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CLAUDIA CRISTINA MAIA
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Letras – Estudos Literários – da Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte
dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em
Estudos Literários – Literatura Brasileira, elaborada sob
orientação da Profa. Dra. Lyslei de Souza Nascimento.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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Dissertação intitulada Paisagem na neblina: Os sinos da agonia, de Autran
Dourado, de autoria de CLAUDIA CRISTINA MAIA, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________________________
Profa. Dra. Lyslei Nascimento – FALE/UFMG
Orientadora
_______________________________________________________
Profa. Dra. Mariângela de Andrade Paraizo – UFMG
_______________________________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques – UFMG
Profa. Dra. Ana Maria Clark Peres
Coordenadora do Programa de Pós-Gradução em Letras -
Estudos Literários – UFMG
Belo Horizonte, 19 de março de 2008.
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Para Claudia Braga
Aos meus pais, com amor.
À pequena Luísa – meus olhos,
nossa poesia.
AGRADECIMENTOS
A Lyslei Nascimento, modelo de seriedade no trabalho intelectual, pela
orientação apaixonada, paciente, exemplar. Pelos muitos e preciosos
ensinamentos.
Ao Núcleo de Estudos Judaicos da Universidade Federal de Minas Gerais, que
me recebeu com carinho.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro da Universidade Federal
de São João del-Rei, pelas primeiras e valiosas experiências.
Aos professores do mestrado, especialmente à Profª. Constância Lima Duarte.
À sábia e carinhosa companhia da Profª. Beatriz Vaz Leão.
Aos meus irmãos e familiares. A Paulinha, em especial, sempre generosa.
A tia Naná, mais uma vez, pelo afeto com que acompanha minha formação.
A Cinara Maia de Sá, pelo valioso presente.
Aos amigos, “de rua e de mesmo teto”. Às minhas “sete flores”. A Cristia,
Rosário e Vívien, pelas contribuições. A Elaine Martins, cúmplice de
descobertas, leitora imprescindível.
Ao CNPq, pela concessão da bolsa de estudos.
RESUMO
Estudo de Os sinos da agonia, de Autran Dourado, atentando-se para o caráter de
palco e teatro da cidade encenada no romance, com exame das características
dramáticas da arte barroca, que se traduzem na arquitetura e nos “espetáculos”
políticos e religiosos da Vila Rica ficcionalizada, e também no modo de narrar
do escritor mineiro. Nesse theatrum mundi, a bruma que envolve a cidade
barroca é considerada elemento velador/desvelador da paisagem e também,
emblematicamente, da rede intertextual construída no romance. Como as
cortinas do teatro, a bruma se desfaz para a hora do espetáculo. O sino, outro
elemento característico da cidade barroca, imprime um tom trágico e dramático
à história de dor e paixão ali encenada. As cidades invisíveis de Italo Calvino,
Irene e Sofrônia, são tomadas como contraponto para a reflexão do caráter de
visibilidade e teatralidade da cidade de Vila Rica.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................09
1 O CENÁRIO BARROCO DA CIDADE: ESPAÇO E REPRESENTAÇÃO ....................14
1.1 A cidade barroca ........................................................................................................14
1.2 Uma contextualização histórica do barroco em Minas Gerais ............................25
1.3 A cidade barroca de Os sinos da agonia ...................................................................39
2 O TEATRO DO PODER .......................................................................................................59
2.1 Lendo imagens barrocas ...........................................................................................65
2.2 O teatro do mundo em Os sinos da agonia...............................................................69
3 PAISAGEM NA NEBLINA................................................................................................100
3.1 Na cidade, sinos e sinais .........................................................................................105
3.2 Retomada e repetição do barroco em Os sinos da agonia.....................................112
CONCLUSÃO.........................................................................................................................140
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................144
Ya sé que si para ser
el hombre elección tuviera,
ninguno el papel quisiera
del sentir y padecer;
todos quisieran hacer
el de mandar y regir,
sin mirar, sin advertir
que en acto tan singular
aquello es representar
aunque piense que es vivir.
Calderón de la Barca
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
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INTRODUÇÃO
Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que
vê, uma figuração, uma história diferente.
Autran Dourado
O romance Os sinos da agonia, de Autran Dourado, é a décima segunda
obra da vasta produção do escritor mineiro, iniciada em 1947, com a novela
Teia. Publicado em 1974, o romance tem como cenário a histórica cidade de Vila
Rica, palco de desmandos e castigos políticos nas Minas do século XVIII. Esta
dissertação pretende refletir sobre o estatuto de palco e teatro impresso à cidade
ficcionalizada no romance, a partir do conceito de theatrum mundi, difundido no
período barroco e com raízes na Antigüidade.
O primeiro capítulo, “O cenário barroco da cidade: espaço e
representação”, trata de um breve histórico sobre a cidade barroca, desde suas
origens na Europa, intensamente marcada pelo capitalismo mercantilista e pelo
despotismo político. Nesse contexto, procura-se destacar as características que
mais influenciaram a cidade barroca mineira e, principalmente, a cidade de Vila
Rica.
Ainda no primeiro capítulo, é apresentada uma contextualização sobre
a história de Vila Rica e a estética barroca, inclusive no que tange a seus
aspectos visual, teatral e retórico, pressupostos utilizados para o estudo do
romance. A comunhão entre os poderes político e religioso na colônia parece ter
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contribuído, como nas cidades barrocas européias, para o desenvolvimento do
espaço urbano, em que se procurou registrar, de forma eloqüente, toda a
riqueza e a ostentação que marcaram o período.
A bruma e os sinos, elementos que caracterizam essa cidade, são
tomados como articuladores da narrativa, abrindo, assim, a leitura do romance.
A primeira contribuiria para estabelecer um jogo entre o visível e o invisível e
os segundos, para imprimir um tom trágico e dramático à narrativa,
anunciando um espaço de teatralidade que se multiplica nos muitos palcos da
cidade, esta considerada, aqui, palco público por excelência.
No segundo capítulo, intitulado “O teatro do poder”, parte-se do
conceito de theatrum mundi, que teria permeado a literatura de grandes artistas e
escritores, a exemplo de Calderón de la Barca, Shakespeare, Machado de Assis,
entre outros, para se chegar à definição da cidade de Vila Rica como cidade-
palco. Os personagens do romance corresponderiam, assim, a diretores, atores e
espectadores de uma história de crimes e paixões. Além disso, a arquitetura e os
elementos barrocos presentes nas cerimônias civis e religiosas se inscreveriam
como cenário desse teatro.
A reflexão empreendida a partir dos textos literários daqueles autores,
somada a textos históricos e teóricos que tratam da cidade e da arte barrocas,
contribui na construção desta análise. Os estudos de Michel Foucault sobre o
suplício e o de Luiz Nazario sobre os autos-de-fé inquisitoriais fornecem
subsídios para uma reflexão sobre as práticas de castigo e punição utilizadas no
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Brasil colonial, presentes no romance a partir do espetáculo da “morte em
efígie” de um dos personagens da trama. Organizada sob a égide do
representante do poder político nas Minas e apoiada pela Igreja, a cerimônia
parece se constituir um exemplo de espetáculo para as massas.
A descrição da festa do Triunfo Eucarístico apresentada no romance, a
qual se baseou em livro de Simão Ferreira Machado, conforme declara o
próprio Autran Dourado, permite que se estabeleça uma estreita aproximação
entre as cerimônias promovidas para a punição de um condenado e aquelas de
caráter religioso, a exemplo da procissão de Corpus Christi, o que denunciaria
aquela comunhão entre os poderes político e religioso na Minas setecentista,
cuja sociedade regia-se a partir dos valores ditados por esses poderes.
O terceiro capítulo, “Paisagem na neblina”, trata, em linhas gerais, da
rede intertextual empreendida por Autran Dourado, que retoma, além de mitos
gregos, textos bíblicos e do século XVIII, constituindo-se um exemplo de
romance contemporâneo que dialoga com as obras do passado. Mais que isso,
publicado durante os anos da ditadura militar no Brasil, Os sinos da agonia, ao
abordar as arbitrariedades políticas do século XVIII, entrecruza dois tempos
históricos de repressão no país: o tempo ficcional da trama e o tempo de
enunciação do romance. O estudo de Umberto Eco sobre “repetição” e
“retomada” contribui para uma análise do caráter dessa estratégia ficcional de
Autran Dourado.
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Vale ressaltar que as correspondências entre os personagens do
romance e aqueles do mito de Fedra, considerado o “mito ordenador” dessa
rede intertextual, já haviam sido traçadas pelo escritor em Uma poética de
romance: matéria de carpintaria, e também por Angela Senra, em sua dissertação
de mestrado, Paixão e fé: Os sinos da agonia, de Autran Dourado, sendo aqui
retomadas enquanto uma revisão da fortuna crítica sobre o escritor.
Nessa rede intertextual, o romance é tomado como “variações em torno
dos grandes trágicos do passado” (assim informa a Nota dos Editores na
primeira edição do romance), trazendo, portanto, características do gênero
trágico e, particularmente, elementos das peças de Eurípides, Sêneca e Racine
que retomam o mito de Fedra. Aqui, não se atentou detalhadamente nessas
características, visto que uma discussão pormenorizada sobre o assunto foi
realizada por Reinaldo Martiniano Marques, em dissertação intitulada Os sinos
da agonia: técnica narrativa e consciência trágica na ficção de Autran Dourado.
Ainda no terceiro capítulo, retomando alguns conceitos já tratados nos
dois primeiros, procura-se mostrar que algumas características próprias da
estética barroca, impressas no cenário e no cotidiano da cidade ficcionalizada,
são retomadas pelo escritor, estando presentes, mesmo que de forma velada, no
seu modo de narrar, na sua escrita. Quanto a esse aspecto, vale salientar que o
romance não é aqui considerado “barroco” ou “neobarroco”; não se procurou
entrar nesse mérito, pretendeu-se apenas apontar alguns elementos que
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elucidariam uma possível utilização daquelas características por Autran
Dourado.
O título, “Paisagem na neblina”, é inspirado no próprio cenário da
cidade de Vila Rica, constantemente tomada pela bruma. No romance, esse
elemento constitui-se signo da cidade-palco; ele cortina e descortina o
espetáculo ali montado. Posteriormente, tomou-se conhecimento do filme
homônimo, produzido em 1988 por Theo Angelopoulos.
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1. O CENÁRIO BARROCO DA CIDADE: ESPAÇO E REPRESENTAÇÃO
A cidade se embebe como uma esponja
dessa onda que reflui das recordações e
se dilata. Sua descrição como é
atualmente deveria conter todo o seu
passado. Mas a cidade não conta o seu
passado, ela o contém como as linhas da
mão, escrito nos ângulos das ruas, nas
grades das janelas, nos corrimãos das
escadas, nas antenas dos pára-raios, nos
mastros das bandeiras, cada segmento
riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras.
Italo Calvino
1.1 A cidade barroca
Lewis Mumford, em A cidade na história,
1
alerta para o fato de que as
formas e os hábitos da cidade medieval ainda puderam ser observados nos
últimos três séculos depois de declarada a sua ruína. Para o historiador, até o
século XVII, quando a nova ordem, que veio a se chamar barroca, tornou-se
efetivamente visível, as modificações na vida urbana, advindas da nova forma
de economia, o capitalismo mercantilista, e do despotismo político, eram
confusas e titubeantes. A fase intermediária denominou-se Renascença, época
em que se procurou imprimir ao espaço urbano, trazendo de volta antigas
formas clássicas, clareza, regularidade e simplicidade, provenientes de uma
visão puramente racional. Tais características foram representadas pela “rua
1
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Trad. Neil R.
da Silva. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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reta, a ininterrupta linha horizontal de tetos, o arco redondo e a repetição de
elementos uniformes, cornijas, lintéis, janelas e colunas, na fachada”.
2
Traços das construções e do espírito renascentistas permaneceram em
muitas obras do período barroco, particularmente nas praças, chafarizes,
estátuas. Uma vez imposta a nova ordem, assentada em planos urbanos bem
mais rigorosos do que aqueles da Renascença, “a clarificação cedeu lugar à
arregimentação, a vastidão à vacuidade, a grandeza à grandiosidade”.
3
As
cidades barrocas, muitas vezes erguidas para residência da realeza ou
construídas na colônia ao molde imposto pela metrópole, eram cidades-capitais,
centros da autoridade despótica, que contribuíram para o crescimento e a
unificação do Estado. O exército e a burocracia seriam, segundo Mumford, os
dois braços do novo sistema, sustentados pela indústria e pelas finanças
capitalistas.
Na nova concepção de espaço, este se viu ordenado e contínuo,
associado ao movimento. Tal concepção se baseou em duas características
típicas do planejamento barroco – a perspectiva longa e a vista para dentro do
espaço –, as quais Mumford afirma terem sido descobertas pelo pintor. A
conquista da velocidade e o desejo de grandeza dos poderosos (desejo de tornar
grande o seu país, de atrair mais súditos, de multiplicar os impostos) também
colaboraram nessa transformação do espaço. A avenida foi um elemento
2
MUMFORD, 1998, p. 379.
3
MUMFORD, 1998, p. 381.
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fundamental para a geometrização do espaço, tão almejada no período, tendo
facilitado o movimento do tráfego e redefinido o traçado urbano de cidades já
existentes. Além da avenida, a disposição regular de edifícios e suas fachadas
simétricas deram um novo ritmo à cidade:
Na caminhada, o olhar corteja a variedade, mas, em ritmo mais
acelerado, o movimento exige repetição das unidades que se
hão de ver: somente assim é que a parte individual, à medida
que se desloca velozmente, pode ser recuperada e reconstituída.
O que seria monotonia, para uma posição fixa ou mesmo numa
procissão, torna-se um correspondente necessário ao ritmo de
andar dos cavalos rápidos.
4
Esse ritmo e o modelo de avenida reta, larga e longa realçavam as filas
regulares de soldados e a movimentação ininterrupta da marcha militar.
Apenas essa demonstração de austeridade e disciplina do exército, sem a
verdadeira prática da força, era suficiente para impingir à população o seu
intento de ordem. Um cenário urbano apropriado, portanto, era indispensável a
essa idéia de “governar apenas pela coerção”,
5
e o edifício, somado à avenida e
à praça, constituía esse cenário:
Um lugar onde se podem reunir espectadores, nas calçadas ou
nas janelas, para assistirem às evoluções, aos exercícios e às
marchas triunfais do exército – e ficarem devidamente
atemorizados e intimidados. As construções erguem-se a cada
um dos lados, rígidas e uniformes, com soldados em posição de
sentido: os soldados uniformizados marcham pela avenida
4
MUMFORD, 1998, p. 400.
5
MUMFORD, 1998, p. 401.
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afora, eretos, formalizados, repetitivos: uma construção clássica
em movimento. O espectador permanece fixo.
6
Nesse contexto, sobressaía o estilo de vida palaciano, com seu gosto por
luxo e luxúria, pelas novidades e sensações, pelo visual e pela exibição,
influenciando todo o cotidiano da cidade. Foi nesse período que, na Europa,
ganharam especial atenção os jardins, os museus, os parques reais e os jardins
zoológicos. O teatro, patrocinado pela aristocracia, ganhou uma nova forma, em
que os espectadores sentavam-se conforme a hierarquia.
7
Dentro das
residências, mais especificamente as das classes abastadas, a influência da corte
também se fez presente: houve um aprimoramento dos costumes e o
crescimento da intimidade dentro da casa. Os cômodos se multiplicaram, cada
um com uma função específica, e o mobiliário tornou-se requintado, muitas
vezes formado por peças inúteis que contribuíam para o brilho e a ostentação
da casa.
O plano barroco de cidade contemplava a praça central e aberta,
rodeada de edifícios que flanqueavam monumentos, e as avenidas e ruas em
linha reta que dela irradiavam. Apoiado na chamada planta de asterisco, ou
tabuleiro de damas, era um plano que almejava o desfile ou o espetáculo do
poder político centralizado e das instituições que o sustentavam. Segundo
Mumford, esse plano representava a conquista militar do espaço. A ordem
6
MUMFORD, 1998, p. 402.
7
MUMFORD, 1998, p. 410.
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geométrica que lhe foi dada contribuiu para isso. Tal ordem, em termos
urbanos, pretendia esclarecer e orientar, o que conduzia ao “anseio de ver e
acreditar” e, conseqüentemente, à “regra de olhar e obedecer”, de que trata
Richard Sennett.
8
Para Angel Rama, foi a América o lugar propício para a concretização
do sonho de ordem manifestado pela cultura do barroco e do qual a cidade foi
símbolo maior.
9
Com o intuito de criar cidades que tivessem duração secular, as
monarquias absolutas dos Estados europeus, apoiadas pela Igreja, impuseram
aqui um desenho urbanístico preconcebido em diagramas gráficos, os quais
representavam, simbolicamente, a vontade dos construtores. As cidades
americanas, portanto, segundo Rama, foram determinadas desde suas origens a
uma “dupla vida”: aquela correspondente à “ordem física” e uma outra que
está acima dessa, a da “ordem dos signos”,
10
que sustentava o sonho da
racionalidade.
O crítico e historiador Giulio Argan, já no prefácio de seus ensaios sobre
o barroco, organizados em Imagem e Persuasão,
11
aponta a “politicidade” como a
característica intrínseca à arte barroca que teria auxiliado no importante papel
que ela desempenhou na construção da cidade, “não apenas na sua estável
8
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão
Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 94.
9
RAMA, Angel. A cidade das letras. Trad. Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1985.
10
RAMA, 1985, p. 32.
11
ARGAN, Giulio. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Org. Bruno Contardi. Trad. Maurício
Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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figura arquitetônica, mas no efêmero das festas, das cerimônias, dos
espetáculos”.
12
Para Argan, no século XVII, influenciada pelo barroco, “a cidade
não era mais o município fechado no círculo das muralhas, mas a capital, o
centro do Estado, a imagem da sua autoridade carismática”.
13
A cidade torna-
se, assim, um espaço propício para as manifestações de uma arte que era
“artifício e calculada retórica” e que se valia da persuasão e da propaganda
para alcançar um fim prático, político e religioso.
14
Para refletir sobre a politicidade da arte barroca, Argan parte da
premissa de que o pensamento aristotélico teria influenciado a concepção da
arte no período, premissa essa também sugerida por outros teóricos.
15
Nesse
contexto, a obra de arte é tomada como um discurso, do tipo demonstrativo,
que tem por fim elogiar ou censurar, tomando como referência o belo ou o feio.
Aqui, o artista procura suscitar reações sentimentais no espectador que, por sua
vez, estaria disposto a ser persuadido e a maravilhar-se com o que vê. Essa arte-
discurso não passaria, portanto, de um método, uma técnica da persuasão, que
“questiona, e com uma frieza quase científica, a alma humana e elabora todos os
meios que possam servir para despertar suas reações”;
16
uma arte para sedução
e convencimento do outro.
12
ARGAN, 2004, p. 09.
13
ARGAN, 2004, p. 09.
14
ARGAN, 2004, p. 07.
15
Segundo Argan, Denis Mahon e Spingarn, partindo da Poética, e Giovan Pietro Bellori, que se refere
às obras retóricas de Cícero e à Retórica de Aristóteles.
16
ARGAN, 2004, p. 35-36.
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O que a arte barroca pretenderia, portanto, segundo esse ponto de vista,
é tocar e comover o mundo afetivo do espectador, partindo do princípio,
tratado na Retórica,
17
de que o verossímil tem o mesmo efeito que o verdadeiro
para fins de persuasão. Para Argan, o barroco conjuga duas técnicas: “a técnica
da espontaneidade da apresentação” e a “técnica da invenção artificiosa dos
argumentos”;
18
e, como um discurso demonstrativo, vale-se daquela que é a
forma que melhor se presta a esse tipo de discurso: a amplificação, que consiste
em revestir os fatos, já aceitos, de grandeza e beleza. É o que se pode
caracterizar como o “exagero” do barroco.
Aristóteles, ao definir a Retórica, afirma que a sua função não é
persuadir, mas discernir os meios capazes de viabilizar a persuasão. Argan
encontra nessa afirmação a chave para a sua interpretação da arte barroca. Para
ele, essa arte foi utilizada, sim, pela Igreja católica, justamente pelo seu caráter
persuasivo, para difundir princípios morais e religiosos, mas não deve ser
reduzida a essa função. Também teria sido utilizada como meio para que o
artista exercesse, pura e simplesmente, a persuasão, a partir de uma apreciação
das propensões do público, essa a matéria da Retórica.
Para Argan, além dessa característica de persuadir simplesmente pelo
exercício retórico, o que reveste a arte barroca de um caráter persuasivo, mais
17
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, 1960.
18
ARGAN, 2004, p. 36.
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21
do que a ideologia religiosa pautada nos objetivos da Contra-Reforma, é a
influência do modo de vida social burguês no Estado monárquico: “a arte
barroca é certamente a que pela primeira vez se deu conta daquilo que na
Retórica é definido como ‘o destino diverso dos Estados’; e, assim como acontece
na oração, ela se dirige ora às classes mais cultas, ora às mais humildes, sem por
isso baixar de tom”.
19
Os mais diferentes afetos são despertados e o barroco
passa a criar o cenário das relações sociais na época, exaltando os ideais
religiosos, morais e políticos.
No período barroco, o espaço da cidade torna-se, pois, um espaço
pensado para abrigar o centro do poder, em cujo traçado se estabelece uma
comunicação contínua. Os elementos base do arranjo urbanístico, como se viu,
passam a ser a rua e a praça. Para Mikkail Bakhtin,
20
a praça pública é
considerada o cronotopo real.
21
Estendida ao período barroco, a avaliação do
crítico reafirma o papel exercido pela praça no traçado urbano da cidade.
Segundo Bakhtin,
[...] a praça da Antigüidade clássica era o próprio Estado (ou
seja, o Estado, e todos os seus órgãos), a corte suprema, toda a
ciência, toda a arte, e ligado a ela, todo o povo. Cronotopo
19
ARGAN, 2004, p. 38.
20
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp,
Hucitec, 1988.
21
Cronotopo: Categoria coteudístico-formal utilizada por Bakhtin para as definições espaço-temporais
que se estendem às obras literárias. Composto pelas palavras gregas cronos (tempo) e topos (lugar), o
termo, fundamentado na teoria da relatividade, de Einstein, e utilizado nas ciências matemáticas,
pretende enfatizar a indissociabilidade desses dois elementos na literatura. Para Bakhtin, pode haver o
“cronotopo artístico” de uma obra literária, de um autor ou de um gênero. Como exemplo, citam-se os
cronotopos do encontro, da estrada, do castelo, da praça pública.
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extraordinário, onde todas as instâncias superiores, desde o
Estado até a verdade, eram representadas e personificadas
concretamente, estavam visivelmente presentes. E nesse
cronotopo concreto, que parece englobar tudo, realizava-se a
exposição e a recapitulação de toda a vida do cidadão, efetuava-
se a sua avaliação público-civil.
22
Se o fundamento da arte como persuasão é a verossimilhança, esta se
mostrará, na arquitetura do período barroco, estreitamente vinculada ao
programa da Igreja católica, que incluía, como sustentáculo para o seu
propósito de “proteção e propagação da fé”,
23
a construção de muitas igrejas, as
quais se transformam, na nova concepção de cidade, em núcleos do traçado
urbano. No contexto da arquitetura, a persuasão implica a “transformação de
um sistema formal fechado em um sistema formal aberto; o que corresponde,
em termos de ‘retórica’, à passagem da demonstração à argumentação, ao
discurso”.
24
A igreja, já não mais um edifício isolado, mas próxima às casas e ruas –
sem deixar de se distinguir monumentalmente –, manifesta por meio de suas
fachadas um convite a entrar e participar do ambiente sagrado. É pela fachada
que se estabelece a ligação entre o espaço fechado e obscurecido da igreja e o
espaço aberto e luminoso da rua. O que se deve ressaltar, nesse momento, é a
concepção de espaço que norteia as relações sociais: o espaço não é mais
22
BAKHTIN, 1988, p. 251-252.
23
ARGAN, 2004, p. 40.
24
ARGAN, 2004, p. 44.
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23
“natureza”, como no Renascimento, mas “ambiente”, o ambiente da cidade, de
acordo com Argan:
[...] nesse caso o agente da persuasão é o espaço como ambiente;
e a finalidade é persuadir a estar-em, a viver segundo a ordem
do próprio ambiente, isto é, segundo os valores ideológicos dos
quais a cidade quer ser a expressão visível e “monumental”.
Nesse sentido mais amplo, pode-se dizer que o escopo é aquele
que Pascal aponta como verdadeiro e último fim dos processos
persuasivos ou retóricos: persuadir a ser persuadido ou a
deixar-se persuadir, ou seja, desenvolver o hábito do discurso,
do diálogo, da comunicação humana.
25
A hipótese do crítico italiano se funda numa interpretação
“positivamente civil da arte barroca”, em que a retórica é “entendida no seu
sentido originário de método ou mecânica da vida social e política”,
26
tendo ela
influenciado inclusive as relações sociais próprias do espaço urbano. Daí o
termo “politicidade”.
Esse caráter político de que se revestiu a arte e a cidade barrocas se
desdobra em outro, no caráter espetacular e teatral, que aponta para a noção de
theatrum mundi, idéia que será explorada adiante, no segundo capítulo desta
dissertação. Segundo Richard Sennett, a noção de teatralidade do mundo está
intimamente ligada à propensão que se tinha para crer nas aparências, essência
do teatro. Para o crítico,
25
ARGAN, 2004, p. 44-45.
26
ARGAN, 2004, p. 39.
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24
O teatrum mundi compunha-se de vários elementos: cenas que
reproduziam os gestos da autoridade, atores que atuavam no
limiar entre a ilusão e a realidade, ações baseadas na linguagem
silenciosa do corpo que caracteriza a pantomima. O significado
de tudo isso era imediato e direto.
27
Na cidade barroca, essa perspectiva teatral pode ser, por exemplo,
especialmente percebida na reunião das diversas artes num único espaço, como
nas igrejas. À arquitetura imponente, somam-se a pintura e a escultura,
compondo uma cenografia caprichada que conduzia à ilusão. Podemos ainda
enumerar como características que ressaltam o aspecto de teatralidade dessa
arte: a mudança de perspectiva em relação à pintura renascentista, passando-se
a considerar que o mundo está lá fora e que o quadro traz apenas um pedaço
desse espaço; as pinturas dos tetos das igrejas e seu aspecto esfuziante e de
movimento; a dramaticidade facial, as dobras no panejamento e a policromia
das esculturas, além da especial atenção dada ao contraste de luzes e sombras e
ao claro-escuro.
O estatuto de palco conferido ao espaço da cidade, portanto, é
reafirmado pelo caráter teatral e de movimento da arte barroca, que ganhou
feições especiais em Minas Gerais, maior expoente dessa arte no Brasil.
