Reino [...] da visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, à
festa de Nossa Senhora do Carmo, à festa de Nossa Senhora da Conceição,
do Te Deum Laudamos, em dia de São Silvestre, e à publicação da Bula da
Santa Cruzada. (
JESUS, 2003, p.115).
Sobre as comemorações dos santos cultuados pela população negra no período da
escravidão, Bastide explica que as mesmas eram acompanhadas de muita música e dança,
sendo que a procissão deo Benedito compunha-se apenas de negros e mulatos, da Porta
106
Estandarte, dos anjinhos, dos membros da Confraria, das rainhas africanas em número de três
ladeando a Rainha Perpétua, sempre protegida por um grupo de Congos, além de dois grupos
de negros disputando a coroa de Pertua, a Confraria do Rosário e as Taieiras
99
. Essas
representações faziam com que a cerimônia alcançasse o significado de sobrevivência étnica,
porque representavam reinados africanos conservados na escravidão, e eram vistas pelo
catolicismo do branco apenas como uma simbologia. (BASTIDE, 1985, p.172).
Sobre as atividades das Irmandades em Vila Bela, Rolim de Moura em 1756, deixou
registrado que:
“os Irmãos do Santíssimo se resolveram a fazer a sua custa, a Igreja Matriz,
que inda que é de pau-a-pique; está com toda a fortaleza, e algum asseio,
havendo-lhe feito três altares, e coberto de telha; com que poderá bastar até
que se ajunte com que se faça a que deve ficar permanente. Ficou essa obra
acabada, e se colocou nela o Sanssimo Sacramento em dia de Nossa
Senhora das Candeias.” ( MOURA, 1983, v. 3, p.15 ).
Encontram-se também nos Anais de Vila Bela de 1734, referências ao recebimento de
uma imagem de Nossa Senhora do Rosário, encomendada no Maranhão, pela “Irmandade dos
Mullatos, digo a Irmandade do Rozário dos Mullattos e pretos destas Minnas”. (CORTE
REAL, 1940, p.19-22).
Quanto à participação das Irmandades na festa da Santíssima Trindade, as posturas
determinavam que:
Três festeiros seriam nomeados um ano antes, em véspera do dito dia e por
mais votos, entre os homens bons e de mais posses, e publicada no dia da
festa pelo pregador, evitando assim as incivilidades de Irmandades e eleições
por cotas feitas. (JESUS, 2003, p.118).
Estudos como o de Roger Bastide, apontam a existência das Irmandades, como
espaços consentidos na ordem escravocrata e mediadoras entre o senhor e o escravo. Proteção
do negro em vida até os limites da alforria, em morte até os limites da encomenda de missa e
patrocinadora do enterro. Entretanto, na maioria das vezes, essas irmandades apresentavam
99
Segundo Bastide (1985. p.172) Taieira é o grupo feminino de cantoras dos cânticos religiosos cantados durante
as procissões e rezas, e que acompanhava as procises de Nossa Senhora do Rosário.
107
debilidade em intervir em favor da vida do escravo, mas ainda assim eram vistas por este
como um espaço de organização legítima, e expressão cultural de identidade étnica e de
classe. (BASTIDE, 1985, p.157-204).
De acordo com a documentação analisada,
100
e observações realizadas durante o
transcurso dos preparativos da festa, percebe-se que as Irmandades em Vila Bela sempre
foram presenças marcantes na organização dos festejos, e responsáveis não só pela direção
como pela preservação de algumas práticas tradicionais tais como, a escolha dos festeiros e
festeiras, principalmente na festa deo Benedito.
Segundo Acildo Leite da Silva, algumas dessas Irmandades que tinham o domínio dos
brancos foram totalmente esquecidas e abandonadas pela população, como foi o caso da
Irmandade do Rosário e do Santíssimo Sacramento, permanecendo apenas a Irmandade do
Divino Esrito Santo e deo Benedito, o santo negro da comunidade. (LEITE DA SILVA,
2002, p.85).
Essa questão deve ser relativizada, pois mesmo com esse abandono, permaneceram
sinais de preocupações com o patrimônio religioso, por parte de irmãos do SS. Sacramento.
Manoel Rodrigues Ferreira, descreve que em abril de 1922, gerentes da E.F. Madeira-
Mamoré, seringais “Guaporé Rubber” e “Júlio Miller,” estiveram em Vila Bela, e entraram
em entendimento com irmãos da Santíssima Trindade, no sentido de adquirirem os dois
antigos sinos da igreja Matriz. Com o dinheiro da venda, valor declarado em recibo, de
quinhentos mil réis, a irmandade pretendia fazer alguns reparos na igreja, que ameaçava ruir
100
Como fonte, apontamos o Consustório da Irmandade do Glorioso São Benedito, uma relação dos Irmãos de
Mesa e Irmãos de Roda, em 20 de agosto de 1950. Nesta lista consta a contribuição em dinheiro dos irmãos e
irmãs, como também o nome do Rei; Sr Paulo Vieira Barroso; Rainha; Sra Ana Frazão de Almeida; Juiz: Senhor
Barnabé Rodrigues de Santana; Juíza; Sra Maria Hilária Geraldes, eleitos para “o corrente ano de 1950 a 1951”.
Atualmente existem em Vila Bela as Irmandades do Divino Espírito Santo, e do Glorioso São Benedito.
108
por completo. Os sinos foram vendidos e oferecidos pelos compradores à igreja de Porto
Velho e à Exposição Nacional, a ser realizada no Rio de Janeiro.
101
Sobre a Irmandade de São Benedito e seus participantes, destacamos as lembranças de
dona Andreza:
Antigamente eu ouvia falar, o pessoal mais pra ts também falava que esse
negócio de Irmandade de Roda e de Mesa não era por gosto não. As pessoas
que era de Mesa, se caia uma pra festeiro, mandavam oficio pra pessoa. Ai,
se elao queria, falava que não podia, a Irmandade pegava o esquife dentro
da igreja, batia o sino e botava o esquife na porta da pessoa porque
dispensou a festa de São Benedito. Era como se estivesse morto, porque
dispensou a festa. Antigamente assim é que era. Eu conheci o esquife. Era do
tamanho de um caixão e todo forrado de preto. Esse ai tinha na igreja. Ficava
, pra botar os defuntos pobres, que a família o podia comprar caixão.
Colocavam o morto no esquife, levava pro cemitério, tirava o esquife, botava
o morto no buraco, pegava o esquife e voltava com ele pra igreja. Então
quem dispensava a festa, era assim. E agora de pouco tempo a gente leva até
castigo, porque não pode dispensar. Castigo assim das coisas que acontece
com a gente, porque dispensa a festa de São Benedito. E hoje, não ta
chegando. As pessoas tão pedindo. Antes era a Irmandade. Neste ano eu
estou na Mesa, ano que vem na Roda, no outro na Mesa. E assim a pessoa
cai de festeiro.
102
Uma série de representações, que demonstram o poder das Irmandades, principalmente
a deo Benedito,
103
em diferentes situações, tais como: exclusão do indivíduo do grupo
quando não aceitava ser festeiro, substituição da exclusão pela idéia de castigo, ou seja, a
possibilidade de viver fatos desagradáveis pela dispensa da festa, e nos tempos atuais, a
grande procura pelo cargo de festeiro ou festeira, provavelmente uma decorrência da
crescente visibilidade da Festança.
Continuando a trilha assinalada pelo relato de dona Andreza, pode-se observar que a
Irmandade de São Benedito constitui um espaço em que ao lado do sagrado, onde acentua-se
o lado espiritual, estão práticas relacionadas à vida cotidiana das pessoas, por meio de um
101
Maiores informações ver: FERREIRA (1961 p.64-65).
102
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
103
O Consustório das Irmandades do Glorioso São Benedito, em 25 de agosto de 1950, apresenta uma relação
em dinheiro das esmolas de bacia e jóias, anuais, do ano de 1949 a 1950. Apresenta também as despesas com
pagamento de missa, pagamento de comissão ao procurador, escrivão e despesas apresentadas pelo procurador.
Também um Termo de Recolhimento de Jóias e Cera, datado em 20 de agosto de 1950 estipulando o valor da
jóia e a quantidade de cera, que deveria ser entregue pelo Rei, Rainha, Juiz e Juíza.
109
compromisso dos associados em troca da salvação. Vale destacar que todos aqueles
escolhidos para festeiros de São Benedito, recebem uma comunicação por escrito que deve ser
respondida o mais rápido possível, confirmando o aceite. Essa confirmação deve ser enviada
junto com uma flor vermelha e dificilmente acontece uma recusa, a não ser em caso de doença
muito grave ou por um outro motivo muito sério.
104
As Irmandades deo Benedito, do Divino Esrito Santo e da Sanssima Trindade,
são vistas pela população como um patrimônio cultural, e podem ser consideradas também,
espaços de luta simbólica, em que as normas e princípios existentes no interior das mesmas
funcionam como elementos unificadores de seus participantes e ao mesmo tempo estabelecem
a diferença diante daqueles que não fazem parte das mesmas.
Sobre a organização e realização das festas religiosas pelas irmandades e pela
população negra local, encontramos algumas descrições nas narrativas de viajantes. Por volta
de 1845, Francis Castelnau encontrou a cidade em festa, homenageando Santo Annio
(CASTELNAU, 1949, p.364-367). Convidado a participar dos festejos, destacou que boa
parte da população, cerca de 1200 escravos e mais de 800 homens de tropa, estavam reunidos
em função desses festejos. Descreveu a Alvorada com o tocar dos sinos e barulho das bombas,
tambores, cornetas.
Nos paises tropicais é uso celebrar estas festas depois do sol posto; em Matto
Grosso, porém, por singular exceão, escolhia-se para tais cerimônias as
horas justamente em que o sol é mais quente. Assim fomos logo cedinho
despertados pelo tremendo barulho de sinos, tambores, cornetas, bombas,
etc., acompanhamento infalível de todas as festas brasileiras.
(
CASTELNAU, 1949, p.364-367).
Continuando, afirma que a missa foi oficializada por quatro padres, sendo dois
brancos, um negro e um mulato, numa capela cheia de mulheres, negras em sua maioria.
104
Como fonte registramos o convite enviado em 14 de abril de 1996, pela Irmandade de São Benedito para a
Sra Natividade B. E. de Moraes, para ser rainha da festa do Glorioso São Benedito em 1997. Também
levantamos como fonte, informações de festeiros e festeiras, e demais pessoas da comunidade.
110
Convidado de honra do ritual da procissão participou da mesma com muito pavor, devido o
sol escaldante, considerado procio a doenças, segundo os moradores, que haviam lhe
colocado os riscos para um branco em andar de cabeça descoberta sob o sol pelas ruas da
cidade mais insalubre do mundo. Bastava um só raio do mesmo para levar à morte, entretanto
poderia se tranqüilizar, porque graças à intervenção de Santo Annio nada lhe aconteceria.
Castelnau destacou que eram freqüentes as paradas da procissão, momentos em que uma
menina vestida com roupas brancas subia numa cadeirinha trazida por um negro e recitava
versos em honra ao santo, por entre o barulho dos tambores e trombetas e cânticos próprios do
dia. (CASTELNAU, 1949, p.364-367).
Também João Severiano da Fonseca, em 1877, descreveu a cidade em fins de julho
colocando as festas religiosas em dia, devido a chegada de um padre , provavelmente
cumprindo a desobriga. As festas começaram em agosto, com as homenagens ao Divino
Esrito Santo, para Santo Antônio, São Benedito, São Jo, Nossa Senhora do Rosário e
outros. Segundo esse viajante,
A festa compreendia “um mistifório” dos rituais dos padres da missão e dos
costumes africanos, representados por mascarados, bando simulados de
combates, representações de mistério etc., tudo entremeado de cantos,
dançados, que se sucedem com poucos intervalos, durante dias, a às vezes
semanas. Os festeiros percorriam as ruas, desde antes do amanhecer até a
noite, sempre cantando e dançando, indo buscar nas casas os principais da
festa, ou seja, os juizes, juízas, mordomos e aias. Descansavam à noite em
folias e bailados em casa, até o romper d’alva, em que novamente saiam a
repetir o mesmo cerimonial da véspera, tudo isso com freqüentes libações de
restillo, e de vez em quando imersões no rio Guaporé, quando o demasiado
calor ou a fadiga os apoquentava. (FONSECA, 1881, p.135-136).
Fonseca observou que “as despesas com as festividades eram custeadas pela classe
abastada e superior, mas era a inferior que lhes dava a animação, característica dos festejos.”
Deixou também anotado a exisncia de um domínio social e religioso, por meio dessa classe
abastada e dos padres. “(FONSECA, 1881, p.135-136)”.
111
Sobre as festas nos tempos atuais, apresentamos os relatos de Isaias, descrevendo que,
até meados de 1960, era costume festejarem no decorrer de uma semana, as festas de Nossa
Senhora do Carmo, Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora do Rosário
105
, São Benedito,
Nossa Senhora da Conceição, Santa Mãe de Deus, Divino Espírito Santo e Santíssima
Trindade. Informa que eram colocadas em mastros, estampas pintadas, desenhadas ou
impressas, representando Nossa Senhora do Rosário, protetora dos negros, como também de
São Benedito e Espírito Santo, sendo que todos esses santos tinham os seus festeiros.
106
Atualmente,rios santos nãoo mais comemorados na semana da Festaa, fato que
é lembrado com pesar por dona Gregória, quando enfatiza a necessidade dos mais jovens
serem continuadores da tradição.
Os jovens devem ser os continuadores da tradição.[...] eu acho que os jovens
deviam entrosar e por exemplo, pegar a festa de Nossa Senhora da
Conceição. Sempre foi dos jovens ser festeiros. Não sei se o querem
assumir. Deve ser porque a situação está dura, e porque dependem de mamãe
e papai.Hoje tá dicil os jovens participarem das coisas. Acho queo têm
seguraa. Eu vou assumir. Aquela força.
107
De acordo com informações de moradores locais, também são santos de devoção:
Nossa Senhora da Saúde; Nossa Senhora Aparecida; Senhor Menino (festejado no Natal); São
Sebastião (cultuado pela Câmara de Vereadores); São Pedro (festejado em memória ao
Senhor Valentio, no Porto Suzano e hoje no Jardim Aeroporto); Santa Cruz (em meria
ao Senhor Marcelão, na fazenda Arrozal); Santo Antônio (conservada por Dona Natália);
Santa Cecília (conservada por Dona Cecília); procissão de Encontro de Jesus e Maria, na
Sexta-Feira Santa com o toque da matraca,beijação” do Senhor Morto (neste dia é costume
105
O culto a Nossa Senhora do Rosário foi criado por São Domingos de Gusmão e estabelecido no período dos
primeiros missionários dominicanos na África, daí se generalizando o culto no grupo dos negros escravizados.
Em 1711, já existiam festas em sua homenagem nas capelas dos engenhos no Nordeste do Brasil.(BASTIDE,
1985, p.157-204).
105
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
106
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1998.
107
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela,1999.
112
as famílias prepararem a Canjica da Sexta-Feira Santa, como também muitos brincarem de
roubar a galinha no quintal do vizinho pela noite e outros pedirem perdão); os presépios de
Natal; homenagem a Nossa Senhora da Boa Esperança em Casalvasco.
Percebe-se queo inúmeros os santos do calendário católico, cultuados por setores da
população de Vila Bela. Entretanto, aqueles que foram escolhidos comoos principais”, e por
isso homenageados na Festança, representam o sagrado, no complexo da “cultura da festa,”
que para dona Nemézia Profeta Ribeiro significa:
Tudo é uma forma de louvar a Deus e os santos, com alta devoção e muito
respeito. As daas, os cânticos, as rezas, as comidas, as bebidas, as
Alvoradas. A Festança é uma coisa que a gente vê que é um sentimento
muito nobre, profundo, des vilabelenses. A festa como era antes acabou,
porque a maioria do povo em Vila Bela foi ficando enfraquecido, quer dizer,
nas suas festividades. Hoje, ele está se fortalecendo, diante desta valorização
dos amigos, dos visitantes que aqui vêm. Então, praticamente ele se perdeu
um pouco por causa do poder aquisitivo, não falo assim de querer.
108
Ao lado da valorização da festa e dos rituais, pode-se entrever nas palavras de Dona
Nemézia a necessidade da comunidade criar ou recompor os laços de identidades que
respondam às necessidades colocadas pelo contexto atual. São práticas que podem ser
visibilizadas numa série de representações como: ser festeiro e festeira, tocador de sino,
responsável pelos usos dos fogos de artifício, puxador” das rezas, músico ou cantora das
Alvoradas, participante da Folia do Divino Espírito Santo, da Dança do Congo, do Chorado,
participar dos bailes, ser promesseira, ser cozinheira da festa, fazer parte do grupo responsável
pela preparação e distribuição das comidas, bebidas, doces e biscoitos. São práticas que
demonstram que a Festança permite invenções, num espaço privilegiado para a construção de
representações que assinalam processos de interação sócio-cultural, que a caracterizam como
a festa dos negros de Vila Bela. Essa caracterização está nos cartazes de propaganda e
correspondências referentes ao evento, como podemos perceber nas cartas enviadas pela
108
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
113
Comissão de Festa de 10 de março e 05 de maio de 1999 solicitando colaborações.
Apresentamos fragmentos destes documentos:
[...]A Comissão de Festa, ora constituída e abaixo mencionada, junto aos
demais festeiros que representam a comunidade, na oportunidade quer
solicitar vossa preciosa colaboração para que possamos realizar a tão grande
festa Afro-Brasileira do povo negro da cidade, associado aos seus amigos e
admiradores.Com os mais nobres e profundos reconhecimentos de que
Vossa Empresa é constituida por pessoas sensíveis ás causas sociais e
voltada à conservação da cultura Afro-Brasileira em nosso país.
109
[...] Vila Bela da Sanssima Trindade - MT foi criada em 1752 para garantir
o potencial econômico da região e resguardar das invasões espanholas.
Existem em Vila Bela,rias falias tradicionais de ancestrais escravos,
negros que aqui permaneceram pela insistência, luta e pelo milagre da
sobrevivência, resguardando a região como sentinela avançada da Bacia
Amazônica de Mato Grosso e do Brasil. Vossa ajuda será de grande valor na
realização das nossas tradições com os seguintes eventos: dança do Congo,
dança do Chorado, Capoeira, missas Afro, Som Mecânico, Coral da
Conscncia Negra e confraternizão com o povo, comida e bebidaspicas,
corrida do Congo, Pagode Axé, noite cultural com show de calouros Axé e
premiações.
110
Para entender essa movimentação, é necessário observar que os traços culturais que
representam não são imunes aos processos de mudanças no tempo e espaço, porque são
dinâmicos, sempre em processos de reelaborações. Importante ater-nos mais “nos processos e
representatividade destas práticas e não com a capacidade ou não de permanecerem puros,
iguais a si mesmo” (CANCLINI, 1997, p.202). A modernização não exige abolir as tradições,
deixando os grupos tradicionais fora desse processo, embora muitos grupos étnicos não
tenham conseguido essa adaptação bem-sucedida com o desenvolvimento capitalista.
Sobretudo nas novas gerações podem ocorrer os cruzamentos culturais que incluem
reestruturações radicais dos vínculos entre o tradicional e o moderno, o popular e o culto, o
local e o estrangeiro. Um processo de adaptação dos saberes e hábitos tradicionais à
modernidade, sem que aconteça uma perda do que os grupos tenham escolhido como
109
Fragmentos das Cartas enviadas pela Comissão de Festa “Festas Tradicionais de Vila Bela da Santíssima
Trindade” á várias pessoas solicitando colaborações. Vila Bela, 1999.
110
Fragmentos das Cartas enviadas pela Comissão de Festa “Festas Tradicionais de Vila Bela da Santíssima
Trindade” á várias pessoas solicitando colaborações. Vila Bela, 1999.
114
tradições. (CANCLINI, 1997, p.202).
Procuramos também as análises de Carneiro da Cunha, (1986, p.85-95), no sentido de
compreender a Festança como um sinal diacrítico, não como algo que adaptado a novas
temporalidades e obstáculos impostos pelo meio, se perpetue como um bloco monotico,
homogêneo, mas sim algo com características móveis, dinâmicas, onde os traços escolhidos
pela população para serem exibidos, identificam a Festança como um território negro.
Deslocando nossas observações para as práticas culturais existentes nos processos de
escolha, preparação e consumo das comidas, bebidas, doces e biscoitos, no período das festas,
pode-se dizer que nas reflexões sobre estas representações, constatou-se que as mesmas, como
um conjunto de traços culturais, resultados dos constantes contatos realizados entre os
diferentes grupos sócio-étnicos, podem ser consideradas como espaços de expressão e de
estreitamento das relações sociais, porque possibilitam “processos sempre renovados de
combinações, modificações, seleções, de encenações onde se escolhe e se adapta o que vai ser
representado, de acordo com o que os receptores podem escutar, ver e
compreender”.(CANCLINI, 1997, p.201).
2. 1 - A Festa do Divino Espírito Santo
Vinde Santo Espírito, Espírito Consolador, vem nos consolar, pelo Vosso
Amor. Em Vosso poder, nada é inocente. Nada tem o homem, que é um
pobre doente. Vinde Santo Espírito, fonte de todo o bem. Levai-nos para a
glória, para sempre am. Vinde Santo Espírito, Espírito Consolador, Vem
nos consolar, pelo Vosso Amor.
111
Esta oração faz parte das invocações que são feitas durante as rezas para o Divino
Espírito Santo, em Vila Bela, e que na maioria das vezes levam alguns participantes até as
lágrimas, talvez agradecidos pelas graças alcançadas ou mesmo emocionados com o
111
Invocação cantada nas rezas para o Senhor Divino em Vila Bela da Santíssima Trindade, gravadas durante a
pesquisa realizada na Festança em 1998.
115
misticismo do momento. Muitos dos fiéis têm o costume de realizar sacrifícios, as
denominadas promessas para o santo, representando pedidos ou agradecimentos. Podemos
observar esta prática por meio das lembranças de dona Andreza:
Você rachava lenha, a gente pegava aqueles feixes de lenha e levava na casa
do festeiro ou então como eu fiz num ano. Carreguei água do rio e enchia
aqueles tamboro grande de água na casa dos festeiros. Porque não tinha
água nas casas. Eu peguei uma vez uma lata e carreguei água do rio até
encher o tambor na casa do Imperador. Cada um faz a promessa que quiser.
Eu queria uma coisa forçosa mesmo. Aí, eu pegava. Fiquei uma tarde só
pegando água. Pegava, despejava, pegava, despejava. Na quinta feira, no dia
de fincar o mastro, alguns pegavam pedras, colocavam na cabeça,
acompanhavam a procissão. Isso é promessa que qualquer um pode fazer.Se
tiver doente, se precisar, pode fazer. Pegar esmola, pegar água no rio. Isso
o é pra qualquer um.
112
Segundo alguns moradores de Vila Bela, a festa do Divino é considerada uma festa de
branco, porque o costume da população negra cultuar esse santo, se deu após a transferência
da capital para Cuiabá. As representações dessa festa reveste-se de delicados simbolismos,
onde estão marcadas a devoção e a criatividade dos devotos, que além do culto ao Senhor
Divino, têm como personagens principais o festeiro ou Imperador, festeira ou Imperatriz,
cantores e músicos da Alvorada, Folia do Divino, promesseiros e promesseiras.
Festejar o Divino Espírito Santo é uma das práticas religiosas comemorada desde o
período colonial.
113
Introduzida pelos portugueses no Brasil, passou por algumas
modificações, para adaptar-se à nova realidade. Sua presença ainda pode ser assinalada
principalmente nas regiões brasileiras em que a povoação se deu nos séculos XVI, XVII,
XVIII e muito raramente nas zonas cujo povoamento em meados e fins do século XIX.
Caracteriza-se como a festa da fartura, da alegria, do agradecimento, do pagamento de
promessas e desperta um processo de coesão social e de cooperação entre seus participantes.
Possui uma relação com a festa hebraica do Pentecostes que, adotada pela Igreja Católica
112
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
113
Maiores informações ver: SCHWARCZ, Lílian Moritz e MENDONÇA DE MACEDO, Valéria. O Império
das Festas e as Festas do Império. In: SCHWARCZ, Lílian Moritz. As Barbas do Imperador D. Pedro II: um
Monarca nos Tpicos. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p.270-272.
116
Romana, recebeu novo significado, passando a ser a festa da colheita, dos primeiros frutos,
celebrada cinqüenta dias após o décimo sexto do mês doNisan” hebraico, dois dias após a
celebração da Páscoa. No catolicismo romano, Pentecostes é a representação dos fatos
gloriosos de Cristo, por isso o seu caráter de festa da alegria, da materialização do Espírito
Santo através de uma pomba. (MAYNARD, 1959, p.267-301).
O Espírito Santo é representado simbolicamente por uma pomba, presente em todos os
objetos utilizados no culto ao mesmo e vistos como sagrados: a coroa, o cetro, as bandeiras e
o mastro. Em Vila Bela, a coroa e o cetro são de prata, sendo que a coroa possui uma pequena
pomba de ouro e o cetro uma de prata. A “bandeira pobre”, que abre o cortejo do Divino
durante a folia, é de tecido vermelho, tendo representada uma pomba cercada de raios, ambos
pintados à mão. Na parte superior do mastro onde é fixada a bandeira, existe uma pomba, feita
de massa, sendo que tanto o tecido da bandeira quanto a pomba são periodicamente
substituídos por outros mais novos. Abandeira rica” é também de cor vermelha e segundo
relatos de moradores mais antigos, é conservada desde a época colonial, assim como a coroa,
o cetro e a pomba de prata. Essas bandeiras são responsabilidades do Alferes da Bandeira,
sendo que a bandeira rica só acompanha a Folia nas visitas às casas da cidade. Nessas visitas,
primeiramente o Alferes entra na casa com a bandeira pobre. Caso o dono da casa ofereça
algumbeseque
114
aos visitantes, a bandeira rica é introduzida na moradia.
A crença nos poderes do Espírito Santo, representado por uma pomba, é muito
significativa entre a população de Vila Bela. No ano de 1995, um fato foi comentado na
cidade e mostrado às pessoas na missa solene da festa do Senhor Divino. Segundo alguns
moradores, uma demonstração materializada da presença do santo, foi o fato de uma vela
branca que estava acesa no altar na casa de um festeiro, ter se derretido e a cera se
transformado na figura de uma pequena pomba, que foi exposta na igreja, por Dona Nemézia
114
Termo usado em Vila Bela e que significa obséquio, representado pelas bebidas, biscoitos e bolos, oferecidas
aos integrantes da Folia e acompanhantes.
117
Profeta Ribeiro.
115
São representações de grande valor para os fiéis, demonstrações de grande
respeito e fé pelo santo. Isaias, apresentando a sua descrição da festa do Divino em Vila Bela,
faz observações à primorosa atenção na organização das atividades da festa, comentando
também que em épocas anteriores era um santo festejado pelos brancos.
Os mais antigos contavam que o ciclo das nossas festas sempre se iniciava
com as homenagens ao Divino Espírito Santo, que antes da transição, era
uma festa dos brancos. A saída dos Foliões durante trinta a quarenta dias,
percorrendo os sítios e localidades vizinhas, indo até a fronteira com a
Bolívia recolhendo contribuições para a festa, continuou até pouco tempo.
Ainda me lembro de como era bonita a chegada da Folia. As mulheres
retiravam o miolo da laranja azeda, e colocavam na casca azeite de mamona
e um pequeno pavio. Era a luminária. Calculando mais ou menos o horário
de chegada da Folia, colocavam estas luminárias acesas por toda a margem
do rio, próximas dos aguapés. Eram colocadas com muito carinho e devoção.
Quando a Folia chegava, o rio estava todo iluminado. Como era bonito!Na
quarta feira, eram as rezas, com muitos cânticos, e logo depois farta
distribuição de aluá, biscoito de Ramo, da Sinhá e licores de leite, de folha
de figo.Na quinta feira, era a reza, o levantamento do mastro,
responsabilidade do Capitão do Mastro, e depois o cortejo até as casas do
Imperador e Imperatriz, onde serviam os biscoitos e as bebidas.Quando a
festa do Divino era feita pelos brancos, negro não participava! Esgotados de
tanto trabalhar nas cozinhas, fazendo as comidas, doces e biscoitos que eram
servidos nestes dias de comemorões para os senhores, eram no domingo
após servirem o almoço e o jantar festivo, liberados, para darem início às
homenagens a São Benedito, a festa dos negros.
116
São atividades desenvolvidas durante todo o ano, principalmente pelas pessoas mais
envolvidas com a Festança, como festeiros, festeiras e promesseiros, que executam várias
tarefas para o bom êxito das homenagens ao Senhor Divino, que se iniciam efetivamente no
Pentecostes
117
com as rezas, ladainhas e novenas. Planejar e organizar o orçamento, participar
das reuniões com os outros festeiros, enfim estruturar a vida em função das atividades
exigidas pode ser visto segundo Dona Nemézia como um ritual sagrado, reafirmado a partir
do Pentecostes. Nesse período, além das rezas, é o momento da Folia do Divino iniciar a sua
115
No momento em que aconteceu esta exposição aoblico, percebia-se as expressões de curiosidade e de
emoção das pessoas.
116
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1998.
117
Pentecostes é uma festa católica celebrada cinenta dias depois da Páscoa, em comemoração à descida do
Espírito Santo sobre os apóstolos. (FERREIRA, 1986, p.1304).
118
caminhada visitando as casas nas áreas rurais, recolhendo as doações. Quando a Folia se
dirige para a zona rural, o Imperador e a Imperatriz não acompanham a mesma, devido os
afazeres exigidos pela festa. Entregam o cetro, a coroa e a bandeira pobre para seus
substitutos. Segundo dona Rosa: “Meu pai saia também. Aqui na cidade, a Folia rezava e
parava às cinco horas da tarde. Agora, o Senhor Divino tá andando com chuva, tá andando
de
noite. Não dá certo mesmo! Noutro tempo, deu cinco horas, parava. Chegou, rezou,
pronto”.
118
.
Foto 3 - Visita da Folia do Senhor Divino
Fonte: Reis de Moura, 2006.
Destacamos que, quando se encontra na área urbana, na semana da festa, a Folia do
Divino é formada pelo Capitão do Mastro à frente carregando a bandeira pobre, pelo
Imperador carregando a coroa, a Imperatriz carregando o cetro, o Alferes da Bandeira com a
bandeira rica, os promesseiros e promesseiras e demais acompanhantes. Esclarecemos que a
118
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1998.
119
Folia é formada pelo Mestre, cantores adolescentes cuja média de idade varia de 13 a 16 anos,
e pelos tocadores de sanfona, viola, caixa.
Em seus estudos sobre as festas do Divino, ARAUJO (1959 p.267-301), explica que
as mesmas foram revestidas de vários simbolismos no século IV, estendendo-se até os dias
atuais alguns costumes, como a prática das pessoas receberem o Imperador e a Imperatriz com
chuva de pétalas de flores e revoada de pombos. Também o fato de que os festeiros escolhidos
por sorteio, e adquirindo status social com o cargo de Imperador, Imperatriz, Mordomo e
Capitão do Mastro, não podem tirar lucros materiais da festa, porque se assim procederem
terão que prestar conta ao Santo, ou seja, “ficarão mal na vida” como conseqüência da
desonestidade. Normalmente os festeiros têm o prazo de um ano para organizar a festa do ano
seguinte, e estarem com a despensa cheia de mantimentos, para a confecção dos banquetes a
serem distribdos para todas as pessoas presentes e mesmo para aqueles impossibilitados de
estarem presentes, como os encarcerados e alguns doentes. Os componentes da Folia ocupam
um espaço considerado sagrado, são portadores de poderes e virtudes, pois é crença de que
por onde passam levam à benção, afugentam as doenças dos homens, dos animais e as pragas
das plantações. (ARAUJO, 1959, p.267-301)
Considerando algumas diferenças regionais, a festa do Divino em Vila Bela é muito
semelhante às descrições apontadas por Araújo. Os festeiros, ou seja, o Imperador, a
Imperatriz, o Capitão do Mastro, o Alferes da Bandeira, são escolhidos por sorteio,
119
organizado e direcionado pela Irmandade do Divino Esrito Santo. Têm a responsabilidade
de providenciar a alimentação dos Foliões, durante todo o período em que estes realizam as
visitas, pelas rezas e a liturgia do dia da festa. Da mesma forma têm por obrigação convidar os
músicos e cantores da Alvorada, garantir o abastecimento de bebidas por toda à noite e do
escaldado pela manhã, para todos que participantes. Devem ainda, providenciar os fogos de
119
Segundo relatos, atendendo solicitações como cumprimento de promessa, pode ocorrer de algum festeiro ou
festeira ser indicado pela Irmandade, fora do critério de sorteio.
120
artifício, o levantamento do mastro, o vestuário dos Foliões, a preparação e distribuição dos
biscoitos, bebidas após as rezas e os banquetes coletivos nos dias da festa do santo.
Foto 4 - Imperador e Imperatriz do Divino Espírito Santo / Festança de 1998.
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Nas casas visitadas, a Folia é recebida com tanto bem querer e emoção que na maioria
das vezes as pessoas presentes, sobretudo os familiares, chegam até as lágrimas, agradecidos
pelas graças alcançadas por intermédio do Senhor Divino. Normalmente, são muitas as
promessas pagas pelos promesseiros e promesseiras, por meio de variados tipos de doações,
como dinheiro, alimentos, colaborações com o trabalho durante o período da festa, ajudando
nos afazeres na casa dos festeiros, na preparação das comidas, lavagem dos pratos e
vasilhames utilizados, e demais atividades solicitadas.
Relatos como o de dona Andreza apontam que há alguns anos havia as promesseiras
que carregavam pedras na cabeça, potes de barro ou cabaças com água para serem servidas às
121
pessoas durante as caminhadas, tudo como uma forma de sacrifício e agradecimento ao
Senhor Divino.
Antes tinha aqueles promesseiros que carregavam pedra na caba
acompanhando o festeiro. Depois colocavam as pedras no buraco onde era
fincado o mastro. Tinha também gente que carregava água na cabeça, como
a dona Mariana Frazão de Almeida, durante a caminhada da Folia. Aquele
pote d’água na cabeça pros Foliões beberem. Qualquer um acompanhante da
Folia tomava dessa água
.
120
Moradores mais antigos comentam que tanto a saída da Bandeira e Foliões para as
fazendas e povoados, como a chegada, era muito emocionante, o que levava muitas pessoas
ao choro. Participavam do cortejo para a zona rural somente os homens. Levavam feijão,
farinha, arroz, para o caso de ser necessário pararem em algum lugar onde não recebessem
alimentação, o que era raro, porque normalmente eram sempre bem recepcionados. Levavam
também um carro de boi, que ia recolhendo as esmolas recebidas como sacos de arroz, feijão,
porcos, galinhas, reses, sendo que muitas vezes, dependendo da quantia de donativos
recebidos era necessário o carro vir à cidade trazendo as ofertas e retornar novamente à
peregrinação.
Emocionada, dona Rosa relata suas experiências relacionadas à festa do Divino. Essa
reatualização do passado permite que se tenha uma iia de como se davam as relações entre
a comunidade e os Foliões, vistos como representantes do Senhor Divino:
120
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
122
Antes o Senhor Divino não andava de noite. Chegava 5 horas, a Folia
parava, e só continuava no outro dia. À noite, tinha a reza e depois era
aquele bailão. A Folia viajava de pé, carro de boi era pra carregar os
presentes ganhos. O pessoal saía cantando, acompanhando a folia até o rio,
que de iam pra Manga, Casalvasco e por era festão também. Os barcos
faziam a meia lua na água com o remo, acompanhando o Senhor Divino.
Assim é que era. Tinha a lumiria de laranja com azeite de mamona. O rio
ficava lindo, todo iluminado, porque depois que a gente tirava o âmago da
laranja, enchia de azeite e colocava nas beiras do rio pra lumiar a Folia
quando chegava. Não tinha energia etrica e o festeiro fazia cinco Salomão
de vela, o mastro ficava assim todo iluminado. Como ficava bonito e tudo
iluminado. Agora não faz mais assim. A noite tinha reza e depois era aquele
bailão!
121
Esse ritual não acontece mais, conseqüência dos processos de reestruturação dos
mesmos aos novos tempos, mas a Folia ainda é recebida com fogos de artifício pelos festeiros
e devotos. Em seguida, tem início as visitas nas casas na cidade, por toda a semana que
antecede a festa. É costume dos Foliões aos chegarem nas residências, saudarem os moradores
com o seguinte cântico:
É chegada em vossa porta,
Uma formosa bandeira,
que tem nela retratada,
uma pomba verdadeira.
Divino pede a esmola,
Não pede por carecer,
Pede por experimentar
Seu devoto quer ser
122
Num ambiente de muita devoção e respeito, são realizadas cantigas, orações e
beijação” das insígnias do Senhor Divino, sendo que muitos passam as fitas na fronte,
porque se acredita que as mesmas têm o poder da cura. Em seguida, os donos da casa
amarram a esmola em uma das fitas da ingnia, quando é em dinheiro, ou entregam outros
tipos doões ao Santo, como animais e diversos tipos de mantimentos. Após esses rituais, são
servidas a todas as pessoas presentes bebidas como licores, vinho, aluá, acompanhadas de
sequilhos ou bolo de arroz. Pode ser que em algumas casas sirvam somente o licor, o aluá ou
121
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1999.
122
Cantigas da Folia do Divino Espírito Santo, anotadas e gravadas durante a pesquisa em 1998.
123
o café.Tem inicio um animado baile ao som dos instrumentos da Folia, até que a um sinal do
Mestre, tem continuidade a peregrinação pela cidade. Na saída despedem-se com o canto de
despedida, uma maneira de agradecerem aos donos da casa que tão bem receberam o Senhor
Divino.
Deus vos pagueis a esmola
que deste com alegria.
Senhor Divino Espírito Santo
Fica em vossa companhia.
Despedida, despedida
Despedida em Belém,
Senhor Divino Espírito Santo,
para o ano que vem
123
Esses rituais indicam um compromisso dos fiéis e festeiros com o Senhor Divino, que
pode ser percebido nos comentários de dona Ana Jonas, sobre sua experiência como
Imperatriz:
Eu quando fui festeira do Divino Espírito Santo, a minha festa tudo foi por
minha conta própria. O que eu arrecadei nas esmolas foi tudo entregue para a
igreja. Têm muitos que fazem assim né! Pegam a esmola e se precisam de
alguma coisa pra festa, tiram daquilo que recebeu.A gente quando recebia a
festa, pensava naquilo que tinha que fazer, como engordar porco, criar
galinha, plantar horta, o ano todo preparando, porque quando chegava a festa
a gente já tinha tudo organizado. A cozinha do Divino sai mais pesada,
porque durante todo o tempo de tiração da esmola na cidade, os festeiroso
pros foliões e todos que estão acompanhando a Folia, a comida. Agora, nas
roças, o povo de lá sempre dá as coisas. Junto com a Folia vai daqui uma
pessoa pra cozinhar e levam também ingredientes, porque podem chegar em
algum lugar e não receberem a Folia. Ás vezes, né! Antes as pessoas
entendiam bem esta festa e não acontecia isso, mas hoje, muitas pessoas,
assim, que vêm de longe. Tem de conversar e explicar pra elas como é que é
a Folia, ai elas oferecem também.
124
Vale ressaltar que durante toda a semana, período das visitas da Folia nas casas, é
obrigação do Imperador e da Imperatriz oferecerem o café da manhã, almoço e jantar para os
foliões, promesseiros e acompanhantes. Os dias de responsabilidade de cada um dos festeiros
123
Cantigas da Folia do Divino Espírito Santo, anotadas e gravadas durante a pesquisa em 1998.
124
Depoimento de dona Ana Jonas Coelho de Brito. Vila Bela, 1999.
124
são previamente combinados, para que não fiquem sobrecarregados de atividades, porque
ambos estão com grande movimentação em suas residências, devido os preparativos e
confecção dos biscoitos, bebidas, doces para a festa. Tamm a ornamentação do altar na
igreja, a doação das vestimentas dos Foliões para os principais dias da festa, a organização
dos ensaios para a cerimônia religiosa, e demais encargos, são responsabilidade da Imperatriz.
Observa-se que dona Jonas além de comentar sobre sua experiência como Imperatriz
do Senhor Divino, faz algumas críticas relacionadas à postura e obrigações que deveriam ser
seguidas pelos festeiros. Deixa implícito que ser folião, festeiro ou festeira, é uma arte, que
exige determinadas habilidades e compromissos com o sagrado.
