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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CARLA APARECIDA ALVES BENTO
A FLUIDEZ DAS RELAÇÕES AMOROSAS: UMA ANÁLISE DOS ROMANCES
SOLO FEMININO, DE LIVIA GARCIA-ROZA E OBSCENO ABANDONO, DE
MARILENE FELINTO
Rio de Janeiro
2006
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1
A FLUIDEZ DAS RELAÇÕES AMOROSAS: UMA ANÁLISE DOS ROMANCES
SOLO FEMININO, DE LIVIA GARCIA-ROZA E OBSCENO ABANDONO, DE
MARILENE FELINTO
por
CARLA APARECIDA ALVES BENTO
(Aluna do curso de Mestrado em Letras Vernáculas)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras Vernáculas ( Literatura
Brasileira), como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira,
elaborada sob orientação do Prof. Dr. Alcmeno Bastos.
UFRJ – Faculdade de Letras
2006
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FICHA CATALOGRÁFICA
BENTO, Carla Aparecida Alves. A fluidez das relações amorosas:
uma análise de Solo feminino, de Livia Garcia-Roza e Obsceno abandono, de
Marilene Felinto. / Carla Aparecida Alves Bento. Rio de Janeiro, 2006.
Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras, 2006.
Orientador: Alcmeno Bastos
1. Literatura 2. Análise Literária
3
BENTO, Carla Aparecida Alves. A fluidez das relações amorosas: uma análise dos
romances Solo feminino, de Livia Garcia-Roza e Obsceno Abandono, de Marilene Felinto.
Rio de Janeiro, 2006. 99 fls. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Profº Dr. Alcmeno Bastos – FL/UFRJ (orientador)
Profª Drª Fátima Cristina Dias de Rocha – FL/UERJ
Profº Dr. Adauri Bastos – FL/UFRJ
Profª Drª Rosa Maria de Carvalho Gens – FL/UFRJ (suplente)
Profª Drª Angélica Soares – FL/UFRJ (suplente)
4
“O ser busca outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido.
São dois em um: amor, sublime selo
que à vida imprime cor, graça e sentido.
“Amor” – eu disse – e floriu uma rosa
embalsamando a tarde melodiosa
no cano mais oculto do jardim,
mas seu perfume não chegou a mim.
(Carlos Drummond de Andrade)
5
Dedico
À Maria Ferreira, minha avó, e Dirce Alves, minha mãe, pelo amor incomensurável.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo sustento e pela capacidade.
A minha família, que apoiou esta caminhada e suportou com paciência as ausências.
Ao Professor Alcmeno Bastos, por ter acreditado neste projeto e por toda a ajuda prestada.
Aos amigos, que compreenderam a distância e o silêncio.
À Viviane Arena e Viviane Valdevino, que nunca deixaram que eu olhasse para trás.
Ao Fábio, pelo amor e pelo apoio inquestionável.
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SINOPSE
Análise dos romances Solo feminino e Obsceno
abandono, com ênfase na questão do amor.
Apresentação das relações amorosas de acordo com o
conceito de pós-modernidade ou de “líquido mundo
moderno”, inspirado nas idéias de Zygmunt Bauman. O
amor como sentimento fluido e inconstante, provocador
de uma busca incessante de final feliz em Solo feminino
e de solidão em Obsceno abandono.
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Resumo
BENTO, Carla Aparecida Alves. A fluidez das relações amorosas: uma análise dos
romances Solo feminino, de Livia Garcia-Roza e Obsceno abandono, de Marilene Felinto.
Rio de Janeiro: 2006. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Análise dos romances Solo feminino, de Livia Garcia-Roza e Obsceno Abandono, de
Marilene Felinto, centrada na questão do amor, de acordo com a concepção que a pós-
modernidade deu ao termo: a de um sentimento fluido e inconstante, incapaz de tornar
unidos eternamente os amantes. A partir da visão de amor presente nos romances, foi feito
um estudo sobre como o amor influencia a vida das personagens. As definições de pós-
modernidade e uma breve recapitulação da trajetória do amor serviram de aporte teórico
para a interpretação dos textos, a fim de comprovar a aplicabilidade dos conceitos
propostos. A presença do amor nos dois romances permite a aplicação do sentimento ao
universo lingüístico dos textos e à própria condição existencial das personagens. Reflexões
acerca da influência da instituição familiar na condição amorosa das personagens e da
condição humana diante das mudanças sociais da atualidade permitiram a interpretação dos
textos através dos termos “fluido” ou “líquido mundo moderno”, utilizados por Zygmunt
Bauman, autor de Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.
9
Abstract
Bento, Carla Aparecida Alves. “A fluidez das relações amorosas: uma análise de Solo
Feminino, de Livia Garcia-Roza e Obsceno abandono, de Marilene Felinto. Rio de Janeiro:
2006. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Analysis of the novels Solo feminino, by Livia Garcia-Roza, and Obsceno abandono, by
Marilene Felinto, focused on love’s question. The question of love, according to the
conception that a post-modernity gave to the term: a feeling’s flow and inconstant,
incapable of making lovers staying togethers forever. From the view of love present in the
novels, it was done a search about how this love influences the characters’ life. The post-
modernity definitions and a brief recapitulation of the love’s route were the theoritical basis
to the interpretation of texts, with the purpose of proving the applicability of the concepts
offered. The presence of love in both novels allows the felling’s application to the
linguistics universe of texts and to the characters’ existential condition. Reflections about
the influency of a family institution in the lovely condition of the characteres and in the
human condition in front of the social changes of the present time allowed the
interpretations of texts with the usage of some terms like “flow” or “modern world liquid”
as those used by Zygmunt Bauman in Liquid Love: on the frailty of human bonds.
10
Sumário
Introdução
11
2 A fluidez das relações amorosas 15
2.1 Visões da pós-modernidade e do amor 16
2.1.1 Breve história do amor 19
2.1.2 Um amor fluido – visões do amor e da atualidade 23
2.2 Solo feminino: um amor em desacerto 39
2.2.1 “Palavras apenas, palavras pequenas...” – a linguagem do texto 41
2.2.2 Os “laços de família” – a base do desacerto amoroso 53
2.2.3 Amor, amores” – o sentimento amoroso num solo feminino 62
2.3 Obsceno abandono – o amor de um eu que se perde na alteridade 68
2.3.1 Uma questão de identidade 69
2.3.2 Vou te contar...” – entre o “Obsceno” e o “Abandono” 72
2.3.3 “Sem você eu não sou ninguém...” 80
3 Conclusão 96
4 Referências Bibliográficas 99
11
1 Introdução
No início deste século XXI, a sociedade assiste à grandes mudanças – territoriais,
governamentais, sociais. Informação é a palavra de ordem – e tudo funciona com uma
velocidade por vezes assustadora nesse “admirável mundo novo”. As pessoas se
comunicam através das redes de computador, ao mesmo tempo em que se recebe
informações sobre guerras e bombardeios do outro lado do mundo. O amor, assunto do qual
se falará nesta dissertação, “navega” também pela internet – ama-se e desama-se pela rede.
Há agora uma cultura digital, na qual os seres humanos comunicam-se na “aldeia global”
(sinônimo de mundo globalizado) em que vivem.
Esse amor que se vive na era atual é o tema central de uma coleção de livros
publicados pela Editora Record entre os anos de 2001 e 2003. Denominada “Amores
Extremos”, a série conta com sete livros, escritos somente por mulheres, cujo tema central,
é, obviamente, o amor. Entretanto, o amor de “Amores Extremos” não é um amor qualquer:
são amores. É o amor que se deixou vencer pela passagem do tempo, o amor a si próprio, o
amor ao próximo, o amor que nunca chega. São eles: Através do vidro: amor e desejo, de
Heloísa Seixas; Para sempre: amor e tempo, de Ana Maria Machado; Recados da lua:
amor e romantismo, de Helena Jobim; Obsceno abandono: amor e perda, de Marilene
Felinto; Solo feminino: amor e desacerto, de Livia Garcia-Roza; O pintor que escrevia:
amor e pecado, de Letícia Wierzchowski e Estrela nua: amor e sedução, de Maria
Adelaide Amaral.
De todos esses amores, dois chamaram a atenção: o de Obsceno abandono: amor e
perda e o de Solo feminino: amor e desacerto. Ambos retratam duas personagens femininas
que estão em busca de uma realização e que são viventes em um mundo de mudanças. Em
Obsceno abandono, a personagem, que não possui nome, vive a dor de ter sido abandonada
12
pelo homem que era seu amante. Sua felicidade e seu amor só estariam completos caso
esse homem retornasse a seus braços. Como isso não acontece, a personagem precisa lidar
com a dor causada pela perda do amor e de si mesma, pois ela só sabe viver se for para o
homem amado.
Por sua vez, em Solo feminino a protagonista tem nome: Gilda. Sua busca, seu alvo,
é ser feliz com o homem amado, mas acima de tudo está um outro desejo: o de alcançar um
orgasmo. Por ter vários problemas com a família, Gilda passa todo o tempo se
questionando acerca do que a impede de ser feliz, enquanto continua em busca de seu
objetivo.
O amor, então, passa a ser o alvo para essas mulheres. O termo “fluidez”, que dá
título a este trabalho, é utilizado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman para definir o
estado de sociedade em que vivemos. Bauman chama de “líquido mundo moderno” o que
alguns escritores chamam de “pós-modernidade” ou “modernidade tardia”. Os dois
romances mostram a que ponto se chega pelo extremo do amor, mas um amor fluido que
não se prende a nada, muitos menos a laços definitivos, como o casamento, por exemplo.
Enquanto Gilda procura em vários parceiros sua tão sonhada realização em Solo feminino, a
personagem de Obsceno abandono se debate entre as agruras de não ser amada como ela
acredita que deveria ser.
Muito se encontra sobre o amor nas prateleiras de auto-ajuda. Entretanto, o texto
literário não se desdobra para o viés de consolo aos leitores. Vários livros de outras áreas de
estudo, como a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia, por exemplo, dedicam-se a
estudar o amor ou como o amor reflete o comportamento social de homens e mulheres.
Porém, sabe-se que o amor que hoje é estampado nos romances não é mais o folhetinesco
do século XIX. Este amor é fruto de uma mudança social e comportamental, que surgiu
13
coma chegada de uma nova era de pensamentos: a “pós-modernidade”, termo utilizado por
alguns estudiosos, como Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, para
explicar as atitudes desta época atual. Esta dissertação se propõe, então, a analisar o texto
literário, mostrando como o amor serve de pano de fundo para a caminhada das
personagens.
Após a leitura dos romances, surgiram alguns questionamentos que levaram à
reflexão: até que ponto, por exemplo, o sentimento dessas mulheres se iguala? Elas falam
uma mesma linguagem? Seus impedimentos são semelhantes? É uma questão de amor ou é
apenas uma maneira de erigir uma construção de gênero sobre a narrativa? Haveria nos
livros um discurso “feminista”, visto que são ambos escritos por mulheres?
Essas e outras questões foram sendo respondidas ao longo da dissertação, de forma
a elucidar que é realmente através do texto que se constrói a base da comunicação
narrador/leitor. Sem discursos identitários ou partidaristas, as personagens apenas
comunicam o seu momento, fazendo com que o leitor se ligue a elas nessa busca,
completando seus destinos.
Para estudar os livros sem fazer com que o texto fosse assunto secundário, primeiro
fez-se um estudo das concepções teóricas utilizadas na análise dos romances. Como as
leituras serviram de aporte teórico para uma elucidação dos trâmites do amor na sociedade
pós-moderna na qual se encaixam as personagens, nada mais devido que explicitá-las.
Vale dizer que nem todas as obras lidas para a pesquisa foram publicadas neste
início de século XXI. Várias delas pertencem ao pensamento da era tida como “moderna”,
que compreendeu todo o século XX, em especial as publicações feitas nas décadas de 40 a
90. Isso não quer dizer que as teorias estejam ultrapassadas. Muito pelo contrário: estas
idéias, como as de Simone de Beauvoir, por exemplo, autora de O Segundo Sexo, eram
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apenas reflexões acerca do comportamento feminino na década de 50, mas continuam
atuais até hoje. Afinal de contas, em termos cronológicos, não é tanto tempo assim para que
se apaguem as luzes de um pensamento que já era tido como “moderno” quando foi
editado.
O desenvolvimento da dissertação é dividido em três partes. Na primeira parte, há
uma definição teórica acerca do que alguns escritores já disseram sobre o amor. Não
caberiam aqui todas as teorias. Os textos e reflexões utilizadas nesta dissertação refletem
uma escolha, que não poderia deixar de ser feita dada a extensão do trabalho. Esta escolha,
entretanto, não foi aleatória: ela se baseia no que mais havia de acordo com os
questionamentos que a leitura dos romances provocava, intentado trazer sempre a
interpretação literária para um primeiro plano.
Como até o momento ainda não há nenhuma pesquisa feita em torno desses
romances, cabe aqui um primeiro olhar sobre as obras das autoras. Os tópicos seguintes do
desenvolvimento deste trabalho relatam a análise feita acerca dos livros. Primeiro, em Solo
feminino, observou-se a questão da linguagem, para então se passar a falar do amor. Em
Obsceno abandono, um assunto torna-se necessário explicar primeiro: a falta de nome e de
identidade que possui a personagem, para depois se falar também da linguagem e do amor.
Desta forma, tenciona-se tornar a compreensão do texto mais maleável, mais “fluida” –
apropriando-se da terminologia de Bauman – ao leitor.
Por fim, a conclusão. As personagens poderiam reiterar para si mesmas que “tudo
vale a pena, se a alma não é pequena”, como disse o poeta Fernando Pessoa. Ao fim do
trabalho, tornou-se mais fácil entender que realmente é um amor extremo que liga essas
mulheres, mesmo tendo sido provocado pelos mais diversos motivos.
15
2 A “fluidez” das relações amorosas
O cenário no qual se apresenta a sociedade atual é determinado como um período
em que os relacionamentos interpessoais estão se modificando. Por isso, torna-se necessário
fazer uma pequena apresentação de como a sociedade evoluiu até este estado de mudança
que Zygmunt Bauman, autor de Modernidade Líquida e Amor Líquido: sobre a fragilidade
dos laços humanos, apresenta e que outros autores também estão difundindo em suas
pesquisas e estudos. As teorias de Zygmunt Bauman, bem como as de outros autores,
servirão de base teórica para esta dissertação.
Como a presente era é uma história que ainda está sendo escrita, não é assim tão
vasto o material de pesquisa acerca da pós-modernidade. Os jornais e revistas exploram a
chamada “crise do amor” (termo que ilustra essa fase de mudanças nos relacionamentos
amorosos) com técnicas infalíveis para se dar bem em situações que podem porventura
ocorrer num relacionamento (como, por exemplo, uma rejeição). As colunas de
relacionamentos de revistas e periódicos servem de fonte de consulta para a resolução de
problemas “infindáveis” no campo do sentimento amoroso.
As velhas “identidades”, que definiam a noção de homem como habitante de um
mundo “organizado e moderno” estão em declínio, provocando o surgimento de novas
identidades, de novas marcas do ser humano e uma fragmentação no “sujeito” da era atual.
Os “sujeitos” do modelo cartesiano (cujas escolhas eram feitas com base nas determinações
clericais de sociedade) vêm cedendo lugar aos chamados sujeitos pós-modernos (ou da pós-
modernidade), cujas identidades estão se moldando de acordo com suas atuais escolhas.
Para este estudo, será apresentada a visão de um amor pós-moderno; antes, porém,
uma pequena definição dos termos que serão recorrentes nesse texto.
16
2.1 Visões da pós-modernidade e do amor
O termo “líquido” é usado por Zygmunt Bauman em sua obra Modernidade Líquida
como uma grande metáfora para explicar esta era pós-moderna; o mesmo equivale para o
uso dos termos “fluido”, ou “fluidez”, ou “em estado de liquefação”, que o teórico utiliza
para explicar as situações dos relacionamentos interpessoais da atualidade. Segundo
Bauman, incapazes de se “fixarem”, ou seja, de manterem a durabilidade de seus
relacionamentos, os seres humanos estão sempre propensos a mudar, dada a extrema
mobilidade e fluidez do mundo, ou seja, das constantes modificações pelas quais o homem
passa. É essa mobilidade que associa às ações e sentimentos humanos da atualidade a idéia
de “leveza” e de “inconstância”, ou seja, de fluido. Desta forma, diz Bauman, “...os fluidos,
por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo.” (BAUMAN, 2001:08).
A pós-modernidade, de acordo com Bauman, foi “fluida” desde sua concepção.
Mesmo em períodos ditatoriais, como os ocorridos no século XX, ou de subordinação a um
sistema de regras sociais preestabelecidas, havia o desejo por uma liberdade individual de
agir e de escolher, independentemente daquilo que se apresentava como sistema. Este
momento, entretanto, é um período de individualidades, no qual o sujeito procura viver por
sua conta e risco, mesmo que, às vezes, receie não ser a decisão mais acertada. Bauman
cita, como uma das origens destes tempos, as idéias propagadas por Marx e Engels em
Manifesto Comunista.
Segundo eles, a sociedade de sua época era o que se concebia como “moderna” e
que possuía resistência suficiente para não se deixar modificar por influências externas e
internas de comportamento. Entretanto, os citados autores já previam em seu Manifesto que
toda essa “solidez” de regras e costumes, essa “resistência”, iria se desfazer pelo desejo de
mudança que caracteriza o homem. A intenção, porém, não era a de destruir totalmente
17
regras ou tradições: as alterações seriam necessárias somente para abrir caminho a novas
regras e determinações sociais que pudessem ser absorvidas no mesmo lugar das regras que
se desejava modificar.
As relações interpessoais, por sua vez, foram as primeiras influenciadas por essas
mudanças comportamentais, seguidas das relações familiares, visto que ambas ficaram mais
expostas aos ditames das novas regras, inclusive econômicas, que se tornaram a base de
uma nova ordem mundial
“Não que a ordem econômica, uma vez instalada, tivesse colonizado,
reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social; essa ordem
veio dominar a totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse
ter acontecido nessa vida tornou-se irrelevante e ineficaz no que diz
respeito à implacável e contínua reprodução dessa ordem.” (BAUMAN,
2001:11).
Em verdade, o que está sendo modificado nesse momento são as relações humanas,
“são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os
padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas
individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humana, de outro.”
(BAUMAN, 2001:12). As relações de co-presença, em que há a necessidade do outro
(como os relacionamentos amorosos) exigem proximidade e distância, e ambas co-existem
na atualidade. Não se precisa tanto de proximidade física para se sentir ou se estar perto no
“líquido mundo moderno”, seguindo a metáfora de Bauman. Perderam-se, por sua vez, os
velhos pontos de referência, nos quais encontravam-se o sim e o não, o poder e o não poder,
mas ainda não se tem certeza acerca dos novos pontos de referência em vigor.
Elizabeth Badinter, autora de Um é o outro diz que, por exemplo, acerca de
relacionamentos, “sabemos o que não somos mais, sem perceber claramente o que
queremos ser” (BADINTER, 1986:217). Essa incerteza foi uma das modificações nos
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relacionamentos interpessoais que já havia sido prevista na era pós-moderna, ou seja, sabe-
se, por exemplo, que parceiros ou parceiras deveriam ser escolhidos, mas não há normas
que determinem o correto dessas escolhas.
Na pós-modernidade, os indivíduos são apresentados a ordenações novas que
continuam, no entanto, a ser ordens e regras como antes. A tarefa do indivíduo na era
moderna era usar sua “liberdade” para se adaptar, como desejado; porém, na pós-
modernidade esses padrões e códigos, que antes “adaptavam”, permitiam a alocação, estão
cada vez mais em falta. A escolha de um par já não é mais regra obrigatória para a
felicidade, embora ainda seja vista como ponto fundamental para ser feliz.
A sociedade deste início de século XXI é, na verdade, uma versão individualizada e
privativa da sociedade da era moderna. Os padrões de dependência e interação sociais
também estão maleáveis. Isso requer pensar os velhos conceitos de conhecimento, de
território, de mundo conhecido. O poder, por exemplo, é agora extraterritorial e
globalizado, pulverizado e móvel, mesmo que para tal não se precise sair do lugar.
Tempo e o espaço estão separados na pós-modernidade e os densos laços sociais
que mantêm as relações interpessoais tendem a ser desfeitos, por não haver nada que os fixe
como uma ordem obrigatória a ser seguida. É o caso, por exemplo, do casamento, laço
social indispensável à visão de uma “boa família” na era moderna – e cujo conceito tem
sido modificado na era pós-moderna. O que marca esta sociedade é o fato de seus membros
agora sentirem necessidade de achar-se, cada uma na sua identidade, neste “admirável
mundo novo”.
19
2.1.1 Breve história do amor
Para falar de amor, tema discutido na análise das obras selecionados para essa
dissertação, faz-se necessário explicar uma pequena trajetória do amor, sem, entretanto
pretender esgotar aqui o assunto.
Em História do amor no Ocidente, Denis de Rougemont faz uma trajetória do
relacionamento amoroso, baseado em mitos, lendas fábulas que explicam o amor enquanto
sentimento a ser buscado no outro. O autor diz
Acaso não será todo o Outro o Inacessível, e toda mulher amada uma
Isolda, mesmo que nenhuma proibição moral ou tabu venha simbolizar
[...], a própria essência do obstáculo excitante, aquele que dependerá
sempre do próprio ser: a autonomia da pessoa amada, sua fascinante
estranheza? (ROUGEMONT, 2002:529)
E é dessa forma que o autor descreve as origens do amor. Para os gregos,
fundadores do pensamento ocidental, o amor era uma experiência extremamente
perturbadora, pelas emoções provocadas numa época de predomínio da razão; mas o
casamento, que não implicava diretamente uma conseqüência do amor, era sinônimo de um
lar bem organizado e estruturado. Detentores do conhecimento e da razão, os gregos jamais
cederiam às ordenanças de um “líquido mundo moderno”, visto que toda a sua organização
social era baseada numa visão racional e organizada da vida humana.
