Download PDF
ads:
Eliane Santoro de Lacerda
A democracia através do espelho:
uma investigação sobre o conceito de democracia
nas páginas de Cultura Política
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura, do
Departamento de História da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin
Rio de Janeiro
Setembro de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Eliane Santoro de Lacerda
A democracia através do espelho:
uma investigação sobre o conceito de democracia
nas páginas de Cultura Política
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em
História Social da Cultura do De
partamento de História do
Centro de Ciências Sociais da PUC-
Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profº Marcelo Gantus Jasmin
Orientador
Departamento de História
PUC-Rio
Profº. Luís Reznik
Departamento de História
PUC-Rio
Profª Ângela Maria de Castro Gomes
Pesquisadora CPDOC
FGV
Profº João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 18 de setembro de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
ads:
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do
orientador.
Eliane Santoro de Lacerda
Graduou-se em Bacharelado em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2004.
Ficha Catalográfica
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Lacerda, Eliane Santoro de
A democracia através do espelho: uma investigação sobre
o conceito de democracia nas páginas de Cultura Política /
Eliane Santoro de Lacerda ; orientador: Marcelo Gantus
Jasmin. – 2007.
182 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Estado
Novo. 4. Cultura política. 5. História dos conceitos. 6.
Democracia. 7. Pensamento político autoritário. I. Jasmin,
Marcelo Gantus. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de História. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
A meus pais, que me deram a vida.
A Gabriel, Ricardo e Roberta, que lhe deram sentido.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
Agradecimentos
No último semestre em que cursava a graduação em História na PUC-Rio,
assisti a uma palestra organizada pelo Departamento de História na qual
mestrandos e doutorandos iriam falar aos futuros historiadores sobre as pesquisas
que estavam desenvolvendo e, mais importante, sobre como estavam vivenciando
a experiência da pós-graduação. Um comentário, em particular, ficou impresso
em minha memória: a observação feita por uma das alunas do mestrado sobre a
pesquisa na pós-graduação ser atividade em que predomina a sensação de
isolamento.
Se hoje, após ter concluído minha própria trajetória de pesquisa, precisasse
falar aos graduandos sobre essa experiência, teria a dizer que, se o isolamento é
fato, há também um outro lado, mais bonito. A pesquisa só é possível com o apoio
de uma extensa rede de colaboradores. Todos em volta acabam, de certa forma, às
vezes até de modo involuntário, envolvidos no processo. E esse envolvimento é o
que mantém vivo o impulso de seguir, a cada vez que uma dificuldade nos assusta
e ameaça paralisar o pensamento. Ela é, portanto, sempre um trabalho de equipe.
Neste sentido, redigir um texto de agradecimento rivaliza, em grau de
dificuldade, com a própria atividade de pesquisa e redação da dissertação. Isto
porque a lista corre sempre o risco de ser injusta. Basta uma pequena traição da
memória para que se deixe de incluir pessoas cuja contribuição tenha sido
fundamental.
Ciente do risco, inicio por agradecer ao CNPq e à PUC-Rio, instituições
sem cujo apoio este trabalho não teria sido possível.
Ao Professor Marcelo Gantus Jasmin, orientador querido e admirado,
agradeço não a orientação no sentido formal do termo, mas sobretudo o
incentivo, o carinho, os preciosos conselhos, a imensa generosidade e a incansável
dose de paciência. Suas intervenções sempre precisas foram essenciais para
enriquecer o trabalho, e procurei incorporar todas as indispensáveis correções de
rumo por ele sugeridas. As falhas que porventura possam comprometer a
qualidade do produto final são de minha inteira responsabilidade.
À Professora Ângela de Castro Gomes, um duplo agradecimento. Em
primeiro lugar, por terem sido seus textos, que admiro desde a época da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
graduação, em grande medida a fonte de inspiração para este trabalho. Em
segundo, pela gentileza de aceitar o convite para participar da banca de defesa da
dissertação.
Registro um agradecimento especial ao Professor Fernando Lattman-
Weltman por ter gentilmente me permitido consultar parte do banco de dados por
ele organizado sobre a revista Cultura Política.
Ao Professor Luís Reznik, agradeço não apenas por ter aceitado participar
da banca de defesa, mas principalmente pelas incontáveis vezes em que abriu
espaço na sua atribulada agenda para, sempre com palavras de incentivo, trocar
idéias sobre o projeto, fazendo críticas e sugestões extremamente valiosas.
Devo muito, também, à Professora rcia de Almeida Gonçalves pela
criteriosa leitura que fez do projeto. Seus comentários e indicações bibliográficas
foram vitais para a composição de um dos capítulos do trabalho.
Aos Professores Ilmar Rohloff de Mattos, Selma Rinaldi de Mattos,
Margarida de Souza Neves, Maria Elisa Mäder, Flávia Eyler, Isabela Fernandes,
Marco Antônio Pamplona, Ricardo Benzaquen de Araújo, mestres queridos e
interlocutores carinhosos, sempre com as palavras certas para acalmar ansiedades
e inseguranças, meu agradecimento afetuoso.
À equipe do Departamento de História, Anair, Cláudio, Cleusa e Edna,
sempre atenciosos, simpáticos e prontos a ajudar, especialmente nos momentos
difíceis, agradeço de coração.
O carinho dos amigos é fonte indispensável de incentivo, e aqui registro
meus agradecimentos especialíssimos ao Dr. José Carlos Modesto, a Vanessa e
Marcos, Teca, Marise, Débora e Guilherme.
Com Gabriel, presença forte, constante e carinhosa em todas as etapas
deste percurso, compartilho a alegria de ter conseguido realizar este trabalho, pois
quaisquer palavras seriam insuficientes para expressar o meu agradecimento.
