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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS:
o princípio arquitetônico da complementaridade de opostos
por
Francesco Jordani Rodrigues de Lima
Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Vernáculas
Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira
apresentada à Coordenação dos cursos de Pós-graduação
em Letras da Universidade Federal de Rio de Janeiro.
Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza
Rio de Janeiro, 1º semestre de 2007.
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DEFESA DE DISSERTAÇÃO
LIMA, Francesco Jordani Rodrigues de. Memórias póstumas de Brás
Cubas: o princípio arquitetônico da complementaridade de opostos. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira, 2007, 70 fls.
BANCA EXAMINADORA:
Professor Doutor Antonio Carlos Secchin - UFRJ
Professor Doutor Armando Gens - UFRJ
Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza (orientador) - UFRJ
Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens - UFRJ
Professora Doutora Lívia Paes Barreto - UFF
Tese defendida:
Conceito:
Em: 31/10/2007
2
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por mais esta oportunidade, por me dar saúde e paz;
à minha mãe, Sônia Lúcio, por me fazer desconhecer a vida sem amor e justiça;
ao meu irmão, Lúcio André, pela sinfonia de incentivos e de bom-humor;
ao meu avô, Ezequias Quadra, pela sabedoria cultivada em gestos simples, humildes e
repletos de fé;
à minha namorada, meu amor, Daniela Oliveira, pela parceria e cumplicidade;
à minha família e amigos, beijos e abraços calorosos;
ao meu orientador, Professor Ronaldes de Melo e Souza, que desde o primeiro instante
mostrou-se preocupado com a execução de minha dissertação. Suas aulas são a base
intelectual e teórica deste texto. Sua postura profissional, um norte a ser seguido;
aos professores e professoras Antonio Carlos Secchin, Armando Gens, Dilma Mesquita,
Fátima Miguez, Luci Ruas, Mônica Figueiredo e Rosa Gens pelo carinho sem medida que
sempre tiveram comigo. Obrigado;
à CAPES, pelo apoio financeiro.
3
SINOPSE
O princípio da complementaridade de opostos em Memórias póstumas de Brás Cubas
(1881), de Machado de Assis. A crítica machadiana ao pensamento mimético e racional. A
linhagem dramática tragicômica à qual se vincula a ficção Machado de Assis. As
influências decisivas de Eurípedes, Aristófanes e Shakespeare, na dramaturgia, e Sterne e
Xavier de Maistre, na ficção. A leitura machadiana do conceito de vontade em
Shopenhauer. A crítica machadiana aos postulados realistas e naturalistas em vigor no
século XIX. Leitura das Memórias enquanto romance transgressor de sua época.
Interpretação final do romance sob a tese de uma narrativa de estrutura dramática, segundo
três prismas: a máscara (a multiperspectiva narrativa), a parábase (ironia e digressão
permantes) e a catarse (o conhecimento através da reflexão tragicômica e poética).
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................6
1 – MIMESIS E POIESIS: A ARTE ENTRE A REPRODUÇÃO E A CRIAÇÃO.....12
1.1 Platão, Aristóteles, mimesis e razão – o conceito de representação artística......19
1.2 Physis, poiesis e poesia – a dinâmica da nascitividade contínua........................23
1.3 O nada e a criação poética – caos, cosmos e nadificação originária...................25
1.4 A máscara poético-tragicômica de Dioniso.........................................................27
2 – PRINCÍPIOS DE POÉTICA TRAGICÔMICA........................................................31
2.1 O Satyrikon dionisíaco: a gênese da tragicomédia grega ...................................31
2.1.1 A desconstrução aristotélica do drama ambivalente........................................33
2.2 A revolução teatral de Eurípedes.........................................................................35
2.3 Aristófanes e coro parabático vinculado à ironia machadiana ...........................39
2.4 William Shakespeare: a tragicomédia no alvorecer da modernidade..................42
2.5 Shakespeare e Machado de Assis: uma filiação artística e espiritual..................47
3 – MACHADO DE ASSIS: A CONTRAFACE DE UM TEMPO................................48
3.1 A crítica irônica aos postulados realistas e naturalistas......................................48
3.2 O diálogo intertextual com Laurence Sterne e Xavier de Maistre......................52
3.3 O tempo da memória versus o tempo cronológico..............................................55
4 – A NARRATIVA TRAGICÔMICA DE BRÁS CUBAS............................................58
4.1 A máscara: a multiperspectiva da narrativa meta-ficcional................................58
4.3 A parábase: a ironia multifacetada em Memórias póstumas de Brás Cubas......60
4.4 A catarse: a travessia de Brás Cubas entre a galhofa e a melancolia..................62
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................65
5
INTRODUÇÃO:
O estudo a respeito do complexo travejamento estrutural do romance de Machado
de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), será norteado pela investigação,
interpretação e elucidação do princípio da complementaridade e reversibilidade de opostos,
tão caro à composição da obra. A natureza dual e ambígua da narrativa machadiana em
todos os seus processos constitutivos: o discurso sério-jocoso, o paradoxo arquitetônico do
defunto autor, o choque de imagens e ideologias antagônicas entre capítulos espelhados, a
fronteira esgarçada entre a razão e a sandice, o objetivo e a vontade, a personagem Brás
Cubas a galgar patamares sociais, “a sede de nomeada”, por meio da contraditória, a priori,
mas complementar em vista da conquista final, oscilação entre a fama pública e a ambição
privada, a sede de diálogo crítico, a capacidade revisora baseada na ironia meta-crítica na
qual o eu se desdobra no limiar, por vezes imperceptível, do sujeito reflexivo e espectador
criticamente distanciado das ações (narrador) e o eu-objeto (personagem) sensível ao drama
presente da experiência imediatamente vivida; enfim, toda narração se fundamenta, sem
escapatória, através da constante metamorfose de seus constituintes, sem se furtar, de
maneira soberba, a refletir acerca do espetáculo multiverso da vida e da morte.
Em prólogo, texto geralmente afeito a elucidações e ajustes preliminares, Brás
Cubas adverte de maneira incomum, isto é, “de um jeito obscuro e truncado”, o leitor das
Memórias que “a obra em si mesma é tudo”.
1
Aponta, portanto, para a capacidade
genética do discurso ficcional, como se, de si, a linguagem ficcionalizasse a realidade
2
.
Tal afirmativa se assegura quando notamos que cabe ao narrador privado ao cosmos da
narrativa a notação do prólogo e, portanto, dos princípios e referências constitutivas da
obra, e não à pretensa figura biográfica de Machado de Assis. No jogo do gesto
teatralizado
3
é o narrador aquele que primeiro e melhor permite a elucidação crítica da
estrutura poética do objeto artístico. É o mediador francamente disponível ao diálogo quem
nos deixa as chaves interpretativas do complexo tecido literário que constituiu por vezes de
maneira sorrateira, como quem as deixa por debaixo do tapete, e por vezes explicitamente,
como quem as tilinta a um transeunte desavisado, embora sempre curioso.
1
ASSIS, 1997.
2
SOUZA, 2006, 51.
3
BOSI, 2006, 18.
6
O primeiro capítulo desta dissertação almeja compreender a visada da crítica
literária mimética que se alicerça no primado de que a arte reproduz ou imita a realidade. A
filosofia platônica baseia-se na cisão dicotômica da análise fundamentada na separação de
opostos pretensamente antagônicos, como a vida e a morte, o bem e o mal, corpo e alma,
inteligência e sensibilidade, luz e trevas, a fim de compreender o objeto em estudo através
da solução de hipóteses científicas excludentes do erro e da dúvida. É a supremacia da
razão e da lógica em detrimento de suas contra-faces complementares: o irracional e o
ilogismo. Ocorre, daí, a verticalização do pensamento contra a ampla possibilidade do
horizonte apresentado e imaginado em suas infinitas variáveis que nos força a escolher um
primado, uma teoria, uma tese como única e maior fonte de todo o conhecimento.
Afirma-se, neste trabalho, que o mito da caverna de Platão não é senão um método
pedagógico, ou mesmo um procedimento analítico, oferecido como único aos cidadãos da
polis (os artistas que não o seguiam, os poetas, eram definitivamente expulsos), no qual tão-
somente o aspecto inteligível, iluminado e diurno do tudo o que é fica evidenciado,
enquanto sua face complementar (o que não-é) fica relegada ao plano das sombras, da
ilusão estética e da ignorância. A reinterpretação hördeliniana
4
da “cegueira” edipiana
contradiz o autoritarismo científico da metafísica e revoluciona o pensamento por meio da
valorização do conhecimento trágico do não-ver, do não-saber e do não-ser. Da tensão entre
dois regimes antagônicos de pensamento nasce a ironia machadiana que desvela a tragédia
da vida regida pela unidade do ser e do não-ser e revela o humor criticamente distanciado
dos eventos narrados.
No que tange à leitura da Poética, de Aristóteles, fica ainda mais clara a
instrumentalização da mimesis como ferramenta da qual se vale o artista para compor de
maneira verossímil e lógica o painel artístico. Aristotelicamente revisto, embora sem a
perda de sua motivação ideológica e política, o conceito de mimesis se torna um modelo de
apreensão da natureza válido para todos os artistas (que o são porque imitam) que buscam a
fidelidade e veracidade dos seus artefatos. No que diz respeito à tragédia, por exemplo,
estabelece-se que ela “é a imitação de uma ação em sua totalidade”, algo inteiro; isto é,
“que tem começo, meio e fim”.
5
Assim, o simples itinerário da causa e do efeito já perfaz o
caminho luminoso, finito e irrevogável da verdade e da correção, pois não contradiz a
4
CASTRO, 2004, 26.
5
ARISTÓTELES, 2004, VII, § 41-42.
7
verossimilhança platônico-aristotélica. De maneira que, sob esta ótica, o real não se realiza,
mas é realizado por meio de um percurso analítico autoritariamente preconcebido.
Ora, o primeiro capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, “Óbito do autor”,
já corrói o estatuto da ordem do bom senso e da coerência ao fazer do narrador um “defunto
autor, para quem a campa foi outro berço”
6
, isto é, um inumano, um ser espectral, um
estrangeiro à realidade temporal e espacial da trama, e portanto, genuíno personagem
ficcional, pois finge e atua, no amplo palco da ficção, sua vida aliada da morte que tão-
somente ali pode realizar o primado da desordem, do absurdo e da incoerência. O mediador
da narrativa, que antes de tudo transita entre a vida e a morte, encerra em si a contradição
originária do universo da explosão do caos conformado em cosmos. O ser que nadifica sua
pretensa unidade de caráter é o mesmo que se compraz, ironicamente, em se revestir das
inúmeras máscaras dos infinitos caracteres encenados. O mito e o rito dionisíaco da vida
indivisível da morte aponta para a linhagem e formação dramática de Machado de Assis
7
no
segundo capítulo deste trabalho.
Reforça-se a tese da complementaridade de opostos que perfazem a essência do agir
(poiesis) e são a força originária de infinitos seres e coisas, enfim, são a brotação contínua
da vida e da morte (a physis). A partir do delírio tragicômico de Brás Cubas, o mito de
Pandora, a Natureza, que não é somente vida, mas também morte, forma-se o olhar
melancólico e jocoso do defunto autor. Desapegado da vida terrena, mas ainda envolvido
por ela em sua sede de permanência, de fama e de poder – que se ratifica na escrita póstuma
das memórias –, Brás Cubas se apresenta como um narrador tragicômico por excelência.
A capacidade de ser e não-ser torna a máscara, portanto, a metáfora primordial da
complexa e contraditória condição humana. De maneira que até o dito “olhar pessimista” de
Machado de Assis, tão apregoado pela crítica literária mimética machadiana, pode ser posto
em xeque devido à vontade de permanecer em vida de seus personagens e narradores, ainda
que em morte ou numa vida desalentada. A releitura das influências do pensamento de
Shopenhauer permeará as reflexões desta dissertação.
Por conceber a vida como um palco das ações dramáticas e a morte como uma
poltrona da qual o espectador crítico se deleita, Machado de Assis engendra um romance
tragicômico a partir de três grandes pilares. Em primeiro lugar, a constituição da figura do
6
ASSIS, 1997, 1.
7
SOUZA, 2006, 7.
8
narrador autoconsciente e multiperspectivado, que não se limita a narrar eventos, mas
se compraz em sustar o enunciado propriamente narrativo com o deliberado propósito de
assinalar criticamente que o narrado não é dado na realidade, mas construído pela instância
da enunciação”.
8
Ou seja, que o narrado depende sempre da perspectiva do narrador. Tal
análise poderia parecer banal, mas como o narrador machadiano possui uma profunda
habilidade de representar, sobre a diversidade de sua máscara dramática (internamente
vazia e aberta a toda possibilidade metamórfica), os inúmeros caracteres dispostos no
painel sócio-histórico, a perspectiva do narrador em primeira pessoa passa da onisciência à
democrática pluriconsciência das múltiplas vozes e olhares representados na cena social.
Não há, portanto, no narrador machadiano, qualquer traço de “volubilidade”, conforme
salientou Schwarz
9
, mas a constante valorização da diferença humana e natural. Em
seguida, a ironia, apreendida como tropo constitutivo de todo discurso machadiano e não
enquanto figura de retórica. O movimento parabático do coro, representado, sobretudo, nos
dramas do comediógrafo Aristófanes, oferece a acepção correta de ironia (eironeia,
questionamento), ou seja, a via pela qual se constrói o olhar metacrítico e auto-referente do
defunto autor, que culmina na estrutura metalingüística, incessantemente revisora e
digressiva, de Memórias póstumas de Brás Cubas Finalmente, o drama tragicômico
intimamente concatenado à estrutura narrativa machadiana constitui exemplo cabal do
diálogo artístico do brasileiro com as obras de Eurípedes, na Antiguidade grega, e William
Shakespeare, na modernidade, cuja forma dramática e mundividência tragicômica
remontam ao Satyrikon dionsiaco.
Rara é a obra de Machado de Assis na qual inexista ao menos uma referência ao
grande dramaturgo inglês. Machado de Assis exalta em crítica teatral “a fusão da tragédia e
da comédia operada por Shakespeare sob a forma do drama”
10
. A separação aristotélica da
comédia e da tragédia é mais uma vez artisticamente contestada por Machado de Assis, que
realiza, inspirado na moderna capacidade dramática shakespeariana, a re-união da pujança
do sofrimento trágico ao riso catártico do cômico, ou, como o próprio autor de Dom
8
SOUZA, 2006, 39.
9
Ver SCHWARTZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis. São Paulo: Duas
Cidades, 1990.
10
ASSIS apud SOUZA, 2005, 6.
9
Casmurro diria, a fusão entre “o verso valente da tragédia” e a “frase ligeira e fácil com que
a comédia nos fala ao espírito”.
11
Na terceira parte, avaliaremos a literatura subversiva de Machado de Assis aos
postulados positivistas de sua época. A verve crítica machadiana é analisada em detalhes,
pois reforça a luta do autor contra as formas racionais, científicas e excludentes em vigor no
pensamento artístico do século XIX, em especial, o realismo balzaquiano e o naturalismo
de Zola. Irmanado à linhagem poética da literatura reflexiva e subversiva, notaremos os
principais motivos da intertextualidade travada com as ficções de Sterne e Xavier de
Maistre, salientada no prólogo das Memórias póstumas de Brás Cubas: “trata-se de uma
obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou um Xavier de
Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo”.
12
A última parte deste trabalho também se dedicará a uma breve reflexão acerca da
crítica mimética de Machado de Assis, presa, em linhas gerais, a respostas biográficas e da
submissão da ficção à realidade, pela subsistência da primeira enquanto cópia da segunda.
Importante afirmar que este trabalho não se furta em concordar com o aspecto supremo do
texto machadiano enquanto revelador da estrutura desigual do modelo capitalista que finca
em nosso país uma terrível e desigual estrutura sócio-econômica erguida sob a forma de
pirâmide.
13
Ocorre que, nesta dissertação, o aspecto crítico da obra terá a sua origem
artística investigada, com o propósito de elucidar o diálogo poético machadiano. Tal análise
ultrapassa os limites da pretensa reprodução da realidade, pois notabiliza a narrativa
machadiana dentre as grandes obras artísticas de todos os tempos. Por ser crítica a todos os
modelos, primados, estatutos, leis e códigos, Machado de Assis é na literatura brasileira e
universal um homem armado contra as instâncias do poder e do totalitarismo. De maneira
que verdadeiramente realista é a literatura machadiana, pois nota que a máscara da vaidade
e da vontade de poder humana não cai com o tempo, não se esgarça no espaço. O realismo
sucumbe à mera classificação da literatura que sobrevive à cópia e ao pastiche frente à
realidade machadiana que se realiza no íntimo mais obscuro, ou no desejo mais evidente, de
cada um de nós.
11
ASSIS apud SOUZA, 2006, 66.
12
ASSIS, 1997, “Prólogo da terceira edição”.
13
Os estudos críticos Antonio Candido, Raymundo Faoro e Roberto Schwarz são os mais importantes
publicados no país a respeito da crítica machadiana ao excludente, desigual e autoritário modelo sócio-
político-econômico de base capitalista, utilizado pela oligarquia brasileira para sua manutenção e supremacia
no poder.
10
1 - MIMESIS E POIESIS: A ARTE ENTRE A REPRODUÇÃO E A CRIAÇÃO
“Fiel à Natureza completa!”
Como pode ele chegar a isso?
Quando é que alguma vez se conseguiu liquidar a
11
natureza da imagem?
A minha ínfima parcela do mundo é infinita!
Dele só pinta aquilo que lhe agrada,
E o que é que lhe agrada? Aquilo que é capaz de pintar!
14
Não era preciso ser versado em Darwim pra se
Saber que os carrapichos não pregam no vento.
Que, apois:
Sábio não é o homem que inventou a primeira
bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira
Lagartixa.
15
A natureza e a sabedoria. Adquiridas em totalidade para uso pessoal e intransferível.
