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JANAINADESOUSA
TEATRO, VIOLÊNCIA E ADOLESCÊNCIA
Dissertaçãoapresentada no Curso de Pós-
Graduação: Mestrado em Teatro, do
CentrodeArtesdaUniversidadedoEstado
de Santa Catarina UDESC, sob
orientação da Professora Doutora Beatriz
A. Vieira Cabral como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Teatro.
FLORIANÓPOLIS
Agosto/2004
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Ata de aprovação
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Meus agradecimentos
A Deus por toda força universal que me acompanhou nesta longa jornada;
Aos meus pais Nilsa e Acigeli, aos meus irmãos Ronei e Karolayne, pela paciência em
respeitar minhas ausências, minha cara feia, meus momentos de reflexão. Eu os amo e admiro
muito. Obrigada por sempre estarem do meu lado;
Ao Juliano, meu amor e companheiro de horas tão difíceis, pela paciência e por
sempre ter uma palavra de carinho, um sorriso, por estar sempre presente;
A Biange, minha orientadora, por acreditar na minha capacidade e que essa pesquisa
daria certo;
Aos membros da banca, professor Flávio Desgranges, por aceitar meu convite e me
ensinar a perceber e entender melhor o espectador. A professora Josiane Rose Petry Veronese,
por além de aceitar encarar o meu convite, me ensinou a compreender a lei, guiada pelo viés
da sensibilidade;
A toda a minha família, e a todos aos meus amigos, desde os mais antigos até os mais
recentes, todos foram importantes nessa caminhada;
Em especial a minha grande amiga Fátima Lima, que sempre acompanhou minha
trajetória, que sempre esteve presente me guiando com palavras amigas ou questionamentos,
este mérito também é seu. Obrigada minha fada madrinha!
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Resumo
Esta pesquisa é resultado da preposição de uma estratégia teatral, chamada círculos
concêntricos. Através das aulas de teatro, com adolescentes de uma sétima e oitava série da
rede municipal de Florianópolis, foi construído os círculos da violência, tema este escolhido
pelos alunos. Esta pesquisa fala de como se realizou tal processo, quais as dificuldades
encontradas no processo artístico e pedagógico, quais os tipos de violências que estes
adolescentes sofrem ou praticam no seu dia a dia. Fala também de como é importante ouvir
nossos alunos, e com eles resignificar objetos, transformar espaços comuns em espaços de
representação e da colaboração na construção da consciência crítica e artística perante o tema
trabalhado, através do teatro.
Palavras chaves: Teatro, adolescência, círculos da violência, violência verbal, corporal,
sexual e simbólica.
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Abstract
This research looks at a theatre strategy, named ‘drama circles’, developed by Mark
Danby, a Canadian drama teacher. The drama circles, a series of concentric circles, each
centred on a distinct concept regarding the theme under investigation, was explored with a
group of 13 years old pupils of a public school in Florianopolis. The field experience was
based on the theme “violence’, here examined in its distinct sub-areas: physical, verbal,
emotional and symbolic. The outcome revels the kids’ point of view and ways of expressing
and making meaning of the many forms of violence in their daily life in the school. The
concluding analysis shows the importance of paying attention to the way the students
transform objects and space in order to represent their ideas and how this support the
development of their critical and artistical thinking.
Palavras chaves: Teatro, adolescência, círculos da violência, violência verbal, corporal,
sexual e simbólica.
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SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................. 8
1- CÍRCULOS DA VIOLÊNCIA............................................................................. 17
1.1- Os círculos concêntricos de Danby e Cabral................................................... 20
1.2- O círculo da violência: minha experiência em sala de aula............................ 21
1.3- Seqüências de movimentos e sons..................................................................... 41
1.4- Improvisação....................................................................................................... 43
2- TEATRO NA EDUCAÇÃO: ASPECTOS TEATRAIS DO PROCESSO
PEDAGÓGICO.......................................................................................................... 46
2.1- E essa pose de normal, menina.......................................................................... 49
2.2- Olhares da realidade........................................................................................... 52
2.3- Objetos que se transformam em caixões, pássaros, armas............................. 55
2.4- Quanto mais perto, melhor................................................................................ 57
2.5- Mãos que agridem e agradam............................................................................ 59
2.6- Em cada pedaço do corpo, uma lembrança...................................................... 62
3- VIOLÊNCIA E ADOLESCÊNCIA...................................................................... 68
3.1- A violência verbal na adolescência..................................................................... 71
3.2- Adolescentes e violência corporal....................................................................... 73
3.3- Adolescentes e violência sexual.......................................................................... 76
4- VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: ATITUDES E AGENTES.................................... 80
4.1- Instituição disciplinária e espaço escolar.......................................................... 84
4.2- Mídia e violência simbólica................................................................................ 87
4.3- O adolescente ora agente, ora vítima................................................................. 94
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5- CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 97
6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 102
7- ANEXOS................................................................................................................. 107
8
INTRODUÇÃO
E eu ao público peço que me acompanhe.
Dele espero apenas compreensão.
Compreensão e crítica. (...) E adianto -
para que bem me entendam - que este
trabalho contém antes um percurso que
um ponto de chegada. Ele é um
movimento. Um movimento que resulta
várias trajetórias.
Sônia Kramer
Teatro faz parte da minha vida desde quando eu estudava em uma escola pública de
Florianópolis. Ainda adolescente, descobri minha vontade e vocação, e as desilusões... Meu
professor de português solicitou um trabalho a ser apresentado de maneira diferente, através
do teatro, da música ou da poesia. Então reuni a minha turma e perguntei: “
vamos fazer
teatro?
”. Minhas companheiras se espantaram e perguntaram se eu estava louca, porque elas
nunca tinham feito teatro antes. Eu respondi: “
Deixa comigo, já tenho tudo na cabeça!
” Elas
deixaram por minha conta. Então...
Depois de fazermos cenário, figurino, adaptação da obra, realizamos a nossa
encenação teatral de A Moreninha, de Machado de Assis. Confesso que foi difícil interpretar
na frente de todos os meus amigos e do professor. Fiquei vermelha como pimentão. Isso não
se modificou com o tempo: até hoje coro quando vou entrar em cena.
Após a apresentação, o professor questionou o processo e eu expliquei. No final da
aula, ele me perguntou: “
Você já sabe quê faculdade vai fazer?”
Respondi que não, e ele
retrucou que talvez eu tivesse encontrado uma resposta naquele dia: por tudo o que apresentei
em sala de aula, ele não tinha dúvidas de que eu deveria cursar Artes Cênicas. Embora no
momento não soubesse se ele estava falando sério ou brincando, acabei indo por esse caminho
tão lindo e tão árduo, mas que ainda hoje é o caminho que me faz feliz... E hoje ainda
agradeço àquele meu professor, que anos depois se tornou meu colega de trabalho, nessa tão
distinta profissão de educador.
O encontro com os adolescentes e com a educação ocorreu após a minha formatura de
graduação, quando comecei a lecionar teatro em sala de aula de uma escola pública e
conhecer na prática o que a teoria muitas vezes não deu conta de explicar. A Universidade
muitas vezes preza por um currículo que se preocupa muitas vezes em passar conteúdos, para
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poder cumprir as ementas, mas esquece de fazer ligações com a realidade das escolas,
principalmente das públicas e municipais, que é o espaço onde a maioria de nós, arte-
educadores, recém formados, começa a construir caminhos, deixar marcas.
Deparamo-nos com uma escola que apresenta muitos problemas e dificuldades, mas
não é a eles que quero ater-me, e sim a uma escola que é repleta de diversos e distintos
sujeitos, com objetivos e propósitos diferentes. Quando é que a teoria falou da realidade
desses sujeitos? Não falou.
A prática do dia a dia é que mostrou como essas relações se manifestam e de como
lidar com as dificuldades, de falta de espaço, de indisciplina, de desprezo... Mas até conseguir
uma harmonia entre a teoria e prática, muitas horas de angústia e impotência invadiram meu
ser.
Trabalho como arte-educadora desde 1999, e é dessa mesma época que leciono e me
relaciono com os adolescentes. No início tudo foi mais difícil, tanto ministrar as aulas quanto
travar relações no dia a dia com a comunidade escolar. Nessa relação com adolescentes na
escola, me deparei também com o assunto da violência, uma violência proveniente de vários
lados, e afetando muita gente. Violência praticada e sofrida pelos adolescentes, situações
violentas que a escola instaura, violência produzida pela mídia... Essas reflexões inspiraram
esta pesquisa.
Houve horas em que pensei em desistir. Alguns rostos, olhos firmes e depoimentos
sensíveis, porém, me deram a força que precisava para continuar. Ambas, educação e
adolescência são frágeis e complicadas, por um lado, e frutíferas e saborosas, por outro: as
duas parecem se descobrir, se amar e se odiar. Mas as duas me encantam, e me fazem refletir
na busca de saídas quando tudo parece perdido; buscar um sorriso quando se tem vontade de
fugir; abraçar quando se tem vontade de xingar; ajudar quando se tem vontade de mandar tudo
para o espaço. Enfim, continuar, quando se tem vontade de mudar de profissão. E assim
buscar,
Um conhecimento prazeroso, porque é imbricado à sua experiência
concreta; um conhecimento coletivo, porque nascido de uma prática
comum; um conhecimento que não é reduzido a meras informações
mecânicas supostamente transmitidas em rápidas “reciclagens” e
“capacitações”; um conhecimento vivo, porque vinculado às histórias
daqueles que o produzem (Kramer, 1993:60-61).
A construção desse conhecimento prazeroso inspira a minha prática como arte-
educadora, um conhecimento que se deixa descobrir com o grupo envolvido no processo, um
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conhecimento que valoriza os alunos como sujeitos únicos e não como massa, sujeitos que
tem suas histórias e que também produzem novas histórias.
As reflexões que fundamentam essa pesquisa se deram a partir da prática teatral, pelo
envolvimento com um grupo específico e especial, e de um referencial teórico que gerou, em
diversas vezes, muitas enxaquecas: certos autores não saiam da minha frente, pareciam me
perseguir, gritar meu nome. Neles, entretanto, encontrei sustentação para o meu discurso, e
respostas para muitas perguntas e problemas que me incomodavam.
A realidade mostra que existem muitos prejudicados nas relações em que a violência é
o pivô: sujeitos que sofrem com ações de violência; que não encontram apoio nas instituições
e muitas vezes na família; que se apóiam nas suas turmas para se sentirem melhores; ou que
encontraram no teatro um meio de se comunicar e de refletir sobre a realidade que os cerca.
Eu, como educadora, me designo o papel de discutir essas relações, de expor a minha voz, até
porque acredito que,
Homens, mulheres, trabalhadoras, trabalhadores, pais, mães, filhos e
filhas, irmãs e irmãos, negros e brancos, adultos e adolescentes, as
professoras e os professores são seres humanos. Humanos porque são
sujeitos sociais e históricos, presentes na história, atores da história.
Cidadãos com direito a uma vida digna, merecedores de condições que
lhes permitam exercer com dignidade o seu trabalho, as professoras e os
professores têm o direito de acesso aos conhecimentos e de serem autores
de suas vozes. Vozes nascidas da prática cotidiana, feitas de contradições
e recusa, de esperança e resistência, de busca (Idem:10).
Resolvi, nessa pesquisa, tentar ser uma espécie de porta voz das minhas alunas e
alunos que gritam quando muitos fingem que não ouvem... E assim assumir riscos dando voz
ativa a estes sujeitos. Faço isso porque acredito nesse tipo de teatro, que me proponho a fazer.
Uma reflexão de Teixeira Coelho traduz o porquê escolhi o teatro:
A ação cultural encontra no teatro campo fértil para alcançar seus
objetivos próprios, porque é exatamente isto que o teatro promove: a
consciência do eu (a consciência do equipamento pessoal, dos sentidos
humanos, do próprio corpo no espaço, da própria subjetividade, da figura
em si como os outros a vêem, da própria representação como a mente se
oferece); a consciência do coletivo (a noção da existência do outro, a
partilha de idéias e bens, a interação relaxada, a convocação das energias
comuns para a solução da proposta); a consciência do entorno
(consciência das coisas, de uma cadeira) (Neto, 1989: 90).
Para abordar o fazer teatral que envolve tanto a mim quanto a esta pesquisa, há três
categorias principais que permeiam este estudo. A primeira diz respeito à adolescência. Para a
definição de adolescência, busco na Legislação Brasileira tal conceito, onde um dos autores
11
profere que
“Considera-se criança, para efeitos desta Lei, a pessoa de até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”
(Nogueira, 1991:3).
Essa variação de idade na prática é elástica, já que, individualmente, é distinta para
cada um a percepção desta fase da vida: enquanto uns poucos sentem tantas diferenças
bruscas que ela aporta, para outros o mundo parece que desaba sobre a sua cabeça. Estão em
processo de desenvolvimento, e muitos deles mesmo dizem que “
ficam fora da casinha”.
Lidar com os adolescentes, nem sempre é fácil, requer além de algumas habilidades,
um pouco de paciência. Cada grupo de adolescentes reage diferente às propostas: uns odeiam,
sem nem saber do que se trata, enquanto outros acham que é “
maneiro”
e participam. Com
eles aprendi muito sobre mim, sobre como me relaciono com eles e como me preocupo com
cada um, com cada rosto que se esconde atrás das mochilas. A uma turma de adolescentes, de
uma 7ª e 8ª série de uma escola municipal propus, em sala de aula, o conhecimento e
descoberta, em parceria, dos círculos concêntricos, a segunda categoria importante desta
investigação.
Os círculos concêntricos são uma estratégia, por mim tomada para trabalhar
teatralmente a fim de descobrir muitas histórias sobre esses adolescentes, e sobre o mundo
que os cerca, sobre como eles lidam com a violência. Esta estratégia permite uma interação do
grupo envolvido no processo, permite o uso da improvisação, de ser autor e ator da proposta.
São autores, na medida em que investigam e constroem o material de sua pesquisa, criam o
discurso cênico e discutem sobre o tema escolhido por eles, a violência. E atores, na medida
em que giram o círculo e articulam as diferentes categorias, transformando-as em cenas. Já
que a cena é realizada na hora em que o círculo gira, os alunos não têm muito tempo para
arquitetar todas as idéias, por isso as respostas dadas e os gestos utilizados são, na maioria das
vezes, espontâneos.
Os círculos permitem que muitos se manifestem, e não apenas uma única opinião
prevaleça. Permitem também que os alunos se envolvam, desde a sua confecção em sala de
aula, até o preenchimento de cada uma de suas categorias, e faz com que os temas e os
desejos comuns ao grupo sejam a prioridade do círculo, o assunto principal. Tal assunto, que é
pensado e discutido com o grupo, faz com que valores e juízos venham à tona, possibilitando
um maior conhecimento sobre cada indivíduo participante.
A abordagem metodológica escolhida valoriza o processo de trabalho e as vozes dos
participantes incluindo-me, enquanto pesquisadora. Essas diferentes vozes se fazem presente
em toda ação artística e pedagógica. Penso nessa estrutura de trabalho como uma tríade de
vozes: a dos adolescentes, a minha e a dos autores. A dos adolescentes se faz presente em
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todo o processo prático, onde opiniões foram expostas, reflexões e comentários se
manifestaram nos
diários de bordo
.
O diário de bordo, também chamado protocolo, é um registro elaborado pelo aluno
sobre o que ocorre nas aulas de teatro. Documenta as reflexões pessoais e coletivas do grupo.
Pode ser produzido por meio de desenhos, colagens ou pequenos textos escritos, através dos
quais se constrói uma memória de experiências, servindo como um exercício educativo. Tal
recurso é de extrema importância tanto para os alunos quanto para o professor. Para os alunos,
porque ali eles expressam suas opiniões sobre o decorrer do processo; e, para o professor,
possibilita fazer avaliações do processo de aprendizagem da linguagem teatral, e de como o
grupo reflete sobre o tema, nesse caso, a violência. Quem sabe vocês encontrem pedaços deles
no caminho.
A utilização dos círculos faz com que os alunos estimulem a sua criação individual, e
que dividam suas opiniões com o grupo, criando uma certa expectativa com a utilização desse
instrumento. Sempre que girarem os círculos, terão combinações diferentes. Pode-se dizer,
então, que o uso dos círculos de forma aleatória é benéfico para potencializar as situações a
serem exploradas e improvisadas.
E, por último, a violência é o terceiro conceito. Defino violência como atitudes que
fazem com que sujeitos sofram, se machuquem, percam sua integridade moral e/ou física,
percam sua vida, pois
“Se se fala de violência, fala-se de um sujeito violentado. Fala-se de
direitos feridos, de leis não respeitadas, de justiça malsucedida”
(Felipe & Philippi,
1998:13). A violência fala de marcas que ficam no corpo e na alma de quem a sofreu, e na
memória e nas mãos de quem a praticou.
Estas três categorias suportam e permeiam os vários capítulos que estruturam a
presente pesquisa, organizadas da maneira como segue. Tive como inspiração na área
educacional Kramer (1993), que fez com que meu olhar sobre a educação se modificasse,
percebendo ainda mais a importância das relações. Seu jeito poético, porém crítico, me
instigou e me deu forças para continuar escrevendo, questionando e acreditando.
No capítulo sobre Círculos concêntricos, discorro sobre o meu contato com os
círculos, de como conheci essa estratégia, do porque ela me interessou e me incitou a fazer
essa pesquisa. A isso se segue a experiência da construção e proposição dos círculos da
violência em sala de aula com os alunos adolescentes, meus companheiros de pesquisa, as
seqüências construídas e as improvisações realizadas. Práticas e comentários dos alunos, e da
comunidade escolar, quando a mesma se fez presente, aqui serão descritos e analisados, com a
grande contribuição de teóricos, no início tão estranhos, agora tão íntimos... A estrutura
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teórica desse capítulo se fortifica com as reflexões de Cabral e Danby (1999), no que diz
respeito aos círculos concêntricos e sua fundamentação; em Bourdieu (1998), sobre as redes
de contatos que estabelecemos e como essa nos influencia; Spolin (1998 e 1999), com seus
jogos improvisacionais e como que estes contribuem na prática e trazem à tona a
espontaneidade; Boal (1977 e 1998) com sua teoria do Teatro Imagem, dos exercícios, e da
importância dos alunos opinarem, às vezes, nem sempre com palavras e sim com ações; e
Desgranges (2003), com sua investigação sobre as relações estabelecidas no interior da
comunidade escolar e sobre o papel do aluno, como um investigador da linguagem artística.
Teatro na educação: aspectos teatrais do processo pedagógico é o meu segundo
capítulo. Nele, meu olhar se volta para os aspectos teatrais da prática dos círculos da violência
em sala de aula, com os adolescentes. Aqui analisarei algumas fotos do processo e, através da
leitura destas imagens selecionadas, me proponho a observar e discuti-las. O diálogo e o
questionamento se estabelecerão a partir de três categorias teatrais: o par ator e espectador; o
espaço cênico; e o grupo. O que interessa a essa pesquisa são as contribuições que os
elementos que permeiam a representação teatral podem oferecer ao processo pedagógico.
Mais especificamente, no que tange às relações que cada aluno estabelece nesse contexto,
além do próprio papel de aluno: as relações entre atores e espectadores; suas relações com o
espaço cênico; e as relações com o grupo.
Esse capítulo é dividido em alguns sub-capítulos. Cada um se propõe a discutir as
categorias teatrais já comentadas, a partir de fotos do processo. A principal referência
bibliográfica para sustentação de tais discussões é Manguel (2003), no que ele apresenta sobre
leitura de imagem, quando nos cerca de perguntas que suscitam a busca de respostas e mais
respostas.
Nas discussões acerca do par ator e espectador, as contribuições indiscutíveis de
Desgranges (2003) sobre o papel do aluno como espectador orientam a busca por um aluno
ativo, que perceba a importância do espectador no processo artístico e pedagógico, ampliando
sua gama de olhares sobre a mesma cena. O distanciamento descrito por Gerd Bornheim
(1992) se estabelece, muitas vezes espontaneamente, na prática de sala de aula, embora sem a
conscientização que Bertolt Brecht (1948) propõe. O mesmo Brecht pauta a busca de um
compromisso do ator com o seu contexto, um compromisso que,
a priori,
afeta também o
aluno em seu cotidiano.
Soares (2003) ilumina as discussões sobre o transformar os objetos cotidianos em
objetos simbólicos, nas relações que se estabelecem no espaço de trabalho, a sala de aula,
assim como os riscos que o professor assume ao transformar esse espaço cotidiano em um
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espaço de discussão e ao expor a pluralidade das vozes envolvidas. Bourdieu (1992)
fundamenta o espaço cênico como um espaço de hierarquia, onde o professor se coloca “em
cima de um pedestal”, na perspectiva de como poderiam ser modificadas essas relações com
os alunos. Roubine (1998) contribui, a partir do enunciado de conceitos espaciais para o
teatro, na discussão da sala de aula como espaço flexível, transformável e apropriado para a
prática do teatro-educação.
Na relação de grupo, Brook (2000) orienta as discussões sobre a cumplicidade com e
entre os membros do grupo envolvido e sobre a participação ativa e atenta de cada um.
Koudela (1992), enfim, nos fala sobre a importância do respeito pela subjetividade de cada
aluno.