Agradeço aos meus pais, Hermano e Alice, à minha irmã Isabella e ao meu
irmão Ronaldo pelo interesse carinhoso que sempre mostraram pelas minhas
atividades acadêmicas. A Ricardo, a quem prometi que na próxima encarnação
terá uma mãe que saiba cozinhar, ao invés de se preocupar com a história dos
conceitos. E a João Guilherme, Felipe, Miguel e Soraya, pelo carinho e
compreensão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
Resumo
Lacerda, Eliane Santoro de; Jasmin, Marcelo Gantus (Orientador). A
democracia através do espelho: uma investigação sobre o conceito de
democracia nas páginas de Cultura Política. Rio de Janeiro, 2007. 182 p.
Dissertação de Mestrado - Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O objetivo desta dissertação é analisar o processo de construção de um
conceito de democracia adequado aos propósitos da ordem política instaurada no
Brasil com o advento do Estado Novo, regime ao qual o país esteve submetido de
1937 a 1945. Os intelectuais convidados pelo governo de Getúlio Vargas a
colaborar em Cultura Política, revista mensal que circulou entre 1941 e 1945,
desempenharam importante papel nesse processo. A dissertação tem como eixo a
análise de uma seleção de artigos publicados em Cultura Política por alguns
desses intelectuais e é conduzida com base nos procedimentos sugeridos pela
história dos conceitos (Begriffsgeschichte), conforme desenvolvida pelo
historiador alemão Reinhart Koselleck. Este trabalho pretende ser somar-se aos
estudos existentes sobre o tema, no sentido de aprofundar a compreensão dos
argumentos mobilizados na re-significação do conceito.
Palavras-chave
Estado Novo; Cultura Política; história dos conceitos; democracia;
pensamento político autoritário.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
Abstract
Lacerda, Eliane Santoro de; Jasmin, Marcelo Gantus (Advisor).
Democracy through the looking glass: an investigation of the concept
of democracy in the pages of Cultura Política. Rio de Janeiro, 2007.
182 p. Dissertation - Departamento de História, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
The objective of this dissertation is to analyse the process of construction
of a concept of democracy designed to suit the purposes of the political order
established in Brazil with the institution of the Estado Novo, regime which
governed the country from 1937 to 1945. The intellectuals invited by the Getulio
Vargas government to collaborate in Cultura Política, a monthly publication
which circulated between 1941 and 1945, played an important part in that process.
The dissertation is primarily focused on the analysis of a selection of articles
published in Cultura Política by some of those intellectuals, and is conducted in
accordance with the procedures proposed by the history of concepts
(Begriffsgeschichte) as developed by the german historian Reinhart Koselleck.
The paper is aimed as a contribution to the existing studies on the subject in the
sense of providing a further understanding of the arguments mobilized in the re-
signification of the concept.
Keywords:
Estado Novo; Cultura Política; history of concepts; democracy;
authoritarian political thought.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
Sumário
1. Introdução 11
1.1. Apresentação 11
1.2 Sobre a história dos conceitos 23
2. Considerações iniciais 32
2.1. Intelectuais e poder: uma relação delicada 32
2.2. Da importância de Cultura Política 52
3. A democracia em revista 69
3.1. Em busca do passado “adequado”
71
3.2. A democracia em Cultura Política: construindo o conceito 80
4. Uma “batalha semântica” 144
5. Conclusão 161
6. Referências bibliográficas 172
7. Apêndice 181
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
Estas conjeturas absurdas prueban que la Quimera ya
estaba cansando a la gente. Mejor que imaginarla era
traducirla en cualquier otra cosa. Era demasiado
heterogénea; el león, la cabra y la serpiente (en algunos
textos, el dragón) se resistían a formar un solo animal. Con
el tiempo, la Quimera tiende a ser "lo quimérico"; [...] La
incoherente forma desaparece y la palavra queda, para
significar lo imposible. Idea falsa, vana imaginación, es la
definición de Quimera que ahora da el diccionario.
Jorge Luis Borges, El libro de los seres imaginarios
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
1.
Introdução
1.1.
Apresentação
A dissertação de mestrado aqui desenvolvida vem dar continuidade à
trajetória iniciada com a escrita de minha monografia, quando da conclusão do
curso de graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. A proposta, então como agora, é pesquisar o pensamento político
brasileiro e, dentro deste campo, mais especificamente, a produção intelectual de
autores que, de uma forma ou de outra, estiveram associados ao governo Vargas
no período que se estende de 1930 a 1945. Tal associação lhes rendeu epítetos
como "teóricos do autoritarismo" e "ideólogos do Estado Novo", não raro
empregados com conotação depreciativa.
Ao elaborar a monografia, optei por privilegiar a análise da obra de um
destes intelectuais, o médico e jornalista Antonio José Azevedo do Amaral
(1881-1942). Autor de inúmeros artigos, ensaios e livros, seu pensamento
constituiu um dos pilares sobre os quais se assentou a ideologia que orientou a
construção do regime instituído no Brasil a 10 de novembro de 1937.
No presente trabalho, a idéia é expandir o espectro da pesquisa, visando
agora abranger uma gama maior daqueles pensadores que puseram seu prestígio à
disposição de um projeto político concebido para dar legitimidade ao corpo
doutrinário que serviu de base à implantação do Estado Novo.
Com este propósito em mente, a escolha da fonte para realizar a pesquisa
recaiu sobre o periódico Cultura Política - Revista Mensal de Estudos Brasileiros,
publicado entre março de 1941 e outubro de 1945 pelo Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP), órgão diretamente subordinado à Presidência da República.