Conhecido como instrumento do exibicionismo absolutista e utilizado para os
propósitos da Igreja católica, o barroco, segundo Helmut Hatzfeld, é marcado
por um “transcendentalismo paradoxal que tem relação com o tempo e com o
27
SENNETT, 2003, p. 92.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
25
espaço”,
28
visível na arquitetura do período e nas principais celebrações
litúrgicas, que assumiam um aspecto de espetáculo como para suscitar uma
visão da glória celestial e do poder da Igreja.
Tais características foram marcantes no barroco mineiro, sobretudo em
Vila Rica, cidade representada em Os sinos da agonia,
29
de Autran Dourado,
objeto de estudo desta dissertação. A retomada desse cenário, em plena
ditadura brasileira, não só desloca o sentido grandioso da retórica barroca para
o plano ficcional, como também abre espaço para leituras de ordem político-
espacial, que serão contempladas neste trabalho. A fim de se efetuarem
algumas dessas possíveis leituras, apresenta-se, a seguir, uma necessária
contextualização sobre a configuração da estética barroca e sobre a história de
Vila Rica.
1.2 Uma contextualização histórica do barroco em Minas Gerais
Para Affonso Ávila, nas Minas do século XVIII havia “a preocupação do
visual, a busca deliberada da sugestão ótica, a necessidade programática de
suscitar, a partir do absoluto enlevo dos olhos, o embevecimento arrebatador e
total dos sentidos”.
30
Em Vila Rica, cidade em que as instituições totalitárias das
28
HATZFELD, Helmut Antony. Estudos sobre o barroco. Trad. Célia Berrettini. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2002, p. 74.
29
DOURADO, Autran. Os sinos da agonia. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1974.
30
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco II: áurea idade da áurea terra. 3. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1994, p. 185.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
26
Minas efetivamente demonstraram todo o seu poder, o visual e o teatral se
impõem como características do espaço e da vida social.
O traçado regular imposto às cidades de colonização espanhola não se
acomodou muito bem em terras brasileiras. Aqui, percebe-se uma herança do
urbanismo medieval português, que se sustentou, muitas vezes, na topografia
irregular do terreno, a exemplo de Vila Rica. Se por um lado a regularidade
pretendida pelo plano barroco não se fez presente nessa cidade, por outro,
pode-se dizer, a ocupação entre as montanhas e o clima da região, favoráveis à
presença constante da neblina, do nevoeiro, acabou por realçar outro aspecto do
barroco, contraditório à rigorosidade matemática, o de ilusão e vertigem, de
que tratou Ferreira Gullar,
31
e que está intimamente ligado ao contraste de luzes
e sombras e ao claro-escuro, também características da arte barroca. Para o poeta
e crítico de arte, o barroco explora “os elementos da visualidade e os elementos
que fingem a realidade”,
32
a ilusão de ótica, o trompe-l’oeil, o que conduz o olhar
à vertigem e à ilusão.
A descoberta de ouro na região das Minas, em fins do século XVII, para
onde se deslocou um número de pessoas sem precedentes na colônia, foi o
impulso para a formação da cidade. Os achados auríferos deram origem,
inicialmente, a pequenos povoados, que mais tarde se reuniram com o nome de
31
GULLAR, Ferreira. Barroco: olhar e vertigem. In: NOVAES, Adauto et al. O olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
32
GULLAR, 1998, p. 221.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
27
Vila Rica. Nas primeiras décadas, esses povoados apresentavam uma
fisionomia rudimentar, característica da ocupação improvisada e um tanto
caótica, em virtude do nomadismo da exploração. Findos os depósitos de fácil
extração, que implicavam a mudança contínua de ambiente, iniciou-se o
trabalho nas catas e grupiaras, o qual contribui para a estabilidade dos arraiais e
o desenvolvimento das atividades agrícolas e comerciais.
A atividade comercial e a Igreja desempenharam importante papel na
estruturação urbana de Vila Rica. Uma vez determinado o fechamento de
estabelecimentos comerciais nos arraiais, os mesmos se concentraram apenas na
vila, favorecendo o seu desenvolvimento.
33
A Igreja, vinculada ao Estado,
funcionava como instrumento da Coroa para o planejamento e a construção das
cidades coloniais. As primeiras capelas construídas à época das bandeiras
foram consideradas marcos da colonização, já que inauguravam o lugar por
onde os bandeirantes passavam, constituindo espaços públicos que
condicionavam a vida social que ali se formava.
As igrejas destacavam-se na paisagem urbana, mesmo no início,
quando ainda eram pequenas e simples capelas, e mais tarde, verdadeiros
monumentos barrocos, em virtude de sua disposição topográfica e do adro,
tornando-se a grande marca das cidades coloniais mineiras. Até a Coroa decidir
traçar uma política para a área, era a Igreja católica que orientava o
33
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L. Dos bandeirantes aos modernistas: um estudo
histórico sobre Vila Rica. In: Oficina do Inconfidência: revista de trabalho. Ouro Preto: Museu da
Inconfidência, ano 1, n. 0, dez. 1999.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
28
desenvolvimento dos núcleos urbanos. Uma intervenção mais significativa da
Coroa foi iniciada com a decisão de elevar à categoria de vila os vários
povoados que haviam se formado na região. Os dois arraiais mais importantes,
Antônio Dias e Ouro Preto, foram reunidos para a criação de Vila Rica, em 1711.
Em 1712, ano seguinte à criação de Vila Rica, foi instituída a praça, no
Morro de Santa Quitéria, a qual ostentaria, no mesmo ano, o Pelourinho,
símbolo da autoridade e da justiça. Ao contrário do que se esperava, a praça foi
construída distante dos lugares onde já tinham sido erguidas as igrejas,
tornando-se o centro da vila. Construída para abrigar as edificações públicas, a
praça, em Vila Rica, estabeleceu-se como símbolo da força ordenadora do
Estado. Representava, assim, o lugar do poder municipal, que começara ali a
afirmar sua política colonizadora na região.
A posição das matrizes de Nossa Senhora da Conceição e do Pilar,
voltadas para direções opostas, revela a formação original independente das
duas freguesias, respectivamente, Antônio Dias e Ouro Preto. Além do
Pelourinho, na praça foi erguida também, em 1714, segundo Sylvio de
Vasconcellos,
34
a Casa da Câmara e Cadeia, também símbolo do governo e da
autoridade municipal. As residências da gente abastada, do tipo sobrado, só
apareceriam duas décadas seguintes, compondo o sólido e elegante conjunto
arquitetônico que ali se veria.
34
VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento – residências. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
29
Foi na década de 1730 que se deu em Vila Rica o início da estabilidade
de seu espaço urbano. A inquieta sociedade dos primeiros anos começava a
ganhar uma ordem, em virtude da implantação do sistema de capitação, do
tombamento da sesmaria e da festa do Triunfo Eucarístico.
35
O estabelecimento
da capitação – novo sistema de arrecadação de imposto cobrado por cabeça –,
em 1736, buscava aumentar o ganho da metrópole e estabelecer maior controle
sobre a colônia, agora mais fiscalizada pela máquina tributária e administrativa.
O tombamento da sesmaria de Vila Rica, por sua vez, em 1737, e sua
conseqüente demarcação, concluída em 1742, fixaram as fronteiras do território
urbano, acabando por instituir a nova fase de urbanização.
36
Em 1733, por ocasião da inauguração da nova matriz de Nossa Senhora
do Pilar e da solene trasladação da Eucaristia (o Divino Sacramento) para essa
igreja, anteriormente depositada na igreja de Nossa Senhora do Rosário, foi
realizada a festa do Triunfo Eucarístico, registrada, em 1734, por Simão Ferreira
Machado.
37
O grandioso cortejo utilizou-se do apelo ao visual e ao maravilhoso,
características da estética barroca, para encantar e persuadir a população, que
assistia, na ocasião, menos a uma celebração religiosa que à demonstração do
poderio da Igreja e do Estado.
35
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 42.
36
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 47.
37
Texto publicado em edição crítica e fac-similar em ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em
Minas: textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos
Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais, 1967.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
30
O Triunfo Eurarístico, de Ferreira Machado, realça o espetáculo de luxo e
a ostentação que foi a cerimônia, anunciada por arautos mascarados que saíram
às ruas, um mês antes. Para Affonso Ávila, a prévia alocutória desse texto
revela uma “preocupação em situar o acontecimento num contexto português
de religiosidade e de ação colonizadora”.
38
O crítico lembra, ainda, a idéia
difundida na época de que a descoberta do ouro nas Minas era “providência
divina, recompensa da fé”.
39
Essa idéia, que a cerimônia parece ter evidenciado
e que é manifesta na descrição feita por Ferreira Machado, afirma que “Vila
Rica, mais que esfera da opulencia, he teatro da Religião” (sic).
40
O Triunfo
Eucarístico, assim, refletiria o “comportamento devoto já inato na alma ibérica,
mas a que o espírito da Contra-Reforma imprimiu um sentido de mais viva e
colorida exterioridade”.
41
As luminárias das casas acenderam-se por seis dias consecutivos,
dando ao ambiente uma “atmosfera de ensueño”.
42
Podiam-se ver bandeiras
com a imagem de Nossa Senhora do Rosário expostas ao público. No dia do
cortejo, as ruas foram enfeitadas de arcos e as janelas, de seda e damasco.
Danças, músicas, carros exuberantes, figuras alegóricas dos planetas e
representações mitológico-cristãs contribuíam na composição da rica, colorida e
38
ÁVILA, 1994, p. 50.
39
ÁVILA, 1994, p. 51.
40
MACHADO apud ÁVILA, 1994, p. 53.
41
ÁVILA, 1994, p. 52.
42
ÁVILA, 1994, p. 52.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
31
aparatosa cenografia ali empregada. Em meio a uma abundância de adornos e
cores, concorriam motivos sagrados e profanos, característica das festas
barrocas.
A procissão, integrada por representantes da Igreja, ou seja, clero e
irmandades, e do Estado, governador, senadores e militares, exibia e reafirmava
o poder metropolitano nas Minas. A ela seguiram-se mais dois dias de festa,
com touros, cavalhadas, comédias e serenatas. Exaltação da riqueza advinda da
mineração, a cerimônia usava da linguagem teatral, da música e da dança para
maravilhar a população e, de certa forma, consolidar a cidade como espaço
institucionalizado desse poder.
Para assegurar a eficiência da máquina administrativa, foram
instituídos em Vila Rica o Senado da Câmara, a Junta da Fazenda Real, a Junta
dos Recursos, a Junta da Justiça e, também, o Tribunal da Relação, subordinado
à Casa de Suplicação, que ficava em Portugal. Todos esses órgãos serviam como
sustentáculo para a ordem política que se pretendia ali estabelecer, auxiliando o
controle da colônia pela metrópole. Esse controle se tornava cada vez mais
evidente com o aprimoramento do aparato judiciário e administrativo. A
cultura do colonizador, interiorizada pouco a pouco na colônia, também
demonstrou importante papel nesse aspecto. Em outras palavras, a sociedade
de Vila Rica institucionalizava-se progressivamente, sob o tacão do colonizador.
A vila improvisada dos primeiros tempos acabou ganhando
características de um importante núcleo urbano. Desde que transformados em
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
32
vilas, os povoados ficaram sob as normas reguladoras da Coroa, inclusive no
que tange à arquitetura e ao urbanismo. Sylvio de Vasconcellos cita, ao tratar da
legislação quanto a esse respeito, as cartas régias que determinavam, por
exemplo, a criação, nas vilas, em lugar propício, de uma praça e no meio dela, o
pelourinho.
43
Deveriam ser criadas, também, nas vilas, as casas das recreações e
audiências e as cadeias. As casas dos moradores deveriam ser uniformes e
circunscritas às ruas. Estas, por sua vez, seriam largas e o seu traçado
concorreria para estabelecer a ordem da cidade, juntamente com a disposição
dos prédios públicos.
Além dessas cartas régias, Sylvio de Vasconcellos menciona as
“Ordenações do Reino”, que tratam mais especificamente das construções
particulares, do que se pode ou não fazer nelas.
44
A essas Ordenações, somava-
se a legislação das Câmaras municipais, sob cuja jurisdição estavam, por
exemplo, a apropriação do solo urbano, a medida da frente do terreno, a
construção de chafarizes, pontes, calçadas.
Além dessas regras para a ordenação do espaço físico, que, segundo
Sylvio de Vasconcellos, nem sempre eram cumpridas, devido a fatores como a
“topografia, a desobediência dos súditos, o relativo afastamento da Metrópole,
o desenvolvimento rápido e a improvisação”,
45
a Câmara atuou, também, na
43
VASCONCELLOS, 1977, p. 87-88.
44
VASCONCELLOS, 1977, p. 89.
45
VASCONCELLOS, 1977, p. 91.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
33
vida cotidiana de Vila Rica, permitindo-se apresentar normas a respeito “da
taxação de preços, aferição de pesos e medidas, inspeção do comércio, taxação
de oficiais mecânicos e jornaleiros e concessão de licença para lojas, vendas e
exercício de ofícios”.
46
No período entre 1730 e 1770, houve um processo de urbanização da
vila, tendo sido construídas importantes obras públicas, como o Palácio dos
Governadores, concluído em 1744. Tal edifício constitui “a única edificação nas
Minas com uma arquitetura que se assemelha à de uma fortaleza militar”,
47
imprimindo à praça um aspecto de cenário ao poder ali localizado:
A construção do Palácio, na década de 40, conferiu à praça o
estatuto de cenário capaz de colocar o poder em evidência,
sobrepondo-o e irradiando-o para o restante da cidade.
Diferente de outros núcleos urbanos, os edifícios públicos
formavam um cenário naquele espaço, sem a concorrência dos
monumentos religiosos. A capela de Santa Rita, por exemplo,
além de uma construção acanhada, já na década de 50 teria sido
demolida. Em 1797, com parte do prédio da Casa de Câmara e
Cadeia
construído, a praça valorizou-se notadamente, com as
obras de reforma, que a aterraram e a ampliaram.
48
A praça sediava eventos cívicos e festivos, tornando-se uma espécie de
palco para os rituais políticos e religiosos ou espaço para a publicidade da
Câmara. Ali, também, encontravam-se, junto ao prédio da Câmara, o sino e o
relógio público. Lugar onde se reuniam as construções que representam o
46
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 54.
47
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 56.
48
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 56-57.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
34
poder político, a praça de Vila Rica constitui “um raro exemplar, na colônia
portuguesa, da estética principesca barroca, como convém a uma cidade
desenhada pela vontade absolutista”.
49
Lewis Mumford afirma que o traçado da
cidade barroca, tendo a praça como centro, “tanto simbólica quanto
praticamente, estabelecia o planejamento que todas as coisas se achavam ‘sob
controle’”.
50
Estas são, segundo Mumford, as características da política
absolutista e que se fixaram como marcas da capital barroca:
Lei, ordem, uniformidade – tudo isso são, pois, produtos
especiais da capital barroca; mas a lei existe para confirmar a
situação e assegurar a posição das classes privilegiadas; a
ordem é uma ordem mecânica, baseada não no sangue, na
vizinhança ou nas finalidades de parentesco e nas afeições, mas
na sujeição ao príncipe reinante; e quanto à uniformidade do
burocrata, com seus escaninhos, seus processos, sua papelada,
seus numerosos métodos de regularizar e sistematizar a coleta
de impostos. Os meios externos de impor esse padrão de vida
acham-se no exército; seu braço econômico é a política
capitalista mercantil; e suas instituições mais típicas são o
exército permanente, a bolsa, a burocracia e a corte.
51
Em Vila Rica, como nas cidades barrocas européias, à burocracia
política e à disciplina do exército, incorpora-se ainda a ordem sagrada da Igreja.
Espalhadas por toda a cidade, como elementos da identidade de cada lugar, as
igrejas foram construídas, na maioria das vezes, pelas irmandades, tendo
ganhado uma posição de destaque na paisagem urbana. Juntamente com o
49
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 57.
50
MUMFORD, 1998, p. 394.
51
MUMFORD, 1998, p. 399.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
35
Estado, a Igreja, portanto, foi definindo a composição física da cidade, em meio
a uma topografia acidentada e, também, a uma vida social que ali foi se
formando, cada dia mais arraigada nos ideais dessas duas instituições, as quais
comungavam seus interesses para o sucesso da política autoritária, que foi o
emblema da sociedade mineradora.
O espaço urbano se consolida com o desenvolvimento de mais outros
dois elementos: a casa e a rua. A primeira, antes simples rancho, com piso de
terra batida, um só cômodo e sem nenhum conforto, quando da improvisação
dos primeiros anos, foi se modificando com o tempo, quando já abrigava
famílias e não apenas os trabalhadores das minas, até se tornar, com o
surgimento de novas técnicas e materiais, construção mais sólida, com mais
cômodos e fachadas mais cuidadas. O requinte no interior e no mobiliário só
apareceria na segunda metade do século XVIII, nos sobrados das famílias
abastadas, localizados geralmente na área central.
52
Alinhadas às ruas e
construídas nos limites dos lotes, as casas “formavam uma espécie de massa
compacta, de fachadas uniformes e contínuas, que funcionava como um fundo
na paisagem urbana, ficando reservada aos edifícios públicos a arquitetura
escultural e de dimensão em grande escala”.
53
À casa, lugar de intimidade da família, opunha-se a rua, espaço onde se
davam os encontros e transações, lugar de passagem de mercadores, caminho
52
VASCONCELLOS, 1977, p. 167.
53
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 59.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
36
onde transitavam, em serpentinas, as pessoas de posse. A rua também
funcionava como elo entre o privado e o público, pois, através dela, chegava-se
à praça, lugar dos acontecimentos públicos. Em dia de cerimônia, fosse cívica
ou religiosa, as ruas apareciam iluminadas e enfeitadas, formando, com a praça,
as sacadas dos sobrados e os adros das igrejas, uma espécie de cenário para que
os representantes da Igreja e do Estado demonstrassem o seu poder. Tamanha
importância tinham as cerimônias que, “muitas vezes, o trajeto das procissões,
os passos e oratórios externos chegavam até mesmo a definir o próprio traçado
urbano”.
54
Para além das cerimônias civis e religiosas, por ocasião dos encargos da
Câmara, casamentos, batizados, mortes, dias de santos, além daquelas
organizadas pelos moradores para celebrar a colheita ou as estações do ano, o
espaço público também era palco de conflitos. Ao mesmo tempo em que
impunham uma ordem à cidade, as ruas e a praça constituíam-se espaços
propícios para o estabelecimento da desordem por aqueles que faziam das
festas ocasiões para subverter as regras impostas pela Coroa ou seus
representantes e/ou profanar a Igreja.
Muitas das celebrações religiosas na Minas barroca eram realizadas
pelas irmandades, a exemplo dos funerais, cujo aparato, tímido ou suntuoso,
dependia do prestígio social do morto. Essas instituições tinham um papel
54
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 71.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
37
importante na vida social da cidade, “núcleo de difusão da ideologia e cultura
do colonizador, no contexto da Contra-Reforma, contribuindo para a formação
das visões do mundo que povoaram a alma do homem setecentista e que
contagiaram suas práticas sociais”.
55
Às irmandades também se deve a
grandiosidade de muitas igrejas ali erguidas; tais instituições contribuíam com
avultosos donativos para que os seus templos fossem construídos com tamanha
riqueza.
Nelson Omegna, em A cidade colonial,
56
já atentara para a opulência
dispensada às construções oficiais e religiosas em contraste com a sobriedade
das residências no Brasil colonial. Tal opulência se deve, segundo o historiador,
ao artificialismo que impregna a religião naquele tempo, artificialismo
decorrente do objetivo que tinham os seus construtores de causar impressão,
uma vez que a imponência das igrejas poderia aumentar a confiança do povo
na missão do colonizador. O gosto pela ostentação, segundo Omegna, era
característica do “velho Português, e que, naturalmente, influiu na fisionomia
das nossas cidades”.
57
A religião que se incrustou na cidade colonial, tanto em
Minas como em outras regiões do país, era
[...] uma religião mais de terror que de bondade, mais de
vistosas e mágicas ostentações externas que de decisões
internas espirituais e normativas, cujo Deus vingativo e duro,
era, no fim, transigente e subornável. Por isso, a concepção
55
ANASTASIA, C. M. J.; LEMOS, C. S.; JULIÃO, L., 1999, p. 77.
56
OMEGNA, Nelson. A cidade colonial. 2. ed. Brasília: Embrasa, 1971.
57
OMEGNA, 1971, p. 46
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
38
religiosa, nem sempre correspondendo à moral, inspirava
realizações materiais, de vulto proporcionado a grandes quedas
e faltas graves dos devotos, os quais, edificando igrejas e
capelas ricas e vistosas, achavam um remédio à inquietação dos
próprios pecados.
58
Para Sylvio de Vasconcellos, havia em Vila Rica “a falta de um
sentimento religioso mais autêntico, sem embargo da profusão de ordens
terceiras e irmandades, interessadas muitas vezes por outros misteres que não
só os espirituais”. O clero, muitas vezes dado à controvérsia e à desobediência
aos seus superiores, “entregava-se ao comércio, aos engenhos e mesmo ao
contrabando e extravios do ouro”,
59
tendo sido, por isso, proibida a presença de
suas ordens regulares nas Minas, o que de certa forma abriu espaço para a
presença das Ordens Terceiras, formadas por leigos.
Para a majestade e a opulência da arquitetura religiosa colonial,
também concorreram o intenso espírito devocional da antiga família brasileira e
o temor à morte que tinha o devoto.
60
Tais devoção e respeito ao sagrado
ficaram impressos nos monumentos barrocos ali edificados, como uma prova
material da fé que regia a sociedade mineira do século XVIII, herdeira da
cultura do colonizador. Esta parece se acomodar bem às Minas, ganhando ali
feições específicas e contribuindo na transformação da cidade como centro
civilizador. O apelo aos sentidos, a ostentação, a representação e o ritual não
58
OMEGNA, 1971, p. 47-48.
59
VASCONCELLOS, 1977, p. 44.
60
OMEGNA, 1971, p. 48-49.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
39
estão presentes apenas nas festas propriamente ditas, mas, também, no
cotidiano daquela sociedade, num simples abrir de leques das donzelas, como
características do estilo de vida barroco, que é encenado na Vila Rica ficcional
de Os sinos da agonia, de Autran Dourado.
1.3 A cidade barroca de Os sinos da agonia
Italo Calvino, em As cidades invisíveis, descreve pela narrativa de Marco
Polo as múltiplas cidades que compõem o império sem fim e sem forma de
Kublai Khan.
61
Nessa descrição o viajante apresenta ao imperador territórios
cercados de maravilhas e curiosidades, construídos a partir de estruturas
bizarras e onde se trocam mercadorias exclusivas. As observações de Marco
Polo partem de uma primeira cidade que permanece implícita, no caso, Veneza,
sua cidade natal. As outras que visita ou imagina, como concluiu Khan,
formam-se pela troca de elementos; variações de um modelo que se preenche
com olhares, símbolos, recordações, desejos e sonhos.
Dentre as cidades descritas por Marco Polo, Irene é aquela que ele vê da
extremidade do planalto, quando as luzes se acendem permitindo-lhe distinguir
o povoado lá embaixo. No entardecer brumoso, “uma claridade anuviada infla-
se como uma esponja leitosa aos pés da enseada”,
62
registra o narrador. Ao
61
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
62
CALVINO, 1991, p. 114.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
40
contrário do que esperava Khan, o viajante não soube dizer como seria Irene
vista de dentro, certamente seria uma outra, bem diferente. Tendo visitado
inúmeras cidades nas suas missões diplomáticas a serviço do imperador, Polo
chegara a mais esta conclusão: “a cidade de quem passa sem entrar é uma; é
outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se
chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar”.
63
A imagem da cidade invisível de Irene, a sua perspectiva a partir do
olhar de fora, a bruma que a reveste de uma certa “claridade anuviada”, até
certo ponto dramática, podem ser vislumbradas na Vila Rica de Os sinos da
agonia, de Autran Dourado. Esta parece distinta daquela em que vivia
anteriormente o personagem Januário. De longe, do alto da Serra do Ouro
Preto, ele a olha, de certa forma concebendo-a em seu estranhamento. Depois
de ter escapado da prisão e de se esconder durante um ano nos sertões com o
escravo Isidoro, Januário contempla Vila Rica, agora iluminada pela lua cheia,
“esparramada pelas encostas dos morros e vales lá embaixo”.
64
A Vila Rica recriada em Os sinos da agonia, apesar de possuir um vínculo
com a “cidade real”, materializada na pedra, é apresentada sob o olhar do
narrador, estando sujeita, portanto, à imaginação, à linguagem literária. Não há,
assim, um comprometimento estrito com a História, uma necessidade de
exatidão factual. Alguns aspectos podem ser silenciados e outros, evidenciados.
63
CALVINO, 1991, p. 115.
64
DOURADO, 1974, p. 15.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
41
Especialmente nesse romance, a cidade ficcional constrói-se a fim de realçar e
denunciar o estatuto de teatro da cidade real, mas não coincide com esta. É uma
cidade reelaborada pela invenção literária, metonímia do Brasil, mergulhado,
no tempo da escrita do romance, no regime ditatorial. Publicado em 1974,
durante esse regime, portanto, o romance retoma outra época de opressão no
Brasil, o século XVIII. Uma vez distanciado o tempo ficcional, Autran Dourado
recupera, ficcionalmente, a estética barroca presente na Vila Rica do contexto
histórico que é, pois, reinventado na cidade encenada, como artifício para se
construir um romance que trata, de forma simbólica, da ditadura. Esse
deslocamento, no tempo e no espaço, de que se serve o romancista será tratado
adiante, nos capítulos seguintes.
A trama de Os sinos da agonia é ambientada, provavelmente, no final do
século XVIII. Nesse período, assistia-se à decadência da idade do ouro nas
Minas Gerais, quando a população vivia atemorizada sob os olhos inquiridores
do representante da Coroa portuguesa, pronto para proclamar a derrama
65
a
qualquer momento, como punição ou para encher os cofres da metrópole.
Segundo o próprio Autran Dourado, seu romance não é histórico, não há nomes
de personagens históricos, tampouco datas que demarcam precisamente o ano
ou a época; “no máximo ‘era de 60, 30’, e assim mesmo muito pouco e
vagamente, para efeito de ambigüidade e simbolismo”. Para “ambiência e
65
DERRAMA: No séc. XVIII, na região das minas, cobrança dos quintos em atraso ou de imposto
extraordinário. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 627.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
42
sobretudo para o caráter de farsa e paródia carnavalesca, de visão poética da
História”,
66
a Vila Rica do romance reflete o aparato religioso, artístico e político
que marcou a Vila Rica real e do qual a cidade ainda é testemunha.
