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A chamada cristianização do mar deu-se sobretudo a partir de relatos de
viagens imaginárias, representações cartográficas que começaram a povoar o oceano
Atlântico de aventuras divinas e locais sagrados. Esses relatos atribuíram a santos
cristãos, à semelhança de heróis da antiguidade do porte de Ulisses, feitos heróicos
nos altos mares, enfrentando tempestades e naufrágios
104
. O que se chama
cristianização do mar é, na verdade, esse movimento de adaptação de lendas, mitos e
crenças de antigas tradições ao universo atlântico
105
.
Depois que partimos desse Reino, que foi o primeiro dia de fevereiro, trouxe N. S.
toda esta armada em paz e em salvo, com ventos sempre prósperos, até chegar a esta
Baía de Todos os Santos, em cinqüenta e seis dias, sem acontecer contraste nenhum,
e com outros muitos favores e mimos, que bem demonstravam ser usa tal obra
106
.
Espaço cristianizado, o oceano Atlântico parece ter perdido suas dimensões
monstruosas. A distância entre lá e cá é quase anulada. A travessia de Nóbrega dá a
impressão de ter sido providencial, guiada por santos: além de não oferecer “contraste
nenhum”, é presenteada com muitos “favores e mimos”. O corpo/navio do
missionário, em sua posição intermediária de agente integrador, procura transformar a
diversidade profana em igualdade sagrada
107
. O mar cristianizado é a porta que se
abre para a continuidade entre “lá” e “cá”: agora é necessário cristianizar, inscrever
com os sinais de Cristo, a terra e o corpo do gentio.
104
É nessa perspectiva que viagens fantásticas para além do mundo conhecido, como a Visão de
Tundalo, a Navegação de São Brandão, o próprio Purgatório de São Patrício, o Livro de Alexandre
conheceram notável difusão na área ibérica durante todo o século XV e, em parte, no século XVI.
Lendas como essas, provindas de tradições distintas como as gregas, célticas e judaicas foram-se
consolidando no horizonte desconhecido do oceano Atlântico, tornando essa imensa massa aquática
paulatinamente familiar e cristianizada. Cf. SOUZA, L.M., O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 24.
105
“No fundo, todos esses cultos que permitiam ultrapassar o medo e o receio de um mar agora
constantemente lembrado como morada de santos e espaço de manifestação de lugares teológicos,
como o Purgatório ou o Paraíso, tornaram a vida e a prática marítimas perfeitamente integradas no
quotidiano da sociedade cristã.” KRUS, L., O imaginário português e os medos do mar, p. 102.
106
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Coimbra,
Salvador [Baía] 10 de Agosto de 1549, p. 46.
107
Cf. BAETA NEVES, L.F., O combate dos soldados de Cristo, p. 35.
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