Criado pelo Decreto-Lei nº. 1.915, de 27 de dezembro de 1939, como parte
da política de propaganda idealizada pelo Estado Novo, o DIP veio consolidar o
trabalho até então executado pelos órgãos que o antecederam -- o Departamento
Oficial de Propaganda, implementado em 1931, e o Departamento Nacional de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
12
Propaganda e Difusão Cultural, organizado em 1934, ambos vinculados ao
Ministério da Justiça.
Em linhas gerais, competia ao DIP coordenar o processo de produção e
difusão do ideário estado-novista e de construção da imagem de seu líder. No
exercício desta função, cabia-lhe não apenas centralizar e supervisionar toda a
propaganda a ser preparada sobre as ações do governo, como também incentivar e
dar apoio à realização de atividades que pudessem servir de canais adicionais a
esse esforço de propaganda, potencializando seus resultados. Tais atividades
incluíam desde a promoção de palestras, exposições e concertos, até a organização
de competições esportivas e comemorações cívicas, além da elaboração de
material a ser veiculado nos meios de comunicação de massa (rádio e imprensa).
Também compreendida na esfera de atuação do departamento estava a repressão à
circulação de qualquer mensagem contrária aos interesses do governo, o que
incluía, entre outras coisas, a censura a publicações, filmes e peças de teatro. Uma
legislação especial foi promulgada visando dar à imprensa caráter de utilidade
pública, convertendo-a em instrumento do Estado e órgão oficial de propagação
da nova ideologia. O propósito de instituir o fim da liberdade de imprensa e a
censura a todos os veículos de comunicação transparece no artigo 1.222 dessa
legislação, cuja leitura indica haver sido o texto redigido "com o fim de garantir a
paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do
cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a
circulação, a difusão ou a representação".
1
Era, enfim, o DIP um órgão cujo alcance tentacular deixava entrever a
tendência centralizadora do novo regime. A medida de sua importância estratégica
para o governo está expressa nas palavras a seguir destacadas, transcritas de
reportagem especial publicada no nº. 21 de Cultura Política:
Regime concebido num sentido de unidade perfeita [...], era da sua essência
fortalecer os laços dessa unidade, por meio de contatos diários, em todos os
planos de ação nacional. E nenhum veículo melhor que a propaganda
corresponderia a esse propósito, propaganda completa, pelo microfone, pelo
palco, pelo ecran, pela tribuna falada e pela escrita, com o fim de manter o país
em dia sobre a marcha dos acontecimentos internos e externos e convencer as
massas da necessidade das reformas operadas, entrelaçando os indivíduos com
1
CAPELATO, Maria Helena. "Propaganda política e controle dos meios de comunicação". In:
PANDOLFI, Dulce Chaves (Org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1999, p. 171.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
13
as instituições. Dessa compreensão foi que nasceu a idéia da criação de um
organismo destinado a centralizar a publicidade oficial do Estado.
A Renascença nacional, possibilitada pela Carta Política de 10 de Novembro,
[...] exigia uma transformação completa da engrenagem encarregada de fazer o
reclame e de promover a defesa do Brasil, dentro e fora do seu território. E foi o
que sucedeu criando-se o Departamento de Imprensa e Propaganda.
2
A direção de Cultura Política esteve até o final, em outubro de 1945, a
cargo de Almir Bonfim de Andrade, responsável também pela fundação da revista
em março de 1941, a convite do Diretor do DIP, Lourival Fontes. Formado em
direito e interessado em psicologia e filosofia, áreas em que exerceu atividades
profissionais e acadêmicas, Almir de Andrade é considerado um dos mais
influentes ideólogos do Estado Novo, juntamente com Francisco Campos,
intelectual e político que esteve à frente do Ministério da Justiça entre 1937 e
1942, e Azevedo Amaral.
3
Veículo por excelência da ampla política cultural planejada no âmbito
maior do projeto estado-novista, a escolha de Cultura Política como objeto desta
dissertação se justifica pelo fato de reunir em suas páginas um número expressivo
dos mais relevantes pensadores da época, nem todos necessariamente alinhados
com as diretrizes do novo regime.
De modo distinto do que foi feito na monografia, o foco aqui não está
dirigido à análise da relação autor/obra, mas sim à leitura de artigos de Cultura
Política com um propósito específico.
Minha hipótese geral de trabalho é que, em consonância com o projeto
coordenado pelo DIP, os intelectuais convidados a colaborar no periódico eram
parte integrante de um plano ambicioso e abrangente de governo cuja estratégia,
traduzida nas diretrizes formuladas para o setor cultural, afigurava-se como uma
operação voltada não exatamente para recuperar, mas para construir uma realidade
nacional -- tanto no passado, como no presente --, através da seleção e
combinação de elementos e episódios retratados nos relatos da história do Brasil.
O que estava em curso era a ruptura com uma ordem jurídico-institucional pré-
existente, ruptura esta que precisava ser explicada e justificada para adquirir
2
A imprensa e a propaganda no quinqüênio 1937-1942. Reportagem especial de Cultura Política.
Cultura Política. Ano II, nº. 21, 10 de novembro de 1942 , pp. 169 e 173.
3
Para um perfil mais detelhado de Almir de Andrade, cf. ABREU, Alzira Alves de, et al. (Coord.).
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, pós-1930. Ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro:
Editora FGV; CPDOC, 2001, v. 1, pp. 226-227.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
14
legitimidade. E as páginas de Cultura Política foram postas à disposição da
linguagem, do discurso, que serviria de instrumento a esta legitimação.
Tendo-se em mãos material tão rico quanto o contido em Cultura Política,
a tentação de escrever o trabalho a partir de uma leitura cuidadosa de todos os
artigos publicados ao longo de seus quase cinco anos de existência foi grande.
Para compatibilizar a pesquisa com os prazos institucionais, contudo, foi preciso
fazer um recorte -- e bastante radical. Assim sendo, em meio ao universo de
assuntos tratados na revista, minha proposta é desenvolver a pesquisa a partir do
exame de artigos que tratem mais diretamente do conceito de democracia.
