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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Eliete da Silva Barros
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TRABALHO E EXPLORAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre na linha de
pesquisa Trabalho e Sociedade.
Orientadora: Profa. Dra. Iracema Brandão Guimarães
Salvador
2008
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ELIETE DA SILVA BARROS
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TRABALHO E EXPLORAÇÃO
COMISSÃO EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profª Drª Iracema Brandão Guimarães
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal da Bahia
______________________________________________________
Profª Drª Inaiá Maria Moreira de Carvalho
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal da Bahia
_______________________________________________________
Profº Drº Antônio Marcos Chaves
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia
Universidade Federal da Bahia
Salvador
2008
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“O valor de todo o conhecimento está no seu vínculo com as
nossas necessidades, aspirações e ações; de outra forma, o
conhecimento torna-se um simples lastro de memória, capaz
apenas - como um navio que navega com demasiado peso - de
diminuir a oscilação da vida quotidiana." (V. O. Kliutchevski )
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pai onipresente, força constante em minha vida.
À minha mãe, Olívia, que me deu o direito de existir e por ter me apoiado em todos os
momentos.
Á minha irmã, Elaine pelo apoio na hora do choro e desespero achando que não ia conseguir
concluir.
À Iracema Brandão Guimarães, prezada orientadora, pelo estímulo e orientações acadêmicas
durante o curso e produção da dissertação.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio
financeiro.
Às professoras Lídia Cardel e Emilene Morais, pelo olhar crítico e contribuições teóricas
durante a construção do projeto de pesquisa.
À professora e amiga Rita Chagas, pelo companheirismo nos piores e melhores momentos
dessa produção.
A Marcos, pela ajuda na construção de pontos importantes desse texto.
Aos professores Júlio Cezar e Fernanda Mota, que com o português e o inglês contribuíram na
construção desse texto.
Aos amigos Micael Cardoso e Rosângela Nicácia, pela presença, apoio, solidariedade e
companheirismo.
Aos amigos que direta ou indiretamente estiveram presentes nessa difícil caminhada em
direção à defesa do mestrado.
A todas as crianças que participaram da pesquisa concedendo entrevistas e participando do
grupo focal. E aos responsáveis pela permissão concedida.
5
RESUMO
Esta dissertação se propôs a compreender como se configuram as relações de trabalho da
criança na Feira de São Joaquim em Salvador, Bahia. A pesquisa visa também contribuir e
ampliar o entendimento do universo infantil da criança trabalhadora, dando “voz” à mesma, a
fim de possibilitar discussões relevantes ao mundo do trabalho, conhecer os significados
instituídos e instituicionalizados dentro da Feira de São Joaquim interpretados pelas crianças
que ali trabalham, assim como a perspicácia delas dentro da sociedade moderna. Quanto à
metodologia empreendida, fizemos uso da pesquisa bibliográfica e empírica e realizamos um
grupo focal com crianças que trabalham na referida feira. A pesquisa revelou que o número de
crianças que trabalham ou circulam na Feira de São Joaquim é bem menor, em relação à
primeira visita que fizemos em 1993, provavelmente devido ao aumento das pressões contra o
trabalho infantil. Os pais ou responsáveis pelas crianças que pesquisamos, também trabalham
na feira e alguns destes confirmaram fazer uso do trabalho infantil por uma questão de
necessidade e não o vêem como exploração. Acreditam que colocando as crianças próximas,
trabalhando, não permitem que fiquem na rua em atividades prejudiciais à sociedade e a elas
mesmas. A pesquisa também revelou que as crianças pesquisadas são oriundas da classe baixa
e moram em bairros periféricos e que gostam de trabalhar, por terem a possibilidade de
contribuir com sustento da família, entretanto, apesar disso, ficou claro que se pudessem
escolher prefeririam somente estudar. As respostas durante o grupo focal demonstraram que
apesar de menores de idade, as crianças possuem um senso de responsabilidade bem próximo
ao que se espera de um adulto, entretanto ao se depararem com a possibilidade de momentos
de diversão, não perderam a leveza e ingenuidade inerente à infância.
Palavras-chave: infância; trabalho infantil; relações de trabalho; feira de São Joaquim.
6
ABSTRACT
This dissertation proposes to understand how children’s work relations are configured in Feira
de São Joaquim at Salvador, Bahia. The research also aims at lengthening and contributing to
the understanding of the work-children’s universe, giving them the “voice”, in order to
provide relevant discussions to the world of work, know the established and institutionalized
meanings within Feira de São Joaquim, interpreted by the children who work there, as well as
their discerning within the modern society. As for the methodology applied, we made use of
the bibliographical and empirical research and accomplished a focal group with children who
work in the abovementioned open-air market. The research revealed that the number of
children who work or stay at Feira de São Joaquim is much less in relation to the first visit
that we made in 1993, probably due to the increase of pressure against child labor. The
parents or the ones responsible for the children, whom we researched, also work in the open-
air market and some of them confirmed that they make use of child labor for a matter of
necessity and do not see this act as an exploration. They believe that by having children next
to them, working, they do not allow them to stay in the streets involved in activities which are
harmful to the society and to themselves. The research also revealed that the children whom
we researched belong to a low class and live in the outskirts and that they like to work, since
they have the possibility to contribute to support the family, however, in spite of that, it was
clear to us that if the children could choose, they would prefer to study solely. The answers
during the focal group showed that although they are under the age, the children have a sense
of responsibility which is very close to what is expected from an adult, nevertheless, when
they face the possibility of enjoying moments of fun, they do not lose the lightness and
naivety inherent to the childhood.
Keywords: childhood; child labor; work relations; feira de São Joaquim.
7
SUMÁRIO
Agradecimentos
Resumo
Abstract
Introdução......................................................................................................................... 08
Capítulo I O Lugar da Infância...................................................................................... 14
1.1 O Lugar da Infância Brasil...................................................................................... 31
Capítulo II A Criança e o Trabalho.............................................................................. 39
2.1 As Faces do Trabalho Infantil................................................................................... 42
Capítulo III Legislação e Trabalho Infantil................................................................. 53
Capítulo IV O Comércio de Salvador e a feira........................................................... 68
4.1 A Feira de São Joaquim........................................................................................... 70
4.2 O mundo em miniatura............................................................................................ 75
Capítulo V Procedimentos Metodológicos: resultados da pesquisa.......................... 79
5.1 A pesquisa............................................................................................................... 84
5.2 As famílias.............................................................................................................. 87
5.3 Grupo Focal............................................................................................................ 88
5.3.1 Os resultados....................................................................................................... 89
Considerações Finais................................................................................................... 96
Referência Bibliográfica.............................................................................................. 100
Anexo........................................................................................................................... 104
8
INTRODUÇÃO
A espontaneidade é um dos componentes da
individualidade. Envolve certa dose de imaginação,
ousadia, risco e aperfeiçoamento do eu; permite que
o indivíduo se lance a novos territórios, tente novas
experiências e se aventure pelo desconhecido
(Moustakas, 1995).
O trabalho apresentado, intitulado Criança na Feira de São Joaquim: trabalho e
exploração é uma tentativa de dar “voz” a crianças em um espaço social específico: a Feira
de São Joaquim. Esclarecimentos mais aprofundados serão dados no decorrer desse texto, por
ora, inicialmente, informações sobre a pesquisadora e sua trajetória iniciam essa introdução.
Antes é importante salientar que “o universo infantil guarda especificidades que o
caracterizam como área sui generis nos estudos sociológicos. Sui-generis porque a sociedade
lhe permite o lugar do que não tem voz, daquele que não fala”. (NUNES, 2003, p. 27)
Paralelo à graduação em Pedagogia com habilitação em Orientação Educacional, feita
na Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação UFBa/FACED, cursava, em
1993 o curso de História na Universidade Católica do Salvador UCSal. Por motivos que não
cabem nessa exposição, concluí o curso de Pedagogia, não acontecendo o mesmo com o curso
de História. Entretanto durante a experiência deste último, vários trabalhos de pesquisa foram
desenvolvidos em diversas disciplinas. Dois deles resultaram em constantes inquietações e
indagações acerca do processo relacional e de trabalho vivenciado por crianças na Feira de
São Joaquim, em Salvador.
O primeiro contato, como pesquisadora, que se fez com a Feira de São Joaquim, foi em
decorrência da disciplina Teoria da História, ministrada pela profª. Yara Dulce Bandeira
9
Ataíde. Na época, agosto de 1993, foi solicitado aos alunos dessa disciplina, que fossem em
busca de crianças que viviam ou trabalhavam nas ruas para ouvir as suas falas, seus relatos. O
grupo no qual me inseri analisaria meninos e meninas que vendiam cigarros dentro do espaço
dessa feira, mas que não estivessem ligados direta ou indiretamente às famílias donas das
mercadorias comercializadas dentro dos boxes. A orientação era apenas para entrevistá-los,
entretanto, procuramos observar também como eles se relacionavam com os adultos feirantes
e com o mundo do trabalho. Algumas destas falas compõem o livro “Decifra-me ou devoro-
te”, escrito pela profª. Yara Dulce e publicado pela editora Loyola, em 1995.
Em 1997, ao participar de nova pesquisa: A Análise em um Ambiente Social onde
existissem múltiplos referenciais e relações complexas, pela disciplina Estudos Etno-
Antropológicos, ministrada pela profª. Lídia Cardel, novamente a Feira de São Joaquim foi o
campo de trabalho de nossas observações, objetivando analisar as relações de convivência dos
feirantes com as crianças trabalhadoras, além da organização do espaço físico e a distribuição
organizacional do local.
A observação das relações de convivência entre crianças trabalhadoras e os feirantes era
como a continuidade da pesquisa de 1993 apesar de não ter sido esse o objetivo , além é
claro, de um desejo de compreender melhor esse universo, a princípio desconhecido e não
valorizado na literatura acadêmica. Justo se fazia então, dado a esse evidente contexto, rever
conceitos e pré-conceitos de que crianças que trabalhavam nas ruas ou são ladrões, ou são
prostitutas, independente da sua origem ou de suas necessidades individuais e familiares
deles.
Consideramos as discussões relativas ao mundo infantil bastante pertinentes,
principalmente no que tange à criança que trabalha (e nem continuamente estuda e, quase
sempre, mantém a família), pois é preciso compreender como elas se constroem enquanto
indivíduos, quais símbolos reconhecem no mundo dos adultos e quais significados inserem no
seu espaço específico de ser criança, isto é, em seu período de desenvolvimento infantil
psico-afetivo, sócio-relacional, cultural, familiar e educacional para, ao adentrar no mundo
do trabalho adulto, não ser “engolida” pelas experiências de quem já as possui.
A aparente parte frágil dessa intricada teia de relações a criança , precisa desenvolver
estratégias próprias para sobreviver nesse universo adulto necessário à obtenção de ganhos
para sua subsistência, bem como desenvolver comportamentos que o façam ser aceitos em um
mundo “não destinado a ela”. Afinal, segundo a Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso
33: é vedada a admissão no mundo do trabalho à crianças com menos de 14 (quatorze) anos.
10
E, para o Estatuto da Criança e do Adolescente, a permissão só acontecerá em caso de ser o
menor um aprendiz.
Nos elementos acima citados subjaz, também, a justificativa desse trabalho. Importante
se faz, ainda, realizar essa pesquisa na perspectiva de ampliar o entendimento desse universo
infantil da criança trabalhadora, para possibilitar discussões relevantes ao mundo do trabalho,
conhecer os significados instituídos e institucionalizados dentro do espaço/ambiente da Feira
de São Joaquim interpretados por essas crianças (ainda em desenvolvimento), assim como a
perspicácia delas dentro da sociedade moderna, para que se possibilite uma revisão de muitos
conceitos do universo infantil diante do fenômeno a ser pesquisado.
Contribuir para o que, segundo Ataíde (1995), é relevante na compreensão do trabalho
infantil:
Nesta batalha pela vida, para manter-se fisicamente íntegros até o dia
seguinte, não podem elaborar conceitos abstratos e complexos, mas
conseguem captar com surpreendente intuição e distinguir com rara
perspicácia em múltiplas facetas do mundo circundante, das suas realidades
poliformas e do jogo de intenção das pessoas que os cercam. Desenvolvem
com muita profundidade a intuição e o instinto de defesa e tendem a tornar-
se auto-suficientes, conservando, porém, a consciência de que são crianças.
(p. 160-161).
Diante do exposto, o que se pretende com essa dissertação é propiciar um novo e
qualitativo olhar sobre o indivíduo-criança que trabalha. Como diria Bourdieu (1989), “Trata-
se de produzir, senão ‘um homem novo’, pelo menos, ‘um novo olhar’, um olhar
sociológico”. (p. 49)
Esse estudo pode e deve proporcionar mais um conhecimento sobre a infância inserida
no mundo do trabalho e re-avivar discussões, na perspectiva de nos fazer compreender ainda
mais as construções realizadas pelos “adultos mirins”, não reconhecidos institucionalmente.
A leitura dos clássicos, Marx, Durkheim, Weber e Bourdieu como pré-requisito para o
ingresso no mestrado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, indicou que a
temática demonstrava ser muito mais convergente com a Sociologia do que com a área de
Educação.
11
Antes de decidir sobre quais dos dois mestrados iria concorrer, foram analisadas
criteriosamente questões referentes a linhas de pesquisa, possíveis orientadores e
principalmente, interesse na discussão. Nessa primeira caminhada, as respostas estavam
sempre direcionadas à Sociologia, pela profundidade a que se poderia ir com os teóricos da
área e principalmente porque o discurso circundava muito mais questões sociológicas do que
educacionais. Muito se incentivava quanto ao aprendizado que se adquiriria e os ganhos que a
pesquisa teria não se relacionando tão fortemente com Educação.
Desafio lançado, etapas gradativamente conquistadas e finalmente a aprovação final.
Uma área familiar pela curiosidade, mas nem tanto para leituras específicas e densas
propostas pelas disciplinas obrigatórias e optativas.
Este foi o maior desafio: ler os principais clássicos em Teoria Social Clássica e
compreendê-los “profundamente” (isto é de fato impossível) a ponto de poder apresentá-los
em grupos, que em associação com Teoria Social Contemporânea uma vez que são
interdependentes proporcionou o conhecimento dos teóricos chamados de contemporâneos e
contribui ainda mais para o entendimento dos clássicos, tão necessários para entender a
sociedade, entender as Ciências Sociais.
Em Metodologia, textos e discussões com o enfoque antropológico, apresentando assim
estratégias metodológicas para pesquisas antropológicas, não atendendo ao desejo da grande
maioria dos mestrandos.
Teoria das Cidades, orientada pela professora Bárbara Freitag e Estrutura Urbana e
Mercado de Trabalho, pela professora Iracema Guimarães, foram disciplinas importantes e
bastante relacionadas ao objeto que se deseja pesquisar por compor um “pano de fundo”
teórico para a construção do texto. A disciplina orientada pela professora Iracema Guimarães
contribuiu significativamente com uma literatura específica sobre trabalho formal e informal,
o urbano, sociedade, globalização, neoliberalismo, precarização do trabalho e dinâmica das
cidades utilizando-se da discussão teórica de autores importantes como Bárbara Freitag,
Walter Benjamin, Castells, Kátia Matoso, Deddeca, Sassen, Chahad, entre outros.
A disciplina Pesquisa Orientada tinha como principal objetivo compreender através da
apresentação individual sobre qual objeto seria feita a pesquisa, bem como todos os outros
elementos de um projeto de pesquisa. O tema a que se propõe esse projeto foi tido pelos
professores e colegas de turma como de significativa relevância e orientações foram dadas,
tais como: não separar filhos de feirantes e crianças que não são filhos de feirantes; deixar
12
muito explicado porque a Feira de São Joaquim; entrevistar os feirantes e as famílias das
crianças; precisava ficar claro como seria o acompanhamento a essas crianças; acrescentar ao
texto as políticas sociais para crianças que trabalham; fazer uma relação com a escola, com o
aprendizado de um modo geral, entre outras. Esta disciplina acrescenta muito para a pesquisa,
indica livros que devem servir de base teórica, além de nos inquietar ainda mais para a
pesquisa. Esta disciplina é importante na medida em que associada às orientações da
professora Iracema Guimarães, colocam o mestrando sempre em “ponto de ebulição” para re-
ver o que já foi produzido, além de indicações bibliográficas importantes para o marco
teórico.
Paralelo à freqüência nas disciplinas, o projeto “andou” com as orientações dadas pela
professora orientadora, Iracema Guimarães, em direção ao exame de qualificação e
posteriormente à defesa da dissertação. Nessa trajetória estão a retomada da leitura dos
clássicos, principalmente Marx e Durkheim. Avanços em leitura de Bourdieu, Milton Santos,
Cheywa Spindel, Alvim & Valladares, todos os autores que falam sobre trabalho formal e
informal, trabalho infantil, PNAD, etc. Leituras de periódicos do CRH, Revista Brasileira de
Estudos da População, Bahia Análise & Dados e etc. Além, é claro, de “visitas” á feira como
mera observadora, exercitando o olhar do flâneur de Walter Benjamin. Estas incursões ao
campo, já possibilitaram detectar grupos de crianças que trabalham com os adultos nos boxes
da feira e grupos de crianças que transitam pelo espaço e aparentemente não possuem algum
vínculo com os feirantes. Em sua maioria são meninos e fazem todo tipo de serviço, desde
carregar sacolas das senhoras até se responsabilizar (levanto essa hipótese por ter observado
por um período significativo de tempo, algumas crianças permanecerem sozinhas atendendo
aos clientes que chegavam para comprar) pelo box.
Enfim, um trabalho diário de fazer e refazer o texto, tirando e acrescentando
informações, revendo a metodologia e formatando o texto para adequá-lo às normas técnicas e
às sinalizações da orientadora em direção ao exame de qualificação.
Cumprida a etapa da qualificação, após sinalização de toda a banca, o trabalho segue e
assim tem que ser, pois é preciso apresentar ao leitor o resultado dessa caminhada. Esse fruto,
agora concluído será apresentado ao leitor através de cinco capítulos.
No primeiro capítulo, O Lugar da Infância, será apresentado qual de fato é esse lugar
da infância, desde as primeiras civilizações até as atuais, não deixando de mencionar em
tópico específico a questão do Brasil, situando a infância no contexto da sociedade brasileira.
13
A Criança e o Trabalho é o título do segundo capítulo. Neste, uma discussão sobre
trabalho informal, com um levantamento dos principais conceitos acerca do termo
informalidade, para assim poder situar a questão do trabalho infantil e consequentemente
compreender como este se apresenta tanto no mundo quanto no Brasil.
Com o terceiro capítulo, Legislação e Trabalho Infantil, será possível conhecer de
forma criteriosa todas as leis que a bibliografia disponível pôde oferecer referentes à
infância e à regulamentação e controle do trabalho infantil. É um apanhado histórico.
O quarto capítulo, O Comércio de Salvador e a Feira, traz a contextualização do
comércio de Salvador no século XIX, enfocando a importância das feiras livres para a
sociedade de um modo geral, até chegar na especificidade da Feira de São Joaquim, locus
dessa pesquisa, informando historicamente a sua importância social e econômica, bem como
quais sujeitos a compõem e o lugar da criança no mundo do trabalho ali desenvolvido.
No quinto capítulo, Procedimentos Metodológicos: resultados da pesquisa, é
abordado como se pensou o andamento da pesquisa, quais objetivos e perguntas foram feitas
antes de colocar em prática e projeto, para em seguida indicar como efetivamente a pesquisa
se deu, quais problemas enfrentou, quais inquietações e consequentemente quais resultados
pode, finalmente, apresentar.
14
Capítulo I
1. O LUGAR DA INFÂNCIA
O desenvolvimento de qualquer ciência só pode
ser compreendido se o mergulhamos em
determinações políticas, econômicas e sociais.
Tratando-se de uma ciência aplicada à educação,
tem-se de levar em conta não apenas o processo
histórico da ciência, mas também o caráter da
educação como fenómeno que ocorre em
determinada sociedade, num momento determi-
nado de sua história.” (Goulart, 2000).
Atualmente muito se tem discutido sobre a infância
1
, entretanto o entendimento do
espaço/tempo/infância é relativamente recente. A visão antropológica mostra que a criança
participa de grupos sociais quando se discute a sua formação de grupos tomando como base
interesses e problemas mútuos. Segundo Shapiro (1956), o fator em que é possível reconhecê-la
como tal, está relacionado à divisão por idade, entretanto diz ele: “Embora em geral as crianças
tenham seus próprios grupos sociais, como os escoteiros em nossa sociedade, estas unidades, na
maioria dos casos, não têm grande influência na comunidade como um todo”. (1965, p. 352)
Compreender a não importância dada à criança enquanto grupamento social leva-nos a refletir
sobre a necessidade de alteração de posição para assim adquirir status social. Sociedades primitivas
proporcionavam rituais para que a criança após algumas tarefas ou provas ascendesse à posição de
adulto, permitindo assim que fizesse parte ativa da comunidade social, entretanto Shapiro (1965)
alerta que nem todas as sociedades se comportam da mesma maneira. Assim sendo, está claro que
em maior ou menor grau todas as sociedades precisaram lidar com a infância e consequentemente
com a criança e nesse ínterim é possível perceber características padronizadas assim como
1
O autor, Philippe Áries (1981), utilizado como base teórica nesta exposição utiliza o termo infância e criança
no decorrer do seu livro, sem fazer nenhuma distinção conceitual.
15
características que tornam alguns povos bastante singulares no tratamento dado à infância. “A
infância pode apresentar variações impressionantes, de uma sociedade ou de um tempo a outro.
Algumas sociedades admitem o trabalho da maior parte das crianças pequenas, e, com freqüência,
trabalho pesado.” (STEARNS, 2006, p. 12)
Demonstrar como crianças são percebidas nas diversas sociedades é bastante complicado
segundo Stearns (2006), pois estas não deixam registros, a história é contada a partir dos adultos e
ainda segundo ele “é mais fácil tratar historicamente da infância do que das crianças em si, porque a
infância é em parte definida pelos adultos e por instituições adultas.” (p. 13). Nessa perspectiva uma
das grandes dificuldades dessa pesquisa foi encontrar definição conceitual para criança e infância e
o leitor mais atento vai verificar que os dois termos são usados “livremente” no decorrer do texto
seguindo muito as idéias dos diversos autores, que também não definem os dois termos sem que
definamos um e outro. Entretanto concordamos com Peter Stearns, quando afirma ser a infância
uma construção social que varia de sociedade para sociedade em função das compreensões sobre o
termo. Para reforçar, fomos em busca de Berger & Berger (1980) quando afirma que, “[...] a
infância depende de construção social. Em outras palavaras, a sociedade dispõe dum campo
bastante amplo ao decidir o que será infância.” (p. 209) E é com essa compreensão que
consideramos significativo compor esse texto com a apresentação, mesmo que sucinta, de como as
diversas sociedades ao longo da história compreendem e interagem com a infância.
Nos primórdios da humanidade, as comunidades viviam do que conseguiam com a caça e
com a coleta de alimentos. Eram comunidades nômades que em função da escassez de alimentos
precisavam se deslocar constantemente. Os registros sobre a infância no interior dessas
comunidades estão relacionados às “evidências [que] decorrem de resquícios materiais somados à
observação de sociedades caçadoras-coletoras que sobreviveram nos tempos modernos.”, segundo
Stearns (2006, p. 21). O que se pode deduzir em função dessas observações diz respeito a uma
infância submetida a uma série de limitações de recursos e à exigência de sair em busca de comida,
ou seja, se tornava tão responsável pela alimentação quanto os adultos, sem distinção. É possível
deduzir que diante das grandes distâncias a serem percorridas, quanto menor o número de crianças
de colo, melhor. Esse fato “colocava limites definidos sobre a taxa de natalidade.” (Idem, ibidem, p.
22). O autor afirma terem sido encontradas evidências de que cada família não possuía mais que
quatro crianças, e isto estava muito relacionado à questão da quantidade de alimento que precisava
estar disponível para todos como também à dificuldade existente em se transportar muitas crianças
pequenas.
Os pequenos eram catadores de frutas, sementes, etc, aproveitavam o tempo livre para brincar
em grupos com crianças da mesma idade e algumas vezes com os adultos e até o início da
16
adolescência não caçavam. Segundo Stearns (2006) era comum em sociedades caçadoras-coletoras
a apropriação de rituais para introduzir meninos na tarefa de caçar e isso pode ser comprovado nas
evidências de pinturas rupestres que “mostram adultos acompanhado garotos maiores,
aparentemente seus filhos, no treinamento de caça.” (p. 22)
Exibição de proezas na caça é ainda hoje fundamental nos rituais de iniciação em
algumas sociedades caçadoras-coletoras, e sem dúvida foi muito difundida no
passado. Sua importância foi mais que simbólica: o ponto em que os garotos
atingiam a idade de prover sua própria subsistência e auxiliar a família era crucial
nas condições rigorosas em que os bandos de caça operavam. (p. 22)
A agricultura substitui a caça e a coleta e se difunde, transformando o costume da maioria
das sociedades. “De forma crescente, a agricultura tornou-se o sistema mais comum para a
humanidade e portanto para a infância.” (STEARNS, 2006, p. 25)
Com a mudança de modelo econômico muda-se também a forma de encarar a infância e
consequentemente o sentido de utilidade desse período. Como foi exposto, nas sociedades
caçadoras-coletoras, a criança só tinha maior utilidade quando atingia a adolescência. Nas
sociedades agrícolas “o trabalho produtivo passou a se constituir na principal definição da infância
na maior parte dos tipos de sistema agrícola incluindo aquelas dedicadas a artesanato e manufatura
doméstica.” (p. 26). Para cada fase sua respectiva tarefa: as crianças pequenas ajudavam as mães
nos serviços domésticos; as que fossem um pouco mais velhas tinham como responsabilidade tomar
conta dos animais de criação e ajudar no campo em atividades não tão pesadas; os adolescentes iam
à caça e assim auxiliavam a produção principal, mas segundo Stearns (2006), “o ponto-chave era a
atividade de trabalho regular como parte da equipe de trabalho da família.” (p. 28)
A sociedade agrícola apresenta um novo olhar sobre a infância, pois esta passa a ter uma
importância para o provimento da família, através do trabalho que desenvolve, muito maior do que
era percebido na sociedade anterior. Assim segundo Stearns (2006), é possível perceber o aumento
das taxas de natalidade nessas sociedades e um interesse dos pais em se utilizar do trabalho das
crianças o máximo de tempo possível e com esse intuito deixavam para ter os filhos a partir dos 40
anos de idade, retardando assim a maioridade das crianças.
Aqueles que resolvessem casar poderiam fazer desde que prometessem continuar ajudando
a família. As cerimônias religiosas passam a ser o símbolo de passagem da infância para a
maturidade, nessas sociedades. “Esses eram rituais solenes e muito importantes, mas não
emblemáticos de independência econômica como as façanhas na era da caça.” (Stearns, 2006, p. 29)
17
Diante do exposto não se pode deixar de considerar a importância das sociedades agrícolas
para o entendimento da infância, principalmente no que tange ao uso da força infantil como meio de
subsistência e principalmente ocupando o status de membro de equipe de trabalho familiar que junto
com os adultos se tornaria responsável para prover o sustento dos demais e de reconhecer que
muitos dos hábitos que mantemos, ainda hoje, têm gênese nesse período.
Nós ainda organizamos o ano escolar baseado na necessidade de as crianças
estarem livres no verão inicialmente para trabalhar nos campo, agora livres para
as mais imprecisas e variadas agendas. Nós ainda nos agarramos a algumas
distinções entre meninos e meninas que foram forjadas com a agricultura, embora
muitas delas não façam o menor sentido agora. Muitas pessoas hoje em dia
continuam a acreditar que uma dose de agricultura, ou ao menos de vida no
campo, será benéfica às crianças da cidade [...] (p. 34).