O romance se estrutura em quatro blocos (ou capítulos) aparentemente
isolados, que o autor denominou jornadas – signo que se refere aos atos
dramáticos no teatro antigo e no poema dramático espanhol, mas que se inter-
relacionam dentro de um princípio de verossimilhança a partir do qual os
vários conflitos se condensam numa única tensão. Das quatro jornadas que
formam o romance, as três primeiras são dedicadas a Januário, Malvina e
Gaspar, respectivamente, e a quarta é composta pela parte final de cada uma
das jornadas anteriores, procurando-se atingir uma unidade interior da obra, o
que configura a inovação narrativa do romancista – “não há fusão, mas
independência absoluta, cada maneira de ver e narrar é ambígua e mesmo
contraditória em relação às outras”.
67
Um detalhe suprimido de um bloco pode
aparecer em outro, de forma que a percepção torna-se fragmentada.
Vila Rica, atual Ouro Preto, é apresentada no romance, desde o início
da narrativa, envolvida por dois elementos fundamentais: a bruma e os sinos.
66
DOURADO, Autran. Uma poética de romance: matéria de carpintaria. São Paulo: Difel, 1976, p. 149.
A idéia de farsa e da paródia carnavalesca também será retomada no terceiro capítulo, quando se
tratará do ilusionismo a que se propõe Autran Dourado na escrita do romance.
67
DOURADO, Autran. Os sinos da agonia: romance pós-moderno. Revista da USP, São Paulo: Edusp,
n. 20, 1999, p. 123.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
43
Para Agostinho Vieira Neto,
68
o elemento bruma constitui a base descritiva da
narrativa de Os sinos da agonia, “através da qual a imagem da cidade vai
oscilando entre claridade e escuridão”.
69
O crítico analisa, à luz da semiótica, as
manifestações artísticas e culturais da cidade representada no romance, que se
associam, no espaço narrativo, como uma cadeia sígnica que “procura desenhar
rostos que transcendem às configurações físicas da cidade”,
70
esta também
apreendida como signo, ou espaço que promove a concorrência de signos.
A bruma é constantemente retomada pela narrativa, mais precisamente
no capítulo dedicado a Januário, personagem que vê a cidade de fora. Névoa,
neblina, nuvem e outros tantos vocábulos ou expressões que derivam dessas
palavras, ou que aludem ao aspecto opaco da bruma, contribuem para revelar
um aspecto, no desenho da cidade, que o narrador intenta apresentar. O
nevoeiro, ou bruma, segundo Chevalier,
71
é símbolo do indeterminado, de uma
fase de evolução em que as formas ainda parecem indistintas. Acredita-se,
também, que o nevoeiro “preceda as revelações importantes; é o prelúdio da
manifestação”, “símbolo igualmente de uma mescla de água e de fogo, que
68
VIEIRA NETO, Agostinho. Imagens de Vila Rica/Ouro Preto no espaço narrativo: uma leitura
intersemiótica de Os sinos da agonia e Boca de chafariz. 1996. 142 f. Dissertação (Mestrado em
Literatura) - Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte,
1996.
69
VIEIRA NETO, 1996, p. 44.
70
VIEIRA NETO, 1996, p. 18.
71
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva et al. 10. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1996.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
44
precede toda consistência, como o caos das origens”.
72
Paradoxalmente, a
bruma contém em si o claro e o escuro, a luz e a sombra; aproxima e distancia;
representa o decifrável/indecifrável da retórica barroca em seu aparato teatral.
A fumaça, espécie de bruma dos palcos, também concorre na construção desse
jogo com o visível, com o que se pretende mostrar e com o que se quer oculto,
no teatro.
Em Os sinos da agonia, a bruma vem substituir, ou ocultar, a claridade
da lua cheia. A Vila Rica que Januário vê esparramada pelas encostas dos
morros e vales parece-lhe muito distinta daquela cidade que se punha
aparatosa e festiva em dias de cerimônia. Do alto da Serra do Ouro Preto, ele vê
a cidade dormindo, isenta de qualquer rufar de tambores ou ornamento. A luz
que o faz distinguir os telhados da casa assobradada do pai, as pedras do
calçamento, as igrejas solitárias é a “luz leitosa da lua cheia”, “a brancura
enluarada, fria, neutra, indiferente, espectral e suspensa”, que, pouco a pouco,
vai sendo tomada pela bruma, “a cidade um só floco de nuvem”.
73
Filho bastardo do rico Tomás Matias Cardoso, Januário foi condenado
por crime de lesa-majestade por ter assassinado o marido da amante, João
Diogo Galvão, verdadeiro potentado de Vila Rica e muito afeto ao Capitão-
General. Tal crime é tomado como parte de um motim contra os representantes
do poder, levando a cabo o espetáculo da sua “morte em efígie”, em que uma
72
CHEVALIER, 1996, p. 635, 634.
73
DOURADO, 1974, p. 17, 21.
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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45
imagem ou boneco substitui o corpo do condenado na cerimônia e da qual se
tratará adiante. Fugido da prisão por ajuda do pai, Januário decide voltar a Vila
Rica para se entregar aos soldados e ser efetivamente morto. O romance se
inicia com a descrição da noite agônica que antecede a morte de Januário. Ele e
o escravo Isidoro se encontram escondidos nas ruínas de uma mina
abandonada, nos contrafortes da Serra do Ouro Preto, e vêem a cidade
adormecida. Essa imagem o faz recordar a voz cavernosa do pai pedindo que
não voltasse, a mãe mameluca à espreita da morte, o som de sinos de há muitos
anos.
O fato de estar confinado num espaço exíguo, em meio às ruínas, a
cidade adormecida, a neblina que vem chegando aos poucos, tornando tudo
confuso e indefinido, a voz cavernosa do pai e o som soturno dos sinos
apontam para a idéia de destino e da condição sem saída do personagem.
Januário é ignorado pela cidade que dorme, e o pai, símbolo de poder familiar,
que o salvara da prisão, havia pedido que não voltasse. A cidade não mais lhe
pertencia e a restauração de Januário só poderia vir com a morte. As ruínas,
elementos caros à arte barroca, símbolo da degeneração do período e que
Walter Benjamin associou à alegoria,
74
também explorada no barroco, sugerem
a visão da morte, a que o personagem do romance espera, já decidido a se
entregar.
74
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 200. Para Benjamin, “As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as
ruínas no reino das coisas. Daí o culto barroco das ruínas”.
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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46
Na ocasião, quando a cidade vai sendo tomada pela bruma, Januário,
que “se sentia já morto, quem sabe na verdade não estou morto, se
perguntava”,
75
conjectura sobre sua história com Malvina, a noite do crime que
cometera com a ajuda dela, a festa realizada para sua morte em efígie na praça,
o quanto estava preso àquela cidade, “sempre para ela voltado, mesmo quando
ausente, nos sertões distantes por onde andou perdido, escondido,
perseguido”.
76
Tais pensamentos se baseiam em material esparso que lhe vem à
memória e nas informações que a parca linguagem de Isidoro lhe dá. Januário,
apesar de aparentemente decidido a se entregar aos soldados, encontra-se,
naquela noite, em sua fase de evolução, de indeterminação. Aqui, a bruma
parece, sim, conforme esclareceu Chevalier, preceder uma manifestação, uma
consistência, a do destino de Januário e, conseqüentemente, de Isidoro, que já
parecia uma sombra daquele, acompanhando-o noite e dia.
Tamanha é a importância que a bruma exerce na narrativa de Os sinos
da agonia que, para além de um elemento circunscrito ao campo visual, acaba
por delinear, juntamente com os sinos, o universo semântico do romance,
especialmente no capítulo “A farsa”, palavra que não deixa de ter um sentido
de ocultação, de simulação, como a bruma. Nesse capítulo, por exemplo, Joana
Vicênzia é descrita, sob o ponto de vista de Januário, como “névoa de
bondade”, “nuvem de bondade”, e a voz grossa do pai soa “cavernosa”, “como
75
DOURADO, 1974, p. 17.
76
DOURADO, 1974, p. 17.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
47
ondas, ecos redondos de volta das serras e quebradas, redobrando, de um sino-
mestre tocado a uma distância infinita”.
77
Do alto da serra, os telhados negros
das casas parecem a Januário “riscados contra a alvura empoeirada do céu”.
78
Os ecos da noite lhe trazem uma “poeira prateada”; e o mundo se apresenta
[...] coagulado e redondo como as surdas e grossas ondas de um
sino-mestre, aquele mundo de silente e imperiosa beleza,
envolto num halo de mistério, na sombria luminosidade, no
distanciamento em que se achava perdido, a noite que
procurava apagar dentro dele as arestas mais acentuadas da sua
angústia, da sua dor, da sua agonia. Não fosse tudo, não estaria
ali agora vendo a cidade da qual não podia se aproximar mais
do que a padrasto [...].
79
A bruma, portanto, contribui para estabelecer um jogo entre o visível e
o invisível no romance, seja quanto à representação da cidade, seja, por
extensão, no tocante aos fatos narrados, que se mostram metaforicamente
brumosos aos olhos e à lembrança de Januário – “Foi antes ou depois do
presente do punhal? Não conseguia se lembrar, tudo tão brumoso, tanta coisa
tinha acontecido, tanto as coisas se distanciavam ligeiras naquele ano de
ausência”.
80
Quanto ao segundo aspecto, o dos fatos narrados, a própria
estrutura narrativa de Os sinos da agonia – em blocos – já estabelece uma
fragmentação da trama. O leitor só tem conhecimento de toda a história quando
77
DOURADO, 1974, p. 16, 19, 15.
78
DOURADO, 1974, p. 17.
79
DOURADO, 1974, p. 17.
80
DOURADO, 1974, p. 20.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
48
as referências ocultas de um determinado capítulo são desveladas em outro, sob
o ponto de vista de outro personagem.
Ao caráter de visibilidade/invisibilidade expresso pela bruma no
romance, soma-se um outro, o de corporeidade. Os objetos, as vozes, as
badaladas dos sinos parecem ampliados em sua materialidade, em sua
corporificação. Isso pode ser percebido, por exemplo, na descrição da voz do
pai de Januário, “carvernosa, arrancada das entranhas”;
81
no tratamento dado à
luz da lua cheia, que se apresenta “leitosa”, “grande e sangüínea”; ou na cor e
espessura que ganham os ecos e ruídos– “a poeira prateada dos ecos, o ciciar
cintilante”.
82
Essa corporeidade, que parece realçada pela presença da bruma,
também pode ser observada quando o narrador se refere ao estado insone de
Januário – “as coisas perdiam a dureza de suas arestas, se esbatiam esfumadas,
viviam num estado espectral de sonho” –;
83
ou aos olhos de Isidoro, cujo branco
era “mais castanho e lustroso do que nunca, todo raiado de sangue. Os olhos
aveludados de tanto dormir”.
84
A sinestesia sugerida por essas descrições e por mais tantas outras que
compõem a narrativa aponta para o apelo da arte e das festas barrocas aos
sentidos. Nesse contexto, além da profusão de cores e imagens (do aspecto
81
DOURADO, 1974, p. 15.
82
DOURADO, 1974, p. 17.
83
DOURADO, 1974, p. 52.
84
DOURADO, 1974, p. 216.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
49
visual, portanto) que marcou essas festividades e que Antonio Maravall
considera instrumento eficaz “próprio das sociedades nas quais se desenvolve
uma cultura massiva de caráter dirigido”,
85
a exemplo da cultura barroca,
também o olfativo, o táctil e o auditivo tiveram seu papel. No cortejo descrito
em Os sinos da agonia, os sentidos são representados pelo cheiro dos perfumes
das mulheres, da cachaça consumida em demasia e do incenso queimado nos
turíbulos; pelo roçar do tafetá ou veludo e pelo soar dos tambores, dos
instrumentos musicais e dos sinos.
Os sinos, especialmente nas cidades coloniais mineiras, além de
participarem das festividades, sejam elas religiosas sejam cívicas, tiveram, e
ainda têm, uma função também no cotidiano das vilas, anunciando o horário e
a natureza da missa, se celebrada por vigário ou bispo, se missa festiva ou
fúnebre, de agonia ou Natal, se enterro de criança, mulher ou homem. No
romance, o tanger dos sinos tem papel fundamental na construção da atmosfera
barroca que envolve a cidade de Vila Rica, assim como a bruma. Para Vieira
Neto, “pela variação de alturas e timbres (graves, médios e agudos), os sinos
expressam, em antecipação, os graus de densidade dramática que serão
registrados no romance”.
86
As pancadas da agonia que prenunciam a morte de
Malvina, graves, longas e bem espaçadas, pedindo reza como de costume,
85
MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco: análise de uma estrutura histórica. Trad. Silvana
Garcia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997, p. 389.
86
VIEIRA NETO, 1996, p. 99.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
50
representam o ápice dessa densidade dramática. Além dos dobres de agonia e
dos rotineiros, que anunciam a missa e o Ângelus, os sinos também soam de
forma particular, no romance, na ocasião do velório de João Diogo Galvão,
mesário e protetor de irmandade: “duas pancadas três vezes, os dobres
espaçados. Primeiro os sinos pequenos, depois os meões. Por último, os sinos-
mestres. Que dobre era? Devia ser o pai que tinha direito, a finados. Em todas
as igrejas. De tempos em tempos”.
87
Símbolo de purificação, o som dos sinos afastaria as influências do mal
ou anunciaria a sua aproximação. Segundo Chevalier, “pela posição de seu
badalo, o sino evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o céu e a terra,
e, por isso, mesmo, estabelece uma ligação entre os dois”.
88
Os sinos aparecem
também, no romance, como notas de uma corrente metafórica, o que pode ser
percebido em fragmentos como: “mundo coagulado e redondo como as surdas
e grossas ondas de um sino-mestre”, quando o narrador descreve a sombria
luminosidade provocada pela bruma; “olhos grandes, rasgados, de um brilho
persistente, continuando depois no ar, mesmo quando ela os cerrava ou se
afastava feito as ondas de um sino ficam para sempre soando no ar” e “sorriso
que continuaria a vibrar trêmulo no ar que nem as macias ondas de um sino”,
89
87
DOURADO,1974, p. 132.
88
CHEVALIER, 1996, p. 835.
89
DOURADO, 1974, p. 17, 41, 53.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
51
na descrição feita, sob o ponto de vista de Januário, do olhar e do sorriso de
Malvina.
Ambos os elementos, a bruma e os sinos, contribuem, portanto, na
construção da cidade ficcional de Vila Rica, onde parecem ganhar novos realces
e significações. O aspecto brumoso que a envolve aponta, como já mencionado,
para a cidade de Irene. Os sinos, por sua vez, e os outros artefatos usados nas
cerimônias barrocas lembram outra cidade imaginada por Calvino, a de nome
Sofrônia, que se compõe de duas meias cidades: uma fixa e outra provisória.
A cidade fixa é a dos carrosséis e tiros ao alvo, da montanha-russa e da
roda-gigante, e a provisória é a de pedra e cimento, dos bancos, fábricas e
escolas. Esta é a cidade que se desmonta quando terminada sua temporada e
então é levada para os “terrenos baldios de outra meia cidade”. A que
permanece à espera de que a “vida inteira recomece”
90
é a cidade circense, cuja
efemeridade é só aparente, como, aliás, é o teatro. Seja no espaço do circo ou do
teatro, na cidade de Sofrônia, na cidade de Vila Rica, um espetáculo parece estar
constantemente à espera do ator, do diretor, da platéia. Essas atribuições ou
“papéis” são permutáveis: pode-se ser ora ator, ora diretor, ora espectador. O
miserável, o bobo ou o palhaço pode se transformar em herói, rei ou amante.
Em Os sinos da agonia, a relação entre a cidade fixa e a provisória, ou
mesmo o findar de uma para o iniciar da outra, pode ser estabelecida pelo
90
CALVINO, 1991, p. 61.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
52
caráter velador/desvelador que a bruma imprime a esse espaço. A cidade que
se apresenta brumosa naquela noite de agonia é transformada em uma outra,
iluminada, renascida. A bruma se desfaz como as cortinas do teatro que se
abrem para a hora do espetáculo:
A claridade desfazia a bruma. Primeiro os galos de canto
engalanado, clarins e penas coloridas, agora um sino chamando
para a missa. Seis horas, contou. Missa de vigário. O sino
pequeno do Carmo, as batidas finas e curtas, secas, ligeiras.
Missa de vigário, não de qualquer padre. Pelas três pancadas
finais mais espaçadas, depois das pancadinhas de costume.
Conhecia a fala dos sinos, os dobres e pancadas, os repiques.
91
Renascida das brumas, Vila Rica torna-se cidade-palco, cenário para as
representações da vida social, sejam elas celebrações políticas ou religiosas,
exibições de um ou outro morador abastado nas ruas da cidade, nas sacadas
dos sobrados e até mesmo em suas próprias residências. Para Reinaldo
Marques,
92
a trama de Os sinos da agonia se desdobra num “espaço de
teatralidade”, em que as personagens representam papéis cênicos, seja no
espaço público, a cidade, as ruas e a praça, seja no privado, as casas e suas
dependências:
De um lado a teatralidade atua como ingrediente
velador/desvelador das paixões e emoções que não podem ser
socializadas em decorrência de seu significado virulento,
altamente nocivo à ordem social e às diferenças culturais; de
91
DOURADO, 1974, p. 206.
92
MARQUES, Reinaldo Martiniano. Os sinos da agonia: técnica narrativa e consciência trágica na
ficção de Autran Dourado. 1984. 224 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade
de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1984.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
53
outro lado, funciona a teatralidade como instrumento de
dissimulação e mascaramento da decadência do corpo social
representado, ou seja, a sociedade mineradora e colonial das
Minas Gerais.
93
No que diz respeito ao espaço privado, o caráter teatral do modo de
vida social da Vila Rica de Autran Dourado é especialmente delineado no
cotidiano do sobrado da Rua Direita, que o personagem João Diogo Galvão
comprou por gosto de Malvina, com quem acabara de se casar. O típico sobrado
de gente abastada, assim o queria Malvina: “o chão de tábuas corridas de
madeira de lei, muito bem aplainadas e cepilhadas, os tetos apainelados,
pinturas de alto preço, as sacadas de rendilhado de ferro com as letras de João
Diogo Galvão”.
94
À Malvina, couberam as alfaias e adornos, baixelas,
candelabros, pratarias, tapetes e cortinas, roupas de cama, todo o cenário
interior da casa, espaço também teatral, onde é representado o dia-a-dia da
família mineira setecentista. A sala, onde se dão as noites de música e alegria,
faz as vezes de palco, e os quartos e a cozinhas são bastidores, espaço para a
trama, como já atentara Marques.
Quanto ao espaço público, as ruas, os adros das igrejas e,
particularmente, a praça, parecem constituir, também, um legítimo teatro. Ali se
dão os espetáculos realizados ao gosto da Coroa, presididos pelo Capitão-
General; as solenidades públicas da Câmara; as procissões e celebrações
93
MARQUES, 1984, p. 84.
94
DOURADO, 1974, p. 87.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
54
religiosas; as paradas e desfiles militares que acompanham essas festividades; e,
também, os encontros e transações dos habitantes que, nessa atmosfera de
representações, acabam por adquirir um caráter teatral. Em outras palavras, a
cidade se constitui como um espaço para o espetáculo, seja ele privado seja
público.
Em Os sinos da agonia, o ápice de pensamento da cidade como espaço
teatral se dá na descrição do espetáculo da “morte em efígie” de Januário.
Assegurada aos fugitivos ou mortos na prisão,
[...] a morte em efígie, ainda que farsa, tinha todas as
conseqüências da natural. Seguia-se dela a servidão e a infâmia
da pena e o confisco dos bens. Não aproveitava em
circunstância alguma ao réu a esperança de perdão; e quem o
quisesse poderia matar sem receio de crime.
95
Um boneco de palha era construído para substituir o corpo do
condenado na cerimônia, que em caso de crime contra el-Rei (de lesa-majestade,
crime de primeira cabeça) fazia-se, segundo as ordens do Capitão-General,
aparatosa e festiva, como a do personagem Januário.
No romance, a cerimônia é narrada a partir das lembranças de Januário,
o qual a ouviu, por sua vez, do escravo Isidoro. Januário recompunha o que não
tinha visto com a ajuda da imaginação e da memória, do que sabia sobre
sacrifícios e sortilégios, “como se pintasse o painel da própria morte: e na
95
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999,
p. 351.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
55
verdade o era, sentia”.
96
A cidade, na ocasião, é transformada num grande
teatro em dia de espetáculo, cuja divulgação é realizada desde a véspera:
grupos de três homens, vestidos em uniformes de gala, que percorriam ruas e
caminhos, parando em largos e cruzamentos, para anunciar em voz cantada a
pantomima que seria apresentada:
E rufavam no maior fragor, as batidas ritmadas, ora lentas e
soturnas, ora disparadas, as suas caixas e tambores de fitas
encarnadas e azuis. [...] Depois que se juntava mais gente, um
deles desenrolava solene um papel comprido e publicava o
bando com o decreto do Exmo. Sr. Governador
e Capitão-
General da Capitania das Minas. Papel igual, com a mesma
letra bordada e graúda, para que mesmo as pessoas que só
conheciam letras redondas pudessem ler e saber, foram
pregados no pelourinho e na porta das igrejas.
97
No dia marcado para a cerimônia, a cidade amanhece ornamentada e
festiva, à espera do fúnebre espetáculo. Na praça, que fazia as vezes de palco,
estava levantada a forca construída especialmente para a ocasião. Uma tropa a
guardava de frente para o palácio ornado de bandeiras e onde se punham mais
soldados em fardamento de gala. A platéia se dividia nas ruas por onde
passaria o cortejo, amontoada na praça ou disposta nas janelas e sacadas dos
sobrados, essas enfeitadas com “vistosas colchas de damasco vermelho e
96
DOURADO, 1974, p. 35.
97
DOURADO, 1974, p. 27, 28.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
56
toalhas bordadas e guarnecidas de renda”,
98
como uma espécie de camarote
muito requintado.
O burburinho que antecede ao espetáculo podia ser ouvido tanto nas
ruas quanto na praça e nos sobrados. Nestes, mulheres e crianças se divertiam
vendo toda aquela gente turbulenta e atrevida aglomerada lá embaixo,
embriagando-se. Os homens, mais receosos, “só chegariam à frente quando o
Capitão-General aparecesse na sacada principal do palácio ou descesse à
praça”,
99
todos vestidos com as melhores roupas, pedrarias, cabeleiras brancas.
A “arraia-miúda”, por sua vez, disputava, nas ruas e também na praça, os
melhores lugares:
Era uma festa de moleques e mucamas em dias de folga, do
femeaço e dos feitores, de pretos forros e brancos pobres, de
mulatos e mamelucos, cafuzos, entrecruzas de caburés e
curibocas, carijós. Aquele caldo de gente quente e espumante
de onde nasceriam as flores gálicas e os esquentamentos. Um
grande festim de raças e ofícios, selvagem, infernal, puro
trópico.
100
Esses pretos forros e brancos pobres, tão impacientes quanto os
potentados dos sobrados, aguardavam o cortejo que trazia o condenado ao som
fúnebre dos sinos das igrejas, composto por soldados e seus cavalos em
vestimentas de festa. A eles seguiam-se o cruciferário em batina de gala, outro
98
DOURADO, 1974, p. 29.
99
DOURADO, 1974, p. 29.
100
DOURADO, 1974, p. 31.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
57
padre benzendo o povo com incenso e as irmandades. Incorporados ao cortejo,
vinha, ainda, o Senado da Câmara e os representantes da Justiça – o ouvidor,
juízes e escrivães – e, enfim, a carreta que trazia o boneco de palha vestido com
a “alva dos penitentes”,
101
para ser enforcado na pantomima preparada na
praça. De cada lado da carreta, seguiam três padres e, atrás dela, mais soldados
para assegurar a ordem.
Aquele burburinho todo já não existia quando a carreta chega à praça e,
ao silêncio da platéia, como a esperar o aparecimento do primeiro ator, surge,
na sacada central do palácio o Capitão-General, para quem todos os olhos se
voltam, tão reluzentes os seus ornamentos e tão admirável a sua glória:
[...] o retinir dos sabres e espadas, o faiscar dos cascos ferrados
nas lajes, o brilho dos galões, bandeiras, insígnias e uniformes, a
aparição aguardada e temida do Capitão-General na sacada,
aumentavam ainda mais a gravidade do momento.
102
O enforcamento do boneco de palha figurando o réu Januário só é
efetivamente realizado depois do discurso do padre. A ele se procede, para
finalizar o espetáculo, o que o narrador chama de apoteose política – a fala do
Capitão-General lida por um alferes, como para uma constante legitimação do
poder colonial.
O romance, quando recompõe literariamente a “morte em efígie”,
parece reiterar o caráter de teatralidade, de espetacularização, das práticas de
101
DOURADO, 1974, p. 33.
102
DOURADO, 1974, p. 34.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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58
poder do Brasil colonial. Ao ficcionalizar a política dessa época, a cidade é
representada como um teatro, palco público por excelência, e a história, um
espetáculo. Dessa forma, evidenciam-se aí alguns elementos próprios da arte
cênica: a bruma compõe o cortinado, a praça, em mise-en-abyme, torna-se um
palco dentro de um palco mais amplo, a cidade; o Capitão-General e os
representantes da Igreja dividem com o boneco de palha e as outras
personagens o papel de atores, todos vestidos ao rigor do figurino; os
moradores da cidade compõem a platéia; e os sinos das igrejas, por vezes
apoiados pelo tambor dos soldados, cadenciam a encenação montada nesse
cenário barroco do século XVIII.
A Vila Rica é reencenada, portanto, sob o estatuto de teatro e de
representação, aqui tomada como espaço urbano ficcionalizado em seu
arcabouço simbólico. Tal estatuto pode ser percebido na relação que cada
personagem estabelece com a cidade, no cotidiano da rua e da casa
apresentados pelo romance, no papel dos prédios públicos e das igrejas
barrocas, nos rituais coloniais retomados pelo texto de Autran Dourado. Como
teatro e representação, a cidade de Os sinos da agonia é transformada em uma
cidade-palco, reconstruída pelo discurso, texto escrito, montado, posto em cena,
traçado no jogo de sombra e luz, cor e movimento, denunciando uma estética
que se quer grandiosa, dramática, barroca.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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59
2 O TEATRO DO PODER
Qué es la vida? Un frenesí.
Qué es la vida? Una ilusión,
Una sombra, una ficción,
Y el mayor bien es pequeño;
Que toda la vida es sueño,
Y los sueños, sueños son..
Calderón de la Barca
Segundo Richard Sennett, deve-se aos romanos a expressão theatrum
mundi, difundida no período barroco. Para o crítico, a “ordem visual” e a
“ficção cívica” que caracterizaram a Roma do imperador Adriano estavam
ligadas à idéia de imutabilidade e durabilidade da cidade, desde sua fundação.