Foto 5 - Foliões do Divino Espírito Santo durante o almoço no Centro
Comunitário
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Sobre esse compromisso com o Senhor Divino, Carlos Rodrigues Brandão, analisando
a festa do Divino na Casa de São Jossamedes - GO, esclarece que assim como há um
compromisso de fé e culto para com o Espírito Santo, entende-se que deva existir
125
compromisso de trocas de serviços muito bem definido entre os foliões, pessoas a quem
visitam, entre festeiros e festeiras, responsáveis diretos pelo sucesso da festa, como também
entre os devotos e igreja católica, representada pelo padre e agentes pastorais. Segundo
Brandão, são espaços de práticas culturais onde deve prevalecer uma “ordem da festa”.(
BRANDÃO, 1982, p.61-78).
Consideramos que essa denominada “ordem da festa”, está presente em algumas
práticas culturais da festa do Divino em Vila Bela, das quais assinalamos o costume do
Imperador oferecer todos os dias aos Foliões, promesseiros e acompanhantes, o denominado
chá da manhã. Na festança de 1998, observamos que este chá era composto de: leite com
canela, café, chá mate, ovos fritos, pão, paçoca de carne, virado de ovos e o escaldado, feito
todos os dias porque é considerado um alimento forte, comsustância.”
125
Segundo
comentários locais é fundamental que se sirva alimentos considerados fortes, porque os
foliões devem estar bem alimentados, pois gastam muita energia, andando, tocando e
dançando o dia todo. É também compromisso dos festeiros servirem em horário anteriormente
estabelecido, o almoço e o jantar, sendo que, os ingredientes para a confecção deste cardápio
são provenientes das esmolas que a folia recebe como, frangos, ovos, arroz, feijão, farinha,
fubá e outros, no decorrer de suas andaas tanto na zona rural como urbana.
Na noite de quarta feira, já na semana da Festança, realiza-se uma reza festiva na casa
do Capitão do Mastro. Como de costume, após os rituais ocorre a distribuição de Aluá,
licores, sequilhos. Segundo dona Catarina, até a alguns anos serviam o bolo de arroz.
126
Esclarece também que o bolo de arroz era servido acompanhado do chocolate de
amendoim, uma bebida feita com leite de vaca, misturado com amendoim torrado depois de
125
Segundo os moradores de Vila Bela, sustância é um termo usado para designar um alimento, que ao ser
consumido deixa a pessoa longas horas sem sentir fome.
126
Dados obtidos através de observações feitas em 1998 e em 1999. Esclarecemos que de acordo com o
calenrio da Festança, as homenagens aos santos comemorados atualmente, iniciam-se com a festa do Divino.
Como é colocado no texto, na quarta-feira acontece a reza na casa do Capio do Mastro. Na quinta-feira, rezas
nas casas dos festeiros, na igreja e levantamento do mastro. Também rezas e Alvorada na sexta-feira e no sábado
e comemorações por todo o domingo.
126
bem socado no pilão, açúcar e canela. Moradores de Vila Bela fazem questão de ressaltar o
sabor dessa bebida, destacando também sobre a fartura da festa, relacionada com o plantio de
alguns cereais e verduras, para serem usados na festa do santo.
De acordo com as lembranças de dona Catarina, as técnicas de preparo desses
alimentos estavam diretamente ligadas com aos recursos oferecidos pela natureza. Sente
saudades do passado, e ao manifestar esse sentimento, considera que antigas práticas estão
sendo readaptadas aos novos tempos.
Naquele tempo, serviam o biscoito com chicha ou então com o chocolate de
amendoim, que era o mais aprovado. Hoje o pessoal tá querendo voltar ao
passado. Serviam bolo de arroz. Só que era assado na forma de folha de
bananeira. Não era assim na forma como é hoje. Se era na forma, forrava ela
com folha de bananeira. E hoje já mudou muito né! E agora o pessoal ta
querendo voltar no passado. Como ontem mesmo, todas as rezas teve o bolo
de arroz. Só que foi com a chicha do milho, do milho torrado. O chocolate
de amendoim não faz mais. Hoje em dia, o pessoal tá deixando, parece que
acham que é muito trabalho. Antigamente, plantavam as roças e vinham
sacas e sacas de amendoim.
127
Na quinta-feira, ainda responsabilidade do Capitão do Mastro, é realizada à noite, após
a reza na igreja, a cerimônia de levantamento dos mastros do Divino Espírito Santo e de São
Benedito, na praça da matriz. Dentre os devotos e demais pessoas, destacam-se os Foliões,
todos vestidos de branco com um laço de fita vermelha preso no ombro. A cerimônia é muito
bonita, com os fogos de artifício, toque de sinos, cânticos, louvores, e muita expectativa no
levantamento da bandeira do Senhor Divino, porque segundo a comunidade, para onde se
direciona a ponta da bandeira, é de onde sairá o próximo festeiro a ser sorteado.
As homenagens ao Senhor Divino continuam na noite seguinte, de sexta-feira para
sábado, quando por volta da meia-noite, muitos foguetes e tocar dos sinos, anunciam o ritual
127
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1999.
127
da Alvorada,
128
que transcorre por toda a madrugada. Segundo informações de moradores
antigos, até alguns anos atrás, eram realizados animados leilões na praça da igreja, área
central da cidade, após as rezas do sábado.
No domingo, pela manhã, após a chegada à igreja do cortejo composto pelo
Imperador, Imperatriz, anunciados com fogos de artifício, cânticos dos Foliões, pela bandeira
rica carregada pelo Alferes, bandeira pobre carregada pelo Capitão do Mastro, fiéis,
promesseiros e demais pessoas, tem início a missa solene. Após a missa, ocorre a escolha dos
próximos festeiros. São momentos de emoção e de expectativa. À medida que sorteiam um
nome, outro envelope é sorteado, contendo o que o Senhor Divino deseja da pessoa, ou seja,
valores em dinheiro ou uma jóia, ou a indicação da pessoa como festeiro ou festeira.
No final do sorteio, momento em que formalmente são declarados os nomes dos
próximos festeiros, ou seja, do novo Imperador, Imperatriz, Capitão do Mastro e Alferes,
louvores e músicas são cantadas alegremente pela Folia e demais presentes. É feita então, a
troca das insígnias do Senhor Divino entre os festeiros atuais e os do próximo ano.Essa
escolha se dá entre os membros da Irmandade, salvo raras exceções, quando há alguma
solicitação de alguém que recebeu alguma graça do Santo e pede um cargo como
cumprimento de promessa. Após essas cerimônias, ocorre a peregrinação da Folia e fiéis pelas
ruas da cidade, para levar até suas casas os festeiros atuais e aqueles sorteados para o próximo
ano. Todos são recepcionados quando chegam em sua residência, com muitos foguetes, salvas
de palmas e chuva de papel picado e pétalas de flores, acompanhadas de orações de louvor e
agradecimento ao Senhor Divino, farta distribuição de Aluá, licores, sequilhos. Por volta do
meio-dia, o cortejo se dirige a o Centro Comunitário ondeo oferecidos os banquetes,
sendo que o almoço é cargo da Imperatriz e o jantar do Imperador Em 1998, o almoço foi
128
A Alvorada, que normalmente se inicia por volta da meia noite, é uma caminhada festiva de músicos,
cantores, acompanhados pelas pessoas, pelas ruas da cidade, com pequenas paradas nas casas dos festeiros e
festeiras.
128
feito e servido nas dependências do Centro Comunitário
129
pelo Imperador sr. Nazário Frazão
de Almeida e o jantar, oferecido pela Imperatriz sra. Rosina de Almeida Paiva, foi feito e
servido na residência dos pais da festeira.
Anteriormente, os banquetes eram servidos nas pprias casas dos festeiros, mas
segundo informações obtidas na comunidade, as dependências do Centro Comunitário
passaram a serem vistas mais adequadas e utilizadas em conseqüência da grande quantidade
de pessoas presentes nesses momentos. Alguns festeiros resistem em utilizar este local,
preferindo continuar a servir o povo em suas casas. O sr. Leopoldo Frazão de Almeida e dona
Andreza Pires de Almeida, pertencem à geração mais tradicional que resiste à utilização do
Centro Comunitário como local para a confecção e distribuição das comidas. Preferem o uso
da ampla cozinha situada nas dependências da própria residência e servirem as pessoas na rua
defronte a casa.
130
Sobre o cardápio, observamos que durante as visitas dos foliões, no ano de 1998, nas
casas dos festeiros e devotos, foram servidos alternadamente, licores de folha de figo, de lima,
de jenipapo, de laranja, de pequi, o leite de tigre e o Canjinjin. Nos banquetes foram servidos
doces de mamão, de leite, de laranja e de canjica de milho. Quanto aos biscoitos, foram
servidos sequilhos para todos e biscoito de Ramos somente para algumas pessoas.
Não podemos deixar de observar as considerações de Dona Andreza, sobre a
utilização atual das esmolas oferecidas ao Senhor Divino e as comparações que faz com as
festas mais antigas:
A Folia do Divino de agora tem diferença, porque antigamente os foliões
começavam a tirar a esmola era com roupa branca, com lenço na cabeça,
com quatro pontas e sapato branco. Era assim. Amarrava o lenço branco nas
quatro pontas e colocava na cabeça. A camisa branca, calça e sapato branco.
129
Observações anotadas durante a pesquisa realizada no ano de 1998.
130
Vale observar que no ano de 1999, o neto do casal senhor Leopoldo Frazão de Almeida e dona Andreza Pires
de Almeida, Cleófilo Carneiro Geraldes, foi sorteado Imperador do Divino e segundo comenrios, o banquete
será servido na rua defronte à praça onde se localiza a casa do casal por determinação dos avós, antigos festeiros.
129
Tudo branquinho e a fita vermelha no ombro. Tirava a esmola, tudo de
branco, tudo igual em todo lugar. Aí, quando terminava de tirar a esmola,
colocavam outra roupa branca pra festa. A gente não usava a esmola do
Espírito Santo, porque é pecado. Os antigos falavam que as pessoas se tem
este objeto, então parte isso pra dar por Divino Espírito Santo. E guardava
este objeto para o leilão. E hoje não. Come tudo. Não pode! Eu não acho isso
certo. A esmola que recebe é a esmola que cozinha. Antes não era assim.Eu
trabalhava pra comprar pra dar pro povo, pra não pegar esmola. Era a roupa
do Imperador, do Folião, sapato, comida, tudo, tudo. O dinheiro do leilão era
para a igreja. Toda vida assim é que era. Agora, modificou. Não nada pra
igreja, come tudo!
131
Para explicar as descrições de dona Andreza e os demais relatos apresentados neste
texto, buscamos inspiração em Pollack, quando coloca que:
A memória funciona como elemento aglutinador de lembraas filtradas
pelos olhos e imagens do presente, num processo de construção que se dá a
partir de um universo diversificado, onde não existe o tempo cronológico,
mas o tempo de experiências de vidas e de atividades sociais. Por isso as
relações dentro dos quadros sociais da memória não são restritas ao
individual, mas se estendem à realidade da qual o indivíduo faz parte,
podendo ser encontradas nas maneiras de ser ou de pensar, traços algumas
vezes visíveis, outras vezes percebidos em expressões dos rostos, em lugares
conservados e reproduzidos pelos indivíduos. (
POLLACK, 1992, p.200-
212).
Os rituais que comem a festa do Senhor Divino além da beleza e delicadeza,
possuem uma dinâmica e tempo próprios, onde as recordações, de experiências de vidas e de
atividades sociais em diferentes temporalidades, permitem processos de reconstruções.
Alinhadas aos signos emitidos pelas diferentes interpretações dos devotos, que acreditam
existir na crença ao Santo sinais que significam a consolação, a misericórdia e cura para os
males do corpo e da alma. Talvez por isso, os variados rituais em homenagem ao Senhor
Divino em Vila Bela, despertem tantas lágrimas
··.
131
Relato de dona Andreza Cruz de Almeida. Vila Bela, 1999.
130
2. 2 - A festa para São Benedito
Oh! Glorioso São Benedito
132
que pobre e sem letras, guardastes os
rebanhos, lavrastes os campos, vos retirastes aos ermos, vos recolhestes ao
convento onde socorrestes os indigentes e enfermos, onde fizestes rigorosas
penitências, praticando todas as virtudes.
133
O fragmento acima é parte da oração que é rezada em louvor a São Benedito, durante a
festa em sua homenagem em Vila Bela. É uma invocação, em que se percebe a solenidade e
emoção plasmadas nas expressões das pessoas, talvez pela perspectiva de mais um ciclo de
vida e realizações, sob as bênçãos daquele que é considerado “ milagroso”, por boa parte da
população, que reafirma anualmente a sua fé no período da Festança. Podemos perceber esse
sentimento no relato de dona Andreza:
São Benedito é um santo milagroso. Eu era pra estar morta, mas São
Benedito me deu saúde. A minha fé nele salvou também o meu filho. É um
santo tão milagroso, que assim eu nunca vi no mundo. Quando meu filho
estava pra nascer, eu pedi pra São Benedito que se tudo corresse bem, o
nem ia se chamar Benedito. Eu fiquei mal, ia morrer. Levaram a imagem
de o Benedito na cama e o menino nasceu. Uma vez, um bêbado botou
vela acesa fora do lugar, na mesa onde estava a imagem de São Benedito.
Não viram e São Benedito queimou, acabou de vez. Ficou só um pedaço.
Choraram, mas o que fazer? Juntaram os pedacinhos, colocaram numa
caixeta, e fizeram a festa assim mesmo, sem a imagem do santo. Em
dezembro, depois da ida pra mata da poaia, meu marido Leopoldo, mandou
dona Sinhá lá em Cáceres, fazer outra imagem de São Benedito. Ela sabia
como é que era a imagem antiga. Lindo que era. A alumiava. Mas, ela fez
imitando. E é essa imagem que tem hoje.
134
132
De acordo com Bastide, São Benedito irmão leigo, nasceu na Sicília, em 1526, filho de escravos africanos,
núbios, foi libertado ainda jovem. Juntou-se a um grupo de frades franciscanos e foi trabalhar na cozinha do
mosteiro. Analfabeto, chegou a superior do convento, e foi rigoroso na interpretação das regras franciscanas. No
fim da vida, voltou ao trabalho da cozinha e continuou a ser procurado pelas pessoas para curas. Morreu em
Palermo em 1589 e foi canonizado em 1807.Considerado o santo negro, cozinheiro, por causa de sua cor tornou-
se protetor dos negros. O seu culto permaneceu à margem do catolicismo ortodoxo, até a autorização pela Igreja
Católica, de seu culto, em 1743. No Brasil, em 1711,existiam festas para São Benedito nas capelas dos
engenhos. (1985.p 163).
133
Oração de São Benedito, invocada em Vila Bela.
134
Relato de dona Andreza Pires de Almeida da Cruz. Vila Bela, 1999.
131
Reconhecido como o santo maior, São Benedito é o mais próximo, um igual na cor e
na cozinha.
135
Significa para a população negra de Vila Bela o santo da etnia, “o santo negro
dos negros, o mestre de vida e fé e por isso, o Glorioso, o Milagreiro, aquele que recebe as
homenagens.”(RIBEIRO; SOUZA,1999).
136
Segundo comentários locais, compartilha dos
cotidianos, representando sobretudo a cura e a direção nos caminhos da vida.
Para compreender melhor as atitudes de fé e crença em São Benedito, manifestadas
por alguns moradores de Vila Bela, buscamos as análises de Brandão quando tece
comentários sobre as reflexões de Peter Fry e Gary Howe, que nos estudos comparativos entre
práticas e modos de organização da umbanda e do pentecostalismo, nomeiam a manipulação
do sagrado como a presença da aflição”. Aflição que pode estar ligada a problemas
cotidianos enfrentados pelas pessoas como: saúde física e psicológica, desemprego, moradia,
trabalho e consumo, dificuldades de associação interpessoal.(BRANDÃO, 1982, p.61-78).
Dona Benedita expressou essa aflição e a sua fé inabalável emo Benedito, quando
relatou emocionada, por meio das bênçãos deste santo, a solução dos problemas que a
estavam afligindo:
Eu pedi pra São Benedito que me curasse e ele me curou. Pedi chorando que
me desse saúde e de repente o sangue estancou. São Benedito é muito
milagroso. Meu neto foi atropelado e fiz a promessa pra São Benedito não
deixar ele morrer e nem ficar demente da cabeça. E fiz a promessa. Meu neto
acordou, perguntou onde estava, pediu que queria me ver e comer de minha
comida. E veio embora.
137
Os festejos em homenagem a São Benedito são representações que podem ser vistas
como uma materialização da fé, mediante os agradecimentos coletivos dos fiéis ao alento que
acreditam ter sido ofertado pelo santo, diante das dificuldades da vida.
135
Sobre a festa para São Benedito, destacamos: Brandão (1987) e Bastide ( 1985, p.163).
136
Texto produzido e mimeografado em Vila Bela. Dona Némezia Ribeiro, uma das autoras, cedeu-me uma
pia desta publicação.
137
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
132
Estes festejos, segundo alguns moradores mais antigos de Vila Bela, duravam três
dias, ou seja, iniciavam-se logo após o término da festa do Senhor Divino,
138
na segunda feira
e se estendiam até a quarta feira. Atualmente acontece na segunda e terça feira, momentos de
grande concentração de pessoas. No entanto vale destacar que, dias anteriores ao período
mencionado, iniciam-se os preparativos para as homenagens a São Benedito, como ensaios de
passos de dança e cânticos pelos Daantes do Congo,
139
ensaios na igreja para os ofícios
religiosos e do Coral Consciência Negra, que se apresenta na missa de São Benedito.
Empenhados em garantir o brilho da festa, o Rei, a Rainha, o Juiz e a Jza, auxiliados
pelas cozinheiras, ajudantes e promesseiros, garantem a movimentação nas cozinhas de suas
residências, propiciada pelos animados grupos de trabalho, responsáveis pela confecção dos
doces, licores, aluá, biscoitos, lingüiças, enfim todas as iguarias que podem ser feitas com
antecedência. Atividades que segundo alguns são bastante cansativas, mas que trazem muita
satisfação e emoção a todas as pessoas diretamente ligadas a estes trabalhos, e podem
significar uma maneira de agradecerem ao santo as graças alcançadas.
Os gastos com a festa para São Benedito são responsabilidade dos festeiros e festeiras,
pois para esse santo não se pede esmola, cabe àqueles que são escolhidos para festeiros
oferecerem a festa, levando a comunidade a renovar segundo os rituais religiosos a
continuidade das tradições.
No conjunto das representações em homenagem a São Benedito, o Rei não é o único
responsável pelo bom desempenho das atividades, mas a sua figura é emblemática, e mesmo
se a pessoa escolhida não tenha posses, o fato de ter sido escolhido rei, lhe outorga poder e
destaque social, como acontece também com a Rainha. Segundo relatos, para ser escolhido
pela Irmandade de São Benedito, Rei ou Rainha, a condição econômica não é o requisito
básico, pois o mais importante é pertencer à Irmandade. Exige-se também que “as pessoas
138
As festividades consideradas principais, do Senhor Divino se dão na quinta feira, sábado e domingo.
139
Dados obtidos durante a pesquisa nos anos de 1998 /1999.
133
escolhidas tenham prestígio na comunidade, capacidade de liderança e de mobilização.
(BANDEIRA, 1988, p.230). Segundo dona Nemézia Profeta Ribeiro,
[...] as pessoas de baixo poder aquisitivo, de baixa renda, que vo olha
assim e pensa, não vai dar conta de fazer a festa! E sai uma festa brilhante,
sem faltar nada. Muitas vezes o lixeiro da prefeitura é o Rei, como vê, a festa
é assim tão mística, tão sagrada, que a pessoa mais humilde da comunidade,
o lixeiro é o Rei.o existe distinção do lixeiro ao prefeito. Se o lixeiro é o
Rei, o povo com o mesmo entusiasmo. Se o prefeito que é a autoridade
máxima é o Rei, o povo com o mesmo entusiasmo. É uma força mística, uma
força sobrenatural, que parece que o povo incorpora. Nesta festa, não existe
distinção de classe, econômica, nem social. Nós somos um todo, é comum.
Todos nós nos tornamos iguais. Não há nenhuma distinção da comunidade
negra. Eu vejo assim, que esse costume também é de antes de nós. Nossos
primeiros negros eram negros escravos, eles viam todos iguais e isso foi
passando de neto, bisneto, tataraneto, pai, mãe. É uma comunidade que se
torna de igual para igual, Não tem mais nem tem menos. Não tem a posição
social maior, nem menor, quer dizer, todos somos iguais neste momento.
140
Percebe-se um jogo de inversões, ou seja, o pobre se tornando rei da festa para São
Benedito, que era um homem pobre, negro, cozinheiro, mas um santo que ocupa um lugar de
destaque na hierarquia dos santos venerados. Além de possuir o poder da cura, da resolução
dos problemas mais difíceis seja físico ou espiritual, mostrou que pelo seu valor subiu a um
lugar de glórias, por isso é o santo das possibilidades.
No conjunto das homenagens a São Benedito, as figuras do Rei e da Rainha estão
impregnadas de simbolismos. Ser coroado Rei ou Rainha nos tempos imperiais do Brasil
representava para a população negra, afirmação de identidades onde se incorporava o domínio
português ao universo cosmológico e valorativo de algumas nações africanas. A coroação dos
Reis, a formação de Irmandades negras, a promoção de festas e procissões com santos
padroeiros particulares era uma maneira de se criar lealdades próprias e de se ver como
membro de um grupo e assim menos estrangeiro, ou seja, a construção de uma nação, de um
Brasil familiar dentro de um Brasil estrangeiro. (SCHWARCZ; MENDONÇA DE MACEDO,
1990, p.281-285).
140
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
134
Carlos Rodrigues Brandão, em seus estudos sobre a existência de representações da
realeza em festas religiosas de negros no Brasil, informa que nos tempos coloniais, a coroação
do Rei e da Rainha era realizada pelo vigário na igreja e logo após, um longo cortejo
acompanhava os mesmos, junto de seus Secretários e de sua corte, entre cantos e danças. A
duração do reinado não era fixa, sendo que inicialmente eram escolhidos antigos reis
africanos. (BRANDÃO, 1987, p.191-220).
Roger Bastide apresenta também importantes esclarecimentos sobre esta questão,
indicando que o Rei poderia direcionar a sua autoridade sobre os fiéis, e utilizar a mesma
contra o branco. A tradição católica fez com que a duração do reinado, antes vitalício,
passasse a ter a duração de um ano, desvirtualizando o conceito solene de realeza seguido
pelos negros. As danças, que acompanhavam a coroação dos soberanos, receberam nomes
variados, de acordo com a região, surgindo as Congadas, as Cucumbis, os Congos, o Ticumbi,
o Turundu. O catolicismo aparecia como denominador comum e a aceitação externa do
mesmo pelos negros, através do batismo, da missa e de outros ritos católicos, não os impedia
que freqüentassem os batuques e os rituais africanos no interior das senzalas ou no escuro das
matas. (BASTIDE, 1985, p.157-204)
Segundo os moradores de Vila Bela, a festa para São Benedito é aquela que reúne
mais pessoas nas cerimônias, sendo que a escolha dos festeiros é feita pelos Irmãos de Mesa,
numa cerimônia chamada Lavagem das Efígies”, um ritual que se dá no dia de Pentecostes,
quando os Irmãos de Mesa lavam e dão polimento nas insígnias do Santo, bastões de prata
que são carregados pelo Juiz e Juíza durante os festejos.
Informações de dona Cira dão conta de que “na Irmandade de São Benedito, os Irmãos
de Roda estão mais longe de serem festeiros, do que os Irmãos de Mesa.
141
Nas escolhas do
Rei e da Rainha, é fator importante que sejam pessoas mais idosas, uma forma de se
141
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
135
reverenciar este grupo, como também um forte compromisso das pessoas escolhidas. Este
significado está presente na satisfação de dona Cecília, ao comentar sobre o compromisso de
sua família com a festa:
Nunca deixamos de dar ajuda na festividade, pelo menos, quando chega
ofício pra receber a festa, nunca voltamos com ele. Meu menino, o Camilo,
meu filho mais velho, vai ser Rei de São Benedito, ele vai receber agora.
Ainda vamos fazer festa. Eu fui Rainha, logo larguei fui Juíza. Fui Rainha
com 40 anos, nova ainda.
142
Durante as principais representações em homenagem a São Benedito, ou seja, os
cortejos pelas ruas da cidade até as casas dos festeiros, as missas e apresentações dos
Dançantes do Congo e das Dançarinas do Chorado, o Rei usa uma capa cor de vinho forrada
de branco, amarrada ao pescoço com fitas e uma sobrecapa rosa, sendo que carrega durante
todo o cortejo uma grande coroa e um cetro. A roupa da Rainha de acordo com as posses da
mesma é sempre um vestuário majestoso, e usa na cabeça uma touca enfeitada com laços de
fita cor de rosa. Carrega uma pequena coroa numa almofada, por todo o cortejo.
Foto 6 - Rei e Rainha de São Benedito na Festança de 1996.
Fonte: Reis de Moura, 1996.
142
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
136
O Juiz veste sobre a roupa uma capa branca de cetim e sobrepeliz azul, e carrega um
bastão de prata encimado com a imagem de São Benedito. A Juíza usa roupa de acordo com
suas posses e carrega também um bastão, e os Ramalhetes, em número de oito, todas
mulheres, usam roupa branca, e carregam cada uma duas rosas artificiais, vermelha e
branca.
143
Foto 7 - Juiz, Juíza e Dançantes do Congo na Festança de São Benedito
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Segundo algumas narrativas, o Juiz e a Juíza são responsáveis pelos dançantes,
devendo fornecer toda a bebida, a roupa, sapatos, enfeites da indumentária. De manhã, devem
oferecer o sopão, sendo que na segunda-feira é atribuição do Juiz e na terça-feira da Juíza. A
Rainha só oferece o almoço. E o Juiz e a Juíza ainda dão o almoço e o jantar.
144
É também
143
Observações realizadas durante a pesquisa na Festança de 1998 e 1999.
144
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela em 1999.
137
responsabilidade da Juíza providenciar a lavagem da imagem de São Benedito. É uma
atividade exclusivamente das mulheres, que banham a imagem do santo com água, escova e
sabão perfumado, colocando-a em seguida sobre um pano vermelho, no altar situado no lado
direito do altar principal da igreja. Amarram uma fita azul com as pontas caídas, para o ritual
da beijação dessa fita pelos fiéis. Também é responsabilidade da Juíza organizar os ensaios, a
indumentária dos dançantes do Congo, limpar e enfeitar os dois bastões, a igreja para os
cultos e para a missa solene. Da mesma forma, oferecer o Sopão e o Canjinjin para os
dançantes, o almoço na terça feira da festa, sendo que o jantar, nesse dia, é por conta do Juiz.
Na chegada da peregrinação do cortejo com a imagem do Santo e as insígnias, festeiros,
dançantes e fiéis, na casa de cada festeiro e festeira, após as rezas e louvores de costume, são
oferecidos para todas as pessoas licores, chicha e sequilhos.
Muitos desses rituais descritos iniciam-se na segunda feira, após as festas do Divino
Espírito Santo, que se encerraram no domingo. Vila Bela ficasuspensa pelos
ares
145
preparada para o início das homenagens a São Benedito. Por volta das cinco horas da
manhã, o som vigoroso dos tambores ecoa pela cidade, com os dançantes do Congo
organizando-se e percorrendo as ruas, na busca dos Ramalhetes, do Juiz, da Juíza, do Rei e da
Rainha, em suas respectivas casas e conduzindo os mesmos até a igreja, onde será realizada a
missa solene, às sete horas.
Após deixarem os festeiros e festeiras na porta da igreja, dirigem-se até a casa do Rei
ou da Rainha, seguindo indicação pré-determinada. É o momento de degustarem o sopão, uma
mistura de verduras, carnes com ossos de rês, macarrão, temperos variados. Segundo algumas
cozinheiras, até alguns anos, era feito somente com legumes e carnes.
145
Fragmento de uma das músicas cantadas em Vila Bela, durante a Alvorada. Gravações efetuadas no decorrer
da Festança, durante a realização da pesquisa em 1998 /1999.
138
Foto 8 - Preparação do Sopão
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Por ser considerado um alimento forte, é apropriado para os dançantes, que gastam
muita energia nas apresentações e precisam estar fortes, sem fraquejar. Enquanto se
alimentam, todos ficam atentos ao sinal do Embaixador, um dos personagens do grupo, que ao
ouvir o barulho de foguetes, ordena que todos se coloquem em forma e sigam novamente em
direção à igreja.
139
Foto 9 - Dançantes do Congo tomando sopão
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Segundo comentários dos próprios dançantes, foguete não é um sinal correto, um erro
dos festeiros em não seguirem o que é tradição, pois já aconteceu de ouvirem os foguetes e
não se apresentarem, porque festa para São Benedito é festa com muitos fogos. O correto, é o
tocar do sino, como os antigos festeiros faziam. Dona Nemézia Profeta Ribeiro, quando
relatou sobre a festa em 1998, colocou que:
Outra coisa também foi depois da missa de São Benedito. Para nós, os
Dançantes atrasaram. Mas para eles estava tudo normal, porque o sinal de
chamada de volta à igreja,o são os foguetes, como havíamos usado, mas a
tradição é o toque do sino. O sino é um ritual de chamamento. Aí batemos o
sino e eles imediatamente fizeram a forma e foram pra igreja. Então é assim.
Uns dias altamente de devoção.
146
146
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
140
Na igreja, após a missa solene acompanhada por cânticos do Coral da Consciência
Negra,
147
os festeiros e demais pessoas dirigem-se à frente da igreja, onde acontecem as
apresentações dos Dançantes do Congo e das Dançarinas do Chorado, dança específica das
mulheres, onde participam o grupo oficial das dançarinas ao lado daquelas senhoras mais
idosas, sempre muito aplaudidas.
Após as representações, inicia-se uma longa peregrinação dos dançantes do Congo
pelas ruas da cidade, tendo à frente os oito Ramalhetes, o Rei Congo, o Juiz e a Juíza, o Rei e
a Rainha. Acompanhar esse cortejo exige muita disposição porque de acordo com as regras do
ritual, a todo momento a Rainha deve se assentar numa cadeira
148
que é conduzida por uma
jovem. O cortejo é paralisado e só se reinicia quando a Rainha retoma a caminhada a pedido
do Juiz ou da Juíza, ou por sua própria vontade. Dona Andreza faz algumas observações:
Antes era a Rainha velha que segurava a sombrinha pra Rainha nova. A
Juíza velha é que segurava a sombrinha na Jza nova. Agora, já não fazem
mais. Tinha uma cadeira forrada com uma toalha pra Rainha assentar. A
Rainha andava um pedacinho e assentava, andava outro pedacinho e
assentava. Difícil pra chegar em casa. Marli até desmaiou, porque ela era
Juíza, estava na frente e a Rainha andava um pedacinho, assentava, outro,
assentava. Meio dia, nada de Rainha chegar, ai Marli desmaiou.o pode
fazer assim. Eu quando fui Rainha,o fiz assimo. Andar só um
pedacinho e assentar é demais. Todo mundo fica cansado. Os Dançantes
cantando: “Senhor Rei mandou dizer, senhor Rei mandou chamar”. E a
Rainha levantava um pouquinho e assentava de novo. “- Sai, sai, engomo
sai, sai, sai do caminho, que eu quero passar. Senhor Juiz mandou chamar,
Senhor rei mandou chamar”. E ela lá sentadona. A rainha usa uma touca, não
é essa coroa. Antigamente era touca, não era coroa.
149
De acordo com a tradição o cortejo é recebido com muitos foguetes, papel colorido
picado ou pétalas de flores, em todas as entregas dos festeiros. Após as orações e cânticos, os
donos da casa oferecerem biscoitos, aluá e licores variados. Enquanto estão servindo as
147
O coral Consciência Negra, é composto em sua maioria de mulheres, o que não quer dizer que não participe
também alguns homens. Apresenta-se durante as missas de São Benedito.
148
Segundo observações durante a pesquisa nas festas em 1998/99. CASTELNAU observou que na procissão
em homenagem a Santo Antônio em Vila Bela, no ano de 1845, em alguns momentos uma menina vestida com
roupas brancas subia numa cadeira trazida por um negro, e recitava versos em honra ao santo, por entre o
barulho dos tambores, trombetas e cânticos próprios do dia.( s/d, p.364-367).
149
Relato de dona Andreza Pires de Almeida da Cruz. Vila Bela, 1999.
141
pessoas, pode ser que seja iniciado um animado Chorado. Após um sinal do Rei do Congo e
do Embaixador, o cortejo continua a caminhada, em direção á casa de outro festeiro. Por volta
das doze horas, dirigem-se para o Centro Comunitário ou para a residência da festeira, local
onde é servido o almoço, oferecido pela Rainha.
É um momento significativo, em que pode-se perceber plasmadas nas pessoas
diferentes expressões de alegria e prazer pelo simples fato da saciedade, simbolizando a
fartura da festa.Também manifestações de poder, estabelecimentos de acordos, obrigações,
fortalecimento dos vínculos de amizade e solidariedade.
Nesses banquetes, momentos do consumo coletivo dos alimentos, o ato da
comensalidade, pode ser visto como:
Uma maneira de promover a solidariedade e de reforçar os laços do grupo,
pois entre os que comem e bebem juntos em geral,nculos de amizade, e
de obrigações mútuas, significando as diferentes maneiras de se relacionar
que as pessoas estabelecem espontaneamente entre si, nas quais predomina a
formação de laços sociais. (
ROLIM, 1997, p.7).
Após o almoço, a um sinal do Embaixador, os Dançantes do Congo se organizam e
reiniciam a peregrinação para a entrega do restante dos festeiros, atividade que se prolonga até
a noite, quando é servido o jantar, uma atribuição do Rei.
Na terça-feira, têm continuidade as homenagens para São Benedito. De manhã, muitos
foguetes, tocar dos sinos, com os Dançantes novamente buscando os festeiros em suas casas,
para participarem da missa solene, responsabilidade da Irmandade de São Benedito. É uma
cerimônia que leva muitas pessoas às lágrimas, junto de demonstrações e expressões de
agradecimentos e louvores ao santo. Logo após o ocio religioso, acontece a cerimônia de
entrega da festa do próximo ano para os novos festeiros. Muitos se emocionam,
especialmente quando as insígnias são trocadas entre os Juizes, ou seja, as egies de prata
enfeitadas com fitas e flores, que os novos Juizes entregam aos que estão largando a festa, que
por sua vez recebem efígies semelhantes às que entregaram, só que um pouco menores.
142
A Rainha recebe um cetro enfeitado e o Rei uma bengala coberta de papel dourado.
Essa troca e recebimento de insígnias é uma demonstração de que os antigos festeiros
cumpriram satisfatoriamente seus papeis, assegurando a reprodução do culto comunitário ao
santo maior, tornam-se credores do prestígio e da reverência da comunidade enquanto dure a
festa. (BANDEIRA, 1985, p.228-242).
Em seguida, após muitos cânticos, louvores, cumprimentos e agradecimentos, uma
grande concentração de pessoas vindas das cidades vizinhas e mais distantes, dos sítios e
fazendas, de pesquisadores, estudantes de escolas e de universidades, autoridades civis,
religiosas e poticas, se rnem à frente da igreja, onde acontece a apresentação dos
Dançantes do Congo e Dançarinas do Chorado, saudando os antigos e novos festeiros.Todos
os anos marcam presença, nesse dia de homenagens a São Benedito, representantes do
governo do Estado de Mato Grosso ou o próprio governador, alguns senadores, deputados,
representantes de partidos poticos e entidades, músicos, cantores e demais pessoas
interessadas em participar dos festejos. De acordo com comentários de moradores locais,
aumenta cada vez mais omero de pessoas que se dirigem até Vila Bela, principalmente
nesses dias dedicados ao Benedito.
Após as apresentações dos dançantes e das dançarinas, tem inicio o ritual de entrega
de todos os festeiros, de manhã aqueles que foram escolhidos para a próxima festa, e pela
tarde aqueles que estão entregando a festa. Em todas as casas em meio a muita emoção,
acontecem as orações de agradecimento, e posteriormente são servidas as bebidas e os
biscoitos. Nesse dia, segundo informações dos moradores e festeiros, o almoço é
responsabilidade da Juíza e o jantar por conta do Juiz.
Durante o almoço oferecido pela Rainha no ano de 1998, percebemos um grande
número de pessoas no salão do Centro Comunitário, onde normalmente são colocadas mesas
para os convidados, festeiros atuais e antigos e Dançantes do Congo. Foi tão grande o
143
acúmulo de pessoas no salão, que os dançantes, considerados pela comunidade como os
principais da festa e que por isso, devem ser servidos com destaque especial, tiveram suas
mesas ocupadas pelos visitantes, sobretudo políticos. Criou-se um mal estar, percebido pelo
grupo de festeiros e familiares, que bastante constrangidos trataram de providenciar
rapidamente um local adequado para que os dançantes e familiares pudessem almoçar.
Foto 10 - Embaixador do Congo no Centro Comunitário
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Algumas senhoras pertencentes à geração mais antiga, como dona Rosa de Lima
Frazão de Almeida, afirmam que antes os festeiros colocavam mesas durante os banquetes,
somente para os irmãos da Irmandade, festeiros atuais e antigos, dançantes, padres que
vinham nesta ocasião e demais autoridades. Segundo ela:
144
Agorao tem mais isso de colocar mesa separada para os irmãos da
Irmandade. Quanto aos padres, existem alguns que o almoçar ou jantar nas
festas, misturado com as pessoas. Até as crianças não separam mais dos
adultos na hora de comerem a comida nas festas. Naquele tempo, criaa
comia separado, naqueles vasilhões grandes, a gamela. Antes era menos
gente, era mais fácil servir as pessoas e ser servido.
150
Foto 11 - Mesa separada para os festeiros antigos
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Necessário atentar para a mobilidade da Festança, ultrapassando os limites até então
vistos como representativos, exigindo estratégias de enfrentamento a essa nova realidade.
Necessário atentar para estes novos processos e sua representatividade sócio-cultural.
Pela tarde, após a peregrinação pelas ruas da cidade, até que tenha sido efetivada a
entrega de todos os festeiros em suas casas, pode ser que os dançantes se concentrem em
algum local escolhido por eles. São momentos em que o sagrado toma características do
profano, através da grande euforia reinante, propiciada não só pelo farto consumo das
bebidas, mas segundo muitos moradores, mais um momento de comemoração no espaço da
150
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1999.
145
Festança, toda ela um grande espaço sagrado, impregnado de exercícios de memória, onde a
comunidade demonstra por meio de cada ritual, seus valores culturais e sua ligação com o
santo festejado.
Ressaltamos que durante o transcorrer dos cortejos, também uma homenagem ao
Benedito, percebe-se muita alegria, tanto entre os dançantes do Congo como entre as pessoas
acompanhantes.
À noite, tem inicio o jantar oferecido pelo Juiz. Em 1998, o Juiz sr. Geraldo Avelino
de Lima, ofereceu o jantar nas dependências da casa de seus familiares, com grande
aglomeração de pessoas e dificuldades para que as pessoas da casa pudessem servir a contento
todos os presentes.
E é São Benedito quem, uma semana após realização da festa em homenagem à
Santíssima Trindade, encerra o ciclo anual da Festança, recebendo carinhosas atenções dos
devotos, no decorrer do ritual da entrega da festa aos novos festeiros. Numa cerimônia mais
familiar, com pouca participação das pessoas de fora, que normalmente comparecem muito
mais na semana das festividades, grupos de moradores da cidade, devotos de São Benedito,
familiares dos festeiros e festeiras, entoando cânticos em louvor aos santos e especialmente a
São Benedito, acompanham os novos Rei, Rainha, Juiz, Juíza, e Ramalhetes, até a casa da
Rainha que largou a festa, ou seja, a festeira que entregou o cargo de Rainha.
São momentos impregnados de muita devoção, em que acontecem a reza do terço,
orações e cânticos de louvor e agradecimentos a São Benedito. A Rainha anterior bastante
emocionada, na maioria das vezes até as lágrimas, faz a entrega para a nova Rainha, da
imagem do santo,
151
uma representação daquele que ficou em companhia da família por todo
o ano. Acompanha o santo uma mala. Nesta mala são guardadas peças do seu vestuário, como
também pedaços de tecido para serem feitas túnicas para o mesmo e que foram doadas por
151
De acordo com as informações de dona Nezia Profeta Ribeiro, essa imagem de São Benedito, caracteriza-
se por ser mais preta, e nunca ficou exposta na igreja, porque sempre é repassada de uma rainha para a outra, e
deve sempre estar no altar da casa da festeira Vila Bela, 1998.
146
fiéis como pagamento de promessas. Segundo dona Ivete Gonçalves de Paula
152
durante todo
o ano, ou seja, de uma festa a outra, a imagem de São Benedito juntamente com a sua mala,
fica na casa da Rainha, num espaço aberto à comunidade, normalmente na sala de visitas,
onde são realizadas orações diárias de louvor ao santo, e sempre são deixadas doações em
velas, para iluminar a imagem no altar. Semanalmente trocam a indumentária do santo.