Uma triagem no índice dos exemplares da revista revelou a existência de
vinte artigos nos quais a expressão "democracia" aparece mencionada no próprio
título. Em razão das limitações expostas, a pesquisa está concentrada,
prioritariamente, na análise destes textos. Sempre que possível, contudo, procuro
ampliá-la para incluir outros artigos que, apesar de não ostentarem a palavra
"democracia" no título, contêm referências e contribuições de extrema relevância
para o estudo proposto.
O objetivo mais imediato desta abordagem -- dentro da hipótese geral
delineada acima -- é procurar determinar de que maneira o tema está sendo
discutido pelos teóricos do autoritarismo com vistas a construir uma determinada
concepção desta forma de governo, apresentada como a "verdadeira" ou
"autêntica" democracia em oposição à democracia representativa liberal. A
recorrência com que o significado da palavra é objeto de disputa nas páginas da
revista é o que me leva a explorar a hipótese de que a re-significação do conceito
é a questão central e o fio condutor que orienta a escrita dos artigos publicados em
suas diversas seções -- ainda que em muitos dos artigos o tema seja apenas
tangenciado, ou mesmo apareça de forma subliminar.
Quais autores e quais conceitos de democracia estão sendo mobilizados
para fundamentar e justificar a tentativa de atribuir-lhe novo significado, em
sintonia com os objetivos a que se propõe o regime estabelecido pela Constituição
de 1937? Que elementos e episódios da história do país são selecionados para se
demonstrar que tudo o que ocorreu ao longo da trajetória política, econômica e
social brasileira já apontava para a necessidade do desfecho que levou à
Revolução de 1930 e ao golpe de 10 de novembro, com a consequente instauração
de uma "democracia autoritária" -- para usar uma das expressões empregadas para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
15
qualificar a nova ordem? Afinal, sendo a democracia portadora de múltiplos
sentidos, de qual democracia se está falando?
É neste sentido que a pesquisa tem como eixo a investigação do conceito
de democracia nas ginas de Cultura Política. Ela segue os passos de outros
trabalhos produzidos sobre a revista, alguns dos quais destaco e comento
brevemente a seguir, procurando indicar os pontos em que se aproximam ou se
diferenciam da abordagem aqui sugerida.
Inicio com História e historiadores, de Ângela de Castro Gomes
4
. Nesta
obra, elaborada com a finalidade de concorrer à cadeira de titular em história do
Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF), a proposta da autora é
trabalhar com historiadores e com a história da História do Brasil, abrangendo a
Era Vargas e, em especial, o período do Estado Novo. Entre as fontes por ela
selecionadas para realizar este exercício historiográfico está, justamente, a revista
Cultura Política, à qual se refere como "a voz oficial da proposta estado-
novista"
5
. Uma das principais características da orientação editorial da revista,
sublinha, consistia em publicar não somente artigos que se ocupassem de questões
políticas, sociais e econômicas de relevo, mas também ensaios que retratassem
aspectos culturais e históricos do país, produzindo assim "um discurso integrado e
voltado para o objetivo direto da publicação: a propaganda do regime"
6
. Com o
intuito de discutir a política cultural do Estado Novo, Ângela direciona o foco de
seu interesse em Cultura Política, tema dos capítulos 4 e 5 do livro, para a seção
"Brasil social, intelectual e artístico". Uma das poucas a resistir por mais tempo às
seguidas reestruturações que a revista sofreu ao longo de sua curta existência,
ainda que incorporando várias alterações, a seção é apontada por ela como "alvo
por excelência" de sua análise, por traduzir "a importância e o sentido do
investimento que o Estado Novo realizava"
7
. Na base de sua escolha está o fato de
"Brasil social, intelectual e artístico" abrigar um leque bastante diversificado de
autores, em grande parte, na avaliação da autora, sem maior expressão no meio
intelectual. Pensar sobre o "lugar da história" no discurso estado-novista e
indagar qual história do Brasil estava sendo reescrita, naquele momento
4
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1999.
5
Ibid., p. 127.
6
Ibid., p. 131.
7
Ibid., p. 132.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
16
específico, "para um público de elite, mas não circunscrito aos círculos da
educação formal"
8
são, nas palavras de Ângela de Castro Gomes, as coordenadas
que norteiam, em História e historiadores, sua reflexão sobre o material que
ilustra as páginas da revista.
Cultura Política havia sido objeto de análise pela autora em artigo
intitulado "O redescobrimento do Brasil", publicado originalmente em Estado
Novo: ideologia e poder
9
. O artigo, em versão revista, transformou-se
posteriormente em capítulo de A invenção do trabalhismo
10
, tese de doutoramento
defendida por Ângela em junho de 1987 junto ao Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Nesta obra, a indagação mais geral que
orienta sua reflexão diz respeito à maneira como o Brasil definiu seu conceito de
cidadania e sua experiência de democracia. Por acreditar que a questão da
cidadania está estreitamente vinculada à questão dos direitos sociais, Ângela
elege, como fio condutor de sua pesquisa, estudar o processo de constituição de
uma classe trabalhadora como parte da construção do conceito de cidadania no
Brasil, e analisar as condições que permitiram a essa classe aflorar como
protagonista central no cenário político brasileiro. Com este objetivo, conduz a
análise dividindo-a em dois tempos. O primeiro, que tem como marco inicial a
Proclamação da República, estende-se até a promulgação da Constituição de
1934. O segundo focaliza o período que vai de 1942 a 1945. É nesta segunda parte
que se insere "O redescobrimento do Brasil", capítulo no qual ela discute o
conteúdo do discurso político oficial produzido naqueles primeiros anos da década
de 1940, elegendo como fonte de sua investigação a revista Cultura Política. No
capítulo, Ângela opta por trabalhar com artigos da revista centrados em torno do
projeto político estado-novista, para procurar entender o que é a democracia do
Estado Novo e em que sentido ela é apresentada como revolucionária.