Nunca é demais ressaltar que sociedades agrícolas trazem informações relevantes para as
sociedades modernas e dentre estas, as chamadas clássicas, tinham modos diferentes de conceber e
interagir com a infância.
As sociedades clássicas são um importante manacial de dados para compreensão da
infância. Segundo Stearns (2006) é importante salientar que as crianças estavam estreitamente
ligadas ao grupo social no qual nasciam. Assim é que na Mesopotâmia, crianças nascidas de pais
escravos, “herdavam a escravidão, a menos que fossem libertadas explicitamente.” (p. 38). Já em
Roma se um dos progenitores fosse livre, a criança, seria livre.
Um outro dado estava relacionado a importância destinada à hereditariedade. Nas
civilizações antigas não se incentivava disputas entre familiares para que fosse assegurado que a
propriedade familiar passasse de geração a geração. Entretanto, segundo Stearns (2006) a forma de
disputa estava disfarçada pela distinção que se fazia entre irmãos mais velhos e irmãos mais novos e
principalmente entre meninos e meninas, determinando quem, na hora de repartir a herança, tinha
mais direitos. Sendo assim “a insistência na herança acabou produzindo um instrumento disciplinar-
chave para manter as crianças perto da família, fornecendo mão-de-obra até os últimos anos de
adolescência, ou mesmos mais.” (p. 39)
Algumas sociedades antigas por dominarem a escrita, vão oferecer para um grupo
privilegiado de crianças, algo que será de suma importância na era moderna: a escolarização. Essas
crianças todas pertencentes à classe mais alta e, especificamente meninos, já denotam o caráter
elitista de ser letrado, separando de quem deve trabalhar. “A essência da hierarquia, que via a
18
sociedade dividida entre classe alta e classes baixas, refletiu-se amplamente na infância, separando a
infância a ser educada da infância a ser encaminhada para o trabalho.” (STEARNS 2006, p. 41).
Para estas a educação, estava assim definida:
Escrevendo após o período clássico, após 1602 e.c., Sima Guang mantinha o
espírito confuciano: ‘Com 6 anos , as crianças deveriam aprender o nome dos
números [...]. Aos 8 anos quando entram e saem pelas portas e portões [...]
precisariam ir depois dos mais velhos. Este é o começo da aprendizagem do
respeito. Aos 9, devem ser ensinadas a numerar os dias. Aos 10, devem ser
encaminhadas para um mestre externo, e ficar com ele e dormir fora de casa.
Passarão a estudar escrita e cálculos.’ (p. 44)
As famílias mais pobres davam às suas crianças um tipo de educação em que possibilitasse
algum dinheiro para ajudar a prover o grupo familiar, principalmente as meninas que aprendendo a
dançar e a cantar poderiam se tornar concubinas de algum senhor mais abastado da sociedade.
Já na China era claro o interesse pela hierarquia e pela ordem e por isso tinha regras bem
claras para a infância a esse termo, punindo severamente os desobedientes. Para tanto a China dita
todas as normas que crianças devem seguir e normas que seus respectivos pais devem cumprir no
trato com a infância, entretanto, segundo Stearns (2006), foi a China que “tornou mais complexa a
definição de infância”. De acordo com o autor:
A primeira infância era claramente identificada e se encontrava livre da disciplina
severa. Cerimônias marcavam o final da infância: aos 15 anos, as meninas
podiam começar a usar grampos, e aos 20 anos os rapazes recebiam chapéus. No
entanto poderosas famílias ampliadas e a alta valorização da lealdade para com os
pais podiam retardar a maioridade completa por um período indeterminado. (p.
43)
Para essa sociedade as atitudes dos pais perante os filhos, severas ou não, eram protegidas pela
lei. Toda a desobediência era punida e nenhuma criança tinha o direito de envergonhar os pais,
entretanto “leis que protegiam diretamente as crianças eram menos elaboradas.” (p. 43). Contudo
elas precisavam nascer, por isso o Estado protegia as mulheres grávidas, mas “A dinastia Qin
permitia a matança de crianças defeituosas, porque os seus cuidados sairiam muito caro.” (p. 43). Se
a situação econômica não fosse favorável, as meninas seriam eliminadas ou então vendidas como
escravas como forma de conseguir dinheiro e ajudar no sustento da família.
19
A presença do Estado, já na gravidez da mãe, prolongar-se-á por toda a vida.
Mais do que um indivíduo, a criança insere-se na dicotomia mundo
privado/mundo público por um processo rígido de autoridade em que vai
assimilar formas de comportamento, normas sociais, uma ordem que garanta a
reprodução ampliada de valores dominantes. (NUNES, 2003, p. 96)
Esse fato não dá conta de toda a sociedade chinesa, pois conforme Stearns (2006) existem
evidências de que “Algumas famílias podem ter sido menos obstinadas do que a norma confuciana,
expressando afeição [às crianças] de maneira mais aberta.” (p. 46) A China é um dos exemplos
sobre o trato com a infância, entretanto outras civilizações como Grécia, Roma e Índia, também
tiveram crianças e com elas distinções de compreensão e interação.
Na Grécia e em Roma, as crianças tinham maior ligação com as mães do que com os pais. Isto
se deve provavelmente, segundo Stearns (2006) ao fato de ser numerosa a quantidade de adultos em
volta da criança, além de não haver estabilidade nas famílias, pois os divórcios eram freqüentes.
Muitas delas sequer chegavam a andar, pois após o nascimento eram mortas, fazendo com que as
taxas de mortalidade fossem bem altas. “O infanticídio feminino era amplamente adotado. Segundo
estimativas, 20% das meninas nascidas em Atenas foram eliminadas. Roma pode ter sido um pouco
mais condescendente, mas também se descartou de alguns meninos.” (p. 49).
As que tinham a sorte de não serem mortas, após oito dias de nascidas, passavam por uma
cerimônia para selar o nascimento. Nesse ritual recebiam um colar, chamado de bulla, que os
protegia dos maus espíritos. Assim como no nascimento, a passagem para a fase adulta, também era
marcada por um ritual, que acontecia em torno dos 15 anos de idade. No caso dos romanos, o
menino deixava de usar o colar e passava a usar roupa de adulto, chamada de toga. (Stearns, 2006).
Meninos e meninas recebiam atendimento diferente no que se refere ao acesso à educação.
Como já exposto anteriormente, aos meninos era hábito ter acesso aos ensinamentos escolares e às
meninas, se pertencente à classe alta, poderiam ser favorecidas com professores destinados a elas.
“Nas sociedades clássicas, o que não é de causar surpresa, o acesso à escolaridade distinguia a classe
alta das classes baixas, embora de certa forma, a escolaridade, como forma de promover futuros
avanços para os filhos, se estendesse às camadas inferiores e às da elite.” (p. 50)
Segundo Berger & Berger (1980), ainda é importante perceber, na Grécia, a diferença no trato
com a infância, entre as suas duas cidades mais importantes, Atenas e Esparta. Dizem eles que,
Os atenienses estavam empenhados em que seus jovens, ao crescerem, se
transformassem em indivíduos bem formados, habilitados tanto para a poesia e a
20
Filosofia como para a arte da guerra. E a educação de Atenas refletia esse ideal. O
mundo da criança ateniense (ao menos do sexo masculino) era um mundo de
competição ininterrupta, tanto no terreno físico como no mental e estético. Num
contraste flagrante a esse quadro, a educação espartana insistia apenas no
desenvolvimento da disciplina, da obediência e da bravura física vale dizer, das
virtudes do soldado. Em comparação com os métodos atenienses, a maneira pela
qual os espartanos criavam suas crianças era excessivamente rude, talvez mesmo
declaradamente brutal. O costume de fazer as crianças passarem fome a fim de
levá-las a roubarem sua comida era apenas uma das muitas formas pelas quais se
exprimia essa concepção de infância. (p. 210-211)
Severidade, disciplina e obediência eram marcas registradas dessas sociedades e estes eram
utilizados como forma de manter as crianças “na linha”. Estava claro que gregos e romanos não
gostavam muito da infância, apesar de se divertirem com as brincadeiras e possibilitarem a
participação das mesmas em festas e rituais religiosos, “a criança era mais apreciada quando
apresentava uma seriedade de adulto.” (p. 51). Isto demonstra que “as crianças viviam para trabalhar
(ou estudar) e se preparar para dar seqüência à trajetória da família, não para expressar ambição
pessoal ou individualidade” (p. 51)
Tanto gregos quanto romanos não se preocupavam muito com a infância, tinham mais apreço
pela juventude, apesar de compreenderem ser este um período de turbulências e inquietações, os
adultos viam na juventude a proximidade da maturidade, assim permitiam, por exemplo, que se
casassem cedo, mas não permitam independência a partir desse ritual. Nesse ínterim não era só a
infância e a juventude que eram definidos. A maturidade, para os romanos girava em torno dos 35
anos, o que segundo eles assegurava a permanência dos filhos ainda jovens no trabalho da terra para
sustentar os pais já idosos, assim como acontecia na sociedade chinesa.
Assim está evidente que como na sociedade chinesa, a sociedade grega e romana viam a
infância como período em que, quanto menor fosse, melhor para tornar as crianças úteis ao trabalho
e consequentemente serem melhor aceitas nas famílias.
Na Índia, em seu período clássico, infância e religião estão intimamente ligados. De acordo
com Stearns (2006, p. 53) “a religião da Índia, como se poderia prever, fornecia um leque maior de
rituais envolvendo crianças, destinados a marcar os estágios de seu avanço espiritual, assim como
evitar doenças e maus espíritos”. E esses rituais tinham início no nascimento da criança e para isso
era preciso que o pai respirasse três vezes sobre a criança e assim invocasse o “Vedas santo”
recitando fórmulas contra doenças ao mesmo tempo. “Um nome religioso secreto era dado à criança
nesse momento. Com dez dias de vida um nome era publicamente revelado”. (p. 53). O sistema de
castas é algo muito bem definido na Índia, assim a seqüência de rituais segue as regras das
diferentes castas. A esse respeito diz Stearns (2006), “Cerimônias adicionais para meninos de classe
21
brâmane sacerdotal ocorriam aos 3 anos, incluindo o ritual do corte de cabelo. A iniciação dos
meninos das castas altas na instrução de rituais ocorria aos 8 anos (para os brâmanes) ou 11-12 anos
(para as castas seguintes). (p. 53)
A Índia também realizava cerimônias para marcar os estágios da educação e estas também
seguiam as regras das castas definidas socialmente. Um exemplo dado por Stearns (2006) se refere à
conclusão dos estudos em uma determinada casta. Diz ele que, “quando os estudos eram
completados na casta dos mercadores, geralmente aos 16 anos, o aluno era barbeado pela primeira
vez e depois, com uma complexa variedade de roupas e jóias, o jovem tomava um banho ritual e
encenava uma adoração ao sol”. (p. 53-54) Mas não era só isso. Ainda era preciso oferecer ao guru,
uma vaca e passar em todo o seu corpo um ungüento e aceitar um turbante do guru para só assim
alcançar o avanço espiritual. Este jovem ainda recebia um bastão que o protegeria de ladrões e o
resguardaria das fraquezas do mundo. Após essas primeiras ações da cerimônia, o jovem deveria
colocar um tronco de madeira previamente escolhido, no fogo sagrado e passar o resto do dia em
profunda meditação. “Depois de uma refeição cerimonial com o seu guru, voltava para casa
(prestando atenção em dar o primeiro passo com o pé direito), e recebia as boas-vindas com honras
de seus pais e habitantes da aldeia. Logo em seguida, contraía matrimônio”. (p. 54) E ao fazê-lo,
estava categorizado o início da maturidade.
Para as crianças pequenas, o hinduísmo tinha atenção especial, estimulando as mães para que
devotassem todo o cuidado na criação, amamentando-as até quando desejassem a fim de se
tornarem bastante saudáveis. “A criança era tratada como um convidado de honra: os primeiros
rituais a credenciavam como indivíduo aceito perante a religião, com individualidade inata, um
participante na ordem divina, embora não totalmente maduro”. (STEARNS, 2006, p. 54). Sendo
assim, às crianças bem pequenas não se impunha uma disciplina severa, era o momento da
brincadeira e os pais estimulavam esse momento, na tentativa, segundo Stearns (2006) de manter a
criança “afastada do excessivo contato com a realidade do adulto”. (p. 54). Entretanto, é preciso
salientar que o estímulo à dedicação das mães, amamentando os filhos por longo período de tempo e
a permissão de viver com plenitude o mundo das brincadeiras era privilégio das castas mais altas.
Nas castas inferiores, desde a mais tenra idade, as crianças eram estimuladas ao trabalho, nesse
ínterim e por conta dessa necessidade muitas crianças nascidas meninas, foram mortas, pois
constituíam-se na parte mais fraca, não sendo assim interessante para os mais pobres criar meninas.
O labor diário do trabalho exigia braços fortes, inerentes aos meninos.
A Índia, assim como as civilizações expostas anteriormente, são importantes de serem
conhecidas, no que diz respeito à criança, porque possibilitam perceber que antes mesmo do que se
imaginava já havia o entendimento da sua existência, de como ela passa a ter função em cada uma
22
das sociedades e porque é necessário ter função. Em todas as sociedades estudadas o emprego da
força da criança estava ligada à possibilidade de contribuir com o trabalho das famílias. Algumas
mais cedo, outras mais tarde, em função dos rituais específicos, mas a direção tomada pelas
sociedades estava em garantir que todos contribuíssem para o sustento da família.
E a sociedade evolui, assim como evoluem todas as formas de ver os indivíduos que a
compõem. Das sociedades agrícolas para as sociedades modernas Stearns (2006) afirma existirem
três mudanças que são essenciais para que o olhar sobre a infância tenha um outro significado,
possibilitando assim perceber a diferenciação entre as civilizações.
Diz ele que a primeira mudança está relacionada à passagem da infância para a escolaridade.
Nas sociedades agrícolas a passagem da infância estava diretamente relacionada à necessidade do
trabalho. A sociedade da infância moderna que, segundo Stearns, começa “a emergir no Ocidente
nos séculos XVII e XIX” (p. 90), determina que toda criança deva ir à escola e jamais trabalhar.
“Isso significava, como muitos pais rapidamente perceberam, que as crianças deixavam de ser
ativos para se transformar em passivos econômicos, o que por sua vez exigia repensar seriamente a
natureza e o sentido da infância”. (p. 91)
O processo de urbanização que dificultava um cuidado mais preciso para com a criança
provocou a segunda mudança para a infância moderna em comparação com a infância das
sociedades agrícolas: as famílias tiveram que reduzir o número de filhos. Já que os filhos não
trabalhavam, o provimento da família passa a ser de responsabilidade exclusiva dos adultos, sendo
assim “o processo de redução da taxa de natalidade mostrou-se central no modelo moderno de
infância”. (p. 91)
A última mudança definida por Stearns (2006) diz respeito à redução da taxa de mortalidade
infantil, fato bastante comum nas sociedades agrícolas, em função das doenças da infância e do
infanticídio provocado deliberadamente por alguns povos.
No Ocidente, a redução da taxa de natalidade começou primeiro, o que estimulou
uma preocupação maior em garantir a vida das crianças que nasciam, que, por
sua vez, incentivou maior controle da natalidade. Em grande parte do resto do
mundo, as taxas de mortalidade infantil caíram primeiro, em geral como
resultado da melhoria de saneamento e medidas públicas de prevenção de saúde,
e isso desencadeou uma necessidade urgente de baixar a taxa de natalidade, em
parte para compensar a queda da mortalidade. (p. 91)
É na sociedade do século XIX, que se inicia o período do reconhecimento da existência da
infância, de acordo com Ariès (1981). Antes, porém, de chegar a essa afirmação, começa a
analisar a infância a partir do século XVII. A análise desse século o faz afirmar que:
23
A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o
filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal
adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e
partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se
transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da
juventude[...] (p. 10).
Essa criança tinha uma passagem muito efêmera pela família e pela sociedade, pelo fato
de ter sido reduzido o seu período de existência. A criança “transformada” em adulto era
imediatamente separada dos pais. Dessa forma, os conhecimentos que necessitava aprender e
a capacidade de socialização não eram transmitidos pela família. Esta aprendia a partir da
convivência com os adultos, no grupo e na relação cotidiana, ajudando-os a realizar as tarefas
para as quais eram designados.
No fim do século XVII, a escola substitui a aprendizagem vivencial, dessa forma a
criança foi retirada da convivência com os adultos para se restringir a um único espaço de
aprendizagem: o colégio. A importância atribuída a educação, fez com que, segundo Ariès, a
família que não controlava a aprendizagem dos filhos se tornasse um lugar de afeto entre
pais e filhos.
A escolaridade reduziu o controle paterno sobre as crianças. [...], os
contatos dos adultos com crianças pequenas aumentaram pela simples razão
de que, com taxas de natalidade mais baixas e as meninas saindo de casa
para ir à escola com mais freqüência, havia menos filhos maiores
disponíveis para olhar crianças em idade pré-escolar. Passou a haver mais
cuidado direto de um dos pais (geralmente a mãe) sobre as crianças
pequenas ou tornou-se essencial a ajuda externa paga. (STEARNS, 2006, p.
92)
Essa mudança de comportamento possibilitou uma organização em torno da criança,
fazendo com que a mesma adquirisse uma importância e valor, não concebidos até então. “Os
pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com uma solicitude
habitual nos séculos XIX e XX” (ARIÈS, 1981 p. 12).
Vale ressaltar a presença da categoria juventude no esclarecimento das idades do
indivíduo. Esta tinha como característica a plenitude das forças, durando até os 45 (quarenta e
cinco) anos, entretanto, “como juventude significava força da idade, ‘idade média’, não havia
24
lugar para a adolescência. Até o século XVII, a adolescência foi confundida com a infância”
(Ibdem, ibid, p. 41).
O século XVIII tinha uma forma de idealizar a criança muito característica. Isso fica
evidente, pois “Na literatura da classe média, as crianças eram retratadas como perfeitos
inocentes, cheios de amor e merecedores, em retribuição, de todo o amor”. (STEARNS, 2006,
p. 99). Concebidas assim, os pais tinham enorme atenção e cuidado para com as crianças,
proporcionando às mesmas um ambiente familiar de intensa harmonia e alegria a fim de evitar
possíveis danos físicos, morais ou emocionais.
Já no final do século XVIII, a concepção de infância baseava-se em duas filosofias que
em seu teor se opunham. Em uma delas, a compreensão de que em sendo o pecado, algo inato,
fazia-se necessário desde a mais tenra idade, reprimir e controlar o indivíduo. As crianças
precisavam ser treinadas, na perspectiva de adquirir valores morais adequados à sociedade da
época.
Para as classes dominantes, esse caminho disciplinador significava um
penoso e árduo trabalho de memorização e a cultura da mente, durante toda
a infância e adolescência. Para as classes mais baixas passou a significar a
promoção do trabalho precoce, seja remunerado ou não remunerado. O
trabalho precoce era o que salvava. (GRUNSPUN, 2000, p. 46-47)
A outra concepção a respeito da infância tinha como principal defensor, o filósofo Jean-
Jacques Rousseau. Este e seus seguidores defendiam a infância como uma fase especial, com
características específicas que não deveriam ser desperdiçadas, principalmente pela Educação,
como forma de torná-las adultos com grandes qualidades. Nesse ínterim, faziam defesa por
leis próprias de proteção à infância na medida em que necessitavam de cuidados especiais na
sua formação.
Outros intelectuais, como Jean-Jacques Rousseau, acrescentaram um
compromisso mais apaixonado com a individualidade das crianças, com os
métodos de criação que deveriam tratá-las com carinho e com os métodos
de escolaridade que alimentassem nelas a centelha divina. (STEARNS,
2006, p. 87)
25
Entretanto, segundo Grunspun (2000) não durou muito a influência de Rosseau. “O
reviver da opinião da Religião Evangélica e as idéias conservadoras do Ancien Régime na
França fizeram prevalecer a importância filosófica do controle e da repressão das crianças e
treiná-las para o trabalho redentor.” (p. 47)
O século XIX, além de ser, segundo Ariès (1981), o momento em que se inicia
efetivamente o interesse pela infância, nas sociedades modernas, é também segundo Stearns
(2006), o século em que se inaugura a idéia de adolescência, pois como já foi dito
anteriormente, até o século XVII a adolescência era confundida com a infância.
O conceito, aplicado principalmente para a classe média naquele momento,
emergia de várias mudanças essenciais ocorridas na experiência e na idéia
de infância. Denotava, em primeiro lugar, o aumento do período de
dependência dos filhos, que agora eram mandados para a escola secundária
em vez de para o trabalho. A adolescência demarcava uma intensificação da
diferença entre o jovem e o adulto. (p. 100).
A adolescência é também o período de muitas mudanças, tanto no campo físico, quanto
no campo psicológico, e essas mudanças provocam ações e reações que aproximam o jovem
da infância e outras que parecem aproximá-lo da maturidade do adulto. Saber o limite entre
esse dois pólos é difícil para um ser em formação. Assim sendo, alguns conflitos, do âmbito
familiar começaram a se apresentar no mundo social. Enquanto os pais ainda tinham controle
sobre os filhos esses conflitos eram resolvidos com a dedicação e o cuidado já discutidos
anteriormente, porém ao se tornaram sociais,
o adolescente que se afastasse dos padrões precisaria de tratamento distinto
daquele dado pela polícia e pelas cortes de justiça. Os infratores não
deveriam ser jogados em meio a criminosos adultos. No final do século
XIX, reformadores introduziram em toda a sociedade ocidental novos
códigos de justiça para a juventude, com juizados especiais e instituições
penais separadas os reformatórios. (STEARNS, 2006, p. 101)
Por esse motivo não se podia fazer leis brandas relacionadas à juventude. Todas as
atitudes contrárias aos padrões sociais eram severamente punidas. Nunca é demasiado afirmar
que a severidade da lei foi cumprida para aqueles que não faziam parte das classes sociais
mais abastadas. “Pessoas respeitáveis da classe média acreditavam manter seus adolescentes
sob controle, mas não confiavam nos imigrantes ou na classe trabalhadora”. (p. 102)
26
Ainda sobre o século XIX não se pode deixar de mencionar um fato histórico
significativo, que ocorre na Inglaterra, o chamado “boom” industrial e que é perfeitamente
possível relacionar à infância, especificamente à trabalhadora e pobre. O capitalismo
inaugurava uma nova forma de ver o mundo, consequentemente uma nova forma de ver o
mundo do trabalho. As máquinas eram utilizadas fortemente para que as fábricas atingissem
na produção o lucro necessário em menor espaço de tempo, e com menor quantidade de mão-
de-obra, ou segundo Marx (1967)
2
, uma mão-de-obra em que não fosse exigida força
muscular, mas uma grande flexibilidade, solicitaram um novo contigente de mão-de-obra:
mulheres e crianças. Dessa forma todos os membros da família estavam submetidos ao
capital, aumentando assim o número de assalariados. O homem adulto nessa perspectiva
divide o valor da sua força de trabalho com outros membros da família, inclusive nesse termo,
mulheres e crianças trabalham mais, porém têm ganhos salariais inferiores aos homens. O
capitalismo altera as relações sociais e familiares, substituindo para as crianças, os brinquedos
pelo trabalho forçado e para as mulheres, a instrução dos filhos no lar para criá-los no interior
de uma fábrica. “Do mesmo modo modifica-se a forma do contrato entre operário e
capitalista, depois que o capital passa a comprar menores. Antes o operário vendia sua própria
força de trabalho, da qual podia dispor livremente, enquanto pessoa livre. Agora ele vende sua
mulher e filhos; torna-se mercador de escravos”. (MARX, 1967, p. 91). Ainda com relação a
esse momento histórico, está claro que,
o processo de industrialização segmenta a família por meio de dois
movimentos: a migração rural-urbana, que conduz a um isolamento das
redes familiares (família ampliada) e a conseqüente redução do tamanho do
grupo doméstico ao núcleo familiar-conjugal, com um pequeno número de
crianças (PARSONS (1981) apud NUNES (2003), p. 43)
Nesse período a sociedade capitalista vivia a linha tênue entre a necessidade de
expansão econômica e o oferecimento de qualidade de vida para toda a população. A luta
entre o “bem e o mal” provocou uma quantidade excessiva de desempregados, inchaço das
cidades por causa do êxodo rural, salários não condizentes com a carga de trabalho dos
operários, utilização cada vez mais evidente das máquinas e intensificação da utilização da
mão-de-obra feminina e infantil. Esta era uma época em que, na Europa, a infância era vista
2
MARX, Karl. O Capital Edição Resumida. Resumo dos três volumes por Julian Borchardt. Rio de Janeiro:
Zahar, 1967. Trad. Ronaldo Alves Schimidt.
27
como mais um “braço” para ajudar no sustento da família. “Muitas famílias de trabalhadores
tinham de pôr as crianças para trabalhar em fábricas insalubres a experiência do trabalho
não era nova, mas a condição do novo local era preocupante”. (STEARNS, 2006, p. 96)
Ainda existiam aquelas crianças que eram deixadas nas portas dos orfanatos ou viviam nas
ruas porque as famílias não tinham condições de criá-las.
Segundo Miriam Leite,
A distinção mais clara [de quem eram as crianças] é a que se fundamenta no
desempenho econômico. Tomando-se a população como um todo, uma
caracterização nítida é a do período de 0 a 3 anos, em que, como ainda não
andam, os pequenos são carregados pelas mães, pelos irmãos ou pelas
escravas. (...) Para o código filipino, que continuou a vigorar até o fim do
século XIX, a maioridade se verificava aos 12 anos para as meninas e aos
14 para os meninos, mas para a Igreja Católica, que normatizou toda a vida
das famílias nesse período, 7 anos já é a idade da razão. Tendo em mente
que a infância não é uma fase biológica da vida, mas uma construção
cultural e histórica, compreende-se que as abstrações numéricas não podem
dar conta de sua variabilidade. Dos 8 aos 12 anos, os meninos são
considerados adultos-aprendizes e vestem-se (de acordo com a camada
social) como tais.” (2003, p. 21)
Esta exposição histórica demonstra a atitude que será veementemente combatida no
século XX e XXI: a criança como ser em formação e com características próprias deve ter os
seus direitos garantidos e em paralelo ser reconhecida como efetivamente infante e não apenas
como “cria”, extensão da casa, adulto em miniatura ou força de trabalho. Com os avanços da
medicina, das ciências jurídicas, das ciências pedagógicas e psicológicas, o mundo
contemporâneo descobre a especificidade da criança e a necessidade de formular seus direitos,
que passam a ser tidos como especiais e de suma importância.
Segundo Stearns (2006), “A infância viveu grandes mudanças nas sociedades
industrializadas avançadas durante o século XX.” (p. 143). Estas mudanças estão ligadas a
padrões e segundo o autor, dois, são claros e predominaram. O primeiro padrão está
relacionado a países como Estados Unidos, Japão e Europa Ocidental que mantiveram a
implementação do que se pode considerar como características da chamada infância moderna
em comparação à característica da infância das sociedades antigas, já descrita anteriormente.
Isto está claro, pois “Acresceram compromissos com a escolarização e reduziram ainda mais
o trabalho infantil, pelo menos em suas formas mais tradicionais. Fizeram baixar
28
dramaticamente a taxa de mortalidade infantil, cuja redução havia começado no século XIX.”
