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Thiago de Abreu e Lima Florencio
A busca da salvação entre a escrita e o corpo
Nóbrega, Léry e os Tupinambá
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em História Social da Cultura
do Departamento de História da PUC-Rio.
Orientadora: Profª Eunícia Barros Barcelos Fernandes
Rio de Janeiro
Setembro de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510854/CA
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Thiago de Abreu e Lima Florencio
A busca da salvação entre a escrita e o corpo:
Nóbrega, Léry e os Tupinambá
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura do Departamento
de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª. Eunícia Barros Barrcelos Fernandes
Orientadora
Departamento de História
PUC-Rio
Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo
Departamento de História
PUC-Rio
Profª. Luciana Villas Bôas
Departamento de Letras
UERJ
Profº João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510854/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Thiago de Abreu e Lima Florencio
Graduou-se em História pela PUC-Rio em 2003.
Trabalhou como pesquisador e ator do CATAC (Centro
de Antropologia do Teatro do Acre) entre 2001 e 2003,
um projeto da Secretaria de Cultura do Governo do
Estado do Acre. Especializou-se em História da África e
do Negro no Brasil pela UCAM (Universidade Cândido
Mendes) em 2004, tendo defendido a monografia
“Cangoma me chamou – a música na (re)construção da
identidade negra no Brasil”.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Florencio, Thiago de Abreu e Lima
A busca da salvação entre a escrita e o corpo :
Nóbrega, Léry e os Tupinambá / Thiago de Abreu e
Lima Florencio ; orientadora: Eunicia Barros Barcelos
Fernandes – 2007.
118 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. História social da cultura. 3.
Escrita. 4. Corpo. 5. Salvação. 6. Nóbrega. 7. Léry. 8.
Tupinambá. I. Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de História. III. Título.
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Aos meus pais, Sergio e Sonia, pela distância sempre tão próxima.
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Agradecimentos
À minha orientadora, professora Eunícia Fernandes, com quem tive o prazer de
iniciar esta aventura teórica, desde a monografia de graduação. Além de sua
competência e dedicação, que me estimularam a percorrer os caminhos da dissertação
com mais segurança, é uma pessoa de grande sensibilidade, e mais: um sorriso largo.
Ao professor Ricardo Benzaquen, com quem muito aprendi, desde a graduação e,
principalmente, no período inicial da dissertação, quando pode me orientar. Sou
muito grato por sua atenção e cuidado nas leituras de meus textos.
À professora Luciana Villas Bôas, que me conduziu, com sua sensibilidade e
precisão, a tecer reflexões mais profundas nesse complexo universo teórico.
Participar do grupo de estudos ao qual ela me encaminhou, foi fundamental para o
refinamento desta dissertação.
À Christina Osward, com quem aprendi sobre a França Antártica e me cedeu, além de
material bibliográfico, sua atenção e carinho. As tardes do grupo de estudos foram
apetitosas, não só pelas conversas, mas também pela agradável casa e um bolo
especial que sempre nos aguardava.
À Sheila Hue, outra integrante do grupo que, com sua paixão pelos quinhentistas,
sempre nos trouxe informações preciosas e muito contribuiu com comentários,
sugestões e estímulo.
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Aos professores do Departamento de História, especialmente a Ilmar Rohloff de
Mattos, Selma Rinaldi, Marcelo Jasmin, Edmilson Rodrigues, Maisa Mäder, Berenice
Cavalcanti e Cecília Martins. Ao departamento de História, especialmente à Anair,
Cleuza, Edna e Cláudio. Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os
quais este trabalho não poderia ter sido realizado.
À Beatriz Ramos, que me estimulou as descobertas interiores.
Ao Fernando Werneck, foi um privilégio ter recebido a revisão precisa de um escritor
de sua estirpe.
Ao Pedro Villas Bôas, pelas corridas sempre saudáveis, nossos ‘exercícios
espirituais’ que foram fundamentais para que eu não perdesse a razão ao longo desse
processo.
Ao João Alberto, pelo carinho, pelos florais e pelos toques do caboclo tupinambá.
Ao Sílvio, da selva Botafogo.
Aos do CATAC, aos do Acre: Clemilson, Raquel, Ney, Isis, Samirra, Rodrigo e Ju e
Neuza.
Aos amigos de já dez anos de História: Jerônimo Motta, Flavio Kactuz, Alex
Nietzsche, Meca, Ana Paula, Mirela, Fabíola, Érica, Gil Conti, Ive Cunha, Sartori,
Murilo Meihy. E aos novos: Alessandro Ventura, Janaína Oliveira, Joana Saraiva,
Daniel Pinha e Cassia Miranda.
À memória do Xará, com quem aprendi a jogar sinuca e torcer pelo meu time.
À Rádio Mec, onde trabalhei e que acompanhou minhas madrugadas de inspirações.
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À minha família, irmãos, primos e primas, tios e tias e minha avó Maria Thereza.
Aos recém ingressos nesse mundo, que suas idéias tomem corpo e amadureçam nossa
espécie: Janjão, Clarinha e a vindoura Helena.
E à Tá, que aqui está. Sempre. É quem torna o leito navegável.
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Resumo
Florencio, Thiago de Abreu e Lima; Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. A
busca da salvação entre a escrita e o corpo. Nóbrega, Léry e os
Tupinambá. Rio de Janeiro, 2007. 118p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A proposta da dissertação é analisar como o Tupinambá se inscreve no
universo da salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry,
tendo como referência o jogo discursivo que se estabelece entre a escrita desses
autores e o corpo ameríndio. Nas Cartas do Brasil (1549-1560) e na Histoire d’un
voyage fait en la terre du Brésil (1578), pode-se verificar, respectivamente, que
Nóbrega e Léry viajaram ao Novo Mundo engajados no âmbito das Reformas
religiosas do século XVI. Entretanto, estes textos são diretamente marcados pela
experiência dos autores com os Tupinambá. Tendo em vista a posição central que
ocupa o corpo na sociedade Tupinambá e as preocupações teológicas, acentuadas
pelas Reformas, sobre a relação entre corpo e salvação, a dissertação afirma a
construção de uma representação ambígua e diferenciada do corpo ameríndio no
universo da salvação do jesuíta e do calvinista. Identifica-se uma polarização entre a
escrita desses autores e a nudez ameríndia, que teria servido como contraponto para a
edificação das narrativas exemplares da salvação desses religiosos.
Palavras chave
Escrita; Corpo; Salvação; Nóbrega; Léry; Tupinambá.
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Résumé
Florencio, Thiago de Abreu e Lima; Fernandes, Eunícia Barros Barcelos. La
recherche du salut entre l’écriture et le corps. Nóbrega, Léry et les
Tupinambás. Rio de Janeiro, 2007. 118p. Dissertation de Master –
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Le propos de cette dissertation est d’analyser l’insertion du Tupinambá dans
l’horizon du salut du jésuite Manuel da Nóbrega e du calviniste Jean de Léry, en
ayant comme référence le jeu discursif qui s’établit entre l’écriture des auteurs et le
corps amérindien. Dans les Cartas do Brasil (1549-1560) et dans l’Histoire d’un
voyage fait en la terre du Brésil (1578), nous pouvons vérifier, respectivement, que
les voyages de Nóbrega et de Léry au Nouveau Monde sont compris dans le contexte
des Réformes religieuses du seizième siècle. Néanmoins, la rédaction de ces textes est
directement affectée par l’expérience des auteurs avec les Tupinambás. En vue de la
position centrale du corps dans les sociétés Tupinambás et des problèmes
théologiques concernant la relation entre le corps et le salut, suscités au cours des
Réformes religieuses, la dissertation affirme la construction d’une représentation
ambiguë et differenciée du corps amérindien dans l’horizon du salut du jésuite et du
calviniste. Il s’agit de mettre en évidence la polarisation entre l’écriture de ces auteurs
et la nudité amérindienne, qui semble servir comme contre-épreuve de l’édification
des récits exemplaires du salut de ces religieux.
Mots- clés
Écriture; corps; salut; Nóbrega; Léry; Tupinambá.
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Sumário
1. Introdução 12
2. A salvação entre a escrita e o corpo 19
2.1.A salvação e o outro 19
2.2. O jogo entre a escrita e o corpo 27
3. O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas
religiosas 33
3.1. Léry: exílio e corte 33
3.2. Pragmatismo jesuítico: o missionário e a continuidade 47
4. Nudez: os dois corpos do Tupinambá 58
4.1. “Papel branco” ou “boca infernal”? Nóbrega e a conversão 58
4.2. “Filho de Cam” ou “nobre selvagem”? O calvinista e a
nudez do Tupinambá 74
5. A escrita e a salvação 84
5.1. Nóbrega e as cartas 84
5.2. Léry: a escrita e a eleição 96
6. Considerações finais: o “índio bestial” e o “bom selvagem” 105
6.1. O corpo domado: Nóbrega e o Plano Civilizador (1558) 107
6.2. O corpo estetizado: Léry e a inocência perdida 109
7. Referências bibliográficas 113
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Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à
vontade.
Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil,
Salvador [Baía] , 10 de agosto de 1549.
Mas são estes tão carniceiros de corpos humanos, que sem excepção de pessoas, a
todos matam e comem (...) Este gentio é de qualidade que não se quer por bem, senão
por temor e sujeição, como se tem experimentado (...) Os que mataram a gente da
nau do Bispo se podem logo castigar e sujeitar (...)Desta maneira cessará a boca
infernal de comer a tantos cristãos (...)
Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil,
Baía, 8 de maio de 1558
Tanto os homens como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre
materno, mas para parecem mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e
manchado de preto.
Parece-me mais verossímil que descendam de Cam (...) tanto é que vendo-os assim
vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus, minha fé (a qual, Graças a Deus,
sustenta-se alhures) não foi abalada. (...) Há grande diferença entre as pessoas
iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os indivíduos abandonados à
cegueira dos seus sentidos. Eu estou muito mais confirmado na garantia e na
verdade de Deus.
Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, 1580.
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1
Introdução
O corpo do prisioneiro é amarrado pela cintura. Antes de ser abatido com um
único golpe de tacape, o guerreiro cativo profere as palavras de seu discurso final.
Um dos tópicos recorrentes desse discurso é exaltar a valentia dizendo quantos
antepassados da tribo que o mantém cativo já estiveram em suas mãos. : “sim, sou
muito valente (...) venci os vossos pais e os comi”
1
. Os nomes dos ‘pais’ devorados
estão inscritos, por meio de escarificações, no corpo do guerreiro, que agora é um
prisioneiro.
Ele está prestes a ser devorado. E seu nome será inscrito ao corpo do guerreiro
que o capturou. Sem ter um novo nome marcado em sua pele, fruto do
aprisionamento de um cativo, o jovem tupi não está apto a se casar e ter filhos
2
.
Quanto mais nomes inscritos ao corpo, maiores as chances do bravo guerreiro ter
acesso à bem-aventurança, como nos lembra o jesuíta Manuel da Nóbrega: “Sua bem-
aventurança hé matar e ter nomes, e esta é sua glória por que mais fazem.
3
.
Enquanto o jovem guerreiro se inscreve ao Tempo social da comunidade por
meio da escarificação de um nome inimigo em seu próprio corpo, o restante da tribo
compartilha, por meio do ritual antropofágico, os nomes ancestrais inscritos nesse
corpo adversário. A vingança do inimigo é o que move o Tempo tupinambá, e tal
vingança se expressa numa relação entre a palavra e o corpo ou, como diz Viveiros de
Castro, em um “duplo esquematismo, verbal e canibal”
4
.
A palavra e o corpo: a tribo devora o contrário, com exceção do guerreiro que
o capturou. Este tem a palavra do inimigo a ser gravada em seu corpo. Antropofagia,
escarificações e tatuagens: é na relação com o inimigo, pelo duplo esquematismo
palavra/corpo, que se produz uma relação entre o passado e o futuro. “O corpo é uma
memória” – como nos lembra Pierre Clastres, em sua análise das inscrições corporais
1
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 96.
2
VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 228.
3
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, p. 249.
4
VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 238.
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indígenas
5
– e a memória tupi é fabricada nessa relação potencial entre a palavra e o
corpo. O corpo é, portanto, o lugar privilegiado de produção da memória tupi.
Março de 1549. A Companhia de Jesus – que compunha a armada do primeiro
Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza – aporta nas terras da América
portuguesa. Liderada pelo padre Manuel da Nóbrega, a Companhia tinha como
finalidade primordial a conversão do gentio. A serviço da Coroa portuguesa e do
Papado, o jesuíta se insere no mundo como um agente integrador, cujo princípio
fundamental é a união de todos no corpo místico da Igreja. Como demonstra em suas
primeiras cartas, Nóbrega parece bem otimista quanto aos resultados iniciais de sua
missão. Já em agosto de 1549, ao se referir aos Tupinambá, ele afirmava: “Cá poucas
letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à vontade”
6
.
O corpo tupinambá é destituído de sua memória, pois seria, aos olhos do
jesuíta, um ‘papel branco’ para se ‘escrever à vontade’. Reduzido ao grau zero da
nudez, esse corpo funciona como um suporte da salvação do jesuíta: é por intermédio
do ‘papel branco’, aberto aos sinais da escrita, que Nóbrega fundamenta sua presença
enquanto missionário de Deus que deve inscrever o gentio ao corpo místico da Igreja.
Fevereiro de 1557. Oito anos após a chegada de Nóbrega, a nau em que estava
o jovem que integrava a primeira missão calvinista ao Novo Mundo, Jean de Léry,
aporta nas terras do Novo Mundo. O viajante observa atentamente os “primeiros
selvagens que eu via de perto” e expõe suas impressões iniciais: “Tanto os homens
como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre materno, mas para
parecem mais graciosos, tinham o corpo todo pintado e manchado de preto”
7
.
O corpo se destaca nessa primeira descrição que Léry faz do selvagem. Um
corpo que é, por um lado, reduzido à nudez natural de quem acaba de sair do ‘ventre
materno’ mas, por outro, coberto por sinais de tinta preta. Que sinais seriam esses?
Segundo Léry, tal tinta é usada apenas para que eles se pareçam ‘mais graciosos’.
Depossuída de sua força simbólica, torna-se um mero motivo carnavalesco, um
gracejo. Pergunta-se então: tal tintura preta seria realmente o jenipapo que marca na
5
CLASTRES, P., A sociedade contra o Estado, p. 201.
6
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil, Salvador [Baía] , 10 de agosto de 1549.
7
LERY, J. Voyage fait en la terre du Brésil, p. 60. (tradução minha).
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carne o tempo social do Tupinambá? Ou não seria a tinta da própria escrita do pastor
calvinista, que se apropria do corpo alheio, tornando-o a superfície em branco de sua
própria história. A primeira descrição que Léry faz do ameríndio parece estabelecer,
de imediato, uma relação simbólica entre a escrita do protestante e a nudez do corpo
ameríndio.
Esta dissertação analisa a representação do corpo ameríndio no universo da
salvação do jesuíta Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Tendo com fio
condutor a dimensão escatológica desse encontro, procura-se destacar as diferentes
formas pelas quais ambos os autores constituíram suas narrativas da salvação por
intermédio do corpo tupinambá. Foram analisadas as Cartas do Brasil, escritas entre
os anos de 1549 e 1560, pelo primeiro jesuíta que esteve no Brasil, o Padre Manuel
da Nóbrega; e o livro Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil
8
(1578), do
pastor calvinista Jean de Léry, que viveu na França Antártica no ano de 1557.
Parece haver um desejo similar, tanto do jesuíta quanto do calvinista, de
transformar as escarificações do corpo ameríndio na escrita de seus respectivos
testemunhos da salvação. Ambos parecem ocupados em reduzir esses corpos à
condição do papel branco. Esse processo de depossessão da memória tupi passa
necessariamente pela apropriação de seu corpo. As marcas de seu Tempo devem
apagar-se para que se inscrevam, por intermédio da escrita missionária, as palavras
do verdadeiro Deus.
Influenciado pela leitura do livro de Michel de Certeau, A escrita da História,
procurei esmiuçar a relação simbólica que parece constituir-se entre a escrita desses
autores e o corpo tupinambá. A hipótese central do trabalho pressupõe que a salvação,
tanto do jesuíta quanto do calvinista, constituiu-se a partir do Tupinambá, e que se
estabeleceu uma polarização entre a escrita dos autores e o corpo ameríndio. Tal
hipótese deriva do princípio de que a escrita tem um papel determinante na busca da
8
Esta dissertação utilizou a segunda edição do livro Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil,
publicada no ano de 1580. A versão em português só foi utilizada quando não se via problemas de
tradução que pudessem comprometer o texto original.
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salvação dos religiosos, enquanto que a salvação do Tupinambá habita seu próprio
corpo.
Além disso, é importante ressaltar que o jesuíta e o calvinista representam
grupos religiosos distintos e opostos, inseridos no contexto de fragmentação religiosa
de meados do século XVI. Nesse período, as discussões teológicas sobre a relação
entre o corpo e a salvação ocupavam posição central, pois as diferentes práticas
litúrgicas, derivadas dessas discussões, tornaram-se um importante elemento de
diferenciação dos grupos religiosos.
Assim, procura-se analisar as diferentes representações da nudez ameríndia no
universo da salvação de Nóbrega e Léry, tendo em vista a polarização que parece
ocorrer entre a escrita dos religiosos e o corpo tupinambá. Essa polarização refletiu-se
numa descrição ambígua do Tupinambá. Diante de um mundo marcado pela discórdia
religiosa e pelas perseguições às heresias – estimuladas pelas polêmicas teológicas
sobre práticas referentes à relação entre o corpo e a salvação – o corpo dessa nova
humanidade, revelado em sua nudez, foi assimilado de diferentes formas.
Voltemos à nossa aventura à beira-mar, em meados do século XVI, para
compreender como se caracteriza a ambigüidade descritiva do corpo ameríndio. Em
fevereiro de 1557, quando a nau em que estava o calvinista Jean de Léry chegou às
terras do Novo Mundo, o jesuíta Manuel da Nóbrega já havia peregrinado, por mais
de sete anos, da Bahia ao sertão de São Vicente, pregando ao gentio e fundando
aldeamentos e colégios pelo caminho.
Enquanto Léry vivia o alumbramento da visão dos ‘primeiros selvagens que
eu via de perto’, Nóbrega voltava a Salvador para apresentar, ao recém chegado
Governador-Geral Mem de Sá, o esboço daquilo que se tornaria o seu novo plano de
conversão: o Plano Civilizador (1558). Desiludido com a persistência dos “maus
costumes” do ameríndio, Nóbrega já não era mais, a essa altura, aquele missionário
exaltado que via no corpo pagão um espelho de sua própria redenção, o ‘papel
branco’ em que se poderia ‘escrever à vontade’.
Já em fins de 1557, enquanto os Tupinambá do Recôncavo Baiano – cada vez
mais resistentes às imposições do Governo-Geral e à catequização jesuítica – estavam
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prestes a viver aldeados sob a “nova lei” do Plano Civilizador, os Tupinambá da Baía
de Guanabara acolhiam os calvinistas “exilados” da França Antártica, que por
discordâncias religiosas com seu comandante Villegagnon, fugiram do forte Coligny
para viver entre os índios. Vinte anos mais tarde, após viver o horror dos massacres
religiosos de São Bartolomeu, Léry publica um livro sobre sua experiência no Novo
Mundo. A memória a posteriori desse refúgio entre os Tupinambá evidencia a
exaltação do ameríndio, que se apresenta como ideal de renovação da fé diante da
crise religiosa européia.
O resultado final das experiências do jesuíta e do calvinista com os
Tupinambá é bem distinto. Nóbrega irá justificar um novo método de conversão do
ameríndio, fundamentado na sujeição destes a um severo e brutal controle sobre seus
corpos. ‘Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos’, escreve ele
em 1558. A narrativa de Léry, por sua vez, evidencia a exaltação nostálgica do
Tupinambá, muitas vezes descrito como um povo vivendo ainda um estado de pureza
edênica, em meio à natureza verdejante e ilimitada do continente americano:
“Lamento muitas vezes não estar entre os selvagens, nos quais como amplamente
demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos
de cristãos”
9
. Nota-se que o corpo tupinambá oscila entre os estados de pureza natural
e de bestialidade.
Ora um ideal de renovação, visto enquanto possibilidade concreta de retorno a
uma Verdade original, ora o símbolo da heresia de povos que não aceitam a fé de
Cristo. A ambivalência do Tupinambá parece constituir-se com o sentido de se
afirmar a identidade do próprio grupo religioso.
Portanto, para compreender as diferenças descritivas de Nóbrega e Léry sobre
o corpo ameríndio, procurou-se mapear, em um primeiro momento, o contexto
histórico de meados do século XVI. Nesse momento, as transformações advindas dos
descobrimentos marítimos e da expansão do sistema colonial, conjugaram-se aos
problemas teológicos suscitados pelas Reformas religiosas. Destacou-se a
exacerbação dos anseios salvacionistas, resultantes desse contexto de transformações
históricas, atentando para uma diferenciação básica: enquanto o jesuíta busca sua
9
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 250.
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salvação no Novo Mundo pela conversão do gentio, o calvinista deseja criar um
refúgio protestante, longe das perseguições católicas, para garantir a salvação de sua
comunidade.
A segunda parte esmiúça as diferentes motivações que levaram o jesuíta e o
calvinista ao encontro do Tupinambá. Procurou-se evidenciar tais diferenciações pela
análise do problema do corpo e da salvação no período das reformas religiosas.
Afirmou-se, assim, que o testemunho do calvinista – marcado pelo duplo corte,
oceânico e semiológico – se constitui enquanto narrativa de exílio. O jesuíta, por
outro lado, imerso no contexto de expansão ibérica, lançou-se ao Novo Mundo como
um novo Apóstolo de Cristo que procura transformar o “gentio” em mesmo, ou seja,
estabelecer a continuidade do mundo cristão pela América através da conversão.
A terceira parte analisa a descrição ambivalente da nudez ameríndia, tendo em
vista o jogo discursivo que se estabelece entre a escrita e o corpo tupinambá.
Procurou-se demonstrar que a ambigüidade descritiva do outro pode ser entendida
por meio da relação triangular estabelecida entre católicos, protestantes (ou hereges)
e Tupinambá. Além disso, tendo em vista a questão da corporalidade, procurou-se
demonstrar até que ponto a linguagem corporal jesuítica favoreceu o processo de
conversão dos Tupinambá.
A quarta parte analisa as diferentes formas pelas quais se organizam as
narrativas da salvação de Nóbrega e Léry, por meio da demonstração de que os
princípios norteadores da escrita católica se aproximam muito mais dos valores
ligados ao corpo do que aqueles que marcam as bases da escrita em Léry.
Por fim, procura-se mostrar as transformações ocorridas na representação do
Tupinambá a partir das diferentes experiências dos religiosos no Novo Mundo.
Nóbrega propõe um novo método de conversão que aproxima o poder secular da
atividade missionária: os ameríndios que recusassem receber a fé do pregador seriam
tratados como escravos adquiridos em guerra justa pelos colonos. A sujeição do
corpo tupinambá ao castigo do açoite e ao medo da escravização garantiria ao jesuíta
o sucesso de sua conversão. Por outro lado, Léry anuncia, em sua exaltação do
ameríndio, o posterior mito oitocentista do “Bom selvagem”. O corpo ameríndio, ao
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invés de sujeito a castigos e decapitações, torna-se o modelo de pureza natural. Em
seu corpo desenha-se a nostalgia das origens, o saudosismo de uma nudez perdida.
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19
2
A salvação entre a escrita e o corpo
2.1
A salvação e o outro
A principal premissa deste trabalho considera que é por intermédio da
experiência e representação do outro – nesse caso, o Tupinambá – que Nóbrega e
Léry irão edificar, através da escrita, suas narrativas exemplares da salvação
10
.
De 1549, momento em que Nóbrega chega ao Brasil, até 1560, quando põe em
prática um novo plano de conversão do gentio, percebe-se uma transformação na
forma do jesuíta representar o ameríndio e se relacionar com este. A percepção inicial
de que os índios eram como “papel branco em que se poderia escrever à vontade
11
transformou-se paulatinamente na imagem do “índio bestial”, que começa a
prevalecer no decorrer da experiência missionária. Tal transformação na forma de
representar o outro condiz com a adoção de novas práticas e atitudes face ao
Tupinambá.
Jean de Léry, por sua vez, chegou à França Antártica no ano de 1557. Jovem
sapateiro, ele integra a primeira missão calvinista no Novo Mundo. Sua narrativa foi
composta de forma fragmentada, atropelada pela sucessão de exílios que o futuro
pastor calvinista, perseguido pelos católicos, viveu durante o auge das guerras de
religião na Europa. Entre 1557 e 1578, quando publica a primeira edição de seu livro
10
A constatação de que os autores em questão constroem a narrativa exemplar de sua salvação por
intermédio do ameríndio é proposta por alguns autores. Castelnau-L´Estoile, em Les ouvriers d´une
vigne stérile, ao analisar o papel das cartas edificantes no processo de conversão, considera que os
jesuítas vislumbram a sua própria salvação por intermédio da conversão do outro. Frank Lestringant,
em Le Huguenot et le Sauvage, analisa a narrativa do pastor calvinista Jean de Léry a partir da
construção do “mito da eleição pessoal”, na qual a experiência do selvagem será determinante para sua
conversão interna, ou seja, para a tomada de consciência de sua vocação religiosa. Cf. CASTELNAU-
L’ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile , p. 86 ; LESTRINGANT, F., Le huguenot et le
sauvage, pp. 8-19.
11
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de
1549, p. 20.
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20
Histoire d´un voyage faict en la terre du Brésil, a Europa passa por um dos períodos
mais intensos das guerras de religião, cujo ápice de crueldade manifestou-se nos
levantes sangrentos do massacre de São Bartolomeu. Mais de vinte anos separam a
publicação de seu livro da experiência vivida entre os Tupinambá, o que resulta em
uma narrativa onde a figura desses índios é representada de forma ambígua,
alternando-se continuamente entre a exaltação e a detração.
Ora a exaltação do ameríndio, que anuncia o posterior mito do bom selvagem,
ressaltado em sua nudez pura e seu desapego material; ora o “maldito filho de Cam”,
condenado à “cegueira de seus sentidos” por não conhecer as Sagradas Escrituras e,
conseqüentemente, o verdadeiro Deus.
A tensão explicitada pelos autores na construção do lugar do Tupinambá
dentro do universo da salvação espelha a crise epistemológica de um mundo que
passa por grandes transformações. Os dois autores analisados expressam fortemente,
em suas narrativas, problemas epistemológicos e teológicos advindos da conjugação
de dois grandes fenômenos que marcaram o período renascentista: as Reformas
religiosas e os descobrimentos marítimos.
Crise epistemológica manifestada primeiramente pela chamada descoberta do
Novo Mundo. O oceano, antes um limite, reverte-se aos poucos em um horizonte
capaz de ser percorrido, o que resultou em um alargamento do mundo. A dimensão da
experiência, resultante do contato com diferentes culturas até então desconhecidas,
chocou-se com o universo de verdades prescritas na tradição bíblica. A presença dos
ameríndios suscitou o que Anthony Pagden denominou “problema do
reconhecimento”
12
.
Como nomear o desconhecido e diverso? Como situar o Tupinambá na
narrativa bíblica? Nesse ponto, a questão da nudez tornou-se um problema
significativo pois – ao observarem homens nus caminhando em um continente que até
o final do século XV sequer poderia existir – os viajantes não souberam, a princípio,
como situá-los em seu universo teórico e teológico. Em se tratando de Nóbrega e
Léry, dois homens religiosos, um problema ainda mais grave os perseguia: como
12
PAGDEN, A., The fall of natural man, p. 12.
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21
reconhecer povos que, aparentemente, nunca ouviram falar das Sagradas Escrituras e
que não são reconhecíveis a partir dos relatos bíblicos?