No terceiro capítulo, Violência e adolescência, minha discussão se pauta nos tipos de
violências explicitadas no trabalho com os círculos da violência. São elas as violências verbal,
corporal e sexual. Todas foram trabalhadas cenicamente em sala, vistas e revistas, discutidas e
questionadas. Tais reflexões são banhadas por olhares teóricos e situações do processo, das
mais inusitadas às mais teatrais. A violência verbal é a mais facilmente identificável, pois
muitos adolescentes usam essa linguagem para se comunicarem. Essa discussão se arrola com
apoio teórico de Luft (1985), que desenvolve um pensamento sobre a limitação do ensino da
linguagem pelo professor e sobre como a maneira deste se comunicar permanece a mesma por
muito tempo. Frago (1993) acrescenta a discussão explorando as maneiras como as
sociedades inibem as falas. A linguagem
oficial
propõe uma forma de comunicação que não
se sustenta quando se fala com adolescentes, pois na prática acaba-se ignorando a linguagem
que eles trazem de suas realidades.
A violência corporal se faz presente pela agressão física. É também comumente vista
nas relações entre os adolescentes e normalmente vem acompanhada da violência verbal. As
pesquisadoras Abramovay e Rua (2002), foram de grande importância teórica para as
discussões sobre os mais variados tipos de violências, sendo que sua pesquisa incita a revisão
de nossa prática pedagógica. Sua contribuição se faz presente no “encarar”, ou seja, no ato do
aluno que, através do olhar, chama o outro para a briga. Bourdieu (1997) acrescenta na
reflexão as relações que se estabelecem entre dominantes e dominados nos campos de força,
sendo a escola um deles. Piva (2001) expõe situações onde se quer transformar a vida em um
filme, por vezes sangrento, mas no qual, no fim, o mal vence. E Veronese (1998) completa a
discussão ao abordar o perigo de uma televisão de má qualidade na vida dos sujeitos, pois a
mesma é um veículo formador de opinião.
15
Quando a sexualidade é usada como uma forma de humilhar ou provocar sofrimento
no outro, está ocorrendo uma violência sexual, que é uma das violências mais difíceis de
comentar, pois quem sofre traz consigo tristes lembranças, feridas que sangram. Para tal
discussão contribuem Abramovay e Rua (2002), sobre os traumas que ficam na vida das
vitimas, Passetti (1999) e Adorno (2000) elucidam dados de como é comum essa violência ser
praticada dentro de casa, por pessoas do âmbito familiar. E Lima (2001) complementa tal
discussão falando da sexualização da violência contra a mulher, seja ela criança, adolescente,
adulta, idosa. O corpo perfeito é desejo de muitos que não se importam com as conseqüências,
e vão
até o fim
para conseguir alcançar seu prazer, assim se desrespeitando enquanto seres
humanos.
No quarto capítulo, Violência simbólica: atitudes e agentes, reflito mais densamente
sobre a última violência apontada na experiência, a simbólica. Essa discussão é mais delicada,
pois muitas situações e personagens permeiam cenários extremamente complexos, que às
vezes geravam uma triste sensação de estar cercada por tantos
podres poderes
...
Esse capítulo é um dos mais densos e difíceis, pois muitas relações, atitudes, palavras
explicitam a violência simbólica. Como conceito chave de violência simbólica me baseio em
Bourdieu (1997 e 2001), autor de muita importância nas minhas reflexões, que muitas vezes
me deu um norte quando me sentia perdida em alto mar... Novamente Abramovay e Rua
(2002) com suas discussões sobre as dificuldades de identificar tal violência, complementam
as reflexões.
No sub-capítulo Instituição Disciplinária e Espaço Escolar, Foucault (2000) discorre
sobre o poder das relações e a vigilância que nos cerca; Taille (2002) fala da importância do
respeito pelo outro, mesmo em ambientes dominados por diversos poderes; e Petitat (1994),
sobre o esquadrinhamento do espaço, sobre a supressão dos espaços que a escola pratica.
Em Mídia e Violência Simbólica, Jameson (1995), Canclini (1997) e Hall (2003) nos
esclarecem sobre os sujeitos contemporâneos e muitas das crises que os cercam, dos valores
que os dominam.Veronese & Rodrigues (2001) comentam sobre esse consumismo que a
mídia incita, das articulações que ela faz para estabelecer padrões a serem almejados. E
Bourdieu (1997), do poder da mídia em dramatizar as notícias e deixar os olhos dos
espectadores fixos na televisão, comentados também por Veronese (1998) ao apontar a
aniquilação dos nossos valores.
No último sub-capítulo - Adolescente ora Vítima, ora Agente -, estabelece-se uma
discussão do papel do adolescente como agente e vítima, duas realidades presentes na nossa
realidade. Abramovay e Rua (2002) comentam a gratuidade da violência, do motivo qualquer
16
que pode incitar uma briga ou uma discussão. E que muitos adolescentes em determinados
momentos nem são agentes diretos da violência, mas são espectadores constantes. Veronese
& Rodrigues (2001), finalmente, elucidam situações em que o adolescente é agente da
violência e que este muitas vezes é jogado ao esquecimento, sem ser amparado por medidas
sócio-educativas, o que é de seu direito.
Acredito que fazer teatro na escola e trabalhar temas de interesse dos adolescentes
contribui para a capacidade de iniciativa dos alunos, sua disponibilidade, sua autonomia. Com
o contato com a linguagem teatral, os alunos elaboram um discurso cênico e o interpretam.
Assim, a prática teatral lhes deixa sensíveis ao tema da violência, tema escolhido por eles,
pelo grupo. Espero que esse processo contribua para a construção de um novo olhar e de
novas atitudes frente à violência. Que os adolescentes se conscientizem e que nós educadores
nos sensibilizemos...
O convite está feito, seu ingresso está na mão. É só embarcar, se deixar envolver e
pensar, sonhar, ousar... Te vejo nas imagens...
17
Capítulo 1
Círculos da violência
Ninguém me fará calar, gritarei sempre que se
abafe um prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz baixa com os
conspiradores, transmitirei recados que não
se ousa dar nem receber.
Carlos Drummond de
Andrade
18
19
1- Círculos da violência
Para fazer estas discussões que proponho, me alio a alguns autores que me dão base
teórica para tais discussões, e assim vou formando minha rede de contatos: as influências que
recebi dos teóricos, os questionamentos que surgiram de minha prática, o contato com os
alunos e com suas histórias, a minha trajetória profissional, que se entrelaça com a pessoal.
Essa rede de contatos com que me relacionei, me fez aprender e refletir e assim tecer uma
nova trajetória, cheia de redes, barcos, buracos...
Diversos autores cruzaram meu caminho, uns deixaram grandes ensinamentos, outros
provocaram questionamentos, outros sofrimento, outros desespero... Mas esses mesmos
autores me fizeram perceber que,
A rede de ligações é o produto de estratégias de investimentos social
consciente ou inconscientemente orientadas para a instituição ou a
reprodução de relações sociais diretamente utilizáveis, a curto ou longo
prazo, isto é, orientadas para a transformação de relações contingentes,
(...) em relações, ao mesmo tempo, necessárias e eletivas (...). E isso
graças à alquimia da troca (...) como comunicação que supõe e produz o
conhecimento e o reconhecimento (Bourdieu, 1998: 68).
Nesse primeiro capítulo, apresento o meu contato com os círculos concêntricos, como
que conheci essa estratégia, como fui influenciada por ela. Em seguida descrevo a minha
experiência prática em sala de aula com os círculos da violência, refletindo o que essa mesma
experiência proporcionou em termos de descobertas e dificuldades, espantos e alegrias,
certezas e dúvidas, e quais os diálogos e as trocas que essa prática proporcionou com os
teóricos.
20
1.1- Os círculos concêntricos de Danby e Cabral
Roda mundo, roda vida, roda vento
Entre uma volta e outra do destino,
Continuo apenas um menino a soprar meu
gira-sonho como um cata-vento.
Flora Figueiredo
Os círculos concêntricos foram criados e desenvolvidos pelo arte-educador canadense
Mark Danby. No Brasil, foi introduzido enquanto prática e pesquisa, por Beatriz Cabral.
Segundo os autores,
consiste em uma série de círculos concêntricos móveis, unidos por um
pino central que permite associar de forma aleatória ou prescritiva opções
contidas nas categorias que representam cada círculo. Cada círculo então
representa uma categoria referente a um conceito da área de
conhecimento a ser focalizada, o qual por sua vez se divide em opções. A
combinação de seleções, uma de cada círculo, resulta em uma estrutura
que orientará a atividade dramática (Cabral e Danby,1999:2)
O uso dos círculos como ferramenta pedagógica foi estendido a diferentes áreas,
conforme comentários de Danby. Dentre estas áreas, encontra-se o teatro.
Como professora e pesquisadora desta área, o meu interesse pela história e pela
aplicação dos círculos surgiu após minha participação no
workshop
"Do Movimento
Cotidiano à Coreografia",
ministrado por Danby no Festival de Inverno de 1998, no Centro de
Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. Para a aplicação desta estratégia durante
o evento, a mediadora foi a professora Beatriz, à época minha orientadora da Bolsa de
Pesquisa do PROBIC/UDESC no projeto "O Papel da Universidade no Desenvolvimento do
Teatro-Educação", e hoje minha orientadora desta pesquisa de Mestrado. Ela, por sua vez,
conhecera Danby durante a II Conferência Internacional de Pesquisa em Drama e Educação,
na Universidade de Exeter, Inglaterra, onde este fora o moderador da apresentação de sua
pesquisa.
Esse contato fez com que o professor viesse a Florianópolis ministrar dois
workshops
,
juntamente com a professora Beatriz: o primeiro com crianças que faziam parte da pesquisa
da professora na Escola Básica Municipal do Canto da Lagoa, e o segundo com professores
de Teatro-Educação. A qualidade do envolvimento dos grupos que participaram destes
workshops
, me fez perceber a importância da aplicação da proposta circular, despertando meu
interesse em investigar o potencial metodológico dessa estratégia.
Além disto, a estratégia dos círculos concêntricos neste
workshop,
foi associada, por
Danby, a uma outra estratégia, também desenvolvida por ele, denominada seqüência de
21
movimentos e sons não classificados
1
. Os movimentos e sons não classificados são criados
livremente e expressados sob a forma de cenas congeladas que constituem, por sua vez, o
repertório vocal e gestual que será trabalhado após o preenchimento do círculo com temas e
categorias. O vínculo entre as duas estratégias se dá no cruzamento entre as histórias criadas a
partir da aplicação das duas, quando realizadas em seqüência.
Na proposição prática dessa estratégia, também utilizei seqüências de movimentos e
sons não classificados antes da construção dos círculos, mas associei tais seqüências ao tema
escolhido por eles, a violência. No entanto, poderia ter sido qualquer outro tema, uma vez
que, o importante é que à vontade de discutir e encenar parta inicialmente dos alunos.
A atual investigação partiu, entre outras coisas, da visualização do potencial dos
círculos concêntricos enquanto estratégia para ser utilizada nas aulas de teatro. Vale ressaltar
que não sou a única a usar tal estratégia, até porque Danby conquistou muitos adeptos e
também críticos. Porém, até o momento, acredito que fui uma das únicas pesquisadoras que
descreve, analisa e também critica o processo dos círculos concêntricos relacionado à
violência.
1.2- O círculo da violência: minha experiência em sala de aula
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Chico Buarque de Holanda
Discorrerei, a partir de agora, sobre a minha experiência, minhas dificuldades, minhas
descobertas, meus erros... Com os círculos concêntricos, trabalhei com os meus alunos e
alunas adolescentes de 7ª e 8ª série no ano de 2001, da Escola Básica Municipal Osmar
Cunha, localizada em Canasvieiras, no norte da ilha de Santa Catarina.
A estratégia dos círculos concêntricos me levou a investigar o seu potencial
metodológico sob um prisma muito especial: o da violência. A violência discutida e encenada
em sala de aula com os adolescentes, seja essa violência sofrida ou praticada por eles, por nós,
educadores e até pela própria escola. Essa experiência resultou no que denominarei de
círculos da violência.
1
Tais seqüências serão estudadas com maior precisão no capítulo 1.3.
22
Esta prática configurou-se num processo de construção e investigação da estratégia
compartilhada com os alunos num processo coletivo. Partilho com a idéia de Marcos Bulhões
Martins
2
quando afirma que o professor de teatro
Deve desenvolver não apenas sua competência pedagógica como também
sua competência artística. Além de saber estimular o aprendizado do
fazer teatral em iniciantes, dominando abordagem metodológica que
permita a socialização dessa linguagem, o professor necessita praticar e
refletir procedimentos de elaboração do discurso cênico que permitam a
participação criativa e crítica dos seus alunos. (...) Se entendemos que a
elaboração do discurso cênico deve acontecer de forma coletiva com os
participantes podendo colaborar efetivamente nas decisões relativas à
dramaturgia, surge a preocupação de articular o seu posicionamento
artístico com os desejos estéticos do grupo (Martins, 2003:42-43).
As preocupações descritas acima se fazem presente nas minhas reflexões e também na
minha prática, até porque essa experiência me fez perceber muitas coisas sobre estes alunos,
sobre o que se passa nos corredores da escola, sobre o que ocorre fora dos muros da escola,
além de fazer perceber coisas sobre mim mesma. Para chegar a estas descobertas
percorremos, eu e meus alunos, companheiros de pesquisa, um longo caminho, o qual passo a
descrever agora. Fiquem à vontade...
Minha primeira preocupação era saber um pouco mais sobre o que os meus alunos
gostariam de trabalhar nas aulas de artes nesse ano. Tenho um interesse muito especial por
cada indivíduo, por cada história viva presente na sala de aula, por cada aluno que se esconde
atrás de cada carteira: gosto de ouvir histórias. Esse interesse me fez pensar em um projeto
que permitisse dar voz aos alunos, para que através das cenas e debates pudessem discutir,
criticar e refletir as situações vivenciadas ou criadas dramaticamente a partir de um tema que
também deveria ser proposto por eles.
Para saber o que interessava às minhas alunas e alunos, para poder assim escutar suas
vozes, solicitei que individualmente listassem suas idéias em papéis e me entregassem. Estas
idéias foram em seguida, por mim, classificadas. Para minha surpresa, o primeiro tema que
eles gostariam de discutir era a violência, seguida da sexualidade – sendo um tema
efervescente nessa faixa etária, eu tinha uma
quase certeza
anterior de que seria o mais
votado. Nem sempre nossas expectativas estão corretas. Como eu já tinha essa
quase certeza
do tema
,
como pesquisadora já tinha me preparado com leituras sobre sexualidade, Marta
Suplicy passou pelas minhas escolhas. O tema violência realmente me apanhou de surpresa e
tive que ir atrás da teoria, enquanto com os alunos estava vivenciando a prática.
2
Professor do Departamento de Artes Da Universidade do Rio Grande do Norte – UFRN.
23
Em sala de aula começamos, então, a discutir sobre violência. Este tema faz cada vez
mais parte da nossa realidade e ronda os corredores da escola, batendo na porta da nossa casa.
Acredito que não devemos fingir que a violência não existe, não devemos ser alheios a ela.
Para a nossa discussão em sala de aula trouxemos exemplos de casa, da comunidade, do dia a
dia. Essas histórias foram, num primeiro momento, descritas verbalmente. Ou seja, a sala
ficava em círculo e cada aluno quando tivesse vontade contava uma situação que envolvesse
violência, eu li alguns exemplos de jornais.
Posteriormente, já no trabalho efetivo com teatro, utilizando jogos de improvisação
3
,
essas falas de violência se fizeram acompanhar de brigas, xingamentos, agressões e até morte,
durante as cenas. Muitas histórias foram contadas: algumas reais vividas por alunos, e outras
dramatizadas, mas todas me fizeram perceber que, assim como eu, a sala inteira se espantava
com a brutalidade com que a maioria das pessoas age. Em muitos momentos nossos olhos se
arregalavam, e muitas vezes ficamos sem palavras.
Os alunos realizaram algumas improvisações acerca do tema, normalmente eles se
reuniam em grupos de quatro a cinco pessoas. Na prática funcionou assim: em uma aula faixa
(duas aulas seguidas), era proposto que eles pensassem em algumas situações que
envolvessem violência, e desenvolvesse as idéias através do teatro. Os alunos usavam de
recursos cênicos, como cenários, figurinos e música para as apresentações. Estavam livres
para criar, e a minha única orientação era para que não perdesse o foco na violência, tema de
discussão.
Esse processo de improvisação e apresentação ocorreu durante mais ou menos cinco
encontros.Aqui surgem mais dificuldades no processo. Alguns grupos realizavam sempre as
mesmas cenas, não acrescentavam nada nas discussões e só faziam porque era necessário,
mostrando um disparate gritante em relação a outros grupos que sempre traziam novidades
nas apresentações. Alguns desses alunos e alunas chamei para conversar, porque estavam
atrapalhando o andamento da proposta, seja por risinhos inoportunos, seja por comentários
sem sentido, muitos deles a partir daí se engajaram no trabalho, outros me ignoraram. Não se
pode agradar gregos e troianos, como diz o ditado. E ainda acho que nas relações com
adolescentes em sala de aula, temos que ter no diálogo nosso maior aliado, e não posso negar
que a disciplina também faz parte do processo.
3
Tal metodologia tem como base teórica Viola Spolin, e será explorado no capítulo 1.4.
24
Depois dessas apresentações iniciais, fizemos uma rodada de comentários sobre as
cenas e juntos constatamos que estas resultaram muito semelhantes entre si, pouco criativas,
sem encaminhamentos, nem finalizações que causassem o chamado impacto cênico.
Como impacto cênico adoto o conceito de Cabral, quando declara que,
A opção pela expressão impacto pretende salientar que seu significado
semântico - efeito que uma ação tem sobre determinada situação,
processo, ou pessoa - é aqui observado quanto à potencialização desta
ação, i.e., quanto à força e pressão empregadas em sua realização (Cabral,
2001:01).
Após tais constatações, com a percepção de que o inusitado é sempre bem-vindo no
fazer teatral, sugeri então que juntos conhecêssemos a estratégia dos círculos concêntricos.
Expliquei aos alunos que tal estratégia acena com a possibilidade de improvisar sem
repetições constantes, mostra caminhos diferentes para respostas tão comuns que às vezes
apenas reproduzimos, cria um roteiro para improvisação que a principio as palavras não se
encaixem e tem que ser investigadas pelo grupo. Quero salientar que os círculos são apenas
mais uma possibilidade de vivenciar um processo artístico e pedagógico, eles não são
mágicos, nem resolvem todos os problemas dos grupos. Mais para mim, eles permitem que o
grupo envolvido participe de um processo de investigação, de descobertas e de apreensão da
linguagem teatral. Superar dificuldades e lidar com novidades nos impulsionam a vivenciar e
ousar nas práticas teatrais na escola.
Começamos, então, o trabalho com os círculos da violência.
Solicitei que, em grupos de cinco alunos, ensaiassem uma seqüência de movimentos
da violência
4
não classificados
. Após criarem a sua seqüência, escolheram três ritmos
diferentes de música para a apresentação. A criação da seqüência ocorreu da seguinte
maneira: cada aluno e cada aluna do grupo propuseram três movimentos, até formarem ao
todo doze movimentos, os quais foram ensaiados por todos os membros. Um dos alunos fazia
o registro dos movimentos.
Acredito na importância de cada aluno poder sugerir seus próprios movimentos, pois,
além de se sentirem parte essencial do processo, o movimento revela muito sobre as pessoas.
O pesquisador Rudolf Laban salienta esta importância ao afirmar que,
O movimento, portanto, revela evidentemente muitas coisas diferentes. É
o resultado, ou da busca de um objeto dotado de valor, ou de uma
condição mental. Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que
4
Tais seqüências, tanto as de movimento quanto às de som serão discutidas com referências teóricas.
25
se move numa determinada situação. Pode tanto caracterizar um estado
de espírito e uma reação, como atributos mais constantes da
personalidade. O movimento pode ser influenciado pelo meio ambiente
do ser que se move (Laban, 1978:20-21).
Um dos integrantes do grupo registrava os movimentos, através de desenhos ou
palavras, para os grupos não esquecerem o que tinham produzido. Para o ensaio, foi utilizado
o de tempo de uma aula de quarenta e cinco minutos, com uma semana de intervalo entre esta
aula e a da apresentação.
Segue abaixo dois desenhos da seqüência de movimentos.
26
27
28
Na aula seguinte, cada grupo apresentou sua seqüência de movimentos da violência,
primeiro sem acompanhamento musical, e depois com os ritmos que eles escolheram. Ritmos
estes que fazem parte do seu dia a dia, e normalmente está na moda, ou seja, todos cantam e
sabem letras e coreografias, samba,
rock,
sertanejo, rap, etc.. Depois, foi a vez de todos se
apresentarem num ritmo surpresa que eu levei, o tango, um ritmo latino
caliente
que não é
facilmente identificável e até certo ponto contrastante com o repertório cotidiano dos alunos
adolescentes. Aqui mais uma dificuldade encontrada no trabalho com os adolescentes: eles
querem apenas escutar o seu som, quando chega a vez do professor sugerir dá muitas
discussões, dizem que a música é brega, que nunca ouviram. Na minha prática tive que entrar
no jogo deles, até dancei e escutei o Bonde do Tigrão, para poder lhes apresentar o Djavan,
assim é a prática pedagógica.
A inclusão de ritmos presentes na vida dos adolescentes, e na nossa também, enquanto
brasileiros, amplia o vocabulário artístico cujas raízes estão imersas em uma diversificada e
plural gama de valores culturais. Acabamos rindo muito: a música, nunca antes ouvida pela
maioria dos adolescentes, proporcionou uma primeira tentativa catastrófica e cômica, na
confusão causada pelo desconhecimento dos sons do tango!