(p. 143)
A outra mudança diz respeito a uma nova forma de olhar as crianças e isto passa pela
forma como são tratadas e como são disciplinadas, culminando em reconhecê-las como
consumidoras em potencial, algo impensável nas sociedades antigas. Essa mudança se inicia
nos Estados Unidos em 1920, na Europa Ocidental somente a partir dos anos 50 e no Japão,
após a Segunda Guerra Mundial. “Outras questões, inclusive um estilo mais informal próprio
para o consumismo, prevaleceram.” (STEARNS, 2006, p. 144)
Isto posto, a idéia tradicionalista de infância construída nas sociedades antigas ganha
novo formato nas sociedades modernas do século XX e XXI, o que possibilita um avanço nas
discussões e compreensão sobre a infância. A esse termo, conclui Stearns (2006) que, “No
processo de mudança, as sociedades ocidentais modificaram alguns dos enfoques que tinham
caracterizado sua visão de infância durante o século XIX, sem considerar o modelo moderno
básico. Os comportamentos se tornaram mais flexíveis”. (p. 144)
Esses comportamentos flexíveis vão variar de sociedade para sociedade. Por exemplo,
os Estados Unidos vão se preocupar particularmente com o sexo relacionado diretamente
aos adolescentes mas ainda assim não serão tão rígidos com a prática em si, se e somente se,
houver respeito. “A atenção com a adolescência, uma inovação do século XIX, tornou-se
obsessão recorrente e cheia de preocupação de muitos adultos.” (p. 144)
A adolescência, o período intermediário entre a infância e a fase adulta, é também o
momento em que os desafios que a ela se impõe passam a aparecer na sociedade. Atitudes
antes nunca previstas, como por exemplo, liberdade sexual e infrações ilícitas precisaram de
maior atenção dos adultos. E a infância bem orientada culminaria em uma adolescência mais
adaptada aos padrões sociais. A escola passa a ter fundamental importância nessa tarefa.
Portanto, era obrigatória a freqüência à escola, até mesmo para as classes mais pobres,
entretanto estava clara a diferenciação entre as classes, pois a grande maioria das crianças
operárias não conseguia concluir o ensino secundário e sequer ingressava na universidade,
diferentemente dos estudantes da classe média, “o que significava que a adolescência de uns
era diferente da dos outros. Para uma minoria, particularmente nos Estados Unidos, em que o
Estado de Bem-estar Social não tinha se desenvolvido inteiramente, miséria e má-nutrição
persistiam.” (p. 146)
29
Japão e Europa Ocidental estavam mais preocupados com os exames competitivos, pois
assim podiam acompanhar as crianças em idade escolar para poderem fazer uma seleção mais
criteriosa no que tange ao ingresso na Universidade. Entretanto apesar dessa atenção para com
os estudos das crianças, em 1950, já se percebia mudanças no como cuidar das crianças. Era
comum que cada vez mais mães americanas e européias saíssem para trabalhar, necessitando
assim rever o formato padronizado de família as mães devem ficar em casa cuidando dos
filhos. A sociedade se adapta a esse novo modelo e por isso “As creches proliferaram na
Europa Ocidental e a maioria dos pais se acomodou com a utilização desse recurso.” (p. 145).
As mães americanas não se utilizaram das creches, preferindo “deixar os filhos com parentes
ou encontravam soluções alternativas, matriculando-as em alguma instituição.” (p. 145). Já o
Japão não seguiu o modelo das creches, pois,“era pequeno o número de mães que
trabalhavam, tendo um papel muito mais presente nos cuidados das crianças pequenas,
tratando-as com muito mais condescendência como recompensa por sua aplicação nos
estudos.” (p. 145)
As sociedades se modificam assim como se modificam os atores sociais que as
compõem, assim sendo as infâncias se diferenciam a partir do contexto em que estão
inseridas. Essa estrutura define qual infância se terá e qual ação governamental e familiar será
posta em prática em sua defesa e proteção. Nessa perspectiva e tendo-se bem claro o lugar de
cada um na estrutura social, Stearns (2006), sinaliza que “Por volta de 1980, o número de
crianças abaixo da linha de pobreza nos Estados Unidos começou a se expandir rapidamente,
especialmente em casas chefiadas por mulheres resultado tanto da redução da atenção do
governo quanto da desestruturação familiar.” (p. 146). Além dessa questão, os imigrantes na
Europa e também nos Estados Unidos, “também forneceram contextos diferenciados para a
infância, reagindo ao preconceito e a oportunidades reduzidas de trabalho, muitas vezes
formando gangues independentes e criando estilos musicais.” (p. 146). Por fim, a infância
moderna foi relacionada também a questões de gênero, deixando claro quais roupas vestir, o
que se podia consumir na sociedade capitalista e qual função se ocupava nas tarefas
domésticas.
O olhar sobre a infância moderna em comparação à infância das sociedades antigas, se
não favoreceu, pelo menos ampliou a concepção de importância da infância. Antes se uma
criança não trabalhasse para ajudar a família, qual a necessidade de existir? A modernidade vê
a criança como consumista, como um sujeito de direitos, que não precisa mais trabalhar e
sendo assim se preocupa com seu bem-estar e para isso exige políticas claras de redução das
30
taxas de mortalidade e incentiva a escolarização em massa. Independente das condições de
vida assegura que a escola seja para todos, apesar de as oportunidades de mercado não serem
favoráveis aos mais pobres, ainda assim havia uma campanha para que todos tivessem os
mesmos direitos.
A conscientização de que era importante incentivar a escolarização foi fundamental
para a diminuição do trabalho de crianças, nessa nova conjuntura da infância moderna. Ainda
em 1950 existiam muitas crianças, principalmente meninos, que não tinham concluído o
ensino secundário, porém a partir de 1960 “o número de jovens que não completavam a
escola secundária tinha caído muito. A escola agora mirava não só a infância assim como a
adolescência.” (STEARNS, 2006, p. 152). Como país liderando essa tendência, estava os
Estados Unidos, que em 1970, tinha mais da metade dos seus jovens freqüentando a
faculdade.
A França, seguindo o mesmo caminho dos Estados Unidos, buscou fazer
“combinações entre trabalho e escola para jovens com mais de 15 anos.” (STEARNS, 2006,
p. 150). A justificativa era dar aos jovens com menor nota nos testes escolares a possibilidade
de, em tendo treinamento de trabalho manual, poder ter uma ocupação enquanto adulto com
possibilidade de mantê-los financeiramente. “Em essência, programas desse tipo fizeram
reviver a idéia de aprendizado, porém em benefício do indivíduo e não da família de origem.”
(p. 150)
Os anos 80 trouxeram à tona uma disposição natural dos jovens americanos, em torno
dos 17 anos, que era trabalhar depois da escola e nas férias. Estes trabalhavam para si
mesmos, administravam o seu próprio dinheiro e podiam pagar a faculdade e comprar
produtos com a mesma autonomia dos adultos. Dividiam o horário das aulas com o horário do
emprego, o que com o excesso das atividades laborais, causavam certo desânimo para
continuar freqüentando as aulas, em função do cansaço físico ocasionado pelo trabalho
desenvolvido já que “não estavam desempenhando tarefas que as preparassem diretamente
para qualquer atividade de adulto, uma vez que eram funções geralmente de nível baixo.” P.
150). Isto posto nos faz refletir que “Antes de programa experimental escola-trabalho, era o
renascimento de velhas definições de infância apoiada no trabalho.” (p. 150)
O processo de incentivo a que cada vez mais jovens ingressassem na faculdade,
iniciado pelos Estados Unidos na década de 70, atingiu a Europa Ocidental, Japão e Canadá
na década de 90, regiões que já defendiam, há muito tempo, a educação superior apenas para a
elite. Assim “De 40 a 50% dos jovens em idade compatível estavam freqüentando ou
universidades ou escolas técnicas avançadas.” (p. 152). A oportunidade de ingresso no nível
31
superior dada a homens e mulheres independente de classe social, “impulsionou
sensivelmente a juventude a prolongar sua dependência econômica (da família ou do Estado
ou de ambos) até os vinte anos, retardando assim a idade adulta. A equação moderna,
infância=escolaridade, estava aberta para inovações adicionais.” (p. 152)
Uma sociedade industrializada possui uma dinâmica própria. As mães não são mais as
únicas responsáveis pela criação dos filhos e estas já não podem ter tantos filhos, pois a
necessidade de trabalhar as impele a tomar decisões sobre com quem deixar sua prole. Isso se
refletirá numa ação veemente difundida no século XXI: a redução das taxas de natalidade.
Cada vez menos famílias são formadas e as que são, tem cada vez menos filhos ou não tem
filho algum. Aí está a contradição do mundo moderno, colocado por Stearns (2006), pois
apesar da retórica difundida sobre as alegrias da paternidade e da
maternidade e da graciosidade da criança, sociedades industrializadas
tornaram-se nitidamente ambivalentes em relação à questão da infância. Os
adultos, claramente, preferiam o trabalho ou seus prazeres independentes de
consumo a ter de lidar muito com as crianças embora também pudessem
se sentir culpados no processo. (p. 166)
1.1 O LUGAR DA INFÂNCIA BRASIL
Na visão de Alvim & Valladares (1988), a infância
3
surge como questão social, no
Brasil, no século XIX, a partir da Abolição da Escravatura, com a “retirada” dos negros das
lavouras e dos engenhos, a mão-de-obra imigrante toma corpo, criando assim o trabalho livre
urbano e assalariado. Segundo Rizzini (2004) é a partir desse momento que começam a
aparecer os primeiros debates sobre trabalho infantil e muitas são as iniciativas com a
perspectiva de preparar a criança e o adolescente para inserção no mundo do trabalho. As
crianças, em grande número, tornam-se, assim como as crianças escravas (mas sem
pagamento, é óbvio), mais uma força para colaborar no sustento da família numerosa.
3
Estas autoras utilizadas como base teórica para localizar a criança no contexto brasileiro utilizam o termo
infância e criança sem fazer nenhuma distinção conceitual.
32
Era uma época em que o Rio de Janeiro e São Paulo já funcionavam como
pólos de atração para o resto do país e conviviam com diversos problemas
advindos de um processo de urbanização acelerado: insalubridade, alta taxa
de mortalidade infantil, epidemias diversas e dizimadoras, pauperização de
amplos segmentos da população que não conseguiam se inserir no mercado
formal de trabalho. Em paralelo corriam a violência, a criminalidade, a
mendicância e a vadiagem. (ALVIM &VALLADARES, 1989, p. 4)
No Brasil, o período escravagista havia demonstrado o quanto a criança e o jovem, além
de ser mão-de-obra mais barata, demonstravam facilidade para adaptar-se ao trabalho, em
detrimento dos adultos. Esta percepção fortaleceu escolas públicas e particulares para que em
seus procedimentos educacionais procurassem disciplinar crianças e jovens para inserção no
mercado de trabalho. A proposta era desenvolver na criança um aprendizado diferente do
adulto e conseqüentemente capacitá-la para a vida. Desenvolvida com essa perspectiva, a
proposta educacional desconhecia a existência do aprendiz, como sendo aquele de “7 a 16
anos de idade, que separava-se muito cedo de sua família para viver e aprender um ofício com
um mestre.” (RODRIGUES, 2003, p. 40). Estas escolas, ao fornecer instrução elementar para
crianças pobres, propiciavam profissionalizá-las em ofícios mecânicos.
Criança, no século XIX, segundo Leite, era entendida como “uma derivação das que
eram criadas pelos que lhe deram origem. Eram o que se chamava ‘crias’ da casa, de
responsabilidade (nem sempre assumida inteira ou parcialmente) da família consangüínea ou
da vizinhança.” (2003, p. 20).
O período republicano exige do país o crescimento econômico com uma população
preparada para tal. A lei era formar e disciplinar “braços fortes” para a indústria e agricultura.
Para tanto o Decreto n. 2.416/1909, determina que após o período educacional seja restituído
à sociedade, “um homem sadio de corpo e alma, apto para construir uma célula do organismo
social”. Atendendo a esse novo olhar sobre a sociedade, os asilos de caridade são
transformados em institutos, escolas profissionais ou patronatos agrícolas. Estas instituições
tinham como meta adequar o menor às necessidades por ora vigentes na sociedade, que
diziam respeito ao universo artesanal e fabril, como forma de já formar contingente preparado
para atuar na indústria futuramente.
Ações pontuais podem ser verificadas para atingir esse intento, de acordo com Rizzini:
33
O Seminário dos Meninos, que em 1874 tornou-se o Instituto de Educandos
Artífices, em São Paulo, oferecendo ensino profissional para alfaiates,
marceneiros, serralheiros e seleiros. A iniciativa foi estendida para outros
estados. A Sociedade Propagadora da Instrução Popular (1874) tornou-se o
Liceu de Artes e Ofícios, oferecendo aprendizagem industrial e agrícola. O
Asilo dos Meninos Desvalidos, criado em 1875, transformou-se
posteriormente no Instituto Profissional João Alfredo. Em 1889 é criado o
Instituto Professora Orsina da Fonseca para o preparo profissional de
operárias, de oito a 18 anos. (2004, p. 379)
Em Salvador, no período republicano, pensar em sentimento relativo à infância, é um
“paradoxo ou no mínimo um discurso vazio”, nas palavras de Rodrigues (2003, p. 33). Um
discurso relativo às particularidades do universo infantil na tentativa de distinguir a criança
do adulto é encontrado nos meios jornalísticos e na medicina. As matérias de jornal e a
literatura médica da época, do século XIX, impulsionaram os estudiosos, do início do século
XX, a preocuparem-se com a criança pobre e desamparada.
Embutida nos cuidados com a infância estava a necessidade de buscar
soluções para a questão nacional. Desejava-se transformar o país e, em
particular, a cidade de Salvador de acordo com os padrões de civilidade
européia. Questões como pobreza, atraso educacional e tecnológico,
miscigenação e elevada mortalidade infantil vão ser vistas, pelo segmento
médico, como fatores responsáveis pelo pouco desenvolvimento do país. O
atraso do país não estava ligado somente à questão racial, mas igualmente
aos aspectos culturais e sobretudo higiênicos que norteavam os hábitos da
população pobre. Preocupar-se com a saúde da criança significava, de fato
garantir a obtenção de futuros cidadãos produtivos, úteis a si e à sociedade.
(RODRIGUES, 2003, p. 34)
Diversos trabalhos acadêmicos dessa época demonstram a preocupação da sociedade
com relação à criança na perspectiva de resolver questões cruciais relativas à higiene e saúde
pública. Aparecem estudos sobre natalidade e mortalidade infantil, bem como dieta alimentar
para recém nascidos.
Estava claro, pelo menos na cidade de Salvador, que a preocupação com a infância
estava associada à prática assistencial. A criança, ser indefeso, precisava ser protegida e
resguardada a sua saúde, segundo Rodrigues (2003). Esta preocupação ficou ainda mais
efetivada com a criação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, em 1899, com o
objetivo de atender crianças da elite baiana da época a princípio, entretanto no início do
século XX, “o reconhecimento dessa fase da vida propagou-se também para as camadas
34
populares, só que através de um projeto de reforma dos costumes, de um treinamento para a
docilidade do trabalho e de busca de estabilidade habitacional e familiar.” (p. 40).
Em meados do século XX, exatamente década de 30, o governo de Getúlio Vargas, tinha
como objetivo disciplinar a criança para o trabalho dentro de um programa de cunho social
com uma política específica voltada para o trabalho. Estava clara a tentativa de criar um
trabalhador que não fizesse greve, não fosse politizado, mas que fosse altamente produtivo.
Não interessava ao governo da época, os conflitos de classe, as exigências requeridas pelos
trabalhadores adultos por melhores salários e melhores condições de vida, muito menos os
problemas sociais causados pelo excedente de crianças, que não tendo pais ou familiares que
pudessem controlar as suas ações, aumentariam as estatísticas de abandono e vadiagem de
menores, provocando uma imagem ruim aos países europeus, dificultando ainda mais o
avanço econômico de industrialização e urbanização do país. Utilizando-se de leis trabalhistas
e práticas assistenciais, Vargas, através de uma ideologia de massa, procurou incentivar a
necessidade de um trabalhador ordeiro e produtivo. Para esse intento, crianças e jovens se
adequavam perfeitamente.
As políticas praticadas na época aprofundavam a distinção entre ‘criança’ e
‘menor’, sobrepondo ao conteúdo autoritário de uma perspectiva ideológica,
que oferecia as bases para o controle da juventude do país, ou seja, definia
um campo de intervenção social que buscava integrar, disciplinar e tornar
governáveis os membros das classes mais pobres. (CAMPOS &
ALVERGA, 2001, p. 232)
Confirmando diz Nunes (2003) “[...] a criança aparece como uma das preocupações e
se transforma em objeto da ação pública presente nas ações do Estado. Se as famílias se
responsabilizavam pela sociabilidade dos relacionamentos do dia-a-dia, o Estado ocupava-se
de crianças pobres por meio de uma prática repressiva, [...]” (p. 111)
Com a intenção de colocar em prática essa política, muitas foram as crianças, que
recrutadas nos asilos de caridade, eram iniciados a partir dos 5 (cinco) anos de idade a
aprender uma ocupação sob a alegação de que dessa forma não estariam ligados à
criminalidade ou vagabundagem. Crianças e jovens trabalhavam até 12 horas por dia em
locais sem nenhuma higiene e constantementes vigiados para que não fugissem à disciplina
imposta.
35
Em oposição a este mundo da desorganização social e como tábua possível
de ‘salvação’ da infância da classe trabalhadora, é apresentado o universo
fabril, simbolizando o trabalho, a disciplina e a ordem. Os empresários se
juntam a setores da Igreja e aos reformadores sociais na veiculação de uma
concepção onde o trabalho é a via de condução à cidadania da classe
trabalhadora. (ALVIM &VALLADARES, 1988, p. 4)
Um exemplo de uma fábrica têxtil, uma vila operária, em Pernambuco no Recife,
demonstra o quanto o trabalho infantil era importante para a produção. Entre os anos de 1930
e 1950, inúmeras famílias do sertão eram recrutadas para trabalhar, entretanto a condição para
a contratação estava ligada à existência de crianças e jovens no seio familiar. Para conseguir
uma casa melhor na vila, as famílias, além de filhos legítimos, levavam outras crianças (com a
característica de agregados), como forma de atingir a cota determinada pela fabrica.
Era interessante para a fábrica o trabalho das crianças e dos jovens que após um período
de aprendizado passavam a ocupação definitiva. Os pais trabalhavam na maioria dos casos
fora do âmbito industrial. Havia uma preocupação constante com o número de crianças e
jovens trabalhando, pois a diminuição desse contingente implicaria consequentemente em
perda da casa conseguida, ou então seriam transferidos para uma casa menor. Mesmo pagando
baixíssimos salários como estratégia , a fábrica pressionava essas famílias para manterem o
maior número possível de pessoas trabalhando. As crianças e adolescentes, mesmo fora da
idade permitida pela lei
4
, para começarem a produzir o mais cedo possível, tinham seus
documentos falsificados, assim a lei era burlada, o que facilitava a utilização dessa mão-de-
obra. “Esse sistema possibilitava a formação de uma força de trabalho adestrada desde cedo.
O peso do aprendizado e do choque disciplinar era bem maior para a geração que vinha do
campo do que para aquela formada dentro da fábrica”. (RIZZINI, 2004, p. 377-378)
Segundo Leite (2003), no final do século XX, a infância torna-se uma questão crucial
para o Estado e para as políticas não-governamentais. A compreensão das especificidades do
universo infantil ainda mais entendido como distante do universo dos adultos bem como o
aparecimento de questões relativas a marginalidade, pobreza, trabalho infantil, propiciaram
vários debates acerca das problemáticas que permeavam a saída necessária, por conta das
questões de sobrevivência, da criança de dentro de casa para a rua. Um mundo
industrializado, capitalista demandava que famílias inteiras utilizassem a mão-de-obra infantil
para ajudar nas despesas da casa. “A infância passa a ser ‘visível’ quando o trabalho deixa de
4
A lei autorizava o trabalho infantil somente a partir dos 12 anos de idade.
36
ser domiciliar e as famílias ao se deslocarem e dispersarem, não conseguem mais administrar
o desenvolvimento dos filhos pequenos”. (LEITE, 2003, p. 20)
Essa relação capitalismo/sobrevivência/famílias/crianças no mercado de trabalho é
direta na medida em que, segundo Spindel (1989), a partir dos anos 70 há um crescimento
acelerado do interesse pela mão-de-obra de crianças e adolescentes nas cidades. Isto posto,
fica claro que a partir do empobrecimento da população trabalhadora, massacrada pela
política econômica que impunha uma crescente concentração de renda gerada, a contribuição
financeira de crianças e mulheres era necessária para ajudar no orçamento familiar, além, é
claro da crescente urbanização que empurrava significativas parcelas da população a deixar a
zona rural em direção às cidades, crescendo ainda mais os bolsões de miséria. “Essa pobreza,
além de impedir a satisfação das necessidades básicas, contribui para que essas crianças e
jovens terminem expostos a diversas situações de risco, violência e exploração, entre outros
aspectos através da inserção precoce no mundo do trabalho.” (CARVALHO & RAMOS,
2003, p. 7)
A recessão no início dos anos 80 atinge toda a camada da população. Borges (2000)
afirma que até o início da década de 80, a economia brasileira conseguia gerar emprego
concomitante com a demanda da mão-de-obra, mesmo que essas oportunidades estivessem
ligadas a ocupações de produtividade inferior. Segundo ela havia uma expansão do emprego
assalariado, mesmo que ainda existissem os empregos informais, o trabalhador, com carteira
assinada, respaldado pela lei, tinha o seu emprego garantido. “Em conseqüência dessa
performance, o mercado de trabalho brasileiro sempre se caracterizou por apresentar baixas
taxas de desemprego aberto, sendo o seu principal problema a extrema pobreza da maioria dos
trabalhadores, decorrente das características de boa parte das ocupações existentes”. (p. 93)
A recessão aumenta o índice de desemprego aberto e apresenta um novo dado: a
precarização do emprego, diminuindo o contingente de trabalhadores com contrato ou carteira
assinada, consequentemente ocorre o aumento de empregos temporários sem carteira
assinada. Essa recessão atingindo os anos 90 aumenta ainda mais as taxas de desemprego
aberto e aumenta também o número de trabalhadores que trabalham provisoriamente, sem o
respaldo da lei.
Inseridos nesta sociedade economicamente em recessão, adultos provedores de famílias
inteiras se deparam com a real dificuldade de manter níveis mínimos de sobrevivência
daqueles que estão sob a sua responsabilidade. Aliadas a questões econômicas estão questões
morais que historicamente dão ao homem ou mulher adulto, enquanto “chefes” de família a
37
obrigação de cuidar dos parentes mais próximos. Este é um grande dilema dos adultos: ter que
manter a família mesmo não sabendo como e utilizar ou não a força de trabalho das crianças.
A necessidade de sobrevivência faz com que os papéis se invertam nesta sociedade capitalista.
Porque crianças e jovens trabalham? São crianças e jovens os responsáveis por
proverem as suas respectivas famílias. Estas tornam-se totalmente dependentes, em muitos
casos, dos trabalhadores infantis, além disso, segundo Rizzini, há a constatação de que existe
uma “[...] demanda do mercado por mãos pequenas e ágeis, corpo obediente e pouco exigente.
Há determinados tipos de tarefas que são melhor realizadas pelas mãos delicadas de crianças”.
(2004, p. 388) Nesse contexto e ainda segundo Rizzini (2004), justifica-se ainda a inserção tão
precoce da infância no mundo do trabalho, pelo caráter disciplinador e educativo que o
trabalho enquanto ação adquiriu no decorrer da história. As famílias reconhecem que o
fato de as crianças estarem ocupadas, aprendendo um ofício, além de colaborarem nas
despesas da casa, contribui para que não fiquem nas ruas, envolvidos em más companhias.
Segundo Carvalho (2003),
[...] não se pode esquecer que essa inserção está igualmente associada a
representações culturais profundamente arraigadas entre as classes
populares. Elas envolvem uma valorização da solidariedade familiar em
torno do trabalho como um mecanismo de socialização e controle dos
filhos, que os ensina a ‘terem obrigação’ e a serem responsáveis, honestos e
trabalhadores, contribuindo para afastá-los das más companhias e da
marginalidade e para transformá-los em bons cidadãos. (p. 380)
Para os jovens/adolescentes um outro motivo justifica a inserção precoce no mundo do
trabalho: a necessidade de ter seu próprio dinheiro, sem que assim precisem depender dos
pais. Para crianças e adolescentes poder ajudar a família, principalmente a mãe na falta do pai,
é o principal motivo que explica o porquê de venderem a sua força de trabalho. Como
conseqüência, crianças e adolescentes, além de perderem um momento especial de suas vidas,
necessitam afastar-se da escola, pois o horário de trabalho atrapalha os estudos.
Onde se situa a criança que trabalha no contexto das transformações que propicia à
sociedade? Toda uma complexidade de simbologias construídas por crianças que afastadas do
convívio familiar, são inseridas no mundo social, especificamente o mundo do trabalho sem
que para isso haja entendimento claro das reais situações que envolvem toda a teia de relações
de indivíduos que convivem cotidianamente. “Interligam-se [...] o individual e o social, num
38
movimento que leva ao avanço da compreensão do trabalho infantil enquanto objeto
complexo que se amplia em sua própria natureza” (MARQUES, 2001, p.115).
39
Capítulo II
2. A CRIANÇA E O TRABALHO
As sociedades possuem estruturas muito peculiares que estão relacionadas à forma
como se organiza e como os sujeitos que a compõem interagem e sustentam essa dinâmica.
Uma dinâmica excludente e seletiva para uns, mas é bem verdade, existem aqueles que
defendem o processo como natural e necessário para o organismo vivo que são as relações
entre indivíduos. Nessa dinâmica está-se referindo também ao mercado de trabalho que
formal ou informal possuem características próprias e “estão intrinsecamente ligados ao que
ocorre no núcleo capitalista de produção.” (CHAHAD, 1992, p. 379)
Não se fará um estudo aprofundado sobre mercado de trabalho formal ou informal,
mas é importante elencar as características de ambos para efeito de melhor compreensão dessa
dinâmica social. Inclusive porque estendendo a discussão sobre trabalho informal objetivo
inicial desse capítulo, o entendimento do que é trabalho formal se faz necessário.
Segundo Chahad (1992), mercado formal de trabalho é aquele que “contempla as
relações contratuais de trabalho, em grande parte determinadas pelas forças de mercado, ao
mesmo tempo que são objeto de legislação específica que as regula.” (p. 379) e mercado
informal de trabalho, é “onde prevalece regras de funcionamento com um mínimo de
interferência governamental.” (p. 379), ou seja, ao que parece o mercado informal cria as suas
próprias regras, mas o governo como órgão regulador, de alguma forma interfere na dinâmica
desse tipo de mercado existente na sociedade. O autor chama a atenção para a certeza que
existe uma “dimensão relativamente grande” relacionada ao mercado informal, mas não é
possível, segundo ele, esquecer que no caso do Brasil quem dita a dinâmica da economia é o
40
setor formal do mercado de trabalho. Um dos pontos dessa dimensão, diz respeito “à sua
importância sócio-econômica, onde se formam inúmeras variáveis de profunda repercussão
sobre o cotidiano dos trabalhadores, tais como salários (reais e nominais), desemprego,
rotatividade, além de determinadas condições de trabalho e subsistência dos indivíduos.”
(CHAHAD,1992, p. 380)
A contribuição de Chahad (1992) é significativa e acrescenta em muito aos debates
sobre mercado de trabalho formal e informal, entretanto, uma melhor compreensão sobre
informalidade/setor informal/trabalho informal, demanda “passeio” sobre os diversos
conceitos trazidos por Cacciamali(1991), Guimarães (2004) e Filgueiras; Druck; Amaral
(2004)
5
e possibilita além de ampliação do conceito, entendimento de dinâmica tão complexa,
como o mercado de trabalho. Salientam os autores que para se chegar aos conceitos sobre
informalidade é preciso diferenciar as atividades informais na sociedade capitalista tomando
como base dois critérios, que são, “O primeiro desses critérios distingue o formal do informal
a partir das respectivas lógicas de funcionamento de suas atividades, isto é, se elas são
atividades tipicamente capitalistas ou não, enquanto o segundo critério delimita essa diferença
a partir da legalidade ou ilegalidade dessas atividades.” (Cacciamali, 1991; 1994; 1999;
Hugon, 1997 apud Filgueiras; Druck; Amaral, 2004, p. 212)
Conhecidos e compreendidos os critérios, o primeiro conceito sobre o termo
informalidade ou setor informal “foi elaborado no início de 1970, como resultado de um
estudo sobre a estrutura produtiva e de emprego e renda do Quênia” (p. 212).