Após as orações, cânticos de louvores costumeiros e agradecimentos a São Benedito e
comunidade, é costume a Rainha e familiares servirem biscoitos, Aluá e canjinjin, para as
pessoas presentes. Em seguida, tem início um cortejo, com a imagem do santo e a sua mala à
frente, dirigindo-se até a casa da nova Rainha, onde o séqüito já esperado, é recepcionado
carinhosamente pela nova Rainha, familiares e pessoas presentes. Muita emoção que chega
até as lágrimas, principalmente quando São Benedito e a sua pequena mala é colocado num
altar previamente preparado em lugar de destaque na sala de visitas. Após um novo momento
de orações e louvores, acontece nova confraternização, acompanhada de distribuição de
Canjinjin, Aluá e biscoitos aos presentes.
2. 3. Representação da Dança do Congo
Embora a população de Vila Bela seja formada por grupos sociais que são parte da
sociedade da escrita, a oralidade ainda redefine algumas de suas práticas culturais,
[...]tradição oral que carrega e transmite todas as experiências: as do mundo
religioso, seus santos, suas devoções, suas rezas, milagres, as do mundo
sobrenatural, no enfrentamento dos desafios impostos pelo meio ambiente, o
cultivo da terra, as doenças, bem como as experiências com o mundo do
lazer e do divertimento, que passa principalmente pelas festas dos
santos.(
LEITE DA SILVA, 2002, p.88)
152
Relato de dona Ivete Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1999.
147
A Dança do Congo faz parte dessa oralidade. As músicas, a batida dos tambores, as
danças, as conversas entre os participantes, propiciam processos de despertar da memória,
ocorrendo uma transferência de experiências e aprendizados. Principalmente nos dias que
antecedem a Festança, quando o grupo de Dançantes ensaia diariamente pelas ruas da cidade
ou em um local previamente escolhido, preparando-se para as apresentações em homenagem a
São Benedito. São momentos em que muitos moradores vão assistir a estes ensaios, como
também antigos daantes, festeiros, irmãos da Irmandade de São Benedito, jovens e criaas.
Lembraas que mediante esses contatos, levam as pessoas a associar
impressões significativas do passado. Momentos vividos, preenchendo o
agora com referências construídas no contato com os outros, no qual a
identidade se constitui, pois somos o que aquilo que lembramos. Além dos
afetos que alimentamos, a nossa riqueza são os pensamentos que pensamos,
asões que cumprimos, lembraas que conservamos e não deixamos
apagar e das quais somos o único guardião
.(GROSSI; FERREIRA, 2000,
p.32).
Nazário Frazão de Almeida, morador de Vila Bela, apresenta a sua construção sobre a
Dança do Congo. Segundo seus relatos, elaborados num texto, a dança do Congo surgiu com
a vinda dos escravos africanos de origem da Guiné para Vila Bela. Aqui desenvolveram suas
atividades e de acordo com as regras de seus costumes, a dança é representada por uma
disputa de poder entre o reinado e a comunidade negra escrava. O reinado é representado pelo
Rei do Congo, Secretário de Guerra, e o Príncipe. A comunidade é representada pelo
Embaixador, figura chefe e seus soldados rebeldes. (FRAZÃO DE ALMEIDA, s/d).
Discorrendo sobre as Congadas, Carlos Rodrigues Brandão (BRANDÃO, 1987,
p.191-220)
153
afirma que formais e culturalmente africanas, têm em sua composição fatos da
153
Segundo Brandão, a mais antiga nação de congada registrada, data de 1700, em Iguarassu (PE). Entretanto, as
mesmas já existiam desde o século XVII. Cada paróquia tinha um Rei, sua Rainha, um Secretário de Estado, um
Mestre de Campo, um Arauto de Armas e as Damas de Honra, e as danças variavam, conforme a etnia do Rei. /
SCHWARCZ, MENDONÇA de MACEDO, 1990, comentam que de acordo com as informações de Alfredo
João Rabaçal, o primeiro registro de congadas data de 6 de junho de 1760, quando na cidade de Santo Amaro-
BA, comemorava-se o casamento de D. Maria I de Portugal com o príncipe D. Pedro. As autoras apontam duas
outras congadas, realizadas em 1793, para festejar o nascimento da princesa da Beira e em 1818, no Tijuco-MG,
148
história e dos mitos de identidade de suas sociedades originárias, ao lado de elementos de
tradição católica e euroia. Explica também que as resistências culturais de grupos, nações e
religes africanas não impediram as práticas do catolicismo, fator que propiciou a ocorrência
de processo de hibridizações. O cristianismo era aparentemente aceito e assimilado pela
maioria dos negros, resultando uma distorção dos ritos e a incorporação de tradições em que
eram unidas as danças profanas às festas religiosas africanas. Esta junção ou introdução de
elementos da cultura negra possibilitou a preservação de valores africanos nativos, embora
disfarçados sob a máscara cristã. Ainda segundo Brandão, essas práticas se davam com maior
freqüência nos núcleos urbanos, onde era mais fácil a aproximação de indivíduos da mesma
origem.
As Congadas eram permitidas porque a igreja e os senhores encontravam nas
mesmas, elementos preservadores da ordem, ao mesmo tempo em que poderiam satisfazer os
escravos sem colocar em risco a segurança coletiva. Estes costumes se estenderam pelo país,
sendo que as festas preparadas com antecedência, compreendiam pedir esmolas tanto aos
negros quanto aos brancos, para as despesas com a cerimônia. (BRANDÃO, 1987, p.191-220;
SCHWARCZ; MENDONÇA DE MACEDO, 1990, p.274).
Simulando combates entre cristãos e mouros, os participantes da congada, escravos,
libertos, negros ou descendentes de africanos, participavam de um enredo em que o rei do
Congo, o rei dos cristãos, recebia uma embaixada do rei dos Mouros, a qual, em algumas
variantes, poderia ser a embaixada da rainha Ginga. Em questão, estava a conversão dos
infiéis, que, recusando o pedido, entravam imediatamente em conflito. Simulados por meio de
bailados, os embates se desenvolviam, até que os mouros eram derrotados e convertidos ao
cristianismo.Segundo Brandão, em várias cidades do Brasil, existiam representações da Dança
do Congo, cortejos de reis coroados e acompanhados por dançantes do Congo, dançantes de
como parte das festividades populares da coroação de D. João VI. Observam que ambas ocorreram em
momentos em que se comemoravam eventos políticos relacionados à realeza portuguesa. As autoras comentam
também que é ainda Rabaçal quem descobriu registros históricos da existência da congada em todos os Estados
brasileiros.
149
Mambiques e de outros ritmos, passos e cantos, em nome de santos padroeiros invocados
em seus batuques, e patrocinados por uma irmandade de santo de preto, seja de Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia ou mesmo Santo Antônio. Sobre as atuais
festas do Congo, apresenta os resultados dos estudos que realizou sobre as festas do Congo da
Cidade de Goiás, Pirenópolis, e Catalão, ambas localizadas no Estado de Goiás. Indica
também algumas conclusões como: os modos como os negros festejam e cultuam
coletivamente os seus santos; a diversidade de formas de culto expressando variações locais
de cerimônias religiosas-populares, configuradas em torno da coroação de reis, cortejo
público processional e missa dedicada à Irmandade. Coloca também que os indicadores mais
importantes para o estudo dos rituais dos negros católicos são os graus e as modalidades de
sua inclusão na estrutura da festa e na ordem da igreja local. ( BRANDÃO, 1987, p.191-202).
Maria de Lourdes Bandeira faz referências sobre o Congo de Vila Bela, a partir de
Polh, quando este autor registra a realização de Congadas em Vila Boa, na Província de Goiás
em 1819. Considerando as ligações existentes entre Vila Bela e Vila Boa no final do século
XVIII e icio do século XIX, quando a Província de Goiás enviava ouro para socorrer os
cofres de Vila Bela, e momento em foram comercializados escravos para Vila Bela, via Vila
Boa, não seria sem fundamento supor certa homogeneidade de práticas populares nas duas
capitais de Província, no final do século XVIII. (BANDEIRA, 1985, p.233).
Mauro Néres de Assunção,
154
ex-dançante do Congo, nos apresentou a sua
interpretação sobre a dança do Congo, por meio de uma minuciosa descrição. Segundo o sr.
Mauro, de acordo com critérios anteriormente discutidos com os festeiros, é costume os
dançantes usarem calças de cor escura e camisas amarelas, azuis ou estampadas,. Também
uma faixa de cetim azul ou verde cruzada no peito, e na cabeça um capacete enfeitado com
penas de ema e fitas coloridas. Trazem presos na cintura uma espada e um cantil onde
154
Mauro Néres de Assunção, é natural de Vila Bela, mas atualmente reside na cidade de Cáceres. Foi dançante
do Congo quando residia em Vila Bela
150
colocam o Canjinjin, bebida alcoólica feita com pinga, ervas e especiarias. Continuando a sua
interpretação, informa que o rei do Congo, é um cargo vitacio, e o mesmo é responsável pela
convocação, seleção e organização dos dançantes, dos músicos, escolha do Secretário e do
Kanjinjin,
155
direção dos ensaios, das falas e cantos. Usa um grande manto amarelo amarrado
ao pescoço, uma coroa dourada e na mão carrega um bastão de madeira escura, com
ornamentos entalhados em forma de folhas, pintadas de dourado, que é passado de um Rei
para outro. Outro personagem importante é o Secretário do Rei, que auxilia o mesmo nas
diversas atribuições, tendo também o papel de Secretário de Guerra e Comandante Chefe das
Forças do Rei, comandando também a guerra contra as forças do Rei de Bamba. Usa saia
vermelha com um aro de arame na barra que lhe dá uma armação peculiar. Tem prendido ao
pescoço um escudo em forma de coração, enfeitado com motivos florais e botões de papel
laminado dourado, um chapéu forrado de azul-claro, enfeitado de flores coloridas e uma
espada enfeitada e coberta de papel laminado, além do cantil.
156
O Príncipe ou Kanjinjin é representado por um jovem de 10 a 13 anos, usando um
vestuário semelhante ao usado pelo Secretário, sendo as meias e a camisa de cor azul clara e a
saia amarela. O Embaixador, personagem que comanda a dança do Congo, usa calça azul
marinho, camisa branca, capa amarela dourada, traz um guizo preso ao tornozelo direito e seu
capacete é semelhante ao dos dançantes, só que é mais alto e com enfeites bem coloridos,
além de uma espada e do cantil. Os instrumentos utilizados para a execução das músicas e
danças são duas violas de cocho, dois chocalhos, dois tambores, dois reco-reco.
157
Responsáveis por parte do brilhantismo das homenagens a São Benedito, a
apresentação da dança tem inicio com a chegada do Rei e do Príncipe do Congo, que
acompanhados por dois dançantes, representando dois soldados, assentam-se diante da porta
da igreja, tendo do lado direito a Rainha, os Ramalhetes, além de várias pessoas como padres,
155
Kanjinjin, é Príncipe, filho do rei do Congo. É representado por um jovem de 10 a 13 anos.
156
Informações cedidas pelo sr Mauro Néres de Assunção. Cáceres, 1999.
151
bispo, poticos, e demais convidados dos festeiros, para ocuparem estes lugares considerados
especiais pela comunidade.
O Embaixador dá a ordem de comando e o Rei do Congo dá as suas ordens falando
três vezes: -“ Olá, olá, olá, Secretário de minha realistar”. Após as apresentações de alguns
cânticos pelos Dançantes, o Rei fala: - “Olá, olá, olá, Secretário de minha realistar”. O grupo
começa a cantar novamente. O Rei nervoso, diz:
Olá, olá, olá Secretário de minha realistar, vale a minha andeça, vale a minha
Nossa Senhora, onde está o Secretário que não ouve vosso grito, vosso
chamado hoje neste dia? Olá, olá, olá Secretário de minhas setas e coroa,
vale a minha andeça, vale a minha Nossa Senhora, onde está o Secretário
que não ouve vosso grito, vosso chamado neste dia?
Neste momento o Secretário atende o chamado e ajoelha aos pés do Rei e mantêm
com ele o seguinte diálogo:
Secretário: – Rei Senhor, perdoai o vosso grito, vosso chamado hoje neste
dia. Rei: - Secretário de guerra, estava dormindo ou estava acordado?
Secretário: Rei Senhor, não estava dormindo e nem acordado, estava
sarampatado de ver esta buia imantinado, que se o Rei adentro respeita a
vossa coroa.Rei: – Secretário de guerra, vai me congiar bem que genteo
esses! Se for gente de festa combate festa, e maise festa e se for gente de
guerra combate e maise guerra, vai vú! Secretário: - Sim Senhor, engana,
manda puque e mandue escampanha muquê.
158
Este diálogo marca o início da Dança do Congo, que se estende com várias evoluções,
para deleite das pessoas presentes. Terminam com cânticos de louvor a São Benedito, ao
Divino Espírito Santo, comentários jocosos sobre algum acontecimento pomico que esteja
acontecendo na cidade, principalmente àqueles relacionados à potica, e cumprimentos às
pessoas presentes. Terminando a representação, o grupo de dançantes desloca-se para a
158
Pesquisa realizada em Vila Bela nos anos de 1998/1999. Também informações gentilmente cedidas pelo sr
Mauro Néres de Assunção, em Cáceres, no ano de 1999, e por meio de um texto mimeografado escrito pelo
mesmo.
152
continuidade de reconduzirem os festeiros para as suas casas, acompanhados de muita música
e variadas evoluções.
159
Os instrumentos utilizados para a execução das músicas são: viola de cocho; chocalho;
tambor e reco-reco. O grupo de dançantes é composto por vinte e quatro soldados, vestidos
com chapéus enfeitados com penas de emas, papéis coloridos, toalhas cruzadas no peito e
uma espada simples; o Rei, usando um manto bastante ornamentado, uma coroa feita de
madeira, mas bem enfeitada e carregando o cetro; o Embaixador, comandante das danças,
usando um capacete bem colorido, um manto dourado e trazendo na cintura uma espada; o
secretário, usando um blusão colorido, uma saia bem armada e rodada e trazendo desenhado
no peito um escudo; e o Príncipe, representado por um garoto de 10 a 13 anos de idade,
vestindo-se de modo semelhante ao Secretário.
160
Para o senhor Nazário, o enredo da dança do Congo se dá da seguinte maneira:
O rei do Congo recebe uma carta, onde o Embaixador pede sua filha em
casamento. Julgando isso muito audacioso, o Rei determina ao seu
Secretário que descubra quem era esse povo. O Secretário dirige-se às
comunidades, e fica sabendo de boatos e comentários. Informa ao Rei o
acontecimento, e parte em nova missão. Encontra o grupo rebelde, que se
identifica como os Pretinhos de Guiné, coroados de penas, vestidos de
galassete e metidos em alma contra seu Rei, o monarca.O emissário retornou
para informar ao rei a mensagem. O rei determina com rigor ao Secretário
que se fosse gente de festa que combatesse em festa, se fosse gente de
guerra, que combatesse com guerra. Chegando ao local, o Secretário se
surpreende, com o manifesto dos rebeldes, declarando guerra contra o Rei
monarca. O chefe dos rebeldes representado pelo Embaixador diz:- Vai dar
parte para seu rei que aqui chegou o Embaixador de guerra de Mumbique e
Mumbaca. Que traz cartas e mucamba. Que manda seu Rei morrer de
Bamba. E sem saber que nesta data se festeja o glorioso São Benedito. O
Secretário ajoelha-se diante do Rei e diz:- Os campos estão tomados por
teimosos mumbumbos. Diz que precisaria de um posto maior para vencê-
los.O Rei convoca seu filho, o Príncipe pra ajudar na batalha, dando a chave
dourada do seu peito pra trazer esses fidalgos na sua presença. E assim como
manda a Coroa, diante do pai o filho prometeu que tiraria as cabeças de
todos. Segue junto com o Secretário e lá chegando convocou o Embaixador
para comparecer diante do Rei. O Embaixador obedece ao chamado e
chegando diante do Rei entrega-lhe uma carta. O rei determina ao Secretário
que leia a mesma. A carta dizia:- Meu irmão, Rei do Congo, vos remeto essa
159
Mauro Neres de Assunção, Cáceres, 1999.
160
Idem.
153
mucamba, pelo mesmo Embaixador, mande guerra, que tu prometeste sua
filha princesa Dona Maria Ana de Gouveia. Caso não casar fazerei guerra até
vencer. O rei responde:- Pois essa atrevida mucamba ficará presa no meu
reinado e saberás que meu reinado é lavrado de ouro e prata.O Secretário
volta a campo e pergunta aos rebeldes se conheciam o Secretário de Guerra e
eles dizem:- Não conhecemos. Mas ele usou da força e rendeu os rebeldes,
desarmando todos, humilhando-os, levando-os á presença do rei onde foram
obrigados a pedir desculpas.
161
Para refletir sobre a prática cultural da dança do Congo, buscamos as análises de
Canclini, quando aborda os significados de concepções de patrimônio, e esclarece que as
representações culturais são sempre re-apresentações, teatro, simulacro. O autor afirma
também que a modernidade não suprime as culturas populares tradicionais, que seguem
desenvolvendo-se, transformando-se, sendo que, muitas pticas vistas como subalternas,
aparentemente consagradas a reproduzir a ordem tradicional, podem mesmo ser transgredidas
pelos grupos sociais. (CANCLINI, 1997, p.201).
Seria importante a realização de um estudo comparativo de algumas festas em
homenagem a São Benedito existentes no Estado de Mato Grosso, como as queo realizadas
em Vila Bela, Cuia, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Cáceres, seguindo algumas
questões apontadas por Brandão,
162
em seus estudos sobre as festas do Congo em Goiás:
Como são incluídos e estruturados os modos dos festejos e cultos coletivos aos santos
homenageados.Em quais comemorações estão incluídos os dançantes do Congo, e como se
dão as modalidades de inclusão dos rituais dos mesmos na estrutura da festa e na ordem da
igreja local.
161
Relatos contidos em um texto elaborado pelo sr. Nazário de Almeida Frazão. Vila Bela, s/d.
162
BRANDÃO, 1987,p.210-220.
154
2. 4 - O encanto do Chorado
O Chorado é uma dança onde as mulheres, com uma garrafa de bebida equilibrada na
cabeça, dançam gesticulando as mãos e bamboleando os quadris, acompanhando os sons
produzidos por outras mulheres que, batendo com as mãos em bancos, mesas ou cadeiras,
cantam várias músicas, normalmente acompanhadas pelas pessoas presentes. Segundo Maria
de Lourdes Bandeira, o Chorado é “uma mistura dos bailados pastoris portugueses, adaptado
ao ritmo e coreografia africanos, que integrou-se às festas em homenagem aos Santos, com a
transferência da capital para Cuiabá.(BANDEIRA, 1985, p.208-209).
Bem-ti-vi bateu asa,
bateu asa e voou.
Bem-ti-vi foi pra bem longe,
lembranças ao meu amor.
Eu vou embora,
Euo volto mais aqui,
Eu vou morar na mata,
Onde canta o juriti
Eu era quem ti dizia,
Tu eras que duvidava,
que no fim do nosso amor,
tu eras quem me deixava.
Adeus, passarinho,
Adeus, passarinho,
Adeus, que já vou-me embora.
163
O som e as letras das músicas normalmente relatam o cotidiano, e são acompanhados
pela graciosidade dos movimentos das dançarinas. Envolvem a maioria das pessoas, que
163
Letra de música gravada no decorrer da realização da pesquisa durante a Festança de 1998. Faz parte da
coletânea de músicas cantadas durante as Alvoradas, nos diferentes momentos em que o Chorado é dançado.
Existe um CD gravado pelo grupo “Aurora do Quariterê,” formado por cantoras e cantores de Vila Bela. São
apresentadas várias músicas de “domínio público,” e os textos, da autoria do sr. Joaquim das Neves Fernandes
Leite, o “Poeta,” compõem um discurso em que a preocupação principal está na produção de identidades através
de descrições ressaltando aspectos naturais da cidade, como o rio Guaporé, cascata dos Namorados, fauna local e
elementos considerados pelo autor do texto, como constitutivos da meria da cidade: as recordações dos
moradores, além das ruínas da matriz, e o palácio dos Capitães Generais. A música é colocada como “a
memória dos antepassados de Vila Bela, presente no cotidiano dos negros brasileiros como forte expressão dos
desejos, sentimentos de luta, lamentações, alegria e glória de um povo, que escreveu sua história com sangue nas
terras do Brasil, localizadas no extremo oeste brasileiro. As raízes deste povo se perpetuaram atras do Congo,
Chorado, dança do tambor, batuque, marujo e outros.” Fonte: CD:Aurora do Quariterê, de Vila Bela da
Santíssima Trindade MT. Gravado no Studio Digital, Cuiabá- MT. s/d.
155
encantadas assistem ou participam da dança, quando são convidadas, e por isso “enlaçadas”
com um lenço no pescoço, colocadas no centro da roda formada pelas dançarinas, e somente
soltas depois que pagam a prenda, ou seja, uma bebida para o grupo.
Relatos apontam que dançar o Chorado era uma forma das escravas em Vila Bela,
pedirem clemência aos seus senhores, quando tinham seus filhos ou companheiros castigados.
Uniam-se em grupos e se dirigiam até onde estivesse o senhor, dançando graciosamente,
como um articio para agradar e pedir perdão para os prisioneiros. Era também comum, os
senhores escolherem as escravas mais bonitas e obrigá-las a dançar, como forma de
entretenimento dos mesmos nos momentos de lazer e nos finais das festas. Segundo o sr.
Elízio Ferreira de Souza:
A dança do Chorado era um dos artifícios usados pelas es ou esposas
escravas, quando seus filhos ou esposos eram presos e duramente castigados
ou condenados á morte. Elas se reuniam, formavam grupos, vestiam-se da
melhor maneira possível, e se dirigiam até as residências de seus senhores-
patrões. Lá, dançavam com uma garrafa na cabeça, para se enfeitarem
perante suas presenças em forma de agrado. Amarravam um lenço no
pescoço e em seguida aproveitavam para fazerem seus pedidos de alivio ou
liberdade dos prisioneiros. Pedidos que muitas vezes eram atendidos.
Também ao final das festas ou lazer dos Srs. Capitães Generais ou Patrões
era costume convocarem as escravas de mais destaque, simpatia e beleza,
para se apresentarem ainda mais perante eles, suas belezas, através da dança.
Porque não dizer, que por ai também surgiram alguns namoros secretamente
entre patrões e escravas, e conseqüentemente as misturas das raças. Tinham-
se os pontos para os encontros festivos, destacando-se o jardim que existia
ao lado da igreja de Santo Antônio, embelezado por plantas naturais.Com a
transferência da capital, mudaram-se também as pessoas de destaque,
ficando a cidade em abandono. A partir daí, a dança do Chorado integrou-se
junto à Festança, conjunto de festas, que ocorria de comum acordo com o
padre, que se deslocava da cidade de Cáceres, uma vez por ano, a fim de
atender naquela oportunidade os batizados, as crismas, os casamentos, etc.A
dança do Chorado passou a ser representada pelas cozinheiras da Festança,
que no decorrer dos episódios não podiam participar da referida festividade.
Elas se agrupavam em um determinado local, um pouco secreto, a porta
semi-aberta. Com o barulho do rufar dos tambores, atraiam os curiosos,
principalmente os homens, que eram convidados para entrarem no recinto e
eram presos, amarrados por um lenço sobre o pescoço, e convidados a
fazerem parte na daa. Enquanto isso, o prisioneiro era obrigado a pagar
alguma espécie de bebida, para animão da festa. Em seguida era libertado
e assim sucessivamente. (
FERREIRA DE SOUZ, s/d).
156
Atualmente o Chorado é dançado pelas mulheres nas casas dos festeiros após as rezas,
novenas, nos momentos em que os participantes da Alvorada estão visitando as casa, nas
cozinhas das festas dos santos após o término das tarefas, após a missa no dia da festa em
homenagem a São Benedito e em apresentações públicas fora da cidade.
Momentos das muitas Andreza, Vitória, Gregória, Cecília, Benedita, Anastácia,
Maximiana, Maria das Neves, Jerônima, Ambrosina, Beatriz, Silvéria, Laurice, Tereza,
Heloisa, Catarina, Inês, Ana Jonas, Doca, Rosa, Elza, Cira, Odete, Marli, Zobeida,
Constantina, Olívia, Ana Maria, Modesta, Maria José, Tomázia, Ana das Neves, Vanira,
Adnair, Iraci, Maurília, Valda, Ana Tarcila, Heide, Ivone, Cota, Eduarda, Cirila, Nemézia,
Astrogilda,zima,
164
enfim, boa parte das mulheres, dançarem o Chorado, fazendo com que
o mesmo se transforme além de um exercício de revigoramento da memória, numa
representação do êxito e alegria pela realização dos trabalhos dedicados aos Santos.
Discorrendo sobre o Chorado, Isaias explica que até algum tempo atrás, o mesmo era
dançado mais puro, de uma maneira mais suave, com as dançarinas formando uma roda, e
uma delas, normalmente a que era considerada a melhor dançarina, colocando-se no centro, e
amarrando um lenço na garrafa de bebida. Em seguida, dançava até pegar a garrafa com a
boca, desamarrava o lenço, colocava a garrafa na cabeça e em seguida esperava a reverência
de um homem. Então, saia da roda, e juntamente com as outras mulheres faziam duas fileiras
como quadrilha, dançando par com par ou o vis-a-vis.
165
Dando seqüência aos relatos, Isaias reafirma que no decorrer da Festança, o Chorado é
dançado nos dois primeiros dias das homenagens a São Benedito, após a entrega dos festeiros
e festeiras em suas casas, após as rezas, novenas nas casas, nas Alvoradas, e até pouco tempo,
em todas as cozinhas das festas. É também dançado em algumas casas enquanto é servido às
pessoas o beseque, ou seja, as iguarias como os sequilhos, bolo de arroz, licores, a pinga e até
164
Relação de algumas moradoras de Vila Bela que dançam o Chorado. Esses nomes foram anotados durante a
realização da pesquisa em 1998 / 1999.
165
Segundo Isaias Gonçalves de Paula, ovis-à-vis significa frente a frente.
157
alguns anos atrás, cigarros e charutos
166
para os fumantes.. Lembra também que atualmente o
Chorado não é apresentado em sua forma pura, porque está misturado com o batuque, e as
músicas cantadas são em sua maioria as músicas do batuque, que só era dançado pelas
cozinheiras no terceiro dia da festa. Cita como música característica do Chorado, o “Bem-te-
vi”.
167
Bandeira, em suas análises sobre o Chorado, menciona a existência da dança do
Tambor, nome local do Batuque, que era normalmente dançado nas festas locais, e rivalizava-
se com o Chorado nas festas dos santos. Destaca também que no período em que realizou a
sua pesquisa em Vila Bela, o Tambor estava em franco desaparecimento. As mulheres que
dançavam o Tambor, em sua maioria mais idosas, eram muito prestigiadas pela comunidade,
através de referências elogiosas e respeitosas sobre o saber tocar, cantar e dançar bem essa
dança, fonte de prestigio nas festas. As letras das músicas cantadas abordavam o cotidiano da
senzala, evocando acontecimentos ou situações que denotavam a relação escravo-senhor.
Geralmente compostas de dois versos, que eram repetidos várias vezes, sendo o primeiro
verso cantado em solo pelo tirador de canto, e o segundo por todos os participantes em coro:
No casamento de Sin
teve muito peru, muita galinha,
sobró sarapinha pro gato comê
Joaquim de Santana
cadê a .tá lá no morro
torrano de farinha.
Meia quarta de farinha
Todo mundo quer compra
Maria Vai, vai e vai
Qui eu também vou, Mariá
Sinhá Berta e Mariana
Tudo tem um parece, Mariá
Sinhá Berta tem um jeitinho
Põe Sinhá Marciana a perde, Maria
Ai cachorro num late no meu quintal
Au, au, au no seu quintal
166
Segundo informações de Isaias Gonçalves de Paula, era costume os festeiros oferecerem cigarros e charutos
aos fumantes presentes nestas rezas. Estes cigarros e charutos eram confeccionados com fumo plantado na
região, em sua maioria pelos próprios festeiros. Vila Bela, 1999
167
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela em 1999.
158
Au, au, au no seu quintal”
168
Ainda segundo Bandeira, destacava-se o ritmo exuberante e envolvente dos tambores e
a coreografia elaborada pelos pares que se exibiam no centro da roda e depois puxavam
através de umbigadas, outros pares para o centro, ocupando seus lugares na roda. Ressalta que
algumas músicas e detalhes da coreografia do Tambor, estão sendo atualmente incorporados
pelo Chorado. (BANDEIRA, 1985, p.26 e p.208-210).
169
Durante o período da Festança, é tradição de cada festeiro e festeira, organizar a sua
equipe de cozinheiras e ajudantes, formada por parentes, amigos, comadres, compadres,
promesseiros e promesseiras. Esse grupo de trabalho não participa das comemorações
festivas, porque estão empenhados na preparação das comidas a serem oferecidas às pessoas.
Segundo as lembranças de várias cozinheiras, na quarta feira, após a festa para São Benedito,
era costume os festeiros se reunirem e organizarem o ritual de lavagem das panelas que são as
atividades pertinentes à entrega dos vasilhames utilizados na festa desse santo. Era o dia em
que os Dançantes do Congo e as cozinheiras eram homenageados pelos festeiros e
comunidade. As cozinheiras, porque trabalharam todo o período da festa, e os dançantes
porque de acordo com o costume, não poderiam se exceder na bebida alcoólica durante o
período em que estavam dançando para São Benedito. Era um dia festivo para esses grupos e
seus familiares. Muita bebida, comida e Chorado o dia todo. Dona Rosa diz que:
Antes os dançantes bebiam a pinga,o tinha o canjinjin. Era só pinga boa,
especial, que colocavam no cantil que carregavam. Assim é que era. Um
dançante, meu vizinho,o tomava nada, nem o aluá. Não tomava o aluá,
porque atrapalha a voz, a voz acaba. Eles não tomavam o aluá, os Daantes.
Eles não comiam doces. A festa deles, quando era quarta feira, ai sim, eles
iam comer um doce, o biscoito de ramo. Nos dias da festa, era só a bóia,
outras coisas, o resto, só na quarta feira. Ai era a festa dos dançantes, sem
compromisso com nada. Hoje alguns bebem. Agora, se o álcool entra na
168
BANDEIRA, 1985, p.208-210
169
A pesquisa de Bandeira foi realizada nos anos de 1981 a 1984. .”(BANDEIRA, 1988, p.210)”.Durante a
pesquisa que realizamos nos anos de 1998/1999/2000, não vimos a apresentação do Tambor ou Batuque.
159
cabeça,o sabem o que o fazer. Antes eles tomavam só um pouquinho de
pinga.
170
A dança do Chorado pode ser descrita como um fato social, ligado ao passado pelas
lembranças das mulheres nomeadas como as Dançarinas de Chorado.” Em cada momento
em que reapresentam a dança, são fortalecidos os laços de pertencimento ao grupo, e a
necessidade da preservação dessas práticas culturais próprias, garantia da continuidade e
singularidade do grupo. (POLLACK, 1989, p.3-15). “A vida de cada uma é uma totalidade,
entrecruzamentos diversos que conformam a dinâmica do viver parte de um amálgama maior
que é a coletividade.” (NEVES, 2000, p.109-115).
Diferenciam-se de outros grupos sociais, daqueles que não sabem dançar o chorado, e
reforçam o sentimento de pertencer ao grupo de dançarinas, ocorrendo, portanto, um
revigoramento do passado. Segundo Halbawchs, a imagem de si para si e para o outro é
elemento fundamental no sentimento de continuidade e de coencia de um indiduo, de um
grupo, em sua reconstrução de si, aliada á necessidade da preservação de práticas culturais
específicas, garantia da singularidade do grupo.
A força dos diferentes pontos de referência, tais como as datas, as tradições,
os costumes, as músicas, a culinária, as paisagens, realizam um processo de
estruturação da meria dos indivíduos, introduzindo-os na coletividade a
que pertencem. Ocorre um processo de seletividade, de conciliação da
memória coletiva com a individual,resultado da existência de pontos de
contato entre ambas, o que permite que as lembraas sejam reconstruídas
numa base comum. As relações dentro dos quadros sociais da meria não
ficam restritas ao mundo da pessoa, mas se estendem a uma realidade além
desta pessoa, até o grupo da qual faz parte.
(HALBAWCHS,2000, p.109-
115).
170
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1998.
160
Estas formulações teóricas nos auxiliaram a entender melhor, os relatos de algumas
senhoras, antigas dançarinas de Chorado, em que a partir das representações presentes,
reconstroem um passado.
Antigamente a dança do Chorado o era como agora. Agora como um
uniforme. Anteso era assim. Todo mundo daava de sapato, cada um
com o seu vestido, seu modelo que queria, e a garrafa na cabeça, o que
quisesse. Tinha muitas músicas que agora a gente nem sabe mais. Os mais
velhos sabiam, tudo já morreu.Agora já tão inventando. Nós agora não
sabemos mais muita coisa. A dança do Chorado de antigamenteo era pra
criança, era pros velhos. As pessoas velhas é que dançavam o Chorado. O
pessoal ria de ver certas velhas, já não agüentavam mais nada e dançando o
Chorado.o aentavam nem andar mais e dançando o Chorado. Agora ta
pra moçada, tudo ta dançando Chorado. Antigamente o era assim não.
171
São relatos que deixam também implícitos os conflitos, as insatisfações e
preocupações com uma representação considerada parte do patrimônio cultural de Vila Bela.
Podemos perceber essas questões em dona Ana Jonas:
São Benedito era ts dias de festa. Comava na segunda feira e ia até a
quarta feira, com a lavagem das panelas. Daavam muito Chorado, iam as
cozinheiras tudo, depois que faziam a limpeza das panelas, que encerravam
tudo, daavam. Eu danço o Chorado um pouco. O Chorado tem que dançar
bonito mesmo. As velhas daqui daavam o Chorado muito bem! Os
homens participam do Chorado também. Hoje ninguém quer saber mais de
dançar Chorado. Era bonita à festa, com Chorado. Acho que não deve deixar
acabar. Conservar sempre.
172
Já dona Maria Madalena afirma que nunca dançou o Chorado. Entretanto, faz questão
de mostrar sua ligação com o mesmo:
Nunca gostei, tenho pavor. Nunca gostei, tenho vergonha, mas gosto muito
de ver as mulheres daar, é muito bonito. Mas eu tenho vergonha de
dançar, com aqueles panos. Baile eu dancei muito, bastante, mas Chorado
o. Mas eu tenho uma sobrinha que daa o Chorado. A Marina. foi até
em Chapada, Cuia, com o grupo do Chorado.
173
171
Relato de dona Andreza Cruz de Almeida. Vila Bela, 1999.
172
Relato de dona Ana Jonas Coelho de Brito. Vila Bela, 1999.
173
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
161
Na trilha das reflexões teóricas de Pollack, podemos considerar que nestes
depoimentos ocorreram processos de seletividade, de conciliação da memória coletiva com a
individual, revelação de lembranças se estendendo em redes sociais, porque as relações dos
quadros sociais da memória não se restringem ao mundo da pessoa, mas a uma realidade
além, até o grupo da qual faz parte. A memória do indivíduo depende de suas relações com os
grupos de convívio e de referência, por isso deve ser entendida como um fenômeno coletivo e
social, construído coletivamente e submetido a constantes transformações. (POLLACK, 1992,
p.200-212).
Ressaltamos que, tanto a Alvorada quanto o Chorado, a dança do Congo e a Folia do
Divino, são rituais escolhidos pelos negros de Vila Bela como parte do um universo cultural,
construído através dos processos de socialização das experiências individuais e coletivas ali
presentes. Através da memória individual e coletiva, são ressignificadas imagens de si, para si
e para o grupo, estratégia fundamental para a continuidade dos indivíduos e grupos, nos
processos de reconstrução de sua cultura. (POLLACK. 1992. p.200-212).
Segundo Guimarães Neto, “só há experiência em sentido pleno quando entram em
conjunção certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo. O passado
emite signos que vale a pena decifrar. Muitas vezes, meras lembraas, reminisncias, que
emergem como sinais involuntários, fiapos desgarrados, mas essencialmente plenos de
revelações”.(GUIMARAES NETO, 2000, p.99-114).
Cada vez que o Chorado é dançado, que a Alvorada é realizada, que os Dançantes do
Congo representam suas danças e músicas, que a Folia é cantada, quando os passos das
danças acompanhadas pelo som dos instrumentos e vozes são percebidos, acontece um
despertar de lembranças de situações e personagens, advindas de momentos distantes do
tempo e o do viver atual dos indiduos. Vesgios cujos significados fazem parte de uma rede
de acontecimentos que mesmo fora deste espaço temporal atual, podem ser reconstituídos por
162
pessoas, acontecimentos no decorrer da vida da comunidade, sentidos e vistos por olhares e
sentimentos contemporâneos.
2. 5. - O canto da Alvorada
Para muitos moradores de Vila Bela, a Alvorada, como parte dos rituais da festança,
representa uma forma de homenagear os santos comemorados. E deve ser seguida, pois
consideram que através da mesma podem manter suas tradições, processos de aprendizagem
dos mais jovens, transferência de valores culturais dos homens e mulheres mais idosos que
estejam participando do evento, e um reforço das tradições para muitos daqueles que estejam
residindo em outras cidades, vindo a Vila Bela somente no período das festas.
A Alvorada assinala o inicio dos festejos seja em homenagem ao Senhor Divino ou à
Santíssima Trindade.
174
No último sábado da semana da festa, quando se aproxima da meia
noite, seu Manoel Frazão, seu Leopoldo Frazão ou dona Astrogilda, tocadores atuais do
sino
175
, envolvem a cidade com os já tão esperados acordes, significando um chamamento
para que as pessoas venham participar da Alvorada.
176
Aqueles que estavam no interior ou na
frente de suas casas, nos bares, nos bancos da praça, aguardando esta chamada, rnem-se à
frente da igreja, e acompanhando os músicos, cantores e cantoras, puxadores da Alvorada
177
,
174
Informações obtidas por meio dos moradores durante a pesquisa que realizamos em Vila Bela, no período de
1998/1999 e através dos convites e cartazes para a Festança de 1997/1998.
175
Observamos que para algumas atividades, o sino é tocado por uma das freiras, agentes pastorais que residem
na cidade. Segundo informações da comunidade os tocadores oficiais de sino anteriores aos atuais, eram os
Senhores: Nanziazeno, Osvaldo de Brito e Lino. Ser tocador ou tocadora de sino é uma atividade valorizada pela
comunidade e de acordo com o “jeito do toque”, é um tipo de aviso que é transmitido para as pessoas, como:
inicio de missas, rezas, reunes, catequese, morte, etc. O sino está localizado ao lado da igreja, em local bastante
acessível a todos que por ali circulam. Entretanto não se observa outra pessoa, a não ser aquelas reconhecidas
pela comunidade, utilizando o mesmo. No decorrer das festas, é tocado para comunicar o inicio e término das
rezas, chamada para as missas, e outras atividades relacionadas como ensaios dos cânticos para as missas e rezas.
Para os Dançantes do Congo é de fundamental importância o som do sino, avisando de que a missa está em seu
término e que devem se dirigir para frente da igreja, para recepcionarem os festeiros e festeiras.
176
Observações durante a realização da Alvorada para a Santíssima Trindade em 1998.
177
Em 1998, os festeiros foram respectivamente, Dona Raquel e seu José. Os tocadores foram Izoel e Camilo
Aranha, e os cantores e cantoras, Jerônima, Marina, Rafaela e Andronina, Nazário e Juarez. Segundo
163
iniciam o percurso pelas ruas da cidade até as casas dos festeiros e festeiras, cantando
inúmeras modinhas como a que transcrevemos:
Campo verde serenado
Campo verde, Vila Bela.
Campo verde serenado,
Campo verde, Vila Bela
Passarinho, passarinho
notícias do meu bem.
Se esta dormindo ou acordado,
Ou nos braços de algm
o está dormindo ou acordado,
nem nos braços de ninguém .
está suspenso pelos ares
amando e querendo bem.
Se eu soubesse,
Que tu vinhas
Dava um dia melhor.
Dava um na fita verde,
Outro no raio do sol.
178
A Alvorada vista na perspectiva de um patrimônio cultural, nos levou às formulações
teóricas de Nestor Garcia Canclini, quando discute sobre os usos do patrimônio como bens
culturais reunidos na história por cada sociedade e que, considerados numa perspectiva de
desigualdade social, não pertence a todos, mesmo que formalmente pareça ser de todos e
esteja disponível para que todos o usem. É apropriado de forma diferente e desigual pelos
indivíduos e grupos sociais. (CANCLINI, 1997, p.194).
Embora os negros de Vila Bela procurem demonstrar aparente estado de
homogeneidade no espaço de realização da Festança, em torno de atividades e ações
escolhidas, na maioria das vezes em nome da tradição, aí estão imbricados, diferentes
interesses e identidades, fato comum em qualquer sociedade.
informações de Dona Andreza e Isaias, até alguns anos atrás, os músicos, puxadores e puxadoras da Alvorada
eram o Sr. Irineu e Aurélio de Freitas, Lauriano de Fraga, Orestes, Sariol, Marciana, Filalfia, Ambrosina,
Maria Tereza e Venina.