Após a
hilariante
descoberta desse
novo
ritmo, todos se apresentaram, juntos. Cada
grupo ocupou o seu espaço, em círculos internos uns aos outros: formaram-se vários círculos
com tamanhos decrescentes, ocupando a sala toda. Comentamos e avaliamos a proposta: “
é
engraçado
”, “
quando é todo mundo junto, confunde
”, “
a gente presta atenção no movimento
do outro e esquece do nosso
”, foram alguns dos comentários emitidos pelos alunos. Solicitei
então que guardassem o registro dos movimentos, no papel e também se possível na memória,
pois em breve eles seriam trabalhados nas cenas construídas adiante, com os círculos da
violência.
A próxima etapa de trabalho, na qual eles poderiam trocar de grupo, se assim o
desejassem, objetivava criar uma outra seqüência em que eles usariam os seus tão conhecidos
palavrões. Essa prática de violência verbal é tão comum no dia-a-dia da escola, e eles
normalmente tratam com muita freqüência seus colegas com tais termos. Esses termos,
palavrões, gírias, conhecidas por eles, e por todos nós, seriam chamados de sons classificados,
já que os mesmos possuem um significado, e não de sons
não classificados,
como sugeriu
Danby.
A possibilidade de usar os palavrões causou um certo espanto, e até um certo receio
em alguns alunos, que ficaram envergonhados para usar tais termos na minha frente para
iniciar o procedimento de montar a seqüência. Ao meu comentário: “
Que engraçado, apenas
29
nesses minutos de incertezas vocês, enquanto grupo, falaram mais de 20 palavrões. Quer
dizer que não é assim tão difícil, não é?
”, eles responderam:
“Pois é, professora, é que já é
tão comum que a gente nem percebe, né?
”. Ao que eu retruquei: “
Pode ser comum, mas
agride do mesmo jeito...”
Eles ao criarem e ensaiarem a próxima seqüência usaram realmente muitos palavrões,
alguns deles estão presentes nos desenhos que seguem. Expliquei que para falarmos da
violência verbal, teríamos primeiro que praticá-la teatralmente, para podermos sentir e
perceber o resultado de tal violência, e assim poder despertar uma conscientização sobre as
suas práticas cotidianas.
Segue agora o desenho das seqüências de sons.
30
Num determinado momento, meus ouvidos ardiam: escutar tantos palavrões de uma só
vez não foi fácil. Porém, acreditando no potencial da proposta, devo concluir que foi
necessário passarmos por essa
agressão cênica juntos
, para ter um melhor resultado do
processo pedagógico. O resultado de dramatizar a violência não é fazer uma apologia a ela,
mas sim se faz necessário explicitar a violência para estranhar e assim analisar e discutir,
partindo da realidade dos alunos, do que eles falam, do que eles vêem, do que eles vivem. As
discussões continuam permeando todo o processo, pois o interessante é que os alunos
percebam nas suas atitudes e palavras o uso dos mais variados tipos de violências,
perguntando-se, por exemplo, por que somos tão agressivos? O trabalho que sucede a prática
é rodeado de questionamentos e conscientizações.
Para a apresentação, eles ensaiaram essa seqüência de três maneiras. Tendo em vista
que podemos ofender uma pessoa verbalmente não só falando em tom agressivo, mas em
vários tons, sugeri três tons para a apresentação. O primeiro era em tom coloquial, usando
apenas a fala e tentando manter o corpo o mais natural possível. O segundo era falar de forma
áspera e rude e em volume alto, despejando toda a raiva acumulada por algum motivo. E o
terceiro, de forma sutil e doce, sorridente como se estivessem recitando uma declaração de
amor.
31
Essas apresentações foram realizadas dentro da sala de aula de uma escola nos padrões
da realidade de uma escola pública de hoje. Descrevendo, há uma sala ao lado da outra, com
pouco ou nenhum isolamento acústico. Tanto eu como os alunos nos empolgamos com a
proposta e falamos realmente alto. Eis que, de repente, adentrou a sala de aula uma
supervisora, completamente ignorante e alheia ao desenvolvimento da proposta, e falou com
toda a prepotência e a autoridade do mundo: “
Que palhaçada é essa, pensam que estão aonde,
fazendo este barulho horrível?!
” Ao que esclareci que “
estamos fazendo teatro e você
atrapalhou nosso trabalho, pode nos dar licença?
” Ela: “
Ah, claro, teatro!...
É interessante comentar aqui que, embora supervisoras escolares cobrem o plano de
ensino dos professores, parece que não se dão ao trabalho de os lerem, assim, acabam
invadindo uma aula por desconhecimento de algo que aprovaram. Essa atitude da supervisão é
uma própria violência, e mostra a necessidade da formação artística de todos os educadores da
escola, como defende Desgranges,
Torna-se bastante difícil o trabalho desse professor [de teatro] numa
escola em que os demais colegas, assim como diretores e coordenadores
(...) não estejam sensibilizados para a arte teatral e não consigam
estabelecer claros objetivos pedagógicos e critérios de qualidade artística
em seus projetos.É necessário, portanto, que todos os educadores de uma
escola estejam sensibilizados para a experiência artística, para que o
acesso dos alunos à linguagem teatral não seja uma luta isolada do
professor de teatro no interior da própria instituição escolar (Desgranges,
2003:71).
Essa formação artística, ou até mesmo apenas uma sensibilização ao trabalho, da
comunidade escolar, tornaria o ambiente mais produtivo e não geraria interrupções bruscas
num processo de criação artística, como o citado acima.
Bem, tínhamos agora, em nossas mãos, os movimentos e os sons da violência, para
serem usados assim que o nosso círculo ficasse pronto. A próxima etapa foi o preenchimento
do círculo. Lembrando: cada círculo é composto por uma palavra central norteadora, uma
categoria, como diz Danby e unidos por um ponteiro (visualizar figura na página 34). O
ponteiro foi preenchido por mim: esse passo pode ser dado pela professora, pelo professor, ou
não.
Nesse caso resolvi levar o ponteiro preenchido, pois, acredito que para uma primeira
experiência dos alunos com os círculos, o ponteiro lhes serve como guia para as discussões.
Antecipando o preenchimento do ponteiro pode-se pensar nas diversificações das categorias,
proporcionando diferentes discussões e olhares sobre o tema a ser trabalhado, tornando
produtiva a operacionalização do trabalho.
32
Minhas opções, então, foram: os tipos de violências, sofridas e/ou praticadas; os tipos
de conflito que geram as violências ou os que provocam as violências; as conseqüências
dessas violências; os personagens envolvidos nessas violências e os lugares onde acontecem,
para eles, essas violências.
Cada categoria foi pensada pelo grande grupo. Em círculo os alunos iam dizendo as
palavras que eles foram resgatando, num processo de “tempestade de idéias”, sobre cada uma
dessas categorias, como se pode ver na figura abaixo. Muitas se repetiam, por isso fiz com
eles uma seleção que abrangesse e contemplasse as suas vozes. Essa repetição é normal, além
da própria euforia dos alunos onde todos queriam falar uma palavra. Essa euforia na prática se
manifesta, muitas vezes, por muita gritaria e temos que parar e da uma segurada nos ânimos
da rapaziada.
Abaixo segue o quadro repleto de palavras ditas por eles:
Infelizmente, como podemos observar na foto, a imagem não é de uma câmera
profissional, e para corrigir uma foto pouco nítida, descrevo aqui as idéias dos alunos, a fim
de contribuir para uma melhor visualização.
As palavras citadas pelos alunos podem ser arroladas em quatro categorias: violência
verbal, violência corporal, violência sexual e violência mental
5
. Todas elas referem-se, no
5
Ver capítulo 4.
33
círculo, a Tipos de Violência
6
. Por outro lado, os Tipos de Conflito explicitados pelas alunas e
pelos alunos foram: familiar, medo, vingança, insegurança, perdas, traumas, incompreensão,
amante, amigos, pressão e motivos financeiros. As Conseqüências: morte, medo, trauma,
gravidez, vingança, desaparecimento, preconceitos, dor, Doenças Sexualmente Transmissíveis
(DST), desentendimento, rebelião e brigas. Os Personagens sugeridos foram: vítima,
trabalhador, crianças, travesti, bebês, policial, seqüestrador, bêbados, políticos, família,
homossexual, drogados, idosos e adolescentes. E, por último, os Lugares sugeridos para se
praticar violência ou onde se sofre violência na visão deles são: mato, carro,
show,
escola, rua,
em casa, metrô, motel, danceteria, favela, praia, cadeia, trânsito e beco.
Nossa tempestade de idéias obteve a contribuição da grande maioria da sala, que
emitiu sua opinião após um amplo debate sobre cada conceito presente no ponteiro dos
círculos concêntricos. Nesse debate as dúvidas que apareciam iam sendo respondidas, com o
auxílio de bibliografia. Bibliografia que se faz presente no corpo do trabalho. A dúvida mais
comum nessa etapa de trabalho foi sobre os conflitos. O que era um conflito, como aparecia
no dia a dia, como se conseguia identificar. Levei para os alunos um conceito de um
dicionário de filosofia, que conseguiu esclarecer as dúvidas sobre o tema conflito e agora
transcrevo tal conceito:
“Contradição, oposição ou luta de princípios, propostas ou atitudes”
(Abbagnano, 2000:173). Esse conceito foi agregado a minha explicação de que o conflito
deixa dúvidas nas pessoas, causando discussões entre as partes envolvidas, e por isso que nos
interessava, saber o porquê de tal violência, colocando muitas vezes em dúvida a palavra dos
envolvidos. Disse que essas discussões fazem as cenas teatrais crescerem e levantarem
questionamentos.
Após as dúvidas esclarecidas, fiz com eles, então, a seleção das idéias centrais para
completar os círculos, que compõem o nosso círculo da violência. Ele ficou estruturado dessa
maneira:
Tipo de violência: verbal, corporal, sexual e mental;
Conflito: social, amoroso, psicológico, financeiro e familiar;
Conseqüência: rebelião, brigas, desaparecimento, morte, gravidez, vingança e
preconceito;
Personagem: adolescentes, marginais, mulheres, policial, bêbados, família e drogados;
Lugar: escola, danceteria, favela, cadeia, carro, rua e casa.
E a sua imagem é essa:
6
Ver capítulo 3.
34
Estando o nosso círculo da violência pronto, procedemos então a prática teatral. O
primeiro passo foi permitir que alunas e alunos manuseassem o círculo a fim de perceber
como ele funciona, como que é rodar, como que se estrutura o roteiro de improvisação.
Expliquei como iria proceder, a fim de que cada grupo tivesse seu roteiro para uma primeira
improvisação. Passei em cada grupo e cada um integrante girou uma vez o ponteiro, onde ele
caísse em cima ou mais próximo da palavra daquela categoria seria a opção do grupo, e que a
junção dessas categorias seria o roteiro básico para a encenação.
Com o objeto pronto e nas mãos deles começaram a surgir novas dúvidas, como
essas: “
Ah! Professora, porque que a gente não pode escolher a seqüência. Assim não é
melhor, mais fácil?
” Expliquei, pois, que o interessante é justamente o mistério de não saber
35
onde vai parar o ponteiro. Alguém perguntou: “
Então é um jogo?
”. Disse que sim, que
podíamos tratá-lo como um jogo. Ao que se fez ecoar pela sala um
“Ah, que legal, queremos
jogar!
” Então, “
vamos nessa
...”
Cabral e Danby, ao se remeterem à possibilidade de assemelhar-se à estratégia dos
círculos a um jogo, e também a quanto é interessante obter esse roteiro básico aleatoriamente,
afirmam que,
A forma dos círculos e a mobilidade do ponteiro central tornam esta
estratégia similar a um jogo. Ao obter as seleções aleatoriamente, os
participantes ficam protegidos contra o ‘olhar externo’. Eles sentem-se
seguros para interpretar cada seleção à sua maneira, e para incluir
informações pessoais sem medo de serem indevidamente criticados. O
foco não está na sua escolha, mas sim em resolver o problema posto pelas
seleções. Eles podem assim usar sua energia para interpretar o conjunto
de seleções obtidas randomicamente (Cabral e Danby, 1999:5).
Recordei-lhes que, nesse momento, iríamos usar aquela seqüência dos movimentos e
dos sons da violência criados anteriormente. Eles constataram instantaneamente que não
tínhamos trabalhado tudo aquilo em vão, e sim com um objetivo. A proposta era: após
girarem o círculo e obterem seu roteiro base, eles passariam à prática da improvisação, com
suas etapas específicas, dando o tempo necessário para cada etapa se realizar.
Antes de começar a girar o círculo
para valer
, deixei os alunos se familiarizarem
suficientemente com o círculo pronto, percebendo as possibilidades que ele oferece. Esse foi
um dos momentos onde a idéia de jogo se fez presente, pois eles torciam em seus grupos, para
resultar a seqüência que, para eles, parecia mais fácil, ou onde eles consideravam o “
mico
menor. Assim, quando um deles rodava e parava em uma categoria aparentemente mais difícil
de ser cumprida, ou que eles julgassem “
ridícula
”, eles falavam: “
Ô, seu azarado, sua
azarada!
”, “
Tinha que ser tu, né, ô?!
“, “
Ah! Eu sabia
...”.
A primeira etapa foi discutir em grupo as possibilidades para viabilizar tal roteiro, e
criar, a partir dele uma
cena congelada,
sem falas, como se estivesse em frente a um quadro,
mostrando sentimentos, personagens e situações através da expressão corporal e facial. O
restante do grupo enquanto platéia deveria observar o contexto da história que o grupo estava
apresentando, e iam falando suas idéias em relação a cena apresentada. Quando o grupo
descongelava
as impressões eram comentadas em grande grupo. As idéias se divergiam
bastante, pois cada pessoa faz uma leitura de tal imagem. Cada grupo obteve do círculo um
contexto diferente, quase sempre oposto em muitos aspectos aos contextos dos outros grupos,
pois o ponteiro, pelo seu funcionamento aleatório, normalmente não cai na mesma categoria.
36
A segunda etapa foi construir uma pequena cena com o mesmo roteiro. Os
movimentos e os sons agora poderiam ser utilizados, porém, deveriam ser os da seqüência de
movimentos e sons da violência que eles já haviam construído enquanto grupo, e registrado.
Cada grupo deveria usar nas primeiras improvisações, qualquer movimento ou som de
qualquer uma das seqüências já apresentadas. Aqui o corpo tinha suas limitações, o objetivo
não era improvisar livremente, com movimentos exagerados, mas sim trazer para o corpo as
ações já trabalhadas. Para isso, solicitei que seus corpos permanecessem neutros. Para eles
simplifiquei o conceito de corpo neutro, dizendo que no teatro significa caminhar de maneira
mais natural e esforçar-se por evitar costumes que carregamos diariamente, como rebolar,
mexer no cabelo etc, e quando eles fossem fazer o movimento da seqüência ou utilizar os
sons, exagerar gestualmente ao mostrar que alguém já fez, que para todos não é novidade.
Venho fazer uma reflexão teórica sobre a neutralidade, corpo neutro no teatro, pois
sabemos que o uso da máscara neutra para o ator é essencial para sua interpretação. A
importância da ação neutra repousa no fato de que ela,
não mostra a individualidade do seu criador, sua personalidade mas, ao
contrário, revela a essência de um gesto, ou seja, aquilo que pode ser feito
por qualquer pessoa. A ação neutra ou universal é sempre simples e
econômica, porque requer uma quantidade mínima de energia e
movimentos, o suficiente apenas para realização (Dani,1990:87).
Com essa quantidade mínima de movimentos o ator valoriza sua respiração, busca um
equilíbrio sem exageros. Para Jacques Lecoq a máscara neutra é a base de aprendizagem,
além de servir de referência ao uso das outras máscaras. O autor nos diz que,
Usar uma máscara neutra, não quer dizer não participar de situações nas
quais a gente se encontra, mas apresentar-se nelas em estado de calma,
sem conflitos prévios, nem idéias a priori, estar disponível aos
acontecimentos, um pouco espantada, olhar de uma maneira ingênua,
prestes a descobrir. (Os lábios de uma máscara neutra não são fechados,
mas ligeiramente abertos). Tal é o aspecto desta máscara que, nem ri, nem
chora, mas que pode ser feliz ou infeliz, como todos os humanos (Lecoq,
1988: 2).
Para os exercícios em sala de aula, um dos princípios para o uso da máscara neutra, é
para nós, professores de teatro, muito válido, o conceito de neutralidade. Com ele os alunos
aprendem a conter gestos muitas vezes exagerados, que chamam mais atenção do que o
contexto. A pesquisadora Lopes nos coloca que os,
37
Gestos neutros são aqueles que estão baseados numa economia de
movimentos. Para se executar uma determinada ação, utiliza-se somente a
energia necessária a cada gesto, eliminando-se tudo aquilo que não está
comprometido com o movimento limpo e claro (Lopes, 1991:s/p).
A teoria é sensata quanto ao conceito, mas praticamente em sala de aula com
adolescentes é muito mais complicada. Primeiro porque a principio pode até parecer um
exercício fácil, mas na prática percebe-se o quanto ele é demorado, pois trabalhar cenas com
limitações corporais e verbais torna normalmente o exercício mais complexo, talvez pelo
costume que temos de expressar com o corpo todo, pleno de vícios corporais do dia a dia e
gesticulações exageradas. Isso se acentua nos adolescentes, que parecem estar com o corpo
em constante movimento. Para os alunos foi difícil conseguir se concentrar na economia de
gestos, não se conseguiu na primeira tentativa, foram pelo menos quatro tentativas até se
conseguir chegar a um resultado razoável. Apesar das dificuldades decorrentes deste fato, as
cenas produzidas mostraram o valor da proposta e de seus desafios.
Improvisamos com os círculos várias vezes, para poder passar por várias categorias
diferentes e para que as cenas se expandissem: os alunos não deveriam limitar-se, agora, ao
uso dos movimentos ou dos sons em seqüência, mas sim estar
livres
para jogar, tendo como
estratégia os círculos da violência. Foi proposto que os alunos improvisassem várias vezes
diferentes roteiros. Os jogos aqui são tratados como jogos de improvisação, os quais serão
comentados no próximo sub-capítulo.
Para finalizar a proposta, propus que os grupos encenassem uma cena, com base em
um novo roteiro, as quais tiveram em torno de sete a dez minutos, com o uso de cenário e
figurino. Essas cenas finais foram tratadas como espetáculos teatrais, e apresentadas no
fechamento de nosso processo sobre a violência.
A partir da improvisação, fomos aos poucos limpando as cenas e construindo
discursos cênicos significativos para cada grupo. Esse limpando as cenas funcionou da
seguinte maneira: cada grupo foi apresentando sua cena, e a sala explanava seus olhares e
dúvidas. Algumas vezes usamos o congelar a cena para propor novas soluções e o grupo ia
improvisando, refazendo. Na análise era abordado o estar em cena, o falar todos ao mesmo
tempo, que significava que nós enquanto platéia não conseguíamos captar o discurso que era
expressado. Eram os alunos que sugeriam como achavam que ficaria melhor, apontando um
novo tom de voz, ou uma nova postura cênica. Até chegarmos na cena final, onde eles
enquanto grupo ficaram satisfeitos com o resultado, demoramos mais ou menos três aulas.
38
Tornou-se claro, nas apresentações, que os personagens eram inusitados e criativos, e
as histórias, enfim, causaram impacto e alguns comentários, como “
Professora, não é que
essa coisa redonda fez com que os finais ficassem diferentes?
”; “
Que legal, nem consigo
acreditar
...”; “
Dá para a gente jogar de novo?
”; e “
Por que parece que vai ser sempre
diferente?
Comentários como esses viabilizam a proposta, mostrando o seu valor.
Segue agora fotos das apresentações do processo.
39
40
Percebo que o “
vai ser sempre diferente
” está associado ao uso do círculo de forma
aleatória, em detrimento da prévia escolha de um roteiro aparentemente mais fácil de ser
desenvolvido, porém com resultados mais óbvios. Cabral e Danby, em uma de suas análises
dos círculos constatam igualmente que,
A maior vantagem em usar os círculos aleatoriamente, é que eles não só
incluem de forma organizada e visível as situações a serem exploradas,
mas também ajudam a evitar que idéias pré-existentes ou interpretações
únicas venham a predominar. Esta estratégia permite focalizar conceitos e
idéias que não estão necessariamente relacionados, e ao fazer isto
estimula respostas originais e envolve os participantes com análises
conceituais (Cabral e Danby, 1999:3).
Completaria esta constatação incluindo que tal estratégia evita também que uma aluna
ou aluno obtenha o controle da cena, evitando que apenas idéias de poucos sejam utilizadas e
permitindo, assim, o engajamento coletivo na realização da proposta. Até porque
”Se uma
pessoa domina, os outros membros têm pouco crescimento ou prazer na atividade, não existe
um verdadeiro relacionamento de grupo.”
(Spolin, 1998: 8)
São importantes, também, as soluções originais na realização das improvisações. Os
alunos, enquanto grupo, tem que resolver a cena de imediato, sem ficar planejando muitos
detalhes, e isso,
possibilita que os membros do grupo tenham que resolver a situação de
juntar seleções que a primeira vista pareciam díspares, não possíveis de
serem articuladas; não imagináveis juntas. Isto faz emergir idéias
originais, geradas pela combinação de muitas seleções das várias
categorias contidas no círculo (Cabral e Danby, 1999: 5).
