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CARLOS JOSÉ GRIEBELER
A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO MISSIONÁRIO
NA CORRESPONDÊNCIA EPISTOLAR DE ANTÔNIO SEPP
Tese de Doutorado
Para obtenção do grau de Doutor
em Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Gradução
Área: Teologia e História
Orientador: Wilhelm Wachholz
São Leopoldo
2008
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Livros Grátis
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BANCA EXAMINADORA
1º Examinador: Prof. Dr. Wilhelm Wachholz (Presidente)
2º Examinador: Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth (EST - PPG)
3º Examinador: Prof.ª Dr.ª Adriane Luisa Rodolpho (EST - PPG)
4º Examinador: Prof.ª Dr.ª Eliane Cristina Deckmann Fleck (UNISINOS)
5º Examinador: Prof. Dr. Antônio Dari Ramos (URISAN)
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AGRADECIMENTOS
Na impossibilidade de mencionar todas as pessoas ou entidades a quem devo gratidão, faço
alguns destaques indispensáveis.
Aos pais e familiares, pelo apoio, incentivo e compreensão.
À Diocese Angelopolitana, pelo acompanhamento de meu processo de formação.
Ao Instituto Missioneiro de Teologia, pela oportunidade de atuação acadêmica.
À Paróquia Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo (espaço de estadia ao longo de três
anos da realização do Doutorado): Pe. Bráulio (in memoriam), Pe. Pedro, Ir. Zenilde, pela
hospitalidade e companhia; às pessoas das equipes de serviço dessa casa, pela gentileza e
disponibilidade; ao povo de Deus dessa Paróquia, pela acolhida, estima e amizade.
À Escola Superior de Teologia, ao Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, pelo
acompanhamento institucional dos estudos e da pesquisa; aos/às professores/as do Programa
de Pós-Graduação em Teologia, pelo desafio à qualificação e ao aprofundamento; aos/às
colegas de estudos, pelos instigantes debates; às pessoas das diversas equipes de serviços, pela
atenção e gentileza.
À CAPES/PROSUP, pelo subsídio/custeio da realização dos estudos e da pesquisa.
Ao professor Wilhelm Wachholz, pela orientação, incentivo e motivação à pesquisa.
Aos membros integrantes da Banca do Exame de Qualificação, pelas relevantes sugestões.
Aos membros integrantes da Banca de Defesa Pública da Tese, pela apreciação do texto final
da Tese.
Ao professor Artur, pela atenta revisão dos textos.
Às muitas “pessoas amigas”, pelas demonstrações de estima, amizade e apoio às minhas
buscas na realização da pesquisa.
RESUMO
Este trabalho analisa a constituição do imaginário missionário a partir da abordagem dos
escritos do missionário jesuíta Antônio Sepp. Investiga a função desempenhada pelo discurso
articulado nos escritos em questão. Argumenta a hipótese de que nos escritos de Sepp se
articula a proposição de um imaginário legitimador de sua ação missionária. Pondera que esse
discurso apresenta-se como elemento de constituição de sentido da realidade e de antecipação
idealizada de um estado de coisas a se efetivar. A pesquisa aborda o conceito de escrita da
história e a noção de imaginário como referenciais de análise dos elementos investigados.
Desenvolve reflexões acerca das representações de identidade articuladas desde a constatação
do outro diferente de si. Problematiza questões relacionadas à percepção e compreensão da
alteridade. Tematiza compreensões sobre práticas e iniciativas missionárias desenvolvidas
entre os povos indígenas. Considera aspectos concernentes aos resultados da atuação
missionária descritos por Sepp em seus relatos.
Palavras-chave: imaginário, reduções, missão.
ABSTRACT
This work assesses the constitution of the missionary imaginary from the approach of the
writings of the missionary Jesuit Antônio Sepp. It investigates the function performed by the
articulated speech in the concerned writings. It argues that in the Sepp’s writings, the
proposition of a legitimating imaginary of its missionary action is articulated. It ponders that
this speech presents itself as an element of constitution of reality sense and of an idealized
anticipation of a state of things to be effective. The research approaches the writing concept of
history and the notion of imaginary as referential of analysis of the elements investigated. It
develops reflections about representations of articulated identities from the observation of the
other different from themselves. It questions matters regarding the perception and
comprehension of alteration. It brings the theme to comprehension about practices and
missionary initiatives developed between the indigenous people. It considers aspects
concerning to the results of the missionary action described by Sepp in his reports.
Key-words: imaginary, reductions, mission.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................8
1 A ESCRITA DA HISTÓRIA E O IMAGINÁRIO CRIADOR ............................................20
1.1 Da história escrita à escrita da história ...........................................................................21
1.1.1 A produção da história.............................................................................................22
1.1.1.1 A relevância do lugar social .............................................................................22
1.1.1.2 História enquanto prática..................................................................................28
1.1.2 A ideologia na pesquisa histórica............................................................................31
1.1.3 A criação do sentido ................................................................................................34
1.1.4 A alteridade na narrativa .........................................................................................37
1.2 A força criadora do imaginário.......................................................................................40
1.2.1 Que é o imaginário?.................................................................................................41
1.2.2 Características do imaginário ..................................................................................43
1.2.2.1 Força criadora do imaginário............................................................................44
1.2.2.2 O imaginário social...........................................................................................45
1.2.3 O imaginário e o simbólico .....................................................................................47
1.2.4 Perspectivas hermenêuticas a partir do imaginário .................................................49
1.2.4.1 A condicionalidade de toda interpretação ........................................................49
1.2.4.2 Por uma racionalidade ampliada.......................................................................52
1.2.4.3 A força regulativa do imaginário......................................................................54
2 REPRESENTAÇÕES DE IDENTIDADE............................................................................58
2.1 O jovem jesuíta Antônio Sepp........................................................................................60
2.2 Missionário entre os indígenas .......................................................................................67
2.3 O músico tirolês entre os Guarani ..................................................................................76
2.4 O agente civilizador........................................................................................................81
2.5 O administrador eclesiástico...........................................................................................88
7
3 A ALTERIDADE INDÍGENA .............................................................................................95
3.1 Índios bárbaros e selvagens ............................................................................................99
3.2 Indígenas vorazes e preguiçosos...................................................................................103
3.3 Incapazes para a reflexão..............................................................................................107
3.4 Predispostos para a imitação.........................................................................................110
3.5 Nas trevas da perdição..................................................................................................114
4 PRÁTICAS MISSIONÁRIAS ............................................................................................120
4.1 Racionalização da vida .................................................................................................123
4.2 Estruturação de reduções..............................................................................................127
4.2.1 Reduções: reunião dos dispersos...........................................................................127
4.2.2 Reduções: espaço de vida civilizada .....................................................................131
4.2.3 Reduções: Terra da Promissão ..............................................................................134
4.3 Conversão e humanização ............................................................................................138
4.4 Pedagogia missionária ..................................................................................................142
4.5 Ritualização e simbologia religiosa..............................................................................147
5 MARCAS DE CONVERSÃO ............................................................................................152
5.1 O trabalho .....................................................................................................................153
5.2 As festas........................................................................................................................158
5.3 A vida comunitária .......................................................................................................161
5.4 A organização social.....................................................................................................168
5.5 Aptidões pessoais especiais..........................................................................................172
CONCLUSÃO........................................................................................................................178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................184
ANEXOS................................................................................................................................189
1. Tabela cronológica da vida do Padre Sepp.....................................................................189
2. Carta-pedido para as Missões.........................................................................................191
3. Carta do ano 1714 ao Pe. Reitor Josephus Preiss, S.J. ...................................................192
INTRODUÇÃO
Diversas experiências marcantes e significativas da história da humanidade suscitam
o fascínio, despertam a curiosidade e provocam o interesse de conhecimento. O sujeito
humano aparece configurado pelo anseio de desvendar a realidade que o cerca. Nessa busca
incansável, torna-se aventureiro a adentrar espaços ainda estranhos, a alcançar horizontes
inusitados que lhe permitem uma percepção nova de si mesmo. Esse modo de apresentar
dimensões expressivas da condição humana serve para caracterizar a personagem central em
foco nesta pesquisa, o missionário jesuíta Antônio Sepp. Constitui, igualmente, uma
representação adaptável ao autor deste estudo.
As missões ou reduções dos missionários jesuítas com os indígenas Guarani
constituem um fenômeno histórico singularmente fascinante e polêmico
1
. Esse acontecimento
teve lugar no antigo Paraguai
2
, durante o período colonial. Essa iniciativa foi desenvolvida na
região abrangida pela Província Jesuítica do Paraguai, criada em 1607. A experiência das
reduções jesuítico-guarani desenvolveu-se no período histórico compreendido desde o ano de
1609, data das primeiras iniciativas, até o ano 1768, quando da expulsão dos jesuítas do
território das missões.
As reduções, também chamadas missões ou aldeamentos, são as grandes povoações
onde eram reunidos os grupos de indígenas, que viviam dispersos numa certa região. Nas
reduções, os missionários articulavam as atividades de iniciação cristã dos indígenas. As
reduções constituíam a estratégia prioritária de desenvolvimento da ação missionária.
1
Cf. MELIÁ, Bartomeu; NAGEL, Liane Maria. Guaraníes y jesuítas en tiempo de las misiones: una
bibliografía didáctica. Santo Ângelo: URI; Assunción: Cepag, 1995. p. 15.
2
Era assim denominada a área geográfica abrangendo regiões que atualmente constituem partes do território dos
países do Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai. Também conhecida como região do Rio da Prata, no cone sul da
América do Sul.
9
O esforço dos jesuítas na articulação das reduções tinha como objetivo central a
conversão dos indígenas e sua adequada cristianização. No entender de Flores, “as reduções
jesuíticas foram criadas e desenvolvidas no período em que a Igreja possuía o espírito
guerreiro de conquista dos gentios, realizando uma cruzada do bem contra o mal”
3
. Fora das
reduções, o indígena estaria sob o poder do demônio. Trazendo-o para a redução, ele entraria
no caminho da salvação.
As reduções, desde suas origens, estavam marcadas por ambigüidades e aparentes
contradições. Dentro da colônia e do sistema colonial, colocavam-se em contraposição aos
colonos, pela contestação das tentativas de escravização dos indígenas. Nelas se desenvolvia
um conjunto de práticas e se vivia um tipo de cristianismo que não era o comum aos cristãos
da época. Integradas por população indígena, apresentavam um grau de civilização, de
tecnologia e de vida artística que desmentia a idéia que a sociedade européia fazia do
indígena. Representavam uma realidade constituída por uma diversidade de dimensões.
Uma dimensão significativa dessa realidade é constituída pela vasta correspondência
epistolar
4
. Essa modalidade de comunicação, elaborada pelos missionários que
acompanhavam o processo de navegações ultramarinas, mostrava-se útil para manter relações
com os locais de origem. Tal vinculação tornava-se significativa também para assegurar uma
espécie de acompanhamento a quem se lançava ao encontro de universos desconhecidos.
Desse modo, mediante a manutenção da comunicação, firmava-se um elo entre os que
ficavam e os que partiam.
As cartas representavam importante instrumento de transmissão de informações.
Formuladas em forma de relatos, com variedade de detalhes, geralmente apresentando os
acontecimentos com características dramáticas, serviam para estabelecer uma espécie de
ponte entre mundos distintos. Além disso, ao relatar situações vivenciadas por quem as
3
FLORES, Moacyr. Reduções jesuíticas dos guaranis. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 88.
4
A redação de cartas, o seu envio e divulgação entre os membros da Companhia de Jesus era uma prática
habitual regulamentada pelas próprias Constituições da Companhia. Desse modo, ficava traçado um conjunto de
operações de comunicação. Na oitava parte principal das Constituições, onde se trata daquilo que “ajuda para
unir os repartidos”, é afirmado, em seu número 673, que “ayudará tanbién muy specialmente la communicación
de letras missivas entre los inferiores y Superiores; con el saber amenudo unos de otros, y entender las nuevas y
informaciones que de unas y otras partes vienen; de lo qual tendrán cargo los Superiores, en especial el General
y los Provinciales, dando orden mo en cada parte se pueda saber de las otras lo que es para consolación y
edifcación mutua en el Señor nuestro”. Obras completas de SAN IGNACIO DE LOYOLA. Madrid: BAC,
1952. p. 525.
10
descrevia, as cartas tornavam-se também um espaço de elaboração da consciência que seus
autores formavam de si e de seu meio.
Ao descrever suas vivências na nova realidade, detalhando aspectos de seu cotidiano,
os autores das cartas formulavam dimensões constitutivas do conhecimento de si e do outro
que encontravam no seu contexto
5
. Assim, por intermédio da elaboração de narrativas, criava-
se uma dinâmica de descobertas que se tornavam fundamentais e decisivas para as práticas do
cotidiano. Além disso, entre os objetivos das cartas estava o de informar aos superiores sobre
as iniciativas missionárias junto aos indígenas. Gambini afirma que “essas cartas são o
documento de uma difícil aventura, na qual homens altamente motivados tentaram converter a
alma de outro tipo de homem que não compreendiam”
6
. Tais cartas eram dadas ao
conhecimento dos membros da Companhia
7
e sua leitura tinha por finalidade a emulação, a
satisfação de curiosidades e a motivação de sentimentos de piedade.
A ação missionária de Antônio Sepp nas reduções jesuíticas dos indígenas Guarani
desenvolveu-se no período compreendido entre os anos 1691 a 1733. Sua presença nas
missões ocorreu numa época de consolidação e esplendor do sistema reducional. A travessia
para a América e o trabalho nas reduções dos indígenas Guarani foram relatados por Sepp em
forma de cartas para seus parentes e conhecidos na Europa. Nelas, ele conta suas impressões
sobre as novas paisagens e povos encontrados e fala das ocupações dos padres nas reduções.
E o faz de um modo tal que “sabe despertar o interesse do leitor com relatos de colorido
exotismo e ingênua simplicidade”
8
.
Os escritos de Sepp, em parte, apresentam características semelhantes aos de outros
missionários de seu tempo, aplicados em enviar relatos periódicos de suas atividades aos seus
superiores. De outra parte, os seus relatos são apresentados numa linguagem e estilo muito
5
Tal aspecto relevante é sinalizado por Massimi quando afirma que “as cartas são expressões muito
significativas do processo de conhecimento de si mesmo e do outro”. MASSIMI, Marina et al. Navegadores,
colonos, missionários na terra de Santa Cruz: um estudo psicológico da correspondência epistolar. São Paulo:
Loyola, 1997. p. 21.
6
GAMBINI, Roberto. O espelho índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo, 1988. p. 71.
7
Com o termo ‘Companhiamenciona-se a ‘Ordem religiosa Companhia de Jesus’, conhecida como ‘jesuítas’.
Ao longo do texto da Tese são usados, indiferenciadamente, os termos ‘Companhia’, ‘Companhia de Jesus’,
‘Ordem’, ‘Ordem dos jesuítas’, designando a mesma realidade.
8
Sabe despertar el interés del lector con relatos de colorido exotismo e ingenua simplicidad”. MELIÁ;
NAGEL, 1995. p. 34.
11
singular, próprio e original. Meliá lembra que o heróico e o exótico nessas crônicas e relatos
suscitava poderosamente a admiração e a curiosidade do leitor europeu a quem em primeiro
lugar estavam destinadas”
9
.
A presente pesquisa articula-se como esforço de investigação e análise de aspectos
relevantes e significativos dos escritos do missionário jesuíta Antônio Sepp. A formulação do
título, ao mesmo tempo em que é sugestiva, indica a perspectiva de abordagem da temática
proposta. Ocupa-se em refletir sobre a construção do imaginário missionário a partir da
consideração da correspondência epistolar de Antônio Sepp.
Mediante o qualificativo correspondência epistolar de Antônio Sepp, a pesquisa
nomeia o conjunto de escritos de Sepp, selecionados por esse procedimento investigativo.
Efetivamente, ocupa-se em considerar e abordar os seguintes textos de autoria de Sepp:
relatos elaborados durante a sua viagem da Europa para a América no ano de 1691; escritos
produzidos durante sua permanência nas missões no Paraguai, desde o ano de 1691 a 1733.
Esses textos foram formulados em forma de diário de viagem e de cartas enviadas aos seus
superiores e também destinadas aos seus familiares na Europa.
Alguns desses textos, assim elaborados, foram reunidos em conjuntos e publicados
em forma de livros, em várias edições, em distintos países da Europa e da América. Não
constitui intenção nem interesse desta pesquisa fazer uma apresentação exaustiva das
publicações e edições desses textos
10
. Aqui apenas serão mencionados os textos considerados
neste estudo.
A pesquisa ocupa-se com os relatos publicados na obra Viagem às missões jesuíticas
e trabalhos apostólicos
11
, que reúne os escritos, respectivamente, dos anos de 1691 a 1692 e
de 1693 a 1701. Considera também os textos da tradução espanhola, apresentada em três
volumes: Relación de viaje a las misiones jesuíticas
12
, Continuación de las labores
9
Lo heroico e lo exótico en esas crónicas y relatos suscitaba poderosamente la admiración y la curiosidad del
lector europeo a quien en primer lugar estaban destinados.” MELIÁ; NAGEL, 1995, p. 26.
10
Rabuske faz uma apresentação sumária desse aspecto. Ver RABUSKE, Arthur. Pe. Antônio Sepp, SJ. O
gênio das reduções guaranis. 3.ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. p. 217-226.
11
SEPP, Antonio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1980.
12
SEPP, Antonio. Relación del viaje a las misiones jesuíticas. Tomo I. Buenos Aires: EUDEBA, 1971.
12
apostolicas
13
e Jardín de flores paracuario
14
. Nesse terceiro volume, além de outros textos,
são publicadas cartas com data e destinatários específicos. Algumas dessas cartas aparecem
mencionadas ao longo da pesquisa. Também são considerados aspectos específicos da carta
que Sepp dirige ao Superior Geral dos Jesuítas, no ano de 1682, quando ainda se encontrava
na Europa.
A pesquisa considera que na abordagem dos textos de Sepp possam ser evidenciados
aspectos relevantes do complexo conjunto de relações que se estabelecia nas reduções. Tais
escritos, segundo Meliá, “considerados por muito tempo como pouco sérios desde o ponto de
vista da ciência histórica, hoje atraem por sua fascinação quase gica, por seu espírito de
aventura e pelo contraste de mentalidades postas em jogo”
15
. Essas suas características
peculiares constituem-nas como uma reconhecida fonte de pesquisa sobre aspectos
fundamentais da ação missionária do período colonial.
Para contemplar os propósitos que a pesquisa visa realizar, seus objetivos podem
receber a seguinte formulação:
- Explicitar elementos constitutivos do imaginário missionário, presentes nas cartas
de Sepp, enquanto fundamentação de sua atuação junto aos indígenas nas reduções;
- Verificar transformações operadas pela ação missionária no imaginário missionário,
procurando identificar implicações desse processo nas práticas cotidianas e nas formas de
compreensão e autocompreensão dos sujeitos envolvidos nessa prática;
- Avaliar o valor da correspondência epistolar missionária do período colonial como
fonte de pesquisa relevante para aprofundar a compreensão de dimensões fundamentais das
relações interculturais;
- Destacar a relevância das perspectivas de abordagem da História que consideram
dimensões constitutivas do discurso e do imaginário criador.
13
SEPP, Antonio. Continuación de las labores apostolicas. Tomo II. Buenos Aires: EUDEBA, 1973.
14
SEPP, Antonio. Jardín de flores paracuario. Tomo III. Buenos Aires: EUDEBA, 1974.
15
Consideradas hace un tiempo como poco serias desde el punto de vista de la ciencia histórica, hoy atraen
por su fascinación casi mágica, por su espíritu de aventura y por el contraste de mentalidades puestas en
juego.” MELIÁ; NAGEL, 1995, p. 26.
13
Os escritos de Sepp constituem uma parte significativa do conjunto de relatos
marcantes que informa acerca daquilo que se passou na dinâmica reducional. Representam,
portanto, uma reconhecida fonte de pesquisa sobre aspectos fundamentais da ação missionária
do período colonial.
Mais do que descrições de uma realidade a ser comunicada aos seus conterrâneos,
suas formulações traduzem a necessidade de encontrar razões justificadoras de seu empenho
missionário. Além do mais, constituem argumentos legitimadores da diversidade de
iniciativas e práticas realizadas e a realizar junto aos indígenas. Apresentam-se como
meditação/exteriorização da consciência acerca dos métodos adotados e por adotar na
missionarização.
A abordagem de características específicas do discurso de Sepp tematiza sua função
legitimadora na constituição do imaginário missionário. Tal problematização considera
aspectos relevantes inerentes ao seu discurso. A análise da base documental com a aplicação
de distintas categorias interpretativas poderá oferecer novas luzes na compreensão desse
fenômeno histórico. É nessa perspectiva que se inscreve a intenção desta pesquisa.
Sepp apresenta, em seus escritos, descrições marcantes das reduções nas quais atuou;
retrata com traços impressionantes o seu próprio trabalho nas missões. A abordagem desses
relatos busca evidenciar a compreensão de projeto missionário que transparece no seu
discurso. Entre o mundo por ele imaginado e o cotidiano dos índios Guarani, certamente se
desenvolveram mediações que, através da simbologia religiosa, do trabalho, das artes e da
comunicação intersubjetiva, produziram sentidos que, de uma ou outra forma, se
materializaram na produção social do espaço reducional. Como esse contato entre atores de
culturas diferentes operou na construção do imaginário missionário e que relações decorrem
desse processo? Como se articula o universo de representações que constituem o fundamento
do discurso que permeia as impressões que Sepp expressa em suas correspondências? Essas
indagações apontam na direção dos aspectos centrais a serem averiguados pela investigação.
A pesquisa dos escritos de Sepp orienta-se pela temática da articulação do imaginário
missionário. Busca explicitar como os distintos aspectos de seu discurso se conjugam nessa
perspectiva. Por isso, considera os elementos que manifestam a percepção que tem de si
mesmo e que expressam seu propósito de ser missionário. Em suas cartas, que indícios
reveladores de sua identidade aparecem? Como expressam a compreensão que ele tem de seu
14
papel junto aos indígenas? Que significado adquirem esses elementos na constituição do seu
imaginário missionário?
Os escritos de Sepp também são reveladores de seu modo de perceber os indígenas
com os quais entra em contato. Que aspectos do modo de ser do outro, do indígena, são
destacados em suas descrições? Essa questão se apresenta relevante para a tematização das
relações entre sujeitos pertencentes a mundos culturais distintos. Que aspectos significativos
são revelados por essas descrições do outro?
Os relatos de Sepp informam acerca das práticas desenvolvidas nas reduções. Sem
desmerecer essa dimensão de seu discurso, pretende-se lançar novas questões sobre o mesmo.
O ponto de partida é a compreensão de que um determinado discurso não se restringe a relatar
estados de coisas existentes, resultantes da ação já realizada pelos sujeitos históricos. A
suspeita que orienta a problematização é a de que o discurso cumpra também a função de
constituição de sentido da realidade, de antecipação de um estado de coisas a se efetivar e até
de legitimação de iniciativas adotadas e por adotar.
Tendo presentes as considerações acima formuladas e as perguntas apresentadas, a
questão norteadora desta tese pode agora ser enunciada da seguinte maneira: qual é a função
que o discurso, articulado pelos escritos de Sepp, cumpre no processo de constituição do seu
imaginário missionário? A partir de tal questão, a pesquisa se propõe realizar uma análise da
função desempenhada pelo discurso presente na correspondência epistolar de Sepp na
constituição do imaginário missionário. Tal perspectiva revela-se significativa para a
historiografia da cultura missioneira.
A abordagem dos escritos do período colonial pergunta pelo discurso missionário.
Busca evidenciar e explicitar as características que o mesmo apresenta. Indaga a função que
esse discurso cumpre no processo de constituição do imaginário missionário. Que sentido
atribuir aos escritos de Sepp? Essa questão, a ser abordada ao longo da pesquisa, parte do
pressuposto que a correspondência epistolar dos missionários não apenas comunica descrições
dos resultados de suas iniciativas. Os relatos servem não apenas para expressar as impressões
dos padres no contato com as realidades com as quais se deparam. Os escritos constituem
formas de proposição de discurso constitutivo do imaginário missionário.
15
Este estudo entende que a formulação das cartas cumpre uma função de legitimação
das iniciativas e práticas adotadas e por adotar na catequização dos indígenas. Esboça a
condição de sustentadores do empenho e esforço dos agentes religiosos entre os povos
nativos. Apresenta-se como meditação/exteriorização da consciência acerca dos métodos
adotados e por adotar na missionarização.
Dito de forma simplificada, a hipótese básica que dirige esta pesquisa é a de que na
correspondência epistolar de Sepp se articula a proposição de um imaginário que se constitui
como discurso legitimador de sua ão missionária. Considera que tal discurso se apresenta
também como dimensão integrante do processo de constituição de sentido da realidade e de
antecipação idealizada de um estado de coisas a se efetivar. Na medida em que se verificam as
hipóteses assim propostas, trata-se de ponderar, ainda, mudanças operadas no modo do
missionário Sepp compreender-se e entender o meio no qual atua.
O esforço para articular essa perspectiva de argumentação requer a constituição dum
referencial teórico relevante. Um significativo marco referencial para a produção
historiográfica com fecundas perspectivas encontra-se articulado pela chamada Nova História
Cultural.
As reflexões acerca da Nova História Cultural sinalizam que ela volta
prioritariamente seus interesses para dois campos de investigação emergentes: a questão da
linguagem e a realidade que é denominada pelo novo conceito de mentalités. Tais campos
revelam-se muito fecundos e desafiadores. Ao mesmo tempo, são constituídos por uma
complexidade a exigir novos recursos e procedimentos analíticos.
As pesquisas sobre a questão da linguagem tendem a considerá-la não tanto na sua
condição de descrição, reflexo ou espelho da realidade, mas no seu uso como metáfora, isto é,
na sua capacidade de significação e de criação de sentido do mundo. Entre outras tentativas
está a de examinar como a linguagem pode “ser um instrumento ativo de poder (ou até mesmo
constituí-lo), em vez de simplesmente refletir a realidade social”
16
. Essa perspectiva de
análise, pois, revela-se muito significativa para uma abordagem cultural da história.
16
HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 23.
16
A outra grande área de interesse dos historiadores está sendo a realidade denominada
de mentalités. Com esse conceito, pretendem caracterizar as práticas culturais que consideram
em sua investigação. É o esforço para delimitar uma área de pesquisa que supere a
compreensão da consciência como mera expressão ou reflexo do ser social dos indivíduos ou
coletividades. Nessa busca, emerge o conceito de representação como conjunto de elementos
utilizados pelos atores sócio-históricos para darem sentido a seu mundo.
A atenção dada a esses dois campos de investigação aponta para um outro aspecto
relevante da historiografia: a questão dos objetos de pesquisa histórica. A abordagem cultural
da história investiga conteúdos que são historicamente dados como objetos discursivos. Em
outras palavras, a Nova História Cultural ocupa-se com objetos que “são produto de
formações discursivas historicamente contingentes”
17
.
Esses aspectos sinalizam para a atividade fundamental dessa historiografia. A tarefa
básica da história sociopolítica consiste no esforço de desvendar as intrínsecas relações
causais verificáveis tanto nas estruturas da sociedade, quanto nos distintos acontecimentos. A
história cultural assume como iniciativa principal a decifração do significado inerente às
práticas culturais e representações
18
. Nesse esforço passa a considerar distintas ações
simbólicas como textos a serem lidos e linguagens a serem interpretadas.
O empenho pela compreensão do significado das práticas culturais e das
representações implica também uma reflexão sobre os métodos da História. A complexidade e
a pluralidade dos novos objetos de pesquisa m desafiado muito mais os historiadores da
cultura para a disposição de exame minucioso” desses e de atitude de “abertura de espírito”
para os resultados das pesquisas do que para a elaboração de construtos teóricos abrangentes.
A articulação do marco teórico que constitui o referencial para a análise e
interpretação dos dados construídos na presente pesquisa considera prioritariamente as
contribuições da reflexão epistemológica de Michel de Certeau sobre a prática historiográfica.
Suas formulações oferecem aportes significativos para a abordagem das fontes de pesquisa.
17
HUNT, 1992, p. 13.
18
Burke observa que na reflexão sobre a história cultural persiste a variedade de compreensões tanto em relação
aos objetos quanto aos métodos. “Alguns descrevem seu trabalho em termos de uma procura de significado,
outros focalizam as práticas e as representações.” BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro:
Zahar, 2005. p. 9. Ele visualiza, no entanto, um terreno comum sinalizado pela preocupação com o simbólico e
suas interpretações.
17
Algumas de suas contribuições mais relevantes para a prática da pesquisa histórica são
incorporadas ao referencial teórico da presente investigação.
A escrita da História é abordada enquanto prática de produção da História. O
discurso histórico é considerado na sua capacidade de constituição da realidade, de instituição
de um significado. Essa perspectiva requer que sejam evidenciadas e explicitadas as opções
metodológicas e ideológicas inerentes à pesquisa histórica. Além disso, analisa a prática do
historiador enquanto processo de criação de sentido. A narrativa por ele formulada mais do
que narrar fatos, articula e enuncia sentidos.
Uma outra perspectiva fecunda de abordagem é a que emerge da constatação da crise
da modernidade. O processo de saturação das potencialidades despertadas pela modernidade
provocou o surgimento de sua crise. Simultaneamente, desenvolveu-se a percepção dos
limites e ambigüidades da racionalidade moderna. A crítica ampla a essa concepção fez
crescer a consciência da necessidade do desenvolvimento da reflexão sobre significativos
âmbitos da vida humana relegados pela razão instrumental.
Tal perspectiva articula-se como condição propícia para a emergência do imaginário.
Mostra-se como fecunda possibilidade de superação dos reducionismos engendrados pela
ciência moderna racionalista. Desenvolve-se como espaço favorável ao debate e reflexão
sobre o universo simbólico e as representações sociais articuladoras de significações
compreensivas da vida humana.
O imaginário apresenta-se como potencialidade criadora e agenciadora de sentidos e
significações. Sua capacidade peculiar favorece o resgate de dimensões relevantes da vida
humana, que se expressam sobremodo no mundo simbólico e da linguagem não estritamente
racionalizada. Cria condições para a manifestação das representações que os sujeitos
elaboram a partir das suas práticas e interações sociais.
Enquanto expressão simbólica das elaborações da memória coletiva, o imaginário
constitui-se como força reguladora das relações sociais dos sujeitos. Exerce uma influência na
sua interpretação do mundo e na compreensão de suas práticas. Por sua vez, o imaginário é
ampliado e ressignificado pela atividade criadora da consciência coletiva.
18
De modo amplo, os procedimentos metodológicos adotados na elaboração desta tese
são caracterizados pelo encadeamento dinâmico de três eixos: a explicitação de referenciais
teóricos, a apresentação de elementos da base documental e o processo de análise. Esses
aspectos se encontram articulados no desenvolvimento do texto e nem sempre aparecem
explicitamente apresentados.
As considerações assim delineadas e a abordagem da temática sinalizada são
desenvolvidas ao longo desta tese em cinco capítulos. No primeiro capítulo, é apresentada a
explicitação mais estrita do marco teórico que se constitui como referencial interpretativo dos
dados considerados na pesquisa. Inicialmente aborda a compreensão de escrita da História
enquanto prática articuladora do sentido e significado da ação que faz a História. A seguir,
ocupa-se de discussão do conceito de imaginário, procurando elucidar sua capacidade de dar
conta da complexidade das relações sociais entre sujeitos de distintas culturas.
A elaboração da reflexão sobre o conceito de escrita da História considera como base
referencial as contribuições de Michel de Certeau. Incorpora os aportes mais significativos de
sua reflexão epistemológica no campo da pesquisa histórica. Tal formulação contempla a
escrita da História como prática de produção da História. Articula as noções relativas à
enunciação do sentido das práticas que fazem a História.
Além disso, desenvolve o conceito de imaginário como produção coletiva, como o
depositário da memória que os grupos humanos recolhem de suas práticas no cotidiano. É
expresso pelo conjunto de representações, símbolos, rituais e mitos no qual se identificam as
diferentes percepções dos atores em relação a si mesmos e de uns em relação aos outros. Tais
elementos plasmam sua visão de mundo e modelam condutas e estilos de vida, pelas quais se
visualizam como partes de uma coletividade.
A autopercepção que Sepp tem de si mesmo e as compreensões que expressa acerca
de seu modo de ser são tematizadas no segundo capítulo. Nele se desenvolvem reflexões
acerca das representações de identidade articuladas desde a constatação do outro diferente de
si. A noção de identidade é considerada desde uma perspectiva processual. Ou seja, ela é
tematizada e compreendida enquanto uma realidade dinâmica em permanente processo de
constituição.
19
No terceiro capítulo, aborda-se a questão da percepção e compreensão do outro. A
problematização da relação com a alteridade encontra-se desenvolvida na abordagem das
descrições dos indígenas formuladas por Sepp em seus relatos. Essa reflexão aponta para um
mecanismo que tende a emergir no complexo processo de relacionamentos entre sujeitos de
grupos culturais distintos. Na consideração dessa dinâmica, a integração dos conceitos de
estigmatização e contaminação torna-se elemento referencial relevante.
A tematização das compreensões sobre práticas e iniciativas missionárias
desenvolvidas junto a grupos humanos de mundos culturais distintos constitui o assunto do
quarto capítulo. Nele será problematizado também o sentido do discurso articulado nos
escritos de Sepp enquanto dinamismo legitimador de suas iniciativas no meio dos indígenas.
A articulação dessa abordagem considera como elemento referencial dois conceitos
significativos. A representação de fronteira é tematizada enquanto dinâmica de
estabelecimento e delimitação de diferenças entre distintas parcelas de uma dada realidade. A
noção de civilização configura-se como força reguladora e de exercício de controle social.
No quinto capítulo, serão considerados aspectos concernentes aos resultados da
atuação missionária descritos por Sepp em seus relatos. Nesse ponto, são discutidas questões
relacionadas ao discurso como mecanismo de constituição do sentido e do significado das
práticas socioculturais. Com o recurso de uma noção tomada por empréstimo da área da
Física, qual seja, a de força centrípeta, essa reflexão é aprofundada. Desse modo, vai sendo
evidenciado o imaginário missionário, articulado no discurso de Sepp, que representa a
redução como força regulativa constituída a partir da ação missionária cuja força motriz é
centrípeta.
1 A ESCRITA DA HISTÓRIA E O IMAGINÁRIO CRIADOR
Dentre as aspirações do sujeito humano, não por último se encontra a de fazer
História. A pessoa quer inscrever seu nome na História. O ser humano pretende ser parte da
História. Constitui pretensão relevante ser reconhecido como agente da História. Atuar, fazer
parte, ser reconhecido, integrar o itinerário histórico da humanidade. Expressam dimensões da
estrutura constitutiva do sujeito histórico.
Nas últimas décadas, a História passou por intensas transformações. Tais mudanças
ocorreram não apenas na História que acontece no mundo, que os homens vivem, mas
também na História que é feita pelos historiadores
19
. As suspeitas e questionamentos surgidos
em relação ao modo de articular a reflexão histórica provocaram rupturas, ocasionaram
reformulações e desafiaram os historiadores para a busca de múltiplas abordagens e novos
métodos no tratamento das questões relevantes desse campo de investigação.
Esse conjunto de transformações repercute, sobretudo, na maneira de considerar a
apreensão da realidade histórica. Destaca a importância a ser dada para abordagens
interdisciplinares nos processos de investigação. Desse modo de proceder, resulta uma
renovada atenção dada às fontes de pesquisa. A preocupação maior com os aspectos culturais
possibilita a formulação de novas perguntas, apontando novos sentidos conferidos às práticas
sociais.
19
Le Goff, no prefácio da obra por ele organizada, afirma textualmente: “no decorrer dos dez últimos anos, a
história caminhou depressa. Não a história que se faz no mundo, que os homens vivem, como também a
história que os historiadores fazem”. LE GOFF, Jacques (org.). A história nova. 4.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1988. p. 2.
21
A correspondência epistolar
20
produzida por missionários jesuítas no período
colonial constitui significativa fonte de pesquisa para as reflexões elaboradas pela chamada
Nova História Cultural. Tais relatos representam “este tipo de literatura, que muito
contribuiria para dar a conhecer aquela experiência missionária e ‘civilizadora’ que tão
singular e prometedora se anunciava.”
21
. A correspondência epistolar de Sepp, objeto de
análise da presente pesquisa, pode ser considerada, pelas suas características peculiares, como
parte integrante desse tipo de literatura.
A abordagem dessa base documental considera como marco teórico referencial
prioritário o processo de reflexão sobre dois conceitos emergentes na prática historiográfica.
A perspectiva sinalizada pela assim chamada escrita da história constitui um destes elementos
interpretativos. A outra linha teórica de análise aparece configurada pela categoria imaginário
criador.
1.1 Da história escrita à escrita da história
O desenvolvimento da ciência moderna e a ampliação das reflexões epistemológicas
no campo das ciências humanas criaram condições para a articulação de novas compreensões
sobre a prática historiográfica. Michel de Certeau oferece significativos aportes para a
reflexão sobre a História. Algumas de suas contribuições mais relevantes para a prática da
pesquisa histórica são apresentadas nessa parte.
A escrita da História é abordada enquanto prática de produção da História. Considera
o discurso histórico não tanto na sua condição de descrição, reflexo ou espelho do que
aconteceu ou se passou, mas enquanto capacidade de constituição da realidade, de instituição
de um significado. O propósito da pesquisa consiste em problematizar as formulações dos
relatos de Sepp e investigar o significado das mesmas na articulação do seu imaginário
missionário. Para tanto, propõe-se analisar o discurso na sua condição de instituição de
20
Londoño, ao analisar a prática de redação e divulgação de cartas incentivada pela Companhia de Jesus,
observa que uma finalidade da correspondência epistolar era “escrever para que outros lessem, copiassem,
difundissem, guardassem”. LONDOÑO, Fernando. Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI.
In: Tempos do sagrado. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v. 22, n. 43, 2002. p. 15. Tal prática
era incentivada, recomendada e regulamentada a fim de que “escrevendo para serem lidos por muitos outros, os
padres deveriam ter a consciência de que estavam produzindo um texto para ser interpretado e lembrado”.
LONDOÑO, 2002, p. 18.
21
Este tipo de literatura, que mucho contribuiría para dar a conocer aquella experiencia misionera y
‘civilizadora’ que tan singular y prometedora se anunciaba”. MELIÁ; NAGEL, 1995, p. 26.
22
sentidos e de constituição da realidade. Tal perspectiva aponta para a necessidade de
evidenciar e explicitar as opções metodológicas e ideológicas inerentes à pesquisa histórica.
A consideração da História como escrita sinaliza ainda para duas questões
fundamentais. Ao produzir seu discurso, o historiador efetiva a criação de sentido da História.
Mais do que narrar fatos, articula e enuncia sentidos. Por outro lado, na articulação da
narrativa histórica depara-se com a alteridade, que se insinua no discurso, buscando
reconhecimento.
1.1.1 A produção da história
A exposição da consideração da escrita da História como prática de produção da
História pretende dar conta, ainda que de forma limitada, de aspectos relevantes de
procedimentos historiográficos que Certeau sugere com a seguinte afirmação:
Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente
limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio,
uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um
texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que
essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto
prática”
22
.
1.1.1.1 A relevância do lugar social
A pesquisa histórica articula-se desde um determinado lugar. Essa é uma das
questões relevantes que configuram a sua produção
23
. Embora nem sempre explicite essa
condição, a pesquisa que produz o discurso é sempre situada. Quem efetiva os procedimentos
que produzem a reflexão o faz a partir de certas condições, apoiado por um conjunto de
motivações, guiado por um rol de interesses. Não há como desconsiderar esses aspectos
inerentes à prática científica.
Desde logo, uma das tarefas fundamentais que se apresentam é a de que a escrita da
História precisa evidenciar o lugar onde ela se produz. Tal fato constitui um dos limites, mas
também condição de possibilidade da produção da História. Certeau argumenta que uma das
22
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 66.
23
Cabe enfatizar essa especificidade inerente aos escritos de Sepp, considerados neste estudo. Resultam, em
grande parte, de anotações feitas em forma de diário de sua viagem, como missionário, da Europa à América.
Além disso, são constituídos a partir da publicação de suas cartas redigidas nas missões junto aos índios do
Paraguai e dirigidas aos seus conterrâneos europeus.
23
questões principais da historiografia é a “evidenciação da particularidade deste lugar”
24
de
onde o historiador fala. A ênfase a ser dada a esse aspecto aponta para a sua relevância. Indica
que a pesquisa histórica não goza da pretensa neutralidade e objetividade científicas
propaladas por correntes historiográficas modernas.
Tal proceder indica a singularidade de todo discurso histórico, questiona sua
pretensão totalizante ao mostrar que toda e qualquer fala da História se situa na História. O
discurso histórico é sempre um discurso situado num espaço e no tempo
25
. Essa
particularidade sugere que fica suprimida a pretensão de articular o discurso desde um lugar
neutro. O pesquisador, sobretudo o que se ocupa com a realidade dinâmica que é a História,
realiza suas iniciativas condicionado por seus envolvimentos na tessitura da História. Ele é
alguém enredado nas teias das significações e dos significados elaborados pela sociedade na
qual se situa. Não consegue desvencilhar-se, de todo, de pré-conceitos e compreensões
prévias que configuram sua forma de encaminhar os procedimentos cnicos próprios da
análise e interpretação dos fenômenos com os quais se ocupa em seu fazer científico.
O discurso é também histórico no sentido de resultar de determinadas práticas. Os
procedimentos científicos produtores do discurso constituem práticas. Essas sempre estão
marcadas pelas circunstâncias nas quais são realizadas. É, portanto, um discurso sempre
parcial. Essa peculiaridade se verifica, por exemplo, nos escritos de Sepp. Eles traduzem a
percepção própria do missionário que relata as práticas nas quais ele mesmo se encontra
envolvido. Embora busque a compreensão global e pretenda articular uma visão totalizante da
temática em foco, seu alcance fica limitado pelas circunstâncias e condições de sua produção.
Nesse sentido, pode-se postular a História como produção. O missionário Sepp, ao
elaborar suas narrativas, produz História. Ele formula sua compreensão da realidade desde o
lugar social em que se encontra: a sua inserção, como missionário europeu do período
colonial, junto aos indígenas na América. A presente pesquisa sobre esses textos constitui,
igualmente, uma produção da História. Seu autor, enquanto pesquisador participante de um
programa de estudos científicos, encontra-se inserido num contexto sociocultural. Tal
24
CERTEAU, 1982, p. 31.
25
A pesquisa tem a intenção de abordar os escritos de Sepp no seu caráter de discurso histórico.
24
condição influencia as perspectivas de análise e interpretação dos elementos abordados nesta
reflexão.
A História como produção constitui-se como uma prática enquanto conjunto regrado
e disciplinado de procedimentos científicos e como discurso enquanto resultado concreto do
proceder científico. Enquanto tal, o termo “História” comporta e indica, simultaneamente, a
ciência e seu objeto. Ao considerarmos a História, ocupamo-nos tanto com a explicação e as
interpretações construídas pela ciência histórica, quanto com a “realidade daquilo que se
passou ou se passa”
26
.
Cabe ressaltar e enfatizar ainda que o lugar de produção da pesquisa condiciona a sua
produção. Além do fato de o pesquisador estar influenciado pelas condições sociais nas quais
vive e a partir das quais realiza seu ofício, é preciso destacar que todo o sistema de pensar está
referido a lugares. O conjunto de elementos teóricos e instrumentais de análise dos quais a
pesquisa lança mão em suas práticas encontra-se configurado pela cosmovisão na qual a
pesquisa é realizada.
A relevância do lugar social da pesquisa também se evidencia pelas implicações
intensas e profundas que esse desempenha na constituição do sistema de referências presentes
em todo exercício interpretativo. Os paradigmas hegemônicos que moldam a cosmovisão de
determinada comunidade científica marcam suas práticas hermenêuticas. As práticas
epistemológicas não ocorrem em condições de isenção de juízos ou fora de uma tradição
significativa.
Dessa realidade, decorrem algumas conseqüências. Dentre essas, cabe destacar o fato
de que a pesquisa científica não alcança um objeto naturalmente dado, objetivo. Significa
também que ela não pode pretender para sua prática a condição de neutralidade e
objetividade. Toda pesquisa ocorre no chão da História marcado pelas conflitividades nele
presentes. Tal situação elimina qualquer pretensão de isenção de pré-juízos nos
procedimentos científicos. Indício significativo desse aspecto
fica evidenciado quando é
abordada a visão de Sepp sobre os indígenas com os quais entra em contato em suas
26
CERTEAU, 1982, p. 32.
25
iniciativas missionárias
27
. Em toda prática interpretativa, os preconceitos se farão presentes e
influenciarão as formulações que a mesma articula.
Além disso, a particularidade do lugar social incide sobre a subjetividade do
pesquisador. Tal fato está relacionado com a estrutura epistemológica que configura os
procedimentos de pesquisa. O lugar social indica a introdução do sentido na prática da
pesquisa. Isso leva a considerar a questão de que os fatos históricos não existem na sua
objetividade. Esses são constituídos como tais pelos diversos procedimentos de pesquisa
adotados. Acontece que escolhas prévias que marcam o sentido da pesquisa. Deste modo,
condicionam a perspectiva e o significado do que se pesquisa, o tipo de perguntas que se
articulam, as questões que são apresentadas, a relevância dada a determinados procedimentos.
Assim sendo, esfuma-se também a pretensão de isenção de pré-juízos na interpretação por
parte do investigador.
Não se pode olvidar também que o lugar teórico não goza de autonomia e isenção. É
igualmente permeado e marcado pelos conflitos socioideológicos
28
. O próprio processo de
constituição das teorias é histórico. Um dado sistema teórico articula-se a partir das demandas
e necessidades dos distintos grupos sociais. E permanece como um referencial enquanto
reunir as condições para dar conta das exigências às quais serve.
A instituição da pesquisa é afetada pela tentação e pretensão de constituição dum
lugar científico. “A instituição o apenas uma estabilidade social a uma ‘doutrina’. Ela a
torna possível e, sub-repticiamente, a determina.”
29
É imprescindível enfatizar a necessidade
de recusar o isolamento e assumir, na pesquisa, a correlação de forças e as relações de causa e
efeito que se manifestam nos sistemas sociais. Sistemas socioeconômicos e de simbolização
se interconectam. Uma complexa rede de influências recíprocas os entrelaça sem os
identificar, nem confundir, mas mantendo suas distinções.
Quando se aborda a questão da pesquisa histórica e se enfatiza a relevância do lugar
social na sua produção, percebe-se, como já foi apontado, que toda interpretação é
27
Essa questão se encontra desenvolvida no capítulo 3 desta pesquisa.
28
Cf. CERTEAU, 1982, p. 68.
29
CERTEAU, 1982, p. 70.
26
influenciada pela teia de significações
30
articulada pelo momento presente do pesquisador. O
processo interpretativo configura-se como uma prática influenciada por distintos
condicionamentos. As interpretações articuladas pelo historiador são relativas às respostas
dadas a questões que se apresentam no presente. Sobre esse aspecto, Certeau lembra que
“uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre
dirigida por uma leitura do presente”
31
.
Essas observações ressaltam mais uma vez a dificuldade de sustentar a pretensão de
neutralidade da interpretação ou da objetividade do ofício do historiador
32
. Afirmar que uma
leitura do presente orienta uma leitura do passado implica o reconhecimento da
particularidade de toda leitura interpretativa. A própria análise do momento presente é
permeada por influências e condicionamentos socioideológicos. Ela se articula em função de
problemáticas emergentes numa dada situação. Além disso, não se pode esquecer que o
exercício interpretativo sempre se apresenta marcado por concepções e modelos de
compreensão que permeiam a mentalidade presente.
Há ainda outro aspecto a considerar sobre a questão do lugar da produção do
discurso histórico. É constituído pelo entrelaçamento estreito entre o estatuto do saber e a
situação social, isto é, o lugar desde onde aquele é articulado. Tal relacionamento pode ser
percebido em distintas manifestações.
Um desses elementos aparece manifesto na relação do discurso histórico com a
instituição. Ela constitui um dos referenciais que avaliza e sustenta as proposições da
pesquisa. De certo modo, a instituição articula-se como um sujeito plural que confere
autoridade aos resultados da investigação. O investigador não age isolado, nem por absoluta
iniciativa própria.
30
Esse conceito operacional é desenvolvido por Geertz. Ele afirma que o ser humano “é um animal suspenso nas
teias de significado que ele próprio teceu”. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978. p. 15.
31
CERTEAU, 1982, p. 34.
32
Burke aborda essa questão. Aponta que a pretensão da historiografia tradicional é mostrar que a história é
objetiva. A tarefa do historiador seria a de apresentar os fatos “como eles realmente aconteceram”. Este ideal é
considerado irrealista, dado que o conhecimento da realidade não é objetivo. Cf. BURKE, Peter (org.). A escrita
da história: novas perspectivas. São Paulo: EdUNESP, 1992. p. 12s.
27
Outro indício dessa questão é a de que os sujeitos que compõem os quadros da
instituição se constituem como interlocutores autorizados do pesquisador. Tal fato, como um
referencial dinâmico, qualifica a prática do investigador. Deste modo, articula-se, nessa
interlocução, um trabalho coletivo. Esse proceder, em última análise, é que classifica um autor
enquanto agente produtor de um discurso histórico autorizado.
Dessas considerações, decorre uma implicação concreta para o historiador. Certeau
assim a formula: “este discurso faz o historiador, mesmo que a ideologia atomista de uma
profissão ‘liberal’ mantenha a ficção do sujeito autor e deixe acreditar que a pesquisa
individual constrói a história”
33
. Ou seja, as iniciativas e os procedimentos do pesquisador,
por mais técnicos que sejam, sempre estarão influenciados pelo meio sociocultural no qual se
situa. Além do mais, cabe frisar que seu trabalho será relativo a um estado da questão que se
propõe a abordar. E o resultado de suas formulações inscreve-se numa rede de proposições e
produções articulada por seus pares.
As considerações acima feitas indicam, pois, que a produção de estudos históricos
não se efetiva num vazio de condicionamentos. Os resultados das pesquisas não estão isentos
de influências. As proposições com pretensão de verdade não são imunes de opções teórico-
metodológicas. Essas condições levam a reafirmar com Certeau que o estudo histórico, mais
do que resultado de uma competência pessoal, “é o produto de um lugar”
34
.
Num mundo marcado por contextos plurais e possibilidades de contatos e encontros
constantes e intensos entre grupos de culturas distintas emergem questões relevantes que
desafiam a capacidade de apreensão dessa complexidade. A afirmação da igualdade
fundamental de todas as pessoas e, ao mesmo tempo, o reconhecimento do direito inalienável
às diferenças culturais constitui ponto inquestionável na agenda sociopolítica. A salvaguarda
das iniciativas das individualidades em concomitância com a articulação de projetos coletivos
representa um desafio permanente.
Tais características peculiares configuram o lugar social a partir do qual se articula a
pesquisa sobre os escritos de Sepp. Ao longo da pesquisa se buscará evidenciar como nas suas
33
CERTEAU, 1982, p. 72.
34
CERTEAU, 1982, p. 73.
28
formulações se manifestam as percepções de encontro de mundos culturais distintos
35
e como
as mesmas incidem na articulação do seu imaginário missionário. Antes, serão considerados
outros aspectos constitutivos do referencial teórico da pesquisa.
1.1.1.2 História enquanto prática
Em suas considerações sobre a escrita da História, Certeau afirma de modo lacônico:
“fazer história” é uma prática. Enquanto tal, a História é mediatizada pela técnica. Resulta de
uma operação. No caso concreto dessa pesquisa, tal operação se constitui intermediada pelo
instrumental técnico formado pelos conceitos integrantes do quadro teórico em explicitação,
com vistas à instituição de significados do imaginário de Sepp. Não se constitui, portanto,
como mera compilação de documentos ou dados estabelecidos. Nem se configura como
resgate de elementos instituídos guardados alhures.
A pesquisa, enquanto prática produtora da História, acontece justamente na
“fronteira móvel entre o dado e o criado
36
. Não se trata apenas de abrir espaço para objetos
novos fornecidos por um passado já dado. O historiador, na realização de seu ofício, “trabalha
sobre um material para transformá-lo em história
37
. Empreende efetivamente uma operação,
uma manipulação
38
.
A operação científica empreendida pelo historiador pode ser caracterizada como um
movimento de reorganização dos materiais em que ele produz, destruindo. Por um lado,
importa que realize práticas de desconstrução de fatos ou dados aceitos como estabelecidos ou
absolutos. Deste modo, a produção de suas proposições acerca de seu objeto de estudo
efetiva-se à medida que destrói ou, ao menos, desconstrói as compreensões aceitas como
definitivamente dadas
39
.
35
Tal aspecto aparece mais evidenciado nas reflexões articuladas no capítulo 3, onde é abordada a compreensão
que Sepp expressa acerca dos indígenas que encontra em seu percurso missionário.
36
CERTEAU, 1982, p. 78.
37
CERTEAU, 1982, p. 79.
38
Segundo Bloch, o historiador, ao trabalhar com os fatos humanos no passado, tem deles “um conhecimento
através de vestígios”. Efetiva, portanto, em sua pesquisa, procedimentos de reconstituição. Nesse sentido, no seu
entender, o ofício do historiador pode ser compreendido como uma prática. Cf. BLOCH, Marc. Apologia da
história, ou, o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 73.
39
Essa compreensão de que o historiador realiza operações de manipulação de dados, de desconstrução de fatos
e de produção de objetos aparece igualmente proposta por Certeau na sua obra A invenção do cotidiano. Ao
29
Em que consiste e como se constitui a prática específica do historiador no
desempenho de seu ofício? Certeau assevera que “em história, tudo começa com o gesto de
separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra
maneira”
40
. A intuição de Certeau indica a adoção de um procedimento fundamental em toda
prática de pesquisa. Trata-se de seleção criteriosa e definição precisa do objeto de estudo.
Poderia parecer um encaminhamento meramente técnico ou metodológico, sem grandes
implicações socioculturais. No entanto, essa é uma questão decisiva.
Tratando-se de História, esse procedimento adquire matizes particulares. Ocorre que
os objetos de abordagem não se oferecem ao pesquisador de modo evidente. Não se
constituem como feição de realidade dada à qual bastaria aplicar os instrumentais de análise e
interpretação, observar as reações e anotar as constatações a título de resultados de pesquisa
41
.
Ao contrário, a própria definição do objeto de estudo supõe e requer um processo
de intervenção na realidade. Certeau aponta a necessidade de realizar uma espécie de recorte
no material em foco. Evidencia-se, neste particular, a adoção de uma operação que constitui
uma intervenção transformadora no universo em estudo. Não ocorre uma submissão passiva
ante os objetos que se apresentariam de modo definido ao investigador.
De fato, em todo esse processo de pesquisa ocorre um verdadeiro trabalho do
historiador. Ele realiza operações de manipulação de materiais, transformando-os em
documentos para análise e interpretação. Certeau insiste em afirmar que essa operação
“consiste em produzir tais documentos”
42
. Efetivamente, ao realizar procedimentos de
transcrição, re-cópia ou fotografia de objetos, sua espacialização e configuração são alteradas.
O investigador da História, na compreensão de Certeau, isola um objeto de estudo,
desfigura as coisas para constituí-las em elementos com os quais articula sua elaboração ou
construção teórica. Deste modo, pode-se compreender a afirmação acima feita: “o historiador
analisar as práticas do cotidiano, ele sugere que os consumidores realizam “operações de usuários”, “fabricam”
algo ao consumir produtos, criam novas “maneiras de empregar” o que consomem. Ele o evidencia ao afirmar
que o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. CERTEAU, Michel de. A invenção do
cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 38.
40
CERTEAU, 1982, p. 81.
41
O processo de seleção de determinadas temáticas a serem abordadas na consideração do conjunto dos escritos
de Sepp na presente pesquisa constitui um exemplo desse procedimento.
42
CERTEAU, 1982, p. 81.
30
produz destruindo”
43
. “Longe de aceitar os ‘dados’, ele os constitui.”
44
O material com o qual
o historiador se ocupa é criado. Neste proceder, fazem-se necessárias operações técnicas.