178
Música cantada na Alvorada e que também faz parte de uma coletânea de músicas gravadas no CD,Canções
e Serestas”, pelo grupo musical “Aurora do Quariterê, de Vila Bela da Santíssima Trindade”.
164
Diferentes opines tanto sobre a Alvorada como sobre os demais rituais que
compõem a Festança, o que levou-nos a reflexões sobre as redes estabelecidas, os lugares
sociais e as diferentes identidades construídas através destas manifestações culturais. Dona
Nemézia apresenta os festejos, dentre os quais a Alvorada, como:
A festa é todo um ritual altamente sagrado, religiosamente sagrado, porque
eu vejo assim, pelos meus antepassados, a forma, o respeito, né! O migrante,
justamente ele, olha assim, fala: -Esse povo ao bebendo, comendo,
dançando, sem sentido! Talvez seja por isso que muitos migrantes o
participam. Ele olha por este ângulo. Agora, por outro ângulo, para a
comunidade e o povo amigo de Vila Bela, que já tem consigo essa tradição,
olha diferente. Com alta devoção, com alto respeito. As Alvoradas você
! A Alvorada com dança, com música, com foguete, com sinos, com
bebidas. Tudo uma forma de louvar a Deus. E com grande respeito, o tempo
todo .
179
Dona Andreza faz a sua interpretação, ao dizer que:
Antes a Alvorada era uma Alvorada linda, ia até o amanhecer. Igualzinha a
de hoje, mas era mais animada. As músicas era com sanfona. Tinha
sanfoneiro. Eram três sanfoneiros aqui. Festa aqui era só de sanfona. Depois
acabou, porque foram morrendo todos. Tinha violino também. Os
sanfoneiros eram o Seu Vitório, o Salustiano, o Mané, e o Irineu. Esse ta
vivo, cego lá em Guajará. acabou os sanfoneiros daqui. Tinha também
violão, bandolim e rabequinha. Com elas é que tiravam esmola pro Senhor
Divino também. Quem tocava era o Joaquim Brasiliano. Agorao tem
mais. Depois que ele mudou pra Cuia, faz tempo que ele morreu. A
única coisa que eu acho que acabou foi a seresta. Tinha uma seresta muito
bonita. Agora é mais grito e anarquia. Aquilo é que era seresta mesmo. Todo
mundo cantava, todo mundo ti recebia. Agora você nem pode mais abrir a
sua casa, porque é mais bêbado, e a rapaziada naquele grito, naquela coisa.
Antes todo mundo participava. Acho difícil reorganizar. Todos os santos
tinham seresta. São Benedito, Divino Espírito Santo. Mas a seresta mais fina
era a da Santíssima Trindade.
180
E dona Cecília descreve a sua idéia da Alvorada, com o pessoal todo saindo para a rua,
das diferentes representações e significados de rituais na festa do Divino, São Benedito e das
Três Pessoas:
179
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
180
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
165
Tinha aquele Alvoradão. Cantavam: “O Passarinho, O Campo Verde.
Campo verde, serenado, Campo verde Vila Bela. Campo verde serenado,
Campo verde Vila Bela”. O povo amanhecia na rua, e tinha gente que ficava
até as 8 horas do dia. Até hoje cantam essassicas. As músicas que cantam
hoje, os antigos faziam. Até nas festas de aniversário, o pessoal gosta de
cantar, quando o fazer uma serenata de aniversário, na hora de ir embora
cantam:Adeus querida, eu vou embora, queridao chora, queridao
chora, um adeus por despedida, adeus, adeus, querida”. Aí, a pessoa
respondia: “Não vai embora, meu bem, não vai embora meu bem. Se você
for, eu vou chorar a noite inteira, porque essa vida, é uma vida passageira”.
Esse é o companheiro de uma música chamada Querida. Na hora que falava
o vai embora, a gente falava, se for embora vou chorar a vida inteira.
Essas modinhas era tudo tirado aqui mesmo. Eles faziam tudo, eu me lembro
como esse pessoal sabia tirar essas letras.
181
Os relatos apresentados podem ser considerados como reconstruções de uma ou de
várias Alvoradas, juntamente com outros rituais da Festança, em que as lembranças
sobrepostas, representam diferentes leituras de experiências e escolhas, selecionadas a partir
do que é conveniente para ser representado, no sentido de legitimar os elementos que
identifiquem parte da população como os negros de Vila Bela.
Antônio Torres Montenegro, em suas reflexões sobre a memória (MONTENEGRO,
2001, p.9-26)
182
diz que a mesma não se apresenta como uma reprodução do acontecimento,
mas como elaborações, ressignificações, que ocorrem a partir de contextos em que o sujeito
dentro de redes se expressa, cria a sua história. Observamos que algumas pessoas mais idosas
que acompanham a Alvorada pelas ruas da cidade, muitas vezes fazem comentários sobre a
característica atual da mesma, ou seja, a não observação por parte de alguns participantes de
determinados critérios antes praticados. Tecem comentários e chegam mesmo a chamar a
atenção daqueles que estão se excedendo na bebida, e por não estarem se comportando
adequadamente. Consideram que seja um esquecimento do caráter sagrado que deve estar
presente em todos os rituais da Festança.
183
181
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
182
Considerações expostas pelo referido professor, durante suas aulas sobre: História e Memória: Metodologia
das Fontes. Mestrado em História/Pós-Graduação em História-UFMT, no ano de 2003, como professor
convidado.
183
Dados anotados nas observações das Alvoradas de 1998/1999.
166
Cantar, beber, dançar, em cada casa que visitam, são as principais características da
Alvorada, sendo que, fica a critério das famílias abrirem ou não a porta, para acolherem o
alegre grupo, que seguem de casa em casa até o amanhecer. Na maioria das vezes após serem
servidos de bebidas como o vinho, o leite de tigre, Canjinjin, licores de sabores variados, e até
mesmo o café, tem inicio um animado chorado. Segundo informações, não existe uma selão
prévia das casas a serem visitadas, baseadas nas condições ecomicas, ou posição social das
famílias.
De acordo com os comentários dos moradores mais antigos, a Alvorada, como parte
do ritual da festa, representa uma forma de homenagear os santos comemorados, manter as
tradições vivas e dinâmicas. Assim como percebem as atitudes dos participantes locais,
principalmente dos mais jovens, alguns acompanhantes da Alvorada tecem comentários sobre
as atitudes daqueles que não são da cidade. Isso pode ser explicado através das palavras de
dona Nemézia:
A Alvorada é parte do conjunto da Festaa. E esta festançao é como as
pessoas às vezes olham, acham que é uma depravação. Ah! Que festa é essa,
sem um fundo religioso! A pessoa de fora, muitas vezes o percebe,o
tem a sensibilidade de perceber o grau de devoção da festa. Ele vê a parte
externa da coisa, ele não a fundo. Ele não procura saber o porque. Eu até
admiro, porque em qualquer lugar que você chega, você tem que observar o
porque que estão fazendo as coisas.
184
Para compreender os aspectos de conduta simlica religiosa e profana da Alvorada,
encontramos suporte nas alises de Carlos Rodrigues Brandão, em sua pesquisa sobre a festa
do Divino Espírito Santo em Mossâmedes-GO, quando observou que os atributos de
religiosidade e profanação são estruturalmente convergentes, dentro de um mesmo corpo de
rituais, com que se festeja com solenidade, mas também alegremente, um santo padroeiro.
Nesses momentos são rompidas com festa e alegria, as duras rotinas cotidianas, pois entre
situações de culto e festa profana, com os limites entre o religioso e o secular muito pouco
184
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
167
separados, uma comunidade de desiguais que vai daqueles que têm posses, àqueles
desprovidos de bens, reunidos para viverem dias de um mesmo culto a um mesmo
santo.(BRANDÃO, 1982, p.62).
Semelhante às comemorações do Senhor Divino em Mossâmedes, para os negros de
Vila Bela, participar das diferentes atividades da Festança através dos diferentes rituais, como
da Alvorada, é um modo diferente de participar, de ter devoção. Atitude que pode ser
explicada através de Bosi, em suas descrições sobre o ritual de lavagem de um santo numa
festa no interior de São Paulo: “A cultura se consti fazendo. Para eles, a festa era cheia de
sentido”. ( BOSI apud MOURA, 2000, p.24).
2. 6 - A Festa da Santíssima Trindade
A Santíssima Trindade ou Três Pessoas representa na doutrina cristã a união de três
pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Esrito Santo, em um só Deus. Celebrada no domingo
seguinte ao de Pentecostes, segundo o calendário religioso católico, é o santo padroeiro de
Vila Bela, e é comemorado com umarie de rituais que marcam o encerramento oficial da
Festança. Segundo Isaias Gonçalves de Paula:
Ainda hoje é reverenciada pelo povo, que tinha por obrigação de ajudar em
tudo, começando pela Alvorada em que os seresteiros tinham e têm o dever
de visitar todas as casas, onde são servidasrias bebidas tradicionais como:
licor de folha de figo, de leite, de erva-doce, de uma flor chamada perpétua.
E agora, servem até o famoso Canjinjin, que outrora era especialidade
somente dos figurantes da dança do Congo, como proteção da garganta e
clareza da voz, pois os mesmos cantam dois dias sem parar, na festa deo
Benedito.
185
O culto às Três Pessoas da Santíssima Trindade está presente em Vila Bela desde a
fundação da cidade, como a padroeira, aquela que emprestou seu nome ao lugar.
185
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1999.
168
[...] e os Irmãos do Sanssimo se resolveram a fazer a sua custa Igreja
Matriz, que unda que é de pau-a-pique; está com toda a fortaleza, e algum
asseio, havendo-lhe feito três altares, e coberto de telha. com que pode
bastar até que se ajunte com que se faça a que deve ficar permanente.(
ROLIM de MOURA, 1993, v..3, p.15).
A Santíssima Trindade é vista pela população local como “um santo branco, que
protege e derrama a sua benção sobre o lugar. Uma herança do universo religioso cristão
português, que após a transição, ou seja, transferência da capital para Cuiabá, foi apropriada e
conservada pelos negros, que incorporaram a sua celebração ao conjunto das festas dos
santos. E por ser o santo do lugar, é o protetor do lugar e não da comunidade. Protege o
espaço geográfico, controlando a intensidade dos efeitos das leis da natureza sobre o mesmo,
e caso a comunidade não celebra seu culto, o lugar pode ser castigado, pois desprotegido, fica
sujeito a alterações climáticas como seca prolongada, cheias, desastres e cataclismos. Manter
a festa confere um caráter propiciatório, o que significa que, se a comunidade não celebra este
culto, a cidade fica sem proteção, sujeita a desastres, doenças, alterações climáticas como
grandes cheias ou secas, pois esse santo não interfere nas leis da natureza, mas pode controlar
a intensidade de seus efeitos”.( BANDEIRA, 1985, p.244).
O casal de festeiros deve arcar com as despesas integrais da festa. Cabe-lhes a limpeza
e arrumação da igreja, providenciar o padre, suprimento de fogos, velas, e zelar para que haja
muita fartura de bebida e comida, de modo que todos sejam igualmente servidos.
A festa tem inicio na sexta-feira, após as homenagens a São Benedito, com a
Alvorada, e tem seqüência no sábado pela noite com a reza em louvor a padroeira do lugar.
No domingo, continuam as comemorações, com o repicar dos sinos, fogos de artifício, missa
solene, entrega dos festeiros em sua casa, onde são servidos licores, Aluá, biscoitos, e
posteriormente o almoço. Estes rituais são realizados num tempo em que a cidade já está com
menos visitantes, praticamente só os moradores da sede do município e alguns das
169
redondezas. Mas não deixa de ser uma comemoração realizada com muita pompa e devoção,
e segundo comentários de moradores locais, fecha com chave de ouro o ciclo da Festança.
Pessoas mais idosas comentam que até o final da década de 1960, esse ciclo da
Festança iniciava-se com a festa do Senhor Divino, logo após São Benedito, na segunda e
terça, sendo que na quarta comemorava-se também Nossa Senhora do Carmo e o ritual da
Lavagem das Panelas. Na quinta feira, era o dia consagrado a Mãe de Deus, na sexta feira a
Nossa Senhora do Rosário, no sábado a Nossa Senhora da Conceição, e no domingo, à
Santíssima Trindade.
Atualmente o período de quarta–feira até o sábado é de aparente descanso, ou seja,
dedicado à confecção de alguns alimentos que podem ser feitos com antecedência, atividades
normalmente realizadas na casa do casal festeiro. Acontecem também os ensaios na igreja
para a missa festiva do Domingo.
No ano de 1998, registramos
186
que no sábado à noite houve reza na casa dos festeiros.
Muitos fogos de artifício, tanto no inicio como no término das orações e cânticos, e farta
distribuição de biscoitos, licores e canjinjin. No domingo dedicado à festa da padroeira, a
cidade foi despertada pelo tocar dos sinos e pipocar dos foguetes, anunciando o grande dia das
homenagens à Santíssima Trindade. Por volta da 9 horas, após a chegada do cortejo com a
presença solene do Juiz e da Juíza da festa, carregando bastões de prata enfeitados com flores
e fitas coloridas, aconteceu à missa solene em ação de graças à Santíssima Trindade. Uma
cerimônia de caráter solene, com a presença dos festeiros do ano anterior e aqueles
recentemente sorteados ou indicados.
Depois da missa, aconteceu um cortejo, tendo os respectivos festeiros à frente,
carregando as insígnias das Três Pessoas. Todos se dirigiram até a casa dosmesmos, onde
foram recebidos com muitos louvores e orações de agradecimento à Santíssima Trindade.
186
Observações realizadas durante a pesquisa em 1998.
170
Após os cânticos e orações costumeiras, teve início um animado chorado, com a participação
de quase todas as pessoas presentes, enquanto eram servidos licores, biscoitos e chicha. Por
volta do meio dia, foi servido o almoço festivo, no Centro Comunitário. Segundo os relatos de
dona Cecília, esta prática de servir almoço é um costume bem recente.
Comida antes era só na festa do Senhor Divino eo Benedito. Santíssima
Trindade não tinha comidao, mas tem alguns anos que resolveram dar
comida na festa. Isso faz muito tempo, eu o tinha a minha filha Maria
José, que está hoje com 51 anos.
187
Como a cidade ainda está em tempo de festa, pode-se encontrar principalmente à
noite, pessoas nas danceterias e salões de bailes populares, ou em grupos de conversa nos
barzinhos, na praça ou nas calçadas defronte das casas. Segundo alguns comentários de
moradores toda esta movimentação final, vem acompanhada de certa sensação de alívio e de
alegria, pelo término de mais um ciclo da Festança, e pelo sucesso da mesma.
187
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
171
3.COMIDAS, DOCES, BISCOITOS E BEBIDAS DA FESTANÇA:ESPAÇOS DE
PRÁTICAS CULTURAIS
[...] A idéia de descoberta e invenção é de suma importância, não como algo
que nunca existiu, mas como aprendizagem e interpretação das coisas,
objetos e seres, emitindo signos a serem decifrados.
(GUIMARÃES NETO, 2000, p.104).
As comidas, bebidas, doces, bolos e biscoitos da cozinha da Festança em Vila Bela,
representam riqueza e complexidade, porque reúnem modos de preparação, sabores,
temperos, provenientes de práticas culturais de diferentes grupos sociais e étnicos em
diferentes tempos, e podem ser decifradas como um conjunto de signos, resultantes dos
processos de migrações, urbanização, chegada da tecnologia e mestiçagem. São
representações ou “modos de fazer”, (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2003, p.199) que têm
por base a diversidade, se impondo na escolha do prato, no seu modo de preparação e
consumo, de acordo com as necessidades das condições locais, ou seja, disponibilidade e
regularidade das provisões ao longo do ano; tempo disponível para a preparação e cozimento;
tecnologia utilizada; empréstimos, escolhas e trocas de traços culturais existentes nessas
práticas culinárias.
Pode-se perceber nessas variedades alimentares preparadas para a Festança,
coerências internas, invisíveis mas reais, porque expressam práticas culturais, além de
responderem às necessidades fisiológicas dos grupos, às condições oferecidas pelo meio
ambiente. E dentre essas variedades que compõem o cardápio dessa cozinha da festa, alguns
pratossão elegidos como sinais diacríticos, representam escolhas relacionadas às
identidades culturais dos indivíduos e grupos sociais e nomeados pela população local como
tradicionais, portadores de traços próprios e vistos como depositários de um patrimônio
cultural. “Fazem parte das estratégias para se estabelecer a diferença, um processo normal
172
que pode ocorrer nos grupos tradicionais, ou seja, a iia de que mesmo com a ocorrência de
processos de perdas, de rupturas da identidade étnica original, existem as escolhas, para se
manter essa idéia da diferença”.(CANCLINI, 1997, p.250).
Agregam experiências individuais e coletivas, que se manifestam por meio de sabores,
cheiros, consistências, imagens, resultantes dos processos de resignificações sempre
renovados, que identificam culturalmente a população de Vila Bela da Santíssima Trindade, e
permitem que se reescreva “uma história da alimentação sem privilegiar os aspectos da fome,
ou destacar o caráter de pitoresco ou de excepcional dos alimentos, como requisitos
fundamentais para que possam estar na história.” (SANTOS, 1995, p.11-12).
Cada sociedade define à seu modo sobre o que é comida, o que deve ser comido com
regularidade, o que só deve ser comido de vez em quando, aquilo que jamais deve ser comido,
e também as regras precisas de conjugação da comida com os comedores. Transformar um
alimento em comida exige não só o ato do cozimento, mas também os modos pelo qual o
alimento é preparado.Uma comida, a ser preparada com todo o “capricho e carinho, exige
não só a compra dos ingredientes, levá-los ao fogo, seguindo impessoalmente as normas de
um livro de receita. Mas sim, uma preparação com muito cuidado, e “tempero,” acrescida do
ato de servir com “capricho” e de maneira farta, que vai exprimir a consideração” para com
o convidado. Segundo Da Matta (1987,p.22.) são regras que caracterizam a comida brasileira,
e que consideramos estarem presentes na comida da Festança em Vila Bela.
Ainda para explicar essas características, deslocamos às análises de Angel Quintero
Rivera, sobre as relações existentes entre as práticas sociais e culturais da comida e qualidade
de vida. Necessário compreender a função da comida, não só como satisfação de necessidades
básicas, mas também como se têm satisfeitas essas necessidades. “No es solo comer, sino
valorar esse momento qué comemos, cómo se prepara esa comida, com quién comemos,
173
cuando la comida se convierte em una celebración, em um encuentro com los demás, com la
família, eso es calidad de vida”. (RIVERA, 2002).
Também Perla Petrich, lembra que as escolhas alimentares de um grupo são
determinadas por suas necessidades fisiológicas, características do meio e possibilidades
técnicas e econômicas, inscritos em uma história social precisa, numa visão de mundo que é
particular a cada sociedade. Motivações de caráter ideológico, que permitem a criação de uma
cozinha que se reconhece, principalmente como meio de identificação cultural, pois o
universo ideológico criado e recriado em cada sociedade, no que diz respeito à alimentação,
se manifesta mediante às escolhas, às técnicas de preparo e às regras de consumo dos
alimentos. (PETRICH, 1987, p.10-13).
A importância da comida reflete-se nas construções dos indivíduos e dos grupos
sociais, permitindo que o cozinhar se torne suporte de uma prática elementar, humilde,
obstinada, repetida no tempo e no espaço, com raízes na urdidura das relações com os outros e
consigo mesmo, marcada pelo romance familiar e pela história de cada um, solidária das
lembranças de infância como ritmos e estações. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996,
p.218).
Refletir sobre as construções individuais e coletivas das comidas, doces, biscoitos e
bebidas das festas dos santos em Vila Bela da Santíssima Trindade nos levaram a despertar
sentidos tais como a sensibilidade e curiosidade, deslocando-os para os caminhos dos sabores,
do gosto e da imaginação. Mas despertaram também algumas inquietações relacionadas à
representatividade sócio-cultural dessas práticas. Para entender essas questões, encontramos
suporte nas reflexões de Certeau/Giard/Mayol:
[...] se abandonarmos a dimensão diacrônica das histórias empilhadas na
evidência das práticas culinárias e tentarmos considera-las na ficção de um
puro presente, o que nos surpreende é sua abundante diversidade, de uma
sociedade a outra, dando a estranha impressão de que deve haver alguma
razão para isto e que os hábitos alimentares de uma determinada sociedade
174
num dado tempo estão ligados por coerências internas, invisíveis, mas reais.
Tudo se passa como se um determinado regime alimentar revelasse uma
ordem do mundo, ou antes, postulasse em seu próprio ato a inscrão
possível desta ordem no mundo. (
CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996,
p.245).
Na tessitura dessas redes, colocamos as práticas culturais das cozinheiras-festeiras, que
em constantes processos de reelaborações, por meio da memória, ligam o presente ao passado,
sendo também direta e indiretamente
188
responsáveis pelos processos de adaptações,
mudanças, trocas e circularidades de experiências, de acordo com as preferências do grupo
social do qual elas fazem parte. Por meio de seus relatos, em que descrevem experiências,
estão as lembranças, povoadas por fatos e personagens, interligados no enredo do mundo
vivido, “povoado pelas cenas-fulgor”, núcleos que cintilam marcas dotadas de significação
para cada pessoa, por isso transformadas em lembranças. (GROSSI; FERREIRA, 2001, p.25-
33).
Estar na cozinha da Festança, participar da preparação das iguarias ou apresentar
sugestões para o bom andamento das atividades, permite a abertura desses possíveis fluxos de
memória delineados nas narrativas. Vozes que falam de diferentes papeis e competências, da
importância dada ao saber-fazer e às maneiras pessoais de cumprir uma tarefa. De práticas
que exigem uma memória múltipla, por que: memória de aprendizagem; dos gestos vistos; das
consistências ou momento exato do ponto, quando pode se considerar que um prato esteja
pronto. Exigem também uma inteligência programadora, para calcular com eficácia o tempo
de preparação, cozimento e o momento certo de servir os variados pratos; receptividade
sensorial, ou seja, saber o tempo exato do cozimento no calor do forno, de acordo com o
cheiro do que está sendo preparado; de ter engenhosidade e capacidade inventiva, diante da
falta ou excesso de algum ingrediente ou chegada de mais pessoas. “Estar na cozinha, saber
188
Segundo relatos e observações realizadas durante a pesquisa nos anos de 1998 / 1999, percebemos que
algumas cozinheiras, devido a idade avançada não participam diretamente na preparação das comidas, bebidas,
doces e biscoitos. Entretanto, são muito procuradas para darem as suas informações e sugestões relativas à
culinária.
175
manejar coisas comuns, é pôr a inteligência a funcionar, uma inteligência sutil, cheia de
nuanças, de descobertas iminentes, uma inteligência leve e viva que se revela sem se dar a
ver, em suma, uma inteligência bem comum”. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 219-
220).
Nesse enredo, estão presentes, práticas de sociabilidades, com possibilidades de
fortalecimento de vínculos tais como a solidariedade, estreitamento ou reatamento das
relações sociais e a preservação de costumes da cultura local. Não representam um conjunto
de práticas desconexas, porque são práticas culturais onde, mesmo com a diversidade se
fazendo presente, mesmo diante dos processos gradativos de transformações e incorporação
aos novos tempos, a modernização não conseguiu suprimir alguns modos de fazer,”
(CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.199) que são parte da cultura da festa dos negros de
Vila Bela.
3.1 – Território da Festança: terra, símbolos e hábitos culturais.
Antes de morarmos aqui, movamos no Monjolo. Aí, viemos pra cá pra
estudar, morávamos com os outros, meu pai resolveu mudar pra cá, e o
voltamos mais. Monjolo hoje eu acho que é uma fazenda. Agora é. O pessoal
tirou Monjolo e ficou só acho que Barranco Alto, porque antes Monjolo era
junto de Barranco Alto. Compraram e ampliaram. Tudo é de um dono só.
Todos daqui tinham sua terra, eu acho. Meu tio, que mora ao lado do Tito,
tinha terra também. Aí foram vindo pra cá, todos foram mudando, mudando.
Todos foram ficando sem as terras.
189
Podemos encontrar nas lembranças de dona Maria Madalena referências à importância
da terra para a população de Vila Bela, como um espaço territorial
190
fundamentado em
práticas culturais coletivas, que podem ser analisadas como “experiências que dão acesso a
189
Depoimento de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
190
Atualmente, está ocorrendo em Vila Bela uma exaustiva, mas persistente luta para a retomada de terras, que
de acordo com a legislação Estadual e Federal são consideradas áreas de quilombos. Segundo as informações de
Antonio Eustáquio de Moura, apesar da Constituição Brasileira de 1988, e da Constituição do Estado de Mato
Grosso, conterem artigos que preconizam a legalização das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos, a
maioria da população dessas terras, encontra-se sem a posse legal das mesmas e submetidos a pressões
fundiárias. Maiores informações ver: MOURA,2004 e BANDEIRA,1990.
176
lógicas sociais e simbólicas que são as lógicas do grupo, ou mesmo de conjuntos muito
maiores”. (MONTENEGRO, 2001, p.53).
As diferentes experiências da população local, relacionadas à perda do espaço, de uma
cultura da terra com bases comunitárias, delinearam estratégias adaptadas à nova situação,
que podem ser percebidas nas práticas culturais da cozinha da Festança. Segundo dona
Catarina,
Os festeiros do passado, pra eles largarem a festa deles, plantavam as roças
deles: arroz, feijão, amendoim, pra quando chegasse na época, não
precisavam comprar. Já compravam outras coisas. Poucos hoje têm a terra
deles. Frutas, alguns só. Antes todos tinham. Trabalhavam na roça Era na
roça mesmo. Tinham casa na cidade, mas tinham roça. E quem o tinha, o
dono da ra chamava aquelas pessoas da rua pra ajudar. Minha mãe mesmo
ficava meses, às vezes eu até perdia semanas de aula, pra eu ir junto com ela,
porque eu não podia ficar aqui sozinha. Aí, eu ia embora com ela, plantando
arroz, arrancando feijão, quebrando milho. Quando vinha, trazia duas a três
sacas de arroz, de feijão, de milho, farinha. Mandioca a gente ralava assim
no ralo. Naquele ralo lá, cansei de ralar mandioca, verdade. E hoje, já fica
todo mundo apavorado, tudo se acha pra comprar. - Eu me chamo Catarina
Bispo de Freitas, apelido Catita, e tenho 58 anos.o sou da Irmandade,
mas sempre participei da festança, nas cozinhas, nos cânticos da igreja, e
faço parte do grupo da Consciência Negra.
191
Dona Catarina embora tenha participação ativa nos rituais religiosos, nunca foi festeira
e nunca teve terra. Semelhante a outras cozinheiras das festas dos santos, ocupa
cotidianamente espaços em que as coisas precisam ser feitas, portanto alguém tem de fazê-las,
de preferência uma mulher. “Votadas sem fim ao trabalho doméstico e á produção do que
mantêm a vida, subtraídas da vida pública”, (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.217)
mulheres como dona Catarina, quando se reúnem nas cozinhas das festas dos santos, são
capazes de reativar fragmentos, antigos sabores e experiências que herdaram e estão
armazenadas em seus saberes de mulheres. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 217).
Conseguem restaurar a alquimia das comidas, bebidas, doces e biscoitos, que tanto encantam
as pessoas que chegam para festejar ou não os santos:
191
Depoimento de Catarina Bispo de Freitas, Catita. Vila Bela, 1999.
177
Com seu alto grau de ritualização e seu potente investimento afetivo, as
atividades culinárias são para muitas mulheres, de todas as idades, um lugar
de alegria, prazer e invenção. São coisas da vida que exigem tanta
intelincia, imaginação e memória quanto às atividades tradicionalmente
tidas como mais elevadas como a música ou a arte de tecer.
(CERTEAU;
GIARD; MAYOL, 1996, p.212).
Para explicar este despertar da memória, nos inspiramos nas reflexões de Proust,
quando diz que seu encontro com o passado se deu através do cheiro e do sabor dos bolinhos,
as madeleines”, (PROUST, 1982, p.30-33)
192
o que lhe possibilitou chegar até a essência de
suas recordações. Lembranças evocando o vivido, preenchendo o agora com referências
construídas no contato com pessoas, lugares, vozes, músicas, que levam a associar impressões
vivazes no qual a identidade constitui-se, pois somos aquilo que pensamos, amamos,
realizamos [...] “somos aquilo que lembramos”. (GROSSI;.FERREIRA, 2001, p.32)
Consideramos que o espaço da cozinha da Festança, onde os hábitos alimentares
constituem um domínio, “em que a tradição e a inovação têm a mesma importância, e o
presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento” (CERTEAU;
GIARD; MAYOL, 1996, p.212), permite reflexões sobre alguns processos relacionados aos
contdos simbólicos das comidas, doces, biscoitos e bebidas, sobre os modos de fazer, de
distribuição e consumo, sobre seus atores e espaços, onde estão implícitas diferentes práticas
culturais e sociais que permitem o reconhecimento de uma produção social e de uma
identificação cultural.
Para explicar sobre o espaço da sociabilidade, recorremos às analises de Leila
Algranti, quando explica que desde a colonização portuguesa no Brasil, para a maior parte da
população, a sociabilidade se concentrava muito mais fora das paredes dos domicílios, fosse
ele a rua ou a igreja. Os grandes momentos de interação social eram as festas religiosas
comemoradas com procissões, missas eTe-Déuns”, com grande participação não apenas dos
192
De acordo com Ferreira, Madeleines ou Madalenas são bolinhos leves de forma oblonga, estriado, feito de
farinha de trigo, ovos, manteiga,úcar e limão.(1986, p.1.061)
178
moradores dos núcleos urbanos, mas também daqueles que moravam em sítios e fazendas
situados nos arredores e até mesmo em lugares mais distantes e que possuíam casas nas
cidades. Eram momentos em que os ambientes se transformavam em ambiente de
confraternização, onde os banquetes apresentavam-se também como um grande espaço de
sociabilidade. As diversas Irmandades se organizavam para os eventos, as ruas eram
iluminadas e recebiam decoração esmerada. (ALGRANTI, 1997, p.113-114).
Essa representação dos banquetes como espaço de sociabilidade, pode ser confirmada
em diferentes tempos, no contexto de Vila Bela. Elegemos as descrições de Francis Castelnau,
viajante que esteve na cidade em meados do século XIX, quando relata que foi convidado
pelo Comandante Chefe das tropas, a participar de um jantar de gala realizado no Palácio dos
Capitães-Generais ao lado das principais figuras da cidade. Destacou dentre estas pessoas, as
presenças de um negro já velho usando trajes de capitão e de algumas mulheres, quase todas
mulatas, pertencentes ao grupo das principais damas da localidade, muito bem vestidas, e
aparentando grande acanhamento diante dos estrangeiros.
O banquete, momento de destaque no conjunto dos festejos, foi servido numa grande
sala de refeições, onde os convidados tomaram seus lugares à mesa, repleta de todos os
produtos regionais. Como não era proporcional o número de cadeiras, de pratos e garfos, ao
número de pessoas presentes, muitos tiveram de ficar de pé, ou dois se assentavam no mesmo
assento. As mulheres se assentavam em três numa mesma cadeira, com duas utilizando os
joelhos das companheiras como assento. As pessoas comiam no mesmo prato e os copos eram
usados coletivamente. A falta de garfos levava aqueles que não o possuíam, a utilizar os
próprios dedos. Continuando as descrições, Castelnau colocou que na sobremesa foram
servidas enormes melancias, cortadas pela metade, sendo que cada um que tomava uma destas
partes tinha todo o rosto tapado pela fruta, como se fosse uma máscara e, produziam estranhos
ruídos devido à degustação. Ao final da refeição, deixavam escapar o ar ingerido. As damas
179
que todo o tempo se conservaram em silêncio desapareceram após a refeição. (
CASTELNAU, 1949, p.360-378).
No sentido de entender as posturas das pessoas durante o banquete descrito por
Castelnau, destacamos as explicações de Leila Mezan Algranti, quando diz que grande parte
dos costumes domésticos portugueses foram moldados à brasileira, e tiveram além das
influências indígena e negra, a adoção de técnicas e soluções disponíveis, adaptadas ao
espaço onde se vivia. Muitos desses costumes tinham uma relação direta com as mercadorias
existentes, atraso, ou as dificuldades para adquirirem alguns produtos, normalmente muito
caros, o que levava à adoção de hábitos de todos os tipos, como o uso restrito de colheres e
garfos. (ALGRANTI, 1997, p.118-119).
Dize-me o que comes e eu ti direi quem és” (SAVARIN, 1995, p.15), quer dizer,
comer e beber são atividades onde estão presentes diferentes significados relacionados às
necessidades humanas e às identidades culturais, variando de região para região, de cultura
para cultura.
No território negro da Festança, espaço marcado por simbologias, as práticas culturais
das comidas, bebidas, doces e biscoitos, “representam um cruzamento de histórias, reflexo do
invisível cotidiano e de uma montagem sutil de gestos, de ritos, de códigos, de ritmos e
opções, de hábitos herdados e de costumes repetidos, num processo constante de renovações,
escolhas e esquecimentos. Teatro de operações das “artes de fazer” e da mais necessária entre
elas, aarte de nutrir
(CERTEAU; GIARD; MAYOL. 1996.p.207).
Segundo relatos, são práticas consideradas pela população negra como parte do ritual
sagrado da Festança,
193
significando a perspectiva de abundancia, da saciedade, da
sociabilidade, fortalecimento dos laços culturais, realizados não só nos espaços controlados
pela Igreja Católica, como também nos espaços vistos pelos outros como profanos. “ [...]não é
193
Nos convites para a Festança, os almoços e jantares, estão junto das demais atividades, inclusive das
religiosas, como missas e rezas. Fontes: Convites da Festança de 1998, 1999, 2000.
180
uma festa como as pessoas as vezes olham, pensando que é uma depravação. Ah! Que festa é
essa, sem fundo religioso! Mas a nossa festa é mais religiosa do que qualquer outra festa.”
194
Podemos dizer que tanto a Festança em seu conjunto, como as suas práticas
alimentares, representam “o produto de operações de seleção e transposição de fatos e traços
escolhidos pelos grupos sociais conforme os projetos de legitimação potica e social”
(CANCLINI, 1997, p.190), São situações em que :
A identidade é colocada em cena, celebrada nas festas e dramatizada nos
rituais. Onde aqueles que não compartilham constantemente desse território,
nem o habitam, nem têm, portanto os mesmos objetos e símbolos, os
mesmos rituais e costumes, são os outros, os diferentes, detentores de outro
cenário e uma peça diferente para representar.
(CANCLINI, 1997, p.190)
Nesse cenário, percebe-se também, por meio dos relatos de alguns moradores,
concepções não alinhadas aos modos de representação da festa atual, estabelecendo-se uma
zona de conflito, porque a festa está se apresentando diferente. É o que podemos perceber nas
palavras de Dona Maria Madalena, em alguns momentos não se identificando com a Festaa
atual, não conseguindo se reconhecer na mesma, o que não a impede de reafirmar seu gosto
pelas comemorações, de fazer comentários e comparações sobre as festas já realizadas, e
sobre as diferenças entre as práticas culturais, modos de fazer, dos festeiros que moram em
Vila Bela e daqueles que moram em outras localidades:
Eu sempre morei fora, desde a idade de 11 anos, morava com os outros.
Morei em Rondônia, em Guajará-Mirim. Fui pra Guajará trabalhar, conhecer
outras coisas, fui embora porque tenho um iro lá, e voltei porque minha
e estava doente e nunca mais sai daqui. também tem dessa festa, mas
lá é diferente. As pessoas que vêm de fora pra essa festa acham bonito,
muito bonito, só que não é como o povo daqui. Ficam mais pra lá do que pra
cá, e só vêm para o dia da festa, só vêm para largar no dia da festa, não têm
muita experiência, como o povo daqui, no fazer as comidas, os biscoitos,
tudo. Quanto a ser festeiro, tem muita gente que é de fora, não mora aqui,
mas é da Irmandade. Tem gente que é de fora, que foi festeiro, que eu nunca
vi, mora em Cuiabá e já foi festeiro. Agora, os daqui a gente conhece tudo. O
194
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1998.
181
pessoal acha muito bonita a festa, aí,o o nome o sei, são sorteados ou
fazem promessa, não sei!
195
Ser festeiro ou festeira posição fundamental para uma boa fluidez da festa, é uma
função muito valorizada socialmente pela população local, por isso motivo de orgulho para
muitas famílias. Dona Andreza comenta que:
Fui festeira da Mãe de Deus duas vezes. Das Três Pessoas três vezes. Já fui
rainha, Leopoldo já foi rei, Elialda foi imperatriz, Leopoldo já foi
imperador, Elialda foi rainha, Leopoldinho já foi juiz, Eurico já foi Juiz,
Eudes juiz, Rosita imperatriz. Aqui em casa é casa de festeiros. Todos os
anos. Vamos ver no próximo ano. De São Benedito já sabemos que não vai
ser. Agora do Divino é da sorte, né! Da Santíssima Trindade tem.
196
Existem fortes ligações da função de ser festeiro ou festeira com o poder. Procurando
uma explicação a essa questão, utilizamos em nossas reflexões as análises realizadas por Alba
Zaluar, num estudo sobre o sistema de crenças e de práticas do catolicismo popular em várias
áreas do Brasil rural. Zaluar coloca que em algumas comunidades é atribuída ao festeiro uma
imagem simbólica associada ao pai ou padrinho, autoridade a quem todos devem obedncia,
por todo o período da festa. Daí, o costume do cargo de festeiro ser assumido por quem tenha
mais posses. A casa do festeiro se transforma no centro de recepção dos convidados e cenário
para as atividades populares, caso não exista um lugar específico. O cargo de festeiro lhe dá o
direito de censurar ou admoestar quem não mantiver um comportamento adequado, pois é
visto como um representante do santo e da comunidade moral dos devotos. Além de
redistribuir o que foi acumulado para o santo, é obrigado também a fazer todos os gastos
necessários para uma boa festa. A recompensa pelo cargo vem através de proteção do santo,
195
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999. “Largar a festa” é aquela pessoa escolhida
para festeiro ou festeira, responsável pelas atribuições de acordo com o santo. Destacamos, segundo observações
e informações locais que acontecem serem escolhidos para festeiro ou festeira, vilabelenses moradores em outras
cidades, como Cuiabá, Guajará-Mirim,ceres, Pontes e Lacerda e outras localidades. Destaca-se que são
membros das Irmandades.
196
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
182
sendo que o êxito da festa, ou seja, uma festa rica e farta serve para aumentar seu prestígio e
reforçar suas relações com dependentes, parentes e vizinhos.( ZALUAR, 1982, p.53-60).
Observa-se que em Vila Bela, ser festeiro ou festeira representa adquirir status diante
dos outros, poder e o reconhecimento tanto dos moradores locais como das pessoas “de
fora,”como visitantes, poticos, representantes da mídia. Não é costume quando escolhida ou
sorteada, a pessoa negar a festa, e segundo os relatos, não existe o critério de se escolher o
mais forte economicamente, na festa para São Benedito, mas sim ser membro da Irmandade e
Irmão de Mesa.
197
Para a festa do Senhor Divino o critério é a escolha por sorteio e para a
festa da Santíssima Trindade, os pretendentes devem gozar de uma situação econômica
equilibrada. Em alguns casos pode acontecer que um festeiro ou festeira seja escolhido em
atendimento a promessa feita ao santo, como no caso do senhor Manoel, que sendo membro
da Irmandade de São Benedito, segundo os relatos de sua esposa, dona Gregória, adoeceu e
pediu ao santo as atribuições de festeiro em troca da saúde.
Se ficasse bom, se o fosse doença maligna, queria ser Rei. Quando ficou
bom, falou que queria ser Rei, mas que era uma promessa. Já tinha gente na
frente, mas deram a oportunidade pra ele. Era dicil ser Rei, porque ele
ganhava pouco, aposentado. Falamos pra nossos filhos, eles aceitaram e nos
ajudaram, e de longe, fomos comprando as coisinhas, desde quando recebeu
a festa.
198
Uma importante obrigação dos festeiros e festeiras, fundamental para o sucesso da
festa, é providenciar a estocagem de mantimentos para proverem de comida e bebida com
fartura todas as pessoas que se fizerem presentes. São realizadas reuniões, escolhida a
Comissão de Festa,
199
geralmente formada por lideranças, membros das Irmandades, festeiros
e festeiras. Esta comissão organiza a programação da festa e solicita contribuições, fazendo
197
Fontes: Relação dos Irmãos de Mesa e de Roda, no Consustório das Irmandades do Glorioso São Benedito
de 20 de agosto de 1950, onde estão também relacionados os nomes dos seguintes festeiros e festeiras eleitos
para o ano de 1951: Rei: Paulo Vieira Barroso; Rainha Anna Frazão de Almeida; Juiz: Barnabé Rodrigues de
Santanna; Juíza: Maria Hilária Geraldes.