O não haver um preparo prévio com ensaios extraclasse nesse caso é benéfico, porque
os alunos não se deixam influenciar tanto por modelos já existentes ou personagens caricatos
da televisão. Assim, as visões individuais prevalecem, aportando ao grupo uma gama de
informações sobre experiências pessoais com o tema selecionado.
Nas cenas construídas durante o processo, os mais variados tipos de violência
emergiram, e para cada aluno uma ou algumas delas eram sempre as mais presentes em sua
vida. Seus corpos e vozes tornavam explícitos os tipos de violência com que eles mais
conviviam, seja dentro de casa, no grupo de amigos ou na escola. No segundo capítulo,
apresentarei tais discussões.
Os círculos vazios, por si só, não garantem a totalidade do meu processo investigativo
em sala de aula. Na minha prática, há dois outros procedimentos que fizeram parte e foram
indispensáveis para esta experiência. Trata-se da seqüência de movimentos e de sons da
41
violência e o processo de improvisação posterior à proposição dos círculos concêntricos. Isso
não quer dizer que os círculos concêntricos devam ser usados aliados a outras metodologias,
pois ele por si só é independente.
Nos próximos itens 1.3 e 1.4 vou explorar estas outras práticas e suas correspondentes
teorias.
1.3-Seqüências de movimentos e sons
O teatro é uma forma de conhecimento e
deve ser também um meio de transformar
a sociedade. Pode nos ajudar a construir o
futuro, em vez de mansamente esperarmos
por ele.
Augusto Boal
As seqüências de sons e movimentos foram também criadas por Danby. Tive contato
com essa outra estratégia, quando participei de uma oficina ministrada por ele em 1998. As
seqüências na prática funcionam da seguinte maneira: a sala é dividida em grupos de quatro
ou cinco alunos. Em cada grupo, cada aluno propõe uma seqüência de movimentos e de sons,
os outros observam, repetem, ensaiam e registram tais seqüências, conforme foi mostrado nos
desenhos. Em seguida, apresentam as seqüências. Danby sugere que tais seqüências sejam não
cotidianas, isto é, que não sejam movimentos ou sons que fazem parte do dia-a-dia do grupo
envolvido.
Na minha prática, porém, com os círculos da violência, associei as seqüências ao tema.
Pretendia deixar os alunos mais à vontade, para trabalhar e experimentar corporalmente e
verbalmente, a partir do assunto já escolhido. Percebo que, quando apresentamos aos
adolescentes uma nova proposta de jogo/atividade, a principio há uma certa resistência visível
corporalmente. Já quando o assunto é escolhido por eles - no nosso caso, a violência - e os
passos do jogo/atividade são discutidos, o comprometimento e o envolvimento com qualquer
proposta acontecem mais facilmente.
Em relação aos movimentos, expliquei aos alunos que o significado do
não
classificado,
seria o não comum, o não cotidiano, e que normalmente não tem muito sentido
quando se encontram vinculados enquanto seqüência. Para a seqüência de sons, porém,
usaríamos sons classificados, aqueles usados no cotidiano. A minha escolha pelo som
classificado é para, além de me aproximar da realidade deles, fazê-los perceber que esses sons
de violência verbal são usados diariamente por eles ou contra eles, sons que agora seriam
experimentados dramaticamente e não mais usualmente. Na minha prática, acrescentei ritmos
42
diversos às seqüências de movimento e diferentes maneiras de entonação aos sons, como já
comentei no capítulo anterior.
Alguns pontos me fizeram usar a estratégia das seqüências aliada a dos círculos da
violência. Poderíamos dizer que essas seqüências se tornam um repertório de imagens e sons
para os alunos, que re-significam a narrativa, quebrando a linearidade das ações. E tal
estratégia tem também o objetivo “
de desenvolver a capacidade expressiva do corpo. Estamos
acostumados a tudo comunicar através da palavra, o que colabora para o
subdesenvolvimento da capacidade de expressão corporal”
(Boal, 1977:137).
O repertório criado com os movimentos e os sons não classificados me permitiu fazer
improvisações em etapas, com cenas congeladas para discussões, o que Augusto Boal
chamaria de Teatro Imagem,
a assim chamada imagem de transição tinha por objetivo ajudar os
participantes a pensar com imagens, a debater um problema sem o uso da
palavra, usando apenas seus próprios corpos (posições corporais,
expressões fisionômicas, distâncias e proximidades etc) e objetos
(Boal,1998: 5).
Na prática com os alunos, as discussões não eram restritas apenas às imagens, pois
eles tinham a necessidade da expressão falada. O que quero salientar é que, nos momentos de
cena congelada, os alunos realmente interferiam nas imagens feitas pelos colegas, mostravam
a sua opinião sobre determinada situação, às vezes falando, outras vezes se colocando no
lugar do colega e continuando a improvisação, e outras vezes ainda, apenas modificando a
imagem. Aqui, cada aluno exerce as duas funções, de ator e de espectador.
As imagens que essas seqüências criam provocam no aluno a possibilidade de usar a
seqüência do colega também. Ao analisar cada imagem,
tem-se uma visão mais clara do que pensam os participantes sobre os
temas propostos.(...) As imagens, porém, são sua própria criação, e, por
isso, eles [os adolescentes] sentem maior facilidade em expressar por este
meio seus pensamentos. Imagens são mais fáceis de inventar do que
palavras. E, até certo ponto, mais ricas em significados possíveis, mais
polissêmicas (Idem: 8).
As seqüências de movimentos e sons da violência preparam os alunos tanto
corporalmente, pelo movimento e gestualidade necessários para a formação das estátuas;
conceitualmente, ao gerar discussões críticas sobre o tema; e estruturalmente, ao preparar a
futura cena. Neste trabalho, a próxima etapa do processo artístico e pedagógico é a
improvisação.
43
1.4- Improvisação
Se o ambiente permitir, pode-se aprender
qualquer coisa, e se o indivíduo permitir, o
ambiente lhe ensinará tudo o que ele tem
que ensinar.
Viola Spolin
Quando penso em jogos improvisacionais, associo tal pensamento à obra da arte-
educadora Viola Spolin, que montou o sistema de Jogos Teatrais
7
, e que muito ainda
influencia as aulas de teatro no contexto da educação. Os alunos sentem-se à vontade na
prática com a metodologia de Spolin, que torna fácil a compreensão do jogo e da importância
do trabalho de grupo na resolução de problemas. Essa metodologia isolada, porém, não basta
e nem dá conta de muitos dos interesses e desejos dos alunos perante o fazer teatral. No nosso
caso, ela foi válida e funcionou com mais eficácia ao aliar-se a outras metodologias
escolhidas. É interessante esclarecer que, para o professor, não é útil apenas seguir como
receita uma metodologia escrita nos livros. Ele deve levar em conta sua vivencia e estudos
anteriores, que foram feitos no decorrer de sua trajetória pedagógica. É isso que tento fazer
nesse processo.
Spolin, em uma de suas reflexões sobre improvisação, nos elucida que
A verdadeira improvisação re-forma e altera o aluno-ator pelo próprio ato
de improvisar.(...) Durante a solução de um problema de atuação, o aluno
se conscientiza de que ele atua e estão atuando sobre ele, criando desse
modo processo e mudança em sua vida de palco. Essa compreensão
adquirida permanece com ele no seu dia-a-dia, pois quando um circuito é
aberto, por assim dizer, pode ser utilizado a qualquer momento (Spolin,
1998:33).
Compartilho o pensamento de Spolin, apenas acrescentando que a improvisação faz os
alunos desenvolverem sua imaginação, se permitirem ousar nas finalizações das cenas e jogar
o jogo livremente, soltos. Para mim, usar a improvisação serve também para perceber os
olhares dos alunos sobre o tema, o modo como improvisam, como expressam sua criatividade,
como se envolvem com a proposta, pois
“ninguém conhece o resultado de um jogo até que se
jogue.”
(Idem: 41)
No processo dos círculos da violência, a improvisação foi uma constante até
chegarmos às cenas finais. Acredito que, nas improvisações,
7
Para saber mais sobre o assunto ler SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1998.
44
o participante pode exercer todas, ou quase todas, as funções artísticas de
criação teatral, podendo desempenhar, na criação de suas próprias cenas,
ao mesmo tempo, a função de dramaturgo, ator, diretor, cenógrafo, etc. A
exploração das infindáveis possibilidades de construção de uma cena
favorece o aprendizado da linguagem, assim como a acuidade da
observação acerca das particularidades de cada encenação, chamando a
atenção do aluno-espectador para as opções estéticas dos diversos artistas
da criação teatral (Desgranges,2003: 73).
A improvisação faz com que os alunos tenham intimidade com os círculos. Assim,
quando se modificava apenas um elemento do círculo, o lugar por exemplo, os alunos
continuavam a improvisar com os mesmos personagens e tipo de violência. O lugar daquele
momento, porém, era surpresa, e tinha que ser improvisado em nova situação. Como
professora, interferi muitas vezes nas cenas, para que estas não se repetissem e evoluíssem, se
transformassem. O elemento surpresa que o professor traz para as cenas faz com que apareça
o jogo de forma espontânea, propiciando uma troca de informações entre os alunos, sem
necessidade do planejamento prévio.
O caminho da improvisação é também um dos caminhos do próprio círculo, quando se
busca a espontaneidade, pois esta,
Cria uma explosão que por um momento nos liberta de quadros de
referência estáticos, da memória sufocada por velhos fatos e informações,
de teorias não digeridas e técnicas que são na realidade descobertas de
outros. A espontaneidade é um momento de liberdade pessoal quando
estamos frente a frente com a realidade e a vemos, a exploramos e agimos
em conformidade com ela. Nessa realidade, as nossas mínimas partes
funcionam com um todo orgânico. É o momento de descoberta, de
experiência, de expressão criativa (Spolin,1998: 4).
Enfim, para o adolescente, ser espontâneo significa falar, sem tantos preconceitos e
receios, sobre sua realidade, poder comentar sobre ela sem tantos medos.
Após as cenas serem apresentadas, fazíamos uma avaliação em grande grupo,
pensando na seguinte pergunta: no dia-a-dia essa cena aconteceria? Iniciava-se um diálogo
que buscava avaliar, além dos aspectos cênicos apresentados, o que estava por trás das cenas,
a forma como elas se manifestam no cotidiano desses alunos, como essas violências
interferem em suas vidas, como lidam com o poder. Além do mais, muitas dessas discussões
nasceram a partir do processo dos círculos da violência, que suscitou nesse grupo o interesse
pelo tema e a dedicação ao trabalho:
Como indivíduos, somos isolados uns dos outros, cheios de limitações,
medos, tensões, competitividade, preconceitos e atitudes preconcebidas.
Se a nossa abertura for mais do que apenas uma esperança, um
45
sentimento, uma palavra, então certas condições deverão ser atendidas. A
primeira delas poderíamos chamar de mutualidade ou confiança. O
verdadeiro jogo produzirá confiança (Spolin,1999:17-18).
Acredito que, nesse processo artístico e pedagógico, as vozes envolvidas realmente se
fizeram presentes. Os alunos mantiveram autonomia na medida em que foram construindo
seus discursos cênico e teórico. Foram sensíveis às violências apresentadas nesse trabalho, e
conseqüentemente mostraram-se capazes de criar e recriar signos e significados por eles
apresentados e pesquisados.
46
Capitulo 2
Teatro na educação: aspectos teatrais
do processo pedagógico
O fato de que ele [homem] é modificável por
seu ambiente e de que pode modificar esse
ambiente, isto é, agir sobre ele gerando
conseqüências- tudo isso provoca um
sentimento de prazer. O mesmo não ocorre
quando o homem é visto como algo mecânico,
insubstituível, incapaz de resistência.
Walter Benjamin
47
48
2- Teatro na educação: aspectos teatrais do processo pedagógico
Nesse capítulo, meu olhar se volta para os aspectos teatrais da prática dos círculos da
violência. Analisarei algumas fotos do processo e, através da leitura destas imagens,
observando e discutindo-as, o diálogo e o questionamento se fará a partir de três categorias
teatrais: o par ator e espectador; o espaço cênico; e o grupo. Em cada foto apresentada, será
feito um breve relato da cena e, em seguida, as análises das mesmas. Perceber o que a foto diz
não significa que a leitura seja única e correta. Minha intenção é, ao contrário, que cada foto
se disponha a leituras diferentes de cada pessoa, e permita que ela mesma crie a sua história,
deixando sua imaginação fluir. E também, que se pergunte:
qualquer imagem pode ser lida? (...) podemos criar uma leitura para
qualquer imagem? (...) pertence a nós, seus espectadores, um sistema
suficiente de signos e regras? (...) admite tradução em uma linguagem
compreensível, revelando ao espectador aquilo que podemos chamar de
Narrativa da imagem? (Manguel, 2003: 21).
O que nós, como espectadores dessas imagens, temos em comum? Como essas
mesmas imagens se relacionam entre si? Como estaremos no momento em que vamos vê-las?
O interessante é que essas e muitas outras perguntas surjam no decorrer da observação das
imagens, e que cada individuo tente relacioná-las com o processo do círculo da violência, e
com elas dialogar, repensando nossa realidade. Trago novamente o pensamento de Manguel,
colocando que,
As imagens (...) informam. Aristóteles (...) todo o processo de
pensamento requeria imagens. (....) ´a alma nunca pensa sem uma imagem
mental’. (....) para aqueles que podem ver, a existência se passa como um
rolo de imagens que se desdobra continuamente, (...) capturadas pela
visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos , (...) significado (...)
varia constantemente, configurando uma linguagem feita de imagens
traduzidas em palavras e de palavras traduzidas em imagens (...). As
imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e
alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos com
o nosso desejo, experiência, questionamento e remorso (Idem: 21).
Que essas imagens por mim apresentadas, suscitem em vocês, novas imagens.
49
2.1- E essa pose de normal, menina....
Dias sim
Dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
Cazuza- Arnaldo Brandão
Nessa foto, duas adolescentes, Nayara e Patrícia, contracenam. As duas interpretaram
papéis de garotos, numa troca de gêneros das atrizes com os personagens. Esse grupo teve
como roteiro base, a partir do círculo da violência, a seguinte seqüência: tipo de violência
corporal; conflito amoroso; conseqüência preconceito; personagens marginais; e o lugar, a
rua. Nessa cena, os personagens brigam por causa de uma garota.
As adolescentes trouxeram para cena um quê de realismo no seu figurino, capricharam
nos bigodinhos, roupas largas, touca, fala grossa, trejeitos considerados comuns aos homens, e
evidenciaram a visão delas sobre o grupo de meninos com quem convivem. Antes e depois da
cena, porém, elas insistiram muito em afirmar que era apenas um papel teatral, e que elas
continuavam sendo “muito mulheres”, deixando claro que existe uma distância entre atores e
personagens.
Mostrando uma realidade e, ao mesmo tempo, se distanciando dela, acabaram sem
querer e sem explícita consciência, utilizando o efeito de distanciamento proposto pelo
encenador alemão Bertolt Brecht, que nos diz que
50
A finalidade dessa técnica do efeito do distanciamento consistia em
emprestar ao espectador uma atitude critica, de investigação relativamente
aos acontecimentos que deveriam ser apresentados. Para isso, os meios
eram artísticos. Ou ainda, (...) a empatia consiste em tornar cotidiano o
acontecimento especial; já o distanciamento, ao contrário, torna especial o
cotidiano (Bornheim, 1992: 243).
No caso do distanciamento brechtiano, é exigido ao ator a consciência da utilização de
tal recurso. É interessante que, em nosso caso, as alunas não apresentavam explicitamente esta
conscientização, o que comentei com o grupo após as apresentações.
O trabalho de ator, um método teatral específico para um treinamento, seja este
corporal, vocal e estético é complicado de ser executado em sala de aula, mais ainda quando
se trata de aulas semanais com quarenta e cinco minutos. Mais: o tempo oferecido pela escola,
para sétimas e oitavas séries, restringe-se a duas aulas de artes por semana, às vezes uma na
segunda-feira e a outra na sexta–feira, quando não acontecem períodos onde não se tem aula
por até quinze dias, por causa de reunião pedagógica, conselho de classe e essas burocracias
que a escola têm e nós já conhecemos.
Pensemos também no tempo do aluno, que tem cinco aulas diferentes no dia, um entra
e sai de professores e conteúdos. Muitas vezes, quando chega a hora dele encarnar o
personagem e entrar em cena, já bateu o sinal. E tem também o tempo do professor, que corre
pelos corredores da escola até chegar na sua sala, muitas vezes interrompido nesse trajeto por
alunos, por direção e até por pais.
Outro ponto a ser comentado da foto é o contato corporal das alunas, demonstrando
nessa ação a violência. O toque corporal para os adolescentes é difícil de ser realizado: existe
um preconceito em tocar pessoas do mesmo sexo, e pode chegar a ser constrangedor dar-se as
mãos no começo de um processo de teatro em sala de aula. É-lhes incutido, no dia a dia, que
tal gesto não é “certo”. As alunas se predispõem melhor ao toque do que os meninos e, na
hora de interpretar a briga, não tiveram muitas dificuldades. Às vezes até exageram no
realismo, sendo necessário controlar a empolgação.
Ser ator ou atriz, na escola, é também um desafio de encarar um personagem e fazer-se
mostrar para a sala inteira. Nem todos os personagens são considerados fáceis de interpretar.
Existe uma pesquisa cênica por parte dos alunos: eles ensaiam e se dirigem, observam e
comentam. Embora não restritos a uma única técnica teatral – que, de resto, mal conhecem -,
eles jogam e improvisam, trazendo e discutindo sua realidade.
Esse repertório corporal que o aluno traz para a sala, é normalmente o que ele vê na
rua, vivencia em sua vida, assiste na televisão. No início dos jogos, muitos corpos parecem ser
51
iguais, repetindo atitudes que são comuns ao seu meio, e que são apenas reproduzidas e não
repensadas. Por isso que,
Existe uma enorme quantidade de exercícios que se podem praticar, tendo
todos, como primeiro objetivo, fazer com que o participante se torne cada
vez mais consciente do seu corpo, de suas possibilidades corporais, e das
deformações que o seu corpo sofre devido ao tipo de trabalho que realiza.
Isto é: cada um deve sentir a ‘alienação muscular’ imposta pelo trabalho
sobre o seu corpo (Boal, 1977: 133).
E os alunos acabam que escondendo seus corpos atrás das carteiras, esquecendo de
suas possibilidades, pois ficam acostumados à mesma rotina, levantam-se na troca de
professores, no intervalo, na saída e na aula de educação física. São importantes os jogos
iniciais de preparação para as atividades teatrais pois, quando a cena acontece, até o mínimo
movimento é percebido e tem um significado. Daí a importância do aluno conhecer seu corpo
e também suas limitações.
O professor tem um papel muito importante nesse reconhecimento do aluno do seu
corpo e do próprio espaço de trabalho. A arte-educadora Carmela Soares enriquece esta
discussão, acrescentando que
O espaço vazio do jogo é um campo novo para o aluno, que está
condicionado a sentar-se passivamente atrás da cadeira, e um desafio para
o professor que estará sujeito à desordem aparente, ao barulho e à
profusão de corpos no espaço. Ao propor uma Pedagogia do jogo teatral,
procuro vencer as dificuldades que se impõem na prática, transformando
primeiro a sala de aula em “área de jogo”. A área de jogo abriga todas as
possibilidades, tanto da “ordem” como da “desordem”,
8
do desejo e do
contra-desejo, da atividade e da passividade, do condicionamento dos
corpos e da mudança, do tédio e do entusiasmo, das descobertas e do
desinteresse, das aventuras e desventuras (Soares, 2003: 30).
Que professor e aluno se reencontrem nesse novo espaço da sala, e assim passem a se
perceber de forma diferente, a lidar com o inusitado, com o barulho, com a surpresa, com
novos corpos que se escondiam atrás das carteiras.
8
O conceito de ordem e desordem podem ser compreendidos dentro de um movimento contínuo e
dinâmico em que uma destas instâncias dá lugar a outra sucessivamente. Nota da autora Carmela
Soares.
52
2.2- Olhares da realidade...
Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E quem sabe, sonhava meus sonhos.
Por fim.
Cartola
O que chama a atenção, nesta foto, não é a cena em si, mas aquele aluno, Guilherme,
sentado em sua carteira como espectador, com seus olhos vidrados no que está acontecendo
em sua frente. Não há como negar que os alunos também exercem nesses exercícios
dramáticos a função de espectador, ao observar as improvisações dos outros grupos enquanto
espera para apresentar a
sua, ou após tê-la apresentado. “ Embora o objetivo, em geral, dos
participantes seja ‘fazer teatro’, ver os outros jogadores em cena também faz parte do jogo”
(Desgranges, 2003: 73).
Já que os alunos exercem nesse processo papéis diversos entre eles, assumindo
alternadamente a função de ator e de espectador, a percepção teatral recorrente é
necessariamente crítica. Assim, lembramos aos alunos que, quando se é espectador, as
piadinhas e comentários têm que ficar para depois, na hora da discussão das cenas. E que,
para ser ator, o corpo tem que estar sempre predisposto a entrar em cena. Na preposição dos
círculos da violência, tive que despertar a consciência e a ciência de que ambos, ator e
espectador devem ser ativos e ficarem ligados no decorrer das cenas, como se a musculatura
de seus corpos estivesse alerta, pronta para entrar no jogo. Mostrando que os alunos precisam
estar de prontidão para entrar em cena, não só quando se é ator, atriz, mas também como
53
espectador, que desempenha um papel que requer atenção e interpretação, e que é muito
importante para o processo teatral. O processo dos círculos da violência busca,
aproximar o espectador da ação cênica, fazendo dele não apenas
observador mas também criador e jogador do evento teatral. Assim, no
teatro contemporâneo busca-se diminuir a distância entre jogador e
observador, colocando-os sob a mesma condição dinâmica, em que por
meio do olhar se modificam sucessivamente os papéis. Neste sentido,
todos são autores, jogadores e espectadores do próprio jogo. Este
procedimento faz do jogo teatral contemporâneo uma construção formal
que resulta paralelamente deste jogo de olhares ou alternância sucessiva
entre os pares: jogador e observador, ilusão e realidade, sentimento e
razão (Soares, 2003: 53-54).