Ambições maiores a excitar o deleite da vaidade humana. A “natureza completa
nietzschiana une-se à “sabedoria maiúscula” manoelana na tentativa de apresentar a voz
crítica e questionadora que norteará o percurso deste trabalho. O que lemos acima não são,
portanto, apenas duas epígrafes, mas vozes que inspiram o espírito reflexivo deste texto, a
fim de angariar forças contra qualquer regime totalitário de pensamento. O teórico de verve
poética e o poeta de cunho crítico emergem como dois pontos de uma cadeia de grandes
autores que lutaram e lutam contra a alienação, a ambição, o preconceito e a censura.
Por não vencerem tal disputa, travada contra o que podemos denominar de sistema de
acumulação de poder, rigidamente organizado ao longo dos séculos, é preciso que se
mantenha permanente embate. Por isso, este primeiro capítulo não se doará apenas ao
estudo específico da poética machadiana, mas à compreensão do surgimento,
aperfeiçoamento e manutenção do pensamento técnico-científico hegemônico na tradição
ocidental. Foi justamente contra as instâncias de pensamento dominante, contra a
supremacia da razão e os sistemas de coerção e planificação do pensamento a favor,
portanto, de uma visão plural e democrática da vida que a literatura de Machado de Assis
se armou. Este capítulo se doará à crítica machadiana ao pensamento hegemônico e à
expressão dionisíaca, firmada na interação dos contrários, de Memórias póstumas de Brás
Cubas.
O advento da filosofia platônica empreende uma profunda cisão sobre a essência do
agir (poiein), provocando um firme corte epistemológico no núcleo da vida, na qual fica
14
NIETZSCHE, 2006, 31.
15
BARROS, 1998, 79.
12
valorizado apenas o aspecto inteligível e mensurável dos objetos em análise. Renegado o
duplo velamento da physis (isto é a complexa e contraditória dinâmica do “agir”
16
, da vida,
portanto), os entes padecem à ínfima condição de pacientes da análise científica e passam a
serem vistos apenas sob o prisma da idéia nítida da objetividade do raciocínio lógico. A
racionalidade do pensamento metafísico limita o olhar humano tão-somente à claridade dos
objetos explícitos ou desvelados. O que de recôndito e velado é totalmente banido pela
perspectiva lógica e analítica da ciência; pois, por esta vertente, deve-se dividir a matéria
estudada em paradigmas bipolares excludentes a fim de se compreender a significação da
vida ou de cada uma das suas partes constitutivas. Instaura-se o primado da dicotomia
como lei de apreensão e investigação dos fenômenos a partir do molde fixado pelas idéias,
conceitos e paradigmas. A vida em análise anestesiada dispensa contemplação,
interpretação e reflexão, e é categorizada por meio de oposições binárias: alma/corpo,
vida/morte, bem/mal, verdade/erro, inteligível/sensível, etc; perfazendo, assim, a
verticalidade e luminosidade do paradigma lógico-racional. Torna-se, neste sentido, crucial
a discussão travada por Antoine Compagnon em O demônio da teoria:
[esta] alternativa traiçoeira, ou a maldição do binarismo, que quer forçar-
nos a escolher entre duas posições tão insustentáveis uma quanto a outra,
mostrando que o dilema se baseia numa posição algo limitada, ou caduca, da
referência, e sugerir outras maneiras de reatar o elo entre a literatura e a
realidade.
17
No mito de cunho pedagógico da caverna platônica, o processo de conhecimento
representa o trânsito progressivo das instâncias caóticas e sombrias, das quais, segundo o
filósofo, é possível vislumbrar apenas reflexos de simulacros à frente de um fogo artificial,
até que se visualizem os objetos contra a luz solar, única fonte capaz de mostrar a vida
como ela é e, conseqüentemente, toda a “verdadeira” realidade
18
. O conhecimento racional
representa metaforicamente a luz, a clareira desvelada, a verdade e a genuína revelação
divina em detrimento das sombras, das trevas, das ilusões e ficções, isto é, dos mistérios ora
danosos à ordem vigente da Politéia. Na República, não se trata de um debate aberto à
escuta social e democrática, mas, sim, de um conjunto de deliberações políticas e morais
16
CASTRO, 2004, 18.
17
COMPAGNON, 2003, 114.
18
PLATÃO, livro VII, 226-256.
13
que encerrarão um código cujo fim é normatizar a vida social. Desta maneira, Platão
organiza um modo pretensamente único e universal de pensar e ver a realidade que
impregna de frieza, preconceito e tutelas as vontades do espírito humano. Assim, o projeto
deliberado de obediência e servidão dos cidadãos às verdades preconcebidas pela razão
ultrapassa os limites das reflexões filosóficas, dos debates em torno do pensamento e da
arte, da livre conferência. Grande parte dos escritos de Platão possui desígnios político-
legislativos, portanto, coercivos, independentemente da pretensa coesão social, pois se
almeja em função da alienação dos homens. No Fédon é possível notar como as vontades,
maiores agentes da corrupção do pensamento, são controladas por meio da superelevação
da razão e da certeza:
A razão deve seguir apenas um caminho em suas investigações, enquanto
tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos
o objeto dos nossos desejos, isto é, a verdade. Porque o corpo nos oferece mil
obstáculos pela necessidade que temos de sustentá-lo, e as enfermidades perturbam
nossas investigações. Em primeiro lugar nos enche de amores, de desejos, de
receios, de mil ilusões e de toda a classe de tolices, de modo que nada é mais certo
do que aquilo que se diz correntemente: que o corpo nunca nos conduz a algum
pensamento sensato.
19
Tais quais verdadeiras chagas, o desejo, a pulsão e, portanto, a possibilidade de
criação de novas formas de apreender, interpretar e remodelar o horizonte da realidade que
se apresenta, precisam ser extirpados. resta verdade, se cientificamente comprovada.
conformidade, perfeição, sensatez ou paz quando atestada pelo crivo da hipótese que se
fez resposta, pois se repetiu à exaustão, até a mingua da falta de dúvidas ou perguntas. Cai
por terra a possibilidade de indagação e de metamorfose, porque elas não fluem nem se
concretizam mais por mecanismos e propostas singulares e subjetivas, mas, sim, por via de
atestados científico-matemáticos que devem passar por crivos que se julgam donos de uma
verdade comum inspirada na cartilha platônica. No extraordinário ensaio “A imitação e o
sentido da vida apontamentos para uma difícil arte de ser livre”, Ronaldo Lima Lins
afirma que “o homem é o único animal que possui, entre suas características a capacidade
de mudar o sentido das coisas”, pois possui um “estado mental de permanente flutuação
num limbo imponderável de indagações nunca resolvidas”.
20
19
PLATÃO, 2004, 127.
20
LINS, 1990, 155.
14
Por sua vez, a arte após Platão torna-se sinônimo de reprodução ou imitação do real
(mimesis
21
) estático e descomplexificado e de mediação do sensível para o inteligível,
necessitando somente de apuro técnico, em detrimento da vocação e da vontade criativa do
artista, para a concretização de seu programa estético-estilístico. A arte, entretanto, não se
subordina a projetos. Os grandes artistas, tampouco, pretendem conceber planos para as
próprias carreiras. Ambos indivisíveis, um e o mesmo, arte-artífice, projetam-se em
frenética fluidez de todos os elementos e formas perceptíveis, via intelecto e sensibilidade
poética; e imperceptíveis, via criação artística constante e recriação insaciável. A deliberada
superficialidade do conceito de mimesis, enquanto desafeta da criação e das forças caóticas
e telúricas da natureza, culmina na verticalidade e, conseqüentemente na unidade opressora
do pensamento, conforme salienta Lins:
Desvinculada da criatividade sobra à mímesis uma atividade vazia pela
qual um indivíduo, além de imitar seu modelo, abre mão de sua vontade. Onde
antes se avançava (...), se retrocede, pela via perversa da obediência, e da pior
obediência, a voluntária.
As ciências naturais provam, em laboratório, a correção do princípio: o
que se repete permite que se vislumbre um terreno seguro sobre o qual o
conhecimento consiga prosseguir. Não surpreende que, uma vez descoberto,
tenham transformado o princípio em Lei e que tal Lei haja surgido para não mais
desaparecer. Na condição de Lei, entretanto, de patamar saudável e seguro para a o
exercício da reflexão, o princípio ganhou novas dimensões, passando sobretudo na
área da ciência política e da ideologia, a condicionar o comportamento humano no
interior da sociedade. A repetição tornou-se mais do que uma “verdade” subjacente
às ciências naturais. Adquiriu status de norma (...)
22
(grifo do autor)
Repare-se que os principais conceitos que regem o pensamento ocidental passaram
por revisões críticas de natureza ideológica, não artística, ou de natureza política, não
poética. Ora, não é possível vislumbrar a urgência de um significado quando silenciado na
emergência de um contexto propício e moldado rigidamente a incitar uma e única
significação possível. Lemos teorias políticas e não poéticas. A literatura poética convoca,
isto sim, a presença da teoria literária poética e o que pode, a princípio, parecer um
paradoxo é, no fundo, a concretização discursiva do diálogo incitado pelos próprios artistas.
21
Vista por Platão de maneira pejorativa, pois, segundo o filósofo, a mimesis era justamente a ilusão que
afastava os cidadãos da Politéia do mundo real”, das idéias e dos conceitos ditos verdadeiros. Portanto, a
mera e superficial capacidade da arte de reproduzir o real diametralmente oposta à concepção de arte
original, poética e cosmogônica contida neste trabalho era terrível diante das ambições doutrinárias e
conservadoras dos reis-filósofos. Instaura-se a ditadura do pensamento racional e dicotômico.
22
LINS, 1990, 158.
15
Sob este prisma, que desafoga o da retórica sisuda, avaliemos as interpretações e
reavaliações críticas (que nada mais são que interpenetrações na riqueza intertextual do
discurso poético e criativo) de Manoel Antonio de Castro e Ronaldes de Melo e Souza
acerca dos assuntos aqui abordados, respectivamente, o mito platônico da caverna e o
conceito de mimesis platônico-aristotélico.
Observe-se como Castro compara o percurso do processo cognitivo do homem
platônico ao do homem sofocliano com o intuito específico de sustentar que a “escolha do
filósofo pela sabedoria metafísica se dá num movimento totalmente oposto ao da escolha da
sabedoria pela poiesis”
23
. Em linhas simples, a de-cisão racional pela valorização dos
aspectos inteligíveis e mensuráveis em detrimento da visão aglutinadora e transcendente do
homem trágico perfaz mais uma face da matriz excludente e unilateral da metafísica. Note-
se, ademais, que a tragédia de Sófocles se notabiliza, via prisma poético, pela faculdade do
conhecimento que reside na tensão radical entre o saber do ver e o “dessaber” do o-ver.
O trágico não emerge enquanto gênero literário, mas enquanto instância superior de
conhecimento. Indissociável do não-ser, o ser humano se compraz na dubiedade pessoal e
impessoal que culminará, conforme veremos, na metáfora e na concretude da máscara. O
homem é, portanto, contraditório por natureza e é esta marca indelével que Platão procura
apagar por meio de sua sensatez filosófica.
Basta comparar os itinerários de dois personagens famosos: o do homem
de Platão no mito da caverna e o do de Rei Édipo, nessa obra-prima de Sófocles. O
primeiro sai das sombras para a luz do Sol/eidos/logos/razão. O segundo vive na
mais intensa luz e exercício da razão como sujeito para a ir negando à medida que
busca o que ele é através do que ele fez e faz (essência do agir [poiesis]), até negá-
la de uma maneira tão radical que lhe nega qualquer poder, arrancando os olhos. Só
então, diz Höderlin, Édipo adquiriu o terceiro olho, isto é, a sabedoria do não-ver,
do não-agir, do não-ser, sendo então o que ele é. o homem de Platão tem como
meta a sabedoria da luz da razão, representada pelo Sol/Idea/Bem. Notemos logo
como, ao contrário do homem de Platão (ocidental), Édipo vive a tensão radical de
desvelamento e velamento. No seu itinerário nada é esquecido ou silenciado. Pelo
contrário quando Édipo se cala nas trevas da sua solidão é que ele então mais vê e é
sábio, como nos mostra a tragédia de Sófocles: Édipo em Colona. Quando Édipo
se nega, no agir, como sujeito é que ele mais age como não-agir, como não-sujeito,
mas sendo o que ele é: sujeito-poético e não mero simulacro da representação
epistemológico-racional. Toda identidade é, pois, poético-ontológica.
24
(grifos do
autor)
23
CASTRO, 2004, 26.
24
CASTRO, 2004, 26-27.
16
Schopenhauer finaliza suas Contribuições à doutrina do sofrimento do mundo”
com uma frase lapidar: “a diferença entre as individualidades é incalculavelmente
grande”.
25
O julgamento de que cada homem apresenta e representa no palco da vida uma
personalidade genuína, ou seja, um caráter, parece simples, a priori. Não seria absurdo
imaginar a real possibilidade de que a crença no diverso seja unânime. Contudo, a
afirmação schopenhaueriana visa algo bem maior que a constatação do múltiplo: a
derrocada da hegemônica corrente de pensamento positivista e determinista (de origem
socrático-platônica) que silencia o homem num discurso e ata suas vontades numa unidade
de ser. É contra a doutrina do pecado original, cuja mácula maior é a certeza da morte, que
o pensador se antepõe. Segundo Schopenhauer, é a crença na finitude e na verticalidade da
vida emparedada entre as ordens divinas e o medo do fogo infernal que fixa as bases do
“fundamento, segundo o qual o indivíduo vem a ser algo que não deveria ser, algo errado e
pecaminoso”
26
. É esta reflexão radical que formula a seguinte indagação: “Que se pode
esperar de semelhante ser?”
27
Isto é, que se pode esperar de um ser que é aquilo que lhe
cabe ou lhe ordenam? Certamente, sofrimento, esquizofrenia e sede de vingança. Estas
características lembram-nos o homem de um tempo próximo a nós?
A leitura extremamente deficitária, superficial e até errônea de Schopenhauer, visa
desqualificar o texto por meio da fixação do rótulo do pessimismo, mas, em verdade, é um
discurso que visa adotar uma postura de tolerância e diálogo frente ao diferente, ao outro.
Em sua obra, o pensador da profunda desconstrução das camadas racionais do pensamento
preconceituoso afirma que
todo o nosso ser é vontade de vida, para o qual esta vida, pois, tem de
valer como o bem supremo, por mais amarga, breve e incerta que ela possa ser; e
pelo fato de que a vontade, em si e em sua origem, é cega e desprovida de
conhecimento. O conhecimento, ao contrário, bem longe de ser a causa do apego à
vida, atua em sentido oposto; ele revela o pouco valor da vida, e combate, desse
modo, o medo da morte.
28
Ora, o homem schopenhaueriano é essencialmente trágico justamente porque o
abismo noturno da morte é, a seu juízo, parte indivisível do céu diurno da vida. De maneira
25
SCHOPENHAUER, 2007, 127.
26
Idem, 126.
27
Ibdem.
28
Ibdem, 26.
17
que “a vida não subsiste senão porque a morte existe”
29
, e o movimento de catarse da
experiência humana deve ser freqüente na busca cognitiva e espiritual. A leitura de Édipo
Rei, como notamos em Castro, confirma a necessidade de descerrar o horizonte
inteligível (a cegueira, o não-saber racional), com a finalidade de transcender os limites
cognitivos e sensitivos da realidade canônica. A luminosidade exagerada impede, portanto,
a experiência total, ou ao menos a busca desta experiência, da existência.
No tenso diálogo com Corifeu, Édipo, ensangüentado e com os olhos vazados,
responde às indagações cheias de espanto e horror do amigo:
CORIFEU Horrível coisa fizeste, ó Édipo! Como pudeste apagar teus
olhos? Que cruel divindade a isso te induziu?
ÉDIPO Foi Apolo! Foi o deus Apolo, meus amigos, que me impôs
tamanha amargura! Mas não foi mão estranha que arrancou meus olhos, senão a
minha. Ai de mim! Que mais eu desejaria ver se a visão só desgosto me causaria?
30
Após a referência a Apolo, “a divindade de luz”, cuja raiz do nome remete ao que é
“a verdade superior”
31
, conforme analisa Nietzsche em O nascimento da tragédia, fica
patente o intuito deliberado de Édipo de não ver a vida repetida, externa, muito
conhecida, mas se deparar com a novidade e a pulsação da experiência adormecida em si
mesmo. Ocorre que a experiência edipiana o é trágica pelo sofrimento, pela dor ou pela
piedade que pode suscitar no espectador, conforme prevê a teoria aristotélica
32
da tragédia
ou mesmo a teoria platônica da ilusão dramática, mas, sobretudo, a prova edipiana é trágica
porque reconhece em vida os limites dos umbrais da morte. Souza perfaz em sua
interpretação crítica o percurso cíclico que procuramos aqui engendrar:
O saber pelo sofrer, que é o ser da experiência feito, tragicamente
adquirido na concruz dos caminhos e descaminhos da vida, é substituído pelo saber
prévio acerca do ser a priori. A condenação platônica da poesia trágica é uma
exigência de seu novo projeto educacional.
33
A cegueira edipiana é, decerto, uma escolha, um desejo de mutuamente ser e não-ser
em toda possibilidade metamórfica do humano. Édipo não necessita de piedade, tampouco
a solicita, seja com ações, seja com palavras. A vontade move seus desejos maiores, aquém
29
SOUZA, 2006, 58.
30
SÓFOCLES, 2006, 72.
31
NIETZSCHE, 2001, 51.
32
Ver ARISTÓTELES, 2004, XI, § 62.
33
SOUZA, 2001, 119.
18
e além de toda ditadura e uniformidade de sentido. Édipo perfaz o perfil do verdadeiro
herói trágico que é o que é, independentemente do que o espectador sente ou avalia.
assim, mesmo cego e sob profundo sofrimento, o rei de Tebas mantém em diálogo ácido
com Creonte a rigidez do discurso e a supremacia dos seus anseios:
CREONTE – Já basta de lamentos: voltemos ao palácio!