“E porque por toda a terra se espalha o Seu ruído, e até os confins do mundo
Sua voz”, diz o Salmo 18,5 da Bíblia. Como conceber a verdade da onipresença do
Deus cristão, diante da descoberta de povos tão diversos, que nunca tinham sequer
ouvido falar em Seu nome? A descoberta do Novo Mundo colocou, portanto, em
xeque crenças até então tidas como certezas inquestionáveis. Nesse sentido, é
importante perceber a experiência de Nóbrega e Léry com os Tupinambá como um
acontecimento que afetou a idéia cristã do lugar do Homem no mundo e de sua
relação com Deus.
De acordo com Reinhardt Koselleck, o advento da chamada época moderna é
fruto de uma tensão crescente que se dá entre o “espaço de experiência” e o
“horizonte de expectativa”. Na época medieval, o horizonte de expectativas estaria
situado predominantemente no Além, ou seja, no tempo sagrado da salvação, que
fugia do tempo finito e histórico dos homens mortais. O horizonte de expectativas na
Idade Média estava interligado à idéia de um passado perfeito e sem pecado,
enquanto o campo de experiência estava limitado pelo horizonte de expectativas, que
tinha como conceito fundamental a idéia da salvação eterna no tempo sagrado
primordial. Segundo Koselleck, os “tempos modernos” marcaram uma ruptura, no
sentido de que as expectativas se afastaram cada vez mais de todas as experiências
realizadas até o momento
13
. Assim, a experiência do Novo Mundo seria importante
no sentido de intensificar a dissociação paulatina que se dá entre o “espaço de
experiência” e o “horizonte de expectativa”.
A época moderna inaugura um momento em que a história passa a ser pensada
não mais exclusivamente como obra da Providência, mas como resultado de motivos
humanos, que se fazem sentir pela experiência do homem no mundo. Pagden também
analisa a descoberta do Novo Mundo sob a ótica do “primado da experiência”. O
autor se refere à categoria grega de “autópsia” (“ver com os próprios olhos”) para
explicar de que forma os viajantes do Novo Mundo começaram a valorizar mais
13
“C’est la tension entre l’expérience et l’attente qui suscite de façon chaque fois différente des
solutions nouvelles et qui engendre par là le temps historique.” KOSELLECK, R., Le futur passé.
Contribution à la sémantique des temps historiques, pp. 314 e 315.
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22
intensamente a experiência de seus sentidos em detrimento do olhar da autoridade
bíblica, para explicar a conexão entre o Velho e o Novo Mundo
14
.
É importante ressaltar que, embora a dimensão da experiência deva ser
destacada no universo desses religiosos que viajam ao Novo Mundo, a preocupação
que eles manifestam com a salvação ainda é predominante. Como já foi mencionado,
além dos descobrimentos marítimos, as Reformas religiosas foram fundamentais para
se compreender a crise epistemológica por que passava o continente europeu. As
noventa e cinco teses expostas por Lutero em 1517 trouxeram à tona diversos debates
teológicos que intensificaram a crise religiosa e, conseqüentemente, o forte
sentimento de insegurança diante da salvação.
Segundo o historiador Jean Delumeau, não se pode compreender plenamente a
intensidade da Reforma protestante sem situá-la na “atmosfera de fim de mundo que
reinava então na Europa e especialmente na Alemanha
15
. De acordo com Lutero, o
papado representava o Anticristo, o que demonstraria seu medo de que a humanidade
estivesse chegando ao fim: “Tudo está consumado, o Império Romano está no fim de
seu curso e o turco no topo, a glória do papado está reduzida a nada e o mundo
desmorona por todos os lados”
16
. Calvino, discípulo de Lutero, também via no
papado a manifestação do Anticristo. Em sua luta contra as superstições e os abusos
de poder da Igreja católica, o pastor considerava-se um dos profetas dos últimos
dias
17
.
Assim, é preciso situar a experiência do Novo Mundo nesse contexto de
fermentação escatológica intensificado pela fragmentação religiosa. A descoberta da
América e de uma humanidade desconhecida foi interpretada por muitos dentro de
um plano teleológico
18
.
14
PAGDEN, A., European Encounters with the New World, p. 51.
15
DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 222.
16
LUTERO, M., APUD: DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 222.
17
DELUMEAU, J., História do medo no ocidente, p. 224.
18
Para um estudo mais aprofundado sobre a relação entre o descobrimento da América e os anseios
milenaristas suscitados, cf. DELUMEAU, J., Historia do Medo no Ocidente; LESTRINGANT, F.,
Milléranisme et âge d´or: réformation et expériences coloniales au Brésil et em Floride (1555-1565);
WOORTMANN, K., O selvagem e o Novo Mundo. Ameríndios, humanismo e escatologia.
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23
Pois é preciso em primeiro lugar que a Boa Nova seja proclamada a todas as nações”
(Marcos, 14:10).
Essa Boa Nova do Reino será proclamada no mundo inteiro em testemunho diante de
todos os povos. E então virá o fim” (Mateus, 24: 14)
19
.
Tendo em vista as citações bíblicas de Marcos e Mateus, é possível sugerir de
que forma o contato com essa nova humanidade da América de fato alimentou a idéia
da proximidade do fim dos tempos.
O descobrimento, como citado, apresentou-se sob uma perspectiva
escatológica, desde seus primórdios, quando Colombo, imerso no imaginário
milenarista de Joachim de Fiore, associou a descoberta do Novo Mundo ao
apocalipse
20
. A descoberta de um novo continente acendeu a perspectiva de que o
Evangelho seria agora conhecido por todo o mundo: a conversão dos ameríndios
anunciaria a volta gloriosa de Jesus Cristo. É significativo o fato de Colombo ter
chegado às Américas no mesmo ano em que os espanhóis haviam expulso os árabes
da Península Ibérica. Impulsionados pelo espírito da Reconquista, os ibéricos se
lançaram sobre o Novo Mundo dentro de uma perspectiva cruzadística de expansão
da fé católica.
O contexto de fragmentação da cristandade em razão da expansão protestante
acentuou o espírito messiânico ibérico, que, a partir de meados do século XVI,
começou a perceber a presença dos índios americanos a partir de uma perspectiva
providencial, entendida como “compensação oferecida por Deus à Igreja pela fratura
da Cristandade provocada pelo ‘maldito Lutero’”
21
. A chamada “teoria da
compensação” ajustava-se, segundo Barbosa Filho, à celebração do povo ibérico
como escolhido pela Divina Providência para anunciar a Boa Nova aos pagãos
22
.
A Companhia de Jesus se tornaria então a principal ordem religiosa a
participar do movimento de expansão marítima da Coroa portuguesa. Aliados ao
papado, os jesuítas foram fundamentais para fortalecer, com seus métodos inovadores
e anti-monásticos de pregão e conversão, o movimento da Contra-reforma
19
BÍBLIA. APUD: DELUMEAU, J., História do Medo no Ocidente, p. 213.
20
LESTRINGANT, F., 1492 e o conhecimento, p. 11.
21
BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282.
22
Idem, Ibidem.
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24
comandado pela Igreja católica. Inseridos no contexto de fragmentação da cristandade
e de expansão marítima dos ibéricos, os jesuítas se lançaram às Américas, em aliança
com as Coroas ibéricas e o Papado, a partir de uma perspectiva messiânica. A
iniciativa de fundar um Governo-Geral em terras brasileiras também atendia o desejo
de assegurar o monopólio comercial sobre um território ameaçado permanentemente
pela presença dos franceses. No entanto, não se pode isolar do expansionismo
português o desejo religioso de alargar o reino de Cristo pelo mundo, como
manifestou D. João III: “Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as
ditas terras do Brasil foi para [que] a gente dela se convertesse à nossa Santa Fé
Católica”
23
.
Nessa perspectiva, ao se referir aos Tupinambá como gentio, deve-se
compreender que Nóbrega associava os ameríndios aos povos idólatras e pagãos,
nomeados pela Bíblia e existentes ainda no tempo anterior à vinda de Cristo. A
conversão do gentio se refere ao ideal de uma “missão divina não cumprida”
24
que
deveria reunir todos os povos no Corpo místico de Jesus Cristo. Nesse sentido, pode-
se construir a idéia de que a salvação da própria cristandade – e, conseqüentemente,
de Nóbrega – dependia diretamente da conversão do gentio
25
. É, portanto, no ato de
conversão do Tupinambá que estão depositadas todas as expectativas de salvação do
jesuíta. Assim que chega a terras brasileiras, o otimismo evangelizador traduz-se na
visão já pré-estabelecida sobre os Tupinambá: por serem gentios, só lhes restava
serem vistos como “papel em branco em que se pode escrever à vontade”
26
.
Se, por um lado, Nóbrega inclui o Tupinambá em seu universo da salvação, o
mesmo não pode ser dito de Jean de Léry. Enquanto calvinista, Léry é herdeiro da
doutrina da dupla predestinação: por não conhecer as sagradas escrituras, o
Tupinambá estaria condenado ao esquecimento divino. Enquanto os jesuítas
expandiam o Reino de Deus da Índia ao Novo Mundo, os calvinistas pareciam mais
23
SOUZA, T. Regimento Tomé de Souza,
www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_regimentotome.htm.
24
BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282.
25
“O empreendimento evangelizador no Novo Mundo não era movido apenas pela intenção altruísta
de salvar as almas dos novos gentios; tratava-se de salvar o mundo e, principalmente, a cristandade já
constituída (...)”. WOORTMANN, K., O selvagem e o Novo Mundo, p. 221.
26
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de
1549, p. 20.
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25
preocupados em criar um refúgio protestante do que converter a humanidade. A
América e os indígenas adquirem um estatuto diferenciado: ao contrário do jesuíta,
para quem a ênfase da salvação está colocada na conversão dos nativos, o calvinista
percebe o continente americano como a “Nova Revelação”
27
. A salvação protestante
não estaria na expansão do Reino de Deus e, sim, na fundação de um refúgio religioso
em que a comunidade religiosa se distancia daquilo que seria, segundo eles, o avanço
do Anti-Cristo. É nesse sentido que deve ser compreendido o significado mítico dado
ao continente americano. Ao invés de um milenarismo migratório, os protestantes
inserem-se no “Apocalipse da reabsorção”, onde a salvação dos eleitos implica na
perda da maioria
28
.
A partir da experiência do Novo Mundo, tornou-se intenso o debate teológico
sobre a inserção dos ameríndios na genealogia transcendental da Bíblia. Essa tensão
entre a experiência de uma nova humanidade e a expectativa da salvação, resultou na
ambígua representação do Tupinambá. Ambigüidade acentuada pela discórdia
religiosa entre católicos e protestantes.
De fato, procura-se demonstrar que a representação do ameríndio, feita por
Nóbrega e Léry, se insere no desejo desses homens em afirmarem a salvação de seu
grupo diante uma Europa fragmentada pela crise religiosa. Percorrendo um mundo
em movimento, trêmulo e instável, esses homens estão inseguros diante da angústia
do Juízo Final. O outro atende ao desejo de redenção do mesmo.
Com isso, procura-se ressaltar de que maneira a dimensão da experiência com
o Tupinambá operou uma transformação na forma de Nóbrega e Léry situarem o
indígena em seus diferentes projetos de salvação. A historiadora Eunícia Fernandes
analisou as práticas de consolidação dos aldeamentos jesuíticos partindo da
decalagem entre as predisposições da Companhia de Jesus, ou seja, seus projetos de
conversão, e as metamorfoses resultantes da experiência do encontro
29
. De forma
análoga, procura-se aqui perceber as metamorfoses ocorridas no modo de esses
27
VILLAS BÔAS, L., Travel Writing and Religious Dissent. Hans Staden’s Warhaftig Historia in
Print. p.24.
28
LESTRINGANT, F. , Milléranisme et âge d´or: réformation et expériences coloniales au Brésil et
en Floride (1555-1565), p. 193.
29
Cf. FERNANDES, E., Futuros outros: homens e espaços – os aldeamentos jesuíticos e a
colonização na América portuguesa.
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26
homens religiosos representarem o Tupinambá dentro de seus universos de
expectativas salvíficas.
A partir da experiência contínua com os ameríndios, Nóbrega compreendeu
que a imagem do Tupinambá dócil, aberto aos sinais divinos como um papel em
branco, não poderia mais se sustentar. Tal percepção é substituída paulatinamente
pela imagem do “índio bestial”, que deve ser convertido a partir do temor e não mais
do amor
30
. Léry, por sua vez, ao mesmo tempo em que condena o Tupinambá à
danação eterna, lança um olhar nostálgico sobre o ameríndio, que parece ser exaltado
por suas características de pureza primordial, antagônicas ao contexto de uma Europa
imersa na barbárie das guerras de religião.
O principal objetivo desta dissertação é, portanto, acompanhar a representação
ambivalente do Tupinambá no universo de expectativas de salvação do jesuíta
Manuel da Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Entre o “papel branco” e o “índio
bestial”, entre a exaltação que anuncia o mito do bom selvagem” e o “maldito filho
de Cam”, o Tupinambá, como visto por Nóbrega e Léry, é ambíguo. Ambigüidade
caracterizada pelo movimento pendular que se dá entre dois pólos extremos e
concorrentes: o bom e o bestial
31
.
30
Cf. EISENBERG, J. , As missões e o pensamento político moderno. O cientista político José
Eisenberg analisa as correspondências entre a experiência das práticas jesuíticas, principalmente de
Nóbrega, com as transformações conceituais operadas no discurso político moderno. Em linhas gerais,
o autor sustenta a tese de que a mudança conceitual nas práticas de conversão, operada por Nóbrega a
partir do chamado Plano Civilizador (1558), resultou na legitimação da autoridade através do
consentimento gerado pelo medo, tal como Hobbes argumentaria mais tarde no Leviatã.
31
Para uma análise acerca das representações ambivalentes sobre o ameríndio pelos primeiros
viajantes que estiveram no Novo Mundo, Cf. PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano
entre calvinistas franceses e católicos ibéricos; e LAPLANTINE, F., A pré-história da antropologia:
a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela
época até nossos dias.
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27
2.2
O jogo entre a escrita e o corpo
O movimento pendular entre o bom e o bestial aparece constantemente nas
descrições do corpo tupinambá, principalmente no que se refere à questão da sua
nudez. O propósito de analisar o discurso da salvação a partir da relação entre a
escrita religiosa e o corpo tupinambá, se insere na percepção do lugar privilegiado
que ocupa a escrita na dimensão salvacionista de Nóbrega e Léry. Além disso,
inseridos no contexto das guerras de religião, os religiosos estão imersos nas
infindáveis discussões teológicas referentes à relação entre o corpo e a salvação. Se
por um lado, como será visto, a escrita é o principal instrumento de consolidação das
expectativas salvíficas de Nóbrega e Léry, por outro, é no corpo que o Tupinam
manifesta, primordialmente, sua relação com o sagrado.
Alguns acontecimentos como o advento da imprensa, a vinda de textos
orientais para a Europa, a interpretação dos textos religiosos sobre a tradição e o
magistério da Igreja, a tradução da Bíblia por Lutero, o princípio protestante da Sola
Scriptura, ajudam a compreender a presença essencial da escrita no século XVI
32
. De
fato, a escrita acompanha de forma decisiva a experiência de Nóbrega e Léry,
ocupando um lugar determinante no universo da salvação desses homens. A escrita
sistemática de cartas ocupa uma posição central na prática missionária de Nóbrega.
Por outro lado, a publicação do livro Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil,
será determinante na construção e garantia da eleição do calvinista, imerso no
princípio da Sola Scriptura
33
.
Por outro lado, apesar do foco da dissertação não ser o estudo das sociedades
tupinambá e sim a representação destes nas narrativas de um jesuíta e um calvinista, é
importante considerar a posição central que o corpo ocupa nas sociedades indígenas
brasileiras. O corpo se apresenta como ponto de convergência da oposição entre o
32
Cf. FOUCAULT, M. Les mots et les choses, p.53.
33
A Sola Scriptura foi um dos princípios doutrinários estabelecidos por Lutero que marcou a reforma
protestante. Ao declarar a inutilidade da intercessão entre a Igreja e o fiel, o reformista estabeleceu
algumas teses, entre as quais destacam-se a Sola Fide ( só a fé salva) e Sola Scriptura, que afirma que
toda Verdade revelada por Deus está na Bíblia ou seja, a salvação encontra-se nos textos sagrados da
Bíblia.
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28
individual e o social, ou seja, o “elemento pelo qual se pode criar a ideologia central,
abrangente, capaz de (...) totalizar uma visão particular do cosmos”
34
.
É nesse sentido que se deve compreender os rituais de passagem dos meninos
prestes a se transformarem em homens (seres sociais), que perfuram seus lábios e
orelhas: “ É essa penetração gráfica, física, da sociedade no corpo que cria as
condições para engendrar o espaço da corporalidade que é, a um só tempo, individual
e coletiva, social e natural”
35
. O fundamento da salvação tupinambá faz-se presente,
portanto, nessa relação “dialética básica entre corpo e nome”
36
. Como diz Certeau ao
se referir aos Tupinambá observados por Léry: “O significante não é destacável do
corpo individual ou coletivo. Não é, portanto, exportável. A palavra aqui é o corpo
que significa”
37
.
O corpo nu ameríndio causou estranhamento a esses religiosos. Como situá-lo
no universo da salvação? Como torna-lo compatível às doutrinas bíblicas? Estariam
os Tupinambá vivendo ainda o tempo da inocência, anterior ao pecado original, ou
seriam eles pecadores bestiais imersos em “apetites sensuais”? O corpo ameríndio é o
que melhor expõe o caráter ambíguo do Tupinambá visto pelos europeus: ora é o
lugar privilegiado dos sinais demoníacos (nudez, poligamia, antropofagia), ora é o
espaço em que se vislumbra a pureza das origens, a nudez gloriosa da inocência
primordial.
É importante ressaltar que o caráter ambivalente desse corpo foi acentuado
pelas discussões teológicas envolvendo a relação entre o corpo e o sagrado, que
ocupavam posição central no período das reformas religiosas. Os principais pontos
que marcaram a ruptura teológica protestante advinham da relação entre o corpo e o
sagrado: o fim do culto das relíquias, a discussão sobre a presença real do corpo de
Cristo na hóstia, a condenação da santidade
38
. Todos tratam da questão de como a fé e
o sagrado devem se relacionar com a dimensão corporal no plano terreno. A crítica
feroz dos protestantes à necessidade de um corpo político (a Igreja) como
34
SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas
sociedades indígenas brasileiras, p. 13.
35
Idem, p. 15.
36
Idem, p. 13.
37
CERTEAU, M., A escrita da História, p. 217.
38
Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré.
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29
intermediário entre o fiel e a Graça divina foi o ponto de partida para posteriores
questionamentos, principalmente dos calvinistas, sobre a relação entre o corpo e a
salvação.
Ao introduzir a doutrina da predestinação, Calvino estabeleceu como condição
da salvação o dom gratuito da Graça do Senhor: Deus seria o único a decidir,
previamente, se o homem será salvo ou condenado. Diferentemente dos católicos, que
admitem um corpo intermediário para administrar os pecados pelo sacramento da
confissão, os calvinistas acreditam que só Deus poderia decidir, previamente, acerca
da salvação de cada ser. Segundo Calvino, Deus é radicalmente transcendente, não
podendo portanto ser representado em forma alguma. Nesse sentido, torna-se
extremamente complicado atribuir um símbolo a Deus, pois qualquer símbolo
demonstra, na verdade, a significação de Sua essência incompreensível
39
. Todo
símbolo que for tomado literalmente como representação de Deus constitui, de fato,
uma idolatria, o que explica a condenação calvinista do teatro, da dança e das
imagens sobre a vida de Jesus – assim, qualquer tentativa de representar Deus em
estado de corporalidade é uma afronta à Sua Glória infinita.
A Graça sacramental, disponível ao católico como meio de compensação de
seus pecados, mostra-se inútil para o calvinista. Deus já determinou o destino
individual de cada um. Qualquer pessoa que se pretendesse intermediária entre Deus
e o homem para a concessão da Graça se aproximaria dos mágicos charlatões, dos
falsos profetas. Segundo Weber, com essa transcendência radical de Deus, realiza-se
a conclusão definitiva do longo processo histórico-religioso de desencantamento do
mundo. Deus teria se distanciado definitivamente do horizonte do homem, sua Graça
não estaria nos sacramentos monopolizados pela Igreja Romana, com sua hierarquia,
e sim na convicção interna do crente. Tal isolamento íntimo do ser humano
provocaria uma negação de todo elemento de ordem sensorial, ou seja, “fica
explicada a recusa em princípio de toda cultura dos sentidos em geral”
40
.
Por outro lado, os jesuítas – inseridos na cultura ibérica, atrelada ao
movimento de expansão da universalidade da Igreja Católica – reafirmavam com
39
PAUL, T., A History of Christian Tought, p.263.
40
WEBER. M., A ética protestante no espírito do Capitalismo, p. 96.
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30
veemência o caráter institucional da Igreja como legítima intermediária entre Deus e
os homens. Para a Coroa portuguesa, imersa na perspectiva da Segunda Escolástica
41
,
o indígena deveria ser integrado ao corpo místico da Coroa portuguesa e da Igreja
universal por meio da recepção da doutrina e dos sacramentos
42
. Os jesuítas
trouxeram ao Novo Mundo o ímpeto de reafirmar a presença dos santos e dos
sacramentos da Igreja católica. Os gestos corporais, as curas, as penitências públicas,
a confissão, a forte presença de imagens e relíquias, a aparição dos santos e apóstolos
– são práticas recorrentes entre os jesuítas e demonstram a relação intensa que
estabeleciam com a cultura dos sentidos.
O jesuíta deve agir como corpo intermediário entre Deus e o paganismo.
Dessa forma, enquanto membro do corpo místico da Igreja, Nóbrega deveria
restabelecer a unidade do catolicismo. Sua missão supõe uma continuidade entre os
dois mundos, o pagão e o católico, para que se concretize o fim determinado: a união
de toda a humanidade no corpo místico de Jesus Cristo. Finalmente, a percepção de
que Deus se manifesta materialmente, pela forte presença dos santos e das relíquias
em seu cotidiano, demonstra a relação de continuidade que se estabelece entre o
corpo e o sagrado entre os jesuítas. Sustenta-se a hipótese de que a predisposição
jesuítica à utilização de um forte aparato simbólico envolvendo os gestos corporais, o
uso de imagens e objetos litúrgicos, foi importante no sentido de garantir uma
receptividade dos Tupinambá às pregações do missionário.
Segundo Certeau, a formação de um “discurso sobre o outro”, ocasionado
pelos descobrimentos do Novo Mundo, se dá em contraposição à agrafia tupinambá -
a escrita se sobressaiu enquanto instrumento privilegiado capaz, ao mesmo tempo, de
“reter as coisas em sua pureza e de se estender até o fim do mundo”
43
. É no espaço
ameríndio – e, no entender dos ocidentais, sem escrita e sem memória – que se
41
42
PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos
ibéricos, p. 39.
43
CERTEAU, M. , Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da História. p.
217.
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31
“fabrica a história ocidental
44
. Nesse sentido, o corpo ameríndio é transmutado, pelo
olhar do europeu, no “campo de expansão para um sistema de produção”
45
.
As narrativas de Nóbrega e Léry, apesar de suas enormes diferenças, parecem
convergir nesse sentido: ambas utilizam o corpo ameríndio como campo de expansão
para um sistema de produção – o discurso da salvação.
Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que escrever à
vontade
46
.
Não é difícil perceber, pela citação de Nóbrega, que o ato da escrita perpassa a
presença do corpo tupinambá. Ao utilizar a famosa metáfora do papel branco, o
jesuíta estabelece uma relação simbólica entre o corpo tupinambá e a escrita
missionária. Metáfora que delimita uma ação: escrever sobre o corpo do outro os
sinais de Jesus Cristo. Ação do missionário que está inserido no mundo como um
novo apóstolo que deve converter o maior número de gentios para vislumbrar sua
salvação pessoal
47
. Nesse sentido, pela percepção de Nóbrega, escrever sobre o corpo
ameríndio é agir diretamente sobre ele, transformando-o na superfície edificada pelos
sinais da salvação. Salvação que, no entender de Nóbrega, se aplica tanto ao gentio
quanto ao próprio missionário.
Eis aí portanto um tema de dissertação suscetível de mostrar que os habitantes
da Europa, da Ásia e da África devem louvar a Deus pela sua superioridade
sobre os dessa quarta parte do mundo. Ao passo que os selvagens nada podem
comunicar entre si a não ser pela palavra, nós, ao contrário, podemos entender
e dizer os nossos segredos, por meio da escrita, pelas cartas que enviamos de
um a outro extremo da terra. Além da invenção da escrita, os conhecimentos
44
CERTEAU, M. , Prefácio à 2
o
edição. In: A escrita da História. p. 10.
45
Idem, Ibidem.
46
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Baía, 10 de
Agosto de 1549, p. 54.
47
Castelnau L´Estoile percebe que a salvação pessoal do missionário se dá em conjunção com o ato da
conversão pois é a mesma Graça divina que sustenta os dois projetos: a salvação do missionário e a do
outro. Cf. CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p..86.
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32
de ciência que aprendemos pelos livros e que eles ignoram, devem ser tidos
como dons singulares que Deus nos concedeu
48
.
A citação de Léry expõe claramente uma hierarquia entre os povos a partir da
presença da escrita. Os Tupinambá, que só podem comunicar-se verbalmente, são
destituídos de todos os privilégios que a escrita traz: a “ciência”, a comunicação que
se estende pelo espaço e, principalmente, a memória original das verdades divinas. A
comunicação Tupinambá parece estar, pelo olhar de Léry, presa ao próprio corpo e,
por isso, sujeita às intempéries do tempo e da distância. Aqueles que só “podem se
comunicar verbalmente” são, com isso, “inteiramente privados” dos “dons singulares
que Deus nos concedeu”. Enquanto o Tupinambá é então condenado ao esquecimento
de Deus, o calvinista Léry agradece o “dom singular” que lhe foi concedido. O
Tupinambá, aquele que é despossuído da escrita, é também despossuído dos sinais da
salvação. Condenado ao esquecimento de Deus, o Tupinambá irá esclarecer a
condição de eleito do futuro pastor calvinista.
Espaço que oscila entre a salvação e a danação, entre a exaltação e a detração,
o corpo tupinambá torna-se objeto de um jogo. Dizemos jogo, pois se cria uma
relação de trocas intensas – entre a escrita, jesuítica e calvinista, e o corpo ameríndio
– que suscitam emoções diversas, tensões, desejos, estratégias e consolos. Jogo, pois
há, nessa troca de experiências, a criação de uma forma significante explicitada de um
lado pela metáfora do “escrever à vontade sobre o papel branco”, e do outro pela
relação de superioridade que se estabelece entre a palavra escrita calvinista –
garantidora da memória pura de Deus – e a palavra tupinambá, presa ao corpo e
sujeita às intempéries do tempo e do espaço.
Se pensarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, como
diz Huizinga, numa certa “imaginação da realidade”, cabe procurar “o valor e o
significado dessas imagens e dessa imaginação”, para se compreender sua ação no
seio das diferentes experiências
49
. O jogo percebido se configura numa triangulação
entre a escrita, o corpo e a salvação.
48
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 206.
49
HUIZINGA, J., Homo Ludens, p. 7.
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33
3
O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas
religiosas
3.1
Léry: o exilado e os cortes
Corte semiológico: o corpo e a ausência de Deus
Após quatro meses de “exílio” marítimo, os missionários calvinistas foram
calorosamente recebidos pelo comandante da colônia francesa, Nicolas de
Villegagnon. No entanto, o que deveria ser o pouso acolhedor da nova religião
reformada mostrou-se logo o avesso. A discórdia religiosa entre Villegagnon e os
genebrinos não tardou a reverter o quadro de fraternidade. No dia 21 de março de
1557, foi celebrada pelos protestantes a primeira “santa ceia de Nosso Senhor.” Antes
de realizar a confissão pública de sua fé para receber a comunhão, Villegagnon pôs-se
de joelhos.
E ele próprio [Villegagnon] a fim de dedicar o seu fortim a Deus e fazer confissão de
sua fé em face da Igreja, ajoelhou-se num coxim de veludo (...) e pronunciou em voz
alta duas orações, das quais obtive cópia e aqui transcrevo, literalmente, para que se
melhor compreenda quanto é difícil conhecer o coração desse homem
50
.
