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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LUCIANE RAMOS SIQUEIRA
A INFÂNCIA E SUAS REPRESENTAÇÕES EM QUARTO DE MENINA , CARTÃO-
POSTAL E A PALAVRA QUE VEIO DO SUL , DE LIVIA GARCIA-ROZA
Rio de Janeiro
2007
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LUCIANE RAMOS SIQUEIRA
A INFÂNCIA E SUAS REPRESENTAÇÕES EM QUARTO DE MENINA , CARTÃO-
POSTAL E A PALAVRA QUE VEIO DO SUL , DE LIVIA GARCIA-ROZA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira), Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira)
Orientadora: Profª Doutora Rosa Maria de Carvalho
Gens
Rio de Janeiro
2007
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FOLHA DE APROVAÇÃO
LUCIANE RAMOS SIQUEIRA
A INFÂNCIA E SUAS REPRESENTAÇÕES EM QUARTO DE MENINA , CARTÃO-
POSTAL E A PALAVRA QUE VEIO DO SUL , DE LIVIA GARCIA-ROZA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira), Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira)
Rio de Janeiro, 23 de Agosto de 2007
_______________________________________
Rosa Maria de Carvalho Gens
Profª Doutora UFRJ
_______________________________________
Adauri Bastos
Profº Doutor UFRJ
_______________________________________
Édson Rosa da Silva
Profº Doutor UFRJ
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Siqueira, Luciane Ramos
G216si A infância e suas representações em Quarto de Menina, Cartão-Postal
e A Palavra que veio do Sul , de Livia Garcia-Roza/ Luciane Ramos Siqueira.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
129 f. 30cm.
Orientadora: Rosa Maria de Carvalho Gens
Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de LetrasVernáculas.
Bibliografia: f. 124 -129
1. Garcia-Roza, Livia, 1940. Quarto de Menina. Crítica e interpretação.
2. Garcia-Roza, Livia, 1940. Cartão-Postal. Crítica e interpretação. 3.
Garcia-Roza, Livia, 1940. A Palavra que veio do Sul . Crítica e
Interpretação. 4. Infância na literatura. 5. Família na literatura. I. Gens, Rosa
Maria de Carvalho. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título
CDD B869.35
4
À criança que um dia fui e ainda sou...
5
Agradeço primeiramente a Deus por cuidar de mim e me
capacitar; a minha família: min ha mãezinha Nailda,
minha irmã Liliane, meu irmão Sidnei, minha cunhada
Vanessa, Isabella e Júnior (sobrinhos lindos) e ao meu
namorado Ricardo, pelo apoio, incentivo, compreensão e
muita, muita paciência...; a Rosa Gens pela orientação,
carinho e amizade; a Cris e aos amigos da caminhada;
aos que sonharam junto comigo, mas não viram o
resultado do sonho: meu pai Alcides ( in memoriam) e
meu amigo Mauro Sérgio ( in memoriam); e a todas as
pessoas que, de alguma maneira, contribuíram para a
realização deste trabalho. Obrigada!!!
O presente trabalho foi realizado com o apoio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico CNPq Brasil.
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“E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e so mos todos iguais.”
Carlos Drummond de Andrade - “Últimos dias” In:
Antologia poética
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RESUMO
SIQUEIRA, Luciane Ramos. A infância e suas representações em Quarto de Menina,
Cartão-Postal e A Palavra que veio do Sul , de Livia Garcia-Roza. Dissertação (Mestrado
em Literatura Brasileira) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2007.
Estudo da infância e suas representações, tendo como base os romances Quarto de
menina, Cartão-Postal e A palavra que veio do S ul, da escritora brasileira Livia Garcia -Roza.
A partir da infância/adolescência e tendo como paradigmas os narradores Luciana, João e
Maria Helena, a Leninha, respectivamente, tecemos observações com outros pontos
articulatórios: os brinquedos e as brincadeiras na visão de adultos e crianças; as relações com
as famílias; a morte, sua distância e aproximação para os personagens enredados nas
narrativas; a palavra, seu poder, autoridade, domínio e encantamento; os amores, de filhos
para com os pais e no encontro d o primeiro amor presente na figura do namorado/a; a
descoberta da sexualidade; distância e aproximação entre pais e filhos; o relacionamento
dessas crianças com outras crianças e com os adultos; a presença do maravilhoso, da fantasia,
da imaginação; os bichos, falantes como o grilo Teo ou presentes nas tatuagens que marcam
os corpos. E com o crescimento dessas crianças, a saída da infância e a entrada na
adolescência/juventude, surgem novos significados, novas perspectivas, novas experiências e
novas representações.
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ABSTRACT
SIQUEIRA, Luciane Ramos. A infância e suas representações em Quarto de Menina,
Cartão-Postal e A Palavra que veio do Sul , de Livia Garcia-Roza. Dissertação (Mestrado
em Literatura Brasileira) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2007.
This is a study of the childhood and its repre sentations, based on the novels Quarto de
menina, Cartão-Postal and A palavra que veio do Sul , by the Brazilian writer Livia Garcia-
Roza. Since the childhood/adolescence and useing the narrators Luciana, João and Maria
Helena, the Leninha, as paradigms to draw observations towards other key elements such as :
the toys and tricks under the adult’s and kid’s view; family relations; death and its distance
and approximation towards the characters of the narratives; the word and its power, authority,
domination and enchantment; the love affairs from the children to the parents and in the date
of the first love present in the image of the boy/gir lfriend; the outcome of sexuality; the
distance and approximation between parents and children, children to children and adult to
children relations; the presence of the wonderful, the fantasy, the imagination; speaking
animals like Teo the cricket or in the tattoo marks on the bodies. And with the growth of these
kids, the outlet from the childhood to the beginning of adolescence/youth, new meanings
come, new perspectives new experiences and new representations.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
2 QUARTO DE MENINA......................................................................................................15
2.1 Um breve passeio pela infância..........................................................................................15
2.2 A menina do quarto.............................................................................................................19
2.3 Brinquedos e brincadeiras...................................................................................................25
2.4 A relação com os outros: adultos e crianças.......................................................................31
2.5 A família.............................................................................................................................39
2.6 O poder da palavra................................................................................................. .............42
2.7 A morte...............................................................................................................................45
2.8 Menina-mulher.................................................................................. ..................................49
3 CARTÃO-POSTAL.............................................................................................................54
3.1 Um lugar recriado...................................................................... .........................................54
3.2 Entre o natural e o sobrenatural..........................................................................................57
3.3 Rede de relacionamentos........................................................ ............................................63
3.4 A vida e a arte.....................................................................................................................77
3.5 Sexualidade....................................................... ..................................................................81
4 A PALAVRA QUE VEIO DO SUL....................................................................................84
4.1 A palavra: de vida e de morte....................................... ......................................................85
4.2 Nos laços de família............................................................................................................89
4.3 Nas armadilhas do destino................................... .............................................................101
4.4 Os amores: de menina à mulher........................................................................................104
4.5 Entre pessoas e bichos: zoomorfismo........................... ....................................................115
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... ..........................124
10
1 INTRODUÇÃO
Por muito tempo não imaginei que pu desse haver infância sem brinquedos e
brincadeiras. Anos depois de passar pela infância, tive contato com realidades bem diferentes
da minha. Conheci várias crianças, que como crianças, apenas queriam poder brincar, estudar,
se sentirem protegidas. Vi corpos frágeis marcados pela violência dos adultos. Violência
física e muitas vezes psicológica. Vi crianças que tinham responsabilidade de cuidar da casa e
de ajudar a sustentá-la: vender balas ou picolés na s ruas, ajudar carregando bolsas de compras
em mercados, servir de babá cuidando de crianças menores, fazer malabarismo no sinal de
trânsito. Crianças que não dormiam à noite por causa de tantos tiros que tiram a paz e causam
medo, horror, preocupações e mortes. Crianças que não conheciam ou que não tinham mais
seus pais.
Vi corpos mutilados espalhados na escola, o único lugar de refúgio para algumas
crianças, o lugar que deveria servir de abrigo às fantasias e desp ertar o encanto com o mundo
da leitura e da escrita, mas que a morte também invadiu e banalizou. Vi a escr ita servir de
punição severa, e o que deveria despertar atração, despertava medo e pavor.
Mas em qualquer lugar e em qualquer contexto o apenas cri anças, como quaisquer
outras, que deveriam ter garantido e cumprido o direito a uma infância feliz. Vi também
muitos sorrisos felizes, olhinhos brilhando, diante da audição de uma história, diante de uma
brincadeira, um brinquedo, uma música, um carinho, u m beijo, um abraço... Diante do poder
da imaginação, qualquer objeto se transformava em um brinquedo ou brincadeira. O elemento
maravilhoso não pode ser explicado, as crianças têm a capacidade de prover com imaginação,
com “ilusão”, o seu cotidiano.
Temos paradigmas, como qualquer sociedade. E, dentro deles, classificamos a
normalidade como algo perfeito e a anormalidade como algo imperfeito. E o perfeito, para
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nós, cidadãos ocidentais do século XXI, seria a infância protegida e amparada. Direitos
básicos, como comer, ter uma casa, estudar, brincar, deveriam ser extensivos a todas as
crianças. Diante da indignação observada com uma parcela das crianças e pelo fato de isso ter
deixado marcas tão profundas, as análises do universo literário realizadas aqui, o
contemplarão esta infância pobre, abandonada, imperfeita. A análise será baseada em crianças
ficcionais (Luciana, João, Clara e Maria Helena, ou simplesmente Leninha) que podem ser
consideradas privilegiadas, por terem uma infância feliz. Mas a indignaçã o com o abandono
infantil, vem junto com o desejo que todas as crianças possam gozar do simples direito de
serem crianças.
O primeiro tema central escolhido para ser objeto desta dissertação foi o medo. O que
não está descartado, algumas facetas do medo se rão foco de nossa investigação, mas em
segundo plano. O foco principal recairá sobre a infância e as relações advindas dela : o medo
diante do namorado da mãe ou da namorada do pai; o modo lúdico de encarar a morte; a
relação com os brinquedos, com a solidã o, com outras crianças e com os adultos. A idéia de
trabalhar com a infância surgiu com o trabalho de contação de histórias na creche da UFRJ e
foi reiterado com o desenvolvido com crianças no Complexo da Maré, lugar tão perto
geograficamente do espaço uni versitário e tão distante sócio e economicamente.
Crianças requerem cuidados: alimentação, prevenção e cuidado com doenças,
proteção, preparo para a vida adulta. E durante o passar dos anos, variações ocorreram no
tratamento com elas. O trabalho infantil, por exemplo, podia ser permitido ou condenado, de
acordo com a sociedade e a época histórica em que fosse praticado. Assim como a disciplina
física, que podia ser usada com o apoio da religião para livrar a criança de ser corrompida
pelo pecado original, ou ser desaprovada, tida como mau trato. A infância é definida por
adultos, não pelas crianças, e a condição infantil é bastante diversa entre Ocidente e Oriente,
entre passado e presente.
12
No final do século XX, mais precisamente em 1995, Li via Garcia-Roza, psicanalista e
professora, faz sua estréia na literatura brasileira com o romance Quarto de menina, em
seguida publica Meus queridos estranhos (1997), Cartão-Postal (1999), e, no início do século
XXI: Cine-Odeon (2001), Solo feminino: amor e desacerto (2002), A palavra que veio do Sul
(2004), Meu marido (2006) e A cara da mãe (2007). Organizou Ficções fraternas (2003) e
escreveu Restou o cão (2005), também de contos. Participou como contistas de 13 dos
melhores contos de amor da literatura brasileira (2003), organizado por Rosa Amanda
Strausz, Os cem menores contos brasileiros do século (2004), organizado por Marcelino
Freire, e 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004), organizado por
Luiz Ruffato. Ainda participou da obra Filhos e cenas (2004), junto com Fernando Bonassi e
Rubem Grilo.
A infância é uma constante na obra da L ivia. As relações familiares contemporâneas
nos serão apresentadas através da ótica de narradores infantis: são crianças e adolescentes. Foi
esta particularidade e o encanto com a infância, que movimentaram a escolha das obras que
constituirão o corpus da pesquisa. Além da experiência de trabalhar com crianças na Creche
Universitária Pintando a Infância/ UFRJ, durante dois anos, e no Programa de Criança
Petrobras/CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré) no Complexo da Maré,
durante quatro anos e meio. Conheci, naquele momento, algumas crianças parecidas e outras
tão diferentes das que narram os romances. Quarto de menina foi o primeiro romance
selecionado para ser objeto dessa pesquisa. E, para mantermos o foco narrativo na infância,
Livia Garcia-Roza foi escolhida para representar o mundo infantil que queríamos estudar.
Cartão-Postal foi o segundo romance escolhido, seguido de A palavra que veio do Sul .
Optamos por seguir a análise com a ordem da publicação, logo, seguiremos assim. A
originalidade da escritora consiste também no fato de ela conseguir expressar essa consciência
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infantil. Não estamos diante de um adulto que não convence ao dar voz a persona gens
infantis.
Não é nossa pretensão estudar a história da infância. Pretendemos observar as
construções/articulações dessa face da infância apresentada no tecido narrativo escolhido.
Com muito cuidado, então, abriremos a porta do Quarto de menina e entraremos neste espaço
íntimo da menina Luciana, que, sendo filha de pais separados, possui um quarto na casa do
pai e outro na casa da mãe. Tem em seu quarto o seu mundo: bonecas, brinquedos,
imaginação. O quarto preferido é o da casa do pai. Depois, conheceremos o Cartão-Postal,
através do menino João, que tem uma irmãzinha chamada Clara. Eles chamam de cartão -
postal a casa da avó, um lugar que às vezes sacode, quando alguém balança o cartão -postal,
ambiente para onde se muda com a mãe e a irmã depois que o ca samento da mãe acaba. Não
ficam por durante muito tempo. A mãe arranja um novo namorado, que como ela, é dublê
em cenas perigosas de filmes, e vão morar juntos em outra casa. Ficará a cargo de Helena
Maria, ou Leninha, nos contar sobre A palavra que veio do Sul. Em nosso mundo moderno e
tecnológico, computadores trazem e-mails e palavras de qualquer lugar do mundo
rapidamente. Leninha mora com a mãe, o pai, casado novamente, mora com a esposa rica em
uma mansão. A mulher do pai não gosta de crianças, nem seus filhos moram com ela. A
menina, para desespero da madrasta, passa os dias brincando e também pendurada em um
manequim de rodinhas, a Matilde.
Distância e aproximação entre pais e filhos estão presentes nos romances que
analisaremos. A presença do mar avilhoso é outro ponto de interesse. Sabemos que fantasia é
diferente de realidade, mas a imaginação faz parte do mundo infantil e é apresentada no
cotidiano dessas crianças ficcionais. A morte também se apresenta: Luciana tem um contato
mais distante com a morte; João e Clara têm um contato muito próximo, o aestá enterrado
no jardim da casa da avó, no jardim do cartão -postal; a Leninha tem como melhor amigo um
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senhor, seu Wanderley, cliente de sua mãe que é astróloga, amigo que escreve obituários para
jornal, e que quando morrer, facom que a menina literalmente marque a sua perda, fazendo
uma tatuagem. As brincadeiras e brinquedos são apresentados em focos diferentes: temos uma
realidade para o agente da brincadeira, as crianças, e outra realidade par a o observador, os
adultos. A sexualidade também faparte de nossa abordagem, pois as crianças crescem e
com elas acontece o despertar para outro tipo de amor, para o desejo de relacionamento com
outra pessoa. E nessa época de novas experiências e novos significados, os brinquedos e
brincadeiras obtêm outra perspectiva. Temos a presença de animais e insetos: um grilo falante
no quarto, da casa do pai, de Luciana, uma gata cega, Catinha, que reside no cartão -postal e
um cachorro batizado de Infeliz que mor a na mansão da madrasta de Leninha e várias pessoas
que, por vezes, apresentam características de animais. Um fato curioso é a Leninha chamar
seu Wanderley de seu cachorro e por vezes agir como se ele realmente fosse um cachorro.
Vários outros parentes, am igos e empregados freqüentam as casas desses romances e nos
serão apresentados.
Temos várias possibilidades, porém, nenhuma plenitude. A infância será para cada um,
para cada época, para cada sociedade, para cada religião, vista de determinado ângulo. Noss os
valores modernos nos fazem olhar para o passado e levá -lo a julgamento: condenando ou
absolvendo de acordo com nossos interesses. E por vezes, esquecemos que várias práticas que
condenamos rondam as nossas casas, como o abandono ou o trabalho infantil e scravo, que
freqüentam as páginas dos principais jornais. Entretanto, nossa preocupação será de ordem
estética, literária, e não ética, social, logo, nossas divagações não percorreram esse caminho
do social. Nas representações e articulações da infância, a pontadas nos romances escolhidos,
focaremos nossa visão agora.
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2 QUARTO DE MENINA
Antes de entrarmos no romance Quarto de menina, faremos um pequeno painel de
apresentação da infância, um breve passeio por sua história. As variações entre sociedades,
tempos, Ocidente e Oriente, passado e presente, são bem definidas. Existe um aumento ou
diminuição da duração da infância de acordo com os interesses sociais, religiosos e/ou
familiares que regem determinado lugar ou época. A saída da infância antigamente era bem
cedo: com os contratos de casamento arranjados pelas famílias, adolescentes de doze, treze,
catorze anos já saíam da infância direto para a vida adulta com a responsabilidade do
matrimônio. Hoje, após a adolescência/puberdade, uma preocupação fa miliar em encarar
os bancos das universidades, fazer outros cursos, para só depois enfrentar a vida adulta.
2.1 Um breve passeio pela infância
Segundo Peter N. Stearns, em sociedades pré -agrícolas a criança podia auxiliar nos
trabalhos, ocasionalmente, e os adultos dedicavam tempo para brincar com elas, o que
possibilitava uma grande interação entre eles. Já nas sociedades agrícolas, caça e coleta foram
substituídas, em grande maioria, pela agricultura, e as crianças passam a ser úteis no trabalho.
As tarefas infantis são produtivas e necessárias naquele momento, logo, as taxas de natalidade
aumentam. As crianças pequenas não são apenas um peso , já que na etapa anterior das
sociedades caçadoras -coletoras, elas atrapalhavam os adultos, eram uma carga para suas
famílias que se locomoviam em busca de comida. O transporte delas era difícil e os recursos
eram escassos. As crianças ajudavam as mulheres na coleta, mas os meninos somente depois
do início da adolescência ajudavam na caça, e as necessidades deles er am maiores que a ajuda
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proporcionada. Como pouco participavam da vida econômica dos grupos de que faziam parte,
tinham mais tempo para brincar. Já com a agricultura, são também mão -de-obra produtiva.
No Código de Hamurabi, lei mesopotâmica, as crianças herdavam status e condição
social: filho de escravo era escravo e filho de nobre herdava a nobreza. Nas civilizações
clássicas, China, Índia e Mediterrâneo/Oriente Médio, houve preocupação com as leis
formais, definindo a infância e as obrigações infantis . A obediência dos filhos era ponto
fundamental. Ainda segundo Stearns, na lei judaica, o desobediente podia ser executado. O
que, inevitavelmente, ocasionou:
Por fim, decorrente dessa estrutura geral, a infância era dificilmente lembrada com saudade por aqueles
que tinham passado essa fase e novamente aqui existe uma curiosa semelhança entre as duas
sociedades clássicas. As reminiscências adultas no Mediterrâneo raramente mencionavam a infância, da
mesma forma que as observações chinesas, sempre cara cteristicamente esparsas, exceto em uma ou
outra ocasião quando se referiam às mães.
1
Mas não fiquemos com a sensação de que tudo era ruim. Veremos, em outro ponto a
ser analisado, que adultos chineses e indianos estimulavam a imaginação de seus pequenos e
os presenteavam com brinquedos.
O impacto religioso na infância não pode deixar de ser abordado. O cristianismo, por
exemplo, tentava regular o comportamento infantil fazendo uso do medo, medo da morte e da
danação. John Locke, no final do século XVII, contradizendo a religião tradicional, que
acreditava que a criança era corrompida pelo pecado original e por isso necessitava de
disciplina, diz que a criança era uma “tábula rasa”, boa e neutra, seria corrompida por
influência externa. Assim, o adulto deveria investir em educação para fazer progredir a mente
infantil. A religião tradicional e a ciência se enfrentam para defender seus pontos de vista
sobre a infância. No século seguinte, o Iluminismo reitera a idéia de que a criança não nasce
corrompida, promovendo a crença de que infância e educação deveriam andar juntas. A
1
STEARNS, P. (2006) p. 52
17
criança passa a ser idealizada: seres perfeitos, cheios de amor e pureza. Essa imagem é
difundida e ganha plena aceitação.
No século XIX, a marcação de gênero é mais acentuada: meni nas, preparadas para
serem esposas e mães, deveriam ser mais dóceis, inocentes e ingênuas que os meninos,
preparados para serem trabalhadores, negociantes. Nem mencionaremos as crianças africanas
trazidas como escravas pelos europeus para cá, por exemplo, como brilhantemente canta o
poeta Castro Alves em seu conhecido O navio negreiro”, do qual apenas citaremos alguns
versos:
Era um sonho dantesco... O tombadilho/ Que das luzernas avermelha o brilho ,/ Em sangue a se banhar. /
Tinir de ferros... estalar do oite.../ Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas / Magras crianças, cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães: /
Outras moças..., mas nuas, espantadas,/ No turbilhão de espectros arrastadas, / Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra, irônica, estridente.../ E da ronda fantástica a serpente / Faz doudas espirais .../ Se o
velho arqueja... se no chão resvala,/ Ouvem-se gritos... o chicote estala. / E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma cad eia,/ A multidão faminta cambaleia, / E chora e dança ali!/ Um de raiva
delira, outro enlouquece .../ Outro, que de martírios embrutece,/ Cantando, geme e ri!
2
No modelo moderno de infância ocidental, as crianças devem freqüentar a escola e o
trabalho infantil não deve ser aceito. Entretanto, a mão -de-obra infantil é barata e
freqüentemente utilizada. É uma questão polêmica, pois algumas famílias precisam da ajuda
financeira promovida pelo trabalho de suas crianças, mas, por outro lado, empresas e
empregadores aumentam seus lucros com a exploração do trabalho infantil, como sempre
vemos.
As sociedades industrializadas modificam várias questões no decorrer do século XX,
entre elas, a infância. As famílias se tornam instáveis, aumenta consideravelmente a ta xa de
divórcios. O rompimento da estrutura familiar deixa os pequenos no jogo de vai -e-vem entre
pais e mães. Outro fator importante foi a criança se tornar um consumidor em potencial:
2
ALVES, C. (1980) p. 78
18
presentes e mais presentes despertam nelas o consumismo e movimentam a sociedade
mercantil. Anúncios para os pequenos consumidores fazem efeito e levam seus pais à loucura,
pois são novidades diárias que aparecem, desde brinquedos e jogos eletrônicos a roupa e
comida: a cor azul foi designada para meninos e a cor rosa para me ninas; bonecas Barbie se
espalham pelo mundo levando consigo um novo padrão de beleza: a magreza, que ocasiona
uma discussão em que não entraremos; redes de fast food, como McDonald, são vastamente
conhecidas, assim como os personagens da Disney, filmes, a tores e cantores teens norte-
americanos. Brinquedos japoneses também ocupam seu lugar, como a boneca Hello Kitty e os
personagens Pokemon. O efeito globalização é perceptível.
O declínio na taxa de natalidade é outra questão: com as mães ocupando lugar n o
mercado de trabalho, às vezes com a dissolução de casamentos, por opção familiar, ou por
legislação, como na China, filhos únicos estão em moda. As relações pós -modernas também
fomentam o isolamento, mesmo em famílias com vários irmãos, pois o distanciam ento, o
desconhecimento do humano marcam presença. O mundo contemporâneo é caracterizado pela
diversidade, instabilidade, imprevisibilidade, superficialidade, descentramento, fragmentação,
rapidez, questionamentos sobre valores que estavam estabelecidos at é então, e
conseqüentemente ausência de valores e de regras. E o sujeito que vive neste mundo se vê em
meio a esta mobilidade e flutuação, e deseja o prazer, o presente, o consumo e o
individualismo. Os artigos para consumo são produzidos em série e os suj eitos também. A
vida segue com sua programação precisa, os minutos marcam cada passo deste sujeito, que
chegou ao individualismo narcisista, o que o levou a uma extrema solidão.
Após esse breve passeio pela história da infância, vamos, enfim, fixar âncora em
Quarto de menina e conhecermos um pouco a menina Luciana, seus conflitos, brinquedos,
sua família e a representação da infância pelas mãos da Livia Garcia -Roza.
19
2.2 A menina do quarto
Comecemos pelo óbvio: a marcação de gênero apresentada no título d o romance
Quarto de menina. A história nos será contada pela narradora/protagonista Luciana. E
podemos, então, prever o que encontraremos neste espaço físico anunciado, que estamos
tratando de uma criança ocidental, de fins do século XX. O romance é pub licado em 1995,
entretanto não evidência temporal no enredo da narrativa. Alguns indícios da modernidade
são apresentados: Luciana e a mãe vão a um restaurante especializado em comida japonesa e
seu pai é professor de filosofia em uma faculdade carioca, sendo, por exemplo, a Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro criada em 1937, a mesma
faculdade na Universidade Estadual do Rio de Janeiro data dos anos 1950. Ou seja, para ter
estudado e se tornado professor, no Rio de J aneiro, não sabemos de sua vida pregressa, com
certeza a marcação temporal seria no mínimo da segunda metade do século XX. Além de
outros indícios bem mais recentes como o computador e o controle remoto da TV, que com
certeza nos colocam nas últimas década s do século.
Filha de pais separados, ela possui um quarto na casa do pai, com quem mora, e outro
na casa da mãe, que acaba de se mudar para o Rio de Janeiro. O espaço é delimitado: o Rio de
Janeiro. Contradizendo um pouco nossa expectativa, o primeiro esp o mostrado no romance
não é o quarto, ou os quartos, da Luciana, e sim, a biblioteca de seu pai. Um lugar bastante
incomum, primeiro para a maioria das casas brasileiras, depois para crianças. Os quartos nos
serão expostos a seguir, na casa da mãe: “a li sta de presentes não terminou. Televisão nova
com controle remoto para o meu quarto. (...) Como meu quarto é bonito... cama nova,
brinquedos também novos nas estantes. Nenhum livro...”
3
Fato curioso é a ênfase da menina
na falta de livros em seu quarto na casa materna. Os livros fazem referência ao ambiente da
3
GARCIA-ROZA, L. (2002) p. 15 Todas as citações serão baseadas na 2ª edição de Quarto de menina,
publicada pela Record, ano 2002, conforme explicitado na bibli ografia em anexo.
20
casa paterna, não que na casa materna não existissem, pois, quase ao final do romance,
ficaremos sabendo que a mãe também possui um escritório em sua casa e em dado momento
ela estará lendo um livro. Entretanto, a biblioteca e os livros são forte alusão ao pai, que é
professor de filosofia em uma faculdade. Na casa paterna: “quando cheguei no quarto Tininha
estava no berço, coberta até as orelhas. Papai pensava em tudo, não sei como conseguia.
Tinha tanto o que fazer e no entanto preocupou -se com Tininha e irmãs. Ela tem irmãs. Não é
como eu, sem criança.”(QM, p. 25)
O quarto da casa paterna é habitado pela boneca Tininha e suas duas irmãs, além de
Luciana, e no futuro ganhará outros habitantes. Ela co nta com o carinho, proteção e dedicação
do pai, que se preocupa em “cuidar” de suas bonecas. Conhecemos sua condição: solitária,
não convive com outras crianças. A idéia de solidão percorre a narrativa: o pai de Luciana
vive na companhia da filha, sem outr o adulto e ela sem crianças, até o casamento com Selma.
Pós-casamento, ele retoma sua vida dentro da biblioteca e a esposa fica triste pelos cantos da
casa, solidão a dois. O tio Manoel também vive solitário. A mãe de Luciana vive só, a
enfermeira Mercedes e a Nilcéia farão um pouco de companhia, embora a enfermeira não seja
chegada a conversas, na visão da menina. Os familiares se afastaram deles, a sensação é que
formaram uma família no álbum de fotografias, pois, a solidão, aprisiona essas pessoas,
que mesmo juntas, se encontram sós. Como no álbum de fotos ou na brincadeira de estátua,
quando o pai anuncia seu casamento com Selma, Luciana fica como uma estátua, temos
metáforas do isolamento, da inércia, do registro de indivíduos isolados. Eles são pont os
independentes que se articulam em alguns momentos.
A narrativa parte do espaço físico para chegar ao humano, descritos a biblioteca e os
quartos, as pessoas vão sendo apresentadas. O pai é visto por ela como alguém inteligente,
intelectual e sua ligaçã o com os livros era grande, as palavras são importantíssimas para ele e
capazes de machucá-lo. Como o pai, a menina admira as palavras e as manipula, fala com
21
quem quer, quando quer. A partir da biblioteca, conhecemos o pai de Luciana e a partir de
seus quartos, principalmente o da casa paterna, conheceremos mais da menina:
A julgar pelas fotografias, eu era uma menina bonita; constituição pequena, olhos claros, cabelos louros
em caracóis. Beleza feita de traços delicados. Mamãe conta que quando eu era de colo meu tio
costumava me encostar contra a parede da sala, bem alto, perguntando: “Quem quer um anjinho
barroco?” Papai olhava a cena sem nada dizer. Ele não era de brincadeira. Para seu descanso titio, assim
como os outros familiares, afastaram-se das nossas vidas. (QM, p. 7)
Sua imagem é o padrão clássico de beleza, a ingenuidade e a delicadeza associadas ao
paradigma do anjinho barroco. A personalidade do pai vai se delineando para nós: ele não era
de brincadeira. Contudo, ao se preocupar com sua fil ha, cuida de suas bonecas, do brinquedo
infantil.
Achar o pai bonito e descobrir que as outras pessoas também achavam isso a
incomodou. O pai era amado por ela e não gostava da idéia de dividi -lo. Sempre que ocorriam
coisas que o gostava, quando o pai conversa com ela sobre o divórcio, quando anuncia seu
casamento com Selma, quando morre alguém, quando o que lhe é normal foge ao seu
controle, ela sentia forte sono ou era tomada por fumaça: balancei a cabeça dizendo sim,
senti que ela estava ficando che ia de fumaça. (...) Fiquei tão enfumaçada e com tanto sono que
não lembro de mais nada.”(QM, p. 12/13) Fumaça e sono vão acompanhá -la durante a
infância, sempre que coisas importantes acontecem ou são ditas. A fumaça e o sono são
metáforas para a o visão de determinadas situações. Devido à baixa idade, no começo da
narrativa, algumas coisas ela realmente não entende, não vê nitidamente, não sabe ver, como
por exemplo, o distanciamento entre os membros de sua família, o sacrifício em prol da
beleza que a mãe faz com tantos cuidados corporais ou quando morre alguém. Outras coisas
ela não quer ver, quando o pai fala do divórcio, quando ele apresenta a namorada ou quando
se casa, por exemplo.
A mãe, ao contrário do pai, falava demais e Luciana dizia não gostar dela. O que
talvez possa ser explicado psicanaliticamente através do Complexo de Electra, onde a
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identificação com a mãe é tão grande que a filha deseja acabar com ela por ciúmes do pai.
Uma versão feminina do Complexo de Édipo, ambos desenvolvidos por Fr eud. É uma relação
triangular entre o pai, a mãe e Luciana. Ao se identificar com a mãe, ela se torna sua rival em
relação ao seu objeto de amor, o pai. Uma vez que pai e mãe estão divorciados, Luciana tem
seu pai só para si, até que um novo triângulo se f orma com Selma. Ao fazer a identificação de
Selma com sua mãe, uma substitui a outra na relação triangular, Luciana logo não gosta da
namorada do pai. Selma é uma nova rival para compartilhar o amor que deseja para si. O
desejo de monopolizar o amor do pai é grande, faz com que mesmo inconscientemente, a
criança imite a pessoa que deseja anular. Ao entrar na adolescência, um novo objeto vira foco
do amor da menina, logo o triângulo não faz mais sentido. É uma possibilidade, porém, não
percorreremos esse caminho.
Luciana narra e é protagonista dessa história. Tem consciência e várias vezes conversa
com seus ouvintes/leitores. Isso mesmo, no plural, ao menos na grande maioria das vezes,
“estou tão cansada disso que nem lhes conto” (QM, p. 14) ou “vocês pod em estar pensando
que nunca fiquei, antes, com ela.” (QM, p. 15). A identificação com o pai é grande, ela
gostava pouco de falar, como ele, ao contrário da mãe que falava demais. Não estava
acostumada com muita gente, palavras de sua mãe, que pergunta à me nina se ela é diferente
das outras crianças, pois o garçom do restaurante japonês conta que as crianças costumam
comer o arroz colorido e Luciana não come. Ao ouvir uma conversa entre o pai e a mãe de
Luciana, a boneca Tininha conta para a menina o que esc utou:
Sua mãe respondeu que o achava normal uma menina viver cansada e não gostar de coisas que
todas as crianças gostam: cinema, praia, teatro, parque de diversões. (...) Ele perguntou como você
estava no colégio. Ela respondeu que a mesma coisa: qui eta, e ela achava que isso preocupava. (QM, p.