Nesse período, o enlace entre os pares era realizado com bases sólidas do
relacionamento entre as famílias e com a finalidade de se criar novos laços, não sobre a
fragilidade do amor. O amor, “presente dos deuses”, era sinônimo de boa convivência e de
respeito entre os cônjuges.
20
Com a chegada da Idade Média, o amor é o chamado cortês e palaciano. O desejo
de um amor ideal, pleno de realizações (no plano carnal e espiritual), é contido pelas
ordenanças familiares. Visto na maior parte das vezes como uma aliança econômica,
finalidade de ambas as famílias envolvidas, os casamentos de conveniência acontecem
desde o início da humanidade. Nos tempos bíblicos, mandava-se buscar esposas para os
primogênitos da casa entre os próprios familiares, como no caso dos patriarcas Abraão e
Jacó.
Na era medieval, era comum a união de reinos e alianças político-econômicas
visando a um bem único, independentemente da opinião dos envolvidos – inclusive das
mulheres, que sequer eram consultadas acerca de sua vontade. Os filhos, fruto dessas
uniões, seriam o futuro e a continuidade da ordenação familiar iniciada com os pais e assim
por diante. Nesse período, por exemplo, perder um cônjuge não era o fim de tudo: tão logo
fosse possível, erguia-se uma nova aliança, um novo casamento, de maneira que as ligações
familiares continuassem, mas sem a influência do amor.
A pureza e a virgindade das donzelas também eram mantidas, visto que a promessa
de fidelidade e primazia feita ao marido, o novo “dono”, deveria ser cumprida. Segundo
Anthony Giddens, em A transformação da intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas
sociedades modernas,
há muito tempo a ‘virtude’ (grifo do autor) tem sido definida em termos
da recusa de uma mulher em sucumbir à tentação sexual, recusa esta
amparada por várias proteções institucionais, como o namoro com
acompanhante, casamentos forçados e assim por diante.(GIDDENS,
1992:16).
O amor na Idade Média, segundo Laura Kipnis, em Contra o amor: uma polêmica,
era tido como ilícito e fatal; a paixão era sinônimo de sofrimento e o final feliz, que o mito
21
do “amor romântico” começa a propagar a partir do fim do século XVIII, ainda não
acontecia. Entretanto, se morrer para que o corpo libertasse a alma que a prendia a este
mundo terreno era sinônimo de final feliz, decerto o amor não seria aceito por todos nessa
época, em que o corpo era visto como um reduto puro da habitação divina. Cabia então aos
amantes submeterem-se a um casamento sem amor. Mas o mito do “amor romântico” não
era só um prenúncio de felicidade: era uma tentativa de libertação das regras que prendiam
os amantes aos “arranjos” matrimoniais.
Explicando o mito de Tristão e Isolda sob a luz da psicanálise, Robert A. Johnson,
autor de We: A Chave da Psicologia do Amor Romântico, diz que o “amor romântico não é
apenas uma forma de “amor”, mas é todo um conjunto psicológico – uma combinação de
ideais, crenças, atitudes e expectativas” (JOHNSON, 1987:13). Ou seja: o desdobramento
da relação amorosa ia além da expectativa dos amantes de manter o amor em seus
confinados corações: mudava-lhes, também, a maneira de ver a vida.
Até o século XVIII, a paixão, enquanto desejo de fusão das almas, acontecia, na
maior parte das vezes, fora do casamento. Denis de Rougemont relata dos mitos que a
paixão (enquanto sinônimo de realização amorosa) nem sempre obedecia o limite conjugal,
ainda que essa paixão fosse chamada de “amor”, sentimento destinado aos cônjuges.
Habituadas a serem castas até que trocassem de mãos para serem controladas pelas
ordens do marido (no auge do poder patriarcal), as mulheres recusavam-se a certos
comportamentos tidos como libertinos, como por exemplo, o beijo na boca (a referência é
feita às mulheres casadas e solteiras também). A luxúria e a libertação da alma propaladas
pela paixão eram de cunho extraconjugal, já que o casamento era tratado como uma aliança
de negócios. Bastava então, como última saída, ser feliz num outro relacionamento que não
aquele controlado pelas ordens sociais.
22
Com as grandes revoluções democráticas – como a Revolução Francesa, por
exemplo – uma classe não atingida ainda diretamente pelos ditames do casamento por
negociação sobe ao poder: a burguesia. O casamento por amor, ameaça que destruía os
planos futuros das famílias envolvidas, na continuação de uma linhagem de poder, principia
a deixar de ser um problema.
Segundo Gilles Lipovetsky, em A terceira mulher: permanência e revolução do
feminino, o amor romântico foi a grande invenção do mundo ocidental. De acordo com o
estudioso, “Nunca uma criação poética conseguiu transformar de modo tão profundo a
sensibilidade, as maneiras, as reações ente os homens e mulheres quanto [...] o amor.”
(LIPOVETSKY, 2000:19).
Segundo o escritor, no século XX vivenciaram-se alterações na visão de “felizes
para sempre” projetada desde o século XIX, que pregava a felicidade na vida ou na morte.
Na atualidade, porém, com a vida já instituída financeiramente e sem a necessidade de
laços eternos que mantenham a ordenação da família, o amor deixa de ser uma ameaça – e
mulheres e homens casam-se com quem querem. Isso não significa dizer que o amor
fulminante era basicamente o que unia o casal – a afinidade nascia com o tempo, embora
isso não garantisse o ser feliz para sempre.
Bauman diz em Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos que, até hoje,
“a menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser
empreendidas para confirmá-la, a afinidade vai definhando, murchando e se deteriorando
até se desintegrar.” (BAUMAN,2004:46).
Na era pós-moderna, o amor ganha outra tonalidade. Aproveita-se, experimenta-se
tal como o trabalho ao estilo antigo, hoje dividido numa sucessão de
horários flexíveis, tarefas únicas ou projetos de curto prazo, e da mesma
23
forma que a compra ou o aluguel de uma propriedade, que agora tende a
ser substituída pela ocupação time-share e pelos pacotes de fim de
semana, o casamento ao estilo antigo, ‘até que a morte nos separe’, já
desestabilizado pela coabitação ‘vamos ver como funciona’,
reconhecidamente temporária, é substituído pelo ‘ficar juntos’, de horário
parcial ou flexível. (BAUMAN, 2004:53,54)
Os casamentos arranjados (ou de conveniência) não mais existem (pelo menos se
crê que não existam no Ocidente), mas algumas pessoas ainda se apaixonam – numa ironia
do destino – pelos chamados “bons partidos”: apesar das novas “regras” de comportamento,
segue-se fazendo a mesma coisa, escolhendo alguém que tenha o mesmo nível educacional
ou um bom trabalho. Não se casa mais por medo de perder o momento do amor, mas pelo
receio de não tê-lo experimentado.
Viver juntos também tornou-se sinônimo de amar, bem como o sexo virou sinônimo
de fazer amor – estar juntos perfaz o percurso do “que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito enquanto dure”, conforme disse o poeta Vinícius de Moraes.
Enquanto se vive a imortalidade do momento, não há, no líquido mundo moderno, a
necessidade de se refletir por quanto tempo durará o relacionamento amoroso.
2.1.2 Um amor fluido - visões do amor e da atualidade
Alguns autores tidos como modernos e pós-modernos, foram utilizados para
explicitarem as visões do amor na atualidade neste trabalho. Entretanto, isso não significa
que os autores que escreveram na modernidade tivessem uma visão totalmente
diferenciada. Muito pelo contrário – foi a visão crítica desses autores que permitiu essa
aplicação teórica aos textos estudados.
24
É preciso ressaltar que apenas algumas idéias apontadas por esses autores (como no
caso de Elizabeth Badinter e Simone de Beauvoir, por exemplo) foram citadas, pois seus
estudos serviram como aporte teórico para ilustrar a análise dos romances Solo feminino:
amor e desacerto, de Livia Garcia-Roza, e Obsceno abandono: amor e perda, de Marilene
Felinto, que são o objeto de estudo desta dissertação. Outros autores também foram
utilizados ao longo do corpus, mas o que se ressalta neste capítulo (sem diminuir os
demais) são os estudos de maior empregabilidade na interpretação das obras supracitadas,
que têm o amor como tema central, já que se tratam de “Amores Extremos”.
“Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, disse o poeta Fernando Pessoa em
Mensagem. E então vem o questionamento: tudo vale a pena em busca de um grande amor?
Quando, em 1949, a socióloga Simone de Beauvoir lança O Segundo Sexo (as citações do
trabalho são da edição de 1980), ela apresenta uma visão crítica sobre a condição da mulher
prostrada ainda pela força do domínio masculino. Não era uma denúncia – era uma reflexão
(editada em dois volumes) acerca da situação feminina. É com base nessa reflexões que se
fazem os apontamentos para este trabalho, que servirão de pano de fundo para se entender
as ações das personagens dos romances.
Em O Segundo Sexo, Beauvoir trata, em especial no capítulo “A Amorosa”, do
relacionamento sufocante entre mulher e homem. Aqui, a mulher é apresentada como um
ser extremamente dependente da figura masculina. A proposição do capítulo é assentada
sobre esta afirmação, de Niezstche: “A palavra ‘amor’ não tem em absoluto o mesmo
sentido para um e para outro sexo” (BEAUVOIR, 1980:411). Sem demonstrar um discurso
engajado, a autora discorre sobre a condição da mulher doadora de seu eu em troca de algo
que a satisfaça – em geral, o amor e a atenção masculinos – e que conseqüências sofre essa
mulher ao subordinar-se a tais situações de “doação”.
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Simone de Beauvoir reconhece nos pensamentos de Niezstche, em Gaia Ciência,
um respaldo para sua proposição. Segundo Niezstche, a mulher vê o amor como uma
renúncia total, uma doação incondicional que lhe permita encontrar-se no ser amado. Para o
filósofo, o amor é um dom total de corpo e alma, é uma fé – e é a única que a mulher tem:
“... A mulher dá-se, o homem aumenta-se com ela” (Niezstche, Gaia Ciência. apud:
BEAUVOIR, 1980:427). É à semelhança desta mulher dependente que se apresenta a
personagem de Obsceno abandono, como se verá mais adiante.
Segundo a autora, o amor do homem pela mulher traduz-se num sentimento de
posse; por sua vez, para a mulher, o amor é uma abnegação, é uma religião – a exaltação
suprema desse amor toma o campo do sublime e torna-se como um deus, a quem ela se
entrega pronta e devotadamente, como o faz a personagem de Obsceno Abandono, que
dedica-se integralmente a um homem que não a amou como ela desejava. A mulher
amorosa apaixona-se pelo homem por ver nele seu oposto, um ser de igual contingência;
caso contrário, não há amor nem entrega total: “...normalmente ela procura o homem em
quem se afirma a superioridade masculina.” (BEAUVOIR, 1980: 412).
A escritora afirma que “...a mulher entregando-se inteiramente ao ídolo, espera que
ele lhe dará a um tempo a posse de si mesma e a do universo que nele se resume.”
(BEAUVOIR, 1980:415). A mulher amorosa só se entrega ao amor quando se sente amada
e correspondida - a ela incomoda não ser o objeto de desejo de seu deus. Faz-se necessário
para ela que o amante viva todos os instantes e momentos para ela, pensando nela e por ela.
É nisso que repousa a base da mulher de Obsceno abandono: sua extrema dedicação ao
amor transformado em deus, faz com que sua vida seja a dele, não mais a sua; faz com que
ela se perca nesse outro que ela reconhece como seu, como instrumento de posse e de
pertencimento.
26
O amor é uma fusão da alma amorosa que estava no outro e que retorna por
instantes ao seu lugar, ao corpo que habitava antes de se fundir no outro. Ao se sentir
amada, a amorosa se preparará, será a mais bela, a que o amante quiser, conquanto esse
frágil “elo” de amor permaneça entre os dois, mas “a amorosa não é somente uma narcisista
alienada em seu eu: ela também sente um desejo apaixonado de transbordar seus próprios
limites” (BEAUVOIR, 1980:419). A personagem de Solo Feminino, Gilda, torna-se sempre
a mais bela quando se sente amada, mas, por vezes, ela é a antítese dessa “Amorosa” – sua
auto-estima eleva-se para impressionar o homem amado, não para se submeter a ele.
Tudo o que a mulher amorosa quer é possuir o ser amado. Tendo “certeza” de que é
amada, ela começa a se perder no outro. Porém, ao não se sentir mais amada, aceita apenas
ser útil e necessária, a fim de que o amado não se desfaça dela. A partir de então, ela se
culpa por não ter sido capaz de envolvê-lo e prendê-lo o suficiente, assim como o faz a
personagem de Obsceno abandono.
Ao não receber cuidados e atenção totais do homem que ama, o que era um ego
cheio de amor torna-se um reduto de ódio por não ter atendido às expectativas do outro: ela
agora molesta-se com palavras e atos por não ter sabido satisfazer o amante, sentindo-se
escrava desse amor e sem possibilidade de libertação, como acontece em Obsceno
abandono. A personagem esquece de si em benefício do sujeito existencial: o objetivo de
todo esse amor desmedido é a identificação com o ser amado, a tal ponto que ela se torne o
outro.
Como à amorosa, pouco importa o que ocorre no mundo ao seu redor: o importante
é ter no interior do homem amado o seu lugar. Entretanto, aceitando-se como dependente
total, como um ser inecessencial, a mulher acaba vítima de sua própria armadilha, pagando
com a própria paz de espírito o peso de tentar aprisionar o outro em quem se projetou.
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Mas a vida da amorosa tem seus contratempos. A idolatria que presta ao ser amado
é muitas vezes desfeita quando da descoberta do ídolo como ser humano, imperfeito,
inconstante. Quando o amor se faz em ruínas ante a força da realidade, a crueldade da
desilusão acentua o sofrimento. Sem a promessa de uma união duradoura, a mulher sente-se
perdida. Se a criança sente uma espécie de “dor” ao descobrir que o pai não é um super-
herói, a amorosa sente mais dor ainda diante da realidade de ver o homem como ele é – sem
traços de mito ou herói.
Diante do homem como ser humano, a amorosa nega a aceitação e tenta manter o
ser amado nas teias tênues do relacionamento. Advém daí um não-reconhecimento da
condição humana dos homens, visto que os seres mortais não são perfeitos. Permanece a
idéia do ídolo, mas o barro do qual ele foi construído pode se quebrar. O que era feito de
“bom coração” – carinhos, cuidados - se transformará em exigência: o homem se tornará o
objeto da argüição e da desconfiança. O amor excessivo provocará o pensamento acerca da
infidelidade.
Em contrapartida a essa mulher extremosa, Simone de Beauvoir diz que a amorosa
“prudente” intenta criar laços sólidos, como o casamento e filhos. Entretanto, esse amor
dedicado só serviria como uma boa experiência se a mulher fosse capaz de se recuperar em
si mesma, resgatando-se e reconstruindo-se, como uma fênix renascida das cinzas. Em
lugar da união, a amorosa conhece a solidão; situação esta que poderia ser diferente, caso
os sentimentos fossem outros. Segundo a autora, quando o amor for visto como algo para se
encontrar, o amor será fonte de vida e não um aviso de perigo, mas as personagens vistas
nesta dissertação não recuaram ante tal aviso.
Para Elizabeth Badinter, autora de Um é o Outro, o amor é aquilo que complementa
os seres da era atual – ou pelo menos, deveria fazê-lo. Para ela, as semelhanças e diferenças
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entre homens e mulheres promoviam uma reflexão sobre os sexos e, consequentemente,
sobre as questões de gênero, que determinavam o lugar de homens e mulheres na
sociedade: é a base dos estudos de Um é o Outro.
Primeiro, Badinter trata das questões primordiais das relações interpessoais, em
“Um e o Outro”; depois, analisa o momento do período patriarcal, sob a ótica de “Um sem
o Outro”, para, enfim, explicitar aquilo que torna homens e mulheres diferentes, e ainda
assim, movidos pela necessidade de se unirem em “Um é o outro”. Não se pode falar,
porém, que a autora afirmava um futuro de novas definições, visto que homens e mulheres
ainda questionam as alterações nas questões de gênero que, antes, demarcavam o lugar de
homens e mulheres na esfera social – a mulher, como ser submisso e o homem, como
provedor familiar.
As concepções de amor mudaram. Homens e mulheres já não são tão marcados
somente pelas diferenças físicas nesta era pós-moderna – entretanto, a responsabilidade de
se educar as gerações futuras ainda cabe, na maior parte dos relacionamentos, à mulher.
Mesmo diante de uma nova consciência, muitas mulheres ainda repetem os discursos de
gênero e se recusam a aceitar a alvissareira igualdade entre homens e mulheres. Deseja-se,
entretanto, agora, encontrar as semelhanças em lugar das diferenças.
Para explicar as ordens de semelhança entre homem/mulher, Badinter se apoia no
mito do andrógino (indivíduo que apresenta as características sexuais do homem e da
mulher)
Na verdade, somos todos andróginos, porque os humanos são
bissexuados, em vários planos e em graus diferentes. Masculino e
feminino se entrelaçam em cada um de nós, mesmo se a maioria das
culturas se deleitou em nos descrever e nos querer como sendo
inteiramente de um sexo. A norma imposta foi o contraste e a oposição.
(BADINTER, 1986:236)
29
A maldição que separou o andrógino perpetua a busca da outra “metade” para
sempre separada. Exteriormente, homem e mulher são diferentes, mas se conhecem
intimamente, segundo a autora, porque possuem em si algo que vem do outro – sua parte no
andrógino. O desejo, nascido da privação das partes distantes, é a fonte do amor entre o
casal; entretanto, uma vez satisfeito, ele não possui mais razão de ser; a busca e o encontro
do desejo acaba sendo a aniquilação do próprio desejo (ou do objeto desejado, em alguns
casos), como diz Zygmunt Bauman.
Não são os órgãos sexuais que determinam a orientação sexual seguida por uma das
partes - homem e mulher se assemelham para se reconhecerem na alteridade de um e do
outro, em suas semelhanças e diferenças. Ela aprende a ser; ele aprende a reagir àquilo que
mantém o caráter feminino para poder ser. É nessa busca constante do encontro com o
outro que vive Gilda, a personagem de Solo feminino. Semelhante interpretação faz Simone
de Beauvoir em O Segundo Sexo, quando afirma em seu primeiro capítulo que “Ninguém
nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980:09). Na formação do casal, segue
dizendo Badinter, o duplo deve existir em cada uma das partes para que haja
complementaridade realmente.
O amor desmedido ao próximo também tem seus problemas no mundo atual. Na
busca desesperada por uma fusão com aquilo que nos falta, diz Elizabeth Badinter
Eis-nos portanto confrontados a um triplo desafio: conciliar o amor por
si próprio e o amor pelo Outro; negociar dois desejos de liberdade e de
simbiose; adaptar, enfim, nossa dualidade à do nosso parceiro, tentando
constantemente ajustar nossas evoluções recíprocas. (BADINTER,
1986:266)
Porém, em caso de rompimento, torna-se ainda mais frágil o um que ficou sem o
outro, e só, por sua vez. Para evitar a solidão, segundo a autora, aprende-se a viver para si,
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e a necessidade do outro se vai se desfazendo. As novas relações interpessoais, entretanto,
deixam o homem dividido entre o desejo de fusão ideal e a vontade de independência.
Amedrontado diante de que caminho escolher, o homem continua experimentando, ligando-
se a outras pessoas, até que possa decidir o que é melhor para si, como faz a personagem de
Solo feminino.
Anthony Giddens narra em A transformação da intimidade: Sexualidade, Amor e
Erotismo nas Sociedades Modernas, questões do comportamento e da sexualidade humana.
Esse tema é recorrente em Solo Feminino, visto que a personagem principal, Gilda, está em
constante busca pela realização daquilo que ela acredita ser mais importante numa relação:
um orgasmo.
A emergência da homossexualidade, segundo Giddens, teve conseqüências
importantes para a vida sexual em geral – deu a uns o direito de assumirem sua orientação
sexual e a outros, a capacidade de reconhecerem a sexualidade como aquilo que é
perpetrado pelo eu de cada um. A sexualidade é o que cada um tem ou cultiva, não algo
preestabelecido: “De algum modo, que tem de ser investigado, a sexualidade funciona
como um aspecto maleável do eu, um ponto de conexão primário entre o corpo, a auto-
identidade e as normas sociais.”(GIDDENS, 1992:25)
Giddens diz que a pós-modernidade nos impele à repressão do excesso de liberdade,
provocada pelo amor e pelo sexo, dado o benefício que oferece: dissolução das regras e
normas para adaptação a um modo de vida. Uma das formas de controlar esse excesso de
liberdade (“camuflado” num amor transgressor e sem limites) é o trabalho, que Gilda, em
Solo Feminino, usará para não pensar nos problemas. Entretanto, esse mundo de “bom
comportamento” (ou de controle e repressão) nem sempre é aprovado por aqueles que neles
vivem; civilizados, então, são os seres que controlam seus impulsos interiores. E cabe um
31
questionamento: para quem vale a pena controlar a força devastadora e rápida do amor
desse líquido mundo moderno?
Segundo Zygmunt Bauman em Amor Líquido, a situação amorosa da atualidade é
explicável com base em redes e não em relacionamentos ou laços. Hoje, fala-se em
conectar-se em lugar de relacionar-se, em redes em lugar de parceiros. Tais redes (de
relacionamentos) funcionam quando se está em contato; as ligações são conectadas ou
desconectadas quando se quer e “estar juntos” é um sinônimo de escolha. Por sua vez, estar
conectado custa menos que estar envolvido – não provoca atritos, muito menos o
sofrimento de uma possível separação.