ÉDIPO – Terei de obedecer, mesmo a contragosto!
CREONTE – O que se faz no tempo certo, feito está.
ÉDIPO – Irei sim. Sabes em que condição?
CREONTE – Dize, pois, e então saberei.
ÉDIPO – Tu me banirás deste país, para bem longe!
CREONTE – O que pedes depende da resposta do deus.
ÉDIPO – Mas tenho o ódio dos deuses sobre mim!
CREONTE – Em tal casa, feita será a tua vontade.
ÉDIPO – Tu mo prometes?
CREONTE – Não costumo prometer o que não tenciono cumprir.
ÉDIPO – Pronto estou. Levem-me para longe daqui!
CREONTE – Vem, pois... Deixa então as meninas!
ÉDIPO – Oh! Não me prives de minhas filhas! Eu te peço!
CREONTE Não queiras que se cumpram tuas vontades, Édipo!
Obedece, pois tuas glórias se fizeram passadas.
34
Valorizaremos, neste trabalho, a dinâmica artística misteriosamente ocupada em
engendrar novos mundos (a cosmogonia), a partir da consagração da complementaridade
dos opostos que, novamente harmonizados, vigoram o átomo primordial da criação
genuína, tal qual a criação de Machado de Assis. Porém, antes, para melhor
compreendermos a crítica machadiana ao pensamento racional, façamos algumas
considerações que julgamos importantes.
1.1 - Platão, Aristóteles, mímesis e razão: o conceito de representação artística:
Platão elaborou o projeto político de organização da cidade ideal, a pólis, que primava
pela reforma radical de todo o modelo social vigente e que seria a principal alavanca da
construção de uma sociedade justa e ordenada: a República. Desde o estabelecimento de
regras de convívio no âmago familiar, passando pela reestruturação do sistema educacional
que formaria os “artesãos”, “guardiões” e “soldados” da pólis, firmando e confirmando a
subordinação de toda a população aos ditames dos “reis-filósofos”; delineava-se a utopia
platônica da supremacia da Paidéia Filosófica.
34
SÓFOCLES, 2006, 76.
19
Na Paidéia Filosófica não noção de invenção natural, tampouco da criação que
emerge do drama dos viventes. Vigora a lei da lógica em todos os âmbitos do conhecimento
humano, inclusive no que tange aos sentidos e desejos. É realçado o primado do objetivo
final, do “projeto de vida”, antes do arrojo da “vida que se projeta”; é silenciada a
contemplação ingênua da vida; travado o giro do devaneio que rompe a inércia da
realidade una e opressora, e arranjadas em formas equilibradas as imagens deformadas que
habitam o sonho mistério que faz da noite um dia imaginado do exercício pleno de
existir.
O platonismo subordina todos os universos concernentes aos sentimentos e saberes
humanos inerentes à Paidéia Poética de Homero ao postulado da razão, afastando
fatalmente a arte da complexidade do real. A razão, por sua vez, após desvelar a origem
multiversa e complexa de tudo que é (silenciando, portanto, sua face complementar e
harmonicamente oposta: o que não-é), procura explicar a totalidade da Vida por meio de
um princípio (arqué) lógico-matemático que regerá o pensamento humano e obterá todas as
respostas e verdades. Forja-se a instrumentalização da apreensão do real
35
.
Platão denomina este princípio de eidos, isto é, a idéia que fundamenta toda espécie
de conhecimento, paradigma indissolúvel que conceitua previamente todo alvo de análise.
Qualquer interpretação, sobretudo artística, passa a dispensar a meditação e o
questionamento; pois, sob o prisma metafísico, permanecem prontas todas as respostas
desde que alçaram sua taxativa autoridade conceitual. Quando constrói o novo conceito de
“arte”, a filosofia desautoriza a essência do agir, a fim de notabilizar a razão, inflando a
verossimilhança e a lógica estrutural com o intuito deliberado de denegrir as vontades
ilógicas e sensíveis do ser humano.
Tanto na realidade cotidiana, quanto na arte sufocada pela aristotélica necessidade
de concatenação lógica das atitudes e fatos –, o homem sucumbe à condição de mero
produto/resultado da expectativa prenunciada pela filosofia. O ser perde a ambigüidade
fundamental. O homem apenas reproduz ações anteriormente concebidas pela racionalidade
metafísica. Não há, sob esta ótica, criação pura e subversiva aos ditames do real. A verdade
35
No ensaio “A cicatriz de Ulisses”, Erich Auerbach afirma que Homero “não receia inserir o quotidiano e
realista no sublime e trágico” (AUERBACH, 1987, 19). Para o teórico, o grande poeta da Odisséia marca o
início da “descrição realista do quotidiano” ainda envolvida pelo elemento idílico e pacifico. Fica claro no
texto o estilo unificante de Homero, impregnado do trágico, do sublime, do quotidiano, do caseiro,
estabelecendo um limiar tênue entre o mundo divino e o mundo dos homens.
20
e a beleza fogem aos domínios do artífice e reluzem tão-somente quando focadas pelo
prisma da verdade científica que atua em detrimento das paixões humanas, ora despejadas
no abismo das ilusões.
Deparamo-nos com a separação radical entre o mundo sensível e o inteligível, entre o
mundo do sonho e o mundo do fato. Expulsos da pólis, acusados de colocar em perigo a
união social e relegados à condição de reprodutores banais da realidade ideal, não mais
espaço possível para os poetas (leia-se artistas insubordinados aos ditames do regime técno-
pragmático da cidade platônico-aristotélica); muito menos para suas obras que não são
poéticas, senão pela total liberdade criativa.
A leitura da Poética de Aristóteles demonstra claramente como estão interligados os
propósitos sócio-políticos à teoria da arte (no caso, atenta à poesia e à tragédia) na filosofia
platônica. O “ordenamento dos fatos” se adequa às relações de causa e efeito do postulado
científico. O princípio da verossimilhança dialoga com o primado da verdade e da
coerência previstos por Platão. É possível notar, portanto, que a teoria aristotélica
vislumbra um modo de ser e fazer que se conforma num paradigma perfeito e irrevogável
que se presta a toda e qualquer interpretação ou, mais, a toda e qualquer criação artística.
Leiamos dois trechos da Poética:
XV, § 88. A necessidade e a verossimilhança devem estar presentes na
representação dos caracteres, assim como na seqüência das ações, de maneira que
seja necessário e provável, a determinado personagem, falar tais palavras e praticar
tais atos: também é assim em relação ao ordenamento dos fatos.
XXIII, § 147. Na imitação narrativa em verso [epopéia], as fábulas, tal
como acontece na tragédia, devem apresentar estrutura dramática; devem compor-
se de uma única ação, inteira e completa, com começo, meio e fim, para que, como
um ser vivente uno e inteiro, provoque o prazer que lhe é típico.
36
Desta forma, a teoria poética aristotélica procura inverter a natureza dos fatos da
vida, pois sucumbe o ineditismo do fenômeno aos experimentos previstos e fixados em
conceitos, categorias e classificações. O filósofo visa, portanto, compor um refúgio lógico
para o pensamento anterior ao turbilhão ilógico da imaginação. Em Memórias póstumas de
Brás Cubas, as referências a Aristóteles são inúmeras e sempre marcadas por uma profunda
ironia que cerca de críticas a verticalidade do pensamento racional. Ao contrário do
filósofo, que nota a vida como uma sucessão linear de eventos compostos por uma ação
36
ARISTÓTELES, 2004, 55-66.
21
única e total, o discurso fragmentado e rocambolesco de Brás Cubas, além de se erguer
paradoxalmente sobre a deformação do pensamento questionador que se conforma num
retalho de idéias, sentimentos e atitudes, procura refletir sobre a impossibilidade de se
prever a dinâmica da existência.
O “presente” enviado a Aristóteles segue junto ao riso sarcástico do narrador e não
envolve senão a complexidade da vida e da morte de Brás Cubas, decorrida da
complementar tensão de forças opostas que ousam pôr em xeque os códigos de conduta
preestabelecidos. A ironia do narrador, sob a máscara do respeito ao saber adquirido pelo
falso discípulo, corrói a pretensão de totalizar o real, afirmada no pensamento racional.
Note-se que o “talento” de Aristóteles inclina-se para a “observação” e para a “descrição”,
isto é, para registrar friamente os fenômenos sem qualquer envolvimento passional e,
conseqüentemente, descrevê-los (reproduzi-los) conforme se apresentam e, sobretudo,
conforme suas hipóteses, refutadas nas entrelinhas do discurso ficcional, supunham:
Cuido que não nasci para situações complexas. Esse puxar e empuxar de
cousas opostas, desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba, o
Lobo Neves e o bilhete de Virgília na mesma filosofia, e mandá-los de presente
para Aristóteles. Contudo, era instrutiva a narração do nosso filósofo; admirava-lhe
sobretudo o talento de observação com que descrevia a gestação e o crescimento do
vício, as lutas interiores, as capitulações vagarosas, o uso da lama.
37
As amarras teóricas que convencionaram a verossimilhança como primado do
objeto artístico são as mesmas que amordaçam a vida sob a rígida unidade do ser. Ora,
quando Brás Cubas se desdobra na impressionante capacidade de ser personagem
intimamente ligado ao drama dos eventos enunciados e, ao mesmo tempo, não-ser,
enquanto narrador ironicamente distanciado dos acontecimentos, a crítica machadiana já se
inicia por meio da conformação deformada do narrador-personagem. Sobre esta discussão,
afirma Souza:
Brás Cubas ironiza a motivação realista do enredo pautado pela
verossimilhança, alegando que o processo extraordinário, que articula a estrutura
narrativa das Memórias Póstumas, e a singularidade do defunto autor, que escreve
com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, transcendem os possíveis
narrativos dos romances convencionais.
38
1.2 - Physis, poiesis e poesia – a dinâmica da nascitividade contínua:
37
ASSIS, 1997, 158.
38
SOUZA, 2006, 108.
22
A Natureza possui como característica principal a contínua criação e recriação de
todas as formas de vida. A este “fazer-se” incessante, os pensadores gregos originários
39
denominaram physis; isto é, a nascitividade ilimitada dos viventes. A physis é uma fonte
inesgotável de multiplicidade, incessante vigor de todo processo de existência. Essa força
natural, energia em constante e concomitante brotação das potencias telúricas e celestes,
perfaz o vigor e a forma da poiesis. Indivisíveis, physis e poiesis articulam e rearticulam os
fenômenos da vida. Sob este prisma, não nos deparamos mais com o conceito metafísico de
real apresentado no pensamento filosófico ocidental europeu; ou seja, inexiste a realidade
realizada como símbolo e sinônimo de totalidade e unidade de sentidos previamente
idealizados. Physis e poiesis brotam e criam incessantemente. São mistérios que abarcam
tudo o que é em desvelamento e conformidade, e tudo o que não-é, em velamento e
deformidade. Vigem e independem, via liberdade poética, do primado da razão que lhes
conceitua.
A arte poética não mensura nem cala as imagens encantadas da natureza, a qual
jamais cessará de originar o logicamente impossível: entes sem precedentes. A ciência,
entretanto, parece pregar por meio de hipóteses que a existência pode ser previamente
determinável em categorias, classificações e teorias. Porém, ao conhecer apenas duas
pessoas, notamos desde o princípio que a existência é incalculável e imprevisível. Ações,
paixões e emoções não se rendem às probabilidades lógicas. O desejo ignora qualquer
adequação que se lhe oponha.
Natureza é unidade proliferante, gera diferença, não subordina suas criações ao
postulado científico. Antes do advento da filosofia, assinalava o pensador-poeta Heráclito:
“Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer-com: tudo é um”
40
. A Natureza fala
através do Logos e não a lógica fala por ela. Seres humanos são singulares pela vocação
natural de cerrar e descerrar o horizonte permanentemente apresentado. Ultrapassa, assim,
os limites cognitivos através da sensibilidade.
39
Também conhecidos como “pensadores pré-socráticos”, termo aqui não utilizado, pois entende-se que
guarda certo privilégio à obra socrática enquanto parâmetro qualitativo e temporal do pensamento ocidental
em relação aos pensadores anteriores. Educados na escola da infinitude e do dinamismo do universo e das
coisas e da reversibilidade tensa dos viventes, os pensadores originários, como Anaximandro, Heráclito e
Parmênides e Tales influenciam decisivamente o pensamento dialético e poético nas mais diversas áreas do
saber. Na filosofia contemporânea, Heiddegger, Nietzsche, Poppe e Schopenhauer beberam da
problematização profunda do devir advinda das reflexões de seus mestres.
40
HERÁCLITO apud CASTRO, 2004, 8.
23
Aristóteles, contudo, jamais conferiu às crianças, futuro da polis a plena consciência
da faculdade de criar seres e mundos e de, conseqüentemente, engendrar inéditas
possibilidades de existir. Deliberadamente, o autor da Poética, enquadra o fazer poético e
imaginativo das crianças ao limitado postulado da arte enquanto mimesis das ações:
13. Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Ao homem é
natural imitar desde a infância – e nisso difere ele dos outros seres, por ser capaz da
imitação e por aprender por meio da imitação, os primeiros conhecimentos –; e
todos os homens sentem prazer em imitar.
41
Ao imitar um objeto preconcebido pela lógica, a criança (leia-se todo e qualquer
criador genuíno) apenas reproduziria o estatuto da filosofia e sufocaria, pouco a pouco, sua
criatividade inerente. Não haveria mais a plena criação do novo que dorme e vibra na
turbulência implícita do imaginário; mas, sim, a reafirmação do que subsiste nas cópias da
realidade. É a redução total do valor da poesia, a completa subordinação da arte às formas
de conhecimento humano de cunho técnico e científico.
Aristóteles chega mais à frente a deslegitimar a origem da poesia como mero
resultado de algumas “toscas improvisações”
42
do artista. O fruto amargo desta
preconceituosa concepção pode ser lido em certos manuais literários que parecem silenciar
a criatividade da palavra, encaixando-a em classificações genéricas, periodizações e figuras
retóricas que impessoalizam o fazer poético. Os teóricos deveriam enobrecer a literatura e
alçá-la novamente à morada original: a liberdade da poiesis. Como o fruto que comeram
no qual estão as sementes da lógica que jamais atuou em conjunção com a poesia –, alguns
estudiosos da literatura tornaram-se também amargos e sérios ao extremo. Perderam a
saudável ingenuidade da infância. Deixaram a felicidade de fazer das coisas lidas,
contempladas e sentidas seus mais singelos e sábios brinquedos.
Devemos brincar, isto sim, de olhar a vida de outros modos, por outros sentidos,
retirando a poeira do costume do olhar. Brincar de ser poeta e de ler poesia implicará
sempre a criação de um campo dialógico que vai muito além do real plausível. Jogar com o
objeto artístico é, deste modo, muito mais sério e profundo do que a mesmice simplória da
estética reprodutiva ou escolástica. A literatura poética solicita, portanto, a companhia de
um leitor também poético, crítico da leitura e aberto ao diálogo estético-expressivo; leitor
41
ARISTÓTELES. 2004, 40.
42
Idem.
24
que deve, sobretudo, deixar falar a natureza originária da arte poética. Talvez assim a
crítica literária possa, também, ser poética, pois ao ser original, originará novos olhares.
1.3 - O nada e a criação poética – caos, cosmos e nadificação originária:
Investigar o princípio de composição de uma obra literária é condição crucial para a
descoberta do arranjo que fundamenta sua proposta de articulação entre mundo e
personagens. Ressalte-se que a criação de espaços (cosmogonia), apesar de inerente ao
homem, decorre sempre de uma constante formação e deformação dos agentes e pacientes
implicados na criação e recriação poética; isto é, de todas as formas, seres, homens,
sentimentos e pensamentos, noções de tempo ou espaço envolvidos. É deste modo que a
obra de arte instaura, além do universo próprio, um habitante genuíno (antropogonia).
Ocorre que, conforme discutimos, todo elemento ou forma possui sua face e contra-
face. A natureza abarca em sua complementaridade genética o dado da comunhão do
diverso. Há, portanto, no centro da natureza universal, no fulcro do nascimento do novo
homem e de sua nova morada, a mesma interação das forças contrárias e complementares.
Só assim, a vida muda, transmuta, vige, fenece e permanece eternamente intensa.
Ronaldes de Melo e Souza argumenta em A unidade poética do caos e do cosmos que
“[o] mundo está submetido ao duplo domínio de uma ordem cósmica e de uma desordem
caótica”.
43
O caos deformador bem quer se conformar em cosmos. O espaço construído
bem quer se deformar para, em giro contínuo, retornar à fundamental condição caótica que,
novamente, gera seu aspecto e estrutura. A união dos contrários é genesíaca, cíclica e
infinita. Tal integração rebate veementemente o postulado filosófico que privilegiou
somente o cosmos enquanto luz; um cenário supra-sensível propício à abstração das idéias,
um território divino e imaculado. Para Souza, o cosmos em sua conformidade aparente,
recolhe-se à potência do caos que é anterior a todo universo eclodido. Não há, deste modo,
apenas a claridade cósmica na vida, mas também, unido a ela, o anoitecer velante do transe
caótico. Há, anterior à vida na terra, um universo de natureza originária, no qual a urgência
do caos clama pelo instante em que se concretizará na emergência do cosmos, sempre de
maneira reversível e dinâmica:
43
SOUZA. 1993, 125.
25
Por que sempre se proclama o rigor da presença, e nunca se conclama o
vigor da ausência? Comemora-se o glorioso desvelamento do que é, mas não se
rememora o misterioso velamento do que não é. Pensar é delimitar ou fixar os
firmes limites do ser frente ao não-ser.