198
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela, 1999.
199
Fontes: Oficio da Comissão da Festança de 1999.
183
também um planejamento do que vai ser gasto em cada festa. Independente desta comissão,
os festeiros de cada santo são responsáveis pela sua festa, e por isso, articulam as tarefas
durante todo o ano. Além da estocagem de mantimentos, as vezes o plantio de horta,
solicitação de contribuições em gêneros ou em dinheiro.Tanto dona Gregória como dona
Maria Benedita, falam sobre a experiência de ser festeira ou ter um familiar ocupando tal
cargo, e como algumas tarefas podem ser executadas no decorrer do ano e antes mesmo da
semana da festa:
Eu, quando o Manoel foi festeiro,o ficamos com dívida, porque os meus
filhos ajudaram bastante.Porque muita coisa o festeiro tira do bolso,
principalmente prao Benedito, pois pro senhor Divino o festeiro pode
tirar esmola, mas pra São Benedito não pode. Eu já fui comprando as coisas.
Saía o vencimento de Manoel, eu comprava umas coisas no caminhão. Fazia
nova encomenda com o Everaldo. Aí, pagava aquilo e quando era da outra
vez, eu fazia novo pedido. Pra gente, graças a Deus, a festa não foi pesada. A
gente vai comprando o básico, como o óleo, a margarina, o polvilho, o
açúcar, essas coisas. O arroz, o feijão, pratos e copos de plástico. Comprei
300 pratos. Manoel comprou em Cuiabá uns pratos descartáveis que podia
até lavar. Lavava e usava de novo. Sobrou até, 3 caixas, pois ele comprou
1500 pratos. Aí, a gente deu um pouco pro Camilo, pois ele veio aqui e falou
que o tinha encontrado em Lacerda. Quando o iro do Tino foi festeiro,
a gente cedeu pra eles os pratos que sobraram.
200
Dona Maria Benedita nos relatou emocionada a sua experiência como festeira de São
Benedito:
Eu pensava que nunca ia ser rainha. Mas a Cecília falava que era bobagem
minha, porque ia ser sim, ia ver com o Manoel. Quando foi no ano que eu
larguei, chegou o oficio pra mim. Ai, a primeira pessoa que eu comuniquei
foi com a Nana, minha filha Anastácia. E ela falou ques íamos fazer,
porque todos iam me ajudar. Quando foi chegando perto, nada arrumado.
Quando foi no mês de maio, que eu fui na reza em Vila Bela, ai eu pedi pra
São Benedito.-Oh! São Benedito! Vós que es cozinheiro, que não deixa
passar nada, me ajuda!Cheguei até a sair por ai, pedindo esmola. Eu fiz cem
reais.Ai, a Nana ficou brava comigo, d’eu estar tirando esmola. E falou que
ia dar conta da festa. Mas ganhei tudo, até 7 caixas de morteiros. Também 1
caixa grande de temperos, que roubaram de mim, aliás de São Benedito.
Fiquei muito triste, mas ai a Nana falou que se São Benedito quis assim,
assim seja, e que ia arrumar tudo. Ganhei 6 cabeças de rês. Uma eu matei pra
fazer lingüiça, porque o arroz com lingüiça é tradição. Quatro reses foram
pro churrasco. O povo comeu carne igual onça. Ainda fiquei com um boi,
200
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela, 1999.
184
que eu dei pra São Benedito, em agradecimento por tudo ter acontecido tão
bem. A irmã ficou tão contente. A rês valia mais de cem reais. No outro dia
fizeram uma (...) pra mim. O padre, a irmã, agradeceram a contribuição pra
todos de Vila Bela. O que sobrou ficou prao Benedito, eu o tirei nada,
ele me ajudou bastante.
201
A solidariedade é presença marcante não só entre os familiares dos festeiros e
festeiras, como entre muitos moradores, devotos e não devotos, promesseiros e promesseiras e
simpatizantes. Este sentimento faz-se presente nas palavras de dona Gregória:
Eu tinha feito umas compras na Mafu,[ ? ] depois eu achava que era pouco.
Se que esse pessoal vai dar alguma coisa? Eu tinha vergonha de sair
pedindo, mas graças a Deus, que eu não pedi. Veio chegando, veio
chegando, as coisas, você precisa ver. Parece que Deus toca no coração das
pessoas. Cada um dá o que pode, e a gente não exige nada. Eu me lembro
que quem primeiro me deu alguma coisa foi o Calango, que deu uma saca de
cebola. Depois veio a Preta que trabalhava no Banco do Brasil e me
telefonou de Lacerda, dizendo que era pra eu pegar no compadre Jair uma
saca de repolho que ela estava me enviando. E ai, um chegava e dava uma
saca de batata, outro de cenoura, ou outra coisa. Na hora, a ajuda salvou. E
eu achava também que o que tinha comprado era pouco. Eu plantei uma
horta aqui. Fizemos dois canteiros de cenoura, que deram uma caixa de
cenoura, você precisava ver. A cebola que eu plantei deu umas cebolonas
deu tudo certo, o que plantei para a festa. As cebolas de cabeça deu uma
baciona assim, que nos colhemos.Falei com a Selma que só ocupava a loja e
no quintal fizemos a horta. Deu tanta alface, que demos alface pra Juíza e
pro Juiz. Nós fizemos as barracas do lado de lá pra cozinhar. E tudo deu
certo. O que se ganha pra festa tem que ser pra festa. Tudo que eu ganhei eu
usei pra festa. Sobrou o que compramos. Mas o que foi dado foi usado.
Ganhei cartelas de ovos, verduras. Um dia eu estava fazendo uma compra no
compadre Jair, ai ele falou para uma rapaz que eu era Rainha, a dona da
festa. Compadre Jair nem sabia que meu marido é que era o Rei. Ele pediu
um boi. O moço respondeu que podia dar um porco, porque era só o gerente
da fazenda, não era o dono.Na véspera da festa, uns dois meses depois, o
rapaz chegou com o porco já limpinho. Eu nem lembrava mais deste porco.
O rapaz chegou com o porco já limpinho. Aquele cepo de porco. A gente
estava enrolada com os bois, ai chegou o seu Apolônio, com mais uma banda
de porco. Uma banda pro Rei e outra pra Rainha.
202
Esse ritual de preparação e posteriormente oferecimento de comidas, bebidas, doces e
biscoitos durante a Festança, podem ser inscritos nas abordagens sobre festas de santos,
realizadas por Alba Zaluar, quando faz análises sobre a representação simbólica das dádivas.
201
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
202
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
185
Estas só podem ser entendidas a partir da relação simbólica entre o festeiro e seus convivas.
Visto como uma autoridade, representante do santo, da comunidade moral dos devotos, o
festeiro é responsável pela redistribuição do que foi acumulado por todos os devotos do santo,
ou seja, é o redistribuidor das doações. A preparação da casa para a festa, da comida,
simboliza a reciprocidade, o clima de mutirão, de festa, de alegria, de união, quer dizer, as
redes de solidariedade que se estabelecem. (ZALUAR, 1982, p.59).
Encontramos nas palavras de dona Cira a presença dessa rede soliria, fundamental a
um bom desempenho dos festeiros e festeiras, quando fala sobre o plantio da horta para a
festa:
As verduras, quando era tempo da festa, quando o festeiro as vezes não
tinha, a gente ajudava, cada um. Eu mesma já ajudei muito, no tempo em
que eu plantava horta. Eu já plantei muita verdura. Era alface, cebolinha,
pepino, né! Plantava muita cenoura, repolho, tomate, rúcula, e na época da
festa eu oferecia para o festeiro. E assim eu parei. Agora, minha filha é que
planta e todos os anos ela oferece verduras pros festeiros.
203
3. 2.Preparação da festa: redes de solidariedade cultural
Ao descrever algumas práticas culturais no espaço de preparação da alimentação para
a Festança, buscamos o argumento usado por DaMatta, de que, na lógica docomer” e da
comensalidade” brasileira, há um notável esforço de conjugação dos aspectos universais da
alimentação, ou seja, o seu valor nutritivo, a sua capacidade de gerar energia, sustentar o
corpo, o seu teor protéico, como também suas definições simlicas. A
denominadacomensalidade totêmica”, apresentada por Claude Lévi-Strauss, ou seja, um
sistema onde as pessoas, ambientes, emoções, alimentos e o modo de preparar a refeição
devem estar em plena harmonia.( DAMATTA, 1987, p.22)
203
Relato de dona Cira Geraldes Assunção. Cáceres, 1999.
186
Consideramos que os festeiros e festeiras são responsáveis por essa harmonia no
espaço da Festança, e que se traduz pelo suprimento alimentar de todas as pessoas que se
fazem presentes nas rezas, nos almoços e jantares coletivos, pois dentre os quesitos escolhidos
pela comunidade, para uma festa ser vista como boa, está a quantidade e qualidade do que é
servido. Por isso, existe uma preocupação com a organização do cardápio, para que o mesmo
não seja repetitivo e que sejam feitas algumas variedades consideradas tradicionais pelos
moradores, pois a festa por ser considerada um espaço de representações das tradições, exige
uma comida especial.
Dona Gregória coloca que o cardápio não precisa ser necessariamente planejado para o
festeiro ir comprando os alimentos, porque cada um sabe o que é tradição. Mas, ressalta a
importância das comidas serem bem feitas, da importância da presença das cozinheiras já
acostumadas com a dinâmica da cozinha da festa, porque procuram saber com antecedência o
que cada festeiro pretende fazer, ou seja, um cardápio básico, para evitar repetição da comida
num mesmo dia:
A comida da festa é uma comida especial. É tradicional o feijão com
toucinho, o arroz com lingüa, galinha assada, salada, porco assado.Antes
tinha mais variedade porque era mais pouca gente. Assava peru inteirinho e
recheava. Peru criado aqui. Fazia cabeça de porco, depois de bem limpinha,
tirava a língua daquele cabeção de porco, depois enfeitava ela pra pôr na
mesa. Tinha lingüa frita, galinha cheia assada. Agorao faz mais porque
é muita gente. Fazia surrão de carne de porco pra botar na mesa, recheava
ele com carne, farofa, essas coisas. Era assim que era. Todo mundo na mesa.
Ficava bonita aquela mesa! Galinha assada, porco recheado, pernil de porco
assado.o era esse poo como agora. A gente botava mesa pros festeiros
antigos. Agora ninguém liga mais pra quem já passou a festa.
204
Num cardápio estão processos de escolha, de atração ou de repulsa, “escolha
culturalizada e historicizada, que dependem de uma etno-história, de uma biologia, de uma
climatologia, de uma economia regional, de uma invenção cultural e de uma experiência
pessoal, como das determinações objetivas do tempo, do lugar, da diversidade criadora dos
204
Relato de dona Andreza Cruz de Almeida. Vila Bela, 1999.
187
grupos humanos e das pessoas”. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.234-245).
Encontramos na confecção do que é determinado num cardápio, atos fundamentais para a
criação do “prato”, como por exemplo, a escolha dos ingredientes, o modo como um alimento
será preparado, ou seja, com capricho e com carinho. São fatores determinantes na qualidade
de uma comida, e nas demonstrações de consideração para com o convidado. Dona Catarina,
demonstra essa consideração, ao descrever os ingredientes e modos de preparação do arroz
para a festa.
Esse arroz com lingüiça é que é mesmo, né! A gente pega a lingüiça assim,
cortadinha, pra colocar no arroz. Tudo feito com carinho e amor! Tudo que é
feito com carinho e amor sai bem feito. Até no trabalho mesmo dostico, a
gente fica trabalhando, você faz com amor, fica bem da mente, você até
esquece!
205
Os modos de preparação e de consumo de um alimento permitem destacar as
produções culturais, pois o ato de fazer e de comer não está descolado de estados emocionais
dos indivíduos e das construções de identidades sociais. Encerram também um digo
elaborado e complexo, que pode permitir compreender o sentido de uma sociedade, pois
existem normas ou convenções que definem a relação entre certos alimentos e certas relações
sociais. Pode-se apreender na comida, conteúdos simbólicos e cognitivos tais como a comida
de rico, de pobre, da alma, do santo, do trabalhador. Comida salgada, doce, quente, fria,
saborosa, sem gosto, reimosa, que cheira bem, que cheira mal, de digestão mais fácil ou
difícil, classificada através dos códigos gustativo, olfativo, visual e digestivo. Conteúdos
simbólicos que revelam aquilo que a sociedade tem de universal, ou o fato de que todas as
pessoas, em todos os lugares, se alimentam de alguma coisa, de acordo com o contexto da
refeição, que pode ser nacional, regional, local, familiar e pessoal. (ROLIM, 1997, p. 97-105).
205
Relato de Catarina Bispo de Freitas, Catita. Vila Bela, 1999.
188
Ressaltamos também “a multiplicação de empréstimos culturais, fruto dos processos
de globalização, da sociedade do espetáculo e da viagem, onde pessoas e coisas transportam
de um continente a outro, novos sabores, receitas inesperadas, onde têm-se regularidade das
provisões ao longo de todo o ano e fontes de informação através da dia”( CERTEAU;
GIARD; MAYOL, 1996, p.242-243).
Características dessa diversidade de conteúdos simbólicos fazem-se presentes na
cozinha das festas dos santos em Vila Bela, sendo que, alguns processos de mudaas,
adaptações, combinações, levam alguns moradores mais antigos a não mais se reconhecerem
nessas comidas, como podemos observar nas palavras de dona Jonas:
Quanto ao cardápio, naquele tempo a gente fazia galinha caipira, carne
assada de boi, porco assado, fazia arroz, feijão, salada de mao, o quibebe,
que é o mao cozido e depois de cortado, temperado com cebolinha, como
tempera salada. É gostoso. Deve ter alguém que ainda deve fazer, né! Fazia
doce de mamão, de laranja, de batata, licor, isso era o principal, chicha,
biscoito de ramo, que era assado no forno de barro, a lenha, na folha de
banana. Biscoito de ramo era aquele ramo mesmo. Eu acho que há mudança,
porque antes parecia que era difícil, mas era bastante fácil. As variedades
continuam, maso é muitos que ainda fazem o biscoito de ramo. Os doces
de mamão e batata ainda fazem.
206
Mesmo assim, junto de todo o contexto festivo, é considerado como um patrimônio
cultural. Torna-se necessário procurar entender a representatividade sócio-cultural, e não as
origens ou pureza desses alimentos. Deslocando-nos ás reflexões de Certeau, Giard e Nayol,
sobre as agregações de objetos ao patrimônio, ressaltamos suas abordagens sobre a “lei da
restauração”, que apresenta-se como um processo de modernização que desapropria os
sujeitos, tornando fantasmas os artistas cotidianos das maneiras de falar, de vestir, de morar.
Analisando as práticas alimentares para a Festança, pode-se observar que mesmo inseridas
nos processos de modernização, algumas práticas podem ser consideradas como um conjunto
de traços culturais “feitos das capacidades criadoras e do estilo inventivo, que articula a
206
Relato de dona Ana Jonas Coelho de Brito. Vila Bela, 1998.
189
prática sutil eltipla de um vasto conjunto de coisas manipuladas e personalizadas,
reempregadas e poetizadas. São todas “as artes de fazer.”(CERTEAU; GIARD; MAYOL,
1996, p.199).
Encontramos essas habilidades nos relatos de algumas cozinheiras-festeiras, que
buscando no passado seus sujeitos, vão dando vida às suas idealizações, por meio das artes
de fazer”, reinscritas no presente, elaboradas e transformadas em patrimônio. Através de dona
Catarina, essa construção cultural chega de uma forma que podemos quase sentir o cheiro e o
sabor do bolo e dos licores:
O bolo de arroz era assado na forma de folha de bananeira,o era assim na
forma. Se era na forma, forrava com folha de bananeira. Se temperava com
melado, pra fazer o bolo doce né! Era com melado, rapadura. Aí, colocava
aqueles temperos: cravo, canela e quando começava a assar, era aquele
cheiro que tresandava na rua inteira - Ah! Fulano já tá fazendo o bolo! As
bebidas. Ah! Esses licores maravilhosos que eram no passado, e que hoje
nem ninguém não faz Eu lembro de minha tia Arminda, quando foi festeira.
Meus tios foram, né! A gente ficava ai, ajudando. E ela pegava as flores
de laranjeira. Naquela época, aqui em Vila Bela tinha muitos pés de laranja
que dava flores, que cheirava os fundos dos quintais. Caia muita no chão.
Mas, então a gente o pegava as flores do co o. Pegava aquelas flores
do pé. E as flores não eram curtidas no álcool, eram cozidas mesmo, e
depois fazia assim aquele licor. Ficava uma delícia, com aquele gosto de flor
de laranja! Gostoso! Aí, vinha o licor de pequi, de jenipapo, isso aí eles
colocavam pra curtir na pinga.E outros tipos de licor, como o de folha de
figo, de tangerina. Então era isso.
207
Cenários em que as cozinheiras-festeiras, são donas da arte de fazer, porque limpam,
lavam, picam, cozinham, dão formas, e num espaço marcado pelos jogos da sociabilidade,
procuram seduzir as pessoas através de cada alimento preparado. Senhoras das combinações e
da memória, cada uma tem seu estilo e imaginação, adquiridas no decorrer de suas
experiências na cozinha. Ressignificam nos alimentos o seu toque especial, seus segredos
culinários, sua maneira de se relacionar com os ingredientes, síntese de suas lembranças,
reflexo de suas experiências familiares, étnicas, regional, social.
207
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1999.
190
Vou ensinar como é que recheia uma galinha. Galinha recheada. É gostoso.
Quantas vezes eu ajudei minha mãe a fazer a festa dela! Matava galinha,
temperava elas, botava pra ferver naquele molho, depois recheava tudo com
farofa feita de couve, cebolinha, temperos, aí botava pra cozinhar por dentro,
com banha de porco. Depois punha pra assar no forno, eram duas, três
assadeiras.
208
Também dona Cira, dentre as recordações da cozinha da festa, destaca com orgulho
sua participação como cozinheira:
Sou Cira Geraldes de Assunção e tenho 79 anos. Sou da Irmandade do
Senhor Divino, mas só participava quando estava nova, né! Já fui festeira de
Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Carmo. Já participei da
cozinha, quando minha irmã foi festeira, Imperatriz, quando o finado
Marcelo foi Imperador, quando o finado João Camilo foi Imperador, e
quando meu pai foi Imperador duas vezes. Nemézia também foi, mas eu não
participei. A Constantina foi juíza, eu participei. Na cozinha quem labutava
mais era eu e a finada Levina. Na festa assim, repartia, um bejeto, outra fazia
outro, outras faziam outro. Cada um dava conta, né! Enquanto uns estavam
fazendo os temperos da carne, da liniça, da carne de porco, estavam todos
trabalhando. Cada um participava de uma coisa. Um ia fazer o feijão, outro a
galinha, outro o arroz, outro ia fazer qualquer outra mistura, né, assim é que
era.Outro ia assar a carne. Assava no forno. Quando o festeiro entrava na
igreja, a comida já tava em dia. Eu aprendi a fazer a comida dos santos,
porque naquele tempo eu trabalhava muito assim, no tempo da finada
Maturina Geraldes da Cruz. Eu fiquei com ela desde a idade de 11 anos. Eu
ficava pra ajudar ela, que é muito caprichosa. E sempre lá fazia esse
negócio de assado, biscoito né! Dava tempo de comércio, de festão, dava
aquele churrasco, e ai a gente ia aprendendo.
209
São descrições em que estão presentes as redes de solidariedade, os recursos da
memória utilizados nas diferentes atividades de uma cozinha de festa, onde é fundamental a
criatividade, para a realização das adaptações, das combinações dos temperos, do tempo de
preparação. Uma série de detalhes, que aparentemente podem parecer repetidos, desligados
das capacidades mentais, mas na realidade, um saber ligado a códigos sociais fundamentais
para o bom êxito do que está sendo preparado.
Ser uma cozinheira, “estar numa cozinha é uma atividade muito pouco valorizada, pois
é vista pela maioria das pessoas como um trabalho manual desprovido de inteligência e
208
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
209
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
191
imaginação. Entretanto, cozinhar exige habilidades, criatividade, disposição e sabedoria,
porque permite unir o presente e o passado, num jogo de memória onde os cheiros, sabores,
consistências, ingredientes, formas e condimentos se agregam transformando-se em
variedades culinárias que tanto aguçam os desejos.” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996,
p.217-218).
As boas cozinheiras são como “Tillo, a Mestra das Especiarias”, “pois sabem lidar
com os cheiros, têm o calor de cada especiaria correndo pelo sangue. Conhecem os antigos
segredos que a mãe de sua mãe sabia. E embora sejam mestras, não são consideradas assim,
porque nenhuma mestra é importante. O importante é a loja, as especiarias, e o saber lidar
com a especificidade de cada uma”. (DIVAKARUNI, 1997, p.7-12).
Foto 12 - Cozinheira da Festança
Fonte: Reis de Moura, 1998.
O saber fazer, aliado à prática da solidariedade, sempre foram considerados requisitos
básicos no processo de preparação das comidas das festas dos santos, como podemos perceber
192
nas lembraas de Dona Catarina, num tempo em que a simplicidade das comidas, mesmo
sendo feitas para as festas, estavam inscritas num espaço doméstico, familiar.
Nos tempos passados, quando eu era criaa, eu via meus avós, minhae,
iam ajudar as pessoas a fazer essas comidas, era arroz, feijão, molho de
galinha, couve cortadinha, aquela saladinha, né! Então era isso antigamente.
A gente era mais pouco aqui, eno era essas coisinhas, né! E hoje já tem
vários tipos de comida. Ai vem o macarrão, uma maionese, uma farofa, e
rios tipos de comida. Então eu sempre participei.
210
Percebe-se também nos relatos de dona Catarina certo estranhamento com a
sofisticação dos tipos de comidas dos tempos atuais, sinalizando processos de mudanças,
confirmados por Isaias, quando afirma que hoje muita coisa mudou. [...] “Fazem a maionese,
o salpicão, que são consideradas comidas de branco”.
211
Assim como Isaías, muitos
moradores destacam além da introdução de algumas variedades, novos comportamentos como
a cobrança da mão de obra por algumas cozinheiras e cortadores de carne e tentativas de
venda da comida. De acordo com os relatos, normalmente numa cozinha de festa, as
cozinheiras executam suas atividades com a ajuda de promesseiros e promesseiras, familiares
dos festeiros e voluntários. No caso dos promesseiros, o trabalho é uma retribuição ao santo
pela ajuda solicitada e recebida. Quanto às cozinheiras, a característica básica é a de um
trabalho voluntário, dependente do convite do festeiro ou festeira. O pagamento desse
trabalho voluntário se dava com o costume de após o término da festa, os festeiros
distribuírem o que sobrou de mantimentos para quem trabalhou nas atividades da cozinha da
festa. Entretanto, afirmam que estão ocorrendo mudanças, pois algumas pessoas passaram a
solicitar pagamento para cozinharem ou lidarem com certas tarefas vistas como mais difíceis.
Segundo dona Andreza :
210
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
211
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1998.
193
Essas cozinheiras querem receber, quase tudo é pago hoje. Antes não era
assim não. Ninguém cobrava nada. Antigamente, ia tirar esmola pra cima,
lá pra fronteira, era bitelão de barco. Homaiada tudo ia remando, não
cobrava nada. E a muiérada tudo cozinhava, e não cobrava nada. E agora já
cobra. Tudo é cobrado. Esses matadores de boi, tudo é cobrado. As
cozinheiras, tudo é pago. Eu acho difícil, porque pra mim acho tudo fácil.
212
Também dona Maria Benedita coloca que, as cozinheiras antes não cobravam nada,
mas hoje, algumas já exigem pagamento. “Não são todas que cobram. E sempre tem alguém
representando a família pra ajudar os festeiros na cozinha, desde manhã bem cedinho. Na
minha festa eu dei tudo que sobrou pras cozinheiras”.
213
Necessário considerar alguns sinais dos novos tempos, dos processos da
modernização, chegando até a cozinha da Festança, como o crescimento da população local, a
introdução de novos alimentos e de novos recursos da tecnologia como o uso dos eletros-
domésticos, do fogão a gás, as transformações estéticas dos interiores das cozinhas, a
mudança de local para cozinhar. Novos hábitos que, modificando os sabores, o gosto, os
consumos, resultam no surgimento de uma tensão entre o antigo e o novo, percebidos em
alguns relatos.
Sobre a mão de obra masculina, utilizada nas diferentes tarefas, e indicada como
fundamental desde os tempos antigos, se destaca principalmente na realização de algumas
atividades consideradas, “trabalho pesado, a ser feito pelos homens,” como: providenciar a
lenha, cortar a mesma no jeito de ir para as fornalhas, ou para o fogão, matar e destrinchar as
reses e porcos, preparar e assar o churrasco. Sobre essa divisão de tarefas dona Cira diz que:
“enquanto as mulheres vão fazendo o trabalho na cozinha, os homens vão matar uma rês,
destrinchar, separar aquela carne”.
214
212
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
213
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
214
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
194
Foto 13 - Trabalho masculino durante a Festança
Fonte: Reis de Moura, 1998.
São atividades que indicam a presença dos códigos assado e cozido,
fundamentalmente embasados nos trabalhos feminino e masculino, onde os homenso
responsáveis pelo preparar e assar as carnes, e as mulheres pelo cozimento.
Foto 14 - Trabalho feminino durante a Festança
Fonte: Reis de Moura, 1998.
195
Com referência à transmissão dos modos de preparar as comidas, doces, biscoitos e
bebidas, não existem anotações em cadernos de receitas. Embora seja uma sociedade do
mundo da escrita, a oralidade sempre esteve presente em algumas práticas sociais e culturais
da população de Vila Bela. Nas práticas culturais das comidas da Festança, faz-se presente na
transmissão das experiências culinárias, principalmente para as crianças e adolescentes, por
meio da observação e execução de pequenas tarefas, como empacotar os biscoitos, descascar
legumes, fazer lingüiças, servir as pessoas nas mesas, e outras.
Foto 15 - Aprendizagem infantil durante a Festança
Fonte: Reis de Moura, 1998.
[...]Comemos nossas lembraas, aquelas que marcaram nossa primeira inncia.
(CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.249-250). Segundo dona Maria Benedita, [...] “Não
tem receita. Tudo é memória. Eu ensinei pra minha neta aí, a fazer o chocolate de amendoim.
A Maria José, minha filha, chamam ela pra cozinhar. Ela sabe a medida certa”.
215
Também
215
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
196
dona Jonas diz que seu aprendizado se deu quando ainda criança, e que essa forma de
aprendizado ainda continua nos tempos atuais, pois: hoje, “o pessoal mais novo tem
aprendido, porque numa festa assim, um chama o outro, pra dar uma mão. A gente convida os
parentes, a família, os amigos, muita gente.”
216
Sobre o significado da cozinha, como um espaço central das atividades, recorremos ás
análises de Maria do Carmo Rolim, quando diz que a cozinha pode significar tanto o espaço
físico onde são feitas as refeições, como as operações da preparação, com seus rituais,
instrumentos e técnicas diversas dos pratos a serem servidos, ou o conjunto de pessoas que no
exercício de suas funções, administram fornos e fogões e as mesas e os serviços em geral.
Microcosmo da vida social, a cozinha permite o exame detalhado do beber e do comer, fatos
sócio-culturais cotidianos que se repetem ao longo de toda a vida dos indivíduos, marcando
tanto a existência individual quanto coletiva, no que diz respeito á sociabilidade.
Cozinha pode ser também, “as representações historicizadas, as crenças e as práticas
que lhe são associadas e que são partilhadas pelos indivíduos ou grupos, que fazem parte de
uma cultura. Cada cultura possui uma cozinha específica, com classificações, taxionomias
particulares e um conjunto complexo de regras voltadas não somente para a preparação e a
combinação dos alimentos, mas também para a sua coleta e seu consumo. Ela possui
igualmente significações, que estão estreitamente dependentes da maneira pela qual as regras
culinárias são aplicadas.”( ROLIM, 1997, p.97-105). Pode ser o lugar das aprendizagens, da
intimidade, dos segredos, das conversas com palavras que explicam, discutem, confortam,.
Por isso desperta a memória. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.250-252).
Até pouco tempo atrás, a comida da Festança, era toda feita nas próprias casas dos
festeiros, em cozinhas previamente construídas para este fim, por isso uma continuidade não
só da casa, mas de um espaço privado, aberto no período da Festança.
216
Relato de dona Ana Jonas Coelho de Brito. Vila Bela, 1999.
197
Foto 16 - Cozinha da Festança na casa de dona Andreza
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Esse espaço, normalmente caracterizado pela amplidão e pelo aconchego, vem sendo
gradativamente substituído pela cozinha do Centro Comunitário. Alguns relatos apontam a
resistência de grupos familiares e de festeiros ao uso desse espaço, enquanto outros colocam
como justificativa a necessidade de transferência da cozinha da festa para este Centro,
especialmente adaptado para os eventos maiores.
217
217
Observa-se em muitas casas, seja no quintal ou anexado à residência, grandes áreas cobertas, com fornos de
barro, fogões a lenha, mesas de madeira. Segundo informões, são feitas para serem usadas na Festança, caso
um membro da família seja escolhido para festeiro ou festeira..
198
Foto 17 - Cozinha da Festança no Centro Comunitário
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Observa-se que tanto as cozinhas das casas como do Centro Comunitário são
caracterizadas pelo uso de fornalhas onde usam a lenha, utilização de vasilhames apropriados,
normalmente adquirido e reservado para esses usos.
Quanto aos bolos e biscoitos, ainda são preparados e assados em amplos fornos à
lenha, localizados nas residências. Também as bebidas, os doces, algumas carnes que podem
ser conservadas fora da geladeira ou que demandam mais tempo para serem preparadas, como
as lingüiças e carne sêca para o arroz carreteiro, ainda são preparados nas cozinhas
domésticas. Quanto ao Soo, que deve ser servido para os Dançantes do Congo, depende do
festeiro ou festeira definir o local de servir, se na residência ou no Centro Comunitário.
Almoço, jantar e escaldado para a folia do Senhor Divino, ainda são feitos e servidos nas
casas do Imperador e da Imperatriz.
Dona Andreza deixa clara sua resistência em utilizar o Centro Comunitário. Para ela
não importa a quantidade de pessoas presentes, o importante é estar utilizando o seu espaço
199
doméstico: “Agora dizem que tem que fazer tudo no Centro Comunitário. Eu vou fazer aqui
mesmo na minha casa, e servir na minha porta, porque é mais fácil. Todos que são servidos
comem aqui mesmo, na praça, e se quiserem levar pra casa levam.
218
Já dona Gregória diz ser favorável à utilização do Centro Comunitário, e justifica sua
opção:
Até quando meu marido foi festeiro, o Centro Comunitário não estava bem
organizado. Senão eu teria feito a comida lá. Agora as rezas, devem ser nas
casas e a comida. Fica mais bem organizado. Porque o tem como
aentar o povão nas casas né! E a tendência é cada vez mais ir aumentando
mais.
219
Destacamos também as palavras de dona Cecília: comentando sobre as diferenças que
tem percebendo na festa:
E hoje é diferente. Hoje não tem festa; é só rezou aqui, vai comer lá no
centro Comunitário. De vem, não tem mais manifestação nenhuma. Ih!
Meu Deus. Agora de uns tempos pra cá, eu achei diferença. Pra mim eu acho
que nem é festa mais. Já é só comezaina. Aí, já fica só assim. Bem, não tem
aquela manifestação nas casas. Ficou muito diferente. Eu alcancei desde
menina assim.
220
Mesmo com os constantes processos de modificações, os momentos dos almoços e dos
jantares ainda são espaços dos encontros e reencontros, onde laços culturais são reforçados.
Mas, constata-se o afastamento de alguns moradores e grupos familiares, que vão até o Centro
Comunitário, observam, conversam com os amigos e conhecidos e sutilmente se retiram no
momento da distribuição e consumo dos alimentos. Dona Maria Madalena coloca que:
No dia da festa eu gosto que meus meninos vão, até pra acompanhar, né!
Mas eu não vou, pelo menos na hora da comida, porque não gosto de ficar na
fila. Antes não tinha fila, o pessoal era mais pouco, porque era só o povo
daqui. Então se cozinhava só pro povo daqui. E agora, vem o povo de fora,
muita criança, vem o pessoal, e ai tem de ficar em fila.Antigamente, dava pra
fazer um tanto certo de comida, porque era só o povo daqui mesmo.Mas
agora, não. O pessoal vai cozinhando, enquanto tem as coisas e gente pra ser
218
Relato de dona Andreza Cruz de Almeida. Vila Bela, 1999.
219
Relato de dona Gregória de Matos Ramos. Vila Bela, 1999.
220
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
200
servido.Mas tem que terminar no horário, pra entregar a cozinha pro outro
festeiro que vai dar a janta.Eo pode faltar comida, porque é tradição de
Vila Bela, né!A festa, a comida da festa. Eu acho que é uma tradição muito
antiga, do tempo dos escravos.
221
Também dona Cira afirma que:
A festa de hoje está mais, porque muitos deixam pros visitantes. Como lá
em casa mesmo. Eu quase não participo muito, porque desde quando tinha
minhas crianças, todos comiam em casa. Eu já fazia a comida, porque tem de
deixar pros visitantes. Assim é agora. Terezinha é que sempre fica em casa,
a noite é que às vezes vai ao baile. Ela sempre fica em casa pra fazer a
comida para a família. Eu sou assim. De sempre deixar a comida da festa
pros visitantes. Alguns fazem assim também. Mas se vai algum, o pouco,
né! O pessoal que vem de fora participa muito né! E a gente tem que atender
a todos né! Não pode deixar ninguém com fome. Antes todo mundo ia
porque era menos gente
.
222
As dificuldades apresentadas em decorrência do crescente aumento de pessoas nos
almoços e jantares
223
coletivos, estão dividindo a comunidade, entre aquelas pessoas que
julgam ser melhor vender a comida e aquelas que não concordam. Alguns comentam que
numa época, um padre pros que a comida fosse vendida. Houve muita discussão na
comunidade, relacionada à questão, com posições favoráveis e contra a proposta. Entretanto, a
comida não foi vendida. De acordo com dona Cira ninguém aceita a venda da comida, mesmo
com proposta já colocada: “Festeiro nenhum aceitou. Eu acho que não deve, porque é assim
desde o começo e se passar a vender, o pessoal vem menos, né!”
224
Novas práticas que levam
a outras percepções e modos de compreender a Festança, interferindo e modificando as
próprias participações dos moradores. Dona Gregória coloca que:
Quanto à festa, eu já tou achando assim que como já vem muita gente, e a
igreja fica sem nada, quando acaba a festa, se não pagar a missa, não recebe
nada, acho assim, como já vem tanta gente de fora, que devia vender a
comida. Bem baratinho, uns 1,50 o prato, ta bom pra ajudar. que eu não
221
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
222
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
223
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
224
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
201
quero ser a primeira, ninguém quer ser o primeiro. Mas acho que deveria dar
uma cooperação para a igreja, a nossa igreja é muito pobre, né! E precisa
aumentar, manter, fazer alguma coisa na igreja. Acabou a festa, os festeiros
ficam devendo!
225
Também dona Maria Madalena diz sua opino da seguinte maneira:
Uma vez eu vi a história de que o pessoal ia parar com a festa, pois tem
festeiro que não acha bom. Mas isso é tradão de Vila Bela. Se acabar a
festa, acaba tudo, porque aqui o tem nada. E eu também ouvi falar numa
época, que o pessoal ia vender a comida. , um festeiro, eu ouvi, porque
estava perto dele na reza, parece que tinham combinado com alguém de fora
daqui. Acho que o festeiro de fora é daqui, mas fora, e estava achando muito
pesado os gastos com a comida. Iam vender a comida, mas ai o festeiro falou
que o, porque ele entendeu a comida, o porque que tinha de ser de graça. E
que não ia ficar nem mais pobre e nem mais rico, em não vender a comida.
Eu ouvi ele falando, numa reza! Tinha gente que estava lutando pra vender a
comida, pra ajudar a igreja, nalguma coisa, mas se vender acho que acaba
com a graça da festa. Nunca foi vendida! Se eu fosse festeira, na minha festa,
eu também não ia deixar vender a comida, porque é a tradão nossa.
226
Espaços de luta material e simbólica, a introdução e apropriação de novas práticas
culturais não impedem que a Festança, juntamente com seus rituais, sejam um patrimônio
cultural, um conjunto de representações que unificam a maioria dos moradores de Vila Bela.
As contradições existentes neste espaço permitem que o ritual alimentar, uma comezaina,”
segundo dona Cecília, passe por renovações, resultantes dos processos de escolhas da
comunidade, sempre fluindo, tecendo suas redes. Um conjunto de tradições acumuladas
através dos tempos, em que códigos tais como os sabores, os aromas, influenciam
imperceptivelmente o estado de espírito e sentimentos das pessoas, pois fazem parte dos
costumes. Ao acompanhar o ritual dos diversos momentos em que são preparadas e
principalmente degustadas as comidas, as bebidas, doces e os biscoitos, têm-se a oportunidade
de sentir o sabor e o cheiro dos variados pratos, mas não com a intensidade sentida por alguns
negros e negras de Vila Bela.
225
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
226
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
202
Para compreender essas habilidades, buscamos explicações em Proust, quando coloca
que existem possibilidades de se sentir sensibilidades e sensações em objetos, paisagens,
pessoas, cheiros, lugares, o que permite que se chegue à essência das coisas, provenientes de
imagens gravadas pelo espírito.
Embora possam ser apagadas, sepultadas no esquecimento e até substituídas por novas
imagens, são lembranças determinando uma sensação profunda de renovação. Por meio da
memória, os reconhecimentos dos sabores e dos cheiros, permitem que cessem as
inquietações de perda, porque apresentam-se como alguma coisa que, comum ao passado e ao
presente, é mais essencial do que ambos.( PROUST, 1983, p.123-138).
Ainda sobre os códigos desta cozinha da Festança, destacamos o trabalho das
despenseiras, a sociabilidade e a colocação de mesas separadas para os Dançantes, festeiros
antigos e visitantes considerados importantes pelos festeiros e festeiras.
Segundo observações de moradores, nem todas servem para exercer a função de
despenseira, que em sua maioria são escolhidas pelos festeiros. É uma atividade que exige
capacidades como: calcular por meio do olhar, e dai equilibrar a distribuição de acordo com a
quantidade de comidas, bebidas, doces ou biscoitos existentes e a quantidade de pessoas, entre
adultos e crianças.
203
Foto 18 - Distribuição da comida no Centro Comunitário
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Junto, deve colocar vida em cada gesto e expressão, fundamentos básicos desta arte.
Para dona Cecília, ser uma despenseira é aquela escalada para repartir, sendo que, até alguns
anos atrás,como o povo era pouco, quem ia na festa comia e quem não ia comia do mesmo
jeito. O pessoal tinha o cuidado de levar comida para algum doente”, coloca. Continuando diz
que:
Se era biscoito que estava repartindo, a despenseira embrulhava aquele
biscoito, leva pra fulano que está doente, ou leva pro seu filho! A
despenseira é aquela que é escalada pra repartir. Agora na cozinha, tem
muitas que não gostam de cozinhar com outros no meio. Agora, pra tirar
vem tirar. Outras pedem pra descansar, e já entrega, né! A despenseira é
aquela que fica naquela parte separada, onde tá os negócios de bebida, de
doces. Antigamente, tinha a ajudante.Então uma põe uma coisa aqui, outra
e ali, durante a festa. Qualquer pessoa que quisesse podia ser despenseira,
o precisa ser parente ou pessoa escolhida. Tem muita gente que sabe
repartir a coisa, outros não né! Então o festeiro escolhe quem sabe. Tem
muitos que fazem promessa pra ficar na cozinha, ser despenseira.
227
227
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
204
Sobre o significado de práticas de sociabilidades, como os usos da mesa, dos assentos,
dos utensílios e as atitudes entre os convivas, encontramos alguns registros de viajantes
apontando que desde os tempos antigos, existiam essas práticas em algumas festas. Certeau,
Giard e Mayol, colocam que: a mesa é umaquina social, um local onde as regraso
severas. Entretanto é tamm o local do prazer, onde se celebra a boca, centro da cerimônia.
Espaço que leva as pessoas a falarem o que gostariam de calar, permite que por meio do odor
acentuado da comida, a proximidade dos corpos, os aromas, despertem o olfato, as percepções
e suas associações, levando o conviva a sonhar”. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996,
p.265-267).