O namoro pela rede, por exemplo, funciona como uma diversão: começa-se,
termina-se e recomeça-se sem riscos, sem remorsos, sem dor, mas também sem a
experimentação de uma convivência a dois. Nessas relações interpessoais, o romantismo é
desejado, mas ele surge e desaparece com a mesma velocidade da conexão que o exigiu.
Em Obsceno Abandono, a comunicação da personagem com seu amante é feita, por um
bom tempo, através de e-mails, mantendo em rede o que exigiria um contato físico.
Apesar das relações de parentesco (que hoje também se mantêm através dos
contatos virtuais) serem mais tênues, delicadas e sutis, elas também tendem a ser desfeitas,
dada a ligação, por vezes frágil, que as une, conforme se verá no relacionamento de Gilda e
sua mãe e irmãs, em Solo Feminino. A rede de relacionamentos é fluida, é rápida e
antitética: permite a distância e a aproximação, sem que haja necessariamente contato
físico.
O sentimento humano, por sua vez, provoca insegurança por possuir também essa
fragilidade e capacidade de fluidez, tais quais as atitudes do líquido mundo moderno. Às
vezes, por exemplo, quando a qualidade da relação decepciona, procura-se a salvação na
32
quantidade. O que Bauman apresenta é também uma metáfora para explicar que, o que os
laços atavam, as redes permitem passar com extrema facilidade e fluidez, sem que se esteja
necessariamente preso. A palavra “rede” carrega consigo uma intensa maleabilidade, ao
mesmo tempo em que dá a idéia de fios entremeados.
Relacionamentos são o assunto do momento. É o que desperta a curiosidade nas
pessoas. Mas os relacionamentos da atualidade são os que Bauman chama de
“relacionamentos de bolso”: pode-se dispor deles quando necessário e depois, tornar a
guardá-los, livre do comprometimento e da pressão de um compromisso duradouro que os
relacionamentos reais provocam. Em Obsceno abandono, não tendo laços que o prendam, o
amante, Charles, vai embora, deixando a protagonista abandonada e arrependida de ter
amado tanto alguém que não a quis. Não há mais o intento de ficar juntos para sempre
está-se junto enquanto houver acordo entre ambas as partes.
Uma relação de bolso torna tudo instantâneo e disponível, porém, tudo é
previamente acordado entre os pares, mesmo não havendo diálogo entre eles – é um acordo
tácito da sociedade atual. Aqui, não é permitido: primeiro – apaixonar-se (nada de amor ou
desejos incomensuráveis e arrebatadores como os do século XIX); segundo - mudar a
ordem no amor (deve-se manter tudo como está).
Se algo sai “fora” do previamente combinado, é hora de sair da relação e seguir em
frente. É essa mutação que sustenta o prazer de encontrar um novo relacionamento, de
manter a busca. Assim, ao se sentir amarrado, um dos parceiros “joga fora o que está no
bolso”, para caminhar livre. “Consumir” um relacionamento não significa só acumular a
quantidade de casos obtidos, mas usá-los e descartá-los, a fim de abrir espaço para outros
bens e usos, ou seja, outros relacionamentos e novas conexões.
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O relacionamento também é um investimento. Investir numa relação implica receber
segurança (na forma de socorro, apoio, mão amiga), mas as promessas de segurança não
duram tanto tempo assim nos dias atuais. Segundo Bauman, não se deve levar, na
modernidade líquida, o que sobrou de um relacionamento anterior – se são descartáveis os
casos de amor dos relacionamentos de bolso, estes devem ser “saboreados e desfrutados”
instantaneamente.
Apesar dos pesares, no líquido mundo moderno busca-se o relacionamento para
quebrar a insegurança e o medo que infestam a possível chegada da solidão; entretanto,
essa insegurança traz a perda da confiança em si mesmo, levando a uma submissão total ou
tendendo a um poderio controlador sobre o outro, como se verá no caso da personagem de
Obsceno abandono, de Marilene Felinto.
O fracasso do relacionamento pode ser, às vezes, um simples problema de
comunicação (extensível também a problemas familiares, conforme se verá em Solo
feminino, de Livia Garcia-Roza). Se há problemas de fala, uma louvação mútua entre os
parceiros deveria promover uma relação confortável (“Eu te amo. Você me ama?”) – mas
por vezes torna-se difícil separar a adoração do ser amado da vontade de se sentir adorado,
o que pode minar as bases do relacionamento.
O tempo é outro problema que incomoda o amor da pós-modernidade: as formas de
amar têm se renovado na mesma rapidez que o tempo. O ser que vive a correria diária
exigida no mundo globalizado nem sempre pode se dedicar inteiramente ao outro; aí, a
intensidade que exigiria um relacionamento tende a se dissipar.
Com a rapidez da comunicação, as mensagens de amor chegam mais rápido que
nunca. É fato que as formas epistolares foram apenas adaptadas ao sistema
computadorizado, mas o que importava era o tempo da espera, aliado ao esperado conteúdo
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das missivas. Hoje, tudo chega mais rápido, mas questiona-se se as relações mudaram tanto
assim, nessa mesma e intensa velocidade. Em Solo feminino, a personagem se depara com
homens que não têm tempo para amá-la como ela deseja, o que a faz seguir em busca de
um parceiro que realize esta façanha.
O desconhecido também é uma das seduções que envolvem ou que podem destruir o
amor. Vive-se numa tentativa de se ligar ao outro (aquele que não se conhece), assim como
o homem estava ligado a Deus na visão dos Iluministas (o homem segundo a visão de René
Descartes, que trata o sujeito como ser pensante, reconhecedor de Deus como o Criador) e
hoje tenta constantemente religar-se a ele (ou não).
Rejeita-se a distinção (aquilo que não se conhece) quando se passa a ser o outro
que não se conhece, o desconhecido. Esta alteridade é um mistério que move os
relacionamentos. Por que só pode haver completude no outro? Em Obsceno abandono, a
personagem entrega-se totalmente ao outro, e de maneira tal, que ela se sente como se fosse
ele. Sendo assim, ao ficar sozinha, ela já não sabe mais quem é – está sem o elo da
dependência e perde sua identidade, que a caracteriza como sujeito deste mundo.
A líquida razão moderna vê na durabilidade das relações interpessoais uma
opressão, uma espécie de “camisa de força”; no engajamento das relações amorosas, vê
uma dependência. Vínculos duradouros tornariam “impuras” as relações humanas, já que a
efemeridade é uma constante neste mundo pós-moderno. O que a mídia propaga, por
exemplo, nos jornais e revistas, serve de amostra dessa pouca duração do amor. Não há
fios que prendam as uniões, já que a metáfora que as representa é a dos líquidos, que se
esvaem e, por vezes, evaporam – são voláteis como alguns amores.
Nesse início de século, segundo Bauman, vive-se junto por causa de, não a fim de.
Está-se junto porque se quer, não somente para cumprir uma ordenança social. Tal
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pensamento permite uma visão um tanto contraditória de sua afirmação de que os seres
também se unem pelo receio de ficarem sozinhos. Porém, é isso que move a dualidade
humana hoje: oscilar entre duas opções, sem ter de optar necessariamente por uma. Isso não
tem a ver com o desejo de conhecer quem é o outro, muito menos com criar laços. Pode ser
que, com a convivência, a inquietação que o desconhecer o outro carrega consigo seja
resolvida e se deseje ir em frente num relacionamento sem medo do fim. Viver juntos pode
ser uma rua de tráfego intenso – ou um beco sem saída., como acontece com as
personagens dos romances.
Uma outra visão apresentada por Bauman em Amor Líquido é a de sexo (relação
sexual) semelhante a padrões de compra e de locação. O sexo puro é como uma garantia de
reembolso do investido na relação e os amantes são os segurados, visto que a fragilidade do
envolvimento poderá ser sobrepujada por regras e restrições (conf. BAUMAN:2003, p.68).
Porém, em havendo regras, tudo pode desfazer-se, como acontece com a personagem Gilda
de Solo feminino.
Em sua “experiência de casamento”, Gilda sucumbe a rotina da vida. Para ela, o
melhor seria a separação, já que nem o “reembolso” ela terá do fracasso com José Júlio. Se
antes, temia-se não saber se o encontro sexual era o passo inicial ou o passo final no
incipiente relacionamento, agora, são os parceiros que ditam as regras.
O sexo livre, sinônimo de incerteza aflitiva e alarmante, tornou-se um dos principais
questionamentos da líquida vida moderna. A união sexual é um episódio na vida dos
parceiros, mas não pode ser vista como um fato único – nem há promessas de felizes para
sempre. Tanto em Solo feminino quanto em Obsceno abandono, o sexo é a base dos
relacionamentos, não o amor. Confundidos, amor e sexo provocam frustrações quando do
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fim das relações. Não há, então, bases que sustentem o esperado final feliz na vida das
personagens.
O casamento, de acordo com Bauman, às vezes dá medo em homens e mulheres (e
nas personagens dos romances estudados também) por estar ligado à idéia de divórcio, ou
seja, de um possível fracasso. Já a coabitação (morar juntos) é uma forma de viver como
casal. Mantém-se o casamento (ou a “experiência de casamento”, como frisa a personagem
de Solo feminino) no líquido mundo moderno enquanto há satisfação de ambas os lados.
Em não havendo, separa-se.
Outra autora que trata do amor na atualidade é a americana Laura Kipnis. Em
Contra o amor: uma polêmica, a escritora vê o amor com um olhar crítico e irônico,
pertinente à era pós-moderna a que pertence. Ela inicia sua obra questionando estudiosos e
pensadores (sem citar nomes) que não têm coragem de falar contra o amor, uma espécie de
instituição calcificada; segundo a autora, o amor é como um chefe que determina as
atitudes do homem. Ao dizer que amar significa ouvir, mas não perguntar, reitera os
pensamento de Bauman em Amor Líquido: o questionamento pode provocar o fim, como
acontece em Obsceno abandono.
Negar o amor enquanto instituição, conforme apresenta Laura Kipnis, é uma
“heresia”; sem ele, estamos propensos a ceder a um mundo de trabalho constante. A libido
é vista como uma “guerreira da liberdade” e, para a autora, a época atual mantém uma
cultura de sexo livre e de puritanismo ao mesmo tempo – num mundo fértil em
ambivalências e ansiedades, até mesmo o adultério (foco maior de pesquisa da autora em
Contra o Amor), mantém essa dualidade humana, por permitir a sensação de certo (pelo
amor) e de errado (pela traição ao cônjuge). É esse dualismo gerado pelo adultério que leva
Charles a abandonar a amante em Obsceno abandono e voltar para a “legítima”esposa.
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O amor, aqui, é tratado como um vício que leva ao casamento, que para a autora, é
uma atividade de alto risco. Entretanto, amar no mundo atual provoca intensos
questionamentos por parte dos seres amantes
Quando as defesas caem, ou alguma irritação doméstica menor
inexplicavelmente se transforma em uma briga épica – o que acontece até
mesmo na melhor das fases, não só quando você está preocupado com
pensamentos sobre onde você preferiria estar e com quem – ou quando a
ânsia se torna fisicamente dolorosa, ou você está gastando uma quantidade
excessiva de tempo soluçando no banheiro, essa virada dos
acontecimentos pode suscitar questões fundamentais sobre que tipo de
mundo emocional você quer habitar, ou a que satisfações você tem direito,
ou – com alguma ousadia – até a possibilidade enervante de realmente
mudar sua vida (KIPNIS, 2005:22,23)
O casamento, segundo a autora, também sofre as alterações do comportamento
humano na pós-modernidade, uma vez que ele nem sempre é o resultado de um amor
romântico (e quando há amor, este nem sempre persiste no relacionamento). Na atualidade,
em que se almejam e alvos diferentes, o amor por vezes fracassa, quando um desconfia (em
geral a mulher) do outro ou quando o outro quer mais liberdade para “transitar” entre outros
relacionamentos (o homem, em geral).
Quem, porém, são os culpados pelo fracasso do amor? Segundo Laura Kipnis,
ambos. O homem, por não aceitar as modificações do amor da pós- modernidade e por não
querer aceitar as novas formas de organização do casamento e a mulher, por não saber
administrar habilmente suas novas aquisições identitárias e sociais.
Para Kipnis, às vezes, o feminismo leva o crédito e ao mesmo tempo a culpa por ter
colocado as mulheres fora de casa e dentro do mercado de trabalho, mas as crises
econômicas e o arrocho salarial serviram para demonstrar a idéia de que a manutenção de
um lar demanda o esforço do casal, e que esse esforço também se mantém para aquelas (ou
aqueles) que vivem sozinhos.
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Em Solo feminino, Gilda é a mão que sustenta a sua própria casa e a casa da mãe,
enquanto suas irmãs moram com a mãe mas não contribuem em nada. Ela é a voz de ordem
e de comando – o “homem” do lar. Seria ela uma ativista do feminismo? Não. Gilda é
apenas uma mulher em busca de sua satisfação.
Em seus questionamentos, Laura Kipnis diz que o amor está acabando. Algumas
pessoas, segundo ela, evitam ir para casa após o trabalho, para não se encontrarem na rotina
do casamento. Porém, a obrigatoriedade do mundo do trabalho vai minando as forças do
relacionamento, entre o parceiro e o outro que o acompanha; surgem daí os casamentos
mortos, o sexo mecânico. Então, segundo a escritora, homens e mulheres se questionam: se
tudo vai acabar assim, vale a pena insistir no amor?
No entanto, todas essas questões sobre a visão do amor como algo perigoso são
deficientes, ante uma sociedade que não se cansa de experimentá-lo
Nem até relativamente pouco tempo atrás o casamento era o cenário
esperado para Eros ou o amor romântico, nem o objeto presumível do
amor romântico era seu próprio marido ou sua esposa, nem ninguém
esperava que durasse a vida toda: quando praticado, tendia a ser
episodicamente e, boa parte das vezes, fora de casa. (KIPNIS, 2005:35)
O casamento, de acordo com Kipnis, está em transição. Os problemas da intimidade
do casal são resolvidos com “terapias” que ordenam trabalhar mais o interior de si mesmo,
retornando à idéia de trabalho como controlador do desejo – idéia semelhante a apresentada
por George Bataille em O Erotismo. Segundo Bataille, o erotismo é uma violência que foge
ao controle do indivíduo e o leva a uma transgressão, ou seja, uma libertação ao controle.
Essa violência também pode ser concebida como aquilo que impede o indivíduo de realizar
suas vontades, devido à ordem domesticada em que vive.
Para George Bataille, entretanto, “o mundo do trabalho e da razão é a base da vida
humana, mas o trabalho não nos absorve inteiramente...” (BATAILLE, 1987:11). Em assim
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sendo, nem sempre a liberação dos desejos sexuais (ou do amor, como tratado por Laura
Kipnis) é sinônimo de liberdade – a sensação de transgressão está constantemente aliada a
ânsia de liberdade. É a constante busca por satisfação, aliada à felicidade e livre de
repressões, que se verá em Solo feminino.
Por fim, sem ironias, o que realmente é contra o amor, segundo a autora, é a mentira
– qualquer relacionamento, mesmo na pós-modernidade, tende a fracassar com a mentira;
mesmo o adultério mais bem organizado (e ocultado) não resiste aos embates do não
cumprimento de uma promessa, por exemplo. Se, como Bauman reitera, não há laços que
confirmem essas “promessas de amor eterno”, realmente não há histórico de durabilidade
num relacionamento construído sobre mentiras.
A Literatura, por sua vez, representa os problemas das relações interpessoais das
personagens de Solo feminino e Obsceno abandono permitindo encontrar essas visões. No
primeiro caso, há uma mulher em busca de sua realização pessoal, que vê no orgasmo e no
amor seus objetivos de vida. No segundo, uma mulher sem nome e sem identidade sofre
com as agruras de uma decepção amorosa e com o desespero de ter amado demais alguém
que não a quis tanto assim.
2.2 Solo Feminino: um amor em desacerto
Solo Feminino: Amor e Desacerto, de Livia Garcia-Roza é um romance publicado
pela Editora Record em 2002, através da Coleção Amores Extremos. Carioca, psicanalista
(sem gostar de clinicar), juntamente com outras autoras – entre elas Marilene Felinto,
autora de Obsceno abandono: amor e perda, que se estudará no próximo capítulo, Livia
Garcia-Roza trata de amores que se vêem todos os dias, mas que poucos colocam no papel;
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histórias de extremos, de amores inexplicáveis ou explicáveis, dependendo do ponto de
vista de quem lê. É autora de Meus queridos estranhos, Cartão-Postal, Cine Odeon,
Ficções Fraternas (contos), Quarto de menina, Restou o cão e Palavra que veio do Sul,
sendo estes os mais recentes.
Solo Feminino fala de desajustes com o amor – pessoal e familiar; fala também da
busca pela felicidade e pelo prazer, da realização (ou da tentativa) de um orgasmo. Narrado
em primeira pessoa, o solo que se apresenta no título pode ter dois significados: primeiro, o
de um canto isolado, uma busca solitária de se encontrar o amor; segundo, o solo pode
significar chão – e aqui, o chão dessa história é composto por quatro mulheres – mas é um
chão não muito firme, sem muita sustentação, como se verá adiante. A família da
personagem-narradora, Gilda, é uma família de contestações e fragmentações acerca do
amor e de si mesmas.
Esse tipo de desconstrução familiar também aparece em outras obras da autora,
como no livro de contos Restou o cão. É o caso do conto “Bambino d’oro”, em que uma
mulher fala sozinha o tempo inteiro com um filho que não está presente, publicado pela
Companhia das Letras em 2005, e do romance Cine Odeon, publicado em 2001, ainda pela
editora Record, em que a desestruturação familiar atinge a vida da adolescente Isabel, que
se envolve com um homem muito mais velho que ela e louco.
A imagem de uma família cuja ordem se deseja transgredir ou entender aparece a
todo momento nas obras da autora. Mesmo porque, desacerto é um palavra comum à vida
profissional da autora. O desajuste de Solo feminino é familiar, amoroso e mental (em
especial no tio de Gilda, Lili, de cujo comportamento se falará mais adiante), fatos comuns
ao universo de conhecimento da escritora. Esse conhecimento de mundo vai se aplicar à
vida da personagem, numa narrativa de desassossegos.
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2.2.1 “Palavras apenas, palavras pequenas...” – a linguagem do texto
A linguagem de Solo feminino denuncia desde o início a pós-modernidade da
autora: ao invés de se deparar com a narrativa de uma heroína que batalha por seu amor, o
leitor encontra uma narrativa que intenta não fazer (na maior parte das vezes) distinção
entre fala e escrita. Os cenários nos quais a heroína convive também fazem justiça à
inovação da linguagem – em primeira instância, a personagem se apresenta “em lágrimas,
montada na pia do banheiro” (p. 05).
Os palavrões, que aos poucos constróem o universo lingüístico da personagem, bem
como os termos vulgares que ela utiliza (“borrando”, “cagando”), destoam do caráter de
uma heroína romântica (algo que ela apenas aparenta ser), mas se encaixam nos termos
narrativos pós-modernos, nos quais a fala é transportada sem filtros para a escrita. Figuras
de linguagem passeiam o tempo todo na narrativa, como na hipérbole a seguir: “Pensando
bem, eu não podia dizer nada porque me arrebento de ciúmes de José Júlio.” (p. 06).
O epíteto que caracteriza as mulheres do romance é o seguinte: “Assim somos
todas: sofremos desbragadamente, enquanto eles mentem cinicamente.” (p. 06). A frase
encerra em si o destino de uma personagem fadada a sofrer, mas que tenta contrariar esse
destino. Entretanto, a comunicação que se instala no ambiente do leitor não se completa na
relação das personagens mãe e Gilda (filha): enquanto esta negocia consigo mesma e com
os outros sua possibilidade de ser feliz, a mãe tem problemas auditivos e faz palavras
cruzadas. O jogo funciona como uma forma de encontrar nas palavras uma comunicação
familiar, visto que ela constantemente pede à filha a resposta para as palavras que não
conhece. A construção pessoal é demonstrada com brutalidade: “ (tenho voz de trombone,
desde criança)”. (p.05).
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O leitor primeiro está preso à leitura dos problemas da relação familiar, antes de
passar à leitura da relação amorosa: “Mas isso é outra história. Mamãe me alucina. Ela e
José Júlio. Não quero falar sobre ela agora, ainda brilham os primeiros raios da manhã.” (p.
10). Propositadamente, ela precisa explicar a causa de todos os seus males: seus problemas
de família para que o leitor entenda, antes dela, seus infortúnios amorosos.
A linguagem da comunicação entre mãe e filha é feita em outra língua: o espanhol.
Por possuir ascendentes espanhóis, essa é a língua que Gilda conhece durante parte de sua
infância, enquanto o pai era vivo. Como a mãe não a deixa ser criada por ele, as falhas na
conversa são preenchidas por essa língua que funciona como um não-dizer, como num
outro nível de conversa: mas o amor entre elas, ainda que oculto, permanece:Entristecida,
la madre.”(p.15) – todas as palavras em espanhol são grifos da autora. O único ser que se
comunica e cujo som se ouve realmente nessa casa desajustada é o canto do passarinho,
Arnaldinho, o único ser “masculino” da casa – Hildebrando, o tio de Gilda recebe um
apelido efeminado: Lili.
Desajustado, Lili aparece em momentos esporádicos da narrativa, seja para gritar ou
xingar; ele é tratado como mais uma mulher na casa. Segundo a mãe de Gilda, a morte da
mãe de seu tio (sua avó) provocou a loucura dele, mas todos acreditam que tenha sido o fim
de um noivado que o deixara assim. Como se disse, os desacertos dessa casa giram em
torno dos atritos entre Gilda, sua mãe e as irmãs.