44
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o mistério da experiência humana reside na
ausência de delimitações, no abismo da fronteira entre a vida e a morte, nos limiares. O
mito de Pandora, situado no sétimo capítulo, “O Delírio”, ilustra justamente que a travessia
de Brás Cubas ultrapassa o mundo dos fenômenos aparentes e se conjuga ao plano das
sensações despertadas. O universo nadificado, branco, caótico, dará margem a toda
possibilidade de existência; isto é, à formação do novo universo e da nova forma de pensar:
Como ia de olhos fechados, não via caminho; lembra-me que a
sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou a uma ocasião em que me
pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu
animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de
neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a
gelar-nos um sol de neve.
45
Observe-se que o protagonista inicia uma viagem, a anteriormente anunciada
“viagem à roda da vida”, de “olhos fechados”, indiferente, portanto, ao espaço
representado. Esta viagem se sobre um hipopótamo que cavalga para trás, “através de
uma excursão anímica às avessas, verdadeira catábase ou viagem aos confins da terra.”
46
Note-se, ademais, que a escuridão da cegueira, conforme descrevemos no processo
cognitivo sofocliano, não dispensa a complementar brancura da neve da paisagem.
Coexistem, deste modo, os planos da experiência e da sensação, da reflexão e da vertigem,
da memória e da emoção. O narrador seleciona e combina suas memórias de acordo com a
paixão que despertam e não as subjuga à continuidade cronológica dos eventos ou mesmo à
coerência da relação de causa e efeito que necessitariam para serem relembradas. A idade, o
meio, as relações sociais, os afetos e os conflitos de nada valem para Brás Cubas se não
passarem pelo duplo crivo irônico e melancólico. É a partir dele, e somente dele, que as
ações se refletem e se lançam à apreciação crítica do leitor. Todo enunciado é carregado de
ambigüidade, cuja retórica se esgarça à medida que se conforma na personalidade cindida
do defunto autor machadiano.
44
Idem, 123.
45
ASSIS, 1997, 11.
46
SOUZA, 2006, 111.
26
Esta dualidade, este paradoxo introjetado na figura do narrador-protagonista de
maneira tão imbricada, leva o mediador no mesmo capítulo a sublinhar e reafirmar a união
entre a contração da dor e a distensão do riso por meio de expressões como “reflexões de
cérebro enfermo”, “curiosidade de delírio” e “cogitações de enfermo”, durante o desfile dos
séculos regados a “flagelos e delícias, - desde essa cousa que se chama glória até essa outra
que se chama miséria”
47
. Note-se que o engendramento da obra difusa, escrita com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia não se deve a um estilo artístico previamente demarcado,
não se subordina a uma escola literária, mas, sobretudo, ao intransferível e singular modo
de ser e não ser do defunto autor:
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que
Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de
transtorno cerebral fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.
48
1.4 - A máscara poético-tragicômica de Dioniso:
No que diz respeito à teoria que privilegia a criação artística genuinamente poética,
aquela que conjuga as forças da vida e da morte, do cosmos e do caos, da alegria e da dor;
isto é, a arte puramente dramática e dionisíaca por excelência, a contribuição dos estudos
Ronaldes de Melo e Souza é fundamental. Segundo o teórico, a concepção que finca na
literatura o primeiro corte na unidade poética do caos e do cosmos é a epopéia homérica,
visto que os deuses são descritos e narrados como únicos detentores da imortalidade da luz
celestial.
Zeus venceu a obscuridade da morte. Observa do céu os distantes mortais e rege o
funesto destino dos seres telúricos: o drama da morte prenunciada e cada vez mais próxima.
A morte que recusa a contra-face complementar da vida não corresponde à legenda heróica
e dramática da cultura grega pré-helênica. Neste primado artístico e existencial revela-se
que “o drama vital é pendente de uma trama mortal”.
49
É no mito e no rito de Dioniso, deus
da vida e da morte, gerado pela paixão de Zeus (imortal) e Semele (mortal), que a arte
defronta com maior intensidade a concepção racional de o que destino humano ruma
somente em direção à mortalidade. A primeira antístrofe entoada pelo coro d’As Bacantes,
47
ASSIS, 1997, 14-15
48
Idem, 15.
49
SOUZA, 1993, 124.
27
de Eurípedes, remonta a nese dupla do deus do êxtase e do sofrimento, do sagrado e do
profano, do festejo e do sacrifício, ao revelar que a morte de Dioniso é, paradoxalmente,
anterior à vida:
Foi a ele
que noutro tempo, acometida
das violentas dores do parto
sob o trovão alado de Zeus,
fora do ventre a mãe
lançou, deixando a vida
por ação do raio fulminante.
Logo, para que ele pudesse nascer,
em um abrigo Zeus Crónida o acolheu,
e a sua coxa dissimulou
com fíbulas de ouro a prender,
a ocultas de Hera.
50
Se o homem nasce do diferente e gera o diferente, por que negar a tensão
harmônica que originou seu drama vital? Devemos à linguagem poética o dinamismo que
suscita a vigência da contradição primordial e solicita a reunião das formas de vida antes
polarizadas e agora somadas numa “polêmica dualidade em concórdia”
51
, subvertendo,
assim, o mundo e os seres instituídos.
O ritual dionisíaco expressa o encontro da vida e da morte, da luz com as trevas, da
comédia e da tragédia, “a confraternização orgânico-aórgica da sobriedade cósmica e da
ebriedade caótica”
52
, através do símbolo da máscara
53
. Do vazio da face interna, a máscara
possibilita todas as alternativas de personificação dos seres da natureza proliferante. Trata-
se de um ato genesíaco por natureza. A nadificação da personalidade unilateral do homem
extingue a obviedade dicotômica das ações pré-estipuladas, propiciando a eclosão de
múltiplos seres e formas. Na literatura, Souza diz que “[a nadificação] é uma força
morfogenética que condiciona a possibilidade de manifestação da vida”
54
.
50
EURÍPEDES, 2001, 4.
51
SOUZA, 126.
52
Idem.
53
Quanto à máscara, originada no culto dionisíaco, a frase proferida pelo coro quando se encerra o drama
euripidiano d’As Bacantes é lapidar: “Muitas são as formas do divino, e muitas as ações imprevistas dos
deuses.” (EURÍPEDES, 2001, 48) A visão euripidiana dos deuses enquanto seres falhos e confusos contradiz
a perfeição, a verdade e, sobretudo, a distância egocêntrica dos deuses homéricos; por este prisma, conforme
melhor veremos a seguir, os limites entre o humano e o divino, entre o plano terreno e o celestial, entre a
carne e o espírito, entre mortalidade e imortalidade, são refutadas pelo grande tragediógrafo que conjuga os
ditos opostos no mesmo palco do drama da vida e da morte.
54
SOUZA, 2004, 191.
28
Note-se que a interpretação da complexidade formativa da literatura poética, tal qual a
de Machado de Assis, perpassa sempre dois princípios: o rigor formal e o vigor artístico. A
lucidez metanarrativa da prosa machadiana traduz, pela linguagem auto-irônica, a
fatalidade e a sublimidade da experiência humana expressas sob uma moldura da máscara
tragicômica, a força capaz de conter, concomitantemente, a desordem caótica implícita e a
ordem cósmica explícita. a tensão harmônica entre a força do caos e a forma do cosmos
explica a riqueza de significados sob a máscara de um mesmo narrador, plurissignificado,
plurissignificando-se na emergência da diversidade personativa e nadificado na urgência do
vazio interior da mesma máscara que não cessa em “outrar-se”.
No mito e no rito dionisíaco, o homem supera, através de sofrimento e êxtase, sua
condição humana e parte em direção ao terreno supremo do equilíbrio das polaridades
divinas e telúricas. Assim, “a natureza dual, desmesurada, e contraditória de Dioniso requer
a interação poética do trágico e do cômico como a forma capaz de se harmonizar com a
duplicidade do deus que contém os contrários no seu próprio ser”.
55
Em conhecida obra,
Teatro grego: tragédia e comédia, Junito Brandão discute o ritual dionisíaco de iniciação
no mundo que comunga vida e morte e traz à tona a valiosa contribuição da noção de ator
como aquele cuja principal característica é a possibilidade de ser outros:
Os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa de que se falou, caíam
desfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si pelo processo do “ékstasis”,
êxtase. Esse sair de si, numa superação da condição humana, implicava num
mergulho em Dioniso e este no seu adorador pelo processo do enthusiasmós”,
entusiasmo. O homem, simples mortal, “ánthropos” em êxtase e entusiasmo,
comungado com a imortalidade, tornava-se, “anér”, isto é, um herói, um varão que
ultrapassou o “métron”, a medida de cada um. Tendo ultrapassado o métron, o anér
é, ipso facto, um “hypocrites”, quer dizer aquele que responde em êxtase e
entusiasmo, isto é, o ATOR, um outro.
56
O comportamento dramático de Brás Cubas, sua vocação para ator teatral que “se
despersonaliza a fim de personificar cada um dos papéis disponibilizados pela diversidade
qualitativa da atuação histórico-social dos homens”
57
, será analisado no terceiro capítulo.
Antes, porém, investigaremos os princípios básicos da poética tragicômica, a fim de
compreender melhor os alicerces da forma dramática e da mundividência tragicômica que
firmam a composição das Memórias póstumas de Brás Cubas e fazem deste complexo
55
CANTARELLA apud SOUZA, 2006, 60.
56
BRANDÃO, 1999, 11.
57
SOUZA, 2006, 9.
29
narrador-personagem um mistério em si mesmo, um caleidoscópio de personalidades e
vozes capaz de abarcar em seu cérebro “um tablado em que se deram peças de todo gênero,
o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as
bufonerias, um pandemonium, (...) uma barafunda de cousas e pessoas.”
58
2. PRINCÍPIOS DE POÉTICA TRAGICÔMICA:
Quem sabe se viver não é morrer?
(Eurípedes)
A vida, transfigurada em palco da ficção afeita às múltiplas encenações dos diversos
caracteres disponíveis no vasto cenário histórico-social, recupera na obra de Machado de
Assis o vigor dramático e, conseqüentemente, a potência da interação dos contrários dos
quais foi conceitual, religiosa e culturalmente alijada a partir da adoção da perspectiva
unilateral e excludente do pensamento metafísico da sociedade ocidental. O presente
capítulo tratará da elucidação dos princípios poéticos que articulam a forma dramática e a
mundividência tragicômica do romance Memórias póstumas de Brás Cubas. A partir da
58
ASSIS, 1997, 65.
30
interpretação do Satyrikon dionisíaco, dramatizado exemplarmente nas peças de Eurípedes
e Shakespeare, e da absorção da visada tragicômica pela ficção machadiana, será possível
notar a originalidade da obra do escritor brasileiro que se singulariza por poematizar, sob a
forma da narrativa, o vigor e a complexidade da reversibilidade do deus dos vivos e dos
mortos.
2.1 - O Satyrikon dionisíaco: a gênese da tragicomédia grega:
Dominados pela tensão dramática despertada pela conjunção das forças antagônicas
do festejo e do sacrifício, da orgia e da dor, do êxtase e do sofrimento, o mito e o rito a
Dioniso, ou Baco na mitologia romana, celebram conjuntamente a potência da vida e a
latência da morte. Envergando nébrides, ou mesmo nuas, adornando as cabeças com coroas
de hera e segurando o tirso, bastão envolvido por ramos de videira, as Mênades, ou
bacantes, entregavam-se à adoração dionisíaca envolvidas pelo mais profundo deleite. O
misto de embriaguez, transcendência e consciência do ato, tornava o culto uma exaltação ao
envolvimento com o natural, espécie de retorno à seiva originária da vida envolvida pelo
entorno da morte. Celebrava-se, sobretudo, a desmedida. O louvor ao deus da dupla
regência abarcava desde a dor lancinante até o riso mais desconcertante, do autoSwinger
Orgy Gone Wild flagelo à brincadeira pueril, do prazer à fé. Daí nasce o drama, isto é, da
união catártica do lúdico ao terrível que subage na interioridade anímica do homem:
(...) o elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homem,
arrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente
do que era no mundo cotidiano. Mas a transformação é também aquilo de onde, e
somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de uma imitação
desenvolvida a partir de um instinto lúdico, e distinto de uma representação
mágico-ritual de demônios, arte dramática, que é uma replasmação do vivo.
59
Dioniso caracteriza-se fundamentalmente como um filho ilegítimo da família dos
deuses olímpicos. Sua mãe, Semele, instigada pelos ciúmes de Hera, pediu a Zeus que o
amante viesse a ela em todo seu esplendor como cabal prova de amor. As luzes lancinantes
do deus matam a mortal e retiram o bastardo do ventre materno, para vingança de Hera.
Dioniso sente, portanto, a contração da morte antes mesmo da distensão da vida, o fluxo da
existência conjunto ao influxo do desaparecimento e sua gestação ocorre secretamente na
coxa de seu pai, a fim de evitar nova catástrofe. A obscuridade do drama dionisíaco traz em
59
LESKY, 2006, 74.
31
si, portanto, o velamento dos defeitos e deformidades divinas, conjugada à luminosa
revelação dos mesmos, conforme aponta a afirmação de Albin Lesky:
O deus, a cujo serviço medrou o drama trágico dos gregos, não pertence ao
círculo olímpico dos deuses homéricos. Essas figuras luminosas radicam no
espírito da epopéia nobre e, em sua beatífica congregação, transmitem a nós,
homens da posteridade, a imagem de um mundo contemplado maravilhosamente
em seus poderes vivos. Erguem-se à nossa frente como senhores mais nobres e
magníficos que os príncipes mortais e, mesmo assim, sua natureza tem muitos
traços em comum com estes. Suas vidas correm fáceis no Palácio olímpico e sua
vontade apresenta um caráter altamente pessoal. (...) No entanto, quão diferente se
apresenta aos homens o deus que, no círculo dos olimpianos, foi sempre um
estranho (...)
60
Nascido, pois, duma contradição suprema, o Satyrikon, originado do canto alegre e
sombrio do ditirambo entoado pelo coral durante a celebração e lamento da vida e da morte
do deus do duplo domínio celeste e telúrico, é, segundo Souza, “a forma poética de estilo
sério-jocoso da tragédia vinculada originariamente ao mito e ao culto dionisíaco”
61
De
maneira que é possível dizer que a originalidade do drama tragicômico se comprova na
patente da “mundividência dionisíaca, e não somente no sentido secundário da fusão do
trágico e do cômico.”
62
Dupla em sua dialética unidade constitutiva, a máscara tragicômica representa a
visada dramática que se notabiliza pela subversão aos estatutos normativos, à verticalização
do pensamento e às doutrinas instituídas, pois não se submete à fixação de uma ideologia
pretensamente verdadeira. A inerente contestação da máscara não se apresenta senão pela
pluralidade opinativa dela mesma, pela capacidade reticente do símbolo primordial do
devir. Ou nas palavras de Souza: “Sem avesso nem fundo, porque nada contém dentro de si,
a máscara simboliza a manifestação do que é simultaneamente presente e ausente”.
63
Em A
tragédia grega, Lesky também salienta a ambigüidade formativa da máscara:
A infra-estrutura do drama, antes de mais nada, remonta àquela fase
primitiva um requisito que a tragédia grega nunca abandonou, como também a
comédia: a máscara. Seu emprego nas culturas primitivas é múltiplo; a mais
freqüente é a máscara protetora, que deve subtrair o homem aos poderes hostis, e a
máscara mágica, que transfere ao portador a força e as propriedades dos demônios
por ela representados.
64
60
Idem, 73-74.
61
SOUZA, 2005, 3.
62
Idem, 1.
63
Ibdem, 2.
64
LESKY, 2006, 59.
32
O emblema que congrega as propriedades divinas e demoníacas, confronta o
paradigma luminoso da perfeição e da verdade preconizado, conforme vimos, na
mundividência idealista de Homero e reafirmado no pensamento filosófico de Platão e na
teoria da arte dramática de Aristóteles. A capacidade do homem, representada pela máscara
tragicômica, de refutar a personalidade monológica do ser com o objetivo expresso de
confirmar a impressionante possibilidade ontológica de irmanar ser e não-ser, passou
certamente tanto pelo crivo dicotômico da filosofia platônica, quanto pela separação
aristotélica dos gêneros dramáticos. É justamente a perspectiva analítica e classificatória e
não a visão poética e complementar que, a partir destas duras cisões, passou a vigorar no
pensamento ocidental como condição sine qua non de todo saber avalizado pela razão.
2.1.1 - A desconstrução aristotélica do drama ambivalente:
N’O Banquete, de Platão, o filósofo Sócrates visa persuadir o tragediógrafo Ágaton
e o comediógrafo Aristófanes com a tese de que o verdadeiro dramaturgo é aquele que sabe
compor tanto tragédias quanto comédias. A simetria da comédia e da tragédia, comprovada
na escolha de um representante para cada gênero, durante o diálogo socrático baseado na
convergência, pressupõe “uma fase anterior à separação dos gêneros da comédia e da
tragédia [e] a existência de um gênero poético originariamente tragicômico”
65
:
Aristófanes e Sócrates eram os únicos que ainda estavam despertos, e
bebiam de uma grande taça que passavam da esquerda para a direita. Sócrates
conversava com eles; dos pormenores da conversa disse Aristodemo que não se
lembrava - pois não assistira ao começo e ainda estava sonolento - em resumo,
porém, disse ele, forçava-os Sócrates a admitir que é de um mesmo homem o saber
fazer uma comédia e uma tragédia, e que aquele que com arte é um poeta trágico é
também um poeta cômico.
66
Para o projeto doutrinário da pólis a noção da mundividência tragicômica que
associa o conhecimento trágico à crítica corrosiva do riso, simbolizada, conforme notamos,
na livre reversibilidade contestadora da máscara era, indubitavelmente, um mal a ser
prontamente expurgado. A leitura platônica dos diálogos socráticos não menciona a origem
multiversa do drama tragicômico e atesta a separação funcional dos gêneros que
65
SOUZA, 2005, 3.
66
PLATÃO, 2001, 34.