Como conhecer a verdadeira fé de um homem que se confessa reformado, mas
que, simultaneamente, evidencia em seus gestos corporais a fé católica? O ato de se
curvar diante da hóstia supõe a crença de que o corpo de Cristo esteja realmente
presente na substância do pão. Calvino rejeitava de forma categórica a doutrina da
50
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, pp. 90-91.
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34
transubstanciação, ou seja, a concepção de que, durante a eucaristia, as substâncias do
pão e do vinho se transformavam de fato em corpo e sangue de Jesus Cristo. Segundo
o pastor, a doutrina da transubstanciação evidenciava a idolatria católica, fundada na
adoração de objetos materiais como sendo o próprio Deus. Assim, a genuflexão de
Villegagnon traduziria um gesto idólatra: adorar um pedaço de pão como sendo o
corpo divino.
O capítulo VI do livro de Léry é o único a tratar especificamente das relações
sociais da França Antártica, ou seja, do espaço delimitado pelo poder político de
Villegagnon. Curiosamente, esse capítulo trata quase exclusivamente da discórdia
religiosa em torno da eucaristia. O destaque da polêmica sobre a presença real do
corpo de Cristo na hóstia não é casual. Ele é reflexo da posição central que ocupavam
as discussões sobre a relação entre o corpo e a salvação durante o período das
reformas protestantes
51
. De fato, as reformas são marcadas pela polêmica lançada por
Lutero sobre o culto das relíquias e a venda de indulgências. A autenticidade desses
objetos, como corpos que conteriam de fato a Graça da salvação, foi posta em xeque
pelo então monge beneditino em suas famosas 95 teses, expostas em 1517.
É certo que, desde que a moeda cai na caixa, o ganho e a cupidez podem ser
aumentados; mas a intercessão da Igreja só depende da vontade de Deus. (...) Serão
condenados para toda a eternidade, com os seus mestres, aqueles que crêem estar
seguros da sua salvação por cartas de indulgências
52
.
Segundo Lutero, os cultos católicos se valeriam de um poder simbólico falso
para iludir os fiéis, vendendo-lhes imagens e objetos que seriam apenas o simulacro
da presença divina. Com isso, Lutero inverteu a condição do papado: este, a quem
antes se confiava a esperança da salvação, agora se mostrava o representante maior da
corruptibilidade humana – o próprio Anticristo. O ato de reconhecer o papa, não mais
como sucessor de Cristo, e sim como o seu possível opositor, intensificou o clima já
predominante dos medos apocalípticos. Pela lógica salvacionista de Lutero, se o
Anticristo reinava em Roma, a história humana estaria possivelmente se aproximando
51
Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré, Histoire du corps, p. 78
52
LUTERO, M., APUD: MARQUES, A., História moderna através de textos, p. 119.
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35
de seu fim
53
. É importante lembrar o quanto ainda é dominante, ao longo do século
XVI, a expectativa em torno da salvação após a morte, principalmente entre homens
religiosos como Calvino e Léry.
Na visão protestante, o culto das relíquias – assim como os excessivos gestos
de devoção – representariam o ato herege de reduzir a essência espiritual de Deus à
dimensão terrena e imperfeita da corporalidade. Se o papa é o Anticristo, onde então
encontrar a salvação? Lutero sugeriu que o verdadeiro Deus não deveria ser
procurado na Igreja – espaço dominado pela exacerbação simbólica e geradora de um
poder que falsificava a primitiva mensagem de Cristo – mas na fé interior. O sola
fidei procurou reduzir o poder exclusivo da Igreja e dos sacerdotes como legítimos
intermediários entre Deus e os homens.
Calvino, discípulo de Lutero, acentuou a discussão referente ao culto das
relíquias ao procurar esvaziar a possibilidade de um corpo intermediário (Igreja,
sacerdotes e santos) entre Deus e os homens. A doutrina da predestinação – princípio
teológico segundo o qual Deus é o único capaz de decidir sobre a salvação dos
indivíduos – transformou significativamente a forma de se conceber a relação entre o
corpo e a salvação. Diferentemente dos católicos – que poderiam redimir-se de seus
pecados através da intermediação dos santos, das relíquias ou de um corpo sacerdotal
– os calvinistas acreditavam que somente Deus, agora distanciado em sua abstração
espiritual, poderia intervir no destino individual de cada um.
A radical transcendência de Deus impossibilitaria atribuir-lhe um símbolo,
pois este seria sempre a demonstração de sua essência incompreensível
54
. A presença
do signo, na concepção calvinista, implica a ausência de Deus. Segundo Calvino, “os
signos humanos são antes figuras de coisas ausentes do que insígnias e marcas de
coisas presentes
55
. Nesse sentido, a semiologia calvinista, como sugere Lestringant,
deve ser entendida como uma semiologia da disjunção, pois implica na dissociação
do signo em significado e significante
56
. Segundo Léry, Deus não pode estar presente
no pão e no vinho da Eucaristia, pois Ele não se encerra “nessas espécies materiais,
53
DELUMEAU, J. , História do Medo no Ocidente, p. 222.
54
PAUL, T. , A history of christian tought, p.263.
55
CALVINO, J., Institution de la religion chrétienne. APUD: LESTRINGANT, F., Une sainte
horreur, p. 22. (tradução minha)
56
LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 22.
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36
mas está no céu donde, por virtude do Espírito Santo se comunica espiritualmente
com os que recebem os sinais da fé”
57
.
O catolicismo, imerso na filosofia da Segunda Escolástica, explicava o
milagre da transubstanciação a partir da teoria aristotélica da matéria. Diferentemente
dos reformistas, que vão utilizar uma visão retórica e gramática da eucaristia, os
católicos justificavam o milagre da transubstanciação a partir do conceito aristotélico
de substância e acidente
58
. Os católicos estabeleciam, portanto, uma relação de
continuidade entre a dimensão sagrada e o mundo material e simbólico dos homens: a
eucaristia era – além de instrumento e signo visível da salvação individual – o ritual
que garantia a união da Igreja em torno da unidade do corpo místico de Jesus Cristo
59
.
Dentro da perspectiva de que Deus não poderia ser reduzido a nenhum símbolo, os
calvinistas compreendiam que a relação do pão e do vinho com o corpo e o sangue de
Jesus Cristo era puramente metonímica. Ou seja, as palavras de Deus na Bíblia seriam
expressas de forma figurada, como nos sugere Léry:
Essas palavras são figuradas, isto é, a Sagrada Escritura nomeia os signos dos
sacramentos pelo nome da coisa significada
60
.
A Bíblia nomeia os signos divinos a partir dos seus significantes. Léry, a
exemplo de Calvino, é adepto de uma leitura retórica do Evangelho. Dentro desse
princípio de dissociação semântica do sacramento, os genebrinos, na falta de vinho
para celebrar a cena eucarística, consideraram a possibilidade de substituir a
substância do vinho pela do cauim, bebida fermentada utilizada nos rituais
tupinambá. A forma significante em nada alteraria, segundo os genebrinos, o
57
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasi, p. 94.
58
WOORTMANN, K. , Religião e ciência no Renascimento, p. 86. Woortmann, explica da seguinte
forma a influência de Aristóteles na concepção eucarística da Segunda Escolástica: “(...) a teoria da
matéria aristotélica tornava o milagre possível: uma substância que existe em si, como o pão, é
composta de uma matéria extensa, quantidade que fornece seu substrato, e de uma forma que imprime
as qualidades ou propriedades nesse substrato. A substância apresenta-se aos sentidos mediante um
conjunto de acidentes que determinam sua natureza, como a cor, o calor etc. A substância do pão tem
como acidentes uma cor cinza, uma consistência mole etc. Pelo milagre eucarístico, os acidentes
subsistem, enquanto a substância do pão é substituída pela substância do corpo do Cristo.”
59
LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 93.
60
LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 73. (tradução minha).
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37
significado essencial do ritual eucarístico, que é a união espiritual entre os fiéis e
Deus.
(...) ao instituir a ceia Jesus estava na Judéia, e portanto falava da bebida que era
usual ali. É claro que se estivera no país dos selvagens, onde outra era a bebida, a ela
se teria referido. Portanto, não hesitariam em celebrar a ceia com as coisas mais
comuns (na falta do pão e do vinho), à alimentação dos homens do país onde se
encontrassem
61
.
A condenação calvinista da transubstanciação marcou definitivamente o
embate entre Villegagnon e os genebrinos. Atacar o dogma fundamental do
catolicismo resultou em forte reação do comandante francês, que não tardou em
“promover disputas relativamente à doutrina e sobretudo à ceia”
62
. Ele inverteu sua
opinião sobre Calvino e seus seguidores, agora vistos como hereges e transviados da
63
. Nesse momento, a ilha de França Antártica tornou-se para Léry , ao invés de um
refúgio da nova fé reformada, mais um espaço dominado pela perseguição religiosa.
É importante compreender a posição central que ocupam os rituais religiosos,
principalmente o da eucaristia, nos levantes ocorridos durante as guerras de religião.
A continuação que se percebe entre o rito eucarístico e o dissenso religioso, descrita
por Léry em sua vivência na França Antártica, é analisada por Natalie Davis a partir
da noção de “ritos de violência.” Segundo ela, “a ocasião para a maior parte da
violência religiosa era durante o culto ou ritual religioso, e o espaço, o que era usado
por um ou ambos os grupos com propósitos religiosos”
64
. É a partir da discórdia em
torno da presença real do corpo de Cristo na hóstia que se consome definitivamente
qualquer possibilidade de paz religiosa. A França Antártica deixa de ser a Terra
Prometida e se torna o espaço da perseguição e da violência. Os genebrinos são
forçados a se refugiar entre os Tupinambá, “pelos quais éramos tratados com mais
humanidade do que pelo patrício que gratuitamente não nos podia suportar”
65
. É
61
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, pp. 101 e 102.
62
Idem, p. 94.
63
Idem, p. 98.
64
DAVIS, N., Culturas do povo - sociedade e cultura no início da França moderna, p. 143.
65
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 102.
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nesse novo exílio calvinista, entre a natureza verdejante e seus habitantes
hospitaleiros, que parece se concretizar, na narrativa de Léry, o tão sonhado refúgio
da Terra Prometida.
Corte oceânico: as provações do corpo e a nostalgia das origens
Após descrever o embate definitivo com o católico Villegagnon, Léry
enumera uma série de atitudes do comandante que evidenciam apenas “um pouco de
sua inumanidade”
66
: ele “jurava a cada instante (...) que quebraria cabeça, braços e
pernas ao primeiro que o importunasse”; não cessou de dar “pancada no ventre” de
um dos franceses que costumava aprisionar; amarrou um índio escravizado para
“derramar-lhe toucinho derretido nas nádegas”
67
. O corpo do outro é submetido às
mais cruéis violências e torturas. A Terra Prometida, onde se constituiria a sonhada
paz da religião reformada, se transfigurou em um espaço dominado pela violência
física.
A degeneração católica se reflete também nas condições de putrefação da ilha
de França Antártica: não havendo fonte nem rio de água doce, a única água bebível,
armazenada numa cisterna, era tão “esverdinhada e suja como a de um charco de
rã”
68
. Essa água “fétida e corrompida”
69
da França Antártica está também nas cidades
européias, com suas
fontes lodosas e pestilenciais que nos corroem os ossos, dessoram a medula,
debilitam o corpo e consomem o espírito, essas fontes em suma que, nas cidades, nos
envenenam e matam e que são a desconfiança e a avareza, os processos e intrigas, a
inveja e a ambição
70
.
66
LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p.77 (tradução minha)
67
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 99.
68
Idem, p. 86.
69
Idem, ibidem.
70
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 111.
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O mundo em decomposição parece associar-se aos sentimentos pecaminosos –
“desconfiança, avareza, intrigas, inveja, ambição” – que estariam dominando a
Europa. A corrupção moral do papado, denunciada inicialmente por Lutero,
estimulou a percepção de um mundo próximo de seu fim. Natalie Davis mostra que
um dos objetivos mais freqüentes dos levantes religiosos era livrar a comunidade de
uma temida poluição, causadora da ira de Deus
71
. Em Léry, as inúmeras descrições
da poluição católica explicitam o sentimento de temor diante da aparente iminência
do Apocalipse. É importante sublinhar que suas preocupações escatológicas estão
inseridas nesse contexto político das guerras de religião. Ao denunciar a decadência
moral católica, Léry fortalece o vínculo de solidariedade social da comunidade
calvinista, aproximando-a de uma possível salvação, longe da corrupção papista.
O calvinista procura os sinais de sua eleição separando-se desse mundo
putrefato dos católicos e se isolando em um território próprio. Esse é o sentido do
refúgio religioso: delimitar um espaço comunitário próprio, imune à corrupção
externa e, conseqüentemente, mais próximo da pureza divina. Em busca da Terra
Prometida, os calvinistas, ao invés de encontrarem refúgio na ilha de França Antártica
(onde foram perseguidos por Villegagnon), só puderam vivenciar a tão sonhada paz
religiosa do outro lado da baía de Guanabara, entre os Tupinambá. Em meio ao
“verdejar permanente” da floresta, a comunidade genebrina, fugindo da perseguição
católica, é acolhida pelos ameríndios.
(...) os selvagens do Brasil [são] (...) mais fortes, mais robustos, mais entroncados,
mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos
coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos
(sabem contar a idade pela lunação), poucos são os que na velhice têm os cabelos
brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o bom clima da terra, sem geadas nem
frios excessivos que perturbem o verdejar permanente dos campos e vegetação, mas
ainda que pouco se preocupam com as coisas desse mundo. (...) E parece que haurem
todos eles na fonte da Juventude
72
.
71
Cf. DAVIS, N., Culturas do povo - sociedade e cultura no início da França moderna, p. 134. “A
poluição era perigosa numa comunidade, fosse do ponto de vista de um católico, fosse do de um
protestante, porque seguramente provocaria a ira de Deus.”
72
LÉRY, J. , Viagem á terra do Brasil, p. 111.
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40
A exaltação do Tupinambá é recorrente na obra de Léry. Essa visão
enaltecedora do ameríndio, ainda rara em meados do século XVI, será recuperada por
Montaigne em seu famoso ensaio “Dos canibais” até chegar à construção
rouseauniana do mito do Bom selvagem
73
. No entanto, mais do que sublinhar as
influências de Léry no mito oitocentista do Bom selvagem, interessa-nos perceber
como essa exaltação está diretamente relacionada ao contexto das guerras de religião.
Ao longo de seu livro, as descrições que exaltam o Tupinambá são quase sempre
seguidas de um movimento inverso e complementar: a condenação do católico. Em
oposição aos católicos, imersos nas “fontes lodosas e pestilenciais”, sobressai-se a
“fonte da Juventude” dos Tupinambá. O ameríndio é envolvido num ambiente
edênico – onde prevalecem os sinais da pureza original: juventude, harmonia,
verdejar permanente – diametralmente oposto à putrefação dos papistas.
Hayden White, ao construir uma genealogia do termo selvagem, situa no
início do período moderno, segundo ele um momento de “crise cultural”, a redenção
do homem selvagem, que passa da condição de maldito à de eleito para “justificar a
revolta contra a própria civilização”
74
. Nesse momento, o selvagem deixa de ser visto
exclusivamente como antítese da “normalidade” (bárbaro ou pagão) para ser exaltado
como modelo de crítica intracultural
75
. No caso de Léry, as circunstâncias levam a
crer que a “crise cultural” a que Hayden White se refere seja o contexto das guerras
de religião.
De fato, ao se observar a trajetória do escritor, percebe-se que ela é composta
por inúmeros refúgios, marcados pelo corte da comunidade calvinista em relação ao
mundo da violência anômala dos católicos. É fundamental ter em vista que sua
narrativa sobre o Novo Mundo se insere nesse movimento de sucessivos cortes: entre
sua experiência no Novo Mundo (1557) e a publicação do livro (1578), há um
intervalo de mais de vinte anos, no qual o calvinista viveu um dos períodos mais
intensos das perseguições religiosas. É nesse contexto de “crise cultural” que o
73
Cf. LESTRINGANT, F., Jean de Léry, homme des Lumières. In: Histoire d’un voyage fait en la
terre du Brésil, p. 231.
74
Cf. WHITE, H., As formas do Estado Selvagem. In: Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da
cultura, p. 192.
75
Idem, p. 194.
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41
passado do Novo Mundo é construído enquanto memória da pureza original.
Portanto, é necessário perceber que a representação que Léry faz do Novo Mundo e
do Tupinambá se insere num movimento de corte espacial e temporal, no qual a
memória da pureza original é construída em resposta ao violento contexto das guerras
de religião.
O refúgio mais cruel desse longo intervalo de guerras religiosas foi certamente
em Sancerre, a “tragédia sangrenta que começou em Paris a 24 de agosto de 1572”
76
.
Nas recordações dos massacres de São Bartolomeu predominam o léxico da fome e
da putrefação, nos quais se destaca a barbárie da gula católica.
(...) entre outros atos horríveis de recordar, a gordura dos corpos humanos
(massacrados em Lyon de um modo mais bárbaro e cruel do que pelos selvagens,
após serem retirados do rio Saône) não foi publicamente vendida em leilão e
concedida ao maior comprador? Os fígados, corações e outras partes dos corpos de
alguns não foram comidos pelos assassinos sangrentos de que se horrorizam os
infernos? De modo similar, depois de miseravelmente massacrado, o coração de
Coeur de Roi, confessor da religião reformada na vila de Auxerre, não foi recortado
em pedaços e exposto à venda e, finalmente, depois de assado na grelha, devorado
para saciar a raiva desses cães mastins?
77
o corpos despedaçados pela fome infernal do ventre católico. A gordura dos
mortos boiando no rio da discórdia religiosa é vendida publicamente em leilão para
ser comida junto aos “fígados, corações e outras partes de corpos”. Léry cria o
cenário de uma carnificina que se associa aos pecados da gula e da avareza. Liderados
pelos papas, são os católicos “grandes usurários que, sugando o sangue e o tutano,
comem vivos viúvas, órfãos e mais criaturas miseráveis”
78
. O banquete de corpos em
putrefação é o cenário apocalíptico retratado por Léry. A gula do papado chega a
ultrapassar “todos os limites” da crueldade:
76
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 150. (tradução minha)
77
Idem, p. 150. (tradução minha)
78
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 203.
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42
Ride Faraó / Achab, Nero / e também Herodes / vosso barbarismo / se olvida / ante o
fato presente
79
.
Ao procurar dissociar-se de um mundo próximo do Apocalipse, o refugiado
põe em evidência o corte que separa a comunidade huguenote – em busca da pureza
cristã que lhes garantirá a salvação – desse mundo degenerado pela gula católica. De
fato, a eleição do cristão reformado, como sublinha Lestringant, geralmente se
revelava a partir de uma separação brutal
80
. A viagem marítima se apresenta como
uma verdadeira “crônica sobre a travessia”
81
, que acentua o corte entre o Velho e
Novo Mundo. O heroísmo religioso e a confirmação do povo eleito são atestados pela
sobrevivência diante das inúmeras provações. Na travessia marítima as tempestades
ganham destaque como manifestação da ira de Deus.
(...) rezamos todos juntos o salmo 107, pois, com o furor das ondas, semi-
desfalecidos, cambaleávamos como ébrios e o navio sacudia a ponto de não haver
marinheiro por mais veterano que fosse que pudesse se conservar de pé. Com efeito,
não será uma grande maravilha de Deus o fato de subsistir assim em meio a um
milhão de sepulcros, quando com o tormento no mar somos erguidos ao alto dessas
incríveis montanhas de água, como que até o céu, e subitamente jogados tão baixo
como se devêssemos submergir nos mais profundos abismos? Indiscutivelmente sim.
E como em conseqüência do furor das ondas só nos separava do perigo a espessura
das tábuas com que são construídos os navios, lembrei-me do poeta, que escreveu
distar a morte apenas quatro dedos e ás vezes menos daqueles que andam no mar
82
.
O léxico empregado por Léry na descrição da tempestade é próprio de uma
batalha cósmica, de proporções espirituais, entre o navio, com a comunidade
huguenote dentro, e o caos das trevas marítimas. O navio, que sobe e desce entre o
79
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasi, p. 204.
80
Cf. LESTRINGANT, F., Une sainte horreur, p. 105.
81
Cf. CERTEAU, M., A escrita da História, p. 219. “(...) a separação (“de cá” e “de lá”) aparece,
inicialmente como corte oceânico: é o Atlântico, fenda entre o Antigo e o Novo. Contando
tempestades, monstros marinhos, feitos de pirataria, “maravilhas” ou avatares da navegação
transoceânica, os capítulos do início e do final (...) desenvolvem esse corte estrutural sobre a forma
histórica de uma crônica sobre a travessia.”
82
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 61.
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43
mais alto céu e o abismo das trevas, personifica o medo do viajante em busca da
confirmação de sua eleição. É interessante perceber que a narrativa da travessia se
confunde com o salmo 107, que atesta as maravilhas de Deus diante do exílio do
povo de Israel fugindo do Egito rumo à Terra Prometida. E, como diz Léry, “não será
uma grande maravilha de Deus o fato de subsistir assim em meio a um milhão de
sepulcros?” O povo escolhido é acolhido pelas maravilhas divinas, escapando
tempestades, monstros marinhos e fomes extremas, para viver a experiência espiritual
da aliança e da salvação. Essa “crônica sobre a travessia” se reverte, portanto, em
uma narrativa exemplar da salvação, na qual a comunidade genebrina busca
testemunhar os sinais da confirmação de sua eleição
83
.
A condição do navio, cercado pelo abismo tempestuoso do deserto de água,
condiz com a condição do calvinista em seus exílios terrestres, cercado pela danação
da violência católica. O navio e Léry são como ilhas flutuantes em meio ao caos
externo. Talvez essa correspondência entre os dois ajude a compreender as
semelhanças descritivas entre a travessia marítima e os cercos religiosos,
principalmente no que diz respeito ao emprego de um léxico da putrefação.
(...) tão pequena era a nossa ração que nos víamos obrigados a comê-la apodrecida
sem sequer desperdiçar os vermes que entravam por metade (...) Nossa água doce de
tal modo se corrompera e tanto bicho açoitava que (...) para beber se fazia mister
segurar o copo com uma das mãos e tapar o nariz com a outra
84
.
Assim como a ilha de França Antártica, com sua água “fétida e corrompida”, a
podridão acompanha o navio, cercado pelas trevas marítimas. É importante notar que,
durante a viagem da ida, as tempestades e as provações do corpo ocorrem
principalmente próximas à linha do Equador, onde a “navegação é difícil e
extremamente perigosa”
85
. Além da água podre do navio, os aventureiros que cruzam
a linha equatorial são também surpreendidos pela chuva ácida e fétida, que, “caindo
83
A questão da narrativa exemplar da salvação será aprofundada no capítulo 4, que trata da presença
da escrita em Léry.
84
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p.74.
85
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 55.
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nas carnes de alguém provocam pústulas e grossas empolas”
86
. A linha equatorial se
apresenta como uma “difícil e perigosa passagem”
87
, que testa ao máximo o marrio
corporal dos exilados. Água podre, chuva ácida, tempestades, trevas marítimas: o
navio e Léry estão cercados pelas águas escatológicas do dilúvio. Mas, tão logo o
navio cruza a “cintura do mundo”, o turbilhão da ira divina se esvanece. Após o
martírio da passagem pelas mediações da linha equatorial, o navio parece flutuar em
outro oceano, tamanha paz e constância que se apresenta: “tivemos desde então vento
de oeste que nos foi propício e permaneceu tão constante que a 26 de fevereiro de
1557, pelas oito horas da manhã, avistamos a Índia Ocidental ou terra do Brasil”
88
.
Enquanto nas mediações da linha equatorial se representa o cenário
apocalíptico da ira de Deus contra os pecadores; do outro lado dessa mesma linha há
o esplendor da criação divina através da natureza harmoniosa
89
. Após atravessar o
Equador, os bons ventos marítimos dos trópicos levaram o navio rapidamente à costa
brasileira: “e logo pudemos admirar as florestas, árvores e ervas desse país, que –
mesmo em fevereiro, mês em que o gelo oculta ainda no seio da terra todas essas
coisas em quase toda a Europa – são tão verdes quanto na França em maio e junho. E
isso acontece durante todo o ano nessa terra do Brasil”
90
.
O Brasil é construído, pela memória do pastor calvinista, como o inverso de
uma Europa ameaçada pelas guerras religiosas. Após cruzar com grandes dificuldades
a linha que delimita a fronteira entre o lá e o cá, Léry adentra um espaço edênico. Ao
contrário do cerco, onde prevalece a degradação claustrofóbica, as terras Tupinambá
parecem não ter fim, abertas ao verdejar permanente da natureza. Das raízes e
tubérculos que se escondem sob a terra às penas coloridas dos pássaros que recortam
os céus, a descrição do espaço brasileiro é quase sempre resumida às belezas naturais.
É importante salientar que a França Antártica não faz parte desse cenário, pois estaria
corrompida pela violência e avareza dos papistas, comandados por Villegagnon. Fora
86
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil , p. 73.
87
Idem, p. 75.
88
Idem, p. 77.
89
Segundo Frédéric Tinguely, que aplica o estudo de Hartog sobre a “retórica da alteridade” à
narrativa de Léry, a linha equatorial seria como um “espelho d’água”, que marca um princípio de
inversão entre os dois mundos. Cf. TINGUELY, F., Jean de Léry et les vestiges de la pensée
analogique.
90
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil , p. 78.
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da ilha, atravessando a baía, está o espaço brasileiro. As variadas espécies da fauna e
da flora são retratadas como uma benção da suprema criação divina.
A fome, a sede, a tempestade, a putrefação: a travessia, assim como os cercos
religiosos, seguem o mesmo roteiro das provações do povo de Israel diante da
iminência do apocalipse. Do outro lado da linha do Equador vislumbra-se a Terra
Prometida em meio à natureza. Mais uma vez, a narrativa bíblica acompanha o
exilado. Ao Salmo 107, que atesta as maravilhas de Deus diante dos perigos da
morte, soma-se à narrativa de Léry o Salmo 104, que louva a diversidade do Criador.
Por isso, quando a imagem desse novo mundo, que Deus me permitiu ver, se
apresenta a meus olhos, quando revejo assim a bondade do ar, a abundância de
animais, a variedade de aves, a formosura das árvores e das plantas, a excelência das
frutas e em geral as riquezas que embelezam essa terra do Brasil, logo me acode a
exclamação do profeta no salmo 104:
Senhor Deus, como tuas obras diversas
são maravilhosas em todo o Universo:
Como tudo fizestes com grande sabedoria!
Em suma, a terra está cheia de tua magnificência
91
.
Realização do sonho milenarista: a proximidade com a pureza divina parece
concretizar-se a partir da relação do calvinista com a natureza tropical. Léry atesta
sua relação privilegiada com o Criador nesse espaço que parece ter saído diretamente
de Suas mãos: o Novo Mundo, reduzido à natureza, é o livro pelo qual Deus
comunica diretamente sua Graça à criatura humana
92
. Em sua narrativa, Léry parece
influenciado pela idéia calvinista da natureza enquanto “livro do mundo como
instrumento da revelação”
93
. Só resta ao autor exaltar a “magnificência” do Criador
exclamando o Salmo 104. O livro da Bíblia, que contém as palavras vindas
diretamente da boca de Deus, junta-se ao livro da natureza, que se “apresenta aos
91
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 181.
92
Cf. LESTRINGANT, F., Millénarisme et âge d’or: réformation et expériences coloniales au Brésil
et en Floride (1555-1565).
93
LESTRINGANT, F., Jean de Léry, ou l’invention du sauvage, p. 121.
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olhos” desse viajante como o espetáculo da pureza divina. Deus se manifesta ao então
sapateiro Léry, atestando sua vocação pastoral, que deverá ser escrita e impressa
como testemunho de sua fé.
Mas a experiência do retorno ao tempo mítico da pureza original, pelo qual o
futuro pastor testemunhou as maravilhas do Criador, é interrompida por mais um
corte que, dessa vez, força a volta do genebrino à Europa. Através do corte da volta,
Léry funda a memória nostálgica do Novo Mundo. Sua experiência com os
Tupinambá se constitui como memória de uma pureza original que, vinte anos depois,
parece ter sido desvanecida no desgastado continente europeu.