A mãe, acreditando ser médium, diz falar com o esposo falecido e tenta o tempo
inteiro conversar com a filha, embora esta nunca esteja a postos para ouvi-la, e quando
reclama, lamenta-se: Diós! Reside nessa falha da comunicação uma das fontes dos
problemas da personagem. Protagonista de um infortúnio pessoal, Gilda acredita que a
família é o que a impede de ser feliz – e, por conseqüência, essa mãe que deseja falar-lhe o
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tempo inteiro. Em verdade, ela evita a comunicação e a linguagem, pois nelas reside a
reflexão: quando fala que vai sair vestida de noiva no carnaval, ela pensa: “Breve estaria
assim, e sem esforço, foi o que pensei...” (p. 28) e então, é o leitor que se pergunta: assim
como – noiva ou mendiga (de um amor difícil e irrealizável, talvez)?
Para evitar os confrontos familiares, Gilda também emudece. Diante da vontade de
matar a mãe e o fato de assumi-la como um impedimento para a realização de seu amor
com José Júlio, também feito em espanhol, ela se utiliza das palavras para ver-se livre do
“problema” que a atormenta, não o fazendo diretamente: “Bueno, mami cariño, hay días en
que muero de amores por ti, y otros en los que deseo esganarte con mis propias
manos...”(p. 13).
Seu local de trabalho é também uma fonte de impedimento – o Meio do Céu, nome
do edifício, é também um não-lugar, no qual ela não se encontra nem como profissional
nem como pessoa. Seu lugar desejado é o do momento feliz, que custa a aparecer. Mas não
seria o céu um lugar de felicidade? Vê-se aqui que a ironia na escolha vocabular da autora –
o meio do céu, que deveria representar o centro, também é um lugar de desacertos.
As palavras que Gilda usa estão de tal maneira relacionadas que os campos
semânticos, é óbvio, se entrelaçam: “Nesse momento, os garçons, mãos enluvadas,
voltaram a circular com travessas sob fogo brando, enquanto o olhar de seu Evaristo
crepitava sobre mim.” (p.38-grifo nosso); “...e se eu aceitasse o convite de seu Evaristo e
aproveitasse para dizer palavras cozidas no vapor de meus pensamentos? Abjeto, insalubre,
torpe e podre, abominável, detestável e odioso... Seria uma ceia de dar água na boca...” (p.
218-219).
Entretanto, não é somente na construção vocabular que o leitor se envolve no
mundo da personagem. A sensação que se tem, às vezes, é que a narradora deita em seu
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olhar um tom nostálgico e afetivo, , em especial quando se refere à família, sem se desfazer
da ironia de que sempre se utiliza e com a qual vê a vida. No almoço que comemora sua
“experiência de casamento”, ela diz
Inacreditável o almoço, e éramos poucas pessoas. O coração de Wilma
felizmente resistiu, e ela pôde fazer um estrogonofe de camarão. Quando
terminamos de comer, Sérgio, pegando o violão, disse que tocaria a
surpresa que fizera para nós. E cantou uma música que falava de agonia,
melancolia e solidão. Que comemoração. (p. 39)
A ironia, por sua vez, percorre o tempo inteiro a narrativa dessa mulher guerreira e
que não teme buscar a sua felicidade e a sonhada realização sexual. Ao conversar com o
chefe, seu Evaristo, que tem verdadeira predileção pela morte, comenta: “E o assunto, por
falar em defunto, morreu.” (p. 41). As palavras cruzadas que a mãe faz são um jogo de
palavras feito de enigmas, cujas respostas se entrelaçam, criando novas palavras, bem como
vai se criando uma nova linguagem entre mãe e filha, como se verá mais adiante - e entre
Gilda e seus amantes. Aos poucos, a falta imposta pelo silêncio vai ganhando voz.
Conforme sua “experiência de casamento” com José Júlio, seu então primeiro
“marido”, vai entrando em declínio, conversar com o ele é o mesmo que falar com a mãe –
ambos não se entendem. O que Gilda precisa aceitar é a origem de seus problemas, que está
justamente em toda dificuldade de aceitar sua relação com a mãe: sentindo-se rejeitada na
infância, por ter sido uma filha temporã, ela não aceita que agora, em sua vida adulta, a mãe
se importe tanto com ela.
Os problemas do passado levam a acontecimentos no futuro e se prendem a ele,
afirma Laura Kipnis em Contra o amor: uma polêmica.. No princípio, um leitor desavisado
não percebe, mas à medida que a narrativa se desenrola, a própria personagem vai
pontuando aqui e ali seus medos e lembranças da infância – fonte de todos os males. Na
ordem psicanalítica, falar dos problemas é uma forma de resolvê-los; quando isso não
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ocorre, retornar aos fatos da infância é o próximo caminho. Embora estudiosos do texto
literário afirmem que autor e narrador não se misturam, em Solo feminino é impossível não
deixar de perceber pinceladas dos conhecimentos psicanalíticos da autora.
A mãe reclama, mas quer ter a filha por perto – entretanto, enquanto não
conseguirem se comunicar, as duas não conseguirão se amar nem se entender. A
cumplicidade surge com as palavras cruzadas
Encontrei mamãe, revistinha de palavras cruzadas no colo; logo ao me
ver, perguntou se eu sabia o que era aspirante, onze letras. Pretendente,
respondi. [...] Mamãe continuava com os olhos grudados na merda da
revistinha, e, antes que eu continuasse a falar, perguntou se eu sabia o que
era pavorosa, [...], e disse também que ela precisava exercitar seus
neurônios, não eu. Chateada, ela fechou a revistinha, perguntando o que
eu queria que ela dissesse. [...] Como eu viveria dali em diante? (p. 74)
A narrativa do texto é apegada a detalhes, assim como se fazia nas narrativas
folhetinescas do século XIX. Tudo, porém, tende a demonstrar uma intensa futilidade nas
relações da atualidade. Em dado momento, seu Evaristo, o chefe, diz que “folga” (e a
personagem ironiza repetindo o verbo entre parênteses: “(folga)”) em conhecer o “marido”
de dona Gilda – transparecendo um falso respeito às tradições. As descrições, por exemplo,
de festas, seguem o detalhismo: “Ao entrar no restaurante, passei pelo bufê: ostras em
profusão, camarões graúdos com molhos diversos, coquilles de Saint Jacques e mariscos na
concha. O garçom ao lado enumerou os pratos.” (p. 70). Assim como ela insiste em
demonstrar com seus olhos de loba em busca da caça a superficialidade desse mundo pós-
moderno, suas investidas amorosas são mal sucedidas porque Gilda se preocupa apenas
com o que vê no exterior das pessoas.
Sem experiência para trafegar pelo interior dos seres (já que não se resolve nem
consigo mesma), vê-se eternamente fadada a não alcançar seu objetivo. Clarissa Pinkola
Estés diz, em Mulheres que correm com os lobos, que “...seria de grande ajuda se
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compreendêssemos as histórias como se estivéssemos dentro delas, em vez de as
encararmos como se elas fossem alheias a nós. Penetramos numa história pela porta da
escuta interior.” (ESTÉS,1992:41). Quando Gilda penetra em sua história, reconhece-se em
seu mundo interior, mas para tanto é preciso que a filha retorne ao interior da terra que a
expeliu.
As ofensas dirigidas a seu Evaristo, seu chefe, também são feitas em seu idioma
paterno. Esse não confrontar-se com ele funciona como uma forma de recusar internamente
o prazer que o “mastodonte” (lembrando os primatas, homens que viam no sexo apenas
uma forma de procriar), como ela o denomina pode proporcionar-lhe. Como existe uma
atração sexual forte entre eles, forma-se nela um embate entre o ser que se recusa a aceitar a
violação do momento sagrado do amor em troca apenas de um prazer momentâneo (em
forma de sexo). É o princípio do prazer duelando com o princípio da realidade.
Mesmo sentindo-se inclinada a ceder, ela ainda acredita que seja “Muito rapapé
desse homem para me comer.” (p. 67) e faz com que a linguagem viole todos os princípios.
Ele, por sua vez, não se deixa desistir, e entristecido por ela não tê-lo acompanhado por
uma viagem para “os confins nunca dantes navegados” (p. 68), numa reconstrução
camoniana, continua perseguindo-a.
O que se vê em Solo feminino é a lembrança da temática dos contos de fadas: uma
princesa e/ou um príncipe tentando ser felizes, impedidos por uma bruxa ou um dragão.
Ironicamente, nada neste mundo ficcional é realmente fictício; dizer que qualquer
semelhança com fatos reais é mera coincidência seria também uma maneira de afirmar que
nada disso faz parte do real, fazendo-se estabelecer as linhas da verossimilhança. Gilda é
uma princesa desconstruída no conto de fadas da vida: “Eu olhava para o espelho e via
minha carranca de proa, como José Júlio a chama, borrada, não tirei a madrugada da
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cara...” (p. 09). Seus príncipes, porém, pertencem à realidade. Tentando se inspirar em
Alice no país das maravilhas, ela sai no carnaval vestida de noiva, mas só consegue ouvir:
“Chuchu, você parece mendiga de conto de fadas...” (p. 30). Essa “Alice” dos tempos pós-
modernos não encontra fantasias do outro lado – só a esmagadora realidade do dia a dia.
Porém, não é só de características lingüísticas que se constrói esse desacertado
enredo. Os discursos de gênero são retomados a todo instante. Ao ouvir de um taxista que
ele havia dado uma surra na filha porque esta teria iniciado um namoro, a personagem sente
uma opressão – reflexo do sistema castrador que sua própria mãe lhe impõe ou apenas uma
forma de manifestar que não consegue se submeter à repetição da ordem patriarcal que
governa a sociedade burguesa? Se os discursos de gêneros são construídos, como afirma
Guacira Lopes Louro em Gênero, Sexualidade e Educação (LOURO, 1997), a fala desse
personagem terciário surge apenas para avisar ao leitor de que algo semelhante acontece no
texto, mas as ordens e atitudes são dadas pela voz de uma mulher sem nome: a mãe de
Gilda.
Fatos como esse sempre apareceram nos textos em forma ou de denúncia (em
especial durante o período pós-feminista) ou de demonstração acerca de quem era o
controle na Literatura escrita por mulheres ou por homens. A partir do momento em que as
narrativas de autoria feminina tornam-se mais libertárias dos “rótulos” que tentavam
prendê-la, tornam-se claras a crítica e a visão da atualidade; em alguns casos, porém, nada
mudou. Ainda há literatura de protesto, e na maior parte das vezes, o intento é alcançado.
Entretanto, as mulheres não aceitam mais a dominação masculina (inclusive a
sexual). Colocar na mão de uma mulher o comando castrador da família funciona como
uma forma de pulverizar as construções de gênero, criando, talvez, a idéia de uma
matriarcado, semelhante aos existentes no períodos dos povos primitivos. Segundo Rose
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Marie Muraro, em A mulher no terceiro milênio, “o núcleo das primeiras sociedades
humanas deve ter sido um conjunto de mães com seus filhos, acompanhados de outras
mães, seus irmãos e outros machos que se agregassem ao grupo.” (MURARO, 2002:23), o
que explicaria esta idéia de um matriarcado.
Eni Puccineli Orlandi diz em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos que
“Escrever é uma relação particular com o silêncio” (ORLANDI, 1993:34). Se há uma
relação com o silêncio na escrita de sua história, a personagem Gilda o faz ironizando a
leitura do receptor de seu texto – seu silêncio irrompe cheio de significado, atestando o que
diz Orlandi, ao afirmar que o homem criou a linguagem para reter o silêncio. Nesta
narrativa, silêncio e voz caminham lado a lado para controlar o sentido que se quer dar à
ação e às próprias palavras.
O artista que se move com as palavras tira do mundo real suas idéias (como a
escritora o faz em Solo feminino) e reveste esse real na polissemia do discurso. O silêncio,
então, passa a ter um duplo sentido: é um falar e um não-falar. Mesmo quando Gilda se cala
diante das atitudes de “cordeiro” atribuídas a seu então “marido” – José Júlio – seus
protestos se fazem de silêncios: “Sem comentários”. (p. 73). Quando seu silêncio não lhe
basta, é um outro idioma que manifesta sua dor ou seus pensamentos.
A linguagem vai se modificando conforme o aprendizado de novas palavras (em
especial nas palavras cruzadas da mãe, nas quais a autora investe na polissemia do discurso
mencionada anteriormente: “Encontrei mamãe, revistinha de palavras cruzadas no colo;
logo ao me ver, perguntou se eu sabia o que era aspirante, onze letras. Pretendente,
respondi.”, p. 74 ) – tal feito vai aos poucos estreitando os laços familiares entre mãe e filha
e entre as irmãs, tão distantes em suas ideologias mas tão próximas na relação maternal.
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À medida que as barreiras lingüísticas vão se desfazendo, as estruturas familiares
tornam-se móveis e frágeis, com fortíssima tendência a ruírem diante da morte da mãe.
Entretanto, às vezes, o interior de Gilda se descreve de forma semelhante ao cenário que a
cerca, proporcionando ao leitor uma visualização das ações e dos sentimentos que a
invadem: “Fiquei ali dentro (do ônibus), numa tarde de outono nublada, uma réstia de sol se
pondo, temperatura em declínio; em condições instáveis” (p. 120). Roland Barthes diz, em
Fragmentos de um discurso amoroso, que “o sujeito amoroso não pode ele mesmo escrever
seu romance de amor...” (BARTHES, 1981:81); Gilda, porém, contraria a lógica
barthesiana à medida que vai traçando ao longo da narrativa seu romance de amor consigo
mesma e com essa vida desajustada que a cerca.
Mesmo quando se recusa a aceitar a mãe por perto, a personagem é incapaz de
reconhecer sua familiaridade com a mesma. Ainda que o faça, recusa-se a uma
manifestação verbal: “Não dei resposta, para certas coisas é melhor não responder.” (p.
120). Porém, Gilda vai aos poucos deixando que essas palavras não-ditas manifestem-se em
ações: “- Está bem, não digo mais nada – e me precipitei sobre ela com cuidado pra não
quebrar seu esqueleto de vez. – Me dá um beijo, disse, beijando-a.” (p. 131). Ao tomar
ciência da máxima filosófica “Conhece-te a ti mesmo”, a personagem passa a uma
introspecção dos fatos e ações ao seu redor.
Diante da tese “Do sujeito desde sempre incomunicável” de Eduardo, um de seus
namorados, Gilda passa a tentar se entender e a ir em busca de outros objetivos, cujos alvos
vão cambiando à medida que o contato com as palavras se aproxima – conhecer a si mesmo
é conhecer o mundo da comunicação familiar. Ao pronunciar a frase “Estava Escrito
(Maktub), principia a reconhecer que o que estava escrito era seu destino de mulher
guerreira, contrariadora de um "destino de mulher”, expressão cunhada por Simone de
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Beauvoir em seu livro O Segundo Sexo, que designa o futuro da mulher predestinada a se
casar e constituir uma família ao lado de um marido provedor e redentor. Mesmo com toda
a previsibilidade que a maioria dos leitores carrega em seu conhecimento de mundo no
tocante a romances, o desfecho dessa mulher de maneira alguma pode ser previsto ou
definido.
A mãe reitera os discursos de gênero ao afirmar que a filha precisa de alguém que a
ampare em sua velhice. Não consegue conceber, como mulher de comando da família,
como matriarca, que após sua morte a filha temporã fique sozinha e desprotegida; sendo
assim, apela para a “suprema corte” do casamento: “Por que eu não rezava, pedindo ao
senhor um bom companheiro?” (p. 141). As palavras, até então suprimidas no diálogo
familiar, surgem para desembaraçar a relação entre elas. O sonho da mãe, afinal de contas,
é ver a filha casada, visto que uma de suas irmãs já o era (e o verbo no pretérito imperfeito
deixa entrever uma situação aceitável socialmente – um casamento de aparências – para
fazer justiça ao status de estar ao lado de alguém), enquanto a outra vive bem com o
companheiro.
A manutenção do discurso social de que “mulher não pode viver sozinha” é
ironizada pela personagem principal, que continuará em busca do que quer – um orgasmo –
sem que para isso precise dos laços indissolúveis do casamento, de acordo com o lema de
“até que a morte nos separe”. Nesse fluido mundo, em que os laços estão cada vez mais
frouxos, conforme diz Zygmunt Bauman em Amor Líquido, as ligações não tem garantia de
permanência, e por sua vez, podem ser desfeitas quantas vezes preciso for, até que se
ajustem à situação desejada pelas partes (ou pela parte) envolvida(s). Em não havendo
ligações definitivas, o homem é “obrigado” a se “amarrar” a outro, a “amarrar” seus
frouxos laços na rede da vida, numa tentativa de união.
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As brigas com a mãe talvez sejam uma maneira de pedir-lhe um pouco mais de
afeto. Como não consegue, Gilda vive constantemente se religando a outras pessoas (outros
namorados), “caindo em outras conversas”, remendado seus laços de amor.
Quando a mãe pergunta à filha as respostas do jogo da “revistinha” (o diminutivo
assume um tom pejorativo, como que para inferiorizar a atitude da mãe), passa a inverter o
discurso de poder – a filha, agora, é a provedora da família. Comportamento típico das
mulheres desde a modernidade, sustentar a família (algo comum ao “homem da casa”,
tornou-se uma constante, pois o ingresso da mulher no mercado de trabalho e a escrita da
história de sua independência modificaram esse quadro.
As conversas que mãe e filha passam a ter resolvem os problemas da casa, para
depois resolver o da relação entre essas mulheres. Agora, é a mãe quem quer saber os
grandes questionamentos da vida, enquanto se incomoda com a filha: “Mamãe diz que de
vez em quando tenho um palavreado horrível, mas é quando os outros entendem...” (p.
179). Dessa forma, desfaz a imagem da heroína para se firmar no lugar do herói, como nos
mitos românticos do século XIX. Embora lute como as heroínas, separam-nas as peripécias
para ser feliz, os alvos a serem alcançados (que, em geral, era a felicidade ao lado do
homem amado) e, em especial, a linguagem literária, desprovida de floreios.
A violência da linguagem se equipara à violência da cidade
Deus permita que eu não encontre o predador pelo caminho, pensava,
andando em direção à parada de ônibus, quando uma mão estourou no
meio do meu peito, e o pivete dizia, quieta, quieta, e num arrancão levou
meu colar. Abria a boca: - Moleque filho da puta! – gritei, enquanto via
suas pernas finas e ruças saltando entre os carros. É isso, por todos os
rincões desta cidade. (p. 195).
O Rio de Janeiro, cidade de habitação da autora, é o cenário desse monólogo em busca de
um ideal supremo e sublime, mas caracterizado como uma cidade que tem um Cristo de
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braços abertos para vigiá-la. Palco dessa narrativa em que os seres não se encontram, a
cidade também se apresenta de forma desajustada e desconcertada, inundado por temporais
e bueiros, fatos do cotidiano da personagem e da cidade. Mais uma vez, a realidade
ultrapassa as barreiras da ficção, como numa espécie de realidade virtual.
A narrativa em primeira pessoa só permite ao leitor ver um dos lados da situação – o
de Gilda – enquanto ela desfia o seu rosário de desejos frustrados. Entretanto, ao mesmo
tempo em que se oferece ao conhecimento do leitor, ela se torna também observadora de
seu destino, mas sem a capacidade de ver o que vai no interior dos que a cercam. O
palavreado rebuscado da mãe (fruto do aprendizado com as palavras cruzadas) vai dando
lugar a uma linguagem informal e repleta de onomatopéias: descreve um tombo, por
exemplo, com uma simples onomatopéia: “tibum”. Gilda, espantada, começa a se
reconhecer na linguagem da mãe.
A impessoalidade narrativa dá lugar à personificações: “A paciência voou pela
janela.” (p. 193). As palavras cruzadas vão ajudar a construir e a trazer à lembrança a
infância esquecida, mas que precisa ser rememorada. Nesse volteio pela linguagem, a
metáfora da liberdade para a felicidade e para a concretização dos sonhos se realiza numa
gaiola de pássaros que se abre numa “algazarra infinita” (p. 223), quando da morte da mãe,
trazendo uma nova história – que só o leitor poderá construir. Como no conto de Marina
Colasanti, “A moça tecelã”, é hora de refazer um novo enredo.
Na história de Marina Colasanti, a trama narrativa constrói e se constrói. Na
tentativa de ser feliz ao lado de alguém, a moça que dá nome ao título do conto “tece” o
homem de seus sonho no tear com o qual trabalha. Entretanto, quando o ser amado começa
a exigir bens materiais, em lugar de amor, a personagem desfaz os fios que teceram a
imagem de um ser perfeito e ideal, para reiniciar sua vida e sua história. Gilda, à
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semelhança de “A moça tecelã”, “tece” os fios que enredam seus relacionamentos, mas à
medida que descobre que estes não serão duradouros, ela os desfaz e segue em frente.
2.2.2 Os “laços de família” – a base do desacerto amoroso
Quem são as mulheres que formam as novas famílias e como se ordenam as novas
famílias do século XXI? Segundo a revista Época (Especial Mulher, setembro de 2005), os
modelos incorporados pela mulher ainda são os do homem provedor. Quando o parceiro
(sendo ou não oficialmente casados) por algum motivo não pode (ou não deseja) sustentar a
casa, provoca em algumas mulheres a sensação de que o homem está se “aproveitando da
situação”. E a heroína de Solo feminino depara-se com a mesma situação, embora recuse-se
a reconhecer na ajuda financeira que presta ao marido uma forma de exploração.