33
culminaria, no máximo, na fusão secundária da comédia e da tragédia, soterrando, assim, a
gênese ambivalente do drama dionisíaco. Notaremos n’As bacantes, de Eurípedes, o
testemunho artístico do confronto entre o obscuro passado dionisíaco e o luminoso presente
filosófico, entre o atraso personificado pelos anciãos Tirésias e Cadmo e a evolução do
pensamento luminoso na sociedade grega representado por Penteu. Antes, porém,
observemos como Aristóteles opera em A Poética, a desconstrução do drama tragicômico:
Nascida de improvisações tanto a tragédia quanto a comédia, a primeira
por obra dos solistas do ditirambo, a última, dos solistas dos cantos fálicos,
composições ainda hoje apreciadas em muitas cidades a tragédia se desenvolveu
pouco a pouco, à medida que evoluíam os elementos que lhe eram próprios. Depois
de modificar-se muito, estabilizou-se ao atingir sua natureza própria. (...)
tardiamente a tragédia adquiriu nobreza: quando passou a ser mais extensa, quando
abandonou narrativa curta e a linguagem grotesca e satírica.
67
A cisão aristotélica da tragédia e da comédia desautoriza a gênese dupla do drama
tragicômico inspirado no Satyrikon dionisíaco. Mais uma vez, o pensamento filosófico age
por meio do estabelecimento de dicotomias reguladas pela verticalização do olhar e pela
planificação do objeto em análise. Aristóteles chega a cometer o paradoxo de afirmar que
“depois de modificar-se muito” a tragédia atingiu “sua natureza própria”: a nobreza. Deduz,
assim, que o gênero trágico, aliado da maturidade do tempo, parece ter se desvencilhado
aos poucos da incômoda companhia da comédia, “curta” e “grotesca” demais, e atingido o
ápice da forma dramática perfeita e imaculada.
Observe-se que, a fim de validar a teoria da superioridade, seriedade, nobreza e
pureza da tragédia (comparada, obviamente, ao estrato social, cultural e político de seus
cultores, em detrimento da comédia, “a máscara horrenda e desconforme”
68
destinada a
“imitar homens inferiores”
69
, o povo), o criador da lógica chega a contradizer a origem dual
e contraditória que reside no núcleo germinador do drama. Foi justamente a origem
ambivalente do drama grego a grande observação tecida pelo comediógrafo Plauto, no
prólogo de Anfitrião, quando pela primeira vez aparece de fato o termo tragicomédia em
uma obra dramática:
Primeiro vou dizer aquilo que vos vim pedir; depois vou revelar o
argumento desta tragédia. Por que é que franziste o sobrolho? Por ter dito que seria
67
Ibdem, 41.
68
ARISTÓTELES, 2004, 42.
69
Idem, 39.
34
uma tragédia? Sou deus, de modo que, se sereis, mudoisto; farei que de tragédia
passe a comédia, e exatamente com os mesmos versos. Quereis que sim ou que
não? Mas que bobagem, eu que sou deus, estar sem saber o que vós quereis;
conheço perfeitamente a vossa opinião sobre o assunto. O que eu vou fazer é que
seja uma peça mista, uma tragicomédia, porque meo parece adequado que tenha
um tom contínuo de comédia a peça em que aparecem reis e deuses. E então, como
também entra nela um escravo, farei que seja, como já disse, uma tragicomédia.
70
2.2 - A revolução teatral de Eurípedes:
John Gassner, em Mestres do teatro, afirma que a revolução teatral euripidiana se
deve às “caracterizações complexas e multidimensionais”
71
realizadas pela encenação de
um drama dessacralizante e libertador. O desvelo crítico das obras de Eurípedes logo
chamou a atenção do povo, anteriormente relegado apenas às celebrações de Dioniso, “a
propriedade do povo”
72
, pela maneira como o dramaturgo conseguia desautorizar a
superioridade dos heróis homéricos. A personalidade cindida de Medéia, quando a mulher
enganada luta entre o amor pelos filhos e a vingança contra o marido. O conflito de
Admeto, em Alceste, que se tensiona entre o amor à vida e a à esposa, cuja morte poderia
salvá-lo.
73
Enfim, cada indivíduo amargurado pelo sofrimento encontra correspondência no
espectador que se solidariza ao observar suas contradições desveladas sobre o palco
dramático.
Eurípedes é, fundamentalmente, o grande dramaturgo da vida e da morte, pois não
separa os conflitos internos do indivíduo. Nota, sabiamente, que a maior deformação da
visão acerca da personalidade humana se dá na separação dos opostos que a constituem. De
maneira que, ao encenar a dor reunida com a alegria, o ódio aderido ao amor dentro do
multiverso caráter do homem, Eurípedes constitui, sem dúvida alguma, o protótipo do
moderno drama realista e psicológico”.
74
A partir da investigação do aprofundamento do
drama pessoal euripidiano e do efeito tragicômico da justaposição de cenasrias e jocosas
em As bacantes, será possível estabelecer uma grande conexão entre a dramaturgia de
Eurípedes e a ficção de Machado de Assis, representada pela obra ora interpretada,
Memórias póstumas de Brás Cubas.
70
PLAUTO, s/d, 46.
71
GASSNER, 1974, 68.
72
Idem, 15.
73
Ibdem, 69.
74
Ibdem.
35
A primeira cena de As bacantes inicia-se com o lamento do deus Dioniso em frente
ao túmulo da mãe, Semele. Do túmulo da morta, escapa por vezes um fio de fumo, uma
“chama viva”, na qual vige a presença inesquecível da mãe. Em meio ao desconcerto
emocional da memória da mãe assassinada, fica ainda a certeza da solidariedade dionisíaca
a Cadmo e a todos os seus cultores, simbolizada pelo coroamento do ancião com um ramo
de videira:
À terra de Tebas venho, eu, Dioniso,
de Zeus filho, a quem outrora deu à luz Sémele,
filha de Cadmo, pela chama do raio assistida.
Alterando para mortal a feição divina,
junto estou à nascente de Dirce e águas de Ismeno;
o túmulo de minha mãe, a fulminada, vejo,
ao palácio vizinho, e as ruínas da sua morada,
do fogo de Zeus uma chama ainda viva exalando,
imperecível cólera de Hera contra minha mãe.
A Cadmo exalto, que em solo inviolável
o túmulo da filha tornou; de pâmpano
eu o cingi, em verdura e cachos abundante.
75
Por não ver a mãe enterrada de forma digna, Dioniso impregna de delírio todas as
mulheres de Tebas, tornado-as irremediavelmente suas bacantes. A luta de Dioniso é dupla:
contra Zeus que sucumbiu aos desmandos de Hera e em repúdio ao mortal Penteu, neto de
Cadmo, que ao assumir o poder absoluto da pólis, aboliu os rituais em honra ao deus da
vida e da morte. A fim de mostrar a todos os homens e entidades divinas que nasceu
deus”, Dioniso oscila sua mascarada entre o sublime e o mortal, em vista da profunda
capacidade de “mudar o semblante”
76
.
Enquanto as bacantes entoam a glória de Dioniso, surgem, em frente ao palácio que
serve de cenário principal do drama, as figuras de Tirésias e Cadmo, anciãos vestidos de
bacantes cuja fraqueza física entra em contraste “com o entusiasmo contagiante da
Mênades, emblematizado nas insígnias dionisíacas”.
77
Ambos aprontam-se para ir às
montanhas cantar em louvor de Dioniso, orgulhando-se profundamente da sensatez do ato:
CADMO:
De toda a cidade, só nós dançamos por Baco?
TIRÉSIAS:
Só a nós o bom senso possui, aos outros não.
78
75
EURÍPEDES, 2001, 1.
76
Idem.
77
SOUZA, 2005, 4.
78
EURÍPEDES, 2001, 6.
36
Logo após, aparece Cadmo que, em tom sarcástico, debocha de Tirésias e, em parte,
do próprio avô, salientando justamente a senilidade, ou a falta de sensatez da atitude
atrasada dos anciãos. Repare-se, ademais, que Tirésias é um adivinho, ou seja, um bruxo,
um evocador dos mortos e acompanha Cadmo que, por outro lado, complementa o duplo
que os anciãos representam, pois é pai de Semele, ou seja, aquele que lhe deu a vida.
Vejamos o que afirma Penteu:
Mas que prodígio me é dado contemplar! O adivinho
Tirésias, em mosqueadas nébrides envolto,
e de minha mãe o progenitor - oh! escárnio! -
empunhando o nártex em delírio! Renego, ó pai,
a tua senilidade, privada de entendimento!
E se arremessasses essa hera? E se desejasses
do tirso a mão soltar, ó pai de minha mãe?
Tu o persuadiste, Tirésias! O que visas,
atraindo aos homens essa nova divindade?
79
A cena tragicômica dos dois anciãos travestidos de bacantes, envergando peles de
gamo e ornando as cabeças com folhas de hera, poderia parecer o resultado do uso retórico
da técnica do humor, a fim de distender o espectador da tensão anunciada pela encenação
da vingança trágica de Dioniso. O uso do riso enquanto figura de linguagem, ou como
ferramenta artística que possibilitaria o uso estético da graça e da leveza em meio ao trágico
lamento dos viventes, aliás, não passa de uma noção secundária da tragicomédia que mais
uma vez aponta para a fusão forçosa dos gêneros indivisíveis.
Na tragicomédia germinada sob o signo e o símbolo dionisíaco, toda e qualquer
cena, personagem, acontecimento, diálogo ou monólogo é fundamentalmente um misto de
dor e festejo, de êxtase e sofrimento que residem na consciência plena do ato irmanada da
reflexão acerca do fato. Antes de Penteu tecer qualquer menção ao estranho da atitude de
Tirésias e Cadmo, os anciãos já haviam refletido e chegado à firme conclusão da validez do
culto.
A justaposição das cenas da tragédia de Dioniso e da vestimenta feminina dos
velhos suscita o efeito tragicômico do drama euripidiano. Além disso, a encenação provoca
no espectador a crítica ao pensamento que, já nesta época, procurava sobrelevar os deuses
luminosos, egocêntricos e vaidosos do Olimpo, renegando os sentimentos de humildade,
79
Idem, 7.
37
alteridade, abnegação e sacrifício contidos no culto ao deus, na disposição solidária de se
colocar no lugar de um outro; isto é, a verdadeira religião.
A técnica euripidiana da justaposição irônica de eventos simetricamente opostos e
complementares é revista tanto no moderno drama shakespeariano quanto na moderna
ficção machadiana. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, inúmeros são os casos de
tensão provocada pelo choque das máscaras que mutuamente se afirmam e desdizem. Na
morte da mãe de Brás Cubas, o primeiro sentimento do protagonista é de tristeza:
Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de
trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o
cérebro, nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-
me o essencial que é o estímulo, a vertigem...
80
Ocorre que a ironia tragicômica de Brás Cubas, como vimos, reflete
concomitantemente a proximidade da cena trágica e dolorosa dos atos e a distância crítica
dos fatos. o estando preso às convenções sociais de mundo trágico dos viventes (“na
morte, que diferença! que desabafo! que liberdade!”
81
), é possível ser franco e alegre a
ponto de afirmar que o sofrimento familiar a respeito da morte da mãe não passava de “um
lugar-comum, tristemente comum” e que não haveria mais porque chorar, pois “o cancro é
indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício.”
82
Imbuído desta
certeza irônica, da perspectiva corrosiva acerca da vida que chega a dedicar sua obra maior
ao verme que lhe roeu primeiro as carnes mortas, somada à distância moral do sepulcro e
da ideologia individualista, Brás Cubas se torna um homem que pode despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser.”
83
Não
no discurso sério-jocoso das Memórias póstumas um instante sequer no qual a alegria esteja
separada da melancolia, ou o contrário. Compreender como nasce a perspectiva irônica
estritamente poética é nosso próximo passo.
2.3 - Aristófanes e o coro parabático vinculado à ironia machadiana:
Dentre os críticos mais mordazes ao itinerário luminoso que aos poucos perfazia a
nova teoria do pensamento grego, encontra-se o comediógrafo Aristófanes. Combatendo os
80
ASSIS, 1997, 50.
81
Idem.
82
Ibdem, 48-49.
83
Ibdem, 50.
38
desmandos dos reis-filósofos, a educação baseada na retórica, a falta de ética no trato
social, a corrupção política e a concepção egocêntrica do homem, suas mais de quarenta
peças, das quais conhecemos apenas onze, revelam, a partir da irrisão do riso, as vigas
secretas que sustentavam o edifício grego. Aristófanes acusava os políticos, filósofos,
sofistas e cientistas de excluir o povo do comando e administração da pólis.
Note-se que o projeto estético-expressivo do drama euripidiano não se afasta dos
principais motivos artísticos de Aristófanes. Junito Brandão ressalta atentamente que a
vinculação entre os poetas se deu mais em vista de seus propósitos artísticos, da
mundividência tragicômica e da verve crítica do que do nítido diálogo literário:
Eurípedes introduziu na tragédia a reflexão, a dissecação de idéias, a
dialética, as contradições, as metáforas aéreas e sobretudo a imoralidade. Em parte,
tudo isso é verdade. Aristófanes, porém, não viu, ou melhor, não quis ver que
Eurípedes é de uma outra “época”, de uma outra “mentalidade”. Amante da
filosofia, espírito cético e realista, Eurípedes fez que a tragédia descesse do Olimpo
esquilano e do idealismo de Sófocles para as ruas de Atenas. Não é em vão que o
poeta de Antígona dizia que pintava os homens como deveriam ser e Eurípedes
como eles são. E, embora passadista, vendo no majestoso Ésquilo o poeta ideal e
em Sófocles o “acomodado”, Aristófanes não deixou (e aqui está a contradição!) de
imitar o estilo aéreo e doméstico de Eurípedes, a ponto de ser maliciosamente
apodado por Cratino de euripidaristofanizante!
84
Ocorre que, como se recusasse seu mestre, o comediógrafo sempre repeliu
duramente todos os tragediógrafos, sobretudo, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, colocando-os
no mesmo plano de exaltação e subordinação aos deuses olímpicos, aos excessos da elite e
ao pensamento filosófico. A luta de Aristófanes foi árdua, pois a comédia, além de ser vista
como a máscara que simbolizava um gênero menor, dedicado a representar o drama banal e
grotesco de pessoas ignorantes e grosseiras, não gozava de prestígio social e intelectual,
conforme afirma A poética, de Aristóteles:
22. A comédia, como dissemos, é imitação de gentes inferiores; mas não
em relação a todo tipo de vício e sim quanto à parte em que o cômico é grotesco. O
grotesco é um defeito, embora ingênuo e sem dor; isso prova a máscara cômica,
horrenda e desconforme, mas sem expressão de dor.
23. Se as transformações por que passou a tragédia, assim como os seus
autores, nos são conhecidas, os da comédia ainda não o são, porque no princípio ela
não era estimada. Apenas tardiamente o arconte permitiu o coro da comédia; antes
disso, ele era composto por voluntários.
85
84
BRANDÃO, s/d, 75-76.
85
ARISTÓTELES, 2004, 42.
39
A revolução da comédia se dá, segundo Aristóteles, com o advento do coro.
Primeiramente, o coro era exercido por profissionais não especializados, isto é, pelo povo
das aldeias e cidades que celebravam Dioniso por meio de mascaradas e procissões.
Durante o cortejo popular, os fiéis ao deus da comédia e da tragédia disfarçavam-se de
pássaros, galos, golfinhos, “carregando acima das cabeças um imenso falo e cantando e
dançando sugestivamente”.
86
O culto que fundia o caráter religioso ao êxtase sexual dava
margem ao mais profundo deleite e irreverência. Assim, não tardou em a zombaria sair da
ordem do cortejo e ampliar seu domínio à chacota de figuras iminentes, como políticos e
aristocratas.
Nas comédias de Aristófanes, a reflexão crítica acerca da desordem social se
justamente através da parábase do coro, na qual os atores interrompem a sucessão das
ações dramáticas, despem suas vestimentas cênicas e as máscaras, e, volvendo às
personalidades mundanas, solicitam atenção do público. A polifonia do coro encerra na
mistura de vozes dissonantes a consonância crítica da ironia parabática. Os atores do coro,
concomitantemente, estão ausentes dos eventos encenados e presentes no palco dramático,
estão próximos às tragédias da vida representada e criticamente distanciados dela.
A parábase se dividia fundamentalmente em duas partes: na primeira, o poeta se
dirigia diretamente ao público, a fim de angariar simpatia; na segunda, por meio de estrofes
e antistrofes, o coro falava aos espectadores na qualidade de cidadão. Assim, a voz
ambivalente do coro se modulava entre a crítica literária e a ironia sócio-política. Repare-se
como a última aparição do coro na comédia As rãs, de Aristófanes, oscila entre a crítica à
tragédia euripidiana e a irrisão do discurso político de base filosófica da época:
CORO Ditoso o homem que tem uma inteligência perfeita! Dele muitas
coisas aprendemos. Ésquilo, por exemplo, que deu provas de sensatez, retornará à
pátria para o bem dos seus concidadãos, parentes e amigos, e isto porque é
inteligente! Com efeito, é muito agradável não tagarelar, sentado ao lado de
Sócrates, depreciando o culto das Musas e os demais importantíssimos acessórios
da arte trágica. É próprio de um insensato esbanjar o tempo em discursos enfáticos
e frívolas sutilezas.
87
Na forma dramática do romance machadiano, a ironia estritamente poética se
vincula à parábase operada pela comédia aristofânica. O vocábulo ironia deriva do termo
86
GASSNER, 1974, 91.
87
ARISTÓFANES, s/d, 154-155.
40
grego eironeia que significa questionamento. O narrador machadiano se compraz em
modular também a reflexão crítica das ações exteriores e a autoconsciência irônica, por
meio da constante troca de máscaras que autorizam e desautorizam o discurso instituído e
seu próprio discurso. Segundo Friedrich Schelegel, “a ironia é uma parábase permanente:
Die Irnie ist eine permanente Parekbase”.