O crescimento populacional acelerado e o inchaço das cidades em função do
deslocamento da população da zona rural para a zona urbana produz mão de obra excedente,
consequentemente trabalho informal, levando em consideração que o mercado de trabalho
formal não consegue absorver todo o contingente de sujeitos em condições de exercer função
produtiva e obter os ganhos previstos na lei.
Assim na ausência de mecanismos institucionais garantidores de uma renda
mínima tipo seguro desemprego a população não absorvida teve como
única alternativa de sobrevivência a ocupação em atividades de baixa
produtividade, fora da relação assalariada e sem proteção social. (Filgueiras;
Druck; Amaral, 2004, p. 213).
5
FILGUEIRAS, Luiz A. M.; DRUCK, Graça & AMARAL, Manoela Falcão do. O conceito de informalidade:
um exercício de aplicação empírica. Caderno CRH: revista do Centro de Recursos Humanos da UFBa,
Salvador, v. 17, n. 41, p. 211-229, Mai./Ago. 2004.
41
Esse primeiro conceito por ter sido alvo de muitas dúvidas e críticas propiciou em
meados dos anos 70, novas discussões que culminaram em um novo conceito sobre
informalidade/setor informal/trabalho informal. Fruto desse período, Cacciamali (1991)
define o setor informal como aquele que representa “o conjunto de atividades econômicas em
que não há uma separação nítida entre capital e trabalho.” (p. 121) E a autora complementa
dizendo,
Ou seja, é o produtor direto de posse dos instrumentos de trabalho e dos
conhecimentos necessários que, juntamente com a mão-de-obra familiar ou
com o auxílio de alguns ajudantes, executa e simultaneamente administra
uma determinada atividade econômica. Neste grupo estariam então
classificados os trabalhadores por conta própria, os prestadores de serviços
independentes, os vendedores autônomos, os pequenos produtores e
comerciantes e respectivos ajudantes, sejam estes familiares ou contratados
(p. 121)
Assim sendo, os autores partindo desse conceito elencam os grupos que são
considerados como informais. Segundo Cacciamali (1991) são os pequenos produtores,
comerciantes e ajudantes, trabalhadores por conta própria, vendedores autônomos, aqueles
que prestam serviço e são independentes, aos grupos que de origem familiar produzem e
vendem produtos sem regulamentação, tais como as comunidades agrícolas.
Em função da crise do fordismo e do Estado de Bem-Estar e do processo de
reestruturação produtiva imposta aos países capitalistas, a dinâmica do mercado de trabalho
abriu espaço para atividades laborais que não estavam sob a legislação vigente, dessa forma a
informalidade passa adquirir mais um conceito, como sendo “atividades e práticas
econômicas ilegais e/ou ilícitas, com relação às normas e regras instituídas pela sociedade.”
(FILGUEIRAS; DRUCK; AMARAL, 2004, p. 214), ou seja, “fogem da regulação do Estado
formulação surgida no final dos anos 80 nos países industrializados e que ganhou a
denominação de ‘economia subterrânea, submersa ou invisível’” (GUIMARÃES, 2004, p.
391) e por conta disso, “Essas atividades, por atuar parcialmente ou totalmente fora da
legislação vigente, têm que sonegar informações sobre o número de empregos gerados, o
nível de produção, o volume comercializado e as receitas percebidas, o que leva à
subestimação desses agregados nas estatísticas oficiais.” (CACCIAMALI, 1991, p. 122)
Conhecido os conceitos sobre informalidade, compete relacionar ao trabalho infantil
que segundo a literatura estudada insere-se na descrição de trabalho não regulamentado e/ou
42
ilícito, não gera renda fixa, não possui carteira assinada e a sua existência interfere no padrão
social em que crianças precisam estar na escola, entretanto atende aos ditames sociais de
exclusão como falta de oportunidades de emprego para um contingente da população, onde
famílias necessitam de força de trabalho das crianças para aumentar a renda financeira. Assim
entendido, o que será apresentado a seguir é o trabalho infantil tentando abarcar como ainda
se apresenta no mundo e no Brasil.
2.1 AS FACES DO TRABALHO INFANTIL
O trabalho infantil, presente em quase todos os países do mundo, é segundo Campos &
Alverga (2001) “uma verdadeira chaga social surgida desde o século XVII, a exploração de
mão-de-obra infantil em atividades produtivas, persiste em se fazer presente.” (p. 227)
As crianças trabalham por que as famílias pobres necessitam de mais “um braço” que
colabore com a sobrevivência da mesma. Essas mesmas famílias defendem que a criança que
trabalha não vadia, não rouba, não anda nas ruas e assim não se mistura com más companhias
e dessa forma compreendem o trabalho com o valor de aprendizado ou de regulação das ações
dos seus filhos. Essa é também a defesa de grande parcela da sociedade civil. Não é interesse
desse trabalho criar polêmicas sobre um assunto tão complexo que é o trabalho de crianças e
adolescentes com idade inferior ao que determina a lei, mas apresentar a “cara” do trabalho
infantil e assim contribuir para re-pensar discursos e ações, principalmente por que,
O trabalho precoce apresenta-se como um fenômeno social importante pelas
características de que foi revestido: envolver crianças, a maioria pobre, sem
oportunidades efetivas de crescimento e desenvolvimento, não raro (mas
longe de ser exclusivo) em áreas/regiões com estagnação econômica
importante, fatores potencializados pela inatividade do poder público e
baixa sensibilidade social, tornando-as junto com suas famílias
indivíduos submetidos a um estado de vulnerabilidade inaceitável para os
padrões de uma sociedade que se deseja próspera e democrática.
(FERREIRA, 2001, p. 214).
43
Segundo Grunspun (2000), era uma prática comum recrutar crianças pobres para
trabalhar. Isso já acontecia antes mesmo da revolução industrial onde os ricos utilizavam
crianças nas províncias agrícolas para limpar as chaminés de suas casas. Apesar da prática ser
comum entre os mais abastados, muitos foram os protestos da época para coibir ação tão
abusiva e desumana.
Em 1788 saiu a primeira tentativa para regular a situação e um Ato
especificou que a idade mínima dos pequenos trepadores era de 8 anos;
mandava lavar essas crianças uma vez por semana, mandar para a igreja no
sábado e que não deveriam ser forçados a subir na chaminé que estivesse
com ‘fogo aceso atual’ (p. 48)
Tentativa válida, mas não coerente, culminando para que em 1834, um novo Ato
elevasse a idade mínima para limpar chaminés de 8 para 10 anos de idade e mesmo assim na
condição de aprendiz. Em uma caminhada de, provavelmente, chegar a uma melhor condição
de vida para as crianças, é que seis anos após a determinação desse Ato, a lei proibia que
menores de 16 anos fossem recrutados como aprendiz para limpar chaminés e só poderiam
assumir a função efetivamente, aqueles que tivessem idade igual ou superior a 21 anos.
Os garotos eram recrutados para carregar os sacos de fuligem, mas quando
entravam nas casas, subiam pela chaminé. Todos sabiam, mas ninguém ia
para a cadeia por isso. Somente em 1875, quando o limpador de chaminés
precisava de licença para trabalhar é que o abuso começou a diminuir, mas
na verdade somente no início do século XX, quase 200 anos depois, quando
já havia maior educação pública a respeito e surgiu a tecnologia de limpar
com escovas giratórias é que o abuso de crianças limpadoras de chaminés
terminou. (p. 49)
Outros países preocupados com o avanço econômico exigido a partir da revolução
industrial cometeram os mesmo abusos da Grã-Bretanha, inclusive os Estados Unidos da
América. Neste, após quatro anos de Guerra Civil, a indústria, já bem desenvolvida nos
estados do Norte antes da guerra, vê no recrutamento das crianças, mão-de-obra importante
para colaborar com o crescimento do país. “Em 1870 o censo dos EUA, apontava 750.000
crianças entre 10 e 15 anos de idade, trabalhando nas indústrias, e talvez um número maior
ainda no campo. Em 1880, o número foi de 1.118.000 crianças menores de 16 anos;”
(STEARNS, 2006, p. 49).
44
Como bem afirma a citação acima, as crianças não trabalhavam apenas nas indústrias,
as famílias e os donos de grandes extensões de terra utilizavam força de trabalho infantil, que
com idade variando entre 10 e 12 anos de idade trabalhavam até 10 horas diárias,
regularmente.
A sociedade americana, indignada com tal situação, declarava-se contrária ao trabalho
de crianças, pois os números de abusos eram assustadores. Por conta disso, “Em 1904, foi
fundado o The National Child Labor Reform Commitee (Comitê Nacional de Reforma do
Trabalho Infantil), que por mais de duas décadas levou aos jornais histórias de abusos.”
(STEARNS, 2006, p. 148)
O trabalho das crianças nessa época as colocava em situação de perigo constante, pois
as fábricas eram insalubres ou utilizavam produtos químicos, além de não oferecer nenhuma
segurança à vida das crianças. Perigos morais também avultavam, pois as crianças
trabalhadoras ficavam expostas à exploração sexual ou serviam de chamariz de atividades
criminosas nas ruas.” (Idem, ibidem, p. 148)
Assim como no Brasil, empresários e agricultores defendiam a necessidade de manter
as crianças trabalhando, “citavam os benefícios para as famílias, o treinamento e a proteção
das próprias crianças contra os perigos da ociosidade” (p.148), exatamente como os
defensores brasileiros e por conta disso, as leis restritivas ao uso de força de trabalho infantil
nos EUA não surtiram o efeito esperado.
Muitos lutaram para que, após várias tentativas, em 1916, o Congresso aprovasse uma
lei que regulamentava a idade mínima de 14 anos para o trabalho infantil, entretanto essa lei e
a de 1918 foram consideradas inconstitucionais, sob a alegação de que feriam o direito
individual das pessoas. Mas ainda assim, “Por volta de 1920, a porcentagem de crianças
formalmente empregadas não chegava a 8%, para jovens de 10-15 anos, e por volta de 1940,
caiu para 1%.” (p. 148), entretanto ainda existiam crianças que eram utilizadas pelas famílias
nos serviços de casa. Essa categoria era difícil de ser medida, portanto quase impossível de ser
contabilizada na estatística anteriormente citada. Somente após o aumento do uso de
máquinas, que facilitavam o trabalho doméstico, é que as crianças deixaram de ser utilizadas
para executar tais tarefas. Sobre esse assunto, Stearns (2006), chama a atenção para outro fato
significativo, afirmando que,
No entanto, a questão era mais complexa: os pais, particularmente quando
as mães começaram a trabalhar fora do lar, geralmente achavam mais fácil
fazer o trabalho doméstico eles próprios do que perder tempo ensinando e
monitorando os filhos. As pressões para o bom desempenho escolar também
45
fizeram os pais hesitarem em exigir muita ajuda. Conselhos dirigidos aos
pais advertiam contra a exploração infantil como ressaltava um deles:
‘tenha bastante cuidado e não sobrecarregar a criança com
responsabilidades’. As próprias crianças passaram a opor resistência,
particularmente, depois dos 10 ou 12 anos. (p. 151)
Nunca é demais ressaltar que essa realidade de necessitar trabalhar fora e não dispor
do trabalho das crianças nas tarefas do lar e ainda poder comprar utensílios que auxiliassem o
trabalho doméstico, estava muito mais relacionada às famílias com relativa condição
financeira. Os mais abastados não se preocupavam com essas questões, pois as crianças
estavam cumprindo tarefas escolares ou em algum lazer. À camada mais pobre da população
todos trabalham, todos ajudam, todos colaboram para que todos sobrevivam.
Até por volta de 1930, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, “crianças e trabalho
formal simplesmente não se misturavam.” (p. 149). Nesse ínterim, Stearns (2006), alerta que,
De forma reveladora, a Grande Depressão dos anos 1930, que poderia ter
estimulado uma maior dependência do trabalho infantil em vista da redução
dos salários e do maciço desemprego de adultos, teve efeito oposto: as taxas
de natalidade caíram aos níveis mais baixos, à medida que as famílias
percebiam que não podiam sustentar mais do que uma ou duas crianças no
modelo moderno de infância. (p. 149)
Embates políticos e correntes contrárias à posição de abolir o trabalho de crianças,
conseguiram que em 1933, outra lei considerada inconstitucional pela Corte Suprema,
determinasse a idade de 16 anos como mínima para o trabalho infantil. Apesar do julgamento
da Corte, esta foi efetivamente colocada em prática, todavia em 1941, foi julgada e novamente
considerada inconstitucional. Por volta de 1940, os idosos passaram a receber pensão do
governo através do Sistema Social de Seguridade, o que alterou a ideologia da década de 30
de que os filhos deveriam prover o sustento dos pais na velhice fazendo com que se tornasse
“outro motivo tanto para a redução do índice de natalidade quanto para o término da
redefinição de infância e dos jovens adultos fora do trabalho.” (p. 149)
Somente em 1949, como Emenda à Constituição todos os estados americanos se viram
na obrigação de não mais contratar crianças com idade inferior a 16 anos. Segundo Gruspun
(2000), essa lei não protegia totalmente a criança que trabalha no campo, sendo exigida o
acompanhamento ou autorização dos pais delegando a eles, dessa forma a responsabilidade
46
pela formação da criança. Os que eram filhos de imigrantes, segundo o autor, não eram
efetivamente protegidos pelas leis, pois por não possuírem residência fixa já que mudavam
de acordo ao período de colheita não atendiam aos pré-requisitos impostos pelo governo. Ou
seja, ainda existiam crianças que necessitavam de proteção e cuidados na sua formação,
mesmo sendo a elas permitido os direitos que todos os cidadãos possuem e que devem ser
assegurados em qualquer circunstância.
Apesar de a década de 40 apresentar o índice de 1% de crianças trabalhando, “Houve
algumas exceções interessantes. Donos de jornais, por exemplo, sustentaram que os office
boys (contínuos) continuavam sendo necessários.” (STEARNS, 2006, p. 148), tornando mais
grave a situação levando em consideração que estes eram veículos de campanhas contra o
trabalho infantil, mas os donos de jornais contavam com o apoio dos pais que entendiam ser
necessário treinar os filhos para futuras possibilidades de profissão.
E ainda um outro fato alarmante confirma o que foi dito acima por Haim Gruspun
(2000), pois,
A utilização de crianças, quase sempre das minorias ou estrangeiras, pelos
trabalhadores migrantes das fazendas escapava da regulamentação. Várias
centenas de milhares de crianças ainda trabalhavam na agricultura
americana por volta de 2001 e apenas 55% das crianças trabalhadoras
tinham completado o secundário. (STEARNS, 2006, p. 148-149)
Essas questões apresentadas demonstram que a luta contra o trabalho infantil, com
intenção de atingir crianças de todo o mundo e de todas as classes sociais, nem sempre
conseguiu o seu objetivo, pois nos deparamos, principalmente nos países subdesenvolvidos
onde a miséria é “marca registrada”, com o uso indiscriminado de mão de obra infantil.
Por exemplo, em 1974, uma intensa campanha para erradicar o trabalho de crianças
com idade inferior a 16 anos não obteve sucesso porque não houve concordância de um
número significativo de nações para assinar o documento. Qual a justificativa? No caso dos
países pobres, estes “acreditavam que suas economias dependiam de certa forma do trabalho
infantil barato, e que muitas famílias pobres tinham essa necessidade.” (Idem, ibidem, p. 188),
e os países ricos como os Estados Unidos recusaram-se a assinar também, tanto porque
dependiam do trabalho infantil entre os trabalhadores imigrantes da agricultura quanto devido
a uma resistência geral à violação internacional à liberdade de ação nacional.” (p. 188), ou
seja, diante da responsabilidade de solucionar tão grave problema social, não houve quem o
assumisse a ponto de finalmente acabar com exploração infantil.
47
Somente em 1989, após intensas discussões foi assinado um acordo substitutivo em
que ficava proibido o abuso excessivo a crianças que trabalhavam, dando atenção especial à
exploração sexual e às famílias que vendiam os filhos em troca de dinheiro com o objetivo de
sanar problemas financeiros e aquelas famílias que colocavam os filhos em áreas de conflito
militar. Felizmente a maioria dos países pobres e ricos assinou o documento demonstrando
que estava disposto a assumir a responsabilidade com as crianças. Infelizmente na prática
algumas nações não cumpriram o que foi estabelecido.
Os países possuem questões sociais, culturais, econômicas e políticas muito
específicas o que os faz tomar atitudes pontuais relacionadas com suas crenças e que nem
sempre estão de acordo com o que foi estabelecido em discussões ou debates internacionais e
nos quais assegurou cumprimento do que foi determinado.
Além dos desacordos, muitas medidas políticas internacionais deixaram de
alcançar seus objetivos porque os problemas eram severos demais ou
porque regiões específicas simplesmente ignoravam os princípios firmados,
às vezes mesmo quando haviam assinado a convenção internacional para
mostrar ao mundo que permaneciam atualizadas e civilizadas. Desse modo,
o trabalho infantil na verdade aumentou no sul e sudeste da Ásia no final do
século XX, apesar da grande oposição internacional. (STEARNS, 2006, p.
189)
Quanto mais enraizadas forem as crenças de um povo, mais difícil são as
possibilidades de proporcionar mudanças na estrutura muito tempo construída. Além disso,
povos em que miséria e pobreza andam lado a lado com existência, é muito difícil não contar
com todas as possibilidades de ganhos financeiros. Apesar de não ser discutível a exploração
de mão de obra infantil existem pressões sociais que exigem a manutenção da vida,
independente de qualquer condição. Países desenvolvidos exigem que crianças sejam
preservadas na sua condição de infante e campanhas mundiais, promovidas por esses mesmos
países, sinalizam a premente necessidade de erradicação do trabalho infantil.
Um cientista social indiano comentou num jornal a notícia que denunciava
as longas horas e o confinamento das crianças trabalhadoras em indústrias
pesqueiras ao longo da costa. As crianças tinham sido recrutadas de outras
áreas, muitas vezes contra a vontade dos pais, que as queriam mais perto de
casa. Todavia, as próprias crianças achavam que o trabalho era
perfeitamente normal e estavam felizes de poder escapar das condições
miseráveis que tinham em suas aldeias de origem. Estavam também
48
contentes de poder remeter um pouco de dinheiro para as famílias.
Exploração? Definitivamente, segundo diversos padrões. Mas o problema-
chave era a massacrante pobreza. (STEARNS, 2006, p. 190-191)
Acrescentando, tomando como referência Campos & Alverga (2001), é preciso re-
afirmar que “a configuração de uma parcela significativa da força de trabalho infantil é devida
a necessidades geradas no seio familiar, decorrentes das insuficientes condições de
sobrevivência.” (p. 228)
Isto só corrobora o fato de que crianças com qualidade de vida e com famílias e
sociedades estruturadas só trabalham se assim o desejarem ou se os pais acharem que a
atividade a ser desenvolvida não trará nenhum dano à saúde física e mental. Com certeza,
muitos concordarão que um trabalho com essas características não configura exploração da
mão de obra infantil.
As questões relacionadas à infância pobre trabalhadora tiveram sua condição agravada,
porque em função da concorrência global e da redução dos programas sociais destinados aos
países em desenvolvimento, aumentou em muito a miséria social, segundo Stearns (2006). As
regiões da África, sul e sudeste da Ásia, América Latina, Brasil e Índia foram as que mais
sofreram com essa situação e as conseqüências foram drásticas. Muitas crianças passaram a
mendigar ou se prostituir nas ruas e algumas até passaram a roubar. Além do mais, nas
regiões em que empresas internacionais encontravam melhores condições de implantação e
mão de obra barata, o trabalho infantil aumentou consideravelmente. “O aumento de 50% no
final dos anos 1990 nessa imensa região de seis a oito milhões de crianças trabalhadoras, não
contando as empregadas na agricultura familiar, desafiou as tendências globais.” (p. 191)
O que se pode constatar é que empresas internacionais em seus países de origem
procuram seguir a legislação no que tange à admissão de crianças e adolescentes nos seus
quadros de funcionários. Entretanto, quando necessitavam de matérias-primas para confecção
dos seus produtos, buscavam preços mais baratos e os países em desenvolvimento tinham se
tornado mercados excelentes para esse fim. Estes países utilizavam contingentes de famílias
pobres e que consequentemente se utilizavam da mão de obra das crianças para produzirem
mais e em menor tempo, ou seja, ao procurarem esses países, as empresas, indiretamente
estavam sendo coniventes com o trabalho infantil, mesmo tendo claro que este é um ato ilegal.
Além disso, grandes multinacionais, divididas em várias partes do mundo, principalmente nos
países que ofereciam facilidades para implementação, ao abrirem suas frentes de trabalho,
empregavam qualquer mão de obra, desde que o custo/benefício fosse satisfatório. Nesse
49
grupo também estavam as crianças que levadas pelos pais, poderiam contribuir para melhorar
o nível de sobrevivência.
Nesse sentido, as condições de pobreza e exclusão social, consideradas
como fontes geradoras ou facilitadoras da inserção precoce no trabalho,
seriam apenas contingentes ao curso do desenvolvimento capitalista em
que, contraditoriamente, se misturam robótica, mundialização dos
mercados, alta competitividade empresarial e miséria social crescente. A
ocorrência dessa combinação pode ser detectada em várias cadeias
produtivas que em algum de seus pontos, usufruem a superexploração do
trabalho informal, terceirizado ou quarteirizado, incluindo a mão-de-obra
infantil e/ou infanto-juvenil. (FERREIRA, 2001, p. 217)
A exploração da mão de obra infantil, se não está presente em todo o mundo é um
problema que atinge a todos. A OIT, instituição criada em 1919, identificou, através de dados
das regiões onde o trabalho infantil é mais evidente, que “A carga horária para os
trabalhadores precoces no mundo não é leve. Em média, os meninos e meninas cumprem
jornada de até 45 horas por semana, superior à que a legislação dos países pesquisados
delimita no caso dos trabalhadores adultos.” (CIPOLA, 2001, p. 23). Associada a intensa
jornada de trabalho, estão expostos a condições subumanas que podem causar danos à saúde
física e mental. Segundo Cipola (2001), a OIT estima que 20% das crianças que trabalham
sob essas condições, adquiram danos e seqüelas, irreversíveis em um futuro muito próximo.
Dentre as regiões que mais exploram mão de obra infantil, estão Ásia, África e
América Latina, este último, de acordo com relatório da OIT de 1998 aparece “com 7,6
milhões de crianças entre dez e 14 anos trabalhando, o que significa um em cada cinco. Elas
representam 4% da população economicamente ativa da região.” (CIPOLA, 2001, p. 24). Na
Ásia continente que mais explora crianças estão trabalhando, “41% das crianças entre dez
e 14 anos. No total, são 61 milhões de trabalhadores-mirins. (p. 24). No caso da África, em
segundo lugar, são “32 milhões de crianças” (p. 24), realizando atividades de adultos.
No caso da América Latina cabem maiores informações. Ao tomar conhecimento das
mesmas, fica claro como o trabalho necessita de ações imediatas para sua completa
erradicação. Diz Cipola (2001):
50
Desses trabalhadores [infantis], 90% estão na economia informal; três em
cada quatro deles não têm mais que dois anos de escolaridade. A jornada
média de trabalho é de 35 horas semanais, e os salários pagos a 90% dos
garotos e garotas é inferior ao salário mínimo de seus respectivos países. (p.
24)
E as realidades específicas demonstram que é preciso tomar providências urgentes. Na
Colômbia, um dos países que mais explora o trabalho de crianças, “a metade das 800 mil
crianças que o governo reconhece que trabalham não possui nenhum grau de instrução.” (p.
24). Já no caso de
Argentina, Chile e Uruguai são os países da América Latina com melhor
desempenho nesse quesito. Na Argentina, por exemplo, 252 mil crianças
trabalham, segundo o Fundo das Nações Unidas Para a Infância (Unicef);
149 mil, segundo o governo argentino. No Chile, as crianças só podem
trabalhar após concluírem a educação básica e receberem autorização dos
pais. Lá, apenas 107 mil crianças trabalham. (p. 25)
No Brasil a situação é tão alarmante como em qualquer outro país do continente. Pois
“a taxa de trabalho infantil no país é uma das três maiores da América Latina, se
considerarmos o trabalho de crianças de cinco a 14 anos.” (p. 25). No país uma em cada dez
crianças trabalha, dessas há 2.532.065 com idade variando entre dez e 14 anos e 375 mil estão
dos cinco aos nove anos de idade. “Em 1995, o país tinha 12,5% das crianças nessa faixa
etária trabalhando. Isso significa dizer que 36,8% da mão-de-obra infantil da América Latina
é brasileira.” (CIPOLA, p. 25)
Inserido nessa realidade está o Nordeste que “concentra mais da metade dos 600 mil
trabalhadores da zona rural.” (p. 26) e que utiliza crianças em diversas áreas da agricultura,
tais como, plantação e beneficiamento do sisal, fumo, cana de açúcar, algodão dentre outros.
“Mas há a exploração em madeireiras, fábricas de móveis, garimpos, pesca, carvoarias,
salinas, pedreiras, tecelagem, cerâmicas, casas de farinha.” (p. 26) sob as piores condições
para o desenvolvimento das tarefas.
Nas áreas urbanas do país, ainda segundo a PNAD, a presença de crianças
ocorre em maior número em lixões (100 mil), atividades ilícitas como o
tráfico de drogas (73 mil), e comércio de rua (50 mil). Há ainda 5 mil
engraxates e 3 mil distribuidores de jornais e revistas. (p. 26-27)
51
Essas conclusões, fruto de pesquisas realizadas entre 1982 e 1999, demonstram que a
realidade brasileira, no que tange à utilização do trabalho de crianças e adolescentes, ainda
está longe de alcançar o ideal. Diante do que foi exposto até aqui, países de primeiro mundo
incentivaram a escolarização em massa para assim conseguirem erradicar o trabalho infantil.
Não se pode dizer que lograram sucesso em 100%, mas não se pode comparar com os países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, com as taxas já apresentadas anteriormente.
Os dados da PNAD de 2006
6
indicam que a luta no Brasil, não foi de todo perdida.
Para as crianças 5 a 9 anos de idade, por exemplo, observa-se:
1. Redução absoluta do número de crianças trabalhando entre 2005 e 2006:
de 264.614, em 2005, para 213.822, em 2006. Em termos relativos, a
proporção passou de 1,6% para 1,3% de crianças ocupadas na faixa etária
compreendida entre 5 e 9 anos;
2. Diminuição, no período de 2002 a 2006, na média das horas semanais
trabalhadas de 12,3 para 10,5 horas semanais;
3. Menor proporção de crianças ocupadas em serviço doméstico não
remunerado, mas ainda um aumento no trabalho para consumo próprio;
Já para os jovens entre 10 a 17 anos, verifica-se que:
1. A taxa de desemprego cai nas regiões Sudeste, Nordeste e Norte entre
2005 e 2006;
2. Também cai a taxa de atividade de jovens entre 2005 e 2006;
3. Reduz-se a proporção de jovens ocupados no setor agrícola entre 2005 e
2006;
4. entre 2005 e 2006, identifica-se acréscimo de 27% para 35% da parcela
de jovens ocupados que freqüentam o Ensino Médio.
Para um país que se interessa por números pode-se dizer que realmente existiram
avanços, mas para quem prefere o olho na realidade não é tão simples ou fácil perceber esses
avanços. Basta caminhar pelas ruas de qualquer cidade brasileira, para ter a certeza de que as
crianças estão nas sinaleiras, vendendo nas ruas ou onde acharem compradores, se
prostituindo, resolvendo os problemas familiares através da ação de vender produtos e levar
dinheiro para casa (quando há uma) na tentativa de continuarem sobrevivendo: ela (a criança)
e os seus (familiares).