11
Os
construtores da nova ordem precisavam, segundo ela, de "uma nova palavra ou de
8
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. op. cit., pp. 133-134.
9
Idem. "O redescobrimento do Brasil". In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica
Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1982, pp. 109-150.
10
Idem. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A invenção do
trabalhismo. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, pp. 189-210 (todas as referências e
citações a "O redescobrimento do Brasil", daqui por diante, tomarão por base esta edição.)
11
Ibid. Cf. pp. 190-191.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
17
uma palavra antiga com um novo significado para definir sua experiência" e a
expressão que escolheram para traduzí-la foi "democracia social."
12
A linha de pesquisa da presente dissertação segue, em boa medida, o
caminho trilhado por Ângela de Castro Gomes em "O redescobrimento do Brasil"
e, por método diferente de trabalho, chega a conclusões análogas. Ao estudar,
nesse capítulo de sua tese, o conceito de democracia do Estado Novo, Ângela o
faz com o propósito de analisar, no contexto mais amplo de sua investigação sobre
o tema do trabalhismo, em que medida o novo conteúdo do termo teria
influenciado a organização do "povo" em um "corpo político hierarquizado pelo
trabalho", com a consequente transformação do trabalhador em "novo ator social
e cidadão de uma nova espécie de democracia".
13
No trabalho de Ângela,
portanto, a reflexão sobre o novo significado do conceito é uma etapa de um
projeto bem mais abrangente de pesquisa. Na presente dissertação, ao contrário,
esta re-significação constitui o núcleo da pesquisa, razão pela qual procurei, à luz
da metodologia desenvolvida pela história conceitual alemã, expandir a análise e
concentrar o esforço no exame mais pormenorizado da construção do conceito de
democracia conforme proposta pelos articulistas de Cultura Política.
O artigo de Mônica Pimenta Velloso, "Cultura e poder político: uma
configuração do campo intelectual"
14
, representa mais uma relevante contribuição
às pesquisas sobre Cultura Política. O objetivo da autora é estudar a divisão do
trabalho intelectual dentro do projeto político concebido pelos idealizadores da
nova ordem estabelecida com o golpe de 1937. Nesta direção, Mônica parte da
análise de duas publicações veiculadas no período do Estado Novo, as revistas
Cultura Política e Ciência Política, para refletir sobre como, no interior do
projeto ideológico estado-novista, o discurso político se configura como proposta
de ação. Através da sistematização dos dados computados sobre os dois
periódicos, a autora mostra que, embora expressando-se em linguagens com
diferentes níveis de sofisticação e tendo como destinatários de suas respectivas
mensagens atores sociais de estratos distintos, os dois discursos são
complementares, na medida em que fazem parte de uma mesma totalidade
12
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
invenção do trabalhismo, op. cit. p. 198.
13
Ibid., p. 209.
14
VELLOSO, nica Pimenta. "Cultura e poder político: uma configuração do campo
intelectual". In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi, et al. Estado Novo: ideologia e poder, op. cit., pp. 71-
108.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
18
estratégica. No seu entender, Cultura Política, com seu discurso
predominantemente "político-teórico", pode ser classificada como o veículo que
mais fielmente retrata o perfil ideológico da época, razão pela qual refere-se à
publicação como "revista por excelência" e "matriz ideológica" do regime.
15
A
autora percebe a dimensão ideológica como elemento central desse projeto
político e o jogo discursivo nele inserido como uma tentativa de consolidar
uma nova concepção de mundo que busca "reativar as representações destinadas
a legitimar a nova distribuição de poderes".
16
Mônica seleciona Cultura Política
como referencial para identificar os temas que estruturam o projeto ideológico do
Estado Novo e sugere que toda a temática que permeia o discurso pode ser
referida a um mesmo núcleo, "a 'nova concepção de cultura', que se apresenta
como integrada ao político".
17
Dentro desta ótica, sua abordagem privilegia os
temas da recuperação do passado, da construção do mito Vargas, da relação entre
consenso e força na nova ordem, e da nova concepção de política -- aspecto que
envolve a questão da "cultura política" e do novo homem, em particular o novo
intelectual.
18
Referência essencial para o estudioso de Cultura Política é também o
artigo de Marcus Figueiredo intitulado "Cultura Política: revista teórica do Estado
Novo"
19
, no qual ele analisa a estrutura da revista e apresenta um levantamento
bibliográfico, sob a forma de resumos comentados, dos artigos que, a seu ver,
representam contribuição relevante para a formação do pensamento político do
Estado Novo. Avalia o autor que os artigos veiculados no periódico constituem
objeto imprescindível de pesquisa para a correta compreensão do pensamento
político da era Vargas, uma vez que ali estão explicitados os princípios
doutrinários que buscavam dar sustentação teórica ao novo regime.
Outro estudo importante sobre Cultura Política pode ser encontrado em
Literatura em revista
20
, livro de Raúl Antelo cujo primeiro capítulo é dedicado a
uma análise bastante detalhada do periódico. Na avaliação do autor, a revista foi
15
VELLOSO, nica Pimenta. "Cultura e poder político: uma configuração do campo
intelectual". In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi, et al. Estado Novo: ideologia e poder, op. cit. Cf. pp.
100, 101, 103 e 104.
16
Ibid., p. 72.
17
Ibid., p. 82.
18
Ibid., loc. cit.
19
FIGUEIREDO, Marcus. Cultura Política: revista teórica do Estado Novo. Dados, . 4,
novembro de 1968, pp.221-246.