Tais considerações suscitam a atenção para outro aspecto. Trata-se da questão do
estabelecimento das fontes de pesquisa. Também nesse particular, Certeau aponta para uma
atividade transformadora do pesquisador sobre os materiais com os quais se defronta. Um
primeiro indício desta operação manifesta-se no ato de utilização de outra maneira dos
recursos disponíveis e conhecidos com os quais trabalha.
A prática de pesquisa consistiria no processo de transformação de alguma coisa, com
suas particularidades e modos de apresentar-se específicos, em alguma outra coisa, fazendo-a
funcionar de modo diverso
45
. Isso implica um processo de alterações na ordem das coisas tal
como se apresenta. Deste modo, o que se consigna por fontes não constitui uma realidade
dada a ser tão somente acessada pela atividade investigativa.
As fontes de pesquisa não se caracterizam como campo objetivo definido. Sobre esse
ponto, observa Certeau que “um trabalho é ‘científico’ quando opera uma redistribuição do
espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo ‘estabelecimento das fontes’
quer dizer, por uma ação instauradora e por técnicas transformadoras”
46
. Os elementos
constitutivos de um dado campo de investigação não se impõem sobre a prática do
pesquisador. Pelo contrário, no processo de articulação da pesquisa, na estruturação do
conjunto de procedimentos a serem adotados, a iniciativa é do pesquisador. A constituição de
um determinado campo de investigação resulta duma intervenção deliberada, mediante
recortes e operações, para a construção explícita do objeto de pesquisa.
A escolha dos textos de Sepp no processo de constituição do objeto de investigação
da presente pesquisa representa um exercício efetivo da operação historiográfica de
construção das fontes. Os seus escritos são considerados como uma parte significativa do
conjunto de relatos marcantes que informa acerca daquilo que se passou na dinâmica
43
Na abordagem de determinadas questões presentes nos escritos de Sepp ocorre um processo de destruição das
cartas ao ser produzido, construído e sistematizado o discurso, o relato da pesquisa, a tese em cinco capítulos, na
ordem apresentada, onde a subjetividade do seu autor vai sendo explicitada.
44
CERTEAU, 1982, p. 81.
45
Esse processo se verifica na pesquisa pela qual as cartas de Sepp vão sendo transformadas em uma tese de
doutorado, por exemplo.
46
CERTEAU, 1982, p. 83.
31
reducional. No entanto, fazem parte de um universo maior de relatos e elaborações sobre essa
realidade. Constituem, portanto, uma reconhecida fonte de pesquisa sobre aspectos
fundamentais da ação missionária do período colonial. Ao perguntar sobre a função
desempenhada por tal discurso na constituição do imaginário missionário, a pesquisa
problematiza essa questão. O esforço de reconstituição desse imaginário mediante os
procedimentos de sua análise e interpretação constituem a operação historiográfica. Articula-
se, assim, uma nova abordagem desses escritos. Essa tematização será desenvolvida nos
seguintes capítulos.
1.1.2 A ideologia na pesquisa histórica
A produção da História precisa dar conta da relação estreita que entrelaça a História
com a ideologia
47
. Tanto a história que se passa, que é vivida pelos sujeitos históricos, quanto
a História produto de uma escrita, é permeada pelos interesses que expressam as opções de
seus autores. Tal questão apresenta-se tanto mais complexa quanto mais os aspectos
ideológicos caracterizam-se pelo auto-encobrimento, dificultando sua explicitação. Essa
sutileza inerente expressa aspectos relevantes de seu funcionamento.
Um aspecto relevante para a ciência histórica aparece sugerido num axioma
fundamental por Certeau. Sustenta que uma leitura do passado é sempre condicionada por
uma leitura do presente. As circunstâncias específicas da situação vivida no presente
configuram o caráter das questões lançadas ao passado. Estamos conscientes que a crítica ao
imaginário e práxis missionária de Sepp talvez não fosse possível na sua época como é hoje,
dada a cosmovisão e a visão de outro de forma distinta do que é hoje. Mas, exatamente por
isso que, ao “matar”, a história faz “viver”, conforme as compreensões do próprio Certeau. A
História é, assim, História para a vida e não para a morte. A interpretação do passado é
conformada pelos modelos articulados com os elementos interpretativos ligados a uma
situação presente
48
.
Tanto a leitura do passado quanto a do presente se organizam em função das
demandas geradas pelas condições específicas de uma dada situação. A percepção dessas é
47
Cf. CERTEAU, 1982, p. 31.
48
Bloch aponta para esta estreita relação entre o conhecimento do momento presente e a compreensão do
passado. Demonstra que os “vínculos de inteligibilidade” entre estes distintos tempos apresentam força e sentido
duplo. Cf. BLOCH, 2001, p. 65s.
32
circunstanciada pelo grau de desenvolvimento dos instrumentais usados nos procedimentos de
análise e interpretação. Tal desenvolvimento apresenta-se de modo distinto nas diferentes
épocas históricas. Essa condição cria a oportunidade e a possibilidade de articular sempre
novas perguntas ao conjunto de acontecimentos e explicações apresentadas como
definitivamente dados.
Outro elemento constitutivo desse procedimento historiográfico se evidencia pela
presença das ideologias. Certeau sustenta “que é impossível eliminar do trabalho
historiográfico as ideologias que nele habitam”
49
. Todo o esforço para eliminar a influência
das condições de produção da reflexão histórica ou as tentativas de negligenciar a relação
entre a ciência e seus condicionamentos constituem outras tantas práticas de caráter
marcadamente ideológico.
Tal percepção da questão da ideologia permite evidenciar outras implicações e
desdobramentos inerentes a essa temática. Mais do que marcar presença como tema ou objeto
de estudo, a ideologia está presente enquanto referencial de análise e interpretação. Surge
como “o pressuposto dos ‘modelos’ que caracterizam um tipo de explicação”
50
. Dizendo de
outro modo, ao fazer História não importa tanto a apreensão de uma afirmação de sentido
enquanto tema de estudo; relevante mesmo torna-se a competência e a habilidade de
evidenciar a articulação dos sentidos no desenrolar da própria atividade historiográfica.
Certeau assevera: “aquilo que desaparece do produto aparece na produção”
51
.
Da crítica ao cientificismo e à pretensão de objetividade na prática da pesquisa
histórica, emergiu a consciência dos pressupostos da interpretação. O acesso a esse patamar
ocorreu a partir do ponto de partida caracterizado como suspeita epistemológica. Da
desconfiança, assim configurada, em relação às explicações apresentadas como pretensão de
verdade, passou-se à percepção mais explícita dos sistemas de referência fundamentais em
qualquer prática interpretativa
52
.
49
CERTEAU, 1982, p. 40.
50
CERTEAU, 1982, p. 40.
51
CERTEAU, 1982, p. 41.
52
Burke afirma que “a nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o ‘paradigma’
tradicional”, a qual se apresenta como visão do senso comum da história, ou seja, o que é considerado como a
maneira de se fazer história. BURKE, 1992. p. 10.
33
Dado que não uma verdade histórica à qual se possa ter acesso ou passível de ser
reconstituída, é forçoso reconhecer que o discurso histórico sempre resulta de um processo de
interpretação. No entender de Certeau, “toda interpretação histórica depende de um sistema de
referência”
53
. Nesse particular, faz-se presente um esforço teórico.
Por um lado, um sistema de referência já se encontra sempre constituído pelo modelo
epistemológico hegemônico caracterizado como paradigma. Segundo as reflexões de Thomas
Kuhn, um paradigma resulta dum processo de articulação reflexiva da comunidade
científica
54
. Carrega, portanto, em sua estruturação as opções teórico-metodológicas de seus
membros integrantes. Não é, portanto, um quadro teórico que paire acima dos conflitos e da
diversidade de interesses de uma dada sociedade em determinado contexto histórico.
Por outro lado, um sistema referencial de interpretação é também resultado das
opções e decisões filosóficas do pesquisador
55
. A articulação de um quadro de análise do seu
objeto de pesquisa é resultado explícito de seu esforço teórico. Tal construto expressa a
subjetividade do autor da pesquisa. Em sua reflexão, poderá aproximar-se e comungar das
perspectivas dos sistemas referenciais predominantes em seu tempo ou tenderá a criar
caminhos ousados, desafiadores da corrente dominante.
De qualquer modo, fica evidente que um sistema referencial de interpretação é fruto
e expressa opções de fundo ideológico. O sistema de referência manifesta-se constituído como
uma filosofia implícita. Traduz um procedimento de opções teórico-metodológicas. Expressa
um discernimento entre perspectivas. Independente de ser explicitada ou mantida implícita, tal
questão está presente.
A abordagem de características específicas do discurso de Sepp pretende tematizar
sua função legitimadora na constituição do imaginário missionário. Tal problematização
53
CERTEAU, 1982, p. 67.
54
No prefácio de seu ensaio, Kuhn afirma: “considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente
reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência”. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 6.ed. São Paulo:
Perspectiva, 2001. p. 13.
55
Acerca desse aspecto, Hunt observa que os historiadores necessitam perceber “que suas escolhas supostamente
objetivas de técnicas narrativas e formas de análise também têm implicações sociais e políticas”. HUNT, 1992,
p. 27.
34
considera os aspectos ideológicos inerentes ao discurso. Em momento oportuno serão
desenvolvidas essas questões.
1.1.3 A criação do sentido
As questões acima abordadas trazem à tona outra temática. Na sua prática, o
historiador depara-se com a problemática do sentido. Também nesse particular de ser
considerada a especificidade da epistemologia historiográfica. A pesquisa histórica visa à
apreensão de um sentido já dado na História? Sua tarefa consiste em uma afirmação de
sentido como objeto de seu trabalho? Consegue ela realizar, nas suas operações, tal pretensão?
A compreensão da historiografia de cunho positivista era de que havia na História
um sentido velado. Acreditava que, em meio ao conjunto de fatos observados, era possível
buscar uma unidade organizadora e dadora de sentido. Mais. Pensava-se e postulava-se que
esse sentido subjacente à multiplicidade dos acontecimentos articulava sua coerência e
constituía como que um pano de fundo sobre o qual os diversos elementos revelavam sua
pertinência. Tarefa da pesquisa era a de desvendar esse sentido implícito na realidade
observada.
Deste modo, admitia-se que houvesse na História um Zeitgeist, um espírito do tempo
capaz de ser verificado nos dados observados. A adequada descrição dos fatos possibilitaria a
explicitação do sentido subjacente a esses. A correta articulação do esforço de desvendamento
do sentido permitiria uma clara intelecção do sentido que permeia a História.
Facilmente, desse passo, saltava-se para a noção finalista ou teleológica da História.
Dado que nela seria possível verificar e desvendar um sentido, esse somente poderia ser o de
apontar um telos, uma finalidade em realização. Toda a História seria então o processo de
desenvolvimento e realização desse sentido.
A implicação mais profunda dessa abordagem consiste na sua insistência sobre a
possibilidade de atingir a verdade histórica. Considera e crê que a estrutura profunda da
História apresenta-se de modo objetivo. Cabe, nesse caso, ao historiador realizar de modo
adequado os procedimentos inerentes ao seu ofício para cumprir sua missão de explicitação da
verdade objetiva.
35
As contribuições de Certeau para a reflexão epistemológica sobre a História apontam
perspectivas distintas. No seu entender, a busca pelo “sentido históricode um passado como
um objeto ao qual se tem acesso mediante procedimentos historiográficos não resiste à crítica.
O que torna o passado pensável e inteligível não é o “sentido” que se torna um objeto do
proceder da pesquisa histórica. Na confrontação entre o passado e o presente, o historiador
articula sentidos que tornam pensáveis e compreensíveis, tanto o passado e o presente, quanto
suas relações.
Tal perspectiva torna possível articular a compreensão de uma nova relação com a
realidade. Esse modo de considerar as questões aponta para novos caminhos epistemológicos.
Integra uma nova abordagem dos fatos históricos. Certeau assim se expressa: “se o sentido
não pode ser apreendido sob a forma de um conhecimento particular que seria extraído do real
ou que lhe seria acrescentado, é porque todo ‘fato histórico’ resulta de uma práxis, porque ela
é o signo de um ato e, portanto, a afirmação de um sentido”
56
. Tal observação permite
evidenciar a tarefa de articulação de sentido como algo inerente à prática histórica. Constitui
dimensão relevante da historiografia não a busca do sentido como um dado da História, mas a
função fundadora de sentidos e instauradora de práticas. Deste modo, fazer História encontra
seu fundamento na ação que faz História.
A tarefa de proposição de sentido se institui desde a percepção e explicitação da
tensão entre presente e passado
57
. As compreensões forjadas pelas práticas e estruturações do
passado marcam e condicionam as formas de compreender que se articulam no presente. Os
instrumentais de que o pesquisador lança mão para examinar, analisar e interpretar aspectos
constitutivos do passado receberam desse passado elementos de sua configuração. Essa
condição aparece expressa na observação de Certeau: “fundada sobre o corte entre um
passado, que é seu objeto, e um presente, que é o lugar de sua prática, a história não pára de
encontrar o presente no seu objeto, e o passado, nas suas práticas”
58
. Nesse proceder, efetiva-
se o que se denomina de proposição do sentido na prática histórica.
56
CERTEAU, 1982, p. 41.
57
Sobre esse aspecto, a interessante observação de Rodrigues: “Ao mesmo tempo reconhece-se que o presente
emerge do passado e o sentido da história é um dos meios pelos quais o povo formula seus propósitos e se
fortalece para o futuro”. RODRIGUES, José Honório. Prólogo. In: HOORNAERT, Eduardo et al. História da
Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira época. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 8.
58
CERTEAU, 1982, p. 46.
36
Deste modo, evidencia-se a escrita da História, enquanto prática, como uma prática
significante
59
. Na medida em que realiza as operações de diferenciação, estrutura-se como um
processo de significação. Dado que não se trata de desvendar um sentido velado na História,
apresenta-se para a historiografia a tarefa de propor um sentido para o discurso histórico.
Assim, o historiador “parece contar os fatos, enquanto efetivamente, enuncia sentidos que,
aliás, remetem o notado (aquele que é retido como pertinente pelo historiador) a uma
concepção do notável
60
.
Cabe ressaltar, no entanto, que o processo de produção de sentido não ocorre ex
nihilo, desde um vazio de significação. A atribuição de sentido não decorre de modo aleatório
ou arbitrário
61
. Resulta de uma complexa referência ao real. “Toda produção de sentido
reconhece um evento que aconteceu e que a permitiu.”
62
O condicionamento de todo processo
de produção de sentido, bem como as influências que permeiam a atividade interpretativa da
historiografia ficam ressaltadas nesta observação de Certeau:
a atividade que produz sentido e que instaura uma inteligibilidade do passado é,
também, o sintoma de uma atividade sofrida, o resultado de acontecimentos e de
estruturações que ela transforma em objetos pensáveis, a representação de uma
gênese organizadora que lhe escapa
63
.
Que sentido atribuir aos escritos de Sepp? Essa questão, a ser abordada ao longo da
pesquisa, considera alguns pressupostos elementares. A correspondência do missionário não
apenas comunica descrições dos resultados de suas iniciativas. Os relatos servem não apenas
para expressar as impressões do padre no contato com as realidades com as quais se depara.
Os escritos constituem formas de proposição de discurso constitutivo do seu imaginário
missionário
64
. Desse modo, cumprem uma função de legitimação das iniciativas e práticas
adotadas na catequização dos indígenas. Esboçam a condição de elementos sustentadores do
59
A articulação complexa entre passado e presente tem finalidade relevante. Na expressão de Rodrigues: “é o
presente que reformula as perguntas e questões ao passado, refaz a história e constrói, com vigor primaveril, uma
nova consciência para edificar um futuro que esperamos melhore a condição humana”. RODRIGUES, 1977, p.
7.
60
CERTEAU, 1982, p. 52.
61
Acerca desse aspecto apresenta-se oportuna a observação de Bloch, ao afirmar que “o passado é, por definição,
um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que
incessantemente se transforma e aperfeiçoa”. BLOCH, 2001, p. 75.
62
CERTEAU, 1982, p. 54.
63
CERTEAU, 1982, p. 54.
64
Quando Sepp escreve acerca da habilidade dos indígenas, por exemplo, na confecção de objetos artesanais e
menciona a perfeição dessas práticas, não significa necessariamente que descreva algo que é assim, mas expressa
o seu desejo de que tal realidade seja assim.
37
empenho e esforço desse agente religioso junto aos povos nativos. Esta perspectiva de
argumentação ainda será desenvolvida.
1.1.4 A alteridade na narrativa
Um dos aspectos instigantes da escrita da História aparece configurado naquilo que
Certeau denomina de relação com o outro. A prática da pesquisa histórica busca explicitar a
relação de uma sociedade com o seu passado. Neste mesmo procedimento, articula a ação de
distinguir-se dele. Em tal operação, ao construir a imagem da atualidade, o historiador
demarca-a de seu outro. Nesse processo, no entanto, esse outro marca presença, organizando
as práticas e insinuando-se no discurso.
Certeau afirma: “a história está, pois, em jogo nessas fronteiras que articulam uma
sociedade com o seu passado e o ato de distinguir-se dele; nessas linhas que traçam a imagem
de uma atualidade, demarcando-a de seu outro, mas que atenua ou modifica, continuamente, o
retorno do ‘passado’”
65
. A escrita da História constitui dimensão significativa do esforço de
articular adequadamente as permanências e as rupturas instauradoras. Realiza a tarefa de
diferenciação necessária para a explicitação coerente da relação da sociedade com o seu
passado. Desta forma, permite espaço e atenção devida à alteridade.
A tarefa da pesquisa histórica encontra-se marcada por uma fascinação pela
alteridade. A proximidade do outro revela-se ao mesmo tempo inquietante e fascinante.
Certeau designa-o como o fantasma da historiografia. De certo modo, a práxis histórica pode
ser caracterizada como “o relato dessa relação de exclusão e de atração, de dominação ou de
comunicação com o outro
66
. E é justamente essa tensão que se torna objeto de explicitação
da História.
A relação com o outro é feita de proximidade. Tanto o historiador quanto o objeto de
seu estudo e pesquisa integram a contemporaneidade do horizonte ou tradição hermenêutica.
65
CERTEAU, 1982, p. 48.
66
CERTEAU, 1982, p. 55.
38
Esse horizonte, constituído pela teia de sentidos e significados articulados ao longo da
História, é que possibilita o exercício interpretativo
67
.
Na relação com seu outro, o historiador necessita efetivar o distanciamento. Tal
operação é realizada mediante um trabalho de separação, estabelecendo uma diferenciação
entre o presente e o passado. Esse procedimento ocorre pela intermediação dos documentos,
forma pela qual a diferenciação se verifica. Deste modo, configura-se outro postulado para a
prática da interpretação.
Nessa complexa relação com o seu outro, a História articula-se em situação de
autonomia e dependência. Constitui-se numa condição de autonomia enquanto o seu discurso
se diferencia de uma época anterior. Tal operação de diferenciação é indispensável para a
prática historiográfica
68
. Embora se distinguindo, mantém uma relação com a origem. Tal
dependência se manifesta na presença dos elementos históricos que configuram sua
capacidade de inteligibilidade do passado.
No processo de construção da narrativa histórica, torna-se mais explícita a questão da
relação com a alteridade. Certeau caracteriza essa dimensão como sendo a relação com o
morto.
O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto. O objeto que
nele circula não é senão o ausente, enquanto que o seu sentido é o de ser uma
linguagem entre o narrador e os seus leitores, quer dizer, entre presentes. A coisa
comunicada opera a comunicação de um grupo com ele mesmo pelo remetimento ao
terceiro ausente que é o seu passado. O morto é a figura objetiva de uma troca entre
vivos. Ele é o enunciado do discurso
69
.
A escrita da História articula o seu discurso para o presente e seus leitores que vivem
nessa sociedade. Não pode, porém, desvencilhar sua fala do remetimento ao ausente, o seu
passado. Embora constituído desde uma ruptura com o passado, situa-se nessa relação com
seu outro. Exerce a função de representar uma cena passada, mas ainda organizadora.
67
Em relação a esse particular vale essa instigante observação de Bloch: “os exploradores do passado não são
homens completamente livres. O passado é seu tirano”. BLOCH, 2001, p. 75.
68
O procedimento de delimitação de um objeto de pesquisa constitui uma manifestação desse ato de
demarcação. A seleção dos textos de Sepp, e dentro de seus escritos, a escolha deliberada de algumas dimensões
para serem consideradas e abordadas na análise, expressam esse processo. Ocorre uma prática de aproximação a
esse outro que são os escritos de Sepp e, ao mesmo tempo, opera-se uma ação de distanciamento necessário para
efetivar a análise dos elementos selecionados.
69
CERTEAU, 1982, p. 56.
39
A narrativa histórica não se fixa no passado, absolutizando-o. Também não se
constitui como mera ficção, resultado de devaneios do presente exaltado. Cumpre a função de
delimitar o passado e abrir um espaço para o presente. Neste processo, a escrita exerce o papel
de um rito de sepultamento. Ao mesmo tempo em que exorcisa a morte, o outro, ela a honra e
lhe presta reconhecimento. Deste modo, ao delimitar um passado, dando um lugar à morte,
redistribui o espaço de possibilidades, aponta a perspectiva do presente, aquilo que está por
fazer. Assim, ao criar túmulos escriturísticos, a narrativa estabelece um lugar para os vivos.
Ou seja, no dizer de Certeau, “uma sociedade se dá um presente graças a uma escrita
histórica”
70
.
Essa operação sinalizada constitui o procedimento que a pesquisa pretende efetivar.
A consideração das cartas de Sepp e a conseqüente abordagem crítica de elementos relevantes
criteriosamente selecionados dentre esses escritos constituem, de certo modo, essa dinâmica
mencionada por Certeau como rito de sepultamento. Mediante os procedimentos explícitos de
pesquisa efetua-se o sepultamento de suas cartas ao ser construída esta tese. Com esse rito
presta-se um reconhecimento ao seu autor, o missionário jesuíta Sepp, ao mesmo tempo em
que se delimita o seu lugar no passado, abrindo-se novas perspectivas no presente, por meio
da explicitação e interpretação de seu imaginário.
Em última instância, a escrita da História constitui-se como uma prática que
transforma a tradição recebida em texto produzido
71
. Efetivamente, o historiador,
descobrindo-se envolvido como parte integrante da História que se passa e, ao mesmo tempo,
percebendo-se enredado na teia de significados e na série de sentidos articulados
historicamente, constrói a narrativa, o relato. Deste modo, expressa sua compreensão do
passado desde o seu presente vivido. “Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue
no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de
um passado morto e resultado de uma prática presente.”
72
70
CERTEAU, 1982, p. 108.
71
Chartier analisa as implicações e desdobramentos da história enquanto narrativa. Ele afirma que “os
historiadores sabem bem hoje em dia que também são produtores de textos”. CHARTIER, Roger. À beira da
falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 2002. p.14. Em sua análise
evidencia que a escritura da história pertence ao gênero da narrativa.
72
CERTEAU, 1982, p. 57.
40
Na prática da escrita da História, torna-se fundamental e necessário o recurso a
distintas operações técnicas. Procedimento relevante é constituído pelo exercício
hermenêutico, interpretativo. Nessa etapa, um papel decisivo é exercido pela capacidade
racional do pesquisador. Sua prática teórica se apresenta caracterizada pela mediação da razão
e suas operações lógicas. No entanto, o esforço investigativo não resulta pleno apenas com o
concurso desses meios. Tal fato abre espaço para a emergência de um potencial criador que,
sem desconsiderar as potencialidades inerentes à racionalidade, represente a sua ampliação. A
reflexão sobre a força criadora do imaginário pretende contemplar essa perspectiva.
1.2 A força criadora do imaginário
O desenvolvimento da modernidade com a conseqüente hegemonia da razão,
marcadamente o seu caráter instrumental, acabou gerando uma espécie de cansaço existencial.
Esse fenômeno é notório e em reflexões em que é abordado emergem expressões típicas, tais
como “mal-estar da civilização”, paradoxos da modernidade, crise epocal. Tal situação resulta
como proveniente dos efeitos inerentes à racionalização exacerbada da vida engendrada pela
modernidade.
Efetivamente o pensamento ocidental, sobretudo a tradição filosófica, desvalorizou,
ao longo da História, a imagem e a força criadora da imaginação. Elas têm sido relegadas
como fomentadoras de erros e falsidades. Foram reduzidas como franjas do limiar da
sensação. Não se lhes reconheceu senão um papel subalterno no processo de produção do
conhecimento.
Tal desvalorização de âmbitos específicos do imaginário é fruto da ciência moderna.
O modelo que ela engendrou nega o caráter racional, portanto científico, àquelas formas de
conhecimento e saber que não se pautem por seus princípios epistemológicos e pelas suas
regras metodológicas. O racionalismo positivista acreditou ter minimizado o papel da imagem
e do simbolismo. Ao valorizar a razão, em detrimento do imaginário, pretendeu articular um
pensamento sem imagem.
Paradoxalmente, a própria razão, ao pretender abarcar tudo, preparou o caminho para
o retorno do imaginário e de suas manifestações. O império absoluto da razão vem perdendo
gradualmente a sua força. O imaginário e o simbólico voltam a ocupar lugar de destaque nas
reflexões sobre o processo de construção do conhecimento humano histórico. A presente
41
pesquisa, ao perguntar pelos elementos relevantes da construção do imaginário missionário na
abordagem dos escritos de Sepp, reconhece a importância da consideração desse âmbito do
saber. Pretende tematizar aspectos constitutivos dessa compreensão significativa da reflexão
histórica.
1.2.1 Que é o imaginário?
O esforço por articular uma definição exaustiva do que seja o imaginário pode
resultar infrutífero. Ele constitui-se como uma dimensão complexa e, em princípio,
indefinível. Em suas reflexões, Ruiz alerta: “nenhuma explicação racional por muito densa ou
extensa que se pretenda poderá exaurir todas as possibilidades de conceber e existir o
imaginário”
73
. No entanto, isso não é o bastante para a atitude conhecedora do ser humano.
Por isso acrescenta: “o imaginário sempre deverá ser descrito pelos seus efeitos, pois nunca
poderá ser explicado por meio de definições conclusivas”
74
.
No processo de questionamento da modernidade e de suas concepções redutoras da
racionalidade e na tentativa de resgate de dimensões relevantes da vida humana, Gilbert
Durand dirige suas pesquisas para as estruturas profundas da psique humana. Em sua reflexão
sobre o imaginário, apresenta esta conceituação.
O Imaginário ou seja, o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui
o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador
fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O
Imaginário é esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de
uma determinada ciência humana por um outro aspecto de uma outra
75
.
Essa forma de consideração mostra um aspecto relevante: a dinâmica do imaginário.
Ele se manifesta nas culturas humanas por meio de imagens, símbolos e representações. Sua
função é colocar o ser humano em relação de significado com o mundo a sua volta. Deste
modo, o imaginário não é um elemento secundário do pensamento humano, mas a própria
matriz do pensamento. É o que Durand expressa ao afirmar que
o imaginário não é mais que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa
assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual,
73
RUIZ, Castor B. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2003. p. 30.
74
RUIZ, 2003, p. 30.
75
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 18.
42
reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se
explicam ‘pelas acomodações anteriores do sujeito’ ao meio objetivo
76
.
A aproximação aos textos de Sepp permite a constatação de uma dimensão
importante de seu imaginário missionário. Tanto suas iniciativas práticas, quanto seus escritos
estão permeados pelo recurso à simbologia, às imagens para a consecução de seus objetivos
77
.
Tais aspectos ainda serão considerados e aprofundados no desenvolvimento deste estudo.
Na dinâmica da produção do conhecimento, razão e imaginação se complementam.
Fazem parte de um mesmo processo de atribuição de sentido às coisas e ao mundo. O
imaginário é a operação que promove essa cooperação entre essas duas esferas da capacidade
do sujeito cognoscente. Cria uma teia de sentidos que se apresenta como referencial de
compreensão. Desse modo, a criatividade humana manifesta-se ampliada pela dinâmica do
imaginário.
O conhecimento não emerge somente a partir do exercício da razão. Ela tende a
seguir o princípio causal, instrumental. A mera razão não possibilita a criação. O ser humano,
antes de pensar logicamente as coisas, imagina-as. O imaginário constitui a potencialidade
que o ser humano tem de impregnar de sentido suas percepções. Os objetos passam de
elementos sem sentido a ser coisas com significado.
O imaginário se constitui como força criadora que emerge da capacidade humana.
Ele não é redutível às leis lógicas da racionalidade. Esse aspecto é mencionado por
Castoriadis. Ele afirma que
na medida em que o imaginário se reduz finalmente à faculdade originária de pôr ou
de dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que
não são dadas na percepção ou nunca o foram), falaremos de um imaginário último
ou radical, como raiz comum do imaginário efetivo e do simbólico. É finalmente a
capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem
78
.
Cabe, no entanto, ressaltar que o imaginário precisa estar imbricado na racionalidade.
Não é possível conceber o imaginário sem a racionalidade. Sendo a potencialidade criadora,
76
DURAND, 1997, p. 41.
77
Um aspecto marcante dessa questão pode-se verificar na sua detalhada descrição da construção do templo na
redução. Menciona, em especial, características da ornamentação e arranjos artísticos nele desenvolvidos. Tais
elementos constituem-se meios para impressionar os integrantes da comunidade. Igualmente se constitui como
um recurso habilmente utilizado para granjear a simpatia dos leitores de seus escritos.
78
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.
154.
43
embora não delimitado pela racionalidade, articula-se com essa numa relação tensa e
conflitante.
A capacidade criadora do imaginário não pode ser reduzida às categorias lógicas ou
às estruturas do pensamento. Como afirma Ruiz, “a própria racionalidade está impregnada
pelo poder criador do imaginário”. Ele se constitui como um poder criador que “capacita o
logos para pensar a novidade socioistórica e criar além do existente”
79
. Por si mesma, a
razão apenas ordena e estabelece as relações lógicas entre o que existe. A possibilidade de
criar o diferente situa-se na faculdade criadora do imaginário.
Para efetivar a catequização dos indígenas, Sepp recorre a distintos meios e
mecanismos, sobretudo aqueles que ressaltam dimensões simbólicas e sensíveis. Lembra que
os seus aprendizes têm pouca capacidade para intuições e reflexões de caráter intelectivo.
Inclusive menciona a suspeita que os padres têm em relação à capacidade racional dos
nativos
80
.
1.2.2 Características do imaginário
O ser humano não aparece constituído como produto acabado. Ao contrário, se
manifesta como potencialidade aberta, marcada pela limitação e pela disposição de
transcender seus limites. Emerge, nessa perspectiva, como distinto da natureza. É capaz de
tomar consciência de sua condição de ambigüidade. Estabelece-se em sua capacidade de
distanciamento do mundo no qual está situado.
Essa vivência paradoxal de proximidade e distanciamento entre a consciência e o
mundo marca a sua existência. Para o ser humano, coloca-se, pois, a necessidade de superar
essa distância
81
. Uma das características do imaginário é a de construir essa relação entre
consciência e mundo. Ruiz lembra que
79
RUIZ, 2003, p. 50.
80
Ele assim se expressa: “Estes índios são tão pueris, tão grandemente simplórios e de juízo tão curto, que os
primeiros Padres, que converteram estes povos, duvidaram realmente se eram capazes de receber os Santos
Sacramentos. Não são capazes de inventar e excogitar algo que seja de seu próprio juízo e intuição, [...]. m de
fato juízo curto, nada sabem imaginar-se ou fingir-se, quando o não vêem. Isto muito trabalho ao
missionário”. SEPP, 1980, p. 144s.
81
Gilbert Durand lembra que a consciência dispõe de duas maneiras de representar o mundo: uma direta, na qual
a coisa parece estar presente no espírito trata-se de simples sensação; outra, indireta na qual o objeto é re-
44
para o ser humano, o mundo nunca pode ser apresentado; ele sempre tem que ser
representado. Toda apresentação é imediatamente transformada numa representação
de sentido instituído. A pessoa não tem um acesso direto à realidade natural.
Qualquer conhecimento do mundo implica uma construção de sentido. As coisas não
se apresentam para ele de forma imediata, natural ou objetiva. Ele as recria por meio
do sentido, transformando-as de elementos insignificantes em objetos carregados de
significado cultural. O mundo do ser humano é sempre um sentido do mundo
82
.
É a potencialidade do imaginário que capacita a consciência para constituir pontes de
sentido com o mundo. No entanto, é próprio do imaginário constituir o sentido de modo
articulado, formando redes de significados. Essas teias significativas constituem visões de
mundo ou cosmovisões. Nas reduções, como podemos observar nos relatos de Sepp, novas
compreensões são atribuídas às práticas habituais, tais como o trabalho. Além disso, novos
sentidos são articulados mediante a introdução de elementos até então desconhecidos dos
indígenas, como, por exemplo, representações teatrais, celebrações
83
, jogos.
Essa particularidade sinaliza outra característica própria do imaginário. A articulação
da forma de significar o mundo tem sempre uma dimensão social. Cada grupo social recria o
mundo com um sentido novo. Castoriadis expressa isso ao afirmar que “o mundo social é
cada vez constituído e articulado em função de um sistema de tais significações, e essas
significações existem, uma vez constituídas, na forma do que chamamos o imaginário efetivo
(ou o imaginado)”
84
.
1.2.2.1 Força criadora do imaginário
A constatação de que a realidade circundante é, ao mesmo tempo, próxima e distante,
limitada e inapreensível à consciência, faz surgir o mundo da criação imaginária. Antes de ser
conceito, o objeto é imagem. Antes de ser conhecida pela razão, a coisa é criada pela
imaginação, inserida num mundo de sentido. Ruiz afirma que “o sentido é sempre criado e
não emana naturalmente das coisas. O objeto, que é uma imagem com sentido, é sempre um
presentado na consciência por uma imagem. Cf. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições
70, 2000. p. 7.
82
RUIZ, 2003, p. 59.
83
Sepp escreve que, por ocasião de celebração do Natal, organizou um presépio representando a figura do
menino Jesus em madeira e colocando-o em manjedoura de palha. Tal similaridade com as condições
vivenciadas pelos indígenas na redução em construção os impressionou intensamente, como ele afirma. Fica
evidenciada uma ponte de sentido para a percepção do mistério da Encarnação. Cf. SEPP, 1980, p. 215.
84
CASTORIADIS, 1982, p. 177.
45
objeto construído pelo imaginário do sujeito e da sociedade”
85
. No entanto, este processo de
criação de sentido não é feito independente da racionalidade.
A força criadora do imaginário expressa uma outra realidade fundamental. O ser
humano não está situado num mundo de objetos naturais, mas vive num universo de sentidos
culturais. Isto ressalta a sua dimensão histórica. Mas esta não está constituída de antemão.
Segundo a compreensão de Castoriadis,
a história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do
que nós chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e
indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer
racionalidade explícita, de um universo de significações
86
.
Essa capacidade criadora mostra todo seu vigor na medida em que capacita os
sujeitos participantes de uma certa formação social para compreender-se a si mesmos e suas
relações com o mundo. O papel das significações é o de fornecer uma resposta às inquietações
dos seres humanos. Articula-se a hipótese de que a correspondência de Sepp desempenha o
papel de elemento legitimador de seu imaginário missionário. Além de comunicar aos seus
conterrâneos as suas impressões, de certo modo, precisa dar conta de sua expectativa de
missionário e construir sentidos para suas iniciativas e práticas efetivas. Essa resposta nem a
realidade, nem a racionalidade pode fornecer. Ao mesmo tempo, as respostas articuladas pelos
sujeitos, a partir do horizonte de significações, ampliam esse mesmo horizonte num processo
continuado. Essa dimensão é pertinente à função criadora do imaginário.
1.2.2.2 O imaginário social
No seu esforço de situar-se no mundo, os indivíduos de uma determinada
coletividade criam representações e idéias. O conjunto que resulta dessa produção coletiva é o
que se denomina de imaginário social. Nele podemos identificar diferentes percepções que os
sujeitos têm de si mesmos e de suas relações entre si e com o mundo. Articula-se como um
depósito da memória que o grupo recolhe de suas práticas e relações sociais no cotidiano.
O imaginário social se expressa por elementos que plasmam visões de mundo e
modelam condutas e estilos de vida. Essas podem tender em duas direções: ou na perspectiva
85
RUIZ, 2003, p. 63.
86
CASTORIADIS, 1982, p. 176.
46
de preservação de determinado estado de coisas ou no sentido de introdução de mudanças
nessa ordem dada. Baczko assinala que é por meio do imaginário que se pode compreender a
identidade e os objetivos dum povo. “Os imaginários sociais constituem outros tantos pontos
de referência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através da qual
ela se percepciona, divide e elabora os seus próprios objetivos.”
87
O imaginário social, além disso, constitui-se como um dos modos pelos quais a
consciência apreende a vida e a elabora. E essa é uma elaboração coletiva, pois, segundo
Baczko, “o imaginário social elaborado e consolidado por uma coletividade é uma das
respostas que esta aos seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais”
88
. Essa rede
imaginária, assim elaborada, possibilita observar a força histórica das criações dos sujeitos, ou
seja, o uso social das representações e idéias.
Uma das funções desempenhadas pelo imaginário social é a de estabelecer um
determinado regramento das relações sociais. Exerce, de certo modo, uma força reguladora da
vida coletiva. Por exemplo, nas reduções os indígenas deviam andar vestidos
89
, dedicar-se ao
trabalho, acompanhar os ritos litúrgicos comunitários. Esse conjunto de representações indica
aos indivíduos o universo de práticas e atitudes que correspondem a sua pertença à mesma
sociedade. Estabelece, também, de forma mais ou menos precisa, a distribuição dos papéis e
posições sociais e as relações dos sujeitos entre si e com as instituições constituintes da
sociedade a que pertencem. Conforme Baczko, “o imaginário social é uma peça efetiva e
eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e
do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais”
90
.
Por desempenhar essa função constitutiva das relações sociais, seus elementos
constituintes necessitam tornar-se acessíveis aos sujeitos. Esses precisam ter a capacidade e a
oportunidade de apropriar-se da força regulativa daqueles. Pode-se considerar os princípios
cristãos como um referencial regulador das relações entre os indivíduos envolvidos na ação
missionária. Na compreensão de Sepp, as iniciativas de doutrinação e catequização
proporcionariam aos indígenas os meios de acesso e de apropriação desses princípios.
87
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero. Enciclopédia Einaudi, v.5. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1985. p. 309.
88
BACZKO, 1985, p. 309.
89
Entre as preocupações, manifestadas por Sepp, está a do cultivo de algodão para a confecção de tecidos.
90
BACZKO, 1985, p. 310.
47
Segundo Baczko, o imaginário social torna-se inteligível e comunicável através da produção
dos ‘discursos’ nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas numa
linguagem”
91
. Dessa forma, exerce sua força e sua capacidade de informar acerca da realidade
e de constituir-se em apelo à adoção de ações e atitudes correspondentes à inserção dos
indivíduos na coletividade.
1.2.3 O imaginário e o simbólico
O desenrolar da reflexão permite desvendar mais uma relevante dimensão
constitutiva do imaginário: ele manifesta-se, de modo prioritário, em formas simbólicas. Isso
não significa, no entanto, que esteja desprovido de racionalidade. O simbólico e o racional
estão co-referidos e se integram no processo de produção de significações com as quais o ser
humano compreende o mundo.
Embora mutuamente imbricados, o simbólico e o racional ou o logos apresentam-se
sob lógicas distintas. Essa distinção é claramente perceptível na tradição filosófica ocidental.
Historicamente, o simbolismo foi a dimensão menos desenvolvida pela Filosofia, enquanto o
estudo do logos constituiu o grande tema da reflexão ocidental
92
.
A distinção entre esses dois elementos transparece também na função que ambas
desempenham. De forma sintética, Ruiz apresenta esses aspectos do seguinte modo:
o logos analisa, discrimina, organiza conjuntivamente, relaciona
argumentativamente, mas, por si só, não fusiona as partes numa nova unidade de
sentido. O mbolo tem como potencialidade própria a conjunção das partes
fraturadas numa nova unidade significativa. O simbólico é uma potencialidade
própria do imaginário
93
.
Essa última afirmação revela uma característica peculiar do imaginário: ele se
manifesta como mbolo e como logos. Ele se expressa em formas simbólicas, mas estrutura-
se de modo gico. Necessita de ambos para poder existir, como o afirma Castoriadis ao
apontar para as relações profundas entre o imaginário e o simbólico. Segundo ele, “o
imaginário deve utilizar o simbólico, não somente para ‘exprimir-se’, o que é obvio, mas para
91
BACZKO, 1985, p. 311.
92
Gilbert Durand ressalta essa realidade ao afirmar que “a mais evidente depreciação dos símbolos que a história
da nossa civilização nos apresenta é certamente a que se manifesta na corrente cientista saída do cartesianismo”.
DURAND, 2000, p. 20.
93
RUIZ, 2003, p. 134.
48
‘existir’, para passar do virtual a qualquer coisa a mais”
94
. Mas a relação inversa também é
necessária, pois “o simbolismo pressupõe a capacidade imaginária”.
Tal entrelaçamento intrínseco entre imaginário e simbólico aponta para a importância
e a função que o símbolo desempenha. A importância da dimensão simbólica reside na
capacidade de resgatar aspectos das significações sociais relegadas pela atitude técnico-
instrumental. Segundo Baczko, “a função do símbolo não é apenas instituir uma classificação,
mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e
indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos”
95
. São aspectos marcantes da
tarefa de inserção dos indivíduos numa rede de significações socialmente instituída.
A estrutura simbólica, por sua vez, não está definitivamente dada. Ela também é
instituída pela sociedade. Essa é a perspectiva apontada por Castoriadis. Ele mostra que essa
constituição não ocorre de modo arbitrário ou aleatório.
A sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma liberdade total. O
simbolismo se crava no natural e se crava no histórico (ao que já estava lá);
participa, enfim, do racional. Tudo isto faz com que surjam encadeamentos de
significantes, relações entre significantes e significados, conexões e conseqüências,
que não eram nem visadas nem previstas
96
.
Onde se situa o fundamento que possibilita constituir o simbólico? Baczko mostra o
horizonte no qual este surge. “Os sistemas simbólicos em que assenta e através do qual opera
o imaginário social são construídos a partir da experiência dos agentes sociais, mas também a
partir dos seus desejos, aspirações e motivações.”
97
Tais sistemas simbólicos, constituídos
coletivamente, permitem ao grupo assegurar a sua coesão social. Por exemplo, a estruturação
espacial da redução merece de Sepp toda uma atenção especial. Tanto em seus escritos quanto
em sua iniciativa prática manifesta um cuidado minucioso em relação a tal aspecto
98
. Torna-
se, ao mesmo tempo, o referencial de interpretação das suas relações com o mundo
circundante. Por sua vez, as compreensões que o grupo social adquire capacitam-no para
ressignificar seu universo simbólico.
94
CASTORIADIS, 1982, p. 154.
95
BACZKO, 1985, p. 311.
96
CASTORIADIS, 1982, p. 152.
97
BACZKO, 1985, p. 311.
98
Em distintos momentos de seus relatos, Sepp descreve a aparência, a estrutura e a constituição espacial das
reduções, como teremos oportunidade de demonstrá-lo.
49
1.2.4 Perspectivas hermenêuticas a partir do imaginário
Uma grande parte da tradição do pensamento ocidental privilegiou a racionalidade
como princípio explicativo último e definitivo da realidade. Esse processo teve sua expressão
mais acentuada no complexo fenômeno socioistórico conhecido como modernidade. Ao dar
ênfase à racionalidade de caráter instrumental, permitiu o desenvolvimento de uma
determinada forma de produção de conhecimento que marginalizou relevantes dimensões da
vida humana, notadamente as que se expressam em formas simbólicas.
A emergência desses aspectos constitutivos do imaginário, em virtude da crise da
modernidade e de sua racionalidade característica, possibilita desdobramentos inusitados na
compreensão do processo de produção do conhecimento. As representações
99
simbólicas,
relegadas como o racionais, demonstram a dimensão criadora do ser humano. Para além da
capacidade ordenadora da razão, o conhecimento é criado pelo imaginário instaurador de
sentidos e significações.
Articula-se, desse modo, uma perspectiva ampliada de compreensão do próprio
conhecimento. A concepção racionalista do saber humano, que reduz todo conhecimento a
formulações e explicações lógico-racionais do funcionamento do universo, é questionada e
superada. A emergência do imaginário aponta para a dimensão simbólica do relacionamento
dos sujeitos com o mundo circundante. Insere a consciência num horizonte interpretativo,
com perspectivas mais fecundas de compreensão da realidade. Abre-se novo campo de
criação para as práticas sociais permeadas pelo universo simbólico.
1.2.4.1 A condicionalidade de toda interpretação
A reflexão sobre o imaginário aponta para a tarefa da compreensão e interpretação
como função indispensável ao processo do conhecimento. Reconhece a condição da
ineludível condicionalidade de todo pensamento, inclusive do científico. Mostra que toda
99
Mediante o conceito representações menciona-se o conjunto de sentidos e significados resultantes do esforço
de compreensão da realidade circundante. Segundo Chartier, constituem formas de “apreensão do mundo
social”, “esquemas intelectuais incorporados” a partir do quais “o presente pode adquirir sentido”. CHARTIER,
Roger. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. p. 17. As representações do
mundo social, das relações sociais e das várias práticas dos sujeitos históricos “são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam”. As representações materializam-se em conceitos historicamente construídos,
resultantes das percepções que os sujeitos têm de si e do mundo. São expressas e podem estruturar-se tanto em
formas simbólicas, quanto em idéias objetivas traduzidas em textos.
50
compreensão está marcada pelo horizonte de significação. Com isso, abre novas perspectivas
para as ciências sociais, ao questionar as pretensões de validade universal do conhecimento
científico. Revela também que “a partir desta dupla identificação entre verdade, método e
conhecimento científico, é possível perceber qual é o modelo de racionalidade desde a qual se
forja o projeto da modernidade: a objetividade”
100
.
A possibilidade de determinar racionalmente a estrutura da realidade em leis reside
nessa capacidade do cientista de separar-se, enquanto sujeito de conhecimento, do objeto a
conhecer e inclusive do próprio condicionamento histórico. É essa confiança otimista de
alcançar plena objetividade que leva o pensamento moderno a rechaçar o passado. É a
tentativa de libertar-se de toda influência e pré-juízos provindos da tradição, do universo
simbólico ou de outras fontes. Pretende-se a atitude de neutralidade plena do sujeito
cognoscente.
Diante dessa pretensão e dessas coordenadas do pensamento moderno, emerge a
força criadora do imaginário como tentativa de alargar a compreensão de racionalidade.
Reivindica uma racionalidade mais ampla que a da estreita objetividade científica. Privilegia o
universo simbólico como horizonte hermenêutico. Frente à pretensão de neutralidade, “o
pensamento hermenêutico reabilita uma experiência primordial que sempre precede a toda
objetivação possível: a pertença do homem a um mundo, a uma tradição”
101
.
A perspectiva hermenêutica que se articula a partir da emergência do imaginário
aponta os limites e ambigüidades da pretensa objetividade e neutralidade da racionalidade
moderna. Além desse aspecto de desconstrução de tal pensamento científico, cabe-lhe a tarefa
de
sinalizar o caráter condicionado e ‘de prejuízo’ de toda compreensão, de todo
conhecimento; reafirmar que, enquanto homens, enquanto seres finitos, devemos ter
sempre presente os condicionamentos históricos de cada uma de nossas idéias. Em
síntese, reconhecer, contra todo preceito moderno em favor da objetividade e da
100
A partir de esta doble identificación entre verdad, método y conocimiento científico, es posible percibir cuál
es el modelo de racionalidad desde el que se forja el proyecto de la modernidad: la objetividad”. PARDO,
Rúben. El giro hermenéutico en las ciencias sociales. In: DIAZ, Esther (org). La ciencia y el imaginario social.
Buenos Aires: Biblos, 1996. p. 219.
101
El pensamiento hermenéutico rehabilita una experiencia primordial que siempre precede a toda
objetivación posible: la pertenencia del hombre a un mundo, a una tradición”. PARDO, 1996, p. 220.
51
distância, o vínculo ineludível que nos liga com o passado, com a tradição, com a
história, com a linguagem
102
.
Para perceber o alcance da tarefa hermenêutica, cabe aclarar a noção de pertença.
Para tanto, é preciso ressaltar que a hermenêutica tem a intenção de refletir sobre as condições
sob as quais se compreende. Ela não pretende oferecer uma nova lei para compreender. Seu
propósito é de apontar para os condicionamentos prévios presentes em todo processo de
conhecimento.
Seu ponto de partida é o reconhecimento da condicionalidade a que está submetida
toda compreensão. A racionalidade humana, longe de ser objetiva, não pode subtrair-se à
influência de certos prejuízos que lhe são próprios. Nem a própria ciência, mesmo com todo
seu método experimental, constitui um conhecimento isento de influências subjetivas. Tal
condição é importante. Isso leva a concluir que todo intento de explicar o mundo é
interpretação.
Todo processo cognoscitivo, toda atividade da razão constitui uma interpretação. O
ser humano interpreta. Antes de qualquer tomada de distância em relação a objetos a
conhecer, ele está sempre ligado de algum modo a eles. Como ser histórico e finito, está
sempre em um mundo com sentido, em uma comunidade de prejuízos desde a qual
compreende. Essa realidade é denominada de tradição.
“Afirmar o caráter interpretativo de todo conhecimento implica reconhecer que a
essa suposta primeira relação de sujeito-objeto na qual se assenta a ‘objetividade’ a antecede
outra mais originária: a ligação do homem com um mundo, com uma tradição.”
103
E essa
relação é o que se denomina de pertença. Logo, todo conhecimento está marcado pelo círculo
entre intérprete e objeto. Isso porque, ao conhecer ou falar, o ser humano conhece ou fala
desde algum lugar.
102
Señalar el carácter condicionado y ‘prejuicioso’ de toda comprensión, de todo conocimiento; remarcar que,
en tanto hombres, en tanto seres finitos, debemos tener siempre presente los condicionamientos históricos de
cada una de nuestras ideas. En síntesis, reconocer, contra toda la preceptiva moderna en favor de la objetividad
y la distancia, el vínculo ineludible que nos liga con el pasado, con la tradición, con la historia, con el
lenguaje”. PARDO, 1996, p. 221.
103
Afirmar el carácter interpretativo de todo conocimiento implica reconocer que a esa supuesta primera
relación de sujeto-objeto en la que se asienta la ‘objetividad’ la antecede otra más originaria: la ligazón del
hombre con un mundo, con una tradición.” PARDO, 1996, p. 222.
52
Dessa forma, a hermenêutica encontra-se no pólo oposto ao do projeto ilustrado da
modernidade. Esse tinha a pretensão, desde as idéias cartesianas do método, de eliminar o
prejuízo. Era este um dos preceitos fundamentais a guiar o conhecimento. Aquela, ao
contrário, afirma que prejuízos legítimos que não podem ser evitados, nem sentido em
fazê-lo, por serem parte da tradição na qual o intérprete se encontra situado.
Tal característica da compreensão, a pertença, aponta para a existência de dois
elementos que se antepõem a toda distância objetivadora: a história e a linguagem. Assim,
tradição e pertença indicam, em primeiro lugar, a historicidade da compreensão, a ligação do
pensamento a um chão histórico, e, em segundo lugar, o caráter lingüístico de todo
comportamento humano em relação às coisas: nossa razão, enfim, está submetida ao fluxo do
histórico e estruturada lingüisticamente
104
.
1.2.4.2 Por uma racionalidade ampliada
No Ocidente, o racionalismo clássico marginalizou o domínio das imagens. Relegou-
as para o sonho e a fantasia. Privilegiou o conhecimento pela experiência perceptiva e pelo
racionalismo. A própria concepção positivista, que se pretendia exorcizadora ou destruidora
das dimensões do mito, do imaginário, constituiu-se ela própria em mito, o mito do progresso
científico triunfante. No entanto, o próprio desenvolvimento técnico e científico, propiciado
pela ciência moderna, percebeu limites na pretensão objetivista da racionalidade instrumental.
Desde então, articula-se um processo de questionamentos à epistemologia clássica.
Abrem-se espaços para a emergência do imaginário. Essa resulta do processo de saturação
provocado pela visão de mundo, criada pelas ciências modernas, pretensamente objetivistas,
expurgadoras da força das imagens.
Gilbert Durand, em suas pesquisas sobre o imaginário, tematiza essa realidade. A
longa citação, a seguir, demonstra essa consciência da ambigüidade da racionalidade
moderna.
A nossa civilização racionalista e o seu culto pela desmistificação objetiva vêem-se
submersos de fato pela ressaca da subjetividade maltratada e do irracional.[...] No
seio do puritanismo racionalista e dessa cruzada para a ‘desmitificação’, a potência
104
Cf. PARDO, 1996, p. 223.
53
fantástica a volta à exclusão objetivista por uma dialética vingadora. A
objetividade, a ‘Ciência’, o materialismo, a explicação determinista, o positivismo
instalam-se com as mais inegáveis características do mito: o seu imperialismo e o
seu fechamento às lições da mudança das coisas. A objetividade tornou-se
paradoxalmente culto fantástico e apaixonado que recusa a confrontação com o
objeto. Mas, sobretudo, [...] fecha-se a priori a um humanismo pleno. O que a
segurança desmitificante mascara não passa, na maior parte dos casos, de um
colonialismo espiritual, da vontade de anexação, em proveito de uma civilização
singular, da esperança e do patrimônio da espécie humana inteira
105
.
O pensamento ocidental teve uma tendência para recalcar a imagem para o lado do
facultativo, da superestrutura, do dispensável. E, mesmo assim, produziu muitas imagens.
Mas produziu-as fora do pensamento sério, da investigação científica que ia dar no universo
tecnocrático. desde Platão essa bifurcação no pensamento. Ele distinguiu dois métodos
da verdade: a corrente da dialética que iria dar-nos o modelo do pensamento lógico e, por
outro lado, a corrente do mito”
106
. O desenvolvimento da tradição ocidental ocorre na
perspectiva de “uma inflação da dialética do tipo lógico, do logos em relação ao mito, e o mito
tornar-se-á cada vez mais uma fábula”
107
.
Um dos pontos altos dessa dinâmica histórica ocorre com a elaboração do Discurso
do Método por Descartes. Ele, na realidade, não estabelece uma ruptura com a tradição, mas
realiza uma simplificação metodológica. “O método de Descartes é o da clareza, da distinção,
da simplificação, que rejeitava para a obscuridade a desordem, aquilo que vinha do sonho, da
imaginação.”
108
Essa vertente filosófica abre caminho para o surgimento e consolidação das
ciências modernas, marcadamente de cunho experimental e racionalista. Desse processo
resulta, gradativamente, a afirmação e o desenvolvimento unilateral da racionalidade,
intensificando-se seu caráter instrumental. Com o Iluminismo e o desencadear da cosmovisão
positivista, essa perspectiva teve sua acentuação e aprofundamento.
No entanto, as pesquisas científicas do século XX questionam e fazem repensar a
totalidade da epistemologia clássica, pretensamente objetivista. A racionalidade está colocada
em questão. Surgem novos aspectos relevantes nessas reflexões. Distintas ciências começam a
ocupar-se com aspectos que eram considerados exóticos, não pertencentes ao âmbito do
racional. Desse modo, redescobre-se o poder das imagens, a força do imaginário, a própria
105
DURAND, 1997, p. 429.
106
DURAND, Gilbert. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: Editorial Presença, 1982. p. 40.
107
DURAND, 1982, p. 41.
108
DURAND, 1982, p. 41.
54
realidade dos símbolos. Nos relatos de Sepp, teremos oportunidade de verificar como ele
percebe que a catequização apenas doutrinal, de característica marcadamente intelectual, teria
pouco resultado. Ele menciona a utilização de uma variedade de meios simbólicos, o uso de
imagens, dinâmicas que ressaltam dimensões dos sentidos para alcançar seus objetivos. O
símbolo da cruz é destacado entre todos.
Cresce a consciência da necessidade de superação da estreita compreensão iluminista
da racionalidade. Percebe-se que ela não constitui um fundamento adequado para construir a
vida humana e social. Tal cosmovisão está marcada por reducionismos desastrosos. Por isso
há uma imperiosa necessidade que a racionalidade seja ampliada.