Pensando agora esta imagem, sob o olhar do espectador, pode-se refletir sobre ela
dentro da seguinte polaridade: ou o aluno está apenas olhando para a cena sem dela absorver
nada; ou ele está refletindo, alerta, no momento em que a cena acontece. Distraído ou
totalmente ligado, o que posso concluir é que ele efetivamente absorve o discurso cênico,
restando para reflexão o quanto este discurso o faz repensar suas atitudes ou sofrimentos
causados pelos mais variados tipos de violência. Acredito que possa começar, nesse
momento, a conscientização, por parte desse aluno, de sua realidade, e a maneira com que isso
continuará a acontecer dependerá, obviamente, também dessa realidade.
Ao propor discutir a violência na escola, se propõe também um compromisso dos
alunos de discutirem verdadeiramente o que se passa ao seu redor, observando violências
praticadas e sofridas. Ao perceberem como elas se manifestam, eles podem se defender. O
aprender, nesse caso, significa desenvolver uma atitude consciente e também crítica da
realidade que os cerca, refletindo sobre a mesma. Brecht nos fala da importância do
espectador, de sua consciência, de sua modificação. O autor declara que,
Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as
sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo
contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se
realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos
que desempenhem um papel na modificação desse contexto (Brecht,
1948: 113).
Essa consciência de espectador desperta nos alunos o interesse pelo que o outro está
fazendo, confere importância às opiniões do grupo e sinaliza que, em cada momento, cada um
desempenha um papel, e que o mesmo tem muita importância no processo.
54
O aluno desenvolve a consciência sobre o assunto e também aprende a aprimorar seu
olhar, a perceber o significado do discurso: a observação desperta um novo olhar.
A observação da realização cênica dos outros participantes é de suma
importância para o aprimoramento do olhar; o jogador, que elabora a
própria realização para a proposta (...) enriquece-se ao deparar com
realizações completamente diferentes da sua, surpreende-se com a
infinidade de possibilidades de criação cênica para a mesma proposta
(Desgranges, 2003: 74).
Nem sempre as primeiras tentativas de nossa prática dão certo, despertar a consciência
requer concentração, e às vezes também o silêncio. Os adolescentes, às vezes, não param de
falar e de fazer piadas, que atrapalham o desenvolver do processo, minha atitude como
educadora, é falar com tal sujeito sobre sua atitude, e esperar dele uma resposta do porque
esta agindo assim. Normalmente sua resposta é: “Foi mau, professora, desculpa aí.”
Muitas vezes os alunos se dispersam fácil, e acredito que quando olhares se perdem,
opiniões também se vão. Somos em muitos momentos caçadores de olhares... Quando se
trabalha com um tema denso, como a violência, a finalização dos debates e da proposta do dia
devem ser realizadas, pois quando a porta está aberta, de tudo pode entrar...
55
2.3- Objetos que se transformam em caixões, pássaros, armas...
Que não é o que não pode ser que
Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
Titãs
Essa foto representa a cena final. A categoria conseqüência teve, no girar dos círculos,
a morte. Nesta foto, está acontecendo um velório. O que gostaria de comentar aqui é o uso
alternativo dos materiais da escola. A maioria das escolas não possui muitos materiais para
fazer a cenografia e o figurino, e nem uma sala de artes. Os alunos trazem muitas coisas de
casa, trocam com os colegas e improvisam com o que está disponível no próprio ambiente.
Nas apresentações, os objetos normalmente assumem funções diferentes do que eles
têm a priori. Nesse caso das cadeiras - que são comumente utilizadas para sentar - na foto,
foram usadas como um caixão. Os alunos trabalham com o que a escola oferece, reinventando
objetos convencionais e na maioria dos processos artísticos e pedagógicos,
A criatividade é freqüentemente considerada como uma maneira menos
formal de apresentar ou usar o mesmo material, talvez de modo mais
engenhoso ou inventivo - um arranjo diferente dos mesmos blocos.
Criatividade não é apenas construir ou fazer algo, não é apenas variação
de forma. Criatividade é uma atitude, um modo de encarar algo, de
56
inquirir, talvez um modo de vida - ela pode ser encontrada em trilhas
jamais percorridas. Criatividade é curiosidade, alegria e comunhão. É
processo – transformação - processo (Spolin, 1998: 256-257).
Os alunos precisam pensar cenários e figurinos capazes de serem efetivamente
construídos. Não são absolutamente necessários tais acessórios para as cenas acontecerem,
mas os adolescentes se sentem realmente fazendo teatro quando todo o palco está armado, e a
maioria dos grupos se empenha na construção de seus planos. A escola pouco nos oferece,
mas não adianta reclamar. É necessário agir, e o jeito, então, é mexer no espaço e nos objetos
tradicionais, transformando-os em espaço e objetos mágicos, simbólicos. A criança consegue
entrar mais facilmente no mundo da imaginação ao transformar um objeto óbvio em coisas
absurdas. O adolescente, no entanto, precisa efetivamente entrar no clima e nós, educadores,
temos que tentar fazê-los perceber que,
o mais importante não é a similaridade do objeto com a coisa
representada, mas sim o gesto capaz de atribuir ao brinquedo o
significado imaginado. A criança não vê o objeto como ele é, mas atribui
a ele um novo significado. O objeto funcionaria assim como o pivô da
imaginação. Desta maneira um cavalo de pau, por exemplo, não se
assemelha ao objeto real (referente), mas o cabo de vassoura
(significante) comporta o gesto do cavalo (significado) (Soares, 2003:
154).
Assim cada vez que um adolescente pegar o objeto, o mesmo pode ter uma invariável
quantidade de possibilidades e assim recria seu significado.
O não ter materiais disponíveis, faz por um lado, os alunos procurarem soluções
criativas para resolução de tal problema, ou melhor, de tal deficiência de recursos que a escola
sofre. Os materiais mais utilizados são as roupas de parentes, acessórios de amigos, panos
diversos, e a própria imaginação, que é capaz de fazer os alunos perceberem que,
.
Uma imagem, uma música, uma palavra, um conflito, qualquer motivo
pode servir como estímulo à criação cênica. O espaço é despojado de
tudo aquilo que não lhe é essencial, restando apenas alguns elementos e
objetos cênicos. O espaço é visto como “área de atuação” ou “área de
jogo”, cabendo ao ator a função de animar e dar vida a este espaço por
meio da imaginação e da arte da representação. O jogo teatral
contemporâneo está desta maneira fundado na fisicalidade das ações, no
dimensionamento concreto e físico do espaço, na concepção de uma
materialidade que deve se tornar visível ao olhar dos espectadores (Idem:
130-131).
Quando os adolescentes conseguem perceber essas relações simbólicas que se
estabelecem entre a imaginação e a realização cênica, são capazes sim de transformar cadeiras
em caixões, pássaros, armas...
57
2.4- Quanto mais perto, melhor...
Sorri,
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Djavan
Essa foto representa a indução do comprador para com os fregueses, praticando
violência simbólica, aqui usando de seu sorriso e de seu tamanho. Meu interesse aqui é
mostrar a quebra do espaço tradicional, onde a maioria dos alunos estão treinados na
frontalidade, fazendo um paralelo com os espaços teatrais, estão acostumados com o palco
italiano. Como educadora proponho o círculo, a roda, o palco de arena. Essa foto mostra
claramente como os alunos mexeram no espaço tradicional, e fazem com que o professor
transite por todo o espaço. Se eu não estivesse tirando a foto, com certeza, estaria no meio
deles para poder observar melhor o andamento das cenas.
Essa quebra no espaço tradicional rompe as hierarquias e estabelece outro tipo de
comunicação, dá mobilidade às pessoas envolvidas nos processo, libera o trânsito. Gostaria de
discorrer um pouco mais sobre a sala de aula como espaço cênico.
Acredito que a sala de aula serve como espaço cênico, mas é necessário, porém, vê-la
a partir de outros ângulos. A experiência com os círculos propõe que esse espaço frontal seja
transformado num espaço que permita que o imaginário predomine sobre a realidade, usando
o espaço tradicional de forma não convencional.
O espaço da maioria das salas de aula hoje é um espaço onde ainda a relação frontal
predomina, mesmo que as relações entre alunos e professores estejam se modificando. Não se
58
requer mais o professor na frente como detentor da palavra e alunos sentados uns atrás dos
outros em filas indianas, sem muita mobilidade corporal, estabelecendo uma hierarquia dentro
da sala, deixando definidos os espaços de cada sujeito. O professor no seu espaço, o centro da
sala, e os alunos separados por uma força simbólica, delimitando espaços. Essa arquitetura,
similar em estrutura ao espaço teatral à italiana, permite que o professor encontre
nas particularidades do espaço que lhe concede a instituição tradicional (o
estrado, a cadeira e a situação no lugar de convergência dos olhares) as
condições materiais e simbólicas que lhe permitem manter os estudantes
à distância e com respeito, e que o coagiriam mesmo se ele recusasse a
aceitá-las. Soerguido e fechado no espaço que o consagra como orador,
separado do auditório, tanto quanto a afluência que o permite, por
algumas fileiras desertas que marcam materialmente a distância
(Bourdieu,1992:122).
Porque não sair desse pedestal e mudar o espaço? Porque não transformar esse espaço
italiano em um espaço de arena, ou em um espaço elisabetano, por exemplo? Enfim, espaços
onde atores e público se comuniquem, professores e alunos dividam cenas, sentindo a
presença um do outro, trocam olhares, estabelecem uma relação de comunicação intensa.
Se a experiência não servir para levantar questionamentos, alegrias, vivências,
indignações, reflexões, ou qualquer outra sensação que vier a provocar, acredito de que não
vale tanto a pena.
O espaço com que estamos acostumados a trabalhar na escola, a sala de aula, vista
como um palco italiano, está repleto de hierarquia e jogos de poder, onde apenas um enuncia
e os outros recebem a fala, não é um espaço apropriado. Acredito que a sala de aula deve ser
vista como um espaço para a comunicação, seja esta verbal, corporal, ideológica etc. Neste
espaço, eu circulo com meus alunos, escuto-os, troco olhares, idéias, contatos, explorando-o
de diferentes maneiras, sob diferentes ângulos, usando diversos planos e focando-o conforme
o interesse daquele momento do grupo, e não apenas de uma só pessoa com o poder da
palavra, o professor.
Tentemos modificar nossa postura, e inovemos com os nossos alunos na sala de aula
que temos, levantemos carteiras, criemos túneis, buracos, mas mexamos no espaço
tradicional, transformando-o em um espaço mágico para o momento da representação cênica.
Pensemos assim que,
O espaço teatral torna-se, ou volta a ser, uma estrutura completamente
flexível e transformável de uma montagem para outra, quer se trate das
áreas de representação ou das zonas reservadas ao público. Agora, o
teatro pode ser feito em qualquer lugar - de preferência evitando-se
59
aquelas construções a que se costuma dar o nome de teatros... A estrutura
desse novo espaço pode variar ao infinito (Roubine, 1998:117)
.
Inovemos o nosso dia a dia. Este espaço que temos disponível hoje, nas escolas,
proporciona uma oposição entre professores e alunos, em que um vai de encontro ao outro: se
eles andassem cada um apenas na sua direção inicial, provavelmente se chocariam, porque um
caminho vai e o outro vem. É justamente o contrário de minha intenção, pois acredito que
esse mesmo caminho deve ter várias mãos, e também um acostamento para quem quiser
observar o movimento dos corpos e ouvir o som de diferentes palavras.
2.5- Mãos que agridem e agradam...
Depois de algum tempo você aprende a
diferença, a sutil diferença entre dar a
mão e acorrentar uma alma. (...)
Descobre que algumas vezes a pessoa que
você esperava que o chute quando você
cai é uma das poucas que o ajudam a
levantar-se.
Shakespeare
Essa foto mostra uma cena em que um adolescente considerado playboy, é pego pelo
grupo de traficantes por não ter pagado sua dívida das drogas. É uma cena que mostra uma
realidade vivida diariamente por muitos adolescentes, e que nessa cena mostra a brutalidade
como eles são tratados. Essa violência está evidente nessa imagem, além do medo do Jack, o
adolescente que está no chão. O que gostaria de comentar é justamente o contrário do que a
60
imagem mostra: não a violência, mas sim a cumplicidade do grupo, e o cuidado para com o
próximo. De como foi especial esse grupo, de como cada individuo deixou marcas nesse
processo artístico e pedagógico.
Gostaria de comentar que ser ator e espectador ao mesmo tempo cria uma
cumplicidade do indivíduo com o grupo. Perceber o contexto geral, e não apenas as
discussões em fragmentos, e deixar que nossa imaginação permita ver e sonhar o que o meu
colega quer mostrar, isso é participar ativamente do processo. O autor Peter Brook contribui
para essa discussão acrescentando que a
“participação” (...) consiste em ser cúmplice da ação e aceitar que uma
garrafa se torne a Torre de Pisa ou um foguete a caminho da lua. A
imaginação, feliz, jogará esta espécie de jogo (...). No espaço vazio
podemos aceitar que uma garrafa seja o foguete que nos levará ao
encontro de uma pessoa real em Vênus. Depois, numa fração de segundo,
tudo pode mudar no tempo e no espaço. Basta que o ator pergunte: “Há
quantos séculos cheguei aqui?”, e daremos um gigantesco passo adiante
(Brook, 2000:23-24).
É também se deixar envolver pelo jogo, rir quando der vontade, sempre
respeitando o espaço do colega que está em cena e que precisa continuar concentrado.
Fazer parte de um grupo nem sempre é fácil, pois cada um tem suas
particularidades e interesses. O grupo que participou nessa pesquisa, em especial, apresentou
seus méritos e qualidades e me motivou a trilhar esse tão difícil caminho da pesquisa
acadêmica: sem a cumplicidade deles e a entrega de cada um, teria sido impossível prosseguir
neste trabalho teórico. Particularmente, a estratégia escolhida por mim, os círculos
concêntricos, e em especial a construída por nós, os círculos da violência, possui essa
preocupação pelo indivíduo dentro do grupo. Preocupação que se manifesta desde a escolha
do tema violência, como já foi discutido em capítulos anteriores, até a minha crença de que,
quando discutimos assuntos ligados ao nosso interesse, nossa entrega à proposta é mais
intensa, principalmente com adolescentes ávidos e curiosos, que tem tantos outros interesses
além da escola.
Esse grupo tão especial apresenta ainda algumas outras particularidades, que
valem a pena comentar, já que foram elas que, de uma certa forma, nos uniram no processo
artístico e pedagógico. São alunas e alunos de duas turmas, de sétima e de oitava série, que
estudam juntos há dois anos; que moram próximos uns dos outros e participam da vida social
da mesma comunidade; que sabem o que se passa ao seu redor; e, enfim, que nunca tinham
feito teatro. Obviamente, nem as relações pessoais e grupais, nem os jogos ocorreram, no
61
início, às
mil maravilhas
. Por mais que se goste e se queira fazer teatro, existem algumas
dificuldades iniciais. Como, por exemplo, o tocar um no outro, mesmo o simples pegar na
mão do outro para fazer um círculo. Sempre surgem aquelas piadinhas que explicitam
preconceitos. Aqui entra em campo o
jogo de cintura
do professor, que permite estabelecer
um diálogo franco e entrar também no ritmo da turma, abdicando de apenas exigir que os
alunos apenas repitam atitudes, em vez de trazerem novas propostas. Na época o auge da
música, por exemplo, era o
funk
, e até o Bonde do Tigrão eu dancei: olha só pelo que se
passa...
No início do processo muitos aquecimentos variados, jogos, improvisações e
brincadeiras foram realizados. Até se atingir a discussão da violência propriamente dita,
houve um caminho de descobertas, por nós percorrido. Volto a citar Peter Brook, cuja
passagem de texto parece fazer parte das minhas aulas:
Fizemos exercícios de grupo cujo único objetivo era desenvolver reações
rápidas, o contato de mãos, ouvidos e olhos, uma percepção coletiva que
se perde facilmente e tem que ser constantemente renovada para unir os
indivíduos e transformá-los numa equipe sensível e vibrante. As
necessidades e regras são iguais às do esporte, só que uma equipe de
atores deve ir além: o jogo não envolve apenas os corpos mas também os
pensamentos e sentimentos, que precisam manter-se entrosados. Isso
requer exercícios de voz e improvisações, tanto cômicas como sérias
(Idem: 92).
Esses exercícios que antecederam a proposta que nos deram segurança enquanto
grupo, nos fortaleceram e nos fizeram perceber um pouco mais de cada um. Além disso, me
fez conhecer a turma com que eu nunca tinha trabalhado. Mesmo se num princípio não
soubesse nem do que eles gostavam, depois dessa primeira etapa eu tive ainda mais certeza
que eram eles os meus companheiros de pesquisa.
Neste processo, se leva em conta histórias pessoais dos alunos envolvidos no processo,
respeitando as diferenças de opinião e de personalidade. Apesar do grupo ser heterogêneo,
eles tem naquele momento objetivos comuns, quer dizer, discutir a violência, percebendo em
grupo e individualmente o quanto por ela estão envolvidos, e o quanto dela praticam.
Percebe-se aqui a importância em vincular o assunto a ser trabalhado com o cotidiano, para
que esse mesmo cotidiano esteja presente no texto construído.
Acredito que houve, nessas discussões, uma conscientização sobre o tema. Os
problemas que foram expostos ou descobertos, às vezes quase sem querer, foram na sua
maioria, de uma certa forma, resolvidos e amparados pelo grupo, que percebeu a importância
62
e o respeito pela subjetividade de cada um. Koudela, comentando sobre subjetividade, afirma
que,
Só quando a subjetividade de cada participante é considerada na sua
totalidade, ele é capaz de aprender na prática com a peça didática aquilo
que é socialmente objetivo (ou aquilo que é supra-individual,
aparentemente determinado através da história ou estruturas fixas). Não
se trata de fazer com que o participante individual carregue sentimentos
de culpa, mas sim ajuda-lo a se libertar de amarras, perceber de outra
forma, experimentar e conquistar novas possibilidades de ação (Koudela,
1992:56).
Que a própria prática educacional respeite cada indivíduo como sujeito, com suas
particularidades e interesses, dando espaço para manifestações no grupo, quando o mesmo
quiser assim fazer.
2.6- Em cada pedaço do corpo, uma lembrança...
Da vez primeira em que me assassinaram.
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram.
Foram levando qualquer coisa minha...
Mário Quintana
Essa imagem é o final de uma cena, que tinha como conseqüência à vingança. Os
alunos, após longas discussões verbais e corporais, amarraram o colega e assim o deixaram,
saindo todos de cena. Esse aluno, o Rafael, ficou assim por um tempo, sem se mexer,
63
interpretou e sustentou seu personagem até o fim da cena. Essa posição não nos parece
confortável, sua face traduz dor, seu corpo está amarrado, sem poder tomar nenhuma atitude.
É um corpo que não está acostumado a esta posição diariamente. Você já se imaginou nessa
situação? Amarrado a lugares ou pessoas que você não consegue se soltar?
Com as palavras do educador Flávio Desgranges, venho fazer um convite,
Cada contemplador da obra participa do diálogo com o autor e o grupo
social, e compreende os signos apresentados de maneira própria, de
acordo com a sua experiência pessoal, com seu ponto de vista. Assim
sendo, o sentido de uma obra é inesgotável. Essa concepção particular da
obra, quando elabora uma interpretação, seu ato de compreensão do
sentido presente nos signos utilizados, é criativo; desse modo, o
contemplador pode ser visto como um co-autor daquela obra (Desgranges,
2003: 122).
Ao observar as imagens que seguem, convido você: leitor, espectador e contemplador,
a ser co-autor delas, e assim fazer a sua compreensão do que se passa nessa situação. O que
lhe parece: violência?... depressão?... dor?... fome?... medo?... teatro?!
64
65
66
67
Enquanto você contempla, falemos de teatro e de educação. Volto agora meu olhar
para o cotidiano, para o tema escolhido por eles: a violência. Tema este tão presente na
realidade desses adolescentes e na nossa sociedade. Os mais variados tipos de violências
afloraram no processo dos círculos e trouxeram muitas histórias, questionamentos e causaram
reflexões sobre atitudes aparentemente inocentes, desde uma violência verbal sorridente, até
uma propaganda indutiva. Tais reflexões se fazem presentes no decorrer dos próximos
capítulos.
68
Capitulo 3
Violência e adolescência
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem, mais!
Casimiro de Abreu
69
70
3- VIOLÊNCIA E ADOLESCÊNCIA
Este capítulo se propõe a discutir os tipos de violências tratados no trabalho com os
círculos da violência em sala de aula. Essa estratégia, aflorou além das improvisações e
encenações, muitas discussões sobre a realidade e o mundo desses adolescentes. Por isso,
após a prática de tal estratégia, acompanhada de um diálogo com os alunos, me atrevo aqui a
traçar um perfil das idéias desses adolescentes que foram meus parceiros de trabalho.