88
O narrador em Machado de Assis é metalingüístico e auto-reflexivo, é crítico
literário de sua obra e o mais profundo conhecedor dos meandros de sua consciência
atormentada e cindida entre o lamento e o escracho. No capítulo LI, “É minha!”, Brás
Cubas vive a perturbação de devolver ou não uma moeda de ouro encontrada na rua. A
princípio, pensa em ficar com o objeto, daí o título do capítulo que revela a marca
possessiva do narrador-protagonista. Em seguida, durante uma crise moral, que se
constituirá depois em grande surpresa irônica, Brás Cubas decide restituir a moeda ao dono
legítimo:
(...) Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra.
“É minha!”, repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.
Nessa noite não pensei mais na moeda, mas no dia seguinte, recordando o
caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que
diabo seria minha uma moeda que eu o herdara nem ganhara, mas somente
achara na rua. Evidentemente, não era minha, era de outro (...) Cumpria restituir a
moeda, e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio
ou da policia.
89
Entretanto, a polêmica de vozes no interior da consciência de Brás Cubas não se
esvai com a entrega da moeda, mas, sim, com o fato de ter sido tornada pública a beleza de
sua atitude, “porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimento de alma delicada.”
90
Em
verdade, mesmo para um homem de posses, a devolução da parca meia dobra não foi tarefa
tão fácil:
Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada,
sem respiração; mas a restituição as meia dobra foi uma janela que se abriu para o
outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga.
Ventilai as consciências! Não vos digo mais nada.
91
Neste instante, Brás Cubas produz o que podemos denominar de emplasto da alma,
a lei da equivalência das janelas. Destinada a aliviar os tormentos da dúvida e desprezar as
convenções sociais por meio da radicalização do projeto individual. A ironia contida na lei
88
SCHLEGEL apud SOUZA, 2006, 36.
89
ASSIS, 1997, 85.
90
Idem, 86.
91
Ibdem, 85-86.
41
da equivalência das janelas desvela criticamente tanto a sociedade capitalista regida pela
iniciativa privada quanto a hipocrisia pessoal de Brás Cubas em satisfazer sua vaidade junto
ao público. Afinal, segundo o narrador das Memórias póstumas, os homens são escravos da
opinião, tornando “obrigatória” a hipocrisia social que equilibraria as forças do instinto e da
razão e, conseqüentemente, forçariam “a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os
rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência.”
92
2.4 - William Shakespeare: a tragicomédia no alvorecer da modernidade:
A obra de William Shakespeare caracteriza-se como grande marco do drama
moderno. O dramaturgo inglês é, certamente, responsável pela mais profunda releitura da
tradição teatral no bojo da sociedade burguesa em expansão e do capitalismo em franco
desenvolvimento. Para Gassner, Shakespeare era, fundamentalmente, o maior pensador
filosófico e social de seu tempo
93
. Ao ver ruir o império elizabethano, o poeta de Otelo
parecia se antecipar aos fatos que fincaram as bases da nova ordem política, social e
econômica por meio de um altíssimo grau de sensibilidade, observação arguta e “uma
grande dose de humanidade simples, um abundante suprimento de bom senso, uma
palpável porção de terra em seu fogo.”
94
Isto porque, em suas peças, Shakespeare não
reproduziu, mas efetivamente inventou um homem pródigo, sobretudo, na capacidade de
duvidar dos verdadeiros benefícios das instituições e da moral correntes. A capacidade
dramática da literatura shakespeariana de fincar a evolução do homem a partir de uma
profunda relação consigo mesmo, de um diálogo com o obscuro e o nítido de si próprio, e
não com Deus ou deuses, ancorado numa visão grega trágica da valorização da honra que
contradizia a culpa cristã em voga, além da habilidade de mergulhar no desafio do auto-
conhecimento através da reflexão, encontra em Shakespeare o ápice artístico após
Eurípedes.
Se no drama euripidiano, a encenação provoca mutuamente as sensações de riso e
terror, conforme observamos n’As bacantes, notaremos que a forma dramática vinculada ao
mito e culto dionisíaco vige também na obra de Shakespeare. Para Souza
92
Ibdem, 50.
93
GASSNER, 1974, 247.
94
Idem, 248.
42
o Satyrikon como drama tragicômico atua como força plasmadora das
peças de Shakespeare, que convertem o ditame tradicional da separação dos
gêneros na interpenetração dinâmica da tragédia e da comédia.
95
Outro estudioso da obra shakespeariana, Karl Ludwig Pfeiffer, aponta também para
a impossibilidade de fixar a obra do poeta de Macbeth tão-somente no gênero trágico. Nas
entrelinhas da reflexão de Pfeiffer é possível notar que as contradições das personagens de
Shakespeare suplantam a noção de trágico:
Os famosos monólogos de Hamlet não fornecem justificativas para uma
situação trágica, mas as recusam. Eles indicam que a vingança não é um problema
ético-normativo, e sim uma questão de implementação de uma resolução
apaixonada numa ação apaixonada. Porém Hamlet sabe também que a paixão
sempre pode ser uma pose teatral. Quem poderia decidir se o rei Lear é uma figura
trágica ou um velho imbecil que não sabe o que é próprio de um rei? Quem ousaria
afirmar que o conflito entre um grande amor e o interesse estatal romano produz
tragicidade em Marco Antônio e Cleópatra?
96
A pose social coadunada à paixão, a contradição entre o amor e os interesses
políticos e/ou sociais são também tema freqüente nas Memórias póstumas de Brás Cubas.
A relação de Cubas com Virgília passa exatamente sobre este conflito tragicômico,
potencializado na ficção pela ironia crítica do narrador que desvela argutamente o misto de
paixão privada e consideração pública da amante que visa sempre a supremacia social:
Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de
iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga lhe
deixava uma. (...) Para mim aquilo era uma situação nova do nosso amor, uma
aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma cousa que me faria
adormecer a consciência e resguardar o decoro. estava cansado das cortinas do
outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas cousas, que me traziam aos
olhos constantemente a nossa duplicidade.
97
Em Hamlet, Shakespeare revoluciona o drama ao tornar o príncipe protagonista da
encenação e, ao mesmo tempo, a consciência distanciada que reflete para o espectador os
questionamentos decorrentes da ação, tal qual um narrador situado no âmago da peça
teatral, e a personagem que sofre diretamente o impacto das primeiras emoções. A
ambivalência hamletiana das emoções contrárias em dinâmica interpenetração pode ser
comprovada na cena da “Ratoeira”, título irônico do drama representado com o objetivo de
95
SOUZA, 2005, 5.
96
PFEIFFER, 2001, 68.
97
ASSIS, 1997, 108-109.
43
denunciar os verdadeiros assassinos de seu pai. Repare-se que a ácida ironia, camuflada da
mais pura ingenuidade, perpassa toda argumentação de Hamlet:
HAMLET – Essa peça é do agrado de minha senhora?
RAINHA – Parece que a dama está fazendo promessas demais.
HAMLET – Oh, mas cumprirá a palavra.
REI – Conheces bem o enredo? Nada existe nele de ofensivo?
HAMLET – Não, não. Tudo é pura diversão; veneno de brinquedo. Não há
nada de ofensivo.
REI – Como se chama a peça?
HAMLET “A Ratoeira”. Por quê? Por metáfora. Essa peça representa
um assassinato cometido em Viena. Gonzaga é o nome do duque, e a esposa,
Batista. vereis daqui a pouco. É uma obra prima de perfídia. Mas que importa a
vossa majestade e a nós que temos a alma inocente? Isso o nos diz respeito. O
rocim esfolado sabe onde o inseto pica, todavia temos coisas sãs. (Entra Luciano)
Este é um tal Luciano, sobrinho do rei.
OFÉLIA – Representais com perfeição o papel de coro, meu senhor.
HAMLET Poderia servir de intérprete entre vós e o vosso amor, se
pudesses ver as marionetes tagarelando.
OFÉLIA – Vosso espírito é muito cortante, meu senhor, muito cortante!
98
A comparação de Hamlet ao coro tecida por Ofélia é perfeita, pois é justamente o
papel reversível e dinâmico de coro, mais precisamente, de coro parabático, o
desempenhado pelo príncipe. Hamlet está mutuamente presente e ausente da encenação,
sendo e não-sendo. De maneira que, dentro do espírito cortante, o protagonista traz o riso
dissipado pela perturbação do tio e da mãe e a amargura da vingança ainda não concluída.
Para Souza, na reversa harmonia da tragicomédia, o cômico parece mais cômico, e o
trágico se torna mais trágico”.
99
O grande companheiro de Hamlet em sua busca por explicações é, sem dúvida, o
espectador. Apenas o público poderia conhecer mais de perto a personalidade cindida e a
consciência ambivalente do protagonista, simpatizar-se com o drama e notar o alto grau de
humanidade do conflito hamletiano. A fim de dar conta dos seus objetivos contra o conúbio
entre o tio e a mãe, Hamlet finge-se de louco, conforme verificamos no diálogo com o fiel
Horácio:
HORÁCIO Está bem, meu senhor. Se durante a representação o Rei
dissimular o que quer que seja e alguma coisa escapar à minha perspicácia, eu pago
o furto.
HAMLET Eles estão chegando para a peça. Devo, novamente,
aparentar loucura. Vai procurar lugar adequado.
100
98
Idem, 2006, 65-66.
99
SOUZA, 2005, 5.
100
SHAKESPEARE, 2006, 61.
44
A falsa insanidade não é senão um procedimento de desautorização de toda e
qualquer atitude do protagonista. Estando louco, ou seja, suprimindo a razão de todo e
qualquer ato, Hamlet torna-se o grande personagem dramático regido pela livre alteridade
da scara. Ofélia lamenta em ver no homem amado a contradição constitutiva da
pluralidade de personalidades trágicas e cômicas numa mesma complexa unidade do ser e
não-ser:
OFÉLIA – Ó poderes celestiais, restituí-lhe a razão!
(...)
Oh! como é triste que um tão nobre espírito fique assim transtornado! O
olho do cortesão, a língua do estudioso, a espada do soldado, a esperança e a flor
deste belo reino, o espelho da moda, o molde da elegância, o centro de todos os
olhares, perdido, completamente perdido!(...) Oh! Como sou desgraçada! Ter visto o
que vi e agora o que vejo!
101
Na ficção tragicômica de Brás Cubas, o fingimento da loucura, é indubitavelmente
das grandes afirmações da ironia sobre a razão e a sandice. Trata-se também de uma
desautorização estabelecida pelo narrador contra o próprio discurso. O que poderia parecer,
a priori, o soterramento de tudo que é dito, passa, ironicamente, a se afirmar enquanto
possibilidade de todo dizer, de dizer o outro. Desde o início do romance, no capitulo VIII,
“Razão contra Sandice”, o conflito de vozes no interior da consciência do defunto autor
se faz presente. O tema do debate entre as vozes simetricamente opostas e complementares
é o mistério da vida e da morte:
- Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos,
cansada experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de
jantar daí à sala de visitas e o resto.
- Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na porta de um
mistério...
- Que mistério?
- De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez
minutos.
A Razão pôs-se a rir.
- Hás de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a
mesma cousa...
102
A frase constantemente repetida pela Razão simboliza a unidade do pensamento
racional, a falta de contradição, a verticalização do olhar e a luta travada contra a
101
Idem, 58-59.
102
ASSIS, 1997, 17.
45
ambigüidade e a obscuridade da dúvida. A ironia, que se compraz na reversibilidade entre
loucura e sanidade, permanece durante todo o romance até chegar ao ápice no capítulo
CLIII, “O alienista”, no qual a desautorização suprema da narrativa reflexiva se lança aos
dois principais pensadores do Humanitismo, teoria norteadora do discurso individualista e
corrosivo do defunto autor: Quincas Borba e Brás Cubas. Ao dizer o simples gracejo de que
seria nababo, Brás Cubas é surpreendido por Quincas Borba com um olhar de “certa cautela
e pena”. Atordoado, o narrador revela: “Ri-me a princípio; mas a nobre convicção do
filósofo incutiu-me certo medo”
103
. Note-se que a seriedade do pensamento filosófico se
mistura ao riso proveniente da auto-reflexão num mesmo universo regido pela ironia.
O jogo da hipocrisia social, semelhante à união obscura da mãe e do tio de Hamlet
que a sociedade fingia não reprovar, também perfaz todo o conluio amoroso de Brás Cubas
e Virgília. Embora almejem aparentar reserva e comedimento no trato público, os amantes
deixam escapar seu envolvimento aos olhares atentos da “terrível opinião, tão curiosa das
alcovas”.
104
Até para Lobo Neves, o marido traído parece pôr seus planos políticos, que
necessitavam, sobretudo, de uma vida conjugal imaculada, à frente do amor pela esposa. A
contradição entre o privado e o público, entre a dor e o riso, se no interior da
personagem dividida pelo impacto da leitura da carta que revelava o adultério: vieram
trazer-lhe um carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com mão trêmula”
105
e o riso
no encontro casual com Brás Cubas durante uma ópera:
Ele veio a mim, com muita afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos
do teatro, e falamos muito, principalmente ele, que parecia o mais tranqüilo dos
homens. Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas
torceu logo a conversação para assuntos gerais, expansivo, quase risonho.
106
2.5 - Shakespeare e Machado de Assis: uma filiação artística e espiritual:
Educados na escola da interação dialética dos contrários, Machado de Assis e
William Shakespeare, sob as formas narrativa e dramática, respectivamente, revitalizam em
suas obras o Satyrikon dionisíaco que exalta a mundividência tragicômica do mundo e dos
homens. O homem duplo em si mesmo é o grande personagem dos nios da prosa e do
103
Idem, 202.
104
Ibdem, 161.
105
Ibdem, 143.
106
Ibdem, 147.
46
verso, além de supremo narrador dos próprios anseios e tensões. Os homens shakesperianos
e machadianos, poetas originários de si mesmos, conformam na carne e no espírito a
ambivalência do ser e do não-ser, do bem e do mal, do riso e da tristeza, da vida e da
morte. A multiperspectiva destes protagonistas se deve à reiteração artística de insatisfação
humana com as oposições binárias do pensamento filosófico e autoritário.
Souza relembra em ensaio, tanto a afirmação de Machado de Assis em “Os Cegos”,
cuja “desconstrução irônica” privilegiava a natureza dual de tudo que brota e morre:
“Nós não somos nem espiritualista puro, nem materialista; harmonizamos as doutrinas de
ambas as escolas e seguimos assim um ecletismo com o qual nos damos às mil maravilhas”,
quanto a exaltação ao dramaturgo inglês, reafirmada em praticamente todas as suas obras
em crítica teatral, pela “fusão da tragédia e da comédia operada por Shakespeare sob a
forma de drama”.
107
É na fonte da perspectiva interativa e coadunadora da união dos opostos que
Machado de Assis bebe desde o início de sua formação artística. Trata-se de um espírito
armado, crítico, profundamente atento aos desmandos sociais e políticos. Irmanam-se,
através da linha infinita da literatura poética e originária, as obras gigantescas de Machado
de Assis e William Shakespeare.
3 – MACHADO DE ASSIS: A CONTRAFACE DE UM TEMPO:
A técnica narrativa machadiana revela-se singular também quando comparada à
produção romanesca que vigorava em seu tempo. Conforme notamos, a linhagem
tragicômica e poética machadiana não encontra intercâmbio em seu tempo, mas no espírito
dos criadores que não submeteram sua arte às convenções e ditames de suas épocas.
Educado na escola da subversão artística, não somente pelo confronto da verve crítica e
atenta à realidade instituída, mas também pela gênese originalíssima de sua obra, Machado
de Assis está para além do tempo, não aquém.
Compreender, portanto, o terreno onde floresce a literatura machadiana e,
conseqüentemente, no qual poliniza sua crítica é de suma importância para que se note que
a literatura poética é aquela que desestabiliza a presença do instituído e transcende a
normalidade que fixa os modos de pensar do homem e retiram a poeira incrustada sobre o
status quo.
107
ASSIS apud SOUZA, 2005, 8.
47
3.1 - A crítica irônica aos postulados realistas e naturalistas:
No século XIX, o naturalismo e o realismo dividiam o horizonte de perspectiva do
homem acerca do mundo e a respeito de si. O cientificismo, baseado no compromisso com
a análise esmerada das hipóteses científicas e na busca ferrenha de respostas por meio do
levantamento e investigação do universo humano racional e mensurável, limitava, sob a
perspectiva machadiana, a perspectiva do olhar sobre a vida.
Em contraposição ao espetáculo naturalista-realista, o olhar oblíquo do narrador
machadiano visa criticar ironicamente o limitado e conservador quadro ideológico do
pensamento em vigor. Notemos no capítulo “Formalidade” das Memórias póstumas de
Brás Cubas, como o defunto autor, envaidecido e exaltado, filia-se falsamente à lógica do
pensamento que ditava as convenções sociais e como o ácido agradecimento pela “partícula
de sabedoria” se esgarça através da ironia da distância sepulcral:
Grande cousa é haver recebido do Céu uma partícula da sabedoria, o dom
de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir!
Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço ainda agora no fundo do meu
sepulcro.
108
Em Machado de Assis, a contradição, o conflito, a subjetividade e a vontade de
poder humanos são realçadas em franco detrimento das teorias que ambicionavam
enquadrar os desejos aos postulados racionais. No prefácio à Comédia humana, Honoré de
Balzac explicita o sistema de pensamento dominado pela proclamação das descobertas
biológicas e medicinais, no qual o grande interesse era a compreensão e afirmação
científica de que o homem era produto do meio. Observe-se, contudo, que as teorias de
fundo naturalista não darão conta da totalidade das indagações de Balzac que culminam por
motivar um olhar mais realista sobre as implicações sociais da existência humana:
(...) muito antes dos debates aos quais deu ensejo, compreendi
que sob esse ponto de vista, a sociedade se assemelhava à natureza. Não
transforma a sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve
sua ação, em outros tantos indivíduos diferentes, à semelhança das
variedades em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operário, um
administrador, (...) um sábio, um homem de Estado, um comerciante, um
marujo, um poeta, um mendigo, um padre, são conquanto mais difíceis de
apreender, tão consideráveis como as que há entre o lobo, o leão, o asno, o
108
ASSIS, 1997, 178.