O alerta de Cipola (2001) é muito pertinente, porque “Estima-se que 250 milhões de
crianças trabalham no planeta, quase sempre em funções que impossibilitam o
desenvolvimento integral, o que é condenável de todos os aspectos. O trabalho infanto-juvenil
é muito disseminado nos países pobres e quase inexistente nos ricos. (p. 9)
6
Dados podem ser comprovados no site: www.ibge.gov.br
52
Com esse dado, complementa dizendo que,O trabalho infanto-juvenil, além de ser
social e eticamente indesejável, é um instrumento de manutenção da pobreza. Gera perdas
financeiras consideráveis, conseqüentes ao baixo desenvolvimento humano das crianças
obrigadas a trabalhar.” (p. 80)
E conclui, afirmando que, “Erradicar o trabalho infantil no planeta é antes de mais
nada uma forma de combate à pobreza, de desenvolvimento da educação e de garantia dos
direitos humanos.” (p. 30)
A garantia dos direitos humanos está respaldada por uma legislação que, em
determinados momentos protege o indivíduo, em outros incentiva a prática do trabalho
infantil favorecendo que empresários, legalmente, contratem mão-de-obra infantil, retirando-
as da trajetória natural de construção da identidade, mediante relações dinâmicas com a
família e com a sociedade.
O trabalho infantil que aparece no mundo inteiro, com maior ou menor grau de
freqüência, com leis mais rígidas ou não, está como uma questão social, nos impelindo a
pensar suas causas e conseqüências bem como convidando a toda população para
efetivamente agir em favor das crianças.
53
Capítulo III
3. LEGISLAÇÃO E TRABALHO INFANTIL
Um levantamento sobre a legislação a respeito do trabalho de crianças e adolescentes
será apresentado a seguir, mas antes, é importante saber que a Convenção dos Direitos da
Criança da Organização das Nações Unidas, de 1989, considera que criança para efeito de
proteção integral, seria toda pessoa na faixa etária de 0 (zero) aos 18 (dezoito) anos e a
adolescência, dos 16 (dezesseis) aos 18 (dezoito) anos de idade. Essa separação por idade para
se entender o que é infância e o que é adolescência definida por essa convenção, na
legislação, não é a mesma antes de 1989 e não se manterá após esse ano. Isso prova que a
legislação atendeu aos ditames da sociedade que historicamente e socialmente constituída
impuseram aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, alterações na lei que atendessem
as necessidades da população. Mesmo na lei, é possível ratificar a teoria de Leite (2003),
quando nos faz compreender que infância está muito mais ligada a questões culturais e
históricas do que a questões biológicas.
Segundo Nunes (2003) a primeira lei relativa à infância data de 1824, promulgada pela
Assembléia Nacional que no artigo 179, § 32 “referia-se ao direito do cidadão à instrução
primária gratuita” (p. 112) e esta se repete na sua íntegra na Assembléia Nacional de 1891.
No ano de 1854, o Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Município
Neutro, demonstrou que a sociedade se preocupava com a as crianças pobres e as que
andavam na rua, pois “defendeu a criação de entidades profissionalizantes” (CAMPOS &
54
ALVERGA, 2001, p. 230), como forma de ao garantir o conhecimento de um ofício, poder
possibilitar uma condição social mais digna.
Geralmente alugadas em instituições de caridade e asilos de órfãos, muitas
dessas crianças não tinham mais de 10 anos, havendo mesmo inúmeros
casos de meninos e meninas de 5 ou 6 anos trabalhando 12 horas diárias, na
indústria têxtil. Portanto, o Decreto de 1854 apenas oficializa o quadro em
que se encontravam as crianças filhas da pobreza [...] (p. 230-231)
O então presidente da República Deodoro da Fonseca, em 1891, através do Decreto-Lei
nº 1.313, regularizou “o trabalho infantil nas fábricas do Rio de Janeiro, então capital federal.
Critérios como fiscalização, limite de idade, fixação da jornada de trabalho ficaram
manifestos”. (NUNES, 2003, p. 113). A respeito desse decreto, Campos & Alverga (2001),
afirmam que,
A ideologia do trabalho como ‘elemento educativo, formador e
reabilitador’, que justificava sua prescrição como alternativa para ‘a
vagabundagem’, ajuda a explicar porque o Decreto n. 1.313, de 17 de
janeiro de 1891, que ‘estabelecia providências para regularizar trabalho dos
menores empregados nas fábricas da Capital Federal’, nunca foi cumprido.
(p. 231)
Confirmando o que já se sabe, que nesse país questões urgentes são deixadas de lado em
detrimento do que o poder legislativo determina como relevante. O trabalho infantil, nessa
época como pode ser comprovado acima, não fazia parte dos problemas sociais da época.
Oito anos depois, o governo que quer se preocupar com a infância cria em 1899, o
Instituto de Proteção e Assistência a Infância no Rio de Janeiro. Uma infância elitizada, a
princípio, para depois ser estendido às camadas populares. Era uma política assistencialista,
segundo Andréa Rodrigues (2003), que atendendo aos pobres e abandonados, não permitia
que se transformassem em indigentes ou, delinqüentes, além é claro de não acrescer o número
de mortos em idade prematura.
Essa política de repressão à delinqüência e mendicância, faz com que o governo, em
1902, a partir de uma reforma do serviço policial federal, criasse colônias correcionais com a
intenção de reabilitar e instruir pelo trabalho, os mendigos espalhados pela cidade. “A reforma
indicava certa preocupação em amenizar os riscos de uma reprodução social via mendicidade
55
e criminalidade”. (NUNES, 2003, p. 114). Em 1906 é apresentado à Câmara Federal o
primeiro projeto de criação de um Juízo de Menores, o qual só será efetivamente criado em
1923. Estas ações demonstram que a principal preocupação dos governantes, bem como de
toda uma população, composta de políticos, jornalistas, médicos, era conter o avanço da
delinqüência infanto-juvenil.
Entendido está que a legislação procura dar conta da infância pobre e conseqüentemente
dos problemas advindos da mesma a década de 20 é um exemplo disso , entretanto, uma
ação, demonstra, através da lei, que o governo e legisladores, está atenta com a criança e o
adolescente que trabalham. Em 1917, uma lei, a 1.801 determinava que 14 anos seria a idade
limite e impunha condições para admissão na fábrica e reduzia a jornada de trabalho para 6
horas. Esta, atuando especificamente sobre o trabalho infantil, no meio das preocupações com
saúde, higiene, mendicância e delinqüência, coloca o governo em posição de regular e punir
ações nessa área.
A Organização Internacional do Trabalho OIT, filiada à Liga das Nações, na década
de 20, “começou a aprovar resoluções contra o trabalho infantil até a idade de 15 anos”
(STEARNS, 2006, p.186), e tentou estender esse critério ao mundo todo com discussões em
convenções, que culminaram em resoluções claras contra o trabalho excessivo de crianças e
adolescentes e exigindo que fosse assegurado o direito pleno à educação.
É pauta de discussão, ainda na década de 20, a preocupação com a delinqüência
demonstrada em 1902 e 1906, o que de acordo com Alvim & Valladares (1988), a
questão da infância pobre se torna da alçada jurídica. Dando seqüência a um
conjunto de leis voltadas para a regulamentação do menor, os juristas vão se
voltar pra os meninos não absorvidos pelo ramo industrial que constituíam
um desafio à sociedade urbana emergente quando ‘vadiando’ pelas ruas. (p.
6)
Nunes (2003) ratifica Alvim & Valadares acrescentando que era “Uma legislação que
induzia as famílias pobres a controlar com maior atenção seus filhos; caso contrário, estariam
sujeitas a perdê-los”. (p. 115) E é o próprio Nunes (2003) que complementa, dizendo, “A
categoria infância é paulatinamente substituída pela de ‘menor’, na base de uma quantidade
de leis, códigos e instituições que se sucedem como se refletissem um non sense geral no
tratamento da questão infantil.” (p. 111)
56
Entre as ações do Judiciário, é possível citar que em 1921, com a Lei 4.242, o Código
Civil é modificado, considerando como abandonado o menor
7
sem habitação certa ou sem
meios de subsistência, o órfão ou sem um responsável apto a cuidar do mesmo. Já em 1923,
finalmente é criado o Juízo de Menores. Este, tem como principais objetivos, proteger a mão-
de-obra infantil que naquele momento era muito utilizada pelas fábricas e acabar com o caos
social provocado pelo alto índice de mendicância e criminalidade, “jogando” em instituições
especializadas os infratores e que porventura estivessem
É mister encarar o desafeto da sociedade da época pela rua. “Pensada em oposição ao
espaço familiar, privado, a rua é entendida como locus de não-subordinação à família e ao
trabalho”. (ALVIM & VALLADARES, 1988, p. 5). Esta na condição em que é colocada
como sendo o espaço onde a possibilidade de liberdade/libertinagem, indisciplina pode
ocorrer vai de encontro à função da família e do trabalho, como sendo estes, os únicos
possíveis de socialização e de manterem as crianças sob a égide da disciplina e da instrução
para uma cidadania plena. Essa certeza impulsiona governantes, poder judiciário e sociedade
de um modo geral, a manter crianças e adolescentes, fora das ruas (principalmente os das
camadas populares, os pobres), controlados pela “mão protetora” do trabalho, que através das
leis instituídas mantém a ordem e o progresso tão necessários à sociedade capitalista. “Ao
ocupar-se do menor, o Estado integra-o numa ordem que o capacita, em princípio, a exercer
uma função social que poderá resumir-se a suas possibilidades de inserção no mercado de
trabalho.” (NUNES, 2003, p. 137)
Independente de ser ou não trabalhadora, as ações precisam proteger a criança e é assim
que em 1923, formulados por uma organização não-governamental a International Union for
Child Welfare foram estabelecidos os princípios dos Direitos da Criança. A recém-criada
Liga das Nações posteriormente conhecida por Organização das Nações Unidas, reunida em
Genebra no ano seguinte incorpora e expressa esses princípios, na primeira Declaração dos
Direitos da Criança. São quatro os itens estabelecidos: (a) a criança tem o direito de se
desenvolver de maneira normal, material e espiritualmente; (b) a criança que tem fome deve
ser alimentada; a criança doente deve ser tratada; a criança retardada deve ser encorajada; o
órfão e o abandonado devem ser abrigados e protegidos; (c) a criança deve ser preparada para
ganhar sua vida e deve ser protegida contra todo tipo de exploração; (d) a criança deve ser
7
Segundo Cavallieri (1986 apud Alvim & Valladares, 1988, p. 17) “o termo menor é destinado à criança na
perspectiva jurídica e que o define como uma pessoa cuja idade a coloca em posição distinta dos demais perante
a lei”. Dessa forma o termo, segundo Araújo (1984 apud Alvim & Valladares, 1989, p. 17) “não se confunde
com outras designações aplicáveis aos não adultos como as palavras ‘jovens’, ‘menino’, ‘criança’”.
abandonados nas ruas.
57
educada dentro do sentimento de que suas melhores qualidades devem ser postas a serviço de
seus irmãos.
Em 1927, é criado o primeiro Código de Menores, que consolida as leis de assistência e
proteção aos menores. “O espírito do Código se expressa logo no seu 1º Capítulo, quando diz
que o objetivo e o fim da lei é ‘o menor, de um ou de outro sexo, abandonado ou delinqüente,
que tiver menos de 18 anos de idade’” (ALVIM & VALLADARES, 1988, p. 6). Ainda em
27, é sancionado um decreto, que próximo das ações governamentais de disciplinarização do
trabalho, intentavam afastar a criança pobre do lazer, vadiagem ou delinqüência, “A criança
devia voltar suas energias para o trabalho de forma rápida, precisa e racional, ou seja, com o
total controle sobre suas paixões e desejos.” (RODRIGUES, 2003, p. 59). O Decreto 17.943
cria a primeira Consolidação das Leis Trabalhista CLT. Através desta, determina-se a
proibição do trabalho de crianças com idade inferior a 12 anos e do menor com idade entre 12
e 14 anos, salvo a partir de autorização judicial. A criação da CLT com a respectiva
regulamentação da idade mínima, acende a “chama” da responsabilidade dos setores
responsáveis em não permitir que “corra solto” a utilização de mão-de-obra infantil,
entretanto o que se observava, segundo Spindel (1989) era que o decreto de 27 e as
Constituições de 34, 36 e 46, por não possuírem um “eficiente sistema fiscalizador e no
contexto de um processo de implantação da infra-estrutura do parque industrial brasileiro e de
intensa industrialização, tais normas foram burladas com freqüência”. (p. 35)
Não é possível, nesta cronologia referente à legislação, deixar de mencionar os avanços
e retrocessos das Constituições de 34, 37, 46 e 67. Segundo Spindel (1989) a Constituição de
34, determinava que o limite mínimo de idade para o trabalho seria de 14 anos. “Em 1934, o
art. 121 (§ 1º, alínea d) reflete a permanente preocupação com a necessidade de regular o
trabalho de menores. Proíbe o trabalho a menores de 14 anos; o trabalho noturno a menores de
16 anos; e o trabalho a menores de 18 anos em ambientes industriais insalubres”. (NUNES,
2003, p. 116)
A Assembléia Nacional de 1937 garantiu obrigatoriedade de estudos primário e pré-
vocacional para crianças pobres. O estudo pré-vocacional é uma novidade assegurada pela
Constituição de 1937, e especificamente no que diz respeito a esse estudo, segundo Nunes
(2003), nesta Constituição “evidenciou-se a preocupação do Estado em incorporar no
mercado de trabalho a infância pobre e delinqüente, crescente nas grandes capitais”. (p. 117)
Mantendo esse interesse de controlar a população pobre vide crianças e jovens em
1940 é criado o Serviço de Assistência ao Menor SAM, que subordinado ao Ministério da
58
Justiça, tinha como objetivo combater e prevenir a criminalidade infanto-juvenil, a criação
desse órgão, “[...] é sem dúvida um indicador de que a questão do menor saíra dos textos
jurídicos para se tornar uma questão nacional”. (ALVIM & VALLADARES, 1988, p. 8).
O SAM foi ápice de um processo de intervenção direta, gestado lentamente
a partir da década de 1920. Sua subordinação ao Ministério da Justiça
aponta para a prevenção e o combate à criminalidade infanto-juvenil.
Transformou-se em modelo para infrações praticadas por menores.
Inspiradas no SAM, criaram-se várias instituições para atender crianças
pobres. Destaque-se, a infância passou a ser tratada como problema
nacional, não mais um fenômeno regional ou específico da capital federal.
(NUNES, 2003, p. 117)
A Legião Brasileira de Assistência-LBA de 1942, que segundo Nunes (2003) é “um dos
marcos no tratamento da questão do menor pelo Estado, para ocupar-se de filhos dos
integrantes da Força Expedicionária Brasileira que participaram da Segunda Guerra.”(p. 117)
era uma das instituições que se interessavam por crianças e jovens pobres, e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial-SENAI também tinha esse foco.
Em meio a tantas normas legais relacionadas à infância, no ano de 1943, o Congresso
Nacional,
redefinia faixas etárias para trabalhadores menores em trabalho insalubre,
noturno ou não. O art, 80 considerava o ‘menor aprendiz’ entre 12 e 18
anos. O art. 403 proibia trabalho a menores de 12 anos. O trabalho dos
menores de 12 a 14 anos ficava sujeito a condições como garantia de
freqüência à escola primária. E o art. 404 vedava o trabalho noturno a
menores de 18 anos. (NUNES, 2003, p. 118)
Seguindo a linha de qualificar profissionalmente jovens para a indústria, em 1946, são
criados o Serviço Social da Indústria - SESI, Serviço Social do Comércio - SESC e o Serviço
Nacional de Aprendizado Comercial - SENAC. Atitudes como essas, advindas da iniciativa
privada, aliadas às ações governamentais vão conseguir atender a uma parcela da população
jovem o adolescente com mais de 18 anos que ao sair da escola, sem formação específica,
ficava à mercê de oportunidades no mercado de trabalho, já tão inchada pela mão-de-obra
adulta, muitas vezes excedente por falta de emprego.
Enquanto a sociedade brasileira, através das suas constituições intentava regularizar o
trabalho do menor, o mundo se via ao fim da Segunda Guerra Mundial, tendo que resolver o
59
problema de milhares de crianças órfãs ou deslocadas de seus pais e família. Nesse ínterim, a
ONU resolveu criar um Fundo Internacional de Ajuda Emergencial à Infância Necessitada.
Surge assim, em 11 de outubro de 1946, o Unicef - United Nations International Child
Emergency Fund, com o objetivo de socorrer as crianças dos países devastados pela guerra.
Em seus primeiros três anos, os recursos do Fundo foram encaminhados para o auxílio
emergencial (sobretudo em alimentos) a crianças dos 14 países arrasados pela guerra da
Europa e da China, como também às crianças refugiadas da Palestina (1948 a 1952) vítimas
da criação do Estado de Israel. Pela primeira vez tinha-se o reconhecimento internacional de
que as crianças necessitavam de atenção especial.
Na Constituição de 46 são feitas restrições ao trabalho da criança, e mantido o limite de
14 anos de idade para o trabalho. Outras vitórias nesta Constituição dizem respeito a
proibições de ações abusivas quanto ao trabalho do adolescente entre 14 e 18 anos de idade e
discriminação de salários por motivo de idade.
De acordo com Nunes (2003), no Brasil “entre 1948 e 1964, houve um vácuo na
promulgação de normas legais de tratamento das crianças” (p. 118), sendo assim no que tange
à legislação que tentaria proteger a infância e regulamentar o trabalho a que ela estava exposta
só são retomadas em 1964, o ano do golpe militar.
Para o mundo e para o Brasil, o ano de 1959 é significativo para o avanço das conquistas
relativas á infância. Nesse ano, as Nações Unidas proclamaram a Declaração Universal dos
Direitos da Criança, o que provocou um profundo impacto nas atitudes de cada nação diante
da infância. Neste documento, a criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história,
prioridade absoluta e sujeito de direito. A Declaração enfatiza a importância de se intensificar
esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência,
proteção, desenvolvimento e participação, obrigando os países do mundo a ficarem atentos
contra a exploração e o abuso de crianças, os quais, deveriam ser severamente combatidos,
indo na direção das causas como forma de evitar conseqüências desastrosas para toda a
sociedade.
De 1959 a 1964 são 5 (cinco) anos e apesar do que a Declaração Universal dos Direitos
da Criança preconizou não existem dados de ações pontuais no Brasil, nessa época, para
colocar em prática as decisões que deveriam ser tomadas para assegurar os direitos das
crianças.
60
No Brasil, crianças e jovens nas ruas eram um problema social que interferia na
dinâmica natural da convivência cotidiana, ou seja, um passo, concreto para a marginalidade
ou delinqüência. Para tentar resolver esse problema e identificando a ineficiência do SAM,
criado em 40, segundo Alvim & Valladares (1988), o governo, em 1964, através da Lei 4.513
e “dentro de uma perspectiva modernizadora, expressa também em outros setores da política
social (habitação e previdência social), [cria] a Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar
do Menor)” (p.9). Uma nova proposta foi implantada com o objetivo de reeducar a criança,
proporcionando total apoio à família e à comunidade, sem que para isso utilizasse como único
método o internamento. Era a forma de o governo reconhecer sua ineficiência até então,
oferecendo uma nova solução para a questão da criança e do adolescente marginalizado. “Esta
instituição incorporou o patrimônio e as atribuições do SAM e passou a exercer papel de
órgão central na formulação de política nacional para o menor, ultrapassando a atribuição de
executora dessas políticas”. (NUNES, 2003, p. 119)
Infelizmente, no período de vigência da Constituição de 1967 em pleno período do
regime militar a sociedade da época se viu obrigada a efetivamente propiciar condições de
trabalho para a ampliação da massa de trabalhadores, já tão intensa com a quantidade de
adultos no mercado de trabalho. Para atender essa nova perspectiva, uma política econômica
de arrocho salarial foi implantada, dificultando ainda mais as possibilidades de sobrevivência
dos trabalhadores e suas respectivas famílias. Esse cenário que ora se apresentava, acelerou a
necessidade de que as famílias tivessem um maior contingente de força de trabalho produtiva.
Esse maior contingente estava nas mãos de filhos e filhas como colaboradores, ou, em muitos
casos, os únicos a sustentaram as famílias.
A concorrência de mão-de-obra, verificada com a ampliação da faixa etária
de admissão ao mercado de trabalho, e a vantagem diferencial de salários já
descrita em termos da lei 6274/67 combinaram-se em um momento bastante
particular do desenvolvimento econômico brasileiro, mais exatamente
naquele momento em que se lançavam as bases para a expansão de 1968-
73. É bem verdade que para efetivação concreta dos objetivos implícitos nas
mudanças da legislação se fazia necessária e urgente uma contrapartida de
oferta de força de trabalho nesses grupos etários (SPINDEL, 1989. p. 36-
37).
Não é difícil perceber que essa política econômica associada à repressão dos anos de
ditadura militar não possibilitariam o aproveitamento da enorme mão-de-obra da qual o país
dispunha naquele momento. Estava clara a necessidade de fazer o país crescer, inclusive como
61
forma de “aparecer bem na foto” para o mercado internacional, utilizando mão-de-obra
qualificada, mas principalmente barata, para que a relação custo/benefício trouxesse lucros
para os setores que dirigiam o país. Nessa perspectiva há um crescimento exagerado da
urbanização tendo como conseqüência grave o aumento dos índices de desigualdade social e
de pobreza. Um panorama social tão excludente e desigual afeta em muito a estrutura social,
quiçá a estrutura familiar que se vê às voltas com um universo em que crianças e adolescentes
compreendendo ou não o que se passava inclusive essa não era a maior preocupação é
retirado da proteção familiar em busca da sobrevivência no trabalho, ou o que era mais
inquietante, nas ruas. Como resposta a esse panorama, a Lei 5.274/67 estabelece que a idade
mínima para o trabalho, seja de 12 anos de idade e não mais de 14 anos, além de assegurar
que o pagamento a trabalhadores infantis, independente se for ou não aprendiz, deva ser
inferior ao salário mínimo
8
. Está categorizada nesta Constituição a discriminação de salário
por idade na medida em que determina a diferenciação entre trabalhadores adultos e infantis.
Paralelamente à preocupação do Estado em intervir de forma global, assiste-
se nos anos 70 a uma série e outras iniciativas advindas de setores da
sociedade também preocupados com a situação a que chegaram a infância e
a pobreza no Brasil. Destaca-se sobretudo a preocupação dos juristas que,
associando o aumento da criminalidade infanto-juvenil à pobreza, passam a
organizar com regularidade, através do Tribunal de Justiça de São Paulo,
Semanas de Estudo do Problema do Menor (ALVIM & VALLADARES,
1988, p. 10).
A Constituição de 1974 representa um avanço para as questões ligadas à criança e ao
adolescente que trabalham. Revoga-se a Lei 5.247/67 extinguindo-se assim qualquer
discriminação de salário por idade, bem como pagamento inferior ao salário mínimo,
entretanto a idade mínima para o trabalho de 12 anos é mantida, que em si não configura um
avanço.
Em 1976, a Câmara dos Deputados instaurava a primeira Comissão
Parlamentar de Inquérito do Menor (CPI do Menor). A síntese dos trabalhos
pode demonstrar a defasagem do Código de Menores, criado em 1929,
então em vigor. Insistia-se na prioridade que deve ser outorgada ao menor
pelo Estado. O resultado da CPI consubstancia-se em 1979: o Congresso
Nacional promulga a Lei nº 6.697, que cria o novo Código de Menores,[...]
(NUNES, 2003, p. 119)
8
A CLT no Art. 80 já determinava que o menor aprendiz deveria receber salário inferior ao mínimo, a
Constituição de 1967 amplia o alcance da lei.
62
Apesar da criação do novo Código do Menor ser um avanço, ele se volta muito mais
para o menor infrator do que para o menor trabalhador, dando continuidade à política social
desenvolvida a partir da criação da Funabem. Esta lei, assim como a 4.513/64, “buscam
assegurar assistência à infância e à juventude em ‘situação irregular’ por meio de medidas
preventivas e terapêuticas.” (Idem, ibidem, p. 128)
A Constituição de 1988 determinava que o trabalho infantil só seria permitido a partir
dos 14 anos de idade em paralelo com a obrigatoriedade da educação escolar até esta idade,
entretanto a Emenda Constitucional nº 20, publicada no final de dezembro de 1988, modifica
o art. 7º da CF, proibindo o trabalho de menores com idade inferior a 16 anos de idade.
Segundo Grunspun,
A aprovação da emenda aconteceu dentro do contexto das votações pela
aprovação da Reforma Previdenciária (Seguro Social). O objetivo do
aumento da idade mínima para o trabalho, foi adequar a idade e
aposentadoria às novas regras da Reforma, uma vez que uma pessoa que
inicia suas atividades laborativas aos 14 anos de idade, ao fim de 35 anos de
trabalho se aposentaria aos 49 anos de idade, ficando fora das novas
determinações (2000, p. 70).
Apesar do fim não parecer muito ético, ou seja, não havia um interesse direto em
acabar ou pelo menos melhor regulamentar o trabalho infantil e sim não pagar aposentadoria a
um contingente significativo da população em idade ativa de trabalho, ao menos, indicava a
necessidade de re-pensar a situação do menor que em plena idade de produção intelectual
estaria utilizando energia física/manual em tarefas ainda não condizentes com o
amadurecimento cognitivo. Adolescentes com idade entre 14 e 16 anos são enquadrados em
trabalhos educativos, com apenas 4 horas diárias sem prejuízo para a educação escolar e
ficam sob a coordenação das entidades pertencentes ao sistema S (SESI, SENAI, SESC e
SENAC). Segundo Grunspun, essas entidades não estavam preparadas para o enorme
contingente de adolescentes, que sem um trabalho efetivo, não possuíam vale-alimentação e
outras vantagens de um trabalhador registrado, tornando assim um peso para as famílias que
durante dois anos teriam que sustentá-los.
A Constituição de 1988 é um avanço no que tange à necessidade de se respeitar a
criança e regulamentar o trabalho a que ela é submetida e se associa aos direitos assegurados
pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, realizada em 1989,
promovida pela Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos e baseada nos princípios da
63
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) nos Direitos da Criança (1959). Marco
nas ações em favor da infância em todo o mundo, importante se faz elencar os principais
direitos consagrados por esta Convenção,
A Convenção define como criança qualquer pessoa com menos de 18 anos
de idade (artigo 1), cujos 'melhores interesses' devem ser considerados em
todas as situações (artigo 3). Protege os direitos da criança à sobrevivência e
ao pleno desenvolvimento (artigo 6), e suas determinações envolvem o
direito da criança ao melhor padrão de saúde possível (artigo 24), de
expressar seus pontos de vista (artigo 12) e de receber informações (artigo
13). A criança tem o direito de ser registrada imediatamente após o
nascimento, e de ter um nome e uma nacionalidade (artigo 7), tem o direito
de brincar (artigo 31) e de receber proteção contra todas as formas de
exploração sexual e de abuso sexual (artigo 34).
A Declaração dos Direitos da Criança e a Convenção das Nações Unidas sobre esses
direitos tiveram forte impacto internacional junto aos governos nacionais. Depois delas foram
convocadas outras reuniões internacionais para cuidar de graves problemas contemporâneos
que afetam a vida e o desenvolvimento de milhões de crianças em todas as partes do mundo,
como o Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças (Estocolmo,
1996), a Conferência de Cúpula sobre o Trabalho Infantil (Oslo, 1997), o Encontro de Cúpula
Asiático sobre os Direitos da Criança e os Meios de Comunicação (Manila, 1996). Durante o
Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado em 1990, o Unicef, que então
completava 50 anos, estabeleceu suas metas para o ano 2000, dentre elas inscreve-se a
proteção à criança e ao jovem em conflito com a lei, a garantia do desenvolvimento integral
da criança, o apoio à família e o esforço contínuo no sentido de introduzir em cada nação uma
distribuição de recursos mais eqüitativa.