Foto 19 - Mesa com os Dançantes do Congo
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Num tempo e espaço dedicado aos Santos, as comidas, bebidas, doces e biscoitos
permitem que num contexto considerado sagrado, o fato de ser membro das Irmandades, ser
festeiro ou festeira, oferecer uma festa com abundância, participar das atividades, ser
205
cozinheira do Senhor Divino, de São Benedito ou da Santíssima Trindade, demonstram “uma
vontade comum, um consenso, obtido numa comunicação livre de violência, num espaço que
transforma cada momento em espaço de manifestação em que os atores se encontram, são
vistos e ouvidos.”(ARENDT, 1985, p.24)
3. 3 – Memórias e práticas culturais nas comidas da Festança
O procedimento de analisar as comidas da Festança, enfatizando os relatos de
cozinheiras-festeiras, levou-nos a reflees sobre essas fontes, como construções culturais de
determinados grupos, no tempo e no espaço, documentos que se apresentam como registros e
ao mesmo tempo construções. Partindo dessa perspectivaconsiderar que as marcas, os
registros da história vivida, reapresentados, constituem um permanente combate de
informações a ser considerado para se produzir a trama histórica, transformar alguma coisa,
que tinha uma posição e seu papel, em alguma outra coisa que funciona diferentemente”.
(TORRES MONTENEGRO, 2001, p.5-6). Diferentes reapresentações em que as descrições
das maneiras de lidar com os ingredientes, temperos e sabores, indicam utilizações de
combinações, adaptações e justaposições de modos de fazer, considerados adequados para o
tempo presente. São práticas culturais que fazem a diferença da cozinha da Festança, porque
mesmo que venha se combinando e se misturando, exprime e destaca identidades. Processos
culturais sobrepostos através dos tempos, num espaço onde a diversidade cultural proveniente
das diferentes experiências dos indivíduos e dos grupos sociais, se mesclam e reafirmam
valores e diferentes visões de mundo.
Seguindo essas representações de acordo com o calendário festivo, iniciamos o
percurso com a trajetória da saída da Folia do Divino para as áreas rurais do município, a fim
de recolher donativos para a festa. Segundo dona Ana Jonas:
206
A Folia ia de barco pelo rio. Quando a bandeira saia, a gente ficava na beira
do rio, saia o barco, assim. A gente ficava de joelhos na beira do rio até
sumir o barco. O barco fazia aquela meia lua bonita. Era bonito mesmo!
Tinha as promesseiras, que todo ano saiam com o pote de água na cabeça,
carregando água pros foliões e pessoas que acompanhavam. Outros,
apanhavam pedra pro Senhor Divino, colocavam na cabeça, iam até a beira
do rio. Tinha os candeeiros da casca da laranja que iluminavam a beira do
rio. Era muito, muito bonito, tanta coisa que o tempo passa e a gente até
esquece do que já aconteceu. A Folia do Senhor Divino demorava meses
tirando esmola.
228
Após a temporada pelas redondezas, fato que ocorre até os tempos atuais, a Folia
retorna à cidade, uma semana antes da realização das festas.
229
Tem início uma cozinha
muito pesada”, afirma dona Ana Jonas, porque durante todo o tempode tiração” da esmola
na cidade, é obrigação do Imperador oferecer aos Foliões, promesseiros e demais
acompanhantes, o chá da manhã, o almoço, o jantar e o escaldado, normalmente feitos com as
doões recebidas em gêneros como: mantimentos, ovos, galinhas, porcos, carnes etc. Embora
não seja uma “obrigação” determinada, pode acontecer de algum promesseiro oferecer o
almoço, jantar ou o café da manhã, como cumprimento de promessa por ter recebido dádivas
do santo. Alguns relatos indicam divergências entre os fiéis, referentes aos usos da esmola
recebida, ou seja, o fato do festeiro não repassar para a igreja a esmola recebida em dinheiro,
e usa-lo para os gastos da cozinha. Segundo dona Andreza:
Antigamente a gente não usava a esmola do Divino Espírito Santo, porque é
pecado. Os antigos falavam que as pessoas se têm esse objeto, então parte
isso pra dar pro Divino Espírito Santo. E guardava este objeto pro leio. E
hoje não! Come tudo. Não pode. Eu não acho isso certo. A esmola que
recebe é a esmola que cozinha. Antigamente não era assim. Eu trabalhava
pra comprar pra dar pro povo, pra não pegar na esmola. Era a roupa do
Imperador, do Folião, sapato, comida, tudo, tudo. O dinheiro do leilão era
228
Relato de dona Ana Jonas Coelho de Brito. Vila Bela, 1999.
229
De acordo com as informações de Isaias Gonçalves de Paula, após a mudança da capital para Cuiabá, também
foram os padres, deixando a cidade à mercê dos leigos. Os santos que eram festejados no seu respectivo dia
passaram a ser agrupados e festejados por ocasião da desobriga, uma vez por ano, quando o Bispo fazia os
casamentos, batizados, primeira eucaristia, crismas, e os negros festejavam os santos de suas devoções, pois
continuavam firmes e fiéis nas tradições e culturas. A festa iniciava-se um mês antes da chegada do padre, com a
Folia do Divino, tirando esmola na fronteira e nas ruas da Vila. Na ante-véspera dos santos venerados fazia-se a
abertura com uma Alvorada, na noite seguinte, leilões, que no caso do Divino, eram revertidas em moedas para
pagar o dízimo e abrilhantar a festa.o Benedito era por conta dos festeiros e a Sanssima Trindade, como
padroeira da cidade, pelo povo.
207
pra igreja. Toda vida era assim que era. Agora modificou. Não nada pra
igreja. Come tudo.
230
Isaias
231
destaca que todas as doações para a festa do Senhor Divino, ficam em poder
do Imperador, consideradoo dono, o responsável pela festa”, que caso queira, pode doar
uma parte do que recebeu, para a Imperatriz, que é a responsável pelo almoço no domingo da
festa.
Procuramos compreender essas descrições por meio das análises de Alba Zaluar sobre
festas de santos, quando coloca que as dádivas ao santo têm de ser entendidas dentro de um
sistema de reciprocidade específico, ou seja, no dia da festa, é esperada por todos a fartura, ou
seja, a comida para todos, porque grande ênfase é dada à distribuição da comida feita pelo
festeiro, uma das obrigações ao assumir o cargo.( ZALUAR, 1982, p.57).
O “chá da manhã
232
, na festa do Senhor Divino no ano 1998, foi servido na casa do
Imperador, durante toda a semana, para a Folia e acompanhantes. Constou de café, chá mate,
leite com canela ou com chocolate, pão com margarina, farofa de ovo, paçoca de carne, ovos
fritos ou mexidos, e o escaldado, que é uma composição de ovos, ou seja, ovos com temperos
variados, cheiros verdes, água e engrossados com a farinha de mandioca. Segundo relatos, não
existe um cardápio determinado para este chá da manhã, a não ser o escaldado
233
feito todos
os dias, por ser considerado um alimento forte.
Os almoços e jantares, feitos para os foliões e promesseiros, caracterizam-se pela
fartura e simplicidade e é semelhante à comida cotidiana. Sobre essa comida cotidiana, dona
Catarina Bispo de Freitas informou que os moradores conservam até hoje o costume de comer
o arroz sem sal acompanhado de um caldo bem feito de banana verde, ou de mandioca. Usam
230
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
231
Isaias Gonçalves de Paula será a Imperatriz do Senhor Divino, na Festança de 2005.
232
Termo regional comum em Mato Grosso, para nomear o café da manhã.
233
Segundo as informações de Isaias, este escaldado é feito com ovos recebidos nas doações, durante as visitas
da Folia.
208
também nos dias comuns, a abóbora picada, carne, acompanhadas do arroz sem sal ou
temperado, o feijão e ensopados de carne com banana ou com mandioca e salada. Explica
também que, peixes não são mais consumidos como antes. Eram normalmente pescados pelos
maridos, sendo mais consumidos o lobó ou traíra, que era encontrado com facilidade nas
beiras do rio e pescado para o almoço. “E era aquele caldo branco, com bastante cebolinha, ai
comia até. Agora é difícil ver lobó.”
234
Pescavam também o pintado, o pacu, na época de
enchente, sendo que o tracajá era mais difícil de ser encontrado, a não ser em setembro. Não
era costume de todos consumi-lo, mas a sua pesca não era proibida. Tinha a “massaca ou
baião de dois”, que é o arroz com feijão, bem temperado. “O feijão não pode estar mole
demais, tem que tá inteirinho e não põe farinha. Torro o arroz, e põe o feijão no meio. Ai frita
uma banana, uma carne seca com óleo de côco!” Reafirma que atualmente, o tradicional é o
arroz, a paçoca de carne seca com farinha socadas no pilão. Dona Catarina coloca também
que, ela e sua mãe iam para a mata e demoravam oito dias para apanharem mais ou menos dez
litros de côco. Quebravam e traziam a gema, socavam no pilão, para em seguida torrar a
massa e apurar o óleo, usado para fazer comida, pois além da gordura de porco, usavam esse
óleo. “
E é um óleo caro, porque dá muito trabalho para ser feito. Muito côco às vezes só dá
para um vidro, uma garrafa. Não rendia, mas passou a ser um costume, pois era necessário
fazer o mesmo”.
235
Dando seqüência às práticas alimentares da festa do Divino, destacamos que em 1998,
no sábado na casa do Imperador, pela manhã, foi servido, aos participantes da Alvorada, um
sopão, considerado um alimento forte, com propriedades de levantar o ânimo das pessoas, e
feito com carne de rês com osso, legumes, tudo muito bem cozido.
234
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela , 1998.
235
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
209
No domingo festivo, dia dedicado ao Senhor Divino, o almoço oferecido pelo
Imperador em 1998,
236
no Centro Comunitário, constou de: arroz branco temperado
237
, arroz
com lingüiça, feijão com toicinho e peles de porco, churrasco, mandioca cozida, couve
afogada, farofa de banana, salada de couve, cebola, cenoura, tomate, alface e cebolinha. O
jantar oferecido pela Imperatriz, dona Rosina de Almeida Paiva, foi o arroz com lingüiça, o
tutu de feijão, o churrasco, mandioca cozida, maionese com macarrão.
Observamos que durante a preparação dessa comida, os homens estavam responsáveis
pela preparação e processo de assar as carnes, como também pelas tarefas consideradas mais
pesadas, semelhante ao ocorrido na cozinha do Imperador. Para o almoço foram abatidas
quatro vacas, e para o jantar cinco vacas, todas usadas para a confecção do churrasco e da
lingüiça. A comida foi farta e servida enquanto havia pessoas, sendo que o jantar foi
distribuído às pessoas na rua, defronte a casa dos pais da festeira.
238
Dentre as comidas relacionadas, o arroz com lingüiça é considerado um prato
tradicional. A lingüiça é feita com antecedência, na casa do festeiro e colocada para escorrer e
secar. No momento de fazer o arroz, toda essa lingüiça depois de cortada em pedaços e frita, é
colocada no arroz já torrado e temperado. Adicionam a água quente, deixando cozinhar até
que fique no ponto de ser consumido. Em algumas cozinhas da festa, é feito também o arroz
carreteiro ou a “Maria Isabel”, tradicional variedade muito apreciada em algumas localidades
de Mato Grosso. Segundo dona Catarina, é feito da seguinte maneira: “depois de retirado o
excesso do sal da carne de sol ou do charque, corta-a e frita, até que fique bem sequinha. Em
236
Em 1998, foi Imperador o sr. Nazário Frazão de Almeida e Imperatriz dona Rosina de Almeida Paiva.
237
.É tradição culinária em Vila Bela, o consumo do arroz sem tempero, ou seja, cozido na água, somente com
um pouco de óleo, e sem passar pelo processo de torrar. Normalmente é feito para acompanhar o peixe, a carne
etc. Acreditamos ser um costume advindo dos tempos coloniais, e que pode comprovar a carência de sal na
cidade e adjacências. Numa correspondência a Francisco Xavier de Mendonça, em 20/02/1755, Rolim de Moura
afirmou que a freqüência da comunicação comercial entre Vila Bela e a Província do Pará barateariam alguns
produtos como o sal. (1983, p.82)
238
Os pais da Imperatriz, sr. Leopoldo Frazão de Almeida e dona Andreza Pires de Almeida, antigos festeiros e
membros das Irmandades, pertencem àqueles que resistem à utilização do Centro Comunitário como local para a
confecção e distribuição das comidas. Resistem a esta prática, confeccionando na cozinha de sua residência,
especial para as festas, todas as comidas e servindo as pessoas na frente da sua casa, defronte a praça.
210
seguida, colocar esta carne ao arroz já torrado, juntamente com os temperos costumeiros e
água quente, até ficar cozido”.
239
O feijão é considerado pelos moradores de Vila Bela, como um prato tradicional,
imprescindível nos banquetes. As mulheres encarregadas pela confecção do mesmo iniciam a
preparação com antecedência, num espaço de tempo que dê para que o feijão fique bem
cozido,quase derretendo”, juntamente com as partes do porco, como orelha, pés, peles, que
são colocadas. Nas cozinhas da festa é a comida que é temperada primeiro, destacando-se as
maneiras de temperar e a constância do sabor, independente da quantidade preparada. Relatos
e observações indicam que atualmente, mesmo não sendo feito com a riqueza de ingredientes
de antes, ou seja, com a quantidade de toicinho e peles de porco, continua a ser um prato
muito saboroso e consumido com muito gosto. Segundo dona Cira, “o feijão era feito com
pedaço de toicinho, e com aquele couro,! Tirava a banha dele um pouco, mas ai fazia
aquele feijão gostoso. Ficava uma feijoada gostosa. Assim é que fazia.”
240
Era costume fazer a macarronada e a lingüiça frita “servidas em separado”, diz dona
Gregória. Continuando, explica que: “Eu me lembro que antes, tinha mais feijão com
toicinho, macarrão. Hoje já não faz mais macarrão pra festa, pra colocar na mesa, a
macarronada. Aí, vinha também aquele arroz com lingüiça, esse arroz com lingüiça era
necessário, ou então o arroz com carne seca, a Maria Isabel, bem gostosinha”.
241
Segundo informações de algumas festeiras, a salada de mamão verde ou quibebe, que
é o mamão verde, picadinho, cozido, e depois de escorrido, temperado com cebolinha e
demais temperos, pimenta do reino,
242
não é mais servido, mesmo sendo umprato” muito
apreciado. Observa-se que muitos tipos de comida, embora considerados pratos tradicionais,
não são feitos, em decorrência do custo ou diante da dificuldade em confeccioná-los para
239
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
240
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
241
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999
242
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
211
grande quantidade de pessoas. Quanto às saladas, “a couve picada, ainda é servida, mas,
misturada a outras verduras e legumes ou na farofa”. Como salada, somente na mesa dos
festeiros, dançantes e visitantes”, diz dona Laurice. E continua: [...] “Junto com o feijão
cozido com peles e toicinho de porco, serviam com verduras, principalmente a couve, que
podia ser refogada, na farofa ou salada. Até hoje, ainda servem a couve, nem que seja pouca,
a couve nas mesas”.
243
De acordo com dona Rosa,
[...] naquele tempo a gente não tinha esse negócio de alface, era só couve
afogada. Fazia a couve assim com ovo. Cortava a couve bem fininha, batia
aquele ovo bem batido, d temperava com cebolinha, temperos, misturava
as colheradas de couve e botava pra fritar. Ficava aquele beiju de ovo com
couve. Ficava como ovo de tracajá. Não tinha esse negócio de salada, não.
Salada era de couve que plantavam e cebolinha. Há! Tinha uma salada de
mamão verde. Ferventava o mamão verde bem picado, ferventava bem ele,
pra ficar mole, ai fazia a salada. Isso era a salada que faziam.
244
A salada de legumes com maionese, ou o macarrão temperado com cheiros verdes e
maionese, são vistos com restrições pelas cozinheiras festeiras e alguns moradores, o que não
acontece com a salada simples de verduras e legumes. Para Isaias,
Antigamente que a festa era pouco divulgada, a comida era totalmente
original, pois erapica da África.o se falava em churrasco, macarronada,
maionese ou salpicão, e sim em arroz com lingüiça, com frango caipira,
carreteiro, paçoca de carne seca, frango recheado inteiro e assado, cabeça de
porco assada e enfeitadinha, feijoada com toucinho, liniça, pés e orelhas
de porco, almôndegas, carne enrolada com toicinho e depois assada, farofa
de torresmo, banana frita, sem me esquecer que a gordura usada era banha de
porco e outras comidas mais, que não me recordo. Só sei que tudo era muito
concorrido pelos comensais. Este era o carpio principal.
245
Isaias apresenta sua reinterpretação do cardápio de festas passadas, como um conjunto
de comidas originais, porque típicas da África, de festa, concorrida, apreciada, pom pouco
divulgada. Invocando também uma intimidade, ligada aos parentes, amigos, compadres e
243
Relato de dona Laurice Carneiro Geraldes. Cáceres, 1998.
244
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1999.
245
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1999.
212
pessoas mais próximas. Destaca alguns novos hábitos alimentares, expressão dos processos de
modernização, inscritos no cardápio festivo dos tempos atuais. Segundo Giard, os hábitos
alimentares constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma importância,
e o passado e o presente se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento, trazer a
alegria de um instante e convir às circunstâncias. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996,
p.212).
Também Dona Maria Madalena apresentando suas memórias, onde não fica na
contemplação do passado, deixa claro que não só a perda da terra, como a facilidade de
locomoção para outras cidades, e a mistura das pessoas, permitiram uma mistura das comidas.
Destaca que os moradores de Vila Bela, envolvidos com a Festança, mesmo vivendo em meio
às dificuldades, procuram manter o cardápio tradicional, de acordo com o que era feito.
Antes era mais difícil, todo mundo plantava, ninguém comprava nada, não
tinha como sair daqui era muito difícil. Os ingredientes era tudo daqui
mesmo, e a comida era mais simples, tudo da ra. E na festa, todo mundo
entendia, e comia. Agora, tem mais mistura mais coisas, mais verduras.
Muita coisa que tem hoje, antes não tinha. Para o povo sair pra comprar era
muito dicil, não tinha carro, tinha de ir de carroça, de charrete, até Lacerda,
Cáceres. Tinha os índios que atrapalhava muita gente, ficavam na estrada.
Ai, o povo fazia o que tinha, pra festa. E o povo daqui, que convivia com
isso, compreendia. E agora, não! Com a mistura das pessoas, misturou
também as verduras, tudo misturou. Não ficou só nós. Com isso, o pessoal
foi colocando mais coisas, aprendendo, conhecendo mais.
246
Misturas que podem ser analisadas como marcas das miscigenações, elos de
reapropriação cultural, considerando “que a existência de uma relação fluida de alguns grupos
tradicionais com a modernização, onde ocorrem processos de adaptação dos saberes e hábitos,
de como lidar com as novas tecnologias, não resultam numa perda das tradições, pois esses
grupos tradicionais movem-se sem muitos conflitos nos outros sistemas
culturais.”(CANCLINI, 1997, p.238-242). Os processos de fusão cultural ocorridos nas
246
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
213
práticas alimentares da Festança em Vila Bela levaram a outras escolhas, ao abandono de
algumas variedades, pela impossibilidade de serem servidos devido o grande número de
pessoas presentes atualmente nos banquetes. Como também a um processo de busca de
reapropriações, de acordo com os relatos de algumas cozinheiras-festeiras, quando colocam
que algumas iguarias vêm sendo retomadas, como a paçoca de carne, servida no jantar
oferecido pela Juíza de São Benedito no ano de 1999. Para dona Catarina Bispo de Freitas,
“alguns festeiros estão querendo voltar ao passado”.
247
No que diz respeito ás carnes, informa
que, “até alguns atrás quando a participação na Festança era mais restrita á população local, a
variedade era maior. Eram servidos o leitão ou porco e o pernil assados; o surrão, que é o
couro do porco recheado com carne picada, a farofa; o frango, o peru, a cabeça de porco e a
carne de boi, todos assados no forno de barro, o molho de galinha, a lingüiça frita, a paçoca de
carne. Explica que essas carnes eram provenientes dos quintais dos grupos familiares locais,
com exceção do macarrão, normalmente adquirido em Cáceres. Sobre a preparação das
carnes, destaca que até hoje é considerada uma tarefa masculina. “É uma atividade do
passado, relacionada com o tipo de churrasco que era feito”, afirma: “A carne era assada pelos
homens. Era eles. Não era esse assado de churrasco. Era um assado assim, era churrasco sim,
só que era aquele espeto de taquara, com as carnes. Hoje tem grelha. Tudo é mais fácil
hoje”.
248
Segundo comentários de moradores, até a alguns anos, quando o desenrolar das
comemorações festivas se dava somente com a participação das pessoas do lugar, eram
servidas as carnes de porco, de galinha, tanto assadas quanto cozidas e o churrasco de carne
de boi assado em grandes espetos feitos de taquara. Analisando as Posturas da Câmara de Vila
Bela da Santíssima Trindade de1753, estabelecendo normas para a criação de porcos, pode-se
perceber a existência de um considerável consumo de carne de porco pela população local.
247
Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
248
Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
214
Sendo a criação de porcos na vila tão prejudicial às ruas e casas pelo muito
que as ofendem fossando e danoso à saúde com a corrupção dos ares,
ocasionada do mau cheiro dos seus lameiros, e por isso em toda a parte
proibida com penas; e não bastando isso, nem as muitas admoestações que se
fazem aos que esta vila têm enchido dessa criação que é só própria para os
sítios e roças, principalmente as negras forras que são as que mais se fundam
nestas porcadas; e sendo certo que El Rey Nosso Senhor nos não mandou
aqui de fazer chiqueiro, mas sim uma Bela Vila, e a permitir-se a uns esta
criação a poderão ter todos e o haverá quem se entenda com tanta porcada:
acordaram que qualquer pessoa que depois de quinze dias da publicação
desta Postura ( os quais damos para retirarem da vila a dita criação),
continuar todavia em conservar, será preso e com trinta dias de cadeia pagará
seis oitavas para a Câmara, e os porcos lhe serão tomados, e aplicados para
os presos, e na falta deles para as despesas da Câmara vendidos; e qualquer
pessoa que ao depois dos ditos quinze dias topar porca, leitão, ou cachaço o
poderá livremente matar, e só se permite que os moradores possam ter um
até dois capados, de seva os quais regularmente afeitos à casa de seus donos,
e ao seu chiqueiroo passam às ruas nem circulem toda a vila, como as
porcas e leitões; e todavia quem tiver os ditos capados terá o cuidado em
que durmam enchiqueirados, sob pena de que sendo achados de noite por
fora podeo ser mortos por quem os topar livremente.(
ROSA; JESUS,
2003, p.203).
Dona Gregória recorda que, antes era grande o consumo de carne de porco na cidade,
sendo que usava-se também a gordura para fazer os biscoitos, e as peles para colocar no
feijão.
Tinha de matar o porco adiantado, né, pra fazer o biscoito com a gordura do
porco. Não era margarina, era só a gordura de porco, que era usada. E hoje,
tem gente que acha que o biscoito com margarinao fica gostoso. O feio
com óleo o é gostoso como o feijão feito com toicinho, né! Na festa é
difícil botar toicinho, se faz feijão, faz aquele tutu. E antes, não era tutu, era
feijão mesmo, e hoje eles fazem tutu.
249
Segundo dona Rosa, além da carne de porco, era costume prepararem na Festança, a
galinha desfiada, assada, frita, ou no molho. A carne para churrasco era primeiramente
temperada e depois assada ou frita. Fazia-se também a paçoca de carne, consumida com
banana frita: “Isso é que era a mistura pra festa”.
250
Já dona Benedita, em seus relatos apresenta algumas variedades diferentes de carnes,
como o peixe e o pato:
249
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
250
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1998.
215
Na festa, sempre teve as comidas. Faziam o pacu. Aquele panelão cheio de
peixe. Quem o comia carne, comia o peixe, como o pacu, a piranha.
Faziam ensopado, com aquele molho, pra aqueles que preferiam o ensopado
e faziam frito pra aqueles que gostavam do frito. Os festeiros criavam
bastante patos. Também galinhas, frango. Faziam a galinha com recheio. Eu
sei fazer. Vou ensinar como é que recheia uma galinha. Galinha recheiada é
muito gostoso. Quantas vezes eu ajudei minha mamãe a fazer a festa dela.
Matava galinha, temperava elas, botava pra ferver aquele molho, depois
recheiava tudo com farofa feita de couve, cebolinha, temperos, ai botava pra
cozinhar por dentro, com banha de porco. Depois punha pra assar no forno,
eram duas, três assadeiras. O resto das galinhas fazia ensopada. O churrasco
era assado no espeto. Mas, cada um pegava o seu pedaço. Punham também
na mesa, e aqueles que tinham família, tiravam e levavam aquele pedaço pra
falia. Não tinha problema o.Agora que tem muita gente, tem problemas.
Faziam também carne de porco, galinha, pato, e o arroz com lingüiça. O
arroz era socado no pilão. Quantas vezes mamãe socava 20, 30 litros de
arroz pra fazer na festa dela.
251
Dona Andreza, reinscreve em suas lembranças sobre a fartura de carnes preparadas
para a festa:
A comida da festa é uma comida especial; é tradicional o feijão com
toicinho, a arroz com lina, galinha assada, salada, porco assado. Antes
tinha mais variedade, porque era mais pouca gente. Assava peru inteirinho, e
recheiava ele. Peru criado aqui. Fazia cabeça de porco. Depois de bem
limpinha, tirava a língua daquele cabeção de porco, depois enfeitava ela pra
pôr na mesa. Tinha liniça frita, galinha assada. Agorao faz mais porque
é muita gente. Fazia surrão de carne de porco, antigamente pegava o couro
do porco, costurava ele e recheiava. Fazia o surrão de porco, pra botar na
mesa, recheiava ele com farofa, carne, essas coisas. Era assim é que era. De
primeiro, quando minha sogra foi Rainha,s fizemos surrão de porco.
Agora não faz mais, porque ninguém agüenta. Ficava bonita aquela mesa.
Galinha assada, porco recheiado, pernil de porco assado. Mas não era esse
povão como agora.
252
Faziam o Rolão, uma variedade de carne considerada muito difícil ou “trabalhosa” em
sua confecção, afirma dona Nemézia:
Teve um ano, que o pessoal fez o Rolão. Foram dezenas e dezenas de Roo,
que é uma variedade de comida difícil de fazer, pois é uma carne que a gente
abre como bife, recheia com toicinho, verduras, tudo bem temperado, enrola,
251
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
252
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
216
passa o fio, põe pra cozinhar e depois tira o fio, e corta em fatias. Fica aquela
carne assim tipo recheiada. Tudo feito com o maior carinho.
253
A maioria das cozinheiras-festeiras deixaram comentários sobre a paçoca de carne,
considerada tradicional tanto pela população de Vila Bela como também em algumas
localidades de Mato Grosso. Segundo relatos, é preparada da seguinte maneira: Depois que
salgam a carne de rês, deixam a mesma secar ao sol. Quando está bem seca, retira-se todo o
sal, deixando-a de molho na água. Em seguida, depois de escorrida a água, e de lavar essa
carne muito bem, a mesma é picada e colocada para fritar, até ficar bem sequinha. Coloca-se
temperos ao gosto e farinha de mandioca. Em seguida essa mistura é colocada no pilão e
socada, até que se transforme numa farofa bem fina. Segundo informações, a Juíza da festa de
São Benedito, no ano de 2000, Miriam Paula Profeta Ribeiro, serviu a paçoca de carne. Mas
não é uma prática comum, devido os custos e dificuldades de preparação desta variedade de
comida, o que torna difícil a preparação para o grande número de pessoas que se fazem
presentes nos almoços e jantares coletivos.
Dona Maria Benedita, ainda faz dessa paçoca, para o consumo cotidiano:” é a banana
frita com a carne seca. Chamamos de cú de onça. Usamos até hoje no café da manhã, e é
muito gostoso. Nem sei porque é chamada de “cú de onça, é o Massaco.” Tem também o
“Massacá”, que é o “Baião-de-dois”.”
254
Sobre as verduras usadas tanto nos almoços como nos jantares coletivos nos dias da
Festança, relatos indicam que vinham das hortas domésticas ou muitas vezes provenientes de
doões, ambas eram cultivadas especialmente para o Santo. Essas doações e plantio
continuam atualmente, sendo que pode ocorrer de algum festeiro adquirir algum produto nos
supermercados, principalmente os legumes. É comum servirem as saladas de legumes como
cenoura, alface, tomate, cheiros verdes, ou somente o repolho picadinho com tomates. A
253
Relato de dona Nemézia Profeta Ribeiro. Vila Bela, 1999.
254
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
217
mandioca cozida acompanha o churrasco. Segundo informações, acompanhava também os
outros tipos de carnes. A farofa faz parte dos pratos tradicionais e normalmente é feita de
banana, com torresmos de porco ou de couve picadinha.
Retomando a relação das comidas oferecidas pelos festeiros e festeiras, no ano de
1998, destacamos que na segunda e terça feiras, dias consagrados a São Benedito, toda a
comida feita, é responsabilidade do Rei, da Rainha, e principalmente do Juiz e da Juíza.
No ano de 1998, tanto o sopão feito para os Dançantes do Congo, assim como os
banquetes foram preparados e servidos no Centro Comunitário, com exceção do jantar de
responsabilidade do Juiz, que foi servido na sua casa. De acordo com o ritual, logo pela
manhã, assim que deixaram os festeiros na igreja, os Dançantes do Congo dirigiram-se até o
Centro Comunitário, onde degustaram o Soo, considerado um alimento forte, ou seja, com
sustância” feito de carne com osso, legumes e macarrão, tudo muito bem cozido e
temperado. Segundo dona Cecília, era costume antes de irem para a igreja, acompanhando os
festeiros, a Rainha oferecer aos Dançantes, o chá com biscoitos. O Sopão era servido após a
entrega dos festeiros na igreja.
Antes, os festeiros de São Benedito, de manhã, Rainha dava chá, biscoito,
pros Dançantes, antes de irem pra igreja. Quando colocavam os festeiros lá
na igreja, eles, os Dançantes, voltavam e iam tomar a sopa na casa da Juíza.
Era assim, mas transferiu bastante. Tomavam a sopa de macarrão com
verduras, com osso. Era aquela sopa! Quando não tinha macarrão, tinha que
buscar lá em Cáceres.
255
O almoço, oferecido pelo Rei, Sr. Abidão Profeta da Cruz, foi servido no Centro
Comunitário, e o cardápio constou do arroz com lingüiça, o churrasco, o feijão simples, o tutu
de feijão, a farofa de banana, a salada de legumes composta de batata, cenoura, tomate,
cebola, alface. Foram abatidas três vacas. Vale ressaltar que o almoço oferecido pelo Rei
255
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
218
acontece na segunda feira, principal dia das homenagens a São Benedito. Por isso, é normal a
presença de grande quantidade de pessoas, dentre os quais se destacam grande quantidade de
poticos, representantes do governador do Estado, alguns deputados, prefeitos, lideranças
religiosas, lideranças comunitárias, acompanhantes e convidados. Observamos que durante
esse almoço, ocorreu uma concentração tão grande de pessoas no salão, que os Dançantes do
Congo considerados pela população local, como os principais da festa, foram deslocados que
almoçarem juntamente com seus familiares, na casa das freiras, localizada ao lado do Centro
Comunitário, porque as mesa que estavam reservada para eles, foram ocupadas pelos
visitantes.
Festeiras mais experientes, como dona Cecília, deixam entrever em suas lembranças
que antigamente, não acontecia esse problema, porque os Dançantes eram servidos separados
do restante das pessoas.
Antes, os festeiros de São Benedito, de manhã davam chá, biscoito pros
Dançantes, antes de irem pra igreja. Quando colocavam os festeiros lá na
igreja, eles, os daantes, voltavam e iam tomar sopa na casa da Juíza. Era
assim, mas transferiu bastante. Depois, quando era hora do almoço, os
Dançantes deixavam os festeiros na casa da Rainha, onde ia almoçar o povo.
Dançantes iam almoçar na casa do Rei,o almoçavam junto com o povo,
era separado, para ficarem mais à vontade. Quando era à tarde, iam jantar na
casa da Rainha e o povo na casa do Rei. Até nos fazer a festa era assim. De
uns tempos pra, transformaram. Agora fica comendo junto. Dançante fica
comendo e reclamando, que não pode levar a mulher. Agora o pessoal acha
melhor tudo junto, porque diz que termina tudo e aquela pessoao tem que
fazer mais nada.
256
O jantar, responsabilidade da Rainha dona Estelita de Oliveira Gomes, também foi
feito e distribuído no Centro Comunirio e teve como cardápio: a salada de alface, tomates,
cebola e repolho, o arroz com lingüiça, o churrasco, a farofa de banana e torresmo e mandioca
cozida.
256
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999
219
Na terça feira, o almoço oferecido pela Juíza, dona Lídia Rogilva Beneth Vieira,
também preparado e servido no Centro Comunitário, foi o feijão com pele de porco, cheiros
verdes e cebola, arroz branco temperado, arroz com lingüiça, mandioca cozida, churrasco e
salada de maionese com batata e cenoura. Ocorreu uma inovação, pois cada pessoa ao invés
de receber o prato com as comidas recebia um marmitex. Mas no final faltou comida, o que
causou certo constrangimento aos festeiros, familiares e alguns moradores locais. Não porque
a quantidade preparada fosse pouca, mas pelo motivo de muitas pessoas estarem carregando
vários marmitex para casa.
O jantar oferecido pelo Juiz Sr. Geraldo Avelino de Lima, foi em sua residência.
Houve um acúmulo muito grande de pessoas, fator que impossibilitou um melhor atendimento
a todas as pessoas presentes, embora também fosse grande a quantidade de comida. O
cardápio constou de arroz com lingüiça, churrasco, mandioca cozida, feijão e salada de
legumes e verduras.
No domingo seguinte, na festa da Santíssima Trindade
257
o almoço foi servido no
Centro Comunitário, e o cardápio era composto de arroz com lingüiça, feijão, salada de
verduras e legumes, churrasco, mandioca cozida e farofa de couve. Quanto à carne, percebe-
se que em todas as cozinhas da festa foi servido o churrasco à moda gaúcha, e a lingüiça ou
carne seca no arroz.
Percebe-se que, sem ser exótica, ou domingueira, a comida da festança é uma comida
de festa, porque mesmo que se caracterize pela simplicidade do cardápio, possui fortes laços
com o passado, reatados através da memória.
258
Segundo o Sr. Zeferino, representam a
mistura, porque: “vejo que o negro tá igual a carne no meio do arroz. Porque já tem muita
257
A festa da Santíssima Trindade teve como festeiros em 1998, o casal sr José Profeta da Cruz e dona Raquel
Silva de Campos.
258
Dados obtidos durante a realização da pesquisa, na Festança de 1998.
220
gente já e os negros de Vila Bela em si o podem mais bater no peito e dizer isso aqui é meu,
porque Vila Bela é de todo mundo.
259
3. 4. Doces, bolos e biscoitos : sociabilidades e afirmação de identidades
Dentre as práticas alimentares que compõem a Festança, focalizamos o costume dos
festeiros e festeiras oferecerem biscoitos ou bolos, acompanhados de bebidas como licores,
aluá, canjinjin e mesmo a aguardente, após os rituais das rezas, novenas. Também, após os
almoços e jantares coletivos, alguma variedade de doce como: de leite, de laranja, de cidra, de
mamão, e outros.
É comum encontrarmos nas festas religiosas católicas brasileiras, principalmente dos
santos mais populares ou tradicionais, a distribuição gratuita de comidas, biscoitos, doces e
bebidas, ou a existência de barraquinhas, tendas ou mesmo ao ar livre, onde inúmeras
guloseimas são vendidas a preços simbólicos. (BRANDÃO, 1982, p.61 –78 e ARAÚJO,
1959, p.267 – 301). Independente da condição econômica de cada festeiro ou festeira, da
variedade ou quantidade oferecida, os doces, biscoitos e bolos representam práticas culturais
em que estão implícitas sociabilidades, gestos e comportamentos, reafirmando identidades.
Por isso consideramos importante entender os processos destas práticas culturais na Festança
em Vila Bela, e a sua representatividade sócio-cultural, onde os conhecimentos de diferentes
grupos sociais em diferentes tempos fazem-se presentes, relacionados não só às exigências
culturais, à criatividade das cozinheiras, como também às formas de adaptação ao meio.
Estudos de Glória Moura relacionados às construções de identidades em algumas
festas quilombolas (MOURA, 1998, p.14), lembram a importância de se entender e interpretar
os significados dos símbolos e dos rituais das práticas culturais das festas em comunidades
259
Relato do sr Zeferino Profeta da Cruz. Vila Bela, 1998.
221
rurais ou tradicionais, pois são momentos de reencontros, de processos de criação e recriação
e de apropriações do que não é próprio do grupo.
Sobre o consumo de doces e bolos, buscamos referências em Cascudo, quando nos
remete ao costume doceiro português, cuja influência marcou profundamente a cultura
alimentar brasileira. A produção açucareira proveniente dos canaviais localizados no nordeste
brasileiro permitiu que gradativamente fossem utilizados os usos do açúcar de cana e
conseqüentemente a doçaria, num espaço em que não faziam parte do universo culinário
indígena e africano, ambos usuários do mel nativo. Por isso, essa prática doceira foi sendo
assimilada através de processos de adaptação,transformando-se pouco a pouco, em parte
integrante da culinária brasileira.(CASCUDO,1967,p.335-356).
260
Ressalta também que as
dificuldades com o abastecimento de alguns produtos europeus, como a farinha de trigo e
especiarias, bastante usados na confecção de bolos, doces e biscoitos, fizeram com que esses
produtos fossem sendo substituídos pelos derivados da mandioca e do milho. Nas regiões
interioranas do país, ou seja, nos pequenos centros urbanos, fazendas, engenhos e lavouras, a
doçaria e bolos eram confeccionados com muita habilidade pelas quitandeiras sempre
presentes nos dias festivos. Nos centros urbanos, especialmente nas regiões mineiras, os doces
e bolos eram vendidos por escravos e libertos, principalmente mulheres, as chamadas negras
quitandeiras ou de tabuleiro, que circulando pelas ruas, cumpriam determinações de seus
senhores e estimulavam a gula de todos que se acercavam. (CASCUDO, 1967, p.335-356).
Para entender a presença das práticas culturais na confecção dos doces, bolos e
biscoitos das festas dos santos em Vila Bela procuramos as reflees de Néstor Garcia
Canclini, sobre o modo como funciona a globalização e sua inflncia na vida dos indivíduos
e sociedade, ao colocar que a questão fundamental não está nas descrições etnográficas das
260
. Segundo Cascudo, a produção açucareira brasileira favoreceu o consumo português do açúcar, sobretudo em
Lisboa, onde as habilidades na confecção de doces e bolos se estenderam tanto nas residências quanto nas
confeitarias e recepções, surgindo verdadeiras obras primas que notabilizaram a história da doçaria portuguesa.
Destacavam-se nas festas litúrgicas, por meio das Ordens Religiosas, Confrarias e Irmandades, a preparação de
doces especiais, com inúmeros nomes, feitios, desenhos, formatos simbólicos.
222
pequenas comunidades, sejam rurais ou urbanas, destacando-se a continuidade dos grupos por
meio de suas resistências à modernização, mas sim na percepção da existência dos
entrelaçamentos culturais e das transformações provenientes destes mecanismos. Quando se
considera a incorporação de mensagens e bens externos, ou as modificações de costumes em
festas tradicionais, tendemos a ver esses processos como perda de identidades profundas e
originais. Entretanto as identidades atuais são resultados de muitos processos de adaptação à
industrialização, às migrações, às comunicações massivas e transnacionais. Por isso, é muito
importante analisar as mesclagens da diversidade, trabalhar os cruzamentos interculturais
como novas narrativas, entender os processos das novas identidades culturais.
261
Partindo desta perspectiva, consideramos que as práticas culturais existentes na
confecção dos biscoitos, bolos e doces, representam um conjunto de entrelaçamentos
culturais, onde estão diferentes identidades e lembranças, no jeito de preparar e dar sabor e
textura aos biscoitos e doces, onde se têm diferentes significados, traduzidos de diferentes
maneiras pela população de Vila Bela.
Para algumas cozinheiras-festeiras como dona Catarina, significam não só a união e a
solidariedade, pelo fato de se estar numa cozinha da festa, trabalhando em conjunto, como
também a necessidade da valorização dos saberes das cozinheiras mais antigas, elos
fundamentais para que as práticas culturais da festa sejam bem sucedidas.
Então a gente tem de ajudar os festeiros, que vêm pedir a gente pra dar uma
força na cozinha. Então eu vou na casa desses festeiros, né! Que convidam a
gente pra ajudar. Então lá, a gente fica em grupo, né! Eu fiz muitos
biscoitos, bolachinha amassada com a minha o, pra festeiros que vêm
pedir. Junto às colegas! Porque eu sozinhao posso fazer nada,!
262
261
CANCLINI, Nestor Garcia. La Globalización y la interculturalidad narradas por los antropólogos.
www.colceincias.gov.co/seiaal/congreso/Ponen1/Garcia.htmp
. p .5-6.