Não se trata, evidentemente, de abandono da racionalidade. Essa atitude seria tão
redutora quanto a da cosmovisão em questão. Na busca de perspectivas, Ruiz propõe: “temos
que re-encontrar-nos para além da racionalidade. O ser humano, que é racional, transcende
sua própria condição, e na busca do verdadeiramente humano relativiza a racionalidade,
situando-a na sua verdadeira condição de humana, isto é, relativa-relacional”
109
.
Cabe articular uma racionalidade inclusiva, que atue conjuntamente com a força
criadora do imaginário. Que, mais do que busca de explicações lógico-racionais, procura
situar os sujeitos humanos numa rede de significados, com a qual articulam a compreensão de
si mesmos, de suas relações entre si e com o mundo.
O exercício de permanente avivamento da capacidade imaginária assegura a
ampliação da racionalidade. Possibilita a articulação do universo de representações e
significações que se constitui como referencial crítico da interação dos sujeitos com o mundo
circundante. Torna-se condição de possibilidade para a construção de espaços de expressão e
compreensão dos âmbitos relevantes da vida humana classificados, pela concepção
objetivista, como pertencentes ao domínio do irracional.
1.2.4.3 A força regulativa do imaginário
O imaginário social se constitui a partir de uma complexa rede de relações entre os
indivíduos, suas representações, discursos e suas interações com o mundo. A partir dele se
109
RUIZ, 2003, p. 23.
55
produzem valores, apreciações, condutas das pessoas que fazem parte duma coletividade
110
.
Interage com os indivíduos e manifesta-se no simbólico e nas práticas sociais das pessoas.
O imaginário tende a adquirir dinâmica própria, tornando-se um processo sem
sujeito, instalando-se nas distintas instituições sociais, influenciando nas práticas das várias
instâncias que compõem a sociedade.
O imaginário começa a atuar como tal tão logo adquira independência das vontades
individuais. Mesmo que, paradoxalmente, necessita delas para materializar-se. As
pessoas, a partir da valoração imaginária coletiva, dispõe de parâmetros epocais para
julgar e para atuar. Mas os juízos e atuações das pessoas incidem também no
dispositivo imaginário, o qual, como contrapartida, funciona como idéia regulativa
das condutas
111
.
A capacidade de atuar das pessoas é influenciada pelas idéias regulativas que se
gestam nesse imaginário coletivo. Tais idéias produzem efeitos na realidade e no modo como
as pessoas situam-se no mundo. O imaginário, por sua força reguladora, motiva condutas, mas
não suscita, necessariamente, uniformidade de condutas.
O imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva, afirma Baczko. E
complementa, apontando para a complexa e ampla função desse.
O dispositivo imaginário assegura a um grupo social quer um esquema coletivo de
interpretação das experiências individuais, tão complexas quanto variadas, quer uma
codificação das expectativas e das esperanças. Um e mesmo código permite fazer
concordar as expectativas individuais, exprimir as coincidências e as contradições
entre as experiências e as esperanças, e ainda sustentar os indivíduos em ações
comuns
112
.
Um indivíduo social é aquele que compartilha com outros um sistema simbólico. O
ser humano é o único ser vivo que fala. A linguagem articulada é um elemento definidor do
110
Em diversas oportunidades ao longo de seus escritos, Sepp menciona distintos modos de ser dos indígenas
integrados nas reduções. Algumas expressões são sugestivas desse aspecto. Afirma que os índios membros da
comunidade reducional são “muito bons e piedosos, a ninguém submissos a não ser aos nossos Padres”. SEPP,
1980, p. 71. Em outra ocasião, ao referir-se às mulheres indígenas cristãs, anota que elas estavam na igreja,
“todas na melhor ordem, recolhimento e piedade, rezando por nós”. SEPP, 1980, p. 122. Observa que “as
criancinhas superam em muito o amor e o respeito, que nos demonstram os adultos”. SEPP, 1980, p. 150.
111
El imaginario comienza a actuar como tal tan pronto como adquiere independencia de las voluntades
individuales. Aunque, paradójicamente, necesita de ellas para materializarse. La gente, a partir de la valoración
imaginaria colectiva, dispone de parámetros epocales para juzgar y para actuar. Pero los juicios y las
actuaciones de la gente inciden también en el dispositivo imaginario, el cual, como contrapartida, funciona
como idea regulativa de las conductas.” DIAZ, Esther. ¿Que es el imaginario social? In: DIAZ, Esther (org). La
ciencia y el imaginario social. Buenos Aires: Biblos, 1996, p. 14.
112
BACZKO, 1985, p. 311.
56
humano. Por meio da linguagem articulada, constitui-se um sistema simbólico. O homem
pode representar-se sua linguagem, pode refletir sobre ela. Esse aspecto o integra no
imaginário social.
Segue disso também que cada eu individual, embora irredutível em sua identidade, é
conformado por suas relações sociais. O eu individual é constituído a partir da percepção dos
outros e da sua inserção no sistema de linguagem. Por isso, cada eu individual é um eu
histórico. Constitui-se como tal pela sua inserção nas práticas sociais de seu tempo.
Cada indivíduo se compreende ademais como um ser que se relaciona com outros
seres e com seu entorno. Se se imagina o indivíduo social como uma moeda, se pode
dizer que o anverso é o eu e o reverso, o sujeito. O eu responde ao individual e o
sujeito ao social. Mas nenhuma das duas faces da moeda pode excluir a outra
113
.
Assim, o sujeito é uma instância social. Isso não nos deve levar a inferir que um
sujeito, mas sujeitos. Esses sujeitos, no entanto, compartilham o imaginário. Esse imaginário
social resulta das ações e concepções dos sujeitos. Por sua vez, constitui-se como instância
regulativa das condutas dos indivíduos. Torna-se o horizonte de sentido que permeia a vida
em sociedade. O imaginário social, assim, funciona como parâmetro das condutas, das
palavras e das expectativas.
A força regulativa do imaginário, por sua intensa e profunda interação na vida
cotidiana dos indivíduos, favorece o desenvolvimento das potencialidades subjetivas. Essa se
manifesta de modo processual e permanente. Os indivíduos encontram-se imersos num
universo de representações e significações. Esse envolvimento marca suas iniciativas e
práticas. No entanto, o despertar de sua consciência possibilita a progressiva emersão do
enredamento em seu mundo social. Tal situação os capacita para uma inserção
transformadora em sua realidade. O itinerário, que se desenrola desde a condição de imersão,
pela emersão para a inserção criadora, desenvolve o potencial dos sujeitos e articula a
ressignificação do imaginário coletivo, num processo continuado e permanente.
Considerados esses elementos teóricos configuradores do referencial de análise da
temática em questão nessa pesquisa, trata-se agora de acompanhar o desenvolvimento dessa
113
Cada individuo se comprende además como un ser que se relaciona con otros seres y con su entorno. Si se
imagina al individuo social como una moneda, se puede decir que el anverso es el yo y el reverso, el sujeto. El
yo responde a lo individual y el sujeto a lo social. Pero ninguna de las dos faces de la moneda puede excluir la
otra.” DIAZ, 1996, p. 16.
57
abordagem das elaborações discursivas de Sepp apresentadas em seus escritos. No próximo
capítulo, articula-se a reflexão sobre a trajetória formativa do missionário Sepp e influências
exercidas no processo de constituição de sua identidade.
2 REPRESENTAÇÕES DE IDENTIDADE
A pergunta pela articulação do imaginário missionário a partir da abordagem dos
escritos de Sepp guia o interesse dessa pesquisa. A consideração de elementos constitutivos
relevantes dessa temática permeia o conjunto das reflexões desenvolvidas ao longo deste
estudo. A análise e interpretação do significado de dimensões fundamentais desse processo
constituem objetivos a realizar.
O desenvolvimento dessa abordagem considera aspectos característicos da dinâmica
de constituição do agente socioistórico em foco. Para tanto, numa primeira etapa, trata-se de
acompanhar passos significativos da trajetória formativa do missionário Sepp. Nesse
percurso, evidenciam-se elementos marcantes de representações de identidade que se
manifestam relevantes em suas práticas missionárias.
A intenção que a pesquisa se propõe exige que se aborde a questão da identidade.
Constitui um dos conceitos fundamentais e decisivos que aparece quando se articula a
reflexão sobre as relações entre sujeitos e práticas discursivas. Tal abordagem de
considerar as peculiaridades inerentes a esse processo.
Segundo a linguagem corrente do senso comum, a identidade é entendida como
conjunto definido e determinado de caracteres distintivos de algo ou alguém. Nesse caso, o
processo de identificação se articula a partir do reconhecimento de elementos comuns
pertinentes a uma dada realidade. Tal modo de compreender constitui uma definição
naturalista, que resulta numa idéia de identidade integral, originária e unificada. Essa acepção
do conceito de identidade também denominada de concepção essencialista não consegue
dar conta da dinâmica processual da realidade.
59
Cabe, portanto, articular uma perspectiva distinta da compreensão de identidade. A
análise do processo de construção do imaginário missionário requer que essa dimensão seja
contemplada considerando-se a sua dinâmica inerente. Por isso, o conceito de identidade a ser
adotado nessa abordagem precisa integrar esse caráter processual.
Uma contribuição significativa para a explicitação desse conceito se encontra na
reflexão de Stuart Hall. Ele articula sua compreensão a partir da crítica ao conceito
essencialista de identidade. Entende que é possível elaborar uma noção de identidade que a
considere “como uma construção, como um processo nunca completado, como algo sempre
‘em processo’”
114
. Acredita que, procedendo desse modo, possa contemplar tanto as
condições determinadas da existência nela sempre presentes quanto incluir recursos materiais
e elementos simbólicos que a influenciam decisivamente.
Assim considerada essa temática, Hall desenvolve o que ele denomina de “conceito
estratégico e posicional”
115
de identidade. Inicialmente apresenta os aspectos que a
diferenciam da assim chamada concepção essencialista, pois, segundo ele, “esta concepção de
identidade não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer
mudança, por todas as vicissitudes da história”
116
. Seu postulado se fundamenta na idéia que
contempla o caráter processual e dinâmico da realidade sociocultural na qual a noção de
identidade se encontra ancorada. Segundo sua concepção, “as identidades estão sujeitas a uma
historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação”
117
.
Um processo semelhante ao que se formulava em relação à produção da História
pode ser verificado nessa questão
118
. A escrita da História não consiste em mera compilação
de dados aceitos como prontos, acabados. Ela resulta de uma construção, de uma prática. O
conceito de identidade tem a ver com a utilização de elementos socioculturais “para a
produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos”
119
. Esse modo de
114
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomas Tadeu (org.). Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 106.
115
HALL, 2000, p. 108.
116
HALL, 2000, p. 108.
117
HALL, 2000, p. 108.
118
Ver, por exemplo, no item “1.1.1.2 História enquanto prática” (acima), onde demonstra que a escrita da
História resulta de uma operação demarcadora de fronteiras entre passado e presente e é constituída desde uma
prática de diferenciação entre ambos.
119
HALL, 2000, p. 109.
60
considerar a identidade favorece a abordagem e explicitação das mudanças verificadas nos
sujeitos ao longo dos processos históricos nos quais se encontram envolvidos.
2.1 O jovem jesuíta Antônio Sepp
Um missionário austríaco, mais precisamente, um padre jesuíta tirolês marcando
presença e atuando nas reduções jesuíticas com os povos Guarani nas colônias do império
hispânico. Tal caracterização cabe ao personagem central da pesquisa. A pátria de nascimento
do padre Sepp é o Tirol. À época, a região integrava o império austríaco. Sua localidade natal
é Kaltern, ou seja, Caldaro, que pertencia ao departamento de Brixen, situado no vale de
Etsch, na região do Tirol, condado da Áustria. Esses elementos apresentados revelam que o
missionário jesuíta Sepp é de origem germânica. Interessante é registrar que Caldaro se situa
numa região muito bela. Encontra-se situada “ao pé do monte Mendel, numa paisagem
pitoresca, rica em vinhedos e castelos”
120
.
Sepp é descendente de uma família aristocrática. Nasceu no dia 21 de novembro de
1655. No batismo, realizado no dia seguinte, 22 de novembro, recebeu o nome de Antônio
Clemente. Quanto a essas datas, a do nascimento e de seu batismo, é oportuna a observação
de Rabuske. Ele anota: “significativa nos parece a coincidência próxima de duas datas: a de
seu nascimento, 21 de novembro, festa da Apresentação de Nossa Senhora no Templo, e a de
seu batizado no dia 22 de novembro, festa de Santa Cecília, padroeira dos cantores e
músicos”
121
. Tais considerações são interessantes dado que ele expressa em seus escritos sua
especial devoção Mariana. O outro elemento destacado indica uma das marcas distintivas
dele, qual seja, a sua dedicação à música.
A família de padre Sepp era numerosa. Ele é o quinto integrante do grupo familiar
constituído por onze irmãos, sendo sete homens e quatro mulheres. Dois de seus irmãos mais
velhos assumem a vida consagrada, professando votos religiosos, um na ordem
premonstratense e outro torna-se monge beneditino. Uma de suas irmãs professa votos
120
Al pie del monte Mendel, en un paisaje pintoresco, rico en viñedos y castillos”. HOFFMANN, Werner.
Introducción. In: SEPP, Antônio. Relación de viaje a las misiones jesuíticas. Tomo I. Buenos Aires: EUDEBA,
1971, p. 12. Percebe-se ao longo da leitura dos relatos de Sepp, que ele é um atento observador das
características e fenômenos naturais. Em suas elaborações, serve-se, seguidas vezes, de elementos dessas
observações para estabelecer comparações, para ressaltar caracterizações que anota ou, ainda, para impressionar
seu leitor.
121
RABUSKE, 2003, p. 36.
61
religiosos, tornando-se beneditina. E seu irmão mais novo é ordenado padre secular
122
. Pelos
registros, sabe-se que, fisicamente, Sepp era de estatura mediana e de cabelo castanho
123
.
Além disso, nos seus escritos, ele a entender que gozava de boa saúde. Era motivado por
um espírito otimista e generoso.
Passou parte de sua meninice no lar paterno. Iniciou seus estudos na escola local, em
Caldaro e Eppan. Dado que o professor da escola era também dirigente do canto coral, o
menino Antônio passou a integrar o coro da Igreja local. Evidenciadas suas aptidões para o
canto e a música, ainda menino foi levado a Viena onde figurou entre os Meninos-Cantores da
Corte Imperial. Nessa instituição, recebeu boa formação em música vocal e instrumental. Esse
período de aprendizagem e o treinamento da habilidade musical lhe seriam depois, nas
atividades missionárias, de grande valia
124
.
Em Viena, havia um Pensionato (Konvikt) dos jesuítas. É possível que o menino
Antônio tivera a oportunidade de conhecê-los. Tal possibilidade pode ter-se realizado de dois
modos. Ou sendo aluno do colégio dos jesuítas em seus anos de formação inicial, ou mediante
visitas a essa instituição. De qualquer sorte, estudiosos da vida de Sepp
125
não descartam a
hipótese de que ele tenha vindo a conhecer, nessa época, os jesuítas e lhe tenha, nesses anos
de meninice, despertado o desejo de ser como eles e um deles.
Durante os anos de 1667 a 1674, realizou a etapa de estudos do ginásio, em
Innsbruck, a capital do Tirol. Freqüentou as aulas no colégio dos jesuítas, que conquistara
uma reconhecida fama mercê das experiências pedagógicas nele desenvolvidas
126
. Além dos
estudos clássicos, o jovem Antônio teve, nesse colégio, a oportunidade de desenvolver e
122
Em seus escritos, Antônio demonstra seu apreço e estima por seus irmãos. Seguidas vezes menciona aqueles
que devotam sua vida na consagração religiosa. Anota que os mantém sempre presentes em sua memória,
recordando-os em suas preces. Assim se expressa: “no he pasado ni un día en el cual no pensara en los míos,
durante la santa misa y en otras oportunidades: cada semana celebraba dos misas para ellos y lo voy a hacer
hasta el fin de mi vida”. SEPP, 1974, p. 123.
123
Este dado é apresentado por FURLONG, Guillermo. Antônio Sepp, S.J. y su “gobierno temporal” (1732).
Buenos Aires: Theoria, 1962. p. 11.
124
Hoffmann anota que “seguramente no fue un ambiente muy sano el que el muchacho tirolés encontró en la
corte imperial, pero sin duda aprendió mucho, cultivando su voz y estudiando la técnica de los instrumentos más
diferentes”. HOFFMANN, 1971, p. 13.
125
Entre outros, cabe mencionar Werner Hoffmann, Guillermo Furlong, Johann Mayr, Arthur Rabuske, cujas
obras aparecem citadas nesse trabalho.
126
Rabuske informa que “as aulas ginasiais funcionavam certamente de acordo com o ratio studiorum (plano ou
método de estudos), próprio dos jesuítas de então e, em parte, ainda hoje. Dir-se-ia que era um sistema escolar
exigente e eficaz para o que então era o ideal de formação cristã e humana”. RABUSKE, 2003, p. 72.
62
aperfeiçoar suas qualidades de cantor e músico, e ainda de atuar como participante do teatro
colegial. Outrossim, o ginásio primava pela formação cristã. Incentivava o culto à Maria com
a organização das congregações marianas dos estudantes. A participação de Sepp como
membro de congregações deve ter influenciado nele sua devoção Mariana. Como missionário,
demonstra que esta devoção está bem enraizada em sua vida. Durante esse período de estudos,
conheceu e teve contato com diversas ordens religiosas antes de ingressar na Ordem dos
Jesuítas.
Aos dezenove anos de idade, em 28 de setembro de 1674, Sepp entrou na Companhia
de Jesus
127
, em Landsberg. Com esse passo, ele passa a integrar a Província da Germânia
Superior. Na Companhia, seguiu as etapas de formação características do método pedagógico
dos jesuítas
128
. De modo suscinto, Rabuske apresenta essa trajetória formativa. “Depois da
formação espiritual, feita por dois anos de noviciado, segue-se a literária ou humanística, a
filosófica, a do intervalo de pedagogia prática, dita magistério ou prefeitura, a dos estudos
teológicos e, por fim, a chamada terceira provação.”
129
Inicialmente realiza seu biênio de noviciado, em Landsberg. Ao finalizar esse
período, professou seus primeiros votos religiosos, no dia 29 de setembro de 1676. O
noviciado é uma fase de averiguação das disposições para inserir-se na Ordem. Cabia-lhe,
para tanto, examinar a sua vocação, isto é, provar que reunia as condições exigidas para
assumir tal modo de vida consagrada. Para essa finalidade, a Ordem oferecia a seus
candidatos alguns instrumentos pedagógicos específicos. Rabuske no-los apresenta de modo
sumário.
Os meios, para tanto não eram poucos; assim, antes de tudo, o retiro inaciano de
trinta dias completos, o estudo da espiritualidade jesuíta, sua história e seus grandes
personagens, com Loyola, Xavier e outros, suas constituições, etc. E tudo isso à base
de muita reflexão, meditação, oração e exame, para, apenas então, optar livremente e
127
Os autores não mencionam explicitamente uma razão principal de sua opção pela Companhia de Jesus.
Articulo a hipótese plausível de que ele percebe que a proposta jesuítica mais se identifica com seu imaginário
missionário. Embora na trajetória de sua vida até aos 19 anos de idade não sejam muito evidentes indícios dessa
sua aspiração, as várias manifestações desse seu propósito nas distintas circunstâncias de sua vida possibilitam
propor essa hipótese.
128
Rabuske observa que é conhecida “a longa formação oferecida pela Companhia de Jesus a seus próprios
membros”, em especial aos que se destinam ao sacerdócio. RABUSKE, 2003, p. 77.
129
RABUSKE, 2003, p. 38.
63
seus superiores saberem se, humanamente falando, o candidato era apto para tal vida
apostólica e missionária
130
.
Concluído o noviciado, Antônio foi de imediato realizar seus estudos de formação
filosófica, em Ingolstadt, cidade universitária naquela época. Esse período de estudos
caracteriza propriamente o início da formação científica. São proporcionados estudos de
Filosofia, marcadamente a Escolástica, e Artes, sobretudo, a Retórica, Humanidades e
Poética. É provável que Antônio, depois de terminado seu curso filosófico, não fizesse de
imediato o exame geral de Filosofia. Nas abstrações filosófico-metafísicas parece que o
estudante Sepp não demonstrava o brilhantismo revelado nas artes, sobretudo na música
131
.
Após a conclusão de seus estudos filosóficos, Sepp foi enviado para lecionar no
ginásio dos jesuítas em Landsberg. Iniciava, assim, a realização do chamado interstício. Esse
se configura como um período de exercício do magistério ginasial em forma de estágio
prático, durante o processo de formação religiosa e científica. Essa sua etapa de atuação durou
cerca de cinco anos, sendo professor nos colégios de Landsberg, Solothurn e Lucerna. Seu
trabalho nos citados colégios não se restringia às aulas. Suas conhecidas qualidades artísticas
na música e no canto foram muito bem aproveitadas, vindo ele a ser prefeito de música e
regente de canto coral. Além disso, ele contribuiu significativamente na organização e
realização de representações de peças teatrais e declamações, algumas de sua autoria
132
.
Durante a realização dessa etapa do interstício, ofereceu-se ao jovem religioso a
oportunidade para manifestar o seu desejo de ser enviado como missionário para as missões
de Ultramar. A ocasião era propícia para o encaminhamento de sua solicitação: a eleição de
um novo Geral da Ordem. A ele foi endereçada a carta de felicitações pelo seu novo encargo,
acompanhada de seu pedido, manifestação de sua intensa disposição, no dia 19 de setembro
de 1682
133
.
Por mais que fosse ardente e intenso o seu desejo de dirigir-se às missões de
Ultramar, o jovem Sepp teve que voltar à Universidade de Ingolstadt. Sua formação científica
130
RABUSKE, 2003, p. 79.
131
Sobre esse aspecto, Rabuske anota: “Isto, porém, não diz nada contra seus grandes talentos de artista,
sobretudo musical, sem esquecer a sua riqueza de coração e a fantasia criadora”. RABUSKE, 2003, p. 81.
132
Mayr apresenta pormenorizadamente aspectos relevantes dessa etapa da formação e atuação de Sepp. Cf.
MAYR, Johann. Anton Sepp: ein Südtiroler im Jesuitenstaat. Bozen: Athesia, 1988. p. 91-132.
133
Considerações mais amplas sobre este aspecto serão apresentadas no ponto seguinte deste capítulo.
64
precisava ser complementada. Durante os anos de 1683 a 1687 realiza seus estudos de
Teologia. É compreensível que essa etapa se afigurasse deveras exigente ao jovem formando.
Representava, de modo significativo, uma mudança no curso de sua vida. Ele vinha da
atuação marcante no estágio: um trabalho intenso, com resultados palpáveis. Aguardava-o o
retorno aos estudos universitários, a aplicação às reflexões científicas da Teologia. Esses
aspectos levam a crer que as preleções acadêmicas, a consideração e abordagem de questões
marcadamente teóricas lhe causassem menos estímulo e entusiasmo que as atividades práticas
com as quais se ocupara em seu período de estágio
134
.
Nos estudos teológicos, Sepp deparava-se com as especulações doutrinárias e
também com temáticas de incidência mais prática, relacionadas à questão da salvação, da
missão junto aos povos ainda não cristãos. De especial relevância em seu tempo eram os
temas apresentados em forma de teologia das controvérsias. Propunham-se, de modo amplo,
divergências e debates acerca de doutrinas da fé, do culto e da vida prática dos fiéis católicos.
Tal prática controversista ganhava acento especial em face de disputas em torno das
diferenças entre católicos e protestantes
135
.
Embora essa característica da Teologia de seu tempo suscitasse entusiasmos
acadêmicos e debates acalorados entre distintas tendências teológicas, parece que pouco o
impressionavam. Sua atenção decerto estava voltada mais para o lado prático dessas
temáticas. Pensava mais nas iniciativas a serem tomadas em favor dos cristãos não católicos e
até dos ateus. Tal disposição de espírito transparece numa observação de Johann Mayr acerca
dos estudos teológicos de Sepp.
Um dos professores de Ingolstadt deixou em nosso jovem jesuíta uma impressão
eficaz ou duradoura. Era ele o Pe. Andreas Waibl, junto a quem Antônio Sepp
assistira às aulas de Teologia sobre a Doutrina de Santo Tomás de Aquino. A esse
professor, o missionário dos índios haveria de escrever desde a distância de trinta
anos: ‘se os meus trabalhos não tiveram sido de todo sem gosto, agradecido o devo à
minha muito querida Província (jesuítica) Alemã e em especial a Vossa
Reverendíssima. Foi o senhor quem plantou a mudinha tirolesa e a tratou durante
tantos anos com amor e cuidado, certamente para que ela aqui, na América, não
ocupasse em vão o solo, mas para que trouxesse fruto e tal fruto, que fique como
monumento eterno do amor filial’
136
.
134
Elementos abordados por RABUSKE, 2003, p. 93s.
135
Cf. MAYR, 1988, p. 83.
136
Einer der Ingolstädter Professoren jener Zeit hinterliess in unserem jungen Jesuiten einen nachhaltigen
Eindruck. Es war P. Andreas Waibl, bei dem Anton Sepp die Theologie nach der Lehre des heiligen Thomas von
65
Pode-se evidenciar nessas ponderações de Sepp seu reconhecimento e preito de
gratidão pela contribuição significativa de seus formadores. Notadamente os aspectos
salientados não são os relacionados à dimensão especulativa da formação teológica. As lições
do professor Waibl proporcionavam e disponibilizavam a seus ouvintes um saber teológico.
No entanto, o que se tornava marcante era a sua capacidade de despertar nos estudantes um
intenso entusiasmo pelas missões estrangeiras. Tal motivação tinha caráter convincente pelo
fato do próprio professor Waibl ter manifestado diversas vezes, por meio de correspondências
dirigidas a seus superiores, a petição para ser enviado às Missões Ultramarinas.
Após a conclusão de seus estudos de graduação em Filosofia e Teologia, o jovem
Sepp encaminhou os preparativos para a realização da meta de sua caminhada formativa: a
ordenação sacerdotal. Por essa época, recebeu também a carta-resposta de seus superiores,
concedendo-lhe permissão de ir às missões. Tal possibilidade, no entanto, não se efetivaria de
imediato. Entrementes lhe foi conferida a ordem do subdiaconato no dia 22 de fevereiro de
1687. Aos 15 de março desse mesmo ano foi ordenado diácono. Sua ordenação presbiteral
veio a ocorrer no dia 24 de maio de 1687. Tal acontecimento sucedeu na Catedral de
Augsburgo. Antônio estava então com 32 anos de idade. Era o terceiro membro de sua
família a receber a ordenação presbiteral. E ainda seria ordenado presbítero, alguns anos mais
tarde, seu irmão caçula
137
.
O passo seguinte a ser dado pelo recém-presbítero Antônio seria seu
encaminhamento para a conclusão de sua formação jesuítica mediante a realização da terceira
provação, o terciado, em Altötting. No entanto, a necessidade premente no Colégio de
Augsburgo fez com que fosse solicitado para atuar no magistério ginasial. Assumiu o encargo
de professor de retórica, ficando sob sua responsabilidade a direção da classe final do ginásio.
Sobre essa sua atuação no colégio cabe acrescentar o informe de Mayr:
Ao mesmo tempo era ele, como já o havia sido em outras cidades, o Diretor da
Congregação Mariana Colegial e o Prefeito da sica. Além disso, tinha um
Aquin hörte. An diesen seinen ehemaligen Lehrer wird der Indianermissionär im Abstand von dreissig Jahren
schreiben: ‚Wen meine Arbeiten nicht ganz ohne Geschmack gewesen, so ist es meiner viellieben deutschen
Provinz und vorab Euer Hochwürden zu danken. Sie haben dieses Tirolerstämmchen gepflanzt und so lange
Jahre voll Liebe und Sorge gepflegt, sicherlich nicht, dass es hier in Amerika unnütz den Boden besetze, sondern
dass es Frucht bringe, und zwar solche, die bleibt als ewiges Denkmal der Kindesliebe’“. MAYR, 1988, p. 86.
(tradução publicada em RABUSKE, 2003, p. 96). Nessa passagem, o autor menciona parte do texto e faz
referência à carta de Pe. Sepp dirigida ao Pe. Andreas, escrita aos 8 de setembro de 1714.
137
Cf. MAYR, 1988, p. 89.
66
confessionário na igreja dos jesuítas e a responsabilidade pela leitura à mesa no
colégio. Incumbido de tais tarefas, ele aparece, no catálogo dos jesuítas de
Augsburgo para o ano de 1688, entre os professores do ginásio em primeiro lugar
138
.
Após este ano de magistério ginasial, padre Sepp cumpre a exigência da terceira
provação em Altötting. Ali havia uma casa especialmente destinada para essa finalidade.
Constitui a terceira provação, ou o terciado, um período de formação intensa, de
aperfeiçoamento do novel jesuíta na vida específica da Companhia. Tais objetivos eram
buscados mediante instrumentos característicos do itinerário formativo
139
jesuítico: a
realização do retiro grande de trinta dias, o aprofundamento da espiritualidade da Ordem, o
estudo de suas Constituições e a preparação mais imediata para o trabalho pastoral
140
. Essas
práticas se apresentavam como modos concretos de vivência dos Exercícios Espirituais
sugeridos pelo fundador da Companhia, Inácio de Loyola. Toda essa trajetória acontecia sob a
direção de um instrutor, geralmente um padre experimentado no espírito da Companhia.
A realização da terceira provação deveria constituir para Sepp a oportunidade de
preparar-se, mais intensivamente do que em outras ocasiões, para seu programa de vida e para
sua missão. No entanto, não conseguiu dedicar-se plena e permanentemente durante esse
tempo a esse propósito. Novamente fora requisitado para atuar, temporariamente, no
magistério. Dessa vez foi encarregado de tomar conta de uma classe no Colégio de Landshut.
Entretanto, ao final desse período, em março de 1689, “seu Provincial lhe concedeu o
certificado de missionário paraguaio”
141
.
Essa breve menção ao itinerário formativo do missionário jesuíta Sepp permite
evidenciar alguns elementos marcantes que influenciam a constituição de sua identidade. A
sua inserção na Companhia de Jesus e o cumprimento das exigências pertinentes aos membros
dessa coletividade caracterizam a sua condição de pertença
142
a uma determinada tradição. Tal
138
Zugleich war er, wie schon in anderen Städten, Präses der Schülerkongregation und Musikpräfekt.
Ausserdem hatte er einen Beichtstuhl in der Jesuitenkirche und die Verantwortung für die Tischlesung im
Kolleg. Mit diesen Aufgaben betraut, erscheint er im Personenverzeichnis des Augsburger Kollegs für 1688
unter den Professoren des Gymnasiums an erster Stelle“. MAYR, 1988, p. 114 (tradução publicada por
RABUSKE, 2003, p. 98).
139
Itinerário formativo. Com esta expressão menciona-se o percurso de estudos, reflexões, práticas e atividades
desenvolvidas com os candidatos à vida religiosa ou sacerdotal. Mediante a realização dessas iniciativas
intenciona-se a preparação específica dos indivíduos que se dispõem a assumir um ministério na instituição
eclesial.
140
Aspectos considerados por RABUSKE, 2003, p. 100.
141
RABUSKE, 2003, p. 40.
142
Noção desenvolvida acima no ponto “1.2.4.1 A condicionalidade de toda interpretação”.
67
peculiaridade configura seu modo de compreender o mundo e condiciona suas formas de
atuação. Seu imaginário missionário manifesta as influências dela decorrentes.
2.2 Missionário entre os indígenas
Ao tempo da entrada de Sepp na Companhia de Jesus difundia-se pela Europa o ideal
e um entusiasmo pelas missões em terras estrangeiras. Muito contribuiu para despertar e
desenvolver este fervor, especialmente entre os jovens, a divulgação das correspondências de
missionários que atuavam junto aos povos longínquos. Acerca disso, Hoffmann anota a
seguinte observação: “já fazia então mais de cem anos que as famosas ‘Cartas de Índias’
haviam entusiasmado aos católicos de todos os países europeus, particularmente a
juventude”
143
. A vontade de romper as estreitezas do mundo fechado sobre disputas entre
grupos divergentes, o desejo de conquistar novos espaços de expressão aliava-se ao fervor
missionário assim motivado.
A publicação e divulgação de partes significativas da vasta correspondência epistolar
permitia, não apenas aos religiosos e candidatos à vida religiosa, mas também aos leigos, a
satisfação de suas curiosidades com a leitura dessas cartas
144
. Tais escritos estavam recheados
de relatos de fatos e coisas extraordinárias. Desse modo, excitavam e atendiam a admiração
de seus leitores. Além disso, sua leitura era incentivada para servir à edificação dos espíritos.
Esses efeitos tornavam-se perceptíveis nas manifestações, apresentadas por muitos religiosos,
de sua disposição de dirigir-se às missões. Notadamente os jesuítas europeus ansiavam seguir
as pegadas de Francisco Xavier, missionário entre os povos orientais, autor de muitas dessas
cartas.
Aos jovens estudantes, sobretudo os freqüentadores de Colégios e Universidades
dirigidas pelas Congregações religiosas mais identificadas com os ideais missionários, não
lhes faltavam oportunidades de cultivar tal aspiração. Muitos de seus professores, instrutores
143
Ya hacía entonces más de cien años que las famosas ‘Cartas de Indias’ habían entusiasmado a los católicos
de todos los países europeos, particularmente a la juventud.” HOFFMANN, 1971, p. 15s. Considerando-se
aspectos relevantes da análise de Hoffmann sobre os escritos dos missionários pode-se concluir que, por meio da
expressão ‘Cartas de Indias’, ele menciona a correspondência epistolar, incentivada e organizada pela
Companhia.
144
Acerca desse aspecto é procedente a observação de Massimi ao anotar que “as cartas jesuíticas, além de
instrumentos de comunicação entre os missionários dispersos em diversas terras, eram imediatamente transcritas,
copiadas, impressas e difundidas, não entre os próprios membros da Companhia de Jesus, mas também no
meio sociocultural alfabetizado da Europa da época”. MASSIMI, 1997, p. 20.
68
ou diretores espirituais estavam imbuídos desse espírito contagiante. Desse modo, criava-se
um ambiente propício ao surgimento e aprofundamento de um imaginário característico desta
dimensão constitutiva da vida cristã militante.
Envolvidos por esta mentalidade reinante, muitos jovens religiosos se converteram
em indípetas
145
. Dirigiam aos seus superiores correspondências contendo expressos pedidos
para serem destinados às Índias. A leitura de aspectos marcantes da vasta correspondência
epistolar intensificava tal aspiração. O próprio Sepp “deve ter lido as famosas cartas com uma
mescla de admiração pela abnegação de seus irmãos, desejos de viajar e interesse novelístico
nas aventuras que os autores haviam passado em países longínquos”
146
.
Durante o período de sua formação jesuítica, não faltaram ao jovem Sepp as
oportunidades para intensificar sua disposição de ser enviado às Índias. Os ideais missionários
da Companhia estavam presentes e eram ressaltados no desenvolvimento das distintas
atividades específicas do seu processo formativo. As práticas e iniciativas envolventes
constitutivas da integração do candidato na Ordem criavam condições favoráveis para
predispor a sua vontade e conformá-la a esse imaginário.
Desde que entrara na Companhia de Jesus, Sepp alimentava o desejo de ser
missionário. Essa vontade fora se intensificando à medida em que progredia em sua trajetória
na Ordem. Apenas aguardava a ocasião mais propícia para expressar a sua disposição de
dedicar a vida à evangelização nas Índias. A oportunidade se lhe apresentou favorável quando
da eleição do novo Geral da Ordem, Pe. Carlos de Noyelle. Ele próprio a reconhece. E assim a
qualifica, na sua correspondência, de 19 de setembro de 1682, ao novo Geral, nestes termos:
É próprio dos filhos, contanto que sejam genuínos, o costume de apresentarem a seu
Padre felizes augúrios, logo que o vejam guindado a algum encargo novo. Estendem
também então, em primeiro lugar, as mãos suplicantes a ele, porque acham
145
Assim eram nomeados os religiosos ou candidatos à vida religiosa que manifestavam expressamente o pedido
para o envio às Índias. Nesse caso, por Índias entenda-se genericamente todos os âmbitos missionários
delimitados pela ordem ou congregação religiosa em questão. O próprio Sepp menciona o termo em seu diário
de viagem, ao anotar sua passagem diante da ilha de Las Palmas, quando recorda o martírio de 40 missionários
nesse local. Afirma sentir o consolo que “sólo pueden experimentar aquellos reverendos Padres y carisimos
hermanos a quienes denominamos indípetas (candidatos para las Indias)”. SEPP, 1971, p. 131.
146
Debe haber leído las famosas cartas con una mezcla de admiración por la abnegación de sus hermanos,
deseos de viajar e interés novelístico en las aventuras que los autores habían pasado en países lejanos”.
HOFFMANN, 1971, p. 16.
69
firmemente que nunca serão atendidos mais depressa, quanto ao que pedem, do que
ao ensejo de verem o Padre investido em novas dignidades
147
.
Na mesma correspondência, Sepp formula expressamente o seu pedido para ser
enviado às Índias. A formalidade na apresentação deste pedido é característica das cartas de
indípetas. Os termos são deliberadamente escolhidos.
Por isso não te cause surpresa, padre amantíssimo, se também eu, o último dos
filhos, estender a ti as mãos suplicantes e muito humildemente te faça um pedido,
a saber, que me inscrevas também como candidato no Livro da Vida, isto é, que me
ajuntes ao mero dos que conheces como teus e julgares aptos a serem enviados
algum dia às Índias
148
.
E ele conclui o texto da carta apresentando-se “o filho mínimo em Cristo Antônio
Sepp”. Pode-se verificar pela forma de apresentação dos termos da carta o jeito marcadamente
retórico com o qual as mesmas eram articuladas. Buscavam vivamente impressionar e
granjear a boa disposição do superior para que atendesse prontamente a solicitação
manifestada.
Contrariando a expectativa do estudante Sepp, a solicitação apresentada na carta o
foi atendida de imediato. Ele teve que aguardar, por rios anos, a concessão da licença para
ir às missões. Nesse meio tempo, mesmo envolvido com diversas ocupações, tais como o
exercício do magistério e a realização de seus estudos, ele não esqueceu seus ideais
missionários. Indício dessa sua disposição pode-se observar quando recebe, em março de
1689, a confirmação de seu envio às missões paraguaias: prontamente dedica-se a encaminhar
os preparativos para a viagem.
O imaginário missionário de Sepp foi certamente influenciado pela sua leitura de
partes consideráveis da vasta correspondência epistolar. Ao encetar sua viagem para as
missões paraguaias, ele próprio passa a relatar as peripécias experimentadas nesta trajetória
149
.
Desse modo, ele contribui para dar continuidade a essa literatura apropriada para empolgar os
147
Carta de Sepp ao Superior Geral da Ordem, recém-eleito, Pe. Carlos de Noyelle, em Roma. Citada por
RABUSKE, 2003, p. 86s. Carta também publicada, na íntegra, por MAYR, 1988, p. 429. O seu texto, na íntegra,
consta como 2º item dos anexos no final desta tese.
148
RABUSKE, 2003, p. 87.
149
A redação de cartas constituía um dever de todo jesuíta, sobretudo dos que atuavam nas missões, em
obediência às Constituições, pelo fato de sua pertença à Companhia. Tal prática era recomendada para garantir,
segundo Londoño, a função principal das cartas: “consolar e edificar, dando a conhecer as obras feitas em nome
de Deus”. LONDOÑO, 2002, p. 15.
70
espíritos de jovens religiosos europeus. A leitura de seus relatos de viagem permite
acompanhar as etapas de sua travessia da Europa à América.
Esses elementos permitem evidenciar um dos aspectos característicos da dinâmica do
imaginário social enquanto desempenha a função de força regulativa. Ele é constituído pelas
representações e dimensões simbólicas que configuram a cosmovisão de uma dada
coletividade em certo momento histórico. Tal conjunto amplo influencia a construção da
identidade dos indivíduos imersos nesse contexto. Por sua vez, as formulações próprias
articuladas pelas individualidades em ação tendem a ampliar e reformular esse mesmo
imaginário.
Nos seus escritos, Sepp faz questão de ressaltar que a viagem até as missões
paraguaias comporta diversos riscos e perigos
150
. Já na etapa inicial de seu itinerário depara-se
com situações constrangedoras. “Vindo de Trieste, cheguei a 9 de julho de 1689 a Gênova,
depois de haver escapado de dois grandes perigos, a saber do saque das coisas do meu uso e
dum atentado assassino contra a minha vida.”
151
Tendo passado a dupla peripécia, na qual
ficara sem sua credencial, foi acolhido pelos jesuítas em Gênova que lhe providenciaram o
necessário para sua viagem.
No breve intervalo em Gênova, Sepp celebra a renovação de sua profissão de votos
religiosos, selando sua união definitiva à Companhia. Ali também encontra seu amigo e
colega, Pe. Antônio Böhm, destinado como ele para as missões paraguaias. Juntos haveriam
de seguir viagem
152
. A seguinte etapa consistia na travessia pelo Mar Mediterrâneo, visando
alcançar a cidade de Cádiz, na Espanha, donde partiriam para o Paraguai. Sobre essa etapa,
ele anota: “de Gênova viajei pelo Mar Mediterrâneo através de naufrágio iminente e entrei
felizmente em Cádiz, a 11 de setembro, após passar as colunas de Hércules”
153
.
150
Hoffmann menciona entre os perigos que ameaçavam os viajantes dos oceanos, no século XVII, os desastres
marítimos e os ataques de corsários. Além desses riscos maiores, cita ainda os incômodos padecidos por quem se
lançava a longas travessias oceânicas. Cf. HOFFMANN, 1971, p. 28s.
151
SEPP, 1980, p. 72.
152
Hoffmann apresenta este informe: “Juntos viajan por el mar Mediterráneo, juntos esperan la salida de los
barcos de Cádiz, juntos pasan la aventura de la travesía a Buenos Aires y se embarcan para la reducción de los
Tres Reyes Magos, separándose sólo cuando el provincial manda a Boehm a la reducción de San Miguel”.
HOFFMANN, 1971, p. 32.
153
SEPP, 1980, p. 72.
71
Em Cádiz, na Espanha, Sepp juntou-se a um grupo de cerca de 40 missionários
jesuítas de distintas nacionalidades. Aguardaram mais de ano a oportunidade para embarcar
rumo ao Rio da Prata. O longo período de tempo de espera foi muito bem ocupado pelos
religiosos. Aproveitaram a ocasião para conhecer seus companheiros de viagem. Dedicaram-
se a aprender a Língua Espanhola. Cultivaram diversas aptidões artísticas, mormente a
música. Aprofundaram seus conhecimentos em diversos ramos de ciências. Aplicaram-se ao
exercício da espiritualidade. Buscaram aprender e desenvolver a prática de alguma arte
manual
154
.
O deslocamento dos missionários europeus até a região das missões paraguaias
encontrava sérias dificuldades no final do culo XVII. Uma questão estava relacionada à
política comercial da Espanha. Eram promovidas e incentivadas as navegações para os portos
próximos às regiões com riquezas minerais. Dessa sorte, eram favorecidas as viagens
destinadas ao Caribe. Buenos Aires era até tratada com certa negligência, sob o ponto de vista
estritamente comercial.
Além disso, os barcos que seguiam a rota do Rio da Prata deparavam-se com outra
sorte de riscos. Por um lado, por não estarem em suficientes condições de defender-se dos
ataques de corsários; de outro lado, agregava-se a isso a inexperiência de muitos capitães para
navegar na região. Com isso, as oportunidades para viajar rumo às missões no Paraguai
ficavam muito reduzidas.
Além dos problemas com deslocamento, os missionários enfrentavam também
dificuldades com a burocracia estatal. Em função da política do padroado, a Cúria romana
concedia aos monarcas espanhóis o exercício de controle das iniciativas missionárias nas
terras de suas possessões. Para a consecução desse objetivo, foram elaborados instrumentos
legislativos visando disciplinar sua implementação. Esse encargo era assumido conjuntamente
pelos reis e autoridades eclesiásticas. Assim, “o estabelecimento das novas Missões obedecia
154
Sepp anota que ele e seu companheiro Böhm entretinham-se, como passatempo, com a confecção de
estatuetas da imagem de Nossa Senhora de Altötting. Serviam-se de barro de oleiro como matéria-prima. Cf.
SEPP, 1980, p. 89.
72
à legislação em vigor na época e era aprovada tanto pelas autoridades eclesiásticas como
reais”
155
.
Igualmente, o envio de missionários era tarefa ao encargo do Estado. Pelos diferentes
órgãos administrativos, procedia-se a uma cuidadosa seleção dos missionários destinados às
missões. Assim, eram escolhidos aqueles “bem preparados e adestrados, com vigor físico,
moral e espiritual, disciplinados e obedientes, forças motrizes fundamentais para a realização
de um vasto objetivo de cristianização de populações nativas”
156
. Este dado revela um dos
aspectos do controle exercido pelo poder metropolitano, por meio dos seus organismos
administrativos, sobre as atividades missionárias desenvolvidas nas colônias
157
.
Para missionários de origem não espanhola, as dificuldades apresentavam-se ainda
maiores. A administração do império colonial exercia uma política de vigilância muito
rigorosa sobre a atuação de missionários estrangeiros em seus domínios coloniais. Tal aspecto
era considerado no processo de seleção dos candidatos aos quais era concedida a permissão de
viajar para as missões. Quando, enfim, tais atrasos e dificuldades foram vencidas, Sepp
descreveu, em sua Viagem, o dia da partida rumo ao Paraguai:
Finalmente, no dia 17 de janeiro de 1691, na festa de Santo Antônio Abade,
largamos velas e de Cádiz nos fizemos ao grande Oceano. Éramos quarenta e quatro
missionários de diversas nações, espanhóis, italianos, neerlandeses, sicilianos,
sardos, genoveses, milaneses, romanos, boêmios, austríacos. Entre eles, eu, um
tirolês e meu fiel companheiro Padre Antônio Adão Böhm
158
.
No seu diário de viagem, Sepp relata aspectos das dificuldades enfrentadas por quem
se dispõe a ser missionário nas Índias. Suas descrições sugerem que os missionários suportam
as agruras da viagem. As condições da travessia do oceano são pouco favoráveis. Desse
modo, precisam suportar diversos tipos de sofrimentos
159
. Essa situação assemelhava-se a um
lento e continuado martírio. Com a apresentação desses aspectos, fica ressaltada a noção de
que Deus põe à prova seus servos. Aprendem na escola da paciência, para que dêem provas de
155
KERN, Arno. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 89.
156
KERN, 1982, p. 71.
157
É interessante ter presente que até as bagagens dos missionários, ao embarcarem para as missões, eram
cuidadosamente revistadas pelos controladores das navegações entre a metrópole e suas colônias, como observa
KERN, 1982, p. 20.
158
SEPP, 1980, p. 72.
159
O diário menciona alguns elementos, tais como, acomodações (destinadas aos padres) inadequadas e muito
pequenas, os odores insuportáveis, o pão insosso e deteriorado, a água imprópria para o consumo, os insetos que
molestavam os viajantes. Cf. SEPP, 1971, p. 125s.
73
firmeza de propósitos. No entanto, todo o discurso é articulado de modo a destacar que em
tudo isso se manifesta muito evidente a proteção de Deus aos seus eleitos
160
.
Interessantes questões podem ser constatadas no relato da chegada a Buenos Aires.
Transparece no discurso a aspiração que move o missionário. Após suportar os rigores da
penosa e longa viagem o missionário chega à terra almejada. Saíra da Europa para chegar à
América. Apresenta e destaca as motivações fundamentais que o animam:
Ajoelhei-me e com grande devoção beijei a terra, à qual havia vindo da Europa, para
saturá-la com meu suor e sangue, na qual pretendo agir e trabalhar e sobre a qual,
pela misericórdia divina, pretendo alcançar a bem-aventurança de minha alma
161
.
Aqui se constata uma manifestação típica de duas características marcantes. Por um
lado, evidenciam-se aspectos próprios do imaginário missionário: a idealização de um local de
atuação, com a possibilidade muito forte de ocasião de martírio, como forma de atingir o
estado de santidade e perfeição. Por outro lado, suas formulações discursivas assumem um
caráter retórico. Visam impressionar vivamente os leitores dos relatos.
Se a travessia do oceano, a viagem até as missões, representa um conjunto de
sofrimentos e tribulações, as dificuldades não diminuem quando os missionários ocupam
efetivamente seus encargos. Todas as atividades na missão estão ao encargo do padre. É ele
que toma as iniciativas. O missionário precisa estar à frente de todas as ações. Ele organiza
tudo em seus detalhes, propõe passo a passo as atividades e trabalhos de modo a conseguir
alcançar os fins propostos. É o protagonista por excelência. Lembra Sepp, “o Padre
missionário precisa ser tudo a todos, falando com São Paulo”
162
.
Como os indígenas demonstram incapacidade para a reflexão teórica, é o padre que
precisa prever e organizar tudo. Sua presença assegura a manutenção da boa ordem no
povoado. É o missionário quem deve ensinar os ofícios e as artes mecânicas aos índios
reduzidos. Ele não somente ensina como também provê para que tudo transcorra para o bem
160
Sepp bendiz a Deus, “pues Él ha fortalecido siempre de nuevo el espíritu en todas estas y parecidas
tribulaciones de la carne”. SEPP, 1971, p. 126.
161
SEPP, 1980, p. 101.
162
SEPP, 1980, p. 144.
74
dos fiéis. Desse modo, facilita a execução das obras e garante a boa continuidade da vida
reducional
163
.
Ao padre missionário, cabe encaminhar e fazer acontecer tudo o que diz respeito à
dimensão espiritual. Ele precisa prever tudo para a celebração da liturgia, organiza as
procissões, ensina a doutrina e cristã às crianças. É ele quem administra os sacramentos,
atende as necessidades espirituais dos doentes, encaminha para a vida matrimonial os jovens,
oficia o ritual de encomendação e sepultamento dos falecidos. Vigia para que todos os fiéis
vivam os preceitos da fé, orientando-os pela palavra e mediante sua presença atenta
164
.
Além de toda a condução da vida espiritual, o padre precisa também assumir a
responsabilidade pelo bom andamento da vida material da comunidade. De fato, o missionário
devia estar continuamente observando os seus índios nas reduções. Devia estar atento aos
menores detalhes da vida e da organização dos povoados. Cada atividade a ser feita pelos
neófitos precisava ser devidamente detalhada. Caso contrário, não seria bem executada. Ainda
assim, com freqüência, sofria desgostos ocasionados pelos descuidos dos índios
165
.
O entusiasmo missionário inicial de Sepp vai sofrendo alterações. As situações com
as quais se depara e os encargos que precisa atender incidem sobre o seu modo de perceber a
missão. Por um lado, algumas de suas expectativas estão distantes de se realizarem, tais como
a participação na conversão de povos selvagens ou a possibilidade real de martírio. Por outro
lado, essas situações constituem oportunidades para manifestar suas convicções.
Tais elementos ficam salientados em correspondência do ano de 1714, dirigida ao
padre superior de sua Província de origem. Nela expressa aspectos marcantes de seu esforço
na missão. Lembra sua condição de servidor inútil. Serve-se da imagem do pastoreio para
referir-se a sua iniciativa de fundação da redução de São João Batista e de seu atendimento a
163
Cf. SEPP, 1980, p. 152s. As observações de Sepp sugerem que o missionário exercia um ministério de
supervisão de todas as iniciativas em curso na redução. De certo modo, assumia a responsabilidade pelo conjunto
das atividades realizadas pelos indígenas.
164
Cf. SEPP, 1980, p. 125.
165
Cf. SEPP, 1980, p. 126; também p. 195, onde afirma expressamente: “devemos ser tutores deles não nas
cousas espirituais, [...] mas também nas temporais, tal qual verdadeiros pais para com os filhos”.
75
essa comunidade. Observa que, embora gozando de boa saúde, deve agüentar as “cruzes que o
Pai Eterno destina a cada um de seus filhos, de acordo com suas forças”
166
.
Essa é também a oportunidade para manifestar sua compreensão quanto às
disposições daqueles que se apresentam como candidatos para a missão. Mostra que os
missionários destinados ao Paraguai necessitam ser de forte constituição sica e mental, além
de demonstrar disposição de suportar contrariedades. Ressalta que sejam providos de
qualidades tais como a generosidade, a alegria, a constância em servir e, sobretudo, a firmeza
de espírito.
Nessa correspondência Sepp também apresenta uma espécie de desabafo. Suas
palavras parecem uma meditação melancólica sobre a situação de um missionário no Novo
Mundo. Sobressai a sua queixa de solidão de padre europeu no ambiente americano em meio
à multidão de indígenas. A citação é expressiva.
Nós, os missionários, entretanto, vivemos entre tantos milhares de índios, como os
eremitas na Tebaida, pois não há troca de idéias sobre temas religiosos, nossa
solidão é extrema, o silêncio perpétuo, as notícias de vós são raras, escassas e
chegam atrasadas; estamos alheios a nossa época e mortos para o mundo, nos
sobrecarregamos nos trabalhos intermináveis e preocupações contínuas e viver assim
é um sacrifício, a morte um benefício
167
.
Desse texto pode-se depreender alguns aspectos relevantes. O escrito revela que seu
autor sentia uma necessidade muito grande de se comunicar. Por isso, vale-se do recurso da
correspondência epistolar
168
para entrar em contato com seus coirmãos religiosos da distante
Europa e a eles expressar suas vivências. Apresenta também aspectos da personalidade de
alguém que acumulou mais de duas décadas de experiência missionária entre os índios do
Paraguai. Tal condição caracteriza marcadamente a comunicação expressa no texto. Além
166
Cruces que el Padre Eterno destina a cada uno de sus hijos, de acuerdo con sus fuerzas”. SEPP, 1974, p.
126.
167
Nosotros, los misioneros, en cambio, vivimos entre tantos miles de indios, como los ermitaños en la
Tebaida, pues no hay cambio de ideas sobre temas religiosos, nuestra soledad es extrema, el silencio perpetuo,
las noticias de ustedes son raras, escasas y llegan atrasadas; estamos ajenos a nuestra época y muertos para el
mundo, nos agotamos en labores interminables y preocupaciones continuas y vivir así es un sacrificio, la muerte
un beneficio.” SEPP, 1974, p. 127
168
Além de constituir um dever de todo jesuíta, a redação de cartas apresentava-se também como uma
oportunidade para expressar suas vivências. Representava uma ocasião propícia para influenciar e impressionar o
espírito de seus leitores, granjear a sua simpatia para as convicções que o autor amadurecia em suas iniciativas e
para, de certo modo, associar outros membros ao seu dever apostólico.
76
disso, manifesta traços significativos da autopercepção da identidade do missionário nas
circunstâncias em que se encontra.
Outro aspecto ainda fica evidenciado acerca da questão da identidade do missionário.
Hall sustenta que é “porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que
nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais
específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e
iniciativas específicas”
169
. Nas articulações discursivas de Sepp manifesta-se esse processo de
construção de identidade. Sua autocompreensão vai sendo alterada na dinâmica na qual ele se
encontra envolvido.
2.3 O músico tirolês entre os Guarani
A linguagem da música e seu exercício constituem elementos que acompanham as
iniciativas missionárias do período colonial. Representava uma maneira de estabelecimento de
contato com os nativos. Tornava-se um recurso que aproximava os que pareciam estranhos
pela respectiva fala. Cativava os indígenas que apreciavam e cultivavam formas musicais
como dimensão significativa de sua expressão.
Em suas narrativas, Sepp menciona diversas vezes sua aptidão e talento musical. Em
seus escritos, pode-se evidenciar que essa é uma dimensão destacada de sua identidade. Entre
as ocupações do dia-a-dia, dedica uma parte de seu tempo para cultivar tal capacidade
170
.
Exercendo-a, ele oferece uma contribuição significativa ao trabalho missionário junto aos
indígenas nas reduções.
Os poucos informes disponíveis sobre a sua infância e sua formação escolar indicam
que a atenção para a arte musical já está presente em sua vida desde uma tenra idade.
Inclusive desde a família foram favorecidas condições para que se desenvolvesse essa arte.
Seus primeiros professores eram também destacados cultivadores do canto coral. Tais
aspectos permitiram ao menino Sepp que figurasse entre os Cantores da Corte Imperial da
169
HALL, 2000, p. 109.