20
ANTELO, Raúl. Literatura em revista. São Paulo: Editora Ática, 1984.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
19
"o grande empreendimento editorial do DIP"
21
. O projeto teria sido inspirado em
experiência anterior, a da revista Hierarquia, conseguindo superá-la em muito.
Com apenas cinco números, publicados por Lourival Fontes entre agosto de 1931
e março/abril de 1932, Hierquia, por sua vez, espelhava-se em uma publicação da
Itália fascista, Gerarchia. Existia ainda, nessa mesma linha, informa Antelo, a
revista Jerarquia, periódico da imprensa franquista. Discorre também o autor
sobre a gênese da revista Atlântico, publicada a partir de 1942, fruto de uma
espécie de intercâmbio cultural entre o DIP brasileiro e o SNP (Secretariado
Nacional de Propaganda) do governo português de Salazar, igualmente de curta
duração: apenas sete edições
22
. Embora teça comentários sobre a revista como um
todo, sua abordagem de Cultura Política, a exemplo do que faz Ângela de Castro
Gomes em História e historiadores, prioriza os autores que escrevem na seção
literária da revista, "Brasil social, intelectual e artístico". O autor examina o
panorama político pela ótica da crítica literária, procurando mostrar o vínculo
entre história literária e idéias. Fala de como, no processo de legitimação do
regime em que estavam empenhados, os articulistas viam a literatura como reflexo
da sociedade, e observa como as formas literárias dependem da hegemonia
política de cada momento. Após uma seção introdutória, em que percorre o
contexto no qual a revista se insere e faz comentários sobre sua estrutura, Antelo
destaca algumas das posições expressas por colaboradores do periódico, entre eles
Almir de Andrade, Cassiano Ricardo, Nelson Werneck Sodré, Rosário Fusco,
Guerreiro Ramos e Basílio de Magalhães. E interpreta que, no caso de Cultura
Política, o discurso de legitimação se equilibra entre dois extremos: um "mais
sofisticado, onde não raro se recrutam figuras de inequívoca extração elitista e
liberal", e outro "simplificador, em que militam elementos intelectuais do
Exército". E exemplifica com dois nomes: "Rosário Fusco e o Coronel J.B.
Magalhães".
23
Após essa parte inicial, o autor analisa mais detidamente os artigos escritos
por dois dos colaboradores da seção de Cultura Política na qual está concentrada
sua pesquisa, dissecando sua complicada relação com o "Estado que concede e
21
ANTELO, Raúl. "Cultura Política". In: Literatura em revista, op. cit., p. 8.
22
Ibid. Cf. pp. 9-10.
23
Ibid., p. 16.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
20
tolhe"
24
: Graciliano Ramos e Marques Rebelo. Feito este exercício, conclui com a
seguinte ponderação:
Se, como vimos analisando, os trabalhos de Rebelo e de Graciliano afinam num
mesmo diapasão de mímese e crítica, cabe também pensá-los no horizonte
ideológico que o Estado de compromisso é capaz de aglutinar. Haveria, assim,
de um lado, setores esclarecidos, reivindicando transformações democráticas
modernizantes. É o caso de São Bernardo. De outro, parcelas conservadoras
mais boêmias ou menos sutis. É o caso de Três caminhos..., contos pouco triviais.
Um e outro polarizam um espectro literário no Brasil de 30. Tal foi o sentido do
pacto getulista.
25
As considerações de Raúl Antelo sobre Cultura Política em Literatura em
revista estão, acredito, mais direcionadas para a análise da relação entre os
intelectuais e o Estado.
"Os autores e suas idéias: um estudo sobre a elite intelectual e o discurso
político do Estado Novo", de Adriano Nervo Codato e Walter Guandalini Jr.
26
,
vem somar-se aos trabalhos comentados sobre Cultura Política. Os autores
conduzem a análise da revista sob um duplo enfoque, que o próprio título do
artigo deixa entrever. Por um lado, propõem-se a repensar o discurso sobre a
organização política do Estado Novo a partir do exame de 124 artigos, produzidos
por 73 autores, selecionados nas diversas edições de Cultura Política, procurando
identificar as principais linhas de argumentação do pensamento político
autoritário que transparecem nos textos. Por outro, seu objetivo é traçar o perfil da
elite intelectual que constitui o corpo de colaboradores do periódico e entender a
relação entre autores e respectivas idéias. Assinalam que a revista foi um agente
importante na sistematização do discurso ideológico estado-novista, na medida em
que seus articulistas, para fundamentar a exposição da doutrina, mobilizavam não
apenas textos clássicos do pensamento político, mas também as idéias defendidas
pelos mais destacados representantes da vertente autoritária nacional. De especial
relevo é a conclusão de Codato e Guandalini de que, do universo pesquisado, um
índice superior a 80% dos autores que escrevem sobre política na revista mantêm
alguma forma de vínculo com a burocracia estatal, sendo de sua lavra
aproximadamente 85% das matérias que abordam o tema. Grande parte da
24
ANTELO, Raúl. "Cultura Política". In: Literatura em revista, op. cit., p. 88.
25
Ibid., loc. cit.
26
CODATO, Adriano Nervo; GUANDALINI Jr., Walter. Os autores e suas idéias: um estudo
sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo. Estudos Históricos, nº. 32, 2003, pp.
145-164.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
21
ideologia política do regime apresentada em Cultura Política é, portanto,
sublinham, formulada pela própria burocracia do Estado Novo
27
. São "Homens de
Estado que expressam uma 'razão de Estado'."
28
O fato de as questões políticas
serem tratadas quase que exclusivamente por uma elite intelectual que se
confunde com a elite burocrática configura, a seu ver, a baixa autonomia
ideológica desses intelectuais em relação ao aparelho do Estado, o que, no
entanto, não impede que a ideologia assim formulada produza seus efeitos.