262
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1999.
223
Por isso é fundamental analisar e procurar compreender as simbologias que permeiam
os biscoitos, bolos e doces da festança de Vila Bela, pois fazem parte de corpos sociais em
que os indivíduos sentem-se emocionalmente ligados a símbolos, que representam momentos
do cotidiano, aspectos da cultura tradicional, hábitos familiares ou de grupos sociais. Preparar
os biscoitos, os doces e as bebidas são práticas culturais que demandam sabedoria, que se
traduzem em sentir-se parte de Vila Bela. Dessa forma, inclui-se as análises de Canclini,
quando afirma que “num território em que a identidade é posta em cena, celebrada nas festas e
dramatizada também nos rituais cotidianos, aqueles que não compartilham desse território,
nem o habitam, nem têm os mesmos objetos embolos, os mesmos rituais e costumes, são
considerados os outros, os diferentes, pois têm outro cenário e uma peça diferente para
representar.”( CANCLINI, 1997, p.190).
Foto 20 - Processo de preparação dos biscoitos para Festança
Fonte: Reis de Moura, 1998.
224
A confecção dos doces, biscoitos e bolos inicia-se em sua maioria, alguns dias antes da
semana da Festança. Na casa dos festeiros e festeiras, rnem-se seus familiares, promesseiros
e senhoras com prática na confecção dessas guloseimas. Normalmente o espaço da cozinha é
cercado de farinhas, polvilhos, ovos, açúcar, natas, manteigas, e demais ingredientes a serem
utilizados, num trabalho onde se destacam a preparação das massas, confecção dos biscoitos,
colocar lenha e acender o forno, observando quando o mesmo está no ponto para serem
assados os bolos e biscoitos, e posteriormente, a embalagem dos biscoitos em pequenas
sacolas de plástico ou em caixas de papelão, trabalho realizado pelos jovens.
Foto 21 - Empacotamento de biscoitos
Fonte: Reis de Moura, 1998.
Dentre os biscoitos, destacamos o biscoito de Ramos, que segundo relatos, é
atualmente feito e distribuído para poucas pessoas, devido ao crescente número de pessoas
presentes na Festança, e as dificuldades de confecção do mesmo. Fazer o biscoito de Ramos
225
exige determinados conhecimentos e habilidades
263
, por isso é feito somente por algumas
senhoras especializadas nesta arte.
264
Dona Gregória Marques de Ramos apresenta a sua
maneira de fazer esse biscoito:
A gente pode fazer o biscoito de garfo, pode fazer ele de Ramos. Eu gosto
mais de Ramos. A gente tem de fazer um raminho bem bonitinho, né! Uma
rosinha, uma flor. Colocar umas coisinhas nele, um bordadinho da mesma
massa. Ai tudo fica bonitinho. Eu aprendi com a minha mãe, assim a fazer o
ramo. Olhando, né! Porque a gente só no olhar ia aprendendo. Não tem
receita, tudo é de caba. O que vo pensar em fazer, vo faz com a
massa.
265
Feito para a Festança ou para outras ocasiões quando é representado em algum evento
gastronômico, destaca-se dentre as quitandas oferecidas, pela sua textura muito delicada,
decorrência da destreza e criatividade da pessoa que está confeccionando o mesmo.É
visualmente muito bonito, e feito normalmente representando ramos de flores, ou o nome dos
festeiros. Segundo as lembranças de dona Catarina Bispo de Freitas, até alguns anos atrás,
eram feitas caixas e mais caixas deste biscoito, para serem distribuídos para todas as pessoas
no decorrer da Festança.
Tinha donas mesmo que sabiam fazer o florado. De verdade! O festeiro já
chamava uma semana antes, as pessoas certas, pra ajudar. Era socada, né,
aquela massa no pilão, pra ficar macia, sabe! Então, cada uma pegava a sua
bola de massa, como eu, outras lá, pra fazer os biscoitos de Ramos. Eu sei
fazer um pouquinho, né! No passado tinham mulheres que sabiam
mesmo,mas sabiam mesmo, fazer o ramo. Dona Andreza ai, é chefe de fazer
ramos. Hoje ela já não faz mais, porque ela não agüenta fazer muita coisa.
E hoje, já mudou muito né!
266
E dona Cecília, ao falar sobre o biscoito de Ramos, coloca:
O biscoito de Ramos é mais sacrificoso. Assim pra tá fazendo o ramo. Muita
gente ainda o sabe. Nós mais atrás sabemos. Mas os outros o
263
De acordo com as informações obtidas de moradoras de Vila Bela, a massa do biscoito de Ramos é diferente
da massa dos Sequilhos, e exige certas habilidades no momento de formarem os ramos de flores com a massa.
264
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela em 1999.
265
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela em 1999.
266
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1999.
226
sabem.Então agora, passa naquina e faz o biscoito. Tem algum festeiro
que ainda faz biscoito de Ramo pra Dançante. Os mais novos não sabem,
mas os mais velhos ensinam pros mais novos.Já fiz muito biscoito de Ramo.
O biscoito de Ramo gasta mais massa do que o de passar na máquina, porque
a gente faz mais grosso, outros faz mais curto. Tem os desenhos. Eu faço a
figura de uma mulher com vestido rodado.
267
De acordo com as narrativas apresentadas, fazer o biscoito de Ramos não é uma tarefa
fácil, pois exige tempo disponível, certa habilidade e conhecimento da consistência da massa,
por parte da pessoa que está confeccionando o mesmo. É uma atividade que depende da
solidariedade, disposição de se estar ajudando os festeiros e festeiras, e conhecimento das
técnicas da confecção, que normalmente são transmitidas aos mais jovens, através da
oralidade, observação e mãos na massa. O biscoito de Ramos faz parte da herança cultural da
população de Vila Bela, e:
Mesmo que pareça ser de todos e disponível para o uso de todos, representa
um conjunto de apropriações, adaptações, de formas diferentes e em
diferentes tempos. Um conjunto de bens não estável e neutro, com valores e
sentidos fixados, através de processos culturais que como o outro capital,
acumula-se, reestrutura-se, produz rendimentos e é apropriado de maneiras
desiguais. (
CANCLINI, 1997, p.194).
São questões que nos permitem também entender algumas colocações de dona Maria
Madalena, que mesmo dizendo não saber fazer o biscoito, faz indicações de quem sabe fazê-
lo, como deve ser a massa, a presença da oralidade no aprendizado, pessoas que são
agraciadas e sobre as exposições do mesmo como algo diferente, a ser visto pelas pessoas de
fora. Indica também que devido o crescente aumento no número de pessoas presentes nos dias
da Festança, o biscoito de Ramos passou a ser oferecido somente para os Dançantes do
Congo, considerados os principais personagens da festa, e para alguns visitantes destacados
pelos festeiros:
Esse ramo é muito difícil de fazer, mas algumas mulheres como Dona
Natália,e da Ana Maria, Dona Benina, sabem faze-lo, e sabem fazer de
267
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
227
cabeça. Eles agora só fazem pros festeiros, convidados e pra alguém tirar
foto ou filmar. Fica na mesa do festeiro. A massa dele eu acho que é a
mesma do outro, só muda a forma de fazer. Assim acho.
268
Além do biscoito de Ramos, destacam-se também as chamadas bolachinhas ou
sequilhos. Adaptadas às novas tecnologias como a utilização do liquidificador, máquina para
passar a massa, que já dá uma forma uniforme aos biscoitinhos, compra de ingredientes no
laticínio ou em supermercados, os chamados sequilhos ou bolachinhas, têm em sua
composição alguns ingredientes como a nata de leite, manteiga, açúcar, polvilho de araruta e
ovos. e são feitos em grande quantidade e distribuídos a todas as pessoas após as rezas nas
casas dos festeiros e festeiras.
Observa-se que a chegada da energia elétrica na cidade, na década de 1970, permitiu o
uso de novos ingredientes e de alguns aparelhos elétricos nas cozinhas, prática que se
estendeu à confecção das bolachinhas ou sequilhos. Segundo Isaias Gonçalves de Paula,
269
os
biscoitos da festa hoje, se transformaram em biscoitos do tipo bolacha, feitos com o polvilho
de araruta. Até alguns anos atrás, usavam o polvilho de mandioca, porque os moradores
tinham o costume de plantar a mandioca, e fabricarem o polvilho para fazerem os biscoitos de
Ramos e os “biscoitinhos da Sinhá” para as festas. No lugar da manteiga, usavam a banha de
porco, de porcos também criados especialmente para o uso na cozinha da festa. Hoje são
usados novos ingredientes, que indicam negociações com os novos tempos, e sem por isso
perderem as características identitárias.
A gente sempre faz biscoito né! O biscoito de polvilho tem também a
bolachinha. A bolachinha é polvilho, com trigo, já leva mais ovo e já leva pó
Royal. Essas coisas. E o biscoito o leva pó Royal, nem trigo. Só leva
mesmo o polvilho. A gente pode fazer o biscoito de garfo, pode fazer ele de
ramo. Eu gosto mais do de ramo. O biscoito de garfo é aquele que amassa,
e o garfo e põe lá na forma. Tem festeiro queo ligao. Ele faz mais
assim, bolachinha. Já acha mais rápido pra festa. É mais rápido, leva pouca
gente, quatro pessoas faz muita bolachinha. Enquanto duas descansa, pega
268
Relato de dona Maria Madalena de Albuquerque. Vila Bela, 1999.
269
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1998.
228
duas pra bater na máquina, num instantinho. Agora, o biscoito, gasta mais
gente! Quando meu marido foi festeiro, Rei de São Benedito, em 1996, eu
fiz biscoito de Ramo e de garfo. O biscoito de Ramo a gente dá assim pros
Dançantes, pras pessoas que chegam , e querem ver, conhecer o biscoito.
Assim a gente distribui. Mas, o que fiz mais mesmo, foi o biscoito de garfo.
Não dá conta de fazer biscoito de Ramo pra quantidade de gente que vem.
Hoje Vila Bela cresceu muito, assim na festa, porque noutras coisas não
cresceuo, só está indo pra trás. Verdade mesmo. Comia muita carne de
porco aqui em Vila Bela. Todas as coisas, por exemplo, ia fazer biscoito?
Tinha de matar o porco adiantado, né, pra fazer o biscoito com a gordura do
porco.o era margarina, era só a gordura de porco que era usada. E hoje
tem gente que acha que o biscoito com margarinao fica gostoso.
270
A entrada da tecnologia nas cozinhas modificou os processos de preparação,
cozimento, e conservação dos alimentos, permitindo “o desaparecimento dos inúmeros
pequenos truques utilizados pelas cozinheiras, cujos segredos muitas vezes desapareceram
com a memória da gerão passada. Também um certo empobrecimento do vocabulário, com
a crescente abreviação das receitas, repassadas por escrito, que antes eram repassadas
oralmente. Ações que envolvem um profundo remanejamento do saber culirio, um
distanciamento em relação á tradição.”(CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.294).
No entanto, ressaltamos que tanto na confecção dos biscoitos, como de outros
“pratos”, mesmo com a utilização da tecnologia, ainda é costume nas cozinhas da Festança
em Vila Bela, muito mais o uso das os, a contínua transmissão oral das receitas, os usos de
fornalhas e fogões de lenha e fornos de barro aquecidos com lenha.
Além dos sequilhos e do biscoito de Ramos, o bolo de arroz é muito apreciado pelas
pessoas, quando oferecido após as rezas. Juntamente com os sequilhos, ultrapassaram o
espaço doméstico e o espaço da festa, pois ambos são comercializados em diferentes espaços.
O bolo de arroz é vendido pelas ruas de Vila Bela e nos pontos mais movimentados da cidade,
principalmente por dona Leopoldina Gonçalves de Paula, especialista na arte de confeccionar
tal guloseima e os sequilhos são comercializados principalmente em Cáceres, por senhoras de
270
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela, 1999.
229
Vila Bela residentes nessa cidade.
271
Comenta-se que alguns festeiros ainda costumam
oferecer o mesmo, acompanhado do Aluá, de licores, sendo que antes era servido juntamente
com o chocolate de amendoim, café ou chá de erva mate ou de erva-doce.
Para os cs das rezas e da chegada do santo na casa, era oferecido biscoito
de Ramos, geralmente com as iniciais dos nomes dos festeiros,
acompanhado do Aluá. De manhã, após a missa, e nas rezas, servia-se o bolo
de arroz com chá de erva doce ou chocolate de amendoim torrado.
272
O bolo de arroz exige também muita habilidade em sua confecção, segundo os
comentários de algumas mulheres. É uma confecçãomais trabalhosa”,que demanda tempo,
por isso atualmente está sendo feito muito mais para ser distribuído no período das rezas
iniciais referentes à novena do Divino Espírito Santo, onde é menor omero de pessoas,
com uma freqüência quase restrita aos moradores de Vila Bela.
273
Dona Catarina relembra saudosa sobre os modos de fazer o bolo de arroz, segundo ela,
uma massa temperada com melado de rapadura, cravo, canela e assado em folhas de
bananeira, ou em formas forradas com bananeira. E quando começava o processo de assar era
aquele cheiro que trezandava na rua inteira. “Ah! Fulano já tá fazendo do bolo!”
·.
Dona Maria Madalena, também comenta:
O bolo de arroz é tradicional. Desde que eu entendo por gente. Toda festa
tem de ter o bolo de arroz. Antes era assado na panela. Era mais difícil.
Também em folha de bananeira. Cortava as folhas, colocava o bolo e punha
pra assar. Eu acho que fica muito mais gostoso do que na forma de alunio.
O bolo de mandioca é o Mané Pelado. Você já ouviu falar? Não sei porque,
conheço com este nome desde quando eu entendo por gente. E não tem nada
a ver. E é muito mais gostoso que o bolo de arroz. Antes era feito com banha
de porco. Hoje é com margarina, erva-doce, mandioca ralada, úcar. A
gente espreme a mandioca ralada pra sair um pouco da liga, amassa normal,
põe o fermento. Antes não sei se existia, mas desde que eu entendo por gente
tem. Põe pra assar e fica um bolo mais fofinho que o bolo de arroz. O
pessoal agora ta misturando as coisas nas festas, pra ficar diferente. Tão
aprendendo mais coisas. Antes na festa era só bolo de arroz e o biscoito.
Agora já sai o de fubá, outras coisas, porque o pessoal ta conhecendo mais
271
Dados observados no decorrer da pesquisa em 1998.
272
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1999.
273
Dados observados no decorrer da pesquisa nos anos de 1998 /1999.
230
coisas. O biscoito era tudo amassado no garfinho, feito ao.o tinha a
máquina como hoje. Pra assar colocava na folha de bananeira.
Dentre os doces confeccionados para a Festança, podem ser encontradas diferentes
variedades, de acordo com a escolha dos festeiros ou festeiras. Segundo relatos, fazem parte
do cardápio os doces de laranja, de limão, de fava, de cidra, mamão, de figo, de arroz, de leite,
de milho, de batata-doce, como também o “furrundu”,
274
uma mistura de mamão ralado,
rapadura e gengibre.
Na Festança de 1998 e de 1999, foram servidos o doce de leite, segundo comentários
de moradores, não mais aquele feito nas cozinhas dos festeiros, e os doces caseiro de mamão
e de laranja, servidos em pequenos copos descartáveis, certamente devido ao grande número
de pessoas presentes, principalmente nos almoços. Segundo relatos, até algum tempo atrás, os
doces eram preparados com meses de antecedência.A gente fazia doce, fazia tudo
adiantado. Fazia doce de leite, doce de milho com leite, doce de caju, doce de batata,” afirma
dona Cira.
275
Dona Gregória, comenta sobre as variedades de doces feitos para as festas, marcando
o tempo comunitário da Festança.
Sempre faziam doce de laranja, doce também de mamão ralado, de batata, de
canjica. Hoje ninguém quer pisar mais o milho. Pisar no pilão. Hoje tudo é
batido no liquidificador, essas coisas. Não faz mais doce de canjica não.
Antigamente faziam muito doce de canjica, com leite de coco, babaçu. Esse
doce de canjica é como essa canjica que nos comemos na sexta-feira santa.
A gente socava o milho no pio, o milho amarelo era melhor. Punha pra
cozinhar, depois de novo tornava a pisar no pilão, depois passava na peneira,
com leite. Ia passando na peneira, vai ficando bem fino. Agora pode fazer
também com leite de vaca. Antigamente as coisas eram feitas com leite de
babaçu, tem mais sabor. Você pode fazer um bolo de arroz com leite de coco
e pode fazer outro com leite de vaca. Vai ver só a diferença. O com leite de
babaçu é mais gostoso. Já tinha leite de vaca aqui na Vila, mas preferiam o
leite de babaçu, porque era bom né! O pessoal gostava de trabalhar na
quebra do côco.
276
274
O furrundu é o doce de mao com rapadura, preparado e muito apreciado em Mato Grosso, principalmente
pela população das comunidades tradicionais. Maiores informações ver:Gomes, William. Dicionário Cuiabanês.
Cuia: Edit. UFMT, s/d.
275
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Vila Bela, 1999.
276
Relato de dona Gregória Marques de Ramos. Vila Bela, 1999.
231
Para dona Benedita, os doces para a festa significam uma relação com o sagrado e a
importância das relações solidárias que devem existir no espaço da Festança.
Os doces era de mamão, de cidra, de leite, de canjica. São Benedito era
doce de mao. Eu tinha um livro dele que contava que ele gostava na festa
dele só de doce de mao. Mas tinha que ser doce preto. Eu sei fazer um
doce de mamão que fica da cor de rapadura. Quando fui festeira, eu levei
daqui três latas de doce pra Vila Bela. Latas de 18 quilos. Agora, sempre
levo lata de doce pros festeiros. Ano passado, minha prima foi festeira, eu
levei uma lata de 18 quilos. Agora, quando Manoel foi festeiro eu levei uma
lata de 18 quilos pra ele e outra pra não sei quem. Promessa né! Eu pedi pra
São Benedito que me curasse e ele me curou. Pedi chorando que me desse a
saúde, e de repente o sangue estancou. E como o posso mais trabalhar nas
cozinhas, faço o doce e levo. Até o fim de minha vida. Até ele me recolher.
São Benedito é um santo milagreiro.
277
Dona Maria Benedita agradece também, através do doce, o poder de São Benedito em
amenizar os momentos de aflição por que passou. Percebe-se em suas palavras a força
mitológica deste santo, por isso considerado o santo maior, um patrimônio da população negra
de Vila Bela. Observamos também nos seus comentários, referências ao conhecimento que
adquiriu por meio de um livro, que explicava o gosto de São Benedito pelo doce preto em sua
festa. Encontramos registro na literatura de um livro de autoria de Frei Annio do Rosário,
que em 1702, compara São Benedito ao açúcar mascavo:
No dia do Juízo, que he o dia do pezo & encaxamento, fé verá que o affucar
fino; fão os mayores Santos de Igreja Catholica; o affucar redondoos
timoratos; a ffucar retumbado os convertidos; o mafcavado que preço te?
De certo mafcavado fei eu, & fé lhe chamar retame,o o afront, que terá
mayor preço do que muito affucar & branco e quem será? Sr. Benedito,
glória dos pretos, credito dos mafcavados, maravilha dos retamés, fera tão
eftimado & de tão fubido preço a affucar de Benedito, que todass as caxas.,
quefe embarcarem para o Reyno do Ceo naquelle dia, levarão na marca a
Benedito, porque com o titulo de Beneditos entrará a falvamento no poto do
ceo a frota dos predeftinados: Venite Benedicti Patus Mei.
(ROSÁRIO,
1702, p.97)
277
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
232
Dona Benedita não informou a procedência do livro que leu, mas é importante
destacar na sua afirmativa, a relação que faz entre o poder do conhecimento, que a leitura lhe
proporcionou, como também a ligação de sua atividade doceira com o sagrado. Sua prática se
dá de acordo com a crença inabalável em São Benedito, visibilizada por meio da obrigação de
todos anos fazer e oferecer para os festeiros, o doce de mamão, mas preto como São Benedito
gostava, de acordo com o que leu.
Para refletir sobre esta presença de São Benedito, no universo da alimentação,
encontramos explicações nas análises de Canclini, sobre a representatividade dos mitos:
Os mitos são o produto de operações de seleção e “transposão” de fatos e
traços escolhidos conforme os projetos de legitimação política, logo ter uma
identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro,
uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse
lugar se tornasse idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é
posta em cena, celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais
cotidianos. (
CANCLINI, 1997, p.190)
De acordo com os relatos apresentados, algumas narrativas ressignificadas, percebe-se
que nos biscoitos, doces e bolos da Festança, estão presentes construções culturais
entrelaçadas com as experiências e escolhas dos diferentes grupos sociais. A incorporação de
novos elementos, ou seja, a utilização de novos ingredientes, novos vasilhames e alguns
maquinários, demarcam processos de assimilação, adaptação ou empréstimos diante das
exigências da modernização. Mas, consideramos que as tradições ainda conseguem se manter,
justamente porque passam por processos constantes de readaptações aos novos tempos. Esse
entrelaçamento com novos traços culturais, permitem a sobrevivência de algumas variedades,
justamente porque são práticas que passam por constantes processos de readaptações
233
3. 5. Bebidas para a Festança
Alguns estudos sobre bebidas indicam que desde a Antigüidade seu uso sempre foi
muito apreciado pelas pessoas, seja individualmente ou em grupos sociais, e utilizado
especialmente em ocasiões festivas ou solenes. Levam os indivíduos a inventar, reinventar e a
produzir variedades, misturas culturais de acordo com as experiências e poder aquisitivo.
(FLANDRIN; MONTANARI, v.1, 1996, p.24; REVEL, 1996, p.98-126).
O consumo de bebidas nos tempos arcaicos não era considerado uma atividade
profana, mas um ritual, porque possuía uma finalidade definida, relacionada ao sagrado, onde
otico era associado às ações cotidianas como caça, pesca plantio, colheita, jogos, conflitos,
sexualidade e demais atividades significativas para os grupos sociais. Com o passar dos
tempos, essas práticas culturais perderam este sentido, devido os constantes processos de
dessacralização (ELIADE, 1969, p.42-48), surgindo novos significados.
Sobre o consumo de bebidas no Brasil, encontramos especialmente em Luis da
Câmara Cascudo, citações de que os portugueses eram grandes consumidores de vinhos.
(CASCUDO, 1967, p.142). Nos primeiros tempos da colonização, o vinho integrava a dieta
básica, embora fosse consumido com moderação. Não se dispensava um copinho de vinho de
Portugal, costume que levou os primeiros colonizadores a transplantaram mudas de videira
para a produção de vinho, na Bahia e São Paulo. Mas não conseguiram suportar a pressão das
empresas monopolistas de comércio de Portugal, responsáveis pela importação para o
mercado brasileiro dos vinhos do Reino e da ilha da Madeira. Desse modo, a aguardente de
cana, passou a ser gradativamente a bebida mais procurada e estava entre os gêneros
selecionados para o abastecimento.
278
278
Maiores informações ver: FIGUEIREDO, Luciano. Pinga, cachaça, jeribita. Revista Nossa História. Ano 2,
n 13, nov de 2004, p. 68-72/ ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos Viventes. Formação do Brasil no
Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 2000 / ANTONIL, André J. Cultura e Opulência
do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982 / CASCUDO, Luis da Câmara. Prelúdio da Cachaça. Belo Horizonte:
234
Em Vila Bela, por volta de 1788, Ricardo da Almeida Franco, membro da Comissão
de Demarcação de Limites instituída pela Coroa Portuguesa, deixou entre os relatos sobre o
cotidiano da cidade, a existência de algumas parreiras, nos quintais das casas.(FRANCO,
1858, p.377).
279
Entretanto não se sabe se este plantio era direcionado para a produção
doméstica do vinho.
A cachaça era vendida pelos comerciantes das monções do Pará e de São Paulo,
280
ou
adquirida nas Províncias dos Mojos e Chiquitos.( FRANCO,1858, p.337).
Podia ser encontrada nas vendas existentes na cidade, ou vendidas pelas negras
cativas ou forras, mulatas e índias, presentes no comércio de gêneros alimentícios, bebidas,
nas vilas e arraiais tanto nas áreas urbanas como nas áreas das minas. Conforme o artigo
dos Estatutos Municipais de Vila Bela foi proibida a presença de negras cativas ou forras,
mulata ou índia,[...] nas lavras ou faiscadeiras gerais, ainda que não se achem com instruções
de taverna e comestíveis, porque regularmente os escondem no mato. Sejam presas e
condenadas em trinta dias de cadeia e seis oitavas de condenação para a despesa da câmara, e
demais no prêmio que se taxar o atendente de serviço cuja obrigação e contrato incube esta
inspeção e correição.
281
Nas Posturas de Vila Bela (cap.3°: dos subsídios, contratos e rendas damara) estão
algumas normas referentes à venda de vinho e da aguardente do Reino. Deixa claro que o
contrato das: “Águas ardentes da Terra consiste em estancá-las, coisa muito necessária à
República por evitar a laxidão com que se vende aos negros barateando-se, e ocasionando
Itatiaia, 1986 / FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Decadência do Patriarcado Rural e
Desenvolvimento do Urbano. Rio de Janeiro: Jo Olympio. 1981 / SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos:
Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial - 1550-1835. São Paulo: Cia das Letras, CNPQ, 1988.
279
. Franco menciona outras árvores frutíferas existentes em Vila Bela como: ata, fruta do conde, coco da Bahia,
melão, melancia, caju, ananaz, abacaxi, jabuticaba, mangaba, figo.
280
VOLPATO. 1987, p.59, destaca que o comércio via Madeira-Mamoré-Guaporé, posteriormente controlado
pela Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão importava produtos manufaturados do Mar do
Norte, do Báltico, do Mediterrâneo, ligando Vila Bela ao mercado de Belém do Pará. Embora a autora não tenha
citado o vinho, entre os produtos comercializados supõe-se que o mesmo chegasse até Vila Bela, devido o
costume português de consumo do mesmo.
281
MATTOS, Mulheres Forras em ambientes urbanos na Capitania de Matto Grosso. Projeto de pesquisa
para obtenção do título de graduão em História. Cuiabá: Departamento de História. UFMT.
235
com a barateza mais bebedices, que passa aos brancos. Determina também que os fabricantes
da aguardente poderão vendê-la nos engenhos aos frascos e não por outra medida miúda.”
(ROSA; JESUS, 2003, p.195-212).
Após a transferência da capital para Cuiabá, período de decadência ecomica de Vila
Bela, os engenhos se transformaram na atividade ecomica produtiva mais importante.
282
Torna-se importante registrar os comentários de Severiano da Fonseca, em 1875, sobre “a
existência nas encostas da serra alguns poucos sítios e lavouras, como algumas engenhocas de
açúcar dos Srs. Paulo dos Santos, Antunes Maciel e Samuel, esta já próxima de uma
localidade denominada Cubatão. Algumas plantações de mandioca, cará ( dioscorea), e de
cana de açúcar, usada na produção de rapadura, aguardente e especialmente do Restillo,
283
bebida da terra, cujo nome já indica o que é; bebida da terra que bem merece o nome de fogo
liquido, com que a baptisou um reverendo italiano que ultimamente parochiava a freguezia.
Pelas ruas havia muitas vendas, “tendas de negócios”, magramente sortidas de artigos de
mercearia, drogas, fogos artificiais, calçados e bebidas espirituosas”.(FONSECA, 1986,
p.126).
Já no século XX, por volta de 1936, o Major Frederico Rondon, deixou registrado em
sua passagem por Vila Bela, a existência de alguns engenhos em sua maioria abandonados,
com poucos moradores. “Somente o da Pedreira possuía fabricação de cachaça e rapadura.”
(RONDON, 1938).
Nos tempos atuais, principalmente a partir da década de 1980, com o crescente
processo de perda das terras e conseqüentemente desativação dos pequenos engenhos
282
Segundo BANDEIRA.1988. por volta de 1856, o comercio externo praticamente havia acabado em Vila Bela,
e a população passou a se dedicar ao plantio para o consumo. O cultivo da cana de açúcar era feito somente por
algumas famílias, sendo o açúcar um produto escasso, mas havia fartura de rapadura e melado.
283
Segundo informações em entrevista realizada em maio de 1999, com dona Rosa de Lima Frazão de Almeida,
Restillo é a primeira pinga que sai do alambique, e apresenta-se como uma bebida muito forte.
236
existentes na região,
284
a cachaça passou a ser adquirida em sua maior parte nos
supermercados, sendo que na Festança, é utilizada tanto na confecção dos licores e do
Canjinjin, como para ser servida pura, em pequenas doses.
É costume prepararem também o Aluá, servido nas casas dos festeiros após as rezas,
nas visitas da Folia do Senhor Divino, na entrega dos festeiros e festeiras pelos Dançantes do
Congo. Observamos emrios relatos, a mistura dos significados do Aluá com a Chicha,
bebida de origem indígena, pois é comum em Vila Bela chamarem o Aluá de Chicha.
Segundo dona Cecília: “A chicha é forte, tem que ser temperada, pode beber por dois ou três
dias. O aluá é feito hoje pra beber hoje mesmo. A chicha é do milho, é de boliviano. O aluá é
de brasileiro. Põe até aluá só pra atrapalhar”.
285
Uma composição de milho ou fubá torrado, socado e peneirado, gengibre e água,
286
o
Aluá é servido acompanhado pelos sequilhos ou bolo de arroz. Percebe-se que é ansiosamente
esperado, funcionando como uma poção mágica, com o poder de aplacar a sede e afastar o
cansaço que muitas vezes toma conta das pessoas, participantes dos cortejos de entrega dos
festeiros e festeiras em suas casas. “Nada melhor do que um copo de Aluá, bem geladinho,
nos intervalos das caminhadas,” comentam.
Sobre a Chicha, constata-se que ao lado de outras bebidas, já era fabricada e usada
pelos povos indígenas. Tanto sua fabricação como seu uso, se apresentam com uma função
grupal, de solenidade e de proporcionar a alegria. (CASCUDO, 1967, p.135-147).
287
Estudos
284
Segundo os relatos de Isaias Gonçalves de Paula, existia até poucos anos o alambique do senhor Zeferino
Profeta atualmente desativado, e o do Valentinzão, também desativado. Cáceres, 2005.
285
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
286
Observa-se que o Aluá é chamado pela maioria das pessoas de Vila Bela de Chicha, uma bebida boliviana.
Segundo informações de Isaias Gonçalves de Paula e de antigos moradores de Vila Bela, a Chicha é um costume
da população indígena Chiquitana, da Bolívia. É uma bebida que possui um teor alcoólico, pois o milho deve
ficar em repouso, num cocho ou vasilha apropriados e bem lacrados, para que ocorra o processo de
fermentação.Nota-se que na cidade de Cáceres, que também faz fronteira com a Bolívia, encontramos o uso da
Chicha, por parte dos moradores nos bairros periféricos, principalmente em alguns eventos mais tradicionais,
como algumas festas de santos.
287
Alegria que também acompanhava o Tarubá, feito com beijus de mandioca, mel e água, o Pulque Mexicano,
bebida extremamente refrescante, uma composição do suco de maguey (cactos), nos primeiros dias de
fermentação, chamada de Hidromel (água e mel), bebida de coloração amarelada, doce e ligeiramente
alcoolizada após uma fermentação mais prolongada. Também o Mocororó, a base do arroz ou mandioca cozidos;
237
realizados por Maria Cristina Bohn Martins, informam que os conjuntos de práticas sociais
que envolviam o consumo de bebidas alcoólicas pelos índios Guaranis ouas festas da
Chicha eram traduzidos pelos religiosos jesuítas comoborracheiras, um cio com
inspirações demoníacas e generalizadas entre as populações indígenas. Os rituais de iniciação,
de primeiras colheitas e outras comemorações, ocasião de festas comunitárias e até mesmo
intergrupais, efetuadas em contextos revestidos de simbolismos, onde aconteciam danças,
jogos, cantos, troca de noticias, de presentes e alimentos, e uma preparação prévia de muita
comida, e o uso de bebidas como a Chicha, eram vistos pelos missionários da Companhia de
Jesus como um dos problemas a serem superados pela ação civilizatória e evangelizadora.
(BOHN MARTINS, 2000 ).
Também chamada debeberagem”, a preparação da Chicha era um trabalho
exclusivamente feminino. Preparada e guardada em grandes cochos feitos de troncos ocos de
árvores era utilizada nas festas de natureza social e/ou mágico religiosa, como também em
reuniões relacionadas com a caça, a pesca, colheitas, visitas e recepção de hospedes, à guerra,
virias e conselhos de paz, nos ritos ligados ao nascimento, iniciações e celebrações fúnebres
e em algumas regiões acompanhando as práticas xamanísticas. Os Chapanecas do rio Madeira
e terras da Bovia, os Mojos do Peru, os Tupari do Rio Branco, afluente do Guaporé,
fabricavam a Chicha.(COOPER; RIBEIRO, 1987, v.1, p. 108-112).
A Chicha feita de milho, a Jacuba ou Xibé feita de mandioca, o vinho de Caju, de
Ananás, de Jenipapo, o Aluá, bebida feita de milho, com uma técnica de elaboração
semelhante a dos povos africanos, eram bebidas muito difundidas, e apreciadas até hoje em
algumas regiões brasileiras. Cascudo registra as descrições de Roquete Pinto sobre a
fabricação da Chicha, feita de mandioca e milho, pelos índios da serra do Norte (MT).
(CASCUDO, 1967, p.135-147).
a Tikira; o Caxiri; o Chibé; a Cayssuma, todos feitos com a mandioca, sendo que na elaboração do Cayssuma,
usavam o milho ou a batata.
238
Neste contexto situamos as bebidas da Festança: a cachaça, aguardente ou pinga pura,
o Canjinjin, Aluá, chocolate de amendoim, licores de frutas, folhas e flores, chás de folhas
variadas, café. Em suas lembranças sobre as bebidas, dona Gregória descreve que o uso da
Chicha, ou Aluá são recentes, além de relembrar algumas estratégias utilizadas para a
conservação das mesmas, em outras atividades fora da Festança.
288
Em Vila Bela, a 1970 a 1972, não tinha geladeira, eu me lembro até assim,
a gente brincava muito na beira do rio. Se levava cerveja, era colocada
dentro da água, botava elas num saco, e botava dentro da água. Eu me
lembro. Eu nunca bebi cerveja, mas eu me lembro. Na festa, era tudo feito
no dia
.
289
As descrições de dona Gregória nos levaram a refletir sobre a chegada da
modernização em Vila Bela, através da energia elétrica, e conseqüentemente a influencia da
tecnologia na elaboração dos alimentos, com o uso de aparelhos como geladeira,
liquidificador, e outros.
Os gestos da tradição recuam diante dos que foram impostos pelos novos utensílios,
que vêm ajudar as atividades numa cozinha, transformando as paisagens A mudança não
abrange apenas o utensílio ou o aparelho e o gesto de quem o utiliza, mas a relação
instrumental que se estabelece entre o utilizador e o objeto utilizado, pois a pessoa
transforma-se de artesão, empenhado em aperfeiçoar seu método ou variar sua produção, em
espectador que olha a máquina funcionar em seu lugar.”
(CERTEAU; GIARD; MAYOL. 1996,
p.284).
Dentre as bebidas não alcoólicas, servidas durante a Festança, apresentamos o Aluá. É
descrito por Manuel Quirino, como uma bebida africana, “feita com o milho demorado na
água por três dias, o que lhe dá um sabor acre, fermentado. Em seguida côa a água,
adoçando-a com rapadura. Desta mesma forma é preparado o Aluá ou Aruá de casca de
288
Relato de dona Gregória Matos de Ramos.Vila Bela, 1999.
289
Idem.
239
abacaxi. A técnica indígena de fabricação do Aluá é muito semelhante ao “Luá dos Haussá
da Costa da Mina,” que colocam o milho cozido numa panela de barro juntamente com o
açúcar ou rapadura, cachaça e gengibre. (QUERINO, 1988).
290
Dona Catarina, explica como é preparado o Aluá em Vila Bela:
Torra e depois manda triturar o milho. Antigamente era socado no pio.
Torrava o milho, tinha uns que faziam fu, e outros só socavam o milho e
botavam naqueles potes grandes, colocavam água, gengibre, um pouco de
açúcar e ficava ali curtindo, até chegar o dia da festa. Ah! Ficava gostoso
mesmo.
291
Também dona Maria Benedita faz alguns comentários sobre o Aluá:
Antes faziam o Al, sempre fez. Tinha um pote grande assim, cheio de
Aluá. Era um pote de barro. Neste tempo,o tinha açúcar,o era fácil
açúcar, temperava com melado de cana. O Aluá é a mesma Chicha.
Antigamente, nós fazia assim: torrava o milho, e socava o milho até ficar um
pó. Aí, cozinhava aquele pó de milho, socava, socava a quirela, passava na
peneira fina. Não tinha geladeira nesse tempo, gelava no pote de barro.
Tinha o pote próprio pra fazer o Aluá. E todo mundo tomava, ficava
contente.
292
Observa-se que a técnica de fabricar o Aluá em Vila Bela possui semelhaas á
maneira como o Aluá era preparado pelas africanas, de acordo com as descrições de Manuel
Querino. Entretanto, não podemos deixar de levar em conta que, a preparação desta bebida
certamente passou por processos de adaptações, o que garantiu a sua sobrevivência cultural.
Importante destacar que a sobreposição dos significados entre o Aluá e a Chicha deve
ser vista considerando-se a proximidade geográfica e cultural que existe entre Vila Bela e
Bovia. Para entender esta aparente confusão nas práticas culturais do Aluá, bebida
proveniente da cultura negra africana e a Chicha, bebida com raízes culturais indígenas,
recorremos às explicações de Manuela Carneiro da Cunha, quando diz que: “a cultura original
290
Para Manoel Querino (1988) além do Aluá, os escravos africanos usavam a garapa de cana de açúcar, bebida
muito refrescante e apreciada, principalmente nas regiões de engenho de açúcar. Também a Cachaça, base das
melhores mezinhas, era misturada com canela, com a goma de mandioca, noz-moscada, cebolas assadas, mel de
abelhas, certas sementes, frutos secos, raspas de raízes, e considerada uma das bebidas das mais prestimosas.
291
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
292
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
240
de um grupo étnico, na diáspora, ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde
simplesmente, mas adquire uma nova função.” (CUNHA, 1986, p.116).
Ainda acompanhando essa reflexão destacamos as observações de Cunha: “A cultura
não é algo dado, posto, dilapidável, mas algo constantemente reinventado, recomposto,
investido de novos significados; daí a importância de se perceber a dinâmica, a produção
cultural destes significados.” (CUNHA, 1986, p.116).
Sobre o consumo das bebidas, os festeiros comentam que o crescente número de
pessoas presentes nas festas atuais, demanda a necessidade de se fazer maior quantidade de
bebidas o que acarreta grandes gastos com a compra dos ingredientes. Destacam também que
é de fundamental importância nesse contexto da Festança, o número de pessoas dispostas a
ajudar na preparação das bebidas.
Dentre essas bebidas, o Canjinjin
293
é atualmente muito apreciado. Em alguns relatos
moradores destacam que até meados da década de 1990, os próprios Dançantes preparavam o
seu Canjinjin, ou seja, colocavam em seus cantis alguns ingredientes como raízes recolhidas
nas matas locais, junto com a pinga de alambique. Era uma bebida de uso exclusivo dos
Dançantes, por todo o período da Festança. Vista como uma bebida misteriosa é uma
demonstração pública de amizade e consideração a uma pessoa, receber do Dançante a oferta
de um gole do Canjinjin do seu cantil. Posteriormente, algumas mulheres começaram a
preparar o Canjinjin, que passou a ser feito na casa dos festeiros para os Dançantes, como
também para ser servido às pessoas após as rezas. Embora seja considerada pelos negros
como uma bebida que remonta às raízes africanas, alguns relatos indicam que:
Agora inventaram até o Canjinjin. O canjinjin é do sistema novo. Eles
inventaram até esse ai. Todo mundo gosta muito dele. Antes os daantes
bebiam, mas só a pinga pura. Tinha naquele cantil assim, a pinga.
293
Segundo relatos, nem todas as mulheres negras de Vila Bela têm acesso à fórmula do Canjinjin, que é
repassada apenas para algumas, mesmo sendo do mesmo grupo familiar. A venda do Canjinjin se efetiva
basicamente pelas mulheres de Vila Bela, em alguns locais e eventos turísticos, escolas, universidades, ou em
algumas residências e alguns “pontos” comerciais.
241
Antigamente era só a pinga. Aí, depois eles naquela pinga colocaram o
açúcar, a canela. Fica gostoso, né!Naqueles tempos, eles o bebiam
enquanto dançavam. Acabava a voz. Bebiam a chicha, é que eles gostavam.
Depois que acabavam de dançar, a quarta feira era deles. Aí misturavam
tudo.