170
Sepp anota que no espaço entre o meio-dia e o reinício das atividades da tarde, tem “um pouco de tempo para
trabalhar para mim[...]noutro dia componho um pouco de música”. SEPP, 1980, p. 154.
77
Áustria
171
. Essa oportunidade tornou-se marcante para ele. Assim lhe foi proporcionado o
aprendizado da música executada em distintos instrumentos.
Uma vez no processo de formação, no itinerário de estudos para sua inserção na
ordem jesuítica, suas potencialidades musicais tiveram um significativo incremento. Não lhe
faltaram oportunidades, tanto na escola, quanto no internato, para desempenhar e aprimorar
seu talento musical. Constituíam partes integrantes das atividades escolares as representações
teatrais, com ênfase na arte musical. Nelas, Sepp figurava como destacado participante e
articulador de semelhantes iniciativas.
Igualmente desenvolve suas aptidões para a arte musical quando exerce o encargo de
assistente de formação nos institutos jesuíticos. No desempenho dessa função, torna-se
professor de música e organizador de apresentações musicais
172
. Tais circunstâncias
oportunizaram-lhe intensificar seu próprio aprendizado, bem como incentivar seus alunos a
desenvolver seus talentos para a arte. Nessas atividades, destaca-se pelas suas habilidades
artísticas, sendo reconhecido pelos seus confrades.
Nos seus relatos, menciona várias vezes sua capacidade musical. Em distintos
momentos da viagem pelo oceano, executa algumas músicas. Inclusive organiza no próprio
navio a oferta de lições de música a alguns aprendizes
173
. Constata e anota as limitações deles
no aprendizado da arte musical. Obter resultados expressivos de semelhantes criaturas lhe
parece tarefa deveras árdua. Por outro lado, observa e relata dificuldades de execução das
músicas enquanto estão navegando
174
.
Na descrição da chegada a Buenos Aires, deixa transparecer sua capacidade de
observação também da musicalidade dos índios presentes naquela ocasião. Não se furta de
anotar sua percepção de aspectos específicos da maneira de execução da arte musical. Em sua
171
Cf. HOFFMANN, 1971, p. 13.
172
RABUSKE, 2003, p. 98.
173
No seu diário de viagem, Sepp anota em dia de calmaria no mar: “hoje dei lição de música aos meus quatro
trombetas negros”. SEPP, 1980, p. 89.
174
Durante a travessia, um padre celebra seus votos religiosos. “Queríamos fazer música para essa cerimônia.
Não conseguia manejar minha tiorba, porque o mar tempestuoso estava muito inquieto.” SEPP, 1980, p. 79.
78
atenção a tais peculiaridades, revela uma apreciação da capacidade dos músicos nativos.
Observa que eles executaram de um modo bastante aceitável uma determinada música
175
.
O seu encontro com os confrades de Buenos Aires teve uma atenção destacada nos
seus escritos. Ele conta aos seus leitores a boa impressão despertada em seus colegas da
Companhia quando lhes mostra os diversos instrumentos musicais trazidos da Europa. Eles
lhe solicitam que apresente algumas músicas. “Como soubessem que eu tinha alguma prática
na música, tive que lhes tocar alguma coisa. Toquei sobre a tiorba grande, que trouxera de
Augsburgo, bem como sobre a tiorba pequena, que trouxera de Gênova.”
176
Escreve que os
surpreende com as melodias resultantes de distintos instrumentos musicais que ele executa
com boa habilidade. Embora observe que ficam extasiados e admirados com as apresentações
feitas, Sepp anota que ele não sabe muito de música.
O saltério apreciado tocou o coração dos Padres, que nunca haviam ouvido coisa
semelhante. A princípio fiz com que se assentassem de tal modo que me
ouvissem tocar, sem, entanto, me ver. Mas logo não mais puderam conter-se,
vinham para meu lado, para seguir a música com ouvidos e olhos. Depois toquei
com o Padre Antônio em dois tipos de flautas, que comprara em Gênova. Também
tive que tocar um pouco viola e trombeta, tendo eu comprado esta última em Cádiz.
Toquei corretamente, como costumo fazê-lo, e um pouco, mas o pouco foi muito
bem apreciado e recebido pelos Padres
177
.
Outra oportunidade que se oferece para as observações de Sepp sobre as práticas
musicais dos indígenas é a chegada dos missionários às reduções. A acolhida proporcionada
pelos índios das reduções é marcada por distintas representações artísticas. Em sua apreciação
da música apresentada, ele observa que a executam com grandes limitações. Isto porque ainda
não aprenderam a arte do baixo cantante
178
. Desse modo, a execução fica bastante prejudicada
e pouco agradável aos ouvintes mais atentos
179
.
175
Cf. SEPP, 1980, p. 71. Tais elementos dos relatos comprovam o grande interesse de Sepp por essa dimensão
significativa da ação missionária: a música.
176
SEPP, 1980, p. 106.
177
SEPP, 1980, p. 106. Mais uma vez constata-se este modo próprio de Sepp expressar-se. Ele ressalta sua
modéstia, parece subestimar sua capacidade. Verifica-se um tipo de discurso retórico, mediante o uso de
elementos característicos para impressionar o leitor.
178
O denominado baixo cantante constituía uma técnica musical típica do período do chamado “estilo moderno”.
Passou a servir como base para todas as composições até meados do século XVIII. Correspondeu ao auge da
música barroca. Hoffmann observa que “su aplicación y ejecución requiere conocimientos sólidos del arte de la
armonía”. HOFFMANN, 1971, p. 19. Pelas suas anotações, Sepp demonstra ter boas noções sobre os
procedimentos próprios da referida técnica musical.
179
Cf. SEPP, 1980, p. 135.
79
Nas descrições de suas ocupações cotidianas, Sepp menciona o ensino de música aos
seus índios. Esta é uma das atividades que demanda tempo, atenção e preocupações.
Diariamente ele os acompanha no seu aprendizado. Ele precisa ensinar-lhes as noções básicas
da arte musical. Necessita efetivamente treiná-los nessa capacidade. Para tanto, encaminha
gradativamente as lições aos seus aprendizes. Repetições, retomadas, paciente atenção e
motivação constituem tarefas desempenhadas por ele na esperança de alcançar resultados
minimamente satisfatórios. Constata que seus músicos não são muito bons aprendizes
180
.
Os relatos dão conta de que a música ocupa um espaço importante nas ações
litúrgicas realizadas nas igrejas das reduções. Boa parte das celebrações solenes é cantada.
“Todos os sábados temos missa cantada de Nossa Senhora e ladainha. Todos os domingos
missa cantada e sermão. Meus músicos tocam música todos os dias durante a Santa Missa, e
isto, graças a Deus, de maneira bem aceitável.”
181
Neste particular, Sepp chama a atenção
para seu esforço e as limitações que enfrenta para abrilhantar bem os eventos comunitários.
Além de poucos instrumentos musicais disponíveis, menciona a precariedade da iniciação dos
indígenas na arte musical.
Se por um lado vibra com os progressos feitos nesse aspecto, por outro lamenta não
ter aproveitado a oportunidade de aprender mais no tempo de sua formação. “Oh! como
desejo agora que tivesse eu tomado melhores lições com os reverendos Padres Glettle,
Seidner e outros!”
182
Manifesta que lhe fazem falta conhecimentos mais apurados sobre
distintas dimensões da arte musical, como, por exemplo, teoria da composição. Lembra as
lições que tivera com bons músicos em diversas ocasiões do período de sua formação e ao
longo do exercício de seu estágio e magistério colegial na Europa. Mostra-se entristecido por
não ter trazido composições musicais para as celebrações litúrgicas.
Para dar maior importância e destaque a esse aspecto de suas atividades, suplica a
seus leitores que lhe enviem anotações e partituras musicais. O modo de apresentar tal
solicitação é sintomático. Lembra a sua condição de missionário que atua em meio a múltiplas
dificuldades. Considera as boas disposições de seus leitores em atender a seus pedidos.
180
Ele registra assim: “O que custa a mim instruir os índios em nossa música européia o bom Deus o sabe”.
SEPP, 1980, p. 138.
181
SEPP, 1980, p. 134.
182
SEPP, 1980, p. 135.
80
Mostra de modo bastante detalhado os meios e caminhos mais adequados para obter o auxílio
solicitado. Segundo Rabuske, “Sepp era também mestre em pedir ou até mendigar auxílios
europeus, indicando o material a adquirir, o modo de pagá-lo e explicando o caminho melhor
do envio ao Paraguai”
183
. Desse modo, o autor das cartas ressalta o alto conceito que em
relação à música nas missões.
Constatando a falta que lhe fazem as músicas litúrgicas elaboradas, anota seu esforço
em compor aquelas que necessita. Para alcançar tal intento, serve-se de algumas indicações
para a composição que obtivera junto aos padres músicos no período de realização de seu
terciado em Alt-Oettingen. “Com o auxílio desse manual comecei, portanto, a compor: uma
Missa a catorze compassos, duas vésperas de Confessore et Beatissima Virgine, também a
catorze compassos, bem como duas Ladainhas breves a dezesseis compassos.”
184
Lembra a
dificuldade que tal prática lhe representa. Além do mais, as urgências e a demanda dos muitos
encargos lhe possibilitam um tempo exíguo para dedicar-se a tal tarefa.
Sepp relata que, além de ser músico, precisa ser construtor de instrumentos musicais.
Descreve, com vários pormenores, a tarefa que se incumbiu de construção dum órgão de
tubos. Como havia falta de materiais metálicos para sua confecção, utilizou-se de madeira de
cedro engenhosamente adaptada para substituir os metais. Construiu um órgão para ser tocado
com as mãos e com os pés
185
.
Uma de suas grandes contribuições para a atividade missionária foi a articulação de
escolas de música. Em cada redução onde passava oferecia lições de música. Além disso, seus
colegas, conhecendo suas capacidades, lhe confiavam aprendizes para que fossem por ele
adequadamente iniciados nas novas técnicas de musicalidade.
De todos os pontos cardeais e de mais de cem milhas os missionários me mandam os
seus músicos, para que os instrua nessa arte, que lhes é completamente nova, e que
difere da velha música espanhola, que eles ainda têm, como o dia da noite. Até agora
nada se sabia aqui de nossas divisões de compassos e espécies de andamentos, nada
dos diversos tritons. Até hoje, os espanhóis, como vi em Sevilha e Cádiz, não têm
notas dobradas, quanto menos então tríplices. Suas notas são todas brancas, as
inteiras, as meias e as notas corais, música velhíssima, antiqualhas que os copiadores
da Província alemã possuem aos caixões e que aproveitam para encadernar escritos
183
RABUSKE, 2003, p. 123.
184
SEPP, 1980, p. 135.
185
Ele anota: Uma cousa, entre outras, causou admiração não aos índios,[...]a saber, que me viam tocar não
só com as mãos, mas também com os pés, cousa nunca vista nem ouvida por eles”. SEPP, 1980, p. 180.
81
novos. Destarte, portanto, tenho que começar, com estes meus cantores barbudos,
graves, e encanecidos, como o começo da escala tonal, ut, ré, mi, , sol, la, o que
por amor de Deus faço de muito bom grado
186
.
Embora essa seja tarefa árdua, Sepp relata os bons resultados obtidos. Anota que os
pobres índios, nus e inocentes, executam músicas e cantam canções com garbo, graça e boa
forma. Outro indício dos frutos alcançados nessa iniciativa são as manifestações de satisfação
e gratidão dos missionários que enviaram os índios à escola de música. Ele escreve que “em
reconhecimento, este me manda uma barriquinha de mel, o outro açúcar e frutas americanas.
A modéstia e o pudor que competem a um religioso não permitem à pena que esta escreva o
quanto os índios me veneram e amam”
187
.
As articulações discursivas de Sepp acerca desse aspecto manifestam algumas
questões significativas. O caráter retórico permeia as suas elaborações: apresenta-se como
agente capacitado para exercer tal dimensão e, ao mesmo tempo, insiste em ressaltar suas
limitações na realização dessa prática. O seu envolvimento nessa dinâmica modifica,
significativamente, sua autocompreensão de agente de música. As suas apreciações acerca das
práticas de seus aprendizes vão sendo alteradas. Ele expressa que sua atuação opera
transformações positivas nessas práticas.
2.4 O agente civilizador
A entrada de Sepp na Companhia certamente teve entre as motivações a aspiração de
realização de seu imaginário missionário. Sua trajetória no processo formativo veio ao
encontro dessa disposição. A leitura de textos marcantes da vasta correspondência epistolar,
incentivada e organizada pela Companhia, criou as condições para intensificar nele esse
desejo. Oportunidades de aprofundamento de seu entusiasmo não lhe faltaram. Sua partida da
Europa e chegada ao Novo Mundo apresentaram-se-lhe como possibilidade de realização de
sua intenção. A pretensão de doar sua vida para converter povos nativos e conquistá-los para
o grêmio da Igreja Católica podia agora ser concretizada. Parecia-lhe, inclusive, bem próxima
a ocasião de alcançar o martírio, sinal de sua entrega plena ao reinado de Cristo.
186
SEPP, 1980, p. 138.
187
SEPP, 1980, p. 139.
82
Pode-se, no entanto, evidenciar nos seus próprios escritos a percepção de uma
defasagem entre a expectativa alimentada, os ideais e sonhos acalentados e a realidade
encontrada. Tem-se a impressão que ele manifesta um certo mal-estar ao deparar-se com a
situação. Isto ao sentir que não podia pôr em prática seu imaginário missionário. Imaginava,
por certo, encontrar povos a ser convertidos, práticas idolátricas a ser extirpadas, artimanhas
de infiéis a ser combatidas. Viera no intuito de ser um soldado da bandeira de Cristo a
combater as hostes diabólicas. Ao chegar, porém, encontra povos reduzidos, catequizados e
comunidades estruturadas a serem mantidas mediante práticas de atendimento de
necessidades religiosas.
Outro indício dessa defasagem transparece no relato da chegada dos missionários aos
povoados. Ele apresenta detalhes pormenorizados de toda uma ritualização de recepção solene
aos recém-vindos. O desembarque dos missionários no porto de Buenos Aires parece não ter
causado grande impacto. De certo modo, Sepp deixa transparecer um misto de decepção com
a povoação e satisfação por chegar a esta terra de missão. Bem diversa é a descrição da
chegada a Japeju, o primeiro povoado reducional. O relato apresenta uma recepção com um
colorido vibrante e festivo e cheia de graça. A população do povoado acolhe com alegre
vozeio os missionários. A descrição das cenas que sucedem assemelha-se mais a espetáculos
de vida urbanizada do que realidade de ambiente de missão.
Os recém-chegados são brindados com um festival de representações teatrais. Num
primeiro momento, é apresentada uma simulação de combate naval. O desenvolvimento das
cenas representadas evidencia que se trata de uma dramatização projetada e orquestrada e não
de simples improvisação. O ato seguinte era composto por um desfile da infantaria e cavalaria
do povoado, com uma mostra de luta campal. Tal demonstração sugere que os índios dessa
redução tinham sido bem treinados na disciplina e artes militares. Sepp anota que os
participantes dessas apresentações estavam “de uniforme de gala, trajando graciosamente
conforme a moda espanhola”
188
.
Apresenta em seu relato a configuração dos povoados organizados pelos
missionários. Menciona uma dinâmica de vida social, um determinado ordenamento dessas
sociedades assim constituídas. Afiguram-se às povoações européias. Nos povoados
188
SEPP, 1980, p. 122.
83
reducionais encontram-se templos, praças, ruas e casas edificadas segundo uma gica
urbanística. “Do outro lado do rio víamos a redução, linda de ver-se sobre o outeiro, com a
torre e a igreja, com a residência dos Padres e com as quadras e ruas das casas e cabanas, em
que moram os índios convertidos.”
189
A impressão é de que os indígenas estejam reduzidos
ao modo de vida típico da civilização européia.
O relato das ocupações cotidianas dos missionários aponta também para a defasagem
entre o seu imaginário e a realidade efetiva encontrada. Nele não aparece descrito o
envolvimento com pregação para conquistar e converter infiéis, o que configuraria a intenção
e o desejo do missionário. Ao contrário, o mencionadas ocupações necessárias para manter
em boa ordem as lidas rotineiras em vista da conservação da vida nos povoados articulados.
Quanto ao aspecto da administração dos bens terrenos, Sepp escreve:
Direi tudo numa palavra, aliás com São Paulo: o Padre precisa ser tudo a todos!
Precisa ser: cozinheiro, dispenseiro, comprador e gastador, enfermeiro, médico,
arquiteto, jardineiro, tecelão, ferreiro, pintor, moleiro, pedreiro, escrivão, carpinteiro,
louceiro, oleiro e tudo quanto pode haver ainda de funções numa república bem
organizada, numa comunidade, cidade ou num Collegium Societas, ou num
convento da Santa Ordem
190
.
Os relatos das atividades e iniciativas cotidianas do missionário deixam transparecer
a impressão de apresentação dos encargos característicos de um gerenciador de tarefas e lidas
laborais. Parece-se com um inspetor de obras a empenhar-se na implementação da disciplina
necessária ao adequado encaminhamento dos trabalhos. Além de indicar as tarefas a serem
executadas, necessita detalhar os procedimentos para sua adequada execução
191
.
Por outra parte, parece bem mais um supervisor encarregado de avaliar o andamento
das atividades e iniciativas para o cumprimento das metas estabelecidas. Tal encargo exige
que faça uma visita a todos os espaços onde são executados os trabalhos de cada dia. Desse
modo, realiza uma inspeção nas oficinas e estabelecimentos manufatureiros existentes na
redução:
Depois que instruí os músicos e dançarinos, visito as outras oficinas, a olaria, o
moinho, a padaria. Verifico o que estão fazendo os ferreiros, os carpinteiros e
189
SEPP, 1980, p. 120.
190
SEPP, 1980, p. 125.
191
No texto consta a observação de Sepp: estes índios “fazem tudo desajeitada, bronca e erradamente”. SEPP,
1980, p. 125.
84
marceneiros, verifico o que estão trabalhando os escultores, o que pintam os
pintores, o que tecem os tecelães, o que torneiam os torneadores, o que bordam os
bordadores, o que carneiam os carneadores
192
.
Por vezes, apresenta-se como coordenador dos trabalhos coletivos. Todas as
atividades relacionadas à melhoria das condições materiais do povoado são organizadas pelo
padre. Sob a sua ordem, são derrubadas as árvores para a obtenção da madeira necessária para
as construções. Conduz as obras de edificação do templo do povoado. Articula os esforços
dos indígenas para construir suas habitações e conservar em bom estado as ruas e a praça
central da povoação.
Cabe-lhe a responsabilidade de planejar deliberadamente a execução das práticas
inerentes à manutenção das condições de vida dos habitantes. Sepp refere que os índios são
imprevidentes, não se preocupam em providenciar a seu tempo o preparo da terra e as
plantações
193
. Por isso, quando chega a época de arar e semear as roças, cabe ao padre
encaminhar a realização desses trabalhos. Fornece aos índios os instrumentos necessários ao
trabalho. Providencia para que não faltem as sementes para o plantio. Encaminha o plantio de
algodão para a confecção de tecidos. Envia os indígenas para a colheita da erva-mate, entre
outras tarefas.
Necessita organizar a distribuição de tarefas e disciplinar a sua efetiva realização.
Uma vez que os índios se mostravam imprevidentes, foi organizado um sistema de cultivo
misto. Cada chefe de família era incentivado a plantar um roçado para seu próprio sustento.
De outra parte era organizada uma plantação comunitária destinada a prover o atendimento
dos doentes e para suprir as necessidades da comunidade. Na época da colheita, o produto era
recolhido num galpão comunitário previamente construído para tal finalidade. Cada família
também “precisa encaminhar parte da colheita para este galpão”
194
. Desse modo, assegurava-
se uma reserva muitas vezes necessária para suplementar o consumo de alguma família. Tais
procedimentos eram sistematicamente acompanhados pelo padre missionário.
192
SEPP, 1980, p. 153.
193
Em diversos momentos no seu relato apresenta sobre esse aspecto expressões como as seguintes: “não tem a
mínima preocupação pelo dia de amanhã”; “só poucos índios se encontrará que sejam capazes de guardar as
sementes até a época da sementeira”; deste fato pode-se inferir que este povo não tem previdência alguma, que
tudo devora num dia e não cogita de que precisa viver também no dia seguinte”. Afirmações acima em SEPP,
1980, p. 147.
194
SEPP, 1980, p. 147.
85
Precisa estar atento para encaminhar a solução de problemas que afetam a vida dos
moradores. Nesse sentido, constitui uma carga pesada para o missionário a sua função de
médico e farmacêutico do povoado. E ele descreve os procedimentos adotados e as
providências encaminhadas para atender as vítimas de uma epidemia que atingiu a população
da redução na qual atuava. Além de promover, com a ajuda de alguns índios mais capacitados
para tal, uma sangria geral de todos os habitantes da povoação, encaminha a construção ou
adaptação de hospitais rústicos para possibilitar o isolamento dos enfermos e privar os demais
do contágio da terrível peste. Quanto a este episódio, Sepp anota:
Eu sozinho era o médico-chefe, ou melhor, o enfermeiro de todos; realmente, era
tudo para todos, pois a caridade engenhosa ensinou-me então a ser não somente
sacerdote que trata as chagas da alma, mas também o samaritano do Evangelho que
pensa as feridas do corpo
195
.
Na narração desses acontecimentos, manifesta-se a capacidade prático-operativa do
missionário. Apresenta suas iniciativas para encaminhar soluções aos graves problemas que se
abateram sobre a população com a irrupção da peste. Sua atenção precisa ser direcionada para
diferentes questões simultaneamente. Por um lado, precisa proporcionar o atendimento
espiritual aos enfermos, administrando-lhes os sacramentos. Por outro lado, o tratamento da
doença lhe exige envidar uma variedade de práticas, em meio à situação de carência quase
total de recursos. Afirma: “vivemos completamente destituídos de todo auxílio dos
médicos”
196
. Além de improvisar hospitais que permitem um atendimento razoável dos
doentes, lança mão de medicamentos caseiros criados a partir dos meios disponíveis.
A manutenção da boa ordem nos povoados implica também a sanção de medidas
punitivas dos deslizes disciplinares. A falta ao trabalho ou o pouco esforço demonstrado na
realização do mesmo era punida mediante a aplicação de açoites. Nesse caso, o castigo era
sancionado pelo padre, mas aplicado ao faltoso por algum índio ocupante de encargo na
comunidade. E Sepp lembra que são castigados grandes e pequenos e também as mulheres. E
considera esse procedimento como uma maneira paternal de cuidar desses índios.
Sepp relata detalhadamente seu empenho na articulação das iniciativas inerentes ao
processo de fundação de um novo povoado reducional
197
. Destaca que, embora realize esse
195
SEPP, 1980, p. 183.
196
SEPP, 1980, p. 188.
197
Tais procedimentos são relatados por Sepp em vários capítulos de seu texto. Cf. SEPP, 1980, p. 198-212.
86
empreendimento com índios reduzidos, constitui uma tarefa deveras difícil. Tal questão se
apresenta dessa forma, pois deve “tratar com índios sem a mínima organização política,
prudência e perícia nos negócios”
198
. Por isso precisa assumir sob sua responsabilidade a
realização dessa empreitada. No seu relato, mostra como organiza cada etapa dessa iniciativa.
Num primeiro momento, trata-se de apresentar a proposta, demonstrar a sua
importância e criar a adesão de um grupo de lideranças da população para a sua efetivação.
Nessa circunstância, Sepp desempenha o papel de um orador convincente capaz de obter a
aprovação para seu propósito. Para tanto, usa de sua capacidade retórica e apresenta o
exemplo de si mesmo que saiu de sua terra natal para vir ao encontro dos indígenas. Com isso,
pretende motivar as famílias para que se dispusessem a sair de sua atual redução a fim de
transladar-se ao novo povoado a ser criado.
Uma vez criada essa motivação inicial, Sepp parte com um grupo de caciques em
busca de um espaço apropriado para estabelecer a nova redução. Em todo esse processo, ele
revela ser um hábil articulador de iniciativas. Encaminha de modo metódico e sistemático
cada procedimento, conferindo solenidade aos mesmos. Demonstra seu talento para colocar
no centro das atenções de todos os acontecimentos públicos importantes. E a seleção de um
lugar apropriado para o estabelecimento da nova redução era decisiva para o êxito desse
empreendimento. Assim, ressalta a importância desse ato fundacional.
Após a definição do local, o missionário coordena todas as atividades de estruturação
da nova redução. Encaminha o corte das árvores necessárias para as construções e a derrubada
da mata para a criação dos campos de plantações. Prevê a organização do espaço do povoado.
Articula a distribuição das áreas de terra a cada grupo de índios que fará parte da povoação.
Providencia a preparação da terra para o cultivo. Com isso busca assegurar o abastecimento
da população quando de sua instalação efetiva na redução. Planeja e executa detalhadamente
cada etapa para o bom encaminhamento dessa fundação. Nesse proceder, revela-se um
organizador metódico e providente.
Durante a estruturação da nova redução, descobre minério de ferro e organiza sua
extração e fundição. Também nesse aspecto particular, Sepp relata a necessidade de
198
SEPP, 1980, p. 198.
87
desenvolver suas capacidades prático-operativas. Ele apresenta no seu escrito os
procedimentos adotados para o processamento do minério de ferro e sua utilização para
fabricação de ferramentas e instrumentos de trabalho. E afirma: “a experiência me fez
carvoeiro e ferreiro, que é necessário fazer-se de tudo para todos o missionário
apostólico”
199
.
Seu tino administrativo é reconhecido por seus colegas de ofício, os religiosos da
Companhia. Os novatos que chegam para trabalhar nas reduções lhe solicitam orientações de
como melhor atuar nas lides do cotidiano. Sepp dedica os anos finais de sua vida à tarefa de
elaboração e formulação de instruções para o bom governo e administração das reduções. Tais
sugestões estão reunidas num texto intitulado Algumas instruções relativas ao governo
temporal das reduções
200
. O conteúdo do referido texto revela a capacidade observadora e
experimentadora de seu autor. Demonstra aspectos relevantes das razões de seu êxito nos
empreendimentos nas reduções onde atuou.
Os elementos acima considerados tornam possível evidenciar uma alteração
significativa nas formulações discursivas de Sepp. A articulação de seu imaginário vai sendo
tecida na trama histórica que ele vivencia e narra. Percebe-se o desenvolvimento de uma
dinâmica inerente ao seu discurso. Inicialmente suas representações de identidade
contemplam a noção de missionário como alguém que sai da Europa para converter pagãos na
América. Nessa idéia está subjacente a compreensão de práticas que tenham em vista extirpar
manifestações de idolatria, provocar a superação de condutas típicas de infidelidade e
favorecer a introdução dos infiéis na vida cristã.
Gradativamente, no entanto, observam-se, em seus relatos, aspectos indicadores de
uma mudança considerável em sua percepção de identidade. O missionário vê-se
transformado em administrador da vida reducional. Percebe-se que de agente de conversão ele
veio a tornar-se um mantenedor da estruturação e organização de práticas e relações sociais. O
cura de almas, o catequista doutrinador, o apóstolo do Evangelho vai transformando-se em
199
SEPP, 1980, p. 227.
200
Texto publicado em versão portuguesa por RABUSKE, Arthur. P. Antônio Sepp, S.J. O gênio das reduções
guaranis. 2.ed. São Leopoldo: UNISINOS, 1979. p. 78-90. Na parte final desse escrito o próprio Sepp apresenta
as razões do seu esforço na composição do referido texto: “Estas são as Instruções que, a pedido de alguns
padres novos, me obrigaram a escrever para lhes servirem”.
88
lavrador, coordenador de atividades econômicas, dinamizador de lidas agropastoris. Porém,
há ainda outros aspectos característicos do missionário Sepp a considerar.
2.5 O administrador eclesiástico
O início efetivo da atuação nas missões significou para Sepp ocupar-se com
trabalhos práticos. Foi nomeado para ser auxiliar do cura-pároco da redução de Japeju. Tal
encargo estava longe de representar um conjunto de iniciativas de caráter estritamente
missionário tal como ele viera criando em sua imaginação. Em outras palavras, parecia
malograr-se sua expectativa de atuar seu imaginário missionário. Inclusive, ao mencionar o
encargo confiado ao seu colega Böhm de participar da conversão dos Yaros, a entender
que se julga indigno de participar de tais empreendimentos. “Eu não era digno disso em
virtude dos meus grandes pecados.”
201
A vida cotidiana das reduções comportava um conjunto de atividades a serem
atendidas pelos padres designados para tal encargo. O relato apresentado por Sepp,
denominado “ordem do dia dos missionários”
202
, oferece uma boa noção de práticas típicas da
administração eclesiástica de um povoado. As iniciativas mencionadas visam, certamente, à
manutenção de um estilo de vida comunitário típico da compreensão eclesial da
Cristandade
203
.
Na condição de auxiliar do pároco da redução, Sepp percebe-se encarregado de
atender a diversas atividades rotineiras. Precisa dar atenção a uma série de questões
relacionadas à manutenção da boa ordem no povoado. Os relatos detalhados dos seus afazeres
cotidianos parecem assemelhar-se ao relatório de um professor de colégio ou de um prefeito
201
SEPP, 1980, p. 116.
202
Constitui o capítulo IX da edição portuguesa de Viagem às missões jesuíticas, do ano 1980, situando-se nas
páginas 152-155.
203
Com o termo Cristandade menciona-se o modelo de Igreja estruturado a partir da aliança articulada entre o
poder eclesiástico e o poder político. Dussel assinala que “a Igreja se articula, em suas estruturas hierárquicas
hegemônicas, com o poder conquistador”. DUSSEL, Enrique (org.). Historia liberationis. 500 anos de história
da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 10. Desse processo resulta a Cristandade colonial.
Esse projeto se materializa mediante a concessão do padroado. Segundo Azzi, o padroado representa a
“delegação pontifícia” por meio da qual os monarcas da península ibérica são associados aos interesses da Santa
em “estabelecer a instituição eclesiástica” nas “novas terras”. Cf. AZZI, Riolando. A cristandade colonial:
mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 46. O ato formal que instituiu o padroado espanhol é representado
pela bula do papa Júlio II, Universalis Ecclesiae, de 28 de julho de 1508. (Citada por SUESS, Paulo. (org.). A
conquista espiritual da América espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 254s)
89
de disciplina de uma instituição educacional. E ele demonstra devotar-se de modo sistemático
a essas tarefas.
O seu dia-a-dia é marcado pela ocupação com o atendimento de práticas religiosas.
Inicialmente cumpre o momento de cultivo pessoal da sua espiritualidade. Manifesta que
segue metodicamente a prescrição canônica dos exercícios espirituais no cotidiano. Até se
revela observador escrupuloso das prescrições rituais da vida religiosa por ele abraçada. Ao
longo do dia, em distintos momentos, aplica-se a cumprir as práticas da vivência pessoal da
meditação e contemplação próprias de todo membro integrante da Companhia de Jesus
204
.
Para bem atender aos compromissos inerentes ao seu ministério na comunidade, não deixa de
atender às exigências de sua condição de religioso professo.
A seguir, dedica-se a presidir as orações matutinas da comunidade reducional.
Acorre um grupo significativo de membros da povoação para cumprir o preceito do louvor a
Deus pelo raiar do novo dia. Durante o dia, em diferentes momentos, realiza encontros de
oração com as crianças. No final do dia, reúne novamente o povo para a oração e revisão da
vida diária
205
. Revela-se também nesse particular a pretensão de articular uma disciplina
própria de uma congregação religiosa e adaptar os fiéis a ela. Quer dar a impressão de que a
presença dos padres na redução é capaz de surtir o efeito esperado da observância religiosa da
membresia vinculada a seus cuidados.
A inserção dos indígenas na prática dos diversos ritos religiosos é conseguida pela
doutrinação. Tal aspecto demanda a dedicação de um tempo diário ao ensino da doutrina para
as crianças. No entanto, o que se revela mais desgastante e oferece maiores dificuldades ao
204
No relato “ordem do dia dos missionários”, Sepp menciona sua prática de tempos de contemplação e
meditação pessoal. Logo de manhã cedo, “vou à igreja, saúdo a Deus, ajoelho-me e faço minha meditação de
uma hora. Depois me confesso, quando estivermos a dois Padres.[...]Depois da Missa rezo meu Recess de um
quarto de hora.” Durante a manhã, “pelas dez e meia horas o rapazote sinal com o sino para o exame de
concência[sic]. Para isso fecho-me por um quarto de hora em meu quarto, examino meus pecados e omissões.”
Mesmo na hora do almoço, observa o preceito. “À mesa, o melhor dos tiples me em latim um capítulo da
Sagrada Escritura. Depois, um outro rapazinho em espanhol um trecho da Vida dos Santos e, pelo fim da
mesa, lê do martirológico ou do calendário dos Santos o trecho que corresponde ao dia.” Ainda no fim da tarde e
início da noite, “rezo então minhas horas sacerdotais.[...]Depois leitura espiritual, exame interior, preparação
para a meditação do dia seguinte”. SEPP, 1980, p. 152-154.
205
No seu escrito consta: “rezo o terço com o povo, depois a ladainha e faço com ele, em voz alta, o Actum
contritionis, contrição e arrependimento pelos nossos pecados”. SEPP, 1980, p. 154.
90
padre é o esforço de proporcionar o aprendizado dos ritos e práticas religiosas aos adultos
206
.
Seguidas vezes relata a observação da pouca capacidade deles para a memorização ou das
condições limitadas de aprendizado das questões teóricas.
A visita aos doentes constitui-se como uma das ocupações diárias do padre na
redução. Por vezes, a solicitação para o atendimento dos enfermos costuma repetir-se ao
longo do dia. Sepp apresenta alguns aspectos significativos dessa prática. Encontra os doentes
nas casas que oferecem precárias condições de moradia. Nessa situação, assiste acamados,
velhos, moribundos e afirma que “na pessoa desses pobres índios abandonados, encontro
realmente meu Jesus sofredor. Aqui, meu coração enche-se de consolo indizível, cada vez que
vou ter a um desses presépios do meu Senhor Jesus”
207
. E constata que, embora assim
acometidos por tais adversidades, eles o surpreendem pela maneira de portar-se ante o
sofrimento. “Mesmo numa enfermidade longa e dolorosa o índio não dará sinal de
impaciência ou de vontade, nem um só ai ou semelhante gemido, muito menos gemerá ou
gritará.”
208
Desse modo, ele próprio, ao realizar seu ofício de confortar os enfermos na
esperança, sente-se consolado ao deparar-se com tais circunstâncias.
Constitui parte significativa das atividades do padre na redução o cumprimento das
obrigações estritamente sacerdotais. A mais importante dentre elas consistia na celebração da
eucaristia (missa) e a realização da pregação para enlevo e edificação da comunidade. “Todos
os domingos e dias santos sermão e missa solene.”
209
Mediante a administração dos outros
sacramentos, tornava-se guia espiritual e cura de almas dos indígenas reduzidos.
Uma das práticas que merece destaque nos seus relatos é a administração do
sacramento do batismo. A admissão de adultos ao batismo era efetivada após um período de
catequização, sobretudo quando acontecia de haver novos adeptos na comunidade. Sepp relata
que batiza muitas crianças. “Batizei nesse breve espaço de tempo a umas cem crianças, muitas
das quais voaram logo para o céu, ao passo que outras ainda vivem.
210
Afirma que aos
206
Tal questão aparece manifesta na anotação de Sepp, quando afirma que o padre “precisa recitar diariamente o
terço com os adultos,[...]e dizer tudo à frente deles como às crianças pequeninas, porque esses velhos são tão
esquecidos, e de tão fraca memória, que por si mesmos mal são capazes de fazer o santo sinal da cruz”. SEPP,
1980, p. 125.
207
SEPP, 1980, p. 132.
208
SEPP, 1980, p. 132.
209
SEPP, 1980, p. 154.
210
SEPP, 1980, p. 154.
91
domingos, pela tarde, realiza essas celebrações. No entanto, em muitas ocasiões, é solicitado,
às pressas, durante o dia e até à noite, para batizar recém-nascidos em risco de vida.
A preparação dos jovens e seu encaminhamento para a realização do sacramento do
matrimônio também eram acompanhados pelo padre. As providências para o casamento eram
cuidadosamente tomadas para que se evidenciasse sua solenidade sem perder-se a
simplicidade de sua celebração. Desse modo, buscava ressaltar e firmar a prática da aliança
conjugal monogâmica.
Atender aos doentes e moribundos, ouvindo sua confissão e administrando-lhes o
sacramento dos enfermos, constituía ocupação diária do padre. Além disso, a celebração dos
ritos de encomendação e sepultamento dos mortos exigiam a dedicação do missionário. Tais
situações apresentavam-se como oportunidades para imprimir as noções cristãs na vida
cotidiana dos indígenas.
Outra tarefa com a qual o padre precisa ocupar-se é o encaminhamento das
celebrações das festas litúrgicas. Requerem o esmero e o esforço do missionário na sua
preparação. Atenção especial precisa ser dada às representações artísticas executadas em tais
ocasiões. Sepp destaca a importância desses elementos. “Aqui é particularmente necessário
entusiasmar os descrentes com coisas semelhantes e despertar-lhes e gravar-lhes com o
aparato litúrgico exterior uma inclinação interior para com a religião cristã.”
211
A força da
simbologia religiosa sobrepõe-se, dessa maneira, ao conteúdo doutrinal da iniciativa
missionária ou até se constitui enquanto tal.
Entre seus encargos, Sepp destaca a organização das solenes procissões públicas.
Eram realizadas nas celebrações dos dias de festas mais solenes, “principalmente na festa do
Corpo de Deus”
212
. Para tais ocasiões, a praça central da redução era ornamentada
especialmente. Música, danças e diversas expressões de piedade contribuíam para abrilhantar
tais rituais religiosos. Todos os preparativos e a animação desses eventos estavam aos
cuidados do padre.
211
SEPP, 1980, p. 153.
212
SEPP, 1980, p. 153.
92
As atenções do padre na redução voltam-se também para as questões práticas
relacionadas aos ofícios litúrgicos. Precisa zelar pela boa organização e ornamentação dos
templos. Ocupa-se em cuidar e manter em boa ordem os diversos utensílios necessários para
as celebrações. Providencia a aquisição e o aprimoramento do aparato litúrgico
213
visando
assegurar maior solenidade aos atos religiosos da comunidade.
Esse conjunto de práticas, mencionadas por Sepp, tinha por finalidade a adequada
integração e manutenção dos indígenas na vida da comunidade. Isso significa que se
considera já realizada uma primeira etapa no itinerário missionário: a inserção do indígena na
redução. Tal situação leva a ter em conta a observação de Hoffmann, quando afirma:
A atividade de sacerdote de Japeju não corresponde à imagem que Sepp havia
formado na Europa de um missionário. Não pagãos a converter, os índios do
povoado são cristãos de segunda ou terceira geração
214
.
A referida observação é feita em relação ao início de suas atividades nas missões.
Cabe ressaltar que os ulteriores encargos não apresentam alterações significativas. Na maioria
das reduções em que atuou, ocupava-se com o atendimento de tais práticas e necessidades das
comunidades. É de considerar ainda outro aspecto interessante. Embora a prática habitual da
Companhia fosse a de manter dois padres atuando numa mesma redução simultaneamente, na
maior parte do tempo em que esteve nas missões, padre Sepp desempenhava seu encargo sem
contar com um auxiliar fixo
215
.
Essa característica própria de sua atuação nas missões fica confirmada e aprofundada
na medida em que lhe são confiados os encargos específicos de cura-pároco em diferentes
períodos em distintas reduções. Embora nem sempre esteja especificada essa função, pode-se
aventar a hipótese de que a tenha desempenhado pelo fato de atender, na maior parte do
tempo, sozinho, à redução onde atuava. Nesse caso, configuravam-se as atribuições próprias
213
Aparato litúrgico. Expressão usada para fazer referência ao conjunto de meios e recursos utilizados no
desenvolvimento das práticas religiosas, mormente as de caráter cúltico. Esse conjunto pode ser constituído por
uma grande variedade de elementos. Como exemplo disso podem ser considerados desde utensílios, alfaias,
ornamentos, instrumentos musicais e até, inclusive, o próprio jeito de dinamizar esses distintos elementos.
214
La actividad de sacerdote de Yapeyú no corresponde a la imagen que Sepp se ha formado en Europa de un
misionero. No hay paganos a convertir, los indios del pueblo son cristianos en segunda o tercera generación.”
HOFFMANN, 1971, p. 105.
215
Ele próprio o afirma em Carta de 1721, dirigida aos padres da Companhia em sua Província: “por esta misma
razón, la escasez de misioneros, tuve yo que trabajar solo y sin compañero durante casi treinta años entre los
indios”. SEPP, 1974, p. 142.
93
desse ofício. Algumas dessas ocupações são mencionadas por ele próprio
216
. Uma tabela
cronológica da vida de padre Sepp
217
, elaborada por Mayr, conta de sua atuação como
missionário, ao longo de 41 anos, em onze povoados: Japeyu, Itapúa, Santa Maria de , San
Ignácio Guazu, San Carlos, San Javier, São Miguel, São João Batista, São Luiz Gonzaga, La
Cruz e San José.
Os anos finais de sua vida transcorreram no povoado de São José. Quanto à data de
sua morte, anota Rabuske: “Se algum tempo se titubeou acerca do dia de sua morte, hoje não
mais se duvida de que foi aos 13 de janeiro de 1733 em San José”
218
. E acrescenta uma
consideração significativa sobre a atuação de Sepp nas reduções. “Pe. Sepp alcançou 77 anos
de vida, viveu 58 deles na Ordem religiosa da Companhia de Jesus, que ele tanto amava, e
passou 41 anos de trabalhos missionários entre os seus queridos guaranis, cujos corações
conquistou para Cristo e os céus.”
219
Algumas ponderações finais se tornam oportunas. Considerando que a questão do
lugar social constitui um aspecto relevante para a produção da história, cabe destacar que o
missionário Sepp passa a maior parte de sua vida entre os indígenas e desde esse contexto
elabora seus escritos aqui nomeados pelo conceito correspondência epistolar. As suas
formulações mais significativas acerca das representações de identidade m como referencial
de compreensão a realidade por ele vivenciada na atividade missionária. Isso não significa
que ele tenha adotado e assumido a perspectiva, o modo de pensar próprio dos indígenas. Sua
maneira de considerar o mundo estava marcada e influenciada, basicamente, pela sua
condição de jesuíta europeu na América. Por outro lado, ficou evidenciado que na
constituição de sua identidade missionária houve um processo de alterações significativas que
se tornou perceptível nas suas articulações discursivas.
216
Inicia sua atuação em Japeyu. “A mim coube logo a primeira localidade: Japeyu, dedicada aos Santos Três
Reis.” SEPP, 1980, p. 124. Adiante menciona sua ida para a redução de N. Sra. da e cita o ano de 1695:
“mandou-me a obediência para a redução de Nuestra Señora de Fee. É esta a maior de todas as reduções, e muito
populosa”. SEPP, 1980, p. 181. Em outra circunstância lembra: “No ano de 1697 sou enviado à maior de todas
as Reduções, a de São Miguel”. SEPP, 1980, p. 198. E ainda apresenta que lhe foi confiada a administração de
duas reduções. “Recebo ordem do R. Pe. Provincial de tomar sobre mim o cuidado pastoral das duas Reduções, a
saber, da povoação de São Miguel, da qual nasceu esta nova colônia, e da povoação de São João Batista, na qual
já vinha eu mourejando algum tempo.” SEPP, 1980, p. 224.
217
Vide ANEXOS, ao final deste trabalho.
218
RABUSKE, 2003, p. 202.
219
RABUSKE, 2003, p. 203.
94
Torna-se significativo apresentar e ressaltar outros aspectos nessa análise. A reflexão
articulada sobre a trajetória de formação e atuação de Sepp evidencia dimensões relevantes da
escrita da História. O missionário, ao produzir sua história mediante a elaboração da
correspondência epistolar, vai constituindo a consciência de sua identidade. Verifica-se que
ele institui o significado de si e de sua atuação em contraste com a realidade com a qual entra
em contato. Gradativamente vai percebendo e expressando as diferenças que se tornam
evidentes e são expressas em seu discurso.
Os elementos constitutivos de seu imaginário missionário, tais como a aspiração ao
martírio, a disposição de converter pagãos e a preocupação com a salvação de almas,
configuram o processo de elaboração da sua identidade. No entanto, um outro aspecto
característico da reflexão sobre o imaginário vai sendo evidenciado. Suas formulações,
articuladas nas correspondências, vão refazendo os elementos constitutivos de seu imaginário.
Evidencia-se, nessa dinâmica, o processo de construção do imaginário missionário. Nesse
sentido, na medida em que se auto-imagina e expressa como protagonista por excelência, vai
também modificando a compreensão que tem de si e de sua tarefa. A constituição do
significado de seu papel de missionário vai sendo alterada no processo de explicitação dos
contrastes entre a realidade imaginada e as situações concretas nas quais ele representa-se
envolvido.
Cabe considerar ainda uma outra dimensão relevante. Trata-se da dinâmica de
utilização de figuras simbólicas para expressar elementos característicos de sua identidade.
Para ressaltar, por exemplo, a sua condição de agente que se responsabilizado do encargo
de supervisionar as iniciativas na redução ele serve-se da expressão “o missionário precisa ser
tudo para todos”. Observa-se, nesse particular, nas suas formulações discursivas, sua
capacidade de empregar os meios próprios da retórica como forma de dar ênfase ao que ele
afirma.
A construção do imaginário missionário de Sepp está estreitamente vinculada ao
processo de articulação das representações de identidade expresso em sua prática discursiva.
Essa dinâmica é também influenciada pela consideração da alteridade que se insinua nas suas
narrativas. Tal questão será abordada no próximo capítulo.
3 A ALTERIDADE INDÍGENA
A experiência do contato com o distinto de si provoca no ser humano o impacto da
diversidade. O fato de deparar-se com o outro diferente torna-se decisivo para a articulação de
discursos que expressam percepções da realidade. Os missionários do período colonial
experienciaram essa dinâmica de um modo muito intenso. Seus relatos são testemunhas
dessas situações vivenciadas. O contato com um mundo que se apresentava novo para eles
despertava-os para observá-lo e conhecê-lo. Nos seus escritos aparecem diversos elementos
que possibilitam articular características de sua visão da alteridade dos povos nativos com os
quais se encontraram.
A entrada na ação missionária coloca Sepp em contato com os indígenas
220
, o que o
deixa impressionado. Em seus relatos apresenta vários elementos denotando a sua percepção
dos índios. As impressões que descreve deixam transparecer como fica chocado ao se deparar
com a realidade dos indígenas entre os quais desenvolveu sua ação missionária. Ele comunga
da mentalidade dos missionários do seu tempo que, segundo Meliá, “iam ao encontro do índio
com preconceitos mais ou menos fundados e gerais, formados previamente ao encontro”
221
.
Essa concepção prévia se confirma no contato que ele tem com a realidade.
Ele não estava preocupado em apresentar uma descrição minuciosa dos indígenas.
Seu interesse não era o de conhecer e reconhecer o seu modo de viver. Ele estava movido pela
intenção missionária. Tais aspectos aparecem demonstrados em distintas oportunidades. No
220
No texto de Sepp, os povos entre os quais realizou sua ação missionária são designados como índios ou
indígenas. Raras vezes menciona-os como “índios paraguaios”. Algumas vezes faz referência específica aos
chamados yaros.
221
Iban al encuentro del indio con prejuicios s o menos fundados y generales, formados previamente al
contato”.MELIÁ, Bartomeu. Para una historia de la evangelización en América latina. In: CEHILA. Para una
historia de la evangelización en América latina. III Encuentro latino-americano de CEHILA en Santo
Domingo (1975). Barcelona: Nova Terra, 1977. p. 18.
96
entanto, em seus escritos é possível detectar vários elementos que permitem configurar um
quadro que revela sua visão sobre os índios com os quais entrava em contato. A hipótese em
argumentação nesse estudo é de que o imaginário missionário de Sepp fica afetado pelas
representações de alteridade que se insinuam no seu discurso.
A tarefa que se apresenta é a de considerar e analisar as representações da alteridade
indígena expressas nos escritos de Sepp. Trata-se de evidenciar as maneiras como percebe o
outro distinto com o qual entra em contato. Cabe também assinalar aspectos característicos
dos indígenas que são ressaltados em seus relatos. A abordagem dessas dimensões de seu
discurso pretende tematizar e problematizar a questão do contato entre sujeitos de distintas
culturas, bem como considerar as relações entre indivíduos de grupos culturais diversos.
Para consolidar tal intento, torna-se necessário considerar o conceito de alteridade.
Essa questão está presente nas articulações discursivas do Ocidente. Aparece, inclusive, como
elemento organizador de suas práticas e teorizações. A relação com o outro se constitui como
elemento essencial da história ocidental
222
. E é tão fundamental tal dimensão que a construção
do discurso sobre o outro se encontra profundamente vinculada ao processo de elaboração da
consciência de si mesmo. Trata-se de duas noções – identidade e alteridade – relacionais.
Esse aspecto está estreitamente relacionado a uma questão básica já tematizada
anteriormente. Considera que a identidade é relacional: precisa de algo de fora dela para
existir. O processo de sua constituição encontra-se marcado pela diferença. Ela é construída
pelo confronto com a alteridade
223
. Essa dinâmica acontece mediada pelas representações
simbólicas. A identidade depende da diferença que é estabelecida por sistemas
classsificatórios. Esse estabelecimento de fronteiras entre distintas realidades aparece
configurado pelas influências de sistemas sociais e simbólicos.
Mediante o conceito de alteridade, nomeia-se a emergência do outro distinto. Mais
do que apenas diferente, ele manifesta-se na sua condição de exterioridade irredutível e
intransponível. Tem por pressuposto o reconhecimento da pluralidade e diversidade como
222
Nas reflexões sobre a escrita da História, foi abordada essa temática da complexa relação com a alteridade,
conforme as considerações do item “1.1.4 A alteridade na narrativa”. (Ver acima)
223
Ruiz tematiza essa questão afirmando: “a alteridade é a referência primeira e concomitante à constituição da
própria identidade. O outro não é alguém posterior à configuração da pessoa, senão que constitui a condição de
possibilidade para sua existência”. RUIZ, 2003, p. 55.
97
marcas características da condição humana. Isso não significa, no entanto, que a constatação
da pluralidade implique necessariamente o reconhecimento da humanidade do outro.
A abordagem desses aspectos aponta para outro conceito referencial. A noção de
estigmatização está vinculada ao procedimento, adotado por um dado grupo ou indivíduo, de
qualificação de certos grupos “como pessoas de menor valor humano”
224
. Ponto de partida
para tal atitude é a consideração de que lhes falta a virtude humana superior, algum carisma
distintivo que é auto-atribuído a quem os estigmatiza
225
. O mecanismo subjacente é a
representação mediante a qual um grupo mais poderoso ou indivíduo instituído de autoridade
“se pensam a si mesmos (se auto-representam) como humanamente superiores”
226
.
Nessa dinâmica, o indivíduo ou grupo que se considera superior estabelece meios e
mecanismos de exclusão dos membros do grupo considerado inferior. Articula modos de
supressão de contato social entre essas parcialidades. Tal procedimento transforma-se numa
espécie de fator regulativo, de exercício de controle social das iniciativas dos grupos em
questão. Constitui a forma de lançar um estigma sobre os outros. Mediante a utilização desse
instrumental busca a preservação de sua identidade e afirmação de sua superioridade, ao
mesmo tempo em que mantém o grupo estigmatizado na sua condição de inferiorização.
Como se processa a mecânica da estigmatização? O ponto de partida reside na
capacidade que tem o grupo ou indivíduo de atribuir a si mesmo um carisma superior. No
caso do grupo, Elias e Scotson afirmam que “todos os que ‘estão inseridos’ neles participam
do carisma. Porém têm que pagar um preço”
227
. Seus integrantes precisam assumir as normas
específicas do grupo. Tal norma passa a constituir o suporte de manutenção da identidade e de
preservação da superioridade. Cumpre a função de evitação de contato com o grupo
224
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 19.
225
Elias e Scotson desenvolvem sua reflexão a partir da consideração de grupos por eles denominados de
estabelecidos (entendidos como situados num dado espaço geográfico e/ou social) e outsiders (conceito que
menciona sujeitos que chegam a esse dado espaço onde se encontram os mencionados como estabelecidos).
Nas relações entre os indivíduos pertencentes a esses respectivos grupos eles observam e analisam os
mecanismos da estigmatização e abordam a dinâmica da pureza e contaminação. A configuração
estabelecidos/outsiders não se verifica de modo similar nas representações das relações de Sepp com os
indígenas. (Nesse caso Sepp é considerado como elemento “estabelecido” por representar um indivíduo
instituído de autoridade.) No entanto, creio que a perspectiva sinalizada pelo construto teórico de Elias e Scotson
possa servir como instrumental de análise na abordagem das formulações de Sepp acerca da alteridade indígena.
226
ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 19.
227
ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 26.
98
estigmatizado para não haver riscos de contaminação com as características próprias do
estigma atribuído ao mesmo.
Algumas manifestações características de estigmatização são apresentadas por Elias
e Scotson. Eles mostram que um procedimento geral consiste em atribuir aos que são
considerados inferiores elementos e termos depreciativos de sua condição. Nesse processo são
observados alguns traços comuns. Os indivíduos integrantes desses grupos são vistos, em
geral, “como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros”
228
. Desse modo, ficam
representados e qualificados os sintomas de inferioridade humana atribuída a eles.
Uma dinâmica semelhante parece verificar-se em relação a outro conceito
fundamental associado ao de estigmatização. É constituído pelo binômio pureza-
contaminação. A reflexão sobre essa noção revela-se oportuna para a análise de aspectos
constitutivos da temática em estudo. A abordagem das representações de Sepp acerca da
alteridade indígena implica sua tematização.
Uma forma significativa de depreciar os estigmatizados (outsiders) consiste em
associar-lhes a condição de não serem particularmente limpos. A eles é atribuído o opróbrio
da imundície, são comumente tidos como sujos e quase desumanos. Ao contrário, o grupo que
se considera superior orgulha-se de sua pureza e limpeza. Para intensificar a eficácia desse
mecanismo, articula-se uma forma de manutenção de exclusão. “O sentimento difundido de
que o contato com membros dos grupos outsiders contamina, observado nos grupos
estabelecidos, refere-se à contaminação pela anomia e pela sujeira, misturadas numa coisa
só.”
229
Desse modo, fica reforçado o alerta para o risco da contaminação e a necessidade de
preservação da pureza identitária.
Essas perspectivas de análise constituem referenciais significativos para a abordagem
das formulações discursivas
230
presentes nos relatos de Sepp acerca de sua compreensão dos
228
ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 27.
229
ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 29.
230
Esse conceito expressa a dinâmica inerente ao processo de produção de relatos e à criação de narrativas.
Constituem formulações enquanto resultados de práticas escriturísticas. Os textos delas resultantes enunciam a
proposição de sentidos e significados atribuídos à realidade apresentada. São discursivas na medida em que
traduzem no texto assim estruturado as idéias e percepções que seu autor tem da realidade relatada. Ao longo da
tese vão sendo usadas as expressões “formulações discursivas”, articulações discursivas” e “elaborações
discursivas” com esta mesma acepção.
99
indígenas. Vários desses aspectos serão considerados na reflexão que vai sendo elaborada ao
longo desse capítulo. Nos próximos capítulos algumas dessas dimensões serão retomadas.
3.1 Índios bárbaros e selvagens
A navegação fluvial que conduz os missionários, de Buenos Aires até as reduções,
proporciona ao padre Sepp o contato com os índios yaros. Na narrativa desse acontecimento,
ele apresenta diversos elementos configuradores de sua visão sobre os mesmos. Caracteriza
aspectos marcantes do seu modo de viver. Expressa que se trata de povos ainda não reduzidos,
isto é, indígenas que não estão integrados ao sistema das reduções.
No seu relato apresenta características peculiares a esses povos não reduzidos. No
entanto, em diversos momentos aplica aspectos dessa formulação também para caracterizar o
modo de ser dos indígenas pertencentes às reduções. Sua visão dos indígenas parece ser
generalizante. Atribui traços característicos semelhantes a indivíduos de povos diversos. Tal
procedimento revela uma prática típica do período colonial: reduzir o outro diferente, a
diversidade, sob a unicidade do mesmo conceito geral.