O grande mérito desta convenção é exigir que famílias, sociedades, governos e a
comunidade internacional empreendam ações visando o cumprimento dos direitos de todas as
crianças de maneira sustentável, participativa e não discriminatória. Isto significa que as
crianças mais pobres, mais vulneráveis, e geralmente as que são totalmente esquecidas em
todas as sociedades, ricas e pobres, devam ter prioridade absoluta na destinação de recursos e
esforços.
Em 13 de julho de 1990 é promulgada a lei 8.069 que institui o Estatuto da Criança e do
Adolescente, conhecido socialmente como ECA. Documento significativo ao reunir os
avanços da Constituição Federal de 1988 e assegurar os direitos das crianças adquiridos a
64
partir da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, segundo Corrêa &
Gomes (2003), o ECA causou uma revolução no direito infanto-juvenil “A opção do
legislador pela proteção integral, quando alude, em seu art. 1º, à ‘proteção integral à criança e
ao adolescente’, contrapõe-se à doutrina do Direito Titular do Menor (legislação anterior)”.
(p. 52).
Elaborado para substituir a doutrina da ‘situação irregular’ pela doutrina
sociojurídica de proteção integral proposta pela ONU, o Estatuo pretendeu
reconhecer a vulnerabilidade da criança e do adolescente e o dever de
assegurar-lhes proteção moral, física e psíquica. À luz da ‘proteção
integral’, o Estatuto redefine os direitos da criança e do adolescente e os
deveres da sociedade, da família e do Estado para com eles. ((NUNES,
2003, p. 120)
O ECA substitui o antigo Código de Menores inspirado na Doutrina Titular do Menor
que não fazia distinção entre o menor abandonado e o menor infrator, colocando ambos em
situação irregular por estarem na rua, tomando-se como base que independente da situação
eram seres privados de direitos. Entender essa distinção faz com que sob o enfoque
doutrinário, se compreenda que “o menor nunca pode estar em situação irregular, pois ele não
é mero objeto de decisão judicial, mas, na verdade, um sujeito de direitos.” (CORRÊA &
GOMES, 2003, p. 52).
Está-se indicado com o ECA que o menor esteja ele mendigando, furtando ou
trabalhando nas ruas, antes corre um risco social por não terem sido assegurados os seus
direitos por lei, de educação, saúde, moradia, etc, devendo o Estado, órgãos responsáveis e
famílias responder por tal omissão. Direitos esses assegurados no Artigo 227 da Constituição
Federal:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e agressão (1988, p 91).
Partindo dessa prerrogativa da lei, o ECA, em seu artigo 2º determina que criança é todo
aquele indivíduo com idade inferior a 12 anos e adolescente quem tem entre 12 e 18 anos, dessa
forma não se leva em consideração os aspectos psicológico e social para determinar a separação
65
entre crianças e adolescentes, assim como assegura proteção a todos independente de cor, idade,
classe social, sexo, religião ou grupo étnico.
A concepção jurídica fruto de hábitos e costumes sociais da criança e do
adolescente transforma-se com o Estatuto. Se antes de 1990 o menor era
considerado apenas quando em situação irregular e na condição de objeto de
medidas judiciais, ulteriormente passa a ‘sujeito de direitos’, na condição peculiar
de pessoa em desenvolvimento. Dessa maneira, registraram-se mudanças no
processo judicial, no funcionamento do magistrado. (NUNES, 2003, p. 127)
Ações conjuntas de governo, organizações não governamentais, grupos religiosos e
sociedade civil foram fundamentais para que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e
do Adolescente fossem efetivamente colocados em prática.
Nesse ínterim, não se pode deixar de afirmar que o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8069/90), e todas as ações posteriores à sua implementação, não só
promoveram mudanças de conteúdo, método e gestão no panorama legal e nas políticas
públicas que tratam dos direitos da criança e do adolescente, constituindo-se num novo
mecanismo de proteção, como também criaram um sistema abrangente e importante na defesa
dos direitos da infância, inclusive aos que se referem ao mundo do trabalho.
Como decorrência das postulações do ECA, estruturou-se ao longo da
década dos anos noventa, uma rede de instituições com papéis definidos em
suas esferas específicas para atenção à infância e adolescência, como os
Conselhos de direitos Municipais, Estaduais e Nacional e os Conselhos
Tutelares. (FERREIRA, 2001, p. 216)
Para tanto a lei de nº 8.242, de 12 de outubro de 1991, criou o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (o Conanda), com o objetivo principal de impulsionar a
implantação do ECA no país e consequentemente fazer valer os artigos da CF/88 que tratam
dos direitos das crianças e em 1992, o Brasil passa a integrar o Programa Internacional para
Erradicação do Trabalho Infantil IPEC que efetiva ações contra o trabalho infantil.
Ainda dando continuidade a ações contínuas de proteção à infância, em 1993, a Lei nº
8.642 criou o Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e Adolescente (Pronaica),
para articular e integrar ações de apoio à criança e adolescente, sob a coordenação do
Ministério da Educação.
66
No ano de 1994 “foi criado e instalado o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação
do Trabalho Infantil, sob a coordenação do Ministério do Trabalho com o apoio do Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF)” (CARVALHO & RAMOS, 2003, p. 8). Como
todas as leis e ações do governo e da sociedade civil, a intenção do fórum “era prevenir e
erradicar o trabalho infantil, dando cumprimento à legislação que proíbe o trabalho abaixo dos
14 anos...” (Idem, ibidem, p. 8)
A atuação da sociedade contra o trabalho infantil foi possível de ser percebida em
função de várias denúncias, fazendo com que em 1995, segundo Carvalho & Ramos (2003) se
destacasse “a atuação das Delegacias Regionais do Trabalho em todo país” (p. 8). Como
resultado das denúncias da sociedade e da ação das delegacias “foram criadas Comissões de
Combate ao Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalho do Adolescente, que logo passaram a
realizar um diagnóstico preliminar dos focos de trabalho das crianças e adolescentes em
vários Estados.” (p. 8)
Em 1996, o governo federal criou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil,
conhecido como PETI, que tinha como principal “objetivo eliminar em parceria com os
diversos setores dos governos estaduais e municipais e da sociedade civil, o trabalho infantil
em atividades perigosas, insalubres e degradantes”. (KASSOUF, 2004, p. 81). À época da sua
implantação, o PETI visava o atendimento às famílias mais pobres e excluídas socialmente e
que tivessem “renda per capita de até 1/2 salário mínimo, com filhos na faixa etária de 7 a 14
anos que trabalham em atividades dessa natureza”. (p. 81)
A promulgação da lei 10.097/2000, segundo Kassouf (2004), possibilitou mais um
avanço na regulamentação do trabalho infantil, pois altera a redação de alguns artigos do
Capítulo IV da CLT Consolidação das Leis Trabalhistas, dentre os quais a autora cita:
Artigo 402: Considera-se menor para os efeitos desta Consolidação o
trabalhador de quatorze até dezoito anos.
Artigo 403: É proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos de idade,
salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos.
Parágrafo único: O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais
prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral
e social e em horários e locais que não permitem a freqüência à escola. (p.
17)
67
Uma outra ação implementada pelo governo como programa social em atendimento às
questões da infância que trabalha foi o Bolsa Escola, em abril de 2001, através da lei nº 10.
219 que o institui em âmbito federal.
Por meio dessa lei, o governo federal passou a apoiar programas municipais
de garantia de renda mínima, desde que associadas a ‘ações socioeducativas
de apoio aos trabalhos escolares, de alimentação e de práticas desportivas e
culturais em horário complementar ao das aulas’, que, de alguma forma,
incentivem a permanência da criança na escola, durante o maior tempo
possível. (KASSOUF, 2004, p. 82)
Ou seja, um dos principais objetivos do programa era reduzir a incidência de trabalho
infantil, mantendo as crianças na escola, a partir da diminuição da pobreza através da ajuda
financeira governamental.
A legislação e os programas sociais implementados pelo governo, demonstram que o
país está atento ao grave problema do trabalho infantil, entretanto existir a lei não denota
cumpri-la e isso está claro em função dos inúmeros protestos da sociedade civil acerca do
tema e da incidência ainda significativa de crianças que fora da idade permitida, estão nas
lavouras, feiras livres, sinaleiras, etc em condições indignas de vida, trabalhando para ajudar
no sustento próprio e das suas respectivas famílias.
68
Capítulo IV
4. O COMÉRCIO DE SALVADOR E A FEIRA
Salvador, cidade à beira-mar, uma localização geográfica facilitadora para entrada e
saída de mercadorias. A cidade é no século XIX, segundo Matoso (1978), um importante
distribuidor de mercadorias, importadas de vários lugares, através dos transportes marítimos
que à época se encontravam bastante desenvolvidos. Reconhecida como mercado de
exportação e importação de mercadorias, Salvador abastece ao seu povo, soteropolitano, além
de vilas e povoados do Recôncavo.
Como qualquer outro mercado, Salvador estabelece uma diferenciação entre os
comerciantes do seu dinâmico ir e vir de compras de mercadorias. Segundo Matoso (1978)
nessa divisão social encontramos os comerciantes “que se ocupam da exportação dos produtos
primários para os mercados internacionais dos quais importam bens manufaturados” (p. 248).
Nesse grupo uma subdivisão estava clara: aqueles que possuíam seus próprios bens daqueles
que comerciavam bens de outrem.
Diante desse dinamismo comercial de importação e exportação, nem todos os
comerciantes da época se envolviam com esse tipo de comércio. Alguns desses eram
chamados de comerciantes grossistas ou varejistas que “são os intermediários entre os
importadores e a grande variedade de negociantes retalhistas que existem na cidade”. (idem,
p. 250-251)
Existiam ainda, comerciantes retalhistas em número expressivo no comércio de
Salvador. Estes estavam a princípio estabelecidos em armazéns, tabernas, padarias e lojas,
tinham um certo prestígio social aqueles que eram donos dos estabelecimentos. Eram também
69
comerciantes retalhistas os vendedores ambulantes e os feirantes que de porta em porta
levavam às donas de casa uma série de produtos para o consumo familiar. Como vendedores
ambulantes, estão também os vendedores de miudezas, as peças do gosto feminino, como
meias, fitas, rolinhos de linha, entre outras.
Era uma categoria de gente de comércio que o soteropolitano cotejava no
dia a dia de sua vida, numa época em que conservar alimentos de um dia
para outro era operação difícil e numa cidade onde, a precariedade das
condições da maioria da população que vivia ameaçada pela indigência,
raramente permitia a constituição de estoques para produtos menos
perecíveis, como por exemplo, feijão, carne seca e farinha de mandioca.
(MATOSO, 1978, p. 252)
Apesar das atividades comerciais dos ambulantes e dos feirantes serem consideradas
modestas, estas eram importantes na medida em que contribuíam para existência e
sobrevivência de uma parte da população, que inserida em uma sociedade excludente não
oferecia grandes oportunidades de emprego, obrigando-os a lutar com as armas que possuíam.
Trabalhadores feirantes inseridos nas feiras livres especificamente na Feira de São
Joaquim campo empírico dessa pesquisa que esse texto se compõe. Diante do exposto por
Matoso (1978) conclui-se que os feirantes, a princípio não têm ponto fixo e que é justamente
por não ter ponto fixo que dá a essa atividade uma importância significativa, pois como
afirmou a autora, a dificuldade em estocar alimentos (por razões óbvias para a época) exigia
compras diárias, as quais só os feirantes ou vendedores ambulantes podiam suprir, ou seja,
independente de abastecer mercados nacionais e internacionais, os feirantes na hierarquia
social do comércio de Salvador no século XIX, contribuem para que a sociedade
soteropolitana possa ter à mão gêneros alimentícios de primeira necessidade.
70
4.1 A FEIRA DE SÃO JOAQUIM
No caso particular da Feira de São Joaquim, ela teve sua trajetória iniciada com a Feira
do Sete. Assim chamada porque ficava ao lado do sétimo armazém das Docas. Neste começo,
década de 20, era uma feira móvel, os produtos vinham do Recôncavo Baiano em saveiros e
eram os mais diversos: frutas, farinha, rapadura, cerâmica, artesanatos em geral.
A feira de São Joaquim é a continuidade da Feira de Água de Meninos que
antes chamava-se Feira do Sete. Três nomes da mesma feira que também
funcionavam em três lugares diferentes. No final dos anos 20 início dos
anos 30 do século passado, nascia a Feira do Sete, que tinha esse nome
justamente por ocupar o galpão inacabado de número Sete do Cais de
Salvador, administrado pela antiga Companhia das Docas da Bahia, atual
CODEBA.
As mercadorias chegavam do Recôncavo baiano através dos saveiros e
eram descarregadas pelos estivadores que levavam sobre as cabeças
imensos volumes lembrando a figura do legendário Atlas (o gigante da
mitologia grega) com o globo terrestre sobre as costas. [...] Em 5 de
setembro de 1964, um fatídico incêndio destruiu completamente a grande
feira citada em livro de Jorge Amado e tema do filme A Grande Feira.
Das cinzas nasce São Joaquim, na enseada que leva o mesmo nome
9
.
A Prefeitura, na época controlava para que não se estabelecessem pontos fixos, mas,
com o tempo, foi inevitável. Em 1932, a Feira do Sete transformou-se na Água de Meninos,
cujo crescimento espontâneo marcou a diversidade das instalações. Segundo Souza (2003) a
proximidade do cais (em plena atividade à época) foi sem dúvida, um estímulo ao crescimento
da feira. A cerâmica chegava de diversas partes do Recôncavo (Maragogipe e Nazaré das
Farinhas, entre outras) em cores e formas diversas, testemunhando a presença africana neste
colorido de raças do baiano. Os artesanatos de palha, produtos de umbanda, frutas tropicais
compunham o colorido da Feira de Água de Meninos.
O incêndio em 5 de setembro de 1964 obrigou a transferência dos feirantes para a
enseada de São Joaquim. A prefeitura na época sinalizou como provisória a ocupação do
local, prometendo encontrar um espaço adequado com infra-estrutura básica para acomodar
os feirantes. Mais de 40 anos se passaram e nenhuma mudança foi feita. “Se somarmos a
9
Disponível em http://www.feiradesaojoaquim.com.br. Acessado em 08 de junho de 2007.
71
história de São Joaquim, sua duração ao longo dos anos, à Feira do Sete e da Feira de Água de
Meninos, temos mais ou menos 75 anos de vida. Dos quais, 40 anos somente atribuídos a sua
localização em São Joaquim”. (SOUZA, 2003, p. 41)
Durante todos esses anos a feira serve à Bahia, com o seu mercado ao ar livre, pois é
um aglutinar de facilidades que vão desde a sua localização até ao preço das suas
mercadorias, que apesar do aparecimento dos grandes supermercados, não perdeu o seu
público. “Como um verdadeiro ‘supermercado do povo’, (...), a feira possibilitava a uma gama
de consumidores baianos a chance de comprar e se abastecer barato”. (SOUZA, 2003, p. 47).
No passado o comércio atendia ao varejo, como ao atacado também. Em função dos preços
acessíveis, comerciantes de outros bairros abasteciam as suas mercearias com os produtos da
feira. Esta feira de vinte anos atrás era a principal forma de abastecimento alimentar da cidade
de Salvador.
Para esta feira dos mil produtos, vem toda uma população pobre da cidade
para em grande parte se abastecer. Há outras feiras, há outros centros de
abastecimentos, mas quantas centenas de pessoas não descem a Ladeira de
Água Brusca, não vêm do lado da Calçada, para procurar produtos que
necessitam para sua subsistência. (Simas, 1980 apud SOUZA, 2003, p. 43)
É no final da década de 60 que a feira começa a sentir a desaceleração da sua
importância com o avanço crescente dos supermercados, principalmente no que tange ao
comércio atacadista, pois os grandes supermercados, por comprarem em grandes quantidades,
possibilitam preços ainda menores do que os comercializados na feira impedindo assim a
contínua compra de mercadorias por parte dos antigos comerciantes. Uma desaceleração, mas
nem de perto uma quebra que sugerisse a falência. Feirantes que sobreviveram ao incêndio e
às constantes mudanças de local, não demonstrariam e não demonstraram abalo diante de
grandes concorrentes.
Segundo o jornal A TARDE
10
, em 1978, a feira tinha uma área de 50.000m², com
1.600 barracas ou boxes, a maioria construção feita com cimento, contando com 9 quadras,
algumas com água encanada e luz elétrica. Hoje segundo dados encontrados no site oficial da
EMTURSA
11
Empresa de Turismo de Salvador, a feira ocupa uma área com 34.000 m²,
10
Jornal A TARDE de 05/09/79. Caderno 2. p. 01
11
Disponível em http://www.emtursa.ba.gov.br/Template.asp?IdEntidade=4511&Nivel=000500010614. A
matéria disponibilizada no site tem data de 23 de agosto de 2005, entretanto foi acessado em 08 de junho de
2007.
72
entre a Baía de Todos os Santos e a Avenida Oscar Pontes no bairro do Comércio, entretanto
não informa a quantidade de barracas existentes e nem as condições de construção. Segundo o
presidente da Associação dos feirantes de São Joaquim Sr. Joel da Anunciação , a partir de
um trabalho de medição realizado pela SESP, a feira conta com 38.000 m² de área e 2 mil
estabelecimentos e divididas em 7 áreas, entretanto ainda não existe, em seu poder, nenhum
documento oficial que esclareça quais e como foram definidas essas áreas.
Os feirantes de São Joaquim sempre estiveram nas manchetes do jornal no que tange
às condições de higiene do local, a forma como as mercadorias eram dispostas,
principalmente alimentos perecíveis como carne e derivados, a falta de infra-estrutura para
atender bem aos clientes e à pressão do poder público local, que em várias tentativas sem
sucesso tentou relocar os feirantes, com o objetivo de organizá-lo mais adequadamente.
A feira em 2005 completou 41 anos de existência. Essa comemoração reacendeu um
projeto antigo de transformá-la em Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, conferido pelo
Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Paralelo ao acompanhamento
do processo de obtenção do título, a Prefeitura elaborou um plano emergencial de
reordenamento da feira.
O plano tem o objetivo de requalificar a Feira de São Joaquim, contribuindo
para sua salubridade, higienização e acessibilidade, respeitando suas
características históricas e culturais de feira livre. Algumas das ações
planejadas para serem executadas até 31 de dezembro próximo, já estão em
andamento ou concluídas, como a recente desratização promovida pelo
Centro de Controle de Zoonoses (da Secretaria Municipal de Saúde, SMS) e
mutirão de limpeza feita pela Limpurb (órgão de limpeza urbana vinculada
à Secretaria de Serviços Públicos, Sesp)
12
.
Ainda segundo a matéria disponibilizada no site oficial da EMTURSA, outras
secretarias seriam envolvidas no plano emergencial. Inúmeras outras ações emergenciais
seriam realizadas, dentre as quais destacamos as principais: cadastramento de todos os
feirantes, cadastro físico da área da feira, serviços de iluminação e limpeza, campanha de
conscientização dos feirantes quanto à necessidade de manutenção da limpeza do local,
instalação de sanitários públicos e obras de drenagem e esgotamento sanitário.
12
Disponível em http://www.emtursa.ba.gov.br/Template.asp?IdEntidade=4511&Nivel=000500010614. A
matéria disponibilizada no site tem data de 23 de agosto de 2005, entretanto foi acessado em 08 de junho de
2007.
73
No Correio da Bahia de 12 de julho de 2006, a matéria intitulada “Tombamento da
Feira de São Joaquim volta a ser debatido”, demonstra a morosidade das ações políticas para
com os bens públicos. A matéria dá conta de informar o quanto importante seria o
tombamento da feira pelo Iphan e quais lideranças estavam mobilizadas para que tal feito se
concretizasse, dentre eles o prefeito da cidade do Salvador, o Sr. João Henrique Carneiro,
além de representantes dos feirantes. Esta matéria esclarece que o processo se finalizaria
naquele mesmo ano e mais que isso apresenta a resposta sobre o plano emergencial
promovido pela prefeitura e iniciado em 2005,
Os feirantes presentes na sessão elogiaram a decisão, mas não deixaram de
reivindicar a doação do espaço para quem trabalha no local há muitos anos
e uma intervenção urgente para sanear a feira. O vendedor de frutas
Matheus de Aleluia de Jesus trabalha no local há 12 anos e espera que a
medida mude a realidade de quem tira o sustento disputando cada vez
menos clientes. "Muita gente deixou de vir aqui por causa da falta de
estacionamento e da sujeira. Se tudo fosse mais limpo, a gente ia lucrar
mais", justificou o vendedor. Criada há 40 anos, São Joaquim abriga hoje
sete mil trabalhadores e é o principal pólo distribuidor do artesanato
produzido no recôncavo e de venda de produtos para rituais de candomblé
13
.
Com problemas ou não, a Feira de São Joaquim está na internet como atração turística
da cidade de Salvador. Inúmeros grupos de turistas brasileiros e estrangeiros percorrem as
ruas da feira em busca dos seus produtos, principalmente os ligados ao candomblé, entretanto
é o seu valor histórico e social que deve ser conhecido pelos turistas e principalmente pelos
baianos.
Dá para encontrar de tudo na Feira de São Joaquim, na Cidade Baixa. Mas
olhe bem, é tudo o que a cultura local oferece: são produtos da terra,
cerâmicas, carnes, peixes, verduras ou então, bugingangas curiosas,
esculturas em madeira[...] Odores fortes, suor e gritaria, gente andando de
um lado para o outro[...]
14
Ao adentrar a feira é possível perceber a divisão em ruas e quadras e todas tem um
número e nome, entretanto a concentração de produtos oferecidos ao público é uma das
possibilidades de compreender como a feira se estrutura. Quando da pesquisa realizada em
1993 (esclarecida na introdução desse trabalho), para andar pela feira e entender a sua
13
Disponível em http://www.correiodabahia.com.br. Jornal on-line, matéria com data de 12/07/2006, de autoria
de Jony Torres. Acessado em 08 de junho de 2007.
14
Disponível em http://www.overmundo.com.br/guia/feira-de-sao-joaquim. Acessado em 19 de junho de 2007.
74
organização, uma vendedora de jogo de bicho
15
, funcionou como guia e é através da fala
dessa trabalhadora informal que é possível para o pesquisador conseguir entender e se situar
na dinâmica organizacional do campo empírico. Assim segue-se o esclarecimento dos nomes
das ruas na Feira de São Joaquim. Por exemplo, ao chegar em uma rua que concentra boxes
vendendo plásticos, esta é conhecida como Rua dos Plásticos; concentração de carne verde,
fato de boi: Rua do Fato. A Rua do Mar é assim chamada porque é a única que faz contato
direto com o mar e que no passado servia de ancoradouro para que os barcos pudessem
descarregar as mercadorias, lá é possível encontrar uma infinidade de boxes vendendo
produtos para macumba e frutas da época. É impressionante a dificuldade de transitar por esta
rua, apesar de ser bem ampla, por causa da quantidade de lixo que lá se encontra deixado
pelos caminhões ao descarregar as mercadorias que são vendidas em toda a feira. Procurar
pela Rua da Linha ou da Máquina, com a intenção de encontrar material de costura, com
certeza não vai encontrar, pois esse nome está relacionado à linha do trem que passa bem no
meio da rua. Assim ratifica Garcia “A feira é um espaço social hierarquizado econômica e
simbolicamente. Os produtos oferecidos não são agrupados nem ordenados ao acaso”. (1992,
p. 86)
A afirmação de Garcia (1992), é ratificada por Guimarães (2004), quando diz que
“Entre os feirantes, o início da atividade atual é lembrado em função do tipo de mercadoria e
da localização interna à feira, o que confirma a descrição de Lobo et al (ibidem) em relação à
divisão espacial, na qual os atacadistas ocupam o espaço central e os demais se distribuem na
área de acesso à feira”. (p. 398)
Esta caracterização muita clara em 1993, ainda é utilizada hoje, entretanto, ao
caminhar pela feira, é possível perceber que houve algumas mudanças. A princípio, os
feirantes mais velhos lembram dessa forma de encontrar as ruas das feiras, os mais novos
sabem “andar” pela feira, mas não estão preocupados com o nome da rua ou quais
características a simbolizam. Um olhar mais atento verificará que a própria concentração dos
produtos que dava nome às ruas, hoje, já não ocorre tão fortemente. O produto que dá nome à
rua, ainda está lá, mas, em algumas, engolidos por outras necessidades de outros feirantes
vendendo outros produtos. Na entrevista com o Sr. Joel essa constatação é bem clara. Quando
foi feita referência aos nomes das ruas, ele fez questão de frisar que “as coisas não são mais
assim não. A necessidade modificou isso.”
15
Essa é uma tarefa que exige do vendedor boas pernas. A minha “guia” à medida que andava para vender o
jogo, informava sobre os nomes das ruas. Apesar de essa ser uma atividade proibida pelas leis brasileiras, na
feira, são muitos os vendedores de jogo do bicho.
75
É um mundo antigo sem deixar de ser moderno, sem deixar de atender aos apelos da
contemporaneidade, pois mercar em voz alta, dos mais jovens, contrasta com o aparente
silêncio dos mais velhos. Como encontrar o que se quer? Para os jovens, impacientes, é
preciso saber de antemão o que se quer, não há tempo a se perder. Para os mais velhos, uma
conversa, uma reflexão, uma explicação sobre o que se quer comprar: sua origem, função,
necessidade; parece o saborear de uma iguaria, algo perdido no tempo.
4.2 O MUNDO EM MINIATURA
Tomo emprestada a expressão de Walter Benjamin ao se referir à Paris do século XIX
para relacioná-la à Feira de São Joaquim, por considerar que dentro da cidade de Salvador é
possível considerá-la como um mundo em miniatura. Ao caminhar pelas suas ruas e são
muitas o visitante poderia achar que estava em um labirinto, entretanto essa primeira
impressão é desfeita à medida que se ambienta com o espaço. “Uma vez na feira, o escritor
olhava à sua volta como em um panorama. [...] Ocupava(m)-se dos tipos encontrados por
quem visita a feira”. (BENJAMIN, 1989, p. 33).
A maioria dos homens é composta de negros, de corpos nus da cintura para cima. São
grandes, gordos, suados, lembram os personagens de Jorge Amado. São jovens, velhos,
impacientes, pacientes. Gritam, puxam o cliente, oferecem as mercadorias. Quando mostram
um produto, parece um troféu, algo só encontrado ali e só ali pode ter o preço que oferecem.
Se quem compra é mulher, uma reverência, mas se é homem, apenas gentileza, mas sem
muita “mesura”, pois “não fica bem”.
Os jovens? Estes cada vez mais jovens, ainda crianças, estão inseridos na dinâmica
capitalista de que é preciso sobreviver e acompanhar os pais nas funções trabalhistas para
tirarem do labor diário o sustento para a vida. São muitas as crianças que trabalham na feira.
Empurram carrinhos, carregam sacolas, tomam conta do box do pai ou da mãe, vendem
cigarros, frutas, verduras, enfim exercem tarefa de adulto como adultos. Esses sujeitos
interessam mais que os outros sujeitos, a essa pesquisa.
76
A maior liberdade desfrutada pelos meninos, aliada à idéia de que ‘é preciso
se virar na vida’, permite que os filhos de trabalhadores alugados, cujos
pais via de regra são excluídos das atividades mercantis, se iniciem na feira,
começando a prestar pequenos serviços aos vendedores ou consumidores.
(GARCIA, 1992, p. 93)
No início as crianças começam vendendo mercadorias de interesse de outras crianças e
que coincidentemente são produtos que exigem pouco investimento levando em
consideração a dificuldade em reserva de dinheiro para investimentos maiores. O ir e vir das
crianças na feira, proporciona um conhecimento das diversas áreas ou setores ou quadras
(como é o caso da feira de São Joaquim), além de auxiliar no reconhecimento dos melhores
pontos de venda, onde estão os clientes em potencial.