A criação de monumentos e obras públicas era uma maneira de evidenciar o
poder do governante. Todos deveriam olhar, acreditar e obedecer. Aos próprios
súditos era necessário e oportuno acreditar numa “Roma Eterna”, que lhes
trouxesse segurança em meio a um “mundo implacável de forças obscuras e
anseios incontroláveis”. Para isso, “o imperador precisava dramatizar seus
poderes enquanto o povo mais ou menos teatralizava a vida na cidade”.
103
Essa tendência para a teatralização explica a popularidade da
pantomima na Roma antiga. Esse gênero teatral parece ter influenciado o
comportamento do soberano em suas aparições públicas como uma aparente
tentativa de demonstrar o seu poder a partir de uma linguagem corporal que
103
SENNETT, 2003, p. 82, 88.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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60
contribuía para legitimar suas palavras e fixar sua imagem na mente do
espectador: “a mão levantada, o dedo apontado, as costas voltadas”.
104
Essa
linguagem e o ímpeto com que conduzia o crescimento da cidade, na
construção de monumentos e obras públicas, eram os principais mecanismos de
que o governante se servia para alcançar um prestígio social e, de certa forma,
persuadir a população. Assim, “o reinado da pedra na cidade montou a cena
para que os romanos só dessem crédito ao que os seus olhos viam”,
105
uma
espécie de persuasão pelo olhar e pela repetição.
A metáfora do theatrum mundi, ou o “mundo é um palco”, parece
proceder de fontes clássicas. No entanto, onde quer que haja política, o teatro se
insinua num duplo efeito: simular e fingir, por um lado, e desconstruir e
denunciar os desmandos do poder, por outro. Platão apresenta, em Leis, o
homem como um engenhoso marionete dos deuses, cujos cordéis o arrastam
para a virtude ou o vício.
106
Uma linha divisória e flexível, “o fio condutor,
dourado e sagrado, da avaliação que se intitula a lei pública do Estado”,
107
faria
o contrapeso entre essas duas forças. Essa imagem representa a hierarquia das
instituições políticas e religiosas e a idéia de que o homem seria, apenas, um
brinquedo nas mãos dos deuses. Shakespeare, em fins do século XVI, em As you
104
SENNETT, 2003, p. 92.
105
SENNETT, 2003, p. 92.
106
PLATÃO. As leis, ou da legislação e Epinomis. Trad. Edson Bini. Bauru/São Paulo: Edipro, 1999.
107
PLATÃO, 1999, p. 94.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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61
like it,
108
traduziria essa visão nas palavras do personagem Jaques, para quem o
mundo inteiro é um palco e os homens são meros atores, ressaltando, assim, a
estreita relação entre o palco e a vida:
All the world’s a stage
And all the men and women merely players;
They have their exits and their entrances,
And one man in his time plays many parts.
His acts being seven ages.
109
A peça de Shakespeare faz uma reflexão irônica sobre a passagem da
vida humana e sobre a oscilação ou a mobilidade do mundo. Durante as sete
fases da vida, desde a infância à velhice, o homem, para o personagem
shakespeariano, teria “entradas” e “saídas” no palco do mundo. A vida seria
uma constante representação de papéis, configurando-se, dessa forma, como
aparência, ilusão. Também em Hamlet o poeta e dramaturgo inglês trataria
desse tema. O príncipe da Dinamarca, decidido a denunciar o assassinato do
pai, resolve montar uma peça para, indiretamente, representar o crime. Sendo
assim, faz recomendações aos atores sobre como deveriam proceder segundo os
princípios e a finalidade da arte dramática. O teatro, por esse artifício, desvela o
mundo como um palco, onde dramas, crimes e pecados são encenados:
108
SHAKESPEARE, William. The complete works of William Shakespeare. Great Britain: Spring Books,
1970.
109
SHAKESPEARE, 1970, p. 218. “O mundo é um palco, os homens e mulheres, meros artistas, que
entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo; sete atos, sete idades.”
SHAKESPEARE, William. Obras completas de Shakespeare. São Paulo: Melhoramentos, [1950?]. v.
5, p. 51.
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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62
Suit the action to the word, the word to the action; with this
special observance, that you o’erstep not the modesty of nature:
for anything so overdone is from the purpose of playing, whose
end, both at the first and now, was and is, to hold, as ’twere, the
mirror up to nature; to show virtue her own feature, scorn her
own image, and the very age and body of the time his form and
pressure.
110
Em El gran teatro del mundo, auto sacramental do dramaturgo espanhol
Calderón de la Barca, escrito por volta de 1635, a metáfora do theatrum mundi é
o próprio motivo da peça. É o teatro dentro do teatro, em que o diretor/autor
da peça é nada menos que o Criador. Este cria os homens e os coloca no mundo
para representar, distribuindo os papéis entre personagens arquetípicos ou
alegóricos (autor, mundo, rei, rico, pobre, lavrador, criança, discrição,
formosura, lei de graça e a voz). À medida que a peça avança, quando é
chegada a hora da morte dos personagens, estes são julgadas pelo Autor, que os
premia ou castiga, segundo sua conduta na vida/representação. Com essa peça,
além de denunciar a existência de uma ordem hierárquica temporal na terra,
Calderón afirma a superioridade da hierarquia encontrada no reino de Deus.
No Brasil, Machado de Assis, seguindo uma tradição de grandes
escritores que escreveram sobre o tema, também tratou do caráter de espetáculo
da vida. A metáfora usada pelo escritor brasileiro é a “ópera”, arte próxima ao
110
SHAKESPEARE, 1970, p. 961. “Acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto, tendo sempre em
mira não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrio aos propósitos da
representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à
natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem e ao corpo e idade do
tempo a impressão de sua forma”. SHAKESPEARE, William. Obras completas de Shakespeare. São
Paulo: Melhoramentos, [1950?]. v. 7, p. 85.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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63
teatro e cujo surgimento e desenvolvimento se deram no período barroco. Em
Dom Casmurro,
111
no capítulo intitulado “A ópera”, Bentinho traz ao presente da
narrativa o diálogo que travara com um tenor italiano acerca da definição da
expressão “A vida é uma ópera”, sempre repetida pelo velho músico. Antes de
iniciar esse capítulo, Bentinho chama a atenção do leitor para o momento que
ele considerava como o princípio de sua vida, que antes se constituiu apenas de
preparativos, bastidores:
[...] tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das
pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o
preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a
minha ópera. ‘A vida é uma ópera’, dizia-me um velho tenor
italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a
definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a
pena dá-la; é só um capítulo.
112
Para ilustrar a definição de costume, o tenor Marcolini conta a Bentinho
a história da Criação, metaforizada pela ópera, assim como o fez Calderón de la
Barca e Shakespeare, utilizando-se do teatro. Esse jogo entre criação, vida e arte,
torna-se, nesses escritores, metalinguagem. Na ópera de Marcolini, Deus é o
poeta e Satanás, o maestro. Tendo Deus criado um libreto de ópera, mas dele
desistido “por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua
eternidade”,
113
Satanás o levou para o inferno, escreveu a partitura e a mostrou
111
MACHADO DE ASSIS, J. M. Dom Casmurro. Rio de Janeiro; São Paulo: Livro do mês, 1962.
112
MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 27.
113
MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 29.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
64
ao Criador. Este nem sequer a ouviu, mas acaba por consentir sua execução,
desde que longe do céu. Para a execução dessa ópera, Deus criou um teatro
especial, o mundo, e uma grande companhia, com coros, bailarinos, orquestras.
Os ensaios, Deus não os quis ouvir; a ele já bastava ter escrito o libreto:
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns
desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga
teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para
a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que
nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo da
monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel,
os coros da guilhotina e da escravidão.
114
A metáfora da ópera apresentada a Bentinho traduz um mundo criado
conjuntamente pelo bem e pelo mal, em que há, portanto, perfeições e
desajustes, repetições e obscuridades. A ópera representada nesse “palco”
criado por Deus é a própria vida, com suas certezas e incertezas, nascimentos e
mortes. O velho tenor conclui, ainda, que essa peça composta por Deus e
Satanás continuará a ser representada enquanto o teatro estiver de pé, ora pelo
barítono, ora pelo baixo. “O êxito é crescente. Poeta e músico recebem
pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra
da divisão é aquela da Escritura: ‘Muitos são os chamados, poucos os
escolhidos’. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.”
115
114
MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 30-31.
115
MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 32.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
65
2.1 Lendo imagens barrocas
O triunfo de uma ordem divina no mundo foi representado, ainda, por
vários pintores barrocos, como uma oportunidade de ressaltar os preceitos da
Contra-Reforma e fortalecer a fé católica. A monumentalidade da arquitetura da
época contribuiu para a chamada “propaganda” do conservadorismo religioso
e do absolutismo. O espaço urbano tornou-se cenário estável para abrigar,
quando necessário, as estruturas efêmeras das encenações, numa espécie de
entrelaçamento entre o real e o fictício. A imagem, o código visual, era matéria
fundamental numa época em que tudo parecia enganoso, ilusório, aparente e
em que se procurava seduzir pela ostentação e atemorizar pela idéia da morte.
Em Lendo imagens, no capítulo “Caravaggio, a imagem como teatro”,
Alberto Manguel sugere que a rua, a cidade e até mesmo uma tela são, também,
espaços de representação, assim como o palco de um teatro.
116
Para o crítico, o
que o artista inclui numa determinada imagem, seja ela construída, esculpida,
pintada seja fotografada, e o que o “espectador vê nela como representação”
conferem “à imagem um teor dramático, como que capaz de prolongar sua
existência por meio de uma história cujo começo foi perdido pelo espectador e
cujo final o artista não tem como conhecer”.
117
116
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Trad. Rubens Figueiredo,
Rosaura Eichemberg, Cláudia Strauch. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
117
MANGUEL, 2001, p. 291.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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66
Nas telas de Caravaggio, por exemplo, em que há, para Argan, “a
contradição entre um espaço visto e um espaço intuído, o prolongamento do
drama para além de seu tempo expressivo”,
118
as pessoas comuns, os pobres e
miseráveis das ruas de Roma ou Nápoles eram representados muitas vezes
através de figuras santas, como Maria e os apóstolos. Também nas
representações populares realizadas nas ruas e praças da cidade, como a
commedia dell’arte, os mistérios e as procissões, os miseráveis representavam seu
papel no teatro do mundo. A miséria real a que se assistia no espaço público
transformava-se, assim, com esse caráter teatral, em espetáculo; os próprios
miseráveis eram ao mesmo tempo atores e espectadores.
Otto Maria Carpeaux afirma que as principais expressões do barroco, a
que ele denomina “sistema de civilização”, são seu teatro e seu Estado, os quais
estão inter-relacionados.
119
Para o crítico, “todo grande teatro, todo teatro
verdadeiramente grande é por essência político”.
120
A importância dada à
figura do rei desde o teatro antigo e o fato de o palco barroco configurar-se
como o “mundo”, seja ele político seja cósmico, corroboram essa afirmativa.
Arte prodigiosa, o barroco produziu um teatro grandioso e cheio de artifícios:
tempestades artificiais, aparição de deuses nas nuvens, jatos de água e de
chama, fogos de artifício, máquinas que levavam personagens aos ares. A
118
ARGAN, 2004, p. 186.
119
CARPEAUX, Otto Maria. Teatro e Estado do Barroco. Estudos avançados, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 7-
96, set./dez. 1990.
120
CARPEAUX, 1990, p. 11.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
67
perspectiva e a mudança de cena, inovações do teatro barroco, separaram o
espaço dos espectadores do espaço dos atores, contribuindo para a criação de
“um mundo da ilusão”, um “mundo dos sonhos”, tema caro à arte produzida
no período.
As personagens do teatro barroco configuram-se, assim, para Carpeaux,
como marionetes que se agitam sem nenhuma vontade, guiadas pelo fio da
moral estóica, renovada pelo Concílio de Trento. Para o homem barroco,
pessimista e melancólico, envolto pelas tentações do mundo e pela idéia
constante da morte, não haveria salvação fora da graça celeste. O livre-arbítrio
está em escolher a ser marionete da fé católica ou das paixões mundanas:
Não é a escravidão da vontade, mas simplesmente a
dependência religiosa do homem. [...] Na cena barroca, a
liberdade humana subsiste, na medida em que ela se submete a
Deus; quando ela resiste a Deus, o homem rebaixa-se a
marionete do demônio; e a submissão a Deus consiste em
negação voluntária do mundo.
121
O mundo barroco, el grand teatro del mundo, é um mundo de vaidades.
Para Carpeaux, a “apoteose” a que se chega, ao final de suas peças, é também
característica do Estado e, por conseqüência, do mundo. “O Estado barroco é a
apoteose do monarca. O rei representa, ‘hic et nunc’, a glória do outro
mundo”.
122
E cada aparição sua é uma majestosa representação, a do
121
CARPEAUX, 1990, p. 18-19.
122
CARPEAUX, 1990, p. 21.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
68
representante maior de um Estado que, rodeado pela corte, alcança uma espécie
de devoção do seu “público”. Nesse sentido, vale salientar a reflexão de
Umberto Eco sobre o signo teatral.
123
Para o crítico, toda ação/representação
teatral é um signo. Sendo assim, o que é ali apresentado/representado, fictício
ou não, refere-se a “alguma coisa que fica no lugar de alguma outra coisa”:
O elemento primário de uma representação teatral (além da
colaboração de outros signos como os verbais, cenográficos,
musicais) é dado por um corpo humano que se sustenta e se
move. Um corpo humano que se move se apresenta como uma
coisa verdadeira, eventualmente objeto de signos possíveis
(fotografável, definível verbalmente, desenhável...). Mas o
elemento sígnico do teatro consiste no fato de que esse corpo
humano não é uma coisa entre outras coisas, porque alguém o
exibe, recortando-o do contexto dos eventos reais, [...]
constituindo ao mesmo tempo como significantes os
movimentos que este executa e o espaço no qual se
inscrevem.
124
A entrada em cena do rei – ou de um representante do poder –, marca,
assim, uma representação teatral, uma vez que seu corpo é retirado do contexto
de homem comum e exibido em um espaço público, com todos os ornamentos
que lhe competem. Nessa aparição, colaboram os elementos verbais,
cenográficos e musicais, a exemplo dos discursos proferidos, da própria
arquitetura da cidade e dos adereços que a acompanham em ocasiões de
celebração, dos ritmos que compõem essas festividades. Os movimentos
123
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Trad. Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
124
ECO, 1989, p. 39.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
69
realizados pelo rei, que acabam por constituir uma linguagem corporal típica,
como já foi dito, e o espaço público transformado em palco representam os
significantes a que Eco se refere.
2.2 O teatro do mundo em Os sinos da agonia
No romance Os sinos da agonia, é o Capitão-General que, hic et nunc,
representa o poder, no grande teatro do mundo, miniaturizado em Vila Rica.
Mais do que isso, ele também dirige o espetáculo, como representante do rei.
Diretor, ator e espectador, “aos olhos dos áulicos e na língua arrevesada dos
panegiristas do áureo trono, era o próprio Sol Novo da América”.
125
Para a
cerimônia da morte em efígie de Januário, a forca é construída sob medida e
risco do próprio Capitão-General. Pela primeira vez montado na praça, e não
no Morro da Forca, lugar de costume onde eram executados criminosos “sem
nenhum valimento”, o patíbulo fora construído como para executar não um
simples boneco, mas um corpo o mais pesado que fosse. Era, portanto, uma
punição diferente, em praça pública, para servir de exemplo, demonstração do
poder conferido ao representante del-Rei, que se sentira ameaçado com a
suspeita de um motim. Se não há o corpo em si, providencia-se o seu substituto.
O que não deve ficar oculta, em hipótese alguma, é a força do poder político do
125
DOURADO, 1974, p. 33.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
70
soberano, ofendido em sua pessoa, em detrimento da força daquele que é
submetido à punição.
O papel de ator principal, no palco montado na Vila Rica do romance,
ora é representado pelo Capitão-General, ora por Januário, ora por Malvina. Até
mesmo o carrasco Mulungu, personagem aparentemente sem importância, tem
seu momento de glória. Durante o cortejo, segurando o calunga – a efígie –, é
aclamado pelo público. “O preto ia risonho e glorioso, famoso carrasco ele era,
distribuindo olhares e risos. Nunca tinha sido tão importante assim na vida. [...]
a boca escancarada, os dentes cavalares branquinhos”.
126
No patíbulo, o
carrasco divide com os representantes do poder – o padre e o alferes – o papel
de destaque; ele é o escolhido para executar, com as próprias mãos, a sentença
imposta a Januário. Nesse momento, o Capitão-General assistia ao espetáculo
que ele mesmo havia dirigido. A sacada do palácio era o seu palco particular,
onde se mostrava, ao mesmo tempo, ator e ilustre espectador:
De cima do patamar da forca, na sua plataforma, o preto
Mulungu olhava soberano a praça cheia de gente e soldados na
mais rigorosa formação militar, tão soberano e soberbo como o
Capitão-General titereteiro da sua sacada enfeitada de brocado
de ouro velho. Assim ao sol, imóvel e brilhoso de suor, sem o
mais leve movimento ou tremor de músculos, o peito estofado,
a cabeça erguida, as mãos segurando a ponta do baraço,
Mulungu parecia uma colossal estátua untada de alcatrão. Tão
hierático e solene [...], surgido do negrume de uma estampa
antiga, que ninguém, nenhum moleque mais atrevido ou
bêbado teve a ousadia de assobiar e gritar Mulungu dos
126
DOURADO, 1974, p. 34.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
71
infernos. Aos olhos daquela gente aterrada ele era mesmo uma
potência das trevas.
127
Na Vila Rica do romance, os palcos se multiplicam, ora representando
espetáculos púbicos, assistidos por uma considerável platéia, vinda de todos os
cantos da cidade, da vizinhança e até mesmo de longe, ora representando
espetáculos particulares, em que a platéia se forma por um ou dois pares de
olhos, como aquele montado na sala do sobrado da Rua Direita. Malvina e
Gaspar apresentam, em noites de arte e alegria, para os olhos cansados e
sonolentos de João Diogo, as peças de cravo e flauta que ensaiavam durante as
“deliciosas” tardes que passavam juntos. O cravo ficava em lugar de destaque,
trazido do reino, “manufatura das mais ricas e caprichadas, [...] todo pintado a
ouro, com medalhões, conchas, liras e figuras mitológicas. [...] a pintura
colorida e esfumada, a delicada simetria, o esbatido das figuras, a graça
lânguida e musical”.
128
A sala, palco da casa, também funcionava como teatro.
O cenário era bastante requintado: cortinas com fitas de seda, cadeiras de
madeira entalhada, o canapé com assento forrado de damasco, consolos e mesas
filetadas, um lustre de cristal de cinqüenta luzes. No teto, a pintura das quatro
estações, que Gaspar observara demoradamente quando chegou do sertão e
veio morar na nova casa do pai, agora um rico sobrado perto da praça e não
mais o arraial do Pe. Faria, representa uma percepção cíclica do tempo.
127
DOURADO, 1974, p. 34.
128
DOURADO, 1974, p. 157
PAISAGEM NA NEBLINA
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72
Distante dali, em Taubaté, a aparição de Malvina para João Diogo já
havia se constituído numa espécie de espetáculo: “E Malvina apareceu. Foi
como se um sol entrasse na sala, todos pensaram na pasmaceira. Tão
esplendorosa vinha. O vestido de seda farfalhante, o jeitoso penteado, a graça
faceira da fita de gorgorão azul”.
129
Ali começara a sua trama de conquistar o
velho potentado. Depois de sorrir a ele, ainda curvou-se com graça estendendo-
lhe a mão. Além de primorosa tecedeira – teceria com astúcia a cena de sua vida
e de outros personagens –, Malvina também era sábia atriz. Mostrava-se boa
moça quando lhe era conveniente e desejosa quando necessário.
Malvina, “filha do sol, da luz”, “Mal vinda – Má sina – Malina
(maligna, o demo)”,
130
era “moça de grande ânimo e vontade, [...] confiava nos
seus encantos e chamarizes, no poder infalível de suas maquinações, [...] tinha a
ciência e malícia da mãe, a que juntava a ambição do pai [...]”.
131
Conseguiu
roubar o pretendente da irmã, casou-se com o velho João Diogo Galvão,
transformou-o em um homem dado a fraquezas e obediências à esposa,
convenceu-o de comprar um belo sobrado no centro de Vila Rica, decorou-o
conforme queria, com ricos ornamentos e pratarias, até ficar entediada. Já havia
conquistado o que planejara e a vida lhe parecia demasiadamente sem graça. Só
depois do encontro com Gaspar, já apaixonada, ela voltaria a maquinar, sua
129
DOURADO, 1974, p. 81.
130
DOURADO, 1976, p. 143.
131
DOURADO, 1974, p. 76
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
73
vida voltando a ser constante espetáculo: ora tragédia, ora comédia, ora teatro
de marionetes.
João Diogo, Gaspar e Januário foram marionetes nas mãos de Malvina.
O primeiro acabou assassinado por uma trama arquitetada por Malvina.
Januário, tendo caído em seus encantos, foi usado como assassino, homem
capaz de cometer um crime por causa de uma paixão alucinada. Gaspar, por
sua vez, mesmo apaixonado, não cedeu às suas vontades, não se juntou a ela
depois da morte do pai, mas foi vítima de sua malícia: antes de se matar,
Malvina deixaria uma carta acusando-o como verdadeiro assassino de João
Diogo. Com o suicídio e a carta endereçada ao Capitão-General, Malvina dava
fim àquela farsa que, meticulosamente, havia planejado e dirigido. Maquinara
tudo com uma determinada intenção, “mas nem tudo ela sabia, nem tudo a sua
memória do futuro podia prever e registrar. [...] Trêmula do esforço que fazia
por se conter, a mão protegia a chama vacilante da vela. Só sabia até certo ponto
o que ia acontecer”.
132
Ora impetuosa, ora “paciente tecedeira”, Malvina não tinha o comando
de tudo, de todos os acontecimentos, estava, segundo o narrador, sujeita à força
do destino. A vida que representava no teatro do mundo lhe parecia mesmo, às
vezes, uma “chama vacilante da vela”. Nas noites de alegria que dividia com
Gaspar na sala do sobrado, nas de paixão e loucura com Januário, às
132
DOURADO, 1974, p. 128.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
74
escondidas, nos passeios em sua “cadeirinha de arruar” pelas ruas da cidade,
em todos esses momentos, Malvina representava pápeis, usava diferentes
máscaras, indumentárias necessárias para que o seu plano se consumasse. Mas
os fios, excessivamente tênues e esquivos, escaparam daquela urdidura
aparentemente bem tecida, restando a ela ouvir as sete pancadas da agonia,
“badalada grave e longa, demorava-se demais da conta, dilatava-se”.
133
assim, destruindo-se, ela poderia, também, destruir Gaspar e se vingar, movida
de fúria e ciúme.
Nas maquinações de Malvina, a escrava Inácia apresenta-se como co-
autora. Assim como o escravo Isidoro, fiel a seu senhor, a mucama era cúmplice
de cada pequeno ato ou intenção de Malvina. Fora ela quem tivera a idéia de
arranjar um homem que despertasse os ciúmes e, talvez, o amor de Gaspar. A
idéia do crime tinha sido de Malvina, afiança o narrador, a escrava só soube
depois. Curiosa, “mexeriqueira” e muito devota à sua senhora, Inácia foi porta-
voz de recados endereçados a Januário e abria-lhe a porta dos fundos, na Rua
das Flores, para que ele entrasse. A espiar pelos cantos, fazia-se espectadora,
uma típica espectadora à socapa. As cenas lhe eram mostradas pelas gretas das
portas e janelas, pelo buraco da fechadura. Quando não parecia um fantasma a
rondar pela casa, dedicava-se a incitar Malvina em suas tramas. Nesse jogo
133
DOURADO, 1974, p. 173.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
75
entre atriz e espectadora, fomentando e sendo co-participante da trama,
evidencia-se, pois, sua importância em Os sinos da agonia.
Além das cenas de contentamento, dos duos de cravo e flauta
promovidos por Malvina e Gaspar, no sobrado da Rua Direita, também se
representavam cenas fúnebres como o velório de João Diogo, descrito com mais
detalhe no terceiro capítulo, “O destino do passado”, dedicado a Gaspar. Nas
Minas dos Setecentos, impregnadas de um “intenso espírito devocional”, os
velórios constituíam-se espetáculos em que cada familiar ou visitante cumpria o
seu papel. O espaço da casa era, também, usado como palco para essas
cerimônias, uso ainda tradicional em muitas cidades do interior mineiro. Nessas
ocasiões, o papel de ator principal é reversível: ora representado pelo morto,
que ocupa o lugar de destaque, rodeado de velas e coberto de flores, ora por um
ilustre visitante, para o qual todos os olhos se voltam curiosos, ora pelos
familiares, que aparecem chorosos, como se pedissem a atenção.
Em Os sinos da agonia, sendo o defunto o importante potentado de Vila
Rica, considerado vítima de um levante que apenas havia começado, para
atingir o Capitão-General e a pessoa do rei, o seu velório é realizado com todas
as honras a que tinha direito, os dobres especiais de mesário e protetor de
irmandade. Dentro do caixão, cercado de quatro tocheiros que crepitavam
“feito tivessem jogado sal nas chamas”,
134
estava o corpo de João Diogo Galvão,
134
DOURADO, 1974, p. 131.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
76
vestido com uma casaca de veludo verde em que brilhavam as “insígnias da
Ordem de Cristo”. A roupa já era do tempo em que se queria “casquilho”
135
;
por gosto da jovem esposa, havia se transformado num homem dado às modas
e aos enfeites. Quando Gaspar viu o corpo do pai na sala, ficou mudo e trêmulo
e mandou limpar tudo, toda aquela máscara que envolvia o rosto do pai:
Não bastava a máscara da morte, pensou enfático. Muito
melhor a palidez de cera, o marfim da pele. A roupa ainda
podia deixar passar, aquilo não. Tirem isso, limpem a cara,
disse gritando ao ver a brancura medonha do pai. [...] Medonha
a cara do pai, máscara de comédia. A pomada branca, o carmim
nos beiços murchos. Em vida já enojava, quanto mais depois de
morto. A cara deve ser a dele mesmo, disse comandando agora
o final da pantomima macabra.