No tocante aos filhos, a reportagem diz que ter um filho sem a participação do
homem, por exemplo, altera o jogo de forças na constituição da família. Inverter a ordem de
poder na organização familiar – o pai provedor, a mãe, recebedora desse proventos – ajuda
a clarear a idéia da formação da nova família.
Os modelos de família estão em constante discussão, quando se leva em conta que
casais homossexuais adotam crianças para criá-los como filhos. A nova organização
familiar traz também cada vez mais cedo o lugar da maternidade, colocando na
adolescência números crescentes e avançados sobre a constituição de um lar – sem que isso
signifique a presença de pai e mãe; às vezes, são as avós que promovem a educação dos
filhos e dos netos, sendo filhos e avós cada vez mais jovens.
Como já dito anteriormente, a família da personagem Gilda é desacertada (fazendo
justiça ao subtítulo do livro) e desajustada. Mas o problema dessa mulher caçadora de seu
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próprio destino está na fonte de sua formação enquanto pessoa – a família; mais
precisamente, a figura da mãe. Essa mãe que se comunica com os mortos, não se comunica
com a filha que pertence ao mundo dos vivos – ou melhor, não consegue se entender com
ela. Há uma distância entre a vivências das gerações que as separam, mas o laço da relação
materna as une. A base dessa família é um ser desconstruído e desfeito. Espera-se que, para
uma “matriarca”, estejam juntas a imagem da força e da compleição física, mas ela é uma
mulher de “gengivas moles e movimentadas” – um ser humano como outro qualquer.
Apesar do mito de que as mães devem ser perfeitas, o enredo traz uma mulher vista
pelos olhos da realidade. Abstração comum às narrativas da pós-modernidade, a mãe desse
conto de fadas se parece com a figura da madrasta - ponto de impedimento à felicidade da
princesa. Clarissa Pinkola Estés diz em Mulheres que correm com os lobos que “o remédio
está em obter cuidados de mãe para nossa mãe interna.” (ESTÉS,1992:228). Como Gilda se
recusa a ser mãe (pois tem pavor de crianças), não consegue despertar em si mesma seu
lado materno. Entretanto, isso não a impede de tomar as rédeas da família.
A importância de Gilda é tão grande nessa família que a mãe, em momento algum, é
chamada pelo nome, e as irmãs, Geralda e Geny, são apelidadas de Dadá e Nina. Como
provedora da casa, Gilda pode manter em seu tio Hildebrando o apelido de Lili, mas é em
seu nome que todas as coisas se resolvem. Entretanto, ser o “homem da casa” tem um preço
– todas as obrigações, cobranças e exigências pesam sobre ela e para ela
Mamãe recebe uma aposentadoria de merda. Nina não ajuda em nada, e
mamãe só abre a boca para dizer coitada. Dadá não dá um tostão, já disse
que é uma pessoa ruim. Sobra para mim, que tenho um bom salário mas
vai todo na bosta da casa, e ainda tenho que comprar alpiste... Às vezes,
penso em acabar com todos, a começar pelo passarinho. (p. 53)
Os problemas com a mãe contêm, porém, um misto de ânsia de vê-la pelas costas
(por exigir dela uma decisão na vida) e um profundo sentimento de culpa. Esse é um dos
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motivos pelos quais ela tenta o tempo todo explicar o que sente pela mãe – mesmo que seja
em espanhol: “Bueno, mami cariño, hay días en que me muero de amores por ti, y otros en
los que deseo esganarte con mis proprias manos y luego llorar a continuación diciendo:
perdón!” (p. 13) (Bom, mamãe, meu carinho, há dias em que morro de amores por ti, e
outros em que desejo esganá-la com minhas próprias mãos e depois chorar continuamente,
dizendo: perdão!); ou quando o faz é para justificar o distanciamento: “Passei na casa de
mamãe. Quando pergunta se eu lembro que ainda tenho mãe, me dá uma coisa esquisita,
acho que compaixão, culpa, amor e raiva. É isso” (p. 48).
Porém, a culpa persiste quando o desejo de transgressão à regra (matar) está
inserido na mente do transgressor. Herbert Marcuse diz em Eros e Civilização que a luta do
ser contra as forças repressivas é uma luta contra razão, a fim de que permaneça a
liberalidade (outorgada pelo princípio do prazer, de que fala Freud). Dessa forma, de
maneira inconsciente, Gilda quer se ver livre da mãe para desfrutar do prazer de ser livre,
mas não pode fazê-lo, porque o sentimento que as une é mais intenso. E a regra que a
impede de assassinar a própria mãe não pode ser maculada.
O prédio Meio do céu representará para Gilda o lugar da realização – mas não no
sentido que ela pretende. Seu Evaristo, seu chefe, persegue-a constantemente para realizar
seus instintos sexuais com ela, no que é prontamente rechaçado. Porém, o fato de recusar as
investidas desse homem com quem ela sonha eroticamente, de uma forma brutal e sedutora,
é uma forma de não se render a vontade lancinante que tem de se deixar realizar com ele.
Seu Evaristo é o lugar do proibido (e ela gosta de ofendê-lo em espanhol), porque é
o lugar da realização através de uma negação. Ao recusá-lo, aceita-o em seu íntimo, em seu
interior como um oposto de si mesma. Seu corpo, preso a uma pulsão de morte e de culpa,
56
luta com a mente num embate entre Eros e Thanatos, que ordena o afastamento dessa
realização sublime.
Gilda diz que o Meio do Céu é um lugar de lodo, mas os vermes putrefatos que
formam o lodo também geram vida – e isso, ela não é capaz de reconhecer. Mesmo
rejeitado, seu Evaristo é a premissa de um prazer: “À medida que ele falava e me
observava, eu sentia que meus seios em desespero eram capazes de explodir o vestido.
Então me vi nua na cama, e seu Evaristo com o mastro sempre desfraldado a me perfurar
com estardalhaço.” (p.101). Aos vinte e sete anos, Gilda não consegue se realizar
sexualmente – e nem vai, pois sua resolução está num plano pessoal e familiar, muito além
do que seu Evaristo pode oferecer.
O egocentrismo que descentraliza e fragmenta a família é representado pelas irmãs
que não se comunicam (além da mãe). Tudo na casa gira em torno de mulheres, visto que é
um solo feminino. Entretanto, o vaticínio dessa mãe para com Gilda é direto: “...depois a
ouvi murmurar que ninguém é feliz construindo a vida sobre a desgraça alheia.” (p. 26). Ela
deseja repetir para a filha o mesmo destino que teve – quer que a filha siga o “destino de
mulher”, mas sem empecilhos de qualquer ordem, como ex-mulher, filhos, etc (como no
caso de José Júlio, eternamente ligado à ex-esposa e à filha). A personagem, entretanto,
acha que isso é desejar o seu mal, “ardentemente” (p.26).
Os laços estreitos que ligam mãe e filha vão se partindo, porque a mãe diz que não
pode contar com ela. Então, depreende-se que as brigas e os atritos (ou os silêncios) são
também uma forma de estar juntas. Ser descontrolada nessa casa desajustada é um encontro
psíquico, por mais irônico que possa soar o termo. O desencontro familiar é comandado por
quem deveria ser o centro dessa família: a mãe.
57
A mãe comanda e dá as ordens nessa família – pelo menos tenciona fazê-lo, uma
vez que a filha sempre dá a última palavra (mesmo quando não está por perto). Assim
como no modelo patriarcal, Gilda se vê induzida a casar por imposição da mãe,
independentemente das questões ligadas a ser feliz e se satisfazer no relacionamento com
outra pessoa. Entretanto, `as vezes, “relacionamentos são bençãos ambíguas. Oscilam entre
o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma em outro.”, diz
Zygmunt Bauman em Amor Líquido (BAUMAN, 2004:08). A mãe acaba por colocar a
filha em um embate ao querer que ela se case: manter um felizes para sempre ou render-se
à frouxidão das relações amorosas da era pós-moderna?
Amar, segundo Bauman, significa ouvir, e não perguntar – assim talvez se entenda
uma relação amorosa baseada no silêncio, como a de mãe e filha. Enquanto alguns
experimentam a relação de casamento para ver se dá certo, sem necessidade de
regulamentações oficiais, os laços familiares independem de papel: as marcas
consangüíneas são suficientes. Tentando moldá-la a sua maneira, como se estivesse com
um dote pronto a ser entregue, como nos casamentos de conveniência, a mãe demonstra que
a felicidade da filha lhe é cara; para isso, deixa claro que o rumo que ela está tomando não
lhe agrada
No dia em que mamãe soube que José Júlio era casado, me entregou a
todos os santos conhecidos e aos parentes que tinham morrido. Aliás, não
sei com que direito ela entrega minha alma... por isso mesmo me sobra
apenas o corpo, disse, e ela se benzeu. Continuou a cantilena, podia
esperar tudo de mim, menos que sua temporã (temporã) enveredasse pelo
mau caminho. era uma desonra para ela, que me criara com tanta
dedicação e carinho. (p. 15)
Apesar de desejar o casamento da filha, deixa entrever que a separação das duas
seria dolorosa: “Mamãe não sabia se ficava feliz com as filhas reunidas ou profundamente
triste com o rumo que eu havia tomado. [...] Não se cansava de dizer que eu começaria
58
muito mal. Por ela eu ficaria infeliz e aflita, una solterona pasada.” (p. 39). A idéia de que
a filha caçula não deve se casar para cuidar dos pais durante a velhice é uma das
ordenanças comuns à era patriarcal, que não permanece na maioria das culturas dos povos
nesse início de século XXI. Essa é a mesma situação em outros títulos da Literatura, como
por exemplo, em Como água para chocolate, de Laura Esquivel.
Em Como água para chocolate, há também três irmãs. A caçula delas, Josefita,
conhecida por Tita, apaixona-se por um rapaz, Pedro, mas é obrigada a abandoná-lo para
que sua irmã mais velha, Rosário, case-se com ele. A intenção da mãe das moças é que Tita
permanecesse solteira para poder cuidar dela, visto que o pai era falecido e não haveria
quem a amparasse na velhice. A irmã do meio, Gertrudis, único alento de Tita, foge para
um prostíbulo, deixando à caçula a difícil incumbência de cuidar da mãe. Pedro casa-se
com Rosário e ele e Tita esperam 25 anos para enfim ficarem juntos, mas morrerem num
momento de amor. Toda a narrativa de Como água para chocolate é feita pela sobrinha-
bisneta de Tita, em meio a receitas culinárias que acompanharam a história da família e
desse amor maior que a vida.
Tudo na vida de Gilda é um desassossego. Nem morando longe da mãe, consegue
ficar longe de suas lembranças. Ao ouvir um comentário de José Júlio, ela diz: “...(falou
igualzinho a mamãe)” (p.64). Não conseguir ser feliz e ver na própria mãe um impedimento
é seu problema. Clarissa Pinkola Estés diz que
“Quando a mulher se volta para um comportamento repetitivamente
compulsivo [...] com o objetivo de abrandar seu isolamento, ela na
realidade está causando mal ainda maior porque a ferida original não está
sendo tratada e a cada nova inclusão ela ganha novas feridas.”
(ESTÉS,1992:230).
59
Enquanto a ferida do amor que ela acredita ter sido rejeitado não for curada, ela não
se realizará com homem algum; é um amor preso à história de outro amor.
Conforme os papéis se invertem, a mãe se transforma em filha e vice-versa (porém,
a menina agora habita um corpo de mulher). Sua herança genética é forte, mas de uma
ascendência indireta: “Mamãe disse que não sabia a quem eu puxara, devia ser à avó
paterna espanhola, que tinha esse sangue descontrolado nas veias; que eu estava sempre a
um passo do exagero [...], enquanto minhas irmãs sofriam dignamente...”(p. 81). Enquanto
as irmãs aceitam a traição no casamento de forma resignada, Gilda recusa-se a aceitar
quaisquer laços que prendam seus amados ao passado, impedindo-os de serem felizes e a
ela de se realizar sexualmente e de consumir o grande sonho de sua vida – ter um orgasmo.
É bizarra a cena em que ela alcança tal situação, durante um sonho, e acorda com a mãe (a
imagem castradora) a chamá-la. Um sonho frustrado e vão.
O destino das mulheres da família se cumpre: retornam às entranhas de onde haviam
saído, para cumprir o ciclo da vida a ser gerada de novo. Abandonadas pelos maridos, elas
retornam para o lar materno. O solo agora é um coro, que canta as dores do sofrimento
amoroso – elas retornam para se unirem na dor dos laços da família. As irmãs se acomodam
no abandono de seus maridos, mas Gilda comporta-se como uma fênix, que renasce das
cinzas para brilhar novamente e várias vezes, em busca de seu alvo.
A relação familiar se estreita pela presença forçada graças à doença da mãe. A partir
de então, a personagem passa a ver o interior das pessoas e principia a entender todo o amor
desmedido que a mãe sempre lhe concedeu. Seria então uma competição entre forças iguais
de mesma intensidade, como um ing e iang em eterno encontro e fusão? Retornar para casa
é como retornar para o ventre materno, para o centro de Gaia, a mãe-terra, mesmo que seu
retorno seja recebido com a alegria irônica de Lili: “Voltou? Que bosta, hein!” (p. 97).
60
Gilda tem ciúme das irmãs. Em relação a Nina, ela diz: “...mamãe a chamava de santinha.”
(p.120). Depara-se o leitor com uma análise intensa sobre o interior do ser humano que
tenta se explicar nessa nova ordem mundial.
Enquanto a mãe se recusa a envelhecer (“Gosta de ficar caindo aos pedaços”, p.
135), Lili enlouquece definitivamente. Os atritos familiares, agora, tornam-se mais
intensos, e vão modificando o interior da personagem, que já se vê capaz de tomar uma
atitude para com o próximo, atravessando a rua com uma senhora que lhe recorda a mãe. À
medida que a mãe adoece, Gilda tenta passar para as irmãs a responsabilidade de cuidar da
velha senhora – uma forma de não se envolver e, por conseqüência, de não se sentir culpada
por isso. Torna-se, pouco a pouco, de rebelde filha pródiga a arrimo familiar: “Se bem que
me mandar embora seria de uma maldade única, eu, que tenho mãe, tio e passarinho para
cuidar.”
A fragilidade dos laços humanos não alcança, em tese, o amor da família em
desacerto, apesar de desestabilizá-la. As irmãs estão predestinadas a seguirem o caminho do
“destino de mulher”, enquanto Gilda escreve no livro da vida sua própria história. O
silêncio com o qual não responde à mãe é uma forma de afrontar um caminho
predeterminado de fracasso. Sem sucesso.
Se no princípio a maior preocupação de Gilda é sua realização sexual, e ela batalha
com afinco por isso, conforme se aproxima da mãe esse desejo vai passando a um segundo
plano. Agora, importa-lhe reconhecer-se na mulher que a gerou e procurar, assim, entender
e conhecer a si mesma. A decrepitude da mãe acompanha o envelhecer dos temores e dos
problemas de comunicação, ao passo que o leitor sente a modificação dos problemas
relacionados ao sexo transformarem-se nas soluções do amor entre mãe e filha. No líquido
mundo moderno, é comum esconder-se os sentimentos por não saber o que pensa o outro
61
com quem se vive. Aqui, em Solo feminino, vê-se um rompimento das regras. Os direitos
da família são mais duradouros que o dever para com o parceiro escolhido. O parentesco é
sólido, confiável, duradouro, apesar de frágil, diz Zygmunt Bauman em Amor Líquido.
Ante a iminência de perder a mãe, as filhas reúnem-se em torno daquela que lhes
deu a vida e sentem no silêncio, tantas vezes inexplicável, a dor do amor que não
manifestaram. Feito crias desmamadas, vêem no sofrimento da mãe o elo perdido;
entretanto a voz que suplantará o sentimento filial silencioso será a de Gilda, gritando
quando vê a mãe morta: “Volta, mãe, volta.” (p.222).
A cidade do Rio de Janeiro que aparece no romance é despavimentada – é um solo
alterado pelo mau uso e pela má conservação – assim como o solo que sustenta a relação de
Gilda com a mãe. O cenário da cidade caótica, de “Cristo pendurado nos ares” e de
hospitais desorganizados torna-se palco de um acerto em uma relação liquefeita – enquanto
as irmãs buscam um novo caminho para a vida, Gilda busca o colo da mãe. Mesmo
ironizando o sentimento que se constrói em sua subjetividade, ela afirma: “Só tenho
paciência com mamãe quando ela está na hora de morrer.” (p. 193).
Conjuntamente à vida da mãe, se esvai o seu entender lingüístico, e a imagem de
mulher decidida que erguera para si dá lugar a de uma mulher que chora, que deixa
transparecer nas lágrimas seus sentimentos secretos e que não consegue se dar a homem
algum. A morte dessa matriarca funciona como um rito de passagem que ela, Gilda, precisa
aprender a suportar e transportar. “Soy una cria perdida. (p. 206), diz a personagem, triste
por não poder ver na figura materna seu porto seguro. Incapaz de se ligar à espiritualidade
que a mãe tanto prezava, recorda o tempo todo que há nesta cidade um Cristo que tenta
conter seus habitantes – mas contê-los da fúria de suas ações e pensamentos.
62
Por fim, a personagem não consegue desfazer o nó atado da relação amorosa
familiar. O que em alguns contos de Clarice Lispector é visto como um medo (é o caso do
conto “Feliz Aniversário”, em que uma matriarca resolve questionar a vida no dia de seus
anos, ao passo que a família se questiona se haverá mais algum depois deste), aqui o fim da
mãe é o momento da redenção. Para sossegar a mãe – e quem sabe a si mesma – Gilda diz a
ela, em seu leito de morte que vai se casar e tomar “um rumo na vida”, como ela sempre
quis. Entretanto, o cumprimento de tais promessas é improvável, pois a narrativa fecha os
olhos para que o leitor observe em sua própria psiquê se há ou não alguma maneira de levar
a cabo o “felizes para sempre” tão almejado pela mãe da personagem. Enquanto o mundo
se abre “como um gaiola de pássaros” (v. p. 223), ela deverá aprender a ter suas próprias
asas para narrar seu destino. Imprevisível, agora.
2.2.3 “Amor, amores” – o sentimento amoroso num solo feminino
Citar um solo feminino no título desse capítulo faz-se preciso porque o que se vê
durante a história é uma mulher em busca de um objetivo – alcançar a tão sonhada
realização sexual. Contestadora, Gilda é uma personagem que se recusa a permanecer
silenciosa diante do seu não-prazer e que, ao mesmo tempo, modifica o esteriótipo da
mulher submissa a que o homem mantenha, durante a relação sexual, apenas o seu prazer.
Apaixonar-se e desapaixonar-se é algo comum no líquido mundo moderno, diz
Zygmunt Bauman em Amor Líquido, mas nem todos os sentimentos que aparecem podem
ser chamados de amor. Numa era em que noites avulsas de sexo são chamadas de “fazer
amor”, torna-se difícil medir até onde vai o ideal de satisfação que cada ser deseja para si
63
no terreno da sexualidade. O amor, que antes era visto como uma coletânea de episódios
intensos e impactantes, hoje está assentado sobre a fragilidade das relações humanas.
Bauman chama isso de “relacionamentos de bolso”, descartáveis e de consumo imediato; a
relação amorosa toma hoje novos rumos de aceitação e de convivência, sem o apego
indefinido da era da modernidade. Vive-se uma cultura consumista, em que o consumo
rápido (como um fast-food do amor) é tão intenso quanto preciso.
O grande desejo de Gilda acaba por levá-la várias vezes ao encontro de outras
fontes de busca, de realização. A partir do momento em que não há a previsibilidade de
alcançar o alvo, essa Diana caçadora guarda suas flechas na aljava e parte em busca de um
novo caminho. Mas cabe uma pergunta: se o desejo fosse alcançado, manteria ela seu
posicionamento ao lado do parceiro que a satisfez? Zygmunt Bauman diz que o desejo está
fadado ao fim, porque a satisfação do desejo provocaria o fim do desejo de buscar.
Sendo assim, a realização do desejo coincide com a aniquilação do próprio desejo
ou de seu objeto de manifestação – a pessoa, a coisa, etc. Já o amor, segundo o sociólogo, é
impregnado da vontade de se manter, de se cuidar. Entretanto, como o objetivo da
personagem é a realização de um desejo, fica-lhe difícil manter os cuidados necessários a
um amor. Desejo e amor estão em campos opostos: um querendo ser mantido e o outro,
querendo a autodestrição para se satisfazer. É como uma pulsão de amor e morte, um
embate entre Eros e Thanatos pelo destino da vida humana.
O relacionamento é um investimento, do qual se espera um retorno. O retorno
almejado pela personagem é a obtenção de um orgasmo, nada mais. Além disso, a
personagem de Solo feminino representa uma mulher que não tem medo de ser feliz,
mesmo que isso lhe custe um aprendizado doloroso. Em seu relacionamento com seu
64
primeiro marido, enquanto provava uma “experiência de casamento”, seus objetivos não
foram alcançados porque José Júlio mantinha-se preso ao passado de um casamento falido.
Bauman diz que nas relações de experimentação (ou “relacionamentos de bolso”,
como ele diz) não há fios que prendam os laços desse união. Vive-se junto por causa de,
não a fim de. O que houve no passado não deve ser repetido; logo, o que ele viveu com sua
ex-mulher e a filha não deve contar em sua nova relação; mas não é o que acontece –
Aurora e Bianca estão sempre no caminho. Ambas representavam um rito de passagem a
ser enfrentado por Gilda, e do qual ela renasceu com a certeza de poder começar de novo.
É o coração que comanda a vida a dois do mundo pós-moderno: longe das ordenanças de
uma durabilidade, hoje pode-se escolher com que ficar – e é o que ela faz.