63/64)
As preocupações maternas em relação à menina. O interesse pelo pai e a predileção
por sua casa são claramente manifestos. A imaginação é expressa pelo anseio “quero ir para
23
dentro de livro”(QM, p. 2 4), não existiria lugar mais propício para a fantasia fluir que em um
livro. Novamente um lugar pouco freqüentado pela maioria das crianças brasileiras,
infelizmente carregamos uma tradição de pouca leitura, que aos poucos vem se
transformando. Os livros a inda a ligam a seu pai, uma vez que ele desenvolveu uma relação
especial para com eles, lhes dedicando tempo e cuidado, são ainda sua fonte de trabalho.
O mundo da menina tem como centro seu quarto na casa do pai, suas bonecas, livros,
bichos. O convívio com outras crianças se resume ao espaço escolar, que não é do nosso
conhecimento. Sabemos que ela freqüenta a escola e só. No mundo infantil, os adultos não
têm pleno acesso, já que não podem entrar no maravilhoso, não escutam as vozes dos
brinquedos e bichos. Por vezes, também não enxergam os brinquedos, como as bonecas da
Luciana que não notam, pensam que são todas iguais. “Às vezes penso que os adultos acham
que as crianças são bobas”(QM, p. 36), reflete ao ganhar de um amigo do pai, um vidro cheio
de ossos de galinha lambidos. Qual seria a função dos ossos? Para que serviriam? O que uma
criança faria com aquilo? Para ela, os adultos pensam que as crianças não entendem as coisas.
Eles sim, sob sua ótica, são sempre desconfiados e preocupados.
As idas e vindas entre as casas do pai e da mãe a fazem sentir uma “menina móvel”.
Era a única ligação entre seus pais, a filha de um casamento que se acabou. Eles não trocavam
nada, apenas a menina que ia e vinha, e raríssimas palavras. Ela sentia medo, alguns norma is
para quaisquer crianças, principalmente quando o filhas de pais separados e temem ser
esquecidas ou rejeitadas quando os pais se envolvem em outro relacionamento. Outros medos
são característicos dela, “sinto medo que venha a sorrir. o é de sorrisos . Pai e mãe o
pessoas estranhas... dão até medo na gente.”(QM, p. 24) Ela se apavora perante qualquer
ameaça de mudança, principalmente em seu pai: “quase deu um sorriso. Não olhei mais para
ele durante o café, aquele medo que viesse a sorrir. Deus me li vre ver papai diferente.”(QM,
p. 31) Gostava das coisas e das pessoas sempre iguais, sempre previsíveis.
24
Ao conhecer Selma, namorada do pai, sente medo, pois o gosta de pessoas
simpáticas. O que reitera quando o pai pergunta o que achou da Selma e ela responde que não
gosta muito de gente simpática. O medo de magoar o pai ou a mãe pedindo para ir para a casa
de um ou do outro é freqüentemente mencionado. Sente medo de magoar a mãe ao falar que o
pai está namorando, chega a falar com a barriga da mãe, qu e não ouve nada, apenas sente
cócegas. Quando o pai vai se casar com Selma também teme contar.
Um medo bastante expressivo é o de se tornar mulher ao observar a mãe fazendo
depilação, sobrancelha, enfim, se sacrificando em nome da beleza, segundo a ótica infantil:
“quer dizer, gostava desse sofrimento miúdo. Que medo de ficar mulher, das coisas que
poderia vir a fazer comigo.”(QM, p. 89) Temia em pensar que ao crescer pudesse também se
sacrificar para ficar mais bela. O feminino aqui o se torna sagrado, digno de respeito e
admiração. A sacralização faz do feminino o objeto de sacrifício para se conseguir beleza e
talvez juventude. No templo das vaidades o feminino é a oferta sacrificial para ser bela,
parecer bela de acordo com os padrões impostos de perf eição. Na concepção que temos de
sacrifício algo, normalmente animais, era oferecido para expiação de pecados, de acordo com
os judeus do Velho Testamento bíblico, ou ainda, pessoas podiam ser oferecidas aos deuses
para a conquista de determinado evento ou simplesmente na intenção de agradá -los, para que
abrandassem sua fúria. Quem não conhece o mito do Minotauro, que exigia virgens em
holocausto? Os sacrifícios perpassam vários povos e culturas. Mas o que desespera e
amedronta a pequena Luciana é o fato da sua mãe se oferecer em sacrifício, se infligir
sofrimentos acompanhados de dor, somente para ser bela, ser mulher. Na visão da menina
crescer e se tornar mulher era crescer e se tornar sua própria vítima sacrificial.
O medo de algum adulto pisar no Teo a assustava. O grilo fazia parte, ao mesmo
tempo, do real e do imaginário infantil. Ele existia, logo era real, e falava com ela, a
aconselhava, logo era fantasia também. O medo de pisarem no grilo, afetava, mesmo que
25
inconscientemente, o seu mundo maravilho so, pois, se acontecesse qualquer dano ao grilo
real, ao mesmo tempo aconteceria com o grilo que lhe dava conselhos e habitava sua fantasia.
O grilo falante indica a existência da fantasia e a menina não pode perdê -lo. O medo de o pai
estar doente quando ele e Selma começam a consultar os médicos, medo ao ter pesadelos ou
simplesmente quando se assusta na madrugada também a assolam:
Eu, petrificada na cama sentia um medo que o me deixava mover nem um dedinho. Não lembrava de
ter sonhado, não sabia o que estava acontecendo, sentia medo, medo. Queria estar em casa, perto de
papai o medo vai embora. Quando estou ao lado de mamãe, cresce. Ficamos t ão sozinhas juntas, é
horrível! (QM, p. 133)
A figura do pai herói, protetor, símbolo de força, emerge nitid amente. O pai seria
capaz de protegê-la de qualquer mal, a mãe, ao contrário, fazia o medo aumentar. A menina
Luciana prefere a companhia do pai sempre. O fato de eleger a figura paterna para doar amor
incondicionalmente pode se relacionar ao Complexo de É dipo/Electra, conforme já vimos. Ela
vai amar o pai irrestritamente e as figuras femininas que lhe causam ameaça, a mãe e Selma,
desejará invalidar. E lógico, não se sentirá bem ao lado de quem não é o foco de seu amor.
2.3 Brinquedos e brincadeiras
Assim como o adulto tem o domínio da casa, a criança exerce o direito de domínio
sobre seu espaço, seu quarto, suas coisas, seus brinquedos. A criação de um pequeno mundo à
sua volta é comum. As brincadeiras, brinquedos, histórias, fornecem ilusão ao mundo in fantil.
Nas brincadeiras, a criança imita seus pais, se identifica com eles, aprende regras e convívio
social, valores, criação, como afirma Winnicott: “a brincadeira é a prova evidente e constante
da capacidade criadora, que quer dizer vivência.”
4
A criança simplesmente vive, exerce o
4
WINNICOTT, D. W. (1985), p. 163
26
direito de ser apenas criança ao brincar. O mundo maravilhoso não é para ser explicado, é
para ser vivenciado.
O ato de brincar possui duas vertentes: o mesmo fato tem um significado para o agente
e outro significado para o observador. O que claramente observamos quando Luciana diz que
seu pai, sua mãe e Selma não ouvem nem enxergam as bonecas. Selma, a madrasta, ao se
casar com o pai da menina, pede para a empregada de sua mãe arrumar o quarto de Luciana e
ela se desespera ao perceber que o seu mundo foi desfeito, as coisas estavam mexidas:
Pai!, mexeram nas minhas bonecas!...
Foi a vez de Selma falar.
Ah..., mandei a empregada da casa de mamãe dar uma limpeza, para você encontrar tudo direitinho.
Não deu para dizer nada ; senti que eu e as bonecas íamos pular no seu pescoço. Ficou completamente
sem graça. Voltei fuzilando pro quarto, papai atrás de mim, Selma atrás dele. Antes que entrassem, virei
pra trás e disse, enfurecida, puxando uma das irmãs que quase cai do colo:
Pai, não quero que mexam nas minhas coisas!
(...)
Selma entrou, vindo atrás dele. Outra pra pisar no grilo.
Desculpe, Luciana, achei que gostaria de encontrar tudo em ordem.
Em ordem!? Não deve ter tido boneca! (QM, p. 111/112)
A ordem era a arrumação feita por Luciana, a dona das coisas, quem sabia o
significado, o valor e o lugar de cada objeto, cada brinquedo que estava sob seu domínio. A
conclusão da menina é que com os adultos não adianta conversar, não enxergam e não
escutam. Continuei calada.”( QM, p. 140) Os pais e a madrasta, por mais atenção e dedicação
que dispensassem a ela, não compreendiam o seu mundo infantil, não enxergavam suas
bonecas e tampouco as ouviam falar.
A menina brincava com arco -íris que aparecia entre seus dedos, brincava c om suas
mãos, onde a direita é a e, que fala e se mexe muito, e a esquerda é o pai, que ouve. De
acordo com Stearns, na Índia, centenas de anos atrás, contar histórias era um hábito,
favorecia no desenvolvimento da imaginação dos pequenos. Brinq uedos também eram
importantes, uma vez que a família oferecia brinquedos como piões e bolas de gude. Era a
época de estimular a fantasia da criança, mantendo -a afastada de excessivo contato com a
27
realidade do adulto.”
5
Os brinquedos e a imaginação da meni na Luciana movimentam todo o
romance e ocupam o seu quarto durante sua infância.
Os primeiros brinquedos que conhecemos o as bonecas Tininha e suas duas irmãs,
que moram com a menina em seu quarto na casa paterna. A seguir, Teo, o grilo falante, passa
a morar com elas no quarto. Ele foi levado para o quarto pelo pai, um grilo adulto, que sabia
que a menina iria precisar de um amigo. Então, Teo ficou ali para ser o seu melhor amigo.
Grilo falante nos lembra a história infantil italiana de Pinóquio, o bone co de madeira criado
pelas mãos do velho Gepeto que muda de condição ao final da narrativa, passa de boneco de
madeira a um menino de verdade. Pinóquio também encontra com um grilo falante que, como
amigo, o aconselha sempre. Os conselhos do grilo, no caso de Luciana do grilo e da boneca
Tininha, podem funcionar como a representação de uma consciência, o subconsciente que
trabalha com valores e normas de conduta. A voz da razão, do juízo, que sempre trazem a
realidade para ela. Outra referência às histórias universais infantis acontece quando o pai de
Luciana lhe conta histórias:
algum tempo, ele comprou um livro ilustrado grande à beça, com histórias infantis clássicas
(segundo suas palavras). Assim que o encontrou, saiu andando pelo corredor atrás de m im. disse que
anda sempre atrás de m im. Entramos no quarto, a luz do abajur continuava acesa. Papai a apaga
quando vem dar o beijo de boa -noite. Sentou-se desconfortavelmente na beirinha da cama abrindo o
livro.
Qual a história que você quer ouvir hoje?
o sei, pai...
Mamãe já teria escolhido.
Bem, você gosta da Rapunzel, do João e o pé de feijão e...
o sei...
Esperava calado que eu escolhesse.
Rapunzel.
Decidi, ufa!
Era uma vez um lenhador, que vivia feliz, com sua mulher numa ca sa simples, mas confortável...
(QM, p. 27/28)
Do mesmo modo encontramos alusões às histórias infantis quando Luciana e sua mãe
conversam sobre Selma. Temos a sensação que a menina descreve o lobo da história
Chapeuzinho Vermelho, que como a sua madrasta, também tinha “uns dentes enormes e uma
5
STEARNS, P. (2006) p. 54
28
boca grande”. Termina o seu raciocínio dizendo que a madrasta se parece com a Rapunzel,
linda. Mas não tem coragem de dizer isso à mãe, prefere que a mãe tenha uma imagem feia da
Selma. As histórias infantis o as que Luci ana ouve e por isso reflexo delas estão por toda
parte. Selma é caracterizada como o lobo, representa o perigo para ela, é sua rival na
conquista do amor paterno. Rapunzel, vive isolada do convívio da família, da torre ao deserto,
até ser feliz reencontran do o seu príncipe encantado. Príncipe, que por amor à Rapunzel perde
a visão ao cair da torre e furar os olhos, somente ao reencontrar a amada é capaz de voltar a
ver por causa das lágrimas de Rapunzel que caem em seus olhos e lhe devolvem a visão. Se
Selma é linda como a Rapunzel, Luciana é como o príncipe. Faz tudo para ter o amor de seu
pai para si, e por vezes se torna cega também, ao ignorar a realidade, não querer enxergá -
la.
A boneca Branquinha aparece, em seu quarto, como um presente dos céus. Quando faz
nove anos, o avô materno a presenteia com um coelho e a mãe lhe mais uma boneca,
respectivamente chamados de Coelho e Boneca. Eles são nomeados, entretanto, são nomes
comuns, coelho e boneca são os nomes designativos do bicho e do brinquedo, ela apenas
tornou próprios os títulos que os distinguem. Como o pai, a mãe e o avô, Coelho e Boneca
são conhecidos por suas funções, qualificações, títulos. O Coelho não fala como o grilo e a
Boneca é analfabeta de pai e mãe, segundo ela, pois não pronu ncia uma palavra. Mais tarde
uma das irmãs fica grávida e tem um bebê, uma outra boneca. O quarto está com todos os
moradores apresentados. Bonecas e bichos que povoam o mundo da menina, o seu quarto.
A imaginação dela pode ser observada por nós muitas ve zes durante o romance, até
porque ela é quem faz a narração. Logo nas primeiras páginas, vai a um restaurante japonês
com a mãe e não come a comida. Imagina que os grãozinhos de arroz pareciam criancinhas
grudadas umas nas outras à espera das mães que as d evorariam. A figura da mãe aparece
associada a um monstro devorador de criancinhas. Nada condizente com a figura materna
29
tradicional que conhecemos, a mãe protetora e amável, que defenderia suas crianças ao invés
de devorá-las. Imagina, do mesmo modo, que os pauzinhos trançados parecem um x, onde
ficaram Jesus e os amigos de dor. A cena pensada é a do Calvário, e o grande sacrifício, ela
mesma, se como criança que é, a compararmos às crianças que serão devoradas pelas mães.
A fantasia no mundo infantil não tem limites. Na foto do álbum de família, a menina
conversa com o tio, com o avô, todas as pessoas da foto se mexem, com exceção dela, do pai
e da mãe. Ela acha o abrincalhão e se diverte com ele. A mãe, ao entrar no quarto, o
escuta a voz do pai vinda da fotografia e não vê que se mexem. O mundo maravilhoso não faz
parte do cotidiano do mundo adulto, é encontrado nas religiões, nas artes, mas diariamente
não é encontrado. Se os adultos não vêem nem ouvem as bonecas e o grilo, tampouco podem
ouvir as vozes das pessoas da foto ou vê -las se mexendo.
As brincadeiras perpassam toda infância da menina. Quando conhece Selma diz que
pareciam brincar de estátua, uma vez que estavam sentadas uma em frente à outra, e por vezes
não se mexiam. No dia do casamento do pai com Selma, conta que durante a cerimônia ela e o
pai brincavam com as alianças, ela tirava e ele colocava com os outros dedos. Com a mãe ela
joga gamão. E do mundo infantil real, os brinquedos podem passar ao mundo do sono: ela
sonha com uma boneca gigante querendo pegá -la, depois querendo pegar seus bebês, uma
possível representação do medo da nova mulher do pai que ela achava grande demais, apesar
de linda. Mulher esta que em dado momento desejará engravidar e não conseguirá.
Seu pai um dia resolve lhe contar uma história, irá explicar o que é filosofia. Para
tanto, faz uso do seguinte recurso: transforma os grandes pensadores/filósofos em meninos
que se conhecem e desde a mais tenra idade já são amigos do saber. Metaforicamente fazemos
essa associação devido ao nome da história: “Os amiguinhos de Sofia”, Sofia que em grego
quer dizer sabedoria. São meninos Tales, primeiro filósofo ocidental que temos notícias,
Anaxímenes, Anaximandro (de Mileto, os três), Heráclito (de Éfeso) e Parmênides (de Elé ia),
30
que se encontram com o velhinho Sócrates e Platão (ambos de Atenas). São sete importantes
filósofos “adaptados” para uma história infantil pelo pai da Luciana. Um dia os amigos vão
brincar numa praça e encontram Sócrates:
O que vocês estão fazendo ?
Viemos brincar responderam quase em coro.
E o que é brincar? perguntou o velhinho.
Ora, brincar é estar na água o tempo todo respondeu Tales.
Jogar bola também é brincar?
Claro disse Anaxímenes o é minha brincadeira preferida, mas também é brincar.
Desenhar também é brincar?
É disse Anaximandro , mas prefiro brincar com barro.
Pular também é brincar?
É...
Cada coisa que os meninos diziam, o velhinho perguntava outra. Uma hora os garotos cansaram. (QM,
p. 54/55)
Sócrates disse jogar com perguntas e respostas e que o mundo de Platão era o das
idéias. Claro, também fala do mito da caverna. E como o poderia deixar de ser, encontram
com Aristóteles, filósofo grego considerado criador do pensamento lógico e professor do
Liceu, lugar que os meninos conheceram e se encantaram com a sala de coisas físicas (pedras,
plantas...) e a sala cheia de idéias. Luciana achou a história esdrúxula, gostava dessa palavra.
Temos, então, na voz de filósofos gregos enquanto crianças, uma explicação sobre o que é
brincar. Para uma criança qualquer coisa pode ser brincar.
A boneca Tininha foi a fiel companheira da infância, a cumplicidade era grande:
Luciana cuidava dela dando até mamadeira e posteriormente a boneca vigiava o pai da
menina. Ao sair gostava de deixar a boneca perto do pai, que ouvia todas as conversas e
depois contava. Era uma boneca inteligente e especial. Era como se fosse uma duplicação, um
reflexo da própria Luciana: sentia o que a menina sentia, tinha as mesmas opini ões que ela a
respeito do pai, da mãe, de Selma. O grilo Teo sentia medo de que algum adulto pisasse nele,
e a menina o achava sentimental, ele chorava e tudo. Foi um grande amigo. A boneca
Branquinha, que todos pensavam estar morta, um dia resolve acordar e falar, para alegria de
sua dona. Foi a boneca que serviu de companhia até o fim da infância, que Boneca era
31
muda e analfabeta, Coelho também não falava, Tininha se desdobrara em cuidados com as
duas irmãs e com o bebê que nasceu, Teo cresceu e foi em bora... E com o crescimento da
menina Luciana, os brinquedos passam a ser enxergados com outro olhar e têm novo destino,
que veremos em outro ponto.
2.4 A relação com os outros: adultos e crianças
O relacionamento com os outros é muito importante. Ao tr atarmos dos brinquedos e
brincadeiras pudemos perceber a interação de Luciana com suas bonecas e bichos de
estimação. Nos aprofundaremos um pouco na convivência dela com outras crianças e com os
adultos.
O convívio com outras crianças é restrito ao ambien te escolar, e este não nos é
mencionado. As crianças que nos são apresentadas são poucas: um dia que estava na casa da
mãe, esta recebeu a visita de uma colega com as filhas, e sequer sabemos quantas meninas
eram. Luciana desmaia e “perde a voz”, a mãe diz que não está acostumada com muita gente.
No casamento do pai:
Na festa, as pessoas me olhavam curiosas, e com certa bondade; me afastei enojada dos seus sorrisos,
me sentindo estranha demais. Havia outras crianças, mas o quis brincar com elas, eram ami gas entre
si e eu nunca tinha visto a cara de nenhuma. Fiquei ali sobrando, vagando, de um canto pro outro,
pensando em mamãe que já estav a em casa, mas ainda toda dura. (QM, p. 99)
Ela, como no episódio ocorrido na casa da mãe, prefere não se integrar co m as outras
crianças. E com os adultos não é diferente. O círculo de relacionamento pessoal é pequeno,
pai, mãe, Selma, o amaterno e as empregadas dos pais. Lógico que com algumas dessas
pessoas o convívio é rápido e sem muita profundidade. A pessoa mai s importante para ela era
o pai, e dele, falaremos agora.
32
Não sabemos seu nome, é o pai da Luciana. Ele não era de brincadeira”, apesar de
cuidar com atenção e dedicação da menina e de suas bonecas, conforme já vimos. É professor
de filosofia em uma facu ldade, seu trabalho era a leitura, a biblioteca o lugar mais propício a
encontrá-lo. Não era de muito falar, tinha cuidado com as palavras: “extremamente cuidadoso
com as palavras, papai não se esquivava porém em dizer o que realmente pensava. Tratava as
pessoas como livros, dedicando -lhes todo cuidado e atenção.”(QM, p. 9) Os livros são sua
grande paixão, a ponto da menina comparar o tratamento que ele dispensava às pessoas ao
tratamento de seus livros. O mundo capitalista também o afetava, a nossa socieda de
consagrou as mercadorias e suas paixões, templos do consumo são criados por todos os lados
para receber a mercadoria sagrada. A necessidade do consumo foi criada e não vivemos
sem ela. A ditadura do consumo nos faz comercializar tudo: do nosso tempo trabalhado ao
nosso tempo de folga, nada pode ser perdido:
Ele estava em sua cadeira giratória com rodinhas embaixo para facilitar a locomoção entre as estantes.
Não podia perder nenhum minuto. Lia de manhã, de tarde e de noite. Quando não lia, escrevia; ou, às
vezes, as duas coisas, lia e escrevia. Vez por outra levantava -se para tomar café, voltando logo em
seguida. Nessas rápidas passagens, olhava para mim; o sorria porque o era de sorrisos, mas seu
olhar era de profunda atenção. (QM, p. 8)
Mundo capitalista, globalizado, pós -moderno, onde a ordem do dia é a mercadoria.
Não o vemos adquirindo serviços e mercadorias, com exceção do casamento com Selma,
quando compra coisas novas para a casa. Mas, como não poderia deixar de ser, está imerso no
mundo globalizado e não pode perder nenhum minuto, não pode perder tempo, afinal de
contas “tempo é dinheiro”. Lia durante a manhã, a tarde e a noite, seu trabalho era a leitura,
logo passava os dias trabalhando. Apenas parando esporadicamente para se alimentar e ver a
filha. Tinha cuidado com as palavras, com seu trabalho, seus livros, não era de sorrisos e nem
de muitas palavras, falava só o necessário, este é o seu perfil.
Possuía um olhar de estátua, profundo, mas de atenção para com ela. O seu único
medo eram as baratas. Mesmo falando o necessário e cuidando das palavras, ensinava à
33
menina palavras novas como bergère (poltrona), ele “sempre tinha um nome diferente para as
coisas comuns, o que fez com que eu conhecesse e usasse palavras que outras crianças não
usavam.”(QM, p. 10) Esse era mais um diferencial da menina em relação às demais crianças,
ela possuía um vocabulário distinto das outras. A linguagem é o meio mais fácil de
comunicação entre a espécie humana, é o que diferencia os homens dos animais. Embora, no
mundo maravilhoso, qualquer criatura pode ser dotada da capacidade de comunicação oral
inteligível, como acontece com os brinquedos, os bichos e as pessoas da fotografia no mundo
infantil de Luciana. Com a linguagem falada nomeamos objetos e ser es que passam da
representação visual à representação oral, auditiva e escrita. O homem possui necessidade de
comunicação, de se fazer entender e de compreender o mundo à sua volta. Possuir linguagem
é deter o poder de comunicação.
Ele, o pai, sempre cump ria seus “rituais”, como o noturno: quando ela dormia na
biblioteca, ele a levava para a cama, ou então, passava no quarto para -la, mas nunca
esquecia o beijo de boa -noite. Sua biblioteca precisava de muitos abajures, muita luz, ele
necessitava da luz para escrever. Assim como necessitava da luz da sua Luciana, nome que
significa luz.
Ela sentia ciúmes de seu pai, seu herói, homo faber”, que transformava a realidade
das coisas, era ao mesmo tempo diferente das demais pessoas e especial. De poucas
expressões, “seu rosto parecia um retrato contente”(QM, p. 11), inerte e apaixonante. Pai para
ela era a figura do heroísmo, da força, da proteção. Numa conversa com ele, ela pergunta se o
juiz da vara de família também era pai, que ele lhe diz que o juiz tr abalhava para proteger
as crianças. Reforçando a idéia de pai protetor.
A menina o conhecia muito bem e nos mínimos detalhes: sabia que ele não gostava de
água gelada, conhecia até seus pigarros “papai pigarreou antes de atender. Tinha pigarros e
pigarros, esse era o do aborrecimento”(QM, p. 46), a afinidade entre eles era grande. Sabia
34
também que ele não gostava de família, a mãe havia falado. A rotina era mantida e isso dava
equilíbrio, a certeza que as coisas vão acontecer sempre iguais:
Papai fazia tudo igual todos os dias, não sei como agüentava... Tomava café lendo jornal, depois se
levantava, ia ao banheiro, falava sempre em banho, mas acho que era a hora em que fazia cocô. Devia
tomar banho depois, em seguida ia para a biblioteca. E aí, leitura e es critura (como dizia), escritura e
leitura. Tomava lanche no final da tarde. Mais biblioteca depois, até a hora do jantar. Depois do jantar,
mais biblioteca de novo. Que cansaço devia ser... o reclamava nada, nisso era bem diferente das
irmãs. (QM, p. 33)
Fazia tudo sem reclamar, diferente das bonecas irmãs de Tininha, que viviam
reclamando. “Forte à beça esse meu pai”(QM, p. 43), se interessava por ela e suas
brincadeiras, era o seu porto seguro, além do medo de baratas, as palavras podiam feri -lo,
machucá-lo. Chega a compará-lo a um anjo: “papai amanheceu tão diferente nesse domingo,
mas tão diferente que, devo dizer, gostei. Estava um anjo, quase igual a Branquinha.”(QM, p.
50).
Como os demais adultos, não ouve as vozes das bonecas e dos bichos, e, mesmo
mostrando interesse pelas brincadeiras da menina, não é capaz de “enxergá -los”. Contava
histórias, de livros ou fazia sua própria versão, como “Os amiguinhos de Sofia”. Identifica -se
com Aristóteles, ao mesmo tempo em que são filósofos e professores, amigos da ciência e do
saber. Assim como Aristóteles apresentava o mundo aos pequenos, também o pai de Luciana
fazia com ela. Ambos conduzem ao saber, na medida em que ensinam o que sabem aos
pequenos e aos adultos. Seu refúgio era sua biblioteca, o luga r das coisas sérias”. Também
olhava para mãe da menina com um jeito de quem o gostava dela, observações da boneca
Tininha.
As mudanças nele aconteceram com a chegada da namorada: Selma. Se tornou, a
princípio, falante, simpático, carinhoso, um outro homem. O que a menina não gostou. Selma
ameaçava sua tranqüilidade, ameaçava a ordenação habitual do seu mundo:
Já? Nem bem acabaram de se ver ontem, e ligou, pra falar o quê? Ih, estava namorando mesmo. Será
que minha vida ia mudar? Ele estava difere nte... Como é que eu ia ficar?
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(...)
Pai, estou te achando tão diferente...
E devo estar mesmo, Luciana disse, acomodando-se melhor no sofá.
Por quê?
Estou contente, filha.
Por causa da Selma?
Humm, humm murmurou, voltando a me abraça r.
E agora, só vai pensar nela?
Também. (QM, p. 83/84)
Temos então um pai antes de Selma e um pai pós Selma. Luciana teve medo quando o
pai casou, achou que ele pudesse estar indo embora para sempre, no carro que os levou para a
viagem de lua-de-mel. Medo normal e perfeitamente aceitável para uma criança, filha de pais
separados, que dispunha de toda atenção de ambos, principalmente de seu pai -herói. Esse
tema de medo em relação ao namorado da mãe ou a namorada do pai também aparecerá em
Cartão-Postal, outro romance da Livia que analisaremos no próximo capítulo. João
demonstrará medo e insegurança diante de Francisco, o Chico Danger, namorado da mãe
recém-separada do marido. A irmã Clara é pequena demais e caberá ao João a convivência
maior com esse perigo”. Também foi abordado por Rosa Amanda Strausz em Mamãe trouxe
um lobo para casa!, onde a mãe apresenta o Levi, namorado/lobo ao filho e também em A
coleção de bruxas de meu pai , onde Marcela e Chico vêem como bruxas as namoradas que o
pai apresenta. Em ambos o final é parecido, o menino acaba se identificando com o Levi e a
Marcela descobre que também é uma bruxinha. No caso da Luciana, veremos que não será
muito diferente.
Para a boneca Tininha Seu pai é um sujeito honrado, correto, decente, nin guém
pode ser melhor marido!”(QM, p. 118) Visão sob o mesmo ângulo que a menina. As
mudanças no pós Selma fazem com que ela escute pela primeira vez o pai gritar. Depois de
um briga com Selma, ela o acha parecido com “um boneco velho” e com a loucura da
madrasta, sente medo que o pai também possa desmilingüir.
que falamos no pai, talvez por contigüidade, a lógica seria falarmos da mãe da
menina. Mas falaremos primeiro de Selma, a mulher que mexe com Luciana mais que
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qualquer outra pessoa e que nos é ap resentada por seu nome e é a mulher que ela acaba
primeiro se identificando e querendo imitar. A menina a acha linda: muito bonita a Selma,
igual a anúncio de televisão. Loura, sorridente, simpática. Simpática como mamãe. Não gosto
de gente simpática; me medo.”(QM, p. 77/78) Entretanto, conforme vimos, pinta para
sua mãe uma imagem apavorante: com dentes enormes, boca grande, exagerada. o poderia
dizer para a mãe que achou a namorada do pai mais bonita e mais nova que ela.
Ao se casar, Selma tem o “poder” de mudar, por pouco tempo, o pai de Luciana. Ele se
torna mais falante, contente, e, a menina, que o gosta de mudanças, não gosta que isso
aconteça, que desorganize seu mundo. Mas gradualmente, depois do casamento, Selma perde
um pouco do brilho:
Pouco tempo depois, a porta da biblioteca foi aberta de novo e papai voltou ao computador. Nessas
horas, Selma perambulava pela casa, sem saber o que fazer parecia uma borboletona aprisionada. À
medida que o tempo passava, Selma foi perdendo o riso fácil, as roupas espalhafatosas, os gestos largos,
foi ficando mulher como as outras: casada. Vivia pelos cantos. Um dia ficou claro para mim que ela
tinha entristecido. Senti pena. Ligava a música na sala, deitava no sofá e ficava horas perdidas ali. A
porta da biblioteca fechada; como sempre. Papai conseguia trabalhar em silêncio total. Voltou a ser
como era, sereno e distante. (QM, p. 113/114)
A visão que essa menina tem de ser mulher é, no nimo, muito ruim. Teme ao ver a
mãe se depilando, fazendo sobrancelha, se sacrificando, segundo seu juízo. E sentencia Selma
ao destino de ser mulher casada: triste. A visão dela sobre casamento também não é boa,
como veremos mais adiante. Talvez, por ser fruto de um casamento falido, ou de presenciar
seu pai contrair novas núpcias, ou o ciúme que sente dele, não sabemos. A verdade é que ela
acha o casamento horrível e o destino de mulher, principalmente mulher casada, cruel, pois
nem a alegria está reservada a quem se casa. Selma era feliz enquanto era soltei ra, como
sua mãe. Casou, logo, entristeceu.
Não gosta da “grandona”, como diz. Chega a achar que ela era mesmo uma bruxa, pois
levou o pai do corpo, o deixou mais calado que antes. tem pena dela pelo fato de não ter
um pai para lhe dar colo, proteção. Contudo, quando Selma rapta sua boneca Tininha, a odeia
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profundamente por um minuto. Sente vontade de fazer com ela pior do que teve vontade de
fazer com Coelho e Boneca, e com eles quis, respectivamente, esgoelar, para parar de fazer
cocô e quebrar em mi l pedaços, para ver se encontrava alguma coisa dentro. Fica evidente a
maldade humana, não queremos mostrar o mal como oposição ao bem, a fronteira entre eles é
tênue, e por vezes, impossível. O mal não tem uma idéia de único, também nos choca e
provoca diariamente. São elementos de tensão que não podemos separar. É ao mesmo tempo
desejo e condenação, ela deseja, mas o age. Temos limites para a bondade, mas não temos
limites para a maldade humana. Mas, como criança que é, não transgride nenhuma norma. Os
códigos de conduta social falam mais alto. O que impede o ato transgressor, mas não o desejo.
Passam por esse viés a vontade que tem de ver o proibido, o interdito, expressos na loucura e
na morte. Chega rápido da casa da mãe pois quer ver a doença de Selm a, sua loucura. Quando
morre o tio Manoel, amigo de seu pai, também anseia -lo: Por que não posso ir, pai?
Queria tanto ver... nunca vi nenhum morto.”(QM, p. 175) O desejo de transgressão faz parte
do ser humano, mas no mundo pós -moderno, a morte e a loucura devem ser banidos,
principalmente para as crianças.