Assim, ao dizer adeus à América, aqui confesso, pelo que me respeita, pouca ou
nenhuma devoção que ainda subsiste e as deslealdades que usam uns para com
outros; tudo aí está italianizado e reduzido a dissimulações e palavras vãs, por isso
lamento muitas vezes não estar entre os selvagens, nos quais como amplamente
demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos
de cristãos
94
.
As maravilhas de Deus, atestadas pelo narrador a partir da travessia marítima e da
convivência com a natureza tropical, parecem confirmar a eleição de sua comunidade.
No entanto, é importante perceber que essa narrativa de um paraíso perdido se
constrói a partir de um corte no tempo e no espaço. Corte esse que marca a ruptura
definitiva entre o Velho e o Novo Mundo.
É a partir do contexto a posteriori de “crise cultural” que o Novo Mundo e o
Tupinambá irão emergir como memória consolidadora da pureza original. Vinte anos
depois da experiência na baía de Guanabara, diante de uma Europa imersa na
discórdia religiosa e de um Novo Mundo “massacrado” pela colonização espanhola e
portuguesa, a Terra Prometida de Léry parece ter se transformado em uma ausência
definitiva, capaz de ser revivida somente pela memória nostálgica: “lamento muitas
vezes não estar entre os selvagens”.
A pureza do Novo Mundo, onde se manifesta o sonho milenarista de um
retorno à origem paradisíaca, se constitui enquanto antítese desse mundo católico
94
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 250.
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“reduzido a dissimulações e palavras vãs”. Ao “dizer adeus à América”, Léry dá
adeus aos últimos resquícios da pureza original, ameaçada de extinção pela “avareza
e ganância” dos papistas. O Novo Mundo se constituirá enquanto recordação
nostálgica de um passado originário que se perdeu definitivamente do horizonte do
pastor, imerso na barbárie das guerras de religião.
3.2
Pragmatismo jesuítico: o missionário e a continuidade
Depois que me apartei deles, indo eu a passar pelos caminhos, diziam alguns em alta
voz o nome de Jesus como eu lhes tinha dito, de que eu não recebia pequena
consolação; e certamente, que ainda que o Senhor me não dê o Reino dos Céus, já
com estas semelhantes consolações me dou por pago.
95
Enquanto a narrativa de Léry se apresenta, tendo em vista o duplo corte que a
caracteriza, como memória de uma pureza perdida, ou seja, de uma ausência que
parece definitiva, a de Nóbrega procura continuamente restituir a presença de Deus
em um mundo marcado por Sua ausência. O nome de Jesus repetido pela boca do
Tupinambá, graças à pregação de Nóbrega, marca os sinais da Palavra de Deus no
corpo ameríndio. Esses sinais que aproximam o Tupinambá de Cristo equivalem aos
sinais da salvação do próprio Nóbrega. De acordo com Castelnau-L´Estoile, é a
mesma Graça divina que sustenta os dois projetos: a salvação do missionário e a do
outro.
96
Evocar a presença do Salvador em terras esquecidas de seu nome, unir a
diversidade (que representa o não cristão) em um só corpo: Jesus Cristo. Se ainda não
está seguro de seu lugar no Reino dos Céus, Nóbrega ao menos se dá “por pago” com
estas “consolações”. A repetição do nome de Jesus pelo Tupinambá testemunha o
95
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Baía, 10
agosto 1549, p. 55.
96
Cf. CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p..86.
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sucesso evangelizador de Nóbrega e, por conseguinte, sua possível salvação
individual.
A missão é como uma peregrinação, como um martírio, em que o homem
religioso se sacrifica pelos outros, como fez Jesus pela humanidade ao morrer na
cruz
97
. O que o jesuíta projeta sobre o corpo tupinambá são os sinais de sua própria
salvação. A metáfora do papel branco é condizente ao que o olhar quer ver: percebido
a - priori como gentio, ao índio só resta ser visto como espaço vazio que já está sendo
preenchido pelas palavras do Senhor.
O missionário busca reviver a narrativa exemplar do Mistério da Salvação.
Sua salvação depende do encontro do cristão com o não-cristão em um único ponto:
Jesus Cristo, o corpo de Deus que, pela encarnação, o sacrifício e a ressurreição,
trouxe a salvação para a Humanidade. O missionário, como um novo apóstolo, faz de
seu corpo martirizado a imagem sensível do corpo de Cristo, sendo assim o ponto de
ligação, o peregrino que leva a Graça divina aos pagãos. Como um santo, procura
aproximar a Graça do corpo de Cristo do corpo ausente de Graça, o corpo gentio. Os
sinais de São Tomé surgem entre as rochas do Novo Mundo como um santuário que
consola o novo Apóstolo de Cristo. Assim como as naus religam os continentes em
um único espaço cristão sob o comando do Rei de Portugal, o missionário religa os
povos em um único tempo: o tempo da salvação, expresso pela união de todos no
corpo místico de Jesus Cristo.
A nau e o corpo missionário: agentes intermediários
Esta terra he nossa empresa, e o mais gentio do mundo. Nom deixe lá V. R. mais que
huns poucos para aprender, os mais venhão. Tudo lá he miséria quanto se faz: quando
muito ganhão-se cem almas, posto que corrão todo o Reyno, cá he grande manchea
98
.
97
Cf. GELLIS, J., Le corps, l´église et le sacré, p. 71.
98
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 9 de Agosto de
1549, p. 34.
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49
É importante perceber a posição intermediária do missionário: entre dois
mundos, é ele quem interliga a diversidade dos elementos – sagrado e profano,
humano e divino, cristão e não cristão. Como a nau no oceano à procura da terra que
deverá unir-se aos domínios da Coroa portuguesa, Nóbrega busca alcançar o gentio
para incorporá-lo ao Corpo místico da Igreja. O Tupinambá é o campo onde atua o
missionário, inserido no mundo profano com o sentido de sacralizá-lo. Ao contrário
da narrativa de Léry, fundamentada no corte oceânico, Nóbrega procura unificar os
povos no tempo da salvação. O “cá” e o “lá”, que o calvinista separa, o missionário
procura aproximar a todo instante.
Cá: as terras do Novo Mundo, mais especificamente, a cidade recém fundada
de São Salvador. Em agosto de 1549, quando o jesuíta escreve a frase citada, as terras
do gentio já haviam sido nomeadas “São Salvador”, em alusão a Cristo, filho de
Deus, mártir que sacrificou corpo e sangue em nome da verdadeira fé. Essa cidade
encontra-se cercada pela “Baía de Todos os Santos”, nomeação que parece desafiar os
protestantes, que duvidavam da santidade dos santos
99
. Percebe-se aqui que o ato de
nomear dá sentido ao gesto de conversão, tornando explícita a necessidade de se
reafirmar o culto aos santos e a proximidade sensorial entre Deus e os homens
100
.
Nomear o espaço de fundação do Governo Geral de “São Salvador”, e sua
área circundante de “Baía de Todos os Santos”, significa demarcar a posse do
território a partir da reiteração da presença dos nomes salvíficos. O rito de nomeação
funciona como um processo de transformação do profano em sagrado
101
.
Lá: o reinado português de D. João III, que em 1549 decidiu reformar o
sistema de colonização das Américas ao estabelecer o primeiro Governo Geral na
província da Bahia, ponto eqüidistante das regiões de maior produtividade econômica
do litoral brasileiro. D. João III nomeia Tomé de Souza para fundar uma cidade na
Bahia, considerando a permanente ameaça dos franceses, e lhe ordena promover o
domínio do território e a conversão dos povos: a “principal coisa que me moveu a
mandar povoar as ditas terras do Brasil para [que] a gente dela se convertesse à nossa
99
Cf. VAINFAS, R., SOUZA, J.B., Brasil de Todos os Santos, p. 8.
100
FERNANDES, E., Futuros outros: homens e espaços – os aldeamentos jesuíticos e a colonização
na América portuguesa, p. 63.
101
Idem, Ibidem. Cf. Também ELIADE, M. O sagrado e o profano, capítulo 1.
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50
Santa Fé Católica”
102
. Nesse sentido, a Companhia de Jesus tinha como função
cristianizar a população do Novo Mundo para que esses se tornassem súditos do
Reino de Portugal.
A ruptura protestante com a Igreja e a disseminação de novos movimentos
religiosos como o luteranismo e o calvinismo, intensificaram a atmosfera de intenso
combate às heresias na Península Ibérica. É significativo o fato da Companhia de
Jesus ter iniciado sua atividade missionária em Portugal no ano de 1540, apenas
quatro anos após a instalação do Santo Ofício em Portugal. Nesse sentido, a América
habitada pelos índios pareceu constituir-se de significado providencial, devendo ser
entendida como uma “compensação oferecida por Deus à Igreja pela fratura da
Cristandade provocada pelo “maldito Lutero”
103
.
Cá: “essa terra he nossa empresa e o mais gentio do mundo”. Uma terra que
desconhece o Reino de Deus por ser habitada por gentios. A terra e os gentios
formam um paralelo que justifica o campo de ação de Nóbrega e seus companheiros:
“nossa empresa”. A empresa é um empreendimento que visa realizar um objetivo
pragmático: transformar o mundo pelos sinais de Cristo. A miséria a que Nóbrega se
refere quando fala de “lá” é a miséria da conversão, “quando muito ganhão-se cem
almas”. “Cá”, ao contrário, “é grande manchea”, caracterizando a “mão cheia” de
almas a serem convertidas pelo novo Apóstolo que, ao garantir a salvação do gentio
assegura-se de sua própria.
É necessário ressaltar a importância do mar no imaginário do cristianismo
ibérico. A atitude empreendedora ibérica de enfrentar o grande mar tenebroso é ponto
fundamental para se compreender o sentido missionário de Nóbrega. O mar foi
durante muito tempo símbolo do caos por onde chegavam os bárbaros infiéis que
invadiram a península ibérica ao longo da Idade Média. Em 1075, com a reforma
Gregoriana, o apelo papal por uma Cruzada contra os infiéis acendeu nos povos
ibéricos o princípio da Reconquista como Guerra Santa. Com a expulsão dos mouros
da Península Ibérica, o mar caótico e tenebroso, porta de entrada dos infiéis e
bárbaros, foi se cristianizando paulatinamente.
102
SOUZA, T. Regimento Tomé de Souza,.
www2.uol.com.br/linguaportuguesa/valeoescrito/ve_regimentotome.htm
103
BARBOSA FILHO, R. , Tradição e artifício – Iberismo e Barroco na formação americana, p. 282.
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51
A chamada cristianização do mar deu-se sobretudo a partir de relatos de
viagens imaginárias, representações cartográficas que começaram a povoar o oceano
Atlântico de aventuras divinas e locais sagrados. Esses relatos atribuíram a santos
cristãos, à semelhança de heróis da antiguidade do porte de Ulisses, feitos heróicos
nos altos mares, enfrentando tempestades e naufrágios
104
. O que se chama
cristianização do mar é, na verdade, esse movimento de adaptação de lendas, mitos e
crenças de antigas tradições ao universo atlântico
105
.
Depois que partimos desse Reino, que foi o primeiro dia de fevereiro, trouxe N. S.
toda esta armada em paz e em salvo, com ventos sempre prósperos, até chegar a esta
Baía de Todos os Santos, em cinqüenta e seis dias, sem acontecer contraste nenhum,
e com outros muitos favores e mimos, que bem demonstravam ser usa tal obra
106
.
Espaço cristianizado, o oceano Atlântico parece ter perdido suas dimensões
monstruosas. A distância entre lá e cá é quase anulada. A travessia de Nóbrega dá a
impressão de ter sido providencial, guiada por santos: além de não oferecer “contraste
nenhum”, é presenteada com muitos “favores e mimos”. O corpo/navio do
missionário, em sua posição intermediária de agente integrador, procura transformar a
diversidade profana em igualdade sagrada
107
. O mar cristianizado é a porta que se
abre para a continuidade entre “lá” e “cá”: agora é necessário cristianizar, inscrever
com os sinais de Cristo, a terra e o corpo do gentio.
104
É nessa perspectiva que viagens fantásticas para além do mundo conhecido, como a Visão de
Tundalo, a Navegação de São Brandão, o próprio Purgatório de São Patrício, o Livro de Alexandre
conheceram notável difusão na área ibérica durante todo o século XV e, em parte, no século XVI.
Lendas como essas, provindas de tradições distintas como as gregas, célticas e judaicas foram-se
consolidando no horizonte desconhecido do oceano Atlântico, tornando essa imensa massa aquática
paulatinamente familiar e cristianizada. Cf. SOUZA, L.M., O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 24.
105
“No fundo, todos esses cultos que permitiam ultrapassar o medo e o receio de um mar agora
constantemente lembrado como morada de santos e espaço de manifestação de lugares teológicos,
como o Purgatório ou o Paraíso, tornaram a vida e a prática marítimas perfeitamente integradas no
quotidiano da sociedade cristã.” KRUS, L., O imaginário português e os medos do mar, p. 102.
106
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Coimbra,
Salvador [Baía] 10 de Agosto de 1549, p. 46.
107
Cf. BAETA NEVES, L.F., O combate dos soldados de Cristo, p. 35.
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52
Santos e relíquias: os sentidos do corpo.
O movimento de expansão marítima inaugurado por Portugal se insere em
uma dimensão ao mesmo tempo secular e religiosa. A chamada cristianização do mar
foi-se consolidando paralelamente a um saber específico de domínio das mais
modernas técnicas de navegação. D. Henrique, irmão do Rei, reuniu em torno de si
uma legião de personagens ligados aos saberes humanistas e aos interesses da
burguesia ascendente
108
.
O contexto quinhentista português das grandes navegações
pelos oceanos Atlântico e Índico aliou a dimensão humanista da sabedoria do mar
109
,
fundamental para o sucesso das longas travessias marítimas, ao espírito messiânico de
expansão da fé cristã. Nóbrega se insere nessa dinâmica de expansão marítima da
Coroa portuguesa, em que estão aliados os conhecimentos científicos fundamentados
na experiência do homem no mundo e a dimensão transcendental vinculada à
economia da salvação.
Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, relata nos Exercícios
Espirituais uma experiência singular que procura aliar a vontade humana de ação no
mundo com a vontade de Deus. Simbiose que se fundamenta na relação homem/corpo
e Deus/alma. Como o próprio título da sua escrita sugere, os Exercícios Espirituais
são exercícios e, portanto, dizem respeito ao corpo físico, ou melhor, à “aplicação dos
sentidos do corpo” em conjunção com os “sentidos da imaginação” para a busca da
vontade divina
110
. O corpo da pessoa participa ativamente da vontade divina: a
“aplicação dos sentidos” supõe uma atitude que, segundo François Marty, “não marca
o espírito porque diz antes respeito ao corpo. A aplicação dos sentidos é então a
108
Esses personagens seriam “geógrafos, técnicos em navegação e construção naval, cosmógrafos,
matemáticos, médicos judeus e mercadores italianos, estes últimos extremamente interessados nas
novas rotas de comércio abertas pelos portugueses.” BARBOSA FILHO, R., Tradição e artifício –
Iberismo e Barroco na formação americana, p. 140.
109
Esse termo foi intensamente analisado por Luis Felipe Barreto. “O conjunto teórico de ciência,
filosofia e técnica renascentista que chamamos sabedoria do mar constitui o espaço de pensamento
objectivo português mais rico e universal(...) A sabedoria do mar é, no quadro da ciência, da filosofia
e da técnica, um dos grandes e dos poucos momentos em que algo da cultura portuguesa está regulado
pelo ritmo de andamento mais dinâmico da restante cultura européia vanguardista”. BARRETO,
L.F., Os descobrimentos e a ordem do saber - uma análise sócio-cultural, pp. 56 e 57.
110
Cf. MARTY, F., Sentir e saborear – os sentidos nos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de
Loyola. “O lugar dos sentidos nos exercícios”, pp. 28 a 40.
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53
atitude que se ajusta segundo os tipos de relação próprios a cada um dos cinco
sentidos”
111
.
O primeiro ponto é ver as pessoas, com o olhar da imaginação, meditando e
contemplando em particular as circunstâncias em que estão, para tirar algum proveito
do que vê.
O segundo ponto é ouvir o que falam, ou poderiam falar, refletindo sobre si mesmo
para tirar algum proveito.
O terceiro ponto é sentir e saborear com o olfato e o paladar a infinita suavidade e
doçura da divindade, da alma e de suas virtudes, e de tudo o mais, conforme for a
pessoa que se contempla. Refletir em si mesmo para tirar proveito.
O quarto ponto é sentir com o tato, assim como abraçar e beijar os lugares onde tais
pessoas pisam e tocam, deste modo sempre procurando tirar proveito
112
.
Os cinco sentidos atuam em conjunto na procura da vontade divina. Os dois
últimos pontos – que conjugam tato, olfato e paladar – causam maior estranhamento,
pois seriam mal vistos por toda uma tradição cristã que os compreendia como
“sentidos inferiores”, em oposição aos sentidos superiores (visão e audição), que
estariam mais próximos da idéia
113
. A simbiose do espiritual com o carnal,
manifestado pelos sentidos dito “inferiores”, é decisiva, pois conjuga uma “pessoa
tomada em sua humanidade corporal” com a vontade divina
114
, ou seja, uma pessoa
capaz de fazer escolhas a partir da aplicação de seus sentidos físicos.
É importante assinalar que os Exercícios o práticas corporais fundamentadas
na ação salvífica de Cristo na história, têm como fim aproximar-se do Mistério da
Salvação
115
pela imitação da passagem de Cristo na terra. Reviver a paixão de Cristo
é incorporar-se ao divino. Cristo, a encarnação de Deus que trouxe a possibilidade de
redenção. A tradução corporal da imitação de Cristo não é simples mimetismo.
Segundo Barthes, é o “corpo continuamente mobilizado na imagem pelo próprio jogo
111
Idem, p. 30.
112
LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, pp. 57-58.
113
MARTY, F., Sentir e saborear – os sentidos nos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio de
Loyola, p.31.
114
Idem, p.39.
115
Cf. LOYOLA, I., Exercício Espirituais. Nota 16, p. 12.
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da imitação que estabelece uma analogia literal entre a corporeidade do exercitante e
a do Cristo, de quem se trata de encontrar a existência, quase fisiológica, por uma
anamnese pessoal”
116
.
A imitação de Cristo, pela aplicação dos sentidos do corpo, é uma atitude que
busca ter o corpo voltado para o Senhor. “Sentir com o tato, abraçar e beijar os
lugares onde tais pessoas pisam e tocam”. Inácio de Loyola procura, pelos sentidos do
corpo, chegar à Graça divina através de seus vestígios. A força carnal do abraçar e
beijar se insere na vontade de se aproximar dos vestígios corpóreos de Cristo.
Vestígios que se eternizam pelos santos. Intermediários entre Deus e os homens, os
santos perpetuam a Graça do Corpo místico de Deus. O corpo santo é receptáculo do
sagrado, um corpo-relíquia, objeto de devoção e de renovação espiritual
117
.
Dizem eles que Santo Tomé, a quem chamam Zomé, passou por aquí. Isto lhes ficou
por dito de seus antepassados. E que as suas pisadas estão sinaladas junto de um rio,
as quais eu fui ver por mais certeza da verdade, e vi com os próprios olhos quatro
pisadas mui sinaladas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio, quando
enche. Dizem também que quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos Índios, que o
queriam frechar, e chegando ali se lhe abrira o rio, e passara por meio dele, sem se
molhar, à outra parte. E dali fora para a Índia. (...) Dizem também que lhes prometeu
que havia de tornar outra vez a vê-los. Ele os veja do céu, e seja intercessor por eles a
Deus, para que venham a seu conhecimento, e recebam a santa fé, como
esperamos
118
.
Os sinais mais evidentes da Graça de Cristo em terras brasileiras são as
pegadas de São Tomé. Apóstolo da época de Cristo, diz-se que esteve em terras
brasileiras antes de ir para as Índias. Os vestígios funcionam como relíquias, sinais
concretos da Graça divina. O culto das relíquias funda-se na crença de que o caráter
sagrado do corpo santificado pode ser transferido para o devoto
119
. Nesse sentido, as
pegadas de São Tomé sobre a rocha constituem a Graça do santo e, indiretamente, do
116
BARTHES, R., Sade, Fourier, Loyola, p. 61.
117
GELLIS, J., Le corps, l´Église et le sacré, p.78.
118
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Informação das terras do Brasil [aos padres e
irmãos de Coimbra] – Baía, agosto de 1549, pp. 66-67.
119
MARTY, F. , Sentir e saborear, p. 81.
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próprio Jesus Cristo. “Vi com os próprios olhos quatro pisadas mui sinaladas”. A
presença física dos sentidos corporais do missionário que atua na superfície profana
em busca dos sinais da Graça de Cristo. Os pés de São Tomé na rocha são sinais que
se abrem para a experiência dos sentidos. Além da visão assinalada pelo próprio
Nóbrega, está intrínseco o tato. “O tato é aquele do rochedo, ao qual Inácio, peregrino
imprudente, retornava para se assegurar da orientação dos vestígios dos pés do
Senhor sobre o rochedo da Ascenção”
120
. A imagem do rochedo da Ascenção, que no
Antigo Testamento é símbolo da solidez da Aliança e fidelidade de Jeová, prefigura a
imagem de Cristo como “rochedo espiritual de onde verte a bebida de vida”
121
. O
rochedo de São Tomé simboliza, portanto, por um lado, a marca identitária, a
permanência, a coesão do Corpo de Cristo espalhado pelo mundo.
Mais interessante, entretanto, é perceber a conjugação desses dois elementos:
a rocha e o pé do santo. Se o primeiro simboliza a coesão, a permanência, a fixidez; o
segundo é metonímia do oposto: o pé como movimento, como a parte do corpo que
melhor resume a condição do peregrino – mover-se pelo mundo. É necessário
considerar a importância dos Exercícios Espirituais como busca de integração do
exercitante com o Senhor em sua humanidade (Cristo), como falou às testemunhas
que o escutavam, viam, tocavam e pisavam o mesmo solo que ele
122
. Nesse sentido, a
oração “começa pelos pés”: o peregrino que caminha em direção a Jerusalém para
reviver no corpo o caminho que Jesus percorreu.
A pegada de São Tomé, por guardar a Graça de Deus, assinala a fundação de
um lugar santo, de um passado originário que faz perpetuar a memória corpórea da
Graça. As pegadas podem curar pelo toque: santuário que o peregrino revelou, à
procura dos sinais de Deus. Sinais que consolam o missionário em busca de
santidade. Que São Tomé “seja intercessor por eles a Deus”, pede Nóbrega. São
Tomé atua em Nóbrega como memória viva
123
: ativa o momento de repetição e de
reunião no Corpo de Jesus Cristo. Nesse sentido, o passado serve como apoio para o
120
CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., Dicionário dos símbolos, p. 783.
121
MARTY, F. , Sentir e saborear, p. 61.
122
Idem, Ibidem.
123
Idem, p. 63.
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futuro: Nóbrega é o novo São Tomé. Atualiza a Graça de Deus, possibilitando a
intercessão entre Cristo e os pagãos para fundar a cidade de Deus no Novo Mundo.
Peregrino que “ora pelos pés”, Nóbrega se insere, portanto, em uma sociedade
pragmática, que procura agir de acordo com a vontade divina. Os sinais de São Tomé
são relíquias que aproximam os dois universos: corpo e espírito, homem e Deus,
pagão e cristão. Depois da santificação do mar, a santificação da terra. Intermediário
entre o sagrado e o profano, Nóbrega vê na presença dos santos os sinais de sua
salvação e o consolo espiritual para seguir o combate de Deus contra o diabo/pagão.
Os sinais de São Tomé assinalam, por fim, a proximidade entre as esferas do
espiritual e do carnal, do sagrado e do profano. Proximidade que se manifesta pela
proteção dos santos que apareciam nas guerras, como São Sebastião em 1560, que
ajudou a armada de Mem de Sá a expulsar os franceses da Baía de Guanabara. É
importante lembrar o famoso “milagre de Ourique”, em 1139, quando cristãos
portugueses, liderados por Affonso Henriques, venceram um enorme exército de
mouros, apesar da inferioridade numérica, para recuperar território cristão invadido
pelos islâmicos. Essa vitória teria sido explicada pelo aparecimento de Cristo ao
futuro rei de Portugal, “sinalizando a intervenção sagrada no destino de glória
reservado aos portugueses”
124
.
Tal proximidade se manifesta fundamentalmente pelo envolvimento dos
sentidos corporais nas solenidades religiosas, é o que pode ser visto na primeira
festividade de Corpus Christi em terras da América portuguesa, realizada por
Nóbrega no ano de 1549.
Fizemos precissão com grande musica, a que respondião as trombetas. Ficarão os
Indios spantados de tal maneira, que depois pedião ao P. Navarro que lhes cantasse
asi como na precissão fazia. Outra precissão se fez dia de Corpus Christi muy
solemne, em que jugou toda a artelharia que estava na cerca, as ruas muito
enrramadas, ouve danças e invenções à maneira de Portugal
125
.
124
HERMANN, J., 1580-1600 – o sonho da salvação, p. 18.
125
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Ao P. Simão Rodrigues, Salvador [Baía] , 9 de
agosto de 1549, p. 41.
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O caráter espetaculoso da procissão de Corpus Christi é evidente: a música, a
dança e a preparação da cidade tornam a festividade da celebração do corpo de Deus
uma ação sinestésica que procura inscrever o ameríndio ao poder da Igreja e da
Coroa. ‘Spantado’, o Tupinambá se deixa levar por essa festividade que circula ao
redor da cidade colonial. Nessas procissões, o envolvimento dos sentidos corporais
marca a proximidade entre os domínios do espiritual e do corporal.
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58
4
Nudez: os dois corpos do Tupinambá
4.1
“Papel branco” ou “boca infernal”? Nóbrega e a conversão
Cena inaugural da conversão: os “maus cristãos” e a alegoria do papel
branco
Todos esses que tratam comnosco, dizem que querem ser como nós, senão que nom
tem com que se cubrão como nós, e este soa incoveniente tem. Se ouvem tanger à
missa, já acodem, e quanto no vem fazer, tudo fazem: assentão-se de giolhos, batem
nos peitos, alevantão as mãos ao ceo; e já hum dos principaes delles aprende a ler e
toma lição a cada dia com grande cuidado, e em dous dias soube ho ABC todo, e ho
insinamos a benzer, tomando tudo com grandes desejos. Diz que quer ser christão e
nom comer carne humana, nem ter mais de huma molher e outras cousas
126
.
A primeira descrição mais aprofundada sobre os índios, feita por Nóbrega no
Novo Mundo, encontra-se na carta escrita em abril de 1549, poucas semanas após sua
chegada. A descrição denota a forte presença do corpo tupinambá no olhar do autor,
como se vê nos primeiros sinais de conversão explicitados pelo gestual destes que
parecem ter “grandes desejos” em acudir à nova fé (ajoelham-se, batem nos peitos,
levantam as mãos aos céus). Esses sinais de fé, pela mimese gestual, misturam-se à
descrição de um corpo que, por sua nudez, causa estranhamento ao olhar do jesuíta.
Apesar do desejo manifestado em se converter, a ausência de vestes marca a
diferença entre o Tupinambá e o jesuíta – “dizem que querem ser como nós senão que
126
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos. Primeira carta de Nóbrega escrita no Brasil,
poucos dias depois de chegar a 29 de março de 1549. Possível data: 10 de abril de 1549, p. 20.
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nom tem com que se cubrão”. Parece caracterizar-se uma ambivalência na descrição
do corpo ameríndio: “inconveniente”, por sua nudez, mas que fascina pelo “grande
desejo” de fé que apresenta.