Constatei, através da opinião de cada aluno, que o desejo dos adolescentes em
conhecer sobre sexualidade liga-se à vontade; sobre a AIDS, liga-se ao medo; sobre as drogas,
à curiosidade; e sobre a violência, liga-se à realidade. Eis um fato que me espantou: a
violência está muito presente na vida cotidiana, e é claro que transita pelos corredores da
escola. Como educadora, me senti instada a deter-me neste assunto tão pungente e tão
presente entre os meus alunos. Proponho-me aqui a analisar e refletir sobre tais violências,
seja a partir dos fatos fictícios encenados em sala de aula, seja por histórias reais, seja através
de um texto teórico, ou através de palavras comentadas, observando a importância que cada
tipo de violência ocupa na vida desses adolescentes.
O cotidiano dos adolescentes é cercado por vários tipos de violência: tanto praticam
tais violências, como também as sofrem. Esses tipos de violência, em meu trabalho com estes
adolescentes - como já comentado anteriormente -, foram discutidos e classificados por eles
nas seguintes categorias: violência verbal, corporal, sexual e mental (simbólica)
9
. Tratarei, a
seguir, de expor cada uma delas, explicitando suas diferenças e dialogando com autores que
pesquisam sobre o assunto. Tratarei a violência simbólica em outro capítulo, onde
aprofundarei minhas discussões: no meu entender, este tipo de violência é a mais difícil de ser
identificada no cotidiano.
9
Violência mental e violência simbólica. Esta consonância de significados será explicada posteriormente, no
capítulo 4.
71
3.1- A violência verbal na adolescência
O direito ao “foda-se” deveria estar
assegurado na constituição brasileira.
Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-
se.
Pedro Ivo Resende
A violência verbal se enquadra como aquela que utiliza palavrões e xingamentos, ou
mesmo palavras comuns alteradas pejorativamente, para atingir ao próximo de forma
negativa. Esta linguagem, chula ou não, infelizmente é utilizada abertamente em muitas
escolas, tanto na relação aluno-aluno, tanto quanto nas relações entre professor-direção-aluno.
Percebo que é uma violência mais permitida, no sentido de que já faz parte da linguagem
cotidiana, e acabamos, enquanto grupo escolar e social, por aceitá-la mais facilmente em
nosso vocabulário e no nosso dia-a-dia. Os adolescentes vivem diariamente entre a
oficialidade do idioma na escola, que preza por uma linguagem que seja sem palavrões e
gírias - linguagem esta que a maioria de nós, adultos, defendemos -, e a linguagem cotidiana,
que eles usam na rua com os amigos. Parecem viver num dilema.
Concordo com Emilia Ferreiro, quando ela opina sobre o papel da escola em relação
ao uso da linguagem, tanto verbal quanto escrita: “
A escola pode assumir a distinção entre
‘fala culta’ e fala ‘inculta’ (ou popular), estigmatizando dialetos(...). Porém, não pode frear o
desenvolvimento da comunidade lingüística na qual está inserida
(Ferreiro, 258:1991).
Um fato curioso transcorreu com uma de minhas turmas, que se encontrava sozinha na
sala, fazendo barulho, brincando, arrastando e riscando cadeiras e carteiras. Até que chegasse
a diretora, indignada com a
conduta dos alunos, e gritasse: "
Calem a boca, sua cambada
de baderneiros! Já para a cozinha, pegar sabão e esponja para limpar essa sujeira que vocês
fizeram
". E eles assim o fizeram, xingando também. Parece um quartel? Mas não é: trata-se de
uma das realidades escolares. Assim se tenta impedir, através de palavras ou de atitudes, o
que a escola enquadra como
mau comportamento
. Zela-se, dessa forma, pela disciplina.
Atitudes como esta, e não apenas por parte da diretora, são comumente praticadas na
escola real. O discurso se modifica na prática: prega-se uma linguagem oficial e pratica-se a
linguagem popular. Esta linguagem dita popular é predominante na vida dos adolescentes, e
aqui a chamarei de linguagem das ruas, e não se pode fazer de conta que ela não existe,
deixando que os alunos a falem apenas do portão para fora. Essa linguagem também faz parte
de suas histórias, da nossa história. O diálogo que o círculo proporciona, pode nos fazer
pensar que tal processo é uma tentativa de superação deste embate, entre a linguagem que a
escola, professores falam, e a linguagem que os alunos falam. Neste processo os alunos
72
possuem voz ativa, e assim conseguem construir um discurso próprio, que é considerado
coerente e criativo, e que é capaz de transformar as relações.
O professor e pesquisador Celso Pedro Luft descreve comentários de alguns daqueles
professores que exercem um ensino considerado tradicional e de suas
lamúrias
, e fala dos
resultados dessa limitação do ensino da linguagem, onde estes dizem que,
“Os jovens não sabem falar”, “os jovens não sabem escrever”, “a nova
geração não tem vocabulário”: são lamúrias repetidas entre professores e
pais, que só confirmam os frutos naturais de um ensino frustrado e
frustrante, porque mal orientado, sem bases corretas. Os jovens são, por
natureza, inquietos, curiosos, ansiosos: um ensino de fora para dentro,
imitador, sufocante, acomodado, preconceituoso, especialmente na língua
materna, acaba podando, sufocando, aborrecendo e desinteressando o
aluno (Luft,1985:48).
Nós, enquanto educadores, deveríamos tentar desenvolver uma sensibilidade de
respeitar as diferenças, não só étnicas, econômicas, sociais, mas também de linguagem. Eu
defendo a linguagem popular, e não a violência da linguagem, mas acredito que se não
falarmos dessa violência verbal sem tantos mitos e receios, não chegaremos a sensibilizar
nossos alunos.
Por outro lado, quanto mais oprimimos esta linguagem das ruas, dos adolescentes,
mais ela se fortalece, no sentido de que se torna uma briga de forças, porque o que é proibido
é bom. Se eles, no entanto, se conscientizarem do quanto dói no ouvido escutar o dia inteiro
isso, talvez amenizem a prática dessa linguagem. O diálogo ainda é nosso melhor meio de
comunicação. Acredito que não deveríamos viver numa sociedade onde,
se olha e se ouve, mas não se vê nem se escuta, aquelas [sociedades] nas
quais a linguagem- qualquer linguagem- é mais sobre informação trivial,
causa de confusão, do que instrumento de comunicação e encontro;
aquelas, em suma, nas quais a fala é ruído, a escrita mais objeto visual do
que legível e o ruído asfixia tanto a escuta quanto o silêncio (Frago,
1993:98)
.
E acredito que não deveríamos asfixiar a voz que emite a linguagem popular de nossos
alunos, e sim procurar fazê-los entender que tudo tem sua hora e lugar. Na linguagem oficial
também se xinga, nem sempre com palavras, mas normalmente com intenções.
73
3.2- Adolescentes e violência corporal
Eu não sei mais o que é pior. Mentir a
vida toda para si mesmo ou continuar e
insistir no mesmo erro. Me lembro de um
fulano: ‘mata aquele mano!’ Será que
errar dessa forma é humano?
Racionais MC’s
A violência corporal é aquela onde o corpo é lesado, machucado. Agride-se partes do
corpo, com objetos como canivetes e facas para cortar, cintos e sandálias para marcar, armas
para forçar a realizar alguma coisa e até matar. Essa violência, no caso dos adolescentes, vem
normalmente acompanhada de violência verbal. Na realidade escolar, a relação entre esses
dois tipos de violência, verbal e corporal supera a tentativa de diálogo que, muitas vezes, nem
sequer é levada em conta. Na construção dos círculos essas duas violências eram a que os
alunos melhor interpretavam e comentavam, pois eles mesmos falavam que brigar e xingar
era fácil, e me diziam
no stress prof.
Em outros casos, a violência verbal é a alternativa à violência corporal, pois quando
não pode agredir fisicamente, o adolescente xinga. E na prática, dependendo da gravidade da
violência corporal ela é considerada ilegal.
Muitas vezes, o motivo de uma briga pode parecer insuficiente: porque um outro olhou
atravessado, um riu da cara do outro... As pesquisadoras Miriam Abramovay e Maria das
Graças Rua, nos colocam uma situação muito facilmente encontrada em nossas escolas.
Explicitam que,
Entre os fatores que desencadeiam violências como ameaças e brigas,
destaca-se o “encarar”. Trata-se de uma maneira de olhar diferente, que
pode significar, para os jovens, a quebra de uma regra tida como básica
no ritual da comunicação não verbal. O olhar direto e insistente é
assumido como desrespeitoso, desafiador e leva a confrontos
(Abramovay & Rua,2002: 236).
Para nós, às vezes essas brigas ocorrem por motivos tão infantis, banais, mas para eles
tão reais e verdadeiros, principalmente quando se mexe com alguém mais fraco, com sua
gata
ou
gato
ou com o seu melhor amigo.
Mas esse “encarar” me faz refletir sobre uma violência corporal e não verbal, o que
poderíamos chamar de violência dos olhares. Tal olhar pode ser considerado uma forma
sofisticada de comunicação: pode dar a impressão de muitas coisas, mas na nossa cultura não
tem um mesmo significado para todos. Essa violência dos olhares tem um aspecto simbólico
tanto para quem a pratica, quanto para quem a sofre: cada um imagina um significado para
74
olhar de tal maneira. Pode ser considerada uma linguagem não verbal, mas sim real, que
ocorre nas mais variadas relações,
-há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de
desigualdade, que se exercem no interior desse espaço- que é também um
campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada
um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os
outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e,
em conseqüência, suas estratégias (Bourdieu, 1997:57).
No meio de muitas relações de dominantes e dominados estão os adolescentes,
exercendo um dos dois papéis, participando do jogo de poder, seja apenas através dessa
chamada violência de olhares.
Esse exemplo que segue foi improvisado em cena com os círculos, quando o ponteiro
caiu na categoria de violência corporal. Dois garotos resolvem brigar no final da aula. Na hora
do recreio, um fica encarando o outro, dizendo: "
Eu vou te pegar, tá ligado
véio?
" E a turma
vai espalhando para a “
galera
,
que vai fechar a porrada”
quando acabar a aula. O espetáculo
assim se inicia: o público incita a briga, tomando algum partido, os protagonistas começam a
se xingar, insultar as mães uns dos outros, e partem para a briga corporal. Até que chegue
algum adulto, que se julgue competente e separa a briga... O coletivo não gosta, queria mais.
E saem comentando sobre a performance de ambos. Parece filme policial? Bem, até pode
parecer, com um pouco menos de sangue, mas é a realidade.
E não é só a realidade escolar, mas também a realidade das ruas, dentro das casas... A
partir deste “fato quase cênico”,
é possível levantar a hipótese de que as brigas encontrariam respaldo em
atitudes de apologia aos comportamentos agressivos, elevando-os à
condição de atos a serem incentivados e aplaudidos [espetáculo], que
representam um traço de uma cultura de violência (Idem: 237).
Refletindo sobre essa “
cultura da violência
” que as pesquisadoras comentam, penso
em paralelo sobre a violência cultural, que tem um respaldo ativo seja no mercado musical,
num jogo de vídeo game, num filme na televisão e até nos desenhos animados. É visível essa
incitação às violências, não só a corporal, física. Se tomarmos como exemplo algumas letras
de músicas de
rap
ou
funk,
elas têm como tema “dar o troco”, vingar-se de alguém que lhe
agrediu, lhe roubou alguma coisa, pegou sua namorada. Claro que não podemos generalizar,
pois existem grupos, como os Racionais MC’s, que são contra a prática de violências. Mas
percebo que há momentos em que é bem mais que uma violência individual, e sim uma
apropriada violência coletiva, que agride e agrada.
75
Parece ser a conjunção da identificação da violência, dita real (a que os adolescentes
praticam ou sofrem), com a ficcional, a que eles assistem na televisão, por exemplo, e se
inspiram, tentando tornar sua vida um filme. Filme este que, num certo plano, pelo menos, é
arte. A pesquisadora e educadora Angela Maria Dal Piva nos esclarece a influência da
televisão nessa suposta tentativa de transformar a vida em filme,
Diante de uma vida problemática e sem esperanças, a esfera emotiva das
pessoas se retrai. A vida que a televisão mostra é uma verdadeira troca,
com vantagens sobre a vida real. A emoção que as pessoas sentem
durante a novela, a vibração pelo esporte (...), fazem todos viverem
através da televisão (Piva, 2001:91).
Sendo que esta televisão representa, muitas vezes, a melhor companhia para estes
adolescentes, a única que os entende, falando a sua linguagem. Mas essa mesma televisão que
por um lado é a melhor companhia, por outro é uma má companhia, já que essa mesma mídia
torna cotidiana essa violência, torna comum e diária, desde suas novelas, passando pelos
desenhos e chegando aos telejornais.
A pesquisadora Josiane Rose Petry Veronese , enriquece essa discussão dizendo que a
televisão mereceria um controle, para que o crescimento de programas de qualidade
realmente aconteçam e comecem assim a transformar o cenário televisivo brasileiro. A
pesquisadora afirma que,
Este controle se faz ainda mais necessário se considerarmos que a
televisão também é responsável pela formação de opinião.Numa
sociedade cidadã, autônoma, conhecedora de seus próprios valores, não
há lugar para a passividade, para a acomodação diante da TV, porque ela
precisa ser humanizada (Veronese, 1998:25).
E os adolescentes precisam ter alternativas, pois a televisão os atrai e mesmo não
querendo, por um lado, não podemos negar a televisão enquanto uma instituição educacional.
76
3.3- Adolescentes e violência sexual
O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos
retirantes, é de quem não tem mais nada.
Dá-se assim desde menina (...). Joga
pedra na Geni.
Chico Buarque de Holanda
A violência sexual é aquela onde a sexualidade é usada como forma de humilhar ou
provocar sofrimento no outro, visando o prazer de uma pessoa e a dor da outra. Esse tipo de
violência foi mais difícil para os adolescentes confidenciar na construção das cenas com os
círculos, já que é uma violência considerada mais
invisível
que as outras, mas tão comum
quanto. É mais
invisível
porque, normalmente, quem sofre essa violência tem medo de expor a
sua história: os adolescentes, e as pessoas de um modo geral, preocupam-se muito com que os
outros vão pensar ou falar. Por isso, muitas vezes é mais fácil fingir que nada aconteceu, do
que realmente lutar pelos seus direitos enquanto adolescentes cidadãos. Infelizmente o medo e
a vergonha são ainda os grandes companheiros dessas vítimas da violência sexual.
Em nossa discussão em sala de aula, após as apresentações que envolviam a violência
sexual, ficou claro que esta violência é na maioria das vezes praticada dentro da própria casa,
e por pessoas conhecidas. Isso é teoricamente mostrado por Edson Passetti (1999) que expõe
claramente, através de dados,
A família [em] (62% dos casos) aparece como a principal violentadora
sexual contra crianças e adolescentes através de atos cometidos
principalmente contra meninas (83%). O pai é a figura principal (59%)
violentando meninos e meninas, seguido pelo padrasto (25%). Nos
demais casos, outros adolescentes e adultos, identificados ou não, são os
responsáveis por 38% das violências sexuais (Passetti,1999:78).
Realidade esta que nos assusta, e nos faz acreditar que estas violências sexuais,
praticadas por pessoas tão próximas, além de provocar muito sofrimento, deixam marcas na
alma, feridas abertas que ainda sangram ao lembrar... E é sempre bom frisar que “
estes dados,
porém, não permitem avaliar a magnitude desta violência, considerando os traumas na vida
das vítimas, o desrespeito e a ofensa à pessoa”
(Abramovay & Rua, 2002: 251).
Em uma cena construída em sala de aula, com base num relato verídico que a aluna
contou e encenou com seu grupo para a turma, dizia que uma adolescente foi passar o fim de
semana com uma amiga, na casa de um tio dela. Chegando lá, conversaram, riram, até que o
tio começou a agir de maneira estranha, falar piadas abusivas, e se aproximar cada vez mais
das duas. Ele começou a tocar no corpo delas, e de repente começou a bater dizendo que ele
queria “
comer
” as duas agora. Elas saíram correndo, desesperadas, “
deixando o tio na mão
”.
77
Bem, e o estupro como aconteceu
?”, perguntei. "
Ah! Professora
(risos),
isso todo mundo já
imagina, né?"
Bem, eles podem até imaginar, ou até mesmo saber como acontece um estupro, mas
pouco comentam, e terminaram por encenar a violência sexual de uma forma extremamente
sutil. Essa encenação pode, por um lado, revelar o quanto é difícil falar sobre esse tipo de
violência. Principalmente para as meninas, já que elas, em sua grande maioria, podem ser
consideradas
presas fáceis
, pois são
dóceis e frágeis
, enquanto os meninos são considerados
másculos e corajosos
. E, por outro lado, mostrar como estes estereótipos de feminilidade e
masculinidade são ainda difundidos na escola, e precisam ser revistos. A autora Moema
Toscano fala sobre esse papel das meninas/mulheres, onde,
A imposição de normas disciplinares distintas para uns e para outros
confirma a idéia, segundo a qual meninos são “naturalmente” mais
rebeldes, mais irrequietos e mais agitados que as meninas. Estas, por sua
vez, são induzidas a um comportamento dócil, submisso, pois é assim que
se espera sejam as mulheres, jovens ou adultas. Em tal perspectiva, o
processo de “domesticação” deve iniciar-se o mais cedo possível e as
professoras têm um importante contributo a dar, nesta tarefa (Toscano,
2000:26-27).
Concordo com a autora que as professoras e a escola de um modo geral tem um papel
muito importante na vida dessas meninas adolescentes, mas não incitando a domesticação e
sim lutando contra ela. Mostrando que elas têm seus direitos e que qualquer violação deles,
deve ser denunciada e a escola pode fazer essa ponte com a justiça. Se não fizermos nada para
quebrar esses padrões machistas de comportamento, continuaremos tendo cada vez mais
violências sexuais, não só com meninas e nem só dentro de casa, mas na escola e nas ruas.
Sérgio Adorno nos afirma e confirma que
As meninas sofrem potencialmente a chamada violência doméstica, sendo
vítimas preferenciais de pessoas conhecidas: pais, padrastos, parentes,
irmãos. Quase sempre, essa violência ocorre no recinto doméstico
(Adorno, 2000:103).
Com base nesses dados, pode-se perceber que a constatação dos meus alunos pela
observação de sua própria realidade, procede. Não surpreende que o medo ronde o imaginário
feminino, até porque vivemos em um mundo onde o corpo, principalmente o da mulher, é
visto como mercadoria e até como um comércio lucrativo: há corpos para todos os gostos. A
arte-educadora Fátima Lima, refletindo sobre esse corpo feminino como mercadoria sexual,
comenta que,
78
O mais assustador é que uma das conseqüências da comercialização do
sexo é a sexualização da violência, que transforma os corpos,
principalmente os masculinos, em armas, e estas, por sua vez
transformam em vítimas outros corpos, principalmente os corpos
femininos e infantis [e os de adolescentes também]. Atentando para o fato
de que tanto a mentalidade pornográfica quanto o mercado em si, são
predominantemente masculinos (Lima, 2001:12).
Essa imagem de mulher
fácil
, de que o homem pode tudo para satisfazer os seus
desejos, é passada para os adolescentes e nós, enquanto educadores, temos que refletir de
maneira crítica sobre estas afirmações que nos são repassadas, seja por uma novela, por um
comercial de cerveja, seja em simples conversas entre amigos
machões
num
boteco
da
esquina.
Essa exposição do corpo da mulher seja ela criança, adolescente, adulta ou idosa,
desperta no imaginário masculino uma gama de desejos. Alguns desses homens, não tendo
controle sobre estes desejos, partem para uma busca egoísta do seu prazer, algumas vezes
através da violência sexual praticada contra o corpo da mulher. Como pode alguém querer se
satisfazer usando uma outra pessoa sem esta ter a mesma vontade? Com que direito alguém
violenta adolescentes, crianças ou qualquer sujeito? Onde ficam os nossos direitos de livre
escolha? Quem protege tais direitos?
Os dois primeiros tópicos da Declaração de Valência sobre os Direitos Sexuais deixam
bem claro que temos
1 - Direito à liberdade que exclui todas as formas de coerção, exploração
e abusos sexuais em qualquer momento da vida e em toda a condição. A
luta contra a violência constitui uma prioridade. A criança tem direito de
ser desejada e querida. 2- Direito à autonomia, integridade e segurança
corporal. Este direito abrange o controle e desfrute do próprio corpo, livre
de torturas, mutilações e violências de toda índole. (Declaração de
Valência, 1997: única)
Muitas histórias relacionadas aos adolescentes costumam mostrar normalmente um
quê de
conto de fadas
, divulgando a infância como se fosse um sonho, onde os adolescentes
não dão problemas aos pais, vão bem na escola, possuem uma casa e uma família estruturada.
Essas histórias têm finais felizes para todas as partes envolvidas. Porém, por um outro lado,
temos as histórias reais, que misturam a dor, o medo, as agressões. A violência sexual possui
nesse momento o aspecto de um
filme de terror
, aonde jovens são vítimas de estupros,
massacres e chacinas.
79
A realidade e a ficção normalmente se encontram no decorrer de nossas vidas. A
realidade deixa marcas e a ficção provoca sonhos. Nos sonhos, somos quase sempre felizes e
nossos direitos são respeitados. Na realidade, seres humanos desrespeitam seres humanos a
todo o momento, traindo confianças depositadas, agredindo-se fisicamente, verbalmente,
psicologicamente, socialmente.