Chega à conclusão que Selma e o pai não se conheciam, e se indaga como puderam
casar assim, sem se conhecerem. São indivíduos isolados que moram juntos. que julga
Selma louca, fora da razão, por querer ter um filho e não conseguir, o que a deixa mais triste,
Luciana tem uma idéia prática:
Nunca achei Selma boa da cabeça, desde o primeiro dia em que a vi jogando a cabeça pra trás. Deve ter
ficado doente por causa disso, ninguém pode ficar faze ndo isso a toda hora. em casa tenho certeza
que não deu cabeçada em lugar nenhum, mas em outros lugares, sabe -se lá? E agora, como é que papai
vai fazer? Será que não dava para chegar pra famí lia dela, agradecer e devolver? (QM, p. 154/155)
Na mente infantil, a mulher enlouqueceu, não “serve” mais, então, como um objeto, o
pai poderia devolvê-la para a família. Simples, agradece e devolve a mulher que conheceu
e que agora perdeu a razão, em sua opinião ela perde literalmente a cabeça, de tanto que a
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jogava pra trás e pra frente. Fato é que Selma conseguia mexer com ela, como disse, fazer
com que sentisse coisas diferentes, sentimentos que o pai e a mãe não despertavam.
Diferente de Selma, que é apresentada pelo nome, a mãe era simplesmente a mãe da
Luciana, como o pai. Sem que possamos identificá -los por seus nomes, suas principais
identificações são as funções de pai e mãe. A mãe não desperta o amor da menina, ao
contrário:
A casa de mamãe é o bonita..., foi o que pensei enquanto chegava em sua ca sa nova. Ela também,
bonita, simpática, sorridente. o gostava dela. Tinha medo que descobrisse. Ao contrário de papai,
mamãe falava demais. Não conseguia escutá -la. Em meio às frases, a todo momento dizia meu nome,
não sei por quê, muito menos pra quê. (QM, p. 14)
Como a madrasta, a mãe era bonita, sorridente e simpática. Talvez a semelhança com a
mãe, tenha feito a menina não gostar da namorada do pai ao conhecê -la. Ao apresentar a mãe,
ela quebra nossas expectativas, declarando em seguida não gostar de la e a comparando ao pai,
que fala somente o necessário, enquanto a mãe fala demais. A menina também descreve a
diferença entre o tratamento que pai e mãe davam a ela. Enquanto o pai era atencioso,
carinhoso, se preocupava acom suas bonecas, “de novo os preparativos de mamãe. Ela não
fazia cerimônia com meu corpo, puxava de um lado para o outro e ele não gostava de tanta
mexeção. Eu parecia uma boneca emprestada.”(QM, p. 18) Os cuidados para com ela eram
muito diferentes. A mãe a tratava como uma boneca emprestada, podemos supor, sem carinho
ou cuidado, pois quem presta atenção a um brinquedo que não é seu?
A figura materna é definida também como um monstro, após a comparação do arroz
com criancinhas esperando para serem engolidas pelas mães. Definitiv amente elas estavam
em sintonias diferentes, a própria mãe pede para irem embora do restaurante pois elas não
estavam se entendendo. Ela acha sua filha diferente das demais crianças, já que não gosta das
mesmas coisas que elas. Também acha a menina parecid a com o pai, porque fala pouco. Mas
ela tem gestos de carinho singulares: “fui para a casa de mamãe (...) Assim que me viu entrar,
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veio correndo me abraçar. Não sei se disse que é muito carinhosa, gosta de abraçar e beijar
a toda hora, bem diferente de mim e de papai.”(QM, p. 85) O único medo dessa mãe era o de
envelhecer, conhecia o que fazia bem, de comidas a tratamentos.
Quando o amaterno falece, Luciana sente pena da mãe, por o ter pai, “mãe sem
pai, fica diferente... A alegria desaparece. Ela , sempre bem-disposta, contente, agora parecia
outra pessoa. Mal conversava, quieta como eu nunca tinha visto.”(QM, p. 189) Para a menina,
perder o pai era algo impensável, o medo da morte a apavorava, sobretudo o medo de perder o
pai: “tudo podia acontece r na minha vida, menos perder papai, Tininha, Branquinha, Teo, as
irmãs e mamãe. Selma, não tinha importância se de repente...”(QM, p. 192) É claro que na
escala de perda, o pai aparece como o mais significante, seguido das bonecas, do grilo e por
último a mãe. Selma não fazia parte de sua família, o importava se a perdesse, talvez por
não considerá-la sua, não podemos perder o que não é nosso.
2.5 A família
Após a apresentação de cada membro dessa família, Luciana, o pai, a mãe, Selma e a
as bonecas e bichos da menina, que os considerava importantíssimos, falaremos um pouco
sobre o relacionamento familiar de modo geral. Como funciona essa família como instituição,
como se comportam seus membros próximos e distantes, como se estabelece esse convívio,
embora não tenhamos muitas informações dos parentes que se afastaram desse centro. O
núcleo familiar é bem reduzido, pai e mãe separados, faz -se menção apenas a um tio que
brincava com a menina quando era bem menor e o avô materno. São figuras masculinas, com
exceção da mãe. O tio Manoel era apenas um amigo de infância do pai, não era da família.
Selma, mesmo tendo se casado com o pai de Luciana e por isto se tornado sua madrasta, era
considerada como intrusa pela menina.
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O pai, dito anteriormente, não gostava da família, e os familiares se afastaram. A
família era isolada do convívio dos parentes. O desencontro familiar também pode ser
metaforizado na falta de diálogos entre os pais da protagonista, sendo representado também
nas brincadeiras: “papai e m amãe não conversam. Ela fala, ele escuta. Já eu, faço uma
conversa com os dedos da mão, às vezes dos pés. A mão direita é mamãe, a esquerda, papai.
A direita vive cansada de tanto se mexer.”(QM, p. 23)
Eles têm certo poder aquisitivo, informação baseada no fato de a mãe possuir
motorista, que levava a menina de volta à casa do pai, e também outros empregados. Quando
se acidenta contrata a enfermeira Mercedes e depois a empregada Nilcéia, que a acompanha
até a vida adulta de Luciana, conforme veremos. Ante s de se casar com Selma, o pai possuía
uma diarista e depois contrata a empregada Maria.
Claramente, o pai evitava conversas e contatos com a mãe da menina, assim devia
proceder com os demais familiares, que se afastaram. Quando Luciana conversa com a
fotografia do ae pergunta por que o tio sumiu, ele responde que “são coisas de família”,
que ela iria entender quando crescesse. Ela menciona a falta de contato físico entre os pais:
“ainda não vi nenhuma fotografia dele abraçado a mamãe. Só a do casame nto, e assim mesmo
segura só um braço dela, como se não fosse sua mulher. Tão cerimonioso, meu pai...”(QM, p.
66) Situação intrigante, se nem nas fotos de casamento estão abraçados, que segura um
braço dela, a frieza e distância entre eles estão regi stradas desde essa fotografia.
Excluindo pai, mãe, a lembrança que ela tem do tio quando era menor e a visita que o
avô materno faz no dia do seu aniversário, o contato familiar é proporcionado através do
álbum de fotografias. A fotografia, de acordo com Nelson Brissac Peixoto, tem o poder de
representar uma falta e ao mesmo tempo evocar na lembrança a pessoa que está sendo
representada e que não está ali. Ela representa o momento que existiu e que passou, ela
preserva o desaparecido, o que simbolicamente o tem mais vida, que resta apenas na
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imagem estática da fotografia. Na fotografia, a imagem está longe e ao mesmo tempo ao
alcance da lembrança, perto. E a menina teme perder tempo conversando com a mãe e,
quando voltar ao quarto, a família da foto o desejar mais falar com ela, diz que seria difícil
ganhar e perder uma família tão depressa. Mas seu temor vira realidade “chamei em vão. De
nada adiantou, estavam imóveis, como papai às vezes, ou quase sempre. Fiquei triste e acabei
chorando. Deixei em l ágrimas minha família de papel.”(QM, p. 73) Família isolada e distante,
fragilizada e de fácil destruição, como o papel. O contato real com o avô se faz no dia em que
completa nove anos de idade, ele aparece e lhe o Coelho. A felicidade dela é grande e é a
única vez em que acha bom o pai ter se casado novamente, já que passou a metade do dia com
ele, quando vai para a casa da mãe seu pai não ficará só, agora ele tem a companhia de Selma,
além da sua. Da família da Selma, sabemos apenas que o avô deveria ser russo, por isso o
casamento na igreja ortodoxa russa. Selma não tinha pai, tinha e, irmã mais velha, que
levou Luciana para a casa de sua mãe no dia do casamento, o irmão e a cunhada que ligaram
para saber notícias dela quando adoeceu e que gostavam de beber uísque.
A visão de Luciana sobre casamento é de que é uma “coisa horrível”, ao longo do livro
essas palavras ecoam e se reproduzem. Durante a festa de casamento do pai com Selma,
vendo o fotógrafo, lhe passa pela cabeça se um pai pode ter dois á lbuns de casamento. São
configurações familiares diferentes das tradicionais e difíceis de serem explicadas e
entendidas pelas crianças. Acha esquisito se Selma tiver um filho, pois será filho do pai dela
também. Quando a madrasta adoece, não acha nada dem ais que o pai a devolva à família.
Como se fosse uma mercadoria adquirida que se estragou... Para ela casamento podia ser uma
grande confusão e também não entendia como seu pai e Selma se casaram “nunca tinha visto
uma coisa dessas na vida, dois adultos ca sados que não conversavam.”(QM, p. 144) Se não
havia diálogo, logo, haveria falta de conhecimento de ambos. A palavra é de essencial
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importância não para Luciana, como para todos os personagens envolvidos nessa trama, de
bonecas e grilos falantes às pes soas.
2.6 O poder da palavra
Luciana é a principal articuladora das palavras nesse tecido narrativo, uma vez que é
ela quem nos conta o que acontece. É do seu ponto de vista que conhecemos seu mundo, sua
família. O pai é a figura mais profundamente liga da às palavras. Sabemos que o é de muito
falar, de muitas brincadeiras acho que ainda não contei que papai quase não fala. Nesse dia,
quando chegou para me buscar, estava mais calado ainda. Deve ter engolido todas as palavras
dos livros.”(QM, p. 23) Par adoxal essa idéia de engolir todas as palavras dos livros e se
manter em silêncio maior ainda. Talvez achasse que elas causaram indigestão ou estivesse
entupido delas.
Elas tinham importância vital na vida desse pai, professor, dono de muitos livros e de
poucas palavras. Eram a única coisa capaz de machucá -lo. E apesar de zeloso, não pensa duas
vezes para se livrar das palavras que não lhe interessam: “por que será que jogou a carta fora?
Acho que mamãe ia ficar triste se soubesse que suas palavras foram para o lixo.”(QM, p. 45)
Palavras faladas, ouvidas, escritas, lidas, imaginadas, vivenciadas, farão elos ou irão separar
esses personagens.
A palavra exerce poder encantatório, principalmente vindas dele: “estava adorando.
Não sabia se era a história, ou papai falando, falando. Engraçado, ele não fazia nenhum gesto,
as palavras se despegavam dele. Continuei pedindo que não interrompesse.”(QM, p. 57)
Depois de achar que o pai houvera engolido todas as palavras dos livros, temos essa imagem
dele contando histórias, inerte, parado e as palavras se despegando, com tanta doçura e
serenidade. A palavra une pai e filha: ambos falam pouco, ela ainda gosta de estar entre as
43
palavras, como a palavra usada para qualificar a história contada pelo pai: esdrúxula. Pal avra
cheia de letras. Diz gostar da palavra rapto, pois acaba de repente. O gosto pelas palavras é
incontestável: “em todo caso, preciso deixar dito: adoro palavras, me divirto com elas mais do
que com qualquer outra coisa; depois das bonecas, claro.”(QM, p. 159)
A mãe e a Selma falam demais, “enquanto papai mede palavras, elas escorrem da boca
de Selma de qualquer maneira, sem o menor cuidado.”(QM, p. 203) Quem fala muito, acaba
não dando importância e valor ao que fala, segundo esse prisma de valorizar e cuidar das
palavras, tão importantes para o mundo de Luciana. Crianças costumam ouvir e falar com
bonecas/brinquedos, bichos, amigos imaginários, fotografias... Tininha, boneca falante, como
a Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro Lobato, que se duz as crianças brasileiras
desde 1920, ao falar, arrebata Luciana:
Tininha estava aflita pra falar, parecia que estava com a boca cheia de palavras, louca para soltá -las
logo.
(...)
Tininha fala tão bem... Não vou comentar porque senão ela pode se atra palhar. Sei como são os elogios.
(...)
Quase perguntei bem de quê? mas resolvi não dizer nada porque Tininha parecia estar afogada em
palavras. (QM, p. 61/62)
Tininha é diferente de sua mãe e Selma, que não falam coisas do interesse da menina,
por isso suas palavras se tornam enfadonhas e inúteis. A boneca e suas palavras têm a
confiança da menina. Teo possui o dom da palavra e é ótimo amigo, enquanto Coelho e
Boneca não falam uma palavra, a menina até coloca Boneca na prateleira da estante, perto dos
livros, para ver se aprende alguma coisa. Tininha é inteligente, comenta que deve ter lido
todos os livros do pai, que chegou na casa antes de seu nascimento. O pai, para a menina,
sabe fazer as pessoas falarem, basta fazer perguntas. Apesar de dizer q ue ele não gosta muito
de falar, ela mostra que ele sabe usar as palavras quando necessário e sabe fazer as pessoas
falarem.
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Quando o assunto são os pais, “não sei o que me acontece, mas todas as palavras sobre
papai e mamãe me confundem; ana escola é assim...”(QM, p. 65) As palavras servem para
unir e separar, esclarecer e confundir. Quando conversa com o avô na foto e quer saber por
que a Mariazinha não fala, ele lhe diz que quando ela fala ninguém entende, então, é melhor
não falar mesmo. O pai vivi a mergulhado em seu silêncio, a mãe e Selma falavam demais,
tenta conversar com Mercedes, a enfermeira da e, e conclui: duas mulheres com quem
não dava para conversar: Mercedes, porque não quer, o pessoal da aldeia deve ter proibido; e
mamãe, pelo perigo da gente se acabar de uma hora para outra, sem deixar pista de
vida.”(QM, p. 104) Tinha medo da mãe desmilingüir e sumir.
As palavras também causam pavor à nossa pequena, certa vez teve um pesadelo com
uma boneca gigante que queria ser sua filha. O grit o da boneca ecoava por todos os lados e
mesmo depois de ser estilhaçada e estar se desintegrando, o berro continuou vivo e entrou na
mãe da menina. Pesadelo que prova que as palavras têm vida e não se acabam, podendo
causar medo:
Algumas pessoas não falam na palavra morte, entre elas mamãe. Por que será? Devem ter medo da
palavra. De novo papai tem razão.
Que está pensando, filha? Fez carinho no meu cabelo.
Na morte que vocês não falam.
Não respondeu. vendo só? Palavra medo em gente grande. R esolvi mudar de assunto. (QM, p.
74)
Palavras causam medo em gente grande também... Algumas pessoas mais idosas, por
exemplo, dizem que não podemos falar a palavra azar, para não o atrair. Em algumas vezes já
pudemos observar o medo em relação à palavra morte, assim como conclui Luciana. Usam
sinônimos do tipo determinada pessoa faleceu, ou é falecida, às vezes seguido da expressão
“que Deus a tenha”. O medo da palavra, o medo da morte, o medo dos mortos rondam ficção
e realidade.
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Diante da temida morte, até as palavras desaparecem: “sempre que falam que alguém
morreu, as palavras somem da minha boca, somem de o achar mais, impressionante.”(QM,
p. 131) Se até essa criança que ainda não tinha tido um contato direto com a morte, na
conversa quando o avô n a foto lhe diz que o cachorro Chope morreu, fica sem palavras diante
dela, o que não acontece com crianças que diariamente presenciam mortes? Neste caso
falamos da morte física, mas vários tipos de mortes acontecem: a morte da saúde, a morte de
sonhos, a morte de pessoas que não desejam mais viver... Etc.
2.7 A morte
Diante dela tudo pode mudar, sensações as mais diversas, atração, repulsa, medo,
coração acelerado, susto, angústia. O que podemos observar quando a mãe liga para avisar o
falecimento do avô:
Papai continuava no seriado hum hum. Sentei na poltrona, esperando o resultado. Quando desligou
estava pálido. Mais notícia ruim? Veio andando na minha direção, agachou -se no chão pegando a minha
mão. Um olho para Selma, outro para mim, disse:
Luciana, sua mãe ligou dizendo que seu avô morreu.
Os dois ficaram me olhando, eu também olhava para eles. A sala, de repente, ficou sem cor. A fumaça,
depois de muito tempo, voltava, subia devagarinho pelo rodapé. Lembrei do charuto do vovô. Quis
saber como foi.
De que ele morreu, pai?
Do coração. De repente.
Não gosto mais da palavra de repente. Será que vovô conheceu tio Manoel? Não queria perguntar por
que papai estava menos triste. Senti medo e frio. Falei com ele que estava com frio. (...) Eu não sabi a o
que pensar, nem o que dizer. A mesma coisa quando soube que Chope morreu. (QM, p. 185/186)
São efeitos variados: a sala muda de cor, o colorido, a alegria das coisas se vão diante
de uma notícia dessas; o pai fica pálido; frio, medo, e o não gostar ma is da palavra de repente,
uma vez que estava associada à morte, de repente é que as pessoas morrem.
A morte marca presença no romance desde o começo, quando Luciana vai para a casa
da mãe, esta lhe compra um aquário com peixes. Luciana diz não gostar del es, o tristes,
bóiam com o olhar vidrado, parecem o pai contente. Mas se os peixes bóiam é porque estão
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mortos. A imagem do pai contente lhe é tão aterrorizante que é comparada aos peixes mortos,
olhar vidrado. Além disso, surge no presente que ganha do tio Manoel: um pote de vidro com
ossinhos de todas as galinhas que ele comeu. Comia, lambia os ossos até ficarem limpos e
guardava no vidro como lembrança. “Caveiras das galinhas” como pensou a menina. Estranho
hábito e presente mais esquisito ainda. Na ta rde em que visita o tio Manoel com o pai, as
histórias relembradas e contadas por eles, são de perigo, todas às vezes que quase morreram.
A boneca Branquinha aparece do u e com ela a idéia de morte como cansaço da
vida:
Os fins de semana foram passando , passando, e Branquinha nada. Não dava sinal de vida. Cheguei à
triste e séria conclusão de que era boneca morta. Quanta suavidade perdida. Quem havia matado? O
leite??
Tininha e eu, infelizes e cuidadosamente, e até com a ajuda das irmãs (nessa hora serv iram para alguma
coisa), pusemos Branquinha numa caixa de sapato de papai. Colocamos alguns livros do Tesouro da
Juventude (estavam no meu quarto), debaixo da caixa, e arrumamos Branquinha dentro. Entre suas
mãos pus a flor do vaso, melhor que ficar che irando fumaça no alto. tinha visto na televisão como
fazem com aqueles que adoecem de cansaço da vida. Difícil foi levantá -la do chão, pesava leite à beça,
mas ajudada como fui, conseguimos. Pusemos a colcha colorida (tinha sido de Tininha quando era
pequena), para dar uma cor na pobre da Branquinha. Desse dia em diante nhamos no quarto nossa
anjinha. O leite para ela foi eterno. (QM, p. 46/47)
A relação com a boneca, que no primeiro momento julgava morta, é delicada.
Inicialmente acha que a boneca ap areceu do céu, pois o sabe quem a deixou no quarto. Em
seguida a boneca é dada como morta, a menina auxiliada pelas demais, constrói um
“mausoléu”, um lugar onde deixa a morta, como se fosse uma anjinha. Talvez por não ter tido
contato com a morte, talve z por curiosidade infantil de reproduzir o que tinha visto na
televisão, talvez por quaisquer outros motivos, sacraliza a morte comparando a boneca morta
a um anjo e fazendo questão de manter contato com esse sagrado/profano, com o que causa
atração/repulsão. Podemos dizer que são dois os signos de morte: a boneca Branquinha e o
pote com os ossos de galinha, ambos guardados em seu quarto.
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Algumas pessoas temem aa palavra morte, a menina acha que os velhos morrem
tanto, mas, mesmo inconscientemente, cult iva um desejo de morte, de dormir para sempre,
desejo talvez de fuga do real, como uma reação a algo inesperado:
Luciana...
O que é, pai? Diz logo!
Selma e eu vamos nos casar.
Me fiz de estátua (agora dei para isso: quando as coisas se complicam, como tem acontecido
ultimamente, fico assim, imóvel). Meu pai diferente continuou olhando pra mim; comecei a me sentir
diferente também... para pior.
(...)
Ficou me olhando. Minhas pálpebras pesavam... Estava com um sono... que nunca tive igual; queri a
dormir, dormir... talvez que nem Branquinha. (QM, p. 93/94)
O momento de anúncio do casamento do pai é difícil para ela, teme perdê -lo, logo
quem jamais poderia perder. Talvez queira ficar como Branquinha, dormindo para sempre,
para não encarar o medo o u a possibilidade de perda.
Para ela, a cor da morte é branca, por associação com a boneca. Em outro momento,
compara a boneca não mais a si, mas a sua mãe acidentada: “me deu tanta pena de mamãe,
que nem lhes conto. Toda branquinha, deitada, fraquinha.. . Ih..., lembrei da Branquinha! Será
que mamãe também estava se desbotando com a vida?”(QM, p. 97) A imagem é admirável, a
vida é cor, alegria, com a possível proximidade da morte, a vida perde as cores, a pessoa
desbota. Brancura, ausência de cores, cor d a morte e do luto no Oriente, diferente de nós,
ocidentais, que adotamos a cor preta, que é também ausência ou soma de todas as cores, como
o branco.
Quando descobre a vida na boneca Branquinha fica feliz. Mas, automaticamente
descobre a morte da alegria em Selma. A que supostamente estava morta está viva e quem de
fato está viva, perde um pouco de si, morre sua alegria ao querer engravidar e não conseguir.
O colorido de sua alegria vai se perdendo. O tio Manoel, o avô, todos morrem de repente. Ela
tenta entender o que é morrer:
Está com saudades do seu amigo, pai?
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Hum, hum.
Me abraçou. Me animei para mais perguntas.
Como ele estava?
Como se estivesse dormindo...
Morrer é isso, pai, ficar deitado dormindo?
Sorriu triste.
É, filha.
Por isso você não quer dormir?
o estou com sono. E você?
Também não.
Então, esperemos ele chegar.
Quem?
Não entendi. Me abraçou mais ainda.
O sono. (QM, p. 177)
O medo do sono eterno faz ter receio de dormir... Para os gregos, Tanathos, o deus da
morte, é irmão gêmeo de Hipnos, deus do sono, filhos do Caos e da Noite. Daí deriva a
ambiência escura e sombria que cerca a imagem da morte. Querer entender e explicar a morte
para uma criança é extremamente difícil, uma vez que nós, adultos, supo stamente inteligentes
e donos da razão, ainda não a entendemos. Podemos explicar a morte biológica, segundo os
médicos, é impossível determinar o momento exato da morte, o momento em que o retorno à
vida não é mais possível. Não dúvida quanto à exist ência deste instante, não se pode
precisá-lo. O coração é o órgão principal da vida, logo, quando ele pára temos a indicação
definitiva da morte. O coração conota sentimentos, pulsa, é tátil, visível, audível. Se não tiver
ainda acontecido a morte cereb ral, o coração pode ser “reanimado”, choques e massagens
podem fazê-lo voltar à vida. Mas se o cérebro também parou, nada mais pode ser feito.
Parados o coração e o cérebro, quadro de falência cardíaca e cerebral, conotativamente temos
também o fim da emoç ão e da razão, fim da vida. Mas os mistérios que cercam a morte são
muito maiores que nossas explicações científicas e talvez religiosas conseguem nos fornecer.
Um dia ela encontrou o pai com mal -estar e perguntou se tinha sido de repente, pois,
segundo sua conclusão, era assim que se morria, de repente. Ele lhe diz que não, que vinha
sentindo dores de cabeça, enjôos, e isso a confortou. O perigo do de repente, nessa ocasião
estava afastado. Mas outras transformações e mudanças ocorreram de repente em sua vida e
na vida dos seus.
49
2.8 Menina-mulher
A passagem foi de repente. Não sabemos a idade de Luciana ao começo da narrativa,
talvez seis ou sete anos, o podemos precisar. Fala do dia do aniversário em que fez nove
anos e aos onze anos nos conta sob re sua menstruação. As mudanças em seu corpo foram
sentidas, entretanto, não havia se dado conta do seu crescimento:
Bem, mas o conseguia esquecer o beijo; quanto mais pensava, mais coisas estranhas sentia. Nunca
tinha me sentido assim, meu corpo só ser viu até agora para dar trabalho: lavar, enxugar, vestir. Todos os
dias. Agora, ele queria fazer alguma coisa. Sentia um calor embaixo... estav a quente quente, será que
estava com febre? Doente? Com virose? Queimava. Me virava e desvirava na cama, a quentur a não
passava. Vontade de me esfregar, esfregar bastante, até passar aquele calor. Me deu vontade de fazer
xixi. Quando me limpei, ardia em fogo, numa espécie de vibração. Resolvi me molhar. Abri a água do
bidê, com chuveirinho e tudo. Em vez de esfriar, c omecei a tremelicar em cima da ducha; gostei tanto
daquilo, que fiquei ali um tempão. (...) O calor começou a passar, devagarinho. Levantei encharcada,
pingando por todos os lados; precisava trocar de roupa. (QM, p. 197)
São mudanças de menina à mulher, o corpo, que servia para dar trabalho, agora é
fonte de desejos. Apenas por ter visto o pai e a madrasta se beijando, foi desencadeada nela
uma avalanche de sentimentos e emoções, sensações. É o prenúncio de um novo momento
adolescência que chegava para que ela vivesse novos tempos... Desejos, inquietações,
mudanças e mudanças à vista. Modificações presentes nela e nos que conviviam com ela, sem
que tivesse notado, sem que quisesse aceitar:
O que foi, Teo, por que essa cara de grilo grande?
Isso mesmo, parece que adivinhou, era o que eu ia dizer. Cresci, Luciana. Devo esta r da altura do meu
pai. Não sei ao certo, porque tem muito tempo que não nos vemos.
(...)
o chore, Luciana, agora não precisa mais de mim, você também cresceu; já se viu no espelho?
(...)
Fui procurar Tininha para desabafar, mas ela dormia. As irmãs então, nem é preciso dizer. Olhei para
Coelho que também dormia, nem era com ele. Por que será que bateu esse sono pesado em todos? Tudo
escapando de repente... Me deitei e ncolhida e chorei sentidamente. (QM, p. 201/202/204)
As mudanças foram gradativas, com o nascimento do bebê de um das irmãs, Tininha e
as outras passaram a se preocupar mais com o bebê, Teo e Coelho já tinham estreitado
amizade, Boneca o falava, Branquinha f oi que necessitou de mais cuidados da menina. Ela
50
havia notado que os outros o precisavam mais dela. tinha experimentado essa emoção
estranha em seu corpo. E se surpreende quando Teo lhe diz que cresceu, que vai embora e que
ela não chorasse, pois também havia crescido. Existiu essa necessidade do amigo lhe falar que
ela não era mais uma garotinha. Teo vai embora, as bonecas dormem e a menina -moça fica
só, assim, de repente, palavra temida e que sempre provocava transformações.
O capítulo seguinte, o 13, começa com Luciana sentindo a transformação física em seu
corpo, percebe ao descer as escadas do prédio em que mora, que os peitos balançavam. A
descoberta sensacional, segundo ela, faz com que fique se admirando frente ao espelho. Se
sentiu orgulhosa por ter peitos e ficou novamente feliz quando a mãe lhe disse que cresceriam
mais. Achava bonito peitos grandes, como os de Selma e diferente dos de sua mãe que eram
pequenos.
As mudanças não são físicas, como constamos: vejam o que me aconteceu : me
apaixonei por um ator que trabalha numa novela.”(QM, p. 207/208) Os sentimentos afloram e
um novo tipo de amor é experimentado por ela ao se apaixonar pelo galã da novela. Aproveita
um dia que ficou só em casa, com a empregada que não iria importunar, e se veste de mulher.
Podemos dizer que se veste de Selma, já que usa seu robe de seda, seus chinelos, sua
maquiagem e toma uísque, como faz a grandona. Vai se mostrar as bonecas, que não reagem,
pensa que talvez não a tivessem reconhecido. Fica bêbada e tonta, tonta... “Vê” o artista por
quem está apaixonada sentado em sua sala, vai até o banheiro, vomita, volta para sala, não
sem antes escovar os dentes, pois “estava querendo demais beijar e ser beijada, muito
tempo. Sem parar.”(QM, p. 212) Mas o delí rio tinha passado, sem que tivesse se dado conta e
chora por ele ter ido embora. Acorda no dia seguinte com ressaca de gente grande, imagina
cenas de amor, e, claro, não conta seu segredo a ninguém.
No dia posterior à ressaca, acorda e descobre que finalm ente seria mulher estava
menstruada. Pensa, então, nas amiguinhas do colégio, todas eram moças, faltava ela.
51
Sente a solidão do quarto: “não há mais vivalma dentro desse quarto para quem possa contar.
Desde ontem à noite, não me dão a menor bola. N ão devem gostar de adultos.”(QM, p. 214)
Os brinquedos são agora vistos de outro modo, diferente do que via até aqui. Eram seus
melhores presentes e amigos, o seu mundo era o quarto com bonecas e bichos. Mas, se veste
de mulher, se embebeda, fica menstruad a, é uma moça, “uma mulher” e o foco muda. Diz se
entender melhor com Selma do que com o pai, pela primeira vez. Tem onze anos e passa de
“rival” a “cúmplice” de Selma, o amor sentido pelo pai, terá sempre seu lugar, mas outros
homens entrarão em sua vida, como o ator da novela.
Com o passar do tempo, as diferenças se acentuam e além de mudanças físicas e
emocionais, temos mudanças comportamentais:
Desde a evaporação do Teo, o quarto perdeu um bocado da graça. Coelho ficou numa quietude
completa. De vez em quando chegava perto dele para ver se ainda respirava; já pensou, perder o melhor
amigo? Lembram da tristeza que papai ficou quando tio Manoel desistiu da vida? Acho que cresci
mesmo, não falei que ele morreu.
Quando papai e Selma voltaram, ainda estava no telefone. Passaram por mim na sala, entreolhando -se.
Continuei falando, claro. Gosto muito dessa amiga, mas para f alar a verdade, cada vez gosto mais de
telefone.
(...)
Os dias passavam e cada vez menos eu ficava no quarto; estava ficando diferente dife rente. Desisti por
completo de falar com Tininha. Cada vez que eu tentava, ela parecia uma boneca de pano, como outra
qualquer; as irmãs então, miniaturas sem graça. Eu sentia uma tristeza e não sabia de onde vinha,
porque estava tão contente com outras co isas fora dali... Papai e Selma puseram uma extensão de
telefone no quarto, só pra mim; o máximo! Agora podia falar sem ninguém ouvir minhas conversas.
O tempo passava e cada vez mais uma enorme mudança em mim se operava. Fui tomada de estranha
vida. Igual à dos meus amigos. Gostamos das mesmas coisas. Agora me ligo em aparelhos: o
telefone, como sabem, e o som.
(...)
Voltemos a quem interessa: os meus. Branquinha foi quem ficou mais tempo comigo, mas, como
Tininha, teve o mesmo fim: perdeu a graça. Nem de longe podem imaginar como Branquinha se
encontra; o iam acreditar. Aquela beleza toda se foi, está encardida, maltrapilha, cabelos ralos, um
horror! Impressionante a devastação que o tempo faz... Mamãe adora dizer essa frase, e não é à toa que
se cuida daquele jeito, lembram, não é? Pois é. Não sobrou ninguém no quarto. Até os mudos foram
embora. Coelho foi dado para as meninas que moram em casa com jardim (aquelas que um dia rodaram
na casa de mamãe, lembram também?). (...) E Boneca... Nilcéia veio c om a história de uma menina que
nunca teve brinquedo na vida. Passei o trambolho para as mãos dela. (...) Tomara que alegria à
menina sem sorte. As coisas saindo da minha vida, e eu nem nada... Acho tão triste não ficar triste...
De repente, só notava a presença de Branquinha quando ia dormir. Ajeitava -a perto do urso e pronto. Às
vezes, quando achava que estavam incomodando, empurrava os dois pra fora da cama, sem olhar onde
tinham caído. Preguiça.
Como viram, estou em trânsito, não sei o que vai ser de mim, nem estou preocupada, e também não
estou com vontade de contar mais nada. que todos se foram, é melhor que me despeça também,
aproveitando o clima geral. (QM, p. 216/217/218)
52
As mudanças foram gerais e muito significativas. A primeira mudança foi a saída da
menina do quarto, desloca o seu mundo para o ambiente externo, o mundo infantil do quarto
com bonecas e bichos, agora se expande, ela se aproxima de amigos que se parecem com ela e
ultrapassa os limites do quarto de menina. O quarto, os bichos, as bonecas, o urso de pelúcia
perdem a graça, a identificação agora é com os amigos. Os brinquedos são substituídos pelo
som e pelo telefone. O telefone a conecta com o mundo exterior ao quarto e pela primeira vez
fala em uma amiga, até aqui os amigos era m bonecas e bichos. Também assume que mudou:
falou que o tio desistiu da vida ao invés de falar que ele morreu; desistiu de suas bonecas
todos têm um novo destino; não fica mais triste com a saída de algumas coisas (bonecas e
bichos) da sua vida, talvez por essas coisas terem adquirido novo significado. O passar do
tempo devasta, mas também faz o foco mudar. O que antes era importante deixou de ser. O
quarto de menina muda, aumenta suas fronteiras e o mundo da adolescente se estabelece. A
semelhança, a afinidade, não cabem mais dentro das paredes do quarto, ela ganha o mundo.