Como conciliar a visão da nudez proibida, que denota o pecado da carne, com
os gestos de devoção dos Tupinambá? O nu é dessemelhante, pois foge da ordem
estabelecida pela moral cristã. Entretanto, sua dessemelhança “inconveniente” é
equivalente à semelhança consoladora dos sinais de devoção que apresenta. Esse par
de opostos sugere a presença do missionário, intermediário entre o dessemelhante e o
semelhante. Tem-se aqui uma cena inaugural da conversão de Nóbrega. Cena em que
o corpo tupinambá, entre a nudez pecadora e os gestos de devoção, está no centro da
descrição. Nessa gangorra de corpos que se balançam entre dois opostos – pecados do
corpo (Lúcifer) e gestos de devoção (Jesus Cristo) – o missionário é o agente
intermediário que deverá aproximá-los, anulando o demoníaco pela presença do
divino.
No corpo constituem-se simultaneamente a danação e a salvação. O corpo que
se benze, se ajoelha e levanta as mãos aos céus, é o mesmo que contém os sinais mais
representativos do pecado humano: nudez, poligamia e antropofagia. Como sugere
Baeta Neves, esses três comportamentos que demonstram a “animalidade” tupinambá
estariam todos associados ao corpo. A poligamia “é o desconhecimento de qualquer
interdição quanto ao “uso” de outro corpo. O canibalismo é o desconhecimento de
qualquer interdição quanto à ingestão de outro corpo. A nudez é o desconhecimento
de qualquer interdição quanto à exibição do corpo”
127
.
Se por um lado o corpo do Tupinambá se apresenta pela ausência da Lei de
Deus – o desconhecimento da proibição do pecado original, que o aproximaria da
“animalidade” – por outro, através dos gestos de devoção explicitados na mímese
gestual, ele demonstra sua aptidão para estar incluído na Lei natural da Graça.
Inserido na ideologia da Segunda Escolástica, que segue a obrigação evangélica de
pregar a todas as Criaturas, o jesuíta considera que o Tupinambá está incluído na Lei
127
BAETA NEVES, L.F., O combate dos soldados de Cristo, p. 56.
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natural, ou seja, apto a participar do grêmio da Igreja e alcançar a bem-
aventurança
128
.
As duas situações aparentemente contraditórias, o querer “ser como nós” e os
“maus costumes” (nudez, antropofagia e poligamia), não caracterizam uma
discordância interna e sim duas propostas que buscam o mesmo fim: a conversão do
gentio. Ao invés de uma contradição, essa oposição caracteriza uma ambigüidade que
justifica a ação missionária: a conversão implica a transformação desse corpo fonte
de “maus costumes” em corpo carregado da Graça de Deus.
Os sinais que denotam os pecados do corpo são apresentados pela negativa, ou
seja, pela “vontade” do Tupinambá em se distanciar deles: “Diz que quer ser christão
e nom comer carne humana, nem ter mais de huma molher e outras cousas”. Nesse
momento, Nóbrega estabelece as normas que diferenciam o cristão do gentio, mas ao
mesmo tempo aproxima, religa, o dessemelhante e o semelhante: ele dá voz ao
“principal” tupinambá para que esse enuncie as palavras do próprio jesuíta – a
negação do que vai contra os preceitos da Lei católica. Nóbrega projeta sua fala ao
“principal”, que se torna então um porta-voz das palavras da salvação do próprio
jesuíta.
Ajoelhar-se, bater nos peitos, levantar as mãos aos céus: as palavras/gestos do
pregador já fazem efeito, já vestem esse corpo nu com os sinais de devoção. O chefe
desses índios, o “principal”, já é inclusive capaz de repetir o ABC: é vestido com a
gramática, a ordenação da linguagem que lhe possibilitará receber a Graça do
verdadeiro Deus.
(...) e certamente não creio eu que em todo o mundo há terra tão disposta para tanto
fruto como esta. Onde vemos perecer as almas por falta, sem lhes poder valer; pelo
menos acendemos-lhes as vontades para serem cristãos (...) não sei como os que têm
amor a Deus e desejam a sua glória podem sofrer não se embarcar logo e vir cavar na
vinha do Senhor (...) Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há
128
PÉCORA, A., O bom e o boçal ou o selvagem americano entre calvinistas franceses e católicos
ibéricos, p. 39.
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mais que escrever à vontade; mas é muito necessária a virtude e zelo de que estas
criaturas conheçam ao seu Criador e Jesus Cristo seu Redentor.
129
A escrita de Nóbrega, como será visto com mais vagar no próximo capítulo,
parece relacionar-se diretamente ao corpo “papel branco” do ameríndio. De fato, sua
escrita está dotada de um sentido missionário, voltada, portanto para as expectativas
de uma história futura, em que o gentio será transformado em próximo pela anulação
de seus “maus costumes”. A alegoria do “papel branco” condiz com a concepção de
uma “terra tão disposta para tanto fruto”, em que basta espalhar as sementes-palavras
sobre a terra fértil para que se colham os frutos esperados, ou seja, as almas
convertidas. Basta pregar para que a Palavra de Deus germine na “vinha do senhor”,
ou se imprima sobre o corpo ameríndio. A nudez pecaminosa, própria de Cam, filho
que amaldiçoou o pai Noé e foi condenado a viver nu longe de Deus, é quase anulada,
tornando-se um resquício da cegueira em que viviam esses povos. Prevalece a
imagem do índio dócil, que reflete a facilidade da conversão. De fato, na experiência
inicial de sua missão no Novo Mundo, Nóbrega usa com freqüência a imagem do
“papel branco” para se referir aos indígenas.
Para os jesuítas, imersos no universo teológico da Segunda Escolástica, o ato
de pregar já bastava para que o gentio se convertesse
130
. A reiteração da Palavra
divina, ao penetrar o ouvido do gentio, modificaria sua condição, tornando-o
conhecedor da Graça. Pregar seria vestir a nudez e esse ato de vestir deve ser
entendido em sentido mais amplo, como intervenção sobre o corpo tupinambá,
transformando sua condição: esconde o que não se pode mostrar, extirpa o que não se
pode fazer com o corpo. Vestir com a Palavra significa vestir com gestos, vestir com
roupas, vestir com a escrita – em suma, sacralizar o corpo profano com os sinais de
Deus.
O primeiro fragmento das cartas de Nóbrega permite perceber um olhar
definidor de sentido, um olhar que está direcionado por projetos: vê o que se deseja
ver, o que se deseja construir. É o direcionamento da missão que pretende a
129
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín de Azpicuelta Navarro, Coimbra.
Salvador [Baía], 10 de agosto de 1549, p. 54.
130
PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 92.
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transformação da alteridade em mesmo. Já na primeira frase o termo “como nós”
aparece duas vezes. Por quê? Porque se não for “como nós”, se não for semelhante às
práticas e representações cristãs (católicas) nada é verdadeiro. Vestir o Tupinambá é a
ação que garante ao missionário a sua própria veste da Glória, como aquela que o
profeta Isaías dá Graças ao seu Deus por ter recebido: “minha alma exulta por causa
do meu Deus, pois ele me vestiu do traje da salvação”
131
.
Constrói-se, portanto, uma cena inicial. O olhar do jesuíta procura dar sentido
ao que vê e para isso, arruma, enquadra segundo sua perspectiva. E o que é essa
perspectiva? É o desejo missionário que previamente qualifica, ou melhor,
desqualifica toda alteridade para lhe conferir autoridade na transformação. É um olhar
que busca sinais do que se deseja ver, projetando no corpo tupinambá sentidos que
são os seus. É preciso lembrar que Nóbrega sequer havia completado duas semanas
de vida no Novo Mundo, estando presente em sua escrita, portanto, um modo de ver
inicial sobre a alteridade nativa. Sua escrita revela mais projetos do que responde a
uma experiência prática.
Assim, o corpo ameríndio é posto em destaque através desse campo de visão:
um corpo que parece reter tudo o que o missionário prega, como um papel branco
retém a tinta da escrita. A nudez “inconveniente”, sinal da dessemelhança (sinônimo
de Lúcifer
132
), se destitui aparentemente dos sinais “demoníacos” e se torna alegoria
do paganismo, o “papel branco”, metáfora que legitima a transformação do gentio em
mesmo. É necessário destacar, entretanto, que a alegoria do “papel branco”,
enaltecedora da docilidade indígena, não se dá sem a relação com um terceiro termo:
o cristão da colônia.
Esta me parece agora a mayor empresa de todas, segundo vejo a gente docel, somente
temo ho mao exemplo que o nosso christianismo lhes dá, porque há homens que há
131
A BÍBLIA, Isaías (61, 10), p. 501.
132
Retomando As palavras e as coisas de Foucault, Baêta Neves sustenta que a regra do conhecimento
do século XVI é a semelhança. É através dela que as coisas, pessoas e lugares podem ser
(re)conhecidos em Deus. Nesse contexto, o dessemelhante é Lúcifer. Cf. BAETA NEVES, L.F., O
combate dos soldados de Cristo.
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bij e x annos que se nom confessão, e parece-me que poem a felecidade em ter
muytas molheres
133
.
Vistos como “gente docel” que tem grandes desejos em se converter, os
Tupinambá são descritos em oposição ao “mao exemplo” dos cristãos. De fato, no
período incial de sua experiência no Novo Mundo, essa oposição é recorrente. Em
carta de janeiro de 1550, ele já estava convicto de que “quanto mais longe estivermos
dos velhos cristãos, que aqui há, tanto se fará mais fruto”
134
.
A relação triangular – jesuíta, “mau cristão” e Tupinambá – deve ser
entendida a partir do contexto ocidental de combate às heresias, acirrado pelas
rupturas protestantes no início do século XVI. É importante compreender o sentido
missionário de Nóbrega em função desse contexto em que a dimensão cruzadística da
Reconquista ibérica se conjuga à perseguição dos hereges, estimulada pela Contra-
reforma. Aliados ao Papado, os jesuítas participaram ativamente da reação ao
Protestantismo e da reforma da Igreja, amplamente debatidas pelo Concilio de Trento
(1545-1563). O tom anti-monástico da Companhia de Jesus, cujos integrantes se
lançaram pelo mundo com o sentido de transformá-lo, casou-se aos anseios
comerciais manifestados pela expansão marítima dos reinos ibéricos. Os missionários
se alastraram pelos quatro continentes tendo em vista o espírito missionário de
propagação da unidade do Corpo místico da Igreja e o ideal de renovação da fé
católica por meio das obras de caridade. Em reação aos protestantes, para quem a
salvação estava unicamente na fé, os jesuítas afirmavam a necessidade da caridade,
manifestada pelas boas obras, como requisito para se alcançar a salvação
135
.
Embora o Protestantismo não tenha afetado diretamente o processo
missionário de Nóbrega no Novo Mundo – pelo menos até o ano de 1559, quando o
jesuíta começa a se referir à presença dos protestantes da França Antártica
136
– é
133
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de abril de
1549, p. 24.
134
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 6 de janeiro de
1550, p. 77.
135
Cf. EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 32.
136
Em carta de 1559, Nóbrega escreve: “E porque não aja peccado que nesta terra não aja, também
topei com opiniões luteranas e com quem as deffendesse, porque, já que não tínhamos que fazer com o
gentio em lhe tirar suas erroneas por argumentos, tivessemos hereges com que disputar e defender a fé
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importante ter em vista que a expansão da ordem jesuítica se inscreve no âmbito de
fragmentação do cristianismo e de combate às heresias. A luta contra o “mau
exemplo” dos colonos reflete o espírito de perseguição às heresias manifestado
durante o dissenso religioso.
É nesse sentido que se deve compreender, em parte, a exaltação da
“docilidade” dos Tupinambá. Vale retomar o famoso trecho em que Nóbrega
compara a experiência missionária entre lá e cá: “tudo lá he miséria quanto se faz:
quando muito ganhão-se cem almas, posto que corrão todo o Reyno, cá he grande
manchea”
137
. A visão esperançosa em relação à conversão dos pagãos, traduzida pela
metáfora da “mão cheia”, contrasta com a “miséria’ que há em converter os hereges
do Velho Mundo, afundados em apetites corporais.
Identifica-se aqui uma divisão característica da doutrina tomista sobre os dois
tipos humanos de pecadores: de um lado os hereges, que escolhem negar a religião de
Cristo; de outro os pagãos, que simplesmente ignoram a fé
138
. Os Tupinambá são
inicialmente considerados pagãos, como sugere a alegoria do papel branco, que
refletiria sua proximidade com a Lei natural: “em muitas cousas fazem avantagem
aos christãos, porque melhor moralmente vivem e guardão melhor a lei de
natureza”
139
. O simbolismo da nudez tupinambá desenvolve-se, portanto na direção
da pureza moral, própria de quem ignora os ensinamentos de Cristo e que está aberto
para receber a nova fé. Por outro lado, o colono, apesar de vestido, estaria muito mais
afeiçoado aos pecados do corpo – principalmente à lascívia, que desarma o espírito
em benefício dos apetites sensuais, como se vê pela vontade que têm em “ter muitas
mulheres” – do que o Tupinambá, que anda nu e expõe suas “vergonhas”.
A impressão inicial de Nóbrega sobre o aparente sucesso evangelizador deve-
se, portanto, à idéia de que os Tupinambá, contrariamente aos maus cristãos, seriam
povos pagãos a quem bastaria pregar para que se convertessem. Além disso, o
interesse que os ameríndios demonstravam em repetir os gestos corporais do
catholica.” In: NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres e Padres de
Portugal, p. 327.
137
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 9 de Agosto de
1549, p. 34.
138
EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 66.
139
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 9 de Agosto de
1549, p. 32.
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pregador, acentuava a idéia de que se poderia escrever à vontade sobre eles, pois
estariam como “papel branco” para receber a fé em Cristo.
Conversão por amor: os gestos corporais e o “abraçar-se aos seus
costumes”
Sustenta-se aqui a hipótese de que as práticas envolvendo a linguagem
corporal foram fundamentais, em um primeiro momento, para que Nóbrega
conseguisse atrair os Tupinambá à fé cristã
140
. Ao contrário do calvinista Léry, viu-se
que o jesuíta, imerso na tradição ibérica e no universo da Contra-reforma, acentuava a
relação de continuidade entre o corpo e o sagrado. Isso explica a forte presença de
imagens, objetos de culto e rituais marcados pela exageração gestual. Enquanto o
calvinista condenava a amplificação dos gestos e a materialização da Graça de Deus,
o jesuíta fundamentava sua ação evangelizadora nessas práticas. A disciplina (auto-
flagelo) é um exemplo significativo.
Eu prego domingos e festas duas vezes a toda a gente da Villa, que hé muyta, e às
sextas-feiras tem pratica com disciplina com que se muyto aproveitão todos
141
.
As disciplinas são a tradução corporal da imitação de Cristo e funcionam
como sinais de devoção que se inscrevem sobre o corpo do fiél. O aparente sucesso
dessas práticas pode ser compreendido pela semelhança com alguns rituais
tupinambá, marcados pela penetração gráfica sobre o corpo, como as perfurações de
140
Embora o foco dessa dissertação seja a análise da importância das práticas envolvendo o corpo na
ação evangelizadora de Nóbrega, não se deve deixar de mencionar a importância dos intérpretes,
principalmente dos meninos pregadores, no processo inicial de conversão. Cf. VILLAS BÔAS, L., Os
meninos pregadores e as missões jesuíticas no Brasil (1549-1555).
141
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco,
13 de setembro de 1551, p. 95.
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lábios e orelhas
142
, ou as tatuagens adquiridas pelos guerreiros quando capturavam
um inimigo. Outra cena demonstra a intensidade com que as disciplinas eram
praticadas pelos Tupinambá, causando “muyta devação a todos”.
(...) e meteo nos outros tanto fervor e devação asi verem-no como se açoutava
cruamente, como a pratica que fez, que moveo a muytos que se sintião culpados em
suas consciências, a virem confesar seu peccado secreto e a disciplinarem-sse
tambem com elle em publico, que foy auto de muyta devação a todos, e alguns
brancos, que ahí estavão, ficarão pasmados de verem o que virão
143
.
As práticas corporais envolvendo a cura pelo toque também mostraram-se
significativas no processo de conversão:
Quando estão alguns doentes nos mandam chamar para que lhes impunhamos a mão
sobre eles, e por este modo muitos recuperam a saúde por graça de Deus, o que
aumenta muito neles a fé em Cristo
144
.
Finalmente, um último exemplo que ilustra a importância dos gestos no processo de
conversão é a linguagem corporal utilizada por Nóbrega para pregar. Nota-se, no
trecho abaixo, a dimensão estratégica do jesuíta, que procura se “abraçar” aos
costumes nativos para atraí-los à fé cristã. Nesse caso, interessa-nos destacar a
adaptação de Nóbrega aos gestos do Karaí, o profeta Tupinambá que batia no peito
durante suas pregações.
Se nos abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são contra nossa
fee catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como hé cantar e tanger seus
estromentos de musica que elles usam em suas festas quando matão contrarios e
quando andão bebados, e isto pera os atrahir a deixarem os outros custumes essentiais
142
SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas
sociedades indígenas brasileiras, p. 11.
143
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal,
Baía, 5 de julho de 1559, p. 298.
144
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 6 de janeiro de
1550, p.73.
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e, permitindo-lhes e aprovando-lhes estes, trabalhar por lhe tirar os outros; e assim o
pregar-lhes a seu modo em certo toom andando passeando e batendo nos peitos como
elles fazem quando querem persuadir alguma cousa e dizê-la com muita efficacia; e
assim trosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque a
semelhança hé causa de amor
145
.
Esse método de conversão, fundamentado na adaptabilidade aos costumes
nativos, foi fundamental no processo inicial de evangelização. Eisenberg destaca a
utilização dos “ritos pré-lingüisticos” – ou seja, das práticas envolvendo rituais de
cura e de pregação – para que tal adaptabilidade ocorresse
146
. A estratégia de
“abraçar-se aos seus costumes” tem como fim a “semelhança”, ou seja, a união em
torno dos sinais que marcam a presença de Jesus Cristo. Nesse sentido, nota-se que a
presença desses rituais envolvendo o corpo e a voz – como a cura pelo toque, as
disciplinas, a música cantada no “mesmo tom” e “bater nos peitos como elles fazem”
– foram fundamentais para se sistematizar a unidade em torno dos símbolos que
manifestam a presença do Salvador. Luciana Villas Bôas, ao analisar a figura dos
meninos pregadores utilizados como intérpretes nos sermões jesuíticos, sugere que a
“indianização” da liturgia cristã foi um método fundamentado na “semelhança” para
incitar a conversão por amor
147
.
“A semelhança he causa de amor”: imerso na concepção tomista de que aos
povos pagãos bastaria pregar para que recebem a fé em Cristo, o jesuíta procurou, ao
longo dos primeiros anos do processo missionário, fazer valer o método de conversão
pela via amorosa
148
.
A importância das práticas litúrgicas envolvendo a corporalidade no processo
de conversão deve ser entendida por meio da posição central que ocupa o corpo na
estrutura social dos Tupinambá.
145
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, fins de agosto de
1552, p.145.
146
“O sucesso dos jesuítas, quando ocorria, não dependia somente do desenvolvimento de uma
tecnologia lingüística para a conversão dos nativos, mas também da descoberta e controle da força de
ritos pré-lingüísticos como a cura e os rituais religiosos”. EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o
pensamento político moderno, p. 86.
147
VILLAS BÔAS, L., Os meninos pregadores e as missões jesuíticas no Brasil (1549-1555), p. 19.
148
Cf. PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, pp. 47 a 52.
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Estão muito apegados com as coisas sensuais. Muitas vezes me perguntam se Deus
tem cabeça, e corpo, e mulher, e se come, e de que se veste, e outras coisas
semelhantes.
149
Nota-se, nesse trecho, que a necessidade dos ameríndios em compreender o
Deus cristão passa primordialmente por questões referentes à corporalidade: ele tem
cabeça, corpo, o que come? De fato, como nos sugerem os antropólogos Seeger, Da
Matta e Viveiros de Castro, o corpo “afirmado ou negado, pintado ou perfurado,
resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as
sociedades indígenas têm da natureza do ser humano”
150
.
O corpo se destaca como o locus privilegiado da ação missionária justamente
por ocupar posição central na estrutura social dos Tupinambá. Se por um lado, nele se
inscrevem os “maus costumes” – nudez, poligamia e antropofagia –, por outro, é
através da adaptação da liturgia cristã a certos rituais ameríndios envolvendo a
corporalidade, que esses “maus costumes” serão extirpados. Assim, de acordo com
sua experiência com os Tupinambá, Nóbrega foi flexibilizando certos dogmas da
Igreja que, como salientou, “não são contra nossa fee catholica, nem são ritos
dedicados a ídolos”, tendo em vista o desejo de transformar o ameríndio em cristão. É
importante retomar o que foi dito anteriormente sobre a dimensão pragmática do
jesuíta para melhor se compreender o ato de “abraçar-se aos seus costumes”.
A observação do ameríndio sempre atendeu à finalidade prática de convertê-
lo. Em carta escrita em 1541 aos primeiros jesuítas que partiram para a Inglaterra,
Inácio de Loyola expôs o método de conversão, em que o missionário deveria
“moldar-se” ao outro para entrar em sua consciência e, do interior, “tirar-lhe” os seus
maus costumes para encaminhá-lo à salvação em Cristo. Como diz Inácio: “o inimigo
entra pela porta do outro e sai pela sua”
151
. É justamente o que faz Nóbrega ao se
referir ao seu processo missionário, como nos diz no trecho citado acima: “isto pera
149
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Informação das Terras do Brasil, Aos Padres e
Irmãos de Coimbra, Baía, agosto de 1549, p.66.
150
SEEGER, A., DA MATTA, R., VIVEIROS DE CASTRO, E. B., A construção da pessoa nas
sociedades indígenas brasileiras, p. 4.
151
Ao analisar o olhar do missionário, a autora destaca sua dimensão pragmática, citando o trecho da
referida carta de Inácio de Loyola. CASTELNAU-L’ESTOILE, C., Le voyageur et le missionaire,
analyse de deux regards sur les Indiens du Brésil. p. 41.
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os atrahir a deixarem os outros custumes essentiais e, permitindo-lhes e aprovando-
lhes estes, trabalhar por lhe tirar os outros”.
Esse método foi duramente condenado pelo Bispo Sardinha, que chegara a
Salvador no ano de 1551. Ele as considerou “cousa nova e que na Ygreja de Deus se
nom acustuma”
152
. Em relação à nudez, por exemplo, Nóbrega aceitava que os
Tupinambá estivessem nus durante a missa, o que desagradou ao Bispo.
Como nos averemos acerqua dos gentios que vem nus a pedirem ho bautismo e não
tem camisas nem ropas pera se vestirem: se somente por rezão de andarem nus tendo
o mais aparelhado lhe negaremos o bautismo e a entrada na Igreja à missa e doctrina,
porque parece que andar nu hé contra lei de natura e quem a não guarda pecca
mortalmente, e o tal não hé capaz de receber sacramento; e por outra parte eu não sei
quando tanto gentio se poderá vestir, pois tantos mil annos andou sempre nu, nam
negando ser boom persuadir-lhes e pregar-lhes que se vistão e metê-los nisso quanto
pode ser
153
.
O trecho acima evidencia o pragmatismo jesuítico. Ao missionário não há
outra opção a não ser a conversão do pagão, da qual depende sua própria salvação.
Viu-se que Nóbrega tornou a nudez ameríndia em “papel branco”, metáfora que
alimenta o sentido missionário. A nudez como símbolo do pecado da carne anulou-se
diante da expectativa futura do jesuíta em ver o gentio tornar-se próximo. Parece que
andar nu hé contra a lei da natura”, diz Nóbrega. O verbo “parecer” evidencia a
relativização do pecado da nudez, que não impede que o ameríndio seja convertido
nos “bons costumes” de freqüentar as missas e participar da comunidade da Igreja.
Mais importante do que apenas vesti-lo, é a garantia de que “tenham o mais
aparelhado”. Contrariamente aos cristãos da terra – que apesar de andarem vestidos,
mostravam-se maiores pecadores por ter “muytas mulheres” e não quererem assistir a
missa nem se confessar – o Tupinambá mostrava-se desejoso em “receber o
sacramento”.
152
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, fins de julho de
1552, p.131.
153
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, fins de agosto de
1552, pp.145,146.
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70
Conversão pela sujeição: o “bestial” e a guerra justa
Entretanto, no decorrer da experiência missionária, Nóbrega se depara com
muitas dificuldades que os primeiros olhares não previam. Em carta de 1551, apesar
de ainda prevalecer a imagem do indígena como “papel branco” – ou seja, como
representação do pagão que ignora a fé e que por isso deve ser convertido por meio
da pregação amorosa – percebe-se o surgimento de uma nova problemática no
processo missionário: a “inconstância” desse povo.
Ho converter todo este gentio hé mui facil cousa, mas ho sustentá-lo em boons
costumes nam pode ser senam com muitos obreiros, porque em cousa nenhuma crem,
e estão papel branco para nelles escrever hà vontade, se com exemplo e continua
conversação os sustentarem
154
.
Apesar da adaptação de Nóbrega aos costumes indígenas ter parecido exitosa,
em um primeiro momento, a mímese gestual dos ameríndios não os fazia apartar-se
de seus “maus costumes”. A dificuldade maior, segundo Nóbrega, seria justamente
“sustentá-los em bons costumes”.
E vale pouco ir-lhes pregar e voltar para casa. Porque ainda que dêem algum crédito,
não é tanto que baste a os desarraigar dos seus velhos costumes; e crêem-nos como
crêem aos seus feiticeiros, e que às vezes lhes mentem e às vezes acertam em dizer a
verdade. E por isso, não sendo para viver entre eles, não se pode fazer fundamento de
muito fruto
155
.
Em 1553, Nóbrega chega a São Vicente. O jesuíta havia deixado a provínica
da Bahia, desiludido não só com a “inconstância” dos ameríndios, mas também com
as condenações do Bispo em relação ao seu método evangelizador. Nota-se o desejo
do jesuíta de “viver entre eles” já que o método de “lhes pregar e voltar para casa”
154
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, A D. João III, Olinda, 14 de setembro de 1551,
p.100.
155
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Simão Rodrigues, São Vicente, 10 de
março de 1553, p.157.
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mostrou-se insuficiente para os “desarraigar dos seus velhos costumes”. Nóbrega
decide mudar-se com três tribos para o sertão de São Vicente, na vila de Piratininga,
futura cidade de São Paulo. A experiência de viver entre os índios de forma contínua
determinou um controle moral mais rigoroso sobre os seus “maus costumes”.
O sucesso de Piratininga estimulou o então desiludido Nóbrega a repensar o
processo de conversão do “gentio”. Ele sistematizou uma justificação teológica e
política para seu novo método no Diálogo sobre a conversão do gentio, no qual fica
evidente a inversão da representação do Tupinambá, que deixa de ser o “papel
branco”, onde se podia escrever à vontade por meio da pregação amorosa, para
tornar-se “bestial”. Há uma seqüência descritiva marcada pela animalização do
ameríndio.
vemos que são cãis em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira
de se tratarem (...) nem sei se hé bem chamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos,
tomados nos ninhos, se crião e amanção e ensinão, e estes, mais esquecidos da
criação que os brutos animais, e mais ingratos que os filhos das biboras que comem
sua mãis, nenhum respecto tem ao amor e criação que nelles se faz
156
.
Os Tupinambá seriam “mais esquecidos de criação que os brutos animais”,
como corvos e víboras. Reduzidos ao auge da ausência de “criação”, pois comeriam
as próprias mães, os ameríndios tornaram-se o símbolo máximo da selvageria. A
explicação bíblica da origem bestial estaria, assim como em Léry, na figura de Cam.
(...) lhes veio por maldição de seus avoz, porque estes creemos serem descendentes
de Chaam filho de Noé, que descobrio as vergonhas de seu pai bebado, e em
maldição, e por isso, fiquarão nus e tem outras mais miserias
157
.
A nudez agora é associada à maldição, ao crime. Contrariamente à imagem
anterior do papel branco, que associava o gentio à inocência do paganismo, a nudez
se tornou o símbolo do pecado e da bestialidade.
156
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, Baía
1556-1557, pp. 221-222.
157
Idem, p. 241.