Relacionamentos demandam cumplicidade e isso é algo que essa mulher não tem;
podem ser cúmplices na cama, mas sem a satisfação que ela deseja. Sexo e amor se
confundem: “Vivemos assim, num desespero mútuo.” (p. 14); eles (seus parceiros), na
ânsia de se satisfazerem; ela, na angústia de não ter um orgasmo. O amor é um ato de datas
marcadas: “Hoje é terça-feira, vou me encontrar com José Júlio; temos dia certo para trepar.
O motel também é o mesmo, ele não consegue variar.” (p. 10). A relação sexual é frugal e
rápida, como a velocidade dos tempos pós-modernos no qual ela vive: “José Júlio é
apressado. [...] Tenho sempre impressão de gincana quando vamos transar.” (p. 22). Não há
entre eles um relação sublimada do relacionamento amoroso.
Segundo Elizabeth Badinter, em Um é o Outro, a qualidade das coisas em comum é
o que determina o tempo em que pode durar uma relação, não a quantidade delas: “Para que
continuar a dois, se não se é mais um?” (BADINTER, 1986:266). Se não há mais uma
ligação entre as partes envolvidas, não há mais por que manter os laços. Nos quase vinte
anos de diferença entre as teorias de Bauman e Badinter, a visão da necessidade de se
65
permanecer juntos mudou e evoluiu, mantendo, porém, o mesmo caráter visionário – em
não havendo pontos em comum, é hora de “a fila andar”. Porém, tanta instabilidade traz e
promove a insegurança, visto que os nós dos laços do relacionamento estão “frouxos” pela
liberdade de novas regras.
O amor idealizado por Gilda não se sacraliza na imortalidade de um “felizes para
sempre”. No romance de Livia Garcia-Roza, o que vale é a consagração de um verso de
Vinícius de Moraes: “mas que seja infinito enquanto dure.”. O sonho do happy end se
desfaz na figura de José Júlio, porque ele ainda está ligado ao passado e, no caso dos
demais, porque eles não conseguem permitir o orgasmo tão sonhado; mas ela persiste em
sua busca.
Laura Kipnis diz em Contra o Amor: uma polêmica que o amor é um tirano -
relembra a ironia contida no título da novela que a mãe de Gilda assiste: AMOR
TIRÂNICO, uma força misteriosa e dominadora, um chefe que exige lealdade e submissão,
a quem seus vassalos se submetem por livre e espontânea vontade.
O casamento, segundo ela, nem sempre é o resultado do amor romântico e quando o
é, este nem sempre permanece durante o casamento (dadas as intempéries da vida). A época
de Solo feminino é a que mantém uma cultura de sexo livre e de puritanismo ao mesmo
tempo, causando um embate na vida dos seres, como dito anteriormente. É isso que permite
ver no texto a vontade de que a filha se case, que se origina num discurso de gênero
perpetuado pela mãe.
Anthony Giddens, em A transformação da intimidade: sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas, diz que o amor romântico provoca um questionamento
sobre como me sinto em relação ao outro ou como o outro se sente em relação a ele mesmo,
66
no famoso encontro das almas (temática imortalizada pela mãe de Gilda – segundo ela, é a
única maneira dos corpos se encontrarem). Entretanto, ele também reitera que
Na época atual, os ideais de amor romântico tendem a fragmentar-se sob a
pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina. o conflito entre
a idéia do amor romântico e o relacionamento puro assume várias formas,
cada uma delas tendendo a tornar-se cada vez mais relevada à visão geral
como um resultado da crescente reflexividade institucional. [...] Mas em
outros aspectos (surge) [...] o amor confluente, ... um amor ativo,
contingente, e por isso entra em choque com as categorias “para sempre”
e “único” da idéia do amor romântico. (P.72)
E é desse amor que trata Solo feminino, embora a personagem não consiga alcançá-lo. Para
a mãe, o amor é uma fonte de sofrimento (como confirma a idéia de Laura Kipnis em
Contra o amor) e Gilda acusa tal conversa como digna de um “barbarismo” que ela se
recusa a ouvir. Defrontada com a problemática de uma relação que não sabe explicar (uma
vez que a chama de “experiência de casamento”), essa mulher mutante altera sua ordem de
submissão e aceitação e procura algo novo.
Elizabeth Badinter diz em Um é o Outro que muitos não experimentam o casamento
porque ele está constantemente ligado à idéia de fracasso, de divórcio. Daí, a
experimentação. As alterações na ordem do casamento também são definidas pela
narradora: “Finalmente me casaria com José Júlio, quer dizer, moraríamos juntos.” (p.39).
Ao receber da irmã um kit de limpeza de presente de casamento, vê-se que, para muitas, o
destino da mulher está ligado às ordenanças domésticas. Entretanto, a mulher como a
rainha do lar é um mito que vem sendo desconstruído a todo momento no mundo pós-
moderno. Embora as propagandas apelem para esse tipo de marketing em datas
comemorativas, tudo está cedendo a uma nova visão de mundo.
A vida ao lado de seus amantes não é um sonho “a dois” – ou é constantemente
chamada pela mãe, ou interrompida por seu Evaristo, seu chefe que planeja levá-la ao meio
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do céu, e esse meio do céu representará todo o prazer desejado por ela. Até em sua pretensa
lua de mel já se vê um amor sem vontade: “... depois de fazermos amor (nem sei se assim
se pode chamar o que se passou meteoricamente entre nós )” (p.41). A sombra de uma outra
família paira sempre sobre ela (mesmo que a outra família seja a sua mesma). O cenário
que acompanha a primeira casa é idílico, com flamboyants à janela, mas a rotina quebra a
magia do momento. São os pequenos momentos e defeitos que cada um têm que não lhe
permitem prosseguir, destruindo seus relacionamentos.
Enquanto não resolve suas relações com a mãe, Gilda não consegue se encontrar
como pessoa. A complementaridade que se espera haver no casal, segundo Elizabeth
Badinter em Um é o Outro, não se mantém entre os amantes do romance, atingindo uma
base já fragilizada. As picuinhas e a convivência diária, que segundo Laura Kipnis são uma
determinação direta da escolha de se estar juntos, vão minando a fonte do relação
construída sobre um solo móvel (por mais antitético que possa parecer). As irmãs também
vêem seus casamentos ruírem, mas só Gilda quer mais que a rotina.
A vida em comum vai entrando em declínio: “Da Aurora ao crepúsculo em
minutos” (p. 76), uma metonímia que explica o início do fim da relação (antiteticamente
falando). Porém, cabe aqui questionar: houve realmente um início ou o contrato de ser feliz
e amar foi cumprido apenas por uma das partes? Ao se conscientizar disso, a personagem
sabe que o que havia de concreto na relação se desfez; agora, só lhe restam sonhos. Desde o
primeiro encontro, já havia o desacerto.
Em seu complexo de patinho feio (relembrando o clássico de Hans Christian
Andersen), Gilda sente-se excluída da família que deveria ter construído e da sua própria
família. Essa exclusão provoca seu silêncio, enquanto revolve dentro de si os efeitos de seu
ego balançado pelo abandono. Suas preocupações com sexo são fruto de escárnio num
68
diálogo com José Júlio: “- Eu não tenho tido prazer com você, é isso...- assim comecei. –É
mesmo??... – Você é muito desregulado, afobado, faz tudo na correria... – Tesão, chuchu...”
(p.87). O fim do relacionamento é fatal porque os corpos não se encontram, nem as almas
com quem pretendem se relacionar. Mas a vida continua.
2.3 Obsceno abandono: um eu que se perde na alteridade
Obsceno abandono, de Marilene Felinto, é um romance também publicado pela
Editora Record. Semelhante a Solo feminino, de Livia Garcia-Roza, o texto integra a
narrativa de um amor desmedido e incomensurável, com uma diferença: enquanto a
protagonista de Solo feminino vive em busca de sua felicidade, a narradora de Obsceno
abandono sofre em decorrência da perda de um amor – e por conseqüência, de si mesma.
Narrados em primeira pessoa, os dois romances apresentam um discurso, por vezes
inviolável, mas convidativo – em especial ao leitor, que tende, sem aviso, a se localizar na
situação narrativa. Lançado em 2002, Obsceno abandono trata da história de uma mulher
que se debate entre as agruras da perda e do abandono amorosos. A personagem principal
não tem nome; apesar disso, o pronome eu que sustenta sua história identifica-a diante de
seu interlocutor.
Autora de As mulheres de Tijucopapo, O lago encantado de Grogonzo e Postcard
(contos), Marilene Felinto tem publicadas 82 crônicas sob o título de Jornalisticamente
Incorreto, editadas pelo jornal “A Folha de São Paulo”, no período de 1997 a 1999. Embora
seja mais vista como jornalista, seus romances trazem personagens fortes, que, por vezes,
incomodam ao leitor, como é o caso da heroína de As mulheres de Tijucopapo, que volta ao
seu lugar de origem para aprender com a auto-estima de um grupo de mulheres isoladas
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como em uma tribo. E é de sofrimento que se falará neste tópico, em especial, de
sofrimento amoroso.
No romance, o que se vê no romance é uma mulher sem nome, defrontada com a
problemática da perda amorosa, juntamente com o problema da perda de si mesma.
Explica-se: ao entregar-se profundamente num dado relacionamento, e não sendo
plenamente correspondida, a personagem sente-se desprovida de sua identificação como
pessoa. Aqui, reaparece a fragilidade dos laços humanos, de que fala Bauman em Amor
Líquido. É sobre ela que se sustenta esse relacionamento, o motivo da “destruição” interna
dessa mulher conhecedora de seu destino de solidão. A epígrafe que abre o livro é de João
Guimarães Rosa: “O amor, já de si, é algum arrependimento”. Dor e arrependimento andam
juntos nesta narrativa, aliados à vergonha de se abandonar e de se sentir abandonada.
O livro é dividido em dois capítulos: primeiro, tem-se a narração do “Abandono”;
depois, a narradora-personagem traz à cena a história de seu abandono, num capítulo
chamado “Obsceno”. Roland Barthes diz em Fragmentos de um discurso amoroso, que o
sujeito apaixonado não escreve sua própria história de amor, mas a personagem de Obsceno
abandono traduz em palavras seu infortúnio, para, talvez, convencer-se de que não
ninguém há a ouvi-la. Ninguém, além do leitor.
2.3.1 Uma questão de identidade
Antes de se abordar o termo “identidade”, faz-se necessário emitir uma pequena
definição do conceito de identidade. Segundo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-
modernidade, a sociedade está em mutação. As velhas identidades que classificavam os
seres estão em declínio, provocando o surgimento de novas atitudes e comportamentos,
“fragmentando” o sujeito da atualidade. Seja num âmbito social ou cultural, o ser desse
70
início de século XXI, que antes estava isolado pelas fronteiras territoriais, agora está
globalizado. Segundo o autor, “As identidades ... não são coisas com as quais nascemos,
mas são formadas e transformadas no interior da representação.” (HALL, 2005:48).
As transformações por sua vez, estão mudando o conceito que se tinha de identidade
pessoal, abalando a idéia do homem como sujeito integrado ao mundo que o rodeia. A
desestabilidade do poder patriarcal e o avanço da globalização, por exemplo, foram
transformações que ajudaram a deslocar o sujeito de seu habitat natural, por assim dizer.
Desalojado daquilo que lhe era puramente conhecido e que fazia parte do seu modo de
viver, o sujeito ainda está confuso ante os novos rumos tomados. Questionado acerca de seu
posicionamento frente as mudanças nessa “aldeia global”, o sujeito da pós-modernidade se
vê em meio a uma crise. Marcado pelas condições históricas e culturais que o cercavam, o
homem da pós-modernidade encontra-se deslocado. Composto por várias identidades, ele
ainda não sabe se absorve ou rejeita tudo que lhe é culturalmente oferecido.
Uma crise na afirmação da identidade – que a narradora de Obsceno abandono
conhece, visto que ela intenta ser o outro para se realizar – é proferida por um personagem
coadjuvante, o ex-garimpeiro Macsuel: “ – Eu estou aqui mesmo! Não tenho vergonha de
negar que estou aqui mesmo!” (p. 18). Ele se contradiz ao afirmar e negar ao mesmo tempo
o lugar onde está. Ao se sentir incapaz de se localizar no mundo que o cerca, com várias
escolhas sobre o que ser e o que não ser, o homem desloca-se de seu espaço físico e
temporal e não se reconhece mais.
Segundo Bauman, em Amor Líquido, as identidades variam com a escolha dos
sujeitos. Cultura, de acordo com o autor, é uma parte herdada e que não se pode mudar, ao
passo que aquilo que é natural, que não é imposto, fica sujeito às constantes manipulações
humanas – o que se consentiu chamar de “identidades”. Refletindo sobre a vida de
71
Macsuel, a personagem diz: “Era como se a vida tivesse escavado Macsuel, lavrado e
escavado até ele não passar de uma cratera, uma erosão, uma falha exposta. Ele era seus
próprios escombros, suas ruínas.” (p.19)
Não há no texto, além das referências à cidade de São Paulo e a Paris, outras
citações a uma localização territorial que possa enquadrar essa mulher na situação de um eu
descentralizado. Numa era de globalização, em que territórios se mesclam e se fragmentam
a todo tempo, como diz Stuart Hall em A crise da identidade da pós-modernidade,
localizar-se espacialmente permite ao ser reconhecer-se no mundo à sua volta. Ela, porém,
não possui uma localização interna, quanto mais externa: “Ele, como eu, não era daqui,
vinha de outro lugar – como eu, dessas pessoas que amadurecem no trauma dos lugares
grandes para onde são um dia transplantadas feito árvore ...” (p. 56). Ela é uma árvore cujas
raízes estão arrancadas do seio da terra; aqui, a construção imagética é a de uma mulher
arrancada de Gaia, a mãe-terra, e esse “arrancar” da terra acaba por ser um arrancar-se à
capacidade de ser alguém que pode viver por conta própria.
A visão de desterro, topoi comum às narrativas da pós-modernidade, também
aparece em Obsceno abandono. O desterrado é o ser que não consegue se alocar em um
determinado lugar nem tampouco reconhece o local em que está. No romance em estudo,
além de não possuir nome (uma marca de identidade) a personagem não se reconhece em
seu habitat – seu próprio modo de viver: “sou uma imigrante, uma imigrante nunca se
recupera da perda” (p. 56). Aqui, ela não é a imigrante de um mundo físico, mas de um
mundo sentimental. Ao mesmo tempo em que apresenta o sofrimento do abandono, comum
a qualquer ser humano, essa mulher não se reconhece como ser em si: “Neste mês da minha
desgraça, às vezes acordo com cara de homem, às vezes com cara de bicho, outras com cara
72
de monstro – outras vezes com simples cara de palhaço louco.”(p. 56). Seu exílio a leva
para longe de si mesma e de sua capacidade de resolver seus problemas interiores.
2.3.2 “Vou te contar...” – entre o “Obsceno” e o “Abandono”
Assim como em Solo feminino, há uma problemática entre a comunicação e a
linguagem, em Obsceno abandono é também o problema da fala que move o fio condutor
do romance. No momento da fala, todas as manifestações tendem a induzir o leitor a uma
comunicação entre os amantes que não acontecerá – a comunicação é somente entre
narrador e leitor. Externar o que lhe vai na alma é aceitar e se arrepender; falar significa
admitir seu erro e o peso de sua solidão.
Para a personagem, falar é o problema, “porque falar, muitas vezes, é mais penoso,
muito mais penoso, do que matar.” (p. 59). Assim como no processo comunicacional de
Roman Jakobson, a mensagem pode não ser entendida graças a ruídos na comunicação, o
relacionamento da personagem também não chega ao final de um entendimento, graças ao
“... ruído de nosso lixo amoroso, ... nosso desentendimento.” (p. 59).
Tanto em Solo feminino quanto em Obsceno abandono, a violência da cidade
atinge e “violenta” a linguagem. Em Obsceno abandono, a violência das atitudes e dos
sentimentos humanos faz da linguagem um carrossel de emoções. No auge de uma crise
solitária, ela liga para Charles, o homem que a abandonara, como num pedido último para
uma tentativa de reencontro. Ela entra em contato para que ele busque suas “coisas”.
Então, a violência do amor abandonado atinge o nível lingüístico: “- Quero que você
venha tirar suas coisas da minha casa. [...] – Que roupas? – As porras das suas cuecas! Que
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eu não agüento mais abrir gavetas.” [...] “- Pois você vai ver só... Vou encher de merda e
jogar na sua porta!” (p. 11-12).
As palavras tomam vida, através das figuras de linguagem que passeiam pelo texto,
com ênfase para as prosopopéias e zoomorfizações, que transbordam no texto da narradora.
Exemplo dessas figuras vê-se em: “Cuecas que me olham com seu olhar de coitadas, de
largadas no fundo de um guarda-roupa que me encara, surdo e mudo, todo embutido na
parede que me agride.” (p.12).
A linguagem desse romance, assim como em Solo feminino, faz uma representação
do real. Para o leitor da pós-modernidade, que procura na literatura a representatividade do
real, do espetáculo da vida com tudo o que ela é (sem intenção de parodiar Nelson
Rodrigues), o texto está carregado da mescla entre fala e escrita (ou a sustentação
dicotômica dela): “- Ora, uma pessoa não pode enfiar um membro seu no sexo da outra,
meter sussurros com sua língua no ouvido da outra, escavando, erguendo gemidos do fundo
daquela criatura.” (p. 57).
Em Obsceno abandono, apesar de a personagem afirmar que a atitude de Charles
para com ela é obscena, no sentido de vulgar, o que se vê é um erotismo derramado e
arrependido, fruto de uma transgressão a uma regra social (a de ser “a outra”), que não
produziu recompensa em momento algum – nem sequer para satisfazer seu ego. Diz George
Bataille em O Erotismo: “O erotismo, no seu conjunto, é infração à regra das proibições: é
uma atividade humana.” (BATAILLE, 1987:84).
Ela se utiliza de hipérboles: “com uma intensidade de raio atravessando um ser”,
(p. 56), sinestesias: “a gente ficou minutos inteiros se comendo com os olhos”(p. 56) e
hipóteses, mantendo os verbos no subjuntivo para indicar o que poderia acontecer: “Se eu
realmente fosse amada a partir dali, haveria de me afastar de todas as pessoas que já me
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fizeram mal na vida”(p. 56). Suas juras de amor passam ao terreno da vulgaridade do
vocabulário pela mágoa do fim do relacionamento: “- Pois você vai ver só... Vou encher de
merda e jogar na sua porta.” (p. 59).
Na face de concreto da cidade deo Paulo, a personagem-narradora sente-se
“assassinada” pelo homem que amou e que não lhe correspondeu: “Eu me sinto como uma
pessoa fuzilada, que tivesse um buraco aberto, um vazio violento – não um orifício destes
como o da minha vagina, não. É seco o buraco, é a perfuração de um tiro, tiro de bala, bala
de arma, de fuzil.”(p.17). A violência da cidade invade seu interior – e a construção
metafórica da violência de ter sido abandonada demonstra a dor de uma mulher solitária
que depois se questiona: “Onde fica o arrependimento?” (p.17).Aqui, a realidade violenta
que ataca corpo e alma é banalizada numa linguagem simples e comum.
Para descrever essa “selva de pedra”, ela diz que, em São Paulo, onde habita,
“...os edifícios é que caminham, passam andando por mim com seus
membros gigantes, seus pés de elefantes. Sequer me esmagam, passam
sólidos, pesadamente desviando de mim, que não sou senão um cisco, um
molambo que o vento atira para lá e para cá, [...]; eu que sou uma aranha e
somente um fio me liga ao mundo.” (p. 28).
Essa mulher é uma Aracne que não sabe reconstruir o fio tecido da vida. Segundo a
lenda, Aracne desafiou a deusa Vênus em um concurso de teares. Por sua imensa soberba,
Vênus venceu-a e subjugou-a; Aracne, vendo o erro que havia cometido, se enforca. A
deusa, apiedada da pequenez da pobre criatura, transformou-a num ser que vive a tecer
uma aranha. A comparação da personagem encaixa-se na lenda de Aracne – apenas um fio
a prende a esse mundo. Embora viva numa grande metrópole, sabe que a cidade ignora sua
dor, pois detém-se apenas naquilo que interessa: toda a vida que passa lá fora. Tempo e
espaço são movediços no mundo pós-moderno.
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Na atualidade, fala-se em conexões (via internet); os relacionamentos virtuais são
acontecimentos constantes e comuns – ao mesmo tempo em que a tela de silício e um cabo
telefônico aproximam, mantém a distância que impede o perigo da aproximação do contato
que pode provocar o laço eterno, o compromisso.
De acordo com Lucia Santaella, em Culturas e artes do pós-humano: da cultura
das mídias à cibercultura, o e-mail, por exemplo, é uma versão contemporânea do gênero
epistolar, que por tanto tempo firmou o contato entre as pessoas. Embora a escritora o veja
como uma forma “promíscua” de comunicação (visto que pode ser enviado – quando
desejado – para várias pessoas), perdendo-se a intimidade da carta, o e-mail é uma forma
de fala que a personagem de Obsceno abandono apresenta para se comunicar com seu
amante e para refletir sobre seu interior dilacerado – ou para expô-lo diante do leitor ainda
comovido com seu desmedido sofrimento.
Interessante é observar que alguns e-mails recebidos pela personagem são enviados
em inglês, mas a despedida é feita em português. A personagem os traduz para a língua
portuguesa, mas não deixa de ressaltar que o encerramento dos e-mails fica em português.
A língua tida como universal – o inglês – seria uma forma de ligar esta mulher desalojada
ao mundo com o qual ela está desconectada.