136
Como se pode observar, também a morte, com todo o ritual que a
acompanha no romance, é representada como uma comédia. Desde que se
casara com Malvina, João Diogo mais parecia um palhaço, um bufão, carregado
de enfeites, a fazer rir os habitantes de Vila Rica. Dentro do sobrado, o corpo é
velado em meio ao cheiro nauseabundo das flores, das velas, do próprio morto;
ao som dos sinos que tocavam os dobres especiais, às vozes dos cochichos dos
visitantes e das beatas rezando o terço. Naquela atmosfera lúgubre e, de certa
forma, de ensueño, como a das festas barrocas, as muitas lembranças vinham
confusas à memória de Gaspar, misturadas às imagens e objetos em que fixava
135
DOURADO, 1974, p. 129.
136
DOURADO, 1974, p. 131.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
77
o seu olhar – os valiosos castiçais de prata lavrada, a toalha de renda que
trouxera da Europa para a mãe, o corpo agonizante do crucifixo pregado na
parede.
O velório de João Diogo Galvão constitui-se, portanto, como mais uma
forma de representação que contribui para transformar a cidade de Vila Rica
em uma cidade-palco. Nesse tipo de ritual, costumava-se até mesmo pagar
mulheres para que pranteassem o morto, as chamadas “carpideiras”. Não raras
vezes, o velório era motivo de celebração, em que se “bebia o morto”. Este
seguia em cortejo pelas ruas da cidade, rumo ao palco maior dessa
representação, o espaço da igreja, onde se davam as exéquias. Em Os sinos da
agonia, a missa de réquiem (requiem aeternam repouso eterno) acontece na
própria casa de João Diogo. Depois da chegada do padre, as rezas se
intensificam, o cheiro da vela derretida parece mais forte, a angústia e o estado
confuso de Gaspar aumentam. A entrada do Capitão-General, no vermelho e
amarelo (sangue e ouro) vistosos de sua farda, e a aparição de Malvina, num
luto que parece exaltar sua beleza, “a mantilha rendada cobrindo a cara”,
representam espetáculos à parte, causando grande rebuliço na platéia. Nela,
tudo era “pantomima, ópera, fingimento”,
137
e, juntos, compunham como que
um passo de dança:
Malvina dobrou os joelhos, curvou a cabeça na reverência ao
Capitão-General. Ele segurou-lhe a mão, levantou-a, impedia-a
137
DOURADO, 1974, p. 147, 146.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
78
de completar a curvatura. Como numa dança, o salão todo
iluminado e a música lenta, os dois se dirigiram, em passos
medidos, no minueto, para junto do corpo de João Diogo
Galvão. Mudos e iluminados, vivia-se uma grande festa de
dor.
138
Os gestos graciosos e solenes de Malvina e do Capitão-General destoam
do momento fúnebre vivido no sobrado. Essa mudança de tensão na narrativa e
o paradoxo da expressão “festa de dor” denotam uma certa indiferença por
parte dos dois personagens quanto à morte de João Diogo. Malvina, como se
sabe, foi quem tramou a morte do marido, parte do plano que havia arquitetado
desde que se viu apaixonada pelo enteado; a intenção era se juntar a Gaspar,
mas este viria a recusá-la. Quanto ao Capitão-General, apesar de não ter
nenhuma relação direta com o assassinato – ele mesmo havia se ofendido com o
crime –, era-lhe bem conveniente aquela morte, pretexto para que montasse, ao
seu gosto e com toda a pompa necessária às suas intenções, o espetáculo da
morte em efígie de Januário, “bode expiatório”
139
nas mãos de um e de outro.
Durante o velório de João Diogo, há uma menção sugestiva à figura da
serpente. O padre, em seus paramentos especiais, trazia consigo a “fumaça
cheirosa e boa do incenso, [...] aquele cheiro bom, das suas melhores
lembranças, espantava para mais longe ainda a mistura nauseante de vela e
138
DOURADO, 1974, p. 148.
139
O costume de considerar como “bode expiatório” o culpado pelos pecados de outrem, sem que este se
defenda, apele à Justiça ou seja efetivamente condenado, tem tradição bíblica em Lv 16, 5-16 e Lv 14,
4-7. Dois bodes eram oferecidos ao sacerdote para o ritual de expiação. Um deles, escolhido por
sorteio, era sacrificado e o outro recebia todos os pecados do povo e, em seguida, era levado para o
deserto.
PAISAGEM NA NEBLINA
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Claudia Cristina Maia
79
flor”.
140
As boas lembranças de Gaspar sempre se referiam à mãe ou à irmã,
símbolos de bondade e pureza, e agora pareciam trazer à memória a imagem da
santa pisando a serpente. Modelo de mulher sem pecado, Joana Vicência era,
para Gaspar, a santa mesma que pisava a serpente: “O padre sentiu o incômodo
primeiro, começou a falar, a consolá-lo. Devia ter fé e confiança em Deus, na
Virgem Maria. Ele se limitava a fazer que sim com a cabeça. Nossa Senhora da
Conceição pisando a cobra. Ou não era Nossa Senhora da Conceição?”.
141
Em uma das inúmeras aparições de Nossa Senhora, ela se mostra
derramando graças ao mundo e pisando a cabeça de uma serpente. Reza a
tradição católica que a virgem aparecera em Paris, em 1830, para uma das
noviças Irmãs Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. A ela deu-se o nome
de Nossa Senhora das Graças e não Nossa Senhora da Conceição, como muitos
acreditam. A imagem da virgem pisando uma serpente tem referência no livro
de Gênesis (Gn, 3:15).
142
A serpente, símbolo do caos, da desordem e da traição,
foi, na narrativa bíblica, amaldiçoada por Deus por ter convencido a mulher de
comer o fruto proibido. O castigo divino para esses personagens seria assim
distribuído: a serpente se arrastaria sobre o seu próprio ventre e comeria pó,
tornando-se inimiga perpétua da mulher e de sua descendência. Nessa luta
140
DOURADO, 1974, p. 138.
141
DOURADO, 1974, p. 139.
142
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. A. T. Gênesis. ed. rev. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 35.
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80
infinita, a descendência da mulher esmagaria a cabeça da serpente e esta feriria
o calcanhar daquela.
143
Em Os sinos da agonia, a serpente é representada por Malvina, que trai
Januário, armando contra ele uma farsa. Destinado a representar o papel de
miserável, como aqueles das telas de Caravaggio ou os outros das cerimônias
públicas, a que se referiu Manguel, Januário também foi vítima da traição, da
maquinação, do Capitão-General, que tomou o seu crime passional como o de
lesa-majestade, recebendo, por isso, como sentença a pena capital. Aos
propósitos do representante do rei bastaria um calunga, este mesmo poderia
carregar os pecados do povo e sofrer a pena do banimento. Alguém,
certamente, esperava-se, ficaria encarregado de achar o corpo fugitivo.
O ato de usar uma efígie nas cerimônias de castigo para substituir o
corpo, já morto ou porque o réu era fugitivo, representado no romance de
Autran Dourado, remonta aos princípios da magia, tratados, por exemplo, em
O ramo de ouro, de James George Frazer.
144
Para esse autor, tais princípios se
resumem em dois: “primeiro, que o semelhante produz o semelhante, ou que
um efeito se assemelha a sua causa; e, segundo, que as coisas que estiveram em
contato continuam a agir umas sobre as outras, mesmo à distância, depois de
cortado o contato físico”.
145
O primeiro princípio Frazer denomina “lei da
143
A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985, p. 35.
144
FRAZER, James George. O ramo de ouro. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Círculo do Livro, 1983.
145
FRAZER, 1983, p. 34.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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81
similaridade” e o segundo, “lei do contato ou contágio”, baseado na relação de
contigüidade. Ambos, que não raro se combinam, consideram a possibilidade
de inter-relação entre coisas que estão afastadas umas das outras.
A lei da similaridade produz a denominada “magia homeopática ou
imitativa”, que, segundo Frazer, tem sido praticada em todo o mundo, em
todos os tempos, especialmente por feiticeiros e entre os povos indígenas. A
aplicação mais conhecida da magia homeopática é aquela que tem como intuito
ferir ou destruir uma pessoa fazendo o mesmo com uma imagem sua, com um
calunga. Os autos-de-fé promovidos pelo tribunal da Inquisição que se serviam
de um boneco ou efígie para substituir o corpo do condenado parecem se
basear nesse princípio da magia homeopática de que o semelhante produz o
semelhante. Assim também era feito nas cerimônias de condenação no Brasil
colonial. Depois de morto em efígie, se achado o condenado fugitivo, qualquer
um poderia matá-lo sem correr o risco de ser acusado de crime. A imagem era
usada como símbolo, para dar crédito à morte daquele que já havia sido banido
da sociedade e, também, como estímulo à captura e/ou morte do sentenciado.
Em Os sinos da agonia, sem uma imagem do condenado, a fúnebre
cerimônia não seria exemplar, como a que desejava o Capitão-General. Preso
inicialmente por crime comum, roubo seguido de assassinato, Januário é levado
à prisão da Câmara. Depois de levantada a suspeita de conspiração, deveria ser
conduzido à prisão del-Rei, o que não se cumpre, pois foge com a ajuda do pai,
que paga ao carcereiro pela liberdade do filho carijó. Na prisão, os indícios de
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82
motim e de crime de lesa-majestade seriam confirmados por meio de torturas e
acareações. E Januário imaginava: contaria o que quisessem sob tortura, a ferro
e fogo; ele próprio acreditando-se culpado:
Os nomes, diga os nomes. Você vai ter de dizer, diga logo. E ele
agora, Januário, não sabia que nomes, não seria capaz de acusar
ninguém. Bobagem, os juízes mesmo diriam os nomes, ele teria
só de confirmar, de juntar a sua imaginação aos fatos que lhe
contavam. Para satisfazer a fúria do Capitão-General e dos
homens del-Rei, ele inventaria.
146
Este seria, pois, o princípio da tortura: causar dor e sofrimento físicos ao
acusado para obter dele respostas, denúncias, confissões. Para Michel Foucault,
a tortura que se aplica e o juramento que se pede ao acusado antes do
interrogatório são os grandes meios que o direito criminal clássico utilizaria
para obter a confissão.
147
O pensador ainda declara que a prática da tortura,
nesse contexto, remontaria à Inquisição e que ela “tem lugar estrito num
mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um
lastro de elementos do sistema acusatório; em que a demonstração escrita
precisa de um correlato oral; [...]”.
148
Nesse processo, o acusado é uma espécie
de “parceiro voluntário” e a verdade é produzida a partir de dois mecanismos:
o inquérito levado em segredo pela autoridade judiciária e a ação executada
146
DOURADO, 1974, p. 48.
147
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 31. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006.
148
FOUCAULT, 2006, p. 35-36.
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83
ritualmente pelo acusado. O interrogatório à base de tortura seria, portanto, nos
termos de Foucault, o “suplício da verdade”.
A tortura é classificada, por Foucault, como uma “pena”, mas utilizada
legitimamente como um “meio”, quando de um processo em que se chega a um
certo grau de presunção. Aqui ela tem um duplo papel: “começar a punir em
razão das indicações já reunidas; e servir-se deste início de pena para extorquir
o resto da verdade que ainda faltava. [...] o sofrimento regulado da tortura é ao
mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução”.
149
E o corpo
continua a ser utilizado como instrumento depois de formuladas a prova e a
sentença, na execução da pena, como peça fundamental na cerimônia pública
do castigo, o “suplício ritualizado”.
Considerado uma das cerimônias pelas quais se manifesta o poder, o
suplício “deve ser compreendido também como um ritual político”.
150
A
infração, o crime, não acomete apenas a vítima, mas também o soberano, cuja
força é a força da lei. O castigo, a pena, não seria, portanto, apenas a reparação
do dano em si, mas também daquele causado ao reino e à pessoa do rei (ou de
seu representante). A vingança do castigo é, por conseguinte, pessoal e pública,
se se considera que a lei é, de certa maneira, a manifestação da força físico-
política do soberano.
149
FOUCAULT, 2006, p. 38.
150
FOUCAULT, 2006, p. 41.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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84
Em Os sinos da agonia, para reconstituir a sua autoridade suprema,
lesada pelo crime, o soberano promove com bastante brilho e pompa uma
execução pública em que se lembra quem é quem no sistema absolutista,
espetáculo isento de qualquer forma de medida ou limite. Assim, o que Autran
Dourado recria em seu romance é uma representação do desequilíbrio próprio
desse poder: “Quando passava a carreta, todos recolhiam o riso, emudeciam.
Mesmo interiormente reparando, ninguém tinha a coragem de falar que o
Capitão-General levava longe demais a sua fantasia”.
151
Januário, ao ouvir o escravo Isidoro lhe contar toda a cena de sua morte,
recompunha o que sabia sobre sacrifícios, enforcamentos e agonias. Lembrava-
se dos condenados presos a grilhões, dos sons doloridos que vinham das
cadeias, dos açoites no pelourinho, em meio a lágrimas, uivos, sangue e suor,
“sentindo antecipadamente no pescoço o golpe, o peso do carrasco que lhe
saltou nas costas”.
152
Recordava-se, também, de todo o aparato das cerimônias,
nas quais não faltavam os juízes, camaristas, soldados, alferes, capitães,
coronéis, padres, monsenhores, cônegos e bispos, formando uma grande lista
que denunciava a hierarquia da Igreja e da Justiça e os atores desse teatro de
morte. A macabra cerimônia de sua morte em efígie relacionava-se, pois, ao
Triunfo Eucarístico, à procissão do enterro ou à de Corpus Christi.
151
DOURADO, 1974, p. 33.
152
DOURADO, 1974, p. 35.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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85
Ali estava presente a “cidade letrada”, a que se refere Angel Rama,
indispensável àquela ordem a que almejava o sistema da monarquia absoluta,
formada por um grupo social especializado, a chamada elite intelectual, e pelos
setores eclesiásticos. Para Rama, dentro da cidade material visível, a cidade de
pedra, existia uma outra, a cidade letrada, “não menos amuralhada, e não
menos porém mais agressiva e redentorista, que a regeu e conduziu”.
153
Na
cidade de Vila Rica, tal qual a cidade-palco de Autran Dourado, pode-se dizer
que a cidade letrada “compunha o anel protetor do poder e o executor de suas
ordens”,
154
compreendendo os poderes político, religioso e militar, que
funcionavam, de certa forma, sob o comando da metrópole. Além desses
órgãos, a contrapelo do poder central, surgiu, em Vila Rica, uma elite intelectual
formada por poetas e outros artistas e que, organizada por alguns clérigos,
militares e proprietários rurais descontentes com o domínio português e suas
arbitrariedades fiscais, fez irromper a Inconfidência Mineira, movimento que
almejava a liberdade e a República.
No período colonial, a cidade letrada teve uma importante função
social, tanto na administração como nas artes. Quanto a isso, vale ressaltar o
valor e a influência que tiveram as festas barrocas e os rituais sacros,
mecanismos que funcionaram como uma forma maciça de propaganda e
persuasão. Sob a égide da ideologia da Contra-Reforma, “a época barroca é a
153
RAMA, 1985, p. 42.
154
RAMA, 1985, p. 43.
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86
primeira da história européia que deve atender à ideologização de multidões,
apelando a formas maciças para transmitir sua mensagem, coisa que faria com
rigor programático”.
155
Na Vila Rica ficcional de Os sinos da agonia, essa
propaganda em massa pode ser vislumbrada na cerimônia de condenação em
efígie de Januário, organizada de forma semelhante aos rituais religiosos tão
tradicionais e de tão largo efeito nas Minas do século XVIII, a exemplo da
procissão de Corpus Christi.
A festa de Corpus Christi foi instituída como festa ecumênica da Igreja
Católica no século XIII, em 1264, pelo Papa Urbano IV. No século XIV, essa
comemoração torna-se mais pública, em virtude da procissão que passa a
compô-la.
156
Para Maria de Lourdes Martini, devido à falta de uma longa
tradição, em comparação com as outras festas católicas, a cerimônia de Corpus
Christi tomou as festividades profanas como modelo. A coexistência de motivos
sagrados e profanos que caracterizou a celebração parece ter sido responsável
pela sua magnificência no período barroco, em que havia, também, essa
duplicidade. Elementos dramáticos e alegóricos, de origem medieval,
caracterizavam a cerimônia, que contava, também, com a representação de
155
RAMA, 1985, p. 45.
156
MARTINI, Maria de Lourdes. O teatro barroco: o grande teatro do mundo. In: CALDERÓN DE LA
BARCA, Pedro. O grande teatro do mundo. Trad. Maria de Lourdes Martini. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1988.
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autos sacramentais, gênero dramático cujo apogeu se dá nesse período, mas que
foi proibido por Decreto Real de 11 de junho de 1765.
157
Em Os sinos da agonia, o próprio personagem Januário vê estreitas
semelhanças entre o cortejo que antecede sua morte em efígie e as festividades
organizadas pela Igreja, a exemplo de Corpus Christi, do Triunfo Eucarístico e da
procissão do enterro, o que evoca a comunhão existente, na Minas colonial, do
poder político com o religioso, como se um não existisse sem o outro, ambos
apoiados pela Justiça. Não obstante os conflitos que existiram entre eles,
decorrentes da cobrança de tributos e das fraudes por parte da Igreja, em
ocasiões de festa pareciam demasiado unidos, como para o triunfo de uma
ordem que se desejava estabelecida e a subserviência do homem comum. Na
Vila Rica ficcional, essa comunhão fica manifesta, portanto, quando do
“espetáculo guinhol” para o qual toda a cidade se prepara com grande luxo.
À passagem do cortejo, podia-se observar, além do ânimo que excitava
a população, ávida pela chegada da carreta que trazia a efígie do condenado,
uma fé condescendente dos devotos, que “abaixavam a cabeça, se descobriam e
se benziam e ajoelhavam na contrição do costume”, quando o cruciferário
erguia a cruz de prata ou um dos padres benzia-os com a fumaça do incenso,
eles próprios cúmplices de um poder que se mostrava indivisível,
comportando-se como se estivessem ali para celebrar o Santíssimo Sacramento.
157
MARTINI, 1988, p. XIII.
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“Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, alguns gritavam. Para sempre seja
louvado, respondiam. Dos sobrados mais ricos chegavam a gritar vivas a el-Rei
nosso Senhor”.
158
Depois de chegada à praça a carreta que trazia a efígie amarrada numa
“cadeira-de-estado”, vestida com a “alva dos penitentes”,
159
inicia-se o discurso
do padre: uma melopéia, “a fala em cantochão, a voz no mesmo ritmo, os
mesmos crescendos e desmaios do fraseado, as mesmas paradas e silêncios a
que estava tão acostumado”.
160
À fala do padre, outro representante do poder,
contrastando com o seu ritmo monótono, seguem-se as batidas frenéticas dos
tambores, que pedem a atenção da platéia para o solene momento da execução
do boneco na forca. Para finalizar, o discurso do Capitão-General é lido,
afirmando-se um “poder colonial obscuro, temido, barroco, amado e absoluto”,
em que ele assegura a “prepotência das armas a serviço de um Império, e de
uma Fé”.
161
Desse modo, a “ópera de títeres”, dirigida pelo Capitão-General para a
condenação em efígie de um réu acusado, de forma dissimulada, por crime de
lesa-majestade é, desde o início do cortejo até o seu desfecho, amparada pela
Igreja. Um crime que seria, a princípio, de ordem estritamente civil e que se
158
DOURADO, 1974, p. 32.
159
ALVA: espécie de túnica que os condenados vestiam ao ir para o suplício. In: FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 110.
160
DOURADO, 1974, p. 34.
161
DOURADO, 1974, p. 36.
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89
torna político porque o representante do rei se sente ameaçado parece colocar
em perigo, também, os princípios religiosos que regiam aquela sociedade. A
Igreja estava presente nas celebrações presididas pelo poder administrativo e
este não faltava aos rituais sagrados. A festa de Corpus Christi, como já foi dito,
incorporava, pois, elementos das festividades profanas. Martini atenta para a
presença da Tarasca, “espécie de serpente monstruosa que, conduzida por
homens escondidos em seu bojo, ia engolindo os chapéus dos que assistiam ao
desfile, preparando o terreno para a passagem da Hóstia”.
162
A hóstia designa “toda vítima morta em sacrifício por uma grande
causa, na esperança – como é a de um mártir – de vê-la triunfar”.
163
Para o
catolicismo, a hóstia simboliza o Cristo que se sacrificou na cruz, comemorado
na Eucaristia, que tem como celebração maior a festa de Corpus Christi. A
Tarasca, que, pela descrição de Martini, parece prenunciar a entrada da hóstia
nessa festa, sendo serpente e monstro, contém ela mesma a ambigüidade. Mais
do que isso, tanto a serpente quanto o monstro constituem, separadamente,
símbolos do sagrado e do profano.
A serpente, de que já se tratou neste capítulo, símbolo de mistério e
traição, além de se constituir, tradicionalmente, como símbolo do mal, também
está ligada à hierofania, uma manifestação material do sagrado.
164
É símbolo de
162
MARTINI, 1988, p. XVIII.
163
CHEVALIER, 1996, p. 497.
164
Sobre a manifestação da serpente como sinal do sagrado, atente-se, por exemplo, à serpente de bronze
construída por Moisés conforme instruções de Deus (Nm 21: 6-9).
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
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vida, da fecundidade, “o reservatório, o potencial em que se originam todas as
manifestações. [...] No plano humano, é o símbolo duplo da alma e da libido”.
165
O monstro, por sua vez, “enquanto o guardião do tesouro, é também sinal do
sagrado”. Está ligado aos ritos de passagem e, “na tradição bíblica, simboliza as
forças irracionais”. De características disformes, “ele evoca o período anterior à
criação da ordem”; e é ainda “símbolo da ressurreição: devora o homem com o
fim de provocar um novo nascimento”.
166
Na época barroca, a serpente foi constantemente usada tanto numa
acepção maligna quanto como símbolo do sagrado. Na “Madona dos
Palafreneiros” (1605-1606), de Caravaggio, por exemplo, a Virgem Maria segura
o menino Jesus e juntos pisam a serpente. À esquerda, Santa Ana assiste à cena
com a cabeça inclinada e as mãos entrelaçadas. O tratamento do claro-escuro,
típico do pintor, intensifica as figuras da virgem e do menino. O ambiente é
escuro e cavernoso, como na maioria das pinturas barrocas. Há dramaticidade e
tensão nos gestos e feições das personagens.
Todas essas simbologias podem ser vislumbradas tanto nas cerimônias
civis quanto nas festas religiosas. Uma festa por si só já significaria momento de
liberação da libido, da irracionalidade, “potencial em que se originam todas as
manifestações”. Pode-se dizer que em ambas há um aspecto carnavalesco,
menos ou mais evidente. A carnavalização, que nas festas religiosas, segundo
165
CHEVALIER, 1996, p. 815.
166
CHEVALIER, 1996, p. 697.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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Martini, instaura-se a partir da “desrepressão” e da “ambigüidade”, foi tratada
por Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.
167
Para o filósofo, na Idade Média, o “aspecto cômico popular e público” não se
restringia aos festejos do carnaval, estava presente, também, nas festas
religiosas e nos ritos civis da vida cotidiana, a exemplo da exibição de gigantes,
anões, monstros e bufões. Numa época anterior, nas civilizações primitivas, tal
aspecto era mesmo tão sagrado e “oficial” quanto aquele denominado sério. Foi
com o regime de classes e Estado que a diferença ficou manifesta e o cômico
passou a ser considerado de caráter “não-oficial”.
168
Mesmo estando relacionados, por “laços genéticos distantes”, aos ritos
religiosos da liturgia cristã, os espetáculos cômicos da Idade Média nada têm do
“dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade, [...] são
decididamente exteriores à Igreja e à religião”.
169
Eles têm, sim, por seu caráter
de jogo, estreitas relações com o espetáculo teatral, mesmo não sendo
considerados formas puramente artísticas, pois estão, segundo Bakhtin, no
limite entre a arte e a vida. “Na verdade, é a própria vida apresentada com os
elementos característicos da representação”.
170
Se para Bakhtin o carnaval
medieval nada tem do culto religioso – algumas de suas manifestações chegam
167
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. Trad. Yara Fratesch Vieira. São Paulo: Hucitex; Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1999.
168
BAKHTIN, 1999, p. 4-5.
169
BAKHTIN, 1999, p. 6.
170
BAKHTIN, 1999, p. 6.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
92
a ser legítimas paródias deste –, não se pode, porém, dizer o contrário. Os
rituais sagrados incorporaram elementos carnavalescos, como já foi dito, e
também os rituais civis considerados sérios. Estendida ao período barroco, esta
é a principal característica do carnaval que pode ser observada nas cerimônias
civis e religiosas: a vida transformada em representação.
As festas oficiais da Idade Média, tanto as da Igreja quanto as do
Estado, eram momentos de consagração e afirmação do sistema vigente,
serviam-se apenas do passado, da tradição, para consagrar uma ordem social
imposta:
A festa oficial, às vezes mesmo contra as suas intenções, tendia
a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das
regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e
tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o
triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que
assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e
peremptória.
171
O carnaval, por sua vez, era o contrário disso. Era a festa da liberdade,
da abundância, da anulação das regras e de qualquer relação hierárquica, a
“segunda vida do povo”. A praça pública, nos festejos do carnaval, tornava-se
espaço de uma comunicação livre e familiar, regida pelo princípio da igualdade.
Tais aspectos, tanto aqueles das festas oficiais quanto do carnaval,
caracterizaram as festas barrocas. Na região das Minas, as cerimônias eram
circunstâncias em que se afirmava a força da hierarquia e da verdade
171
BAKHTIN, 1999, p. 8.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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93
dominante, e, também, momentos de “desrepressão”, de liberdade de uma
população dada a revoltas e desregramentos.
Em Os sinos da agonia, essa ambigüidade é representada nas descrições
das festas de Corpus Christi e do Triunfo Eucarístico, que são trazidas à baila
pela memória das personagens, em forma de “espetáculo especular” da
cerimônia da morte em efígie de Januário. Montadas para a massa, tais
cerimônias parecem ter cumprido aquilo que Rama definiu como
“ideologização de multidões”, assim como os autos-de-fé promovidos pela
Inquisição Ibérica.
Para Luiz Nazario,
172
esses autos, organizados pela Igreja com o intuito
de punir os hereges (judeus, sobretudo), fundavam uma cumplicidade entre a
massa e o poder. Os acusados, depois de torturados nas prisões para que
confessassem a heresia cometida, chegavam à praça pública transfigurados em
personagens, vestidos com a marca de seus delitos, num cortejo acompanhado e
aclamado pela massa. Esta, segundo Nazario, antes autora do massacre, com a
Inquisição torna-se espectadora, servindo de “sustentáculo à ordem político-
religiosa”.
173
A Igreja detinha o poder de avaliar o erro, qualificá-lo, enquanto
ao Estado competia punir o herege, levá-lo ao queimadeiro, ou estrangulá-lo se
se arrependesse dos pecados.
172
NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas: FAPESP, 2005.