Seu contato com o outro diferente, ao mesmo tempo, o fascina e causa nele um
estranhamento. Manifesta em seus escritos que sente uma disposição que o aproxima, que o
leva a empenhar seus esforços em favor desses indígenas. Por outro lado, expressa a
percepção do contraste entre seu modo de viver regrado, disciplinado e rigoroso em relação ao
estilo de vida dos índios que ele descreve.
A dispersão dos índios constitui um dos aspectos constatados e relatados. Não se
encontram reunidos em um espaço estruturado. Menciona que vivem em bandos. “Todo um
bando de bárbaros selvagens veio correndo em direção de nossas embarcações.”
231
Tal
condição os diferencia do modo de vida considerado como civilizado. Esse aspecto constitui
um indicativo para serem nomeados e caracterizados como bárbaros. No imaginário de Sepp,
a vida humanizada está naturalmente associada à noção comunitária. No seu entender, a vida
em sociedade está em conformidade com a natureza humana. Disso decorre que a vida na
dispersão se encontra em contraposição com o viver humanizado.
231
SEPP, 1980, p. 112.
100
A situação de vida na selva constitui outro indício característico de seu modo de
viver. Tal condição causa impacto na percepção do autor dos relatos. Leva-o a considerar os
índios como animais selvagens. Dado que o mundo da selva se apresenta como realidade
desconhecida e estranha, a vida dos indígenas nesse estado é comparada com a de animais
ferozes, ainda não domesticados. Desse modo, parecem viver no limiar entre a humanidade e
a animalidade
232
.
Para o europeu seiscentista, a nota distintiva da humanidade é a faculdade e o uso da
racionalidade. O exercício dessa capacidade faz o ser humano superar a sua condição de
animalidade. Tal dimensão, no entender de Sepp, parece não se verificar na forma de vida
manifestada pelos indígenas com os quais se depara. Essa situação legitima o qualificativo de
bárbaros atribuído por ele aos mesmos.
Diversos indícios dessa condição de rbaros e selvagens atribuída por Sepp aos
indígenas são apresentados em seus relatos. Um dos sinais característicos, demonstrativo de
sua condição de selvagens, é a sua nudez. “E os bárbaros selvagens e deshumanos vinham
muitas vezes completamente nus.”
233
Esse aspecto aparece mencionado repetidas vezes em
seus escritos. Tal realidade faz os indígenas assemelhar-se aos animais, o que não se coaduna
com a prática da catequização. Além disso, a nudez é apontada como uma das causas que os
torna susceptíveis a contrair doenças
234
.
Outras vezes observa que os indígenas andam escassamente vestidos. Quando a
usam, sua vestimenta é muito rudimentar, consistindo geralmente numa pele de animal. Na
maioria das vezes, apenas os mais importantes dentre eles usam vestimentas. “Uma pele de
veado destas veste o cacique-chefe, que, de resto, sempre é o mágico e feiticeiro, ao passo
que a plebe ordinária veste uma pele em torno do corpo até os joelhos.”
235
Nesse caso, a
232
Gambini observa que “na mente de um jesuíta seiscentista o indígena era mais um animal do que um ser
humano”. GAMBINI, 1988. p. 143.
233
SEPP, 1980, p. 119. Em outra passagem, Sepp observa que “as meninas e os rapazes andam como Deus os
criou, em puris naturalibus”, p. 113. Muratori qualifica a nudez dos índios como indecência à qual os europeus
não estão acostumados. Cf. MURATORI, Ludovico. O cristianismo feliz nas missões jesuíticas do Paraguai.
Santa Rosa: IEDB, 1993. p. 33.
234
Sobre essa questão ele anota: “esse povo é sumamente sensível ao frio. Acresce que são muito mal vestidos,
pela metade, e com esses resfriados vem a morte. De resto, o frio mais duro de junho não é tão forte como na
Europa em abril”. SEPP, 1980, p. 129.
235
SEPP, 1980, p. 113.
101
veste parece bem mais cumprir uma função social de distinção entre os indivíduos do grupo
do que servir de abrigo e proteção.
Manifesta que a aparência dos indígenas não é atraente. “Na cabeça não têm outra
coisa senão seus cabelos pretos, compridos, soltos e desgrenhados.” Usam adornos
rudimentares em seu corpo, tais como pequenos pedaços de osso ou madeira nas orelhas
furadas ou como ornamento dos lábios, proporcionando-lhes “um aspecto muito selvagem”.
Seus rostos são arredondados, “não pretos como os dos negros africanos, mas pardo-escuros
ou cinzento-claros e horríveis de ver-se”
236
.
Menciona também que, entre eles, encontram-se “alguns recortados e retalhados em
todo corpo”. Estas cicatrizes, sinais de tatuagem, encontravam-se apenas nos mais robustos e
mais proeminentes entre eles. Sepp caracteriza-as como “laceração e esfoladura cruel” a que
os mesmos se submetem, suportando-as, sem gemidos, na primeira juventude. Induzem-no a
dizer que eles são “meros mártires do demônio, que aliás macaqueia tudo na Igreja cristã”
237
.
O relato concede uma atenção especial para a caracterização das mulheres dos yaros.
O missionário manifesta estar impressionado com a aparência do elemento feminino.
“Quando virdes pintada a imagem duma Fúria infernal ou dum fantasma, duma medusa ou
megera, então tereis visto uma mulher indígena dos Yaros!”
238
Diferentes aspectos da figura
da mulher são descritos: cabelos desgrenhados, rosto enrugado, pescoço escamado e o corpo
descoberto.
O mais significativo dessa descrição é a qualificação simbólica atribuída a
determinados aspectos distintivos da mulher. O seu cabelo amarrado é comparado a serpentes.
Seus adornos são considerados como produtos de astúcias do demônio. E no seu conjunto ela
é apresentada como um elemento perigoso por lembrar as hostes do inferno e suas práticas e
seduções. Na consideração desses aspectos, torna-se oportuna a observação de Gambini:
“como se percebe, fica aí patente a incapacidade de aceitar uma aparência humana distinta do
habitual, baseada no elementar preconceito de que o que não é como nós deve ser do
236
As três afirmações destacadas no parágrafo se encontram em SEPP, 1980, p. 113.
237
SEPP, 1980, p. 114, onde constam os elementos citados nesse parágrafo.
238
SEPP, 1980, p. 113.
102
diabo”
239
. Nas formulações articuladas por Sepp acerca da alteridade indígena, evidenciam-se
elementos significativos dessa dinâmica.
Um dos aspectos observados e referidos por Sepp diz respeito às condições de
moradia dos índios. Afirma que avistaram “as suas cabanas, que não passam de simples
paredes de junco traçado e armados do lado donde sopra o vento”
240
. Com esses aspectos,
descreve as casas do yaros. A situação não difere muito quando apresenta a aparência das
casas nas reduções. Anota que as várias peças de uma residência se encontram reunidas num
só espaço.
Saleta, cozinha, dormitório e adega são a mesma coisa, isto é, nada mais do que uma
choça de palha trevosa. dentro dormem pai e mãe, irmão e irmã, filhos e netos,
quatro cachorros e três gatos, e maior número ainda de camundongos e ratos, e
pululam os grilos e certos coleópteros, que no Tirol se chamam de baratas e
miriápodes. É fácil adivinhar o cheiro insuportável que tudo isto emana, numa
choupana tão apertada, baixa e pequena
241
.
O mesmo aspecto rudimentar é observado em relação aos utensílios domésticos. São
extremamente poucos, muito rústicos, que mal oferecem condições para o preparo dos
alimentos. Consistem em algumas poucas vasilhas de terra cota, alguns porongos ocos usados
para buscar água. Móveis praticamente não existem. Alguma pele de animal serve de cama.
Alguns dentre os principais do grupo dispõem de uma rede de dormir.
Essa condição de vida dos índios, descrita por Sepp, leva-o a considerá-los como
seres dignos de sua comiseração. Qualifica-os como “pobres coitados” e assim se expressa:
“estes pobres e simples índios, esquecidos pelo mundo e por ele abandonados”
242
. Atesta que
encontra o próprio Cristo sofredor “na pessoa desses pobres índios abandonados”
243
. E pede
aos destinatários de suas cartas para, em suas preces, “lembrar-se desses inúmeros povos sem
fé, que ainda permanecem nas trevas da morte eterna”
244
.
Nessas narrativas de Sepp, indícios de uma visão negativa, pessimista do mundo.
No seu entender, este está sob o domínio do demônio. Os índios, ainda não reduzidos, estão
239
GAMBINI, 1988, p. 160.
240
SEPP, 1980, p. 115.
241
SEPP, 1980, p. 132.
242
SEPP, 1980, p. 133.
243
SEPP, 1980, p. 132.
244
SEPP, 1980, p. 91.
103
entregues a esse domínio. É preciso arrancá-los da sua submissão ao poder das trevas, do
espírito do mal. Essa é a noção que ele demonstra ter sobre sua tarefa missionária. Entende
que sua intervenção deva favorecer a passagem deles para um novo domínio: serem
introduzidos no redil de Cristo, mediante sua inserção e manutenção continuada nas reduções.
A caracterização dos índios como bárbaros e selvagens não impede Sepp de
reconhecer que neles demonstração de acolhida para com os estranhos. Ao encontrar-se
com eles, observando a maneira como vêm ao seu encontro, afirma que “havia uma grande
amabilidade nesses homens selvagens e primitivos”
245
.
A forma de caracterização dos indígenas, formulada nos discursos de Sepp, apresenta
indícios bastante evidentes de ativação de mecanismos de estigmatização. Elias e Scotson
explicitam aspectos de sutilezas inerentes a essa dinâmica. Demonstram que, pelo fato de
atribuir caracteres considerados como inatos, “o grupo estigmatizador é eximido de qualquer
responsabilidade: não fomos nós [...] que estigmatizamos essas pessoas e sim as forças que
criaram o mundo elas é que colocaram um sinal nelas”
246
. A sutileza consiste em considerar
marcas definidoras de inferioridade atribuídas como naturalmente inerentes à condição do
grupo estigmatizado. Tal modo de articular esses aspectos evidencia-se nas formulações
discursivas presentes nos escritos de Sepp.
3.2 Indígenas vorazes e preguiçosos
Entre os elementos presentes no discurso de Sepp acerca de sua visão sobre os
índios, duas características aparecem destacadas. Repetidas vezes tais aspectos são
mencionados. Embora não intrinsecamente interligadas, elas podem ser percebidas de maneira
associada uma a outra. Configuram um modo de ser atribuído aos indígenas, que lhes confere
uma marca distintiva. A voracidade e a preguiça são ressaltadas como indícios dessa
condição.
Uma das dimensões típicas da vida desses índios e que impressiona o missionário é a
sua voracidade. Ele observa que “tão voraz é este povo selvagem indígena, que, enquanto um
quarto de boi vai assando dum lado, vão cortando pedaços do outro. Assim o assado é
245
SEPP, 1980, p. 113.
246
ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 35.
104
devorado enquanto se assa”
247
. Fica evidenciado o contraste flagrante, a desproporção entre a
moderação própria do modo do europeu alimentar-se e o jeito desmedido de comer do
indígena. O fato de mencionar que a carne é devorada demonstra tal percepção.
Um indício marcante da voracidade desse povo aparece manifestado na quantidade
de carne que consome. Nesse particular, o relato não esconde o exagero, quando expressa que
“dois índios devoram com facilidade um boi todo, em uma ou duas horas”. Desconsiderados
esses excessos, os relatos informam que diariamente uma equipe de carneadores prepara a
carne que é distribuída duas vezes ao dia para todos no aldeamento.
A pressa ou a rapidez no ato de comer também fica ressaltada como indício
característico da condição de indígena voraz. São rápidos em matar uma rês, observa o autor e
afirma que são ainda mais rápidos no comer. Algumas expressões usadas para descrever esse
aspecto são significativas. Observa que cortam pedaços de carne, mal deixam que esquente
sobre o fogo, e “já a enfiam na bocarra voraz, devorando-a”. Além disso, anota que alimentos
distribuídos para o dia todo são consumidos de imediato
248
.
O modo de comer a carne também é descrito como aspecto característico dessa
voracidade. “São tão dados ao consumo da carne e a ela acostumados, que a comem sempre
sem sal, sem pão, meio crua e sangrada, e nós não podemos desacostumá-los desse mau
costume, por mais que nos esforcemos.”
249
Mais de uma vez Sepp faz referência a este
estranho proceder. E lembra que até os doentes, aos quais é enviada uma porção de carne bem
temperada e bem cozida, a recusam, preferindo a carne meio crua. Observa também, e
caracteriza como selvagem, a atitude das mães que em vez de oferecer leite materno a seus
filhos lhes dão uma tira de carne crua da qual chupam o sangue
250
. O estranhamento
manifestado pelo autor dos relatos em relação a esses modos de proceder revela, em suas
articulações discursivas, o medo da contaminação. Indica como elemento integrante de seu
imaginário missionário a preocupação em manter a pureza de sua identidade.
247
SEPP, 1980, p. 70. O dado da voracidade também é mencionado por MURATORI, 1993, p. 44.
248
Esse aspecto aparece assim descrito: “se o missionário distribui ao meio-dia a ração para tarde, então se
sumiu”. SEPP, 1980, p. 147.
249
SEPP, 1980, p. 117.
250
A menção deste fato é ocasião para ele qualificar as mães como “tigres sanguinários, verdadeiras megeras e
fúrias infernais”. SEPP, 1980, p. 114.
105
Espanta-se o autor que os índios “comem tão assustadora quantidade de carne crua,
muito mais que o estômago possa digerir”
251
. E ele caracteriza tal ato como ‘refeição bestial’.
Constata que após realizarem tal refeição ficam deitados na água ou sobre a areia para que o
estômago possa fazer a digestão. O fato de comerem a carne crua e em quantidades tão
grandes é apresentado como causa e razão da curta duração de sua vida. Sepp observa que a
carne crua se torna putrefata nos seus ventres e oportuniza o aparecimento de vermes
causadores de doenças. E isso provocaria a sua morte prematura.
Por mais de uma vez, o missionário menciona o fato do indígena lavrador a quem é
confiada uma junta de bois para lavrar a terra. Esse, ao invés de aproveitar a força dos animais
para arar uma grande quantidade de terra, em sua preguiça, logo cansa. E, não satisfeito, mata
um dos bois. Usa a madeira do arado para fazer fogo. E, apenas aquecendo a carne sobre as
chamas, devora-a. Nesta empreitada, é ajudado por sua companheira e seus filhos. Sobre tal
tipo de acontecimento, ele assim se expressa:
Aos europeus mais afeitos à virtude da temperança isto é incrível, não assim ao Pe.
Antônio, que conhece por experiência quotidiana, manifesta, ocular e palmar estes
comilões. E que foi feito do arado, do jugo? O fogo queimou e consumiu a ambos.
Com este fogo, o voraz americano assou o próprio boi de arado, em companhia de
sua mulher, que cooperou aplicadamente com o marido. Quem não ficará estupefato,
quem não se rirá, ou antes, não se indignará com este bárbaro cristão?
252
A voracidade dos indígenas torna-se ainda mais acentuada quando relacionada a uma
outra peculiaridade que, segundo Sepp, lhes é inerente: eles não eram previdentes. Tal aspecto
pode ser constatado da seguinte maneira: quanto mais alimentos possuíssem, mais eles
comiam. Se o missionário não estava atento para impedi-los, seriam capazes de comer todas
as colheitas e inclusive as sementes necessárias para semear no ano seguinte. “Que é que faz o
índio glutão? Pega da semente, que ele deveria confiar ao seio da terra tão fértil e da qual
poderia esperar uma segadura abundante, e a enfia em seu papo voraz.”
253
Tal situação mostra
simultaneamente essas duas características marcantes: a voracidade e a preguiça.
Essa última característica é muito ressaltada nos relatos. Em diferentes circunstâncias
é feito referência a esse aspecto. até certa insistência em afirmar que a preguiça constitui
uma dimensão muito evidente na vida dos indígenas. Sepp observa que a preguiça é tão
251
SEPP, 1980, p. 128.
252
SEPP, 1980, p. 204s.
253
SEPP, 1980, p. 146.
106
saliente que o índio chega a ponto de comer toda a comida ao meio-dia para que à noite se
poupe ao esforço de prepará-la.
O preparo e o cultivo da terra não têm sucesso devido à preguiça deles. Os indígenas
são tão preguiçosos que mal dão conta de plantar o pequeno lote de terra que é confiado a
cada família. Cultivam lote muito pequeno, não por falta de terra, mas por pura preguiça. E
isso, muitas vezes, às custas de pressões por parte do missionário e até com o recurso dos
castigos físicos. “Nós não conseguimos fazer com que os índios, em sua pura preguiça,
semeiem mais de uma ou duas rocinhas de 18 passos de grão turco. E mesmo isto o
conseguimos com tundas.”
254
A indolência dos indígenas, segundo o missionário, manifesta-se de distintas
maneiras. A falta de persistência na execução de uma determinada tarefa constitui um indício
marcante. O lavrador, por exemplo, inicia a arar a terra e logo se mostra cansado, aborrecido
com tal trabalho. A pouca aplicação na realização das atividades também é mencionada. Sepp
afirma que seus agricultores preguiçosos apenas se esforçavam quando eram inspecionados
pelo padre ou pelo capataz encarregado da redução.
O descaso e desleixo com os produtos do trabalho aparecem como sinais evidentes
da falta de esforço associado ao caráter de imprevidência. “Aos europeus isto parecerá
incrível, mas aqui entre nós é a dura verdade, que os índios deixam, por pura preguiça,
estragar as espigas de milho maduras e amarelas, se os Padres não os ameaçam expressamente
com 24 pancadas de sova como castigo.”
255
Tal aspecto é enfatizado como um sinal
característico dessa dimensão que, segundo Sepp, faz parte do modo de ser e viver desses
indígenas.
Esse aspecto da negligência e da preguiça em relação ao trabalho aparece
manifestado tanto nos homens quanto nas mulheres indígenas. A pouca disposição mostrada
pelos homens para semear adequadamente os campos leva o missionário a expressar que estão
marcados por uma ‘inata preguiça’. E a vontade mostrada pelas mulheres na fiação do
algodão para a confecção de tecidos faz ele afirmar que “as nossas índias, assim como não
254
SEPP, 1980, p. 146. Haubert observa que a própria legislação colonial espanhola considerava os índios como
seres preguiçosos por natureza e que se devia obrigá-los a trabalhar. HAUBERT, Maxime. Índios e jesuítas no
tempo das missões. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1990. p. 103.
255
SEPP, 1980, p. 149.
107
ficam aquém dos maridos na voracidade, igualam-nos em preguiça: não querem por preço
algum ocupar-se neste trabalho”
256
.
A consideração dos indígenas como vorazes, preguiçosos e imprevidentes constitui
um procedimento característico de estigmatização. Nesse particular, fica evidenciada ainda
uma outra dinâmica apontada por Elias e Scotson. A partir de teorizações acerca do processo
de idealização adotado pelo sujeito na constituição de sua imagem e auto-estima, eles
articulam a noção de imagens de nós que o grupo idealiza e se auto-atribui. Tal procedimento
torna-se mais consistente na medida em que for vinculado com as idéias de grandeza e de
racionalidade. “O caráter auto-engrandecedor” e o ato de lisonjear “o amor-próprio coletivo”
atuam como formas de legitimação da superioridade auto-atribuída
257
. A partir dessa imagem
idealizada, as condutas dos outros distintos são depreciadas e estigmatizadas.
A dinâmica do medo da contaminação fica constatável nessas narrativas. As formas
discursivas adotadas para qualificar distintos aspectos do modo de ser dos indígenas
constituem indícios dessa dimensão. A insistência na caracterização depreciativa de certas
práticas distintas do estilo de vida considerado habitual pelo missionário torna manifesta essa
conduta. Tais formas de apreciação da alteridade podem ser verificadas também em relação a
outras características dos indígenas mencionadas nos relatos, como será visto a seguir.
3.3 Incapazes para a reflexão
Uma característica distintiva muito ressaltada nos relatos de Sepp é a incapacidade
dos índios para a reflexão teórica. Eles revelam, pelas suas atitudes, não ter senso de
percepção e capacidade de imaginação. Mostram ser ignorantes e incapazes de perceber as
tarefas a realizar. Não têm, assim, condições de criar ou tomar iniciativas que requeiram o
exercício da faculdade do juízo. O autor lembra que, quando são encarregados de realizar uma
dada tarefa, “fazem tudo desajeitada, bronca e erradamente”
258
. Esse aspecto constitui um
indício da dificuldade de serem responsabilizados para realizar trabalhos ordinários.
256
SEPP, 1980, p. 211.
257
Cf. ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 44.
258
Ao apresentar tal aspecto, Sepp refere-se aos índios como “pobres coitados”. SEPP, 1980, p. 125.
108
Esse ponto preocupa sobremaneira o missionário. É motivo de empenho maior em
suas iniciativas. É o que lhe exige mais esforço e merece atenção redobrada. A condição de
ausência de senso de juízo o oferece razões de confiança. As atividades e tarefas atribuídas
aos cuidados dos indígenas precisam ser explicadas nos menores detalhes e sempre revistas,
sob pena de não serem devidamente realizadas
259
.
Um indício da falta de capacidade reflexiva manifesta-se quando os índios são
instados a decidir entre duas assertivas opostas. De modo indiferenciado, admitem tanto uma
quanto outra alternativa. Ou quando perguntados sobre determinadas coisas, suas respostas se
revelam evasivas. Demonstram seguir formas não lógicas de pensar e raciocinar
260
.
Essa condição dos índios tem conseqüências concretas no modo de encaminhar as
atividades do cotidiano. Ao encarregado de preparar os alimentos para os padres, o
missionário tem a necessidade de detalhar explicitamente cada passo da tarefa a ser realizada.
Precisa indicar a quantidade de sal a ser acrescida aos diversos alimentos. Tem de verificar se
as vasilhas usadas na cozinha estão adequadamente limpas
261
. Deve dar atenção e
supervisionar todas as atividades realizadas pelos índios encarregados das mesmas para que as
executem devidamente.
Atenção especial precisa ser dada ao índio que desempenha o papel de enfermeiro.
Dado que o mesmo tem juízo curto, sem adequada orientação “acabaria dando cabo do
doente”. Sua incapacidade reflexiva faz com que se atrapalhe e ao doente “tudo misturado
e arrevesado”, provocando mais prejuízo do que proveito. Portanto, sem um acompanhamento
atencioso do padre, o resultado é desastroso, “porque este povo não tem juízo, não conhece
medidas”
262
.
No entender de Sepp, os indígenas são marcados por uma incrível rudez e ignorância,
sobretudo em se tratando de coisas espirituais. Tal fato leva o missionário a afirmar que não
259
Afirma que os coroinhas, após a Santa Missa, lhe mostram “os objetos do sacrifício, para verificar-se se estão
bem limpinhos ou não, caso contrário iriam para o altar dum jeito que arrepiaria o Padre”. SEPP, 1980, p. 125.
260
Entre as expressões com as quais os caracteriza, Sepp expressa que “são estúpidos, broncos, bronquíssimos
estes nossos selvícolas para todos os assuntos espirituais, para tudo que reclama trabalho mental e que se não
pode ver com os olhos”. SEPP, 1980, p. 245.
261
No texto, Sepp afirma: “se deixo escapar uma inspeção dessas não se reconhecerá mais bacias e panelas de
tanta sujeira”. SEPP, 1980, p. 127.
262
As três citações destacadas no parágrafo encontram-se em SEPP, 1980, p. 128.
109
pode confiar nos índios, principalmente em questões de relevada importância, como, por
exemplo, a administração do sacramento do batismo em situações de urgência, tais como a
morte iminente da pessoa a ser batizada
263
.
Também aparece destacado nos relatos de Sepp uma outra manifestação dessa
condição dos indígenas. Ele revela que eles não são capazes de antecipar, mentalmente,
situações de emergência ou necessidade. São incapazes de criar ou imaginar situações
inusitadas, ou exercer a capacidade da intuição criativa. Por isso não planejam, não prevêem.
Tal aspecto faz com que se tornem marcadamente inconstantes nas atividades e tarefas em
realização. Desse modo, manifestam-se extremamente imprevidentes, despreocupados com o
dia de amanhã
264
. Vêem apenas o imediato, estão ocupados em usufruir o presente.
As articulações discursivas acerca da capacidade racional e criativa dos indígenas
revelam aspectos significativos do imaginário de Sepp. Na produção da história por ele
realizada, a alteridade do indígena, embora constatada, não é reconhecida em sua distinção.
Ao contrário, ela é estigmatizada ao ser considerada como incapaz e desprovida de
criatividade.
A incapacidade reflexiva dos índios é apresentada como enorme dificuldade ao
trabalho do missionário. Leva-o a duvidar sobre a possibilidade de inseri-los na vida
sacramental. Revela-se como atitude própria do senso de percepção infantil, capaz tão-
somente de lidar com questões prático-operativas. Esse dado é assim descrito:
Estes índios são tão pueris, tão grandemente simplórios e de juízo tão curto, que os
primeiros Padres, que converteram estes povos, duvidaram realmente se eram
capazes de receber os Santos Sacramentos. Não são capazes de inventar e excogitar
algo que seja de seu próprio juízo e intuição, [...] Têm de fato juízo curto, nada
sabem imaginar-se ou fingir-se, quando o não vêem. Isto dá muito trabalho ao
missionário
265
.
Esse é um dos aspectos mais marcantes da caracterização dos indígenas. E, sem
dúvida, do ponto de vista da iniciativa missionária de Sepp, o mais preocupante. Constituía-se
263
A prática da realização do batismo, na Igreja Católica Romana, é facultada a qualquer batizado quando se
trata de caso de urgência, tal como uma criança recém-nascida em risco de vida. Sepp anota que os índios, dada
sua ignorância, nessas ocasiões “seriam capazes de omitir algo de essencial no ato do batismo, ou de não
antecipar a intenção, ou até de inverter ambas as coisas”. SEPP, 1980, p. 187.
264
Cf. SEPP, 1980, p. 147.
265
SEPP, 1980, p. 144s. Ver também MURATORI, 1993, p. 131.
110
num dos indícios mais salientes da condição de povos não civilizados. Tal constatação passa a
ser, para ele, um dos elementos de justificação de sua intervenção na perspectiva de
proporcionar-lhes possibilidades para alcançarem o estágio da civilização.
A caracterização dos indígenas como incapazes de exercer a reflexão teórica é feita,
pelo autor dos relatos, em nome do pressuposto de que ele participa da “racionalidade
supostamente universal”
266
. Na sua percepção, os comportamentos dos indígenas desafiam
essa racionalidade. A avaliação de Meliá destaca expressamente que “para o missionário
quase parece estabelecer-se uma oposição sistemática entre a tradição guarani e
racionalidade”
267
. Esse modo específico de perceber a alteridade indígena legitima a
inferiorização e estigmatização a que a mesma é submetida. Tudo isso feito em nome da
preservação da pureza da identidade do missionário.
3.4 Predispostos para a imitação
A constatação da carência da capacidade reflexiva nos indígenas faz com que o
missionário Sepp os caracterize como bárbaros, selvagens. Leva-o a considerá-los como
criaturas sem juízo, estúpidos, rudes e ignorantes. Tal condição os assemelharia aos animais
porque desprovidos de inteligência e de capacidade criativa. Existem neles, no entanto,
indícios e manifestações de habilidades e disposições para a realização de tarefas e atividades
práticas.
Sepp reconhece que os índios têm boa aptidão para execução de atividades práticas.
Nesse particular, revelam uma incrível habilidade e disposição para aprender ofícios e artes
mecânicas. A sua potencialidade imaginativa pode ser fraca ou nula, mas sua capacidade
imitativa é acentuada. Nos mais diversos ofícios e artes, revelam-se como bons imitadores
268
.
Basta terem diante dos olhos o exemplo, o modelo ou molde de determinado objeto a ser feito
266
Son precisamente aquellos comportamientos que s desafían la racionalidad supuestamente universal del
misionero, los que revelan los aspectos más tradicionales de la cultura guaraní”. MELIÁ, Bartomeu. El
guarani conquistado e reducido. Asunción: Universidad Catolica, 1986. p. 109.
267
Para el misionero casi parece establecerse una oposición sistemática entre tradición guaraní y
racionalidad”. MELIÁ, 1986, p. 109.
268
No texto se afirma: “É indescritível sua habilidade imitativa. Se nada sabem excogitar de suas cabeças,
sabem, no entanto, fazer qualquer coisa que seja, por mais difícil que pareça, quando tiverem à mão o molde ou
modelo”. SEPP, 1980, p. 144.
111
e o reproduzem tal qual, afirma o missionário. No seu entender, eles possuem capacidade
reprodutiva e não criativa.
Sepp compara-os, nesse aspecto, a crianças grandes. Isto é, possuem estatura de
pessoas adultas, mas sua faculdade mental é típica do modo de raciocinar da idade infantil.
São infantes, mas capazes de produzir, ou melhor, reproduzir o que conseguem captar em seu
senso prático operativo. Constata que tal aptidão apresenta-se limitada pela dependência da
percepção visual imediata. Quando, ao executarem uma dada tarefa, não tiverem a sua
disposição o molde ou modelo “então tudo sai errado e arrevesado, então uma criança
européia terminará o trabalho muito antes que o índio”
269
. Esse aspecto constituiria, no
entender do missionário, um indicativo de que lhes falta a engenhosidade própria para a
apreensão mental e a criação prático-operativa dela resultante.
Se não se pode esperar atividades de sua própria iniciativa, nascidas, criadas ou
forjadas de sua própria intuição, no entanto são capazes de copiar, imitar com tal grau de
perfeição que é admirável
270
. Sepp reconhece que são broncos para coisas espirituais, mas
muito hábeis nas artes mecânicas. Manifestam fraca habilidade para solucionar questões que
exigem trabalho mental. Mostram-se pouco familiarizados com os assuntos espirituais.
Parecem dotados de frágil memória. “Para os serviços mecânicos, porém, têm olhos de
lince.”
271
Nessa dimensão revelam possuir uma agilidade operativa de muita precisão.
A percepção dessa capacidade imitativa e a constatação das habilidades práticas não
são razões suficientes para que o missionário mostre confiança em relação às iniciativas dos
indígenas. Não demonstram ser dotados de senso de responsabilidade necessário para a
coordenação de iniciativas e atividades. Tal situação faz com que sejam caracterizados por um
princípio assim expresso: “devo tratar com índios sem a nima organização política,
269
SEPP, 1980, p. 145.
270
Sepp menciona a confecção de um tecido de renda feita por uma índia a partir dum modelo europeu. E anota:
“A nova tanto se assemelha com a antiga, que não serás capaz de distinguir qual a renda neerlandesa ou
espanhola e qual a indígena”. SEPP, 1980, p. 144. E observa que o mesmo ocorre com um órgão, uma cópia de
um missal, trombetas e relógios feitos pelos índios a partir de modelos europeus.
271
SEPP, 1980, p. 245. Em outra parte de seus escritos, Sepp observa que precisa “dizer tudo à frente deles como
às crianças pequeninas, porque esses velhos são tão esquecidos, e de tão fraca memória, que por si mesmos mal
são capazes de fazer o santo sinal da cruz”. SEPP, 1980, p. 125.
112
prudência e perícia nos negócios”
272
. Por isso, no entender de Sepp, a execução de tarefas
mais exigentes precisa ser supervisionada pelo padre.
Embora reconheça nos índios essa predisposição para a realização de ofícios e artes
mecânicas, Sepp observa que a execução de diversas práticas parece desprovida de
engenhosidade. Falta-lhes a criatividade necessária para dar conta de algumas tarefas simples
do cotidiano. Parecem ter dificuldades para perceber jeitos mais adequados para fazer certos
trabalhos. Cita o exemplo das formas de caçar, utilizadas pelos indígenas, sem muito êxito
273
.
Mostra que até nessa questão bem elementar precisa orientá-los.
Algo semelhante parece verificar-se em relação ao trabalho dos índios quanto ao
cultivo de plantações. Sepp apresenta uma breve menção sobre o modo como praticavam o
plantio, que ele nomeia de “estranho modo de semear”. Faziam suas roças nas clareiras
abertas na mata, para aproveitar a fertilidade e a umidade do solo. As árvores eram derrubadas
com machados de pedra. Após secarem, colocavam fogo nos galhos menores
274
. Nas cinzas
resultantes, depositavam as sementes para germinar e produzir. Nessa prática ele constata,
mais uma vez, algumas das características marcantes dos indígenas: sua indolência, sua fraca
persistência no trabalho e seu frágil senso de previdência.
Além de constatar a apurada capacidade imitativa e a habilidade prática, mesmo
limitadas pela frágil engenhosidade e criatividade, Sepp observa que os índios demonstram
agilidade e destreza em várias atividades. Reconhece que tais formas de proceder foram
treinadas com o acompanhamento dos missionários que atuaram e dos que continuam
ensinando nas reduções. Manifesta que, mediante a supervisão dos padres, esses indígenas
conseguem aprender a execução prática das mais diversas tarefas necessárias à manutenção da
vida nos povoados.
Nos seus escritos, Sepp mostra-se impressionado com a agilidade demonstrada pelos
indígenas na execução de algumas tarefas específicas. Enquanto navegavam pelo rio para
272
SEPP, 1980, p. 198.
273
No seu relato afirma: “Ensinei estes métodos aos meus índios, que, por causa de sua grande ingenuidade,
nada sabiam dessas artimanhas européias e não conheciam outra maneira de caçar senão de atirar com arco e
flecha para cada pássaro isoladamente”. SEPP, 1980, p. 142. Antes fizera menção ao uso de laço ou de alçapão
para pegar pombas.
274
Cf. SEPP, 1980, p. 205.
113
chegar às reduções, ele observa que os remeiros eram tão ágeis que o se percebia o barulho
dos remos na água. Além disso, a condução do barco lhe proporcionava a sensação de apurada
habilidade dos remeiros indígenas. Igualmente lhe chama a atenção a rapidez com que
executam o translado das embarcações por meio das corredeiras, rio acima, para dar
continuidade a sua viagem
275
.
Outras manifestações dessa agilidade e destreza são apresentadas nos relatos. A
prática de aprisionamento e abate de gado do campo representa um bom exemplo dessa
habilidade. Sepp afirma que os índios são muito ágeis, mesmo com instrumentos
rudimentares, em matar e preparar a carne da rês para o consumo. “Tudo isto se deu numa
hora. Impossível de dizer-se com que perícia e rapidez os índios pegam uma rês, derrubam-na,
tiram-lhe o couro e esquartejam-na.”
276
Aproveita a oportunidade para anotar outro aspecto da
destreza do indígena: “mas muito mais rápidos ainda são no comer”.
Em diferentes situações da vida cotidiana, a agilidade dos indígenas pode ser
constatada. Tal aspecto é mais facilmente observável nas lidas com as quais os mesmos
estavam familiarizados no modo de vida antes de sua integração nas reduções. Como
exemplo, Sepp menciona a capacidade do índio de superar certas adversidades. “É
indescritível com que agilidade e rapidez os índios sabem desfazer-se do tigre mais selvagem,
quando são por ele inesperadamente atacados.”
277
Dentre as habilidades percebidas nos indígenas, as mais apreciadas por Sepp são os
seus talentos para manifestações artísticas. Por ocasião de sua chegada a Buenos Aires,
observa seu esforço e empenho na apresentação de músicas para os missionários. Na
oportunidade de sua recepção nas reduções, mostra-se impressionado com a diversidade de
representações artísticas protagonizadas pelos indígenas. No desempenho de sua atividade
missionária, ele constata as capacidades de seus aprendizes para o aprendizado e execução de
peças teatrais, encenações litúrgicas e torneios esportivos. No entanto, ele enfatiza, em
especial, o talento dos índios para a música. Afirma que eles “são, por natureza como que
talhados para a música, de maneira que aprendem a tocar com surpreendente facilidade e
275
Quanto à agilidade de remar, ele anota: “os índios sabem remar tão cuidadosamente, que mal se ouve o
barulho dos remos”. Sobre esse outro aspecto, afirma: “fizeram isso com estupenda rapidez”. SEPP, 1980, p. 110
e p. 119, respectivamente.
276
SEPP, 1980, p. 117.
277
SEPP, 1980, p. 141.
114
destreza toda sorte de instrumentos, e isto em tempo brevíssimo”
278
. Tal condição motiva o
missionário a aplicar-se, das mais diversas formas, na tarefa do ensino da música aos nativos.
Essas formulações sobre a predisposição dos índios para a imitação apresentam
características de uma apreciação positiva de sua condição. Expressam uma percepção que
indica a possibilidade de articulação de iniciativas para promover seu aprendizado. Sugerem
que seu autor acredita que eles reúnam as capacidades necessárias para a aprendizagem. No
entanto, os relatos de Sepp sobre essa dimensão, mesmo reconhecendo sua capacidade
imitativa, permanecem nos quadros de elaborações discursivas estigmatizadoras. Embora
perceba e descreva elementos que os capacitem para a aprendizagem, a mesma apenas seria
viável mediante a presença de um modelo a ser copiado. Esse modo específico de considerar
tais dimensões representa uma justificativa para a manutenção de relações de dependência e
constitui-se como elemento de legitimação do discurso que os considera seres inferiores.
3.5 Nas trevas da perdição
Nos itens anteriores, foram apresentados alguns aspectos específicos destacados no
discurso de Sepp sobre sua caracterização dos indígenas. Esses permitem evidenciar
elementos significativos de sua compreensão da alteridade indígena. Por meio deles, ressalta o
modo distinto de ser e de viver desses povos com os quais entrou em contato. Caracterizando-
os como bárbaros e selvagens, preguiçosos e vorazes, inaptos para a reflexão teórica, busca
demonstrar que se encontram numa condição distante do ideal de humanidade por ele
vivenciado. Na sua compreensão, o ser humano constitui-se como tal pelo exercício de sua
racionalidade, demonstrada também mediante a capacidade determinada e organizada de
ordenar o mundo social.
Sua constatação dos aspectos marcantes da condição vivenciada pelos indígenas se
lhe oferece como oportunidade para considerá-los como pobres e abandonados. As distinções
por ele ressaltadas em seus relatos fazem qualificá-los como pobres coitados. Observando seu
modo de vida, julga-os como sofredores, esquecidos pelo mundo. No seu entender, pelo fato
de viverem fora das fronteiras estabelecidas pela dinâmica das reduções, eles encontram-se
nas trevas da perdição.
278
SEPP, 1980, p. 247.
115
No entanto, o relato da fundação da nova povoação constitui-se a ocasião para Sepp
apresentar, de modo mais explícito, sua caracterização geral dos indígenas. Nela se evidencia,
de modo sintomático, o processo de estigmatização coletiva. Vários elementos significativos
dessa dinâmica, posta em movimento, podem ser apresentados. Sua relevância para a reflexão
em questão faz com que sejam destacados.
Um primeiro aspecto mencionado nesse relato é o próprio espaço, o território onde
seria instalada a nova redução. Sepp refere que a comitiva que saiu a inspecionar a área
propícia encontrou uma colina levemente elevada, com bosques amenos, abundante madeira e
boas aguadas. Constatado que o local reunia os requisitos, ficou decidido, de modo unânime,
que ali seria estabelecida a nova “colônia”
279
. A seguir ele afirma: ao nascer do sol, subimos
o outeiro onde erigimos o estandarte da Cruz salutar, em sinal da tomada de posse daquela
terra”
280
. No seu entender, a própria terra encontra-se em poder da ação do demônio.
Constituía uma espelunca ocupada por bárbaros pagãos. Precisa ser conquistada pela
iniciativa da ação missionária. O sinal distintivo dessa tomada de posse é a ereção da cruz,
indicativo da vitória da força de Cristo sobre a ação sedutora de satanás
281
. Desse modo seria
resgatada das trevas da infidelidade e se converteria em aldeia de fiéis católicos.
Outro aspecto relevante aparece destacado quando Sepp se refere à distribuição dos
lotes de terra e ao início dos trabalhos de preparação das roças para as plantações. Menciona
duas providências adotadas e apresenta as razões de seu procedimento. Afirma: “logo que
reparti a terra pelos caciques e famílias, mandei levantar uma cruz para limite de seus
campos”
282
. Por um lado, as cruzes representavam uma marca definidora dos limites da área
de terra assinalada a cada grupo de índios. Por outro lado, tais cruzes indicariam, de modo
explícito, o domínio cristão sobre a terra. Com isso, ele sugere que os ocupantes anteriores
dessa terra eram submissos aos ídolos. Do ponto de vista de Sepp, constituíam infiéis, povos
abandonados nas trevas da perdição.
279
Em seu texto Sepp usa este termo para mencionar a nova redução por ele fundada e organizada. Ele lhe
confere a denominação de redução de São João Batista. O termo “colônia” (destacado com o sinal gráfico
“colônia”), nas páginas seguintes da tese, é usado para nomear essa redução.
280
SEPP, 1980, p. 203.
281
Sobre esse aspecto cabe observar a afirmação contundente no relato, no qual ele assim expressa: “El
monumento sagrado debía servirnos no sólo como piedra angular o fundamental de nuestra futura colonia, sino
también y con buen derecho como mbolo de la victoria del cristianismo y de la expulsión de los demonios
infernales de la vasta campiña y las selvas sombrías, cuyos dueños habían sido, durante tantos miles de años,
adorados como ídolos por los infieles paracuarios”. SEPP, 1973, p. 195.
282
SEPP, 1980, p. 208.
116
A segunda providência tomada foi a bênção dos campos. Ele ressalta a importância
desse rito como meio de expulsar os demônios que ocupavam livremente esse espaço. Ao
destacar tal aspecto, Sepp qualifica a condição dos antepassados dos índios cristãos. Para ele,
a vida de dispersão, nas selvas, caracteriza a condição de barbárie. Os próprios índios podiam
agora, ao derrubar os matos, perceber e “avaliar muito bem o estado deplorável dos seus
maiores e a vida cheia de sofrimentos que em seu gentilismo levavam, aqui, no meio destas
matarias e espeluncas de feras”
283
. A instalação da redução representaria a superação desse
deplorável estado de seus antepassados. Sua infidelidade, sua submissão nas trevas da
perdição poderia ser vencida pela iniciativa do missionário
284
.
A descrição que Sepp faz dos indígenas está marcada pelos preconceitos que
impregnavam a mentalidade de sua época. Meliá faz uma análise dos termos usados nos
relatos dos missionários sobre eles e aponta os preconceitos que lhes estão subjacentes. O
índio, considerado como “não-homem”, é apresentado como animal” em virtude de seus
traços físicos, dos seus hábitos alimentares; é mostrado como “besta”, destinado ‘por
natureza’ à escravidão; é descrito como “monstro”, pela antropofagia; é caracterizado como
“selvagem”, por sua nudez, por sua dispersão e nomadismo, por sua liberdade e pouca
submissão. E em outras ocasiões, tem sido equiparado à “criança”, por sua falta de previsão e
incapacidade de reflexão
285
.
Essa caracterização dos índios impede ao missionário o reconhecimento do outro e
de sua autonomia. Até porque, segundo Gadelha, “não se tratava, para os homens do século
XVII, procurar entender o outro, respeitá-lo, e sim adequá-lo a um novo estilo de vida,
compatível com os ideais utilitários da civilização européia”
286
.
Para a compreensão de Sepp, marcada pela visão negativa do mundo, os índios
“permanecem nas trevas da morte eterna”. A sua situação é de perdição. São incapazes de
283
SEPP, 1980, p. 209.
284
Tal condição já estaria se consolidando pela ritualização da bênção: “pero hoy habíamos expulsado al
enemigo maligno por mi bendición y consagración de los campos y de sus frutos, según el rito de la santa iglesia
católica”. SEPP, 1973, p. 206.
285
Cf. MELIÁ, 1977, p. 15.
286
GADELHA, Regina. O guarani: cultura e conflito. Anais do VII Simpósio Nacional de Estudos
Missioneiros (1987). Santa Rosa: FAFI Dom Bosco, 1988. p. 69.
117
obter a sua salvação. Precisam ser salvos pela intervenção do missionário, uma vez que
vicejam nas trevas do paganismo.
Essa avaliação que o missionário faz, julgando a mentalidade indígena a partir de
seus critérios, impede-lhe de estabelecer um diálogo
287
. O espírito de conquista, dentro do
qual se desenvolve a ão missionária de Sepp, torna impossível reconhecer o outro como
possuidor de uma autêntica religião. Afinal, afirma Schaden, “os missionários não viam
nenhuma razão para se informarem melhor sobre coisas tidas de antemão como falsidades e
que, portanto, existiam tão somente para serem erradicadas”
288
. E como não estabelecessem
diálogo, tampouco os jesuítas eram capazes de descobrir valores morais presentes no
comportamento dos aborígines.
A possibilidade de diálogo ficava inviabilizada. Ao considerar o modo de viver dos
indígenas como bárbaro e selvagem, ao qualificá-los como indolentes e preguiçosos,
desprovidos de capacidade criativa e racional, o missionário não os reconhecia como sujeitos
aptos ao diálogo. Até porque, segundo Schaden, “seria exigir muito dos jesuítas coloniais que
pudessem ter tido algum interesse na preservação da cultura dos índios, que era precisamente
o que vinham substituir pela mensagem europeu-cristã de que eram portadores”
289
. O
preconceito que permeia o seu julgamento bloqueia a disposição de uma aproximação de
reconhecimento mútuo.
Sepp e outros missionários do seu tempo consideraram irrelevante a tradição e o
modo de viver dos povos indígenas. Segundo Suess, “não encontraram ‘sementes do Verbo’
neste passado, nem o consideraram ‘preparação evangélica’ digna de ser ‘assumida para ser
redimida’”
290
. Estavam interessados em conquistar novos membros para integrar na
Cristandade, aumentando o número de fiéis no “rebanho de Cristo”.
287
Na análise de Azzi, “a mentalidade de conquista gerava no missionário uma atitude de monólogo e não de
diálogo com relação às outras culturas e religiões. Daí, a pouca percepção dos valores indígenas”. AZZI,
Riolando. Método missionário e prática de conversão na colonização. In: SUESS, Paulo (org.). Queimada e
semeadura: da conquista espiritual ao descobrimento de uma nova evangelização. Petrópolis: Vozes, 1988. p.
91.
288
SCHADEN, Egon. A religião guarani e o cristianismo. Anais do IV Simpósio Nacional de Estudos
Missioneiros (1981). Santa Rosa: FAFI Dom Bosco, 1982. p. 17.
289
SCHADEN, 1982, p. 18.
290
SUESS, Paulo. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros: ensaios de missiologia. São Paulo:
Paulus, 1995. p. 19.
118
A consideração de aspectos específicos das formulações de Sepp acerca da alteridade
indígena em seus relatos apresenta-se como tarefa relevante nessa etapa da reflexão. Tais
questões serão salientadas em forma de elaboração de tópicos de análise de algumas
dimensões, sem a intenção de exaurir as possibilidades abertas na apresentação da temática
em estudo.
No processo de produção ou escrita de sua história, o missionário Sepp não apenas
relata fatos ou acontecimentos tais quais eles sucederam. Ele institui sentidos. As suas
formulações acerca da alteridade indígena constituem indícios reveladores dessa dinâmica.
Mais do que descrever o seu modo próprio de ser e viver, ele atribui significados às suas
condutas. Nesse procedimento, ele está influenciado pelos preconceitos inerentes à sua
condição de europeu seiscentista.
A sua maneira de considerar a alteridade indígena manifesta elementos picos da
percepção dos colonizadores e missionários de período colonial. Todorov caracteriza essa
compreensão. Ele afirma que a experiência dos europeus com os índios se alternava entre
duas atitudes distintas. “Ou ele pensa que os índios são seres completamente humanos, com
os mesmos direitos que ele, e considera-os o somente iguais, mas idênticos.”
291
Desse
modo de perceber decorrem as tentativas e práticas de assimilacionismo, de redução do outro
a si mesmo. “Ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de
superioridade e inferioridade.”
292
Nesse caso, obviamente, os índios passam a ser vistos como
inferiores. Disso resulta a recusa da existência de uma substância humana realmente outra. O
que, em última instância, confere fundamento a essas configurações da experiência da
alteridade é a idéia da “identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu
eu com o universo; na convicção de que o mundo é um”
293
.
No discurso de Sepp, tornam-se muito evidentes alguns elementos próprios de
processos de estigmatização dos indígenas. Alguns indícios desse procedimento se
manifestam nas caracterizações fantasiosas de distintas condutas dos mesmos. Tais
figurações, além de justificar práticas de inferiorização, evidenciam o medo da contaminação.
São aspectos reveladores de outra consideração de Todorov acerca da experiência da
291
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 41.
292
TODOROV, 1983, p. 41.
293
TODOROV, 1983, p. 41.
119
alteridade. “A primeira reação, espontânea, em relação ao estrangeiro é imaginá-lo inferior,
porque diferente de nós: não chega nem a ser um homem, e, se for homem, é um bárbaro
inferior.”
294
Manifestações desse modo de perceber a realidade marcam presença significativa
nos relatos abordados nesta análise.
As formulações de Sepp sobre condutas e modos de vida dos indígenas encontram
sua razão de ser e adquirem significado quando consideradas nos quadros de seu imaginário
missionário. Constitui dimensão integrante desse imaginário o discurso que articula elementos
legitimadores de suas práticas missionárias. A maneira específica de apresentar aspectos
marcantes da situação vivida pelos indígenas, destinatários de suas iniciativas, representa um
componente significativo desse processo. Ao mostrar aos seus leitores o modo de ser desses
povos, justifica sua intervenção missionária. Manifesta, assim, a importância e o significado
que ele atribui ao seu protagonismo.
A reflexão sobre o processo de constituição do imaginário missionário, que se
evidencia nos escritos de Sepp, requer que se tenha em conta o modo como se articulam as
suas práticas. O discurso que contempla a diversidade de iniciativas missionárias por ele
adotadas e o significado atribuído às mesmas constituem o objeto a ser considerado e
abordado no seguinte capítulo.
294
TODOROV, 1983, p. 73.
4 PRÁTICAS MISSIONÁRIAS
Uma questão relevante a ser considerada na análise dos discursos de Sepp é a
compreensão de práticas missionárias que neles se evidencia. Nesse particular, torna-se
necessário proceder gradualmente. Trata-se, primeiramente, de destacar e explicitar elementos
marcantes desse aspecto, verificáveis nos relatos. Um passo seguinte consiste em ressaltar as
implicações dessas variáveis na dinâmica social desencadeada no processo em debate. Numa
abordagem mais aprofundada, busca-se averiguar o seu significado na articulação do
imaginário missionário em consideração nessa pesquisa.
Ao longo de seus relatos, Sepp vai revelando sua disposição de atuar como
missionário. Ele havia manifestado sua vontade ao apresentar-se como indípeta, como
candidato a ser enviado para as missões. Com outros companheiros, atravessou o oceano,
suportando as dificuldades dessa travessia, para exercer seu ministério junto aos povos nativos
do Paraguai
295
. Nas reduções, passou a tomar parte das iniciativas e práticas em curso,
mencionadas em suas narrativas.
O pressuposto básico que fundamenta sua intervenção é a compreensão que ele tem
dos indígenas. Considera-os como bárbaros, selvagens, incapazes para a reflexão teórica,
pouco dotados de responsabilidade para tomada de decisões
296
. Tal condição, no seu entender,
constitui razão suficiente para justificar sua atuação missionária. Sobre esse aspecto,
apresenta-se oportuna a observação de Gambini: “os jesuítas acreditavam que [...]
encontrariam seres sub-humanos e foi exatamente para transformá-los em algo melhor que
295
Era assim nomeado o território missionário abrangido, ao tempo de Sepp, pela Província Jesuítica do
Paraguai. Incluía em sua área territorial, partes do que hoje constituem os países da Argentina, Uruguai, Brasil e
Paraguai.
296
Esses elementos foram desenvolvidos no capítulo anterior.
121
vieram para cá”
297
. Com sua intenção de elevá-los a uma vida civilizada, Sepp relata que se
aplicou na realização de práticas missionárias para convertê-los à fé cristã católica.
A intervenção missionária era compreendida, conforme expressão de Sepp, como
uma conquista. O jesuíta considerava o espaço indígena como um vazio, porque seus
habitantes não conheciam Nosso Senhor Jesus Cristo. Dentro da dicotomia religiosa do bem e
do mal, este espaço estava ocupado pelo diabo, senhor absoluto dos selvagens infiéis, que
deveriam ser conquistados. A necessidade da conquista constituía-se numa razão justificadora
dos meios empregados na sua realização. O missionário agia movido pelo seu dever de
conseguir a salvação de todos e julgou ser responsabilidade sua libertar os indígenas,
arrancando-os do domínio do demônio.
Para abordar mais amplamente esse conjunto de questões, torna-se necessário
introduzir considerações sobre um aspecto referencial para essa análise. O conceito de
fronteira está estreitamente relacionado ao ato de circunscrever limites, de impor definições
aceitas e reconhecidas. Segundo Bourdieu, tal ação funda-se na força legítima, a qual “como
todo poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo que enuncia”
298
. A
base sustentadora da força desse ato reside no fato de originar-se da autoridade. O autor, ao
enunciar as coisas com autoridade, “subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as,
consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas,
‘naturais’”
299
. Mais do que uma realidade dada, a fronteira representa um fato (algo feito)
estabelecido (que a autoridade estabelece). Ou segundo Bourdieu, a “fronteira nunca é mais
do que o produto de uma divisão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na ‘realidade’
segundo os elementos que ela reúne”
300
. Ao mesmo tempo em que produz uma diferença
cultural, ela é produto dela.
As práticas missionárias de Sepp tinham como objetivo básico a humanização e
civilização dos indígenas. Na perspectiva dessa finalidade, podem ser consideradas como
processo de estabelecimento de fronteiras. Para realizar essa meta, pretendia “arrebanhá-los
no grêmio da santa Madre Igreja”, “reuni-los em reduções”. Seu desejo era que, dessa forma,
297
GAMBINI, 1988, p. 121.
298
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 114.
299
BOURDIEU, 1989, p. 114.
300
BOURDIEU, 1989, p. 114.
122
“possa este rebanho pequenino escapar à voracidade do lobo infernal, e ser conduzido do
deserto deste mundo às pastagens felicíssimas e abundantes da vida sempiterna”
301
.
Para a consecução do seu objetivo, ele empenhou-se em estruturar as reduções como
um espaço privilegiado de vivência da religiosidade cristã, baseada nos preceitos do
Catolicismo. Nessa perspectiva, Sepp apresentou-se como um destacado agente do processo
reducional. Ele mostrou-se capaz de ampliar os limites da missionarização e de, a partir do
seu imaginário, realizar o aperfeiçoamento da mesma por meio da música, do teatro, da dança,
da construção elaborada de templos e ornamentação das coisas sacras para a “maior glória de
Deus”. Dessa forma, ele corporificou, no povoado que fundou e naqueles em que exerceu suas
práticas missionárias, o imaginário de agente civilizador.
A abordagem das práticas missionárias requer ainda a tematização de outra questão.
O conceito de civilização está associado à capacidade que um determinado grupo humano tem
de incorporar as criações técnicas acumuladas ao longo de gerações e utilizá-las de modo a
fazer valer seu máximo potencial. Essa característica peculiar tende a ser traduzida em termos
de afirmação de superioridade cultural resultante da força de sua ciência e de sua técnica no
domínio racional dos recursos naturais. O modo de estruturar a vida decorrente dessa
dinâmica passa a ser considerado como ordenamento social elevado. A partir dessa
autocompreensão, assim forjada no ocidente europeu, ocorreu o processo de estigmatização
das culturas distintas, denominadas de bárbaras. Dessa noção, resultam práticas de
colonização, conquista e tentativa de implementação do sistema de vida europeu ocidental nas
sociedades contatadas no processo de expansão colonial.
As práticas missionárias de Sepp, apresentadas em seus escritos, podem ser
consideradas, de modo geral, como parte integrante da mentalidade subjacente ao modelo de
Cristandade que engendrou o processo de evangelização do continente americano a partir do
século XVI. Essa Cristandade estava marcada por um catolicismo de conquista onde a
evangelização por tabula rasa estruturava o seu modelo
302
. Segundo Dussel, “o cristianismo
301
As afirmações destacadas no parágrafo encontram-se em SEPP, 1980, p. 248s.