48
corvo, o tubarão, o lobo marinho, a ovelha, etc. Existiriam, pois, e
existirão sempre, espécies sociais como há espécies zoológicas.
109
O ideário estético de Balzac parece convergir, em algumas afirmações, com o
pensamento científico-naturalista: “Se Buffon fez um trabalho magnífico tentando
apresentar num livro o conjunto da zoologia, não seria desejável fazer-se uma obra desse
gênero com relação à sociedade?”
110
Pouco a pouco, entretanto, o prefácio toma contornos
de crítica irônica às contradições do estado social em confronto com a estabilidade da
natureza quando vista através das amarras do olhar da ciência:
Mas a natureza estabeleceu para as variedades animais limites
dentro dos quais a sociedade não podia permanecer. Quando Buffon
descrevia o leão, em poucas palavras nos apresentava a leoa, ao passo que
na sociedade a mulher nem sempre se limita a ser a fêmea do macho. Pode
haver num casal dois seres perfeitamente dessemelhantes.
111
em Balzac, indubitavelmente, o objetivo primordial de remontar, através de um
grande ciclo de romances, a sociedade francesa do século XIX. O autor ambiciona lograr a
reunião dos múltiplos caracteres e extratos sociais no painel realista da narrativa
documental. O gênio de Balzac acaba, porém, notando a impossibilidade de efetuar
perfeitamente a pintura e salienta a supremacia do homem em freqüente transição,
carregando em si todas as suas contradições e conflitos, em detrimento do raciocínio lógico
que à época imperava e que procurava delimitar as infinitas possibilidades de
personalidades e atitudes do ser humano ao seu rígido postulado. O escritor francês chega a
afirmar mais adiante que “infinita é a variedade humana” e fecunda, logo após, a célebre
frase: “O acaso é o maior romancista do mundo”.
112
O acaso, inclusive, pode ser a grande
companhia do estilo ébrio e andarilho de Brás Cubas. No capítulo “Volta ao Rio”, o
narrador não se furta em afirmar a possibilidade de o texto “falar” por si no enxurro da
consciência livre e da digressão irônica: “Vim... Mas não; não alonguemos este capítulo. As
vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo o papel, com grave prejuízo meu, que
sou autor.”
113
109
BALZAC, 1959, 11.
110
Idem.
111
Ibdem.
112
Ibdem, p. 14.
113
ASSIS, 1997, 48.
49
no itinerário naturalista, a arte se torna também um instrumento de análise da
sociedade. Ao escrever a obra Thérèse Raquin, Émile Zola deu deliberada origem ao
romance experimental. Esta nova via estético-expressiva era fundamentada na experiência
científica, almejava ir além da simples observação e imaginava experiências científicas que
pudessem responder às grandes questões da época. Sua ambição maior não era florear a
narrativa; mas, sim, ater-se aos aspectos mais degradantes e torpes de uma sociedade
corrompida como era a sociedade burguesa após a revolução industrial.
O engajamento político, a denúncia social e a preocupação com as camadas
pauperizadas da população proporcionam a criação de uma obra contundente como, por
exemplo, Germinal, que retrata a classe proletária em seu cotidiano de trabalho semi-
escravo numa mina de carvão. Leiamos um trecho de Germinal no qual fica clara a
exploração do homem pelo homem que, sob o prisma naturalista de Zola, conduz a uma
verdadeira “animalização” do humano:
(...) Talvez devesse tentar a mina, o velho podia não saber e
depois, estava resignado, aceitaria qualquer trabalho. Onde ir e em que
transformar-se nesta região faminta devido ao desemprego? Esconder atrás
de algum muro sua carcaça de cão vadio? (...) E a Voreux, do fundo do seu
buraco, com sua postura de bicho maligno parecendo cada vez mais
retraído, respirava agora mais grossa e amplamente, como que sofrendo
com sua dolorosa digestão de carne humana.
114
Num percurso artístico de oposição frontal aos fundamentos realistas e naturalistas,
Machado de Assis é contundente ao criticar os postulados em vigor. Em célebre análise de
O primo Basílio, Machado de Assis crítica os postulados da escola realista-naturalista, por
meio da corrosiva ironia que caracteriza seus textos:
A gente de gosto leu com prazer alguns quadros, excelentemente
acabados, em que o Sr. Eça de Queiroz esquecia por minutos as
preocupações da escola; e ainda nos quadros que lhe destoavam, achou
mais de um rasgo feliz, mais de uma expressão verdadeira; a maioria,
porém, atirou-se ao inventário. Pois que havia de fazer a maioria, senão
admirar a fidelidade de um autor que não esquece nada, e não oculta nada?
Por que a nova poética [realista] é isto, e só chegará à perfeição no dia em
que nos disser o número exato de fios de que se compõe um lenço de
cambraia ou um esfregão de cozinha.
115
(grifos nossos)
Machado de Assis, inteligentemente, separa Eça de Queirós da “geléia geral” de
seus contemporâneos. Conhece plenamente as qualidades literárias do autor português
114
ZOLA, 1981, 19.
115
ASSIS apud COUTINHO, 1980, 48.
50
(chega a dizer, quando do falecimento de Eça que “para os romancistas é como se
perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais válido”
116
), apontando,
atentamente, avanços na estética do autor português em relação à escola naturalista-realista
ainda que, visivelmente preso a ela sobretudo em suas primeiras obras como O primo
Basílio e O crime do padre Amaro. O insistente aspecto descritivo é, segundo Machado de
Assis, prejudicial para o fluxo da narrativa. Tal intenção remonta a tentativa de reprodução
mimética do painel social dos predecessores realistas de Queirós.
Vejamos a descrição do Conselheiro Acácio, em O primo Basílio, dando especial
atenção ao detalhe da descrição das partes anatômicas do corpo do personagem:
Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado
num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até a
calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de
uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca e aquele preto
lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à clava; mas não tinha o bigode:
tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca
tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas
grandes muito despregadas do crânio.
117
(grifos nossos)
Silviano Santiago, em famoso ensaio denominado Eça, autor de Madame Bovary,
também acentua a maneira com que os autores do século XIX “reinventavam” as teorias e
os modelos dispostos por grandes autores de obras cultuadas à época:
Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o
interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade do modelo, do
arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da
transgressão que se cria a partir de um novo uso do modelo pedido de
empréstimo à cultura dominante. Assim, a obra de arte se organiza a partir
de uma mediação silenciosa e traiçoeira por parte do artista que surpreende
o original nas suas limitações, desarticula-o e rearticula-o consoante a sua
visão segunda e meditada da temática apresentada em primeira mão na
metrópole.
118
A “reinvenção”, contudo, permanece presa às suas raízes e não ratifica, como vemos
em autores brasileiros influenciados pelo Realismo e pelo Naturalismo como Aluízio de
Azevedo e Júlio Ribeiro, uma ruptura cabal com a nascente científico-moralizante. O
pensamento lógico-racional, ao contrário, é absolutamente confrontado na narrativa irônica
116
ASSIS, 2004, 307.
117
QUEIRÓS, 2002, 35.
118
SANTIAGO, 1978, 58.
51
e reflexiva, à qual nos reportaremos na investigação da intertextualidade estabelecida por
Machado de Assis com Sterne e Xavier de Maistre em Memórias póstumas de Brás Cubas.
3.2 - O diálogo intertextual com Laurence Sterne e Xavier de Maistre:
Em texto dirigido “Ao leitor”, Brás Cubas discorre a respeito de suas influências
literárias e de como se plasmaram na escrita de Memórias póstumas. sob a máscara
dramática do defunto-autor, o narrador frio e impassível admite que não se consternaria ou
admiraria com seus prováveis “cinco leitores”, pois suas memórias tratam-se de “obra
difusa”, na qual “se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei
se lhe meti algumas rabugens de pessimismo”.
119
A forma livre do romance machadiano subverte o normativismo do cânone literário
que contornava o espaço beletrista do século XIX. De modo que o autor de Dom Casmurro
tem plena consciência da falta de leitores atentos para a originalidade da obra. Assim,
entender como se dá a influência literária e as conseqüências artísticas das obras de Sterne e
Xavier de Maistre para a literatura machadiana e, conseqüentemente, para a literatura
brasileira é imprescindível e fomenta o debate em torno da crítica machadiana aos modelos
de fixação do saber e do sentir.
A criação de uma nova novelística engendrada por Laurence Sterne e Xavier de
Maistre tem em Machado de Assis, certamente, um dos seus principais intercâmbios
literários. São autores que subvertem os ditames e estatutos proclamados em suas épocas
como “verdades inquestionáveis”: a verdade da arte, da ciência, da religião, da iniciativa
privada, da filosofia, da ordem e do progresso.
Antes, contudo, não nos esqueçamos de refletir acerca adoção, explicitada em
prólogo por Machado de Assis, da liberdade artística, ou da forma livre”, do francês
Xavier de Maistre. O ensaísta Antonio Candido, em À roda do quarto e da vida, numa
dupla alusão ao título da obra do francês e à abertura da terceira edição de Memórias
póstumas de Brás Cubas, assinala que não se deve esquecer da influência (“ainda que em
menor parte”
120
) de Xavier de Maistre na obra machadiana. Leiamos um trecho do ensaio
de Candido que também muito servirá para a compreensão do diálogo estabelecido entre
Laurence Sterne e Machado de Assis:
119
ASSIS, 1997, “Ao leitor”.
120
CANDIDO, 1989, 100.
52
Quando Machado fala em “maneira livre”, está pensando em algo
praticado por de Maistre: narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem,
sai da estrada para tomar atalhos, cultiva o a-propósito, apaga a linha reta,
suprime conexões. Ela é facilitada pelo capítulo curto, aparentemente
arbitrário, que desmancha a continuidade e permite saltar de uma coisa a
outra. Em vez de coordenar a variedade por meio de divisões extensas, o
autor prefere ressaltar a autonomia das partes em unidades breves, que ao
facilitarem o modo difuso, enriquecem o efeito do todo com o encanto
insinuante da informação suspensa, própria do fragmento.
121
No capítulo IX, intitulado “Transição”, o defunto autor tece uma das primeiras
alusões ao “método” digressivo (e que, paradoxalmente não deixa revelar na obra qualquer
“juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor”), irônico e auto-reflexivo
do romance de memórias, ressaltando a liberdade necessária ao vôo alado do processo
criativo:
De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a
rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é,
uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios,
mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe da vizinha fronteira,
nem do inspetor de quarteirão. É como a eloqüência, que uma genuína e
vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e cocha.
122
Note-se que no pinçar de um curto parágrafo do ensaio de Antonio Candido é
possível constatar boa parte das principais inovações estéticas do romance machadiano no
cenário literário brasileiro que se originaram a partir do diálogo intertextual com Sterne e
de Maistre: a narrativa de fundo psicológico, com a conseqüente valorização da
subjetividade, a digressão crítica, o ilogismo e, por fim, a fragmentação da unidade da
narrativa por meio da seleção e combinação das memórias, e não das ações, que satisfazem
as vontades do narrador, ao invés da sucessão cronológica de eventos.
Tal qual em Memórias póstumas de Brás Cubas, a narrativa de Viagem à roda do
meu quarto advém da relação singular que o narrador estabelece com o tempo e com o
espaço, da ambigüidade das relações humanas e da insatisfação contínua do homem com a
realidade limitada que se lhe apresenta. Esta nova visão, ou perspectiva, na qual figuram
todos os sentidos humanos, poderia ser concretizada literariamente por intermédio do
discurso fragmentado que prima pelo irracional em confronto com a lógica, a fim de
representar o estado psíquico momentâneo e a visão relativa de cada caráter ficcionalmente
121
Idem, 101.
122
ASSIS, 1997, 18.
53
representado. Desta forma, via desejo conjugado à memória, a digressão suspende a ação
contínua da narrativa calcada em ações para ceder terreno à narrativa de reflexões,
formando um pêndulo da inconsciência que oscila no misterioso limiar do tempo e do
espaço.
O estudo de Nicéa Helena de Almeida Nogueira, Laurence Sterne e Machado de
Assis – a tradição da sátira menipéia, reafirma a quebra com a “norma literária”; ou seja, a
subversão do modelo paradgmático da literatura empreendida pelos escritores. Para
Nogueira, o artista deve estar atento ao que a crítica convencionou como “objeto literário”;
pois, na busca pela originalidade, é justamente contra as formas cristalizadas da arte que os
verdadeiros criadores devem agir:
Além de justificarem a preferência por um estilo narrativo original e
independente, os narradores Tristam Shandy e Brás Cubas ridicularizam os críticos
com um discurso brincalhão e irônico, exaltando a transgressão das regras literárias
convencionais.
Os críticos do século XVIII censuravam os romancistas pelo desrespeito à
regra clássica das três unidades: tempo, espaço e ação.
123
A seguir Nogueira desenvolve os conceitos de auto-reflexão digressiva e do
privilégio do inconsciente enquanto vontade do homem, em detrimento da razão consciente
que apenas reproduz o código estabelecido. Com o objetivo principal de fundamentar a
interpretação de que as obras de Laurence Sterne e Machado de Assis encerram uma dura
análise da vida humana moldada pelo paradigma lógico-metafísico – que culmina na quebra
com a unidade de tempo, espaço e ação –, a pesquisadora salienta dois exemplos nos quais
os narradores, respectivamente de (a) Tristam Shandy e (b) Memórias póstumas de Brás
Cubas, dirigem-se a “críticos imaginários” (sempre ironicamente notados como
representantes dos poderes político e cultural):
(a) Todavia se o hipercrítico quiser examinar isto e resolver-se, ao fim e ao cabo, a
pegar um pêndulo e a medir a verdadeira distancia entre o toque da sineta e a batida
à porta, - e após verificar não ter excedido dois minutos, trinta segundos e três
quintos, - tomar a si insultar-me por tal quebra de unidade, ou melhor,
probabilidade de tempo; - eu lembraria a ele que a idéia de duração e de seus
modos simples advém tão-só do encadeamento e sucessão de nossas idéias, - e é o
verdadeiro pêndulo escolástico- (...)
(b) Meu caro crítico,
123
NOGUEIRA, 2004, 95-96.
54
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos, acrescentei:
“Já se vai sentindo que meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias”. Talvez
aches esta frase incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a
sua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que
esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece.
Quero dizer, sim, que em cada frase da narração da minha vida experimento a
sensação correspondente. Valha-me Deus! É preciso explicar tudo!
124
3.3- O tempo da memória versus o tempo cronológico:
Note-se que a noção de tempo em Memórias póstumas de Brás Cubas não é
construída de acordo com o percurso existencial do narrador, tampouco das demais
personagens. A perspectiva narrativa varia sempre para o local apontado pelo desejo de
relembrar/reviver do defunto autor. Daí, a digressão contínua, pois pouco importa o caso
relatado, mas a interpretação que se faz dele. Portanto, antes de guardarmos um fato na
memória, naturalmente atribuímos ou não importância ao ato que o originou.
Na narrativa de Memórias póstumas de Brás Cubas, o tempo não é benéfico, não é
parceiro da criação divina, não se constrói em acordo com o percurso cronológico ou
biológico das personagens. Muito pelo contrário, o tempo atua contra os caracteres tal qual
uma sombra ameaçadora e angustiante. Apenas o defunto-autor transcende comicamente a
contradição primordial da vida que não cessa em morrer, debochando da cisão entre o ser e
o não-ser, coadunado-os através da suprema ironia da complementaridade dos opostos
anteriormente separados:
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater dandula fazia-me muito
mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco, parecia dizer a cada golpe que eu ia
ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois
sacos, o da vida e da morte, a tirar as moedas da vida para -las à morte, e a
contá-las assim:
- Outra de menos...
- Outra de menos...
- Outra de menos...
- Outra de menos...
O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele
não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos.
Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o
relógio é definitivo e perpétuo; o derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e
gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.
125
124
Idem, 96-97.
125
ASSIS, 1997, 89-90.
55
Em relação à questão da falta de seqüência de eventos ou ações em Memórias
póstumas de Brás Cubas, Ronaldes de Melo e Souza demonstra que, por meio da contínua
digressão; isto é, da introspecção crítica do narrador, a ficção toma contornos mais
memorialistas sob o princípio da reflexão contínua do que de enredo de ações logicamente
concatenadas. O narrador machadiano abdica de contar uma história exterior, objetiva, para
contar uma estória interior, subjetiva. Antes da afirmação de Souza, leiamos mais um
trecho do romance machadiano, mais precisamente o capítulo IV, “A idéia fixa”, que
também explicita a posição irônica do defunto autor, falseando suas intenções, ludibriando
o método, angariando a simpatia do leitor de romances clássicos que espera
126
, e assim
permanecerá por toda a obra, pela narrativa de ações e não pelo conjunto de reflexões:
Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que
assaz fixo nesse mundo: talvez a Lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez
a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe
enquadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, porque ainda não
chegamos à parte narrativa destas memórias. iremos. Creio que prefere
a anedota á reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho muito
bem. Pois lá iremos.
127
Ocorre que a narrativa machadiana nunca chega “lá”, pois não objetiva um local
tranqüilo, uma moral tranqüilizante, um final pacífico, mas, sobretudo, perseguir as
infinitas indagações que se penduram em sua consciência e fazem as mais arrojadas
cabriolas; ou seja, não se permite enveredar pelos caminhos retilíneos que fixaram a
narrativa no ortodoxo e previsível fio narrativo do começo, meio e fim, ou no enredo de
ações sucessivas. É este pensamento taxativo e monótono a verdadeira “idéia fixa” que,
segundo Brás Cubas, levou a sociedade à profunda melancolia. Deste modo, fica mais
clara a colocação de Souza, em O estilo narrativo de Machado de Assis:
[Em Machado de Assis] o esboço de uma situação narrativa que
consiste em por em ação um pensamento constitui o testemunho
inequívoco da revolução estrutural a que Machado submete a trama de
efabulação romanesca. Não interessa tão-somente o que aconteceu e
porque aconteceu. O que fundamentalmente importa é o sentido que se
extrai do acontecido. Narrar não é apenas relatar, mas, sobretudo,
interpretar. E a estrutura interpretativa que singulariza a ficção
machadiana é dramática, e não sistemática. O pensamento não se expõe
126
Embora já tenha o narrador salientado no texto “Ao leitor” que “as duas colunas máximas da opinião” são
os leitores graves e frívolos. (ASSIS, 1997, “Ao leitor”)
127
ASSIS, 1997, 6.