Estar em trânsito define essa mudança, essa passagem do estado infantil ao estado
adolescente. Um ciclo termina e um outro começa.
O capitulo de número 14, o último, se abre com uma epígrafe drummondiana, trecho
do poema “Os últimos dias”, onde, supomos, a passagem do tempo ocorreu e estamos na parte
final de uma trajetória, ao final de um ciclo, em seus últimos dias. Últimos dias que chegam
com o prenúncio do novo, do nascer do dia, dos primeiros raios de sol. O dia do aniversário
também pressupõe a idéia de um começo, ao menos do começo de um novo ano, uma nova
idade. Clarinha, sem que saibamos quem é, dorme no berço com urso de pelúcia e bonecas
repousam nos berços.
Clarinha faz três anos, tem os cabelos cacheados e louros e sua mãe se revê nela. A
menina ganha de presente uma boneca de pano e a mãe considera a Clarinha como seu
presente, sua bonequinha. A boneca também se parece com a menina: loura e com boca
53
vermelha. Ao tocar o t elefone, não temos mais nenhuma dúvida de que a mãe da pequena
Clarinha é Luciana. O papel de mãe, antes desempenhado com as bonecas, agora é realidade
para a menina que cresceu. Fala ao telefone com sua mãe, que virá à sua casa com Nilcéia.
Clara corre para o colo do pai e desaparecem abraçados. Luciana, contempla o espetáculo do
sol se retirando da sala. O ciclo pode ter terminado para ela, passou pela infância, pela
adolescência, pela juventude, é uma mulher adulta, mãe. Mas um novo ciclo começa para a
pequena Clarinha. Sua infância está apenas começando, tem a companhia do urso, das
bonecas e é presenteada com uma boneca de pano, como a Tininha de sua mãe. A dinâmica
não pára, a roda da vida continuará girando. São apenas os primeiros raios de sol na vid a da
menina que sai nos braços de seu pai.
A imagem da menina brincando com a boneca se repete: primeiro Luciana, depois sua
filha Clara. Livia Garcia -Roza constrói essas imagens como elas se apresentam: por
contigüidade, como num espelho, os reflexos se reproduzem. A dinâmica da vida é cíclica. O
espelho continuará refletindo outras pessoas, mas com reflexos parecidos.
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3 CARTÃO-POSTAL
Cartão-Postal é um romance em que a narrativa se articula através da voz do menino
João. O enredo começa com o fim do casamento de seus pais. Filho de pais recém -separados,
João, a irmãzinha Clara e a mãe vão morar temporariamente na casa da avó materna, lugar
que apelidaram de cartão -postal.
O pai, chamado de Vera, pretende abrir um serviço de resg ate em motéis, a mãe, sem
identificação nominal, trabalha como atriz, faz dublagens para o cinema e comerciais.
Francisco, ou Chico Danger, é o perigo apresentado como namorado de sua mãe, trabalha
com dublagem. A amora no lugar que chamam de cartão -postal com uma gatinha cega, a
Catarina, ou Catinha. Catarina também é o nome da irmã de sua avó que mora em Israel
exercendo a atividade de jornalista correspondente. A tia de João, irmã de sua mãe, é
professora de inglês e quase já não fala o português, viv e chorando pelo namorado Eurico que
sumiu em um avião. O Vicente é o tio que “desestabiliza” o cartão -postal com seu
temperamento explosivo. A irmãzinha Clara é a pequenina que ele ao mesmo tempo protege e
aterroriza com suas histórias e crueldade infantis . Outros personagens se agregarão à história,
como as empregadas, a namorada de Vicente, os namorados da tia, a namorada da tia -avó,
sem falarmos nos bonecos de Clara e no a que marca fortemente sua presença ao se
encontrar enterrado no jardim do cartão -postal.
3.1 Um lugar recriado
O cartão-postal é um lugar bastante diferente das tradicionais imagens de cartões -
postais que conhecemos. A calma e a tranqüilidade habituais são substituídas por agitações
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externas, que literalmente sacodem o lugar, e por a gitações internas, resultado dos conflitos
tempestuosos dos personagens que moram ou freqüentam o espaço.
A capa do livro é baseada em detalhe do quadro Thatched Cottages in the Sunshine:
Reminiscence of the North , de Vincent van Gogh, obra datada de 189 0. Não por acaso,
Vicente, tio do menino João, tem a vida parecida com a do pintor holandês: marginalizado,
não constitui família, não trabalha, e, embora não declaradamente, pressupomos que é
acometido por uma doença mental, devido aos seus atos e atitude s que veremos adiante. A
ingestão de álcool também é mais um elo entre eles. João, assim nos apresenta a casa de sua
avó materna, o cartão -postal:
Minha amora num cartão -postal holandês. A casa fica no centro de um jardim; além da porta e
janelas azuis, tem uma chaminé com fumaça enrolada no ar. Ao lado direito da casa tem uma árvore e,
próxima a ela, uma borboleta azul; do lado esquerdo, num jardim menor, outra árvore, da qual pende
um balanço. Vovó conta que quando minha mãe era pequena quase enforcou uma amiguinha em suas
cordas; a menina chamava -se Anie Bobe. No fundo desse jardim, onde se vê uma sombra escura, fica a
garagem. Tem também a trepadeira que sobe agarrando -se às paredes da casa e depois volta
despencando sobre a varanda.
(...)
De vez em quando, a casa balança. As coisas despencam no chão, escorregando de um lado para o
outro, as gavetas se abrem todas ao mesmo tempo; na cozinha, os talheres deslizam tilintando sobre a
pia e as panelas se abalroam. Alguém escolhendo cartão -postal. Vovó deita-se no chão, com Catarina
debaixo dela e com os braços sobre a cabeça, e me faz deitar também, como nos filmes de guerra.
Quando os barulhos terminam, leva algum tempo arrumando a casa outra vez. No final, sempre deixam
vovó de lado no seu canto holandês .
6
Para fugir da cidade grande, caótica e desordenada, que pode ser qualquer grande
metrópole, de qualquer lugar do mundo, afinal, até a arquitetura está sendo construída para
isso, entra em cena o campo. O território ordenado, organizado, controlado. A ilusão de fuga
da realidade para um lugar idealizado aparece como tentativa de acabar com o caos urbano
que se configurou em fins do século XX. Sabemos que não existe marca temporal ao longo da
narrativa, entretanto alguns indícios nos são apresentados: Jo ão sonha com o tigre da Esso
(página 53), Clara brinca com uma ficha telefônica (página 77) e o conflito entre judeus e
palestinos (página 59) ajudam nossa localização temporal. Acreditamos que a narrativa seja
6
GARCIA-ROZA, L. (1999) p. 8/9 Todas as citações serão baseadas na edição de Cartão-Postal, publicada
pela Record, ano 1999, conforme explicitado na bibliografia em anexo.
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baseada nos anos 80, deve ter sido o auge da época do comercial da Esso com seu tigre e
nos anos 90 as fichas telefônicas são substituídas pelos cartões que usamos hoje em dia.
Embora saibamos que o cartão -postal apenas tem aparência de tranqüilidade e calmaria, a
idealização do espaço de refúgio acontece.
A casa literalmente balança quando alguém escolhe um cartão -postal. Como se a
pessoa estivesse em uma loja e pegasse os cartões para escolher o que comprará. E como se a
história vivida pelos personagens acontecesse no interior de um cartão -postal holandês, aliás,
é isso que nos afirma João quando alguém vai escolher um cartão a casa de sua avó balança,
fato que ocorrerá quatro vezes ao longo da narração, mas, para alívio de todos, o referido
cartão-postal é deixado de lado.
Na citação acima, vemos ainda, a primeira referência escrita ao mundo das artes, uma
vez feita menção ao quadro de van Gogh, agora o código artístico citado é o do cinema. O
mundo cinematográfico seexplorado na mãe do João que é artista/atriz, faz dublagem e
cenas perigosas para o cinema, seu namorado Francisco igualmente faz dublagens; o pai dela
é lembrado como artista que constrói balões e até o nome da boneca de Clara, a artista das
nuvens, boneca que ela diz estar morta, nos remete ao mundo artístico. A morte também será
explorada devido ao número de mortes reais e fictícias, como a da boneca da menina, e pelo
fato incomum de o avô de João estar enterrado no jardim da casa da avó, sendo ele o pioneiro,
outros serão sepultados no “cemitério familiar” do mesmo modo.
A rotina inicial da casa é de calma:
Passamos dias assim, para nada. Mamãe conversava com vovó e com uma amiga que ela dizia que
prestava. Para mim e Clara, olhava com olhos caídos e, de vez em quando, passava a o nos nossos
cabelos fazendo tsk-tsk. Eu assistia à televisão, comendo biscoitos que vovó despejava em meu colo, e
assustando Clara de vez em quando. E ela, com suas bonecas, rindo e cantando. E a gata passeando cega
pela casa. (CP, p. 10)
Até então, somente se alguém fosse escolher um cartão de sestabilizava a rotina e a
casa. Mas Vicente aparece, picha o lugar e os deixa desorientados: “no dia seguinte, a casa
57
amanheceu pichada, não havia um pedaço do cartão sem coisas escritas. Não estávamos em
território holandês? Onde fomos parar? Perdidos no mapa? (...) O cartão estava assinado:
Vicente, o herói da façanha.” (CP, p. 14/15) E as configurações começam a variar.
3.2 Entre o natural e o sobrenatural
A primeira manifestação do sobrenatural, do fantástico, é o fato de o cartão -postal
balançar toda vez que alguém escolhe um cartão e de alguns personagens morarem nesse
lugar ao mesmo tempo real e irreal, encantador e frágil. A familiaridade ou a proximidade da
morte também fogem ao nosso natural de início do século XXI. Pra nós o normal é nos
mantermos, o máximo possível, longe da morte e dos mortos. nos permitimos a morte
cinematográfica, cenográfica, que, apesar da carga de realidade, temos o total controle que
não é real e que não vai nos atingir. O cinema, a dublagem, não estão no âmbito do
maravilhoso, por fazerem parte de nosso cotidiano. Entretanto, o ato de representar mexe com
nossos conceitos de realidade, como veremos. Deteremos um pouco da nossa atenção na
questão da morte.
A história da morte é longa e diversa para a humanidade. Não t emos a pretensão de
contá-la, vários o fizeram o bem, como Philippe Àries. Morte, medo, medo diante da
morte. Afinal, que estranho sentimento é esse que nos invade, assola, persegue, diante do
sobrenatural?
Desde o nascimento, o ser humano revela sentimentos. Entre muitos medos, o maior
deles é o da morte o que o vai impedir que o maior medo humano seja também um dos
grandes “espetáculos” apreciados pelos homens. Fato que justifica tantas pessoas pararem
para ver acidentes e mortos pelos caminhos e estradas. Não é somente por curiosidade,
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solidariedade ou vontade de ajudar. Por que nos escondemos do que causa medo e ao mesmo
tempo uma enorme coragem nos impulsiona a olhar?
Na Alta Idade Média, a morte não era traiçoeira para com sua “vítima”, dava tempo
suficiente para que a pessoa percebesse que iria morrer. Pressentimentos, visões de pessoas
que havia morrido, anunciavam a morte ao indivíduo. Ela deveria ser bela e o cuidado em
enterrar os corpos também era observado: “nesse mundo tão familiari zado com a morte, a
morte súbita era morte feia e desonrosa, fazia medo, parecia coisa estranha e monstruosa de
que não se ousava falar.”
7
A morte era encarada com naturalidade, hoje ela é banida do
cotidiano.
A aproximação entre vivos e mortos deve ser e vitada a qualquer preço. No imaginário
coletivo a idéia do mal está quase sempre associada à morte, a violência, ao medo, ao ruim;
enquanto o bem é associado ao perfeito, ao puro, ao limpo, ao sagrado. A marcação é
dicotômica: bem e mal estão em lados opos tos, sendo sempre rivais. Entretanto, esquecemos
que o mal nos seduz, somos freqüentemente atraídos pelo o que nos causa medo e horror. O
desejo de transgressão existe e faz parte de cada um. A sociedade tenta sanear o mal, associá -
lo ao sujo, a morte. Ent erramos os corpos para não sermos contaminados pela morte, em seu
duplo sentido: a contaminação com as possíveis doenças transmitidas pela carne decomposta
e a contaminação com a degeneração de um ser igual a nós, a contaminação pela presença da
morte. O erotismo, a morte, o vício, o jogo, a loucura, excessos que nos ultrapassam e são
“proibidos”. Ainda de acordo com Bataille o mal é o meio mais forte de expor a paixão.
Os cemitérios foram criados, a princípio, fora dos arraiais e vilas, “apesar da
familiaridade com a morte, os antigos temiam a vizinhança dos mortos e os mantinham a
distancia.”
8
No domínio privado, a morte não tinha lugar. Com a “ajuda” da religião e os
novos conceitos e fé, as pessoas passam a acreditar na ressurreição dos mortos. Túmulos,
7
ÀRIES, P. (1981) p. 12
8
Ibidem, p. 34
59
principalmente de mártires mortos, são cultuados. A sepultura deixa de causar tanto horror, as
igrejas católicas enterram seus padres e membros do clero dentro dos templos e em seus
quintais. A população também expressa o desejo de enterrar seus mortos per to dos mártires e
da igreja, daí o aparecimento de tantos cemitérios ao lado de muitos templos religiosos.
No Cartão-Postal, a morte faz parte do domínio privado, os mortos são enterrados no
jardim do cartão-postal:
Vovô está enterrado no jardim, ao lado da garagem. Vovó não o visita, sempre ocupada, abrindo e
fechando portas de armários, guardando louça, enxugando talher, dobrando paninhos. Não pára. Quem
leva flores e chora é minha tia, mamãe nunca se aproximou, e eu achei melhor também não. Uma vez,
Clara foi pega em cima da sepultu ra, pés sujos de lama, regando. (CP, p. 13)
A proximidade da morte é real e, através da imagem metafórica de Clara regar a
sepultura, podemos supor que alguns membros desta família tratam a morte com naturalidade
a ponto de cultivá-la. Clara, talvez por sua pouca idade, age com naturalidade e encara a
morte diferente do irmão. João prefere não se aproximar da sepultura do avô, mas a primeira
menção sobre a morte na narrativa é feita por ele, ao contar uma história para assus tar a irmã:
Suspendi os braços e fiz voz de assombração:
Um barco. Ondas revoltas na tempestade. Uma menina sozinha em alto -mar. Quem era?
Clara começou a gritar. Era uma fresca. Vovó pediu que eu brincasse de outra coisa. Resolvi contar uma
história para a chatinha.
Ouve essa, Clarinha: sabia que vovó conheceu uma mulher que não morreu? arregalou os olhos. Já
deve ter uns cento e cacetada... e virou uma árvore de ossinhos, uma caveirinha sentada, mas o
morreu! Dizem que assovia, quando quer c hamar as pessoas, e gosta muito de meninas...
Clara me interrompeu de novo começando a chorar. Cagona.
De noite, ela disse para mamãe que estava ouvindo um apito. Cobri a cabeça para rir. (CP, p. 10)
João faz uso das histórias, tendo a morte como tema, pa ra assustar a irmãzinha. A
crueldade infantil é revelada, talvez a crueldade inerente ao ser humano, pois vários adultos
também fazem uso do “poder” de assustar os pequenos. As mazelas humanas, o medo, a
violência, a ambição, o poder. A natureza humana é s empre a mesma: temos limites para a
bondade, mas não temos limites para a maldade. O desvio da norma acontece quando
normas para serem transgredidas. E as regras são criação cultural, sendo portanto, diferentes
60
nas mais variadas sociedades. Muitas vezes , elas são criadas por poucos que estão no poder e
aplicadas para os muitos que as seguem. Para nós a normalidade é pouparmos os pequenos de
sustos e tormentos reais, pois, não medimos esforços para levá -los ao cinema para ver a
estréia de um filme de terr or, também pagamos a entrada para o trem -fantasma dos parques de
diversão e os levamos às festas que se tornam cada vez mais comuns, como as de Halloween.
Ainda na ótica infantil: Clara falou que os velhos não têm filhos porque eles vão
morrer, as crianças ficam sozinhas, chorando, vêm os bichos da floresta e comem todas elas.”
(CP, p. 57) Através de uma ordem que habilitamos como normal, os velhos estão mais
próximos da morte por terem vivido muitos anos, o que não achamos tão natural quando
morre uma criança ou um jovem, que ainda teriam a vida inteira para ser vivida. Para a
pequena Clara, se os velhos morrem, deixam suas crianças entregues à própria sorte, logo elas
serão mortas também, que, sem quem as defenda, serão presas fáceis para os bicho s da
floresta, que povoam e assombram o imaginário infantil.
Para a ela, o contato/proximidade com a morte é tão natural, que além de ter uma
boneca que diz estar morta, um dia em que sua mãe estava muito cansada “Clara disse que
ficou velando mamãe até nã o agüentar mais. Rosilda foi para a cozinha se benzendo e dizendo
credo em cruz!” (CP, p. 61) O verbo usado por João ao descrever o acontecido é velar
(guardar, vigiar) que costumamos empregar para os muito doentes e para os mortos, muito
provavelmente a palavra velório advenha de velar e por isso restrinja seu uso. Quem sabe por
sua inocência e ingenuidade “Clara cismou que tem um anjinho enterrado ao lado da sepultura
de vovô...” (CP, p. 79) Comumente vemos esculturas de anjos guardando os jazigos, essa
deve ser a função de tais anjos: velarem, protegerem.
A sacralização de pessoas e objetos está presente no cotidiano desta família:
Minha tia nunca se casou. Dizem que foi noiva durante anos e, quando se aproximava o dia do
casamento, o noivo entrou num avião que desapareceu numa nuvem. Nunca mais se soube o paradeiro
da aeronave, mas eu ainda vou ser piloto e descubro esse mistério. Dizem que, quando titia soube do
sumiço, ficou gritando dentro de casa: eu quero um bebê do Eurico! eu quero um bebê do Eur ico!, até
61
desmaiar. E desde então guardou as lembranças dele a primeira camisinha de beque ele usou, os
sapatinhos de e o retrato de sua primeira comunhão, tudo envolto em papel de seda e colocou no
santuário, como chamava um dos quartos em sua c asa. (CP, p. 12)
Divinizar, venerar, construir altar: a presença desse ritual religioso é fortemente
definida. Além da tia, a avó faz o mesmo: “todas as noites, vovó reza em frente à fotografia de
Vicentinho, pedindo que Deus ilumine seu caminho, pede po r nós também, depois faz o sinal -
da-cruz e deita-se gemendo.” (CP, p. 13) A tia proibia terminantemente a entrada de quem
quer que fosse no santuário destinado a Eurico. Somente quando engravida, ela desfaz o
santuário para fazer o quarto do bebê. Talvez o foco de sua atenção tenha mudado, agora o
desejado bebê ocupa a posição de destaque e não mais Eurico.
Certa vez João sonhou que a mãe fazia o papel de um morto:
Sonhei que mamãe fazia uma cena em que ela era o cadáver. O caixão, no chão, e ela dentro, quieta,
rodeada de flores e com o terço entre as mãos. As pessoas rezavam ao redor. No meio delas, de repente,
surgiu Francisco abrindo espaço aos empurrões e, levantando o caixão, saiu pelas ruas carregando -o
debaixo do braço. Eu gritava que minha mãe est ava ali dentro, mas ninguém me ouvia. (CP, p. 70)
Para o menino, o sonho em que a mãe representava um morto, pressupomos, tem um
outro significado: o medo de perdê -la. O sonho, metaforicamente, representa o desconforto
com a situação: filho de pais sepa rados, ele teme perder a mãe para o namorado dela,
Francisco, Chico Danger, que representa literalmente um grande perigo: é o vilão” que pode
roubar sua mãe, levá-la, sem que ninguém veja, sem que ninguém se importe e tente impedi -
lo.
Voltemos a falar da morte denotativa:
Ficamos esperando a chuva passar. Quando melhorou, Clara, olhando pelo vidro da janela, disse que
tinha visto perninhas de galinha levadas pela correnteza. Vovó foi espiar, soltou um grito e, pela
primeira vez, a vi correr. Percorremos os caminhos encharcados do jardim atrás de ossos que
deslizavam na água que descia em riachos. Clara dizia que o céu tinha soltado suas nuvens e vovó
estava correndo atrás de vovô. Vovó, mamãe e eu fizemos outro funer al. Como mamãe disse, no final.
(CP, p. 74/75)
62
Agora, a morte se expõe sem pedir licença: os ossos, representação da morte na figura
da caveira, invadem o mundo dos vivos. Como se tivessem vida própria, como se por um
momento pudessem trazer o avô de João de volta à vida, eles seguem junto c om a vida das
águas, com a força da correnteza, que os espalha. Um novo enterro é necessário, o corpo, ou
parte dele, os ossos, não podem ficar expostos, a morte não pode invadir a vida.
Esplêndida, namorada de Vicentinho, também morre, e, ele repete o ges to infantil de
Clara, ao regar a sepultura de sua amada, mas a intenção dele é definida:
No dia do funeral, descobriu -se que Esplêndida era uma espécie mista de vegetal e animal, porque assim
que fechou os olhos transformou -se numa folha verde-limão.
Verde-limão é a cor do nascimento, o triunfo da primavera sobre o inverno! exclamou vovó.
(...)
Vai voltar para a terra e florescer de novo comentou vovó com os olhos no céu.
Terminado o enterro de passarinho, que foi regado diversas vezes por Vicenti nho, ele pegou a picareta e
destruiu o jardinzinho, uivando e assoviando. (CP, p. 126)
Como Esplêndida era um ser animal -vegetal, Vicentinho rega o seu túmulo para que
ela floresça, renasça, agora como um vegetal, conforme podemos observar nas falas de s ua
mãe. O pai da moça também falece sufocado pela asma.
Oldeu, um dos namorados da tia de João, também morre e como o avô do menino e
Esplêndida, é enterrado no jardim do cartão -postal. Se, ao começo da narrativa estranhamos o
fato do avô de João estar ent errado no jardim da casa, agora, além dele, temos mais dois. A
sepultura isolada e familiar cede espaço para que ao seu lado outros sejam enterrados.
Em meio a tantas referências à morte, Clara compara o seu sono a uma pequena morte
quando diz:
João, estou cansada de morrer toda noite!
Dorme!
o posso, a artista vem me raptar!
Então não fala, para eu poder dormir.
Você gosta de morrer, João?
Não respondi, Clara pensou que eu tivesse dormido, mas eu continuava escutando sons estranhos vindos
do quarto de mamãe. (CP, p. 168/169)
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São várias as faces da morte exploradas no romance: desde a morte física, a finitude
corpórea, passando pela morte no sonho, pelo risco de morte exigido na profissão da mãe de
João, de Francisco e de Vicentinho, que é di namitador ao iniciarmos a história, até chegarmos
ao sono, uma pequena morte, lembrando que ele, o sono, é para os gregos, irmão gêmeo da
morte. A morte foi descrita para Luciana, de Quarto de menina, e também será para Leninha,
de A palavra que veio do Su l, como se o morto estivesse dormindo sem sonhos. Para Clara e
João, os personagens infantis, a morte é enxergada por prismas diferentes: Clara não a teme, a
não ser o sono. João, ao contrário, não trata a morte com a naturalidade da irmã e teme muito
perder a mãe, mesmo que não seja para a morte, mas para Francisco, o que talvez para ele não
faça diferença. Sendo a morte uma perda, o perigo de perder a mãe faz com que ele associe
essa perda também à morte, como no sonho em que ela representa um morto.
3.3 Rede de relacionamentos
Como o foco é a infância e o narrador é um menino, ele será nossa base, para, a partir
dele, tecermos a rede de relações interpessoais da narrativa. Nas outras narrativas temos
meninas como narradoras. Ele é a criança mais velha que por vezes tem de cuidar da irmã
menor, sem perder a chance de assustá -la ou “a vontade de apertar seu pescoço” . Deseja
conhecer o tio-herói Vicentinho e depois anseia bater nele, como vingança, para proteger sua
família que vê o tio maltratar.
Como criança que é, gosta de brincar e tinha um álbum de figurinhas de super -heróis.
Assim como todo menino, o fascínio e o encanto pelo poder, pela força, pelo heroísmo são
grandes. Encanta-se com o tio Vicente e mesmo temendo Francisco, também o admira. Possui
uma “estratégia contra -irmã”, fica sem falar com ela quando ela lhe enche a paciência, ou
quando pede para contar as histórias e chora depois.
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Não mede esforços para defender sua família:
Nessa hora, saí correndo de onde estava e pulei em cima de Franci sco. Ele corcoveou comigo nas costas
e, me arrancando com uma das mãos, me atirou sobre o sofá. Mamãe gritava calma. E ele com punhos
fechados batia nos móveis e nas paredes quebrando os pratos pendurados. Mamãe tentava inutilmente
pegar as mãos de Francis co no ar. A cruz no alto, feito estandarte nas mãos de Clara, balançava de um
lado a outro. Eu estava tonto em cima da almofada. Foi então que mamãe, gritando, pediu a Francisco
para ele ir embora. Bufando e botando a mochila nas costas, ele bateu a porta dizendo:
Você ainda vai me procurar! (CP, p. 52)
O medo de Francisco o faz sonhar com a águia que ele tem tatuada no braço, no sonho
a águia queria pegar Clara, sonha também com o tigre da Esso que queria pegá -lo e com o
“bandido” roubando sua mãe.
Um dia encontra a mãe com um olho roxo e conclui que Francisco bateu nela. Imagina
Chico morto e ri com isso, pois, começa a achar que ele quer destruir sua família, então, antes
de deixar que ele faça qualquer coisa, nada mais natural que atacar para se de fender. Imagina
a irmã morta, acha que todos correm perigo com Francisco. O filho do porteiro chama Chico
de “o bandido da casa de quinas”, fato suficiente para o menino achar que suas hipóteses
são reais e que podem morrer a qualquer momento:
Contou que uma vez, numa vila onde Danger morava, ele entrou atirando com pistola automática. E,
também, que tentou massacrar pessoas dentro de uma lanchonete enquanto acertava motoristas na rua.
Subi correndo e contei tudo pra mamãe, num fôlego só.
Trabalho, João! Além do mais, qualquer pessoa está sujeita a reações violentas...
Bom, se é assim, vou pedir a meu pai para me comprar um rifle automático, uma carabina de caça, e
encher uma sacola de munições. Antes, vou fazer um a trincheira no quarto. (CP, p. 117)
O quarto para João, assim como para Luciana, também aparece como lugar de refúgio.
que a mãe o acreditava em suas hipóteses, o jeito era se armar para a guerra, lutar contra
o bandido sozinho: “se ao menos eu tivesse um irmão em vez de Clara!” (CP, p .120)
A primeira vez que fala da irmã, a chama de desengonçada, chata e diz que ela parece
se contorcer feito cobra. Imagem nada agradável para apresentá -la, porém, perfeitamente
corriqueira. Várias vezes diz que ela não presta atenção em nada , é atolada e idiota, ainda por
cima fala com seus bonecos, o que João não suporta. Por ser menor, Clara por vezes “rouba” a
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cena e João ainda tem de cuidar dela, “Clara é maluca e não serve mesmo para nada!” (CP, p.
67) Acha seus brinquedos imundos e inúteis, queria jogá-los no lixo, mas também, “tive
vontade de me deitar ao lado de Clara, mas fiquei com medo que ela acordasse.” (CP, p. 75)
Sente vontade de brincar com o tio e brincava de “voar” correndo no jardim da casa da avó.
histórias para a irmã, inventa out ras, conta a do Conde Drácula e diante de tanto medo da
pequena, depois tenta agradá -la. É mais velho que a irmã, porém ainda é um menino...
É cruel com Clara, mas pensa em defendê -la sempre, ele faz uso da arte de representar,
em lugar da realidade, para prote-la. Quando a mãe e Francisco brigavam, dizia para a
menina que estavam ensaiando, se exercitando, para ela não ligar e nem ir ver, para não
atrapalhar o ensaio. Como no filme italiano La vita è bella”, realizado e representado por
Roberto Benigni, onde o personagem principal camufla os horrores do campo de concentração
nazista para o seu filho, lhe dizendo que é tudo uma brincadeira, um jogo, lhe ensinando que a
vida é bela de forma tão poética, não deixando que achasse a guerra real.
Diante de um episódio inusitado a encontram sobre o túmulo do avô: um dia, minha
irmã sumiu, procuramos por toda a casa. Fomos achá -la caída em cima da sepultura de vovô.
Mamãe correu gritando, eu atrás. Vovó tentava nos acompanhar, e a gata rodava perdida.
Clara, olhos virados para o céu, brancos.” (CP, p. 20) A irmã estava passando mal e ele diz
que “Clara parecia uma boneca de pano carregada pra e pra cá; fizeram uma série de
exames nela.” (CP, p. 21) Enquanto ela brinca com bonecas e bonecos, ele cola figurinh a no
álbum de super-herói. Mas pode achar que ela se parece com a boneca que carrega pra cima e
pra baixo.
Clara tinha uma boneca, a artista das nuvens, que ela dizia estar morta. Era a boneca
que sempre dava a resposta para as coisas que ela não sabia: “C lara conversava com a artista
das nuvens, a que conhece as sombras e adivinha o que está para acontecer... disse essa
idiotice.” (CP, p. 33/34) Ele o os bonecos da mesma forma que ela, enquanto a relação
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dela é de agir como se eles tivessem vida també m, João os como panos sujos e
desnecessários. A imagem que faz dela como uma boneca de pano, é a mesma que a
fazendo com seus bonecos, carregando -os de um lado para o outro.
Além da boneca artista das nuvens, que ela descreve como morta, certa vez acha que
Gargalhada também pode ter morrido:
Clara quis conversar. Parei rapidamente para ouvir; era sobre Gargalhada. Disse que ela não tinha dado
um sorriso, achava que se engasgara de rir, podia estar morta também, como a artista das nuvens. Ela
estava preocupada. Zezinho tentava conversar com ela, mas ela não ria mais.
O que você acha, João?
Vê se me esquece, Clara! (CP, p. 31)
A boneca Gargalhada é filha do boneco Zezinho: Nasceu dele, ligada pelo cordão
de ouro, ele teve de dar uma dentada pra cortar. Aí, Gargalhada começou a rir sem parar, ela
ri o tempo todo, Zezinho acha que ela vai ficar cansada.” (CP, p. 19) Por serem pai e filha, a
menina pediu à empregada que costurasse os dois juntos: depois, Clara pediu que ela
costurasse um no outro, já que eram pai e filha. Mas Rosilda, que era também ruim de costura,
pregou Gargalhada atravessada sobre Zezinho, igual a uma cruz.” (CP, p. 35) A Gargalhada é
uma boneca, filha de Zezinho. Clara se refere a ela no feminino, exceto uma vez quando:
Clara acordou dizendo que queria ser menino. Mamãe olhou em silêncio para ela, e Francisco, dando
um tapa na coxa, soltou a gargalhada. A artista das nuvens tinha virado homem, Clara disse. Levando
minha irmã pela mão, as duas sumiram para o quarto. Clara c horamingava repetindo que queria ser
homem e mamãe dizia que ela teria bebês, os homens não teriam... Clara começou a gritar que tinha
filhos, e mamãe continuava dizendo: Clarinha, Clarinha... Estávamos na sala, Francisco e eu, e ele me
encarava com um risinho ruim. Eu não podia entrar no quarto, então fui pegar uma revistinha.
Sua irmã sabe das coisas, não é, Pistolinha?
Olhei para ele e não respondi. Voltamos a ouvir o grito de Clara.
Mas eu quero!
Apareceu emburrada, braços cruzados, e mamãe s orria atrás dela.
Vou pedir à artista das nuvens para ela me virar homem, se ela for chata como mamãe, vou falar com
Gargalhada, e se ele também não quiser, vou despregar ele de Zezinho e falar que ele não vai mais ser
filho do pai porque o boneco...
Perdeu-se falando. (CP, p. 142/ 143)
A homossexualidade aparece nos bonecos da menina e em seu desejo, talvez, como
reflexo da opção sexual da sua tia -avó Catarina. Primeiro ela diz que a boneca virou homem e
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ela quer que a mesma coisa lhe aconteça. Sua e tenta convencê-la do contrário, o que não
acontece. A menina então se refere a boneca Gargalhada como ele, não sabemos se por
confusão ou por achar que como a artista das nuvens, Gargalhada também havia virado
homem.
A tia Catarina é declaradamente homos sexual e ninguém oculta isso:
Mamãe e vovó conversavam sobre tia Catarina, que largou o marido e embarcou para a Palestina.
Queria morar na guerra, vovó disse, sempre gostou de coisas perigosas. Acabou se apaixonando por
uma guerrilheira. Os pais a deserd aram, vovó contava, e ela nunca mais soube da irmã que vivia no
meio dos tiros. Clara, conversando com suas bonecas, perguntou se podia casar com mulher, mamãe
respondeu que sim.
Então vou casar com mamãe! e riu seu riso burro. (CP, p. 33)
Por ter ouvido falar que a tia-ase casara com uma mulher, a menina questiona, pois
provavelmente sua convivência era com casais heterossexuais. Catarina, jornalista,
correspondente de guerra, foi atingida por um tiro, mudou seu nome para Laila, por freqüentar
uma determinada religião e declaradamente preferia mulheres a homens, isto é o que sabemos
dela. A sua configuração familiar é diferente das que Clara conhecia.