As “cartas de amor” – entenda-se, neste caso, os e-mails que ela envia ao amante –
são vazios da presença, mas cheios de significado, segundo Roland Barthes. Em
Fragmentos de um Discurso Amoroso, Barthes diz que a dialética da carta consiste num
“vazio”, codificado por uma ordenação lingüística e numa “expressividade”, pois está
carregada de vontade de significar o desejo pelo ser amado. (conf. BARTHES, 2003:59)
O silêncio que a personagem enfrenta diante de determinados obstáculos é uma
forma de se excluir do núcleo de sua dor. Por não conseguir atender ao interfone, ela pensa
76
(mas não fala): “Quando estou sofrendo, acontece isso: eu não falo.” (p. 21) Semelhante à
personagem de Solo feminino, os problemas de fala dessa mulher sem nome estão
intrinsicamente ligados aos seus sentimentos, mas sem os “laços da família” – nem família
ela tem. Sua única família foi Charles, o amante. Para Gilda, em Solo feminino, e a
personagem aqui estudada, não falar é uma forma de não aceitar seus problemas; para a
personagem de Obsceno Abandono, não falar é uma forma também de não assumir sua dor
de ter se entregado tanto.
A linguagem da narradora que emudece diante do problema da solidão invade o
mecanismo das máquinas: “Eu precisava ser a máquina que falasse, mas minha engrenagem
estava partida.” (p. 22). Essa comunicação via máquina é a base da cultura do século XXI,
diz Lúcia Santaella em Culturas e Artes do pós-humano. Se a engrenagem está partida, o
corpo enquanto “máquina” também pára. E as máquinas que cercam sua vida pararão até
um possível retorno do homem desejado: “(Mandei apagar do computador, do disco rígido
[...] todos os documentos. Melhor que não haja registros de Charles na minha vida.)” (p.75-
76). Num mundo que preza pela informação e pela comunicação, não há para ela uma
forma de emitir uma palavra de ordem, de interagir com o mundo que a cerca.
Ao citar as pessoas com quem se relacionou, ela abrevia seus nomes porque estão
ligadas ao passado de uma vida a dois e ela, agora, possui um presente de solidão:
“Anotações: eu até gosto dessa frustração, dessa leve solidão de não ir para cama com
ninguém: nem com Js..., nem com Jn ...” (p. 30)
Reconhecendo sua incapacidade em manter vínculos amorosos, a personagem
encontra-se ciente de sua extrema doação a Charles. Mesmo ciente de tudo isso, ela busca
no relacionamento a quebra da insegurança causada pela solidão. Fazendo isso, essa mulher
lembra a situação de Gilda e sua mãe em Solo feminino; entretanto, as condições solitárias
77
da mulher de Obsceno abandono não a deixam assumir seu erro. Reiterando discursos de
gênero de mulher abnegada e submissa ao amor, ela pensa, por um momento, no que
aconteceu: “- Eu nem gostei tanto assim de você; foi mais quando você me deixou que eu
senti a perda.” (p. 79). Todavia, engana-se o leitor se acha que ela enquanto mulher
ressurgirá e aprenderá a lição. O sofrimento não a deixa ver além da tênue cortina de
fumaça que cobre seus olhos.
A infância é a fonte e a matriz de todas as formações do caráter humano. É na
infância da narradora que começam a surgir seus problemas de comunicação. Brincando
com um menino de “telefone sem fio”, ela não consegue entender o que ele lhe diz, nem o
porquê de os homens não amá-la, refletindo desde então sobre o que é ser abandonada
Só havia ruídos na linha de cordão, na lata que eu enfiava no ouvido,
então, para escutar o ronrom do mar, já que os homens não me queriam...
Eu gostava daquela violência – já era tão dificultoso entender por que um
homem não gostaria de mim e só de mim que eu preferia outras forças da
vida, revoltas, hecatombes, catástrofes de água salgada e areia. [...] Eu já
não entendia por que um homem não gostaria só de mim, por que não
seria eu a escolhida. (p. 25).
Toda a sua problemática com as palavras é calcada no desenrolar das ações que se
explicam quando chega o momento de “Obsceno”. Aqui, obsceno significa trazer à cena o
que estava oculto. É chegado o momento de sua declaração: ela já sabe que sofre por ter
amado demais e é esse seu grande arrependimento. Sua incapacidade de se relacionar
verbalmente funciona como uma barreira.
Embora ela afirme desejar a manutenção do sentimento amoroso através da forma
verbal:
“Se você fosse outra pessoa, eu (grifo nosso) te escreveria uma carta hoje.
[...] Melhor que não haja registros de você e eu – cartas, bilhetes,
presentes – senão na sua cabeça insondável e na minha. Eu morro de
medo de que você não me compreenda, de que você me prenda e me
78
abandone. Mas o pior medo mesmo é o de que você não me responda, não
me corresponda. Você que não escreve nada, nunca.” (p. 52-53).
Fica então o questionamento: a que correspondência a personagem se refere? Não é
somente às cartas que ela se refere, mas sim ao amor desmedido que ela dedicou a esse
homem que não a quis.
As falas que ela dedica aos diálogos com o amante são curtas – funcionam como
respostas vazias a perguntas cheias de significado, perguntas retóricas, para as quais já se
sabe a resposta: “Nossa comunicação truncou-se num diálogo do ‘não’: - ‘Eu não quero
mais viver isso...’”(p. 57).
A narrativa em primeira pessoa não permite mascarar que a personagem contará tão
somente sua própria história de amor e de infortúnio. Segundo Maria Aparecida Baccega,
em Palavra e Discurso: história e literatura, “aí está a enunciação, universo à disposição
do indivíduo/sujeito, que poderá escolher nele as palavras para, combinando-as, formar seu
enunciado, manifestar suas concepções, suas idéias...” (BACCEGA, 2003:53). Apesar de
estar deslocada do mundo que a cerca, ela sabe que seu destino (bem como seu discurso) é
fruto de suas escolhas: “Nunca me entreguei tanto, nunca me inaugurei tanto para uma
pessoa.” (p. 54).
Como uma virgem que se guarda para o amado na noite de núpcias, essa mulher
guardou-se para o homem amado e idolatrado, sem, entretanto, receber nada em troca. O
medo de permanecer sozinha, entretanto, promove o silêncio – rompido pelas
manifestações de desespero diante da possibilidade (depois convertida em certeza) da
solidão. Ela e Gilda, de Solo feminino, temem ficar sozinhas, mas seguem o destino errante
do amor em uma era “fluida”, como diz Bauman em Modernidade Líquida. Mesmo
afirmando ter amado outros homens, é o relacionamento com Charles que será questionado
79
e aberto ao conhecimento do leitor. Não que os demais não tenham provocado a mesma
solidão, mas este é o que lhe provoca mais arrependimento.
A leitura de um texto que a narradora faz todos os dia provoca uma
intertextualidade com sua própria situação, porém, sem caráter de auto-ajuda. Ela lê:
‘Quem perdeu o amor sabe-se abandonado por todos, por isso despreza
consolo. [...] Ao ofendido, dores agudas iluminam o nosso corpo. Ele
compreende que no íntimo do amor obcecado, que nada disso sabe e nada
deve saber, vive a exigência de quem não está obcecado.’(p. 14).
Aliadas à sua incapacidade de se achar no mundo em que a cerca, estão as
construções metafóricas que faz de si, no redemoinho de sua dor. Começa a transformar-se
em coisa, até chegar a um estado de nada: “Uma coisa é o que me sinto, uma mulherzinha-
cachoeira, uma pedra, uma queda-d’água, um pedaço de lodo esverdeado e escorregadio,
um escorregão, um cisco no olho, um argueiro, uma insignificância, amor.”(p. 35). Essas
metáforas parecem funcionar como exemplo da liquidez do mundo pós-moderno. Ela cita
outra comparação de si mesma com nada: “(Este o meu labirinto, esta a minha metamorfose
em nada, em ninguém.)” (p.34). Essas metamorfoses demonstram que dentro do outro que
foi embora, ficou a alma dessa mulher.
Os espelhos revelam sempre a verdade; em Obsceno abandono, o espelho faz a
narradora enxergar uma mulher feia, gorda e velha, como a alma partida que carrega dentro
de si. É essa crise de subjetividade que a coloca nesse rito de passagem, que a leva a dizer
que: “Hoje eu não passo de uma daquelas borboletas que esvoaçam pela estrada afora,
perdem o rumo e voam abaixo, vão dar de cara no vidro e es estraçalham contra o pára-
brisa nos carros, em suicídio involuntário, surpreendidas em seu espaço aéreo...” (p. 45).
80
2.3.3 “Sem você eu não sou ninguém...”
Diz Eni Puccineli Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos,
que “escrever é uma relação particular com o silêncio” (ORLANDI, 1993:08). Se assim o é,
o silêncio amoroso e desestruturado da personagem de Obsceno abandono principia a vir
à tona quando ela fala sobre sua história e com seu sofrimento.
O romance funciona como uma peça em dois atos. O monólogo de “Abandono”,
primeira parte, é uma voz que sofre e que se arrepende. No segundo ato, “Obsceno”, há
uma reflexão (e diálogos) acerca das causas que provocaram o abandono. Entretanto, o
narrador, com uma espécie de “máscara”, induz o leitor a primeiro ver seu infortúnio.
Dessa maneira, ela, como enunciadora de sua dor, interage com o enunciatário, fazendo
com que o mesmo se identifique com o texto
O livro já inicia com uma citação que diz respeito à dor do abandono:
“Arrependimento é a pior de todas as palavras – tem erres que se arrastam no tempo, fazem
ruídos, rangem como dentes na casa silenciosa dos meus ouvidos de noite. É uma espécie
de maldição.” (p. 11). A personagem sente-se desmerecida enquanto pessoa, no silêncio e
na solidão de um sábado à noite, “como se fosse qualquer outro dia deste mês da minha
desgraça.” (p.11). O abandono transforma a vida dessa mulher numa verdadeira tragédia.
Seu vaticínio – estar só. O que a incomoda enquanto pessoa é o fato de estar .
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, dedica um capítulo às reflexões acerca
do comportamento da mulher que se dedica ao outro de forma extrema, como se viu em
2.1.2. Para a autora, o amor do homem reflete um sentimento de posse, como um senhor
feudal realizando um anexação de terras e adquirindo mais “bens”; em contrapartida, para
a mulher, o amor representa uma abnegação total – em função desse mesmo “senhor
81
feudal” que agora a possui. Em “A Amorosa”, título a que diz respeito esse capítulo,
Simone de Beauvoir descreve a mulher amante como aquela que vislumbra no amor uma
forma de religião – em sua entrega a este deus soberano e onipresente, ela se dá pronta e
devidamente submissa. Semelhante à personagem de Obsceno abandono, a amorosa é
aquela que se entrega sem fronteiras.
À mulher amorosa lhe incomoda não ser o único objeto de desejo de seu “deus”,
diz Simone de Beauvoir; entretanto, à mulher de Obsceno abandono incomoda-lhe o fato
de não ser a única – e todas as premissas do então relacionamento caem por terra. “As
coligações tendem a ser flutuantes, frágeis e flexíveis”, diz Bauman em Amor Líquido
(2004, p. 41). Não há laços que mantenham-nas definitivamente. Roland Barthes diz em
Fragmentos de um discurso amoroso que “todo episódio de linguagem que encena a
ausência do objeto amado – sejam quais forem sua causa e duração – tende a transformar
essa ausência em provação de abandono.” (BARTHES, 2003:35), daí o “incômodo” sofrido
pela amorosa.
Laura Kipnis, em Contra o Amor: uma polêmica, diz que o amor é uma força
misteriosa e dominadora, um chefe que exige constante lealdade; entretanto, ela também
afirma que os seres pós-modernos submetem-se ao amor como escravos a um senhor.
Segundo ela, o ser humano é coibido a ceder ao amor para ser adorado e satisfeito por esse
mesmo sentimento pelo qual é dominado. Como Bauman o faz em Amor Líquido, ela
também afirma que os relacionamentos e os casamentos estão em transição: “O medo e a
dor de perder o amor são tão esmagadores que a maioria de nós fará qualquer coisa para
evitá-los...”(KIPNIS, 2005:71).
A protagonista de Obsceno abandono encaixa-se na situação descrita por Kipnis – o
tempo todo ela tenta apresentar pretextos para salvar esse relacionamento: “E eu me fiz
82
uma promessa solene: se eu realmente fosse amada a partir dali, haveria de me afastar de
todas as pessoas que já me fizeram mal na vida.” (p. 56), mas não há possibilidade alguma
de que isso aconteça. No mundo pós-moderno, a ambivalência leva os seres a se verem no
direito de fazer várias escolhas, e o excesso de compromisso (que para muitos significa
fundir-se “para sempre” – mesmo que o para sempre seja curto) provoca a ruptura do
relacionamento – através de exigências dela: “Quero viver o que eu sinto por você com
liberdade, sem esses limites que você impõe, sem condições. Quero tudo...”(p. 62).
Relembrar a cidade do Amor – Paris – é uma nova tentativa de retomar o elo
perdido entre eles. Entretanto, a única lembrança que ela possui é a de uma tragédia,
semelhante à tragédia romântica que vive no momento: “De Paris eu só me lembro
nitidamente de um homem caindo da plataforma nos trilhos da estação de trem. Só me
lembro da poça de sangue se formando imediatamente sob sua cabeça depois do choque.
De Paris, só me lembro desse homem em desequilíbrio.” (p. 15).
A tragédia aqui não é só o drama, mas a situação que reflete esse relacionamento. A
queda do homem na estação é a representação - ou a mimesisde sua vida também
desequilibrada. Sua relação é, aqui, encenada como um fato real, camuflada na máscara de
um homem que cai no trilhos da estação de trem. Entretanto, a catarsis desta encenação não
se aplica só ao leitor do texto literário – a própria personagem passa a entender que, ali, está
o símbolo que representa sua infeliz história.
A dor do abandono é maior que a dor física e relembra os versos camonianos:
“Amor é um fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um
contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer.” Entretanto, a dor camoniana
está diante de um sentimento desconcertante e involuntário. A dor da personagem de
Obsceno abandono, por sua vez, é fruto de suas próprias opções.
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A loucura, válvula de escape dos personagens Macsuel e Maria Doidinha (uma
louca que morava no bairro da infância da personagem e em quem acaba se espelhando),
acaba sendo uma possível opção para esta mulher abandonada. Assim como em Solo
feminino a loucura é um lugar-comum, em Obsceno abandono ela é uma tentativa de fuga
à realidade. Sem ser restituída da perda amorosa, ela quase enlouquece: “Só sei que tem
dias que eu acordo com cara de louca.”(p.14).
O sentimento de culpa também é constante nesse texto – não só a culpa que essa
mulher abandonada sente, mas também a culpa que ela acredita sentir. Sua culpa,
entretanto, é fruto de seu rompimento aos ditames sociais que controlam a ordenação do
mundo, como diz Herbet Marcuse em Eros e Civilização. Diz a personagem: “Pra mim,
isso parece uma coisa: você depois que me dá amor, me pune inconscientemente por isso
(ou pune você mesmo, não sei). Você se sente culpado por estar traindo tua mulher.” (p.
60).
Relegada ao papel de outra, a personagem quer seus direitos de mulher que ama
Quem quer duas histórias tem dois telefones, duas camas, duas casas, dois
tempos, no mínimo! tem vida própria disponibilidade. Você não tem. Não
quer ter.” (p. 61) [...] “A única coisa que mudou no teu mundo depois que
eu apareci é que você se casou mais. Foi para isso que eu servi. Eu mesmo
me deixei usar para isso. (p. 61).
E Charles, em seu papel de homem do mundo pós-moderno, retruca: “Estamos
caindo em uma armadilha, esta expectativa de enquadrar nosso encontro em uma
‘relação’”(p. 60), enquanto que o desejo da personagem é baseado no anseio de unir e
dividir ao mesmo tempo. Como não consegue estar no outro nem ser o outro, ela segue
essa personagem arrependida e solitária pela sua própria via crucis, questionando: “Quem
fará o favor de se apaixonar por mim?”(p. 80).
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Em Obsceno abandono, é o que está no outro que atrai, que chama a atenção para o
ser amado:
Como eu ele não era daqui, tinha um sotaque, palavra e entonação
diferentes, que eu achava de uma sensualidade excitante. E ele tinha um
jeito carinhoso de tratar as pessoas, na voz, no tom – diferente de mim,
que eu, em princípio, não gosto de pessoas, sou grossa e grosseira, rude.
(p. 56).
Ao mesmo tempo em que informa sentir-se atraída por aquilo que é diferente, como
a comprovar a teoria de que os opostos se atraem, essa mulher afirma não se importar em
que as pessoas gostem dela: “Eu não estou neste mundo para agradar a ninguém. Eu apenas
corri por fora, sozinha. Ninguém dava nada por mim.” (p. 56).
Segundo Bauman em Amor Líquido, ao procurar o outro para encontrar nele um
abrigo, o ser depara-se com uma “estufa”, um mundo recriado. O relacionamento amoroso,
às vezes, é um mundo projetado para ser perfeito, mas a vivência da realidade não lhe
permite ser – é o mito da caverna dos tempos pós-modernos. O sociólogo afirma:
“Ninguém está dizendo que será fácil transformar as pessoas em parceiras do destino, mas
não existe alternativa senão tentar, repetidamente.” (BAUMAN, 2004: 42). Entretanto, as
personagens dos romances analisados nesta dissertação acreditam terem encontrado o
parceiro ideal, mas não há seres humanos perfeitos.
De acordo com Anthony Giddens em A transformação da intimidade, a idéia de
conviver perfeitamente com o outro leva a um questionamento de como se sente o outro em
relação ao ser e de como este se sente em relação ao outro. O que deveria ser um encontro
de almas pode tornar-se um problema, como acontece em Obsceno abandono: “- Meus
encontros com você são cheios de significados e inspiração para mim. Eu não fico
marcando hora no relógio. Aí vem você de noite e estraga tudo o que eu senti. [...] Que
crueldade.” (p.63).
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Os projetos de felicidade da personagem baseiam-se num mito de amor construído
pelos ideais do amor romântico: “Pois eu trocava tudo na vida para ser igual às pessoas
felizes.” (p. 56) Anthony Giddens explica em A transformação da intimidade que esse tipo
de amor resulta numa busca, que por sua vez “é uma odisséia em que a auto-identidade
espera a sua validação a partir da descoberta do outro.” (GIDDENS, 1992:57). Esse ideal
de amor é o espelhado no mito de Tristão e Isolda, conforme explicitado por Denis de
Rougemont em História do Amor no Ocidente.
Amantes impossibilitados de realizarem o seu amor, Tristão e Isolda são peregrinos
no mundo das regras sociais, enquanto tentam “anular” o que sentem um pelo outro. De
acordo com Rougemont, o que sustenta os amantes é amar o amor, não senti-lo pura e
simplesmente, porque isso gera sofrimento, e os amantes não querem sofrer. Para Giddens,
na atualidade, esses ideais de amor romântico tendem a se esfacelar sob a pressão da
emancipação e da autonomia sexual feminina (como no caso da personagem Gilda em Solo
feminino). Para ele, a visão do amor hoje é projetada na individualidade de cada ser,
pedindo igualdade no ato de dar e receber.
As questões da alteridade são a constante da obra. Em Obsceno abandono, não se vê
o outro como alguém desconhecido que deveria ser rejeitado, mas sim como alguém
conhecido e que rejeita a mulher que o ama. Bauman diz em Amor Líquido que “o desejo
não precisa ser instigado para nada mais do que a presença da alteridade.”
(BAUMAN:2004:23) O que incomoda à personagem é ter entregue todos seus desejos,
anseios e características a esse outro. Bauman ainda reitera, citando: “Separar-se do ser
amado é o maior medo do amante...” (BAUMAN, 2004:32), não somente pelo estado de
solidão (no qual fica a personagem), mas pela situação de não se sentir capaz de ser
86
desejado pelo outro – a ponto de ele ou ela ter tido coragem de abandonar sua parceira (ou
parceiro).
Charles, por sua vez, entende o amor sob uma ótica distinta da dela: “Então o amor
é essa coisa ruim? Esse risco eterno de abandonar e de ser abandonado? Não quero! Não
vivo assim!”(p. 64). A ironia da qual se arma a autora para alicerçar a relação dos dois é
palpável e instigadora: há mesmo um sofrimento ou seria tudo uma grande farsa, retomando
os valores dos gêneros teatrais?
O ato incomensurável de amar de Obsceno abandono relembra um poema de
Camões: “Transforma-se o amador na cousa amada,/ Por virtude do muito imaginar;/Não
tenho, logo, mais que desejar,/ Pois em mim tenho a parte desejada./Se nela está minh’alma
transformada,/que mais deseja o corpo de alcançar?/ Em si somente pode descansar,/ Pois
consigo tal alma está liada.” Muitas vezes, “transformar-se na cousa amada” implica deixar
de ser – e de se sentir – amado também e é essa a grande temática em torno da qual gira a
narrativa. Afinal de contas, fala-se de Amores Extremos nesses romances, e nada mais
coerente com o tema apresentado.
Charles reitera seu papel social, recusando-se a se separar da esposa para ficar com
a amante. Esta, por sua vez, recusa-se a aceitar seu papel de outra, exigindo uma
exclusividade que não lhe pertence, segundo as regras: “Nunca pensei que fosse virar essa
pessoa desprezível que eu me sinto. Então, algo está errado. Ou você se separa dela, ou... –
Eu não vou me separar dela.” (p. 19-20). Ela sabe que entre eles não há um acordo eterno:
“Toda a minha vida foi a vida de uma anormal. A vida de um funcionário cuja ficha não
cabia nos registros da empresa, de um amante que não se casava nos cartórios.” (p. 28-29)
Bauman diz em Amor Líquido que o relacionamento é uma espécie de investimento.