Ainda segundo Garcia (1992), é a partir dos 14 (catorze) anos que os meninos
adquirem o senso de lucratividade, sentindo-se autônomos na gestão das vendas com o
principal objetivo de obtenção de lucro cada vez maior. Nesse contexto compreendem a
necessidade de mudança no que tange à venda das mercadorias, substituindo produtos mais
relacionados à infância, por produtos adquiridos essencialmente por adultos, tais como:
verduras, frutas, produtos de artesanato, entre outros.
As meninas, segundo a autora, vão à feira muito mais tarde e permanecem restritas a
um único ponto de venda sempre acompanhadas pelos pais ou parentes. Não é permitida a
mobilidade no espaço da feira.
Ao contrário dos meninos, quando elas começam na feira, ficam sempre no
mesmo lugar. Mas quando têm um ponto de venda independente, este é
situado de tal maneira que as relações com outras pessoas são sempre
filtradas pela presença de um adulto a quem pertencem os produtos
vendidos. (p. 94)
Informações como essas compõem o universo da criança que trabalha no espaço da
feira, entretanto é preciso esclarecer que a autora acima citada se refere à localidade chamada
Brejo da Paraíba, situada no Estado da Paraíba Região Nordeste fazendo referência à
dinâmica da feira da cidade. No caso específico da Feira de São Joaquim, meninos e meninas
trabalham com os pais, parentes ou por conta própria. Qual a dinâmica de trabalho no espaço
a ser estudado? Só a pesquisa de campo responderá, entretanto, não se descarta a informação
77
teórica como fonte de análise comparativa com os dados coletados após a pesquisa na Feira de
São Joaquim.
Algumas mulheres são grandes, com grandes peitos, lembram as pretas velhas que
amamentavam os filhos naturais e os filhos do senhor de escravo, lembram também as
grandes mães, de muitos filhos: seus e dos outros. São em minoria, mas as que são possíveis
encontrar, tem a marca da luta, muitas vezes ao lado dos maridos, feirantes há muitos anos e
dividem-se entre os afazeres da casa e do trabalho. São mulheres fortes, tem o olhar digno de
quem sabe da sua origem e sabem para onde ir. Mostram firmeza quando gritam alguém ou
quando são alvo de brincadeiras maliciosas, exigem respeito, se impõem. Não abaixam a
cabeça.
As mulheres, objeto de desejo, também estão lá. Mostrando os seus corpos, perpetuam
uma das profissões mais antigas da face da terra: a prostituição. Infelizmente são cada vez
mais jovens, são meninas, bem meninas, se trocam por um punhado de moedas para alimentar
a si e quem sabe às suas famílias. Transitam sem pudor, sem restrição, com roupas curtas na
intenção de chamar a atenção dos homens. Os seus olhos são tristes, apesar de estamparem
um sorriso nos lábios. Os homens a tocam, puxam, beijam o pescoço, chamam de filhas,
“neném”. “Jogam” na nossa cara a displicência com que o poder público trata a infância e
juventude e dizem nas entrelinhas da sua atitude que nós, cidadãos comuns, somos coniventes
com tudo o que há de errado nessa sociedade caótica e desigual.
A feira de São Joaquim com os seus sujeitos é também cheiro, percepção, sentidos.
Fecham-se os olhos e é uma profusão de percepções: é o grito de quem merca, de quem
chama alguém, de quem briga, de quem joga. Os cheiros da feira são o que há de mais
intrigante. Fortes, inconfundíveis, mesmo para alguém desatento. Não é difícil encontrar
flores pelo cheiro, pimenta cominho, incenso, carnes, folhas para banho, verduras e temperos
de um modo geral. O cheiro do mar é algo também perceptível na feira, um cheiro de maresia
com esgoto, pois ao ter sido cais no passado e ter perdido essa função no presente,
transformou-se em despejo de todo o lixo e esgoto da feira.
Os cheiros são um convite ao delírio, proporcionam um bem-estar impossível de ser
descrito, mas possível de ser imaginado e desejado, mas há lugares em que os cheiros
incomodam, principalmente o de sangue das carnes em açougues ao ar livre. Como no
passado as carnes ficam expostas e são comercializadas livremente sem nenhuma
preocupação maior. O freguês chega, escolhe o que quer, e o açougueiro corta e às vezes
limpa a peça para agradar o comprador. Mesmos estes despertam o observador para as
78
exigências de higiene que os alimentos perecíveis necessitam, incitam o questionamento para
as ações dos órgãos públicos saúde pública de quem se deve cobrar atitudes concretas para
resolver os problemas dos feirantes e conscientizá-los da necessidade de oferecer com
qualidade os alimentos que comercializam.
O sentido de tocar, ver o detalhe das cerâmicas ou dos objetos de culto dos orixás.
Reportar-se aos artesãos dessas peças. Sentir a expectativa, o desejo, a intenção ao
confeccionar suas obras. O cuidado dos detalhes, a beleza das cores e principalmente a
conversa pausada de um velho dono da loja, explicando a origem da peça, quanto tempo levou
para ser confeccionada, a sua função e por último, bem por último, o quanto custa.
Essa diversidade da feira, essa possibilidade de recuo ao passado é que a torna a
especificidade dentro da cidade de Salvador. Ao caminhar pelas suas ruas, é impossível não
tentar conhecer e compreender o que aconteceu no passado, quantas linhas de bondes
passavam por ali e para onde. O incêndio que houve, quantas pessoas morreram e quem foram
elas, quantas sobreviveram, e quem sobreviveu como encarou os desafios. Muitos dos
feirantes hoje na feira de São Joaquim, nasceram, cresceram, constituíram família, criaram os
seus filhos com o ganho da venda e muitos já morreram, orgulhosamente se chamando de
feirantes. Ao longo da trajetória de 40 anos, quantos lutaram por melhores dias, por condições
dignas de trabalho e quantos morreram por essa luta.
Feira e feirantes resistem ao tempo e ao espaço, permitindo que se descubra um mundo
além dos seus muros ou além da sua aparência, indo em busca da essência de Marx, essência
essa que está nos seus sujeitos e na percepção de quem se sente um observador da ciência.
79
Capítulo V
5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: resultados da pesquisa
Desde a sua fundação em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) teve o
trabalho infantil como questão central de suas preocupações e elaborou com governos,
trabalhadores e empresários nela representados, normas internacionais sobre a idade mínima
de admissão no emprego.
A legislação brasileira é expressa ao proibir o trabalho antes dos 16 (dezesseis) anos,
salvo na condição de aprendiz (como já dissemos anteriormente), é permitido a partir dos 14
(quatorze)
16
, ressaltando-se que o trabalho doméstico não demanda aprendizagem nos termos
descritos em lei, o que indica que qualquer adolescente somente poderá trabalhar nessa
condição após os 16 (dezesseis) anos completos e para o exercício de atividades que não
tragam prejuízos a sua integridade física, psíquica, emocional e moral conforme instituído no
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, no artigo 67,
garantidos, obrigatoriamente, os direitos trabalhistas inerentes à atividade.
Na sociedade é possível perceber o quanto a lei não é cumprida sem que para isso seja
necessário nenhuma pesquisa aprofundada. As crianças estão nos sinais de trânsito, nas
calçadas, nas feiras exercendo a atividade que as insere no mundo do trabalho. Nessa
dinâmica, essas crianças se desenvolvem e constroem a sua identidade onde estão exercendo
16
Constituição Federal, Art. 7º, inciso XXXIII.
80
relações simbólicas com o trabalho, na sociedade, na educação não-formal em suas trajetórias
de aprendizado e vida.
O objeto de estudo desta investigação é estudar as relações de trabalho da criança na
Feira de São Joaquim. Optou-se por realizar esse estudo na Feira de São Joaquim como
campo de pesquisa devido ao fato de, além de já o ter sido “utilizado” anteriormente, ser esse
o espaço onde as inquietações da pesquisadora afloraram. Crianças trabalham em qualquer
lugar, entretanto, elas trabalham em uma “cidade” dentro da cidade de Salvador e nesse
espaço se constroem e criam sua identidade, se relacionam e “caminham” em trajetórias
desconhecidas para muitos, inclusive elas próprias.
Este é um universo intrigante. Em apenas alguns instantes é possível perceber o
comportamento dos adultos, porém, em poucas inserções não é possível ouvir as crianças ou
mesmo observá-las. É preciso conquistá-las, entender o mundo que as envolve para
compreender como se relacionam e como se desenvolvem.
Entender a fala desses meninos e sua visão de mundo representa uma
aventura intelectual e um desafio social. É preciso romper os preconceitos
ainda vigentes, que consideram a visão de mundo e a cultura desse grupo,
bem como de outros segmentos sociais subalternos ou excluídos, como
fragmentos desorganizados e desviantes da cultura dominante. (ATAÍDE,
1995, p. 159-160)
Rever construções pré-estabelecidas sobre esse universo, ou pelo menos, usando uma
expressão de Bourdieu (1989) “pôr-em-suspenso” aqueles princípios arraigados pelo tempo e
pela história ou apenas pelo senso comum é, portanto um dos supostos deste trabalho.
Ao compreender essas crianças, existe a possibilidade de informar e formar melhor os
homens (os adultos), isto se elas fazem parte das estatísticas favoráveis ao desenvolvimento
social, entretanto, crianças pertencentes aos números desfavoráveis engrossam as listas da má
imagem social e cultural brasileira e, mais especificamente, baiana, sem que para isso haja
uma compreensão fiel da realidade que as “engole”. Apesar dessa pesquisa não ter o caráter
de denúncia, possibilita um alerta, “sinal de atenção”.
Estava claro que os sujeitos seriam meninos e meninas que trabalhavam na feira, com
idade variando entre 8 (oito) e 13 (treze) anos. A princípio a idéia era entrevistar crianças que
não tivessem relação familiar com os feirantes fixados na feira de São Joaquim, entretanto
como projeto inicial, verificou-se, no decorrer da pesquisa que seguir essa perspectiva
empobreceria o trabalho porque restringiria a possibilidade de maiores informações e
81
conhecimentos. Ter refeito o projeto nesse item demonstrou ter sido a melhor opção, pois a
grande maioria das crianças contatadas tem alguma relação com um trabalhador na feira. Diz-
se trabalhador e não feirante porque existem aqueles que trabalham na feira como
carregadores registrados na associação de feirantes e não possuem uma barraca. Também
estava claro ser impossível determinar quantas crianças fariam parte da pesquisa sem antes
saber de qual contingente estávamos falando.
O tema está problematizado nas seguintes perguntas:
(1) Quais fatores levaram as crianças ao trabalho na Feira de São Joaquim?
(2) Quais as relações de trabalho nas quais as crianças estão inseridas na Feira de São
Joaquim?
(3) Até que ponto a precarização das relações de trabalho contribui para manutenção
do trabalho infantil na Feira de São Joaquim?
O objetivo geral da presente investigação é compreender como se configura a relação
de trabalho da criança na Feira de São Joaquim..
Quanto aos objetivos específicos têm-se:
1. Pesquisar a relação existente entre a teoria analisada e a realidade social da criança
que trabalha na Feira de São Joaquim.
2. Identificar a criança trabalhadora na Feira de São Joaquim e analisar as relações de
trabalho às quais está submetida.
Após intensas discussões e revisões do projeto, fazia-se necessário definir qual melhor
metodologia poderia ser utilizada, principalmente por se tratar de crianças, para se não
totalmente, pelo menos parcialmente, conseguir chegar ao objetivo do trabalho.
Optou-se inicialmente pela técnica de investigação conhecida como grupo focal por se
tratar de uma técnica de coleta de dados através de interação grupal, com tópicos sugeridos
pelo pesquisador, além disso é um recurso importante para compreender construções
relacionadas a percepções, atitudes e representações sociais dos sujeitos envolvidos.
A técnica de grupos focais vem, desde a década de 80, conquistando um
locus privilegiado nas mais diversas áreas de estudo. Tal crescimento foi,
em grande medida, impulsionado pela pesquisa de mercado, que,
resgatando procedimentos clássicos das ciências sociais, das áreas de
psicologia e serviço social, conjugados às modernas tecnologias e
paradigmas de business, marketing e mídia, reelaborou-a com o objetivo de
captar os anseios dos consumidores, definindo padrões a serem seguidos
82
pelas empresas em seus futuros lançamentos. (CRUZ NETO; MOREIRA
& SUCENA, 2002, p. 2)
17
Grupo focal é segundo os autores acima citados “uma técnica de pesquisa na qual o
pesquisador reúne, num mesmo local e durante um certo período, uma determinada
quantidade de pessoas que fazem parte do público-alvo de suas investigações, tendo como
objetivo coletar, a partir do diálogo e do debate com e entre eles, informações acerca de um
tema específico”.
Ao compreender a técnica, é preciso ter claro segundo Gondim (2002)
18
O ponto de partida para se levar a termo um projeto de pesquisa que esteja
apoiado no uso de grupos focais é a clareza de propósito. As decisões
metodológicas dependem dos objetivos traçados. Isto irá influenciar na
composição dos grupos, no número de elementos, na homogeneidade ou
heterogeneidade dos participantes (cultura, idade, gênero,status social etc),
no recurso tecnológico empregado (face-a-face ou mediados por tecnologias
de informação), na decisão dos locais de realização (naturais, contexto onde
ocorre, ou artificiais, realizados em laboratórios), nas características que o
moderador venha a assumir (diretividade ou não-diretividade) e no tipo de
análise dos resultados (de processos e de conteúdo: oposições,
convergências, temas centrais de argumentação intra e intergrupal, análises
de discurso, lingüísticas etc). (p. 5-6)
Outra questão importante quando se escolhe trabalhar com grupos focais é o tamanho do
grupo. A maioria dos autores sinaliza que o ideal é de quatro a dez participantes, mas esses mesmos
autores orientam que o tamanho do grupo depende também da familiaridade com o tema a ser
desenvolvido, mas é óbvio que para obter sucesso, não podem ser grupos muito grandes.
Além de compreensão da técnica e do tamanho do grupo, o papel do moderador e a análise
de dados são fundamentais na execução e conclusão da técnica.
Um moderador deve procurar cobrir a máxima variedade de tópicos
relevantes sobre o assunto e promover uma discussão produtiva. Para
conseguir tal intento ele precisa limitar suas intervenções e permitir que a
discussão flua, só intervindo para introduzir novas questões e para facilitar
o processo em curso. Igualmente é necessário estar atento para não deixar
17
Artigo disponível em
http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/Com_JUV_PO27_Neto_texto.pdf . Acessado em 31 de
outubro de 2007.
18
Artigo disponível em http://sites.ffclrp.usp.br/paideia/artigos/24/03.doc. Acessado em 31 de outubro de 2007.
83
que o grupo comece a falar sobre um assunto importante muito tarde para
ser explorado e evitar que as interpelações findem antes da hora.
(MORGAN (1997) apud GONDIM (2002), p.6)
Para evitar que isso ocorra, os autores sugerem que o moderador tenha em mãos
tópicos ou perguntas que estimulem o debate no grupo, tendo sempre o cuidado para não
polemizar e o objetivo da investigação se perder em discussões acirradas entre os
participantes. “Alerta-se que um roteiro é importante, mas sem ser confundido com um questionário.
Um bom roteiro é aquele que não só permite um aprofundamento progressivo (técnica do funil), mas
também a fluidez da discussão sem que o moderador precise intervir muitas vezes. (GONDIM, 2002,
p. 6-7). Entretanto não se pode deixar de observar a interação entre os participantes durante a
condução do grupo focal, pois esse também é um dado relevante para a pesquisa a depender
do foco.
A análise dos resultados é a última etapa da aplicação da técnica e esta necessita de
alguns cuidados. Os autores alertam que quando for feita a codificação dos dados é importante
distinguir importante de interessante. “O grupo que discute muito um assunto o acha com
certeza interessante, mas isto não quer dizer nada quanto à sua importância; por outro lado,
falar pouco de um tema indica ser ele desinteressante, mas não se pode afirmar sua
desimportância.(MORGAN (1997) apud GONDIM (2002), p. 7).
A técnica trabalha com a fala no grupo e isso é importante de ser ressaltado porque a
fala isolada é uma entrevista, e assim se torna outra técnica de investigação. Assim a fala de
um no grupo deve ser debatida pelo grupo e o moderador deve estar atento às intervenções
dos participantes no decorrer das falas.
Uma das questões mais ressaltadas pelos autores que defendem a técnica do grupo
focal, está relacionada ao objeto a ser investigado. Antes de escolher qualquer técnica é
preciso ter claro o que se quer alcançar para que a técnica contribua com esse fim.
Todo trabalho com crianças requer certo cuidado, pois é um grupo diferenciado que
necessita ser conquistado. Além disso, os responsáveis precisam ter clareza do que se
pretende e precisam autorizar a pesquisa, caso contrário, já se tem um empecilho na condução
do trabalho.
A idéia de utilizar essa técnica com crianças surgiu por considerar que daria um
dinamismo maior à coleta de dados. Quando procuradas individualmente, uma pequena
entrevista era inicialmente feita e os resultados demonstraram-se infrutíferos. Respostas
evasivas sem profundidade, deixariam a pesquisa sem os dados necessários para torná-la
84
válida ou ao menos significativa para a academia. Levou-se em questão, que estando juntas,
se sentiriam mais à vontade para responder as perguntas do mediador. A aplicação do grupo
focal demonstrou ter sido a melhor escolha, pois, as mesmas crianças tímidas quando no
primeiro contato, em contato com seus pares, participaram ativamente do processo,
respondendo as perguntas e intervindo nas respostas dos outros. Entretanto, por se tratar de
crianças, estava claro que não se poderia utilizar excessiva formalidade na aplicação da
técnica, por isso, associado à sua aplicação, em paralelo, os participantes tiveram a
oportunidade de brincar.
Brincando o grupo focal aconteceu.
5.1 A PESQUISA
A primeira parte da pesquisa consistiu em coletar dados através de pesquisa bibliográfica.
Para isso foi levantada a teoria sobre infância, trabalho informal, trabalho infantil, legislação
referente a trabalho infantil e feira de São Joaquim.
No decorrer da pesquisa, mesmo sem caráter de investigação, várias foram as idas à feira.
Estas “visitas” tinham o objetivo de manter vínculos com o espaço, para no momento da
investigação propriamente dita, não causar estranhamento aos adultos e muito menos às crianças. Se
conseguiu nesse momento conversar com algumas crianças, saber um pouco delas, o que vendiam e
porque e se existia alguma relação de parentesco com algum feirante ali instalado.
No início houve muita desconfiança, poucas falas e consequentemente quase nenhuma
informação relevante. Já era de se esperar, afinal entre desconhecidos não é fácil uma conversa
intensa e o que ficou claro que perguntas muito diretas, causavam estranhamento e muitos se
esquivaram. O tempo e a regularidade de presença na feira proporcionaram maior entrosamento,
inclusive com a aquiescência de alguns adultos, responsáveis pelas crianças.
É preciso ressaltar que encontrar as crianças não foi tarefa fácil, com exceção daquelas que
trabalham juntamente com os responsáveis em algum ponto fixo. Por dois motivos significativos: a
quantidade de ruas da feira de São Joaquim (que é extensa) e as crianças andam muito para
85
conseguir vender os produtos. Para um visitante, mesmo que pesquisador obrigado a ficar atento, é
possível “se perder” na grandiosidade do espaço. Posteriormente, esse fato foi motivo de gracejo por
parte das crianças participantes da pesquisa.
Investigação iniciada, o primeiro passo foi entrar em contato com o presidente da associação
dos feirantes de São Joaquim para apresentação e explicação do que se pretendia pesquisar e como
se realizaria a pesquisa. Essa foi outra tarefa difícil, pois por ser uma pessoa muito ocupada, era
complicado o contato e quando se conseguia, a atenção à pesquisadora era dividida com a
necessidade de encontrar solução para os problemas da feira. Porém é importante ressaltar o
interesse pela pesquisa demonstrado pelo presidente e o total apoio recebido para sua execução,
inclusive auxiliando na escolha do local para realização do grupo focal e efetivando o contato com o
dono do espaço, além de andar na feira com a pesquisadora apresentando-a aos responsáveis pelas
crianças, informando qual trabalho seria desenvolvido com as mesmas.
Nos momentos em que foi possível estar em contato com o presidente da associação, foi
solicitado algum documento em que estivesse registrado a quantidade de crianças trabalhando na
feira, alguma estatística que possibilitasse estabelecer a amostra coerente para que a pesquisa
obtivesse validade. Infelizmente não havia nenhum documento que apresentasse essa informação,
pois ao que parece, fazer esse levantamento não esteve nas metas da associação. O que se verificou
é que, em função da rotatividade das crianças, seria um trabalho demorado, tarefa para qual não
existe pessoal disponível.
Para saber quantas crianças trabalhavam na feira, foi preciso estabelecer estratégias. A
primeira e mais óbvia: caminhar na feira se mostrou pouco frutífera em função da quantidade de
ruas; a segunda: manter posição fixa em local movimentado da feira apresentou resultado mais
satisfatório, entretanto a terceira estratégia foi a mais eficaz: ficar um dia inteiro na feira, ou melhor,
ficar no dia de sábado, circulando e parada em algum local fixo, foi a estratégia que efetivamente
deu resultado.
Quando da primeira ida em 1993, como pesquisadora à feira, encontrar crianças trabalhando
ou até mesmo circulando era muito fácil. Provavelmente não haviam tantas pressões contra o
trabalho infantil. O que se verificou é que, atualmente, o número é bem menor e se concentram
muito mais no dia de sábado porque é quando não tem aula (informação que só foi conseguida após
conversas com alguns feirantes e confirmada pelas crianças participantes do grupo focal). Ou seja,
as crianças que trabalham na feira seja ajudando os pais ou por conta própria, estudam. Antes é
preciso que seja dito: não há nenhum participante do grupo focal que não tenha uma referência
familiar, não exatamente referência de pai ou mãe, e os responsáveis estão trabalhando na feira.
Algumas crianças seguem trabalhando na mesma função do responsável, outras não.
86
Ao ser apresentada pelo presidente da associação, os responsáveis “facilitavam” a conversa
e autorizavam a participação das crianças na atividade que a principio ficou conhecida como “o
sábado em que as crianças iam brincar com uma professora”. A explicação da técnica grupo focal se
tornava infundada por motivos óbvios, além de por conta do desconhecimento, ser um impedidor
para a participação das crianças. A palavra “brincar” além de ser familiar para adultos e crianças,
funcionou como chamariz e os responsáveis demonstravam aceitar a idéia de que as crianças, por
serem crianças, deveriam realmente brincar. E como foi dito anteriormente, de fato as crianças
brincaram e a técnica de investigação pôde ser executada.
Durante o contato inicial faz-se necessário saber chegar, o que se perguntar para que a
criança não pensasse que se tratava de um comprador ou alguém que pretendia lhe fazer algum mal.
Ser estudante que faz pesquisa é familiar a todas elas, mas essa estratégia não foi utilizada, preferiu-
se começar com perguntas superficiais sem maiores intenções. Com uma garota de 10 anos,
vendedora de limões, a aproximação foi feita pela própria criança, intentando vender o seu produto.
Assim começa o “bate-papo” e sem que se esperasse outras tantas crianças se juntaram para
participar da conversa. Uma conversa simples, deixando-se ser “entrevistada” por elas para ir
ganhando confiança e ao não ser insistente com muitas perguntas, ganhar também a confiança dos
adultos.
Após essa primeira investida, para que se obtivesse êxito efetivo, foi preciso manter
regularidade nas idas à feira, assim houve dias em que nem era preciso encontrá-los. As próprias
crianças já identificavam a pesquisadora, ou melhor, “olha aquela moça! Ela voltou!” era o que
mais se ouvia.
Como foi dito, brincar é uma palavra mágica. Essa garota foi a principal incentivadora para
outras crianças, convidando-as a participarem no sábado previamente combinado. E foi também
uma excelente companhia para andar na feira. Nessas “andanças” algumas perguntas e muitas
respostas significativas e importantes para a pesquisa. Essas respostas vieram à tona durante a
execução do grupo focal e serão sinalizadas posteriormente.
87
5.2 AS FAMÍLIAS
No decorrer das orientações chegou-se à conclusão de que seria importante entrevistar as
famílias dessas crianças, como forma de entender melhor o grupo pesquisado e compreender o
universo social no qual estavam inseridos.
O que a pesquisa demonstrou é que a temática trabalho infantil sequer poderia ser
mencionada, com o risco de serem impedidas todas as ações posteriores. Assim nenhuma conversa
foi gravada, todas as informações coletadas foram conseguidas através de “bate-papo” totalmente
informal, passeando por vários temas da vida cotidiana para lateralmente entender porque as
crianças trabalhavam, há quanto tempo e sob que condições.
Não é difícil entender tamanha dificuldade para discutir essa temática. Todos têm
consciência das leis e sabem das pressões que outros feirantes sofreram no passado por conta de
utilizar mão de obra infantil.
Foram encontradas dois tipos de famílias. Aquelas que efetivamente utilizam a mão-de-obra
infantil, mas não consideram como exploração e sim como necessidade. Entendem que o trabalho
das crianças associado ao trabalho dos adultos possibilita aumento da renda e consequentemente
contribuem para diminuir as dificuldades financeiras. Chegar a essa conclusão foi uma tarefa árdua,
pois foram necessárias várias incursões à feira e muitas conversas tangenciando o objetivo da
pesquisa, porque poucos assumem que as crianças trabalham para ajudar em casa e mesmo assim o
fazem com algumas ressalvas, justificam que é só por um período. Na fala desses responsáveis está
a certeza de que aquela não é a vida que desejam para as crianças e para isso mantém-nas na escola,
porém consideram que enquanto a situação não melhora, em horário oposto ao horário escolar ou
somente no sábado e domingo, os infantes estão por perto trabalhando. Ratificam a ideologia de que
é melhor trabalhar que vadiar, as crianças tem na atividade que desenvolvem a possibilidade de
aprender “alguma coisa”, seja como passar um troco até como lidar com os clientes.
E ali, na feira, também estavam crianças, cujos responsáveis afirmavam categoricamente tê-
las encontrado por mera coincidência, pois segundo os mesmos, as crianças nunca iam à feira
trabalhar. Faziam outras atividades, além de estudar em escola regular e não trabalhavam.
Uma ressalva é importante de ser feita ou ainda mais ratificada no que diz respeito ao
discurso dos feirantes, principalmente aqueles que têm crianças “ajudando” nas tarefas de suas
respectivas barracas ou box. Duas falas são unânimes por parte dos feirantes que levam crianças
para a feira: nenhuma delas trabalha em horário de escola e nenhum quer que os infantes tenham a
mesma vida que eles.
88
5.3 O GRUPO FOCAL
Como já foi esclarecido anteriormente, grupo focal (GF) é uma técnica de investigação que
oferece informações qualitativas e que não pode ser feita com um número muito grande de
participantes. Foram contatadas 16 crianças, entretanto somente 09 participaram do GF. Dentre
estas, 7 meninos e 2 meninas, com idade variando entre 8 e 13 anos.
A primeira ação foi preparar o local para executar a técnica. O local foi dentro da própria
feira em uma barraca
19
oferecida por um dos feirantes. No sábado (para não atrapalhar o horário de
aula das crianças) e no turno da tarde (pela manhã seria impossível em função do movimento
intenso na feira). Para colocar em prática a técnica e conseguir respostas às perguntas, foram
necessários dois encontros, descritos a partir de agora, apresentando algumas poucas diferenças
entre um e outro. É importante que se diga que em função da forma como foi conduzida a atividade,
pelo desejo das crianças, seriam feitos outros tantos encontros, mas se assim o fosse, fugiria do foco
da pesquisa.