Voltando à Clara, certa vez a menina vai a uma festa de aniversário e quando retorna
seu irmão reafirma a idéia que ela não faz nada direito:
Quando mamãe voltou, Clara tinha brigadeiro até nos cabelos. Um nojo! Mandei que ela fosse se ver.
Como adora se olhar no espelho, correu. Voltou de mãos molhadas, não sei por que Clara não enxuga as
mãos! Não faz nada direito! Veio me contar que Patricinha ganhou um urso que fala de verdade.
É sim, João! Você acha que estou mentindo?
Tenho certeza.
Ele conversou comigo...
Tudo fala com você, Clara, o que não quer dizer que converse.
Hein?
o é inteligente. (CP, p. 28)
Por ele ter passado por essa fase da infância de falar com os brinquedos, acha que a
irmã mente ao dizer que fala com eles e os ouve. Apesar de estarem ambos na infância, as
fases são diferentes, as idades são diferentes e pelo fato de ele ser menino e ter o imaginário
repleto de heróis, acha uma besteira o monte de bonecos sujos que a irmã leva para baixo e
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para cima. As categorias de gênero se encontram, portanto, presentes na construção das
personagens. Os brinquedos e brincadeiras infantis nos são assim apresentados por João: o
que ele acha e o que a irmã faz. Abre -se, assim, uma perspectiva dupla, em que o ato é
encapado pelo discurso avaliativo do menino. Entretanto, ele também faz uso da imaginação
no que diz respeito a Francisco. Segundo Raquel Zumbano Altman:
No fim do século XIX, pequenas indústrias começam a se estabelecer também no Brasil e o objeto -
brinquedo-mercadoria passa a fazer parte do universo infantil. Surgem os carrinhos de madeira, as
bonecas de materiais cada vez mais sofisticados, os trenzinhos de metal, objetos de consumo que
despertam na criança o sentimento de posse, o desejo de ter, dificultando o prazer de inventar, construir.
É um mundo de fantasia e a criança mergulha nele, atraída pela beleza , pelos mecanismos, pelo insólito.
Mas não deixa de ser criança e, sempre, quando não tem brinquedo, ela há de criá -lo, nem que seja só na
sua imaginação.
9
Ainda a respeito dos brinquedos Philippe Ariès nos diz que:
Existe, portanto, em torno dos brinq uedos da primeira infância e de suas origens, uma certa margem de
ambigüidade. Essa ambigüidade começava a se dissipar na época em que me coloquei no início deste
capítulo, ou seja, em torno dos anos 1600: a especialização infantil dos brinquedos estava então
consumada, com algumas diferenças de detalhe com relação ao nosso uso atual: assim, como
observamos a propósito de Luís XIII, a boneca não se destinava apenas às meninas. Os meninos
também brincavam com elas. Dentro dos limites da primeira infância, a discriminação moderna entre
meninas e meninos era menos nítida: ambos os sexos usavam o mesmo traje, o mesmo vestido. É
possível que exista uma relação entre a especialização infantil dos brinquedos e a importância da
primeira infância no sentimento rev elado pela iconografia e pelo traje a partir do fim da Idade Média. A
infância tornava-se o repositório dos cost umes abandonados pelos adultos.
10
Acreditamos que a criação fará sempre uso da imaginação e de seu poder de fantasiar,
possuindo ou não brinqu edos industrializados ou artesanais. Para João, os papéis são
claramente marcados: ele menino, Clara menina. Os seus brinquedos e os da irmã são vistos
através de focos cristalizados socialmente. Entretanto, a visão de Clara é a mesma das
meninas Luciana e Leninha, narradoras dos outros dois romances. Vemos João brincando com
a irmã somente quando ele conta -lhe histórias. Brincadeira na qual ele se diverte, pois
nunca perde a chance de assustá -la:
9
DEL PRIORE, M. (2006) p. 253/254
10
ARIÈS, P. (1981) p. 91/92
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Olha lá, heim... Depois você fica gritando...
Veio se encostando em mim.
Não, pode contar, conta!...
E apertou a boneca em seu colo.
Está bem. A velha que o morria tinha uma filha de oitenta anos, que também não morria, e ela
contou que não morriam, ela e a mãe, porque eram amigas da dama de copas.
Clara é apaixonada pela dama de copas. Eu prefiro a de espadas.
A dama é muito fechada, uma vezinha se desembaralhou e deu conversa para elas. Então, disse
para a velha que ela tinha muito a ensinar. Mas ela podia ensinar através de gestos, porque a voz ela
tinha perdido quando fez cem anos. Depois de pensar bastante, a velha que não morria resolveu aceitar.
Quando se ouvia seu assovio, era sinal de que estava pronta para receber os alunos. Acontece que,
quando as crianças não aprendiam, ela as cha mava para perto e as enforcava. Foi assim que três
meninas morreram...
Clara soltou um berro. Berrei também dizendo que não iria contar mais porcaria nenhuma.
A cama de Clara amanheceu toda mijada. Mamãe perguntou o que eu tinha feito.
Eu? (CP, p.24)
Ele usa e abusa do seu poder de assus -la. Clara, atraída pelo medo e pelo gosto de
ouvir histórias, pede para que ele as conte sempre. João, com requintes de crueldade, conta as
histórias de terror em que as vítimas são meninas, o que a deixa apavorad a, a ponto de fazer
xixi na cama. Chega a refletir: “acho que Clara gosta de sentir medo.” (CP, p. 32) O interdito
causa repulsa e atração, fascinação. Na maioria das vezes que lhe conta histórias, Clara fica
apavorada e com muito medo, e ele conclui: e a bandida, babenta, choraminguenta,
enroscou-se no colo de mamãe sem dizer uma palavra. Nunca mais vou contar história pra
essa mariquinha de bosta!” (CP, p. 33) Mas, mesmo que a princípio relute em lhe contar
histórias, acabará cedendo.
Ele sempre diz que a irmã não faz nada direito e que não as coisas que poderão
ajudá-lo, chegando a compará -la à gata: “Clara e Catinha rodavam cegas pela casa.” (CP, p.
28) A gata, sabemos que não enxerga, mas para ele, a irmã nunca o que acontece à sua
volta. Ela ainda chupa chupeta e brinca com seus bonecos que falam, ouvem, choram.
Também canta a música infantil “Escravos de Jó” e é acometida de catapora. Além de
Zezinho, Gargalhada e a artista das nuvens, ela também possui Mania, Nuvinha, a filha da
artista, e o boneco Giravoz, que não vê como brinquedo, pois ele é o responsável por carregar
as palavras de um lado para o outro. Para o irmão ela estava “munida de bonecos”, pronta
para a guerra, que munição não lhe faltava. Somente a paixão por Francisco, “Clar a está
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completamente apaixonada, deixou aseus bonecos de lado” (CP, p. 45), faz com que ela
esqueça um pouco os bonecos.
Ela gosta de palavras: toda vez que ouve uma palavra nova ri e a repete várias vezes,
no entanto, é ótima para encerrar conversas, t erminar com os assuntos. Além das histórias que
pede ao irmão para contar, faz menção a história infantil de Chapeuzinho Vermelho, via
histórias no tapete da sala, era chegada a empregadas, segundo seu irmão, mas as empregadas
lhe dedicavam uma atenção que não davam ao menino. A menina sempre atraía para si a
atenção e o carinho, mas também retribuía, João, apenas sentia ciúmes. Ao final da narrativa
ela, agora crescida, aparece no cartão -postal com o namorado.
A família é muito importante para João e para a narrativa, tudo começa com o fim do
casamento de seus pais, uma mudança significativa em seu núcleo familiar: “tudo começou no
dia em que mamãe disse que iria se separar de papai. Gritava, correndo pela casa e jogando
roupas dentro da mala, que não seria mais infeliz.” (CP, p. 7) É bom ressaltar que a família
que João narra é a família materna: a avó, a tia -avó Catarina, a tia professora de inglês com
seus namorados, as priminhas gêmeas, o tio Vicentinho e a namorada Esplêndida, a mãe com
o namorado Chico, o pai, a irmã Clara e ele próprio. tecemos um pouco da visão que ele
tem da irmã e da tia -avó Catarina, vejamos agora o restante da família. A tia e a mãe dele
possuem empregadas, a avó tem o jardineiro Manoel que cuida do seu cartão -postal,
pressupomos, então, que possuem certo poder aquisitivo.
A família se reúne em datas comemorativas: Dia das Mães, Natal, Ano Novo,
aniversário da avó, estão sempre juntos. O que não foi sempre assim, no começo, João
demonstra o desejo de conhecer o tio, que só conhe cia por foto:
Minha avó tem também outro filho, Vicente Vicentinho , que eu nunca tinha visto. Volta e meia
falavam dele. Dizem que é forte e perturbado, faz vosofrer muito e chorar à beça. Ela tem uma foto
dele em cima da cômoda no quarto. Vicenti nho é dinamitador. Implode casas, pontes, edifícios, parece
que foi assim que se ac almou, vendo as coisas irem pelos ares, desabando, destruídas. Contam que
nessa hora ri muito, de satisfação. Vovó comentou que antes de escolher a profissão ele gritava com
todo mundo, batia nas pessoas, rebentava o que via pela frente. Titia diz que ele é feito de muito ódio:
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hate. Mamãe diz que o irmão é um animal. Eu não digo nada porque o conheç o de retrato. (CP, p.
12/13)
Quando criança, Vicentinho tampou as narin as da mãe de João com pasta de dentes,
ela acordou sem conseguir respirar. De temperamento explosivo, não por acaso é dinamitador,
espanca até a própria mãe. Quando João o conhece, gosta muito do tio e este lhe presenteia
com balas, mas dias depois acha qu e o tio estava com “olhar de bandido”. Desregrado,
marginalizado, agressivo, pôs fogo na casa da futura namorada, ameaça a mãe e a gata cega,
assusta e atormenta, o menino acha horrível sua família ser maltratada pelo tio que diz querer
o que é dele. Picha o cartão-postal, arranca todas as folhinhas da árvore e chega amarrar a
futura namorada numa árvore: “Vicentinho amarrara uma moça no tronco de uma árvore. Um
vizinho a encontrou, esturricada. Acha que ela deve ter passado a tarde inteira assim, exposta
ao sol.” (CP, p. 80) Logo depois entupiu a casa da moça de flores, tantas eram que ela
precisou pedir ajuda ao corpo de bombeiros para sair de casa.
Na noite de Natal, presenteia a família com sua nudez:
Vicentinho continuou em , no centro da sala. Nesse momento, pediu que olhássemos para ele; queria
dar seu presente porque teria de sair cedo. O presente estava coberto, diante de nós, mas mostraria, em
todo seu esplendor, ele disse.
O que de mais belo tenho a oferecer aos v ossos olhos é a minha nudez. Devagarinho, começou a se
despir.
(...)
Minha nudez é de uma beleza extraordinária e a poucos, infelizmente, foi dado -la. Mas a vocês,
que pertencem à minha árvore, pendurados como folhinhas ao vento, irei mostrar...
(...)
Vicentinho, então, com rapi dez extraordinária, abaixou a calça e mostrou -se de frente e de costas. Tudo
se passou em segundos. (CP, p. 92/ 93)
Presentear a família com a própria nudez na noite de Natal, é no mínimo, algo bastante
extravagante e fora do comum. Dono de atitudes insens atas, Vicentinho namora a Esplêndida,
que é muda, e ele tem ainda um amigo bêbado que vive ao seu lado. Para defender o sobrinho,
briga com Chico Danger, acaba levando a pior e se vê como um herói, pois é assim que assina
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os bilhetes que manda para o João e assim também o menino o vê, como um herói capaz de
enfrentar seu pior inimigo, o namorado da mãe.
Se o tio é essa explosão em pessoa, a tia não é menos excêntrica: se comunica em
inglês com sua família, fala português só quando não tem outro jeito. O noivo, Horácio, sumiu
em um avião, desde então, ela fez um altar com suas lembranças e “logo em seguida ao
desaparecimento do noivo, titia passou a comprar passarinhos e gaiolas, alimentava -os
durante o dia e, quando a noite chegava, abria a portinhola e s oltava os bichinhos. Dizem que
colocava, nas patinhas, bilhetes para o avião.” (CP, p. 12) Como tentativa de contato, fazia
como os nossos ancestrais, que se utilizavam dos pombos -correio.
Até que arranja um novo namorado: Horácio, que logo a troca por ou tra e também vai
embora. E a tia volta ao “santuário” de Eurico. Salva pela ngua inglesa, como ela mesmo
diz, embarca para uma viagem ao exterior. Ao retornar, vem grávida de um homem casado
que não a acompanha. De acordo com João, as primas, gêmeas, são horríveis:
Titia ficou tão nervosa por causa de Vicentinho que teve gêmeas. Duas franguinhas peladas, horríveis!
Não dava para saber qual a mais feia, eram iguais. Até Clara não disse nada, não voltou a olhar para
elas. Mamãe passou de leve a o na cabe ça das sobrinhas. Vovó era a única, depois de titia, que
achava as crianças umas gracinhas; c horava de felicidade, dizendo, “d eus seja louvado” o tempo todo.
(CP, p. 94/95)
Segundo o menino, até sua irmã calou -se e não elogiou as crianças, que eram
realmente feias. Elas receberam os nomes de Claire e Blackie, nomes de conotação clara e
escura, como o dia e a noite, o encoberto e o revelado. Como o professor, pai das gêmeas, não
se separou da família para ficar com ela, a tia de João arranja um novo namorad o: Oldeu, que
era muito velho, Clara chega a perguntar se não é melhor colocá -lo junto a seu avô. Ex -
combatente, já esteve na guerra, não podia ouvir um mínimo ruído que se jogava ao chão.
Eurico, o noivo desaparecido, retorna e a tia lhe apresenta Oldeu como seu pai. Oldeu
falece e é enterrado no jardim do cartão -postal, ficando ela com Eurico.
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A avó de João mora no cartão -postal com a gatinha Catinha : “Catarina mora com
vovó, que numa tarde fria a encontrou miando perdida no jardim e a recolheu. Vovó a c hama
de Catinha, e ela é cega. Tudo que não presta e os outros não querem vovó põe dentro de casa,
por bondade, mas também para não comprometer sua paisagem.” (CP, p. 8) O cuidado da avó
também é redobrado, para não implicar de maneira nenhuma, o lugar ond e mora. Ouve a mãe
e a tia de João, teme o filho Vicentinho e acaricia os que choram. Possui a aparência frágil,
pequenininha, parece uma azeitona, de acordo com o neto, e sempre rezava: “vovó sabia de
tudo e rezava, noite e dia, em frente à fotografia de Vicentinho.” (CP, p. 55) Como se o filho
fosse uma espécie de santo, criou um altar onde pôs sua fotografia e rezava ali. Até que um
dia, fazendo promessa para a filha engravidar, o altar pegou fogo e o seu “sagrado” foi
destruído. Sempre cuidava da sua ca sa e dos seus com carinho e atenção.
Do pai do menino pouco sabemos, não temos nenhum registro de sua família paterna.
A primeira imagem que temos dele é: “meu pai estava sentado na poltrona da sala, imóvel,
com o jornal caído no colo. (...) Atravessei a s ala enviesado, sem conseguir me despedir de
papai. Ele ficou para trás com olhos nos procurando.” (CP, p.7) A mãe o chamava de Vera.
Para o menino o mundo paterno era calmo e tranqüilo, bem diferente do mundo materno: “do
hospital, papai se despediu, deve ter voltado para sua poltrona, seu lugar de sossego e paz.”
(CP, p. 22)
Sabemos ainda que:
Papai é ótimo para essas coisas porque é o que gosta de fazer: salvar pessoas. Desde o casamento com
mamãe ele tenta montar um serviço de atendimento para os que p assam mal em motel. Durante o
caminho, falava, empolgado, nas máscaras individuais descartáveis. Contava com o apoio de uma
artista plástica para a confecção. Teria condições de oferecer assistência imediata cercada de todo sigilo
possível. O trabalho era relativamente simples, ele disse. Consistia em ficar dentro de uma van, do lado
de fora do motel: ele, uma maca e um enfermeiro. Assim que alguém precisasse de socorro, ele seria
acionado. Mas, para que seu plano viesse a se concretizar, seria necessári a uma licença especial, que
nunca saía. (CP, p. 42/ 43)
74
A mãe do menino nunca entendeu esse tipo de serviço: Vera não consegue fazer o
negócio porque quer ficar secando a trepada dos outros! dizia mamãe para Francisco.” (CP,
p. 43)
Os dois pontos cruciais na rede de relacionamento de João são: Clara, com quem
começamos a tecer a rede, e a mãe, de quem falaremos agora. Ao falarmos na mãe do menino,
vamos também ponderar sobre seu namorado, o grande perigo que ameaçava João.
O pai dele, refugiado num l ugar de paz, é diferente da mãe, que em tudo parecia atuar:
gritando, gesticulando. Ela se esforça para ter um ótimo desempenho físico, é dublê:
Um domingo pela manhã, papai ligou para avisar que mamãe tinha filmagem. Mamãe é dublê, papai diz
assim, titia diz figurante ou então extra ( ela pronuncia ecstra). Vovó diz que mamãe é artista, e ela se
diz atriz. Faz as cenas que as atrizes m medo de fazer, é uma atleta do cinema e da tevê. Para estar
sempre preparada, corre, anda de bicicleta, faz musculação, dança e faz boxe. Funciona sem interrupção
e, quando não está se exe rcitando, salta e soqueia o ar. (CP, p. 10/ 11)
No mundo em que vivemos a idéia de real, de verdade é muito peculiar: o que é
verdadeiro e realidade para uma pessoa pode não ser para outr a. Cada pessoa tem seus
conceitos de verdade e realidade que melhor lhe aprazem. Mas um fato é característico e une a
mãe e o pai de João: a idéia do falso, as máscaras. Ele, precisa das máscaras descartáveis para
esconder a identidade de seus clientes, a máscara serve como disfarce para o real, para
preservar a pessoa que estará sob ela. Para a mãe do menino o falso está diretamente
relacionado com sua profissão: faz dublagens para filmes e comerciais. O fake, a
representação pode até ser ela mesma: o meni no nos conta que ela sempre briga gesticulando,
fazendo caretas, mímicas, gritando e chorando. Atuando? Representando? Personagens e atriz
podem ser/estar híbridos.
João afirma que a mãe “entrava em turbulência”. Essa agitação, desordem, estará
sempre associada a ela. Encontraremos ainda, do campo aeronáutico, o desejo do menino de
ser piloto e voar como Eurico, namorado da tia, que entra em um avião e desaparece. A mãe é
descrita como uma pessoa forte, praticante de exercícios físicos e amante do perigo, u ma vez
75
que trabalha explorando o risco, no limite entre a vida e a morte. Em contraste com pai,
descrito como uma pessoa imóvel, que gosta de paz e sossego e que escolhe como profissão
salvar as pessoas, ao invés de se arriscar. Pai e mãe são paradoxais: e le, que deveria estar em
associação com o perigo, de acordo com a figura que imaginamos de pai -herói, é reservado e
sossegado, ela, é explosiva, agitada e vive se arriscando em cenas perigosas, diferente das
tradicionais mães que conhecemos.
Ela é autoritária e não gostava de manter conversas desnecessárias com crianças:
Mamãe não respondeu. Não continuei a falar porque ela não gosta de encompridar conversa com
criança, mandou que eu fosse estudar. Mamãe mandava em mim, em Clara (mas nela tinha mesmo de
mandar), em vovó, Catinha e até no meu pai. não mandava em titia. Quando tinha suas
preocupações, ela emudecia ou então conversava com a amiga que havia escolhido. Era a vez de Ali ce,
ficavam horas no telefone. (CP, p. 27)
De acordo com ele, somente a irmã precisava de ordens, uma vez que ela não fazia
nada direito. Nele, não era necessário mandar. Mas a mãe autoritária mandava em quase
todos. Corajosa, impetuosa, essa era sua mãe. Dona de poucas palavras e muito riso.
Ele, como irmão mais velho, tinha de cuidar de sua irmã, que todos protegiam e a mãe
via como uma boneca: “o que está acontecendo com a minha bonequinha? Levantou Clara do
chão, beijando-a. Apertando os braços em volta do pescoço de mamãe, a merdinha da minha
irmã disse que eu havia dito que vovó tinha morrido. Vou morar com meu pai!” (CP, p. 36)
Ciúme: sentimento que assola os personagens dessa trama, principalmente João.
A chegada do namorado da mãe, Chico Danger, vai desestabilizar a vida do menino, e
fará com que sua mãe não seja mais dona de suas palavras, pois saía e não dizia quando
voltaria para casa. Ele o descreve assim:
Um homem cor de fogo, nunca tinha visto um rabo -de-cavalo vermelho... Trazia uma mochila nas
costas, argola dourada na orelha e um dente de ouro atrás quando ri a. Usava também pulseiras enroladas
umas sobre as outras, feito cobra se enroscando em seu braço, e, no outro, uma tatuagem de águia.
Tinha cara de quem veio de outro lugar.
(...)
Me sentei perto de Francisco. Sob a camisa desabotoada, dava para ver os ca belos vermelhos do peito;
perguntei se também fazia cenas perigosas.
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Claro, garotão! Quando querem alguém para brigar na rua, rolar no chão, ser atropelado... se lembram
logo do Chico Danger aqui, meu nome artístico... disse, estendendo a mão para mim. As veias grossas
do seu braço movimentara m-se, e a águia esticou o bico. (CP, p. 37)
O perigo se apresenta: o homem que lhe amedronta com a possibilidade de roubar sua
mãe. Como todo menino, João, sente ciúmes da mãe com o pai, aqui, o pai não ameaça, o
prenúncio de perigo é Francisco, o homem de cabelos vermelhos. O Complexo de Édipo é
vivenciado por ele: o ciúme que sente pela mãe só será amenizado quando passar por esta fase
edipiana.
Depois da separação entre os pais, moraram um pouco no cartão -postal e logo fomos
morar numa casa de máquinas. Ninguém queria aquele lugar com o barulhão que fazia, como
se fosse avião. Fantástico. Mamãe tinha cada idéia infernal!” (CP, p. 23) Quando Francisco
chega o barulho da casa aumenta:
Francisco está praticamente morando conosco, faz mais barulho que a casa de máquinas; exercícios
dentro de casa acompanhados de golpes e gritos, canta, pula, imita ser baleado... e, às vezes, o grito
de Tarzan. Clara está completamente apaixonada, deixou até seus bonecos de lado. Quando mamãe não
está, Rosilda tenta acompanhar Francisco quando ele canta. É completamente desafinada. Mamãe ri de
tudo que ele diz e faz. Impressionante como as pessoas po dem mudar. (CP, p. 45/ 46)
Barulhento, “cara de quem vai arrebentar o primeiro que aparecer”, Francisco, alvo do
medo de João, faz Clara se apaixonar por ele. Com a menina, o Complexo de Édipo acontece
de forma invertida de João ela se apaixona pela figura do namorado da e, uma vez que é
a referência masculina mais próxima que tem.
Como faz a mãe de João, que por vezes age como se estivesse atuando, assim faz
Francisco: “no restaurante, enquanto comíamos, eu vi Francisco passando ao longe, entre as
mesas, mas não avisei mamãe. Estava de capa de chuva e óculos escuros. Disfarçado de
Vicentinho.” (CP, p. 59) O disfarce, as mímicas, a representação, se atrelam à pessoa, atores e
personagens por vezes se confundem. Os papéis familiares, que tradicionalmente
conhecemos, podem se mesclar: Francisco se disfarça de Vicentinho, a mãe de João a ge de
maneira explosiva e impetuosa, já o pai é mais sossegado.
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O ciúme que sente pela mãe é tanto que o menino chega a sonhar que ela está
representando um morto e Chico a rouba no caixão. Começa a misturar as sinopses dos filmes
que atuarão com a realida de: acha que ele vai roubar sua mãe e matá -los, ora pensa que
matará a mãe também, Chico dissemina pânico:
Rosilda também o gostava mais de Francisco. Danger tinha espalhado o terror pela casa; bandidos
fazem assim. Mas mamãe continuava sorrindo de tudo o que ele falava e fazia.
(...)
Comigo e com Clara ele não brinca mais, está sempre prestando atenção em mamãe, principalmente
quando atende o telefone. Quem é? Quem é?, fica perguntando, e mamãe diz com uma vozinha que não
é a dela: ciumento!...
Não vê o risco que está correndo? Minha família corre perigo. E elas não percebem, continuam
conversando, rindo e cantando. Com uma bomba ambulante dentro de casa. (CP, p. 84/85)
O desespero de João aumenta à medida que o tempo passa: ninguém é capaz de ver o
risco que Francisco representa, segundo afirma. Ele podia espalhar o terror, Rosilda podia não
gostar mais dele, mas nada era feito para que isso mudasse. Sua mãe e Clara continuavam
apaixonadas pelo perigo... Afinal de contas o perigo nos atrai.
Quando a mãe disse que formariam uma família, ela, Francisco, Clara e João, ele não
gosta. Acha que Chico segue o manual dos bandidos. Se achando ameaçado, pede ajuda ao
tio, que, numa briga com Francisco fica todo machucado.
Somente quando essa fase passa, João conse gue olhá-lo o como rival, mas como
parceiro, cúmplice.
3.4 A vida e a arte
A narrativa é repleta de referências cinematográficas, o por acaso a mãe de João e
seu namorado são dublês. A vida imita a arte ou a arte imita a vida? A representação é um d os
principais medos do menino. Segundo Barthes, em O prazer do texto, a linguagem fere ou
seduz e João é seduzido pelo medo de perder a mãe através de “ameaças” que chegam via
sínteses de dublagens. A referência inicial ao mundo cinematográfico ocorre quan do a casa
78
balança pela primeira vez e a ade João o faz deitar no chão, como num filme de guerra. A
primeira cena que sua mãe grava é no interior de um avião e leva ele e a irmã para a figuração
também.
Ela faz cenas saltando de ra -quedas, de sexo, canoagem, no interior de uma gruta,
rola de uma escadaria, queda de cavalo, entre várias outras. Chico também atua com a
namorada e em outras filmagens, vai para o pólo norte, escala o Himalaia, vive um pirata,
filma brigas, etc. Principalmente morre de c mes do ator Jeffrey Cold. A sinopse da
filmagem que ela grava com Jeffrey, diz em meio a outras coisas, que são observados por
homicida.
A mãe de João também dubla mãos, pés, partes”. Ele diz a Rosilda que o público
conhece sua mãe, mas por partes, não na totalidade: “mamãe não é conhecida do público, mas
suas pernas, braços, boca e o resto...” (CP, p. 111). Ser pedaço, estar isolado, não ser inteiro.
O humano também é apresentado de forma destacada, estilhaçada, fragmentada, pós -
moderna.
João se desespera com os papeizinhos que começa a encontrar:
Quando voltamos, mamãe ainda o havia chegado. Será que Francisco tinha raptado minha mãe?
Havia um papel em sua mesa -de-cabeceira no qual estava escrito: Profissão: assassino. Missão:
executar uma artista com dois filhos. Desfecho: atraído pela vítima, decide fazer picadinho dela.
Rosilda parou de varrer e perguntou por que eu estava branco . Por que minha mãe não volta?? (CP, p.
73/74)
A imaginação e o medo fazem com que acredite na possibilidade real de pe rigo. É a
partir do cinematográfico, da ilusão, que ele teme que os medos possam virar realidade. E a
seqüência de filmagens com histórias, agora, que assustam João ao invés de Clara,
prosseguem: Ao investigar uma série de crimes misteriosos, pacato ins trutor hospeda-se
em hotel de beira de estrada, administrado por desequilibrado que ameaça dar seqüência aos
seus crimes, inclusive enforcando os filhos da namorada.” (CP, p. 141) Ou ainda:
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Bandidão e bela comparsa são perseguidos pela polícia e por cri minosos, depois que ele foge
do xilindró.” (CP, p. 150)
E o tormento do menino só aumenta, Francisco é visto como bandido, monstro, diabo:
Voltamos de novo para o inferno. O diabo nos esperava e, assim que passei por ele, voltou a me dar um
tapa nas costas sem despregar os olhos da minha cara. Mamãe, feliz com sua vida de atriz, disse que
pintaria o set na manhã seguinte no papel de uma mãe. Contou o enredo:
Após ter problemas com a família quando criança , ex-transexual tenta ajudar amigo que parece
passar pelo mesmo conflito. A mãe tem um namorado violento que, dando vazão à sua perversidade,
pode acabar prejudicando o garoto.”
Francisco deu um risinho me olhando de lado. (CP, p. 155/ 156)
No aniversário de Francisco, João não saiu de seu quarto:
o apareci na hora dos parabéns, apesar de mamãe ter ido me avisar. Assistia a um filme no qual um
homem com dupla personalidade enforcava dois inocentes, um rapaz e sua irmã. Clara apareceu no
quarto, lambuzada, lambendo os dedos, dizendo que a artista iria cantar. Mandei que fosse embora
senão ia levar uns tapas. Ouvi o riso das pessoas, quando ela disse que eu iria bater nela. Pouco depois,
Francisco apareceu no quarto, calça brilhante e camisa com dragões estampados.
Deixa de sacanagem, Pistolinha, vem comer um pedaço de bolo!
Balancei a cabeça e fiquei vendo o cara do filme ora sendo bonzinho, ora enfo rcando as pessoas,
devagarinho. (CP, p. 174/ 175)
Cada vez mais o menino se sentia em apuros e achava que a arte prenunciava o que
iria acontecer na vida real:
Mamãe não parava mais de trabalhar. Falava sobre o tema do seu próximo filme.
– “Um bandido inicia um difícil relacionamento com uma artista. O resultado: bebê.”
Clara abriu o berreiro dizendo que o quer ia que mamãe tivesse bebê. Em seguida, jogo u todos os
bonecos no chão, depois, esperneando, atirou -se também ao chão, cobrindo-se com eles. (CP, p.
177/178)
Dessa vez, até a pequena Clara associou ficção com realidade e chorou dizendo que
não queria que a mãe tivesse um bebê. O último enredo de fi lme que aterroriza o menino lhe é
entregue por Francisco:
Francisco deixou sobre a minha cama uma folha escri ta com a história que iriam film ar.
Acho que você vai gostar! exclamou e piscou seu olho bandido. – “Clone de viking decide investigar
morte de garoto cujo corpo foi encontrado na lata de lixo.”
Méia perguntou se eu não iria me levantar. Eu continuava com o papel na mão e ela me pediu para ler.
Legal... seu Deinger vai fazer papel de quê?
Danger mente, tortura, às vezes, mata.” (CP, p. 184)
80
Para o menino, é uma espécie de confissão do que Francisco pretende realizar.
Francisco e sua mãe viviam brigando por ciúmes, dela ou dele, mas sempre continuavam bem.
E, por ele ter perguntado ao menino se ele sentia medo dele, João cada vez mais
permanecia com medo e se sentindo só. As configurações familiares mudaram com o passar
do tempo. Se antes o menino sentia ciúmes da mãe por causa do pai, o problema agora parece
aumentar, o ciúme vem com uma figura masculina que não é o pai, o namorado da mãe fa z o
risco crescer. A própria tia -avó do menino forma uma família homossexual, o que estaria fora
dos padrões familiares tradicionais de até pouco tempo, mas que, hoje em dia, as sociedades
vêm repensando. Entretanto, depois desse último enredo -ameaça, ocorre uma passagem de
tempo no último capítulo e João muda de postura com a idade.
Ainda falando dos filmes e filmagens, é forte a ênfase na língua inglesa na narrativa.
Talvez pela influência cinematográfica norte -americana, os filmes de Hollywood alcançam
um público vasto e o influencia. Desde a amiga de infância da mãe de João, Anie Bobe; os
diretores Lionel Blind, Bernard Patif e John Dead; a atriz Lina Blef; o galã Jeffrey Cold; Mr.
Bill Boquet, o pai das gêmeas; Doris Scarfe, sua esposa, ambos declaradam ente estrangeiros;
Mr. David Lost, o fotógrafo; sem esquecermos da tia de João que não falava mais a língua
portuguesa, quando não havia outro jeito, e que batizou as filhas de Claire e Blackie; além
de Francisco, que adotou o nome artístico de Chico Da nger. No princípio o estrangeiro
poderia afastar, como um abismo, era um código a ser decifrado, hoje faz parte do cotidiano e
nem o percebemos. As informações nos chegam rápido: internet, e-mails, celulares, sites de
relacionamentos virtuais, o mundo da world wide web.
O tom humorístico dos nomes e sobrenomes estrangeiros (Patif, Blef, Cold, Danger)
pode, para alguns, como o João, se tornar uma grande ironia. Afinal de contas o perigo, para
ele, mora em casa.
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3.5 Sexualidade
O sexo, a sexualidade, a se nsualidade são explorados na atriz, mãe de João, o que ele,
enquanto menino, não entende e não gosta:
Mamãe tinha de filmar outra cena de risco. Quando perguntei, respondeu:
Trepada.
(Trepada!?)
O corpo da atriz deve estar uma merda!