Em Cultura Política e o Pensamento Autoritário, livro editado pela
Câmara dos Deputados, encontra-se mais um estudo sobre a revista. Trata-se,
desta vez, de ensaio elaborado por Ricardo Veléz Rodriguez
29
a título de
introdução à obra. No intuito de propiciar uma visão abrangente de Cultura
Política, o livro reúne, sob a forma de antologia, vários de seus artigos. Além de
textos que contêm matérias de teor mais doutrinário, merecem destaque artigos
que abordam as realizações do Estado Novo, o pensamento político de seu líder, o
nacionalismo, o desenvolvimento, a questão social, bem como o tema das relações
entre cultura, política e educação. Na parte final do livro estão reproduzidos
importantes documentos divulgados pelo periódico, que refletem a posição de
Getúlio Vargas a respeito do processo de redemocratização em 1945. Logo no
início de seu ensaio, Rodriguez relaciona os nomes de vários dos colaboradores da
publicação com o objetivo de mostrar não ser a intenção dos organizadores da
revista fazer prevalecer uma determinada linha de pensamento, mas sim
apresentar Cultura Política como local para o debate de idéias das mais diversas
procedências, respeitada a opção autoritária sica. O autor trabalha com a
hipótese de que Cultura Política era um fórum destinado à obtenção do consenso
político "num esforço que levasse em consideração as diferentes correntes
autoritárias suscetíveis de serem cooptadas pelo Estado Novo."
30
Procura
determinar, também, qual a medida da importância das idéias corporativistas no
conjunto da revista e no contexto maior do Estado Novo, uma vez que a
Constituição de 1937 previa a "organização corporativista da economia, com
27
CODATO, Adriano Nervo; GUANDALINI Jr., Walter. Os autores e suas idéias: um estudo
sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo, op. cit. Cf. p. 150.
28
Ibid., p. 157.
29
RODRIGUEZ, Ricardo Veléz. "Introdução". In: Cultura Política e o pensamento autoritário.
Brasília: Câmara dos Deputados: Centro de Documentação e Informação: Coordenação de
Publicações, 1983, pp. 11-22. (Biblioteca do Pensamento Político Republicano, 21).
30
Ibid., p. 16.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
22
reflexos na própria estrutura política do país"
31
. Constata serem poucos os artigos
efetivamente dedicados ao tema do corporativismo, cujo número é em muito
excedido pelos que discutem a necessidade de implantar um Executivo forte e
centralizador com vistas a impulsionar o desenvolvimento econômico do país.
Acredita que este fato refletiria a opção do próprio Vargas pelo estatismo
modernizador em detrimento da organização corporativista da economia proposta
por Francisco Campos. Ricardo Veléz Rodriguez é mais um autor a ecoar o ponto
de vista de que Cultura Política foi o principal órgão teórico do Estado Novo.
Finalizando esta apresentação, algumas palavras sobre a escolha do título.
Para o tulo do trabalho, A democracia através do espelho, busquei
inspiração em um clássico da literatura inglesa, Através do espelho e o que Alice
encontrou
32
, de Lewis Carroll (1832-1898). Nela, o escritor inglês, também
autor do mais conhecido Alice no país das maravilhas, ao levar a personagem a
atravessar um espelho e deparar-se com um lugar em que tudo parece estar ao
contrário, de cabeça para baixo e de trás para diante, brinca com a noção de
inversão e distorção do mundo tal qual o conhecemos. Ao passar para o outro
lado, um dos primeiros comentários de Alice é que "Agora, os livros são mais ou
menos como os nossos, só que as palavras estão ao contrário."
33
O que me leva a tomar de empréstimo esta brincadeira de Lewis Carroll
para dar título a um trabalho que se pretende sério é justamente a questão da
imagem especular, reflexiva. O mundo do espelho, por ele criado no livro e para o
qual Alice se vê transportada, embora tendo sua base assentada na realidade
parece, ao mesmo tempo, não ter compromisso com ela, ou até por vezes
desconectar-se dela, fazendo com que os personagens se sintam livres para
associar qualquer significado a qualquer palavra ou expressão, segundo a sua
conveniência, atribuindo-lhes sentidos inusitados e inesperados.
A proposta de Cultura Política, expressa por Almir de Andrade logo no
primeiro número da revista, como veremos adiante, é exatamente apresentar-se
como um "espelho" da nação. E é nesse espelho que vamos encontrar refletido
um conceito de democracia meio "às avessas", quiçá um tanto inusitado e
31
RODRIGUEZ, Ricardo Veléz. "Introdução". In: Cultura Política e o pensamento autoritário,
op. cit., p. 17.
32
CARROLL, Lewis. "Através do espelho e o que Alice encontrou lá". In: CARROLL, Lewis.
Alice: edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
33
Ibid., p. 137.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
23
inesperado, construído por uma intelligentzia à época empenhada em dar respaldo
intelectual às doutrinas que orientavam a ação do Estado Nacional.
Através das ginas da "revista-espelho", vamos acompanhar o
desenvolvimento do raciocínio e dos argumentos empregados por esses
intelectuais em sua tentativa de dar o nome de "democracia" àquela forma
peculiar de regime que então se delineava.
Na parte da dissertação que trata mais especificamente do conceito de
democracia, procuro me orientar, primordialmente, pelos parâmetros da história
conceitual conforme definida pelo historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-
2006), que dedicou grande parte de sua atividade intelectual à reflexão teórico-
metodológica sobre a história dos conceitos (Begriffsgeschichte) e sua relação
com outras áreas do conhecimento histórico.
1.2.