Concluindo, quando a sexualidade é usada como uma forma de humilhar ou provocar
sofrimento no outro, está ocorrendo uma violência sexual. Este problema é mais comum do
que pensamos, e na maioria das vezes acontece entre pessoas conhecidas, ou mesmo da
família. A vítima, no caso dos adolescentes, pode ser tanto um menino quanto uma menina.
Porém, nunca é tarde para lembrar que temos o direito de escolher que tipo de carinhos
queremos receber, e nossas escolhas deveriam, no mínimo, ser respeitadas. E acredito que seja
como arte-educadores, como professores, como seres humanos, temos o dever de proteger
qualquer adolescente, criança, qualquer pessoa, dessa violência que faz a alma sangrar.
E foi com a proposta dos círculos da violência que aflorou esta realidade vivida por
estes adolescentes, que mostrou como é seu cotidiano e o quanto o mesmo é repleto dos mais
variados tipos de violência. O círculo é instrumento lúdico que desperta e traz à tona tantas
discussões e saberes da realidade.
80
Capitulo 4
Violência Simbólica: atitudes e agentes
As relações de comunicação são, de modo
inseparável, sempre, relações de poder que
dependem, na forma e no conteúdo, do poder
material ou simbólico acumulado pelos
agentes (ou pelas instituições) envolvidos
nessas relações.
Pierre Bourdieu
81
82
4-VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: ATITUDES E AGENTES
Este tipo de violência, a simbólica, foi a mais difícil de ser compreendida pelos
adolescentes, quando o ponteiro do círculo caia na categoria de violência mental, sempre
surgiam muitas dúvidas. É necessário comentar aqui a dificuldade do entendimento do termo
simbólico
pelos meus alunos. Na prática da construção dos círculos da violência, eles
denominaram tal violência como mental. É justamente essa violência mental o meu foco de
interesse nesta discussão, mas vou denominá-la a partir de agora violência simbólica, termo
mais diretamente relacionado à teoria. Enquanto esta teoria nos exige falar de símbolos, meus
alunos não identificam a palavra simbólico, que substituem por mental. Para eles, o termo
mental facilita a identificação de exemplos no exercício de pensar a sua realidade:
relacionando diretamente com este termo atitudes violentas de um com ou para o outro,
atitudes de indução a comportamentos não necessariamente desejados
a priori produzidos por
outros meios
.
Antes de propor a discussão mais específica sobre a violência simbólica, gostaria de
relembrar que os sujeitos desta pesquisa são os adolescentes e o tema que foi escolhido, por
eles e por mim, foi a violência. Estabelecido o panorama desta investigação, venho neste
capítulo fazer reflexões sobre estes adolescentes, sobre suas atitudes, sua identidade, sua
realidade e seu imaginário
.
O espaço da escola, neste contexto, apresenta-se como uma
dilatação do espaço simbólico, um espaço que deixa marcas e que causa reflexões.
Não devemos nos esquecer que estamos falando de sujeitos que carregam consigo um
marco cultural contemporâneo, demarcado pela dualidade modernidade/pós-modernidade.
Nestor Garcia Canclini defende, sobre a condição na qual todos somos envolvidos pela
modernidade, que:
As reestruturações culturais que analisamos revelam que a modernidade
não é só um espaço ou um estado no qual se entre ou do qual se emigre. É
uma condição que nos envolve, nas cidades e no campo, nas metrópoles e
nos países subdesenvolvidos. Com todas as contradições que existem
entre modernismo e modernização, e precisamente por elas, é uma
situação de trânsito interminável na qual nunca se encerra a incerteza do
que significa ser moderno (Canclini, 1997:356).
Se a modernidade nos envolve e nos enche de dúvidas a nós adultos considerados
esclarecidos, é claro que também afeta a realidade e o imaginário dos adolescentes. O
cotidiano deles é cercado por vários tipos de violência. Ao mesmo tempo, tanto praticam tais
violências, como também as sofrem.
83
A violência simbólica é o foco maior de meu interesse, já que aparentemente é o tipo
de violência mais difícil de ser percebida, sendo praticada não só nos interiores da escola, não
só pelos adolescentes, mas sim, acredito, pela sociedade de um modo geral. Já que é o tipo de
violência onde o poder esta por toda parte,
não é inútil lembrar que - sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o
dissolver, uma espécie de círculo cujo centro está em toda parte e em
parte alguma - é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver
menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido:
o poder simbólico é , com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser
exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
estão sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 2001:7-8).
As pesquisadoras Abramovay e Rua percebem também esta dificuldade de identificar
a violência simbólica, e o quanto ela é recheada de poder. Elas definem que,
A violência simbólica é mais difícil de ser percebida do que a violência
física, porque é exercida pela sociedade quando esta não é capaz de
encaminhar seus jovens ao mercado de trabalho, quando não lhes oferece
oportunidades para o desenvolvimento da criatividade e de atividades de
lazer; quando as escolas impõem conteúdos destituídos de interesse e de
significado para a vida dos alunos (Abramovay e Rua, 2002:335).
Às vezes é mais fácil e menos problemático ignorar tal violência. Mesmo percebendo
a dificuldade de identificá-la, vou me arriscar a fazê-lo e para isso usarei como conceito base
para tal discussão o que foi desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, tratando da
mídia televisiva. O autor conceitua que,
A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade
tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na
medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la
(Bourdieu, 1997:22).
Tendo o conceito definido e compreendido o quão delicado é o tema, proponho-me
então, a partir de agora, a olhar a violência simbólica sob diferentes prismas, relacionando-a
com os adolescentes e com o meio que os cerca e os influencia: a escola, a família e a mídia.
84
4.1- Instituição disciplinária e espaço escolar
A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a
técnica específica de um poder que toma
os indivíduos ao mesmo tempo como
objetos e como instrumentos de seus
exercícios.
Michel Foucault
Muitas das reflexões que seguem nesse capítulo foram discutidas com os alunos na
prática dos círculos, até porque na escola, nesse ano, toda essa modificação no espaço escolar
estava realmente acontecendo, e nós enquanto comunidade escolar, não éramos informados de
nada, apenas víamos a obra invadir nosso cotidiano.
Num primeiro momento, meu olhar volta-se para a questão da escola enquanto
instituição disciplinária e dos espaços físicos suprimidos ou modificados pela escola, ambos
enquanto agentes de violência simbólica. Essa escola, tendo como objetivo educar, acaba por
inibir a criatividade do aluno ao suprimir-lhe espaços, deixando-os cada vez mais trancados
em sala de aula. O que importa, para muitas escolas, é conservar sua imagem, ou seja, não ter
alunos perambulando pelo edifício escolar, sem preocupar-se necessária e objetivamente com
o conteúdo que o professor está lecionando. É simplesmente “importante” não deixar alunos
fora de sala de aula.
Parece-me
importante
refletir sobre o que significa estar fora de sala de aula com os
alunos, relativizar esta iniciativa, principalmente quando ela é associada com termos como
malandragem
e falta de produtividade. Vejamos, por exemplo, as aulas de Artes Cênicas (sem
considerar, sob o aspecto conceitual, as especificidades dos espaços físicos necessários à
metodologia do ensino das artes).
A maioria das escolas da rede pública, e muitas da rede particular também, ainda não
possuem sala de artes, nem espaço físico para ensaios. Como, então, ensaiar com mais ou
menos trinta e cinco alunos dentro da sala, sendo que eles são normalmente divididos em
grupos, falando de diferentes assuntos e maneiras? A solução está em ir para fora da sala,
usando o espaço da escola (enquanto eles ainda existem) para os ensaios, de maneira a não
atrapalhar
tanto os outros professores e nem o bom andamento das outras atividades
escolares.
O sair de sala de aula pode ser, às vezes, mais produtivo do que ficar dentro dela,
dependendo das características da disciplina. Porém, a noção comumente aceita é de que
espaços livres são
perigosos
e por isso tem que ser substituídos ou eliminados cada vez mais
rápido, nesta eterna expectativa de invasão do ambiente escolar. O perigo aqui remete a outras
atividades para as quais os alunos tornam-se disponíveis ao ocupar outros espaços da escola,
85
atividades nas quais, evidentemente, a administração escolar não está nem um pouco
interessada. Para a administração escolar muitas vezes o mais interessante é ter controle de
fluxo de pessoas no espaço, assim,
Determinando lugares individuais tornou-se [na nossa realidade torna-se]
possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos.
Organizou uma nova economia de tempo de aprendizagem. Fez funcionar
o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar,
de hierarquizar, de recompensar (Foucault,2000: 126).
A escola, por vezes, ignora a presença de alunos que necessitam de movimentos e
espaços diferentes de comunicação, praticando claramente uma violência simbólica, impondo
o que ela acha como melhor espaço. A educadora Guacira Louro, nos diz que,
A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma
o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui.(...) O
prédio escolar informa a todos/as sua razão de existir. Suas marcas, seus
símbolos e arranjos arquitetônicos ‘fazem sentido’, instituem múltiplos
sentidos, constituem distintos sujeitos (Louro, 1997:58).
Como se a escola se encaminhasse para tornar-se uma cadeia de segurança máxima,
onde somente podem entrar as pessoas autorizadas e onde todos os atos são vigiados, seja por
guardas ou por vigilância eletrônica:
Sorria! Você está sendo filmado!
Uma das evidências de tal vigilância é a instituição de muros e grades em muitas
escolas, onde tudo é controlado, entradas e saídas, atitudes e conversas, palavras e sussurros...
Muitas vezes atos espontâneos são trocados por reproduções ou códigos, para os adolescentes
não serem descobertos em suas reais atitudes. Michel Foucault avalia que,
Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que
não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para
vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um
controle interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela
se encontram; mas geralmente, a de uma arquitetura que seria um
operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que
abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os
efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los (Foucault,
2000:144).
Para os adolescentes na realidade escolar, é evidente que eles vivem cercado por todos
os tipos de violências, as grades e os muros até lhes agridem fisicamente, os incomodam, mas
não necessariamente lhes assustam. Até porque esse perigo é incitado pela própria mídia, em
86
seus diversos discursos e programas destinados a essa faixa etária, onde no fim eles sempre
se
dão bem, mesmo sendo maus...
Pensando nessa realidade escolar, onde muros e grades invadem o espaço cotidiano,
posso dizer que há um esquadrinhamento do espaço, uma limitação do trânsito tendendo às
vias de mão única, por artefatos que nos interceptam: são barreiras para impedir o livre fluxo
das pessoas e das comunicações (internas e externas) entre elas. Por outro lado, formatam a
vigilância das condutas corporais e verbais de quem por ali circula: parece até que as paredes
dos corredores têm ouvidos...
Esse esquadrinhamento, diria não ser só do espaço, mas também das próprias
atividades, podendo ele ser visto como representante do poder utilizado para controlar as
operações que o corpo executa, já que,
Dentro das paredes da escola, o aluno se vê regulamentado por uma nova
temporalidade, ignorada no ambiente familiar ou na rua. (...) Confinado a
um espaço fechado, mantido em um local fixo, inserido em uma rede de
vigilância mútua e de emulação, levado a seguir um horário determinado,
o aluno [diria também que o professor] é incitado ao trabalho permanente
(Petitat, 1994: 91-93).
A escola às vezes faz tantas cobranças e esquece que esse aluno e esse professor vão
para a escola também com outros objetivos além de estudar e ensinar. É necessário um
convívio social, comunicar-se, trocar experiências. Quando este aluno ou este professor chega
na escola, ele percebe que os espaços que tem para aproveitar estão cada vez mais restritos à
sala de aula, acessada por caminhos cada vez mais seletivos e únicos, que modificam mais do
que a mera arquitetura, o espaço, o trânsito. Tais atitudes podem ser consideradas agressão e
um desrespeito aos direitos dos indivíduos, atores desse espaço escolar. O psicólogo Ives de
La Taille, tem investigado o tema do desenvolvimento moral desde a década de 1980, e sobre
o respeito mútuo, nos coloca,
Não se trata de aceitar qualquer coisa, qualquer valor, qualquer conduta,
mas de construir uma relação que, como toda ética exige, implique
respeito entre as pessoas: eis a garantia para que o convívio entre pessoas
diferentes não se traduza nem em violência nem em descaso (Taille, 2002:
112).
Mas penso, se a preocupação maior é com a segurança dos alunos, não é trancando-os
numa espécie de cárcere que as coisas vão funcionar. Pois se mexe na estrutura arquitetônica
da escola, mas não se modificam as relações humanas (postura pública), nem dos
profissionais e nem dos alunos. Com isso quero dizer que os muros podem até proporcionar
87
uma certa segurança, mas não resolvem os problemas de relações, e sim os dificultam mais, já
que existem barreiras reais aos encontros. Mais: até que ponto esses muros e grades podem
proporcionar uma possível segurança com relação aos problemas de drogas e furtos, já que
tais problemas estão além dos muros da escola, num espaço externo que continua a ser
freqüentado pelos mesmos alunos, e que não deixa de existir a partir da solução interna
encontrada pela escola? Vamos colocar a tranca depois que a porta já esta arrombada?
Talvez os muros, para muitas dessas escolas, tenham simplesmente represados esses
fatores dentro delas, na medida em que a maioria destes problemas são problemas também
relacionais e não somente arquitetônicos. Nesse caso, o muro torna-se um elemento evidente
de violência simbólica, já que ele por si só faz com que comportamentos se modifiquem, que
palavras sejam suprimidas e olhares ignorados.
4.2- Mídia e violência simbólica
A televisão me deixou burro muito burro
demais
Agora todas as coisas que eu penso me
parecem iguais.
Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony
Belloto
Para os adolescentes falar da mídia é fácil, o exemplo que eles apresentavam nas
improvisações eram reproduções idênticas ao de
Malhação
10
,
por exemplo, mas refletir sobre
tais atitudes e como os mesmos são influenciados é mais complexo, requer diálogo e
consciência critica das imagens que nos são apresentadas. Foi esse o desejo que conduziu esse
capítulo.
Podemos dizer que os mais variados tipos de violência simbólica têm a participação
sistemática direta ou indireta da mídia, que expõe padrões de comportamentos ditos
corretos
para os adolescentes. Estes sujeitos são, em grande parte, seduzidos pelo jogo do
marketing,
e
muitas vezes conduzidos a agirem de forma única, a manifestarem comportamentos, atitudes e
opiniões padronizados, fazendo o possível para andarem na moda, consumindo tudo que
podem ou não, e o que também é imposto como padrão de beleza. Até porque não podemos
negar que,
10
Malhação é um programa diário da Rede Globo, voltado principalmente para os adolescentes.
88
Grandes empresas do mercado internacional e nacional, com o auxílio da
mídia, geram uma compulsiva onda de consumismo, forçando até mesmo
aqueles que não possuem renda suficiente para obterem o bem, usarem de
meios ilícitos, ilegais para sua auferição. Isto é conseqüência da vida
moderna e da ascensão dos interesses capitalistas. Um preço que vem
sendo pago, pela maioria da população, em detrimento de outros valores e
bens, como por exemplo, a vida (Veronese & Rodrigues, 2001:19).
Podemos pensar que esse imaginário dos adolescentes, entre outras coisas, é permeado
por mercadorias, produtos, desejos, regras estéticas... Fredric Jameson (1995) fala de uma
mercantilização universal
, onde a nossa imagem seja esta estética, corporal e até mesmo
financeira, fala muito de nós para os outros, às vezes mais do que pensamos, já que neste
marco cultural contemporâneo muitos fazem uma leitura do indivíduo pelo que ele aparenta
ter, ignorando que essas imagens podem ser apenas representações. Jameson afirma que,
Com essa mercantilização universal de nosso mundo objetivo, os
conhecidos relatos sobre a direção-para-o-outro do consumo habitual
contemporâneo e a sexualização de nossos objetos e atividades são
também indícios: o novo carro da moda é essencialmente uma imagem
que outras pessoas devem ter de nós, e consumimos menos a coisa em si
que sua idéia abstrata, aberta a todos os investimentos libidinais
engenhosamente reunidos para nós pela propaganda (Jameson, 1995: 12).
Esse consumo e reconhecimento são importantes para o imaginário dos adolescentes,
até por que sua identidade está em construção e é muito influenciada pelo meio externo.
Assume diferentes papéis quando é necessário, seja por conveniência ou por que essa é mais
uma das qualidades da pós-modernidade: a crise da identidade. O sociólogo Stuart Hall nos
mostra que,
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não
tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.(...). O sujeito
assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um “eu” coerente (Hall, 2003:12-13).
Se todas essas mudanças e crise de valores afetam a todos nós, é claro que também aos
adolescentes. Vivemos em uma época em que as informações nos chegam de uma forma
muito rápida, numa sociedade onde não existe nenhum ato ou objeto sem valor estético, sem
transmitir significado, e sem afetar seu significante.
A adolescência é uma fase de construção e descoberta das identidades. Acredito não
ser a identidade algo fixo, já que uma mesma pessoa pode ser "muitas", na medida em que se
posiciona frente a situações e circunstâncias diferenciadas. Identidades são construídas, e
89
definidas também em relação ao outro. Voltando as idéias de Hall, o autor percebe a
identidade numa concepção sociológica, onde,
a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito
ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é
formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
“exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade,
nessa concepção sociológica, preenche o espaço entro o “interior” e o
“exterior - entre o mundo pessoal e o mundo público (Idem: 11).
Esse mundo pessoal, interior para o adolescente, é normalmente o “seu mundo”, com
suas dúvidas e anseios. O exterior, por sua vez, é o mundo a que pertence as relações com a
família, com amigos, com tecnologias e com a mídia. Nas encenações em sala de aula, quando
os círculos apontavam para a discussão da violência simbólica, esta mesma mídia se fez
presente para refletir tal violência.
Numa cena construída em sala, um jovem rapaz trabalhava num supermercado como
demonstrador de café solúvel, que não era o Nescafé (olha a mídia presente em nossas vidas,
um comercial veiculado na televisão). As pessoas passavam por ele e não aceitavam, pois não
era Nescafé, então diziam
: "É Nescafé? Não! Então dá licença...
" O jovem rapaz começou a
se irritar e a questionar os fregueses sobre o porquê que eles não queriam, ao menos,
experimentar. No último freguês, o jovem rapaz tirou partido da sua altura, colou o freguês na
parede e fez ele provar à força o seu café. Os outros fregueses, a partir daquele momento, só
levavam o café do jovem rapaz, sem ele ao menos oferecer...
Poderíamos dizer, que esses adolescentes, entenderam ou pelo menos tentaram
compreender o poder que a mídia exerce em suas vidas, e deixaram visível que quando não se
consegue algo por bem, usa-se a força que dá resultado.
as pesquisas sobre a propaganda mostraram os meios técnicos e
científicos de que as sociedades contemporâneas dispõem no domínio da
produção e manipulação dos imaginários sociais.(...) os meios de
comunicação de massa garantem a um único emissor a possibilidade de
atingir simultaneamente uma audiência enorme, numa escala até então
desconhecida (Baczko,1985:308-313).
Fato este que comprovamos diariamente, pois vivemos em uma época em que as
informações nos chegam de uma forma muito rápida. Somos bombardeados diariamente por
produtos e promoções de todos os tipos, seja pela televisão, jornal,
outdoors
,
busdoor...
90
Muitas vezes nos perdemos em meio a tantas propagandas e produtos... Humildemente
parafraseando Eric Hobsbawn
11
, chegou a era do estereótipo.
Chamo de era do estereótipo este dia-a-dia em que, na maioria das vezes,
reproduzimos atitudes comuns sem preocupar-nos em produzir atitudes inéditas,
reproduzimos a linguagem alheia e não nos sentimos capazes de
inventar
a nossa... Caímos
com facilidade na rotina do imaginário alheio ou coletivo, pois nossa imaginação se retrai e se
constrange com o poder do que vê e do que ouve:
Em meio a uma sociedade privatizada e psicologizada, obcecada pelas
mercadorias e bombardeadas pelos slogans ideológicos dos grandes
negócios, trata-se de reacender algum sentido do inerradicável impulso na
direção da coletividade, que pode ser detectado, não importa quão vaga e
debilmente, nas mais degradadas obras da cultura de massa, tão certo
como nos clássicos do modernismo (Jameson, 1995:35)
Refletindo sobre essa citação, voltando meu olhar para os adolescentes, acredito que a
sociedade deveria proporcionar espaços de discussão para fortalecê-los enquanto indivíduos
no seu grupo. E, enquanto coletivo, para que se reconheçam percebendo e até questionando
seus valores, anseios, e constatando a importância de valorizar sua cultura local, sem tanta
preocupação com a opinião alheia. Apesar de sabermos que as identidades são construídas e
definidas também em relação ao outro, e que a opinião do outro às vezes é até mais
importante do que nossa, os adolescentes não deveriam esquecer que
“tudo são imagens, tudo
vem aos nossos olhos com a imediatez das representações culturais, quanto às quais se pode
estar bastante seguro de que dificilmente constituiriam a realidade histórica”
(
Idem: 22-23).
Para um adolescente, será mais cômodo que outras pessoas pensem por ele e resolvam
seus problemas? Como agem os adolescentes perante tantas
facilidades
? Serão estes
adolescentes sujeitos passíveis da manipulação da mídia, repetindo por aí facilmente atitudes
e palavras feitas? Serão eles manipulados por adultos que, considerando a adolescência uma
fase tão difícil de se lidar, impõem caminhos (“
Não faça teatro que não vai te levar a lugar
nenhum...”