(...) de repente, ouviu-se: luz!, câmera!, ação!, e todo o cenário se iluminou. Arrancando o robe e só de
calcinhas, peitos pulando, mamãe caiu em cima do ator e eles se embolaram. Atracados, os dois rolavam
de um lado ao outro da cama enquanto o diretor gritava: tesão , mais tesão... A língua dele empinada,
feito cobra enfeitiçada, lambia a cara de minha mãe, e entrando em sua boca se perdeu por entre seus
dentes de trás. Cansado, enjoado e com vontade de mijar, ouvi o diretor voltar a gritar: corta! corta!
valeu!
Mamãe saiu por um lado da cama e o ator pelo outro. Levantaram -se pido, sem se despedirem. Corri
para o banheiro, e depois de uma baita mijada, vomitei . (CP, p. 40/41/42)
Cena que o deixou “sem a menor paciência pra mulher.” Para ele, o ato de vomitar
expressa exatamente o que sentiu: a repulsa por ver um homem tocando sua mãe em cena tão
íntima, mesmo que não tenha entendido o significado da palavra trepada, entendeu e não
gostou da cena que viu escondido pela fresta da porta. Outra referência ao sexo é o fato do pai
querer socorrer as pessoas que passam mal em motéis.
Os barulhos que a mãe e Francisco faziam no quarto também mexiam com o menino:
Galopa, meu bem, galopa!
Clara e eu estávamos deitados, sem sono, com olhos no teto. Ouvi sua voz:
Mamãe está andando a cavalo, João?
Coloquei o travesseiro em cima da cabeça e apertei os olhos . (CP, p. 97)
No entanto, desde o início da narrativa, o menino brinca com seu corpo: “mexia no
meu peru pra cima e pra baixo, quando, de repente, Clara entrou no quarto e sumiu. Escutei
sua voz vinda de fora: Mamãe, olha o que João está fazendo! Um dia ainda acabo com a
raça de minha irmã!” (CP, p. 18) Um menino do colégio também contou que sua empregada
vivia fazendo chapéus para seu peru, o que deixava João irritado.
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Uma manhã, Francisco amanhece bufando e a mãe do menino dizendo que aquilo
acontecia. Pressupomos que ele falhou na hora da relação sexual, e por isso estava tão
irritadiço. Enquanto João “descobria” o sexo:
De repente, meu peru ficou duro na minha mão... Comecei a esfregá -lo para cima e para baixo, cada vez
mais depressa, quando ouvi a gargalhada de Francisco e ele na minha frente.
É isso aí, garoto!...
O peru sumiu na minha mão, depois, veio a confusão, como se o quarto se torcesse, as lu zes
rodopiassem, e eu não tivesse mais mãos. Acordei com mamãe me perguntando por que eu estava com
as calças arriadas. Clara tam bém veio me espiar. Empurrei -a me levantando, sem saber o que dizer, mas
vi no olho de mamãe um brilho diferente. (CP, p. 132)
Desde então Francisco passa a tratá -lo por Pistolinha, fazendo alusão ao seu peru. O
menino, que antes brincava com seu órgão sexual, não é tão menino assim. Descobre o
prazer, a masturbação. No último capítulo do livro, a passagem de tempo e nítid a, assim como
aconteceu com a menina Luciana, de Quarto de menina, agora João não é mais criança e
nem está no começo da adolescência : “saíram todos. Com os ventos soprando a meu favor, fui
esquentar as turbinas, entrar em velocidade máxima, da pista ao s céus! Em alguns segundos,
por volta de vinte e três (andava em torneios) acertaria as modelos nuas nas revistas; precoces
ofertas das minhas sementes.” (CP, p. 187)
Se, ao iniciar a narrativa, o menino João sonhava ser piloto e voar, os vôos que faz
agora são outros. Esquenta suas turbinas e em seguida explode, explosão metafórica de
prazer. E o medo do Chico Danger desaparece, de rivais, se tornam parceiros:
Bateram na porta. Era o Chico, dizendo que chegara a hora de conhecer as mulheres.
O carro rodava em direção ao meu primeiro intercurso físico, como Chico dizia. Durante o caminho,
dando tapas no meu ombro, ele ria repetindo que tinha chegado o grande dia. Na rua, ventava, meu
galho tremia mais do que o das árvores quando paramos em frente a um préd io enorme, com uma
portaria movimentada, não muito distante de casa. Metendo a mão no bolso, Francisco retirou algumas
notas que me entregou e, me empurrando para fora do carro, disse que estaria me esperando no cartão -
postal, caso eu ainda tivesse forças.
Apoiada na maçaneta, uma mulher morena, saia curta e colante, atendeu à porta me olhando de alto a
baixo. Sorriu, e perguntou se era a minha primeira vez. Antes de eu gaguejar uma resposta, ela me
mostrou uma porta, e encolheu -se para me deixar passar. Um abajur perto da janela iluminava o
minúsculo quarto. Mal entramos, ela despiu -se rapidamente, deitou -se e puxou-me para o seu corpo;
trêmulo e suado, deslizei em suas mãos mornas e desmoronei sobre seus cabelos esparramados na cama.
Suas unhas traçaram rotas de vôos nas minhas co stas. Arrepiado, as pernas, os braços, o peito, ingressei
numa espécie de turbulência onde tudo girava dilatando -se infinitamente. Desordenado, larguei -me de
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mim, e mergulhei num gel movediço galopando desordenadamente um céu subte rrâneo. Vindo de
longe, um grito ecoou na minha garganta e, em trancos, desprendi uma massa compacta que explodiu
em jatos se espalhando pelas membranas do espaço. (CP, p. 187/ 188)
Os vôos do menino agora são outros: as rotas do sexo e do prazer sexual se tornam
conhecidas para ele. O perigo, Chico Danger, se torna o parceiro que o leva para alçar esses
novos vôos. Embora essa prática, hoje em dia, seja menos comum, pois a primeira vez de um
rapaz, que antes acontecia com profissionais”, acontece agora co m suas namoradas. João
inaugura uma nova fase em sua vida, não é mais um menino e sim um homem. Veremos,
em A palavra que veio do Sul , Maria Helena, a Leninha, passar por essa experiência de
descobrir o sexo com o namorado.
84
4 A PALAVRA QUE VEIO DO SUL
Este é o último romance da tríade que escolhemos para analisar. Em A palavra que
veio do Sul, publicado em 2004, Maria Helena, a Leninha, será a protagonista/narradora da
história, apesar de sua mãe Helena ser a pessoa que e spera por uma palavra vinda dos pampas
gaúchos, no Sul do país. A mãe da menina aguarda ansiosa por uma palavra, um e-mail
especial do menino, o namorado virtual que tem. O que talvez contrarie um pouco nossa
expectativa, já que podemos conjeturar que a na rradora esperasse pela palavra.
Ela, Leninha, como a Luciana e o João dos romances anteriores, também é filha de
pais separados. Mora com sua mãe, uma astróloga, que busca direção nos astros para sua vida
e as de seus clientes. Acompanhando a tecnologia d a vida pós-moderna, sua mãe namora “um
menino”, por e-mail, e aguarda sempre uma palavra dele em sua caixa de mensagens. O pai,
Edilberto, é casado pela segunda vez com Miriam, uma mulher rica que não gosta de crianças,
não mora nem com seus três filhos e esconde a mãe por ser velha, ela teme muito a velhice.
Família nuclear fragmentada: pai para um lado, mãe para o outro, Leninha no meio do
litígio do casal e a vida segue com a rapidez das palavras vindas pela internet. A menina
mantém um forte vínculo co m seu Wanderley, homem curioso, escritor de obituários para
jornais, cliente de Helena e quem a menina compara a um cachorro. A família homossexual
será representada por Marisa e sua namorada Felícia, o que tempos atrás não era sequer
cogitado, hoje é a dmitido pela sociedade. Em Cartão-Postal a tia-avó do menino João
representa a homossexualidade. Não é nossa intenção defender ou condenar, os fatos serão
abordados tal qual aparecem no romance, sem conotação de aprovação ou condenação. Nosso
foco principal não são as relações/opções sexuais, por isso esse tema não será aprofundado.
As descobertas de Leninha ante ao seu crescimento impulsionam a narrativa sobre a
qual nos debruçaremos agora.
85
4.1 A Palavra: de vida e de morte
Começaremos, então, com a palavra e falaremos do seu poder de vida e de morte na
narrativa. Roland Barthes nos fala um pouco sobre a palavra, a linguagem:
Marcar bem os imaginários da linguagem , a saber: a palavra como unidade singular, mônada gica; a
fala como instrumento ou expressão d o pensamento; a escritura como transliteração da fala; a frase
como medida lógica, fechada; a própria carência ou a recusa de linguagem como força primária,
espontânea, pragmática. O imaginário da ciência (a ciência como imaginário) toma a seu cargo todos
esses artefatos: a lingüística enuncia de fato a verdade sobre a linguagem, mas, somente nisto: “que
nenhuma ilusão consciente é cometida”: ora é a própria definição do imaginário: a inconsciência do
inconsciente.
11
O título do romance traz esse termo: pa lavra, que Helena, mãe da menina Helena
Maria, aguarda ansiosa. A astróloga, profissão de Helena, consulta os mapas astrais, mas é do
mapa geográfico do Brasil, mais precisamente do Sul, dos pampas gaúchos, que anseia por
uma palavra, uma mensagem. Palavra esta que lhe alimenta a alma de esperanças e vida.
Mantém um relacionamento virtual com um rapaz, a quem chama de menino, e dele espera a
palavra... Em tempos tecnológicos avançados, a sonhada palavra chegará por e-mail, diante da
velocidade da vida pós -moderna.
Não temos uma data que marque a narrativa, mas alguns signos nos são sutilmente
apresentados e nos dão a indicação de fins do século XX, começo do século XXI: Leninha vê
do seu apartamento uma carrocinha de sorvetes da Kibon, toma Nescau no café da manhã, vai
para a escola na condução escolar, a empregada portuguesa da casa de Miriam vai sempre ao
dentista por estar encantada com as câmeras da sala de espera e pelo fato de se vê na televisão
depois, a ade Leninha não quer que a sua mãe a mande pa ra a Disney, apesar de Helena
nem ter cogitado essa hipótese e o indício que elegemos como mais impactante: a violência
que ronda nosso dia-a-dia:
11
BARTHES, R. (2006) p. 41/42
86
E vovó alertou a mamãe sobre esse entra -e-sai de pessoas que ela não conhecia; sem contar que ela
podia de uma hora para outra estar na frente de um perigoso assassino falando do Sol e das estrelas.
Hoje em dia as balas vêm de todos os lados, virou um pandemônio geral. É preciso criat ividade para
viver nesta cidade
12
Além das plásticas ostentadas por Miriam e p ela avó materna da menina. A única data
apresentada é através de um recorte de jornal que fala da descoberta, em 1978, da lua de
Plutão batizada de Caronte. A localização espacial nos é apresentada: trata -se de uma história
vivida no Rio de Janeiro: Helena sempre acompanha o serviço de meteorologia que prevê as
tempestades que vêm do Sul e desabam no Rio de Janeiro. Sabemos ainda que Edilberto, pai
da menina, e sua nova mulher Miriam, junto com Leninha, freqüentam uma fazenda na serra e
passam pela Avenida Brasil. Temos ciência também que a menina mora perto da praia, como
veremos adiante.
Leninha diz que sua e não gosta de conversas e que gosta de ouvir o som do
silêncio, imagem paradoxal que ela não entende. E mesmo dizendo não gostar de conversas,
sua mãe passa o dia apreensiva esperando uma palavra no computador. A palavra escrita
também marca presença no dicionário e no livro de astrologia que ela consulta. Ela escuta o
silêncio e a solidão quando fala com o menino ao telefone e diz que ele tem “o sil êncio de
Netuno”. Curioso o fato de ela esperar por uma palavra de uma pessoa que possui o silêncio.
Indício da vida pós-moderna, onde cada vez mais, a comunicação entre as pessoas é mínima e
por vezes acontece virtualmente. Inúmeras pessoas não conhece m mais as pessoas que
moram ao seu redor, o contato com o mundo exterior é feito através de máquinas: telefones,
celulares, e-mails e até por sites de relacionamento, o que deveria ser um facilitador na
comunicação interpessoal, acaba isolando cada vez mai s os indivíduos. O que faz com que as
palavras acabem matando: a falta de palavras mata a convivência, a relação entre as pessoas.
12
GARCIA-ROZA, L. (2004) p. 127 Todas as citações serão baseadas na 1ª edição de A palavra que veio do
Sul, publicada pela Record, ano 2004, conforme explicitado na bibliografia em anexo.
87
Seu Wanderley, cliente de Helena, amigo dela e de Leninha, é autor de “palavras que
conduzirão as pessoas mortas aos céus”, e scritor de obituários, escreve palavras doces e
carinhosas para os que já se foram. Procura por emprego na cidade grande, que, no interior
onde morava, as pessoas não sabiam ler, elas ouviam a música das palavras, e, assim, ele
sempre tinha clientes.
É com a ajuda de seu Wanderley que Leninha escreve um e-mail para o menino,
avisando que sua mãe fará aniversário e pedindo que ele mande palavras de presente:
Corre, seu Wanderley! Corre! Escreve um e -mail aqui para o menino enquanto mamãe não acorda.
Anda, vem!
Sentamos os dois diante do computador, dividindo a cadeira, mais para o seu Wanderley e menos para
mim. Seu Wanderley tem uma bunda enorme, muito maior do que a minha. Olhando para o teclado, ele
disse que estávamos com sorte, mamãe tinha esqueci do o computador ligado na internet.
Eu olho pra porta pra ver se ela vem e o senhor escreve o que eu digo, ? Querido menino. Eu digo
querido, seu Wanderley?
Não. Menino está bom.
Só?
Só.
Então escreve: Menino, minha mãe faz aniversário na seman a que vem, no dia 10. Os números estão
aqui, seu Wanderley. Nessa parte de cima.
Estou vendo.
O que eu disse, seu Wanderley?
Que sua mãe faz aniversário no dia 10...
Então diz que é pra ele não esquecer de mandar um e -mail cheio de palavras. Depois põe meu nome.
Leninha. O senhor vai mandar agora? Manda, seu Wanderley!
Estou mandando. Agora temos que apagar. Pronto.
Apagou?
Pra sua mãe não ver. Mas ele vai receber a mensagem. Vamos levantar, daqui a pouco ela vem. (PS, p.
99/100)
Através da intervenção de Leninha, sua mãe recebe uma mensagem que lhe enche de
alegria:
Helena!
Hoje é o teu dia!
Parabéns! Muitas Felicidades!
Vão daqui os votos de uma festa
bonita, alegre e cheia de gente!
Grande abraço. (PS, p. 116)
88
São as palavras, as poucas palavras, que enchem a vida de Helena: “antes de saírem,
mamãe chamou Lila para ver a palavra que veio do Sul.” (PS, p. 117). A menina também
escreve as palavras para seu Wanderley descansar quando ele morre:
As estrelas não param de piscar, avisando que um cachorro está chegando, rebolando e abanando o
rabo. A lua, reluzindo no mar, mudou de quarto e ofereceu seu colo para o meu Rex descansar.
De sua dona, com muitas lágrimas.
Leninha. (PS, p. 133)
Abordaremos mais profundamente a relação de Leninha e s eu Wanderley adiante. Ela
ainda escreve um bilhete pedindo desculpas à sua mãe por ter saído de casa sozinha, quando
sai escondido para fazer a tatuagem.
A avó materna de Leninha usa palavras em língua inglesa e diz que é para descansar:
“– My God! De vez em quando eu preciso falar em outra língua para ver se descanso um
pouco...” (PS, p. 149) Como se, ao fazer uso de uma língua estrangeira, pudesse sair um
pouco do seu mundo real, pudesse descansar de sua vida, sua realidade e conseqüentemente
de seus problemas. Como faz a tia de João, do romance analisado anteriormente.
Nos jogos de pôquer, vistos pela menina na fazenda que freqüenta com a madrasta e o
pai, as pessoas também não falam enquanto jogam. Poupam as palavras.
Iniciaremos a abordagem da palavra q ue mata, literalmente, fazendo menção ao Centro
de Tratamento Intensivo (CTI) dos hospitais: “mamãe ligou para Marisa mas não conseguiu
falar porque ela estava de plantão no CTI, e, desligando, contou que nesse lugar não se pode
dar um pio senão quem está ao lado morre instantaneamente.” (PS, p. 148) A força e o poder
destruidor das palavras ficam registrados como se literalmente a palavra fosse a arma utilizada
para dar fim à vida das pessoas. Também por relato semelhante feito por Miriam a Edilberto:
Edilberto, presta atenção: eu soube de um filho que matou o pai. Falando. Ouviu bem o que eu disse?
Falando, Edilberto! O pai estava deitado na cama e o rapaz, em pé, falava. O pai dizia que estava se
sentindo mal, com falta de ar, e o filho continuou, até que o homem virou os olhos para o alto e pum!
Morreu. Morreu, Edilberto! Você pode o acreditar, mas é a pura , cristalina e líquida verdade. (PS, p.
213)
89
A palavra se apresenta como a arma do crime: ela é a responsável pela morte. A
palavra que mata. Mes mo que a morte não seja real, a palavra também pode matar sonhos,
matar pouco a pouco a vida, a esperança:
Fala a verdade, Lila, não me engane votambém... Ele nunca mais vai escrever, o é? Nunca mais.
As palavras dele vinham do fundo do Guaíba dire to para o meu coração, sabia? E agora, nada! Ele o
vai se recuperar daquele beijo, Lila, tenho certeza... Por que é que eu fui fazer aquilo? (PS, p. 192)
Somente por ter mandando um beijo em uma mensagem eletrônica, Helena se lastima,
suas raríssimas palavras vindas do Sul podem se extinguir por causa disso. As palavras ou a
ausência delas, desempenharam grande importância. Para Barthes:
Em suma, a palavra pode ser erótica sob duas condições opostas, ambas excessivas: se for repetida a
todo transe, ou ao contrário se for inesperada, suculenta por sua novidade (em certos textos, palavras
que brilham, são aparições distrativas, incongruentes pouco importa que sejam pedantes; (...) Nos dois
casos, é a mesma física de fruição, o sulco, a inscrição, a ncope: o que é cavado, batido ou o que
explode, detona.
13
A palavra esperada por Helena é essa palavra erótica, que apesar de aguardada, é
contraditoriamente inesperada, é o brilho que, devido a força da linguagem, detona, explode.
4.2 Nos laços de família
Segundo Miriam, atual mulher de Edilberto, por isso madrasta de Leninha, a família
da menina é destrambelhada: “nesse instante, Miriam levantou -se anunciando que iria
embora. Da própria casa. Uma família destrambelhada invadira seus domínios.” (PS, p. 162)
Ela resume família a “gasto, desgaste e desgosto”. A família da menina, Miriam percebe
como desajustada, desordenada. A regularidade que deveria existir, segundo os preceitos dela,
não existe. A família nuclear da menina é estilhaçada: ela mora com a mãe, o pai contraiu
novas núpcias com Miriam, que por sua vez, teve vários maridos e o mora com seus três
13
BARTHES, R. (2006) p. 51/52
90
filhos, que moram com o pai. A avó materna, Lila que é prima de sua mãe, a amiga Marisa e
alguns clientes freqüentam a casa. Seu Wanderley é o client e mais amigo, especialmente da
menina, por quem nutre grande afeição. Sem esquecermos a empregada Rosa Fernanda, da
casa materna, e os empregados da casa paterna, que são muitos. De Jonathan e Rico falaremos
posteriormente. Matilde, manequim com que Leninh a brinca durante a infância, é sua
“boneca” preferida e mesmo sendo um manequim, adquire um significado muito
importante para ela.
Os pais brigam pela posse e guarda dela e através disso, percebemos a visão paterna
sobre a casa materna. Um oficial de ju stiça vai à casa de Helena e:
Quando ele foi embora, mamãe arriou no sofá, e apertou o elástico do rabo -de-cavalo com tanta força
que ele rebentou e o cabelo dela caiu todo na cara. Quando pôde falar disse que era da parte de papai.
Dizia que sua filha pe quena morava com uma mãe desequilibrada, numa casa freqüentada por um velho
inadimplente, uma homossexual, vários incautos que consultavam os astros e uma empregada
alcoólatra. E parece que também pairava um menino, que ninguém via, mas isso devia fazer parte do
precário estado mental da dona da casa. Em vista desse ambiente, inteiramente impróprio e inadequado
à criação de uma menina, ele vinh a solicitar sua guarda e posse. (PS, p. 35/36)
Leninha diz que “a vida do meu pai é igual à da novela.” (PS, p. 21) Vida numa
mansão, cheia de empregados, conforto, luxo e piscina... Helena a casa do ex -marido
diferente da filha: “toda vez que vai à casa dos centauros, a mulher dele joga Leninha na
piscina. Gostam de exercícios violentos... Sagitarianos, os louc os.” (PS, p. 22) A avó cogita
em compartilhar com as idéias do ex -genro: talvez seu pai tenha razão nas coisas que alegou
para ficar com você. Essa casa de Helena é muito mal freqüentada. Não é à toa que não venho
aqui. Me poupo de assistir a certas coisa s, infames, a meu ver.” (PS, p. 126) E em meio a esse
fogo cruzado fica a menina...
Na casa paterna, ela ouve os ruídos produzidos durante o sexo, mas acreditamos que
ela ainda não entende o que é, devido a pouca idade e pelo fato de não comentar, apenas
narrar o acontecido:
91
Vem voar, meu anjo, vem!.. encostei o ouvido na porta do quarto deles. Aqui, monta no seu corcel
até alçar vôo, minha águia imperial! Miriam ria. Enlaça essas pernas plumosas na minha cintura que
eu quero rodá-la antes de -la se desprender de mim no seu vôo rumo às estrelas.
Em seguida veio um silêncio e depois meu pai começou a gritar úúúúú..., e Miriam gar galhava feito
bruxa quando ouvi gente na cozinha. Fui para o alto da escada e escutei os empregados dizendo que a
menina devia estar ouvindo aquela baixaria. Antes que me vissem voltei par a o quarto, e custei a
dormir. (PS, p. 21/22)
Fato que aconteceu várias vezes. Ela também não entende a mãe namorar um menino
no computador e sair com um “Tarzan”:
À noite, mamãe veio m e dar um beijo, dizendo que ia ao cinema com Tarzan e voltava em seguida.
Tarzan?
É, o Tarzan da cidade, ela disse; enfrenta outros animais. o entendi. (...) Nesse momento o telefone
tocou e mamãe atendeu; o início eu não escutei, mas depois ouvi quand o ela disse, baixo, para Lila, que
precisava trepar, senão era capaz de matar o meu pai. (PS, p. 69)
Ela não entende o apelido Tarzan, fazendo analogia com alguém que “trepa”. Bem, até
o sexo ser uma experiência para ela, ainda abordaremos outros temas. O homossexualismo
não aparece de forma dissimulada, é claro e explícito, tendo em Marisa seu principal
protagonista. Desde o começo sabemos que “Marisa estuda medicina e quer namorar minha
mãe, mas mamãe não quer porque tem um namorado dentro do computador. (PS, p. 10) A
pequena se surpreende ao constatar: “chiii, Marisa beijou a boca da minha mãe!” (PS, p. 12) E
é da boca da própria Marisa que ouvimos: É um saco gostar de mulher!” (PS, p. 15) Não
esconde de ninguém suas preferências: E essa quem é? perguntou vovó. A
homossexual! respondeu Marisa.” (PS, p. 129) Até que um dia finalmente Marisa encontra
uma namorada:
Antes do jantar a campainha bateu, e Marisa, que havia muito tempo não aparecia, chegou com uma
novidade. Uma moça. Soubemos depois que era sua namorada. Felícia era bonitinha, loirinha, e sofria
de pânico. Síndrome do pânico, Marisa corrigiu. Esperei para ouvir o que era. Marisa tomou a palavra e
contou que tinha conhecido Felícia em dia de trânsito engarrafado, sentada em cima do ca do carro
porque sentia falta de ar.
Salvei a gatinha! comentou, rindo. (PS, p. 168)
Temos a nova composição familiar que vem sendo aceita pela sociedade, algumas
vezes apenas tolerada, mas não entraremos nessa discussão por não ser nosso foco princ ipal, e
92
além disso, nos deparamos com uma doença da vida pós -moderna: a síndrome do pânico.
Cada vez mais as pessoas se isolam, têm medo de sair, de se expor, de outras pessoas...
Das mãos do seu Wanderley surgem as palavras de um anúncio também homossexua l,
cuja pessoa que fez a encomenda prefere manter o anonimato, talvez por não se assumir
perante a sociedade como um homossexual ou quem sabe para o sofrer discriminações
perante a exposição pública:
Acordei com a voz do seu Wanderley:
Nesta sala erma, de cor púrpura, que antecede a partida, um homem se estende à minha frente. À vista
de seu perfil, calmo e contemplativo, paira o espírito de uma criatura profunda, de uma seriedade
absoluta. Quão árduas foram suas lutas! De joelhos trêmulos, dobro -me diante de tal envergadura. Seu
cupidíssimo amante.
Epa! Marisa disse.
Quem te encomendou esse anúncio, Wanderley? mamãe perguntou.
Um senhor. Pediu para não ser identificado.
Hummm... (PS, p. 33)
Da boca de Marisa ecoam palavras que farão alusão ao homossexualismo entre
animais: Até os animais copulam com os do mesmo sexo... Outro dia, uns pesquisadores
consideraram imoral o relacionamento sexual entre elefantes. Um elefante não pode gostar de
outro, hein, o que você acha disso?” (PS, p. 27) A homossexualidade não é um tema velado,
permeia toda a narrativa com Marisa, Felícia, o anúncio encomendado ao seu Wanderley, os
animais...
Uma outra preocupação da vida pós -moderna apontada no romance é com a juventude,
o não querer envelhecer: “vovó tel efonou pedindo que mamãe passasse lá, ela não poderia vir
ao aniversário porque estava em plena muda. Fizera mais uma intervenção ligeira e o médico
tinha exigido repouso. Mamãe comentou que vovó rejuvelhecia a olhos vistos.” (PS, p. 116)
A observação de Helena é sarcástica: a mãe rejuvelhecia, ao invés de rejuvenescer. Se a avó
de Leninha faz intervenções cirúrgicas para não envelhecer, Miriam também “está sempre
ocupada com seu rosto, seu corpo e seu cabelo. Com seu processo de rejuvenescimento, ela
diz.” (PS, p. 41) E, além disso, esconde sua mãe, para esconder a velhice: “ Quem é madame
93
Oliveira? Pois é a mãe da dona da casa, da senhora Miriam, a menina o sabe? Ela o
deseja que pessoa alguma a possa ver, pois encontra -se em adiantado estado de vel hice.” (PS,
p. 62) A preocupação com a juventude assola a sociedade atual. Muitos fazem inúmeras
cirurgias para conservar a juventude, temem a velhice e usam das mais avançadas técnicas da
medicina para se livrar dela. Isso se encontra muito bem representa do nas personagens da avó
de Leninha e principalmente de Miriam, que chega a ponto de esconder a própria mãe que
está velha, para que não vejam a velhice e principalmente para que ela própria o veja a
velhice. Ela teme a velhice, e assim, teme ver sua e velha, como o reflexo de um espelho a
lembrando sempre que ficará da mesma forma um dia. De acordo com Beatriz Sarlo:
O mundo dos objetos se expandiu e continuará a expandir -se. Até poucas décadas, o que se podia
comprar e vender tinha uma materialid ade exterior que excepcionalmente entrava na intimidade de
nossos corpos. Hoje, não existe um território onde o mercado, com sua imponente maré generalizadora,
não esteja abrindo suas lojas. Sonham -se objetos que transformarão nossos corpos, e este é o sonho
mais feliz e aterrorizante. O desejo, não tendo encontrado um objeto que o satisfaça nem ao menos
transitoriamente, encontrou na construção de objetos a partir do próprio corpo o non plus ultra onde se
reúnem dois mitos: beleza e juventude. Numa c orrida contra o tempo, o mercado propõe uma ficção
consoladora: a velhice pode ser adiada e possivelmente o agora, mas talvez em breve para sempre
vencida.
14
A visão sobre filhos nessas famílias é bastante negativa: para Miriam crianças
incomodam, é coisa de pobre. Sabemos que ela engravida do Edilberto, faz um escândalo e
sem muitas explicações um dia Leninha conta para a sua mãe que o bebê de Miriam tinha
morrido. Ainda diz que a menina estragou seu casamento:
Nossa vida acabou, Edilberto. Acabo u. Não tem mais vôo noturno, viagem rumo às estrelas, sua águia
se perdeu nas brumas da montanha. Espatifou o bico no pico de uma delas. Danou -se. Não disse que
filho caga a vida da gente? Não avisei? Eu falei, Edilberto... Fico impressionada como uma meni na,
uma única filha tenha arrasado um casamento. Imagina se os meus três filhos estivessem aqui... Hein,
Edilberto? O que você me diz? (PS, p. 176)
A avó da menina também diz que filho “não era coisa para se ter”. A mãe dela decide
levá-la ao ginecologista para “evitar sustos futuros, surpresas desagradáveis, preocupações
eternas. Filhos, faltou dizer.” (PS, p. 203) Mesmo amando sua filha, com essa observação,
14
SARLO, B. (2000) p. 30/31
94
supomos que ela só queira ser avó muito mais tarde. Nesse romance Leninha é praticamente a
única representante do mundo infantil. Às vezes menciona os amigos da escola e uma
garotinha que sempre vê nos corredores de seu prédio, como se fosse um reflexo dela própria.
Os filhos de Miriam são maiores e ela não narra nenhum encontro entre eles. Sabemos que um
se chama Rafael, só. Jonathan também é mais velho que ela. Com os filhos de Lila e a filha de
uma das clientes de sua e, mantém um contato discreto. Somente com a chegada de Rico e
a entrada dela na adolescência é que o quadro muda.
É falando de sua mãe que Leninha principia a narrativa:
Mamãe estava deitada no chão da sala, venda nos olhos, imóvel. Ao seu lado, eu colava no vestido cada
pedacinho que recortava da revista de história em quadrinhos. Sem se mexer, mamãe comentou que eu
tinha me tornado estilista a partir de um trauma. Perguntei o que era trauma, e ela respondeu que er a um
choque infernal. (PS, p. 7)
Mãe que estuda os astros, astrologia, não gosta de conversa e que aguarda ansiosa por
uma palavra do namorado virtual, mesmo saindo co m o “Tarzan”. Este é o perfil de Helena. A
magia, o sobrenatural, se apresenta na narrativa a partir da astrologia. Segundo Philippe Ariès:
O conhecimento da natureza limita -se então ao estudo das relações que comandam os fenômenos
através de uma mesma ca sualidade um conhecimento que prevê, mas que o modifica. Não meio
de fugir a essa casualidade, exceto através da magia ou do milagre. Uma mesma lei rigorosa rege ao
mesmo tempo o movimento dos planetas, o ciclo vegetativo das estações, as relações e ntre os
elementos, o corpo humano e seus humores, e o destino do homem: assim, a astrologia permite
conhecer as incidências pessoais desse determinismo universal. Ainda em meados do século XVII, a
prática da astrologia era bastante difundida para que Moliè re, esse espírito cético, a tomasse por alvo de
suas caçoadas em Les amantes Magnifiques .
15
A astrologia permite conhecer, para quem assim o crê, mas não permite mudar os
destinos. Os astros revelam o futuro mas não permitem alterá -lo. E é com os astros qu e essa
mulher trabalha: faz mapas astrais dos clientes. Vive calculando o movimento dos astros, que
diz influenciar a vida das pessoas. Os signos do zodíaco, os nomes dos planetas (batizados
15
ARIÈS, P. (1981) p. 35
95
com nomes de deuses romanos), são os elementos do maravilhoso, po demos assim dizer, que
irão freqüentar as páginas do romance.
Um outro ponto também é marcado através de Helena: o mundo real e o mundo
virtual:
Pouco depois mamãe apareceu na sala. Foi direto ligar o computador para ver se havia mensagem. Faz
isso o dia inteiro. Pelo jeito de desligá -lo achei que não, ninguém tinha escrito.
A triste realidade dos que têm de viver fora da tela! ela disse enquanto se aproximav a, e depois,
olhando para mim: Apresente a sua face , mais iluminada, minha luazinha... (PS, p. 15)
Além de consultar os astros, Helena também consulta o computador, suas mensagens
eletrônicas, o dia inteiro! Talvez ela não tenha se dado conta, mas o astro rei da sua vida é o
computador. Consulta uma numeróloga, Maria das Mercês, e ouve previsões otimistas:
possibilidade de uma grande paixão. Se agarra a essas palavras e cada vez mais cultiva a
necessidade de manter contato com o menino. E assim que a numeróloga vai embora, Helena
vai consultar o computador...
Conta para a prima Lila que está “na morando” virtualmente:
É verdade que você está namorando no computador?
Meia verdade.
Quem é?
Ah, não posso dizer, Lila. A família poder vir a saber, e você sabe como o essas coisas... É melhor
não falar , até porque deve ter uma muçurana do lad o.
(...)
Como foi que começou?