Uma explicação se faz necessária em função da quantidade de crianças contatadas. Tomada
inicialmente como possíveis participantes havia um receio natural que nos dois dias de aplicação da
técnica as crianças não pudessem ir ou tivessem desistido. Era um risco contatar tantas crianças
levando em consideração que para haver eficácia na técnica o grupo não poderia ser grande mas
não havia como garantir a presença de todos e como haveriam brincadeiras, o planejamento já
previa antecipadamente.divisão de grupos. Felizmente não foi necessário, pois no início da atividade
somente nove crianças compareceram, as demais, chegaram depois e participaram apenas das
brincadeiras. No segundo encontro o planejamento se tornou mais facilitador porque se dividiu em
turnos. Todos foram convidados a retornar, mas o grupo específico de aplicação da técnica
compareceu ao local um pouco mais cedo do que os demais.
O local não possuía cadeiras, portanto foi necessário forrar com esteiras para dar conforto às
crianças. Por serem crianças percebeu-se que, sentar no chão as deixou mais à vontade.
As crianças ficaram tão à vontade que a princípio foi difícil conseguir o mínimo de silêncio.
Apesar de todas saberem o motivo de estarem ali, era essencial reforçar a importância de poderem
19
Existe no imaginário coletivo a clareza do que é uma barraca, entretanto a língua portuguesa oferece diversas
interpretações para um mesmo termo. Nesse caso específico, no espaço em que foi desenvolvido o grupo focal
não havia nenhum produto a ser vendido. O dono dessa “barraca”, durante a semana estocava produtos que
seriam vendidos a outros comerciantes da feira. Assim, no sábado à tarde, momento em há um esvaziamento da
feira, somente algumas caixas ficavam no local. E é preciso que se diga que o espaço tinha o tamanho ideal para
execução da técnica.
89
se divertir e ter uma tarde diferente. Além disso, como se conheciam, o nível de interação era muito
evidente e algumas brincadeiras de “brigar”, precisaram ser contidas.
Estava claro que todas queriam brincar, afinal esse tinha sido o convite motivador para
estarem presentes naquele espaço, portanto demonstravam muita ansiedade para iniciar as
atividades. Ao se trabalhar com crianças necessita-se ter um planejamento prévio. Nesse caso duas
questões estavam claras: havia um roteiro de perguntas, previamente construído para executar a
técnica e a outra seria brincar com eles primeiro para em seguida efetivar as perguntas.
No momento em que de fato o planejamento entra em ação, o que ficou claro é que se as
brincadeiras iniciassem a tarde, nenhuma pergunta seria respondida posteriormente.
Assim a primeira brincadeira foi ouvir a própria voz no gravador e tentar identificá-la em
meio às vozes dos outros colegas. Para isso seriam feitas algumas perguntas que deveriam ser
respondidas por todos e consequentemente deveriam ficar atentos para as respostas e assim facilitar
a identificação da própria voz. Quando se vai a campo para uma pesquisa nunca se sabe ao certo
com que se vai deparar, ainda mais se tratando de crianças. Pois é preciso que se diga o quanto
ficaram motivados com a tarefa e interessados em responder a todas as perguntas para em seguida
identificar a própria voz. Houve crianças que solicitaram que a gravação fosse feita isoladamente,
para assim facilitar a identificação.
Já se pensava em outra estratégia para o segundo encontro, na intenção de finalmente
concluir a pesquisa, mas as crianças demonstraram interesse em que fosse repetida a mesma
“brincadeira” e de novo tentar identificar as próprias vozes.
As atividades que se seguiram a essa primeira, intentaram torná-las crianças de fato. Para
isso pintaram, desenharam, construíram jogos, se divertiram, demonstrando que apesar da vida
difícil que levavam e da necessidade de trabalhar comum a todos, ainda tinham a ingenuidade e a
leveza inerente à infância.
5.3.1 OS RESULTADOS
Os resultados são o ponto mais esperado por aqueles que lêem e se interessam por pesquisas
acadêmicas. O que a ida à campo após análise intensa e minuciosa da bibliografia e aplicação da
técnica de investigação trouxe à tona no cenário acadêmico, é a pergunta insistente que a academia
90
faz para o pesquisador que gostaria de se “deliciar” um pouco mais com o seu objeto de estudo.
Entretanto, apesar de insistente, essa pergunta move a pesquisa, impulsiona o desejo de finalizá-la.
Como já foi dito anteriormente a realização do grupo focal contou com 09 (nove) crianças
participando, com idade variando entre 8 (oito) e 13 (treze) anos, 2 crianças eram do sexo feminino
e 7 do sexo masculino. Este é um outro dado que a pesquisa bibliográfica já havia afirmado.
Também na feira de São Joaquim é mais fácil encontrar meninos do que meninas trabalhando. Não
é possível afirmar por qual motivo a predominância é de meninos em relação às meninas, mas o que
se pôde observar é que quando acontecem alguns problemas na feira, brigas principalmente, os
meninos, mesmo estando perto, encaram com mais naturalidade, além disso, as meninas estão
sujeitas às investidas dos homens mais velhos, causando um certo transtorno aos responsáveis pela
segurança das mesmas. Uma das meninas participantes do grupo focal, conta sobre uma briga entre
o tio e um rapaz que tentou molestá-la sexualmente. “Teve até faca” disse ela. Dentre estes, quatro
vendem limões; duas vendem sacolas e; três vendem doces e balas.
Um dado importante a ser retomado e para ficar mais clara o contato com tantas crianças, é
que muitos responsáveis, alguns, pai ou mãe, quando eram consultados sobre a possibilidade de
aquela criança participar da atividade na data previamente marcada, eram categóricos ao afirmar que
não seria possível, pois não era costume as crianças estarem na feira, porque estudavam e não
estariam disponíveis para a atividade. Encontrá-las ali naquele momento tinha sempre motivos
justificáveis: um caso era consulta médica e a criança não tinha com quem ficar; outro porque a
criança insistiu muito para não ficar em casa e por isso foi trazida à feira; e ainda outros porque
iriam para outro lugar depois do expediente na feira e a criança estava ali para facilitar o
deslocamento. Enfim, estes demonstravam não ver como necessário o trabalho da criança nos seus
respectivos box e estudar tinha que ser o direcionamento de todos. Nesses casos a conversa nunca
era prolongada, ou seja, não podia ir e pronto.
Todas as que participaram da pesquisa, são oriundas da classe baixa e moram em bairros
periféricos. A maioria no subúrbio ferroviário e segundo relatos em condições de extrema
precariedade. Três crianças que participaram da atividade são parentes e moram com a avó, mãe,
irmãos e primos, segundo uma delas num barraco alugado, por isso precisam trabalhar para ajudar a
família no pagamento do aluguel e aquisição de alimentos para sustento de todos, principalmente
porque, os menores que ainda não trabalham são “bocas” a serem alimentadas.
Ao serem perguntados como começaram a trabalhar na feira de São Joaquim, todos
afirmaram terem sido levados pelos adultos responsáveis, que não necessariamente é a mãe ou pai,
pois alguns têm a avó como referência familiar. Segundo Berger e Berger (1980) “Os adultos
91
apresentam-lhe certo mundo e para a criança, este mundo é o mundo.” (p. 205). Entrar no mundo
dos adultos via adultos é um caminho facilitador, pois qualquer indivíduo precisa aprender a ser um
membro da sociedade, entretanto no que tange à “sociedade mercado de trabalho” , especificamente
feira de São Joaquim, essa não é uma tarefa fácil, principalmente por se tratar de crianças. Estas
precisam estar socializadas e inseridas neste ambiente para assim possibilitar o “trânsito” entre
fregueses e feirantes de forma que a venda da mercadoria seja favorável. Berger e Berger (1980)
reforçam essa questão quando afirmam que, “Desde o início a criança desenvolve uma interação
não apenas com o próprio corpo e o ambiente físico, mas também com outros seres humanos. A
biografia do indivíduo, desde o nascimento, é a história de suas relações com outras pessoas.” (p.
200)
A partir da informação de que eram os adultos que levaram as crianças à feira, era
importante saber a partir de que idade iniciou as atividades. Muitos iniciaram por volta dos 5 (cinco)
anos de idade e outros por volta dos 7 (sete) anos. Esse fato remonta-nos a pensar o quanto a
necessidade obriga as crianças a iniciarem atividades laborais cada vez mais cedo e é relevante
ressaltar que o entendimento de que é necessário e importante trabalhar, é a opinião de todos os
entrevistados.
À pergunta se gostam de trabalhar, a resposta é unânime, pois preferem estar trabalhando,
pois assim não serão ladras ou ladrões. Consideram que o trabalho os fará “ser alguém na vida” e
contribuir com a família os deixa muito felizes. É possível perceber um certo orgulho,
principalmente dos maiores, pois como são responsáveis por vender o produto e lidar com dinheiro
para no final do dia apresentar os ganhos, os coloca numa posição de destaque, aproximando-os do
mundo “sério e responsável” dos adultos. A fala de algumas das crianças é importante de ser aqui
reproduzida.
“Trabalhar é bom porque a pessoa quando ta precisando aí trabalha é melhor que roubar,
porque se a gente crescer, vai ter que ser alguém na vida né?!”
Uma outra, diz: “Trabalhar é melhor que roubar do que ficar na malandragem e trabalhar
não, trabalhar a gente arranja uma coisa melhor na vida.”
E ainda uma última fala afirmando que “É bom trabalhar porque a mãe dá comida em casa,
compra pão pra tomar café.”
A fala dessas crianças traz à tona o discurso de que crianças trabalham para ajudar em casa e
que é melhor estar trabalhando do que roubando e é possível perceber que também os infantes
reproduzem esses discursos, transparecendo a certeza de que efetivamente se não estivessem na
92
feira vendendo, estariam nas ruas mendigando e mendigar em nenhuma hipótese faz parte do ideal
daquelas crianças. Algumas deixaram claro que ficar na rua pedindo é a última coisa que gostariam
de fazer e ficou claro também que rechaçam as crianças que ficam na feira pedindo dinheiro e
alimento. Demonstraram que quando trabalham tem a dignidade de não precisar ficar andando na
feira pedindo às pessoas o que poderiam conseguir com o suor do trabalho desenvolvido.
Na relação de trabalho, a que são submetidos, a única tarefa que não cabe a eles é comprar o
produto que será vendido na feira. Essa tarefa de comprar e dividir em partes pequenas como, por
exemplo, aqueles que vendem limões cabe aos adultos. O mais: ser responsável pela conservação
do produto, caminhar na feira, apresentar o produto ao freguês, tentar convencê-lo a comprar,
receber o dinheiro, “passar” o troco (quando for o caso) e depois apresentar o lucro do dia tem que
ser feito pela criança. E não há salário, todo dinheiro que se consegue com as vendas é entregue aos
adultos. No momento em que o grupo focal estava sendo executado, esta foi uma das perguntas feita
às crianças. O lucro no dia, varia entre R$ 7,00 (sete) e R$ 10,0 (dez) reais e este todo, é entregue ao
adulto responsável. As meninas foram categóricas em afirmar que o dinheiro serviria para comprar
alimentos, já os meninos disseram que o dinheiro serviria também para comprar roupas ou então
jogar vídeo-game, mas que o pai ou a mãe era responsável pelo destino dos ganhos. É importante
ressaltar que os adultos a que estas crianças têm como referência também trabalham na feira, com o
mesmo produto comercializado pelos pequenos, com exceção do pai dos garotos que vendem
doces, pois o mesmo ganha dinheiro carregando compras dos fregueses com um carrinho de mão.
Não pareceu que havia revolta por trabalhar e ainda ter que dar o dinheiro para os pais ou
responsáveis. O que ficou claro foi um senso de responsabilidade muito significativo, pois
compreendiam que em função das condições de vida, só poderiam ajudar se trabalhassem, pois
assim aumentariam a renda e contribuiriam com o sustento dos familiares.
O horário de acordar para se dirigir à feira é exatamente o mesmo dos adultos. As crianças
relataram ser necessário levantar às 3:00 h da manhã para poderem chegar na feira entre 6:00 e 7:00
h. Essa rotina ocorre todos os dias quando estão de férias, pois todas estudam e só trabalham no
horário oposto à escola. As crianças que vendem limão relataram ir à feira somente no sábado e
domingo, entretanto foi possível encontrá-los em variados dias da semana. A justificativa era
sempre não ter tido aula naquele dia o que era sempre confirmado pela avó, responsável pelos
mesmos. A hora de ir embora depende do quanto de mercadoria ainda precisa ser comercializada.
No caso das crianças que vendem limões, é preciso acabar com toda mercadoria comprada para
aquele dia. As crianças que vendem sacolas e doces não tem essa obrigação, mas ficam à mercê da
determinação dos responsáveis, ou seja, quando os adultos consideram que não venderão mais nada
93
na feira. Assim aqueles que trabalham durante a semana período em que a feira fecha às 17:00 h
as crianças ficam até esse horário se for essa a ordem dos adultos; para os que trabalham sábado e
domingo dias em que a feira fica aberta até no máximo 14:00 h as crianças dependendo da
venda saem 13:00 ou às 14:00 horas.
O decorrer da investigação apresentou algumas contradições, como por exemplo: a princípio
todos gostavam de trabalhar na feira e todos consideravam o local importante, não só para vender os
produtos, mas também pela possibilidade de comer coisas diferentes muitas frutas à mão. À
medida que as perguntas se tornavam mais específicas, ou seja, quando foi perguntado o que era
ruim na feira, tornou-se possível detectar que trabalhar na feira nem sempre é “um mar de rosas”,
principalmente para as meninas que sofrem perseguição de alguns homens que em busca de sexo
fácil ou dinheiro, as ameaça. Algumas já sofreram agressão física, mas, segundo elas, sempre tem
quem as defenda, principalmente os seguranças que ficam à cata desses “caras” como disseram
elas. Os meninos sinalizaram o desrespeito de alguns feirantes que quando os vêem se aproximando,
não permitem que vendam os produtos, “os outros não respeitam a gente não, quando a gente vende
um negócio fica dizendo sai prá lá” disse um dos meninos que vende doces e balas. O relato das
meninas retrata bem essa situação.
Uma delas diz: “Teve um que me bateu porque eu não quis dar meu dinheiro. Ele queria que
eu desse o meu dinheiro a ele, aí eu falei que não ia dar, aí ele puxou meu cabelo e me deu um
beliscão.
Em outra situação, “Teve um que falou que ia me dar R$ 10,00 (dez reais) pra me namorar
com ele, eu peguei e fiquei com medo e fui chamar os caras
20
também.
E então como convivem com essa situação e como fazem para vender a mercadoria, era
uma pergunta importante a ser feita. Segundo as crianças, cada um tem uma estratégia para burlar
essa rejeição dos feirantes, o principal é “não ligar”, inclusive porque a grande maioria dos feirantes
conhece e protege as crianças. Além disso, os fregueses, segundo eles, preferem comprar na mão de
criança. E por quê? “Por que criança adula e adulto não” O adular, ou melhor, insistir é a estratégia
encontrada para vender mais rápido a mercadoria. Senão fica “mofando” como disseram eles. É
curioso ver como as crianças se aproximam dos adultos e como insistem para que a compra seja
efetuada.
20
Os “caras” a que essa criança se refere são os seguranças da feira. Pessoas que recebem salário para impedir
ladrões, brigas e qualquer ação que coloque em risco qualquer pessoa dentro da feira. Caminhando pela feira é
possível perceber a presença deles e se comunicam entre si através de rádios fazendo com que o deslocamento,
quando necessário, seja eficaz.
94
Alguns relatos dos mesmos: “Compre pra me ajudar, pra ir pra casa, ir pra escola, aí ele
compra logo em minha mão”.
Uma outra criança diz: “A gente chega assim e fala: bom dia pessoal chegou nova paçoca,
gosto de amendoim, duas é vinte; três é cinqüenta e quatro é um real.
Para outra criança a forma de falar com o cliente é “Quer limão? Compre pra me ajudar.
Não compre limão bagé que eu tenho filé”
Essas ações provam que “De início, o mundo social dos pais [ou responsáveis] apresenta-se
à criança como uma realidade externa misteriosa e muito poderosa. No curso do processo de
socialização este mundo torna-se inteligível. A criança penetra nesse mundo e adquire capacidade
de participar dele. Ele se transforma no seu mundo.” (BERGER & BERGER, 1980, p. 205). Ou
seja, a própria criança encontra as suas próprias “armas” para vender, na medida em que se sente
parte do mundo no qual foi inserida.
Estas crianças já estão na feira há um bom tempo, mas não souberam dizer exatamente
quanto tempo quando essa pergunta foi feita, entretanto levando em consideração a idade que
possuem hoje e a idade que tinham quando chegaram à feira, é possível concluir que a maioria dos
participantes tem mais de 2 (dois) anos vendendo na feira. Nesse ínterim surgiu o interesse de saber
se lembravam do primeiro dia de trabalho na feira. Apenas duas crianças, as meninas, tinham esse
dia registrado na memória. Reproduzir-se-á na íntegra a fala de ambas. A primeira, uma menina de
10 (dez) anos, diz,
O primeiro dia eu vim com minha mãe e eu não gostei não. Achei tudo sujo e
fedendo e chorei pedindo pra ir embora. Ela falava que eu tinha que esperar e eu
falava que queria ir embora. Aí minha mãe me levou pra casa. No outro dia que
ela me trouxe eu já achei melhor, gostei mais, aí eu fui me acostumando. Fui
vendendo e me acostumando e agora eu gosto de trabalhar. E agora eu gosto de
vim pra aqui.
A segunda menina, com 9 (nove) anos, trabalha na feira porque pediu a avó. “Ficava indo
mais pra escola, aí eu pedi a ela pra vim. Pra vê se ela deixava né? Eu pedi a ela pra vim todo dia pra
feira e sábado e domingo tombém. Que eu queria vender, aí ela deixou eu gostei de vim e foi assim
que eu pedi.”
Diante da certeza dessas crianças de que além de gostarem do que faziam, achavam o seu
trabalho muito importante, era inevitável perguntar sobre a possibilidade de uma outra opção, ou
95
seja, se não fossem “obrigadas” a estar na feira trabalhando o que gostariam de fazer, a resposta
dada é significativa para nós, cidadãos, revermos as ações que estamos direcionando para a infância
trabalhadora e é importante também para discutirmos se o trabalho que não possui características de
exploração pode funcionar como mecanismo de aprendizado infantil. As crianças afirmaram que
estudar, seria a única coisa que gostariam de fazer caso não precisassem trabalhar. Nunca é demais
salientar que todas as crianças que participaram do grupo focal já estudam, mas o que ficou evidente
que era só o que gostariam de fazer enquanto são infantes. Elas gostam de trabalhar, as respostas
demonstraram isso, mas se pudessem “escolher” preferiam estudar apenas. E assim cabe uma outra
pergunta, sem resposta no momento, elas gostam mesmo de trabalhar ou é a necessidade que as
obriga? Esta pergunta vai ficar para posteriores estudos que não competem mais a esse trabalho.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tentativa é retomar a caminhada da pesquisa relacionando ao que foi discutido a partir dos
autores lidos e utilizados nesse trabalho e principalmente re-analisando as respostas das crianças
tentar chegar a algumas conclusões ou ao menos deixar a possibilidade de novos debates e novos
estudos para pesquisas posteriores.
Antes é preciso que se diga que chegar ao final de uma pesquisa, antes de ser um alívio, é
um incômodo momento de se perguntar se é o final mesmo, se não há mais nada a ser dito ou
perguntado aos sujeitos da pesquisa.
A infância, uma construção social, disseram alguns autores, sempre esteve presente em
todas as sociedades, desde as mais primitivas às mais atuais. Assim sendo parece um alento ter essa
certeza, porque quando se lê Áries (1981) a impressão que se tem que esta a infância só passa a
existir no século XIX. Debruçar-se sobre sua teoria e refletindo detidamente a discussão que trava,
fica mais claro o entendimento que na verdade, a sociedade moderna entende o que é infância
somente a partir desse período.
Essa criança sempre trabalhou e sua função, principalmente nas sociedades agrícolas, só era
compreendida se contribuísse com a família. Havia necessidades prementes que a criança assim
como qualquer membro, deveria tentar resolver e se estas diziam respeito à sobrevivência, somente
o alimento era a solução, mas para obtê-lo era preciso trabalhar e quanto mais pessoas estivessem na
lavoura, mas alimentos seriam produzidos e comercializados.
Sociedades clássicas com seus respectivos costumes, vão conceber e compreender a infância
com muita severidade, exigindo das crianças obediência cega aos pais e à sociedade da qual faziam
parte. Estas sociedades dão pouca importância à criança, preferindo os adolescentes, mas sem perder
o domínio sobre os mesmos. Vários rituais em cada sociedade selarão a passagem da infância para a
adolescência e desta para a maturidade.
97
Nas sociedades modernas, ao ser instaurada a necessidade da escolarização em massa,
crianças não trabalharão. O seu principal objetivo de existência será estudar, entretanto abolida a
função do labor infantil, muitas famílias terão em seus lares o mínimo de crianças ou até mesmo
nenhuma criança será gerada. Nestas sociedades modernas existirão defesas ferrenhas de que não
pode existir o trabalho infantil, entretanto as classes mais pobres continuarão utilizando a mão-de-
obra dos seus filhos nas fábricas e nas lavouras. Principalmente nas cidades o trabalho será
facilmente percebido, independente de todas as campanhas contrárias. Os autores utilizados ao
longo desse trabalho trouxeram dados de que o trabalho infantil é utilizado em larga escala nos
países mais pobres, “incentivados” pelos mesmos países que combatem o trabalho infantil.
O êxodo rural impulsionando o inchaço das cidades, o aumento da pobreza, a precarização
das relações de trabalho, incentivando ainda mais o trabalho informal vai impelir famílias a
utilizarem suas crianças como força de trabalho que assegure uma renda maior nos ganhos do grupo
familiar.
Esse é um dado, se não uma conclusão. A pobreza é fator significativo para a existência do
trabalho infantil. As crianças que trabalham na feira mesmo aquelas que não participaram do grupo
focal, mas que conversas informais possibilitaram alguma informação, são pobres. Suas famílias são
pobres, a vida que levam é de extrema pobreza. E trabalham porque precisam ajudar em casa,
precisam ajudar aos adultos para que todos sobrevivam. É uma questão de sobrevivência.
Esta realidade atual, conhecida através das crianças que trabalham na feira, pode talvez ser
relacionada com o que se concebia no passado, mais especificamente nas sociedades agrícolas, onde
as crianças só tinham função se fossem compreendidas como auxiliares da família assim como
qualquer outro membro pertencente à mesma, principalmente naquelas consideradas de pequeno
porte, onde se tornava impossível contratar empregados, sendo assim necessário a colaboração de
todos para que a produção de alimentos pudesse ser efetivada e isto deveria ser feito independente
de serem adultos ou crianças.
No início de toda essa caminhada, antes mesmo de ter sido aprovada na seleção do
mestrado, havia uma questão defendida com certa garra e fervor. Essa defesa estava relacionada a
além de dar “voz” às crianças, tentar chegar à conclusão de que talvez existissem em alguns grupos
a certeza de ao usar mão-de-obra infantil não houvesse necessariamente exploração e sim a
possibilidade de algum aprendizado e ainda mais: talvez as crianças “conscientemente” gostassem
de trabalhar, achassem importante trabalhar não só para ajudar em casa, mas por considerar
importante ter alguma função no seio familiar, parecendo-se com os adultos.
98
Leite (2003) levantou essa questão, mas sempre afirmando que este seria um discurso dos
adultos, principalmente do Estado que para não aumentar crianças na rua sem “ter o que fazer”,
incentivava que os pais ou responsáveis levassem seus filhos para os locais de trabalho e assim já
fosse iniciada a prática de alguma tarefa, ou então ficassem em casa tomando conta dos menores.
Esse Estado estava muito mais preocupado com a infância pobre, mas não necessariamente por
benevolência ou solidariedade e sim por querer manter uma imagem de organização social
condizente com os padrões internacionais. Já havia muitos problemas sociais a serem resolvidos e a
infância não podia ser mais um deles.
Nas conversas com os responsáveis essa certeza de que não estavam fazendo mal algum às
crianças se confirmou, principalmente no que diz respeito a não permitir que ficassem na rua
“vadiando”. Estar ali “sob os olhos” deles assegurava que não se tornassem ladrões ou ladras ou até
mesmo prostitutas no caso das meninas e ainda poderiam aprender alguma coisa. “Qual era o mal
nisso? Todos estudam e só vem pra feira no horário que não estão na escola.” Não exploram porque
não obrigam, mas existem casos ali mesmo que existe obrigação em ir. Ainda cumprindo a
determinação de continuar estudando, precisam trabalhar para ajudar a ter comida para comerem.
Pois bem, o olhar mudou? Mudou a possibilidade de pensar que o trabalho pode ser
utilizado para que as crianças aprendam alguma coisa? E escola, não está aí para isso? Brincando
também não se aprende? Toda criança que trabalha, está efetivamente sendo explorada? Responder
a essas perguntas não é fácil. Estar em contato com pais ou responsáveis e crianças provoca uma
série de reflexões e poucas respostas, porque existem vários ângulos para analisar a questão.
No decorrer da aplicação do grupo focal após terem sido feitas as perguntas (que também foi
utilizada como brincadeira), o que mais as crianças queriam era desenhar, pintar, montar jogos.
Atividades simples, mas a impressão que se tinha era que aquele era o único momento que tinham
para se divertir. As crianças foram divididas em grupos para que as atividades se adequassem à
idade de cada um, mas o que parecia “bobo”, porque era muito fácil, ou seja, mas adequado aos que
tinham menor idade, também foi procurado e executado pelos maiores. O interessante é que os
menores, de oito ou nove anos de idade, também pediram para realizar as atividades um pouco mais
difíceis, demonstrando que queriam passar pelo desafio e consequentemente provar que podiam
concluir a tarefa, apesar de não ter sido promovida nenhuma competição.
Mesmo com a vida dura que tinham e a necessidade que os obrigava a trabalhar, a técnica
de pesquisa demonstrou que são crianças como qualquer outra e não adultos em miniatura, gostam
de diversão, de desafios educativos, mantendo assim o que é inerente a qualquer criança
independente de ser trabalhadora ou não.
99
O país exclui uma parcela significativa da população não oferecendo emprego e muito
menos condições de sobrevivência. Essa parcela precisa se alimentar e alimentar as bocas que
gerou. Sozinhos, os responsáveis não conseguem cumprir as exigências sociais impostas pelo poder
público e por isso se utilizam das crianças para ajudar no provimento das necessidades. Os adultos
trabalham juntos e as crianças sabem das necessidades que possuem, entretanto a lei é clara quanto
ao uso e abuso de mão-de-obra infantil. E a lei juntamente com a sociedade tem agido com
veemência contra o trabalho infantil. E no que tange à legislação, a pesquisa demonstrou que váriso
países, inclusive o Brasil não estão alheios à problemática da criança que trabalha, promovendo
ações pontuais para solucionar o problema ou pelo menos coibi-lo com vigor.
Uma coisa é certa e indiscutível: criança rica não trabalha, pelo menos não é forçada a fazê-
lo. Criança pobre não escolhe, mas se pudesse escolher, disseram os sujeitos dessa pesquisa, só
estudariam.
100
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TURA, Mª de Lourdes Rangel (org.). Sociologia para Educadores. 2 ed. Rio de Janeiro:
Quartet, 2002.
104
ANEXO
105
ANEXO
GRUPO FOCAL
NOME
IDADE
SEXO
1. O tempo de trabalho na feira
2. Quem está há mais tempo aqui, o mais antigo?
3. Como é o trabalho aqui na feira? Tem coisas boas e coisas ruins?
4. Como é o trabalho das crianças e o trabalho dos adultos? Quais as diferenças?
5. Quem trabalha sozinho e quem trabalha para outra pessoa? Como é cada uma dessas
situações?
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