56
teoricamente, porque se põe dramaticamente em ação na vivência concreta
dos caracteres.
128
4 – A NARRATIVA TRAGICÔMICA DE BRÁS CUBAS:
O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...
(Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)
4.1- A máscara: a multiperspectiva da narrativa meta-ficcional:
A máscara machadiana é a capacidade que possui o defunto autor de nadificar sua
personalidade única para, deste modo, personificar outros eus. Por meio de um profundo
fingimento, a alteridade do defunto autor das Memórias póstumas possibilita uma obra
multiforme: “supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo
brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e é todavia mais
do que passatempo e menos do que apostolado”.
129
Ao se reportar ao princípio da ironia
narrativa como resultado, em prosa, da parábase grega, Souza afirma o seguinte:
A ironia é uma parábase permanente, principalmente porque subordina o
acontecimento representado ao processo crítico da reflexão. A consciência crítica
da ironia parabática se evidencia na recusa sistemática da ilusão dramática, que
aparece pela primeira vez na dramaturgia aristofânica e, em seguida, comparece na
estrutura da nova comédia grega e latina, instaurando uma tradição dramática
radicalmente irônica.
130
128
SOUZA, 2000, 78.
129
ASSIS, 1997, 6.
130
SOUZA, 2000, 30.
57
Conforme dissemos, o romance Memórias póstumas de Brás Cubas é
profundamente irônico e, por este prisma de abordagem, fundamentalmente dramático. Na
narrativa em questão, o narrador atua, portanto, como ator dramático que freqüentemente
sai de sua personalidade e assume a ação de outros caracteres. Deste modo, o narrador
reflete não apenas sobre si mesmo, por meio das digressões irônicas, mas também sobre os
outros, por meio da máscara que toma dos outros “atores em cena”. O narrador machadiano
é, conjuntamente, coro/narrador reflexivo, personagem/ator, escritor/leitor, espectador das
ações mundanas/defunto autor criticamente distanciado dos eventos. A presumível perda de
onisciência de um narrador em primeira pessoa gramatical ganha em ampla dimensão
crítica quando o narrador, no ápice de sua alteridade, desempenha todo o
gênero de caracteres, desempenhando os papéis mais diversos, articulando uma
alternância sistemática de perspectivas, recusando sempre a possibilidade de se
imobilizar na representação doutrinária de um papel, na adoção monológica de
um ponto de vista normativo.
131
Por ser, ao mesmo tempo, um e outros, Brás Cubas vive em freqüente luta contra
sua própria consciência. Vejamos um exemplo quando o defunto autor tem a consciência
perturbada (entre o “vicio e a virtude”) e cindida no que concerne à sua relação com dona
Plácida que acobertava seus encontros com Virgília:
Se não fosse os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria como
tantas outras criaturas humanas donde se poderia deduzir que o vício é muitas
vezes o estrume da virtude. O que o impede que a virtude seja uma flor cheirosa
e sã. A consciência acordou e eu fui abrir a porta para Virgília.
132
Parece haver um Brás Cubas homem público, consciente, elevado, pomposo,
galante e que mantém a “utilidade relativa” da bondade sem deixar marcas, com os pés
galgando o chão da realidade e um Brás Cubas privado, egoísta, individualista, ferino,
voando no delírio da irrealidade e que também mantém, em sua contra-face a “utilidade
relativa” da maldade. Deste modo, tendo em vista a polifonia no interior da consciência do
narrador, Memórias póstumas engendra um discurso que desvela toda a diversidade da
alma humana, suas fraquezas e vaidades. E chega a inverter, todo despropósito, toda moral
vigente que prima pela bondade (e não pela inveja) como na ácida teoria do Humanitismo
131
Idem, 2001, 65.
132
ASSIS, 1997, 100.
58
a “lei do olho por olho, dente por dente”, na qual o homem luta por sua sobrevivência a
todo custo, mesmo que, para isto, tenha de desgraçar a vida alheia:
[Diz Quincas Borba] Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a
inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do
gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua
felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude. (grifos nossos)
133
Segundo Souza a auto-reflexão do narrador machadiano não se encerra somente na
sua condição de crítico de si e dos outros. Ela expande o olhar reflexivo e critica toda a
narrativa e ato de escrever, instaurando uma poética do romance dentro de um romance,
teorizando sobre literatura em meio a um fazer literário, a isto, denominamos meta-ficção
ou meta-narrativa:
A intrusão do narrador cumpre desempenho bem definido ao sustar a
ilusão ficcional e advertir ao leitor que não se deve confundir fato com ficção. (...)
a narrativa se credencia como obra de arte superior quanto mais refletir sobre o ato
de narrar. A ficção narrativa se notabiliza como metaficção. Nenhuma narração se
legitima se não inserir uma metalinguagem crítica no processo narrativo.
134
O início de Memórias póstumas pode ser caracterizado como meta-ficção,
vejamos a maneira como Brás Cubas reflete acerca do fazer literário e de como sua escrita
se comporta em oposição frontal ao modelo narrativo que era pregado nas doutrinas
estéticas então vigentes:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.
Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me
levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um
autor defunto mas um defunto autor (...)
135
4.2 - A parábase: a ironia multifacetada em Memórias póstumas de Brás Cubas:
A concepção de ironia deste estudo baseia-se, sobretudo, nos estudos de José
Maurício Gomes de Almeida, em A visão irônica em Memórias póstumas de Brás Cubas, e
Ronaldes de Melo e Souza, em ensaio intitulado Introdução à poética da ironia que, a este
respeito, assinala:
133
ASSIS, 1997, 167.
134
SOUZA, 2000, 31.
135
ASSIS, 1997, 1.
59
A determinação meramente verbal da ironia como figura do
discurso não atinge a dimensão essencial do princípio artístico da
composição irônica. A ironia não resulta tão-somente da soma de frases ou
segmentos irônicos. Na obra de arte regida pelo princípio da ironia, toda e
qualquer parte aparentemente não-irônica se torna radicalmente irônica.
136
A profunda reflexão tecida pelo narrador-protagonista Brás Cubas é o motivo
principal de escrita da obra e de “reescrita crítica” da condição existencial do próprio Cubas
homem pessimista, indiferente e desencantado com a vida degradada dos fins do século
XIX. O primado da discussão universal do personagem acerca da trágica condição humana
é entremeado pelo humor que, através da ironia poética, neutraliza o afloramento das
emoções e dos sentidos (o pathos), moldando o que se compreende como a tragicomédia
machadiana, ou, a nosso ver, a visão tragicômica de Machado de Assis sobre o drama
homem que habita o palco do mundo.
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o homem sai da tragédia existencial e
procura, distanciado dos outros, fora do palco – friamente – as respostas para o viver advém
de um tipo de humor profundamente corrosivo que desgasta ser e universo, homem e
mundo, definha o componente moral de Brás Cubas, todo o espaço narrativo e seus
respectivos personagens. A escolha de Memórias póstumas de Brás Cubas reforça-se
quando sublinhamos o intróito do estudo de Almeida:
(...) o melhor ponto de partida são as Memórias póstumas de Brás
Cubas, não pela posição central em todos os sentidos que este
romance ocupa na produção do autor, como porque nele, mais do que em
qualquer outra obra, os mecanismos da visão irônica se fazem presentes.
137
Mas que “mecanismos da visão irônica” seriam estes? Separamos o procedimento
técnico-narrativo que desencadeia a narrativa irônica em três momentos básicos: 1. o
narrador auto-reflexivo e a meta-narrativa que se coadunam na macro e na micro-narrativa
que prima pela crítica a todos os atores em cena inclusive o eu-narrante; 2. o tema da luta
dos homens pela manutenção do mais forte e, conseqüentemente, 3. o desencanto
machadiano que, pela grandiosidade emanada da tragédia humana, vai se confirmando
numa ironia menos cômica e mais macabra e funesta. Almeida afirma que em Memórias
póstumas, “o romance como um todo pode ser entendido como uma diversificação de
136
SOUZA, 2000, 27.
137
ALMEIDA, 1994, 82.
60
núcleos temáticos propostos, sob a forma explícita, ou implícita (...)”
138
E demonstra como
todos os assuntos estão intimamente conjugados e não podem ser analisados
separadamente:
Aos temas discutidos até agora a vida como sofrimento, como
flagelo, conjugada a um paradoxal impulso em direção a esta mesma vida;
a impassibilidade egoísta da Vida, enquanto princípio criativo, diante das
criaturas por ela geradas a estes temas associa-se outro, de importância
nuclear no universo machadiano, mormente nas Memórias póstumas de
Brás Cubas: referimo-nos ao da falta de sentido da existência do absurdo
irremediável da condição humana.
139
4.3 - A catarse: a travessia de Brás Cubas entre a galhofa e a melancolia:
A viagem de Brás Cubas é assinalada desde o início pela vocação do auto-
conhecimento. Machado de Assis salienta que, diferentemente das viagens dos escritores de
seu tempo, a travessia de Brás Cubas é “à roda da vida”.
140
A vida pode ser rodeada pelo
olhar multifocal de Brás Cubas porque é um verdadeiro palco em que forma encenadas
“peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada
farsa, os autos, as bufonerias, um pandemonium”.
141
A mascarada de Brás Cubas oscila permanentemente entre o sério e o jocoso, o
trágico e o cômico, o lamento e a chacota. O riso desatado ocorre na narrativa desde a
gargalhada de Pandora, mas não ssem a companhia do temor de Brás Cubas:
- Chama-me Natureza ou Pandora, sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura
soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as
plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.
- Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata, é sobretudo pela
vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
142
O riso catártico retorna no mesmo capítulo, junto ao medo, no discurso do próprio
defunto autor: “Não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir de um
riso descompassado e idiota”
143
No discurso das Memórias póstumas, o riso não é notado de
138
Idem, p. 80.
139
Ibdem, p. 81.
140
ASSIS, 1997, “Prólogo.”
141
Idem, 65.
142
Ibdem, 12.
143
Ibdem, 13.
61
maneira retórica ou com o efeito de purgar as emoções de terror ou aflição. Num
movimento paradoxal da narrativa que se contradiz ironicamente a cada justaposição frasal,
a função do elemento jocoso da narrativa parece ser, justamente, nunca separar o riso de
sua face complementar: o sofrimento incurável.
O emplasto Brás Cubas é a tentativa tragicômica de “aliviar a nossa melancólica
humanidade”
144
. Contudo, o projeto fracassa, dado seu altíssimo grau de fantasia, delírio,
vaidade e sede de lucro: “a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada
para o publico, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de
nomeada. Digamos: - amor da glória.”
145
E o que deveria remediar o sofrimento dos
homens, acaba por vitimar ironicamente o próprio idealizador com uma pneumonia advinda
de uma corrente de ar, talvez, numa num dos instantes em que “arejava a consciência.”
Para Sérgio Paulo Rouanet, o percurso contraditório do narrador Brás Cubas é
guiado pelo símbolo paradoxal de Saturno, o planeta das “antíteses”, ou dos “atributos
contraditórios”. O teórico aproxima a simbologia do planeta sempre ao caso entre Brás
Cubas e Virgília. Interessante, ainda, é o modo como se refere ao defunto autor
machadiano, corroborando a mundividência tragicômica da narrativa de Brás Cubas:
Esse palhaço-tirano é um ser saturnino regido pelo planeta da melancolia,
mas também pelas antíteses, o que explica seus atributos contraditórios. Saturno
aparece duas vezes no livro. Na primeira, Brás começa a cansar-se de Virgília e,
em vez de prestar atenção nas queixas da moça, observa no chão uma mosca a
arrastar uma formiga que lhe mordia o pé. Qual a importância desta cena do ponto
de vista de Saturno? (CIII). Na segunda vez, ele comenta o espetáculo das relações
amorosas que se sucedem umas às outras, todas efêmeras, todas condenadas ao
esquecimento, e decide que todo esse espetáculo fora posto em cena para divertir
saturno que estava muito aborrecido (CXXXV).
146
O teórico lembra que no discurso de Brás Cubas a vida pode passar por um processo
de irrisão tão profundo através da ironia um desenlace amoroso pode ser “ilustrado pela luta
de dois insetos, e a fugacidade da vida é um espetáculo montado para divertir um astro.”
147
Embora ocorra a dinâmica interpenetração do riso e da melancolia, a narrativa escrita com
“rabugens de pessimismo” e “tinta da melancolia”, Brás Cubas a vida como um
território aberto ao deleite, ao usufruto, à gozação. Oscila a voz narrativa entre a máscara
144
Ibdem, 3.
145
Ibdem, 3-4.
146
ROUANET, 2007, 220.
147
Idem, 221.
62
do menino mimado das primeiras páginas e o burguês autoritário da idade adulta aqui,
ironicamente, “o menino é pai do homem.”
148
A interpretação do sistema do Humanitismo
perpassa a noção de que o palco da vida pode ter apenas poucos protagonistas, aqueles que
sobrevivem à guerra pela vida, enquanto os personagens secundários, os excluídos,
subsistem para criar as bases propicias para o deleite das elites:
Mas ainda quando tais flagelos (o que era radicalmente falso)
correspondesse no futuro à concepção acanhada de antigos tempos, nem por isso
ficava destruído o sistema, e por dous motivos: porque sendo Humanitas a
substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do
mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; porque, ainda assim, não
diminuiria o poder espiritual do homem sobre a Terra, inventada unicamente para
recreio dele, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo.
149
A ironia de Brás Cubas é tão mordaz que revela a estrutura cruel e excludente da
sociedade brasileira talvez de forma mais pungente do qualquer outro panfleto ou
manifesto. Justamente porque nasce no terreno livre da literatura poética, que deve lutar
permanentemente para assim se manter. A narrativa plural, dialógica e democrática de
Memórias póstumas de Brás Cubas se notabiliza por encenar todos os valores morais e
ideológicos disponíveis no cenário histórico-social brasileiro. Contudo, não esgarça os
discursos quando em contato com os outros. Pelo contrário, a tensão originada a partir do
debate e da polêmica de vozes da narrativa machadiana fixa na literatura brasileira sua
maior representação no combate permanente pelos sem voz, pelos excluídos, ou
perversamente incluídos, do luminoso e diminuto palco regido pelo capitalista.
148
Título do capítulo XI das Memórias póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 1997, 20).
149
ASSIS, 1997, 168-169.
63
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67
RESUMO
LIMA, Francesco Jordani Rodrigues de. Memórias póstumas de Brás
Cubas: o princípio arquitetônico da complementaridade de opostos. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira, 2007, 70 fls.
Investigação do princípio estrutural regido pela dinâmica complementaridade e
reversibilidade de opostos em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. A
filosofia socrático-platônica e a cisão do pensamento poético e aglutinador. Mimesis e
poiesis: o conceito de arte entre a reprodução e a criação. A imitação de eventos e sua
concatenação lógica e verossímil em Aristóteles. Physis e poiesis, a essência do agir, como
68
motores de infinitas concepções de mundo e engendramento de personagens. A
complementaridade formativa do caos e do cosmos. O mito e o rito dionisíaco da vida
indivisível da morte. A máscara em sua duplicidade constitutiva: vazio e substância,
ausência e presença. A máscara como metáfora primordial da contraditória e complexa
condição humana. O drama tragicômico concatenado à narrativa. A absorção do
travejamento do drama tragicômico na narrativa machadiana. Aristófanes e o coro
parabático: o nascimento da ironia dramática. A moderna revisão shakespeareana da
dramaturgia. Sterne: a digressão irônica no romance inglês do século XVIII. Interpretação
de Memórias Póstumas de Brás Cubas sob três aspectos: a máscara (multiperspectiva e
reversiblidade), a parábase (ironia e digressão) e a catarse (a busca pelo conhecimento da
morte e da vida). A interpretação artística machadiana de Shopenhauer: o conceito
superficial do pessimismo. A função dinâmica do defunto-autor: Brás Cubas, o narrador-
personagem tragicômico no limar da vida e da morte.
ABSTRACT
LIMA, Francesco Jordani Rodrigues de. Memórias póstumas de Brás
Cubas: o princípio arquitetônico da complementaridade de opostos. Rio de
Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira, 2007, 70 fls.
Investigation of the structural principle conducted by the dynamic complementarity and
reversibility of the opposites in Memórias Póstumas de Brás Cubas, by Machado de Assis.
The Socratic-Platonic philosophy and the split of the poetical and agglutinant thought.
Mimesis and poiesis: the concept of art between the reproduction and the creation. The
69
imitation of events and its logical and likely concatenation in Aristotle. Physis and poiesis,
the essence of acting, as motor of infinite conceptions of the world. The formative
complementarity of the chaos and the cosmos. The myth of life inseparable from death. The
mask in its constitutive duplicity: emptiness and substance, absence and presence. The
mask as primordial metaphor of the contradictory and complex human condition. The
concatenated drama to the narrative. The absorption of the tragicômico drama in
Machado’s narrative. Aristofanes and the parabatic choir: the birth of dramatic irony. The
modern shakespearean revision of the dramaturgy. Sterne: the ironic digression in the
English romance of the 18
th
century. Interpretation of Memórias Póstumas de Brás Cubas
under three aspects: the mask (multiperspective and reversibility), “parábase” (irony and
digression) and catharsis (death to life and the inexistence of factual reality). Machado’s
artistic interpretation of Shopenhauer: the superficial concept of pessimism. The dynamic
function of the “defunto autor”: Brás Cubas.
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