Foi um e-mail que seguiu enganado, na época em que eu estava organizando o grupo de estudo. ,
não sei por quê, comecei a escrever para ele, e ele respondeu, po r isso, continuo... (PS, p. 32/ 33)
O relacionamento virtual começou meio sem querer, por engano... Mas a espera por
palavras desse menino, que detém o silêncio, fomenta a vida dela. Somente por Leninha
consegue se esquecer temporariamente dele, mediante a possibilidade de perder a posse e
guarda da menina. Para Zy gmunt Bauman o relacionamento virtual pode:
Terminar quando se deseje instantaneamente, sem confusão, sem avaliação de perdas e sem remorsos
é a principal vantagem do namoro pela internet. Reduzir riscos e, simultaneamente, evitar a perda de
opções é o que restou de escolha racional num mundo de oportunidades fluidas, valores cambiantes e
96
regras instáveis. E o namoro pela internet, ao contrário da incômoda negociação de compromissos
mútuos, se ajusta perfeitamente (ou quase) aos novos padrões de escolh a racional.
16
Se a “facilidade” aparece por um lado, o afastamento e a solidão chegam por outro.
Nas relações s-modernas os indivíduos estão cada vez mais isolados, embora por vezes
estejam juntos. Além das mensagens, o dia que recebe do menino um cd fi cou numa alegria
incontida:
Mamãe estava muito feliz, e não só com a minha chegada. Depois eu soube que ela tinha recebido um
cedê do pampa, quer dizer, do u. Rosa Fernanda contou que eram músicas muito tristes. Que até
ela, Rosa, tinha chorado.
Sua mãe ouviu durante a tarde inteira, chegou a desmarcar cliente. Quando levantou do sofá, a
almofada estava molhada. (PS, p. 67)
Se as palavras virtuais mudam sua vida, seu humor, pois ela fica ansiosa esperando por
palavras do menino e se entristece, se irrita quando as palavras não chegam, diante das
palavras, ou do som, que podem acompanhá -la e ouvir quando quiser, sua alegria se extravasa
em lágrimas. Até a rotina de trabalho é modificada com a interferência do presente ganho. O
presente, para Leninha, veio do céu, tão especial se tornou na vida de sua mãe.
Quando Helena recupera a guarda de sua filha, é como se recuperasse o colorido de
sua vida, metaforicamente ela expressa isso colorindo as paredes da sala para a chegada da
menina. Helena mantém uma grande dependência da internet, ou melhor, de seu amor virtual:
“achei que as coisas não podiam piorar, mas à noite ouvi gritos na sala. O computador havia
quebrado. Nunca tinha escutado mamãe gritar tanto.” (PS, p. 74) Os clientes dela também
mantêm certa dependência do sobrenatural:
Do quarto ouvíamos a vo z de Rosa desmarcando os clientes. Dizia que tinha havido um imprevisto, e
assim que dona Helena pudesse voltaria a entrar em contato. Num dos intervalos o telefone tocou. Era
cliente. São sempre eles q uerendo saber se vão ganhar dinheiro e encontrar o grande amor, mamãe
dizia. Não ligam para as preciosidades cósmicas. Rosa continuou a desmarcar horários, até uma das
clientes não se conformar. Ia se submeter a uma cirurgia e precisava que mamãe desse uma olhadinha
em seus trânsitos. Podiam dar a resposta por telefone, a moça falou. (PS, p. 96)
16
BAUMAN, Z. (2004) p. 85
97
Esse milagre, esse maravilhoso, tem de reger as vidas das pessoas de alguma forma.
Essa cliente, até para fazer uma cirurgia, necessita da “autorização” dos astros , saber qual dia
seria mais favorável. A mãe de Helena é mais cética, e para ela:
Nunca me despreocupei de Helena. A vida dela é uma espécie de corredeira infindável, um
despenhadeiro, a bem dizer, que ela jamais consegue prever, apesar de o tirar os ol hos do mapa.
Mesmo assim, acredita em tudo. Começou com bicho -papão e o parou mais. Qualquer coisa que
inventem e seja inexistente, Helena acredita. O importante para ela é o que não existe. Não esse
menino do computador? Hoje em dia todo mundo namora na tela. Está ao alcance de todos o estrelato
do lar. Mas Helena, coitada, acha que é ela. Enfim, o fato é que não pode ter mais preocupações
porque sua cabeça não comporta. É uma criatura vulnerável a distúrbios. (PS, p. 149)
Para a mãe de Helena, é como se a filha não tivesse superado a infância, parte da
infância, onde a criança crê incondicionalmente no mundo do faz -de-conta, no maravilhoso
apresentado a ela e necessário para seu desenvolvimento. É um confronto entre ceticismo e
crença, seja no que for. Ela acha o relacionamento virtual também algo comum, hoje em dia, e
Helena como algo “sobrenatural”. Ela se torna dependente dessa paixão, desse amor, a
ponto de, num único dia, consultar seu e-mail catorze vezes: “hoje contei quantas vezes
mamãe foi ver se tinha mensagem: catorze.” (PS, p. 103) Ela precisa desse amor que ela
conecta e desconecta quando quer:
Ela resolveu mostrar a Lila o bilhete silencioso que havia mandado para o Sul. Perguntou o que a prima
achava, e Lila disse que não dava par a avaliar porque não o conhecia, mas achava que o importante era
tentar sempre.
Acho que preciso desse não -amor, Lila.
? (PS, p. 107)
Na dependência de uma “amor” virtual, na troca de mensagens silenciosas, o único
assunto que ela sempre perguntava er a sobre a casa do pai de Leninha:
Bem, depois de sacudir o rabo -de-cavalo, ela perguntou como tinha sido lá com o meu pai. Eu não tinha
muito a contar, aliás, tinha, mas mamãe havia me perguntado sobre papai. Na verdade, queria saber
sobre Miriam, as duas adoram ouvir falar mal uma da outra. Mas eu não estava ne m um pouco a fim de
falar dela. (PS, p. 185)
98
A relação de Leninha com Miriam é bem diplomática: crianças incomodam a Miriam,
que não mora nem com seus próprios filhos. Quando a menina vai à cas a do pai, o contato
entre elas é só o necessário. A menina chega a compará -la a uma bruxa:
Quase dormia, quando comecei a ouvir a bruxa gargalhando. Vinha de longe, muito longe. Como
naquela noite, me levantei ante e fui em direção ao quarto deles. A porta estava escancarada e lá
eles não estavam. As gargalhadas continuavam. Segui o som delas. Da janela aberta do corredor vinham
mais fortes; me debrucei no parapeito e vi os dois ao longe no jardim, acho que estavam pelados.
Miriam, deitada em cima d a estátua, pernas para o alto, e papai na frente dela, braços abertos, dizia:
Parla, Miriam! (PS, p. 46)
Como toda boa madrasta, Miriam não podia deixar de ser comparada a uma bruxa. E
se a madrasta é bruxa, a figura do pai não se difere muito da de um ogro:
O carro de papai tem ar -refrigerado, toca-cee vidro preto. Entrei e me sentei ao lado dele e ele
mandou que eu passasse para o banco de trás. Não reclamei porque senão ele torceria as minhas orelhas
até sair sangue. Um dia ele chegou bem perto de mim e olhou bem para elas, mas o anjo da guarda
apareceu e disse: não! E ele não fez nada. (PS, p. 20)
Esse é o primeiro contato que tem com o pai que aparece na narrativa: ela, ainda não
tinha dez anos, pois de acordo com a lei de trânsito vigente, só c rianças com mais de dez anos
podem viajar no banco da frente. O pai, que deveria ser seu herói, na verdade aparece como
um monstro. Ecos e fragmentos de contos de fadas estão ao longo da narrativa, e num deles,
Leninha compara seu pai ao lobo mau:
Nem vi quando seu Wanderley foi embora, brincava com uma boneca despedaçada que guardo debaixo
da cama. Ela ficou desse jeito porque quando papai ainda era casado com mamãe, os dois brigaram,
Shirley estava no meio do caminho, e papai vociferando e soprando at é que a casa veio abaixo
atirou-a longe. Ela bateu com a cabeça na janela e caiu com o corpo no chão. Despedaçou -se e está lá,
num mundo de sombras. Mamãe perguntou em que eu estava pensando. Shirley, respondi.
Quem, Leninha?
A boneca que o papai jog ou longe.
É a raiva de Leão, o ascendente dele. Não tem limites, chuta o que pela frente. Mudando de
assunto, seu Wanderley saiu apressad o mas deixou um beijo pra você. (PS, p. 111/112)
O pai herói e protetor da Luciana, de Quatro de menina, não se parece em nada com o
pai “monstro” de Leninha, que se assemelha mais a figura ameaçadora de Chico Danger,
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padrasto de João e Clara, em Cartão-Postal. Para a menina, as ameaças paternas são
terríveis:
Assim que acabou o almoço perguntei a papai se eu poder ia ver televisão. Concordou. Subi e liguei o
aparelho, mas em seguida desliguei porque me lembr ei do telefone na salinha da parte de cima da casa.
Liguei para mamãe. Ela precisou sair com Tarzan, R osa disse, mas não demoraria.
Para quem você está telefon ando? papai apareceu na minha frente.
Pra minha mãe.
Por que não me falou?
Porque era pra minha mãe.
Da próxima vez, avise.
E fez o olhar do Drácula. (PS, p. 139)
Se para ela a figura do pai é monstruosa, para a mãe ele é o vassalo de Miriam.
Seu Wanderley é a figura masculina por quem ela nutre grande ternura. Não o teme,
afinal “seu Wanderley é muito diferente dos outros clientes que freqüentam a nossa casa;
sempre que chega, me abraça, me beija e brinca comigo.” (PS, p. 15) O tratamento cari nhoso
é recíproco. Fato curioso é a menina compará -lo a um cachorro:
Ao chegar em casa, encontramos seu Wanderley na porta. Muito bom ele estar ali. Melhor ainda se
estivesse deitado. Seu Wanderley parece um cachorro enorme, desses que impedem a passagem. Vou
perguntar se posso chamá -lo de Rex.
Mamãe não ia poder atender seu Wanderley. Estava ainda ruim do sono. Entrou direto para o quarto.
Marisa ficou cuidando dela enquanto seu Wanderley e eu fomos jogar dominó na mesa da sala.
O senhor também tem nam orada no computador, seu Wanderley?
Ele levantou seus olhos de boi dizendo, hein? Apesar de parecer com cachorro, seu Wanderley tem olho
de boi e pestanas de burro. disse a ele, e o seu Wanderley riu. Nem deu tempo de eu esperar a
resposta porque me deu uma vontade horrível de fazer xixi e e u corri para o banheiro. (PS, p. 13)
A explicação da menina é a aparência, por isso o compara a um cachorro. O cão é uma
figura antagônica: para algumas culturas está associado à morte, aos infernos, é o responsável
por guiar o homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida. Os
antigos mexicanos, por exemplo, criavam cachorros especialmente para acompanhar e guiar
os mortos no além. Entretanto, para outras culturas, o animal é benéfico, companhe iro do
homem, vigilante, guardião de sua casa. No caso do seu Wanderley, suas palavras conduziam
os mortos aos céus, o que nos lembra do cão que guiava os mortos. Mas com certeza foi por
seu carinho, dedicação, companheirismo, cuidado e amor à Leninha, que ela o associa a
imagem canina. Comentaremos sobre a forte presença e comparação com tantos animais
depois.
Seu Wanderley é um homem marrom. Mamãe diz que deve ter sido todo o sol que absorveu na infância,
no sertão. Além de marrom, é grande, largo e tem peitos. Mamãe diz que ele é bonito mas maltratado, e
que é avantajado de corpo e de coração. Diz também que é solitário. Incrível não ter voltado a se casar,
com a Lua em Câncer e Vênus em Libra. Comentou apenas isso porque material de c liente não se conta,
ela disse. (PS, p. 15)
É seu Wanderley que aparece jogando com ela, que a ajuda a passar o e-mail para o
menino, quem a leva para tomar sorvete e passear na pracinha: “fomos andando de mãos
dadas, seu Wanderley e eu, e ele estava animado. Seu corpo fazi a movimentos de cachorro
depois do banho. Sacudia -se todo.” (PS, p. 23) Além de carinho e atenção, brincava com ela e
lhe deu um presente:
A campainha tocou. Era o seu Wanderley, com um embrulho que ele me entregou. Um coração macio,
vermelho, de plástico, com um líquido dentro. Pulei no colo dele.
(...)
Rimos juntos, seu Wanderley e eu. Depois ele disse que ia, tinha vindo me entregar o coração.
Nesse momento pulei de novo e me dependurei no pescoço dele. Ele me ajudou a alcançá -lo, me
segurando pela cintura e dando impulso. De vez em quando seu Wanderley e eu brincávamos de árvore.
Ele inclina o pescoço para baixo, eu ponho as mãos ao redor, aí ele fica retinho e diz: se segura,
florzinha, que o vento está forte... E se sacode me balançando de um la do para o outro. Fui pendurada
nele até o elevador, que quando chegou levou a minha árvore.
Uma vez o seu Wanderley deixou que eu pendurasse umas bolas nele, que espalhasse algodão no seu
corpo e o enrolasse com fitas douradas. Nesse dia , brincamos de árvore de Natal. (PS, p. 30/31)
Ele é sem sombra de dúvidas uma pessoa que ocupou um lugar de destaque na vida da
pequena Helena Maria. Ela nos conta momentos divertidos, de alegria, prazer, passeios de
mãos dadas, idas a pracinha, sorvete, brincadeiras exclu sivamente dos dois, como a da árvore
ou do cachorro, jogos de dominó, de cartas... É, talvez, a única pessoa que entra no seu mundo
infantil de faz-de-conta, no seu maravilhoso. A entrega foi intensa, foi literalmente a entrega
do coração, de ambos. Por is so a perda será tão grande. Como nos diz Zygmunt Bauman:
Assim, não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E o se pode aprender a
arte ilusória inexistente, embora ardentemente desejada de evitar suas garras e ficar fora de seu
caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão mas não se tem a mínima idéia de quando
isso acontecerá. Quando acontece r, vai pegar você desprevenido.
17
O amor de Leninha por seu Wanderley, logicamente não é o que ela sentirá por
Jonathan, e que também não poderá evitar. Mas também é amor, e como o amor não se evita,
não podemos evitar a morte que sempre aparece sem ser chamada.
4.3 Nas armadilhas do destino
A morte se apresenta bem no início da narrativa, quando a menina entra no banheir o e
de cara com uma lagartixa morta. Imediatamente corre até seu Wanderley e pede para que
ele escreva algumas palavras para a lagartixa.
Quando decide perguntar ao seu Wanderley por sua família, novamente a morte surge:
Ficamos assistindo televisão, seu Wanderley e eu, sentados no sofá, quando me lembrei de perguntar:
O senhor nunca teve mulher nem filha, seu Wanderley?
Tive... há muito tempo.
E para onde elas foram?
Deus chamou.
Como ele chamou?
Seu Wanderley pigarreou antes de responder:
Elas estavam viajando, quando o ônibus de repente desceu uma ribanceira e parou, e então Deus se
aproximou e pegou minha filha no colo, deu a mão para minha mulher e subiram os três para o céu.
De vez em quando o senhor vai lá?
Não.
Por quê?
Seu Wanderley pôs as pestanas de burro para baixo:
Porque elas morreram.
Morreram? Por que elas morreram?
Ele balançou a cabeça e abriu as palmas das os; me escondi no seu colo para chorar. Quando
melhorou o choro perguntei qual o signo da filha dele. Seu Wanderley não sabia! (PS, p. 26/ 27)
Se para nós, adultos, a morte é cheia de mistérios e surpresas, temos várias questões e
não temos as respostas, para uma criança a explicação e o entendimento se tornam ainda mais
difíceis. Seu Wanderley preferiu dizer q ue Deus tinha levado sua mulher e filha. Helena
prefere outra forma:
17
BAUMAN, Z. (2004), p. 17
O que aconteceu com a vovó?
Mamãe largou o que fazia e se virou para mim.
O que aconteceu com a vovó? O que aconteceu? A bruxa quis levar a vovó!
A bruxa?!
Ela mesma. Foi entrando casa adentro procurando pela vovó em todos os cantos, mas mamãe
escondeu a vovó na caixinha de jóias. A bruxa pensa que é assim? Vai chegando e levando a vovó da
Leninha? Pois está muito enganada!
Terminou de falar me abraçando. (PS, p. 30/ 31)
Mas quando ela chega tão perto, quando ela leva quem nós amamos, não tem
explicação que convença! Tanto faz se quem tiver levado a pessoa foi Deus ou a bruxa, a dor
da perda é incomensurável, incalculável. Ainda temos muito a aprender diante da morte.
Leninha diz que “mamãe sabe conversar com pessoas à beira da morte. No abismo da
desgraça, como ela diz.” (PS, p. 57) Muito embora, conversar com pessoas à beira da morte é
muito diferente de saber lidar com a presença da morte, saber lidar com a perda de alguém.
O dia seguinte ao aniversário de sua mãe, que foi muito feliz pra Leninha, será um dia
marcado pela tristeza da perda:
Acordei no dia seguinte ouvindo cochichos. Mamãe o estava dormindo? Quem seria? Levantei e
encontrei Marisa e mamãe sentadas no sofá da sala , e Rosa encostada na porta da cozinha. Todas tristes.
Quem podia imaginar uma coisa dessas ?, Rosa perguntava.
Mamãe mandou que eu fosse me lavar e viesse tomar café; depois ela queria conversar comigo. Fiz tudo
rápido, e voltei. Tomei café com as três me olhando, mudas. Ao terminar, mamãe pediu que eu me
sentasse ao lado dela, e assim que sentei ela pegou minha mão e olhando nos meus olhos, ouvi sua voz
ao longe:
Leninha, é muito triste o que eu tenho pra te dizer... a bruxa levou o seu Wanderley.
Ficamos em silêncio. Ela perguntou se eu havia escutado. Não respondi. Ela repetiu, com outras
palavras. Saí do lado dela. Ela veio atrás de mim.
Deixa... a voz de Marisa.
Eu disse à mamãe que não queria conversar, e entrei debaixo da minha cama. Na hora do almoço ela me
chamou. Comemos em silêncio; seus olhos nos meus.
À tarde ela saiu para fazer pagamentos. Eu, parecia boiar; cduas vezes e b ati com a cabeça. Rosa
tentou pôr a faca na minha cabeça para que o galo não crescesse. Fugi dela.
À noite, quando fui dormir, mamãe sentou na beira da minha cama para dizer: durma bem, sonhe com
os anjos, mas antes de ela falar, perguntei:
Como seu Wanderley morreu?
Ela me abraçou, me beijou e disse: não sei.
Acordei molhada, tremendo na noite escura, vomitando no c olo de mamãe; o vômito deslizava pela
camisola dela e pingava no chão; ela segurava minha testa, e eu continuava a vomitar, junto com o cocô
que escorria na camisola. Mamãe me arrastou ao banheiro, ajudada por Rosa, que dizia que a menina
ia se acabar, e ficou me lavando um tempo enorme porque o cocô o parava de sair, e eu de pernas
moles e olhos revirados, sem entender nada. (PS, p. 123/ 124)
Diante da temida morte, no momento que soube da morte de seu Wanderley, Leninha
se calou, procurou abrigo emba ixo de sua cama, junto com o silêncio. Mas à noite seu corpo
não agüentou, o silêncio guardava a dor da perda, mas a repulsa pela morte é manifestada
através do cocô e do vômito. Seu corpo não agüentaria abrigar a dor por muito tempo sem
exteriorizá-la. O feio, o escondido, o que vem de dentro, do mais íntimo, aparece também sob
forma de protesto pela perda. Quando a mãe volta do enterro, ela que não foi, quer saber de
tudo:
Está distraída, minha filha? Já cheguei.
Como seu Wanderley estava?
Como se estivesse dormindo, sem sonhos.
Hum?
Vovó interrompeu para perguntar quem era afinal o tal Wanderley. Mamãe explicou que era um cliente
que tinha ficado amigo da casa. Principalmente de Leninha.
Sua filha se tornou órfã dele, Helena.
(...)
Continuei deitada no chão, e quando mamãe virou de costas, voltei para a cama. Desvirando -se, ela
disse que não ia falar mais de uma vez.
Deus vem me buscar!
Pára com isso, Helena Maria! (PS, p. 127/128)
Órfã, esse foi o termo correto: ela agora estava abandonada , desamparada. E na lógica
infantil: se Deus levou a mulher e a filha de seu Wanderley, como ele mesmo contara, agora
foi a vez de ele ir também com Deus, logo, nada mais natural que ela desejasse ir para onde
seu amigo tinha ido. Ela também escreve as pal avras que irão conduzi -lo ao céu.
A perda faz com que ela amadureça. E, ele tinha marcado tanto a sua vida, que ela
decide tatuá-lo em seu braço. Homenagem que fará com que seu amigo fique para sempre
marcado em sua vida. Mesmo que os anos passem e as lemb ranças se esvaiam, seu corpo
testemunhará para sempre que seu amigo, seu cachorro, sua árvore, seu Wanderley não se
apagará de sua memória.
Percebemos então que Leninha vagarosamente começa a sair da infância... Ela sai de
casa sozinha, coisa que não podia fazer, e vira numa esquina da praia no fim de tarde.
Encontra prostitutas que são muito simpáticas com ela, se oferecem para pintá -la e vê a
tatuagem de um dragão no braço de uma das moças. Na hora ela pede o endereço e decide
tatuar seu cachorro, seu Wan derley. A entrada na adolescência vai aos poucos se
configurando:
Se meteu com prostitutas, Marisa.
Ela está crescendo, você precisa se preparar pra ser mãe de filha adulta.
Ah, ninguém sabe!
Mas você vai saber. Além do mais, ouvi o depoimento de um cientista que disse que num futuro breve
só vão existir mulheres sobre a Terra, sabia?
Marisa tinha que arranjar um jeito de encaixar seu assunto predileto, disse mamãe, e Marisa riu. (PS, p.
154/155)
Quando pergunta ao pai sobre a mãe de Miriam e ele responde que ela morreu, ela não
manifesta nenhuma reação, além da curiosidade que provocou a pergunta. Talvez pela falta de
convívio e proximidade, talvez por estar crescendo ou ainda por Miriam ter decretado que não
queria ouvir voz humana naquele dia.
Para a dona da pensão onde seu Wanderley morava, a sua morte supostamente estaria
associada à paixão:
Ele se queixou pra senhora de alguma coisa? perguntou mamãe.
estava dando trabalho, no último s a ambulância veio duas vezes aqui. Sofria do co ração. De
madrugada vieram me avisar. Quando entrei no quarto estava morto. Parece que tinha se
apaixonado... e velho quando se apaixona é uma desgraça. Jovem, é o que se vê, agora calcule um
homem daquela idade. Acho que se chamava H elena, a senhora conhece?
Somos nós mamãe disse e se levantou num instante, me puxando pelo braço. (PS, p. 151)
Numa fusão, mãe e filha se tornam objetos do amor de seu Wanderley. Já que amor e
morte andam juntos, é hora de falarmos um pouco de amor.
4.4 Os amores: de menina à mulher
Acompanharemos agora um pouco mais da vida de Maria Helena, a Leninha, Helena
como a mãe, e, que segundo a mesma, pôs Maria em seu nome para que ficasse próxima de
Jesus. Leva em seu nome, o nome de duas mães: a sua e a de Jesus.
Ao principiar a narrativa, fala primeiro da mãe e depois de si: “ao seu lado, eu colava
no vestido cada pedacinho que recortava da revista de história em quadrinhos.” (PS, p. 7)
Atividade que denota seu pertencimento à infância, entretanto, não é tão pequena assim, pois
faz o ovo frito para si, se lembra de pôr o prato na pia para não dar sujeira e escova os dentes,
que o tratamento custa caro. Põe sua camisola, se preocupa com a mãe, perguntando se ela
não quer um copo de leite. No dia seguinte, ao ver que a mãe não acorda, recorre ao seu
mundo infantil para buscar ajuda: “ Vou chamar o príncipe da Branca de Neve pra te dar um
beijo, tá?” (PS, p. 10) Ao ficar sonolenta, um anão, também referência à história infantil
que ela citou. Fragmentos de histórias infa ntis aparecerão aela se tornar como a “linda rosa
juvenil”.
mencionamos que ela deve ter nessa época idade inferior a dez anos, devido as
regras de trânsito que a obrigam a se sentar no banco traseiro do carro. O amor incondicional
pelo amigo, seu Wanderley, é declarado, e o medo que sente do pai também. Na casa do pai,
quando entra na piscina, ela diz mergulhar num oceano líquido e gelado. A água será um
signo importante que marcará a sua vida. Do signo de peixes, ela recebe da mãe, entre outros,
o apelido de peixinha. Os apelidos segundo Ariès trazem familiaridade e exclusividade:
O uso mais difundido do diminutivo e do apelido correspondia a uma familiaridade maior, e, sobretudo,
a uma necessidade de as pessoas se chamarem de uma forma diferente d os estranhos, de sublinhar por
uma espécie de linguagem iniciática a solidariedade dos pais e dos filhos, e a distância que os separava
de todos os demais.
18
Como toda criança sempre faz, repetirá em forma de brincadeira cenas da vida de
algum adulto. Aqui, reproduzirá, embora ingenuamente, o pai e Miriam: “voava pela casa,
com as asas de papelão que tinha feito com a ajuda de Rosa quando mamãe mandou que eu
ficasse quieta. Eu disse que não podia porque era a águia imperial, e ela voltou a repetir que
18
ARIÈS, P. (1981) p. 267
eu ficasse quieta.” (PS, p. 29) A seu ver, o pai e a madrasta, também brincavam de estátua. O
desejo de ser igual a mãe também surge:
Mamãe, vê se na minha barriga tem um neném perguntei, com a blusa suspensa.
Tem uma porção de sementinhas que um dia v ão virar neném... respondeu, apalpando meu corpo e
beijando minha barriga.
(Uma porção?) Depois, mamãe mandou que eu fosse arrumar meus brinquedos. (PS, p. 35)
Imita a mãe quando faz para si um computador com uma caixa de papelão, ajudada
por Rosa. E a mãe lhe manda uma mensagem de Feliz Páscoa. Além de sentir medo do pai,
“mamãe faz questão de que Rosa me acompanhe até embaixo e espere a pessoa que vem
me buscar, por causa de um homem que pega crianças e leva numa carrocinha para que virem
sabão.” (PS, p. 41) Obviamente o medo, ou preocupação da mãe, o é baseado na lenda
urbana do homem que pega crianças para fazer sabão, esse medo é de Leninha.
Ela menciona dois brinquedos: Matilde e Shirley, Matilde é manequim, tem peito e
bunda. Mamãe mandou p ôr rodinhas embaixo para facilitar locomoção. espetei muitas
cabeças no pescoço de Matilde.” (PS, p. 23) O manequim recebe tratamento especial dela e é
seu “brinquedo” favorito:
Matilde tem guarda-roupa. Eu fiz. Eu e uma costureira que andou vindo em c asa. Eu dizia para ela
como queria a roupa sempre saia ou vestido por causa da parte de baixo de Matilde e a moça
costurava na máquina. Mamãe diz que eu nasci com esse dom, explicável por um sextil no meu mapa.
O rosto de Matilde eu fiz de isopor. Gost ei muito de desenhar a boca e pintar os bios, as bochechas, e
fazer o risco das sobrancelhas. Difícil foi Matilde parar quieta, por causa das rodinhas.
O problema de Matilde é que ela é careca, mamãe ainda não lembrou de comprar peruca. Trepei no
banco e comecei a prepará-la pela parte da cabeça. Pus um lenço de seda colorido e amarrei atrás.
Depois chegou a hora do colar. Matilde fica muito bem de colar porque seu peito, o colo protuberante,
mamãe diz, é muito bem feito. Quando fui apertar o fecho, Matil de começou a se movimentar; não pára
quieta. Pulei enganchando as pernas na cintura dela e ficamos as duas deslizando de um lado para o
outro. Faço isso sempre. Ando muito nela. É fácil, basta botar Matilde contra a parede, trepar numa
cadeira, pôr as pernas em volta da cintura e empurrar paredes e portas com as mãos e os pés. Mamãe
está acostumada a me ver assim, à la Matilde, como costuma dizer. (PS, p. 39/ 40)
Presente da mãe, Matilde não agrada ao pai, muito menos a Miriam. E Leninha não
aceita que a chamem de boneca, é manequim. Tem consciência do “estado de manequim” de
Matilde, mas “entrei no quarto e, apesar de Matilde ser o que é, um manequim, contei a ela
que mamãe tinha ficado boa.” (PS, p. 91) Entretanto,
Subi para o quarto enquanto ouvia papai e Miriam falando mal de Matilde. Miriam dizia que o sabia
onde mamãe arranjara aquele estrupício. E papai disse que nunca tinha visto criança gostar de
manequim. Coisa mais sem graça.
Ao chegar no quarto olhei bem para Matilde e nunca tive tanta vontade de que ela falasse, ou me
ouvisse. (PS, p. 85)
A outra, Shirley, é uma boneca que ficou despedaçada numa briga dos pais. O pai
aparece neste episódio nos fazendo lembrar a história dos três porquinhos, uma vez que ele
estava “(...) vociferando e soprando até que a casa veio abaixo – (...)” (PS, p. 111)
Matilde será a cúmplice para a fuga da casa paterna, fuga que a menina diz ter
aprendido na televisão. A indumentária de Matilde era de Miriam: vestido, lenço e cinto, para
que Leninha a puxasse na hora de fugir. A casa do pai ficava no alto, a delas, na favela,
segundo a mãe. E ladeira abaixo a menina vai com Matilde até chegar na casa materna.
Miriam, para ela, oscila entre princesa e bruxa: “mamãe havia falado que Miriam
nunca deve ter visto a parte d a manhã, somente em menina. Além disso, tomava remédio para
ter um sono profundo e repousante de princesa. Despertava com os beijos do meu pai.
Mamãe disse a primeira frase, o resto fui eu que inventei.” (PS, p. 43) Mais uma vez a
referência são os co ntos de fadas, “quase dormia, quando comecei a ouvir a bruxa
gargalhando.” (PS, p. 46) Se Miriam é bruxa e princesa, o pai é príncipe e Drácula, o sapo que
encontra na serra não pode ser somente um sapo:
No dia seguinte, à noite, na serra, enquanto os adu ltos jogavam na sala e um garçom circulava com
bebidas e comidinhas, fui espiar a fazenda do alto da escada que ficava do lado de fora. Havia uma luz
do outro lado da piscina. Olhei para papai, e ele estava concentrado nas cartas. Desci os degraus de
pedra e no meio deles encontrei um sapo. Grande. Sentei perto dele e ficamos nos olhando. (Príncipe).
O sapo era escuro, parecia estar com sono ou triste; de vez em quando fechava os olhos e voltava a abrir
rapidamente, como se não pudesse dormir. Depois de nos olharmos por muito tempo achei que
ficaríamos daquele jeito a noite toda. (PS, p. 43)
As histórias infantis repercutirão até o final da narrativa. Nada fora do normal para o
mundo infantil:
A cliente estava com uma menina. Devia ser filha dela. Mamãe pe diu que eu levasse Rapunzel para
brincar. Chamou a menina assim porque ela tinha tranças. Levei a garota para o meu quarto e fiquei
olhando para ela enquanto ela olhava para mim. Depois de dizer coisas enroladas, entendi que ela queria
que eu contasse a história do Chapeuzinho Vermelho.
Tem o Chapeuzinho, tem o lobo e tem a vovó. Miau!
A menina continuou a me olhar e, em seguida, disparou para a sala. (PS, p. 112)
A menina não entende, pois Leninha resume a história a apenas uma frase. Em outra
ocasião, por ter fugido, o pai a coloca de castigo:
Voltei com Matilde para a casa do papai e da Miriam. Assim que entrei na casa deles, papai disse que
eu estava de castigo. o podia chupar bala nem tomar sorvete e Coca -Cola, durante uma semana.
Esqueceu de me proibir de ver televisão. Miriam se abanava dizendo que mesmo onde moravam teriam
que instalar um sistema de ar -refrigerado na casa toda. Não agüentava mais de tanto abafamento. Papai
mandou que eu subisse para guardar minhas coisas e mais aquele troço. Ma tilde.
Quem te deu isso?
Mamãe.
Miriam revirou os olhos. (PS, p. 61)
O pai e Miriam são os que mais estranham o fato de ela gostar do manequim.
A crueldade infantil surge quando Leninha, na fazenda, não sabe o que acontece com
ela, mas cede aos impul sos e aperta o pescoço da gata Tequila. Numa outra ida à fazenda, ela
sente vontade de urinar na gata. Sua imaginação se utiliza da crueldade também com
personagens humanos:
Ora papai olhava para a estrada, ora para as pernas de Miriam. Já, já, sofreríam os um desastre. A cabeça
de Miriam voaria por uma janela e a de papai pela outra, e eu ficaria esmigalhada no banco de trás. O
assunto só terminou quando papai disse ser o responsável pelo esquecimento do repelente. (PS, p. 90)
Sua mãe diz que ela era mu ito imaginosa. Quando seu Wanderley falece sua avó
reclama do coração vermelho que ele deu à Leninha. E ela imagina que o líquido vermelho do
coração escorreria, encheria o quarto, então, a avó e a manicure boiariam num imenso rio de
sangue. Clamariam por socorro e iriam afundando, enquanto ela no bote estaria a milhas de
distância. Noutra ocasião, os dragões surgiriam por todos os lados na casa de Miriam,
lançando chamas e xingamentos, e imagina que os dragões lamberiam os sapatos e comeriam
os pés dos dois, até que Miriam fala com ela novamente e “quebra” sua imaginação.