Investir em um relacionamento implica receber segurança e apoio; entretanto, ele também
87
afirma que promessas feitas nos relacionamentos amorosos não duram para sempre. Visto
isto, pode-se entender o porquê de a personagem traçar o rumo solitário de sua vida:
acreditando em promessas, não é capaz de visualizar até que ponto elas se cumprirão: “-
Você não quer ficar comigo, não é Charles? – Olha, eu já cansei de você viver perguntando
isso. Não estou aqui com você agora? – Isso não significa nada. Por que você não se separa
dela?” (p. 15).
No frágil e líquido mundo moderno, em que a efemeridade embasa os sentimentos,
é difícil determinar a durabilidade do amor. Bauman ainda afirma: “Todos os amantes
desejam suavizar, extirpar e expurgar a exasperadora e irritante alteridade que os separa
daqueles a quem amam.” (p. 32). Separar-se é, realmente, o maior medo dos amantes.
Essa mulher recusa-se a reconhecer em si a capacidade de atrair outras pessoas que
se interessem por ela, de amar e ser amada. Acreditando desde menina que seria
abandonada, faz para si um mundo de silêncio, no qual depura e administra sua própria dor,
“... no meu cotidiano de menina que tinha o resto da vida a perder – gaga, amuada, sem
querer a opinião de ninguém sobre nada.”. (p. 23). Em verdade, os homens desejam amar
sem sofrer.
Simone de Beauvoir diz em O Segundo Sexo que “...a mulher entregando-se
inteiramente ao ídolo, espera que ele lhe dará a um tempo a posse de si mesma e a do
universo que ele se resume.” (BEAUVOIR, 1980:415). Como o homem amado não lhe
restituiu ao mundo que supostamente lhe roubou, exigindo seu amor, a problemática da dor
torna-se mais intensa à medida que o reconhecimento do que o provocou se aproxima.
Todo esse desenrolar, entretanto, ainda está por detrás da cena da verdade – ainda
inaceitável – de um passo errado: ter confiado tanto.
88
Além da entrega desmedida a um sentimento unilateral, o que move o interior
arrependido dessa personagem é sua confusão de amor com sexo. Em sua defesa por um
direito “inalienável’ de amar e ser amada, ela intenta escrever uma lei: “Parágrafo único:
Fica proibido dizer adeus a uma pessoa em cujo sexo se tenha penetrado tão fundo, como
se por amor, salvo se a pessoa concorde ou seja avisada, comunicada suavemente.” (p.57).
Na expressão “como se por amor” fica a prova cabal da citada confusão: a comparação
pretendida não vai ao final – a intenção era que fosse, que existisse amor, recíproco, quando
na verdade o que há é um pseudo acordo entre os dois.
A personagem, sofrendo, deseja proibir o abandono. O amor ideal, exigido por essa
mulher, deveria ser merecedor de reciprocidade total, mas não é o que se dá, visto que ela
continua só e arrependida em sua solidão. Segundo Elizabeth Badinter, “a aspiração a
totalidade sem precedentes torna mais dolorosa do que nunca a nossa consciência de falta.”
(BADINTER, 1986:267). A dor de ser abandonada deveria ser proibida (bem como o ato
do abandono) por lei, para a personagem.
O sexo, segundo Bauman em Amor Líquido, é a própria síntese do modelo ideal e
predominante da parceria humana no líquido mundo pós-moderno. A frustração, entretanto,
aparece quando há uma falha na expectativa que se tem da relação sexual – fora disso, não
há uma situação de amor e é nesse problema que incorre a personagem de Solo feminino,
bem como a de Obsceno abandono. Não há entre ela e Charles a sonhada “combinação”
entre os amantes. A personagem diz que, no final da relação, “nossa comunicação truncou-
se num diálogo do ‘não’.”(p. 57). Agora, também torna-se difícil o seu resgate como
pessoa: “Pois desde este abandono eu ando vagando, tentando esquecer, cuidar de mim –
afinal, quem vai me ressarcir do dano, restituir-me a coisa, compensar meu prejuízo de
abandonada?” (p. 57-58).
89
Simone de Beauvoir diz em O Segundo Sexo, no capítulo “A Amorosa”, comentado
em 2.1.2, que o desejo masculino é passageiro e intenso e é esta ilusão que encanta a
mulher, ao acreditar na eternidade que não passará de um desejo fugaz. O fato de o homem
estar apegado à mulher não significa que ela lhe seja necessária sempre – daí não haver a
manutenção do relacionamento amoroso da personagem do romance em estudo.
A questão da maternidade surge como uma rejeição, já que ela não deseja filhos
(bem como a personagem de Solo feminino): “Jamais vou ter um filho. Filhos fazem duas
exigências básicas, a que sou incapaz de corresponder. Primeiro: amor. Filhos exigem
amor. Segundo: dinheiro.” (p. 72), mas sua problemática não se relaciona com o momento
materno, mas sim com incapacidade de dividir seu amor com outro que não o parceiro.
Tudo o que a mulher apaixonada quer é possuir o homem amado, diz Simone de Beauvoir
em O Segundo Sexo. Porém, não é somente a posse física que lhe interessa – no amor,
segundo a escritora, a mulher concilia erotismo e narcisismo: quando ama, ela se dá e se
reconhece como um ser capaz de provocar o amor de alguém.
Sentindo-se correspondente das exigências do amante, a mulher amorosa sente-se
útil e necessária. Entretanto, é a fim de se encontrar que ela começa a se perder nele. “Toda
a realidade está no outro.”, diz Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, 1982:421). Não é a
opressão de uma mãe castradora que a impede de ir em busca do homem amado (como
ocorre com Gilda em Solo feminino) – é seu próprio ego, que precisa satisfazer para se
sentir satisfeito: “Quanto ao amor, você está certo. Duvido até hoje da minha capacidade de
dar, de receber. [...] O que me apavora é a perda.” (p. 72).
Sua visão de maternidade pode ser ferina, mas, ao mesmo tempo, deixa entrever o
caráter protecionista que ela conhece da esfera familiar: “(As mães sempre descobrem que
as filhas estão sofrendo. Elas tocam sem querer o centro da fenda. As mães e os pais, como
90
ratos, se mobilizam na inútil proteção das crias que sofrem por amor – de amor perdido [...]
– a mãe, como uma rata, fuça, fareja e descobre).” (p. 25). É como uma espécie de
“máscara” no comportamento da personagem, como se verá mais adiante.
Em Obsceno abandono, abandonar-se toma caráter de loucura, provocando na
personagem um desajuste com o mundo que a cerca. Zygmunt Bauman explica de forma
sucinta o que há nesse tipo de relacionamento em Amor Líquido: “No brilho ofuscante da
pessoa escolhida, minha própria incandescência encontra seu reflexo resplandecente.”
(BAUMAN, 2004:33). O perigo na exaltação e dedicação extrema ao outro é que, ao
escolher uma pessoa dentre tantas, o sujeito apaixonado não se contenta em manter somente
suas características em si, mas intenta aplicá-las no outro, como um vaso de barro tende a
se moldar nas mãos do oleiro. Porém, o ser humano recusa-se a ceder à imagem e
semelhança de um outro criador, contentando-se em ser somente a criatura formada.
Ao mesmo tempo em que é inocente na história de seu abandono, mostra-se
culpada por sua excessiva entrega, causa de seu arrependimento. Uma pulsão de amor e
morte cercam essa narrativa de abandono: “Arrependimento: os dentes de Charles rangiam
de noite, eu me lembro disso como um ruído insistente na casa silenciosa dos meus
ouvidos.” (p. 27). Se o objetivo do amor é a identificação com o ser amado, como afirma
Simone de Beauvoir, a mulher incomoda-se por não satisfazer o amante, como o faz a
personagem narradora: “Não é em mim que ele faz carinho de manhã, não é em mim que
ele faz carinho de noite. Não foi comigo que ele dormiu ontem. [...] Esta é a concreta cama
vazia.” (p. 27).
Segundo Elizabeth Badinter em Um é o outro, a busca pelo reencontro faz o ser
deparar-se com a questão da alteridade, ou seja, de saber quem é o outro e de se há
realmente a possibilidade de se afirmar que um é o outro. Homem e mulher, de acordo com
91
a autora, assemelham-se por se reconhecerem necessários no que lhes falta: “Solitário, o
homem é estéril, em estado de privação. A felicidade e a completude só vêm de sua reunião
com o Outro.” (BADINTER, 1986:237). Em Obsceno abandono, a personagem reconhece
sua incompletude, mas sabe que não há a possibilidade de ser feliz com outro ser: “Meu
único caminho teria sido aprender isto: que na vida tem gente que não quer a gente. [...]
Ah, acostumar-se com a solidão, respirá-la calmamente, aspirá-la como se ela fosse um ar –
é melhor do que não aceitá-la e desesperar” (p. 29).
Para Badinter, o duplo (o que há de um no outro – como as marcas de masculino e
feminino, por exemplo) deve existir em cada uma das partes para que haja uma
complementaridade real. Em não havendo, a relação tende a se desfazer – tal como se vê
em Obsceno abandono, porque os amantes não se completam. Entretanto, a aceitação do
abandono e a dor provocada por este são maiores que a capacidade de refletir sobre o que
falta em cada um. Assim, ela descobre que Charles não se doou como ela.
Preso às artimanhas do texto, mais uma vez o leitor se questiona – mas ela já sabia
do fim desde o princípio? Em havendo isso, o processo da enunciação “pretendido” pela
narradora se completa. O leitor está interligado ao texto e à trama narrativa. E ela comenta:
“Ora, uma pessoa não pode viver a outra com tanta profundidade, com tanta intensidade, e
depois não viver mais, de uma hora para outra!” (p. 31)
Ieda Porchat, em “A dor da separação conjugal”, artigo publicado em Amor,
casamento, separação, organizado pela própria Ieda Porchat, diz que a mulher da sociedade
burguesa tem uma verdadeira incapacidade de ser para si. Segundo ela, a mulher da era
moderna via no casamento um elo de dependência – primeiro, do marido; depois, dos
filhos. Entretanto, na separação, até hoje, o que sobra é o sentimento de fracasso,
concebido pela idéia de que o ideal de relacionamento (ou casamento, como ela analisa)
92
não foi levado a cabo. Sem o “felizes para sempre”, fica a sensação de que algo não foi bem
feito, surgindo o sentimento de culpa, como se vê em Obsceno abandono.
Nesse tipo de relação de dependência, diz ela, “espera-se do parceiro muito mais do
que ele normalmente poderia dar. Espera-se que ele compense o que faltou, ou dê
continuidade às satisfações emocionais vividas na infância.” (PORCHAT, 1992:121). Em
Obsceno abandono, embora não apareça essa fixação pelo casamento como fim previsto,
uma relação de contigüidade era esperada pela personagem; não encontrando a “luz no fim
do túnel’, ela se arrepende e diz: “Arrependimento é uma espécie de não-reconhecimento
de si mesmo...” (p. 38).
Ieda Porchat afirma que espera-se do relacionamento perfeito que o parceiro
complete, preencha o outro pela capacidade de completude que há em cada ser, mas a
personagem deste romance não é capaz de se achar enquanto pessoa, quanto mais como
parceira. No encerramento de seu artigo, a escritora de “A dor da separação conjugal”
questiona: “O que se rompe então exatamente na separação de agora? Que dor se chora na
separação?” (PORCHAT,1992:124). O que se rompe em Obsceno abandono é a alma e o
corpo de alguém que amou demais, para quem: “- Abandonar é um ato de covardia. É de
uma brutalidade típica da morte.” (p. 38).
Revisitando a imagem da Madalena bíblica, encontra-se um elo com a escolha –
nada aleatória – do nome da estação de trem na qual ela divisa o fim de seu relacionamento:
Madeleine. A personagem afirma que
eu só não sou a Madeleine bíblica e santificada da estação de metrô. Meu
desequilíbrio fatal é outro, meu arrependimento é tanto que é físico, é dor
nos pavilhões desertos dos meus ouvidos, areia rangendo nos meus
ouvidos.(p. 49)
93
Suas atitudes trazem à lembrança a histórica mulher da Bíblia. Diante de todos os
seus erros, Madalena se arrepende e deixa-se redimir por um salvador. Embora sua
salvação esteja num plano espiritual, ela passa a divisar ali o seu destino de arrependimento
por todos os seus atos de amor adúlteros – e assim segue até o dia de sua morte.
A mulher de Obsceno abandono também intenta ver ali, naquela estação de trem em
Paris, sua salvação emocional, mas um acidente com um homem desequilibrado põe diante
de seus olhos a representação de seu relacionamento com Charles: o homem que cai
representa um amor sem possibilidade alguma de seguir em frente, e o nome Madeleine
apenas traduz a forma arrependida com que essa mulher seguirá por sua própria narrativa.
Ao descrever em “Obsceno” as causas que provocaram o abandono, a personagem
revela ao leitor, como já dito antes, que não é tão vítima assim de seu infortúnio. “Eu só me
arrependo de ter aceitado um homem que não me queria.[...] Eu só me arrependo de ter me
iludido, me enganado contra todas as evidências.” (p. 49). Isso só confirma a relação de
dependência que ela manteve em relação ao homem amado. Todo aquele sentimento,
derramado em sofrimento desmedido não era só amor – era também um vínculo de
dependência. No líquido mundo moderno, amor e dependência pertencem a léxicos
diferentes e não configuram no mesmo dicionário.
A essa mulher que se dedica a amar intensamente a palavra de ordem é esperar.
Assim como as donzelas esperavam pela volta de seus cavaleiros após as longas batalhas, a
personagem fica constantemente a esperar; entretanto, sua espera é solitária e abandonada:
“Fiquei eu lá, parada numa esquina da vida esperando por ele, ainda esperando. Restou eu,
sobrei eu na esquina da vida, cara a cara com a bofetada deste abandono pior que a morte.”
(p. 49). Além do desespero pungente da solidão, alia-se a esta a amarga constatação do
abandono.
94
Mesmo sabendo que seu amor foi revertido em prejuízo próprio, essa mulher ainda
aplica em sua história a definição de “Madalena arrependida”: “pessoa que, havendo
procedido mal com outra, vem depois dar provas de arrependimento.” (p. 50), enquanto
prossegue dizendo que é apenas uma mulher, angariando para si o destino de ter uma vida
perdida. Entretanto, o poder da verossimilhança mantém para o leitor o questionamento: até
onde essa mulher é inocente? Ou até onde ela é culpada por amar quem não a quis?
A paixão à primeira vista, tema comum ao postulado do mito do amor romântico, é
vivida pela narradora, que desfia um rosário de desejos
Logo no primeiro dia eu me apaixonei por você. [...] E eu resolvi passar o
dia seguinte sozinha, só para me preservar e poder me entregar a você
como se fosse pela primeira vez, como se ninguém tivesse me tocado
antes, me visto, me olhando, como se eu fosse um nascimento. (p. 51-52).
Incapaz de, como a fênix mitológica, renascer das cinzas de seu arrependimento,
essa mulher sem identidade desfilará diante de sua dor como quem assiste a um filme de
sua própria vida, mas sem a possibilidade de ter um novo final: quando aceita para si todo o
fracasso de não conseguir ser amada por mais ninguém, ela se acomoda em sua situação de
Madalena arrependida: “Quem fará o favor de olhar para a minha cara feia? Quem fará o
favor de se apaixonar por mim?” (p. 80). Roland Barthes diz em Fragmentos de um
discurso amoroso que “apesar de todo amor ser vivido como único e de o sujeito repelir a
idéia de repeti-lo mais tarde em outro lugar, ele surpreende por vezes em si uma espécie de
difusão do desejo amoroso; entende então que está fadado a errar até a morte, de amor em
amor.”(BARTHES, 2003:143). Ela está fadada a ser abandonada mais uma vez.
A necessidade de se revestir do outro, de se encontrar nele, em Obsceno abandono,
vai até as peças de vestuário: “ ‘Ontem vesti seu short e sua camiseta, uma que você me deu
na praia. Passei o dia assim, parecida com você, e sentindo na minha pele a pele de sua
95
roupa...” (p. 52), e caminhar junto com os primeiros temores de que esse relacionamento é
tão frágil quanto o mundo que lhe serve de pano de fundo: “Tenho medo de você. De que
você me magoe muito um dia. Tenho medo de que você não me responda, não me
corresponda e me traia.” (p. 52). Esses temores surgem desde a primeira carta trocada entre
os dois - ela já sabe “que na vida tem gente que não quer a gente.” (p. 29).
Todos os “primeiros” dos dois são marcados pela premissa de que, além de serem os
primeiros, já seriam os “últimos”. Retomando a metáfora do mundo atual que Zygmunt
Bauman apresenta como “líquido” em Modernidade Líquida, ela se dirige ao “pior” de
todos os seus amores – talvez, o dos quais ela mais se arrependeu e diz que “...pessoas são
seres graves, complicados, cheios de líquidos e passado.” (p. 53).
Um amor desesperado, como o da personagem de Obsceno abandono, tende a se
fazer em ruínas diante do reconhecimento da realidade. Nesses casos, a desilusão – e por
sua vez, o arrependimento - torna-se pior, visto que a mulher fez a escolha de estar ao lado
desse homem. Sendo assim, tende-se, por vezes, a uma não-aceitação de que o homem foi
incapaz de amá-la reciprocamente. Decorrente disso, surge a sensação de angústia entre
manter o homem amado como um mito ou aceitá-lo como é – um ser humano mortal como
qualquer outro. Nessa mesma angústia segue a personagem em uma carta para Charles:
“Metade da minha vontade em relação a você é de medo. A outra metade é de puro amor.”
(p. 53). Entre amor e medo, está uma mulher que apenas deseja ser amada na grande
loucura da vida.
96
3 Conclusão
Hoje, não se fala tanto em uniões duradouras. Em Obsceno abandono e em Solo
feminino, viu-se que o comum era estar junto a alguém, não unido a este alguém. Nesta era
de pós-modernidade, o que vale é a facilidade com que se desfazem as “redes” que
conectam as ligações amorosas e, por sua vez, os relacionamentos interpessoais. O que se
procura, como visto nos romances lidos, é ser feliz enquanto se pode e não almejar um
felizes para sempre. Não que as personagens não queiram ser felizes, muito pelo contrário.
O que está em questão é o fato de a felicidade não depender, nos textos lidos, da
durabilidade do sentimento amoroso.
Concluir talvez não seja uma palavra de uso comum nesses tempos pós-modernos,
em que tudo está em evolução. Enquanto a humanidade caminha, uma página da sociedade
vai sendo escrita, pela pena de vários autores e escritores. O amor é um tema comum entre
os romances analisados, mas é a linguagem do texto que se sobressai e que cria a interação
do leitor com a obra lida.
Durante a Introdução, foi dito que vários questionamentos surgiram no decorrer das
leituras. O que mais intrigava, talvez, era tentar comprovar que não havia, num primeiro
momento, um discurso engajado em favor de alguma causa. E não há. O texto apenas
refletia uma criação ficcional, como a provocar a catarsis do leitor, sem entretanto, levá-lo
a crer uma disposição de causa ou denúncia. Embora o fato de ambas as personagens não
desejarem filhos leve a se pensar na imagem de uma mulher independente que se propaga
neste início de século, não se pode chamar a isso de um discurso de gênero. Pode-se, talvez,
como se viu na análise do texto, apresentar uma “pulverização” das questões de gênero que
retinham a mulher no seu papel de mãe e esposa, como já dizia Simone de Beauvoir em O
Segundo Sexo.
97
Outra resposta à uma indagação feita na introdução reza a respeito das questões
pertinentes à linguagem. Como a Literatura, em geral, tende a imitar a vida da qual se nutre,
fazendo uma mimesis, recriando a vida como tal, a linguagem também segue o mesmo
caminho. Impossível deixar de notar que, embora as personagens “camuflem” seus
discursos (às vezes) com metáforas e outras figuras, o vocabulário delas pouco destoa –
enquanto uma está constantemente preocupada com as palavras cruzadas da mãe (em Solo
feminino), a outra mantém consigo mesma e com o passado um monólogo para entender o
mundo que a cerca (como em Obsceno abandono). A violência e a brutalidade das cidades
em que habitam transpõe-se para o texto, fazendo com que o leitor se identifique e se
reconheça na leitura.
Aliás, esta também é uma constatação: o que na verdade, ambos os textos fazem, é
esse aproximar do receptor da mensagem com o emissor, na leitura do processo
comunicativo de Roman Jakobson. Enquanto tende a se apiedar da personagem de Obsceno
abandono ou se empolgar com a incessante busca de Gilda, em Solo feminino, o leitor vai
aos poucos sendo “engolfado” na teia narrativa. As tramas das “redes” de relacionamentos,
como diz Zygmunt Bauman em Amor Líquido, prendem o leitor e levam-no a descobrir ali
a sua história, ou a de alguém que conhece. Existe sentimento mais comum que o amor?
Explorado na medida do possível, o amor que desfila pela vida dessas personagens
não se restringe apenas ao âmbito familiar. Vai além, e atinge suas falas e seu modo de
viver e de se relacionar com o mundo que as cerca. A idéia de se comprovar um “Amor
Extremo” é concluída ao se analisar no comportamento de ambas as mulheres o desejo
latente de serem amadas, mesmo que fosse por alguém que não a quisesse (como é o caso
da personagem de Obsceno abandono) ou por várias (como no caso de Gilda, em Solo
feminino).
98
Como dito anteriormente, ainda não há nenhum esboço feito acerca do trabalho das
autoras. Entretanto, o olhar sobre o amor dedicado às obras não é um via de mão única –
várias outras leituras podem ser feitas, inclusive de forma a tornar mais conhecidos os seus
trabalhos.
99
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2003.
BADINTER, Elizabeth. Um é o outro: relações entre homens e mulheres. Trad. Carlota
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