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O Diálogo sobre a conversão do gentio e em cena dois personagens que
retratam os principais agentes intermediários nos contatos entre jesuítas e ameríndios:
um intérprete e um ferreiro. Inspirado no modelo platônico de demonstrar o ajuste de
posições distintas para a criação de uma “cidade ideal”
158
, o diálogo se dá entre
personagens dotados de um valor alegórico. O intérprete simboliza o modelo da
pregação, fundamentado na conversão por amor. O ferreiro, por outro lado, remete à
imagem do martelo e da forja, pelos quais, com a ação enérgica da martelada sobre o
ferro aquecido, se produz a forma fixa e desejada do metal. É possível prever o
vencedor desse diálogo. O ferreiro atende à necessidade de resolver o problema da
“inconstância” dos Tupinambá. Sua ação supõe não só a eficácia constante da
martelada, mas também o aquecimento da forja, que remete à imagem do fogo
apostólico do Espírito Santo, vivido pelo amor da ação caridosa. Não mais a
superfície lisa e receptiva do papel branco e sim a dureza áspera e bruta da pedra: o
corpo ameríndio necessita agora de um outro agente para convertê-lo.
Gonçalo Alvarez: Por demais he trabalhar com estes; são tão bestiais, que não lhes
entra no coração cousa de Deus; estão tão incarniçados em matar e comer, que
nenhuma outra bem-aventurança sabem desejar; pregar a estes, he pregar em desertos
ha pedra.
Matheus Nugueira: Se tiveram rei, poderão-se converter, ou se adoraram alguma
cousa; mas, como nam sabem que cousa he crer nem adorar, não podem entender ha
pregação do Evangelho, pois ella se funda em fazer crer e adorar a hum soo Deus, e a
esse só servir; e como este gentio nam adora nada, nem cree nada, todo o que lhe
dizeis se fiqua nada
159
.
Segundo Matheus Nugueira, o ferreiro, a explicação para a condição brutal do
Tupinambá estaria na sua criação, marcada pela ausência de soberano. Por não ter rei
a quem se sujeite, o ameríndio seria incapaz de ter fé. Como analisa Carneiro da
Cunha, segue-se uma seqüência lógica para esse raciocínio: “não tinham fé porque
não tinham lei, não tinham lei porque não tinham rei. A verdadeira crença supõe a
158
PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 98.
159
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Diálogo sobre a Conversão do Gentio, Baía
1556-1557, p. 219.
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submissão regular à regra, e esta supõe o exercício da coerção por um soberano”
160
. O
Diálogo sobre a Conversão do Gentio procurou justificar teologicamente a presença
da autoridade secular, ou seja, da ação coerciva dos colonos, caso os nativos se
recusassem em obedecer à Lei cristã. Em suma, o Diálogo justifica a necessidade de
mover guerra justa contra os índios que não aceitassem sujeitar-se às normas da
Igreja.
É importante considerar o fato de que, em meados da década de cinqüenta,
quando o Diálogo foi escrito, os ameríndios já se mostravam bastante resistentes à
colonização do Governo-Geral, fundamentada na monocultura escravista. Várias
revoltas eclodiram na Bahia e em Pernambuco. Em 1553, permitiu-se a escravização
dos índios e a tomada de suas terras, segundo as cláusulas estipuladas pelo regimento
de Tomé de Souza: é o início da guerra justa
161
.
O conceito de guerra justa foi muito debatido ao longo do século XVI,
principalmente no que se refere à sua aplicação aos povos que não teriam
conhecimento prévio da fé e que não poderiam ser tratados como infiéis, o que
parecia ser o caso do “gentio” do Brasil. Entretanto, se o “gentio” insistisse em
recusar a conversão ao cristianismo, seria reconhecida uma causa legítima para a
realização da guerra justa
162
.
A “inconstância” do Tupinambá e sua resistência à pregação certamente
estimularam a forma diversa de Nóbrega representá-lo. A condição “bestial” justifica
a presença do ferreiro, ou seja, a necessidade de se ter a força de uma autoridade
secular capaz de mover guerra justa contra o ameríndio caso esse não queira sujeitar-
se à Lei cristã.
E se disserem que os cristãos os salteavam e tratavam mal, alguns o fizeram assim e
outros pagariam o dano que estes fizeram; porém há outros a quem os cristãos nunca
fizeram mal, e os gentios os tomaram e comeram e fizeram despovoar muitos lugares
160
VIVEIROS DE CASTRO, E., O mármore e a murta, p. 38.
161
SLEMIAN, A. et al. Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831), p. 50.
162
“As causas reconhecidas como legítimas para uma guerra justa eram a recusa à conversão ou o
impedimento da propagação da Fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados portugueses
(especialmente a violência contra pregadores, ligada à primeira causa) e a quebra de pactos
celebrados”. PERRONE-MOISÉS, B., Verdadeiros contrários – guerras contra gentio no Brasil
colonial, p. 26.
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e fazendas grossas. E são tão cruéis e bestiais, que assim matam aos que nunca lhes
fizeram mal, clérigos, frades, mulheres de tal parecer, que os brutos animais se
contentariam delas e lhes não fariam mal. Mas são estes tão carniceiros de corpos
humanos, que sem excepção de pessoas, a todos matam e comem, e nenhum
benefício os inclina nem abstém de seus maus costumes, antes parece e se vê por
experiência, que se ensoberbecem e fazem piores, com afagos e bom tratamento
163
.
Se em um primeiro momento os colonos dificultavam a conversão do “gentio”
devido aos seus “maus exemplos”, posteriormente, eles passam a atuar ao lado do
missionário, como mobilizadores da guerra justa, “persuadindo” pelo medo, os
ameríndios, agora “bestiais”, a se sujeitarem aos dogmas do Cristianismo. A
experiência levou Nóbrega a inverter a representação do ameríndio: antes dócil, ele
agora é “carniceiro de corpo humano” – o que justifica o uso da violência física como
medida exemplar para vertê-los nos “bons costumes”, pois “com afagos e bom
tratamento” eles só se “fazem piores”.
4.2
“Filho de Cam” ou “nobre selvagem”? O calvinista e a nudez do
Tupinambá
O duplo selvagem
Vinte anos após sua experiência nos trópicos, Léry produz uma memória
idílica do Novo Mundo e de seus habitantes. A exaltação da pureza tupinambá se
constrói a partir de um corte significativo no tempo e no espaço: o intervalo de vinte
anos e a distância oceânica fundamentam uma memória a posteriori, que se define a
partir do contexto de crise religiosa no qual o pastor estava inserido. A Histoire d’un
163
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres, Baía, 8 de maio de
1558, p. 279.
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voyage fait en la terre du Brésil é, portanto, uma memória que sofre o “handicap do a
posteriori”
164
. Nesse sentido, a exaltação do Novo Mundo se constrói como inversão
de um Velho Mundo em crise: a pureza do Tupinambá funciona como condenação
moral do catolicismo.
Como sugere Hartog, a inversão é “uma maneira de transcrever a alteridade,
tornando-a fácil de apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa,
embora invertida)”
165
. Viu-se que, na narrativa de Léry, a linha equatorial funciona
como o corte que marca a inversão entre o Velho e o Novo Mundo. Das tempestades
à bonança, da poluição à pureza, do Apocalipse ao Éden – o Novo Mundo e seus
habitantes são identificados enquanto o extremo oposto do Velho.
No entanto, essa representação idílica do Tupinambá não é absoluta. Após
entoar o Salmo 104 para exaltar o Criador de todo esse espetáculo da natureza
tropical, Léry faz a seguinte constatação:
Felizes seriam os povos dessa terra se conhecessem o Criador de todas essas coisas.
Como, porém isso não acontece, vou tratar das matérias que nos provarão quão longe
estão eles ainda disso
166
.
Ao longo de sete capítulos, Léry descreve, de forma um tanto idealizada, a
fauna e a flora do Brasil. O Tupinambá, que “haure na fonte da Juventude”, está
inserido nessa geografia mítica, participando do espetáculo da natureza. Após
vivenciar a plenitude da Revelação divina e exaltar a existência do Criador, Léry
opera um deslocamento em seu texto. Num corte abrupto, inverte-se a condição do
selvagem que, ao invés de ser visto em sua pureza natural, passa a ser descrito a partir
de sua “distância” em relação ao Criador.
A citação acima é o desfecho desse conjunto de capítulos que trataram do
mundo natural, pelo qual o Criador se revelou ao pastor. A exclamação do Salmo 104
164
Jean-Jacques Becker, ao estudar os problemas suscitados pela história oral, procura compreender a
memória a partir de “lembranças transformadas em função dos acontecimentos posteriores, lembranças
sobrepostas, lembranças transformadas simplesmente para justificar posições e atitudes posteriores.”
BECKER, J.J., O handicap a posteriori, p. 28.
165
HARTOG, F. O espelho de Heródoto, ensaio sobre a representação do outro, p. 231.
166
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 181.
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atesta que esse espetáculo só poderia ser visto por quem conhecesse as palavras do
Salvador, conforme imortalizadas na Escritura Sagrada.
É nesse sentido que se deve compreender a condenação do Tupinambá por
Léry. Fiel à Bíblia como instrumento imprescindível para se alcançar a salvação, o
calvinista é categórico em relação à eleição dos selvagens: por não conhecerem os
sinais da escrita, esses povos estariam condenados a não conhecer o “Criador de todas
essas coisas”.
Há, portanto, uma disjunção em sua narrativa que marca a inversão na
representação do selvagem. Após receber a Revelação divina em sua caminhada
solitária pelos jardins do Novo Mundo, o calvinista se volta para o Tupinambá e
conclui: distante da Bíblia por ignorar por completo a escrita, seria um povo “maldito
e desamparado de Deus”.
No que concerne à beatitude e felicidade eterna, na qual acreditamos e esperamos em
Cristo, não obstante os lampejos e sentimentos que demonstram ter, são os selvagens
um povo maldito e desamparado de Deus. Apesar disso, no que se refere à vida
terrena, enquanto a maioria dos nossos, muito ocupados com os bens desse mundo,
só fazem definhar-se, eles ao contrário, desapegados das coisas mundanas, vivem
alegremente e sem preocupações. Parece-me mais verossímil que descendam de Cam
(...) tanto é que vendo-os assim vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus,
minha fé (a qual, Graças a Deus, sustenta-se alhures) não foi abalada. (...) Há grande
diferença entre as pessoas iluminadas pelo Espírito Santo e as Santas Escrituras e os
indivíduos abandonados à cegueira dos seus sentidos. Eu estou muito mais
confirmado na garantia e na verdade de Deus
167
.
Apesar de cercados pelo Criador, os Tupinambá se encontrariam
“abandonados à cegueira de seus sentidos”, ou seja, presos aos significantes. Com
isso, eles seriam incapazes de ler o significado que se esconde entre as árvores e os
pássaros do Novo Mundo, que é a presença espiritual do Salvador. Quando vistos a
partir de suas crenças e costumes, os ameríndios seriam provavelmente descendentes
de Cam, o filho maldito de Noé. Condenado a andar nu e distante de Deus, Cam teria
167
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p. 163. (tradução minha)
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77
se instalado nas terras do Novo Mundo, onde se espalharam seus descendentes: a
“raça corrompida de Adão”
168
.
A incapacidade de ler os significados do Criador fez com que esses povos
fossem “vazios e desprovidos dos bons sentimentos de Deus”. Esse vazio da nudez
não se reduz apenas à ausência de roupas, simboliza também a ausência da escrita ou,
em termos gerais, a ausência de significado. Presos aos significantes, os povos
amaldiçoados por Noé atestam, de forma inversa, a Graça concedida por Deus aos
povos “iluminados pelo Espírito Santo”, ou seja, aos povos que conhecem a escrita. A
segurança da fé calvinista sustenta-se nesse instrumento que torna inabalável a
certeza da Graça de Deus. A partir da descrição desse selvagem, cuja nudez é
associada à ausência da escrita, o calvinista se vê “confirmado na garantia e na
verdade de Deus”.
Há, portanto, um duplo movimento de inversão. Se, por um lado, a exaltação
do Tupinambá funciona como condenação do católico, por outro, a condenação do
Tupinambá parece confirmar a eleição do calvinista. Viu-se que a imagem da pureza
do Tupinambá se construiu como modelo de crítica intra-cultural: ela se apresentava
como o inverso da poluição católica. A condenação dos Tupinambá ao esquecimento
de Deus, fundamentada na ausência da escrita entre eles, funciona também como a
garantia de um dos “dons singulares”
169
que o calvinista recebeu de Deus. Fiel à
palavra divina que se mantém viva na Bíblia, Léry parece realizar, através da
descrição desses povos sem escrita, a “confirmação a contrario de sua própria
redenção
170
.
Nota-se, portanto, a representação ambígua do Tupinambá, que se alterna
entre dois pólos extremos e complementares: ora o “filho de Cam”, condenado a
andar nu e sem escrita, ou seja, distante das palavras de Deus; ora aquele que se
aproxima da pureza natural, pois não se preocupa com as “coisas mundanas” e vive
“alegremente e sem preocupações”, ao contrário dos católicos, que, “muito ocupados
com os bens desse mundo, só fazem definhar-se”.
168
Idem, Ibidem. (tradução minha).
169
LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p. 152 (tradução minha).
170
LESTRINGANT, F. , L’expérience huguenote au nouveau monde (XVIè siècle), p. 85.
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78
A ambigüidade na representação do Tupinambá existe por conta dessa
necessidade do protestante de afirmar a eleição de sua comunidade diante de um
mundo em crise religiosa. Léry se utiliza do Tupinambá como um espelho de sua
redenção, um espelho que se volta contra o católico. É o que sugere Lestringant, ao
analisar a construção do selvagem em Léry.
(...) o Selvagem só aparece enquanto objeto inscrito no interior de uma composição
de conjunto. Espelho do ocidental depravado e idólatra – o católico romano –, ele
representa esse pólo, ao mesmo tempo repulsivo e fascinante, da humanidade
pecadora. Dessa forma, a diferença expressa pelo Americano se reduz, para o “leitor
cristão” reformado, à simetria de uma contra-prova
171
.
Exaltado ou condenado, não importa, o Tupinambá é sempre o contraponto de
uma concepção única: a edificação da fé protestante, a partir de uma relação
triangular entre o calvinista, o Tupinambá e o católico. Aparentemente, constitui-se
nessa representação do outro, aquilo que Hartog denominou de “regra do terceiro
excluído”
172
. Apesar de a descrição do outro funcionar a partir de três termos – o
protestante, o Tupinambá e o católico –, a narrativa termina por constituir-se numa
relação binária, em que o terceiro termo é excluído. É o que acontece com a exaltação
ou detração do selvagem, que funciona como contraprova de um contexto definido
pelas guerras de religião. Configura-se uma dupla representação do selvagem: Léry
condena, de um lado, a luxúria católica (o inverso da simplicidade Tupinambá/
protestante) e de outro exalta o “privilégio” da escrita, que o aproxima da Graça
divina (o inverso da oralidade Tupinambá).
Essa dupla inversão a partir da representação do selvagem tem como corolário
a confirmação da vocação religiosa do sapateiro que se tornará pastor protestante. É
importante notar, no entanto, que essa representação ambivalente do ameríndio, pela
qual Léry constrói o mito de sua eleição pessoal, parece construir-se mediante a
polarização entre a escrita do calvinista e a nudez do corpo tupinambá.
171
LESTRINGANT, F. , Calvinistes et cannibales – les écrits protestants sur le Brésil français (1555-
1560), p. 85 (tradução minha).
172
HARTOG, F., O espelho de Heródoto, ensaio sobre a representação do outro, p. 271.
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79
Papel branco e jenipapo
Tanto os homens como as mulheres estavam tão nus como ao saírem do ventre
materno mas para parecer mais garridos tinham o corpo todo pintado e manchado de
preto
173
.
A citação acima é a descrição do primeiro encontro do narrador com os
selvagens. A ambigüidade que se coloca nessa primeira visão do corpo ameríndio diz
respeito à polarização entre um corpo que está aparentemente “em seu natural” e
outro já coberto de significados. Pellegrin, ao analisar as descrições da nudez
ameríndia feita pelos primeiros cronistas que estiveram no Novo Mundo, afirma que a
conjunção “mas” aparece com freqüência, anulando a representação idílica anunciada
anteriormente
174
.
Por um lado Léry, parece ignorar os múltiplos sinais expostos no corpo
ameríndio, reduzindo-o ao estado natural de seu nascimento, ou seja, tornando-o uma
espécie de papel branco. Mas, por outro, há sinais bem marcados pela tinta preta,
sinais que, curiosamente, se assemelham às “calças de um padre”, como se vê na
citação abaixo
175
.
Além disso, os nossos brasileiros pintam muitas vezes o corpo com desenhos de
diversas cores e escurecem tanto as coxas e pernas com o suco do jenipapo que ao vê-
los de longe pode-se imaginar estarem vestidos com calças de padre. Essa tintura
preta do fruto do jenipapo imprime-se de tal maneira na carne que, embora os
silvícolas se metam na água e se lavem amiudadamente, dura de dez a doze dias
176
.
Duas perguntas se colocam: que nudez é essa que se apresenta em um mesmo
corpo de forma tão distinta? Ou, ainda, que “tintura preta” é essa que “imprime-se de
tal maneira na carne” do Tupinambá?
173
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 60 (grifo meu).
174
PELLEGRIN, N., Vêtements de peau(x) et de plumes: la nudité des indiens, p. 511.
175
Essa não é a única vez que Léry compara a aparência dos ameríndios à dos padres, como se vê em
outra descrição, na qual o cabelo dos Tupinambá são “à maneira de coroa de frade”. LÉRY, J.,
Viagem à terra do Brasil, p. 60.
176
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 114.
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80
O problema posto por Léry em relação à nudez dos Tupinambá parece
relacionar-se diretamente à existência da escrita. Esvaziada de significados pelo
narrador, é essa nudez que, em nome da moral calvinista, condena o catolicismo. É
altamente significativo o fato de Léry comparar o jenipapo desenhado sobre a pele
ameríndia às calças de um padre. A tintura preta parece muito mais próxima da
escrita de um pastor calvinista que denuncia a vaidade católica do que de um pré-
antropólogo que descreve as marcas do jenipapo sobre a pele ameríndia. Nesse
momento, a nudez do Tupinambá parece tornar-se a alegoria do papel branco em que
são impressos os sinais da escrita do próprio pastor.
Há um jogo discursivo criado pelo narrador a partir dessa polaridade entre sua
escrita protestante e o corpo ameríndio. A semiologia calvinista, que distingue o
significado e o significante no símbolo, se faz presente na descrição da nudez
ameríndia. Entre a carne bruta, onde afloram os pecados do corpo, e a pele lisa, na
qual se desenham os sinais de tinta preta, há a escrita de um calvinista que busca
edificar, a partir do outro, os sinais de sua própria eleição. O tratamento retórico do
signo faz com que o calvinista ora reduza o corpo tupinambá ao extremo significante
da carne (nudez brutal), ora o estenda até o extremo significado de seu discurso,
esvaziando completamente a materialidade desse corpo
177
.
Esse tratamento retórico do signo pode ser visto com mais clareza a partir da
descrição que se faz das mulheres Tupinambá. A nudez feminina é, por um lado,
esvaziada de significados: as mulheres “arrancam totalmente os pelos, inclusive
pestanas e sobrancelhas”, e, além disso, “não queriam nada sobre o corpo”
178
.
Despossuídas de qualquer signo, reduzidas ao “grau zero da nudez”
179
, elas se tornam
a página em branco da narrativa exemplar do calvinista. Mediante essa operação de
despossessão do outro, define-se o significado moral.
Antes porém de encerrar este capítulo, quero responder aos que dizem que a
convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à
lascívia e à luxúria. Mas direi que, em que pese às opiniões em contrário, acerca de
177
LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 107.
178
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 118.
179
PELLEGRIN, N., Vêtements de peau(x) et de plumes: la nudité des indiens, p. 515.
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concupiscência provocada pela presença de mulheres nuas, a nudez grosseira das
mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. Os atavios,
arrebiques, postiços, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas, sobre-saias e
outras bagatelas com que as mulheres de cá se enfeitam e de que jamais se fartam,
são causas de males incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias,
as quais, entretanto, nada devem às outras quanto à formosura.(...) o que disse á
apenas para mostrar que não merecemos louvor por condená-los austeramente, só
porque sem pudor andam desnudos, pois os excedemos no vício oposto, no da
superfluidade de vestuário. Praza a Deus que cada um de nós se vista modestamente,
mais por decência e honestidade do que por vanglória e mundanismo
180
.
Em oposição à nudez pura do Tupinambá está a condenação da “superfluidade
do vestuário” católico. Confirma-se novamente a inversão: a nudez Tupinambá passa
a significar o ideal de simplicidade calvinista e funciona como condenação dos
“excessos” católicos. Na verdade, esse corpo esvaziado ao “grau zero da nudez”, se
tornou coberto pela tinta preta que não é mais do jenipapo – e sim da própria escrita
do pastor calvinista. A nudez se torna a alegoria da página em branco onde a moral
calvinista será edificada: “que cada um se vista modestamente”.
Por outro lado, ao invés de ser associada à pureza original, a nudez reflete a
condição pecadora desses povos, que não demonstram nenhum sinal de vergonha ou
timidez diante dela.
Não é de meu intento, entretanto, aprovar a nudez, contrariamente ao que diz a Santa
Escritura a respeito de Adão e Eva que, após o pecado, reconhecendo estarem nus se
envergonharam; sou contra os heréticos que a querem introduzir entre nós contra a
Lei natural, embora deva confessar que, neste ponto, não a observam os selvagens
americanos
181
.
Nesse momento, a ausência de vestes associa-se ao pecado original exposto na
narrativa bíblica do Gênese, quando Adão e Eva se vestiram em resposta ao pudor
diante da desobediência ao mandato divino. A vestimenta é, pelo olhar cristão, o sinal
180
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 121.
181
LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, p. 94. (tradução minha).
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da vergonha diante do pecado original. No entanto, os ameríndios parecem não
observar a “Lei natural”, pois andam sem pudores e com suas partes íntimas à mostra.
Se, anteriormente, a nudez Tupinambá não incitava à “lascívia e luxúria”, nesse
momento, ela é a demonstração clara da condição pecadora desses povos.
Coisa não menos estranha e difícil de crer para os que não os viram, é que andam
todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao saírem do ventre materno. Não só
não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão o menor sinal de pudor ou
vergonha. (...) E para nada omitir, se possível, nesta matéria, direi que existem nesse
país certas plantas cujas folhas da largura de quase dois dedos (...) as quais os velhos
usam envolver o membro viril atando-as com fios de algodão (...) Embora pareça à
primeira vista que façam por lhes restar ainda algum resquício de pudor natural,
suponho que seja apenas para ocultar alguma enfermidade que na velhice lhes ataca
tal órgão
182
.
A nudez é novamente reduzida ao seu significante: andam todos “nus como ao
saírem do ventre”. No entanto, tal redução, contrariamente à alegoria do papel
branco, diz respeito à condenação dos pecados da carne. Nem mesmo a folha que
usam os velhos para cobrir suas partes íntimas se aproxima dos sinais da presença
divina, pois é reduzida a uma necessidade orgânica de “ocultar alguma enfermidade”.
Não mais vista pelo viés da simplicidade inocente que condena o excesso de artifício
dos católicos, a nudez é referida a partir dos dogmas das Sagradas Escrituras: os
Tupinambá são destituídos de qualquer “resquício de pudor natural”.
Os apetites do corpo desses povos reduzidos à “cegueira de seus sentidos”
ganham destaque na representação das mulheres, que “tanto se deleitavam com a
nudez” e que, “embora as cubríssemos à força, despiam-se às escondidas ao cair da
noite e passeavam nuas pela ilha, por mero prazer”
183
. O prazer carnal se torna
explícito. Como lembra Certeau, essas selvagens repetem o fantasma ocidental da
vagina dentata, onde habita a voracidade feminina
184
. Esse corpo, capaz de engolir
vivo a carne alheia por meio de sua voracidade animalesca, deve ser continuamente
182
LÉRY, J. , Viagem à terra do Brasil, p. 113.
183
Idem, p. 120.
184
CERTEAU, M., A escrita da história, p. 232.
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anulado pela escrita do genebrino, que procura a todo instante acabar com o substrato
carnal do signo.
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5
A escrita e a salvação
5.1 Nóbrega e a escrita das cartas.
Escrita e ação: vestir o papel branco.
Desde o início da dispersão missionária, Inácio de Loyola percebeu que a
ordem e a unidade da Companhia de Jesus dependiam da troca sistemática de
correspondências
185
. Ele estabeleceu, nas Constituições, a obrigatoriedade de se
escreverem cartas regularmente, criando um sistema de comunicação interna e de
troca de informações administrativas pelas quais se definiriam as estratégias de ação
dos missionários.
Nesse sentido, é importante destacar que a prática da escrita entre os jesuítas
atende a uma práxis precisa, que é a conversão. Segundo Londoño o registro escrito
foi entendido pelos primeiros jesuítas como expressão de uma “práxis colocada ao
serviço da procura da vontade divina”
186
. A escrita funciona, portanto, como uma
atitude sempre voltada para uma perspectiva profética de união de todos os povos no
Corpo místico da Igreja, procurando atualizar a exemplaridade dos relatos bíblicos
187
.
É preciso destacar a dimensão ativa das cartas, em que se opera “a imediatez
da presença da fala do destinador na escrita”
188
, como sugere Hansen. Nesse sentido,
propõe-se analisar a presença das cartas em sua dimensão prática, voltada para a
atuação missionária no interior da Companhia de Jesus.
185
CASTELNAU L´ESTOILE, C., Les ouvriers d’une vigne stérile: Les jésuites et la conversion des
Indiens au Brésil 1580-1620, p.64.
186
LONDOÑO, F., Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI, p. 5.
187
HANSEN, J.A.,O nu e a luz: cartas jesuíticas no Brasil, p. 96.
188
Idem, ibidem.
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85
É importante destacar a provável influência dos Exercícios Espirituais de
Inácio de Loyola na prática da escrita das cartas. Os Exercícios são um conjunto de
textos que orientam os jesuítas na procura da vontade divina.
189
Movimento que
envolve práticas corporais e espirituais, fundamentadas na escritura
190
, para tirar de si
todas as “afeições desordenadas” e, assim, encontrar a vontade divina.
Assim como passear, caminhar e correr são Exercícios corporais, chamam-se
Exercícios espirituais diversos modos da pessoa se preparar e dispor para tirar de si
todas as afeições desordenadas. E depois de tirá-las, buscar encontrar a vontade
divina na disposição de sua vida para sua salvação
191
.
O fim único é a salvação em Deus: “O ser humano é criado para louvar e
reverenciar a Deus Nosso Senhor e assim salvar-se”
192
. As “afeições desordenadas”
são quaisquer aspirações, conscientes ou inconscientes, que levam a uma aversão a
Deus, ou seja, que desviam do fim almejado. Roland Barthes percebe nos Exercícios
um conjunto de atos que se move segundo a “lei da exclusão”
193
. Procura-se eliminar
continuamente as “afeições desordenadas”, ou seja, tudo aquilo que leva não a Deus
e, sim, ao diabo. Eliminá-las, primeiramente, pelo exame do pecado a partir de um
sistema de anotações que contabiliza obsessivamente as diversas “afeições
desordenadas”. A primeira semana dos Exercícios se dedica predominantemente à
experiência do pecado. Ela é marcada pelo exame particular e cotidiano, em que se
procura corrigir os pecados que acompanham o exercitante. Esses devem ser anotados
continuamente para que o exercitante perceba, ao comparar o dia atual com o
anterior, seu progresso espiritual.
Percorrer o tempo que passou desde o momento em que se levantou até o tempo do
presente exame, hora por hora ou período por período; marcar na primeira linha,
tantos pontos quantas vezes caiu no tal pecado ou defeito; (...) comparar o segundo
189
LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, p. 9.
190
BARTHES, R., Sade, Fourier, Loyola, p. 42.
191
LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, p. 10 (grifo meu).
192
Idem, p. 23.
193
BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, p. 51.
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dia com o primeiro, isto é, os dois exames do dia presente com os do dia anterior.