Ela sentiu medo do além quando seu amigo morreu. O medo do pai era quase
constante, medo dele a maltratar ou de ferir alguém:
Ao subirmos de volta à casa, eu disse: pachota, e ri de novo.
Que palavra horrível é essa? Quem te ensinou, Helena Maria?
Não tive coragem de dizer que havia sido o garoto. Papai podia furar os olhos dele com a vara de
rabiscar o chão e depois jogá -lo dentro do galinheiro, no meio do cocô das galinhas. Argh. Disse que
tinha sido a Rosa. (PS, p. 142/ 143)
Depois da morte de seu Wanderley, após o encontro com as prostitutas, quando elas a
maquiam, é como se uma transição fosse aos poucos acontecendo. Ela vai amadurecendo, vai
deixando de ser criança. A tatuagem, a ma rca feita por ela em seu corpo, referencia sua
autonomia e coragem diante da vida. Os primitivos faziam uso da arte de desenhar, marcar o
corpo, a tatuagem, para marcar também fatos da vida biológica, como nascimentos ou mortes.
Do mesmo modo, Leninha faz uso da tatuagem: escrevendo em seu corpo a perda do amigo.
Decide por si mesma e faz. De acordo com Terry Eagleton: o aspecto peculiar do corpo
humano reside, portanto, apenas na sua capacidade de transformar a si próprio durante o
processo de transformar os corpos materiais à sua volta.”
19
Ela rejeita o presente de aniversário ganho do pai: um cachorro. Não era o “seu”
cachorro e nenhum outro o substituiria. As mudanças em sua vida não são apenas de
comportamento, são físicas também:
Assim que cheguei na porta do quarto, me joguei no chão, pernas para dentro e a parte de cima do corpo
sobre a passadeira do corredor. Senti dor nos peitos quando deitei; cresciam. o passou muito tempo,
papai subiu para ver o que fazia. Escutei seus passos silenciosos pela escada.
Eu não disse pra você ficar no quarto, Helena Maria?
Disse pra eu subir.
E não responda! Levante -se!
Me levantei, e ele, entrando no quarto e segurando a porta, disse que seria bom que eu refletisse nas
coisas que eu vinha fazendo ultimamente ; no meu comportamento. Antes de sair, falou sobre
prostitutas. Quem? Ah, as moças. Cismaram com elas.
Fui para a janela e, pela primeira vez, tive vontade de ir para a fazenda encontrar aquele garoto.
19
EAGLETON, T. (1998) p. 75
Peguei um bloquinho em cima da mesa e comecei a escrev er bilhetes: Socorro; Me salvem; Estou
presa!; Ele vai me matar! Depois, atirei tudo pela janela.
Ouvi um estrondo. Era papai entrando e quase derrubando a porta. Achei que não sairia viva dali, mas
ele, berrando e abrindo a mão, quase esfregando na minha cara, perguntou o que significava aquilo. (PS,
p. 160)
A vontade agora era de desafiar, se libertar do que ela achava que a oprimia. A
conduta da adolescente Leninha chocava seus pais e Miriam. Nela, além das mudanças no
corpo e no procedimento, seus sent imentos também mudavam: sentia vontade de ver o garoto,
de ficar perto dele. Um amor diferente despertava em seu coração e ela ainda nem tinha se
dado conta. Até a mãe ela começa achar chata: “às vezes mamãe é tão chata, mas tão chata...”
(PS, p. 168) Uma nova fase da vida surge diante dela:
Eu estava vendo um filme quando, de repente, senti uma coisa melada entre as pernas. Levantei e vi o
sangue escorrendo, devagarinho. Saí do quarto de pernas abertas e fui mostrar para mamãe. Quando
entrei na sala ela perguntou que jeito de andar era aquele. Levantei o vestido, e mamãe pulou no sofá
soltando um grito:
Minha filha ficou mocinha! e partiu para me beijar, abraçar, sufocar. (PS, p.169)
A mudança agora é completa: um ciclo termina, a infância, e um outro começa, a
adolescência. Leninha agora é uma mocinha. A mudança é oficialmente marcada e registrada
com a chegada da menstruação.
As transformações e curiosidades não param por aí: um dia resolve se abraçar com o
cachorro Infeliz, da casa de Miriam; acha u m vidrinho com éter no banheiro de seu quarto e
cheira, desaba no chão, para desespero de Miriam, que pensa que ela está drogada, e de seu
pai; as maldades com a gata continuam, desta vez lhe rouba o colar:
Acordei com papai sentado na minha cama, pedindo que eu devolvesse o colar da gata. Como sabia que
tinha sido eu?
Ladroagem, Edilberto? disse Miriam, na porta do quarto.
Eu ia botar o colar nela outra vez!, falei, zonza. Levantei, fui até o tapete, suspendi a ponta dele, peguei
o colar e o entreguei a papai.
O que está acontecendo com você, Helena Maria?
Você já perguntou isso ontem.
Fui, Edilberto Miriam virou as costas.
Você está ficando uma moça...
Já fiquei. (PS, p. 175/176)
Quando finalmente o amor brota em seu coração, a transforma ção é finalizada, mas
ecos da infância ainda a acompanham, só que agora ela já é comparada à linda rosa juvenil. E,
se a bela rosa despertou, nada mais apropriado que encontrasse um belo rei: Jonathan. E
imediatamente, passou a andar na fazenda atrás dele, durante o dia inteiro: “numa dessas idas
e vindas à procura dele, encontrei o sapo. Parei na frente dele. Não adianta disfarçar,
Jonathan, eu sei que é você! O bicho ficou me olhando imóvel, mas quando eu ia saindo,
piscou.” (PS, p. 182) Até a fiel comp anheira Matilde foi deixada de lado: “fui para o quarto e
vi Matilde. Não andava mais nela porque poderia desmontá -la, e estava ela no canto, cara
empoeirada, cheia de bolsas penduradas, cintos, o guarda -chuva. Mamãe tinha aproveitado a
minha ausência e resolvera fazer Matilde de cabide.” (PS, p. 184) Ela estava
incontestavelmente maior, crescida, uma moça.
Jonathan agora era o centro de seu pensamento, queria sempre encontrá -lo, mas não
dizia isso para que não desconfiassem do que vinha sentindo por ele , temia que não pudesse
mais vê-lo:
À noite, na hora do jantar, perguntei à mamãe se caso ela ganhasse a minha guarda eu voltaria à casa de
papai.
Claro. Por quê? Já quer voltar?
Não, nada.
Queria voltar sim, mas para encontrar o Jonathan. E se papai e Miriam não fossem mais à fazenda? E se
eu não voltasse a ver o Jonathan?
Nuvens negras tomaram conta do quarto. De dentro delas eu escutava os grunhidos dos corvos, e logo a
bruxa veio. Velha, feia e banguela, cacarejando: Vou escondê-la para que ninguém a roube de mim.
sei! Vou trancá-la na torre. Isso mesmo! Uma torre com uma janela e... sem porta, para que ninguém
possa entrar.”
Acorda, Leninha, você está com tosse de cachorro. (PS, p. 187)
O medo de não voltar a ver o Jonathan é tão grande q ue a faz sonhar, ou ter um
pesadelo, que, como Rapunzel, ficapresa no alto de uma torre para que o príncipe não a
encontre. São temores vindos com a descoberta do primeiro amor... Ele é do signo de Libra,
signo do amor, segundo ela. Ele se tornou seu a stro rei: “eu não conseguia deixar de pensar
em Jonathan, parecia uma estrela fixa faiscando na minha cabeça.” (PS, p. 193)
Leninha relata uns oito ou nove encontros que teve com o Jonathan, sendo os
primeiros em idas dela à fazenda dos amigos do pai e o ú ltimo no hospital, no Rio. No
primeiro deles, o menino a chama de criança. Mas desde esse encontro, ele, sendo mais velho,
já apela para o lado sexual, que no começo ela não entende:
Vem cá, criança.
Era um garoto comprido, sentado num banquinho. Mas tigava uma folha que devia ter arrancado da
árvore e riscava o chão com um galho que tinha nas mãos.
Quer ver o ovo que a galinha botou?
Balancei a cabeça, e então ele me pôs de frente para o galinheiro. As galinhas faziam uma barulheira,
tentando voar do poleiro. De repente, senti um calor no corpo.
Por que você está com a mão na minha bunda? perguntei, com as pernas ondulando.
Porque vou botar o trabuco em você! e tentou me pegar.
E o meu pai vai botar um trabundo...
Trabundo... Burra!
Helena Maria!
Era a voz do meu pai. Saí correndo, escorregando na grama úmida; ele vinha na minha direção.
O que você fazia lá embaixo?
Estava vendo o ovo da galinha.
O filho do caseiro mostrou? É um ótimo rapaz! (PS, p. 44)
Ela criança, ele um rapa z, acentuando as diferenças sobre sexualidade. No segundo
encontro ele perguntou se ela queria ver um peru, com o bicho na mão, ele o afastou e deixou
que ela visse que estava com a calça aberta. Ela corre, cai e chora. No terceiro encontro ele
lhe mostra cachorros trepando e lhe dá um passarinho, que ela deixa fugir. Em outro encontro,
ele pede para ver a periquita e lhe diz que para passar a tristeza que sentia pela morte de seu
Wanderley, teria que abaixar as calcinhas e suspender a saia. O que ela faz e ele resmunga. O
corpo dela ainda era de uma criança. Somente no encontro posterior ela fica sabendo do nome
dele, que até então desconhecia. Os seus pais, e também Miriam, não haviam reparado a
tatuagem que ela fez em seu braço, Jonathan, ao contrário del es, notou. Ela passa a procurá -lo
e acha que ele pode ser ora sapo, ora príncipe encantado:
Não vi mais o Jonathan nos dias que se seguiram. Todo dia pela manhã eu corria até o galinheiro,
depois caminhava ao rio e nada. estava com os s esfolados, e o sabia o que tinha acontecido.
Numa dessas idas e vindas à procura dele, encontrei o sapo. Parei na frente dele.
Não adianta disfarçar, Jonathan, eu sei que é você!
O bicho ficou me olhando imóvel, m as quando eu ia saindo, piscou. (PS, p. 182)
Com um beijo ele a leva para o céu, toda a tristeza desaparece e o primeiro amor vai se
consolidando. Jonathan: o rei das montanhas, das águas, das estrelas, o astro rei de sua vida. É
justamente perguntando se ela deseja ter um encontro com uma estrela que e le a aborda na
próxima ida à fazenda. O encontro é marcado para a noite perto do rio:
Jonathan disse para não perdermos tempo. As noites são v elozes, as estrelas têm presa, b asta ver as que
ficam despencando, e o sol já, começa a soltar seus raios. Ele se virou de costas e começou a se
despir. Virei de costas também, desci as alças do vestido e ele escorregou caindo na grama fria; meu
cabelo voou em volta do corpo. Mergulhados na penumbra, nos demos as os e caminhamos
devagarinho para dentro do rio. N enhuma luz brilhava; tudo em silêncio no rio deserto. Era difícil
caminhar pelas pedras que havia no fundo, mas avançamos com a cintura afundada nas águas até nossos
corpos desaparecerem.
O que está voando aqui, Jonathan?
Borboletas.
Ahn.
Nesse momento em que eu tremia de alegria e de novo, Jonathan me abraçou, perguntando como era
mesmo o que eu queria que ele dissesse quando me balançou.
Se segura, florzinha, que o vento... e nem esperou eu acabar de falar, foi logo me apertando, me
beijando, escorregando a boca pelo meu pescoço, enquanto eu via estrelas nascendo por toda parte, em
todos os cantos do céu, quando subitamente me vi levantada pela cintura, e Jonathan me puxou contra o
seu corpo e me cobriu com a sua sombra. Soltei um grito que ficou ecoando na noite escura. Dentro do
rio tudo se movia; as águas cintilavam em rodamoinho. Pouco depois, Jonathan gritou: uma mulher!, e
deu uma gargalhada. Quando saímos do rio, me enfiei na roupa, subi correndo, e dormi com os olhos
cheios de lágrimas e estrelas. (PS, p. 198/199)
Posteriormente, na narrativa, ficaremos sabendo o motivo do grito de Jonathan: era a
primeira fez que fazia sexo com uma mulher, e, ela era agora uma mulher em todos os
sentidos da palavra, não por ser do sexo feminino. Um nov o ciclo se inaugura na vida de
Leninha: o silêncio, como a noite, também abre passagem para revelações, a água é,
simbolicamente, o lugar das paixões, a dinâmica da vida.
Ela se entregou ao amor, a Jonathan, mas, “achei que ele poderia ter esperado um
pouco, mas parece que tinha pressa em afundar logo dentro de mim.” (PS, p. 202) Em
seguida, ela vai ao médico com a mãe, que já saberia da noite de amor com Jonathan, pois
Leninha contou para Lila e ela deve ter contado a sua mãe, e o médico anuncia que ela es
grávida. Ficamos sabendo que ele tem dezoito anos. E a gravidez na adolescência vai virar a
pauta de discussão na vida da família da menina. Uma amiga de sua avó chega a dizer que a
gravidez na adolescência é uma tragédia. Alheia a tudo isso, a menina f az planos para o seu
bebê: “eu quero ensinar ele a andar na Matilde, acho que ele vai adorar!” (PS, p. 207) Escolhe
o nome do bebê: Rico e vibra quando a médica faz a ultra -sonografia e confirma que é um
menino. Agora ela tem o bebê para “conversar” e é pa ra ele que ela conta suas dúvidas:
Nessa noite, deitada assistindo televisão, de repente senti minha barriga se mover. Gritei por mamãe, e
ela veio correndo, assustada. Ficamos, as duas, com as mãos sobre a minha barriga, enquanto o Rico
dava pernadas. Quando ele sossegou, mamãe foi dormir.
Eu acho, Rico, que eu o sei ser mãe. Será que quando eu puser o peito na sua boca você não vai
entupir? Eu acho, Rico, que quando você sair daqui a minha barriga vai murchar igual chiclete de bola.
Eu acho que você vai gostar de Matilde, ela está velha mas ainda roda...
Está falando sozinha, Leninha? mamãe perguntou do seu quarto.
Não, com o Rico.
Durmam! (PS, p. 216)
As angústias da mãe de primeira viagem o compartilhadas com seu bebê. Somente
no nascimento de Rico é que Leninha e Jonathan se reencontram:
Manhã azul-bebê. Meu filho nasceu!
Acordei vesga, tonta, boca seca, com o meu bebê sobre a barriga. Luz sobre o mundo. Com dificuldade,
descobri mamãe ao lado, ela me dizendo que tinha saído tudo bem, q ue o neném era uma gracinha. E o
que era aquilo no meu braço!? Eu explicaria depois, e passei a mão no meu bebezinho, nuinho, que
tentava levantar a cabeça; levantei também a minha para me apresentar:
Eu, Leninha, sua mãe! disse, lambendo as minhas lág rimas.
À tarde, quarto cheio. Mamãe, curvada sobre a mesinha próxima à janela, apertando o elástico do rabo -
de-cavalo, calculava o mapa do Rico. Marisa, a todo momento consultava o relógio, não queria se
atrasar para o atendimento; Felícia não tinha ido co m medo de pegar infecção hospitalar. Papai, sentado
na cadeira ao lado de Miriam, perguntava a ela, em voz baixa, o que eu tinha no braço, e Miriam
respondeu que devia ser tatuagem de artista. Depois ela vai se arrepender, vai ver só, ela disse. Vovó,
apesar de se declarar contra nascimentos, sentou -se na ponta do sofá, com seu cachorro minúsculo
dentro da bolsa; não disse uma palavra, mas olhava para tudo o que se movimentava. Súbito a porta se
abriu, e Jonathan, empoeirado, cabelo despenteado (deve ter vi ndo com a janela do ônibus aberta),
entrou cheio de folhagens nas mãos, e, se aproximando da cama, despejou tudo sobre mim.
Esse é o Jonathan, mãe!
Ele cumprimentou a todos com um gesto de cabeça e, em seguida, parou os olhos n os meus. Olhos de
rio correndo. (PS, p. 218/219)
Dessa forma Leninha termina de contar sua narrativa: ela, com seu bebê nos braços, no
hospital, cercada pelas pessoas próximas.nesse momento, considerando o período de nove
meses da gestação, e ela tinha feito a tatuagem um pouco antes, talvez cerca de um ano antes,
e, somente agora é que seus pais vêem a tatuagem em seu corpo. O corpo escrito, marcado,
homenagem ao amigo. Ela, inaugurando uma nova fase de sua vida, de menina à mulher,
agora Leninha: menina -mulher-mãe. E toda possibilidade de vida, renascimento e renovação,
metaforizados nos olhos de rio correndo de Jonathan e na nova vida que tem em seus braços.
A vida continuará correndo, seguindo seu curso.
4.5 Entre pessoas e bichos: zoomorfismo
Uma questão bastante interes sante é o zoomorfismo. Em várias ocasiões os seres
humanos o descritos como animais, seja por alguma característica ou aparência física. Os
animais também marcam presença através dos signos do zodíaco: escorpião, touro, peixes,
leão, etc.
O primeiro animal apresentado na narrativa é o elefante, Helena descreve o trauma
como um empurrão de elefante. Formiga e baratinha se alimentam da sujeira que não pode ser
deixada na cozinha. Leninha sonha com besouros, um cachorro olhava o gato na rua, entre o
sono e as lágrimas ela uma teia de aranha pendurada no teto, e a trama narrativa está
começando. Sua mãe lhe lembra que quando menor, a menina dizia morfiguinha e saparinho.
Ela encontra uma lagartixa morta em seu banheiro e é chamada por sua mãe de peixin ha,
referência ao signo de peixes.
Seu pai e Miriam, se tratam de corcel, alazão e águia imperial, apelidos carinhosos
usados em seus momentos mais íntimos. Para Helena Maria eles o centauros, mais uma
referência mitológica, também chama seu ex -marido de quadrúpede e asno, e ele a chama de
serpente. De um anúncio de seu Wanderley, surge Pombinha como uma forma carinhosa de
tratamento entre os amantes ou como o nome dela mesmo, não sabemos. Ele, seu Wanderley,
tem olhos de boi, pestanas de burro e se par ece com um cachorro. É o ser humano que mais
apresenta características animais, segundo a menina. Ela o chama de Rex e diz ter feito a
tatuagem de seu cachorro, levando ao tatuador uma foto de seu Wanderley. Miriam é dona do
cachorro Infeliz. Um cachorrinh o é dado de presente a Leninha, mas ela o rejeita e cisma em
querer ganhar um pavão. Os elefantes retornam a narrativa através da voz de Marisa,
demonstrando, como ela, um comportamento homossexual.
A cobra, com todo seu simbolismo de traição, surge para designar alguém da casa do
menino, de sua família, e que não podia saber do namoro virtual. Nos sonhos da menina,
agora aparece um camelo. Um pardal vem da boca de Helena Maria associado a um palavrão.
O sapo é atrelado ao príncipe encantado, Jonathan. E, da fazenda temos ainda porco -espinho,
mosquitos, galinhas, gansos, marrecos, vacas, cavalos, pássaros, peru e a gata Tequila, que
será alvo das travessuras da menina. Leninha é chamada de periquita e é usando esse termo
que Jonathan pede para ver seu órgã o sexual. Peru e passarinho também assumiram conotação
sexual. Ele também leva a menina para ver cachorros trepando.
Miriam diz que a menina parece uma macaca, o dia inteiro pendurada em Matilde. Ela
acha Jonathan porco, pois estava sempre mastigando um p edaço de folha, seria sempre a
mesma? Seu Wanderley diz que o pampa é um cavalo de cara branca. Ele, que já trabalhou no
zoológico, também falará de um desastre com duzentos e cinqüenta milhões de borboletas na
cidade do México. Além disso salvou uma gatin ha no meio da rua numa madrugada, ele
adorava bichos.
Leninha diz que sua mãe tem olhos de passarinho e ela bichos em seu quarto: “de
dia o teto do meu quarto esvazia, mas de noite se enche de bichos que se escondem. Répteis;
vi todos numa revista. Es tava sonhando com um dragão que tentava subir na minha cama e
escorregava, e ele ria seus mil dentes trepados, quando me lembrei de ver como mamãe
estava.” (PS, p. 109) Os dragões retornam ao seu “sonho” quando ela os comendo os pés
de seu pai e Miriam. Miriam, que ao invés de soltar os cachorros, como costumamos dizer,
segundo Leninha, soltou os gatos quando a enfermeira deixa sua mãe cair da cama.
A cobra novamente aparece como metáfora para o órgão genital de seu Wanderley,
que ela vê escondido atrav és da janela do banheiro de Rosa. Felícia é chamada por Marisa de
gatinha, Jonathan é o sapo que vira príncipe, a sua mãe, segundo a avó, tem alma canina e em
dado momento a menina apresenta uma tosse de cachorro. Jonathan diz que antes dela, só
tinha comido cabras, expondo a zoofilia ou a bestialidade, levando em conta ou não o bem -
estar do animal durante a relação.
O beijo mandado por Jonathan através do telefone a Leninha, fica rondando a menina
como um bem-te-vi. E, com o comentário de Helena sobre Edi lberto, que seu ego se
“encontrava no cruzamento da animalidade com o destino do ser” (PS, p. 214) encerramos
nossa abordagem sobre a animalidade, uma vez que todos nós, somos às vezes tão irracionais
e também assumimos características animais, conscientes ou não.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos longe de ter atingido todos os pontos apresentados nos romances e mais longe
ainda de ter esgotado as observações pertinentes a cada questão estudada. Percebemos,
também, que alguns pontos se destacam pela semelhança ou pela divergência. E nesses dois
extremos, semelhança e divergência, basearemos as considerações finais.
A partir da ordem de publicação das narrativas, e na mesma seqüência seguimos a
análise, percebemos uma gradação do espaço apresentado nos títulos das obras: Quarto de
menina, apresenta um espaço interior, individual, um quarto; Cartão-Postal se caracteriza por
oferecer um espaço externo, normalmente os espaços mostrados nos cartões -postais são
exteriores, paisagens, c omo é o caso desse cartão que tem uma casa no estilo holandês; A
palavra que veio do Sul mostra, no título, pois a narrativa se passa toda no Rio de Janeiro, a
espera da palavra que virá do Sul, o espaço ainda mais abrangente, uma região geográfica do
país. Vamos do micro ao macro, do quarto ao espaço externo da casa, ao espaço geográfico
longínquo indicado nas cartas geográficas.
O espaço físico é o do Rio de Janeiro, com exceção de Cartão-Postal, que não nos
a localização espacial. Quarto de menina e A palavra que veio do Sul nos apresentam fortes
indícios temporais de fins do século XX, início do XXI. Cartão-Postal também, se levarmos
em conta as tantas cenas sofisticadas de dublagens.
Luciana mora com o pai e o contrair novas núpcias com Selma, Joã o e a irmã Clara
moram com a mãe e a vêem trazer o namorado Chico Danger para morar com eles, já Leninha
mora com a mãe e nos apresenta o pai casado com Miriam. A relação entre pais e filhos é
delicada: Luciana morre de ciúmes do pai e o gosta da mãe, que associa com um monstro
que devora criancinhas, muito menos da madrasta que disputa o pai com ela, segundo seu
raciocínio. João e Clara não manifestam muito seus sentimentos em relação ao pai, em
compensação, ele sente muito ciúme da mãe, principalm ente com o namorado que representa
um grande perigo para ele, sentimento que Clara não compartilha, pois adora Francisco.
Leninha gosta de sua mãe e sente medo do pai, sua relação com Miriam é cordial. O divórcio
é comum nas narrativas: famílias fragmentad as que se desfazem e onde seus membros tentam
a felicidade se casando de novo. As crianças vêem suas madrastas e padrasto como rivais:
bruxas e o verdadeiro perigo. Luciana sente ciúmes do pai enquanto Leninha sente medo do
seu.
A gravidez é um tema que ap arece muito. Vamos desde a gravidez da boneca irmã de
Tininha, da menina Luciana, passando pela vontade de engravidar de Selma, sua madrasta, a
gravidez da própria Luciana que não é apresentada, um corte temporal e a encontramos no
dia do aniversário de três anos de sua filha Clarinha. A menina Clara de Cartão-Postal
também tem uma boneca que é filha de um boneco, e, a gravidez e a perda do bebê de
Miriam, chegando ao filho de Leninha, Rico.
A beleza, ou melhor, a preocupação com a beleza, o medo de enve lhecer está presente
na mãe de Luciana, na mãe de João e em Francisco, na medida em que trabalham com seus
corpos e por isso precisam cuidar deles, em Miriam, que chega ao extremo de esconder sua
própria mãe para que ninguém a veja velha, na avó de Leninha e suas várias intervenções
cirúrgicas.
A morte é presença constante e forte nas três narrativas. Na primeira, Luciana tem um
contato mais discreto, apesar de manter em seu quarto uma boneca que diz estar morta; na
segunda, o contato é bem próximo e famil iar, no jardim do cartão -postal está enterrado o avó
de João e outros o acompanharam no “cemitério familiar”, na terceira, o contato é também
muito forte, seu Wanderley escreve obituários e ao falecer, desencadeará uma reação na
menina Leninha que marcará o próprio corpo com a foto do amigo morto, fazendo uma
tatuagem. As reações diante da morte também não são as mesmas, lógico, as pessoas são
diferentes e agem de maneiras diversas. Luciana e Clarinha possuem bonecas que dizem estar
mortas, João, mesmo com a morte tão próxima, sente medo e não gosta de visitar a sepultura
do avô, ato diferente de Clara que até rega a sepultura, devido a sua pouca idade e por não ter
a mesma compreensão de mundo que o menino. Leninha, sente tanto com a presença da
morte e conseqüentemente a falta do amigo, que num primeiro momento deseja morrer
também e depois marca a perda em seu corpo. Se Leninha marca o seu corpo com a tatuagem
que traz o amigo morto, Chico Danger apresenta a tatuagem, também no braço, de uma águia.
O desejo de morte também aparece em Luciana, mesmo inconsciente, e em Clara, que
compara o sono a uma pequena morte e por isso não quer dormir. Quando Luciana pergunta
ao pai como estava o tio Manoel morto, a resposta é a mesma que a mãe de Leninha a ela
quando a menina pergunta como seu Wanderley estava: como se estivesse dormindo, mas sem
sonhos. Se a morte é a ausência de sonhos, a infância, ao contrário, está de repleta deles e do
poder fascinante de imaginação inerente aos pequenos.
Os brinquedos são os símbolos mais representativos da imaginação infantil presente
nas obras. Desde as bonecas da pequena Luciana, que a ouvem, dão conselhos, conversam
com ela, tomam conta de seu pai quando ela não está perto, o grilo falante Teo, que adquirem
outro significado com o passar do tempo. E que reencontraremos no berço de sua filha
Clarinha. João, não acha a menor graça nos brinquedos de sua irmã Clara, que vive cheia de
bonecos pra baixo e pra cima, ele, ao contrário, gosta dos heróis dos álbuns de figurinha. J á
Leninha, possui Matilde, um manequim com quem passa a infância e Shirley, a boneca
despedaçada numa briga. Leninha também deixa de ver os brinquedos como companheiros ao
entrar na adolescência e troca os brinquedos infantis pelo mundo adolescente, que ve m
acompanhado do primeiro amor, e no caso dela, do filho Rico.
Fazendo referência ao mundo infantil, temos ainda, os contos de fadas: Chapeuzinho
Vermelho, Rapunzel, Os três porquinhos, João e o de feijão, e também Pinóquio. Não
podemos esquecer das bru xas que tão bem representam as figuras femininas ameaçadoras,
sejam as namoradas dos pais ou a própria mãe. O lobo, Drácula, um monstro, um ogro, que
representa a ameaça implícita na figura do namorado da mãe ou do próprio pai. Selma é para
Luciana, ora Rapunzel, ora lobo, assim como Miriam é para Leninha, ora bruxa, ora princesa.
O medo de perder a mãe associado à imaginação, fazem João ter medo das sinopses das
gravações onde sua mãe e Chico Danger atuarão. Ele representa o perigo, que para Luciana
está na figura materna, associada ao monstro que devora os filhos e para Leninha ao pai que é
ora lobo, ora Drácula. O sapo, que com um beijo pode se tornar um príncipe encantado e viver
feliz para sempre com sua princesa, está presente para Leninha e Jonathan. Os contos de fadas
são forte representação do maravilhoso mostrados no mundo infantil. João fará menção às
histórias de terror para assustar a irmã Clara.
Se a mãe de Leninha é astróloga e trabalha com os astros, os cálculos, o pai de
Luciana é professor e trabalha com livros e palavras, a mãe de João é dublê e trabalha com o
corpo. Seja na astrologia, na literatura (filosofia) ou nas cenas para o cinema, o maravilhoso,
podemos dizer, também se apresenta aqui. A mãe de Leninha prefere o mundo virtual ao rea l,
na medida em que espera pela palavra que virá por e-mail, também gosta do mundo da
astrologia, que cotidianamente não pertence ao mundo “real”. O pai de Luciana gosta mais de
seus livros que das pessoas e a mãe de João vive gravando cenas para o cinema, que também
representam o maravilhoso, por estarem fora do cotidiano. Sem falarmos que o próprio cartão -
postal, o espaço físico onde mora a a do menino, é representação do maravilhoso, do
utópico.
O pai de Luciana engole as palavras e paradoxalmente fica em silêncio, não gosta de
falar. Helena espera pela palavra do menino que detém o silêncio. Seu Wanderley escreve
palavras que têm como função conduzir os mortos aos céus. As palavras possuem poder de
vida e de morte nas narrativas. A presença de língua e strangeira, principalmente do inglês,
expressa também, o desejo de saída do cotidiano, o desejo de descansar, como diz a avó de
Leninha. As máscaras, a dublagem, são também o falso, o não real.
João não gosta das cenas sensuais que a mãe grava, chega a vo mitar, externando sua
repulsa. Ele e a irmã ouvem as noites de sexo entre sua mãe e Chico Danger. Leninha também
escuta as aventuras sexuais de seu pai e Miriam. A figura do Tarzan aparece em ambas as
narrativas: Chico, grita como o Tarzan, fazendo barulho e quebrando a tranqüilidade da casa,
a mãe de Leninha, apesar de ter um namorado virtual, necessita sair com o Tarzan, para
trepar. São duas faces da mesma moeda, o Tarzan.
O isolamento das famílias aparece na rede familiar reduzida, poucos familiares
freqüentam as casas. O isolamento dos indivíduos fica registrado na brincadeira infantil de
estátua, onde cada um está isolado, mesmo estando perto do outro e no álbum de fotografias,
em que os membros da família estão reunidos, apenas ali, ou no relacionamen to virtual
mantido por Helena.
Vida e morte, atração e repulsão, o humano está por toda a parte. O desejo do
proibido, próprio do ser humano, se mostra através de Luciana ao manter em seu quarto a
boneca morta e fazer um altar para ela, ao guardar o vidro de ossinhos de galinha que o tio
Manoel lhe deu, ao querer ver o tio morto, quando quer pular no pescoço de Selma, por ela ter
mexido em seu quarto, quando quer esgoelar Coelho e quebrar Boneca em mil pedaços ou
quando quer ver a loucura de Selma; em João, por não perder a chance de assustar a pequena
Clara, lhe contando histórias em que as vítimas são meninas, Clara também tem uma boneca
que diz estar morta e que prevê o futuro; e em Leninha quando maltrata a gata Tequila ou
imagina acidentes envolvendo o pai, Miriam, a avó e a manicure.
Luciana, nome que significa luz, é a luz que o pai necessita, João, cheio de graças,
Clara e Helena, respectivamente, brilho e aquela que leva a luz. Leninha diz que Rico é a “luz
no mundo”, a luz do seu mundo. E é justame nte a luz das descobertas, das revelações que
impulsionam as narrativas e as vidas dessas crianças, adolescentes, homens e mulheres. As
descobertas atreladas ao poder das palavras geraram as representações infantis e o encanto
com a infância que promoveram as narrativas e que permitiram as observações que fizemos.
A figura predominante nas narrativas é a feminina. Temos duas narradoras, Luciana e
Leninha, e um narrador, João. No mundo de Luciana, a figura mais importante é seu pai, para
Leninha, creio que podemos dizer que seu Wanderley é o dono da maior atenção da menina e
para João, sua mãe é a figura de maior valor.
Os rituais de passagem da infância para adolescência são bem definidos: Luciana
começa a demonstrar a saída da infância quando se pinta, se embebeda, deseja beijar o artista
da novela, deixa seu quarto infantil, seus brinquedos perdem o significado que tinham até
então e ela desloca a sua atenção para o mundo exterior, para os amigos. João começa a se
masturbar e de rival de Francisco, passa a cúmplice, pois o padrasto o leva para ter o primeiro
contato sexual com uma mulher. Leninha também é maquiada pelas prostitutas, decide por si
fazer uma tatuagem, descobre o primeiro amor e a primeira relação sexual ao lado de
Jonathan, tem um filho n a adolescência, e, como Luciana, seus brinquedos se tornam inúteis
para ela e assumem assim outro significado.
A entrada na adolescência configura uma mudança de atitude, principalmente em
Luciana e João, pois Selma e Chico Danger, respectivamente, passam de rivais a cúmplices,
de figuras ameaçadoras a amigos.
E, como nos diz Drummond nos versos que escolhemos para epígrafe desse trabalho,
somos todos diferentes, e por isso, ou apesar disso, somos todos iguais.
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