302
A noção evangelização por tabula rasa é desenvolvida por Dussel: a tabula rasa’, consistia em afirmar que
no indígena não havia nenhum valor recuperável e, por isso, era necessário começar de novo: com nova língua,
nova cultura, novos costumes e nova religião. O índio era considerado uma criança que devia aprender tudo”.
DUSSEL, Enrique. As reduções: um modelo de evangelização e um controle hegemônico. In: HOORNAERT,
Eduardo.(org.). Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais. IX Simpósio Latino-americano da
123
hispano-lusitano chegará determinado por longa história da Cristandade, permitindo que o
processo de evangelização seja a um só tempo e equivocadamente civilizatório, ou seja:
processo de aniquilação cultural e política dos povos ameríndios”
303
.
Os missionários estavam influenciados pelos preconceitos e estereótipos criados
pelos colonizadores como forma de legitimação das ações de conquista. No entender de
Hoornaert, a prática da conquista dos povos ameríndios era justificada com expressões de
camuflagem da realidade. Entre elas, por sua marca estigmatizadora, encontra-se a expressão
“índio”. “Esse índio, no modo de pensar dos colonizadores, era um ser genérico e
estereotipado, um selvagem e um pagão ou gentio. Ele necessitava de civilização e
evangelização.”
304
Essa maneira de pensar impedia o reconhecimento do outro enquanto
diferente. O contato com a realidade, nessas condições, servia apenas como confirmação das
idéias já previamente formadas.
4.1 Racionalização da vida
Na compreensão de Sepp, os indígenas viviam em situação de barbárie, de não
humanização. Seu modo de viver, marcado pela dispersão nas selvas, afastava-os da
possibilidade de serem cristãos. A intervenção missionária tinha em vista conseguir a
conversão dos indígenas. Essa seria alcançada mediante o abandono de suas infidelidades e de
suas práticas idolátricas para adotarem atitudes próprias de cristãos.
As iniciativas missionárias estavam orientadas por uma finalidade salvacionista.
Tratava-se de proporcionar aos indígenas os meios necessários e eficazes para que pudessem
sair de sua condição pagã e selvagem. Desse modo, no entender de Sepp, teriam a
oportunidade para tornar-se humanos e cristãos. Implicaria sua integração na vida, educação e
atividades religiosas desenvolvidas nas reduções.
A conversão, proposta pela ação missionária, operava uma transformação profunda
na vida dos indígenas. Ao longo dos relatos de Sepp, aparecem diversos aspectos dessa
CEHILA (Manaus, 1981). São Paulo: Paulinas, 1982. p. 10. E Gambini anota: Os jesuítas encontraram o papel
em branco no qual tanto desejavam escrever sua verdade. Esse papel era a alma indígena”. GAMBINI, 1988, p.
90.
303
DUSSEL, 1992. p. 9.
304
HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil. In: DUSSEL, Enrique (org.). Historia liberationis. 500 anos de
história da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 299.
124
mudança. De modo geral, apresentava-se como modificação do modo de vida bárbaro e
selvagem para uma vida civilizada. Tais transformações realizavam-se pela introdução dos
indígenas nas reduções, “este novo local de conversão”. Nelas, sob a orientação e os
ensinamentos do padre missionário, seriam aprendidas as atitudes típicas do índio convertido
cristão
305
.
Um indicativo característico da vida bárbara e selvagem dos indígenas era a sua
nudez. Várias vezes Sepp o refere em seus escritos. Ele admirava-se que os índios andassem
seminus. Afirma que meninas e rapazes andam como Deus os criou, totalmente nus. Por isso,
uma primeira preocupação do padre missionário era a de providenciar vestimenta aos novos
cristãos. Assim como o batismo, sinal de conversão, era o meio de entrada na Igreja, seria
necessário que os índios, ao entrarem na redução, estivessem também vestidos. Para tanto, ele
organiza o cultivo do algodão para a confecção de tecidos. Sepp lembra que, antes da
transmigração das mulheres e crianças para a nova “colônia”, por ele fundada, providenciou
vestimentas para elas, pois os índios não estavam “habituados em sua infidelidade a adaptar
ao corpo vestimenta alguma”
306
.
Pela conversão, pretendia-se também disciplinar os hábitos alimentares dos índios
ou, mais propriamente, erradicar a sua voracidade. Esse aspecto era um indício inequívoco de
sua condição selvagem, característica da vida na gentilidade, no paganismo. Segundo Sepp, os
índios devoravam quantidades desmesuradas de carne semicrua. Essa sua falta de moderação,
assemelhando-os aos animais, precisava ser superada. A criação de uma disciplina alimentar
implicaria a assimilação da noção de previsão e previdência. Precisavam aprender a ordenar o
consumo dos alimentos, de modo regular e metódico.
Nessas articulações discursivas de Sepp, percebe-se claramente a forma como ele vai
produzindo sua história. Mais do que relatar fatos, ele vai atribuindo sentidos e significados às
realidades consideradas. Esse seu procedimento é configurado pelo seu imaginário. Além
disso, fica saliente o processo de afirmação de sua identidade missionária, instituída em
contraste com a alteridade indígena. Evidencia-se, também, o medo da contaminação,
305
Sobre a idéia de conversão reinante na época das missões jesuíticas, Azzi anota que “converter significava
basicamente tirar os índios de suas crenças errôneas e reconduzi-los à verdade católica”. AZZI, 1987, p. 73.
306
SEPP, 1980, p. 235. Sobre esta questão, Haubert observa que ‘cobrir a nudezera o que mais preocupava os
jesuítas, pois seria “o primeiro sinal de humanidade desses bárbaros”. HAUBERT, 1990, p. 87.
125
constatável na sua insistência em articular iniciativas visando modificação de condutas
indígenas estigmatizadas por ele.
Outro aspecto a ser considerado e contemplado pelas iniciativas missionárias era a
questão do trabalho. Sepp observava que os índios mostravam-se despreocupados e
desorganizados na realização das atividades necessárias para assegurar suas condições de
vida. A intenção de cristianizar os indígenas implicaria fazer com que eles aprendessem a
perceber a realidade de outra maneira. Teriam que assimilar a disciplina de trabalho ordeiro,
organizado, sistemático e habitual. Precisariam compreender a necessidade da previdência
para assegurar alimentos necessários para o ano todo. Necessitariam orientar a vida pessoal e
comunitária segundo os preceitos da doutrina cristã. Tais elementos constituem dimensões
relevantes desta perspectiva.
As práticas missionárias incidiam sobre distintos aspectos da vida dos indígenas.
Uma das questões afetadas era o próprio modo de estruturar o espaço de moradia. Nesse
particular, também se verifica um processo de racionalização da vida gerada pela ação
missionária. Em seus relatos, Sepp salienta essa dinâmica ao mencionar o seu esforço e
cautela no planejamento ordenado da povoação que ele fundou. E ele apresenta razões que
justificam sua atenção para essa dimensão. Fixando os indígenas nas reduções, ficava
suprimida a sua mobilidade e transitoriedade. As casas que eram feitas com materiais de
construção perecíveis passaram a ser feitas com materiais mais resistentes e duráveis. Além
disso, a estruturação do espaço no povoado, com ruas e construções bem ordenadas, deveria
favorecer a vigilância do missionário sobre os indígenas e possibilitar a agilidade de seus
deslocamentos a fim de atender mais adequadamente os doentes a serem visitados na
redução
307
.
Um significativo aspecto da racionalização da vida verifica-se na questão relativa à
ocupação do tempo no cotidiano das reduções. O fato de Sepp apresentar uma determinada
ordem do dia na dinâmica comunitária constitui um indicativo dessa questão. A atuação
missionária deveria imprimir, de certa maneira, um novo ordenamento na vida dos neófitos. A
distribuição regular do tempo, ao longo do dia, com definição de atividades e práticas para os
distintos horários representa esse processo em atuação. Expressa, ao mesmo tempo, uma
307
Sepp refere esse aspecto ao mencionar a atenção que teve ao planejar a estruturação do espaço na organização
da redução de São João Batista por ele fundada. Cf. SEPP, 1980, p. 220.
126
manifestação da tutela dos padres sobre o modo de ser dos indígenas. Nesse particular, fica
evidenciado um processo de estabelecimento de fronteiras entre o modo de viver na dispersão
e a orientação da vida de maneira ordenada, inserida na redução.
A ordenação regular da vida dos indígenas pode ser constatada também na questão
relativa ao aprendizado de ofícios. Para Sepp, a prática missionária expressava-se também
como acompanhamento sistemático, por parte do missionário, das iniciativas de aprendizagem
de expressões artísticas e de práticas artesanais. Mediante tal exercício, não apenas
assimilariam a disciplina própria e necessária ao seu aperfeiçoamento pessoal, fundamental e
decisivo para sua humanização, como também se habilitariam para melhor desempenhar as
tarefas próprias à manutenção de sua vida material na povoação
308
. Essa dinâmica constitui
um indício significativo da força regulativa do imaginário social atuando no cotidiano.
Entre as práticas missionárias ressaltadas por Sepp em seus relatos está a
catequização, ou seja, o ensino da doutrina católica aos indígenas. Essa iniciativa requer uma
dedicação especial do missionário. Ele próprio expressou as dificuldades dos nativos para a
assimilação e compreensão de questões teóricas. Tal problemática ele constata de modo mais
saliente nos índios adultos e velhos. Refere que eles têm memória curta. Por isso, faz-se
necessário repetir diante deles os pontos mais elementares do conteúdo da doutrina para que
aprendam o mínimo exigido para fazerem parte da comunidade.
Ele menciona que dedica uma atenção mais sistemática ao ensino da doutrina para as
crianças. De diversas maneiras, as incentiva e lhes proporciona oportunidades para o
aprendizado dos conteúdos e práticas típicas da fé católica. Mediante a integração das mesmas
na vida e dinâmica comunitária pretende também atingir os adultos. As crianças tornavam-se,
desse modo, uma espécie de propagadoras dos elementos doutrinais junto a seus pais.
As práticas missionárias objetivavam civilizar os indígenas. Essa intenção
civilizadora implicava, no entender de Sepp, a tomada de posse do país pagão. A nação
subjugada e submetida pelas hostes do espírito do mal precisava ser conquistada. A arma mais
eficaz para realizar tal intento era a cruz de Cristo. Com o seu poder, podia-se consolidar a
conquista e efetivar a tomada de posse do espaço antes sob o poder do demônio
309
. Os índios,
308
Sepp escreve que, diariamente, assiste às lições dos seus aprendizes nas oficinas. Cf. SEPP, 1971, p. 225.
309
Cf. SEPP, 1980, p. 203.
127
antes dispersos nas suas infidelidades, vivendo sob o domínio da barbárie, eram agora
reunidos e integrados ao grêmio da Santa Igreja Católica. O indicativo mais claro dessa
mudança operada em sua vida era a sua inserção na dinâmica das reduções.
4.2 Estruturação de reduções
A análise dos relatos de Sepp permite evidenciar sua percepção da importância das
reduções para o desenvolvimento da atividade missionária dos jesuítas junto aos indígenas
Guarani. Tal aspecto possibilita verificar também que ele não adota uma concepção unívoca
do processo reducional. Ele lhe atribui diversos sentidos. Na abordagem do seu discurso,
percebe-se a articulação de distintos significados atribuídos à estruturação das reduções.
Importa averiguar representações de fronteiras que podem ser constatadas nas
compreensões sobre as reduções expressas no seu discurso. A construção do conceito de
redução articula-se a partir de um processo de oposição entre os que estão inseridos nas
mesmas e os que não fazem parte delas. O discurso, neste sentido, cumpre a função de
estabelecimento de fronteiras entre essas distintas parcelas da realidade.
Três representações são consideradas nesta análise. A redução como recondução dos
dispersos caracteriza o processo reducional como construção dum mundo à parte para realizar
a cristianização dos indígenas, resguardados dos contatos pouco favoráveis com os espanhóis
e livres da encomienda. Outra noção analisada é a de reduções como espaço de vida
civilizada, que as configuram como estratégia de implantação de práticas típicas da sociedade
européia no espaço americano. O terceiro aspecto considerado é a representação de reduções
como terra da promissão apontando dimensões constitutivas da tentativa de introdução de
valores da cultura ocidental européia na visão de mundo dos indígenas.
4.2.1 Reduções: reunião dos dispersos
Nos seus escritos, Sepp expressa sua compreensão sobre distintas dimensões da ação
missionária. Um dos aspectos que merece sua atenção é a organização das reduções. Ele
constrói diversas noções para representá-las. Uma das representações da redução verificáveis
no seu discurso compreende-a como reunião dos dispersos. Ele a expressa ao afirmar:
128
agora vamos considerar um pouco a situação destas nossas reduções, assim
chamadas porque todos esses índios são por nós reduciret (conduzidos) à cristã.
Em alemão chamaríamos esses povos de comunidades ou aldeias
310
.
Desse modo, ele mostra o objetivo da missão: efetivar a conversão dos índios. A
tarefa missionária exigia a construção de um mundo à parte para realizar essa finalidade. O
termo reduzir, com o qual menciona o processo de condução dos indígenas àcristã, sugere,
na verdade, o isolamento dos nativos para serem civilizados pelos jesuítas
311
. Sepp expressa a
necessidade e a importância de manter os índios reduzidos distantes da presença e do contato
dos espanhóis:
É que os Padres não admitem que os índios convertidos entrem em contacto com os
espanhóis, porque os índios batizados, que são gente boa e simples, se desgostam e
contristam quando vêem algo de mal no meio dos cristãos. E os espanhóis não
primam por serem os melhores
312
.
Sepp também caracteriza a condição em que se encontram os indígenas ainda não
reduzidos. Eles, vivendo em sua selvageria, “ainda permanecem nas trevas da morte eterna”.
Estão na gentilidade, subjugados pelo “macaco infernal”. Sua bestialidade, manifestada na sua
nudez e voracidade e na sua incapacidade reflexiva, demonstra que servem aos ídolos, não
adoram o Deus verdadeiro
313
.
A vida nas reduções supõe para os indígenas o abandono de sua dispersão na selva
para incorporar-se à vida no povoado. Trata-se de uma mudança a ser efetivada em vários
aspectos do seu modo de viver. Na sua condição de selvagens e pagãos, as tribos viviam em
lugares apartados. A presença dos missionários realiza a conquista das almas
314
. A
intervenção dos jesuítas faz sair da condição de gentilidade.
No entender de Sepp, são os missionários que arrancam os povos pagãos das garras e
artimanhas do demônio. Os guias antigos eram incapazes de conduzi-los para fora das trevas.
Os ensinamentos dos padres os introduzem no caminho da salvação
315
. Reduzir os povos
310
SEPP, 1980, p. 124.
311
Cf. DALCIN, Ignacio. Em busca de uma terra sem males: as reduções jesuíticas guaranis, evangelização e
catequese nos sete povos das missões. Porto Alegre: EST, 1993. p. 66.
312
SEPP, 1980, p. 110.
313
Cf. SEPP, 1980, p. 91.
314
Cf. SEPP, 1980, p. 123.
315
Cf. SEPP, 1980, p. 175.
129
antes dispersos é conduzi-los segundo a doutrina cristã, a verdadeira luz capaz de vencer o
poder de satanás.
O objetivo fundamental da proposta missionária de Sepp era a cristianização dos
indígenas. Na sua compreensão, para atingir esse objetivo, era necessária a redução, pois os
costumes anteriores dos nativos não se coadunavam com a religião cristã. Kern observa que,
na concepção dos jesuítas, para uma perfeita cristianização dos indígenas, “era necessário
levá-los a viver politicamente’, a reduzi-los, pois somente a Redução poderia remediar a sua
‘irracionalidade’ de andarem dispersos pelos montes e matas, vivendo como feras e adorando
‘falsos ídolos’”
316
. Esse processo necessitava da intervenção do missionário ao qual caberia
levar a luz da racionalidade para os povos antes dispersos.
O pressuposto que justifica a intervenção missionária é a compreensão de que os
índios vivem num estágio de “costumes bárbaros e selvagens” e de “infidelidade”. Assim, a
redução constituía-se num espaço de missão. Nela, o trabalho missionário incluía a conversão
do índio gentio ao catolicismo. A presença constante do padre ficava justificada pela
necessidade do cuidado sistemático para a manutenção da fé. Com essa vigilância constante,
os missionários buscavam transformar o indígena disperso pelas aldeias em índio reduzido.
Este, fiel aos princípios católicos, devia viver sua fé nos povoados reducionais.
Tais transformações na vida dos indígenas são observadas e analisadas por Haubert.
Constata que “o desarraigamento geográfico e cultural a que os índios estão submetidos
aumenta ainda mais sua dependência”. Acabam perdendo sua autonomia e autodeterminação.
“A necessidade de reunir vários grupos numa mesma redução [...] leva a migrações freqüentes
e os índios perdem contato com os costumes e usos ligados a seu antigo hábitat.”
317
As
modificações introduzidas pela ação missionária levam os indígenas a “perder a sua alma”. A
permanente vigilância sobre os costumes e a doutrinação transformam o modo de ser dos
indígenas, tornados como matéria inerte à qual os jesuítas podem tentar insuflar uma alma
cristã.
A tutela missionária que gera a adaptação dos indígenas é verificada em distintos
aspectos que compõem o quadro das reduções. Segundo Haubert, “a forma da aldeia, a que os
316
KERN, 1982, p. 100.
317
As duas citações destacadas se encontram em HAUBERT, 1990, p. 183.
130
índios dão um valor místico, foi modificada. O mesmo acontece com os horários, regulados
então por uma disciplina rigorosa e estranha”
318
. A prática missional cria uma nova realidade
à qual os indígenas são adaptados. Para tanto, os jesuítas, através do ensino da doutrina,
agindo sobre crianças e adultos, buscavam inculcar-lhes as novas atitudes e valores.
Essa maneira de exercer a missão, com práticas de tutela e paternalismo, acaba
gerando atitudes de dependência. E mostra a sua própria ambigüidade. A análise contundente
de Meliá revela isto:
Em cada índio submetido e explorado, a colônia, em vez de ser instrumento de
civilização, se faz mais selvagem; em cada índio convertido pela força a força do
desprezo que se faz recair sobre essas almas de Deus, ou o castigo do trabalho
forçado ou o temor de uma pregação aterradora –, o evangelho deixa de ser boa nova
e se torna inútil
319
.
Na compreensão de Sepp, as reduções constituíam um espaço favorável para a
doutrinação cristã dos indígenas. A missão era vista como esforço no ensino das verdades da
cristã. Aos missionários, caberia a tarefa de transmissão clara dos conteúdos para sua
correta assimilação por parte dos indígenas. Segundo Meliá, na consciência dos jesuítas, a
redução é um lugar de missão, o que inclui também que seja um lugar de proteção contra a
‘encomienda’ e qualquer forma de escravidão”
320
. Dentro do sistema colonial, os jesuítas
articularam uma proposta que pretenderam anticolonial. No entanto, não conseguiam
desvencilhá-la dos liames das normas coloniais, pois as reduções eram organizadas dentro das
orientações emanadas da Coroa espanhola
321
.
Por meio da organização das reduções, os jesuítas pretendiam resguardar os
indígenas da dominação a que estariam sujeitos no sistema colonial. Os jesuítas isolaram os
índios em suas reduções para livrá-los da encomenda”, afirma Estrago
322
. Apesar da relativa
autonomia, permaneciam inseridas no sistema colonial, subordinadas aos vice-reis, que
318
HAUBERT, 1990, p. 183.
319
En cada indio sometido y explotado, la colonia, en vez de ser instrumento de civilización, se hace más
salvaje; en cada indio convertido por la fuerza la fuerza del desprecio que se hace recaer sobre esas almas de
Dios, o el látigo del trabajo forzado o el temor de una predicación aterradora -, el evangelio deja de ser buena
nueva y se hace inútil”. MELIÁ, 1986, p. 168.
320
MELIÁ, Bartomeu. O guarani reduzido. In: HOORNAERT, Eduardo.(org.). Das reduções latino-
americanas às lutas indígenas atuais. IX Simpósio Latino-americano da CEHILA (Manaus, 1981). São Paulo:
Paulinas, 1982. p. 230.
321
Cf. FLORES, 1997, p. 76.
322
ESTRAGO, Margarita. As reduções. In: DUSSEL, Enrique (org.). Historia liberationis. 500 anos de história
da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 523.
131
podiam convocar os indígenas para a guerra e outros serviços públicos, além da cobrança dos
tributos feita sistematicamente.
As resistências oferecidas ao sistema de reduções apontam para as contradições que
as mesmas apresentam. Na avaliação de Schallenberger, “se as missões jesuíticas, com as
reduções, buscavam salvar o índio do serviço pessoal que o consumia, elas foram
responsáveis, também, pela destruição do espaço humano e social destes mesmos índios que
defenderam diante dos colonos espanhóis”
323
. Esse caráter ambíguo das reduções decorre do
fato de serem instrumento da ação missionária característica da Cristandade. Além disso, as
reduções não ofereceram um questionamento do patronato real ou da ordem colonial da qual
fizeram parte.
4.2.2 Reduções: espaço de vida civilizada
Uma distinta ênfase do significado atribuído às reduções pode ser percebida no
discurso de Sepp. Ele descreve a dinâmica e o modo de organização da sua vida interna.
Demonstra como nelas se efetiva a vida cristã, objetivo maior da ação missionária. Todo o
esforço missionário é desenvolvido na perspectiva de articular as reduções como uma
sociedade organizada sob os mais diversos pontos de vista
324
. As atividades estão orientadas
para que se crie e fortaleça a unidade na comunidade. O exercício dos diversos ofícios úteis à
vida social comunitária é incentivado
325
. Merece destaque o estímulo dado aos indígenas,
mormente aos meninos, para o aprendizado da leitura e da escrita.
A aparência das reduções é descrita por Sepp. São semelhantes aos povoados dos
espanhóis, espalhados pela América. Parecem também com as cidades européias. “As casas
formam ruas largas, como nas cidades européias, mas são de construção diferentes: são muito
baixas, não têm assoalho de madeira, mas os índios moram no chão descoberto.”
326
323
SCHALLENBERGER, Erneldo. A integração do Prata no sistema colonial: colonialismo interno e missões
jesuíticas do Guairá. Toledo: Toledo, 1997. p. 183.
324
Cf. SEPP, 1980, p. 124s. Em relação à atuação dos missionários, Azzi observa: “As reduções constituíam, de
fato, um espaço geográfico onde o missionário podia exercer de forma absoluta o seu poder religioso, mediante o
controle efetivo da vida dos indígenas”. AZZI, 1988, p. 97.
325
Cf. SEPP, 1980, p. 152.
326
SEPP, 1980, p. 131.
132
Em torno do povoado, ficam as roças onde os índios reduzidos trabalham para
conseguir os produtos necessários à sobrevivência da redução. “As roças são muito férteis.
Embora muito mal amanhadas, pouco cuidadas e mal adubadas, dão literalmente frutos cem
por cento.”
327
Sepp menciona alguns produtos colhidos nas roças das reduções: milho, trigo e
algodão para tecidos. Cita também a pecuária: a criação de gado para ser usada como força de
trabalho e para a produção de carne, distribuída todos os dias a cada família.
Mediante a articulação da vida reducional, os missionários intentam resgatar os
indígenas da sua condição selvagem. Na avaliação de Meliá, eles atuam “num processo de
‘redução à vida política e humana’ do índio guarani, como condição para a redução à fé e vida
cristã”. No seu entender, observam a realidade guarani não tanto em si mesma, “quanto em
contraste com o ideal de homem político e humano, que é de fato o homem ‘reduzido’”
328
.
Por isso, trabalham no sentido de transformar o homem guarani real em homem “reduzido”.
Subjacente a esse modo de compreender a missão está a visão que os missionários
têm do indígena. Na análise de Garavaglia, compreendem o índio como um ser
criança/irracional, cujos padrões de comportamento não são civilizados. Dessa forma,
justificam a sua intervenção, pois somente a presença do sacerdote asseguraria a
racionalização da vida. E essa compreensão é que explica “a necessidade mesma da existência
da redução como instituição para humanizar o indígena e assegurar, em um prazo
indeterminado, sua passagem a um mundo onde as concepções de Deus, tempo, trabalho e
vida sejam racionais”
329
.
A atuação missionária de Sepp, ao promover e buscar a integração dos indígenas nas
reduções, não conseguiu se desvencilhar dos laços que ligavam os missionários seiscentistas à
Cristandade. Dessa forma, ela está limitada também pelo sistema colonial. Observa Meliá,
nunca se pode esquecer a inserção por limitada e mitigada que seja da redução
no sistema colonial, no qual foi criada e do qual não podia sair. De fato, os jesuítas
327
SEPP, 1980, p. 145.
328
En un proceso de reducción a la vida política y humana’ del indio guaraní, como condición para la
reducción a la fe y vida cristiana”. “cuanto en contraste con el ideal de hombre político y humano, que es de
hecho el hombre ‘reducido’”. MELIÁ, 1986, p. 97 e 98. Sobre este aspecto ver também KERN, 1982, p. 100.
329
La necesidad misma de la existencia de la reducción como institución para humanizar al indígena y
asegurar, en un plazo indeterminado, su paso a un mundo donde las concepciones de Dios, tiempo, trabajo y
vida sean racionales”. GARAVAGLIA, Juan. Economía, sociedad y regiones. Buenos Aires: de la Flor, 1987.
p. 152.
133
em nenhum momento questionarão o patronato espanhol ou qualquer outra
instituição da ordem colonial como tal. As reduções teriam alcançado apenas o
máximo de poder possível dentro de um férreo sistema de controle colonial
330
.
A intervenção missionária opera transformações intensas e profundas no modo de
viver dos indígenas. No entender dos missionários, o indígena só seria um homem completo e
feliz em função da conversão. Esse era o objetivo último das missões. Na avaliação de Kern,
“a ação desenvolvida pelos missionários foi igualmente civilizadora, pois nas Reduções foram
implantados valores não indígenas”
331
. Nas reduções, foram introduzidas práticas e formas de
viver típicas da sociedade européia que os jesuítas representavam. A adesão a todas essas
práticas não resultou de opção livre dos indígenas. Alguns valores foram transmitidos de
modo autoritário, nem sempre por meio do emprego da força por parte do missionário. Esse
autoritarismo, no entender de Kern, muitas vezes apresentava-se velado em formas de
paternalismo como o que se desenvolve na família, em grupos de amigos e mesmo em
organizações religiosas.
Na concepção de Sepp, a redução cumpriria ainda a função de ser o espaço onde se
desenvolve a vida civilizada. Sob a sua supervisão, o novo povoado por ele fundado vai sendo
estruturado, alterado e modificado para adquirir características de vida urbana
332
. Essa forma
de organização social é apresentada aos indígenas como estágio de vida a ser alcançada.
Os missionários pretendiam a integração dos indígenas na sociedade colonial. Por
meio das reduções, deveria ocorrer a sua conquista espiritual e sua civilização. O resultado
desse processo é comentado por Gadelha:
ao invés da esperada redenção civilizadora dos povos americanos, o índio e seus
descendentes mestiços, que sobreviveram, foram sendo progressivamente
transformados em caboclos sem terras, sobre os quais pesam várias formas de
exploração e trabalho compulsório, denunciados por cientistas sociais, religiosos,
jornalistas e outros, desde longa data
333
.
330
MELIÁ, Bartomeu. As reduções guaraníticas: uma missão no Paraguai colonial. In: SUESS, Paulo (org.).
Queimada e semeadura: da conquista espiritual ao descobrimento de uma nova evangelização. Petrópolis:
Vozes, 1988. p. 78.
331
KERN, 1982, p. 99.
332
Sepp descreve a “situação feliz da nova colônia”. Cf. SEPP, 1980, p. 244-249.
333
GADELHA, Regina. O impacto da evangelização: elementos para uma análise comparativa da colonização
espanhola e portuguesa. Anais do XI Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros (1995). Santa Rosa:
UNIJUÍ, 1997. p. 31.
134
As reduções, nessa perspectiva, serviram como instrumento de conquista dos povos
americanos. Constituíram-se numa experiência místico-religiosa na formação de uma nova
Cristandade, sem a preocupação de inserir o índio na sociedade.
4.2.3 Reduções: Terra da Promissão
No processo de construção de representações sobre as reduções, Sepp articula um
significado místico-religioso. Na sua expressão, elas representam a Terra da Promissão. Ele
mostra esse aspecto ao relatar como fora encarregado da tarefa de repartição da redução de
São Miguel e de fundação duma nova “colônia”. Nesse relato, percebem-se diversos
elementos do aspecto místico religioso atribuído às reduções.
O povoado de São Miguel tornara-se o maior de todas as reduções. É constatada a
necessidade de dividir essa grande povoação. Vários motivos são apresentados aos reduzidos,
tais como o grande mero de habitantes e a falta de campos férteis para o cultivo nos
arredores da redução entre outros.
Reunidos os índios principais, expus-lhes o pensamento do R. Pe. Provincial: a
saber, que se devia dividir a povoação por causa do grande número de habitantes, os
quais já nem a igreja comportava; nem dois padres poderiam instruir
convenientemente o povo na doutrina cristã, quanto menos um só; não podiam
governá-los por mais tempo com facilidade; além disso, começavam a faltar nos
arredores os campos para o cultivo, pois tornavam-se estéreis com o contínuo
amanho de tão longos anos; mesmo a maior parte deles estava tomada pelas
formigas que devastavam tudo, não eram bem adequados para a sementeira
334
.
Sintomática é a observação de Sepp mostrando as dificuldades inerentes a essa
tarefa. Afirma que não se propõe a fundar uma nova “colônia” com um povo que tenha um
alto senso de organização, mas que precisa realizar esse empreendimento com “índios sem a
mínima organização política, prudência e perícia nos negócios”
335
.
É o próprio Sepp que coordena a inspeção da área que servirá para a fundação da
nova redução. A descoberta do espaço adequado é acompanhada por um ritual que caracteriza
a mística que envolve o sistema reducional. O ritual é assim apresentado: “na outra manhã, ao
nascer do sol, subimos o outeiro onde erigimos o estandarte da Cruz salutar, em sinal da
334
SEPP, 1980, p. 199.
335
SEPP, 1980, p. 198.
135
tomada de posse daquela terra”
336
. Ao da cruz, o missionário com os índios reduzidos que
o acompanham entoam um hino de louvor a Deus.
A conquista do espaço representada pela presença do signo da cruz caracteriza a
ruptura definitiva com a situação anterior. O território, agora ocupado, era moradia de satanás,
espelunca de feras. O demônio aí reinava, dando vazão as suas artimanhas. O relato de Sepp é
carregado de simbolismo. Após dormirem no local, uma serpente, que estivera, tenta fugir,
mas é caçada. No imaginário católico, a serpente é figura representativa do demônio. Este não
pode mais conviver no espaço santificado pela presença da cruz de Cristo
337
.
Após esse ato de posse da terra que irá sediar a nova redução, Sepp retorna para
anunciar a todo o povo “que por mim fora descoberta uma terra, para a qual a Divina Bondade
decretava levá-los, como para a Terra da Promissão”
338
. Assim, toda a ação missionária é
apresentada, não como iniciativa humana, mas como a própria vontade divina. E o objetivo
final da ação é alcançar a terra prometida, à semelhança do Povo de Deus do Antigo
Testamento, que, saindo da escravidão do Egito, chegou à terra onde manava leite e mel. No
seu entender, a redução, planejada, fundada e organizada, será essa Terra da Promissão.
O início dos trabalhos de organização da nova redução é caracterizado como uma
ação realizada sob as nçãos divinas. A primeira iniciativa tomada é o rito da bênção dos
campos. Antes de iniciarem a preparação da terra para o plantio das sementes, “lancei sobre a
nova colônia a costumada bênção dos campos, para expulsar os demônios que, por causa da
infidelidade destes gentios, habitavam despreocupados estes lugares durante tanto tempo e
tantos séculos”
339
.
A terra da promissão precisava, antes de tudo, ser purificada. A bênção caracteriza a
presença da ação de Deus que representa a conquista do espaço até então sob o domínio do
demônio. Esse poder era possibilitado pela infidelidade e paganismo vividos pelos povos
residentes e ainda não alcançados pela missão. A bênção purifica os campos para que as
plantações possam frutificar. Mas, acima de tudo, constitui uma garantia para a posse pacífica
336
SEPP, 1980, p. 203.
337
Cf. SEPP, 1980, p. 203.
338
SEPP, 1980, p. 204.
339
SEPP, 1980, p. 208.
136
da terra sob a proteção de Deus: “possuíam, como cristãos, a terra de seus antepassados
gentios”
340
. Desse modo, a redução formava um espaço cristão conquistado do demônio.
Uma vez instalada a nova “colônia”, todo o povo é convidado a marchar até para
ocupar esse espaço. Essa marcha é comparada com a caminhada do povo de Israel até a Terra
Prometida. Caminhada cheia de dor e sofrimento, mas marcada pela esperança. Na motivação
feita por Sepp para encetar a caminhada, mais uma vez fica ressaltado o caráter da nova
redução. “Emigremos, pois, para onde Deus nos chama, e nos foi adiante o glorioso precursor
de Cristo, convidando-nos a segui-lo.”
341
E ele lembra que serão conduzidos não para o
deserto, mas “para os campos Elíseos e a terra da promissão, regada de leite e mel”.
Estruturar uma “terra da promissão” constitui uma dimensão relevante do imaginário
missionário de Sepp. No entanto, as iniciativas efetivas de articulação das reduções geraram
profundas transformações no modo de viver dos indígenas. Em sua análise da vida reducional,
Meliá aponta estes aspectos:
A redução tem um caráter totalizante e suas conseqüências serão irreversíveis em
todas as ordens. A redução perturba a ecologia tradicional, traz uma nova
morfologia social, dispõe do espaço urbano segundo intenções precisas, modifica o
sistema de parentesco. Na redução a religião guarani é atacada, ridicularizada,
suprimida e enfim substituída. Os ‘feiticeiros’ são acossados e perseguidos, expulsos
ou domesticados. Não há dúvida que a redução pretende modificar o ser guarani
342
.
Essas intensas transformações na vida do indígena resultaram da introdução dos
valores da cultura ocidental européia por intermédio da força da religião trazida pelos
missionários. A visão de mundo dos indígenas foi alterada. Pela ritualização das funções
sociais nas reduções, foi realizado o processo de mudança cultural. Em relação a essa
dinâmica, Kern observa que
a partir da ação evangelizadora e civilizatória dos missionários, o processo de
mudança cultural encetado promoveu mudanças sensíveis: a forma da aldeia, os
340
SEPP, 1980, p. 209.
341
SEPP, 1980, p. 235.
342
La reducción tiene un carácter totalizante y sus consecuencias serán irreversibles en todos los órdenes. La
reducción perturba la ecología tradicional, trae una nueva morfología social, dispone del espacio urbano según
intenciones precisas, modifica el sistema de parentesco. En la reducción la religión guaraní es atacada,
ridicularizada, suprimida y en fin sustituida. Los ‘hechiceros’ son acosados y perseguidos, expulsados o
domesticados. No hay duda que la reducción pretende cambiar el ser guaraní”. MELIÁ, 1986, p. 183.
137
tipos das habitações, o emprego do tempo, as funções sociais, a produção dos bens
econômicos, a organização política e o sistema de prestígio e autoridade
343
.
As mudanças operadas no modo de vida dos indígenas por meio das reduções são
percebidas por eles de distintas maneiras. De uma parte, certa acolhida de aspectos que
favorecem suas práticas e facilitam seu trabalho, tais como a introdução de instrumentos de
ferro em substituição aos seus utensílios feitos de pedra. De outra parte, observa Meliá:
os dirigentes guarani não se enganam sobre as mudanças radicais de estrutura que a
redução produzirá. É interessante notar que a redução tenha sido conceituada pelos
Guarani mais críticos como perda de liberdade; em outros termos, opressão e não
libertação. A expressão ‘dissimulado cativeiro fica como toque de alerta
inquietante
344
.
Essa contestação do sistema reducional aparece sobretudo nas resistências dos índios
não reduzidos, instigadas por suas lideranças, conhecidas como feiticeiros e pajés. Constituía,
no entender de Sepp, um dos obstáculos mais significativos ao pleno exercício da ação
missionária. Por isso ele se esmerou, sobremaneira, para conseguir a conversão de um
reconhecido pajé, o famoso cacique Moreyra.
As formulações de Sepp acerca da iniciativa de estruturação das reduções apresentam
diversos elementos significativos a ser considerados. Um primeiro aspecto a ter em conta está
relacionado ao processo de estabelecimento de fronteiras. O discurso revela que a inserção
dos indígenas na dinâmica reducional caracteriza, por um lado, as suas distinções em relação
aos espanhóis e demarca, por outro lado, as diferenças deles para com os índios não
reduzidos. Além disso, fica também evidenciada uma mudança significativa em sua própria
vida, configurando, de modo perceptível, um antes e um depois da entrada deles na redução.
Uma segunda questão, que aparece caracterizada no discurso, diz respeito ao
processo civilizatório. Os relatos de Sepp evidenciam que a instauração da dinâmica
reducional opera a gradativa transformação no modo de viver dos indígenas. Ressalta que a
integração nas reduções representa a passagem a uma vida civilizada. Para manifestar essa
343
KERN, 1982, p. 112.
344
Los dirigentes guaraní no se engañan sobre los cambios radicales de estructura que producirá la reducción.
Es interesante notar que la reducción haya sido conceptuada por los guaraní más críticos como pérdida de
libertad; en otros términos, opresión y no liberación. La expresión ‘disimulado cautiverio’ queda ahí como
toque de alerta inquietante”. MELIÁ, 1986, p. 182.
138
dimensão ele serve-se de expressões simbólicas que expressam modelos de vida selvagem em
oposição à vida ordenada, civilizada.
Outro aspecto a ser ressaltado está vinculado à temática da constituição da
identidade. O discurso articulado por Sepp representa as reduções como um mecanismo capaz
de gerar modificações no modo de viver dos indígenas. As condutas estigmatizadas vão sendo
alteradas. A efetiva inserção no processo reducional transforma os indígenas caracterizados
como infiéis selvagens e incapazes em cristãos civilizados e ordeiros. Aparece configurada
uma trajetória que se desencadeia desde a vida dispersa, em bandos, na selva, para um estágio
caracterizado pela expressão índio convertido cristão.
A ênfase conferida à estruturação das reduções nas formulações de Seep configura
essa realidade como uma eficaz força regulativa. Constitui-se como articulação de um
imaginário social que exerce a função de controle social de condutas. Nesse sentido,
concretiza-se como uma força ordenadora das práticas e relações sociais entre os sujeitos
envolvidos nesse processo. Para que tal dinâmica se efetivasse, tornava-se necessária a adoção
de iniciativas para introduzir os indígenas nas reduções. A consideração sobre esse
procedimento está desenvolvida no ponto seguinte.
4.3 Conversão e humanização
A insistência na necessidade da conversão do gentio pressupõe que ele esteja
vivendo em situação de pecado. Indícios disso seriam a poligamia, a nudez e a prática de
religiosidade embasada na mitologia indígena identificada como idolatria ou culto ao
demônio. Essas situações vivenciadas pelos indígenas são consideradas como
desvirtuamentos humanos. O índio era visto como homem, mas não como humanizado
345
.
Importava, pois, a intervenção da ação missionária que se apresentava como corretivo, tanto
humano quanto evangelizador.
A narrativa da conversão do cacique Moreyra manifesta-se como questão
emblemática
346
. Nela, Sepp apresenta, de uma forma muito viva, as iniciativas tomadas para
345
Meliá observa em relação ao índio que vai se convertendo, “se dirá de él que ‘vá perdiendo su ser y se va
humanando’, mientras que el retorno a la tradición es considerado negativamente”. MELIÁ, 1986, p. 109.
346
Cf. SEPP, 1980, p. 168-176. Este episódio é comentado por HAUBERT, 1990, p. 186.
139
lograr o sucesso da sua missão e a obtenção da conversão do gentio. Demonstra, de modo
eloqüente, a finalidade do esforço missionário, qual seja a de conseguir a integração do índio
na Cristandade. Mostra ainda que a conversão tem conseqüências na vida sociocultural do
indígena operando a passagem da vida bárbara para a condição civilizada.
O cacique Moreyra era um líder indígena do povo dos Yaros, um cacique feiticeiro,
sexagenário, ainda não convertido. Para acentuar a importância e salientar o significado de
seu empreendimento, Sepp caracteriza amplamente esse índio. Usa distintos qualificativos
para demonstrar o quão distante estava esse cacique da vivência da fé cristã. Desse modo, sua
narrativa ressalta a finalidade de suas práticas missionárias, bem como enfatiza a necessidade
de recurso a distintos meios para a consecução dos fins almejados.
A caracterização da identidade do cacique Moreyra, figura alvo da iniciativa de
Sepp, assume contornos de uma representação dramática. A tonalidade dos termos utilizados
na descrição dessa personagem confere significado e força expressiva à temática em questão.
Constituem elementos de legitimação dos procedimentos adotados na efetivação do propósito
apresentado.
Na construção dessa narrativa, Sepp apresenta características marcantes desse
indígena: “era famoso um certo mestre de arte mágica e cruel discípulo do gênio negro, tirano
e régulo deles, de nome Moreyra”
347
. Ele percebe que o cacique Moreyra goza de prestígio
entre seus subordinados. Ocupa posição eminente na tribo. Exerce influência sobre o seu
povo. Por isso, destaca mais ainda as suas características.
O próprio cacique Moreyra conhecia as iniciativas dos missionários e apresentava-se
como intermediário, tradutor, para possibilitar o contato deles com os povos ainda não
convertidos. Sepp afirma que até nessa iniciativa se mostrava seu gênio enganador. “Este
homem, laureado doutor na Escola de Lúcifer de infames mentiras [...]; intérprete fraudulento
da sã doutrina dos padres, não a referia e expunha aos seus com a devida fidelidade.”
348
Desse
modo, frustrava toda a obra dos padres. E não só dessa forma, como também com suas
mentiras, dissuadia os índios a abraçar a católica quando eles manifestavam tal desejo.
Buscava fazê-los acreditar que os presentes ofertados pelos padres seriam engodos com os
347
SEPP, 1980, p. 166.
348
SEPP, 1980, p. 166.
140
quais pretendiam conquistá-los para entregá-los como escravos aos espanhóis. Por essas e
outras razões, Sepp qualifica-o como “embusteiro velhaco”, “grandíssimo impostor”, “mestre
de artes infernais”.
Essa condição vivida por esse líder de indígenas constituía, para Sepp, a situação
ideal para realizar seu imaginário missionário. Sua aspiração mais profunda era a de atuar na
conversão de pagãos. Viera para a América motivado por essa finalidade. A oportunidade se
lhe apresentava propícia. Por isso, apresenta detalhadamente todo o seu proceder nessa
tentativa de lograr êxito em sua iniciativa.
Sepp menciona que procurou conquistar a confiança desse líder indígena.
Manifestando estima e generosidade, buscava uma aproximação com o mesmo. Ciente de
suas astúcias, tentava cativá-lo pela sua capacidade persuasiva, como ele mesmo o afirma.
Que fiz, eu que conhecia o lobo roubador de outrora, oculto em pele de ovelha, direi
em poucas linhas: fingi-me de ovelha, encobrindo sob esta pele o lobo apostólico, a
fim de, com o Divo Apóstolo das gentes, arrebatar ao demônio este espólio a
ponto de lhe cair nas garras. Abordando o velho astutíssimo com melhor astúcia,
cativei-o mediante tabaco, erva do Paraguai e palavras brandas, e por tal forma o
afeiçoei a mim, que quase todos os domingos não hesitava em vir fazer-me uma
visita, e até prometeu trazer seu filho único, que eu desejava ver
349
.
A estratégia adotada por Sepp não surtiu o efeito. Ele expressa que o famoso cacique
se mantinha irredutível face aos seus apelos. O método da persuasão, pela força da palavra,
mostrava ser insuficiente para convencer o cacique Moreyra a aderir ao projeto reducional.
A narrativa de Sepp apresenta razões que legitimam o recurso aos métodos por ele
adotados para a consecução do fim pretendido. Por isso, fraudada a força dos argumentos e
esgotado o limite da paciência, ele relata que recorreu, no limite, a um mecanismo extremo.
Serviu-se do argumento da força para intimidar o cacique a aderir aos seus propósitos. Após
premeditar seu plano, ele o executou por ocasião de uma visita do cacique Moreyra a sua
redução. E ele escreve sobre o seu proceder: “mando então que se assentem no chão [...]
entrementes chamo um ferreiro que lance as cadeias à presa, cadeias de amor, não de tirania,
349
SEPP, 1980, p. 168.
141
cadeias que os arrancariam do cativeiro infernal, dando-lhes alforria na liberdade dos filhos
de Deus”
350
.
A partir da descrição dessa cena, o relato de Sepp apresenta características de um
diálogo dramático. Diante dos protestos do cacique Moreyra, um discurso acusatório por
parte do missionário. Nele são recordadas ao famoso cacique as resistências que opunha à
obra missionária e mostrada a sua responsabilidade pela condição pagã de seus súditos. Tais
atitudes dele mereceriam uma sentença condenatória. No entanto, estava sendo oferecida a ele
a possibilidade de salvação se mudasse de procedimentos e aderisse à proposta do
missionário.
O tratamento de choque aplicado ao indígena tornara-o mais acessível. Desse modo,
o missionário complementa a sua iniciativa, lançando mão de diversos meios:
empenhei-me por granjear aos poucos a simpatia de meu prisioneiro com palavras
afáveis, provendo cuidadosamente a que nada lhe faltasse na alimentação diária, pois
bem sabia que não se encontraria meio mais apto para ganhar esta gente gulosíssima.
Posto que em outras nações infiéis consoante o Doutor das gentes, São Paulo, a
costuma entrar pelo ouvido nos ouvintes, nestes bárbaros verificamos que ela entra
de preferência pela boca
351
.
Esses relatos apresentam elementos significativos sobre os métodos utilizados para
obter a conversão dos indígenas. Apesar da utilização da palavra na conversão, o jesuíta não
abriu mão de um outro meio importante: a voracidade do índio. Se o indígena parecia incapaz
de receber a palavra sagrada por si só, ele foi convertido pelo estômago. Além do mais, é
preciso ressaltar que o cacique Moreyra foi forçado a aceitar a salvação pela fé católica.
E na parte final da narrativa do episódio da conversão do cacique Moreyra, ao
apresentar a conversão da mulher do mesmo, Sepp, em sua fala, deixa transparecer o sentido
que orienta o seu esforço pela conversão dos indígenas. Até agora vivestes como gentios,
bárbaros canibais; [...] agora, porém, hei-de vos fazer homens, civilizados, humanos e
cristãos.
352
Tais expressões traduzem, como que em síntese, a trajetória a ser percorrida
pelos destinatários da ão missionária. Esse arco de possibilidades assinala a condição em
350
SEPP, 1980, p. 169.
351
SEPP, 1980, p. 170.
352
SEPP, 1980, p. 173. Ver também a respeito da conversão AZZI, Riolando. A cristandade colonial: um
projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987. p. 86.
142
que se encontram quando fora do alcance das práticas de missão e aponta para a situação
resultante das transformações nela realizadas. Constituem uma manifestação típica de
fronteiras estabelecidas entre essas distintas realidades.
O discurso do missionário assume a característica de elemento legitimador de suas
práticas. Tal mecanismo efetiva-se pela forma própria em que sua estrutura é articulada. A
maneira de apresentar o indígena constitui o primeiro aspecto dessa dinâmica. O seu modo de
vida, segundo suas formulações discursivas, revela a ausência de condições próprias de
humanização. Essa realidade representa um fundamento justificador da atuação missionária,
que se manifesta como meio necessário para que o indígena possa alcançar o estágio de
civilização. A narrativa cumpre a função de instituição de significado. As iniciativas
implementadas adquirem sentido por se enquadrarem no arco de possibilidades configurado
pelo imaginário missionário de Sepp.
A compreensão de Sepp retratou o índio como um animal, ressaltando no mesmo a
barbárie, o primitivismo, a presença do demoníaco, do insano e de irracionalidade que, em
nome de Deus e da Santa Igreja Católica, urgia expurgar. O índio foi visto como selvagem,
não civilizado, que precisava ser resgatado dessa condição e ser humanizado. O jesuíta
considerou ineficaz, neste contexto, apenas a revelação da palavra divina pelo missionário. A
força da palavra anunciada, mesmo com toda a ênfase e convicção missionária, nessas
circunstâncias, mostrava-se frágil. O recurso aos meios de coação ficava, portanto, justificado
em vista dos fins a serem alcançados.
4.4 Pedagogia missionária
Em sua carta
353
de apresentação do diário de viagem, Sepp menciona os indígenas
paraguaios cristãos e assim se expressa:
são estes paraguaios cristãos muito bons e piedosos, a ninguém submissos a não ser
aos nossos Padres, amando-nos assim como o filho ama ao pai. Somos nós que os
vestimos, instruímos e educamos. São muito aplicados e imitam tudo que vêem
354
.
Nesse breve texto, de certo modo, ele traduz aquilo que constituía sua intenção e, ao
mesmo tempo, seu procedimento enquanto missionário. Apresenta alguns elementos
353
Datada de 15 de abril de 1691, conforme SEPP, 1980, p. 71.
354
SEPP, 1980, p. 71.
143
significativos da pedagogia que permeava suas práticas. Manifesta aspectos marcantes das
relações sociais específicas do imaginário articulador e legitimador de suas iniciativas.
Ao afirmar “paraguaios cristãos”, Sepp refere uma realidade na qual ele pressupõe
a realização de uma etapa do processo missionário. Reconhece as atividades de seus
antecessores, que atuaram para conseguir a conversão dos indígenas e sua inserção nas
reduções. Considera que já passaram por esse estágio inicial e sente contemplado o seu desejo
de atuar na conversão de pagãos. Desse modo, fica também delineada a fronteira que
circunscreve o alcance das práticas missionárias. No seu entender, esse aspecto constitui uma
dinâmica fundamental da pedagogia missionária.
Outro elemento que ele ressalta diz respeito às características próprias do modo de
ser dos indígenas inseridos nesse processo. Nesse particular, ele revela um otimismo
pedagógico muito acentuado. Observa que os neófitos são “muito bons e piedosos”. Sugere
que as práticas missionárias, desenvolvidas com os indígenas, apresentem essa capacidade de
operar neles a transformação de disposições. Ele os considerara bárbaros e selvagens pelo fato
de viverem dispersos nas selvas. Uma vez inseridos na vida reducional, ele acredita que se
apresentem modificados e entende que sua intervenção consolide essas mudanças, tornando-
os civilizados.
A prática missionária, conforme essa afirmação de Sepp, incidia expressamente
sobre as relações que se estabeleciam entre missionários e seus aprendizes. Ele expressa que
os indígenas se tornam “submissos aos Padres”. Percebe-se, nesse aspecto, o exercício de
ações de tutela, geradoras de atitudes de dependência. Esse aspecto pode ser confirmado por
afirmações do próprio Sepp, por exemplo, ao expressar: “devemos ser tutores deles” tanto nas
coisas espirituais quanto nas materiais
355
.
A essa espécie de paternalismo pedagógico, corresponde a atitude de afeição quase
filial demonstrada pelos indígenas. Sepp escreve que eles nos “amam assim como o filho ama
ao pai”. No seu entender, eles devotam um reconhecimento tácito de sua dependência à oferta
de proteção proposta pelo missionário. A configuração dessa rede de relacionamentos sugere
o protagonismo centralizado na pessoa do agente catequizador. Aos aprendizes, cumpre
355
Cf. SEPP, 1980, p. 195.
144
desempenhar o esforço de adaptação de suas disposições aos ditames dos condutores do
processo.
Esse conjunto de elementos apresentados e a dinâmica que desencadeiam apontam
para a dimensão essencial do processo pedagógico indicado por Sepp em sua afirmação:
“Somos nós que os vestimos, instruímos e educamos”. A iniciativa do missionário
desenvolve-se em três dimensões constitutivas.
Em primeiro lugar, cabe a ele a responsabilidade de tomar providências para a
obtenção dos meios necessários à vida. Os indígenas até executam as tarefas inerentes a essa
finalidade. Fazem-no, porém, sob a direção e supervisão do padre. Em segundo lugar,
sobressai a prática missionária enquanto articulação de iniciativas para a adequada instrução
dos neófitos nos princípios da doutrina católica. Nesse aspecto fica ressaltada a figura do
missionário como agente do processo por excelência. Ele exerce o controle sistemático dos
procedimentos inerentes a essa dinâmica. Desempenha essa função mediante a transmissão
clara dos conteúdos a serem assimilados. Por outro lado, aplica-se a estimular os indígenas a
fim de que memorizem adequadamente os elementos ensinados. Por último, Sepp menciona
que os missionários educam os indígenas. Entende que sua atuação e a tutela exercida sobre
os índios provocam neles mudanças de atitude e de modo de viver. Destaca que tais
modificações são provocadas pela iniciativa dos missionários. Sua intervenção pedagógica
determina o sentido e o rumo das alterações provocadas.
A essa dinâmica catequética corresponde a disposição própria dos neófitos. Sepp
refere que “são muito aplicados e imitam tudo que vêem”. Com isso ressalta que a iniciativa
dos missionários resulta eficaz e satisfatória pelo fato de produzir os efeitos esperados. Os
indígenas se mostravam pouco propensos para a reflexão teórica e apresentavam dificuldades
para a criação intelectual. No entanto, sua capacidade imitativa e predisposição para
atividades práticas fora percebida. Ele acredita que a aprendizagem deles manifesta-se desse
modo. Por isso, ressalta que “imitam tudo quanto vêem”.
Ao longo de seus relatos, Sepp apresenta outros aspectos característicos da
pedagogia missionária. O modo próprio de encaminhar as atividades e iniciativas do dia-a-dia
manifesta essa dimensão. Nas reduções, o cotidiano dos fiéis transcorre dentro dum clima
religioso. Todas as atividades e horários o ritualizados e envolvidos com uma característica
de fé. Esse método tem a função de aprofundar no espírito dos neófitos o sentido cristão que
145
permeia toda a vida. Apresentando essa dinâmica, salienta o caráter formativo e disciplinador
de sua atuação. Efetiva-se, desse modo, a força regulativa do imaginário, configurando
significados para essas práticas.
Tal perspectiva proporciona aos membros da redução um ambiente pedagógico. O
despertar para o novo dia é um convite para louvar ao Criador. A igreja, ao centro da redução,
chama os fiéis para entrarem na dinâmica cristã. A oração matutina desperta-os para as tarefas
do dia
356
. Invoca-se a proteção de Deus sobre as atividades que serão realizadas. O próprio
ritmo do trabalho diário é determinado pelo sino da igreja da redução e inspecionado pelo
missionário. Criam-se, desse modo, as condições fundamentais para o aprendizado do modo
cristão de conduzir a vida. Esse conjunto de elementos mencionados representa a articulação
de um sistema simbólico, que configura as condutas dos indivíduos a ele referenciados.
Um dos métodos privilegiados na catequização é o ensino da doutrina. Os adultos
são periodicamente reunidos para que tenham conhecimento das verdades cristãs
357
. Além das
reuniões específicas, também os sermões são oportunidade para a transmissão dos conteúdos a
serem assimilados. O destaque atribuído por Sepp à atuação do missionário no processo
ensino-aprendizagem do índio configura-se elucidativo nesse sentido. “O Padre Missionário
precisa ser tudo a todos, falando com São Paulo.
358
Ele justifica esse procedimento tutelar do
missionário, ressaltando a parca capacidade reflexiva dos indígenas. Menciona, inclusive, que
a percepção dessa condição fora ocasião de dúvidas acerca da possibilidade de admissão dos
mesmos à recepção dos sacramentos da Igreja
359
. Tal característica dos índios dificulta o
encaminhamento das práticas missionárias. Sepp afirma que eles não são capazes de criar,
“mesmo que fosse o mais simples trabalho manual, mas sempre precisa estar o Padre junto
deles e orientá-los e fornecer-lhes moldes e modelos”
360
. No entanto, reconhece que é bem
saliente a sua habilidade imitativa.
356
Cf. SEPP, 1980, p. 152-154.
357
Cf. SEPP, 1980, p. 125.