173
NAZARIO, 2005, p. 33.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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94
A violência antes praticada pela própria massa, em que judeus e outras
minorias eram massacrados a esmo, com o estabelecimento da Inquisição
passou a ser patrocinada pela Igreja e pelo Estado, em espetáculos públicos
regulamentados. De certa forma, a violência havia se institucionalizado. Só a
Inquisição possuía o saber e o poder de identificar aqueles que deveriam ser
condenados. O processo inquisitorial era longo e meticuloso:
Com métodos infalíveis de investigação da alma (espionagem,
delação, censura, acusações secretas, prisões preventivas,
interrogatórios capciosos e sessões de tortura), a Inquisição
Ibérica afirmou-se como uma instância privilegiada de
inspiração divina para apanhar suspeitos, arrancar confissões,
julgar e condenar judaizantes. Detendo o que hoje chamaríamos
“conhecimento científico” do Mal e que, naquela época, se
entendia ser seu “conhecimento teológico”, os inquisidores
propunham identificar os agentes do Diabo.
174
A Inquisição era a maneira oficial, “limpa”, de punir os hereges, e os
autos-de-fé que ela promovia constituíam a demonstração pública da
expurgação, da expulsão do “inimigo”. Enquanto o condenado era humilhado
em praça pública com os sinais de sua infração, a massa celebrava junto às
instituições totalitárias o triunfo da fé, numa espécie de “satisfação coletiva”. O
crime de heresia chegou a ser equiparado ao de lesa-majestade, pior infração na
legislação civil, adotando-se, portanto, a pena máxima. O fogo, que era usado
para matar o infrator e condenado à morte, purificava “o ambiente
174
NAZARIO, 2005, p. 33.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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95
contaminado pelo miasma da heresia, devolvendo ao fiel a confiança nos
valores eternos”.
175
O procedimento da morte em efígie do Brasil Colônia, pode-se dizer, é
um eco, uma herança dos autos montados pelo Tribunal da Inquisição para
punir os hereges que conseguiam fugir.
176
Enquanto na Península Ibérica a
Igreja é quem dirige, julga e condena, deixando ao Estado a punição, em Os
sinos da agonia o espetáculo transcorre segundo as ordens e os argumentos do
Capitão-General, como uma constante legitimação do poder colonial e religioso.
Para Nazario, “a humilhação pública constitui uma técnica de
dominação e pressupõe uma íntima cumplicidade entre o poder que a promove
e o público que a goza”.
177
O povo, além de espectador e testemunha, torna-se
personagem. Sem ele, a cerimônia não teria sentido. Ele está ali para ver com os
próprios olhos a punição preparada e executada pelo poder supremo, para que
tenha medo e saiba que qualquer infração está sujeita à dura pena, e ao mesmo
tempo toma parte nela, reafirmando a culpa do supliciado por meio de sua
presença, muitas vezes somada a insultos e ataques.
Desde o início do cortejo, durante a execução e depois dela, quando o
corpo do condenado ou sua efígie ficavam ainda expostos, o crime era a todo
175
NAZARIO, 2005, p. 48.
176
A Inquisição Ibérica atuou no Brasil por meio da visitação de representantes do Tribunal do Santo
Ofício, que aqui julgavam, condenavam e puniam os hereges conforme suas culpas, perante os
membros das mesas ou em ato público. Os réus condenados a penas capitais eram transportados para
Portugal, onde eram julgados, sentenciados e eventualmente queimados.
177
NAZARIO, 2005, p. 17.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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96
tempo lembrado. A intenção era guardá-lo na memória dos homens, e por isso
tanta ostentação na cerimônia, “misto de ritual primitivo, festa nacional,
celebração religiosa, julgamento público e teatro da crueldade”.
178
Enfim, uma
magnificência para a afirmação do poder soberano, ocasião em que o ato de
justiça torna-se conhecido por todos, sobre o corpo do condenado, e, no caso de
Januário, sobre sua efígie.
Em Os sinos da agonia, a sentença imposta a Januário não termina com o
espetáculo de sua morte em efígie. Ele decide voltar e se entregar aos tiros dos
soldados na mesma praça em que havia sido morto de “modo fingido”, vítima
da farsa que lhe prepararam. Para Angela Senra, ao escrever a jornada de
Januário, Autran Dourado “faz a arqueologia da re(o)pressão em nossa
terra”.
179
Rememorando o Brasil colonial e os seus procedimentos repressivos,
punitivos, do poder absoluto, o romancista denuncia a condição política
daquela época e também a dos anos da ditadura brasileira:
Quando não se pode escrever o que se pensa (nem todos temos
a coragem de enfrentar o arbítrio, a censura, a tortura, o exílio e
a morte), nos períodos ditatoriais temos de ser barrocos e
rebuscados, para que os censores não nos entendam e sejamos
sentidos e entendidos por aqueles pelos quais nos sentimos
irmãos na angústia e no sofrimento. Cada um sente, sofre e fala
à sua maneira; às vezes a fala é apenas um gemido rebuscado.
[...] com a morte em efígie e outras arbitrariedades eu queria me
178
NAZARIO, 2005, p. 20.
179
SENRA, Angela. Paixão e fé: Os sinos da agonia de Autran Dourado. Belo Horizonte: UFMG, 1991,
p. 57.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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97
referir ao então recém-decretado banimento, medida violenta
que só fora usada antes pelos portugueses no Brasil Colônia.
180
Com base nessas premissas, é possível estabelecer uma cadeia de
heranças funestas. Na Península Ibérica, no Brasil colonial e na ditadura
brasileira, usaram-se “métodos infalíveis de investigação da alma”,
denunciando a permanência de um modelo de punição próprio de sistemas
totalitários, que querem ver mantida a “verdade” de uma ordem instaurada.
Para isso, promovem-se espetáculos para as massas, transformando e
manipulando o espaço da cidade em um legítimo palco, o grande teatro do
mundo, em que a realidade convive com a ficção.
A declaração de Autran Dourado deixa vislumbrar uma possível
interpretação à luz do mito de Perseu. Italo Calvino encontra nesse mito uma
alegoria da relação do poeta com o mundo.
181
Perseu foi o herói grego que
decepou a cabeça da Medusa, não tendo voltado jamais o olhar para a face da
Górgona, mas somente para a imagem que se reflete no seu escudo de bronze,
que funciona como um espelho. O desafio de matar a Medusa, monstro cujos
cabelos eram serpentes e que transformava tudo em pedra apenas pelo olhar,
foi proposto pelo rei Polidectes, que havia se casado com sua mãe e que temia
que o corajoso Perseu tomasse-lhe o trono. O seu escudo bem polido e as
180
DOURADO, 1999, p. 120.
181
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
PAISAGEM NA NEBLINA
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sandálias aladas foram instrumentos decisivos para a sua vitória. A cabeça
decepada da Medusa, Teseu a carrega consigo para se defender dos inimigos,
escondida em seu alforje, pronta para se tornar uma arma invencível, já que
tinha o poder de petrificar tudo aquilo que a mirasse:
Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar,
Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o
vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por
uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. [...]
É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu,
mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os
quais estava destinado a viver, uma realidade que
ele traz
consigo e assume como um fardo pessoal.
182
Como Perseu, que recusa a visão direta, Autran Dourado, ao tratar das
monstruosidades exercidas pelo poder político nas Minas do século XVIII,
indiretamente escreve sobre arbitrariedades exercidas em outra época,
contemporânea à da escrita do romance. A leveza – um dos valores ou
qualidades da literatura que Italo Calvino pretende salvar e transmitir ao novo
milênio –, o romancista mineiro parece tê-la encontrado, por exemplo, na
neblina que envolve a cidade ficcionalizada em Os sinos da agonia e, também, na
cor azul que, freqüentemente, paira na narrativa.
A neblina – que, paradoxalmente, ofusca e sublima, parece funcionar
como artifício de velamento/desvelamento de uma história que, tratada em
tempos de ditadura, poderia ser censurada, e, por mais que tenha um caráter
182
CALVINO, 1990, p. 17.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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denso, ofuscante, ela é vapor e, assim, leve. Aqui está um exemplo da leveza
representada pela neblina no romance e que se refere a uma imagem
metaforizada pela imaginação de Gaspar para a morte da mãe: “A mãe tinha
evaporado no ar, neblina dissolvida pelo vento mal o sol da manhã. Os riscos
que as nuvens formavam dançando, adensando, esgarçando”.
183
O azul, por sua vez, considerada tradicionalmente a mais profunda,
imaterial, fria e pura das cores, representa “o caminho do infinito, onde o real se
transforma em imaginário [...]”.
184
Em Os sinos da agonia, o azul aparece, às
vezes, ligado à presença de Malvina, suavizando, como na Virgem, o que ela
tem de trágico e maligno, e às vezes nos momentos de paz que entremeiam o
estado angustiante de Gaspar. Surge, também, o azul nos olhos de Donguinho e
no lago pintado no cravo. Símbolo da frialdade, no romance, o azul parece
conformar o cenário e resolver contradições: “tal como a do dia e da noite – que
dão ritmo à vida humana. Impávido, indiferente, não estando em nenhum
outro lugar a não ser em si mesmo, o azul não é deste mundo; sugere uma idéia
de eternidade tranqüila e altaneira, que é sobre-humana”,
185
– ou, na simbólica
representação da serpente, através de Malvina, no mal encarnado, no inumano,
que nela residiria.
183
DOURADO, 1974, p. 137
184
CHEVALIER, 1996, p. 107.
185
CHEVALIER, 1996, p. 107.
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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100
3 PAISAGEM NA NEBLINA
Uma semente já traz em si toda a árvore
que vai ser depois. Para todo o sempre,
amém. Feito é cego, antes de se cumprir,
o destino de um homem. Mas que vive
escondido na primeira semente. Súbito
ele via para trás, desenovelando.
Autran Dourado
Literatura é o eterno presente,
o passado constante.
Autran Dourado
Em conferência pronunciada na Sorbonne em 1992,
186
Autran Dourado,
ao falar de seu romance Os sinos da agonia, caracteriza-o como um romance
político, mítico e pós-moderno, uma “carnavalização de vários mitos
literários”.
187
O autor declara que se apropriou do mito de Teseu, Fedra e
Hipólito, tema de tragédias de Eurípides, Sêneca e Racine, e das tragédias
Medéia, Édipo Rei e Macbeth. Além desses, os textos do Barroco Mineiro: Triunfo
Eucarístico, de Simão Ferreira Machado, e Âureo Trono Espiscopal, de Francisco
Ribeiro da Silva.
188
186
Conferência pronunciada em 1992 e publicada com o título Os sinos da agonia: romance pós-
moderno. Revista da USP. São Paulo: Edusp, n. 20, 1999.
187
DOURADO, 1999, p. 122.
188
Textos publicados em edição crítica e fac-similar em ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em
Minas: textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos
Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais, 1967.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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101
O que chamou de carnavalização de mitos configura, textualmente,
uma rede intertextual em que ainda se podem ler inúmeros textos bíblicos e
poemas de cunho árcade do século XVIII, prefigurada por epígrafes que tratam
de castigos e arbitrariedades nas antigas Minas Gerais. Essa rede faz da
narrativa de Autran Dourado um exemplo do diálogo que a literatura
contemporânea estabelece com as obras do passado, além de confirmar o papel
de constante renovação do mito e do rito no espírito humano, numa espécie de
“continuidade estrutural no tempo”.
189
O mito de Teseu, Fedra, Hipólito, de que se utilizaram aqueles três
tragediógrafos, está presente em Os sinos da agonia e pode ser desdobrado a
partir de uma técnica de espelhamento. Malvina é Fedra e Gaspar e Januário
são as duas faces do mesmo personagem mítico, Hipólito. O potentado João
Diogo Galvão é Teseu e o pai de Malvina, dom João Quebedo, é plasmado em
Minos, que se casa com Pasífae, a insaciável Dona Vicentina. Mariana, a irmã de
Malvina, é Ariadne; Donguinho, o filho bastardo, espelha-se no Minotauro e a
escrava Inácia, na ama de Fedra. Ana, a noiva de Gaspar, é a Arícia criada por
Racine, símbolo do amor puro que o nosso Hipólito procurava na mãe e na irmã
mortas. A essas personagens, acrescenta-se o cego Tirésias, do Édipo Rei de
Sófocles.
189
DOURADO, 1999, p. 123.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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102
Uma vez recriada no século XVIII, a hisria de amor e ódio presente no
mito de Fedra ganha características do ambiente barroco, ao mesmo tempo em
que empresta à narrativa elementos redimensionados do gênero trágico. Tais
elementos referem-se tanto à temática e à construção dos personagens quanto à
estrutura narrativa, uma vez que se percebe o uso de preceitos aristotélicos.
Sendo assim, a filosofia migra para o romance em linguagem romanesca e não
dramática.
190
Malvina, a personagem de Autran Dourado, possui o ciúme da Fedra
de Racine, a fúria da personagem de Sêneca e a astúcia da Lady Macbeth
shakespeariana e da Medéia de Eurípides. Esses sentimentos e atributos são, de
certa maneira, compactuados com a escrava Inácia, cúmplice e prolongamento
da constituição trágica de Malvina. Além dessas três heroínas, a personagem
apresenta, ainda, algumas características de deusas gregas: Afrodite, deusa do
amor, do desejo, do prazer; Ártemis, deusa da caça, como a imaginavam Gaspar
e Januário, e as Parcas, Cloto, Láquesis e Átropos, as três deusas que
determinavam a vida humana e o destino, que fiavam, bordavam e cortavam o
fio da vida no momento apropriado. Malvina teria, portanto, no romance, nas
suas mãos, o destino de João Diogo, Januário e Gaspar.
190
Aqui não se tratará desses preceitos e de sua utilização na narrativa de Os sinos da agonia. Um estudo
sobre o tema pode ser lido no Capítulo 4 da dissertação de Reinaldo Martiniano Marques. Os sinos da
agonia: técnica narrativa e consciência trágica na ficção de Autran Dourado. 1984. 224 f. Dissertação
(Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 1984.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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103
A figura de Hipólito foi dividida e atribuída a dois personagens,
Januário e Gaspar. O primeiro, um mestiço bastardo, filho de uma índia, uma
“estrangeira” (assim como Hipólita, a rainha das Amazonas). Seu nome lembra
Janus, o deus bifronte, guardião das entradas e saídas. Em Os sinos da agonia, o
personagem abre e fecha a narrativa. Para Dalma Nascimento, Januário se
encontra “na situação-limite de um ‘antes’ e um ‘depois’ vitais-mortais, [...] no
vestíbulo de um rito de passagem”,
191
delineando-se no claro-escuro físico e
psicológico da noite agônica e premonitória em que se encontra.
Gaspar, a outra face da figura mítica de Hipólito, é um mazombo que
cultiva os valores europeus. Assim como o enteado de Fedra, que cultua apenas
a deusa Ártemis, deusa da caça, negando-se a reverenciar Afrodite, Gaspar
recusa o amor incestuoso da madrasta. Ainda assim, atormentado, sente-se
culpado. Em sonho, vê-se segurando o punhal que assassinou o pai.
Imaginariamente, Gaspar sente que, talvez, devido ao amor impossível, de uma
certa maneira, seja cúmplice no assassinato do pai. Com essa culpa, ele passa a
procurar o amor em Ana, personagem símbolo de pureza e castidade – uma
referência a Arícia de Racine.
Nessa jornada surge, enfim, a figura de Tirésias, o adivinho cego que
não é personagem das peças que tratam do mito de Fedra, mas sim da
conhecida trilogia de Sófocles. Tirésias é invocado pelo coro para responder
191
NASCIMENTO, Dalma. Autran Dourado entre a agonia dos sinos e o camafeu idealizado. In: Verbo
de Minas - Revista de Cultura, v. 1. n. 1. Juiz de Fora, MG: CES, 1998, p. 54.
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104
sobre a condição do homem diante dos desígnios impostos pelo destino, do
qual ninguém pode fugir. O narrador, no romance, tal qual um corifeu, reflete
sobre a história de Malvina e Gaspar, “as suas angústias e desesperos, as suas
ânsias e agonias, [...] ao mover do engenho acionado”,
192
e afirma, melancólico,
que o “destino do futuro é campo dos deuses, onde nada se pode fazer; e o
destino do passado é o reino dos mortos, onde é inútil, impossível habitar”,
intensificando, desse modo, o tom trágico e dramático do romance.
A trama romanesca que transcorre na Vila Rica decadente, após a
efervescência do ciclo do ouro nas Minas Gerais, problematiza o inexorável
destino imposto ao homem, tema caro à tragédia. Malvina, Januário e Gaspar
são arrastados numa história determinada pela inutilidade da ação. De nada
adiantariam a confiança de Malvina no poder de suas maquinações, a sua busca
de onde estaria o erro, a sua intenção de repará-lo ou evitá-lo. Gaspar, ligado a
um “destino do passado”, ao reino dos mortos, sempre para ele voltado, “na
aceitação silenciosa e fria dos seres abúlicos que caminham para a morte”,
193
não se oporia à moira. Januário, por sua vez, depois de perceber toda a farsa
preparada por Malvina, para quem teria sido apenas um fantoche, não
desistiria de se entregar à cidade e morrer pelos tiros dos soldados que o
aguardavam na praça, cumprindo-se a fatalidade das trágicas narrativas.
192
DOURADO, 1974, 150.
193
DOURADO, 1974, p. 151.
PAISAGEM NA NEBLINA
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105
A inexorabilidade própria da tragédia parece se acomodar bem ao
tempo e espaço do Brasil colonial, em que as personagens estão fadadas aos
desmandos de um poder arbitrário. Temas como a paixão, o adultério e o
assassinato migram dos bastidores à cena pública. Personagens romanescos que
espelham, de forma arquetípica, o mito trágico, acabam representantes de um
conflito histórico. Para Angela Senra, a idéia de fatalidade, em Os sinos da
agonia, está vinculada à relação entre destino e história, o que pode ser
observado, especialmente, quanto ao personagem Januário: “O processo real de
Januário – sentença, morte em efígie, fuga inútil e volta inevitável para o
assassinato (culpa de um, castigo de todos) – denuncia a existência da cadeia de
processos simbólicos que traçam a cena política”.
194
3.1 Na cidade, sinos e sinais
No contexto da cidade colonial mineira, o sino, símbolo que estabelece
uma ligação entre o céu e a terra, como já mencionado, representaria, também,
assim como a presença de Tirésias, essa inexorabilidade do destino imposta aos
personagens. De certa maneira, pode-se dizer que o sino, objeto que dá nome ao
romance, surge ali como personagem, e personagem-metáfora, como uma
alusão ao que refletiu Autran Dourado sobre os “volumes e sombras”, as
“idéias”, as “imagens”, as “figuras poéticas” exigidas pelo ritmo e pela
194
SENRA, 1991, p. 52.
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106
composição de sua narrativa e que depois se transformavam em personagens.
Para o autor, “o personagem possuía na narrativa a mesma função que a
metáfora na frase. Enfim, o personagem era uma figuração, um tropo de
retórica, numa palavra – linguagem. Se quiserem, metaforicamente, sintaxe”.
195
Pensando com Autran Dourado que a metáfora é uma “transferência de
significado”, nascida a partir de uma “imaginação material e dinâmica, que
tudo anima”, poder-se-ia considerar o personagem, nesse contexto, não apenas
como uma cópia, uma representação da vida real, mas “materialização
dinâmica de idéias, intuições e sonhos”, “símbolo, imagem em movimento,
enfim – metáfora em ação”.
196
Assim, na narrativa, o sino seria a materialização
dinâmica da idéia do destino, símbolo e metáfora do oráculo grego. Na escrita,
transformado pelo romancista, o objeto sino torna-se substantivo da ficção, que
lhe dá um outro corpo e um outro movimento; ele nasce como personagem. O
processo seria “realidade – mente do criador – realidade outra vez”. Ali ele
passa a fazer parte de “uma mecânica, de uma estrutura, de uma construção”.
197
Se, como conclui Autran Dourado, o personagem é “tão mais perfeito
quanto mais autônomo se torna, quanto mais se desprende e se distancia da
placenta do seu criador”, o que dizer do sino que, transfigurado em
personagem e já antes autônomo, torna-se o mais autônomo dos personagens
195
DOURADO, 1976, p. 178-179.
196
DOURADO, 1976, p. 181-182.
197
DOURADO, 1976, p. 184.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
107
da narrativa? Seria ele o “liame narrativo” a que se referiu Italo Calvino quando
tratou do “anel mágico” da antiga lenda sobre Carlos Magno?
198
Em Os sinos da
agonia, é o sino que estabelece uma ligação entre os personagens, é ele que
determina o seu destino, em torno dele “forma-se como que um campo de
força”.
199
É ele um objeto mágico:
A partir do momento em que um objeto comparece numa
descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força
especial, torna-se como o pólo de um campo magnético, o nó de
uma rede de correlações invisíveis. O simbolismo de um objeto
pode ser mais ou menos explícito, mas existe sempre. Podemos
dizer que numa narrativa um objeto é sempre um objeto
mágico.
200
No romance de Autran Dourado, a “magicidade” e o simbolismo dos
sinos são menos ou mais apreendidos por um ou outro personagem, mas todos
são influenciados pela sua fala, sua linguagem. Inácia, Isidoro e Ana,
personagens considerados secundários, são como que tradutores dessa
linguagem. São eles que, por vezes, interpretam a fala dos sinos para Malvina,
Januário e Gaspar, absortos numa espécie de neblina interior. Isidoro é quem
mais
Conhecia a fala dos sinos, os dobres e pancadas, os repiques. O
que diziam as garridas, os meões, os sinos-mestres. Desde
menino, os sinos. Mesmo cativo, moleque recadeiro, antes de ir
de castigo para as catas (os primeiros ferros e gargalheiras)
198
CALVINO, 1990, p. 46.
199
CALVINO, 1990, p. 46.
200
CALVINO, 1990, p. 47.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
108
acompanhava o sineiro Vindovino da matriz de Antônio Dias.
Devia ser bom era ser escravo de padre, tomava conta das
torres e dos sinos. Mesmo alforriado, era bom ser sineiro. Por
causa das músicas, os dobres e aleluias. Sino pra tudo, pra toda
hora. Vindovino é que ensinou as regras dos dobres, das
pancadas, dos repiques [...] Carece de entender a fala dos sinos,
pra saber a coisas da vida. [...] Os sinos sempre, antes, agora.
201
Uma vez presentes na descrição, os sinos carregam uma “força
especial”, como que responsáveis pelo entrelaçamento da narrativa,
principalmente daquilo que, a princípio, parece invisível para alguns
personagens. No contexto da Vila Rica setecentista, para entender as coisas da
vida, seria necessário entender a linguagem dos sinos. A cidade era como que
regida pelos seus dobres, uma espécie de comunicação pelo som.
Em Os sinos da agonia, elementos míticos e trágicos se mesclam a
elementos históricos para se criar um “romance político” em “anos de
chumbo”. A repetição e a intertextualidade têm, no romance, caráter
dissimulador e, também, paradoxalmente, revelador. O mito de Fedra e todas
as referências a outros tantos mitos emprestam à narrativa a sua
atemporalidade, ao mesmo tempo em que “é falado no e para o tempo da
história”,
202
criando um deslocamento do tempo e dos sentidos para se chegar a
uma denúncia do presente, sobre a história de repressão vivida no momento da
escrita do romance.
201
DOURADO, 1974, p. 206.
202
MARQUES, 1984, p. 157.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
109
Esse deslocamento também se dá quanto ao tempo ficcional da trama,
que se desenvolve na Vila Rica do século XVIII. As quatro epígrafes que
introduzem o romance anunciam um tempo de arbitrariedades registrado nos
capítulos da nossa história. Para Senra, essas epígrafes demonstram a
comunhão entre o poder político e o poder religioso:
A disposição didática das epígrafes, a preocupação do autor em
explicar o que é morte em efígie e o que significa relaxar nos
preparam para uma lição de história antiga das Minas Gerais. Mas
as reticências, as ausência dos nomes dos punidos, a
despersonificação das penas e, finalmente, a explicitação de
relaxar, através do discurso impessoal, intemporal e abrangente
do dicionário nos ensinam que punição e punidos são
permutáveis no tempo e espaço labirínticos de uma sentença
que é sempre a mesma: a morte em efígie é o o nosso de cada
dia e somos relaxados em carne no circo de toda hora (Todos os
aplausos são para o leão). E quando do outro não se declara a
sentença, inútil e impossível fugir: a roda do tempo gira a lenta
agonia.
203
(grifo da autora)
Essa permutabilidade do tempo e do espaço labirínticos a que se refere
Senra pode ser observada em passagens do romance que trazem um tom
ditatorial do presente de sua escrita. Januário é representado como um
transgressor da ordem, assim como os considerados “subversivos”,
“conspiradores”, no regime militar. Januário fica também sujeito a uma espécie
de exílio e é procurado como uma “presa” fugitiva, mesmo depois de morto em
203
SENRA, 1991, p. 63.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
110
efígie. A tortura praticada nos tempos da ditadura fica assim registrada no
romance:
Já via nas carnes o ferro, o fogo da tortura. Contaria tudo,
mesmo o que não fez ou pensou. No seu medo e pavor, gostaria
de saber alguma coisa, de ter ouvido de alguém alguma coisa,
de poder imaginar alguma coisa, de poder imaginar qualquer
trama que tivesse sentido, [...] ele confessaria, tal terror que a
tortura antessentida lhe dava. A morte é melhor, pensava.
Pensava na morte como uma libertação das torturas. Não, as
dores não, não suportaria.
204
Além dessa passagem, há outras que também registram esse
espelhamento, a exemplo da cena em que se divulga o espetáculo da morte em
efígie de Januário: homens que saem pelas ruas anunciando o decreto do
Capitão-General, publicado em papéis que são pregados nas portas das igrejas e
no pelourinho. Também no tempo da ditadura, os locais de aglomeração
pública eram usados para a publicação dos nomes e retratos dos subversivos.
Depois, a divulgação da sua prisão e/ou morte fazia-se necessária para provar a
eficácia do regime. Ao final do romance, já morto pelos tiros dos soldados, o
corpo de Januário é a imagem que representa a derrota daqueles que ousaram
subverter o regime autoritário:
Dos quatro cantos da praça corriam soldados para junto do
amontoado que se formou ao redor do corpo. Se afastem, gritou
o alferes abrindo vau. Vocês dois aí carregam o corpo. Um
soldado perguntou se devia ir na frente avisar que o homem
morreu. O alferes fulminou-o com um olhar furioso. Bobagem,
204
DOURADO, 1974, p. 48.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
111
disse. A gente tem de levar é o corpo pra eles verem. Faz tempo
que ele estava morto. Mesmo antes da gente atirar.