294
Também Dona Rosa comenta:
Hoje em dia fazem o Canjinjin. O Canijnjin inventaram por causa do pessoal
que cantava: “Canjinjin, Canjinjin, é de pinga, cravo, gengibre. Antes os
Dançantes bebiam a pinga, não tinha o canjinjin. Era só pinga boa, especial,
que colocavam no cantil que carregavam. Assim é que era. Um Daante,
meu vizinho, o tomava nada, nem o aluá. Não tomava o al, porque
atrapalha a voz, a voz acaba. Eles não tomavam o aluá, os Dançantes. Eles
o comiam doces. Antes, os Dançantes só tomavam a pinga, porque não
tinha o Canjinjin. Era só pinga boa que colocavam no cantil. Assim é que
era. Eles também não tomavam aluá.
295
Percebe-se que mesmo sendo considerada uma bebida tradicional, durante o período
da festa de São Benedito, os dançantes do Congo só tomavam a pinga misturada com raízes.
“A bebida naquele tempo era só a pinga mesmo. A pinga e o licor,” afirma Dona Rosa.
296
Atualmente, o Canjinjin é a bebida mais difundida e extrapolou as fronteiras da
Festança. A popularização do seu uso vem crescendo a cada ano, sendo que já existe segundo
algumas informações, providencias de se efetivar o registro legal do mesmo, para evitar a
posse ou descaracterização de sua receita. Durante a Festança é feito nas casas dos festeiros, e
distribdo para os Dançantes que o coloca em seus cantis. É também servido para as pessoas
após as rezas e ofícios religiosos realizados nas residências.
Fora do espaço da Festança, é consumido em algumas residências durante ocasiões
especiais e comercializado especificamente por mulheres de Vila Bela, tanto no município,
como em Cáceres, Cuiabá e outras localidades. Segundo as informações contidas no rótulo
294
Relato de dona Cecília Aranha de Almeida. Vila Bela, 1999.
295
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1998.
296
Idem.
242
das garrafas de Canjinjin para a comercialização, em sua composição consta: mel, pinga de
alambique, ervas da região, gengibre, cravo, canela, erva-doce.
297
Foto 22 - Modelo de etiqueta colocado na Garrafa de Canjinjin
Fonte: Vila Bela da Santíssima Trindade, 1999.
Os licores são também bebidas muito apreciadas. Possuem delicados sabores e
espessuras, e são feitos de folhas de figo, de frutas como o pequi, a lima, a jabuticaba, o
jenipapo, de outras frutas regionais, ou de leite, erva doce, e em algumas casas, da flor da
perpétua e flor da laranjeira.
Os licores também fazia de antes. Licor de leite, a gente cozinhava bem o
leite, deixava esfriar e ai botava os temperos, né! Ia a erva doce, a canela, só
o botava o cravo, porque cravo escurece. Essas coisas assim. O licor de
leite é o leite de tigre que eles falam hoje. Faziam também o licor de folha de
297
Componentes do jornal “Matingombê formado por pessoas oriundas de Vila Bela, e residentes em Cuiabá, da
Associação Amigos de Vila Bela, também com sede em Cuiabá, juntamente com representantes do governo do
Estado de Mato Grosso, e SEBRAE, introduziram em Vila Bela o ProjetoKanjinjin:Tradição, Trabalho
Renda,” na tentativa de segundo o discurso apresentado nos meios de comunicação, “unir a preservação cultural
de Vila Bela e efetivar a geração de trabalho e renda das famílias produtoras desta bebida”. Fontes: Oficio
circular n° 01/2004. Convite para a regularização da Associação Matingombê dos Filhos e Amigos de Vila Bela
da Santíssima Trindade, em 26/07/2004 / Jornal Vozes da Matingombê, maio de 2004, edição n° 01/2004 /
Convite para a reunião realizada em Vila Bela, em 30/04/2004, no Centro Comunitário, para o lançamento do
Projeto / texto: Vai um Kanjinjin ai? Jornal do Ônibus, Cuiabá em 05/05/2004, p.06.
243
figo, que é muito gostoso, o licor da flor de laranjeira e da flor chamada
suspiro. Am do licor, tinha a pinga. Hoje fazem alguns licores como
faziam antigamente. O que eu lembro é só esses que eu tou falando.
Ofereciam também o chá, assim pro festeiro, serviam café, e pra quem
gostasse serviam o mate e o café com leite”.
298
Para Isaias Gonçalves de Paula, o modo de fazer os licores vem passando por
mudanças, pois moradores de Vila Bela até alguns anos atrás usavam um processo mais lento
na elaboração dos licores, onde a essência escolhida, após ter ficado em infusão na pinga por
quatro a cinco meses, passava por um processo de filtragem em que utilizavam chumaços de
algodão. Logo após a colocação desta essência na calda, o licor era colocado em garrafas de
vidro. Atualmente, o licor é feito por um processo mais rápido, onde é utilizado o
liquidificador para bater e misturar os ingredientes, no processo de filtragem não se utiliza o
chumaço de algodão, mas apenas se côa a mistura que em seguida é colocada à calda. São
feitos os licores de folhas de figo, de leite, de pequi. Além dos licores, é muito apreciado o
“leite de tigre”, bebida feita de leite, açúcar, canela e cachaça.
Dona Catarina afirma que além do licor de flores de laranjeira, faziam o licor de pequi,
de jenipapo: “Esse aí eles botavam pra curtir na pinga. E outros tipos de licor, como o de
folha de figo, de tangerina. Então era isso. Daí vinha o Canjinjin, que os Dançantes sempre
usavam para a garganta, porque eles saiam dançando, então eles tomavam pra não sumir a
voz.
299
Quanto às bebidas, a gente faz licor de leite, Canjinjin. Essas bebidas são
antigas. O licor de leite, o Canjinjin, tudo é antigo. Os Dançantes daam
com o cantil cheio de Canjinjin. Eles bebem e quando a vasilha seca, eles
vem na casa do festeiro pra encher de novo. Fornecer bebida pra Daantes,
é responsabilidade do Juiz e da Juíza.
300
298
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
299
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
300
Relato de dona Andreza Pires de Almeida. Vila Bela, 1999.
244
Dentre algumas considerações sobre as bebidas, destacando os usos do Canjinjin e
sobre os licores, apresentamos o relato de dona Rosa.
Licor a gente fazia, tinha a pinga. Meu marido tinha alambique, tinha sitio
na Suzana. Era tão bom! A vida era só a lida na terra! O pessoal ia na festa
lá, festa que gostavam muito. Bebiam a zurunga,
301
que é a garapa azeda,
depois que ferve e bota na gaveta pra destilar. O “restilo” da pinga, que eles
tiravam. Enchia o alambique. O vapor que escorria dentro da zunga, o
suor dele, o vapor é que é o “restilo”. Que é restilado, sai frio. A garapa fica
parada; é mesmo que álcool; é a primeira cabeça dele, mesmo que álcool. O
festeiro tirava esse restilo, essa cachaça mais forte, o restilo, pra fazer o licor,
dessa primeira cachaça que saia. Ai, descia outra, ia temperando,
temperando, até ficar normal. Ai saia a cacharanda. Quanto aos licores, hoje
algum é como fazia antigamente.Zobeida sempre faz licor de casaca de lima.
Antes os Dançantes bebiam a pinga, não tinha Canjinjin. Era pinga boa,
especial. A festa deles, quando era quarta-feira, ai sim, eles iam comer doce,
o biscoito de Ramo. Nos dias da festa era só a bóia, outras coisas, o resto era
na quarta-feira. Ai, era a festa dos Dançantes, sem compromisso. Hoje
alguns bebem. Agora, se o álcool entra na cabeça, não sabem o que o
fazer. Antes eles tomavam só um pouquinho de pinga. Cedo na casa da
Juíza, eles tomavam aquela sopa. Todos tomavam e saiam daando. Depois
era o almoço e a janta. Na quarta-feira festavam.
302
Podemos perceber diferentes interpretões sobre os usos das bebidas durante a
Festança, em que as experiências ao serem reinscritas deixam sinais de alguns pontos em
comum, visibilizados por meio da tensão entre o antes e o depois e a necessidade de se
afirmar identidades, como estratégias diante dos novos tempos; dos deslocamentos das
práticas culturais, diante das novas atividades produtivas e das novas práticas cotidianas;
crescentes facilidades de mobilidade para outras cidades; chegada de outros grupos sociais;
dos meios de comunicação e informações; da tecnologia influenciando as tarefas cotidianas e
das festas.
O ato de produzir e de consumir bebida na Festança pode ser inscrito como “práticas
culturais que se vierem a perder a sua utilidade, perderão também o seu sentido e sua
necessidade, pois a permanência está ligada à crença no que se investe: É preciso que o gesto
301
Segundo relatos de Isaias Gonçalves de Paula, seria o surungo, garapa azeda, antes de “virar pinga”, e muito
rica em ferro. Cáceres, 2005.
302
Relato de dona Rosa de Lima Frazão de Almeida. Vila Bela, 1998.
245
seja necessário, cômodo, operatório, benéfico; é preciso acreditar em seu possível sucesso
para continuar a repetição.”(CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p.273-274).
Uma profusão de bebidas, perfumadas, saborosas, a serem consumidas num tempo
dedicado aos santos. Dona Nemézia, falando sobre
303
o consumo de bebidas durante as festas,
coloca que “tudo é um ritual altamente sagrado, religiosamente sagrado, porque eu vejo
assim, pelos meus antepassados, a forma, o respeito, né.”
O mesmo acontece com dona Laurice, quando falando sobre o consumo de bebidas
alcoólicas pela população e pelas pessoas de fora: “Porque é o momento da festa para os
santos. Beber faz parte do ritual.”
304
Assim como Dona Maria Benedita Moraes Alvarez, relacionam o passado e o presente
através dos usos das bebidas durante as festas e no cotidiano. Um processo de reconstrução da
memória, onde estão presentes suas experiências como também aquelas relacionadas ao grupo
do qual fazem parte. Com muita emoção, dona Maria Benedita fala com saudade das
Festanças de alguns anos e como se davam a confecção e o uso das bebidas:
Os licores sempre fizemos. Também a pinga, a cerveja é de pouco tempo
pra cá. Foi depois que acabou a fábrica de pinga em Vila Bela. Aí
aprenderam a fazer o canjinjin. Acho que o canjinjin é de muito tempo.
Dançante não pode ficar sem canjinjin. Quando eu era pequena, já tinha o
canjinjin. Maso era todos que sabiam fazer o. Faziam só pros
dançantes. O canjinjin não deixa os dançantes ficarem roucos.Os festeiros
faziam pros dançantes, que não podiam tomar água. Licor a gente fazia de
figo, limão, lima, rosa. Botava as pétalas da rosa pra curtir, coava, punha
açúcar, a calda de açúcar pra misturar. Fazia também licor de flor pra soltar a
cor, também de genipapo. Como é gostoso!O chocolate de amendoim faziam
também. Eu faço até hoje em casa. Eu criei minhas crianças com o chocolate
de amendoim. No sábado, no domingo, tomavam pela manhã o chocolate de
amendoim. Bato bem o amendoim torrado e moído com o cravo, canela, ovo
caipira, até sair o cheiro do ovo. Ponho o leite. É ótimo e é forte. Mas, quem
não está acostumado! Todos lá em casa ficam esperando no domingo o bolo
de arroz com o chocolate de amendoim. Na festa sempre faziam o chocolate.
Eram dois, três, tachos cheios, e aquele bule grande no foo, cheio, pra
303
Anotações das palestras proferidas pelo professor Antônio Torres Montenegro, durante suas aulas no módulo:
História e Memória: Metodologia das Fontes. Programa de Pós-Graduação em História. Cuia: UFMT. 20/10 a
20/11/2003. Segundo Montenegro, numa entrevista ou depoimento pode ocorrer o processo de “reviver o fato” e
o “falando sobre o fato”. Ambos são muito importantes como fontes, cabe ao pesquisador/historiador realizar o
deslocamento analítico sobre o que está sendo dito.
304
Informações de dona Laurice Carneiro Geraldes. Cáceres, 1998.
246
servir junto com o bolo de arroz. Assim é que era. Batiam bem o ovo, pra
sair o cheiro, botavam o cravo, a canela, o amendoim e o leite. Não pode
deixar ferver. E fica bem grosso.Eu ensinei pra minha neta aí a fazer o
chocolate de amendoim. A Maria Jo todos chamam ela pra cozinhar. Ela
sabe a medida certa.
305
Informações de Isaias Gonçalves de Paula,
306
dão conta de que, quando ainda se
festejava Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora do
Rosário, era servido o chocolate de amendoim, após as rezas da noite. Uma mistura de
amendoim torrado e moído ou socado no pilão, misturado ao leite. Era servido juntamente
com o bolo de arroz. “O chocolate de amendoim não faz mais. Hoje em dia o pessoal
deixando, parece que acham que é muito trabalho. Antigamente plantavam as roças, vinham
sacas e mais sacas. Os festeiros do passado pra eles largarem a festa deles, plantavam as roças
deles, de arroz, feijão, amendoim.
307
Além do chocolate de amendoim
308
, ressaltamos que era costume servirem durante a
Festança, também o chá,
309
feito com a erva mate nativa da região, encontrada especialmente
nas encostas da serra Ricardo Franco: “O povo da cidade de Matto Grosso só usa desse mate,
que provamos e achamos delicioso, como o que é elaborado pelos processos adiantados.”
(AYALA, 1914, p.369).
[...] “A gente colhia o mate aqui na serra, pois tinha o plantio de mate nativo.O pessoal
colhia, botava fogo no forno e colocava as folhas para seca. Depois pisava ele, coava um chá
muito gostoso, verdinho, muito, mas muito gostoso. Servia nas festas com o bolo de arroz,
305
Relato de dona Maria Benedita Morais Alvarez. Cáceres, 2000.
306
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Vila Bela, 1999.
307
Relato de dona Catarina Bispo de Freitas. Vila Bela, 1998.
308
Encontramos em pesquisas sobre festas de santos festejados por segmentos da população negra da Amazônia,
especificamente no Alto Cairari- PA, referências sobre o costume dos festeiros oferecerem após as ladainhas e
novenas, o café ou chocolate de cajutim, bebida feita com a amêndoa do fruto do cajueiro, torrada, pilada e
fervida com água e açúcar, sendo servido morno. Na maioria das vezes, para acompanhar a degustação dessa
bebida, éarmado um bangüê”, (violão, cavaquinho, flauta, banjo, colheres de alumínio e pandeiro, este feito de
latas onde são fixadas tampas de cerveja ou guaraná .( SALLES, 1981, p.186).
309
Relato de dona Cira Geraldes de Assunção. Cáceres, 1999.
247
com o biscoito,”
310
afirma dona Greria, a dona Góia, que em cujas os já passaram não
folhas de erva mate, mas os inúmeros ingredientes acompanhados dos segredos da culinária.
Por isso, semelhante ao que ocorre com as demais antigas cozinheiras-festeiras, pode ser
definida como uma artífice na arte de preparação das iguarias. Continuando a sua narrativa,
coloca:
Temos o chá de erva-doce, de canela, de folha de figo, mas não pra festa. Eu
aprendi com a Neita, o chá de folha de figo, que eu nunca tinha ouvido falar.
E é uma delicia gelado. Pega a folha de figo, despeja água fervendo, abafa
ele, depois você esfria, adoça e põe na geladeira. Mas ele gelado é uma
delicia. Tem a erva cidreira, é um chá gostoso, o capim cidreira, a laranja.
Tudo a gente faz c né!
311
Normalmente esses chás de canela, de folha de figo, de erva cidreira, de aniz estrelado,
de folha de abacate, folha de laranja, camomila, licores de sabores variados, são servidos
acompanhados de biscoitos de Ramos, biscoito de sinhá, durante eventos oficiais realizados
tanto em Vila Bela como em Cuia, os denominados “Chás Afro”.
312
Sobre o café e a erva mate, encontramos referências sobre o mesmo, nas descrições do
major Frederico Rondon, por volta de 1930, ao dizer que o café
313
consumido pela população
local, era colhido nos velhos cafezais existentes desde o século XIX nas matas nativas da
região, e a erva-mate era encontrada nativa nas encostas da serra Ricardo Franco. (RONDON,
1938, p.128).
314
Também Maria de Lourdes Bandeira em sua pesquisa sobre Vila Bela, coloca
310
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela. 1999.
311
Relato de dona Gregória Matos de Ramos. Vila Bela, 1999.
312
Fonte: Convite para a Noite Cultural e Chá-Afro, em homenagem ao Catequista. Vila Bela, agosto de 1996./
Chá-Afro, em comemoração ao Dia das Mães, no Parque Mãe Bonifácia. Promoção Associação Matingombê dos
Filhos e Amigos de Vila Bela da Santíssima Trindade. Cuiabá: Jornal A Gazeta. 09/05/2003 / Chá Afro realizado
no Parque Mãe Bonifácia em 11/05/2003, evento realizado pela Associação Matingombê (nome originário da
África e usado nos versos dos guerreiros dos Dançantes do Congo em Vila Bela. Significa: reunir-se para tocar
tambores). Fonte: Jornal Vozes do Matingombê. Cuiabá: maio de 2004. Edição n° 01/2004.
313
O café tornou-se popular entre as populações brasileiras muito lentamente. Inicialmente era tomado como
medicamento e muitas vezes mais pelo efeito da água quente. Debret registrou que no interior não havia
proprietário que não acrescentasse cada manhã e ao almo de seus negros, uma infusão de ca sem açúcar,
como bebida tônica. (CASCUDO, 1967, p.231).
314
“O café existe e é colhido em velhos cafezais ( cafetais, segundo a expressão matogrossense), no Guaporé,
para consumo local.Não há cultura de ca em Vila Bela, como não há importação nem exportação da rubiácea,
248
que as plantações de café e laranja da época colonial se expandiram em algumas áreas das
matas, e eram coletadas como plantas nativas. (BANDEIRA, 1988, p. 164).
No decorrer da Festança, o café é servido, embora com menos freqüência. As vezes,
em algumas casas por onde passa a Folia e diariamente no “chá da manhã”, servido pelos
festeiros do Divino Espírito Santo, aos Foliões do Divino e acompanhantes. Segundo os
relatos, atualmente é utilizado o café industrializado, comprado nos supermercados.
Ressaltamos as informações de Isaias Gonçalves de Paula, quando coloca que “era
costume servirem junto das bebidas e biscoitos, cigarros e charutos para os fumantes,
preparados especificamente para as festas, e feitos com o fumo plantado pelos festeiros.”
315
Quanto aos refrigerantes e cerveja, observa-se que durante os almoços e jantares
coletivos realizados no Centro Comunitário, são vendidos por representantes dos grupos das
pastorais pertencentes à igreja católica A renda obtida nesta venda é revertida para a própria
igreja de Vila Bela. Vale destacar o surgimento de uma bebida na década de 2000,
denominadaEsquenta Xereca,”
316
talvez uma reapresentação de alguma bebida, ou uma
versão feminina do Canjinjin.
Na tentativa de compreender as práticas culturais das bebidas servidas na Festança,
nos aproximamos das análises de Hobsbawn, quando diz que as tradições que parecem ou são
consideradas antigas, podem ser bastante recentes, quando não são inventadas.
O termo “tradição inventada” inclui as tradições inventadas, constrdas e
formalmente institucionalizadas, e mesmo aquelas que surgiram de maneira até mais difícil de
localizar num período limitado e determinado de tempo, às vezes coisa de poucos anos, mas
que se estabeleceram com enorme rapidez. São as práticas de natureza simbólica ou ritual,
no Município. A erva-mate se encontra nativa, nas fraldas da Serra de Ricardo Franco. Mas não há indústria nem
consumo de mate, em Vila Bela.”(RONDON, 1938, p.128).
315
Relato de Isaias Gonçalves de Paula. Cáceres, 1999.
316
Segundo informações fornecidas por Isaias Gonçalves de Paula, Cáceres-2005, oEsquenta Xereca” é uma
invenção da Sra Marliza, natural de Vila Bela e moradora na cidade de Cuiabá. Esta bebida começou a ser feita
por volta do ano de 2003, e já está patenteada em nome de sua criadora. É bastante procurada e consumida pelas
pessoas. No período em que realizamos a pesquisa não tivemos conhecimento, nem comentários sobre a mesma.
249
reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas, com o objetivo de inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica uma continuidade em relação
ao passado histórico, que não precisa ser remoto, ou perdido nas brumas do tempo. São
reações a situações novas que, ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou
estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. Contraste entre as
constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira
imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social. A tradição neste sentido é
diferente do costume existente nas sociedades tradicionais, porque a tradição se caracteriza
pela invariabilidade, onde o passado real ou forjado impõe normas práticas, fixas,
formalizadas. O costume não é invariável, não impede as inovações, sendo a sua função dar a
qualquer mudança desejada ou resistência à inovação, a sanção do precedente, a continuidade
histórica e direitos naturais conforme o expresso na história.(HOBSBAWM, 1997, p.9-23).
Sobre os processos utilizados pela população de Vila Bela no sentido de legitimar a
representatividade sócio-cultural das bebidas que são preparadas e consumidas no decorrer da
Festança, buscamos as reflexões de Canclini, quando diz que:
A reprodão das tradições não exige fechar-se à modernização. A
reelaboração heterodoxa, mas autogestiva das tradições, pode ser fonte
simultânea de prosperidade econômica e reafirmação simbólica de uma
população. (CANCLINI, 1997, p.238-239).
250
4 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Tendo em vista o reconhecimento de que tanto “a fonte oral como a fonte escrita
fazem parte do sistema escriturístico moderno, operando com os mesmos códigos de
referência cultural (sem postular uma origem única)” (GUIMARÃES NETO, 2000),
consideramos que os textos escritos e orais sobre as constrões culturais nas práticas
alimentares dos moradores de Vila Bela, especificamente no decorrer da Festança, foram
fontes reveladoras de diversidades.
Essas construções culturais dos festeiros e festeiras, cozinheiras, promesseiros e
promesseiras e demais pessoas envolvidas nos processos de escolha, preparação, distribuição
e consumo das comidas, doces, biscoitos e bebidas da Festança, foram vistas como saberes
construídos a partir de experiências sobrepostas, descontínuas e fragmentadas, representando
o entrelaçamento de diferentes práticas culturais, imbricadas no presente, e visibilizadas por
meio da documentação, “inscritas na operação historiográfica, numa escrita em que o discurso
do historiador, desnatura e inverte o tempo da prática”.(MONTENEGRO, 2004. )
Num primeiro tempo, descrito por Bandeira comoo tempo dos brancos”,
317
assinalamos diálogos e processos de trocas e adaptações interculturais, presença de novos
traços culturais e a interdependência entre a natureza, grupos sociais e indivíduos. Nesse
tempo, os processos de escolhas alimentares foram analisados como estratégias utilizadas pela
população, diante dos fatores climáticos, interesses da economia e potica colonial, realidade
regional, diversidade criadora dos grupos sociais locais. Consideramos que as experiências
dos indivíduos circulando em diferentes espaços, como nas cozinhas, nos locais de comércio
317
Para maior detalhes sobre estas temporalidades ver BANDEIRA (1988).
251
de alimentos, nas relações comerciais com os povos das mises jesuíticas fronteiras,
comerciantes de outras regiões do país, e as práticas culturais das mulheres índias, negras e
brancas, nos espaços domésticos, nas atividades comerciais relacionadas aos alimentos,
introduziram diferentes costumes e práticas alimentares, de acordo com sua cultura,
experiência e concepções sobre os usos dos recursos naturais e do espaço territorial.
Desenvolveu-se uma cultura de contato,própria de um espaço transcultural e híbrido,
através de relações desiguais, de coerção, que implicava também alianças, cumplicidades e
trocas de saberes, necessários á sobrevivência comum” (ANSAI, 2004,p.37).
O deslocamento da capital da Província, de Vila Bela para Cuiabá,
318
propiciou o
surgimento de novas estratégias direcionadas principalmente à sobrevivência e adaptação a
uma outra temporalidade, com a ocupação e utilização dos espaços em bases comunitárias,
mediante as necessidades dos grupos familiares. Este período denominado por Bandeira de
tempo dos negros” e pela população local detransição”, permitiu relações cotidianas
reestruturadas e adaptadas de acordo com uma economia baseada no plantio de gêneros
alimentícios essenciais ao consumo, e fortalecimento das redes de solidariedade, pois
compartilhar as experiências era necessário à sobrevivência. Os contatos externos,
basicamente com fins comerciais viabilizavam a circulação de algumas mercadorias,
informações e práticas culturais.
Do final do século XIX até a década de 1960, as atividades extrativistas caracterizadas
pela explorão da natureza e da força de trabalho de segmentos da população local com
objetivos comerciais, concorreram para a ocorrência de violentos conflitos com os povos
indígenas. Essa violência, pouco a pouco naturalizada, não impediu que fossem recriadas
redes de práticas culturais, que favoreceram os processos de aculturação e ajustamentos
sociais, inclusive aqueles relacionados às pticas alimentares, num espaço em que estavam
318
A lei n° 19 de 28 de agosto, de 1835, formalizou definitivamente a declaração de Cuiabá como capital da
Província de Mato Grosso. (BANDEIRA, 1988, p.112).
252
presentes as dificuldades relacionadas ao suprimento de necessidades que se estendiam à
aquisão de produtos alimentares.
Após a década de 1960, novas configurações nas práticas culturais cotidianas, com a
chegada da modernização e o “retorno do branco”, acompanhando os grandes
empreendimentos agrícolas. Fez-se presente, uma maior circulação de pessoas, informações e
experiências. A intensificação da presença das grandes fazendas, o crescimento populacional
da cidade e adjacências, a exploração não sustentável dos recursos naturais, as disputas pelo
poder político local, o descaso dos poderes municipal e estadual diante dos problemas
enfrentados pelos moradores da cidade, a intensificação dos contatos com grupos familiares
de diversas localidades do Brasil, os crescentes processos de trocas culturais, de interação
com a sociedade e mercado nacional, a chegada dos meios de comunicação e bens
tecnológicos, influenciaram a vida cotidiana, levando os moradores a novos valores sociais,
posicionamentos e adaptações a essa modernização.
A perda do espaço territorial, de uma cultura da terra com bases comunitárias, e a
crescente desterritorialização da populão local, deslocada para a sede do município ou para
outras localidades, levou os moradores de Vila Bela, a nomear o espaço da Festança, como
umterritório negro.”
Nesse espaço da cultura da festa” (MOURA, 1998), “um sinal diacrítico” (CUNHA,
1988), formado pelo conjunto de representações nomeadas pelos moradores como
homenagens aos santos festejados, percebe-se que estão presentes os conflitos, o que é
comum nos grupos sociais e a valorização de cada ritual, onde as identidades se agregam e se
ajustam aos novos tempos. São manifestações de sociabilidades e de fortalecimento de
vínculos tais como as redes de solidariedade, preservação de costumes, momentos de
aprendizados, consolidações e reconhecimentos das práticas culturais, que identificam a
população local como “os negros de Vila Bela”.
253
Dentre os diferentes rituais que visibilizam a fé, devoção e trocas de compromissos
com os santos festejados, destacamos as práticas alimentares, inscritas numa visão de mundo
que é particular a cada sociedade, e compondo uma cozinha que não é exótica, domingueira
ou cotidiana, mas a cozinha da Festança. São espaços em que a oralidade, o sistema de
mutirão, a solidariedade, o poder e influencia das Irmandades, caracterizam os processos de
escolha, preparação, distribuição e degustação das comidas, bebidas, doces, bolos e biscoitos
Os “modos de fazer” desse cardápio festivo, as variedades que comem o mesmo,
não são originais e nem homogêneas, porque têm por base a diversidade, as adaptações e
deslocamentos, o que o torna rico e complexo, pois reúne técnicas de preparação, sabores,
temperos, variedades de ingredientes, provenientes de diferentes práticas culturais.
As maneiras como são preparadas as iguarias não estão na simples mistura dos
ingredientes, mas nas habilidades de saber extrair os sabores, de elaborar as consistências, de
valorizar e ressaltar os alimentos nomeados pela comunidade como especiais para o momento
festivo. Por isso ser nomeada como cozinheira da Festança, exige princípios, competências e
práticas de memória, de acordo com o grupo social do qual faz parte. Exige conhecimentos,
habilidades e especialidades, que nem todas moradoras de Vila Bela possuem. O jeito de fazer
os sequilhos, o biscoito de Ramos e o bolo de arroz; os licores, o canjinjin; os doces; as
carnes, o arroz, o feijão e verduras, de acordo com os temperos apropriados, não está nos
gestos, mas na reprodução da memória, circulando pelos diferentes espaços, seja nas cozinhas
das casas dos festeiros e festeiras, do Centro Comunitário, e demais locais onde os alimentos
estejam sendo preparados.
O repasse dessas artes de fazer,” ou dos “segredos culinários são efetuados por
meio da oralidade, do “ver e fazer”, as pequenas tarefas, principalmente pelos mais jovens,
que normalmente são encontrados nas cozinhas, auxiliando nas muitas atividades.
254
As práticas culturais das comidas, bebidas, doces e biscoitos da Festança, representam
uma rede de significados e de experiências, em espaços marcados por simbologias, num
cruzamento de histórias que refletem o invisível cotidiano, em processos constantes de
renovações, escolhas, esquecimentos e reinvenções, porque “o presente e o passado se
entrelaçam para satisfazerem a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e
convir às circunstâncias”. (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1986).
As demonstrações públicas do poder dos festeiros e festeiras, pela realização dos
festejos, a fartura e variedades dos pratos servidos, a presença das Irmandades, dos antigos
festeiros e festeiras, dos convidados considerados relevantes pelos moradores, a participação e
presença dos Foliões do Divino Espírito Santo, dos Dançantes do Congo, das Dançarinas do
Chorado, do número de visitantes e participantes da Festança, são representações de prestigio
não só para os festeiros e festeiras, mas também para a comunidade negra de Vila Bela.
Necessário entender a representatividade sócio-cultural das práticas alimentares da
Festança, como um patrimônio cultural, que passando por constantes processos de renovação,
adaptação e ajustes aos novos tempos, transportam-se a novos códigos culturais, porque “toda
cultura é resultado de processos de seleções, combinações, sempre renovadas de suas fontes,
produto de uma encenação na qual se escolhe e se adapta o que vai ser representado de acordo
com o que os receptores podem escutar ver e compreender”. (CANCLINI, 1997 ).
Consideramos que essas práticas culturais são reapresentações onde os rituais de
preparação, distribuição e consumo das comidas, doces, biscoitos e bebidas, como também
das danças, dos cânticos, das manifestações religiosas, das crenças, indicam mobilidades,
disputas e também a presença do heterogêneo, da diversidade, a própria fluidez da vida da
população local, empenhada em garantir o território das festas dos santos como um espaço
territorial negro. Por isso, a Festança sobrevive.
255
ANEXOS
256
Mapa do Estado de Mato Grosso
257
5 -. GLOSSÁRIO
Aluá - Bebida feita com o milho torrado, triturado ou socado no pilão. Coloca-se nesse
milho depois de socado e passado na peneira, água, gengibre, açúcar ou melado de cana.
Levar ao fogo, e assim que engrossar, deixar curtindo em potes de barro ou vasilhame
apropriado, até o consumo, quando essa mistura é misturada na água e adoçada a gosto.
Arroz branco temperado - Arroz refogado no óleo ou gordura de porco, torrado, e
temperado com alho, sal.
Arroz sem temperoArroz cozido sem nenhum tempero. È costume servi-lo com
peixe ensopado, carne com banana verde.
Beijação – Ação em que os fiéis beijam as insígnias de um santo. É crença entre os
devotos do Senhor Divino em Vila Bela, passar as fitas na fronte, pois acredita-se que as
mesmas têm o poder Divino da cura.
BejetoObjeto.
Beseque- Termo que significa obséquio,ou seja, o ato de servir bebidas, biscoitos e
bolos, aos integrantes da Folia do Senhor Divino, Dançantes do Congo e respectivos
acompanhantes, nas visitas e na entrega dos festeiros e festeiras, no decorrer da Festança.
Biscoito de Ramos - Biscoito feito com uma massa diferente da massa dos sequilhos.
Exige muita habilidade de quem está confeccionando o mesmo, pois com a massa são
formados ramos de flores ou o nome dos festeiros.
Bufeos - Nome vulgar dos mamíferos cetáreos delfinídeos, da família dos golfinhos.
Cacharanda - Pinga mais fraca, misturada com água. Que sai do alambique já
temperada.
258
Canjinjin - Bebida considerada tradicional, cuja origem remonta as raízes africanas,
segundo os negros de Vila Bela. É considerado enertico e afrodiaco, sendo uma
composição de pinga de alambique, mel silvestre, raizes “afro” de efeitos milagrosos,
gengibre, especiarias como cravo e canela, erva doce.
Carneiradas - Epidemia de malária
Castiço - De boa casta; vernáculo; pureza no falar e escrever o idioma próprio do pais.
Catarradas - Relativo a bronquite aguda, resfriado.
Chá da manhã - Termo regional comum em Mato Grosso, para nomear o café da
manhã.
Chás- Afro - Chás feitos de folhas de canela, de figo, de erva cidreira, de aniz-
estrelado, de folha de abacate, de laranjeira, e acompanhados de bolo de arroz, sequilhos ou
bolachinhas.
Chicha - Bebida que faz parte dos costumes alimentares da população indígena
Chiquitana, da Bolívia. Possui um teor alcoólico, e é feita com o milho em repouso num
cocho ou vasilhames apropriados e bem lacrados, para que ocorra o processo de fermentação.
Chocolate de Amendoim - bebida feita com amendoim torrado e moído ou socado no
pilão, com o cravo, canela, ovos caipira batidos até sair o cheiro, e leite quente.Depois essa
mistura é levada ao fogo, mexe-se até engrossar, mas não pode deixar o leite ferver.
Constipação - Resfriado
Corrupção ou corrução – Doença classificada pelo sr. Weddell, membro da
expedição de Francis Castelnau, como uma febre ataxo-adinâmica, que manifestava-se no
começo e final da estação chuvosa. Segundo, o Dr. Armando Calazans, médico da equipe do
Marechal Rondon, moléstia “sui generis” da região, analisada como um caso particular de
impaludismo.
259
Cú de onça ou Massaco - banana frita, misturada com carne seca frita e
posteriormente socadas no pilão.
Desobriga-Visita periódica de padres a locais desprovidos de clero, com o fim de
desobrigar, ou seja, proporcionar ocasiões aos fiéis católicos de receberem sacramentos, como
o batismo, casamento e crisma.
Escaldado - Tipo de alimento que é oferecido aos foliões do Senhor Divino, pela
manhã. Considerado um alimento com “sustância”, é uma mistura de ovos, temperos variados
como sal, alho, cebola picadinha, cheiros verdes, água, refogados no óleo ou gordura de
porco, e engrossados com farinha de mandioca, até ficar com uma certa consistência.
Esquife - Espécie de caixão forrado de tecido preto, reservado para colocar os
defuntos, ou seja, mortos cuja família não podia comprar um caixão.
Festança - Termo usado pelos moradores de Vila Bela para designar o conjunto das
festas dos santos
Flâneur - Vaguear, perambular.
Flatulentas - Relativo a flatulência; que acumula gases no tubo digestivo.
Furrundú – Doce feito de mamão verde ralado, colocado em saco de pano e bem
lavado até sair todo o sabor amargo. Coloca-se pra cozer em melado de açúcar ou rapadura.
Pode-se colocar cravo da Índia.
Garrotilhos - Crupe diftérico; doença de cavalos, causada pelo streptococus equi;
gases no estômago ou no intestino.
Gastéria - Segundo Brillat Savarin, em “A Fisiologia do Gosto, versando sobre a
mitologia gastronômica, Gastéria é a décima musa, aquela que preside aos prazeres do gosto.
Irmão de Roda e Irmão de Mesa - Em Vila Bela, a Irmandade de São Benedito é
formada pela diretoria ou seja, pelos Irmãos de Mesa e pelo corpo de associados, ou Irmãos
de Roda.
260
Kanjinjin - Um dos personagens que fazem parte dos dançantes do Congo em Vila
bela. É representado por um jovem de 10 a 13 anos. Usa uma indumentária semelhante a do
secretário, sendo que as meias e a camisa são de cor azul clara e a saia amarela.
Leite de Tigre - É o licor de leite, cozido com erva doce, canela, açúcar e depois de
frio, colocada a pinga.
Lobó ou traira - Variedade de peixe que era muito encontrada nas margens do rio
Guaporé, e pescado para ser usado na alimentação cotidiana. Prepara-se ensopado, com
cheiros verdes.
Maria Isabel - Nome dado a um prato típico de Mato Grosso, feito com carne
charqueada picadinha e frita, arroz torrado e temperos variados.
Madeleines - Bolinho leve de forma oblonga, estriado, feito de farinha de trigo, ovos,
manteiga, açúcar e limão.
Magotes – grande número; abundância; grande quantidade.
Massacá ou baião de dois - Arroz torrado e cozido junto com o feijão, também já
cozido, mas não muito mole. Pode ser servido acompanhado de banana frita e carne seca frita.
Matingombê - Palavra usada nos versos dos guerreiros dos dançantes do Congo em
Vila Bela. Significa: reunir-se para tocar os tambores.
Mistifório - do lat. Mixti fori, de “foro misto”, mistura desordenada de coisas
diversas.
Mistura – Variedade de comida, ou seja, tipo de verdura, carne, que vai ser servido
junto com o arroz e feijão.
Pascana – Era um costume dos grupos de jovens em Vila Bela de descerem o rio aos
sábados para realizarem pescarias.
Pentecostes - Celebração católica realizada cinqüenta dias depois da Páscoa, em
comemoração à descida do Espírito Santo sobre os apóstolos.
261
Pontadas - dor aguda e rápida
Português mais limado - Modo de falar o idioma; de uma forma pura.
Puxador de Rezas - Pessoa responsável em “tirar”, ou seja, iniciar as rezas e os
cânticos nas casas e na igreja.
Quebra-torto - Comida reforçada como arroz com carne, farofa etc. servida no
desjejum.
Quibebe - Salada de mamão verde, picadinho, cozido ou aferventado e temperado
com cheiros verdes, cebola, pimenta do reino.
Restillo - Vapor que escorre da zunga. O que é restilado. Sai frio e é a primeira
cachaça que sai do alambique. Uma cachaça mais forte, muito usada para fazer os licores ou
consumida pura.
Rolão - Carne aberta como se fosse um bife, temperada e recheada com toicinho,
verduras, enrolada, presa por fio barbante e colocada pra cozinhar.
Sopão - Sopa feita com carne com ossos de gado, legumes e macarrão, bem cozidos e
temperados. É servido para s dançantes do Congo pela manhã, pois é considerado um
alimento forte.
Surrão - Couro do porco recheado com carne picada temperada
Sustância - Alimento que é visto com forte, que sustenta a pessoa por várias horas.
Que dá fortaleza, força.
Terras Devolutas - Terras que não sendo próprias nem aplicadas ao uso público, que
não se incorporaram no donio privado.
Transição - Nome dado pelos moradores de Vila Bela, à transferência da capital para
Cuiabá.
Tresandava - Exalava; invadia.
Tropelia - Tumulto; inquietação;travessura; ardil; artimanha.
262
Zunga – Garapa antes do processo de virar pinga.
Zurunga ou zurungo. É a garapa azeda, fervida e colocada na gaveta pra destilar, e
consumida antes de se transformar em pinga. É rica em ferro.
263
6 - FONTES
6.1 - Relação das pessoas entrevistadas
Cozinheiras-festeiras:
Catarina Bispo de Freitas - 58 anos – entrevista realizada em 1998
Gregória Matos de Ramos - 62 anos – entrevista realizada em 1999
Rosa de Lima Frazão de Almeida - 78 anos - entrevista realizada em 1998
Ana Jonas Coelho de Brito. 64 anos - entrevista realizada em 1999
Cira Geraldes de Assunção. 79 anos – entrevista realizada em 1999
Maria Benedita Morais Alvarez – 72 anos – entrevista realizada em 2000
Cecília Aranha de Almeida – 71 anos – entrevista realizada em 1999
Andreza Pires de Almeida – 72 anos – entrevista realizada em 1999
264
Moradores e lideranças:
Isaias Gonçalves de Paula – entrevista realizada em 1998
Leopoldina de Paula – entrevista realizada em 1998
Maria Madalena de Albuquerque-37 anos – entrevista realizada em 1999
Laurice Geraldes – entrevista realizada em 1998
Nemézia Profeta Ribeiro - entrevista realizada em 1998
Zeferino Profeta da Cruz Neto - entrevista realizada em 1998
Antônio de Jesus Oliveira – 87 anos- entrevista realizada em 1999
Adão de Albuquerque – 89 anos - entrevista realizada em 1999
Carlos Bento de Oliveira – 38 anos - entrevista realizada em 1999
265
6.2 - Relação dos documentos utilizados: relatos de viagens, crônicas, atas, memórias,
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solicitação de colaboração e ajuda financeira. Vila Bela, 10 de março de 1999.
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