358
SEPP, 1980, p. 144.
359
Ele afirma textualmente: Estes índios são tão pueris, tão grandemente simplórios e de juízo tão curto, que os
primeiros Padres, que converteram estes povos, duvidaram realmente se eram capazes de receber os Santos
Sacramentos”. SEPP, 1980, p. 144.
360
SEPP, 1980, p. 144.
146
A repetição e a memorização são uma constante na forma de atuação dos jesuítas,
mas que parecem, segundo Sepp, não alcançar resultado no meio indígena, inapto para as
tarefas “mentais” e espirituais. A capacidade imitativa, por seu turno, é admirada e estimulada
nos mais variados aspectos do cotidiano nas reduções, sendo o método pedagógico por
excelência, utilizado por Sepp para civilizar os indígenas. Apesar de considerar os índios
inaptos para as coisas espirituais, ele enfatiza a possibilidade da missão, utilizando-se
exemplos, fazendo com que os indígenas concretizem as obras que considera necessárias à
tarefa missionária através dos moldes ou modelos a serem seguidos.
Atenção especial no ensino da doutrina é dispensada às crianças. Elas são reunidas
diariamente para aprenderem os fundamentos da fé
361
. Aprendem as orações. E valendo-se de
dinâmicas de memorização vão fixando os principais elementos da doutrina cristã. De
diferentes modos, Sepp incentiva os pequenos a aplicarem-se ao aprendizado da doutrina
cristã.
Parte integrante da metodologia da catequese dos jesuítas é o recurso aos castigos
físicos. Esses são utilizados como método para pressionar os indígenas na adoção de atitudes
adequadas à vida comunitária. Sepp faz seguidas menções à aplicação desse recurso
362
. A esse
se recorre como meio de punição de quem cometeu falta contra alguém ou contra a
comunidade, ou, também, como instrumento de criação de disciplina necessária ao
desenvolvimento de determinada atividade.
Diversos foram os instrumentos utilizados por Sepp na construção, manutenção e
aperfeiçoamento da vida nas missões. Em seus escritos, mencionou a atuação dos padres,
acentuando as atividades tendentes à integração do índio às missões. Ele enfatiza essas
práticas, afirmando:
quem ensinou a esses pobres índios abandonados a doutrina cristã, quem os ensinou
a rezar o santo Padre-Nosso, a cozer pão, a fazer roupas, a cozinhar, pintar, fundir
sinos, tocar órgão e harpa, corneta, charamela e trombeta, quem os ensinou a fazer
verdadeiros relógios [...] quem lhes ensinou tudo [...] foram os primeiros Padres
Missionários, nossos santos predecessores
363
.
361
Cf. SEPP, 1980, p. 152.
362
Cf. SEPP, 1980, p. 149.
363
SEPP, 1980, p. 135.
147
Ao fazer referência às práticas pedagógicas adotadas pelos seus antecessores, Sepp
reconhece a atividade missionária em curso. Apresenta elementos que permitem evidenciar
o alcance e abrangência das iniciativas educativas. Essas contemplam diversas dimensões da
vida cotidiana dos neófitos.
Inserindo-se na dinâmica missionária em realização, Sepp tem a oportunidade de
trazer sua contribuição ao processo. E ele faz questão de destacar a sua própria atuação. Numa
passagem de seus relatos, ele assim se expressa:
Quem foi que ensinou aos meus índios a tecer franjas e bordar rendas? A costurar e
fazer com a agulha corporais, cortinas, casulas e todas as alfaias do culto divino?
Quem lhes guiou a mão para tornear do chifre aqueles relicários romanos? Quem
lhes ensinou a lavrar a pedra, a burilar, com esforços incríveis, estátuas, altares,
púlpitos e a fazer mil outros trabalhos perfeitíssimos? Foi o Pe. Antônio que, com o
auxílio da graça de Deus, ensinou tudo isto aos seus indígenas, e lhes -de fazer
aprender muito mais ainda, se o misericordioso Deus lhe conceder vida
364
.
Esses textos acima apresentados permitem verificar a multiplicidade de instrumentos
pedagógicos utilizados pelos jesuítas na implementação de suas práticas missionárias. Na
constituição do imaginário missionário de Sepp, o ensino da doutrina parece ocupar um
espaço de proeminência. No entanto, com o desenvolvimento da missão sua percepção tende a
uma ampliação de perspectivas. Ocorre uma evolução gradual desde o ensinamento da
verdadeira religiosidade aos indígenas, sua ritualização e ornamentação, ao ensino dos ofícios
diversos e necessários à estruturação da vida social nas povoações reducionais.
4.5 Ritualização e simbologia religiosa
Uma parte significativa das práticas missionárias articuladas por Sepp junto aos
indígenas é representada pela variedade de ritos e símbolos religiosos introduzidos no
cotidiano da vida reducional. Ele percebe que esse tipo de procedimento metodológico
apresenta possibilidades de eficácia mais acentuada do que o ensino sistemático e metódico de
conteúdos doutrinais
365
. A ênfase concedida a esses aspectos em suas articulações discursivas
revela a atuação da força do imaginário expressa nas representações simbólicas. Elas agem
364
SEPP, 1980, p. 245.
365
Ele próprio manifesta tal percepção ao afirmar que busca “despertar-lhes e gravar-lhes com o aparato litúrgico
exterior uma inclinação interior para com a religião cristã”. SEPP, 1980, p. 153. Em outra ocasião, organizando a
representação do presépio na celebração do Natal do Senhor, ele observa que isso “suscitara terníssima devoção
na alma dos índios”. SEPP, 1980, p. 215.
148
sutil, mas eficazmente sobre a mentalidade dos indivíduos a elas referenciados. Em seus
relatos ele apresenta distintos aspectos dessa dinâmica implementada nas missões.
Um dos aspectos que merece destaque em seus registros é a questão da música. Os
missionários do período colonial, e os jesuítas em especial, conheciam o poder de atração do
canto e da música sobre a alma dos índios. Sepp lembra que “os selvagens quase nus ouviam
ao canto com todo o respeito e modéstia”
366
. Muitos missionários buscavam entrar em contato
com os índios cantando ou tocando instrumentos musicais. Os índios ficavam encantados com
as melodias.
Nos relatos de Sepp, percebe-se que o canto e a música servem não apenas para
estabelecer contatos. Ele destaca que constituem dimensões fundamentais da dinâmica
missionária implementada nas reduções. Anota também as limitações por ele constatadas no
desenvolvimento desses aspectos. E busca as maneiras mais adequadas para dinamizar esses
meios como forma de dar mais brilho às celebrações litúrgicas
367
, bem como animar distintos
momentos da vida comunitária. Articula a formação de coros de execução de cantos.
Incentiva os índios ao aprendizado da música e os introduz à prática dessa arte. Boa parte das
ocupações de seu dia-a-dia é dedicada a essa questão. Ele próprio dedica-se à fabricação de
instrumentos musicais e incentiva os índios a fazerem o mesmo
368
. E esse fato é tão notório
que merece a consideração e menção de honra dos que visitam as missões.
Entre os meios muito utilizados na ação evangelizadora, encontram-se as
representações teatrais
369
. Constituíam uma maneira adequada de dar visibilidade aos
elementos teóricos do conteúdo doutrinal. Dado que os indígenas demonstravam pouca
capacidade reflexiva, as manifestações artísticas favoreciam a assimilação e memorização de
dimensões essenciais das verdades da cristã. Desse modo, para tornar mais acessível à
compreensão dos indígenas os princípios da vida cristã, Sepp menciona que realizou uma
diversidade de práticas e representações desse caráter.
366
SEPP, 1980, p. 119.
367
Sobre a questão dos cuidados dispensados à solenidades dos atos litúrgicos, é muito significativa a
observação de Haubert: “os jesuítas sempre aproveitaram a verdadeira fascinação exercida pelo aparato e pela
magnificência do culto católico sobre os selvagens”. HAUBERT, 1990, p. 128.
368
Cf. SEPP, 1980, p. 244.
369
Cf. SEPP, 1980, p. 243.
149
Ele relata que uma das atividades muito apreciadas e participadas pelos seus
aprendizes eram as encenações de episódios narrados em passagens bíblicas. Com esse
recurso metodológico, tornava muito palpável a verdade revelada, sensibilizando os neófitos.
Além disso, constituíam oportunidades de expressão dos indígenas, nas quais se mostravam
muito aplicados. Igualmente eram bem vistas as coreografias e danças rituais realizadas por
ocasião de celebrações especiais e solenidades.
Nesses elementos acima apresentados, manifesta-se uma dinâmica característica do
imaginário social. Ele vai sendo constituído pelo conjunto de representações sociais e
simbólicas articuladas pelos sujeitos na elaboração coletiva dos significados atribuídos às suas
práticas. No entanto, reciprocamente esse imaginário, assim constituído, influencia as
condutas individuais e coletivas dos membros de determinado grupo social.
Nas práticas missionárias implementadas pelo missionário Sepp nas reduções e por
ele relatadas na história que vai constituindo, evidencia-se essa dinâmica em
desenvolvimento. Na medida em que ele vai conduzindo o processo, tanto das iniciativas
quanto da escrita, ele também institui e atribui significados a esses elementos constitutivos de
seu imaginário. Nesse sentido, verifica-se uma dupla influência. Por um lado, ele intervém
decisivamente na configuração das condutas dos membros das reduções, destinatários de suas
práticas. Por outro lado, impressiona e desperta o interesse dos seus concidadãos e confrades,
destinatários de suas cartas.
Nos seus escritos, recebem também especial destaque as celebrações das grandes
festas litúrgicas. Menciona, sobretudo a de Natal, Páscoa e do Corpo de Cristo, nas quais eram
recordados e celebrados os mistérios centrais da cristã. Relata que, para essas ocasiões,
dedicava uma atenção e esmero maior na sua preparação e celebração. Mobilizava os
membros da comunidade reducional para criar as condições necessárias a fim de assegurar o
máximo de solenidade a esses eventos. Acerca desse aspecto é muito significativa a
observação de Gambini ao afirmar que “os jesuítas não tardaram a se dar conta do enorme
efeito prático exercido pela parafernália litúrgica sobre os índios, tendo dela feito uso
150
pleno”
370
. Grandiosas procissões organizadas por ocasião de festas dos santos oportunizavam
o envolvimento e visualização que favorecem a fixação da doutrina cristã.
A preparação e celebração dos sacramentos têm atenção especial do missionário.
Sepp lembra os vários batizados realizados em distintas circunstâncias. Os índios são
motivados à busca freqüente do sacramento da confissão como meio de purificação de suas
almas contaminadas pela presença viva do demônio
371
. A celebração do matrimônio recebe
destaque como meio para incentivar o casamento monogâmico e afastá-los definitivamente da
prática da poligamia típica de sua vida no paganismo.
A devoção aos Santos merece do missionário um destaque especial. Os índios são
ensinados a reproduzir imagens que ornamentam os templos. Sepp é devoto todo particular de
Nossa Senhora de Alt-Oettingen. Distribuindo imagens desta Santa, por ele próprio
confeccionadas, incentiva e promove a devoção dos índios. Nos seus escritos, mostra-se
agradecido por acontecimentos extraordinários por ele presenciados e que são interpretados
como sendo sinais inequívocos da intercessão de Nossa Senhora
372
.
O meio distintivo para demarcar as fronteiras entre a vida no paganismo e a vivência
da fé cristã é o signo da cruz. A adoção da cruz, como sinal do cristão, é o rito que caracteriza
a saída do domínio do demônio para integrar o grêmio da Santa Igreja Católica. O santo sinal
da cruz é ensinado a todos os fiéis, integrantes da redução. São motivados a realizá-lo com a
devida devoção. Os missionários e seus auxiliares diretos usam carregar uma cruz como
elemento distintivo de sua condição
373
. Compreendendo-se como pastores do povo, o seu
cajado é uma cruz. Este símbolo serve de amparo e proteção contra os males que os possam
afligir.
A própria disposição espacial do povoado das reduções expressa um caráter
simbólico. Ao centro do povoado está estabelecida uma cruz para demarcar o espaço: esse
território pertence ao domínio de Jesus Cristo. Uma grande cruz de madeira é estabelecida no
território adentrado pelos missionários e índios convertidos, onde estava sendo instalada a
370
GAMBINI, 1988, p. 96.
371
Cf. SEPP, 1980, p. 192.
372
Cf. SEPP, 1980, p. 193.
373
Cf. SEPP, 1980, p. 151.
151
nova redução, como sinal de tomada de posse da nação antes devotada ao domínio de Satanás.
A cruz também demarca os campos trabalhados pelos índios. Sinal de que realizam seu
trabalho no caminho da salvação. A fundação da nova “colônia” é assinalada com o estandarte
da cruz
374
. Esses aspectos mencionados nas narrativas caracterizam dimensões relevantes do
imaginário que se constitui como referencial tanto de suas práticas quanto de seus escritos.
A abordagem das formulações discursivas de Sepp acerca das práticas missionárias
tornou possível evidenciar alguns aspectos significativos. Dentre esses, cabe destacar os que
são considerados a seguir.
Na produção de história materializada em seus escritos, ocorre um processo de
atribuição de significado a suas práticas missionárias. Elas configuram-se como uma dinâmica
de instituição de fronteira demarcadora da conduta dos indígenas envolvidos nas iniciativas de
missão. Ao mesmo tempo, são representadas como fator de implementação do processo
civilizador, que opera as alterações no modo de vida dos indígenas com os quais foram
desenvolvidas essas práticas.
As formulações discursivas configuram-se como arranjo argumentativo tendente a
constituir-se em elemento de legitimação das práticas apresentadas nas narrativas. Mais do
que apenas descrições de aspectos marcantes das iniciativas articuladas e realizadas
expressam a antecipação imaginária de um estado de coisas a se efetivar.
Nesse sentido, as elaborações discursivas acerca das práticas contribuem no processo
de instituição do imaginário missionário. Por um lado, elas o influencia ao realizarem a
proposição de elementos significativos para essa constituição. Por outro lado, são por ele
configuradas na sua capacidade de percepção das realidades consideradas em sua atividade
narrativa.
A consideração do desenvolvimento mais estrito da dimensão do imaginário
enquanto antecipação de um estado de coisas a se efetivar; a abordagem de aspectos
relevantes do processo de constituição de sentido da realidade e a análise de elementos
característicos do discurso enquanto função legitimadora de práticas constituem questões a
serem tematizadas e aprofundadas no capítulo a seguir.
374
Cf. SEPP, 1980, p. 203.
5 MARCAS DE CONVERSÃO
Elucidar aspectos relevantes da construção do imaginário missionário a partir dos
relatos do padre Sepp constitui a intenção fundamental da pesquisa. Apresentado o construto
teórico articulado como referencial de análise e interpretação dos dados em questão
375
;
considerado um conjunto de elementos relacionados ao processo de constituição da identidade
do missionário em foco nesse estudo
376
; introduzida a reflexão sobre dimensões significativas
da compreensão do missionário acerca da alteridade indígena com a qual se depara em suas
iniciativas
377
; analisadas questões marcantes das práticas implementadas na ação
missionária
378
, trata-se, agora, de articular uma abordagem criteriosa de uma temática bastante
ressaltada e enfatizada nos escritos de Sepp.
Este capítulo apresenta aspectos relevantes das formulações acerca dos resultados
que, no entender de Sepp, a ação missionária vai desencadeando junto aos indígenas.
Considera os elementos constitutivos da dinâmica religiosa e social que ele acredita
instaurada mediante a consolidação das práticas missionárias. Aborda traços característicos de
sua compreensão das disposições dos indígenas integrados pelo processo de conversão na
vida reducional. Analisa as manifestações típicas das práticas resultantes das iniciativas
pedagógicas adotadas pelo missionário, relatadas em seu discurso. A partir desses
procedimentos, busca aprofundar a reflexão sobre o significado representado por esses
aspectos na constituição de seu imaginário missionário.
375
Esse ponto se encontra desenvolvido no capítulo 1 deste estudo.
376
Tais questões são abordadas nas reflexões articuladas no capítulo 2 da pesquisa.
377
Verifique esses desdobramentos dessa temática nas formulações do capítulo 3 desta tese.
378
As considerações acerca desses aspectos são encontradas no capítulo anterior.
153
5.1 O trabalho
O trabalho dos indígenas reduzidos constitui uma das marcas distintivas de sua
conversão. Estar integrado na dinâmica da vida comunitária implicava a participação nas
atividades laborais habituais. Mediante a inserção na comunidade reducional operavam-se
mudanças significativas no modo de exercer as práticas relativas à obtenção dos bens
necessários à vida material. A maneira de realizar o trabalho sofreu alterações intensas e
profundas com a entrada dos indígenas no estilo de vida instaurado nas reduções. Ocorreu um
processo de racionalização das iniciativas e dos esforços dos sujeitos envolvidos nessa nova
configuração sócio-cultural-religiosa, representada pela redução.
Os discursos articulados nos relatos de Sepp apresentam vários elementos sobre essa
dimensão. Expressam assim a importância atribuída por ele a essa realidade. Manifestam
aspectos significativos que o trabalho representa na ão missionária desenvolvida junto aos
indígenas. Demonstram o modo como percebe a situação vivida pelos índios em seu estágio
anterior a sua inserção na dinâmica específica desencadeada nas reduções. Evidenciam a sua
compreensão quanto aos procedimentos a serem adotados para dinamizar as práticas de
trabalho.
A entrada dos indígenas nas reduções representava uma mudança substancial em seu
modo de viver. Superavam a instabilidade relativa à provisão de bens para a vida. Inseriam-se
numa dinâmica que lhes assegurava as condições básicas de sobrevivência. Esses aspectos são
apresentados nos discursos de Sepp. Ele observa que os missionários providenciam tudo o que
os índios necessitam para viver. “Dentro dos aldeamentos o Padre Missionário distribue,
gratuitamente, duas vezes ao dia, a carne que os índios precisam.”
379
O mesmo ocorre também
em relação à vestimenta e aos remédios necessários para a manutenção da saúde dos membros
da comunidade. Suas formulações discursivas instituem fronteiras mediante a atribuição de
sentido específico às relações sociais articuladas nas reduções.
A integração na vida reducional era a condição para que os indígenas fossem
contemplados na distribuição dos bens. Implicava também a participação ordeira nos
trabalhos para a obtenção dos mesmos. Todos os membros da redução eram obrigados a
379
SEPP, 1980, p. 142.
154
trabalhar
380
. No entanto, os trabalhos não representavam sobrecarga massacrante, dado que
havia tempo estipulado para a realização dos mesmos. A iniciativa missionária visava
transformar os trabalhos pontuais e ocasionais em tarefas habituais e cotidianas. Esse aspecto
constitui uma manifestação do controle social exercido pela força regulativa do imaginário.
Ao apresentar aos seus leitores uma denominada “ordem do dia dos missionários”,
Sepp faz uma referência a esse aspecto. Lembra que, após um primeiro momento de oração
comunitária, pela manhã, todos se dirigiam as suas ocupações. Igualmente anota que, após o
almoço, o sino dá o sinal para o reinício dos trabalhos dos integrantes do povoado
381
. Desse
modo, criava-se uma rotina de trabalhos como algo constitutivo da vida social dos indígenas
reduzidos. Essa realidade assim constituída configura o significado atribuído ao modo de vida
implementado pelas práticas missionárias.
Mediante o trabalho buscava-se também desenvolver o senso de responsabilidade
pessoal. Cada família recebia seu lote de terra e era incentivada a trabalhar nele para produzir
o necessário ao sustento da vida ao longo do ano. Com esta medida, os missionários visavam,
também, gradativamente, disciplinar os indígenas para assimilarem a noção de previdência.
Essa questão, no entender de Sepp, demandava uma dedicação especial do padre que
precisava desempenhar basicamente uma função supletiva de administração dos bens
produzidos pelas famílias
382
. Somente assim conseguiria encaminhar providências de tal
modo que todos dispusessem do necessário para viver.
Uma parte significativa do trabalho nas reduções era desenvolvida de modo coletivo.
Para tanto, eram formados grupos de trabalho para realizar as distintas atividades
indispensáveis ao atendimento das necessidades de manutenção do povoado. Entre essas
iniciativas merecem destaque a pecuária e a agricultura. O acompanhamento do gado nas
estâncias das reduções exigia o empenho de várias equipes, que se revezavam nessa ocupação.
380
Em sua reflexão sobre as reduções, Estrago ressalta esse aspecto ao afirmar: “o trabalho era obrigatório nas
reduções”. ESTRAGO, 1992, p. 525.
381
O relato afirma, de modo explícito: “A las dos se toca la gran campana en señal de trabajo. Entonces
comienza otra vez la inspección de los talleres”. (Às duas horas toca o sino grande dando o sinal de trabalhar.
Então começa outra vez a inspeção das oficinas.) SEPP, 1971, p. 227.
382
Em seu texto, Sepp afirma que os índios “não tem a nima preocupação pelo dia de amanhã”. Adiante
lembra que “só poucos índios se encontrará que sejam capazes de guardar as sementes até a época da sementeira.
Por isto, também neste particular, precisa o padre olhar pelas coisas”. E ainda acrescenta: “pode-se inferir que
este povo não tem previdência alguma, que tudo devora num dia e não cogita de que precisa viver também no dia
seguinte”. SEPP, 1980, p. 147.
155
Periodicamente havia a necessidade de conduzir lotes de gado para os currais próximos dos
povoados a fim de estar disponível para o abate diário, para servir de força de trabalho (juntas
de bois para arar os campos...) e para a produção de leite
383
. Por outro lado, o cultivo das
roças comunitárias requeria a disponibilidade de grande quantidade de mão-de-obra. O
produto das colheitas dessas plantações coletivas era recolhido em armazéns específicos do
povoado.
Para bem dinamizar a vida no povoado, Sepp menciona a organização de distintas
atividades e ofícios. uma diversidade de trabalhos que precisam ser atendidos. Esses
distintos trabalhos são necessários para atender ao bom funcionamento da vida comunitária.
Constituem também oportunidades sem par em vista do aprendizado dos indígenas. Atuando
nas diferentes oficinas os mesmos capacitavam-se como artesãos em diversos ramos das
atividades econômicas articuladas nas reduções.
O encaminhamento e a organização dos trabalhos estavam sob a coordenação do
padre. Cabia-lhe supervisionar a execução das tarefas. Sepp menciona que diariamente visita
as oficinas
384
. Quando possível, vai aos campos para acompanhar a adequada realização das
atividades. Ao mesmo tempo em que orienta os trabalhadores nos procedimentos, sua
presença visa ajudar a superar a inconstância de seus aprendizes no desempenho dos
trabalhos.
Com a organização das reduções, foi implementada uma nova distribuição das
tarefas. Todos os jovens e adultos estavam obrigados a participar nos trabalhos. Os homens
ficavam encarregados dos trabalhos de preparação e cultivo dos campos. Cabia a eles também
a responsabilidade pelas lides no setor da pecuária. O trabalho de fiação do algodão para a
confecção de tecidos, bem como a ocupação com as diversas lidas domésticas, estava ao
encargo das mulheres. Aos rapazes e moças, ficava reservado o trabalho de colheita do
383
Sepp anota: “Há pouco, minha aldeia saiu campo afora para arranjar vacas para a alimentação diária deste
ano. Em dois meses reuniram 50000 vacas e as trouxeram para meu aldeamento.[...]O maior trabalho e arte
consiste em que os índios reúnam tão jeitosamente os animais, que nenhum estoure e dispare. O que conto desta
minha aldeia também vale para as 26 outras reduções”. SEPP, 1980, p. 143.
384
Uma breve menção em relação à diversidade de ofícios e às visitas do padre às oficinas verifica-se no
seguinte texto: “Depois que instr os músicos e dançarinos, visito as outras oficinas, a olaria, o moinho, a
padaria. Verifico o que estão fazendo os ferreiros, os carpinteiros e marceneiros, verifico o que estão trabalhando
os escultores, o que pintam os pintores, o que tecem os tecelões, o que torneiam os torneadores, o que bordam os
bordadores, o que carneiam os carneadores. Estes últimos, sendo a aldeia bastante grande, chegam a carnear 15 a
20 vacas por dia”. SEPP, 1980, p. 153.
156
algodão, o acompanhamento de algumas atividades na horta e no pomar da redução. Em
certas ocasiões, até os meninos e meninas eram requisitados para a tarefa de vigiar as
plantações a fim de espantar os pássaros que as atacavam, causando consideráveis prejuízos.
A principal finalidade do trabalho era a de conseguir assegurar os bens necessários à
manutenção da vida nas reduções. Em vista disso, havia a insistência para o empenho no
cultivo da terra e na criação de gado. Além de produzir para a alimentação e o vestuário, havia
a necessidade de obter um excedente a ser comercializado a fim de conseguir os recursos para
o pagamento dos tributos devidos à Coroa espanhola. A principal fonte de produtos para o
comércio era a erva-mate e o algodão. Sepp relaciona que está atento para tais questões
385
.
Além desses trabalhos sistemáticos para prover a manutenção ordinária das reduções,
Sepp relaciona rias outras iniciativas e práticas realizadas. A fundação da nova povoação
constitui uma ocasião que exige múltiplo esforço. Demonstra, no entanto, que, sob sua
supervisão, são realizadas tarefas diversas para a estruturação do povoado. Com o trabalho
coletivo, foi possível a preparação do espaço para a instalação da redução. Ele próprio
coordena as iniciativas. Providencia os materiais necessários para as construções do templo,
das casas e de outras instalações essenciais ao funcionamento do povoado.
Nessa iniciativa de fundamental importância para a continuidade da ação
missionária, envolvem-se trabalhadores vindos de diversas reduções. Sepp relata que a
cristianização desencadeada pela catequese consegue motivar os indígenas para essa
colaboração. Tal prática coletiva constitui, segundo ele, um sinal indubitável da assimilação
do projeto cristão por parte dos índios.
Além disso, Sepp menciona o envolvimento dos indígenas em trabalhos destinados
ao aperfeiçoamento da povoação. Ele organiza a fabricação de tijolos e telhas para a melhoria
das construções. Articula a extração de minério de ferro e providencia sua fundição para a
produção de ferramentas e utensílios necessários na redução.
Sepp apresenta a diversidade de trabalhos desenvolvidos nas reduções. Relata o
esforço e dedicação dos indígenas reduzidos nas atividades. Menciona os resultados
385
Na formulação de suas Algumas instruções relativas ao governo temporal das reduções, sugere maneiras
adequadas para o cultivo e produção da erva-mate.
157
alcançados com essas iniciativas. No entanto, ressalta as dificuldades encontradas no
encaminhamento do trabalho. Destaca as características dos indígenas, tais como a preguiça, a
imprevidência e a inconstância deles como aspectos problemáticos ao bom desenvolvimento
das atividades. Lembra também a precariedade dos instrumentos disponíveis para a realização
de diversas tarefas. A pouca disponibilidade de ferramentas adequadas dificulta o rendimento
do trabalho.
Para efetivamente constituir-se como marca distintiva de conversão, o trabalho nas
reduções devia ser ordeiro e organizado. Em seus relatos, Sepp manifesta que seu empenho
visa alcançar esse estágio. Em vista disso, adota práticas pedagógicas para favorecer tal
perspectiva. Menciona que as negligências mais graves verificadas na realização dos trabalhos
eram corrigidas mediante a aplicação de castigos exemplares aos infratores. Tal medida
destinava-se a todos os índios adultos, indistintamente. Assim, tanto os homens quanto as
mulheres estavam sujeitos a esses procedimentos disciplinares. As ocorrências mais visadas
eram as manifestações de imprevidência, indolência e inconstância na execução das tarefas
determinadas.
Em seus relatos, Sepp apresenta ainda uma outra dimensão marcante do trabalho dos
índios reduzidos. Se por um lado recorre aos meios corretivos para disciplinar o trabalho, por
outro lado adota mecanismos e estratégias para dinamizar e motivar seus trabalhadores na
realização das atividades mais exigentes. A caminhada para o local de trabalho, na maioria
das vezes, era realizada como uma procissão animada pelo rufar de tambores e outros
instrumentos musicais. Certas tarefas mais difíceis eram acompanhadas com músicas e
algazarras motivadoras de empenho.
No entanto, uma marca distintiva ainda é caracterizada por Sepp. A realização dos
trabalhos adquiria uma dimensão religiosa. Ele relata que, antes de iniciarem o trabalho de
preparação da terra na nova redução, lançou a costumeira bênção dos campos. Em algumas
ocasiões, menciona, eram realizadas procissões acompanhadas de imagens de santos para
pedir sua intercessão em vista da proteção divina sobre o trabalho e para afastar calamidades
ou catástrofes dos locais de trabalho. Kern ressalta essa significativa dimensão e aponta
efeitos dela resultantes: “através da ritualização sagrada da atividade agrícola, e da ida ao
158
trabalho em procissão com cantos, orações e a estátua do santo padroeiro, se obteve mesmo
que os guerreiros trabalhassem nos campos duas vezes por semana”
386
.
A consideração das narrativas de Sepp em relação à questão do trabalho como uma
das marcas constitutivas da conversão dos indígenas integrados na dinâmica das reduções
permite evidenciar características peculiares que começam a tornar-se notórias. Os relatos,
quando se referem aos indígenas convertidos e mencionam suas condutas, deixam de enfatizar
os aspectos de estigmatização e contaminação. Por exemplo, as atitudes de preguiça,
imprevidência, a pouca engenhosidade e a falta de responsabilidade na execução das tarefas
cotidianas deixam de ser ressaltadas.
Uma outra dimensão torna-se significativa. Os escritos apresentam elementos
caracterizadores de uma nova identidade assumida pelos indígenas convertidos. Passam a ser
representados como trabalhadores ordeiros, que internalizam a mística cristã na maneira de
executar suas tarefas ordinárias. Esse modo de configurar a realidade se manifesta também em
relação a outros aspectos da vida dos indígenas nas reduções.
5.2 As festas
Sepp expressa em seus relatos que a ação missionária dos jesuítas resultou na
inserção dos indígenas na dinâmica da vida nas reduções. Nelas se organizava um ritmo de
atividades e trabalhos visando à sustentação dos povoados e a manutenção da vida estável de
seus habitantes. Intensa vida comunitária era incentivada de diversas maneiras. Não faltava a
motivação para o aprendizado de distintos ofícios. Tampouco ficava descurado o
desenvolvimento da vida artística dos membros da comunidade. Além disso, ganhava
destacado espaço a organização e realização de festas, solenidades e eventos celebrativos.
Constituíam oportunidades de manifestação da alegria e eram sinais distintivos da vivência
cristã pretendida pelos missionários.
As ocasiões para festejar não faltavam, segundo Sepp. Ele menciona que a chegada
de novos missionários para atuar nas reduções é motivo de júbilo e alegria. Sinal indicativo
dessa manifestação era a presença de indígenas em Buenos Aires para a recepção dos padres
386
KERN, 1982, p. 140.
159
vindouros. Apresentando algumas peças musicais aos recém-chegados, expressam o caráter
festivo como uma das dimensões constitutivas de sua vida comunitária.
Esse aspecto festivo ficou bem mais evidenciado quando da acolhida aos novos
missionários na sua chegada ao território próprio das reduções. Sepp relata, de modo
impressionado, tal manifestação. Afirma que o padre da redução mais próxima veio ao seu
encontro. “Trouxe consigo vinte músicos, que tocavam música sobre diversos tipos de
instrumentos, para, em nome de todas as reduções, nos receber e nos acompanhar entre júbilo
e alegria na nossa entrada na Terra Prometida.”
387
A perspectiva da intensificação da ação
missionária nas reduções constituía motivo de festa. Significativo é o fato do espaço
reducional ser apresentado como “Terra Prometida”. Tal elemento constitui mais um indício
do caráter retórico do discurso de Sepp.
As celebrações festivas se intensificam com a entrada efetiva dos missionários nos
povoados. Nessa oportunidade, todo o povo se envolve e participa do júbilo e regozijo. A
festa contagia os habitantes da redução.
Mal nos viram os índios que moravam no aldeamento, levantaram logo alegre
vozerio, gritando Jopaean! Jopaean!, saíram correndo de suas cabanas, um aqui,
outro ali, este meio nu, aquele amarrando uma pele em torno de si, um outro
montando seu cavalo branco e o caracolava, um terceiro veio disparando em nossa
direção montando num zaino, fazendo-nos uma parada e alguns cumprimentos
americanos, um outro mais tomou de arco e flecha ou seus laços e boleadeiras, e
todos corriam quanto podiam, outeiro abaixo e em direção ao rio. Até os pequenos
anjinhos, que mal tinham pezinhos para correr, vinham correndo e saltando de
alegria, e o irmão levava sua irmãzinha pela mão, e ambos caíram e vieram rolando
juntos morro abaixo. Os velhos de cãs níveas imitavam os pequenos, pegavam dos
seus bastões e se faziam jovens, e os cegos vinham com seus orientadores de pau
388
.
Na festa de recepção aos novos missionários, são apresentadas diversas
manifestações artísticas. Representações de batalha naval e de combate entre grupos de índios
simulando esquadrões de cavalaria ou divisões de infantaria fizeram parte do evento. Durante
o dia foram celebrados os louvores a Deus com hinos e músicas religiosas. Esses dias foram
387
SEPP, 1980, p. 118.
388
SEPP, 1980, p. 121.
160
de manifestações de intenso júbilo e alegria. Os festejos seguiam noite a dentro com
apresentações artísticas e danças variadas
389
.
A ocasião da expedição do grupo de caciques a fim de inspecionar a área para a
fundação da nova redução foi revestida dum caráter de solenidade. O próprio Sepp articula
essa campanha. Vai à frente dessa comitiva para caracterizar esse ato fundacional. E se faz
acompanhar de alguns músicos para ressaltar a dimensão festiva e solene dessa jornada. Desse
modo, buscava suscitar ânimo nos indígenas
390
. Os próprios trabalhos de preparação do
espaço para instalação do povoado são acompanhados de música, parecendo envolver a todos
numa grande festa.
Enquanto vai coordenando os trabalhos da estruturação da nova redução, Sepp relata
que encaminhou as celebrações da festa de Natal. Na descrição desse evento, apresenta
aspectos que denotam a solenidade e o caráter festivo que pretendeu ressaltar. A festividade
torna-se significativa em função das características simbólicas que são destacadas
391
. A forma
de encaminhar a representação da cena da encarnação de Jesus intenta realçar a similaridade
da pobreza vivenciada pelos índios com a simplicidade do Natal do Senhor. As apresentações
de hinos, músicas e danças, acompanhando a cena representada, destacaram a dimensão
festiva do evento e suscitaram “terníssima devoção na alma dos índios”.
As festas próprias do calendário litúrgico recebiam especial destaque. Sepp menciona
a atenção reservada aos diversos aspectos na preparação e realização dessas solenidades.
Ressalta que as celebrações eram abrilhantadas com música. Oficiava-se missa solene,
389
Sepp anota: “À noite, assistimos a quatro diferentes danças, cada qual mais linda que a outra. A primeira foi
executada por oito rapazes, que jogavam mui lindamente com suas lanças. A seguinte dançaram dois esgrimistas,
a terceira seis nautas, e a última seis rapazinhos a cavalo. Todos esses indígenas vestiam à espanhola”. SEPP,
1980, p. 123.
390
O relato de Sepp apresenta detalhes significativos. Ele insiste em ressaltar essa dimensão solene. “Para dar a
esta expedición mayor importancia, más brillo y esplendor a los ojos de los indios, la organicé del siguiente
modo: montamos todos caballos ricamente ataviados, los más nobles caciques de las familias más antiguas con el
bastón de mando en las manos. El corregidor, un alto funcionario que actúa como juez y de prefecto, tenía
también un bastón en la mano. Los clarines tocaban alegremente; chirimías, fagotes y flautas repercutían en la
selva verde alrededor de nosotros; el tambor marcial dirigía nuestra marcha.” SEPP, 1973, p. 193.
391
No texto de Sepp esse aspecto aparece expresso da seguinte maneira: “Para que o sacrossanto mistério
também se representasse aos olhos, edifiquei sobre o altar um presepiozinho. Ainda que nada esplêndido, os
índios o contemplavam repletos de júbilo e o veneravam com pasmosa devoção”. SEPP, 1980, p. 215.
161
realçada com diversidade de ornamentação
392
. Muitas datas comemorativas eram marcadas
com a organização de procissões públicas. A multidão do povoado acorria e se envolvia
nesses eventos. Em determinadas circunstâncias contavam com a presença de fiéis de outras
comunidades. Em tais oportunidades, freqüentes vezes, apresentavam-se danças e outras
encenações para entusiasmo e enlevo dos presentes. Dentre todas, a mais destacada era a
celebração da festa do Corpo de Deus.
As narrativas acerca das festas como marca distintiva dos indígenas convertidos
evidenciam uma dimensão característica do imaginário missionário. Ele constitui-se como
referencial que institui significados atribuídos às condutas individuais e coletivas. Ao mesmo
tempo, articula-se como força reguladora das iniciativas e práticas sociais mediante as
representações materiais e simbólicas que influenciam a vida coletiva.
5.3 A vida comunitária
A cristianização dos nativos realizada mediante a ação missionária, no entender de
Sepp, manifesta-se, sobretudo, na vida comunitária que se verifica nas reduções. A descrição
da dinâmica comunitária que tem lugar na redução de São João Batista, fundada e organizada
por ele, oferece uma boa visão da vida cristã dos indígenas. O relato da preparação e
estruturação desse espaço apresenta diversos elementos que configuram tal dimensão. A
consideração de alguns aspectos por ele apresentados constitui oportunidade para dimensionar
o significado atribuído a suas iniciativas e aos resultados alcançados.
Ao relatar os encaminhamentos adotados para realizar a divisão da povoação de São
Miguel e organizar a nova redução, Sepp apresenta aspectos característicos da vida
comunitária resultante de sua ação missionária. Para ressaltar os efeitos que acredita que
sejam operados pela missionarização, ele destaca que, nessa questão, precisa “tratar com
índios sem a mínima organização política”
393
. Porém o fato de estarem inseridos na redução,
segundo concepção dele, faz com que aceitem a proposta apresentada por ele e manifestem
sua concordância com a necessidade da transmigração de parte da população do povoado. Ele
expressa que, após lhes ter falado e exposto a idéia de criação de uma nova povoação, sua
392
Ele observa que a atenção dada à questão da ornamentação tinha uma finalidade bem definida. Visava
“despertar-lhes e gravar-lhes com o aparato litúrgico exterior uma inclinação interior para com a religião cristã”.
SEPP, 1980, p. 153.
393
SEPP, 1980, p. 198.
162
“breve mas eficaz alocução foi de tanto peso no ânimo dos que a ouviram, que obtive
facilmente o desejado”
394
. A adesão de um grupo de caciques ao seu plano constitui outro
indício revelador dessa dimensão.
Outro indicativo relevante da vida comunitária aparece mencionado por Sepp quando
relata a inspeção do território para a definição do local de instalação da nova redução. Afirma
que a comitiva que o acompanha realiza a jornada como uma peregrinação religiosa. Todas as
atividades, nesse particular, são executadas sob as bênçãos de Deus. As atitudes vivenciadas
pelos indígenas são descritas como expressão de reconhecimento e gratidão a Deus
395
. Todos
esses procedimentos foram realizados sob o signo da cruz, que é reverenciada pelos presentes.
A preparação do espaço para a nova redução e a própria distribuição dos lotes de
terra aos caciques e suas famílias são apresentados como manifestações características de vida
comunitária. Os trabalhos são realizados de modo ordeiro, num esforço coletivo, sempre
acompanhados por uma motivação e invocação das bênçãos divinas. No ato de distribuição
dos lotes, Sepp recomenda-lhes a ocupação pacífica da terra
396
. E ele observa que os presentes
anuíram a tudo o que ele sugeria.
Uma dimensão significativa de vida comunitária foi constatada por ocasião da
estruturação da nova redução. Ele relata que, de diversas reduções, indígenas cristãos
acudiram, “unânimes em vontade e forças”
397
. Além da colaboração mediante os trabalhos de
auxílio fraterno, ele destaca expressões de generosidade demonstradas por meio da doação de
gêneros necessários à organização do povoado. Tais manifestações de solidariedade são
apresentadas por ele como sinais da eficácia da ação missionária. Além disso, ele ressalta o
efeito dessas iniciativas sobre as disposições dos membros da nova povoação. Em relação a
esse aspecto ele anota: “os meus índios mal cabiam em si de contentes, ao verem os índios das
394
SEPP, 1980, p. 199.
395
Afirma: abraçamos piedosamente o Sagrado Lenho e o beijamos, agradecendo à Divina Majestade, como é
justo, os benefícios que nos concedera”. SEPP, 1980, p. 203.
396
No seu relato se lê: Uma única cousa vos peço, meus filhos, e é que sem rixas entre vossos pastores e vós
mesmos possuais pacificamente esta terra, que já vou repartir entre vós, segundo o número de cada família”.
SEPP, 1980, p. 208.
397
SEPP, 1980, p. 219.
163
outras reduções acudirem tão prontamente, com tamanha liberalidade. Daí resultou que bem
animados se votaram à construção da nova colônia”
398
.
A própria estruturação espacial implementada na nova redução constitui uma
expressão significativa da vida comunitária que nela se desenvolve. Sepp dedica uma atenção
especial na descrição do plano que aplica na organização do povoado. Apresenta razões
justificadoras de seu proceder, argumentando que é preciso fugir da estupidez cometida em
construções feitas às pressas, sem nenhum ordenamento e sem atenção aos aspectos
arquitetônicos. Afirma a importância de observar uma adequada disposição geométrica a fim
de que o conjunto seja articulado em boa ordem. Hoffmann observa que “seu plano é ditado
pelos princípios do sentido comum e da utilidade prática, mas obedece, também, a um ideal
estético cujos valores supremos são a regularidade, a utilidade e a simetria”
399
.
Certamente tal disposição espacial tem a sua razão de ser fundamentada pelas
questões de funcionalidade e de utilidade prática. Sepp menciona que uma organização e boa
distribuição das ruas favorece a circulação e acesso dos ministros no atendimento dos índios.
“Deste modo se poderia administrar os sacramentos por caminho consideravelmente mais
curto, evitando-se que o doente viesse a falecer sem Viático, em razão das voltas supérfluas
que retardam a marcha do ministro de Deus.”
400
Além disso, ele também pondera questões de
segurança como justificativa para essa determinada organização do espaço. As ruas largas e a
manutenção de um espaçamento razoável entre as casas evitariam, por exemplo, o
alastramento de incêndios tão freqüentes e desastrosos nessas povoações.
No entanto, a dinâmica comunitária fica mais ressaltada por essa disposição espacial
quando se dá atenção ao significado simbólico que a mesma expressa. Essa dimensão é
observada por Hoffmann quando afirma: “desse modo ressalta os traços característicos de
todas as reduções, cujo estilo urbanístico se pode definir como funcional, apesar de que
398
SEPP, 1980, p. 219.
399
Su plan es dictado por los principios del sentido común y de la utilidad práctica, pero obedece, también, a
un ideal estético cuyos valores supremos son la regularidad, la utilidad y la simetría.HOFFMANN, Werner.
Introducción. In: SEPP, Antônio. Continuación de las labores apostólicas. Tomo II. Buenos Aires: EUDEBA,
1973. p. 62.
400
SEPP, 1980, p. 220.
164
expressa, por sua vez, simbolicamente, a ordem de vida na redução”
401
. Tal questão aparece
assim caracterizada no relato de Sepp:
A paróquia ou templo, e a casa dos padres missionários, ocuparia o meio da praça.
Esta praça seria o centro, donde partiriam as ruas paralelas, igualmente distantes de
um lado e outro
402
.
Desse modo, a disposição espacial da povoação, além de apresentar um caráter
funcional, ganha um sentido estético e, mais ainda, adquire uma significação simbólica
relevante. Para o imaginário de Sepp, sua atuação missionária tinha como finalidade a
articulação de um espaço comunitário, por ele nomeado de “terra da promissão”. Tal realidade
constituiria uma marca distintiva da conversão dos indígenas. Por isso, em seu relato, a
representação da nova povoação expressa esses traços característicos.
Do conjunto assim representado podem-se depreender alguns elementos
significativos reveladores da vida comunitária que ocorre nas reduções. Um primeiro aspecto
a ressaltar-se é o fato de que a praça ocupa o centro do povoado. Constitui um indicativo de
que as relações estabelecidas entre os indivíduos pertencentes a essa coletividade têm sua
razão de ser e seu sentido articulados pela sua expressão comunitária. Os indígenas são
agregados pelo seu vínculo comunitário. Formam um grupo, não em virtude de interesses
laborais ou de pertença nacional, mas pelo fato de serem membros de uma comunidade, a qual
se constitui como referencial doador de sentido ao seu viver e conviver.
O que assegura e imprime esse caráter ao vínculo gregário aparece expresso em outro
elemento com potencial simbólico relevante. O templo ocupa o meio da praça como um
indicativo de que as relações que nela se desenvolvem sejam marcadas pela dimensão do
sagrado, do religioso. Essa característica específica e a função desempenhada por essa
centralidade aparecem ressaltadas por Kern:
a igreja era o emblema da unidade moral, religiosa e material da comunidade. E
igualmente era o símbolo da autoridade política máxima. Nela se materializava o
poder do chefe espiritual e temporal ante o qual se curvavam, por obediência
401
De este modo hace resaltar los rasgos característicos de todas las reducciones, cuyo estilo urbanístico se
puede definir como funcional, a pesar de que expresa, a la vez, simbólicamente, el orden de vida en la
reducción”. HOFFMANN, 1973, p. 63.
402
SEPP, 1980, p. 220.
165
respeitosa e não por coerção violenta, caciques e guerreiros, mulheres índias e
crianças
403
.
A presença central da igreja, do templo, tem a função de causar uma impressão
impactante sobre a mentalidade dos membros do povoado ou dos visitantes. Desse modo, essa
realidade serve para demarcar o espaço representado pela comunidade cristã constituída na
redução.
Um outro aspecto a considerar é o fato de Sepp mencionar que a casa dos padres
missionários está ao lado da igreja, no meio da praça. Disso, pode-se inferir que a condução
da vida comunitária é orientada pela presença da autoridade eclesiástica. Desse modo,
assegura-se a manutenção das características essenciais da vida cristã implementada pela
iniciativa missionária. Sob a responsabilidade e vigilância do missionário, desenvolve-se tal
perspectiva.
A área central da redução “é cercada, como em anfiteatro, pelas casas dos
indígenas”
404
. Estão dispostas em boa ordem ao longo das ruas que se estendem quais raios
desde o centro até os limites da povoação. Essa disposição sugere que a vida comunitária se
assemelha a um drama que se desenrola no espaço estritamente religioso significado pela
praça central onde está localizado o templo. Tal representação participada pelos membros do
povoado confere sentido às suas atividades e ocupações. Sobre esse aspecto, a observação de
Haubert é oportuna: “a praça pública divide o vilarejo missionário em duas partes bem
distintas: de um lado, o domínio de Deus e dos jesuítas, do que eles possuem ou administram
diretamente; do outro, as habitações dos índios. De um lado, a autoridade; do outro, os
súditos”
405
. O significado assim conferido à vida na redução tem seu ponto de irradiação a
partir do qual afeta todas as dimensões do cotidiano dos integrantes do povoado.
O princípio da funcionalidade, segundo Sepp, foi observado na estruturação do
núcleo urbano da redução. No entanto, o aspecto geral da obra transcende esse critério. A
harmonia manifestada por esse conjunto assim organizado expressa um caráter estético,
vistoso e formoso aos olhos de quem o aprecia. Essas dimensões são também apresentadas
como elementos significativos da cristianização dos indígenas. Constituem um fator
403
KERN, 1982, p. 128.
404
SEPP, 1980, p. 220.
405
HAUBERT, 1990, p. 197.
166
importante para a manutenção da dinâmica comunitária pela boa impressão causada na
mentalidade de seus membros. Despertam e fortalecem neles o senso de pertença e
identificação com essa realidade.
Nesse conjunto harmônico, os relatos de Sepp mencionam destacadamente o
esplêndido templo, cuja construção ele planejou e coordenou. Ele apresenta descrições
detalhadas do mesmo dando a entender que seu esplendor é sinal da devoção dos indígenas
cristãos. Assim ele faz menção à grandiosidade do templo e a aplicação dos neófitos na sua
construção. Os vários elementos e aspectos do templo nada ficam a dever para os templos
europeus. “Tudo isto é finamente trabalhado em cedro, com embutidos de ouro e madrepérola
e entremeados, como em obra frigia, de vários relicários, pequenos espelhos e pseudo-pérolas,
isto é, vidros transparentes.”
406
Lembra que essa obra chama a atenção não dos naturais
mas também dos padres missionários que visitam sua redução.
Na construção do templo, Sepp ênfase especial a dois espaços, dos quais assim
fala: “arranjei o confessionário e o púlpito: aquele como tribunal sagrado, onde o sacerdote
absolva os pecados do povo; este para se poderem explicar aos fiéis os preceitos divinos e o
santo Evangelho”
407
. Desse modo, fica ressaltada mais uma vez a dimensão catequético
doutrinal da obra missionária que irá manter a vida comunitária na redução. Esse aspecto
catequético é também incentivado pelo arranjo artístico que acentua o esplendor do templo. O
jogo de luzes e a pintura de quadros representando dimensões básicas da doutrina católica
cumprem esta função. “Vêem-se dependurados nas paredes quadros de diversos santos. Nem
tão pouco se esqueceram gravuras das horríveis chamas do inferno, para conservar os índios
no santo temor de Deus e afastá-los do pecado.”
408
Toda a vida comunitária dos indígenas convertidos ganha sua expressão máxima nas
solenes celebrações litúrgicas e nas festas comunitárias que elevam o espírito cristão. As
solenidades em honra aos santos e, sobretudo, a festa do Corpo de Deus recebem menção
especial do missionário. Nessas festividades são introduzidas danças conforme o costume dos
espanhóis que, segundo Sepp, “imitam o régio salmista, que dançava perante a arca do
Senhor”. Nas celebrações, não falta a queima de aromas, flores, velas acesas, procissões que
406
SEPP, 1980, p. 237.
407
SEPP, 1980, p. 237.
408
SEPP, 1980, p. 238.
167
realçam seu caráter sacral e motivam a devoção. Além disso, afirma ele, “procurei suscitar
sentimentos de piedade em nossos índios por meio de cenas teatrais acomodadas a esta gente
rude”
409
. Dessa forma, desperta neles a sensibilidade religiosa, ponto básico de sustentação da
vida comunitária na redução.
Para a consideração e abordagem desses elementos relacionados por Sepp em seu
discurso sobre a vida comunitária desenvolvida nas reduções, recorre-se a um conceito
elementar da área da Física. Trata-se da noção de força centrípeta. Acredita-se que ela possa
constituir-se num relevante referencial interpretativo da temática em questão.
A força centrípeta configura-se como uma dinâmica que, tendo sua origem num
centro de gravidade e atuando sobre um conjunto de corpos ou objetos dispostos em um
determinado espaço, faz os mesmos convergir para o centro desse mesmo espaço.
Caracteriza-se como movimento diametralmente oposto ao da ação gerada pela força
centrífuga. Cabe, pois, considerar como essa dinâmica se constitui nas articulações
discursivas em questão e destacar elementos significativos da mesma.
A narrativa aparece articulada para caracterizar o significado instituído pelo
imaginário missionário. Tem a finalidade de representar a redução como espaço estruturado
que configura o significado e a dinâmica inerentes à vida comunitária cristianizada. Os vários
elementos constitutivos dessa estruturação sociocultural aparecem intrinsecamente
relacionados.
O núcleo central que exerce a força de atração sobre os diversos componentes desse
espaço é representado pelo templo. A narrativa demonstra que ocupa a área central da
redução. Para ele, converge toda a dinâmica desenvolvida na perspectiva da instauração da
vida comunitária cristianizada. A diversidade de práticas sociais promovidas e as condutas
individuais incentivadas adquirem sentido e significado na medida em que estiverem
estreitamente relacionadas ou referidas a esse elemento central.
Esse núcleo central exerce também a função de força reguladora das práticas
coletivas e das atitudes individuais. O discurso salienta que a alteridade que permanece
distante é estigmatizada. A identidade cristã vai sendo constituída pelo processo de inserção
409
SEPP, 1980, p. 243.
168
na dinâmica da vida na redução. Implica sair da dispersão na selva para aproximar-se desse
pólo que exerce a força de atração. O movimento contrário, característico da atuação da força
centrífuga, de fuga para a selva, é representado como infidelidade, abandono da vida cristã.
Os vários elementos simbólicos presentes nas formulações dos relatos têm sua razão
de ser configurada pela sua relação a esse centro de atração. A grande cruz que aparece no
centro da praça indica esse processo. As cruzes estabelecidas como marcas limítrofes do
espaço da redução caracterizam as fronteiras do domínio da vida cristianizada. A insistência
em resguardar os índios reduzidos do contato com os espanhóis ou com outros indígenas não
reduzidos expressa o esforço pela manutenção da pureza da identidade, mantendo-a a salvo do
risco da contaminação.
5.4 A organização social
Constituía parte integrante do imaginário missionário de Sepp a atuação junto aos
indígenas, considerados bárbaros, para convertê-los à cristã católica. Ele entende que seu
empenho consistia em transformar índios selvagens em homens civilizados. As iniciativas
para lograr tal objetivo expressavam-se, basicamente, como esforço de reunir os nativos e
mantê-los nas reduções. Nessas condições, superariam a dispersão e as ameaças de toda sorte
e se integrariam na dinâmica da vida social marcada pela estabilidade e garantia de segurança.
Em seus relatos, dedica uma atenção especial na formulação de representações da
vida e organização social implementada junto aos indígenas. Apresenta esses aspectos como
manifestações significativas das transformações operadas pela ação missionária. Procura
demonstrar que esses resultados são conseguidos pelo esforço dos missionários, mas também
pela adesão e envolvimento dos indígenas convertidos. Constituem, para ele, sinais da eficácia
das práticas missionárias adotadas.
Vários traços característicos da organização social articulada nas reduções são
apresentados por Sepp em seus escritos. Desse modo, manifesta o reconhecimento das
condições dos indígenas para adaptar-se a esse estilo de vida, embora considere que suas
capacidades sejam notoriamente limitadas. Ressalta a atuação dos vários padres missionários
que, ao longo dos anos, vieram dedicando sua vida nessas iniciativas. Destaca seu próprio
esforço na constituição do espaço adequado para a efetivação dessa dinâmica social e os
resultados alcançados.
169
A entrada dos indígenas na redução aparece representada como início de uma nova
vida, civilizada, humana. As reduções são caracterizadas como um espaço peculiar, a terra da
promissão, a oportunidade para a estruturação da vida estável e de constituição de relações
sociais que asseguram a liberdade dos indígenas. O discurso de Sepp apresenta-as como único
e verdadeiro lugar de realização da felicidade terrena para os índios. Esse modo de formular e
representar a organização social evidencia a dinâmica acima mencionada sob o conceito de
força centrípeta. Esses elementos considerados nas articulações discursivas vão sendo
constituídos na medida em que estão referenciados a esse centro de atração representado por
essa força.
Sepp expressa que o seu zelo apostólico e a sua capacidade administrativa
conseguiram imprimir à redução, por ele fundada, um caráter de organização assemelhado ao
de uma república civil. Conforme suas palavras: “consegui elevar minha colônia a um estado,
a uma forma e condição realmente ótimas”
410
. Nela são desenvolvidas iniciativas e atividades
que possibilitam a manutenção autônoma das condições de vida de sua população.
Um dos indícios característicos dessa estruturação autônoma aparece evidenciado na
representação institucional da redução. Sepp menciona que proporcionou a articulação de uma
dinâmica administrativa na povoação. Essa condição ficava manifestada pelas estruturas
legislativa e jurídica criadas na nova redução. “Elaborei um projeto de leis civis, criei
magistratura, instituí um consulado, nomeei questores, e coloquei à testa da colônia juízes.”
411
Tal maneira de estruturar essa coletividade manifesta que alcançou o estágio de vida
civilizada. Mediante esses mecanismos, seriam preservadas a boa ordem e disciplina
necessárias ao bom funcionamento da sociedade. Constitui uma força regulativa que atua no
sentido de intensificar o processo de vinculação dos indivíduos a esse centro de atração
representado pela redução.