205
Em entrevista ao Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, de
06/10/74, publicada em Uma poética de romance: matéria de carpintaria, Autran
Dourado explica a nota que antecede o romance Os sinos da Agonia,
206
exigida
pelo editor, que “não podia correr o risco de ter o livro apreendido”. O autor
afirma:
[...] é muito difícil inventar qualquer coisa em arte: o melhor
que se pode fazer é ser autêntico, tentar. [...] Os temas variam
pouco, o que muda é a expressão, os estilos de época. Progresso
e evolução são conceitos específicos da ciência e da técnica, que
alguns apressados, por analogia, querem aplicar à arte. [...]
Toda obra de arte é completa em si mesma, ninguém aperfeiçoa
ou leva à frente obra ou experiência de ninguém.
207
A declaração do autor, de que uma “invenção” em arte seria quase que
impossível e de que a “repetição”, ou reinvenção, não desvalorizaria uma obra
literária ou artística, até podendo, em vários casos, aumentar sua importância, é
tema discutido por inúmeros teóricos da literatura e, também, por renomados
escritores.
208
Essa afirmativa aponta para a idéia de “repetição” e de “retomada”
205
DOURADO, 1974, p. 222.
206
“São variações em torno de temas dos grandes trágicos do passado, disse-nos Autran Dourado ao
entregar os originais de Os Sinos da Agonia. Utilização de mitos e arquétipos perenes e universais”.
DOURADO, 1974. Nota dos Editores.
207
DOURADO, 1999, p. 120.
208
Como exemplos, citam-se o conto de Jorge Luis Borges, “Pierre Menard, autor do Quixote” (In:
Obras completas. São Paulo: Globo, 1998. Vol. I) e o artigo de Carlos Fuentes, “Machado de la
Mancha, Machado de Assis herdeiro de Cervantes” (In: Folha de S. Paulo, São Paulo, 1 out. 2001.
Caderno Mais, p. 3-12).
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
112
tratada por Umberto Eco em Sobre os espelhos e outros ensaios.
209
Para o crítico, o
apreço pela originalidade vem da estética moderna, que “nos habituou a
reconhecer como ‘obras de arte’ os objetos que se apresentam como ‘únicos’
(isto é, não repetíveis) e ‘originais’”.
210
3.2 Retomada e repetição do barroco em Os sinos da agonia
Desde tempos primitivos, a arte vem usando mecanismos de
“repetição”, na poesia, na arquitetura, na pintura, na dança, sem que dela se
subtraia a “originalidade”. Em se tratando de Os sinos da agonia, vale lembrar o
primeiro tipo de “repetição” a que se refere Eco, a “retomada de um tema de
sucesso, ou seja, a continuação”.
211
A história de Teseu, Fedra e Hipólito, pode-se dizer, é um “tema de
sucesso”. Os mitos foram constantemente reutilizados pelos tragediógrafos
gregos e, também, romanos, cujas peças eram apresentadas para uma numerosa
platéia, que conhecia previamente a trama. Também Shakespeare e outros
autores seus contemporâneos escreveram peças que tinham como matéria-
prima um mito ou uma história conhecida. Eles imprimiram às histórias e aos
mitos algo de novo, de original, razão pela qual não deixavam de ser assistidos,
aclamados. A trama de Os sinos da agonia, como disse o próprio Autran
209
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Trad. Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
210
ECO, 1989, p. 120.
211
ECO, 1989, p. 122-123.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
113
Dourado, pode ser lida “como uma história de amor pecaminoso, um painel de
paixões devoradoras, de destinos trágicos, passados nas Minas de
antigamente”,
212
e ser apreciada, também, pelo leitor que não conhece as peças
de Eurípides, Sêneca e Racine. É uma trama sugestiva, de uma mulher que se
apaixona pelo enteado e arquiteta a morte do marido. Os elementos do mito,
atualizados, são acrescentados pela linguagem e estrutura narrativa, pela “arte
poética” do autor. No caso de Os sinos da agonia, a matriz de “continuação” é
indicada nas duas primeiras edições, que vieram acompanhadas da nota do
editor.
Quando a citação estilística é “explícita e consciente”, diz Eco: “estamos
então próximos da paródia ou da homenagem ou, como acontece na literatura e na
arte pós-moderna, do jogo irônico sobre a intertextualidade”.
213
Em Autran
Dourado, o jogo intertextual, além de irônico, é “carnavalesco”. As fontes de
paródia serviram ao seu “propósito carnavalesco e brutal de farsa barroca, de
livre aproveitamento acronológico de elementos históricos das Minas e do
Brasil”.
214
A ironia, certamente, não tem como alvo o leitor do romance, mas os
censores da ditadura.
Quanto ao “dialogismo intertextual”, Eco refere-se à “citação irônica do
topos” como um procedimento típico da narrativa. O topos citado é um “lugar
212
DOURADO, 1976, p. 154.
213
ECO, 1989, p. 125.
214
DOURADO, 1976, p. 148.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
114
original” e que já está registrado na “enciclopédia” do leitor, “faz parte do
imaginário coletivo, e como tal é evocado”.
215
Em Os sinos da agonia, o boneco de palha levado ao patíbulo é essa
citação. A morte de Tiradentes, herói trágico da história mineira, sacrificado no
Rio de Janeiro e não em Vila Rica, faz parte dessa enciclopédia do leitor. A
cidade ficcionalizada no romance configura-se, portanto, como um “lugar
original” que é reencenado e deslocado para o romance de Autran Dourado. O
sacrifício do boneco, no romance, e a morte de Januário realizados em Vila Rica
prefiguram um desdobramento de outro topos, a representação especular da
cidade-palco da Inconfidência Mineira. Essa revolta, registrada na enciclopédia
do leitor, é retomada em forma de farsa, fingimento e ficção. Esse
desdobramento de topos alude a um outro, de um tempo histórico distinto, mais
próximo do leitor, o da ditadura. O leitor com o qual o texto faz um “pacto” é o
leitor (espectador é o termo usado por Eco) crítico, “que aprecia o jogo irônico
da citação”.
216
Assim, refletindo com Eco, no romance de Autran Dourado, há
um “efeito crítico colateral”:
[...] tendo-se apercebido da citação, o espectador é levado a
refletir ironicamente sobre a natureza tópica do evento citado, e
a reconhecer o jogo para o qual foi convidado como um jogo de
massacre a ser registrado na enciclopédia.
217
215
ECO, 1989, p. 126.
216
ECO, 1989, p. 126.
217
ECO, 1989, p. 126.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
115
Assim, Autran Dourado retoma o tempo mítico, desdobra-o
especularmente no da Inconfidência, a fim de tratar, metaforicamente, da
ditadura, tempo este da escrita do romance. Esse jogo entre o tempo e a história
atribui à narrativa uma complexidade que depende, segundo Eco, da já referida
enciclopédia do leitor.
A esses textos citados, somam-se outros, a exemplo das tragédias que
retomam o mito de Fedra, dos textos bíblicos e das referências à literatura
neoclássica e à arte barroca, de forma a criar uma “enciclopédia intertextual”.
Essa enciclopédia compreende
[...] um conhecimento dos textos anteriores mas também um
conhecimento do mundo, ou seja, das circunstâncias externas
aos textos. Observe-se, naturalmente, que tanto o conhecimento
dos textos, como o conhecimento do mundo, não passam de
dois capítulos do conhecimento enciclopédico e que portanto,
numa certa medida, o texto se refere sempre, seja como for, ao
mesmo patrimônio cultural.
218
O romance de Autran Dourado pode ser lido, assim, como uma história
de amor pecaminoso, como o autor mesmo declarou, no entanto, o leitor que
tenha uma enciclopédia desejável, um certo “patrimônio cultural” a que se
refere Eco, poderá usufruir outros níveis de leitura. A narrativa de Os sinos da
agonia será lida, assim, como um “romance político”. Mais do que isso, a esse
leitor é dado refletir sobre a própria estrutura da obra. “Enfim temos a obra que
218
ECO, 1989, p. 127.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
116
fala de si mesma”.
219
Nesse caso, o diálogo que se pretende estabelecer com o
leitor parece prever, ainda, que ele “não só deve captar os conteúdos da
mensagem”, no âmbito da exegese, ou da história narrada, como deve captar “o
modo pelo qual a mensagem transmite aqueles conteúdos”, fazendo surgir,
assim, “condições para uma realização do valor estético”.
220
Os sinos da agonia,
portanto, ao atualizar os mitos, reescrever a História em seus múltiplos
desdobramentos e empreender uma rede especular de textos e contextos,
exemplifica a idéia da repetição e da retomada, analisada por Eco, e solicita,
ironicamente, um leitor que possa distinguir a ironia de sua construção.
Na literatura e na arte pós-moderna, segundo Eco, essas pretensões
estéticas podem ser vislumbradas no uso da “citação entre aspas”, em que “o
leitor não presta atenção ao conteúdo da citação, mas sim ao modo pelo qual a
citação é introduzida na trama de um texto diferente, e para dar lugar a um
texto diferente”.
221
O topos citado em Os sinos da agonia, por exemplo, para
aquele leitor crítico, é considerado, de certa maneira, uma “citação entre aspas”.
Só que aqui o conteúdo da citação é que suscitará a percepção do leitor para o
modo do narrar, o modo como a citação é ali introduzida. Não se pode afirmar
que Autran Dourado intentava, ao criar o romance, causar esse chamado prazer
estético no leitor ou fazer com que ele identificasse explicitamente as “citações
219
ECO, 1989, p. 128.
220
ECO, 1989, p. 129.
221
ECO, 1989, p. 131.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
117
entre aspas” presentes na narrativa. O certo é que, quando lido por esse leitor
que Eco denomina “leitor crítico”, o romance deixa revelar as citações e as
intertextualidades que o constituem, estabelecendo, ao que parece, uma série de
níveis de leitura.
A história de João Diogo, Malvina e Gaspar/Januário, plasmada no
mito de Teseu, Fedra e Hipólito, é o texto que emblematiza, de forma teatral e
barroca, a narrativa que se tece no romance. O espetáculo da morte de Januário
e de todo o povo das Minas encena, como já foi dito, outra história de repressão
no país, a do tempo de enunciação do romance. A figura de Januário e a cidade
de Vila Rica, marcada pelo cenário e pelos rituais barrocos, juntamente com a
forma com que a narrativa é apresentada, são os novos elementos emprestados
ao mito apropriado pelo escritor mineiro. Os instrumentos de embuste
utilizados na farsa barroca que se representa nas ruas da cidade de Vila Rica,
carregados de simbologia e estímulos, como que se metamorfoseiam e se
materializam na linguagem da narrativa.
Em Os sinos da agonia, o narrador, quando retoma o mito grego e
constrói uma trama de crimes e castigos espelhando a história do Brasil
colonial, parece retomar o caráter de ilusão da arte barroca, que de certa forma
conjuga-se com o teatro e a retórica. Não seria, pois, o mito tal qual foi traçado
por Eurípides, Sêneca, Racine. Malvina é uma combinação de perfis da Fedra de
cada um desses autores, ganhando, além disso, particularidades de outras
heroínas trágicas. Mito e romance se articulam num único discurso, o do saber
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
118
narrativo do escritor contemporâneo, que busca reinventar a tradição,
deslocando o arquétipo mítico, fazendo-o dialogar com a História, pelo viés do
barroco.
Em Lendo imagens, no capítulo “Aleijadinho, a imagem como
subversão”, Alberto Manguel conclui que
[...] o barroco oferecia aos artistas a possibilidade mágica de
revelar por meio da ocultação, de tomar um conceito ou forma e
rodeá-lo com outras formas e conceitos, de modo que, através
de muitas camadas de lustre, movimento, imagem e contorção,
poderíamos intuir, mas nunca inteiramente compreender, a
idéia central em toda a sua complexidade.
222
Essa possibilidade mágica de que trata Manguel está ligada à visão
pictórica, que distingue a arte barroca da arte renascentista, a qual prima pela
linearidade. Arte da profundidade, da complexidade e da obscuridade, o
barroco, assim como o definiu Helmut Hatzfeld, “submete a multiplicidade de
seus elementos a uma idéia central, com uma visão sem limites e uma relativa
obscuridade que evita os pormenores e os perfis agudos, sendo ao mesmo
tempo um estilo que, em lugar de revelar sua arte, a esconde”.
223
Em Os sinos da agonia, assim como nas obras do período barroco, há
uma idéia central rodeada de outras “formas e conceitos”, oculta em meio a
“muitas camadas de lustre, movimento, imagem e contorção”, traçada num
222
MANGUEL, 2001, p. 248
223
HATZFELD, 2002, p. 16.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
119
jogo de velamento/desvelamento. Esse jogo origina-se da estrutura narrativa
do romance, escrito a partir de uma certa regularidade que conduz à
irregularidade, ao jogo de subentendidos. “Fases, planos, planta baixa,
encadeamento formal, temas e variações (notas)”,
224
assim define Autran
Dourado o esquema “rígido” de que se serve para a construção de sua narrativa
em blocos, que conta uma mesma história de três maneiras diferentes – uma
“desordem” que se apresenta a partir de uma ordem.
A falta de uma linearidade na narrativa – o tecido da história vai se
preenchendo aos poucos, com as informações trazidas pela memória das
personagens – conduz a uma ambigüidade. Os finais em suspenso, só
retomados no quarto bloco, colaboram para isso. Malvina, por exemplo, dona
de uma linguagem artificiosa, com gestos e olhares ambíguos, leva o seu
interlocutor à dúvida; “paciente tecedeira”, fia meticulosamente o destino de
João Diogo, Gaspar e Januário. Este, só ao final, reconhece que não passou de
um fantoche da trama tecida por Malvina, pois, afundado na paixão, acreditava
em cada olhar ou sinal que ela lhe transmitia:
Quando da primeira vez, a cavalo. Devia ter pensado que
aquele bugre vinha a calhar. Ele não fez mais do que obedecer
direitinho tudo aquilo que ela maquinou, voltava à sua
monocórdia repetição. Caiu no mundéu, na esparrela. Um
menino, um menino perto da maldade dela. Zangão, ela rainha.
A mulher e seus filtros. Tudo falso, mentirosa. Mesmo aquela
carta chamando-o. Carta de engano, mulher enganosa. Tem
224
DOURADO, 1976, p. 138.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
120
gente que gosta de usar. Feito um gato esconde a mão, o mal
feito. Gata e rainha.
225
Além de gata e rainha, Malvina, exímia tecedeira, remete-se à figura de
Aracne, jovem e muito habilidosa tecelã que desafia a deusa Atenas para uma
competição e acaba por ser transformada em aranha, condenada a ficar
suspensa em sua própria teia. No barroco, motivos mitológicos foram utilizados
para se chegar a uma “nova criação realístico-simbólica”. O mito de Aracne foi
pintado pelo espanhol Diego Velásquez, em A fábula de aracne (1660), também
conhecido como As fiandeiras. Hatzfeld declara, retomando Diego Ángulo
Iñiguez, que “as fiandeiras, velha e jovem, tão realisticamente representadas,
simbolizam, com efeito, as místicas figuras de Minerva disfarçada de velha, e de
Aracne, que, para sua ruína, havia desejado tanto a famosa competição”.
226
Abelha-rainha, aranha, gata, serpente, Malvina, “mal vinda”, também
se dedicou a porfiar o destino de Gaspar. Imbuída de um sentimento de
vingança, denuncia-o. Ele, “estranho homem é o Gaspar”,
227
agoniado com uma
culpa que o atormenta, amando em surdina, enxerga-se como o autor do crime,
sempre preso ao sonho em que sua mão segura o punhal. A narrativa mesma
parece esconder o verdadeiro assassino; as imagens dos sonhos e premonições
lhe são caras, colaboram na eficácia dessa linguagem cifrada, ambígua, barroca:
225
DOURADO, 1974, p. 215.
226
HATZFELD, 1974, p. 62.
227
DOURADO, 1999, p. 124.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
121
E o sonho vinha vindo, de longe percebia quando vinha, antes
ainda podia deter. [...] Vinha vindo, já via a porta do pai se
escancarar, o homem não chegava a tocá-la. Aquele sonho de
uma certa maneira era uma premonição de tudo que aconteceu.
A porta, o homem atrás do qual ele estava ficou parado no vão
da porta. E viu o pai sozinho na cama vazia do casal, ela não
estava. [...] E em vez do homem avançar para o pai, a cama é
que vinha deslizando para ele, como se o assoalho fosse
inclinado, parou a um passo dele. Então o homem cresceu e
saltou sobre a cama, o braço negro desferiu várias punhaladas
seguidas. [...] o braço que saiu do corpo do homem (a mão não
era mais preta, tão sua conhecida) era o seu próprio braço.
228
Ao final, já tomado pela imagem desse sonho, constantemente a
lembrar-lhe a culpa, depois de ter tomado conhecimento do suicídio de
Malvina, Gaspar se apercebe de que era inútil tentar fugir, “crescia dentro dele
a certeza de que tudo aquilo que sonhara realmente aconteceu”.
229
O sonho
havia se concretizado na carta que Malvina enviara ao “Mũy Snõr Meu Capitão-
General”, informando que não era Januário o culpado pela morte de João Diogo
Galvão, mas ela e Gaspar. Com a carta, o narrador não afirma, mas dá indícios
da morte desse personagem.
Também quanto ao personagem Januário, o sonho e as imagens
ganham grande importância. Nesse caso, não é um sonho de culpa que o
atormenta, mas um sonho que vem do estado em que se encontra na noite que
antecede sua morte. Durante um ano ele havia se escondido pelos sertões com
Isidoro, fugindo das perseguições do “braço comprido” do Capitão-General, e,
228
DOURADO, 1974, p. 140.
229
DOURADO, 1974, p. 205.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
122
na noite agônica, o estado de “entressono
230
em que vivia se adensa, numa
mistura alucinada e angustiante de sonho, sono e insônia: “Uma sucessão
infinita de caixas, umas dentro das outras. Como se ele próprio fosse o seu
próprio sonho, o sonho de alguém que carecia urgentemente acordar”.
231
Assim, num contraste barroco de luz e escuridão, a memória de Januário vai
conduzindo a narrativa. A proximidade da morte é que fazia “Nhonhô” sonhar,
pensava Isidoro. “Perto da morte é que a gente sonha mais, as coisas antigas
voltam, diziam. A gente se lembra mesmo de coisas de que nunca se lembrou.
Coisas enterradas um horror de tempo.”
232
Tema caro ao barroco, o sonho foi tratado por Calderón de la Barca
como metáfora da vida. O protagonista do auto sacramental La vida es sueño,
233
o
príncipe Segismundo, saído da torre onde ficara aprisionado, chega à Corte sem
conseguir distinguir o que é sonho e o que é realidade. Na Corte, toda a vida
humana lhe parece sonho e a felicidade eterna só viria com uma morte gloriosa.
Para Hatzfeld,
De igual modo, o peregrino que chega a essas igrejas barrocas e
levanta os olhos da pedra, deslizando-os pelas paredes limpas
até alcançar a glória celeste pintada, lá em cima, nas abóbadas
do teto ou na cúpula, deixa de ver – supõe-se – a linha limítrofe
entre a sólida arquitetura e um fascinante e etéreo sonho de
cores para convencer-se do seguinte: só do bom aproveitamento
230
DOURADO, 1974, p. 39.
231
DOURADO, 1974, p. 40.
232
DOURADO, 1974, p. 206.
233
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. Autos sacramentales. [s. l.]: Iberia, [195-?].
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
123
desse sonho que é a vida depende, um dia, trocar este vago
mundo de aparências por outro real e vivido eternamente.
234
O estado “espectral de sonho” vivido por Januário lembra a atmosfera
de ensueño própria do barroco. A bruma – não só a que envolvia a cidade, mas a
que vinha de dentro e que alcançava os olhos desse personagem – e o efeito da
aguardente oferecida por Isidoro colaboram para a criação desse estado
espectral, em que as igrejas, espalhadas pela cidade, mostram-se “etéreas,
fantásticas, irreais”.
235
Além da neblina e da bebida, que o deixavam em um estado confuso,
também os sons e os cheiros caracterizavam esse ambiente espectral. Os
paradoxais “surdos ruídos” e os sinestésicos “cheiros macios”
236
embaralham os
sentidos do personagem, mas, no âmbito da enunciação, guiam o leitor por essa
paisagem de neblinas que é romance. O ruído que os dois ouviam, Januário e
Isidoro, era o ruído do “tambor monótono dos sapos”, do tremer das folhas. O
cheiro vinha da aragem da madrugada, misturado ao cheiro da aguardente e ao
cheiro de Isidoro, “o cheiro que mil sabões, preto ou do reino, não conseguiam
apagar”.
237
E, assim, Januário vivia uma “sensação cataléptica”:
Assim há vários dias, não conseguia ser derrubado pelo sono
pesado e total, pelo total aniquilamento, pela morte provisória.
Ansiava por essa morte que o reunificaria, mas
234
HATZFELD, 2002, p. 75.
235
DOURADO, 1974, p. 44.
236
DOURADO, 1974, p. 17.
237
DOURADO, 1974, p. 21.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
124
contraditoriamente não desejava dormir. A fantasia de que,
dormindo, estava entregue a todos os perigos. A fantasia
mágica de que, acordado, podia dominar o mundo, os seres, as
coisas: nada aconteceria sem ele querer.
238
Atente-se, aqui, para a importância desse estado de “entressono” que
percorre toda a primeira jornada do romance e que só se desfaz no final da
quarta jornada, quando Januário efetivamente volta à cidade. Januário vive
naquela noite um momento de contradições – “vazio” e “cheio”, “claro” e
“escuro”, “sonho” e “realidade” –, contradições essas próprias da arte barroca e
que prefiguram a sua morte. Somente a partir dessas contradições é que o
personagem, inebriado de sonho e memória, toma certeza de seu destino.
Isidoro, por sua vez, tendo acompanhado Januário desde que se tornou seu
escravo particular, doado pelo pai Tomás Matias Cardoso, e tendo-se irmanado
ao dono, também decide ali o seu destino. Não falaria mais em “língua de
branco”, só falaria “ioruba” e iria atrás de um quilombo: “Só preto igual a mim
é que vai me entender! Só morto é que vão me pegar. Morro de trabuco na
mão!”.
239
E assim seguem cada um o seu caminho:
E foi descendo o morro, quase escorregando. Quando se voltou,
viu o preto parado e mudo. A carabina segura pelas duas mãos,
na frente do corpo. Toda a sua figura se recortava em pedra
negra, contra o azul claro do céu. A cabeça levantada, o peito
aberto, os olhos no além, parecia mais um guardião do templo,
o porteiro e guia mudo da sua nação. Andou mais um pouco e
238
DOURADO, 1974, p. 221.
239
DOURADO, 1974, p. 221.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
125
tornou a se voltar. Isidoro tinha sumido de vez na luz. Agora
ele ia sozinho, quase corria. Não se voltou mais para trás.
240
Decidido a se entregar, tudo para Januário era luz, já tinha vivido a sua
“epifania de Deus”, depois de ouvir as sete pancadas da agonia. Uma “estranha
alegria” era o que sentia. Havia achado a porta que o tiraria daquela escuridão e
iria voltar à cidade a qual estava preso, lugar seu de origem. Havia ali nascido,
filho de pai branco com mãe mameluca, e não estrangeiro como Malvina ou
“mazombo” como Gaspar, apegado aos valores europeus. O mundo que lhe
parecia confuso durante a noite agora lhe parecia claro; a bruma já se tinha
desfeito. Só restava se entregar ao “lago luminoso”
241
em que a praça havia se
transformado:
E Januário sentiu uma estranha alegria, todo o cansaço
desapareceu. Na cara a aragem fresca do vento lambendo as
folhagens, soprando as flores. Respirava fundo, e todo o seu
peito era um campo de luz e de flores, esvoaçado pelo silêncio
colorido das borboletas. Tudo macio, ele podia morrer. E uma
ternura imensa, uma luz de alegria começavam a jorrar dentro
dele; um canto de nave, epifania de Deus. Tinha vontade de
beijar a mão de Isidoro e, sem saber por quê, pedir perdão.
242
A palavra Epifania, “do latim epiphania, e do grego epipháneia”, refere-se
tanto a uma “aparição ou manifestação divina”, quanto à “festividade religiosa
240
DOURADO, 1974, p. 221.
241
DOURADO, 1974, p. 221.
242
DOURADO, 1974, p. 219.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
126
com que se celebra essa aparição”.
243
O conceito, de tradição católica, foi
institucionalizado no vocabulário crítico literário por influência, acredita-se, do
escritor irlandês James Joyce, que teria sido o primeiro a se apropriar do termo.
Outros escritores, a exemplo de Virginia Woolf e, no Brasil, Clarice Lispector,
também usaram do conceito para criar, em suas narrativas, um momento de
“manifestação”, de “revelação”. A epifania, na literatura, pode estar numa
palavra, num gesto, num objeto, muitas vezes no que esses elementos têm de
mais trivial. Em Os sinos da agonia, a própria palavra é trazida ao texto, em dois
momentos: “epifania de Deus”, antecedendo a morte de Januário, como se pode
ver na citação acima, e “epifania luminosa”, em se tratando de Gaspar. A
epifania vivida por este personagem parece originar-se de dois episódios, que
se dão um seguido do outro, durante o velório do pai.
Atormentado pelo sonho constante em que se vê como assassino do pai,
Gaspar, prestes a sucumbir à culpa, deseja, ardentemente, livrar-se da imagem
de sua mão matando o pai:
[...] ali agora não podia gritar, tanta gente. Não via as caras, os
olhos, mas sabia que todos o olhavam. Gritando estaria
perdido. Gritaria. [...] Foi então que uma mão pesada segurou-
lhe o ombro, puxando-o para trás, impedindo-o de cair. A mão
o acordava, devolvia o corpo à claridade da sala, ao ar puro, à
vida.
244
243
FERREIRA, 1999, p. 778.
244
DOURADO, 1974, p. 140.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
127
Depois desse gesto de conforto, Gaspar começa a rezar uma reza muito
íntima, a “primeira reza que a mãe lhe ensinou”, e “mudamente pedia,
implorava às potências obscuras, às divindades tanto tempo escondidas
debaixo do chão da alma, que não o abandonassem”.
245
Assim, a mão que o
segura e a reza trazida da infância lhe devolvem uma “calma perdida” e,
chorando, livra-se do sonho e começa a viver um momento de alegria, o seu
momento de epifania:
E tornava a dizer como as coisas antes de acontecer nos
assustam. Agora era forte, inteiriço, transparente. Estava pronto
para assumir o papel que lhe cabia [...] E essa luz que vinha de
dentro dele devia transparecer na cara e nos olhos, feito um
esplendor de prata polida e lustrosa em volta de uma imagem
de santo. Dele irradiava uma epifania luminosa. Uma sensação
de calma e beleza, suave perenidade. Como se a sua pele
possuísse uma luz intestina, irradiava serena ternura.