Observar se houve melhora de um dia para o outro
194
.
Uma anotação compulsória dos pecados para que estes sejam examinados e,
conseqüentemente, extirpados. As cartas parecem seguir um modelo parecido com o
dos Exercícios, no sentido de que é por meio de sua escrita que o missionário procura,
pela sistematização dos pecados ameríndios, examiná-los em seu conjunto para
depois traçar o mapa da conversão. Pecados que para Nóbrega, como vimos, parecem
estar fundamentalmente presentes no corpo do gentio, onde predomina a presença
demoníaca dos “apetites sensuais”.
Mas é muito de espantar ter dado tão boa terra tanto tempo a gente tão inculta (...)
Regem-se por inclinação, a qual semper prona est ad malum, e apetite sensual, gente
absque consilio et sin prudentia
195
.
Como na primeira semana dos Exercícios, o jesuíta procura marcar
primeiramente os diversos pecados (representados aqui pelos “maus costumes”
indígenas) em uma seqüência de descrições e enumerações, das quais as principais
dizem respeito aos pecados do corpo: poligamia e canibalismo.
Esta é a coisa mais abominável que entre esta gente há. Se matam algum na guerra
trazem-no em pedaços e põem-no ao fumo e depois o comem com a mesma
solenidade e festa, e tudo isto pelo ódio entranhável que têm uns aos outros. E nestas
duas coisas, scilicet, em ter muitas mulheres e matar os seus contrários, consiste toda
a sua honra e esta é a sua felicidade e desejo, o qual tudo herdaram do primeiro e
segundo homem e aprenderam daquele qui ab initio mundi homicida est [ foi
homicida desde o princípio]
196
.
A poligamia e o canibalismo, que Nóbrega descreve como sendo as maiores
felicidades desse povo, atestam sua condição maldita: tudo herdou e aprendeu
194
LOYOLA, I., Exercícios Espirituais, pp. 26 e 27.
195
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, Baía, 10 de
agosto de 1549, p. 48.
196
Idem, Ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, Baía, 10 de agosto de 1549, p. 48-49.
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daquele que “foi homicida desde o princípio”. Pela escrita, os pecados são
sistematizados e examinados mediante um distanciamento que permite ao
escritor/missionário discernir acerca de sua ação no mundo.
O corpo tupinambá deve ser, para Nóbrega, um campo de atuação onde os
maus costumes deverão ser transmutados pela ação da escrita. Se, por um lado,
existem os maus costumes indígenas, por outro, existem o amor e a caridade
missionária. Para o jesuíta, escrever é atestar a realização do progresso missionário:
do corpo tupinambá enquanto fonte de maus costumes, ao corpo como papel
impresso pelas palavras da salvação.
Escrever é fixar e examinar os sinais demoníacos que engendram os maus
costumes indígenas de modo que, por cima desses, sejam erigidos os verdadeiros
sinais que levam a Cristo salvador. A escrita, que define os limites entre o “bom” e o
“mau”, sistematiza as informações acerca do “outro”, determinando o inimigo,
estabelecendo o que é próximo e o que é distante do horizonte de salvação. Em
agosto de 1549, Nóbrega escreve aos seus irmãos em Coimbra a famosa Informação
das partes do Brasil.
A informação que destas partes do Brasil vos posso dar, Padres e Irmãos caríssimos,
é que tem esta terra mil léguas de costa toda povoada de gente, que anda nua, assim
mulheres como homens, tirando algumas partes mui longe donde estou, onde as
mulheres andam vestidas ao traje de ciganas, com panos de algodão (...) Este é um
gentio melhor que há nesta costa (...) Há outra casta de gentios, que se chamam
Gaimurés, e é gente que habita pelos matos. Nenhuma comunicação têm com os
cristãos, pelo qual se espantam quando nos vêem, e dizem que somos seus irmãos,
porque trazemos barba como eles (a qual não trazem todos os outros, antes se rapam
até as pestanas) e fazem buracos nos beiços e ventas dos narizes, e põem uns ossos
neles, que parecem demónios. E assim alguns, principalmente os feiticeiros, trazem o
rosto cheio deles. Estes gentios são como gigantes
197
.
197
Idem, Informação das Terras do Brasil, Aos Padres e Irmãos de Coimbra,Baía, agosto de 1549, pp.
61-62.
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Percebe-se que a descrição do gentio segue uma tipologia que ordena as
diferentes “castas” mediante um ponto comum: a nudez. Cria-se uma escala gradativa
da nudez: de um lado, os carijós, que vestem algodão, vistos como um “gentio melhor
que há nesta costa”; de outro, os Gaiumurés, dotados de sinais monstruosos
(“gigantes”), em que a nudez, ressaltada por adereços perfurantes, faz com que se
pareçam “demônios”. Ao mesmo tempo em que nomeia o outro em suas
especificidades, ele afirma o lugar de um próprio que tem um sentido: vestir o outro.
Vestir como intervenção ampla sobre o corpo alheio, no sentido de modificar sua
condição, retirando o conjunto de pecados que o compõe para erigir os sinais do que é
próprio.
Eunícia Fernandes recorre à idéia de estratégia, desenvolvida por Michel de
Certeau, para analisar a epistolografia jesuítica, percebendo a escrita das cartas como
estratégia que demarca um lugar social, um próprio que procura “transformar os
impasses cotidianos em soluções
198
. Esse próprio recolhe as amostras do que se
(sistema de informações) circunscrevendo os limites, classificando e dividindo o
outro de acordo com a intensidade de seus pecados. Portanto, a escrita é a
sistematização de informações para a fixação do próprio e para a nomeação do
diverso – que deve ser abolido, da mesma forma que os pecados contabilizados nos
Exercícios Espirituais. Mapear o campo inimigo, como em um combate.
Contabilizar, medir o território (“mil léguas de costa”), identificar o que não pode
permanecer: os pecados manifestados no corpo – poligamia, nudez, canibalismo –,
sinais demoníacos que perseguem a imaginação jesuítica.
O registro escrito, coloca-se a serviço de uma práxis: encontrar a vontade
divina para agir da melhor forma no sentido de extirpar as “afeições desordenadas”.
Escrever cartas deve ser entendido, no caso dos jesuítas espalhados pelo mundo,
como ação pragmática que participa do ato de converter. É pela escrita que se procura
“captar o signo da divindade”
199
e extirpar do corpo ameríndio a presença do
“inimigo da humana geração”.
198
FERNANDES, E., Fernão Cardim: epistolografia jesuítica e a construção do outro, p.8.
199
BARTHES, R., Sade, Fourrier, Loyola, p. 46.
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(...) espantam-se eles muito de sabermos ler e escrever, do que têm grande inveja e
desejo de aprender, e desejam ser cristãos como nós, e só o impede o trabalho de os
apartar de seus maus costumes, no que agora é todo o nosso estudo
200
;
O espanto demonstrado diante da escrita parece sustentar, aos olhos de
Nóbrega, a vontade que os ameríndios têm de serem cristãos. Ao perceber o
Tupinambá enquanto corpo ávido em receber as palavras do Salvador, Nóbrega
legitima a famosa metáfora do índio como papel branco, aberto à impressão dos
sinais cristãos: “cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais
que escrever à vontade”. O papel branco (o Tupinambá como objeto da escrita) e
aquele que nele escreve (o missionário como sujeito de ação da escrita), se conjugam
em uma só finalidade: “apartá-los [os índios] de seus maus costumes”, aos quais
Nóbrega diz dedicar nesse momento “todo o nosso estudo”. Esse triângulo – papel
branco, escrita e maus costumes – marca a polarização que se cria entre a escrita
jesuítica e o corpo ameríndio. A escrita é o instrumento que, na busca da vontade
divina, elimina as grossas camadas de “maus costumes” (pecados) presentes no corpo
ameríndio para que esse se torne apto a participar do corpo místico da Igreja.
Como um escultor diante da pedra que, ao buscar a forma perfeita de um
elefante, procura tirar da pedra tudo que não é elefante, Nóbrega quer tirar do
Tupinambá tudo que não é cristão, polindo assim a criatura, no sentido de retirar as
camadas que o impedem de manifestar sua lei natural, e assim receber a Graça
divina. Dar forma é retirar os maus costumes: nomeando, limitando seus gestos,
imprimindo a linguagem de Deus. A forma que sairá esculpida, ou melhor, escrita no
corpo indígena, será a narrativa que unirá o gentio e o jesuíta no espaço da salvação.
Não ter os sinais da escrita, não conhecer Deus. O papel branco é como um
espelho que reconstitui, pela ação do missionário que deve dar luz a este espelho, a
unidade da linguagem divina. O papel branco é a tábua de operação onde serão
eliminadas as afeições desordenadas – o caos americano com sua fauna e flora
desconhecidas, os costumes diversos dos Tupinambá. Os “maus costumes”
ameríndios devem ser abolidos para que se fundamente a semelhança em Deus.
200
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro, Baía, 10 de
agosto de 1549, p. 48.
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Assim como pregar, assim como ensinar nos colégios o ABC, escrever é re-unir todos
na linguagem divina que foi separada.
Segundo Foucault, o pensamento do século XVI move-se na ordem da
semelhança, ou seja, as relações se estabelecem pela regra da similitude. No caso de
Nóbrega, há uma narrativa primitiva que contém todas as coisas e todos os nomes.
Essa narrativa é a vida de Jesus Cristo. A Companhia de Jesus, como seu nome bem
diz, existe em/para Jesus e se insere nas coisas do mundo tendo em vista a
exemplaridade de Seu sacrifício. O fim último da existência da Companhia é a
Salvação, que deve fundamentar-se na união de todos em Sua pessoa. Como um livro
contém as palavras de seu autor, as coisas e os seres do mundo contêm as palavras de
Deus. O que constitui o signo em seu valor singular é a semelhança. Portanto, as
palavras divinas proferidas pelo missionário peregrino devem encontrar seu eco no
corpo do gentio, tão cheio de signos e objetos heteróclitos (tatuagens dos inimigos
deglutidos, ossos perfurando a pele, etc.) que potencializam sua nudez pecadora. As
coisas devem encontrar seus equivalentes nas palavras.
O missionário procura, portanto, restituir a grande “planície uniforme das
palavras e das coisas”
201
diante da diversidade dos costumes ameríndios. As escolas
de ler e escrever, as pregações e a escrita funcionam como meios de se restituir a
unidade entre a palavra sagrada e o corpo gentio. Nesse mundo regulado pelo
princípio das similitudes, Foucault percebe que a “relação com os textos é de mesma
natureza que a relação com as coisas; aqui e lá são signos que arrolamos”
202
.
Por meio da escrita aproxima-se o corpo tupinambá (pecador e dessemelhante)
das palavras da semelhança presentes na Bíblia sagrada. Ao criar a metáfora do
indígena como papel branco, Nóbrega explicita o jogo de similitudes que se
estabelece entre o corpo tupinambá e a escrita jesuítica. Jogo em que “a arte jesuítica
de escrever cartas e a prática da conversão revelam-se símiles entre si”
203
.
No entanto, como visto, com o decorrer da experiência missionária, o ato de
restituir a linguagem original de Deus através da escrita, tornou-se inviável, visto a
“inconstância” dos Tupinambá face a pregação amorosa. Ao manterem seus “maus
201
FOUCAULT, M., Les mots et les choses, p.55. (tradução minha)
202
Idem, p. 48.
203
PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, op. Cit, p. 46.
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costumes”, os corpos que eram “papel branco” se metamorfosearam, aos poucos, em
corpos “bestiais”, e a pena da escrita transformou-se no instrumento de aplicação do
castigo exemplar: o pelourinho.
As cartas edificantes e a união em Cristo
Com as novas e cartas que recebemos nos alegramos muyto no Senhor. Queira elle
sempre augmentar o fervor com que se obra, pois hé por seu amor. Grande cousa hé a
India e o fruito della, e eu em muyto tenho também o que se cá fará, se vós vierdes,
Charissimos. Lá converter-se-ão muytos reynos e quá salvar-se-ão muytas almas, e
das mais perdidas que Deus tem em todas as gerações
204
.
Ao analisar a presença da escrita em Nóbrega, é interessante perceber também
a recepção das cartas pelo jesuíta. Nóbrega relata, em alguns momentos, o forte
impacto emocional causado pela chegada das cartas do além-mar. A alegria descrita
acima é percebida em outros trechos:
Estando para cerrar esta llegó un barco de San Vicente que truxo cartas de los padres
y Hermanos, con que mucho nos alegramos y despertó my frieza
205
.
Este ano de 53, véspera de Páscoa, chegou um navio a este S. Vicente, em que
vinham algumas cartas(...). Entre elas vinha uma de V.R., com a qual fui mui
consolado
206
.
Esses fortes sentimentos (alegria que desperta a frieza, consolo) não devem
ser entendidos na ordem do psicológico e, sim, do espiritual. O consolo, nos
Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, é “quando se produz alguma moção
interior, pela qual a pessoa se inflama no amor de seu Criador e Senhor”
207
. A alegria
204
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos Padres e Irmão de Coimbra, Pernambuco,
13 de setembro de 1551, p.96 (grifo meu).
205
Idem, Ao P. Simão Rodrigues, Baía, 10 de julho de 1552, p. 127.
206
Idem, Ao P. Luís Gonçalves da Câmara, São Vicente, 15 de junho de 1553, p. 165.
207
LOYOLA, I. , Exercícios Espirituais, p. 120.
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de Nóbrega é manifestação da Graça divina, pois seem Deus: “Com as cartas que
recebemos nos alegramos muyto no Senhor. Queira elle sempre augmentar o fervor
com que se obra, pois hé por seu amor.” Tem-se a impressão, nesse trecho, que as
palavras inscritas nas cartas provêm diretamente de Deus. Cartas que consolam, pois
por meio delas se materializam as palavras divinas, que despertam o amor em Deus,
constituindo uma verdadeira combustão de fervor místico que anima o jesuíta em sua
missão apostólica. Nóbrega interliga os povos, diminuindo a distância temporal –
entendida como tempo teleológico da salvação – que separa o gentio dos cristãos.
Como as pegadas de São Tomé, as cartas materializam a Graça divina e consolam o
missionário. Encurtam-se as distâncias entre Índia e Brasil: os dois extremos do
mundo (oriente e ocidente) unem-se na centralidade do amor divino. Trazidas pelas
naus, as cartas atravessam as imensas fronteiras aquáticas e, como cartas-bomba, ao
serem abertas, explodem o fervor amoroso em Jesus Cristo. Índia e Brasil unidos pelo
amor de Deus. Amor que deve ser levado, como missão apostólica, aos gentios nos
extremos do mundo para que estes encontrem a salvação.
As palavras sagradas de Deus estão materialmente contidas nas cartas: o papel
e a tinta são carregados de Graça. É importante compreender as cartas em sua
dimensão material, ou seja, enquanto corporificação da Graça divina. Para os jesuítas,
os sentidos do corpo atuam em simbiose com o espiritual
208
. As cartas, percebidas
como depositárias das palavras sagradas, aproximam-se, em certo grau, das relíquias,
objetos de devoção e renovação espiritual. É nesse sentido que devem ser entendidas
as cartas de tocar, presentes nas mais diversas camadas sociais ibéricas durante o
século XVI
209
. Essas cartas tinham função de amuleto, ou seja, acreditava-se que a
Graça divina era transferida ao fiel pelo toque. Perceber a palavra em sua
materialidade, o papel manuscrito enquanto corpo significante, que não precisa
necessariamente ser lido ou percebido em seu significado para transmitir a Graça. As
208
Cf. capítulo desta dissertação ‘Santos e relíquias: os sentidos do corpo’.
209
Cf. BOUZA-ALVAREZ, F., Corre manuscrito: uma história cultural del Siglo de Oro.
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cartas de tocar estiveram presentes no Brasil colonial até pelo menos o século
XVIII
210
.
As cartas que chegavam eram geralmente lidas em voz alta para todos os
irmãos. Essas sessões costumavam ir madrugada adentro, caracterizando uma ocasião
especial de grande comoção
211
. A recepção das cartas pelos jesuítas deve ser
entendida como um ritual de renovação espiritual, de reaproximação com o sagrado.
A prática das cartas de tocar, aliada à dimensão de participação corporal dos leitores
(que lêem em voz alta as cartas), são indícios de que a recepção das cartas se dava
como experiência mística, vista a função de atualizar “a missão apostólica e a palavra
de Deus”
212
. Atualização em que o corpo participa ativamente da palavra escrita. A
leitura em voz alta sugere a presença vocal e gestual do leitor e, portanto, a intensa
participação dos sentidos corporais no texto escrito. Procura-se, com isso, ressaltar
que a recepção das cartas pelos jesuítas transcende a simples leitura conteudista,
silenciosa e individual. Ela está inserida numa dinâmica corporal e coletiva, em que o
corpo participa ativamente do texto enquanto materialidade. Percepção sensorial do
texto
213
.
A relação ritualística que se estabelece entre as cartas e os jesuítas – relação
que supõe uma troca direta e intensa entre o corpo do leitor e a página escrita –
reforça a dimensão mística e devocional da correspondência jesuítica. Dimensão que,
ao atualizar as palavras sagradas de Deus, solidifica o sentimento de união desses
operários do Senhor espalhados pelos extremos do mundo. A argamassa que os
mantêm em união com o Corpo de Cristo é o amor divino vivenciado materialmente
não só na recepção das cartas, mas também no ato da escrita destas. A escrita
edificante, que atualiza as palavras da salvação, tornando todos membros uns dos
outros em um só corpo: Jesus Cristo.
210
Nesse caso, as cartas não eram aplicadas no sentido transcendente da Graça divina, como é o caso
dos jesuítas, e sim da feitiçaria amorosa. Cf. SOUZA, L.M. O diabo e a terra de Santa Cruz, pp. 228
a
230.
211
EISENBERG, J., As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, p. 49.
212
PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 28.
213
Em seu livro, Paul Zumthor situa a importância fundamental da voz nos textos medievais,
caracterizando o aspecto corporal desses textos, que existiam enquanto objetos de percepção sensorial.
ZUMTHOR, P., La lettre et la voix, p. 21.
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94
A unidade é o princípio e o fim da atividade missionária jesuítica. A
percepção teleológica cristã de que a humanidade é uma unidade que foi
desconectada e que deve ser religada antes do fim dos tempos, domina o sentido
missionário jesuítico. A reunião de todos em Cristo é perseguida continuamente.
Nesse sentido, a escrita das cartas edificantes tornou-se o principal instrumento de
união pois nelas refletia-se o amor de Deus, constitui-se a união dos irmãos e se
reforça a identidade do grupo
214
. Os jesuítas buscavam na escrita das cartas a
materialização da palavra de Deus, capaz de reunir todos os jesuítas no estado de
Graça atemporal da salvação
215
.
Porque me quero consolar screvendo-vos, charissimos Irmãos, screvo esta e não por
ter novas que vos escrever, porque vossos Irmãos que cá estão tem esse cuidado. De
cá vos estou contemplando e pollos cubiculos visitando e com ho coração amando, e
somente em os ceos vos desejo ver e lá vos aguardar
216
.
O espírito de unidade jesuítico se traduz fundamentalmente como “êxtase da
participação na plenitude de uma vida espiritual”
217
. A escrita atravessa longas
distâncias no espaço. De seu cubículo fechado, isolado entre natureza e povo
estranhos, Nóbrega consola-se através da escrita, vislumbrando a união com seus
irmãos no Céu – espaço da salvação. A escrita das cartas é fundamental para acender
a paixão do jesuíta, isolado em um espaço ausente dos sinais divinos.
Obrigou-me ho amor que em o Senhor Nosso vos tenho a escrever estas regras a
todos, já que com cada hum particularmente não posso comprir: porque como a todos
eu tenho escriptos em meu coração com o sangue do Novo Testamento, que ho
cordeiro, pouquos dias há crucificado, derramou por toda Sidade de Jerusalém com
grande e igual amor por todo o mundo, assi tão bem me pareceu bem, com todos
214
CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p. 66.
215
FERNANDES, E., A epistolografia jesuítica e a construção do outro, p.10.
216
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco,
13 de setembro de 1551, p. 91.
217
PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, p. 28.
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95
juntamente me alegrar escrevendo a todos, pois ho amor hé todo hum e a todos
igual
218
.
“O amor que em o Senhor vos tenho”, a reunião de todos em Cristo realizada
pela escrita. Como se as letras fossem linhas movidas pelo amor de Deus que
costurassem todos em um só. Nóbrega reúne todos em seu coração, órgão que
simboliza o amor, pela presença unânime da letra: seja pelo Novo Testamento, seja
pela sua própria escrita. O sangue de Cristo sacrificado, contido no Novo Testamento,
é atualizado pela escrita de Nóbrega. Agente intermediário entre dois mundos
(católico e não-católico), o coração de Nóbrega deve erigir o amor de Cristo entre os
pagãos.
O sentido de unidade, aqui entendido como um reforço identitário pela
comunhão do amor divino
219
, é fundamental para o sucesso na conversão do gentio.
Segundo Pécora, mais que um conteúdo, a carta comunica instantaneamente “um
fogo de caridade e amor, que move o leitor e, por meio dele, é capaz de converter o
indígena”
220
. Como diz o próprio Nóbrega:
se não houver grande fogo de charidade, como será possível encenderem-se os
corações do gentio?
221
.
218
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos moradores de Pernambuco, Baía, 5 de junho
de 1552, p. 105.
219
CASTELNAU-L´ESTOILE, C., Les ouvriers d´une vigne stérile, p. 66.
220
PÉCORA, A., A arte das cartas jesuíticas do Brasil, op. cit. p. 38.
221
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Aos moradores de Pernambuco, Baía, 5 de junho
de 1552, p. 109.
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96
5.2
Léry: a escrita e a eleição
O calvinista e os “falsos profetas”
Quanto à escrita, seja santa ou profana, não apenas a desconheciam, mas também, o
que é pior, não possuíam quaisquer caracteres para significar qualquer coisa. No
começo, quando estive em seu país para aprender sua língua, escrevia algumas
sentenças, lendo-as em seguida diante deles, que julgavam ser feitiçaria e diziam uns
aos outros: “Não é maravilhoso que quem ontem não sabia uma palavra de nosso
idioma, em virtude desse papel que possui, e que o faz falar assim, seja agora
entendido por nós?” (...) Por isso digo que quem quiser ampliar esta matéria, encontra
uma boa razão tanto para louvar e exaltar a arte da escrita, quanto para mostrar
quanto as nações que habitam essas três partes do mundo, Europa, Asia e Africa, têm
do que louvar Deus pela superioridade sobre os dessa quarta parte do mundo dita
América, pois enquanto esses só podem se comunicar verbalmente, nós ao contrário
temos essa vantagem que, sem sair do lugar, por intermédio da escrita e das cartas
que enviamos, podemos declarar nossos segredos a quem quisermos, mesmo estando
eles afastados até o fim do mundo. Assim, além das ciências que aprendemos nos
livros, das quais os selvagens também são completamente destituídos, ainda essa
invenção da escrita que nós temos, da qual eles são inteiramente privados, deve ser
colocada no rol dos dons singulares que os homens da parte de cá receberam de
Deus
222
.
A citação de Léry expõe claramente uma divisão entre os povos a partir da
presença da escrita. Os Tupinambá são destituídos de todos os “privilégios” que a
escrita traz: a “ciência”, a comunicação que se estende pelo espaço e, principalmente,
a memória original das verdades divinas. Sem “quaisquer caracteres para significar
qualquer coisa”, esses povos estariam limitados aos significantes, ou seja, presos aos
sentidos do corpo. Com isso, seriam incapazes de compreender o significado de
Deus, expresso pela linguagem escrita da Bíblia.
222
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brasil, pp. 151-152. (tradução minha)
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97
A condenação da nudez ameríndia estaria associada ao desconhecimento da
escrita entre esses povos. Aqueles que só “podem se comunicar verbalmente” são
destituídos de significados. Não se esperaria algo diferente de um calvinista imerso
no contexto das guerras de religião. Fiel ao princípio da sola scriptura, para ele a
Bíblia é o único meio legítimo de intermediação entre Deus e os homens, ou seja, o
principal instrumento da salvação. Presos aos significantes, como seriam os
Tupinambá capazes de acessar o significado da Criação, ou seja, a presença espirtual
de um Deus que não se reduz aos significantes do corpo?
Esse “papel” que conta “segredos” a Léry é para os Tupinambá algo
“maravilhoso”. Na verdade, o espanto do ameríndio, sujeito às inconstâncias dos
sentidos corporais, confirmaria a “superioridade” dos povos com escrita. Como diz o
autor em relação aos ameríndios, estando “privados de qualquer tipo de escrita, torna-
se difícil para eles reter as coisas em sua pureza”
223
. A impossibilidade de guardar em
sua memória as verdades divinas, fez com que o Tupinambá fosse definitivamente
culpado ante o Juízo Final, estando por isso cercado pela iminência do Apocalipse.
Quanto à afirmação dos nossos americanos de que por não terem seus antepassados
acreditado na palavra de quem lhes procurou mostrar o bom caminho, outro
missionário veio depois e os amaldiçoou, dando-lhes a espada pela qual eles se
matam todavia, é o que se lê no Apocalipse
224
.
Com a Bíblia em uma mão e a sua Histoire em outra, Léry atesta um dos
“dons singulares” que recebeu de Deus. Imerso no dogma calvinista da dupla
predestinação, o autor é categórico: apenas aqueles que conhecem e valorizam a
escrita têm a possibilidade de salvar-se, os outros estão condenados ao esquecimento
de Deus. Assegurado pela memória que esse instrumento “maravilhoso” proporciona,
o calvinista testemunha sua fé por um retorno às origens das palavras divinas,
guardadas em sua pureza no texto sagrado da Bíblia. O Tupinambá funciona como
223
Idem, p. 161 (tradução minha).
224
Idem, ibidem.
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98
um énonciataire
225
: por seu intermédio, edifica-se o poder transcendental que a
escrita representa para o calvinista.
Composta sob a dicção direta do Espírito Santo, a Bíblia seria, para Calvino, a
“lei da verdade”
226
. A condenação do Tupinambá, por conta de sua distância em
relação à escrita, funciona também como uma certificação da vocação religiosa do
autor. Enquanto o anjo do Apocalipse, com sua espada reluzente, cerca esses
“malditos filhos de Cam”, Léry se vê mais garantido nas palavras transmitidas
diretamente pelo Salvador através das Sagradas Escrituras.
Por outro lado, é interessante notar que ao longo do capítulo XVI, que trata
exclusivamente da descrição “daquilo que se pode chamar de religião entre os
selvagens americanos”, o católico se aproxima do ameríndio. Por mais de uma vez,
ao descrever os profetas tupinambá, Léry não hesita em compará-los aos padres
católicos.
Só poderia dar uma idéia exata desses caraíbas comparando-os aos tocadores de sino,
esses falsos devotos que, abusando do mundo de cá, enganam a nossa pobre gente
andando de lugar em lugar com relicários de Santo Antônio e São Bernardo ou outros
objetos de idolatria
227
.
Se, anteriormente, o Tupinambá, por sua pureza, representava o inverso da poluição
católica, nesse momento, ao descrever a religião dos Tupinambá, esses se aproximam
do católico. Ambos estariam presos aos sentidos do corpo, ao contrário do calvinista,
fiel à comunicação direta e imediata com Deus através da Bíblia. É o que parece
sugerir Léry quando compara as práticas dos profetas tupinambá à “idolatria” dos
padres católicos, que dão mais crédito a imagens de santos e relíquias do que à
própria Bíblia.
225
Ao analisar a construção do canibal nos Ensaios de Montaigne, Olivier Pot sublinha a posição de
énonciataire que ocupa o Tupinambá em sua obra. Segundo Pot, o énonciataire seria “um enunciador
ocupando o lugar enunciativo de outro enunciador.” No caso da Histoire d’un voyage, é possível
considerar que o Tupinambá funciona como énonciataire de Léry. POT, O., L’inquiétante étrangeté –
Montaigne: la pierre, le cannibale, la mélancolie, p. 149.
226
PAUL, T., A history of christian thought, p. 274.
227
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 157 (tradução minha).