) supondo que estes tornam esta passagem mais rápida e menos dolorosa? Mas
afinal, a quem
pertence
essa fase?
Acredito que esta fase difícil pertence tanto aos adolescentes, quanto também aos pais
destes mesmos adolescentes, que muitas vezes se vêem perdidos a tantas novidades e
11
Especificamente, me refiro ao título do livro HOBSBAWN, E. A Era dos Extremos – O Breve Século XX-
1914-1991. Tradução Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
91
dificuldades. A psicopedagoga e psicanalista Cybelle Weinberg, em seu estudo sobre a
adolescência
12
, pensa sobre essas relações entre pais e filhos, e questiona:
O que será que acontece com os pais durante a adolescência?
Adolescência do filho é claro. Eles ficam insuportáveis! Por que de
repente fica tão difícil conviver com eles? Acho que o que se passa é que
tanto o filho como os pais ficam mais sensíveis nessa fase, mais
vulneráveis. E qualquer palavra pode ser entendida com um outro
sentido. Isso porque mudanças estão ocorrendo dos dois lados - mudanças
no filho e mudanças dos pais. Até aqui, todos estavam acostumados a um
certo tipo de convivência - o filho precisava dos pais e os pais sabiam
disso (Weinberg, 1999:39).
É a fase onde a maioria desses desentendimentos se resolve com um bom diálogo, mas
ambas as partes tem que ter paciência e saberem respeitar um ao outro, respeitar os limites, os
desatinos, os questionamentos, e continuarem tentando seguir em harmonia. Mas nem sempre
é tão fácil: esta fase parece para uns demorar uma eternidade, para outros nem vêem passar...
A vida é diferente para cada um mesmo.
A mídia é também muito perigosa no que diz respeito às articulações de idéias e ao
mostrar o assunto que mais interessa no momento, ou o que mais choca, o que mais vai
provocar polêmica: as mídias, e os que as sustentam, adoram estar na
boca do povo
. Em um
dos estudos feitos na Universidade Federal de Santa Catarina
13
,
Observa-se, sobretudo na mídia, matérias que têm atribuído aos
adolescentes o aumento da criminalidade. Tais dados contribuem para a
formação de uma imagem estereotipada de jovens violentos e
“delinqüentes”, dos quais a sociedade deve se proteger. A realidade,
porém, desmente estes fatos, pois os adolescentes não se caracterizam por
serem mais propensos ao cometimento de ações violentas ou por
possuírem menor controle de suas atitudes do que os adultos (Veronese,
Souza e Mioto, 2001:5).
Percebe-se que alguns discursos são preparados para causarem certas reações nos
telespectadores, discurso na maioria das vezes muito bem pensados e articulados por quem
diz entender do assunto. Bourdieu acrescenta essa reflexão, dizendo que,
O princípio da seleção é a busca do sensacional, do espetacular. A
televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em
imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o
12
Estudo realizado no livro Porque estou assim? Os momentos difíceis da adolescência, que conta situações que
a autora vivenciou como orientadora e no seu consultório.
13
Estudo feito por professores e pesquisadores do Núcleo de Estudos Jurídicos-Sociais da Criança e do
Adolescente NEJUSCA, do Departamento de Direito/ Centro de Ciências Jurídicas e do Núcleo de Estudos da
Criança; do adolescente e da família- NECAD, do Departamento de Serviço Social/ Centro Sócio Econômico.
92
caráter dramático, trágico. Em relação aos subúrbios, o que interessará
são as rebeliões. Que palavra grandiloqüente ... (Faz-se o mesmo trabalho
com as palavras. Com palavras comuns, não se “faz cair o queixo do
burguês”, nem do “povo”.é preciso palavras extraordinárias. De fato,
paradoxalmente, o mundo da imagem é dominado pelas palavras)
(Bourdieu, 1997: 25-26).
Acredito que na adolescência, uma das partes mais difíceis de lidar diz respeito à
violência simbólica, nem sempre percebida claramente: eles próprios não se dão conta de que
já estão no meio do jogo, e já existem
“ regras tácitas desse jogo que vai ser jogado, tendo
cada um dos universos em que circula o discurso uma estrutura tal que certas coisas podem
ser ditas e outras não”
(Idem: 49). Esse jogo é descrito freqüentemente pela mídia como feito
de verdades e mentiras, e com estas verdades e mentiras povoa o imaginário adolescente. Um
mundo onde, se o adolescente se comportar
bem
, terá um final feliz... Será?
Não que a mídia não deva acenar com um final feliz, dar esperança ou mostrar um
caminho. O problema está em que o discurso da mídia e do mercado afirma categoricamente,
ao invés de sugerir.
Não se pode negar que hoje a TV consiste num fenômeno social, que
permite informação e lazer. De igual modo, não se pode negar que este
meio de comunicação integra a grande maioria das casas, lançando e
comercializando modismos, concepções e comportamentos. No entanto,
constatamos de nossa parte diante da TV uma atitude passiva, que
obscurece nossa capacidade crítico-reflexiva. Outra questão preocupante é
sua tendência a universalizar uma grotesca cultura que nos esvazia, que
aniquila nossos mais preciosos valores, que nos desautoriza enquanto
seres humanos, que não somente banaliza a violência, mas suscita a sua
reprodução (Veronese,1998:22).
O adolescente deveria ter a possibilidade de absorver o discurso ou não, ser
consciente dos fatos como uma leitura filtrada de algo que talvez se chame realidade. Eles
deveriam tentar desenvolver a possibilidade de opinar e de expor as suas metas. Construir a
sua existência própria no mundo, deixar marcas na vida do outro. E perceber que, se existe um
futuro, deveria ser imaginado por ele mesmo, para assim projetar, pelo menos em parte, a sua
construção.
Porém, muitos adolescentes nem percebem que essa exclusão, esse sentir-se diferente,
também pode fazer parte de um jogo de poder.
As meninas adolescentes, por exemplo, como alvo dessa estratégia de poder, tem seu
corpo tornado objeto de desejo, com medidas
exatas
, seu rosto símbolo da perfeição. A mídia
televisiva é a que mais participa ativamente da depreciação da imagem feminina, com cenas
93
em que aparecem corpos nus (ou quase), como uma de suas atrações principais. Muitas das
meninas adolescentes que são modelos tem 13, 14 anos, e vendem a imagem do corpo
adolescente para o espectador adulto.
A depreciação do corpo está ligada a uma permissividade abusiva da nudez feminina,
em programas apelativos e pornográficos. Há quem considere um avanço no imaginário essa
permissividade em relação à mulher, é como se fosse uma conquista, como fosse uma marca
para se livrar do machismo. Não será o contrário?
No ponto em que chegamos de nossa reflexão é preciso discutir a forma
nova da sexualidade liberada, vendida pelo capitalismo na sua forma
consumista atual. Os homens, detendo a hegemonia da produção da vida,
trabalham de maneira dupla com a sexualidade: numa cultura com sérios
problemas de repressão, a sexualidade aberta é forte atrativo de consumo
e de sublimação da frustração existencial; além disso, a nova imagem que
se vende da mulher, com uma sensualidade estereotipada, embora
aparente ser a liberação e o louvor do corpo, não é nada mais do que uma
estratégia do capital para submeter o corpo de uma nova forma, talvez até
mais cruel que a religiosa (Nunes, 1997:125).
Mas, avanço ou atraso, o que acaba gerando é um controle dos corpos adolescentes, e
conseqüentemente de suas vidas, vigiadas e autovigiadas diariamente, escravas do próprio
corpo como suporte de padrões midiáticos de beleza. O corpo é quem recebe o castigo, ele
que tem que malhar para ficar em forma, não pode correr para não cair, não pode pegar sol
para não ganhar sardas... Isso não seria um controle dos passos do adolescente? Foucault nos
acrescenta que,
ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo
quando utilizam métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do
corpo que se trata - do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade
delas, de sua repartição e de sua submissão (Foucault, 2000:25).
Poderíamos quem sabe dizer, que muitos dos adolescentes criam uma auto-imagem
estereotipada, influenciados por uma série de valores, já comentados. Valores estes que
cercam seu imaginário... Mas como seria este possível imaginário? Não podemos e nem
pretendemos afirmar como ele é, mas sim pinçar tais possibilidades.
Um imaginário que se divide entre a “
linguagem tirana e sem graça
” que a maioria
dos adultos defendem versus a linguagem cotidiana, que é a usada pela maioria dos
adolescentes, e que é bem mais “
maneira”...
Uma identificação com a violência ficcional,
tentando transformá-la ou adaptá-la para a vida "
real
", onde muitos seguem exemplos dos
seus ídolos, e tem como livro de cabeceira o
rap
dos Racionais... São envolvidos por um
94
discurso que lhes acena um final feliz, enquanto que muitos deles nem tem onde dormir. Uns
brigam porque tem tudo de mão beijada, e quando não conseguem algo se revoltam, outros se
revoltam porque não têm nada, e querem ter, fazendo muitas coisas para isso conseguir...
Não importa se esse adolescente seja branco ou negro, rico ou pobre, o importante é
que ele seja valorizado enquanto sujeito, que tem seus anseios, dúvidas, deveres e direitos. E
um desses direitos é ser ouvido e ter participação ativa e responsável na construção de um
futuro.
4.3- O adolescente ora agente, ora vítima
A minha alma está armada
E apontada para a cara do sossego
Pois paz sem voz
Não é paz é medo
Marcelo Yuka
Se formos pensar um dia na vida de dois adolescentes, poderíamos dizer que ambos
sofrem e praticam os mais variados tipos de violência, entre elas a simbólica. Cada pessoa
envolvida direta ou indiretamente na vida desses adolescentes tem uma parcela de
responsabilidade e/ou envolvimento: a família que muitas vezes reprime as atitudes, mas não
reserva um tempo para exercitar o diálogo; a escola, que fala de muitas coisas e às vezes não
acrescenta nada, a mídia ditando regras; e o estado, através de seus detentores de poder,
pensando que apenas restringindo a liberdade desses adolescentes, resolverá todos os
problemas de comportamento. Além dos próprios adolescentes que ora são agentes, ora são
vitimas das violências.
Gostaria agora de fazer esse paralelo, adolescente como agente/vítima da violência,
porque no nosso cotidiano as duas situações são presentes. As educadoras Abramovay e Rua,
em sua pesquisa já comentada, revelam que,
Constatou-se que muitos jovens são vítimas ou agentes da violência,
entretanto, mesmo os que não se envolveram diretamente, relataram
inúmeros casos dos quais tomaram conhecimento ou presenciaram no
espaço escolar. Esta proximidade contribui para banalizar o
comportamento violento, tornando trivial a ocorrência de furtos, roubos,
assaltos, estupros, agressões físicas, vinganças, homicídios, depredações,
entre outros. A gratuidade da violência para eles é uma realidade, e o
medo é comum em suas falas (Abramovay e Rua,2002: 294,295).
A escola aqui deve ser mediadora do diálogo, e não simplesmente escolher uma briga
e dela promover um discurso autoritário e repressor, onde de novo o poder de um domina o
95
outro. Trazer para esses adolescentes dados da realidade brasileira, explicar as conseqüências
que uma briga grave pode trazer para suas vidas.
O Estado por sua vez,
ao mesmo tempo que no discurso invoca pela proteção e tratamento,
junto a esses indivíduos, joga-os ao esquecimento, depositando os
adolescentes autores de ato infracional nas “mini penitenciárias”, quando
deveriam ser internados, em estabelecimentos sócio-educativos. Na
prática, há a adoção de metodologias tradicionais, difundidas nos
sistemas carcerários, em total declínio. Dessa maneira, trata, de igual
modo ou até pior, os adolescentes em conflito com a lei penal e os
criminosos adultos. O que se torna uma opção perigosa, uma vez que se
atinge o efeito e não a causa, modificando-se apenas os figurantes e não o
cenário (Veronese & Rodrigues, 2001:29)
Com esse tipo de atitude também se provoca uma violência simbólica, pois o
adolescente na maioria das vezes fica jogado nesses locais – a casa, a escola, as instituições
disciplinárias - que não parecem muito diferente das ruas, com o agravante de que são mais
pessoas no controle. Infelizmente, nem ali a parte educativa e de integração se realiza de
maneira satisfatória, pois ainda fala-se em FEBEM
14
, quando na realidade essa nomenclatura
nem é mais usada legalmente, são Institutos de Internação. A própria sociedade infringe a lei,
a mídia fala em horário nobre da rebelião na FEBEM de São Paulo, o professor fala no seu
discurso, muitos policiais falam em suas
batidas
, a grande maioria da sociedade ainda fala por
desconhecer as mudanças nas leis, pois as informações não chegam tão facilmente à todos.
Faz-se necessário comentar que,
“O adolescente autor de ato infracional não é o
mesmo que adolescente infrator, pois isto implica que a ação de um momento, o rotularia
para o resto da vida.”
(Idem: 35). Que uma atitude não seja o passaporte para o declínio.
Na escola lidamos com adolescentes agentes de violências, não podemos negar isso,
principalmente a violência verbal, pois muitos de nós professores somos insultados
diariamente, e muitos também agredidos. Enquanto educadores devemos proporcionar
diálogos que questionem as situações as quais vivenciamos, do papel da sociedade na
formação desses adolescentes, quais opções que ela oferece ao jovem. Mas não que sejamos
reprodutores de palavras feitas, ou seja, só porque é adolescente, e muitas vezes pobre, vai
virar um
pivete
, um adolescente infrator.
Momentos de crises e desabafos são comuns, o importante é que uma ocasião de raiva
explícita, por exemplo, marque o futuro desse adolescente, tirando dele suas perspectivas,
pois eles gritam por atenção, e acredito não podemos mais fingir não escutá-los. Acredito
14
FEBEM- Fundação do Bem Estar do Menor.
96
também que o envolvimento de todas as partes presentes na vida desses adolescentes seja
necessário para a mudança desse cenário, e que a arte seja um dos apoios pedagógicos,
incutida no projeto trabalhar as matérias transversais.
A estratégia dos círculos da violência, por um lado, proporcionaram aos adolescentes
participantes do processo uma reflexão sobre suas atitudes e situações, através das vivências
teatrais e dos debates realizados durante o processo. Mas por outro lado, uma iniciativa
isolada dentro da própria escola, não dá conta de contemplar toda a comunidade escolar. Para
quem vivenciou o processo muitas marcas ficaram, mas para quem nem soube de sua
existência, a opinião pública sobre adolescente e violência prevalece.
97
Capitulo 5
Considerações Finais
Ser autor significa dizer a própria palavra,
cunhar nela sua marca pessoal e marcar-se a
si e aos outros pela palavra dita, gritada,
sonhada, grafada... Ser autor significa
produzir com e para o outro.
Sônia Kramer
98
99
5-CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho tentei apresentar um processo, que continua e vive em movimento,
pois fala de sujeitos, e não quero agora precisar chegar num ponto final, ao fechar das
cortinas. Quero continuar esse percurso, por vezes prazeroso, por vezes árduo, pensando
através de imagens. Imagens que apareceram no decorrer do processo, imagens que me
deparei nas ruas, nas escolas, nos mais variados tipos de rostos e lugares. Imagens que quem
sabe afloraram do meu
museu imaginário,
usando aqui as idéias de André Malraux. Imagens
que deixaram marcas, lembranças...
Gostaria de começar pela imagem da escola e de como nós arte educadores, somos
vistos ainda por muitos de nossos colegas, ou seja, como típicos
matadores
de aula. Mais a
medida em que vamos mostrando nossa verdadeira metodologia de trabalho e os seus
resultados, a cara dessa imagem vai se desmanchando e se transformando para quem a vê. A
maioria das escolas hoje deixa as portas abertas para a arte, procuram profissionais
qualificados, dando valor a mais essa disciplina, que não é qualquer uma, pois ela toca nos
sujeitos e tem nome próprio: Artes. Seja artes cênicas, música, artes plásticas, dança, desenho,
é arte, e como tal deve ter seu valor reconhecido, ao começar pelas escolas e por nossos
colegas, distintos educadores que começam a perceber que a escola está para além do apenas
estudar e ensinar.
Agora me vem a imagem do círculo concêntrico, mas especificamente a dos círculos
da violência. Uma imagem circular, feita de papel duplex, unida por um pino e colorida com
lápis de cor. Uma estratégia vivenciada em um
workshop
na universidade, meses antes da
formatura, a qual me sensibilizou e me fez acreditar que ela seria apropriada para propor aos
alunos. Essa foi à estratégia por mim utilizada, que me proporcionou tantas descobertas do
seu potencial, que até então era mais teórico do que prático. Uma estratégia que faz com que
nos envolvamos de forma lúdica, mas que nos permite falar de assuntos
sérios
. Entre eles a
violência.
Assunto este tão delicado, que foi trabalhado, discutido, encenado, refeito, refletido
com os adolescentes. Ah! Os adolescentes! Sujeitos estes que estão em fase de construção de
identidade, de idéias, de grupo e que passam por diversas crises. Crises que afetam tanto a
eles, quanto quem está ao seu redor. Muitas vezes confesso, que é difícil lhes entender. Mas,
estes sujeitos me ensinaram muitas coisas, além de aprender a falar uma linguagem mais
maneira
, de ficar mais
light
em relação aos problemas do dia a dia, despertaram minha
vontade de lhes escutar e de assim observar cada sujeito, com suas particularidades e desejos.
100
Com suas histórias conseguiram arrancar de mim muitos risos, e também me fazer chorar por
dentro, ao imaginar, como muitos deles vivem nas mais variadas situações econômicas,
familiares, sociais. E como sofrem com ações de violência, mas sem esquecer que também a
praticam.
No decorrer do processo muitas imagens me marcaram, entre elas a de uma aluna que
relatou o seu sofrimento ao passar por uma tentativa de estupro, mostrou com o seu grupo
cenicamente o fato. Essa imagem deixou meus olhos assustados, principalmente ao perceber
que uma menina de 12 anos já tinha passado por essa situação. Mas pensei: -quantas já
não sofreram e sofrem caladas a dor da violência sexual? Com essa imagem da aluna, eu me
achei, como educadora, no direito de alertá-las e alertá-los dos direitos que eles tem como
adolescentes, explicando-lhes que o bom carinho é aquele que você quer receber.
Uma imagem que reflete a violência simbólica, e que me vem a memória agora, é a
história do
Nescafé
, onde o maior aluno da sala, pegou o menor e o forçou a experimentar o
seu café, que não era
Nescafé
. Com muito bom humor, eles conseguiram perceber este tão
difícil tipo de violência, que os envolve diariamente. Mas o não se encaixar nos padrões, além
de requerer um certo distanciamento, nem sempre é fácil, principalmente na adolescência.
As imagens que me rondam, ao pensar em violência verbal e corporal, são as brigas no
final da aula ou na hora do recreio. Digo que parece um espetáculo teatral sangrento, onde a
platéia escolhe o herói e o vilão, e por ele torce até o fim. Quando os atores se separam, a
platéia sedenta de ação pede mais. Tentei no processo dos círculos da violência, mostrar que
essa é uma realidade comum, não só às escolas, mas que só agressão e palavrão não levam a
lugar nenhum, normalmente machucam corporalmente e ferem interiormente, e que ainda o
bom diálogo, é um dos caminhos a ser buscado.
Mas é preciso que nós educadores modernos, deixemos nosso aluno se expressar, e
que a sua maneira de falar, ou seja, a sua linguagem não seja um empecilho para
estabelecermos uma boa comunicação.
Para meus alunos, companheiros de pesquisa, o que gostaria de ter conseguido nesse
trabalho, é que suas vozes fossem expressadas e que ecoassem em cada capítulo descrito aqui.
Que a investigação teatral a qual nos propomos, tenha proporcionado além de prazeres e boas
risadas, uma construção, quem sabe, de um novo olhar e de novas atitudes frente à violência.
Gostaria que esse trabalho deixasse marcas e criasse distintas imagens para quem se
propôs a ler, aceitando meu convite inicial. Que meus pares, educadores, se inspirassem na
descrição desse processo, incluindo todas as dificuldades por que se passa, e que colocassem
seus desejos de propor mudanças em prática. Que se permita discutir assuntos delicados e
101
difíceis, desde que se fortifique teoricamente. E assim, quem sabe, contribuir na construção
ideológica, social, corporal, política, educacional desses sujeitos com quem trabalhamos, os
quais são nossos parceiros, transformando essa escola que muitas vezes propõe a passividade,
invés de incentivar a criatividade.
Que deixemos nossa inspiração por vezes falar mais alto, que nos sensibilizemos com
o próximo, o escutando e o deixando se escutar. Busquemos a autoria de nossas vozes,
construindo-a em parceria com nossos co-autores. Ousemos em nosso papel de educador e
arte educador, incitando nossos alunos a pesquisa, ao diferente, ao inusitado, ao simbólico, ao
teatro. E assim, quem sabe, podermos construir discursos que toquem quem os escutar,
espaços que ao olhar façam você sonhar e imagens que permitam se transformar.
Quem sabe nossas trajetórias ainda se encontrem, para rirmos, chorarmos, ou apenas
conversar, se olhar, e ajudar um ao outro nesse percurso, tão cheio de pedras, mais também
cheio de esperança, vida e vontade de mudar, e também repleto de arte, teatro.
102
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WEINBERG, Cybelle. Por que estou assim? Os momentos difíceis da adolescência. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
107
7-Anexos
Segue em anexos trechos de alguns dos diários de bordo dos alunos.
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109
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112
113
114
115
Livros Grátis
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