246
Como se pode ver, tanto em Januário quanto em Gaspar, a epifania é,
sobretudo, um momento de compreensão e aceitação trágica do próprio
destino. Januário compreende e tem a certeza de que é preciso voltar à praça e
cumprir o seu destino. Gaspar, por sua vez, percebe o homem que devia ser a
partir dali, assumir os negócios do pai, não se render às artimanhas de Malvina.
Nele, a epifania, em forma de luz, irradia-se e alcança as mulheres que ali
rezavam. Elas começam a chorar um “choro manso e bom, feito só de
245
DOURADO, 1974, p. 141.
246
DOURADO, 1974, p. 141.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
128
lágrimas”.
247
Desse modo, a epifania não só atinge a Gaspar, mas contagia todo
o ambiente:
E a ternura que vagou no ar – aragem branda, macia e
perfumada – a todos contagiava. Era como se todos, a uma só
voz, afinados e suaves, pálpebras que vagarosamente se fecham
ao doce peso do sono, não estivessem mais rezando: cantavam
um canto de glória na nave do céu.
248
O canto de Glória, na liturgia católica, é um hino sobre o texto da seção
de mesmo nome da missa. É a última parte dos Ritos Iniciais, compostos
também pela saudação, o ato penitencial e o Kyrie. Inicia-se, o canto, com as
palavras Gloria in Excelsis Deo (Glória a Deus no Céu), recitadas ou cantadas.
249
Nessa passagem do romance, os personagens, num momento de epifania,
parecem se transformar em anjos, compondo, como num quadro barroco, a
“bem-aventurança”, o Céu.
Além do Céu, a narrativa também apresenta o seu contrário, o Inferno.
Ambos compõem um mundo de contrastes, conforme o definia a ideologia da
Contra-Reforma. A referência ao Inferno, em Os sinos da agonia, aparece ligada
ao livro de Gênesis, retomado como que para ilustrar a oposição luz/escuridão
que caracteriza aquele estado de “entressono” em que vive Januário. Já de
manhã, a claridade do sol vai desfazendo a bruma e aquele “mundo coagulado
247
DOURADO, 1974, p. 141.
248
DOURADO, 1974, p. 142.
249
FERREIRA, 1999, p. 1226, 992.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
129
e redondo” se transforma num mundo de luz, ou seja, de lucidez trágica. A
cidade parece, assim, renascida, não mais envolta na bruma pesada da noite. O
narrador dá voz à memória de Januário, que relembra as lições aprendidas no
emblemático Seminário da Boa Morte:
No princípio a luz, os ruídos, as coisas. O mundo é que
principiava. A eterna reinvenção, o recriar incessante, o
renascimento sem fim, o sempre retorno. Vida, inauguração.
Tudo para a morte, quis dizer. Agora sabia, tinha começado
mesmo a pensar. Depois Deus faria os seres. No princípio Deus
criou os céus e a terra. A voz sem timbre, as leituras na casa de
jantar do seminário da Vila do Carmo. As bocas mastigavam
silenciosas, esganadas. O barulho das bocas. Calma fingida,
silêncio, recolhimento, meditação. A regra conventual do
seminário. A terra era sem forma e vazia. Luz, fez-se luz.
250
Como se constata nessa passagem, o momento que antecede a morte de
Januário é, paradoxalmente, inserido no universo simbólico da vida: a criação
do mundo. Aqui vale ressaltar as considerações de Hatzfeld sobre a vida e a
morte no barroco, em que “o destino final humano, o movimento do passado ao
futuro através do presente, o crescimento da morte dentro da vida, se fazem
visíveis”.
251
A morte, para o personagem, equivale à vida. Por isso, o mundo
torna-se para ele uma “eterna reinvenção”, alimentada pela lembrança da
educação religiosa no seminário: as leituras, as normas ditadas, o recolhimento.
Nesse contexto, as imagens do Gênesis se entrecruzam ao discurso do narrador:
250
DOURADO, 1974, p. 207.
251
HATZFELD, 2002, p. 78.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
130
Deus separou a luz das trevas. As águas, que apareça a terra e
os mares. E o verde e as árvores e os frutos. Deus criou o tempo.
O dia e a noite. Para todo o sempre. Ou o tempo só veio com o
homem? Ele dizia faça-se isso, tudo se fazia. E vieram as
grandes baleias, as bestas feras e os demais viventes. Só no
sexto dia o homem. Mais tarde a mulher, tirada da sua dor mais
funda, da costela. Ele não sentia, dormindo. Enquanto dormia,
Malvina. Só no sétimo dia é que descansava. Deus também
carece de descanso. O homem e a mulher, juntos inaugurariam
o inferno. Não careciam do demônio. E a obra de Deus
continuaria o seu curso. Para todo o sempre, amém.
252
O texto bíblico instiga à indagação sobre o tempo: teria Deus criado o
tempo antes do homem, ou o tempo foi criado pelo homem? Na história da
criação do céu e da terra, há menção da origem do tempo? O certo é que, nesse
“recriar incessante” da narrativa, há uma alusão ao universo barroco, cujos
motivos “mais sérios se referem a reflexões sobre a vida, o homem e a passagem
do tempo”.
253
A mulher remete à figura de Malvina e, por conseguinte, ao
inferno. Malvina constrói-se, na narrativa, como uma personificação demoníaca:
“a maldade estava toda nela. Feito fez com ele. Na surdina, passos em pantufas,
gata esperta, veludosa. [...]”.
254
O veludo, além de caracterizar a personalidade de Malvina e os olhos
de Isidoro, que se apresentam constantemente “aveludados de tanto não
dormir”, “todo raiado de sangue”,
255
remete, também, às cerimônias religiosas e
252
DOURADO, 1974, p. 207-208.
253
HATZFELD, 2002, p. 78.
254
DOURADO, 1974, p. 214.
255
DOURADO, 1974, p. 216.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
131
civis do período barroco, a exemplo das vestes dos santos levados nas
procissões e dos requintados trajes dos poderosos, caracterizando-se, portanto,
como um dos elementos de pompa “que produzem no barroco efeitos de
surpresa e deslumbramento”,
256
que ora também instigam ao já aludido império
dos sentidos, o tato, a visão, por exemplo, que o narrador entretece na narrativa,
fazendo-se entre o excesso e a medida e o excesso dentro da medida.
Hatzfeld apresenta os símbolos eleitos por Jean Rousset como
representativos da arte desde o Maneirismo até o chamado Barroquismo,
símbolos esses que sugerem movimento, mudança e fragilidade. Dentre eles,
destacam-se aqui a espuma, a nuvem, a fumaça, a chama e a sombra. No
romance de Autran Dourado, pode-se dizer que esses símbolos seriam
representados, de certa maneira, por aqueles elementos que suscitam o claro-
escuro, a exemplo da neblina e da vela, que fazem surgir uma rede de metáforas,
ou melhor, uma “rajada de metáforas sinônimas”,
257
que se repetem
continuamente na narrativa.
O claro-escuro, característica barroca largamente utilizada pelos pintores
do período para criar um aspecto de teatralidade, é, para Hatzfeld, muito
“adequada a uma época de obscura mas iluminada fé e tão oposta à fictícia
claridade diurna do Renascimento”.
258
O crítico lembra que, em Calderón, o
256
HATZFELD, 2002, p. 137.
257
HATZFELD, 2002, p. 67.
258
HATZFELD, 2002, p. 80.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
132
claro-escuro está presente na procissão eucarística de o Ano Santo em Madri
(1651), que “vai de igreja em igreja, como um mar de luzes, uma serpente de
fogo, um hieróglifo de tempo, que em sua qualidade de Igreja Militante, encerra
a Igreja Triunfante na Divina Eucaristia, num círculo tão amplo quanto o
mundo”.
259
Em Os sinos da agonia, a procissão, seja religiosa seja civil, também
tem grande importância na narrativa. O cortejo da morte em efígie de Januário,
como já foi mencionado, é realizado de modo bem parecido com as cerimônias
de Corpus Christi e do Triunfo Eucarístico, esta descrita pela memória do
personagem, suntuoso espetáculo que teria contribuído para a criação de um
espaço infinito, típico do barroco.
Também o claro-escuro, no romance de Autran Dourado, recebe grande
destaque na descrição da noite que antecede a morte de Januário. Iluminada
pela luz da lua cheia, a cidade vai aos poucos sendo tomada pela bruma, e o
personagem, num contexto de contraste entre a claridade e a escuridão, vive na
ocasião o seu memento mori (lembra-te de que vais morrer), tão característico do
período barroco, em que se afirma o caráter passageiro da vida.
Para Hatzfeld, o claro-escuro representaria também, no contexto da
Contra-Reforma, “a propagação da luz celeste sobre a obscuridade da fé”,
“tópico escatológico, metafísico, moral, ascético, místico e artístico por
excelência”.
260
Em Os sinos da agonia, esse aspecto é revelado na representação do
259
HATZFELD, 2002, p. 80.
260
HATZFELD, 2002, p. 93-94.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
133
homem mineiro do século XVIII, dado à devoção católica e ao decoro,
características muitas vezes permeadas com uma parcela de dissimulação da
culpa e de ostentação da virtude, a que Hatzfeld chamou “exercício exemplar
de virtude e norma para o mundo”.
261
Nesse contexto, vale mencionar a suposta
avaliação da falta de fé e moral católica do personagem Gaspar:
O que Gaspar tinha lhe dito sobre missa, que o que valia era o
coração, podia perdê-lo. Tinha sonido de Lutero e Calvino, um
desses do satanás. As línguas andavam soltas, o Capitão-
General era seu amigo, mas não perdoaria nunca se soubesse
que tinha um filho herético, de partes com os fumos do demo.
Eram idéias de satanás, nunca lhe disseram os padres da
Companhia? Mesmo que o Capitão-General, por sua causa, de
quem era muito chegado e de quem gozava da privança, não
quisesse, se alguém fosse lhe contar que Gaspar duvidada da
Fé, e assim del-Rei, ele tinha que obrar. Sabia que o filho não
pensava mais assim, mas essas idéias de satanás andavam pelos
ares, eram miasmas que vinham com os navios.
262
Nota-se aí a presença dos princípios católicos fortalecidos pela Contra-
Reforma, movimento de combate à Reforma protestante, liderada por Lutero e
Calvino. A falta da fé católica era considerada uma ofensa também ao rei, o que
demonstra como os poderes religioso e político pareciam indissolúveis. Aquele
que duvidava dessa fé era considerado herético, merecedor de punição. Suas
idéias eram idéias de satanás, “miasmas” que representavam perigo à
sociedade. No romance, o espetáculo da morte em efígie realizado em praça
261
HATZFELD, 20002, p. 60.
262
DOURADO, 1974, p. 71.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
134
pública representa um dos meios de punição usados na colônia para punir
“heréticos” que ousavam transgredir as ordens impostas pelo poder autoritário,
tão exemplar quanto os autos-de-fé organizados pela Inquisição Ibérica.
Como se pode perceber, o romance de Autran Dourado, quando
apresenta/representa a cidade mineira do século XVIII, traz à narrativa
elementos da história colonial e também da arte e da cultura barrocas, que estão
presentes não só nas descrições da arquitetura da cidade ou nas cerimônias ali
realizadas, mas também na estrutura e no modo de narrar do romance. O
próprio Autran Dourado afirma:
A visão que tenho do barroco é uma visão pessoal, criativa e
“ideológica”. O barroco para mim não é apenas um conceito
histórico, capítulo da história da arte, mas alguma coisa viva e
atuante, que me estimula na elaboração da minha própria
criação literária.
263
Essa visão é apresentada em vários capítulos de Uma poética de romance:
matéria de carpintaria, em que o autor trata de sua “arte poética” e da feitura de
seus romances, muitos deles criados a partir da “estrutura aberta” do barroco.
No bloco I de Ópera dos mortos, segundo o autor, haveria mesmo “toda uma
teoria do barroco, as dicotomias e antíteses”.
264
As principais características
dessa arte, segundo Heinrich Wölfflin, seriam: sentido pictórico, profundidade,
formas abertas, disposição obscura e integração, em contradição com as do
263
DOURADO, 1976, p. 24.
264
DOURADO, 1976, p. 38.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
135
Renascimento: representação linear, planura, formas cerradas, disposição e
adesão.
265
Também a narrativa de Os sinos da agonia parece apresentar essas
características barrocas, os “meios-tons e claros-escuros” utilizados, por
exemplo, segundo o próprio autor, no capítulo “Valente Valentina”, de O risco
do bordado, que produz um efeito de “estranheza e obscuridade, de mistério e
absurdo”, e em “Assunto de família”, capítulo do mesmo livro, que prima pela
ambigüidade e obscuridade.
266
A forma aberta do barroco permitiria, para
Autran Dourado, a múltipla leitura, que nada tem a ver com o conceito de obra
aberta de Umberto Eco; é uma múltipla leitura em que “o autor continua
comandando o espetáculo, ‘el gran teatro del mundo’ do barroco”.
267
Tendo escrito vários livros usando a conhecida estrutura em blocos,
aparentemente autônomos, mas que anseiam por uma unidade interior, Autran
Dourado declara ter aprendido essa técnica com o barroco, com aquela idéia
central adquirida a partir da multiplicidade de elementos. Uma “constelação de
mitos”, assim teria um amigo definido o seu romance O risco do bordado,
metáfora que muito lhe agradou.
268
Em Os sinos da agonia, parece haver também
uma “constelação de mitos”, que ali anima o aspecto de ambigüidade do
romance, também característico do barroco. Nesse e em outros romances,
265
DOURADO, 1976, p. 16-17.
266
DOURADO, 1976, p. 18.
267
DOURADO, 1976, p. 26, 27.
268
DOURADO, 1976, p. 29
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
136
percebe-se, declarada ou subliminarmente, a “alma barroca e torturada, o
negrume arcádico e inconfidente das Minas”
269
que diz possuir Autran
Dourado, uma alma barroca que, para Otto Maria Carpeaux, é de “substância
latina, mediterrânea”.
270
O “claro-escuro antitético mineiro”
271
presente no romance Os sinos da
agonia aponta para outro valor ou qualidade da literatura tratado por Italo
Calvino: a exatidão, para a qual invoca a deusa da balança, Maat. O escritor
italiano define a exatidão a partir de três princípios: “1) um projeto de obra bem
definido e calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas,
memoráveis; [...] 3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico
e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da
imaginação.”
272
Esse valor, Calvino o defende por meio de um elogio ao seu contrário,
partindo da tese de Giacomo Leopardi de que “a linguagem será tanto mais
poética quanto mais vaga e imprecisa for”.
273
Nesse contexto, o autor de Cidades
invisíveis lembra, ainda, que o italiano
[...] é a única língua em que “vago” significa também gracioso,
atraente; partindo do significado original (wandering), a palavra
“vago” traz consigo uma idéia de movimento e mutabilidade,
269
DOURADO, 1976, p. 37.
270
CARPEAUX, 1990, p. 7.
271
DOURADO, 1976, p. 36.
272
CALVINO, 1990, p. 71-72.
273
CALVINO, 1990, 73.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
137
que se associa em italiano tanto ao incerto e ao indefinido
quanto à graça e ao agradável.
274
Assim, aqueles três princípios da exatidão elencados por Calvino,
somados ao sentido em que a palavra “vago” tem na língua italiana, sugerem
uma aproximação com o romance de Autran Dourado. Escrito a partir de um
projeto bem calculado e, de certa forma, bem ordenado e definido, numa
linguagem lexical precisa e que evoca imagens bastante memoráveis e incisivas,
Os sinos da agonia, pode-se dizer, carrega a exatidão que Calvino pretende
salvar. Ali há uma espécie de sensação do “indefinido”, suscitada
principalmente na noite em que Januário observa a cidade de “longe”, em que
tudo lhe parece “obscuro” e “profundo”. Indefinido, obscuro e profundo são
exemplos sugeridos por Leopardi como próprios do “vago”. Assim diz o poeta
em Zibaldone, citado por Calvino:
Essa mesma luz é cheia de atrativo e sentimentalismo quando
vista nas cidades, onde se apresenta retalhada pelas sombras,
onde a escuridão contrasta em muitos lugares com o claro, onde
a luz em muitas partes se degrada pouco a pouco, como sobre
os telhados, onde alguns lugares recônditos ocultam a vista do
astro luminoso etc. etc. A esse prazer contribuem a variedade, a
incerteza, o não se ver tudo, e poder-se no entanto dar uma
latitude à imaginação com respeito àquilo que não se vê.
275
Para Calvino, a imprecisão desejada por Leopardi é alcançada a partir
de “uma atenção extremamente precisa e meticulosa que ele aplica na
274
CALVINO, 1990, p. 73.
275
LEOPARDI, apud CALVINO, 1990, p. 76-77.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
138
composição de cada imagem, na definição minuciosa dos detalhes, na escolha
dos objetos, da iluminação, da atmosfera”.
276
Essa exatidão conquistada a partir
do indefinido é, de certa forma, vislumbrada no romance Os sinos da agonia, no
qual a cidade de Vila Rica é envolvida numa atmosfera de neblina, que vai se
desfazendo aos poucos, de forma que a “incerteza” e a “variedade” dão lugar à
imaginação e ao reconhecimento, compondo um intrincado tecido, cujos fios
parecem urdidos com “um olho miniaturista”, “uma minúcia fantástica de um
velho onzenário pesando ouro”.
277
A trama entretece-se e os personagens vão sendo entranhados e
desentranhados da narrativa, a partir de meadas simbólicas e retomadas
históricas. O personagem Januário, envolto pelas brumas até a morte, acaba por
encarnar um modo particular de “visão longínqua”, um ponto de vista de quem
foi expulso da morada dos humanos, a cidade. Malvina, voltada para si mesma,
encarna a visão de dentro, da casa, das relações familiares, das conspirações e
dos delitos do microcosmo. Gaspar, como um vértice desse triângulo de dores,
prefigura a imaturidade, o olhar alucinado. Este personagem pode ser uma
referência implícita a um dos reis magos. Segundo um certo tratado atribuído a
Beda, o Venerável (monge do mosteiro de Jarrow, Inglaterra, ca. 673-735), o
Excerpta et Collectanea, os nomes dos três magos que fizeram a visitação ao
276
CALVINO, 1990, p. 75.
277
DOURADO, 1974, p. 40, 39.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
139
menino Jesus eram Melquior, Gaspar e Baltazar. Esses nomes, embora ausentes
da narrativa bíblica, prevaleceram na tradição. Afirma o texto:
Melquior, um homem velho com cabelos brancos e longa barba
ofereceu ouro para o Senhor como a um rei. O segundo, de
nome Gaspar, jovem, imberbe e de pele avermelhada, honrou-o
como Deus com seu presente de incenso, oferenda digna da
divindade. O terceiro, de pele negra e de barba cerrada,
chamado Baltazar, com o seu presente de mirra testemunhou o
Filho do Homem que deveria morrer.
278
A citação sugere, ainda, uma possível aproximação dos outros reis
magos, Melquior e Baltazar, com dois personagens do romance, João Diogo e
Januário, respectivamente, que compõem, com Gaspar, uma tríade cujo elo é
Malvina. O velho João Diogo, potentado de Vila Rica, cuja riqueza provinha do
ouro ali encontrado, tinha estreita ligação com o Capitão-General, representante
do rei, e sua morte foi tomada como crime de lesa-majestade. Januário, por sua
vez, é aquele que, desde o início da trama, reconhece a profecia de que “deveria
morrer”. Emblematicamente, os personagens de Autran Dourado, nesse
romance, são recriados, portanto, a partir dessa configuração simbólica,
também da cidade-cenário, a fim de, entre jogos de ser e parecer, simulações e
dissimulações, refletir a ficção em tempos sombrios.
278
Cf. YAMAUCHI, E. M. Persia and the Biblie. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1996, p. 486-487. O
nome Melquior significa, segundo o autor, “meu rei é luz”; Baltazar deriva, provavelmente, do nome
babilônio dado a Daniel, “Belteshazzar” (Ver Dn 1:7); e Gaspar parece ser um nome derivado do
indiano Gundaphorus. (Ver: SILVA, Airton José da. A visita dos magos. In: Ayrton’s Biblical Page.
Disponível em: <http://airtonjo.com/magos.htm>. Acesso em: 2 fev. 2008).
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
140
CONCLUSÃO
veja o jogo de luz e sombra, de cheios e
vazios, de retas e curvas, de retas que se
partem para continuar mais adiante, de
giros e volutas, o senhor vai achando
sempre uma novidade.
Autran Dourado
Na narrativa de Os sinos da agonia, retas e curvas constroem uma cidade
de luz e sombra. Cidade-palco montada para a representação cotidiana, no
romance transforma-se no grande teatro do mundo. Entre giros e volutas,
crimes e paixões, os personagens enredam-se na trama. As memórias de
Januário, Malvina e Gaspar compõem o espetáculo das dores em Minas. O
tanger dos sinos dita a dura agonia.
A metáfora do theatrum mundi, ou o “mundo é um palco”, desde Platão,
traduz a correspondência entre vida e representação, difundida no período
barroco e, de certa forma, transformada em mote para as práticas ideológicas da
Contra-Reforma. Nesse contexto, pode-se dizer que essa correspondência
caracteriza as formas totalitárias de poder. O “teatro”, na política e na religião,
insinua-se como forma de simulação e convencimento do outro, do súdito,
influenciando a sua maneira de pensar, falar e agir. Representar e exibir são, há
muito, portanto, práticas características do poder totalitário, que inibem e
amedrontam a partir do olhar, dos sentidos.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
141
A Vila Rica ficcionalizada no romance de Autran Dourado reafirma,
pois, o caráter do mundo como teatro e da literatura como possibilidade de
revelação ou desvelamento das tramas políticas e do poder. A cidade é, no
romance, o palco maior, palco público por excelência, que se desdobra em
outros tantos palcos: a praça, as ruas, o sobrado, a sala. De dentro para fora ou
de fora para dentro, em vertiginosos cenários, públicos ou privados, como
caixas dentro de caixas, os palcos de Vila Rica representam espetáculos de
paixão, traição, ostentação, morte.
Os rituais religiosos e políticos da Vila Rica habitada por Malvina,
Januário e Gaspar, cidade regida pelo Capitão-General, representante del-Rei,
constituem formas eficazes, no contexto do século XVIII, de controle do
imaginário, do comportamento, do cotidiano da sociedade. São, portanto,
apêndices daquela representação típica do poder totalitário e que têm na
Inquisição, pode-se dizer, seu maior expoente. A encenação da morte em efígie
de Januário figura como um exemplo desse controle baseado no espetáculo para
as massas.
Este trabalho buscou, portanto, elucidar a permanência desse caráter de
representação e espetacularização das práticas dos poderes político e religioso,
que tem raízes na Inquisição. No primeiro capítulo, buscou-se averiguar como o
desejo de ordem e subordinação desses poderes ficou gravado no traçado e na
arquitetura da cidade barroca, como demonstrou Lewis Mumford. Em Vila
Rica, cidade representada no romance, apesar do terreno irregular, não muito
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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142
adaptável à forma desejada para a cidade do período, ficou impressa, nas
cerimônias ostentatórias do poder colonial, a regra de “olhar e obedecer” de
que tratou Richard Sennett.
O barroco de Vila Rica apresenta o que Giulio Argan apontou como
característica intrínseca dessa arte, a politicidade. No romance de Autran
Dourado, essa característica fica enaltecida, a cidade mostra-se como imagem
do autoritarismo do Estado e da Igreja, espaço adequado para as manifestações
de uma arte usada também com fins retóricos e persuasivos. Na Vila Rica
ficcionalizada, ressalta-se o transcendentalismo temporal e espacial do barroco,
tratado por Helmut Hatzfeld e buscado pelo visual, de que falou Affonso Ávila.
A atenção dada aos sentidos, própria da arte barroca, fica gravada, em
Os sinos da agonia, principalmente quando do espetáculo da morte em efígie de
Januário, que retoma os rituais religiosos da Vila Rica colonial, que fazem da
cidade um espaço de teatralidade. No segundo capítulo, foram estudadas as
diversas nuanças desse aspecto no romance, retomando-se o conceito de
theatrum mundi de que tratou Richard Sennett. A rua, a praça e, também, os
espaços privados são, pois, no romance, espaços de teatralidade, em que os
personagens exercem seu papel de representar a efemeridade da vida. Esses
personagens assemelham-se aos do teatro barroco, os quais são, para Carpeaux,
fantoches que se agitam sem nenhuma vontade.
No terceiro capítulo, fez-se uma reflexão sobre o caráter político do
romance, uma vez que Autran Dourado trata de momentos de repressão da
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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143
história do país, entrecruza esses momentos e, de forma ilusionista, usa da
intertextualidade para, de certa forma, velar e desvelar a história que queria
destacar. Também aqui os estudos de Helmut Hatzfeld sobre o barroco são
utilizados para explicar o uso de características dessa arte no modo de narrar do
escritor mineiro, que é, conforme foi observado, um exemplo de escritor que se
serve da exatidão – um dos valores literários definidos por Italo Calvino – em
sua literatura.
Ao trazer os rituais de representação para a contemporaneidade do
presente da escrita do romance, construindo uma narrativa artificiosa e velada,
Autran Dourado dribla o controle ditatorial de seu tempo, fazendo de Os sinos
da agonia um romance político e de sua arte, uma arte-denúncia. Sob o signo do
barroco, valendo-se do jogo intertextual da literatura, o escritor reescreve o
passado do povo das Minas, que também é o seu passado. De alma “barroca e
torturada”, ele abre sua canastra e, entre lembranças e esquecimentos, tece uma
história que se repete: “Outro tiro, agora à queima-roupa. Mais outro. Chega,
disse o alferes virando com a bota o corpo no chão, para que todos vissem a
cara. E como um soldado pardo ainda fizesse tenção de atirar, eu disse chega,
carece de tiro mais não!”.
PAISAGEM NA NEBLINA
Os sinos da agonia, de Autran Dourado
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Os sinos da agonia, de Autran Dourado
Claudia Cristina Maia
151
ABSTRACT
This work is focused on Os sinos da agonia, by Autran Dourado, as a novel in
which is given a stage and theatre status to the historical city Vila Rica. It
investigates the baroque’s dramatic characteristics translated in the architecture
and in the political “performances” played in a fictionalized Vila Rica and in the
narrative technique of the Minas Gerais writer. Inside this theatrum mundi, the
fog that involves the baroque city is considered as a hiding/revealing element
of the landscape and, emblematically, of the intertextual net built in the novel.
Just like the curtains in the theatre, the fog opens to the show time. The bell,
another baroque’s city typical element, sets a tragic and a dramatic tone to the
pain and passion story that takes place there. Irene and Sofronia, Italo Calvino’s
invisible cities, are taken as counterpart to the visibility and theatrical aspect of
Vila Rica.
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