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99
É possível notar, novamente, que a descrição do ameríndio está inserida numa
relação de três termos. Por intermédio do Tupinambá, julga-se o católico, que se
distancia da Bíblia ao admitir a mediação de um corpo material (sacerdotes, santos e
relíquias) entre Deus e os homens. Ao descrever uma oferenda que os Tupinambá
deixavam próxima à maraca – instrumento mágico-religioso que permite a
comunicação do profeta ameríndio com os espíritos – Léry não hesitou em compará-
la ao culto das relíquias e aos “abusos” materialistas do sacerdócio católico.
(...) se ao passarmos por suas casas e choças largas e víssemos algumas carnes
apetitosas apresentadas aos seus Maracas, e a comêssemos (como o fizemos com
freqüência), nossos americanos, estimando que isso nos causaria malefícios, não se
sentiam menos ofendidos do que os supersticiosos sucessores de Baal, ao ver
tomarem oferendas consagradas aos seus ídolos, com as quais entretanto, em desonra
a Deus, eles se alimentam fartamente com suas putas e bastardos
228
.
O Tupinambá, no que se refere à religião, é diretamente relacionado ao
católico: ambos estariam presos aos apetites sensoriais do corpo. A problemática
referente à relação entre o corpo e a salvação, central nas discussões entre católicos e
calvinistas, encontra-se presente na descrição dos “falsos profetas” ameríndios que,
como os padres católicos, se valeriam de um falso poder divino para iludir os fiéis,
obrigando-os a doar alimentos às “relíquias”. Segundo Léry, os profetas tupinambá e
os padres católicos seriam sucessores de Baal, o deus cananeu que no Antigo
Testamento designa o culto idólatra
229
. Com esses alimentos depositados em seu
“relicário”, o Karaí, como os padres católicos que vendiam indulgências e relíquias,
estaria se aproveitando de seu falso poder para se alimentar fartamente “com suas
putas e bastardos”.
É possível considerar que a descrição da religião tupinambá, além de ser
comparada à idolatria católica, se insere nesse movimento de polarização entre a
escrita e o corpo. Ambos, católicos e Tupinambá, se encontrariam distantes da
salvação pelo fato de estarem demasiadamente presos aos sentidos corporais, em
228
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 158 (tradução minha).
229
Cf. LESTRINGANT, F.. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brasil, p. 409, nota 1.
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100
oposição ao calvinista, que afirma sua fé a partir das Sagradas Escrituras. De fato, a
escrita é para o calvinista o presságio da vida eterna, reservada apenas aos povos
eleitos. Os Tupinambá não a conhecem e os católicos a menosprezam. O calvinista,
por sua vez, faz dela a garantia de sua eleição.
Obra impressa: a narrativa exemplar da salvação
Como aqueles que nunca estiveram no mar, principalmente em tais emergências,
apenas viram metade do mundo, é necessário repetir aqui as palavras do Salmista
ditas pelos marinheiros que, flutuando, subindo e descendo em tão terrível elemento e
subsistindo em meio à morte, viam-se de fato as maravilhas da Eternidade. No
entanto, não me pergunte se os marinheiros papistas, vendo-se reduzidos a tal
extremidade, não faziam mil promessas, se chegassem em terra firme, de ofercer a
São Nicolau uma imagem de cera do tamanho de um homem; o que seria aclamar por
Baal, que nada ouve. Nós, entretanto, julgávamos melhor recorrer àquele cujo auxílio
tantas vezes nos fora outorgado e que podia sustentar-nos durante a fome, mandar no
mar e aplacar a tempestade. Era a ele e não a outros que nos dirigíamos
230
.
Esse trecho se refere à travessia marítima da volta. É possível apontar
novamente para a polarização que se estabelece entre a escrita e o corpo tendo em
vista a divergência religiosa entre o calvinista e os católicos. Os “papistas” mostram-
se regidos pelos sentidos corporais, pois reduzem a Graça divina às imagens de cera e
ao culto aos santos, sendo comparados novamente aos idólatras do Antigo
Testamento, adoradores de Baal. O calvinista, por sua vez, confia seu destino só a Ele
e “não a outros”: ao repetir o Salmo 107, ele reafirma a autoridade da Bíblia como
depositária da Palavra viva de Deus. As “maravilhas da Eternidade” são confirmadas
ao calvinista pela presença do Evangelho.
Viu-se que o Salmo 107 também foi entoado na travessia marítima da ida,
atestando as “maravilhas de Deus” diante dos diversos perigos que se apresentaram
ao viajante. Fundamentada na separação brutal de sua comunidade em relação às
230
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 214 (tradução minha).
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101
perseguições católicas, a viagem de Léry se apresenta enquanto projeção do passado
bíblico. As provações do corpo, vivenciadas ao longo da travessia e dos cercos
religiosos, parecem atualizar o exílio bíblico. Dignas de um martírio, essas provações
apontam para a confirmação da eleição de sua comunidade, abençoada pelas
maravilhas de Deus durante os horrores da travessia. O paralelismo entre o “martírio”
dos protestantes, perseguidos pelos católicos, e o exílio do povo de Israel, é constante
entre os escritores protestantes desse período
231
.
É através desse espaço sitiado – seja o navio, a França Antártica ou a vila de
Sancerre – que o calvinista parece testemunhar a Graça de Deus em favor dos povos
eleitos. A ilha de França Antártica tornou-se palco do martírio dos três colegas de
Léry que participaram da missão calvinista ao Novo Mundo.
Villegagnon, por causa do Evangelho, afogou três no forte de Coligny (...) Ao saber
que, enquanto resistíamos aos perigos das ondas e tempestades do mar, esses servos
fiéis de Jesus Cristo sofriam, pelas mãos de Villegagnon, os tormentos e a morte
cruel, e me lembrando de que fui o único a sair da barca, na qual já estava preparado
para regressar com eles, rendi Graças a Deus pelo meu salvamento individual,
sentindo-me também mais do que nunca no dever de fazer com que a confissão de fé
desses três bons personagens fosse registrada no catálogo desses que em nosso tempo
sofreram constantemente a morte para testemunhar o Evangelho, entregando-a nesse
mesmo ano de 1558 ao impressor Jean Crespin, o qual, juntamente com a narração da
dificuldade que tiveram em retornar à terra dos selvagens depois que nos deixaram, a
inseriu no livro dos Mártires (...)
232
.
O que seria desses corpos afogados pela “crueldade” do católico Villegagnon,
sem a presença da escrita? Essa funciona como testemunho da fé que eterniza a Graça
divina reservada aos povos eleitos. A semiologia calvinista retirou do corpo físico o
poder de intermediação da Palavra de Deus, reduzindo aos sinais da escrita o poder de
manter viva essa Palavra. Como sugere Lestringant, “o destino da escrita substitui o
da carne perecível”
233
. Afogados “por causa do Evangelho”, esses corpos
231
NAKAM, G., Au lendemain de la Saint-Barthelemy, p. 99.
232
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 221 (tradução minha).
233
LESTRINGANT, F. , Une sainte horreur, p. 126.
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martirizados são recompensados pelo livro impresso, que torna pública a “confissão
de fé desses três bons personagens”. É pelas mãos do impressor Jean Crespin, cuja
confissão da fé lhe foi passada pelo testemunho de Léry, que a ausência desses corpos
perecíveis se transformará em presença da “Eternidade”.
É importante ressaltar que a publicação da Histoire foi fortemente motivada
pela necessidade de contestar os testemunhos do católico Thevet, que em seus livros,
responsabilizou a missão protestante pelo fracasso da França Antártica. Portanto, a
obra de Léry se situa no contexto político das guerras de religião e atende à
necessidade de se solidificar os vínculos de solidariedade social da comunidade
calvinista
234
. Como ressaltou no prefácio de sua Histoire: “a fim de desmentir as
imposturas de Thevet, fui de certa forma constrangido a dar à luz o relato de nossa
viagem”
235
.
Mas a escrita edificante de Léry não substitui apenas os corpos martirizados
dos três genebrinos: funciona também como testemunho de sua própria vocação
religiosa. A cena do barco, referida no trecho acima, é a passagem simbólica que se
reverte no “mito de sua eleição pessoal”
236
. Dentro da barca e prestes a retornar para a
França Antártica junto com os genebrinos mortos por Villegagnon, o autor desiste do
retorno e escapa da morte. Esse episódio da sobrevivência, assim como outros que se
repetirão ao longo da travessia marítima, fazem do autor um provável predestinado à
Graça divina. De fato, como diz Léry: “rendi Graças a Deus pelo meu salvamento
individual”.
Ao corpo perecível, tão indefeso diante do abismo oceânico, substitui-se o
livro impresso que dá luz à provável “Eternidade” do autor. Esse caráter redentor do
livro impresso pode ser percebido através de sua trajetória peculiar. Após descrever
os perscursos tortuosos de seus manuscritos compostos “com a tinta do pau-brasil”,
que foram separadas algumas vezes do autor, Léry finalmente os reencontra, quase
milagrosamente.
234
LESTRINGANT, F. , Calvinistes et cannibales, p. 78.
235
LÉRY, J., Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 22 (tradução minha).
236
LESTRINGANT, F. , Calvinistes et cannibales, p. 80.
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Ao relatar porém a um nobre senhor a respeito da primeira perda que aconteceu em
Lyon, e o nome da pessoa a quem eu entregara o manuscrito, de tal modo se
interessou ele por encontrá-lo que finalmente o achou no ano passado (1576) e me
devolveu. Eis porque o que escrevi sobre a América, tendo-me sempre fugido das
mãos, não pôde vir à luz
237
.
Gomez-Géraud, ao analisar o prefácio de Léry, destaca a construção de uma
“fábula” do livro, que passa da condição de manuscrito diversas vezes perdido entre
as sombras do esquecimento, à de livro impresso que pôde “vir à luz”
238
.
Há um paralelo entre a trajetória pessoal de Léry e a do seu manuscrito pois
ambos, autor e “pré-livro”, seguem uma seqüência de exílios e riscos de morte: nessa
sucessão de escapadas do autor que busca refúgio face a perseguição religiosa, o
manuscrito se perde dele diversas vezes e é reencontrado de forma milagrosa pelas
mãos de sujeitos desconhecidos. Esses manuscritos errantes - que conseguem
sobreviver aos diversos exílios, naufrágios e perseguições, e que “encontram a Luz
depois de se tornarem o livro belamente editado, impresso e revelado à multidão - não
seriam uma metonímia do próprio Léry, que passa da condição de sapateiro que
acompanha a missão calvinista na França Antártica à de pastor, escolhido
divinamente para a vocação de pregador da nova fé protestante?
O movimento do manuscrito errante não marcaria o afastamento gradual que
se dá entre o livro e o corpo do autor? Segundo Hans Gumbrecht o advento da
imprensa operou uma separação significativa entre o corpo e a consciência da
comunicação: “Definitivamente o corpo humano não era mais o veículo de
constituição do sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo de sentido, o
livro, pela introdução de uma máquina, a prensa de impressão”
239
. Na data de 1578,
quando é finalmente impresso e publicado, o livro de Léry marca uma separação
ainda mais expressiva em relação ao corpo, sua narrativa é “definitivamente
237
LÉRY, J. , Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, p. 22.
238
GOMEZ-GERAUD, M.C., Jean de Léry. : des parcours aventureux des manuscrits aux destinées
du livre, p.69.
239
GUMBRECHT, H., Modernização dos sentidos, p. 75.
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abandonada à multidão dos leitores em potencial, e se afasta, de uma maneira
irreversível, do autor que lhe imputou vida”
240
.
Tendo em vista a semiologia disjuntiva calvinista, que faz da Palavra divina a
ausência do corpo físico, o livro impresso simboliza a “iluminação” da narrativa
exemplar de Léry: distanciada do corpo do autor, ela funciona como uma “dispersão
simbólica”
241
da Palavra de Deus. Atualizada pelo livro impresso de Léry, essa
Palavra atesta para a posteridade o martírio desse novo “povo de Israel” em busca da
Terra prometida.
240
GOMEZ-GERAUD, M.C., Jean de Léry: des parcours aventureux des manuscrits aux destinées du
livre, p.73 (tradução minha).
241
GOMEZ-GERAUD, M.C., Jean de Lery: des parcours aventureux des manuscrits aux destinées du
livre, p.72.
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6
Considerações finais: “índio bestial” ou “bom selvagem”?
Em síntese, esta dissertação analisou as diferentes formas pelas quais Nóbrega
e Léry situaram o Tupinambá em seus respectivos universos da salvação. A hipótese
central do trabalho pressupõe que a salvação, tanto do jesuíta quanto do calvinista,
constituiu-se a partir do Tupinambá, e que se estabeleceu uma polarização entre a
escrita dos autores e o corpo ameríndio.
Embora a hipótese acima descrita revele algum grau de convergência
estrutural entre as narrativas de Nóbrega e Léry, a representação do Tupinambá, no
universo desses autores, aponta diferenciações claras, que podem ser compreendidas,
em parte, a partir do contexto das Reformas religiosas.
Esse período de relativização das verdades doutrinárias da Igreja, e de
afirmação identitária de distintas comunidades religiosas, fundamentou-se, sobretudo,
nas discussões teológicas sobre a relação entre o corpo e a salvação. O culto das
relíquias, a discussão sobre a presença real do corpo de Cristo na hóstia, a
condenação da santidade – todos esses pontos, levantados pelos protestantes, trataram
da questão de como a fé e o sagrado deveriam relacionar-se com a dimensão corporal
da humanidade.
O calvinista, fundamentado na doutrina da predestinação, procura esvaziar o
monopólio da Igreja como legítima intermediária entre Deus e os homens. Segundo
Certeau, o desmoronamento das crenças de uma sociedade que deixa de ser
religiosamente homogênea faz com que as práticas litúrgicas ganhem relevância,
tornando-se um elemento de diferenciação religiosa
242
. Basta lembrar que o embate
de Léry com o comandante da França Antártica teve como questão fundamental a
transubstanciação do corpo de Cristo, o que confirma a posição central dessas
polêmicas teológicas ao longo do período inicial das Reformas religiosas.
O jesuíta, por sua vez, procura acentuar a relação de continuidade entre o
corpo e a salvação. Imerso no contexto das expansões ibéricas – em que a dimensão
cruzadística da Reconquista se conjuga ao movimento da Contra-reforma – ele age
242
CERTEAU, M., A Escrita da História, p. 36.
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impulsionado pela afirmação do poder sagrado de certos corpos: imagens de santos,
cruz, objetos litúrgicos, relíquias. A aparição dos santos nas batalhas, dando um
significado providencial às guerras ibéricas, assim como a presença do santuário de
São Tomé no Novo Mundo, são alguns exemplos da narrativa de Nóbrega que
certificam a relação de continuidade que se estabelece entre a Graça e os sentidos do
corpo.
A hipótese desta dissertação, já indicada, estrutura-se na idéia de que o
discurso da salvação, tanto de Nóbrega quanto de Léry, fundamentou-se a partir de
uma polarização entre a escrita dos autores e o corpo ameríndio. Dois princípios
fundamentais estão presentes.
O primeiro refere-se à suposição de que o corpo ameríndio foi apreendido
conceitualmente a partir desse contexto de fragmentação religiosa, em que as
discussões sobre o corpo e a salvação ocupavam posição central. Diante de um
mundo marcado pela discórdia religiosa e pelas perseguições às heresias, o corpo
dessa nova humanidade, revelado em sua nudez, foi assimilado de diferentes formas.
Seria o corpo nu um “papel branco”, símbolo da pureza e inocência, que marcaria o
reencontro com uma verdade original, já dissipada do conturbado horizonte europeu?
Ou seria esse corpo o sinal da condição “bestial” e pecadora desses prováveis
descendentes de Cam, o filho maldito de Noé? Tanto Nóbrega quanto Léry se
utilizaram dessas duas imagens, o “papel branco” e o “filho de Cam”, para
representar o ameríndio.
O segundo princípio deriva da idéia de que a redenção dos autores reside
essencialmente na escrita, enquanto que a salvação do Tupinambá habita seu próprio
corpo. Entretanto, ao mesmo tempo, sustenta-se que os princípios norteadores da
escrita católica se aproximam muito mais dos valores ligados ao corpo do que aqueles
que marcam as bases da escrita em Léry.
Para Nóbrega, a escrita coloca-se a serviço de uma práxis: encontrar a vontade
divina para agir da melhor forma no sentido de extirpar as “afeições desordenadas”
que habitam o corpo ameríndio. Inspirada na prática de procura da vontade divina dos
Exercícios Espirituais, o ato de escrever cartas deve ser entendido, no caso dos
jesuítas espalhados pelo mundo, como ação pragmática que participa da conversão.
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Nesse sentido, é importante destacar duas vertentes. A primeira, a imediatez da
presença da fala do destinador no registro escrito; a segunda, a dimensão ritualística e
coletiva da recepção das cartas jesuíticas, que evidenciaria, por sua vez, a presença
ativa do corpo como veículo de sentido do texto escrito.
A narrativa do calvinista, por sua vez, parece fundar-se na nostalgia de uma
ausência que se fixou não só pelo corte coercivo entre o Novo e o Velho Mundo, mas
também pela radical transcendência de Deus, que não poderia mais ser apreendido
pela intermediação de um corpo material. O distanciamento radical de Deus do
horizonte corporal dos homens fundamentou-se na concepção de que a Bíblia era a
única legítima intermediária entre o divino e o humano. Tal distanciamento do
sagrado em relação à dimensão corporal do ser humano pode ser evidenciado também
pelo fato do livro de Léry, contrariamente à escrita das cartas de Nóbrega, ter-se
constituído enquanto obra impressa (e não manuscrita), o que acentuaria um
isolamento do corpo enquanto veículo de sentido da escrita.
Nóbrega e Léry, por intermédio da escrita, apreenderam de diferentes
maneiras o Tupinambá em seus respectivos universos da salvação. Apesar do foco da
dissertação não ter sido a análise dos Tupinambá, e sim a forma pela qual o jesuíta e o
calvinista o representaram, é importante destacar que foi por intermédio do ameríndio
que as narrativas exemplares da salvação desses autores se consolidaram. Nesse
sentido, procurou-se ressaltar que a dinâmica dos contatos culturais entre os
religiosos e o Tupinambá transformou decisivamente a forma pela qual os primeiros
passaram a representar o segundo e, com este, se relacionar.
6.1
O corpo domado: Nóbrega e o Plano Civilizador (1558)
Viu-se que o método de conversão de Nóbrega – antes fundamentado na
pregação amorosa, que enxergava o ameríndio como um “papel branco” aberto à
em Cristo – transformou-se decisivamente a partir de meados de 1550. Após justificar
teologicamente a primazia do “ferreiro” sobre o “língua” em seu Diálogo sobre a
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108
Conversão do Gentio, Nóbrega escreveu em 1558 um texto que ficou conhecido
como o Plano Civilizador ou Plano das Aldeias, onde expôs os novos métodos de
evangelização, fundamentados em um maior controle moral sobre o ameríndio
através da nova “lei”.
A lei, que lhes hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem
licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito
algodão, ao menos despois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça
entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra
parte, se não for para antre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com
estes Padres da companhia para os doutrinarem.
243
Nota-se que as proibições se aplicam prioritariamente aos costumes do corpo:
poligamia, antropofagia, nudez. Como sugere Viveiros de Castro, “as sociologias
ameríndias formulam-se diretamente nos termos de uma dinâmica dos corpos e dos
fluxos materiais”
244
. Nesse sentido – mesmo que o jesuíta não tivesse um
conhecimento antropológico sistematizado sobre a função social do corpo para os
Tupinambá –, era inevitável que a Lei do missionário se aplicasse fundamentalmente
a um controle mais rigoroso sobre esse corpo. Não mais um papel branco, o
ameríndio passa a ser visto agora como a “boca infernal”
245
que não cessa de comer
os cristãos. Reduzidos aos apetites infernais do ventre, eles deixam de ser vistos
como “pagãos” e se tornam “hereges”, que devem ser capturados em guerra justa ou
amarrados ao pelourinho caso não se sujeitem à fé.
O Plano Civilizador, proposto por Nóbrega, instalou no espaço público central
da Aldeia um pelourinho, que sujeitou os índios a um severo e brutal controle sobre
243
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel Torres, Lisboa, Baía 8 de Maio de
1558, p. 282.
244
VIVEIROS DE CASTRO, E., A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia,
p. 16.
245
“Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e
navios por toda a costa os quais todos são comidos dos Índios e são mais os que morrem que os que
vem cada ano, e haveria estalagens de cristãos por toda a costa, assim para os caminhantes da terra coo
para os do mar.” NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel Torres, Lisboa, Baía
8 de Maio de 1558, p. 282.
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seus corpos, através de punições exemplares – açoites, enforcamentos e decapitações
– como se vê no trecho abaixo.
Este foy preso e, por ser a primeira justiça e por amor de seu irmão, ho meirinho, foy
açoutado e lhe cortarão certos dedos das mãos de maneira que podesse ainda com os
outros trabalhar. Disto ganharão tanto medo, que nenhum fez mais delicto que
merecesse mais, que estar alguns dias na cadea
246
.
Reiterar as palavras sagradas do Salvador já não sustenta os anseios jesuíticos
de conversão, é preciso aplicar uma pena exemplar sobre o corpo ameríndio para que
esse se desgarre definitivamente de seus “maus costumes”. O corpo do Tupinambá,
como visto, deve ser integrado ao corpo místico da Igreja pela conversão. Da escrita
amorosa do pregador peregrino, pela qual os caracteres sagrados de Deus se
imprimiriam sobre o corpo ameríndio como em uma página branca; à escrita da
sujeição, em que o chicote irá inscrever com a tinta de sangue, os ensinamentos
divinos sobre um corpo agora de “fera brava”, amarrado ao pelourinho. A escrita de
Nóbrega, atrelada à práxis da conversão, funciona como instrumento de incorporação
desse ameríndio ao corpo da Igreja. Essa escrita, a partir da reforma de 1558,
transmutou-se no chicote do castigo exemplar, que sujeitará os índios à fé em Cristo.
6.2
O corpo estetizado: Léry e a nudez perdida
Enquanto Nóbrega sistematizava seu novo método de incorporação do
ameríndio ao corpo místico da Igreja, Léry era acolhido pelos Tupinambá da Baía de
Guanabara, entre os quais viveu seu refúgio religioso depois de ter sido expulso da
ilha de França Antártica, por conta da disputa teológica com Villegagnon. Ao invés
246
NÓBREGA, M., Cartas do Brasil e mais escritos, Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal –
Baía 5 de julho de 1559. p. 297.
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de sujeitado e incorporado ao poder da Igreja, para Léry, o corpo tupinambá se
constituiu enquanto testemunho da memória de uma pureza perdida.
Não se deve pensar, contudo, que a exaltação de Léry atende a uma visão
relativista de um antropólogo avant la lettre. A bondade do ameríndio só existe
enquanto memória de uma pré-história da humanidade. A construção da figura do
“Bom selvagem” estaria diretamente associada ao “pessimismo escatológico do
autor”
247
. A narrativa de Léry fundamenta-se, portanto, como testemunho de um
tempo mítico que, devido à colonização católica no Novo Mundo, estaria em vias de
se perder definitivamente do horizonte dos homens. Ao mesmo tempo em que é visto
como o ideal de uma Verdade originária, o ameríndio é condenado à danação eterna.
O calvinista rigoroso, imerso no princípio da predestinação, não hesita em privar o
ameríndio da salvação, pois esse desconhece os sinais da escrita.
Diferentemente de Nóbrega, que teve uma experiência contínua com os
ameríndios, Léry viveu pouco menos de um ano entre eles. Sua narrativa foi um
testemunho do exílio protestante e do martírio de seu grupo religioso em terras
americanas. Ao invés da continuidade, ela marca o corte da comunidade calvinista,
em busca de um refúgio para se purificar da predominante poluição católica. A
salvação de sua comunidade não estaria ligada à conversão do próximo, e sim ao que
Lestringant chamou de “Apocalipse da reabsorção”, isto é, ao princípio de que a
eleição de alguns implica na condenação de muitos
248
.
Nenhum vestígio restou desse corpo ameríndio, a não ser o testemunho escrito
do calvinista. Isso pode ser evidenciado em sua travessia marítima de regresso à
Europa. A fome extrema fez com que o aventureiro incorporasse ao seu ventre os
mais heteróclitos objetos que pudessem evidenciar uma continuidade entre o Novo e
o Velho Mundo – desde as peles dos animais americanos até os pedaços de madeira
do pau-brasil. No entanto, o que deu mais dó ao calvinista foi ter que devorar um
papagaio que ele guardava com muito carinho para oferecer ao Almirante Coligny.
Último corpo devorado, nada restou dessa ave, nem mesmo o seu bico.
247
LESTRINGANT, F. , Le huguenot et le sauvage, p. 119.
248
LESTRINGANT, F. , Millénarisme et âge d’or, p. 193.
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(...) guardara eu até então, uma dessas aves, grande como um pato, bom falador e de
linda plumagem, porque desejava com ela presentear ao senhor almirante, mas tal foi
a necessidade que não pude conservá-la mais tempo (...) Jogadas fora as penas,
serviram o corpo, as tripas, os pés, as unhas e até o bico adunco de alimento, durante
três ou quatro dias para mim e alguns amigos. Não escondo entretanto o pesar que
tive de tê-lo morto, ao ver terra cinco dias após (...)
249
.
Ao devorar esse animal “bom falador”, Léry “massacrou a palavra
selvagem”
250
, liquidando definitivamente a possibilidade de sobrevivência de
qualquer vestígio do corpo ameríndio em terras européias. O modelo de pureza
original, evidenciado na descrição do Tupinambá, apesar de atender a um princípio de
inversão que condena o católico, existe também como memória de uma ausência
incapaz de ser reduzida ao significado da escrita e que, por isso, só pode ser revivida
pelas recordações sensoriais do autor. Incorporada ao ventre do calvinista, a palavra
tupinambá figura-se pela recordação da ausência de uma voz e de um corpo doravante
inapreensíveis. O exemplo mais marcante dessa experiência sensorial que se faz
presente na narrativa diz respeito à descrição do ritual xamanístico dos Tupinambá.
Maravilhado com a harmonia da música e da dança, Lery parece não poder
representar em sua escrita, senão pela marca da ausência, esse momento que se
apresentava aos seus sentidos. Em sua narrativa, a ausência do corpo tupinambá seria
a memória sensorial de quem ainda sente “palpitar o coração”, vinte anos depois, ao
lembrar a cena do ritual liderado pelos profetas tupinambá.
(...) e ainda hoje quando recordo essa cena sinto palpitar o coração e parece-me a
estar ouvindo
251
.
Segundo Lestringant, esse momento de encantamento marca a corporalidade
de seu texto e, pela hipotipose, os limites do calvinismo do autor
252
. Apesar de ter
condenado e isolado o Tupinambá à danação eterna, há um resquício dessa
249
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil,p. 265.
250
GOMEZ-GÉRAU, M.C., Jean de Léry : des parcours aventureux aux destinées du livre, p.74.
251
LÉRY, J., Viagem à terra do Brasil, p. 214.
252
LESTRINGANT, F., Jean de Léry ou l’invention du sauvage, p. 98.
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corporalidade ameríndia que se deixa entrever em sua escrita. Inapreensível pela
memória impressa do calvinista, esse corpo que encanta faz-se presente no centro
vital da testemunha: o coração que “palpita”.
Enquanto o corpo tupinambá torna-se, para Nóbrega, a realidade concreta da
carne que deverá sujeitar-se ao pelourinho, para o calvinista, tal corpo se torna a
ausência definitiva de uma pureza original que só existe enquanto recordação
nostálgica que atinge os sentidos do autor.
Seja no sítio de suplício do açoite, ou no sonho primitivista do puritano
ascético, o corpo tupinambá foi igualmente sacrificado em nome da civilização
ocidental. Sobre sua carne desenharam-se os traços da escrita civilizadora, que o
lançou, ora na pré-história da humanidade, ora na nova história do sistema colonial
escravista. Onde se esconde a nudez do corpo tupinambá nos dias atuais? Em algum
ideal de pureza e renovação? Em algum sistema de açoite digital?
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7
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