Distintas dimensões constitutivas da organização social são referidas nos relatos de
Sepp. Para demonstrar a sua atenção aos aspectos fundamentais da vida em sociedade, afirma:
“dediquei todo o interesse à distribuição dos misteres mecânicos, os quais são sumamente
importantes para o progresso de uma república”
412
. Tal afirmação permite evidenciar uma
410
SEPP, 1980, p. 244.
411
SEPP, 1980, p. 244.
412
SEPP, 1980, p. 244.
170
questão que ele expressa diversas vezes em seus relatos. Ele percebe que suas práticas
missionárias implicam o empenho também pela manutenção das condições de vida material
dos indígenas nas reduções. Assume a responsabilidade pela articulação de iniciativas que
visam assegurar esse aspecto. E manifesta que a estruturação social resultante de seus
esforços e do envolvimento dos indígenas constitui uma das marcas características de sua
conversão.
Dentro da redução, o missionário dedica esforço e interesse na organização da
produção para o sustento da população cristã. Esmera-se em articular todos os ofícios
necessários “para o progresso de uma república”. Menciona que em sua “colônia” são
encontrados profissionais devotados às diversas áreas destinadas a garantir o bom
funcionamento da sociedade. A aptidão dos índios convertidos para as artes mecânicas e sua
dedicação aos diversos ofícios sob a orientação e incentivo dos missionários proporcionam a
produção dos bens necessários ao bom desenvolvimento da comunidade.
Aspectos indicativos do funcionamento dessa organização social articulada na
redução manifestam-se, segundo Sepp, na diversificada produção agrícola que provê o
sustento da população reducional. O trabalho habitual e metódico dos índios convertidos, sob
a supervisão do missionário, assegura os resultados necessários para a manutenção da
coletividade. Esse ramo do setor produtivo é complementado pela pecuária incrementada nas
fazendas agregadas a cada povoação. Mediante essas dimensões estruturadas são garantidas as
condições para alimentar e vestir os membros da redução e conseguir os meios necessários
para o pagamento dos tributos devidos à Coroa espanhola
413
.
O desenvolvimento de diversos ramos de artesanato no interior da redução
proporciona condições de bem-estar aos seus membros. Tais iniciativas constituem
oportunidades de ocupação ordeira e sistemática dos indígenas pertencentes a essa
coletividade
414
. Representam para eles a ocasião para aperfeiçoamento de suas habilidades e
413
Sobre a questão do tributo pago à Coroa, Sepp observa que tal procedimento constitui uma forma de
comprovação da fidelidade e da vassalagem dos indígenas enquanto também são considerados súditos colocados
sob o amparo e proteção de Sua Majestade o Rei da Espanha. Para demonstrar e manter tal relação com a Coroa
espanhola, o pároco de cada redução paga ao Tesouro real de Buenos Aires, cada ano, o tributo de um peso real
por família. Esse tributo era pago em neros produzidos nas reduções, principalmente o algodão e a erva
paraguaia. Cf. SEPP, 1974, p. 185.
414
Fazendo referência à importância dos artesãos numa sociedade humana organizada, Sepp afirma: pois quem
é que não sabe quão indispensáveis são numa cidade os arquitetos, os ferreiros, os marceneiros, os tecelões, os
171
aprendizado de novos ofícios. Além disso, significam a garantia de produção de bens e
elementos necessários para a boa manutenção da vida na povoação
415
. Desse modo, assegura-
se uma relativa autonomia de cada redução no encaminhamento dos recursos indispensáveis
ao seu bom funcionamento.
No entanto, uma das dimensões mais significativas dessa representação aparece
manifestada na dinâmica das relações sociais estabelecidas entre seus integrantes. Sepp
enfatiza que a ação missionária realizada entre os indígenas os transformou em cidadãos e
bons cristãos
416
. Como indicativo dessa condição, destaca o princípio de vida que se
desenvolve no interior da sociedade reducional, assim expresso: “tudo é comum como entre
os primeiros cristãos”, pois “o Padre alimenta a todos, os veste e lhes tudo o que
necessitam”
417
. E embora reconheça em seu escrito que os seus paroquianos sejam pobres
como os ratos, ele expressa o êxito de seu empreendimento missionário. “Em uma palavra, se
não me equivoco, não se encontra debaixo do sol um povo mais feliz que o de nossos índios,
pelo fato de que podem apreciar e desfrutar esta vida afortunada.”
418
Apesar de demonstrar de modo eloqüente essa perspectiva bem sucedida da dinâmica
da vida social que ocorre nas reduções, Sepp não deixa de mencionar uma dimensão
fundamental de toda sociedade organizada. Ele manifesta que a preocupação com a defesa do
povoado recebe também uma atenção especial. Essa questão leva o missionário a uma atitude
prudente. “Tratei de formar um corpo de exército contra repentinas invasões e assaltos da
parte dos brasileiros.”
419
Para essa finalidade, estabelece uma hierarquia militar investindo
alguns índios nos diversos encargos específicos da mesma.
fiandeiros, os curtidores, os oleiros, etc., etc. Tudo isto se encontra aqui em nosso Paraguai, e até em minha
colônia”. SEPP, 1980, p. 244.
415
Sepp relaciona alguns bens produzidos, tais como instrumentos musicais, ferramentas, utensílios domésticos,
móveis, artefatos de tecelagem, tecidos, artigos de couro, utilitários diversos, objetos ornamentais e elementos de
uso litúrgico, entre outros. Cf. SEPP, 1980, p. 244s.
416
Ele afirma: “la misma gente que ayer moraba en cuevas oscuras y quebradas, como Polifemos salvajes,
faunos, centauros, antropófagos y enemigos declarados del género humano, vive hoy como ciudadanos de un
municipio y buenos católicos, gracias a nuestros Padres que les predicaran el Santo Evangelio”. SEPP, 1974, p.
182.
417
Todo es común como entre los primeros cristianos”, “el Padre alimenta a todos, los viste y les da todo lo
que necesitan”. SEPP, 1974, p. 185.
418
En una palabra, si no me equivoco, no se encuentra debajo del sol un pueblo más feliz que el de nuestros
indios, con tal de que puedan apreciar y disfrutar esta vida afortunada.” SEPP, 1974, p. 186.
419
SEPP, 1980, p. 244.
172
E para confirmar, de certa forma, os aspectos característicos dessa organização social
assim representada, Sepp dirige-se a seus leitores com estes termos: “não há, com efeito,
nenhum povo, nenhuma classe social do gênero humano que goze de uma vida tão pacífica,
tranqüila e democrática, aproveitando o que Deus lhes tem concedido, do que estes
paraguaios”
420
.
Na abordagem dessas articulações discursivas acerca da organização social
implementada pelas práticas missionárias, torna-se oportuno tecer algumas considerações
gerais. A história produzida pelas narrativas de Sepp configura as reduções como espaço de
vida civilizada. Nesse sentido, os relatos manifestam-se como processo de instituição de
significado e não apenas de descrição de uma realidade constatável.
As iniciativas e atividades integrantes da organização social são representadas como
elementos que atuam no processo de vinculação mais estreita dos indivíduos ao centro de
atração constituído pela redução. As articulações discursivas de Sepp ao ressaltarem essa
dinâmica consolidam o significado que é atribuído a esse processo.
As representações sociais e simbólicas, aparentemente autônomas, atuantes nessa
organização social, têm configurado seu significado pela sua referência última ao centro de
gravidade que exerce a força centrípeta representada pela expressão do sagrado presente no
espaço reducional. A dimensão do sagrado materializa-se no templo, que está ao centro. A
dinâmica que sua presença desencadeia no cotidiano e as influências que exerce sobre os
distintos âmbitos das relações sociais constituem manifestações desse processo. Tanto o
código de leis, a organização dos vários trabalhos, bem como a própria milícia organizada
nessa sociedade têm sua razão de ser configurada pela sua vinculação à dinâmica de vida
conduzida pela dimensão espiritual.
5.5 Aptidões pessoais especiais
Em sua obra, Sepp vai mostrando que a ação missionária conseguiu transformar a
vida selvagem dos indígenas em vida cristã e ordenada. Mostra que os mesmos índios broncos
e vivendo como bestas selvagens, entrando nas reduções, tornam-se capazes de viver como
420
No hay, en efecto, ningún pueblo, ninguna clase social del género humano que goce de una vida tan
pacífica, tranquila y democrática, aprovechando lo que Dios les ha deparado, que estos paracuarios”. SEPP,
1974, p. 186.
173
seres humanos dotados de razão. E nos seus relatos vão aparecendo considerações positivas
sobre as qualidades e capacidades dos indígenas. Essa forma de apreciação apresenta
significativo contraste com a caracterização dos índios ainda não convertidos, que se
encontram, portanto, fora das fronteiras demarcadas pelo espaço reducional.
Chama a atenção a referência que Sepp faz, seguidas vezes, em seus relatos, em
relação às atitudes picas dos índios cristãos. Destaca que “são estes paraguaios cristãos
muito bons e piedosos, a ninguém submissos a não ser aos nossos Padres, amando-nos assim
como o filho ama ao pai”
421
. Ao ressaltar esse caráter virtuoso dos novos cristãos e ao fazer
referência ao amor filial demonstrado para com seus pais espirituais, os missionários, revela
que isso é resultado da ação apostólica por eles realizada. “Somos nós que os vestimos,
instruímos e educamos.” A intervenção missionária, criadora da realidade e vida cristã, é
caracterizada pela superação da nudez e da ignorância, típicas do viver pagão.
Os índios cristãos batizados são apresentados como “gente boa e simples”, que “se
desgostam e contristam quando vêem algo de mal no meio dos cristãos”
422
. Demonstram
grande respeito e consideração para com os padres, seus guias e orientadores. Expressam
alegria e satisfação acolhendo os padres missionários que chegam às reduções.
Uma expressão significativa da conduta e postura cristã dos indígenas convertidos é
apresentada por Sepp ao narrar a sua chegada, com outros missionários, à redução de Japeju.
Assim que se aproximam da redução, os índios moradores do aldeamento lhes saem ao
encontro, levantando “alegre vozerio”, demonstrando sua acolhida aos padres recém-
chegados. O que admira sobremaneira ao autor é a atitude das mulheres que ele assim
descreve:
Estavam ali, onde, em circunstâncias idênticas, deveriam estar as mulheres
européias, estavam todas juntas reunidas no Senhor, ajoelhadas todas juntas na igreja
diante do Santíssimo Sacramento, rezando todas juntas com extrema devoção pelos
seus caros Padres Missionários. Quem é que não choraria de puro consolo, como
deste modo as pobres coitadas adoram ao seu Deus, a quem, faz pouco ainda, não
conheciam e nem veneravam, e em vez disso tinham adorado o mau inimigo, o que
agora reconhecem em verdade por seu zelo de alma indefesso
423
.
421
SEPP, 1980, p. 71.
422
SEPP, 1980, p. 110.
423
SEPP, 1980, p. 121.
174
Observa também em seus relatos e destaca as mudanças operadas pela cristianização.
Os missionários são recebidos e homenageados por um grupo de indígenas assemelhado a
“esquadrões de cavalaria”, que “não mais vestia peles de tigres, de ovelhas ou de boi”,
característico de sua condição de selvageria, “mas estava de uniforme de gala, trajando
graciosamente conforme a moda espanhola”
424
. Além disso, compara os índios cristãos a
soldados de Cristo, afirmando que, ao dirigirem-se à igreja da redução, são “acompanhados de
alguns milhares de índios batizados, portanto, de certo modo, com um exército”.
E novamente Sepp apresenta a postura das mulheres, agora cristãs. Ele encontra-as
“todas na melhor ordem, recolhimento e piedade, rezando por nós. Nenhuma que fosse
volveu o olhar para nós, nenhuma que fosse olhou em nossa direção, parecendo elas mais
anjos do que homens”
425
. Essa nova postura das mulheres é apresentada por ele como
resultado da intervenção missionária junto aos povos, antes pagãos.
Interessante é observar também o relato de Sepp sobre uma índia, “mulher simples e
sem instrução alguma”, que faz um discurso de saudação aos novos missionários. A mulher
índia, quando faz o discurso, é cristã. Podemos ver que ele acredita na inteligência como
uma conseqüência do cristianismo. Os indígenas pagãos são quase animais, mas os índios
cristianizados foram salvos pelo conhecimento. A mulher índia “não era nenhuma sábia Ester
ou astuta Rebeca. Mas de tudo isso se verifica, claramente que Deus, em sua grande bondade,
a todos os homens empresta conhecimento suficiente, embora sejam os mais simples, desde,
porém, que o queiram servir”
426
.
Outras atitudes próprias dos índios cristianizados são apresentadas por Sepp. Os que
são castigados quando merecem não gritam, não praguejam, e tu não ouvirás uma palavra
de vontade, impaciência ou raiva”. E lembra que são castigados grandes e pequenos e
também as mulheres. Mas como são castigados de maneira paternal, esse castigo, segundo ele,
tem resultado extraordinário, “de sorte que nos amam em verdade, como os filhos ao pai”. Os
índios cristãos, ao serem castigados, recebem a surra com a máxima paciência, sim, até
gratidão”. Pois, após terem recebido o castigo, beijam a mão sacerdotal, como forma de
424
SEPP, 1980, p. 122. Muratori esforça-se por mostrar que a ação missionária transforma os indígenas
selvagens em homens e cristãos. MURATORI, 1993, p. 73.
425
SEPP, 1980, p. 122.
426
SEPP, 1980, p. 123.
175
externar o reconhecimento e dizem: “meu Pai, mil e dez mil vezes te agradeço que por teu
castigo paternal me abriste o juízo e me tornaste no homem que antes não fui”
427
.
As crianças cristãs merecem de Sepp uma menção especial. São vestidas pelos
padres, orientadas em sua fé, ensinadas na doutrina cristã. E por isso demonstram seu
reconhecimento. “As criancinhas superam em muito o amor e respeito, que nos demonstram
os adultos.”
428
O missionário afirma que elas se reúnem, se alegram com sua presença,
demonstrando sua gratidão a ele como se fora seu pai.
Sepp menciona um dado que constitui um sinal distintivo da condição cristã dos
indígenas. Como em sua gentilidade ornamentavam-se com elementos rústicos da natureza,
carregam agora objetos que os incitam à devoção e prática da fé cristã. “Todos os índios, tanto
homens como mulheres, grandes e os pequenos, levam o rosário ao pescoço, em sinal de que
são cristãos e não pagãos.”
429
Um dos aspectos característicos dos índios cristianizados que chama a atenção de
Sepp é o talento musical. “Não há que eles mais apreciem do que a música.” Fala dum menino
de doze anos que toca harpa com extrema agilidade, interpretando melodias difíceis “com
sorriso nos lábios”. A música é vista por ele como um canal de compreensão da católica e
muito desenvolvida. Dedica várias horas do dia para ensiná-la aos índios cristãos. Até se
apresenta como defensor do talento dos índios quando diz: “se ainda houver quem considere a
estes coitados ineptos para especulações metafísicas, reconheça ao menos neles um tino
prático para serviços mecânicos e, sobretudo, uma propensão rara para a música”
430
.
Entre os resultados da cristianização dos índios, Sepp apresenta suas qualidades e
aptidões para as artes mecânicas. A instrução proporcionada pelos missionários capacitou-os
para diversos ofícios úteis à vida da comunidade. “São muito aplicados e imitam tudo que
vêem.” E nos seus relatos ele deixa transparecer a sua admiração diante das coisas produzidas
pelos índios das reduções
431
. Relaciona a fabricação dos mais diversos instrumentos musicais,
427
As afirmações destacadas no parágrafo encontram-se em SEPP, 1980, p. 149s.
428
SEPP, 1980, p. 150.
429
SEPP, 1980, p. 151.
430
Afirmações em destaque nesse parágrafo são encontradas em SEPP, 1980, p. 247s.
431
Cf. SEPP, 1980, p. 245.
176
utensílios litúrgicos, os mais variados móveis e objetos práticos para a vida cotidiana. Ressalta
o grau de perfeição apresentado pelas obras saídas das mãos dos índios cristãos.
Na abordagem desses elementos específicos do discurso de Sepp, torna-se oportuno
apresentar algumas ponderações. Um primeiro aspecto a ser considerado está relacionado com
as representações de identidade. Na medida em que as marcas de conversão se evidenciam,
desaparecem das formulações discursivas os indícios característicos de contaminação e
estigmatização. A configuração dessa nova identidade ocorre em contraste com o processo de
estigmatização verificado na caracterização da alteridade indígena.
Uma questão significativa aparece sinalizada na caracterização das condutas e
capacidades prático-operativas dos indígenas considerados cristãos. Evidencia-se a atuação da
força reguladora do imaginário conferindo significados e exercendo a função de controle
social das práticas e iniciativas individuais. A formulação sobre a obediência aos padres
manifestada pelos índios constitui um bom indício dessa dinâmica.
Na análise das elaborações discursivas de Sepp torna-se relevante considerar
novamente a categoria de centro de gravidade como lo gerador da força centrípeta. Esse
conceito referencial revela-se fecundo enquanto se constitui como um instrumental para a
interpretação de questões que emergem no desenvolvimento da pesquisa. Alguns
desdobramentos desse exercício interpretativo serão agora apresentados em forma de
considerações finais deste trabalho.
A representação da redução, configurada nos relatos de Sepp, com o templo ao
centro, constitui-se como o centro de gravidade. A igreja ou o templo, enquanto apresenta-se
como símbolo da presença do sagrado, exerce a função de pólo irradiador da força de atração.
Desse modo, configura-se o processo de constituição de significado atribuído a todas as
realidades que gravitam em torno deste centro.
O núcleo central da redução, esse centro de gravidade, gera a força centrípeta. Ele
exerce um poder de atração sobre as realidades integrantes dessa totalidade. Os elementos que
gravitam em torno desse pólo ordenador têm seu sentido e seu significado instituídos pela sua
vinculação e referencialidade a esse mesmo centro. Na medida em que estão intrinsecamente
relacionadas a esse conjunto constituem-se em marcas de conversão, sinais de identidade
cristã e manifestações de vida civilizada.
177
É interessante observar que nos relatos, por vezes, o próprio missionário parece
representar esse centro de gravidade. Nesse caso, verifica-se um aspecto significativo. As
relações de submissão e dependência dos indígenas em relação ao padre e o exercício da
autoridade interventora e a coação exercida pelo agente civilizador ficam mitigadas pelas
formulações discursivas que representam essas relações como práticas de providência paternal
do missionário em favor dos indígenas, as quais são correspondidas, segundo essa
formulação, com demonstrações de amor destes para com aquele.
O discurso de Sepp, articulado nas suas crônicas e narrativas, configura-se como
processo de constituição de sentidos e significados atribuídos às realidades e práticas relatadas
em seus escritos. Apresenta-se como uma dinâmica de antecipação idealizada de estados de
coisas a se efetivar. Estrutura-se como proposição do imaginário missionário que representa a
redução como força regulativa constituída a partir das práticas missionárias cuja força motriz
é centrípeta. Esse potencial de atração atuando sobre as realidades que gravitam em torno
desse centro de gravidade institui as fronteiras demarcadoras da vida nova resultante da ação
missionária assim configurada por tal imaginário.
CONCLUSÃO
Este trabalho articulou as reflexões acerca do imaginário missionário a partir da
abordagem dos escritos do missionário jesuíta Antônio Sepp. A trajetória investigativa
permitiu apresentar elementos relevantes constitutivos dessa representação. O esforço
argumentativo evidenciou a articulação e atuação de várias dinâmicas postas em movimento
pela realidade em questão. A análise realizada revelou sentidos e significados que se
constituem nas formulações discursivas em consideração.
É forçoso salientar que esta abordagem está longe de constituir uma análise exaustiva
das questões que emergem da temática considerada neste estudo. No entanto, o esforço
interpretativo empreendido evidenciou aspectos relevantes cuja apresentação se torna
oportuna. A consideração dos resultados obtidos e as ponderações articuladas acerca de seus
significados estão distantes de representar formulações de caráter conclusivo. Outras possíveis
perspectivas poderiam ter sido investigadas, tais como a dinâmica sociopolítica na qual as
reduções se inserem e as influências mútuas dela decorrentes; a incorporação dos princípios
da retórica na abordagem dos textos; a consideração mais aprofundada de questões
pedagógicas desencadeadas na vida reducional, por exemplo, entre outras. As questões aqui
consideradas manifestam, antes, uma tentativa de ressaltar dimensões significativas da
realidade pesquisada.
Os escritos de Sepp, enquanto parte significativa da correspondência epistolar do
período colonial, constituem relevante fonte de pesquisa. O discurso neles articulado
manifesta dimensões constitutivas das práticas missionárias empreendidas pelo seu autor e do
imaginário que lhes é inerente. A consideração desses aspectos e o aprofundamento de sua
análise evidenciam a complexidade das relações instauradas nessa realidade e o processo de
instituição de significados que a complementa.
179
O discurso articulado por Sepp pode ser caracterizado como processo de produção de
História. Ele constitui-se como uma operação estruturada desde o lugar social representado
pelas reduções nas quais atuou. É constituído mediante a utilização de procedimentos de
percepção e apreciação da realidade com a qual esteve em contato. É apresentado como um
texto, ou seja, é expresso em forma de relatos e narrativas elaboradas e inseridas nas cartas
por ele enviadas aos seus concidadãos e confrades.
A forma de apreciação das realidades constatadas e apresentadas nos escritos de
Sepp não está isenta de juízos preconceituosos. Ao contrário, seu modo próprio de considerar
as práticas e condutas dos indígenas está eivado de compreensões tendentes a qualificá-las
como indícios de desumanização. Essa maneira específica de proceder na formulação de seu
discurso aponta as perspectivas de interpretação que ele assume, embora não as explicite em
seus escritos. Suas opções ideológicas vão sendo evidenciadas no desenvolvimento de suas
elaborações discursivas.
A história que Sepp escreve apresenta características peculiares. Aparece formulada
numa linguagem e estilo que ressalta o exótico, o extraordinário e, por vezes, manifesta-se em
formas fantasiosas. No entanto, ela cumpre uma finalidade relevante e que se evidencia na
abordagem de seus relatos. Mais do que narrar fatos e acontecimentos, mais do que apenas
descrever realidades constatadas, ela articula-se como eficaz processo de instituição de
sentido e de constituição de significados. Desse modo, revela-se como significativa dinâmica
de antecipação de estados de coisas a se efetivar.
Por sua vez, esta investigação e abordagem dos escritos de Sepp, na medida em que
se articula como procedimento historiográfico, institui-se como um rito de sepultamento
escriturário. Mediante o desenvolvimento da dinâmica inerente à pesquisa, realiza uma
operação de destruição de suas cartas para dar lugar à instituição do imaginário missionário
que as permeiam. O processo de manipulação dessas fontes, a aplicação dos instrumentais de
análise e o exercício interpretativo operam aquilo que expressa a assertiva de que o
historiador produz a história destruindo.
O desenvolvimento da pesquisa evidenciou a contribuição significativa que a força
criadora do imaginário proporciona ao processo de produção da História. Essa potencialidade,
embora interagindo com a racionalidade, não permanece presa nas malhas das estreitezas da
assim chamada razão instrumental. Suas capacidades se manifestam, sobretudo, no processo
180
de estabelecimento de pontes de sentido que vinculam o ser humano ao mundo a sua volta.
Nesse sentido, entendendo a produção da história como enunciação de sentidos e articulação
de significados, tal perspectiva fica configurada.
A reflexão realizada revela um aspecto significativo representado pela dinâmica do
imaginário social. Ele resulta do processo de elaboração coletiva dos sujeitos vinculados entre
si e com suas práticas sociais. Assim constituído, por sua vez, torna-se um referencial
regulador das condutas dos indivíduos e das relações sociais que estabelecem entre si. Os
escritos de Sepp, ao instituírem significados atribuídos às iniciativas relatadas, constituem
uma manifestação da atuação do imaginário social.
A força reguladora do imaginário atua exercendo influências significativas sobre os
indivíduos vinculados a uma determinada totalidade. O exercício desse potencial manifesta-se
no processo de constituição da identidade dos sujeitos participantes das relações sociais assim
configuradas pelo imaginário. Tal mediação articula-se instituindo dinâmicas de diferenciação
que conformam as características distintivas da identidade.
A consideração da identidade enquanto dimensão dinâmica constituindo-se como
realidade em permanente construção representa uma perspectiva fecunda para a abordagem da
temática em questão nesta pesquisa. A autopercepção e a consciência de si, expressas por
Sepp em seus relatos, evidenciam esse caráter processual das representações de identidade.
Nos seus escritos vai configurando-se esse processo de mudanças operadas na sua maneira de
compreender-se e de entender o mundo no qual se situa.
Essa dinâmica processual de constituição da identidade articula-se a partir da
percepção dos contrastes que se tornam explícitos na constatação da realidade. Essa
perspectiva aparece configurada nas elaborações discursivas. Nelas se evidencia esse processo
e por meio do discurso vão sendo instituídos os significados constitutivos dessa dimensão. Em
outras palavras, isso significa que a identidade não expressa uma realidade existente em si e
por si. Sua existência e seu modo próprio de representar-se vão sendo instituídos nas
formulações discursivas.
A dinâmica da instituição da identidade efetiva-se por um processo de diferenciação.
Nesse sentido, a alteridade desempenha um papel decisivo. O contraste com o outro distinto
constitui um referencial indispensável ao desenvolvimento da consciência de si. Essa
181
perspectiva, assim sinalizada, apresenta-se fundamental, pois, essas categorias identidade e
alteridade nomeiam realidades relacionais. Ambas são constituídas na sua relação mútua, a
qual, no entanto, não suprime sua necessária distinção.
A consideração da alteridade indígena manifesta-se como uma questão marcante
evidenciada na análise do discurso articulado nos relatos de Sepp. Suas formulações tendem a
estigmatizar os indivíduos situados fora das fronteiras demarcadas pela implementação da
vida reducional. Indícios relevantes desse processo são verificados na ênfase, atribuída no
discurso, àqueles elementos e sinais característicos do grupo estigmatizado. Além disso, uma
outra dinâmica aparece configurada no procedimento que ressalta esses aspectos. Trata-se do
mecanismo, por meio do qual, institui-se a associação dos indícios de estigmatização com a
vida não humanizada.
Esse aspecto, assim articulado, constitui-se como fator desencadeador da
caracterização depreciativa de atitudes e práticas representadas como distintas e estranhas do
estilo habitual de viver. A ativação desse mecanismo, que atua de modo sutil, legitima a
inferiorização dos indivíduos que demonstram tais condutas. A sutileza desse processo reside
na capacidade de auto-atribuição da racionalidade supostamente universal, como elemento de
autojustificação desse proceder.
A atuação de Sepp assume características de tutela. O pressuposto de sua ação é o
entendimento de que na missão se encontra com pobres índios abandonados em sua
irracionalidade. Justifica a necessidade de sua intervenção como forma de trazer a luz da
racionalidade para esse mundo de trevas. Compreende que o seu dever apostólico consiste em
introduzir os selvagens na cristã mediante a conversão e sua entrada nas reduções. Mostra
que tem o encargo de lhes ensinar os ofícios próprios ao bom funcionamento da vida em
sociedade. Além disso, afirma que cabe a ele a responsabilidade de vigiar, para que todos na
comunidade mantenham a conduta própria de cristão.
A meta perseguida por Sepp em sua missão é a de civilizar e cristianizar os
indígenas. O caminho para realizar esse seu objetivo é a integração deles na vida comunitária
desenvolvida nas reduções. Nelas, pretende resguardar os novos cristãos das influências da
sociedade colonial circundante. Nesse espaço cria uma dinâmica de vida ritualizada dentro
dos padrões culturais da sociedade cristã ocidental, distinta do modo de viver dos nativos.
182
A articulação das reduções configura-se como implantação de práticas típicas da
sociedade européia no espaço americano. Afigura-se, no seu imaginário missionário, como
transplante de uma estrutura de vida, própria de uma cultura, para um meio cultural diverso,
sem a consideração destas diferenças. A esse espaço criado, Sepp procura adaptar os
destinatários de sua missão. Por meio da ritualização religiosa de toda a vida cotidiana, sob a
sua supervisão, esses são inseridos na nova realidade, com a progressiva descaracterização do
seu originário modo de viver.
As representações sobre as reduções verificadas no discurso de Sepp podem ser
consideradas como articulação de um referencial de interpretação da realidade que se
apresentava para a iniciativa missionária. Tal instrumental servia de critério de classificação
das situações humano-históricas com as quais se deparava. Permitia estabelecer fronteiras
entre o humanizado e o que não o era, entre o cristianizado e o necessitado de conversão.
Esse conjunto de formulações proporcionava um caráter de legitimação à ação missionária.
Impregnava a missão duma racionalidade que justificava a sua existência. Permitia
caracterizar a identidade distintiva dos indígenas envolvidos no processo reducional.
Na abordagem dos relatos de Sepp e na consideração de seu imaginário missionário
ao longo do desenvolvimento desta pesquisa vários aspectos relevantes ficaram evidenciados.
Finalizando esta reflexão, trata-se de enfatizar ainda três dimensões que se revelaram
significativas na análise empreendida. A retomada destes aspectos e a tematização do sentido
que eles indicam ressaltam a importância desta investigação.
O imaginário missionário, que vai sendo evidenciado na análise do discurso de Sepp,
configura-se como uma dinâmica complexa. Por um lado, apresenta-se como uma realidade
que vai sendo articulada num processo em permanente construção. Nesse sentido, a sua
constituição resulta das articulações discursivas e das representações formuladas nos seus
relatos, que são, ao mesmo tempo, descrições de práticas e proposições de significados
atribuídos às mesmas. Por outro lado, constitui-se como um referencial, a partir do qual são
instituídos sentidos atribuídos às condutas individuais e às relações sociais. Além disso, ele se
articula como uma eficaz força reguladora das iniciativas e práticas sociais atuando por meio
de representações materiais e simbólicas que influenciam a vida coletiva.
A função desempenhada pelo discurso na estruturação da vida social e no
encaminhamento das práticas missionárias ficou evidenciada no estudo realizado. Mediante a
183
sua articulação desencadeia-se o processo de explicitação da consciência de si e de
autopercepção da identidade missionária e cristã, instituída no contraste com o outro distinto.
A formulação discursiva configura-se como elemento legitimador das iniciativas e práticas
sociais desencadeadas pela ação missionária. Além disso, apresenta-se como dimensão
fundamental do processo de instituição de significados atribuídos à realidade e de proposição
de estados de coisas a se efetivar.
A introdução da categoria interpretativa expressa pela noção centro de gravidade que
exerce a força centrípeta constituiu-se num procedimento marcante na investigação realizada.
Tal conceito revelou-se fecundo enquanto referencial de análise da temática em questão. A
sua utilização possibilitou evidenciar, de modo mais explícito, a força regulativa exercida pela
redução sobre as realidades que gravitam ao seu redor e a ela relacionadas. Desse modo, as
representações de redução, presentes no discurso de Sepp, resultantes de seu imaginário
missionário, atuam no sentido de instituição de significados atribuídos às realidades
integradas nesse processo.
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ANEXOS
1. Tabela cronológica da vida do Padre Sepp
432
1655/11/21 Caldaro-Kaltern Nascido
1655/11/22 Caldaro-Kaltern Batizado
1664 (?)-1667 Viena (da Áustria) Menino-cantor da Corte
1667, no verão Viagem à Inglaterra
1667-1674 Innsbruck Aluno do ginásio dos jesuítas
1674/09/28 Landsberg Ingresso na Companhia de Jesus
1674-1676 Landsberg Noviço religioso
1676-1679 Ingolstadt Estudos de Filosofia
1679-1680 Landsberg Magistério ginasial
1680-1680 Solothurn Magistério ginasial
1681-1683 Lucerna (da Suíça) Magistério ginasial
1682/09/19 Lucerna Petição de envio às Missões
1683-1687 Ingolstadt Estudos de Teologia
1687, fevereiro Ingolstadt Licença de viajar às Missões
1687/02/22 Eichstätt Ordenação de subdiácono
1687/03/15 Eichstätt Ordenação de diácono
1687/05/24 Augsburgo Ordenação de presbítero
1687-1688 Augsburgo Magistério ginasial
1688-1689 Altötting Terceira provação
1688-1689 Landshut Magistério ginasial, mais ou menos do
432
Zeittafel zum Leben von Pater Anton Sepp. MAYR, 1988, p. 13s. Rabuske traduziu, apresentou comentários
e publicou essa tabela. RABUSKE, 2003, p. 11s.
190
Natal à Páscoa
1689/03/02 Recebe do Provincial alemão o certificado
de missionário paraguaio
1689, maio Baviera Partida para as Missões
1689, junho Tirol Meridional Visitas de despedida
1689/07/15 Trento Partida para Gênova
1689/08/15 Gênova Últimos votos de jesuíta
1689/09/11 Gibraltar Travessia do Mediterrâneo
1689/10/18 Naufrágio no Mediterrâneo
1689-1691 Cadiz e Sevilha Espera pela chance de viagem
1690/07/16 Sevilha Primeira alistagem dos passageiros
1690/08/26 Sevilha Segunda alistagem dos passageiros
1691/01/17 Cadiz Começo da viagem atlântica
1691/04/06 Buenos Aires Chegada ao Porto do Prata
1691/05/01 Buenos Aires Início da viagem fluvial, Uruguai acima
1691/06/01 Yapeyú Chegada à redução de Reyes
1691-1694 Yapeyú Missionário na redução
1694 (?) Encarnación (Itapúa) Construção de um órgão para Reyes
1694-1696 Santa Maria de Fé Missionário na redução
1695 Paraguai Epidemia (enfermeiro-médico)
1695-1696 San Carlos Falece o amigo Pe. Antônio Böhm
1695-1696 San Ignácio Guazú “Médico” durante a epidemia, e teatro para
os índios
1696-1697 San Carlos Substituto passageiro de outro padre
1697 San Javier Restauração das próprias forças
1697 (?) São Miguel Missionário na redução
1697-1710 S. João Batista Fundação, construção e direção do novo
povoado
1697/09/14 S. João Batista Ocupação da terra através da criação de um
cruzeiro rural
1702 S. João Batista Sua primeira introdução como cura ou
pároco; depois falsa acusação
1706/03/27 S. João Batista Sua segunda introdução como cura-pároco
191
1710-1713 S. Luís Gonzaga Missionário na redução
1713-1714 San Javier Missionário na redução
1714-1730 La Cruz Missionário diuturno na redução
1730 ou algo antes La Cruz Superior junto às reduções do Uruguai
1730-1733 San José Missionário na redução
1733/01/13 San José Falecimento
Observações
433
:
1. Quando possível, na indicação da data inteira, apresenta-se a seqüência: ano, mês, dia.
Onde há dúvidas acerca de data aparece o sinal de interrogação.
2. Sobre a questão de local, indicação genérica “Paraguai” relativa ao ano 1695, sugere que
Sepp tenha andado qual “médico-enfermeiro” por diversas reduções.
3. Tabela indica que na vida de Sepp duas fases distintas: a européia (de 1655 a 1691) e a
“paraguaia” ou sul-americana (de 1691 a 1733).
2. Carta-pedido para as Missões
434
Em Cristo Reverendíssimo Padre.
A paz de Cristo.
É próprio dos filhos, contanto que sejam genuínos, o costume de apresentarem a seu
Padre felizes augúrios, logo que o vejam guindado a algum encargo novo. Estendem também
então, em primeiro lugar, as mãos suplicantes a ele, porque acham firmemente que nunca
serão atendidos mais depressa, quanto ao que pedem, do que ao ensejo de verem o Padre
investido em novas dignidades.
Até hoje todos tivemos em ti um padre, mas agora outrossim todos nos felicitamos
por possuir em ti um Prepósito. Por isso não te cause surpresa, padre amantíssimo, se também
eu, o último dos filhos, estender a ti as mãos suplicantes e muito humildemente te faça um
pedido, a saber, que me inscrevas também como candidato no Livro da Vida, isto é, que me
433
Cf RABUSKE, 2003, p. 12s.
434
Carta de 1682, dirigida ao Superior Geral da Companhia de Jesus, Pe. Carlos de Noyelle, em Roma.
Publicada, na íntegra, por MAYR, 1988, p. 429. Traduzida e publicada por RABUSKE, 2003, p. 86s.
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ajuntes ao número dos que conheces como teus e julgares aptos a serem enviados algum dia
às Índias.
Se eu não faltar naquilo que me cabe, então aquele Deus que chama tanto as coisas
que são como as que não são, daa Sua graça ao pecador. Isto, sobretudo, se eu considerar a
sua Infinita Misericórdia, pela qual outrora, quando fora chamado à Inglaterra em atenção
do lucro ou do favor agraciado dos príncipes, contudo me fez preferir o seguimento de seu
Filho pobre e desprezado na sua Companhia, a buscar as coisas deste mundo. A respeito
disso, te poderá contar mais o Rev. Pe. Tiago Bosch, em sua condição de árbitro extremo dos
meus segredos íntimos em Innsbruck.
Que Deus conserve a ele, e sobretudo Tua Paternidade Reverendíssima, tanto tempo
à sua Companhia, quanto for preciso para que também eu possa cantar o Nunc dimittis (Agora
deixai, Senhor, Vosso servo partir em paz).
Lucerna, 19 de setembro de 1682.
O filho mínimo em Cristo
Antônio Sepp.
3. Carta do ano 1714 ao Pe. Reitor Josephus Preiss, S.J.
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Em Cristo Reverendo Padre e Pai: A paz de Cristo!
Recebi aos 13 de junho de 1713 a carta escrita a 3 de abril de 1710 por meu
diletíssimo primo Antônio Sepp, que então era mestre e agora deve ser padre. Jogada de
para lá, por mar e por terra, veio ela junto com os santinhos e a visão geral de nossa Província
Jesuítica, sendo-me enviado tudo isso por vossa Reverência. Expresso-lhe para tanta coisa o
meu profundo agradecimento. Através de todo o seu conjunto fala a afeição, com que o
excelente Instrutor dos tempos idos quis acompanhar seu indigno protegido desde os inícios
da vida religiosa até a presente idade da madureza.
Agradeço de modo idêntico o empenho e amor paternal que Vossa Reverência
patenteou ao nosso Mestre Antônio, e não apenas quando este dirigia toda a Província, mas
também quando em Ingolstadt o albergou em sua residência. Conceda o Senhor Deus que o
cordeirinho siga as admoestações de um pastor tão bom!
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SEPP, 1974, p. 126-134. Traduzida e publicada por RABUSKE, 2003, p. 164-173.
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Enquanto isso eu apascento meu rebanho, chamo e volto a chamar e minhas ovelhas
me escutam e conhecem a minha voz. Faz pouco construí um novo redil, bastante amplo, quer
dizer, a redução de São João Batista, e graças ao supremo pastor, durante os sete anos que o
tive sob meus cuidados não se perdeu nenhuma de minhas ovelhas. Agora eu cultivo a lavoura
de São Francisco Xavier, e isto depois de haver trabalhado por três anos na vinha dedicada a
São Luís Gonzaga!
Até agora tenho gozado de boa saúde, embora não sejam poucos os pesares que me
oprimem. Porque, enquanto carregamos para o céu os feixes maduros, também colhemos as
nossas cruzes, que o amantíssimo ‘Pai de Família’ oferece a seus arrendatários, de acordo
com a capacidade de as levarem aos ombros.
Daí a conveniência de que os candidatos à nossa colheita paraguaia sejam sadios e
fortes, tanto corporal como psiquicamente, e se achem munidos de uma virtude viril, de modo
que se encontrem capazes de adaptação, dispostos ao trabalho e alegres nas contrariedades.
Por outra, eles não devem carregar lerda e mal-humoradamente o ônus e calor do dia, mas
mostrar-se aplicados e joviais, constantes, generosos e magnânimos, assim como o prescreve
a Regra de nossa Ordem religiosa. Requer-se isto, para que eles mesmos não venham a
sucumbir ao fardo e perder-se eles próprios, enquanto se encontram pregando a redenção a
outrem. Pois aqui existem para tanto deveras não poucas ocasiões, e os maiores perigos de
alguém se perder e vir a sofrer danos em sua própria alma. Dir-se-ia que são ‘Cilas e
Caríbdes’, arrecifes, bancos de areia e bastantes sereias, não pouco enganosas, sobretudo para
os que se acham investidos do encargo da cura de almas em cidadezinhas espanholas.
Embora nós padres missionários estejamos vivendo no meio de tantos milhares de
pessoas, indígenas estas, encontramo-nos de fato numa verdadeira Tebaida. Aqui não há, por
assim dizer, qualquer possibilidade de troca de idéias religiosas, existindo em vez disso
grande solidão, perpétuo silêncio e diminuta chance de se conseguirem notícias, na verdade
raras e atrasadas, a respeito de vossos afazeres aí na Europa. Achamo-nos afastados do mundo
e como que mortos para este, estando, além disso, sobrecarregados de ingentes tarefas e de
preocupações contínuas. É-nos Cristo a vida, e o morrer, um lucro. Vivemos de modo
exclusivo para Deus e nos alegramos com o fato de assim viver. Acreditamos ao menos na
chance de rever-nos no além, depois desta mísera vida.
Visto que Vossa Reverência me mandou um relato sobre a situação atual de nossa
Província um trabalho indizivelmente bem-vindo a mim -, quis remeter-lhe como sinal de
gratidão, qual presente em paga do seu, um escrito que lhe será, bem como aos outros amigos,
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de agrado igual. Desta feita não mais se trata de um relato dos meus próprios trabalhos
apostólicos, mas daqueles dos nossos padres, sendo que os coligi, quais ramalhetes de flores,
não sem esforço neste Jardim Paraguaio durante alguns anos. São eles de flores recentes,
novas por assim dizer, e assim espero que também se apresentem agradáveis. Meti, decerto, a
foice em seara alheia, se é que ainda se pode qualificar de alheia, depois de eu, desde dois
decênios e meio, embora como arrendatário preguiçoso, achar-me empenhado no cultivo
desse campo frutífero.
Depositei-os no papel em língua alemã, sendo por indicação dos Superiores e a
conselho de confrades, para que possam ser de proveito a mais leitores.
Para tanto moveu-me, antes de tudo, com os seus piedosos pedidos e desejos o
Revmo. e Exmo. Sr. Abade da Ordem Beneditina e de todo o Mosteiro Marienberg no
Vinschgau, um dos vales da minha terra natal. Importa ele, decerto, no protetor mais benévolo
e no benfeitor mais benemérito de mim mesmo e da minha família, e na verdade também e até
de nossa Companhia. Com os seus reverendos padres e outros membros de sua Ordem ele
viaja todo ano a Bórmio, para participar da festa de Santo Inácio, sendo que os nossos, de sua
parte, prestam honra idêntica a seu Mosteiro no dia de São Bento. Também se convidam
mutuamente as duas comunidades religiosas para as ‘disputationes’ em Filosofia e Teologia
no final do ano letivo.
A esse Abade enviei, como disse, por meio do Rev. Pe. Andreas Waibl, Assistente
para a Alemanha e outrora meu professor, e do Rev. Pe. Vicente Migazzi, Reitor do Colégio
de Trento, os meus escritos destinados à Província da Alemanha Superior. A propósito disso
informei também ao Revmo. Padre Geral. Visto ser efetivamente efêmera ou caduca, bem
como repleta de incertezas, a existência humana, e visto não serem pequenas as distâncias de
lugar e os espaços de tempo, pareceu-me conveniente escolher tal caminho, precisamente para
não se perder o meu manuscrito. De modo especial procedi assim em minha escolha, porque
os meus padres e protetores, a saber o Rev. Pe. Tiago Willi, que me mandou para o Paraguai,
e o Rev. Pe. Eusébio Truchsess, já se foram para o céu, como esperamos. Chegar às suas
mãos havia sido o anelo profundo dessas florzinhas. Se elas agora Deus no-lo conceda!
vierem a dar na Alemanha, então terão alcançado um porto seguro e o objetivo de seus anelos,
por conseguinte não mais precisando temer nenhum naufrágio. Com efeito, é coisa quase
incrível quantos são os perigos a que nossos escritos se acham expostos por mar e por terra!
Mas o Divino Mercúrio se dignou a trazê-los para e para cá, sendo com vosso e nosso
sucesso.
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Certamente já se de vosso conhecimento o fato de nossos Procuradores, em sua
viagem de ida e volta, terem sido feitos prisioneiros e conduzidos para a cidade portuguesa de
Lisboa; da mesma forma como, em seu trajeto de retorno, todos os reverendos missionários
os 44 destinados ao Reino do Chile e os 45 enviados ao Paraguai foram despojados pelos
piratas holandeses de todos os seus pequenos pertences, dos seus livros, até mesmo de seus
mantos, embora tivessem conseguido da Rainha Inglesa Ana um salvo-conduto pela quantia
de vinte mil táleres filípicos.
Da ameaça de um perigo ainda maior e mais sensível escapou a carta que Vossa
Reverência ora tem em mãos. Pouco faltou para ela haver sofrido um mísero naufrágio no
próprio porto de Buenos Aires, e isto não nas ondas quentes do mar, mas nos fardos
cuspidores de fogo das chamas onidevoradoras. Hoje me é dado descrever com brevidade o
ocorrido, e assim o faço:
No dia 5 de maio do ano passado, na data festiva da Ascensão de Nosso Senhor,
quando os nossos Padres Procuradores iam começar em horas vespertinas a viagem a Roma,
certo indivíduo, contramestre do barco Amphitryon, francês de nascença, além de jogador e
libertino malvado, incendiou seu navio. Ele havia jogado desde a manhã, perdendo seu
dinheiro e ainda um barril de cachaça. Desta forma ficou fora de si e, num acesso de raiva
infernal, pôs fogo no navio, que era um grande barco de carga, ao qual os franceses tinham
dado o nome de ingente deus marinho.
O Amphitryon já fizera por duas vezes a viagem à China, cruzando de vento em popa
o Oceano Oriental e achando-se munido também de 80 peças de artilharia. Ele teria merecido,
na verdade, outro destino que aquele que lhe coube, a saber, queimar de modo lastimável no
meio do Rio da Prata. Com ele 150 franceses se tornaram vítimas do incêndio, sucedido à
vista da cidade de Buenos Aires, apesar de o Governador espanhol ter enviado, com a máxima
pressa possível, diversos botes em seu socorro. Foi tão grande e fatal para os passageiros o
incêndio causado pelo barril de cachaça, que as águas do rio mais largo do mundo, pois mede
50 milhas de uma margem à outra, não puderam apagar. Deve ter sido uma cachaça de força
singular!
Nossos padres procuradores teriam sofrido indubitavelmente o mesmo destino triste
se não houvessem retardado, com a ajuda de Deus, a hora de seu embarque, adiando-o da
manhã para o cair da tarde. chegara o dia ajustado para a saída, sendo que o batalhão de
rudes marinheiros estava preparando a partida, levantando as âncoras e pondo as vergas e as
velas. O patrão da nave incitava sua gente para apurar. Tangia o timão. E os padres são
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chamados, mas eles não aparecem. Negam-se a fazê-lo e, como filhos da luz, desprezam os
filhos das trevas, preferindo celebrar dignamente na terra a Ascensão de seu Salvador e
recomendar-lhe sua viagem marítima a se mostrar prontos para a partida. Eles titubearam em
seu embarque por piedade cristã e por subordinação de sua pessoa à vontade do Salvador.
Enquanto isso, no barco o pessoal se põe a jogar, se banqueteia e se comporta de
modo dissipado, dança em bailes e blasfema, exaspera-se e, por raiva, o bonito Amphitryon é
incendiado e se transforma em chamas. Mas esta carta, meu manuscrito e os padres, dignos de
uma viagem mais feliz, salvam-se do incêndio. O que ocorreu em seguida aos meus escritos
na travessia, de que Cila e Caribde escaparam, que tempestades tiveram de suportar, de que
corsários se salvaram e de que outros perigos se evadiram na viagem por mar e por terra, não
o poderão relatar estas páginas a Vossa Reverência, por serem mudas. Mas talvez me possa
dar conta de suas aventuras por intermédio da correspondência que os barcos me vão trazer na
viagem de volta.
Escrevo tudo isso aos senhores, para que agradeçam a Deus, que tanto bem ostenta à
nossa Província, fazendo passar as nossas cartas de um continente a outro.
A esse respeito confio que Vossa Reverência e meus queridos padres vão ter mais
notícias de nossa vida e obra por meio do livro acima citado, do qual espero, como disse, que
seja bem-vindo a todos e se mostre útil, outrossim, para o bem das almas. Sobretudo vale isso
para os párocos, os catequistas e os nossos pregadores, também para os Prefeitos das
Congregações Marianas e os professores das escolas de ensino básico. Pois nele vão descobrir
exemplos admiráveis, espalhados aqui e ali, e até hoje inéditos, que se revelam não pouco
aptos a despertar de um lado, horror aos vícios e, de outro, a implantar também a virtude em
cada classe de vida e idade. Nele se encontram também bastantes ocorrências espantosas, que
eles podem narrar durante a quaresma; sinais surpreendentes de predestinação eterna;
exemplos de como a antiga força do braço divino mais vezes se renova; como a proteção da
Benditíssima Virgem se mostrou aqui e ali; como os lírios da castidade também se
conservaram puros e incólumes entre os espinhos e na idade tenra. Nele não faltam nem
assuntos efetivamente adaptáveis ao teatro.
Além disso, eles irão encontrar em suas páginas numerosas descrições de rios, fontes,
florestas, flores, frutas desconhecidas, etc., bem como dos costumes de diversos povos, de
suas “academias”, seus banquetes, seus hábitos funerários, suas guerras cruéis e de muitas
coisas mais, que realmente causam assombro.
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Antes de tudo parecem nele incríveis os trabalhos, sofrimentos e perigos que os
nossos padres missionários têm suportado com rara paciência para tirar esses bárbaros e
antropófagos, piores em crueldades que todos os tigres, de suas cavernas, seus juncais, seus
banhados e terrenos montanhosos, de suas matas, esconderijos silvestres e covas.
Tudo isso pode servir a de estímulo para qualquer homem mundano para que
ingresse ele mesmo na senda íngreme da virtude cristã, tome a si toda contrariedade e passe a
cuidar ardorosamente da salvação de sua alma. Pois não deve ser que esses incultos e bárbaros
cheguem ao céu e que os civilizados e cristãos contrariamente desçam ao inferno.
Passo por alto a cura de almas dos padres residentes em cidades espanholas, cujo
zelo acabou com a obra destruidora dos vícios, contribuiu para elevar a religião em seu
prestígio e devolveu aos templos os altares, aos altares os sacerdotes, aos sacerdotes os bons
costumes.
Eles fundaram seminários, ergueram mosteiros femininos, bem como capelas de
irmandades e associações piedosas para mouros (africanos) e cidadãos castelhanos. Ornaram
altares, consagraram casas de Deus, embelezaram com mais insistência igrejas, ajudaram os
bispos e prestaram auxílio aos missionários até o Peru.
Para reerguerem o culto divino de seu estado decadente, eles desceram muitas vezes
ao último degrau de seu sacerdócio régio. Para defenderem os direitos dos índios, lançaram-
se, com o perigo da própria vida, de encontro aos inimigos desse elemento humano. Por amor
à religião contentaram-se com um baixo nível de vida entre os bárbaros. Exterminaram os
restos da hedionda idolatria em Tucumán, sufocaram os germes da mesma no Paraguai,
reduziram a cinzas sua sementeira no território do Paraná e arrancaram o inço vergonhoso da
antropofagia em todas as províncias junto ao Uruguai.
Os missionários fundaram mais de trinta aldeias, que chamam de reduções,
destruíram um sem-número de imagens supersticiosas, acabaram com a posição de
superioridade de muitos feiticeiros, cartomantes e demônios e enviaram milhões de inocentes,
como florzinhas primaveris, tostadas pelos frios hibernais, ao além ou aos páramos celestiais.
E o que devo dizer das constantes perseguições, injustiças, ofensas, importunações e
torturas que eles não somente tiveram de aturar da parte dos leigos, mas também de
representantes do clero, entre os quais houve até não poucos bispos, uma vez que se
empenharam heroicamente pela proteção dos índios? O que devo dizer de mais de vinte
aldeias florescentes de neoconvertidos que no século passado não foram destruídas por
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bárbaros, mouros ou pagãos, mas pelos próprios espanhóis e dos nossos cem mil cristãos que
foram conduzidos para a mais deplorável das escravidões?
Os nossos missionários tiveram de comprar para si por contrato a paz, a fim de
consegui-la para os seus protegidos; tomaram a si mesmos os incômodos, para libertar os
povos indígenas do medo; não se concediam descanso nenhum a si próprios, para o arranjar às
suas ovelhinhas. Jogados de para lá, e isto até hoje, por tantos vendavais, não perderam
assim mesmo a paz da alma. Cercados de tantos inimigos, não renunciaram à sua própria
serenidade. Tendo sido arruinadas as aldeias, não se entregaram ao desânimo. No meio da
confusão mantiveram-se sossegados, na comoção ficaram imóveis e nos ensaios de ruptura
não se entregaram.
Estes assuntos, e ainda outros mais e semelhantes, o leitor cristão irá encontrar neste
livro. É coisa interessante e útil, que ao mesmo tempo pode servir de recomendação para toda
a nossa Companhia de Jesus e se apresenta digno de imitação, ou ao menos merecedor de
atenções, para os nossos próprios adversários e os adeptos de outras confissões. Foi por isso
que eu lhos quis enviar. É que não sirvo de tal modo ao Paraguai que esqueça a minha querida
pátria. Esforço-me, outrossim, para estar a serviço do Velho e do Novo Mundo e me esforço
para fazer o meu trabalho, por mais insignificante que seja, até o último suspiro pela salvação
das almas, redimidas pelo sangue precioso de Cristo. Exige-o assim a Regra de nossa Ordem;
convém assim a um verdadeiro e autêntico jesuíta. Foi com esse leite que me alimentou
minha/nossa queridíssima Província da Alemanha Superior e nos deixou como legado
Francisco Xavier, nosso santo apóstolo das Índias Orientais.
Se os filhos das trevas se apressam em chegar, sob tantos perigos de vida por mar e
por terra, até o último rincão do mundo para trazer à casa a escória vermelho-amarela, certo é
então que os filhos da luz devem aspirar ao salário-prêmio, que acena aos pregadores do
Evangelho como se fosse de pérolas preciosas e que eles, segundo o exemplo dos discípulos
do Senhor e de acordo com a palavra de nosso Geral Pe. João Paulo Oliva, se ponham a
recolher as migalhas, para não se perder, e enviá-las a você no ultramar como brilhantes
pedrinhas índias. Que também luzam os sofrimentos passados neste último recanto do mundo
para os que aí estão na Casa de Deus e têm que glorificar a seu Pai no céu!
Não me falta a vontade, mas certamente o tempo, para escrever a todos em particular.
Daí eu peço a Vossa Reverência que considere a presente carta endereçada a todos e a
distribua oportunamente com uma circular aos Colégios. Seum favor especial comunicá-la
aos nossos queridos e prezados professores de outrora e aos colegas, bem como aos demais
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sacerdotes e mestres. Como não me consta onde esteja parando cada um deles, seria vão eu
querer aduzir aqui o nome e endereço de todos. Esteja certo, porém, cada um deles, que eu por
toda parte carrego comigo seu retrato, impresso profundamente em minha alma! Assim eu os
vejo de contínuo a todos em espírito e suporto mais facilmente as saudades, em que tantas
vezes me descubro impaciente, isto é, o anelo de enxergá-los com a vista corporal diante de
mim. Pois consola-me sem interrupção a visão interior dos padres em pauta, dos quais até
hoje nunca me esqueci em meus mementos diários diante do altar. E como poderia eu olvidar
a quem tanto devo, quem tanto aprecio e quem tanto amo?! Oh, como eles me estão presentes!
Que o Bom Deus o guarde, bem como a todos os demais, tanto tempo feliz e salvo
nesta vida, até que nos venha a reunir pelo laço de uma eternidade ditosa na outra vida! É o
que lhes desejo de coração, e neste sentido se dirigem minhas orações. Passem bem e rezem
também por mim e pelos meus pobres paraguaios!
Dado no Paraguai, da redução de São Francisco Xavier, aos 13 de junho de 1714.
De Vossa Reverendíssima e de todos os demais o mínimo servo em Cristo Antônio
Sepp, SJ.
Ao Revdo. Padre em Pai e Cristo José Preiss, SJ, Reitor.
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