Sobre a História dos Conceitos
O historiador alemão Reinhart Koselleck, juntamente com Otto Brunner,
professor de História em Hamburgo, e Werner Conze, professor na Universidade
de Heidelberg, foi o idealizador de um projeto de extrema relevância que resultou
na edição da mais importante obra de referência da escola conceitual alemã, o
dicionário de história dos conceitos Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches
Lexikon zur politisch-sozialer Sprache in Deutschland.
34
O pressuposto básico
que orientou a elaboração do dicionário, nas palavras de Melvin Richter, professor
emérito de Ciência Política da City University of New York, é que é possível
"mapear sincronicamente os conceitos-chave que abrangem o vocabulário
político e social de uma sociedade complexa em uma época de mudanças
aceleradas em suas estruturas."
35
Na avaliação de Richter, da análise destes
conceitos -- quer permaneçam relativamente inalterados, apresentem mudanças
significativas, ou estejam sendo introduzidos pela primeira vez -- é possível
34
Para uma exposição detalhada sobre o dicionário e sobre a história dos conceitos, consultar:
JASMIN, Marcelo G.; FERES Jr., João (Org.). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio
de Janeiro: Editora PUC-Rio: Edições Loyola; IUPERJ, 2006.
35
RICHTER, Melvin. The history of political and social concepts: a critical introduction. New
York: Oxford University Press, 1995, pp. 138-139 [tradução minha].
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
24
extrair conclusões sobre as características globais destes "domínios especializados
da linguagem".
36
Na introdução à edição em inglês da obra de Koselleck Vergangene
Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, que recebeu, na versão, o título de
Futures Past. On the semantics of historical time, Keith Tribe pondera que a
história dos conceitos (Begriffsgeschichte) é antes um procedimento do que
propriamente um método. Seu objetivo não é ser um fim em si mesma, avalia ele,
mas sim enfatizar "a importância da análise do discurso para a prática da
história social e econômica".
37
Koselleck, que se refere à análise de discursos como "um modismo
extremamente rico e importante"
38
, aproxima-se, contudo, de posição defendida
pelo historiador norte-americano Robert Darnton, ao afirmar que considera
teoricamente errônea toda postura que reduz a história a um fenômeno de
linguagem, como se a ngua viesse a se constituir na última instância da
experiência histórica. Se assumíssemos semelhante postura, teríamos que admitir
que o trabalho do historiador se localiza no puro campo da hermenêutica.
39
Todo evento que ocorre em uma sociedade, nas suas diversas
manifestações, tem em sua base uma teia de comunicações pré-existentes ao
próprio evento, bem como um trabalho de mediação linguística, afirma Koselleck.
Isto se aplica tanto às pequenas instituições e organizações, quanto a organismos
mais complexos como a ONU, que dependem deste trabalho de comunicação e
mediação, oral ou escrito.
Contudo, adverte ele, "Aquilo que realmente ocorre é, obviamente, mais
do que a articulação linguística que conduziu ao evento ou que o interpreta".
40
Neste sentido, existirá sempre uma diferença entre a história concreta, como ela
acontece, e a sua mediação linguística. Portanto, conclui, "Uma história não
36
RICHTER, Melvin. The history of political and social concepts: a critical introduction, op. cit.,
p. 139.
37
TRIBE, Keith. "Translator´s Introduction". In: KOSELLECK, Reinhart. Futures Past. On the
semantics of historical time. Cambridge, Massachussetts: The MIT Press, 1985, p. xiii [tradução
minha].
38
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n°. 10, 1992, p. 136.
39
Ibid., p. 136. (Sobre esta observação de Darnton, ver nota 182, na p. 80).
40
KOSELLECK, Reinhart. "Social history and conceptual history". In: KOSELLECK, R. The
practice of conceptual history: timing history, spacing concepts. Stanford: Stanford University
Press, 2002, p. 24 [tradução minha].
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
25
acontece sem o discurso, mas não é jamais idêntica a ele, não pode ser reduzida
a ele."
41
A relação entre uma "sociedade" e seus "conceitos" é, na visão de
Koselleck, sempre necessariamente tensa pois, se é um fato que sem conceitos não
existe sociedade e, sobretudo, não existe um campo de ação política, por outro
lado também é verdade que os conceitos estão baseados em sistemas político-
sociais infinitamente mais complexos do que poderia parecer se tratados como
simples comunidades linguísticas organizadas em torno de conceitos-chave
específicos.
42
A partir destas constatações, Koselleck aponta uma característica essencial
da história dos conceitos, que diz respeito ao fato de que o conceito sofre
alterações ao longo do tempo. Neste sentido, o autor introduz uma tese -- que
causou polêmica e lhe rendeu críticas -- acerca do caráter único e particular de
cada conceito: "todo conceito pode enquanto tal ser pensado e
falado/expressado uma única vez."
43
Os críticos desta tese argumentam que ela inviabilizaria não só a escrita da
história enquanto diacronia, mas também a própria validade de uma história dos
conceitos. Ao que Koselleck contra-argumenta afirmando que, se o uso
pragmático da língua é sempre único e irrepetível (o conteúdo de uma conversa, o
texto de uma carta), o entendimento do que está sendo dito se torna possível se
houver um mínimo de consenso acerca do significado das palavras que estão
sendo usadas. O consenso é alcançado através de uma semântica que pré-existe a
este uso pragmático, sendo a semântica definida como a possibilidade da
repetição. Isto, para Koselleck, é a prova de que a diacronia está contida na
sincronia:
Devemos partir teoricamente da possibilidade de que em cada uso pragmático da
linguagem (Sprachpragmatik), que é sempre sincrônico, e relativo a uma
situação específica, esteja também contida uma diacronia.
Toda sincronia contém sempre uma diacronia presente na semântica, indicando
temporalidades diversas que não posso alterar. E aqui situa-se o ponto que pode
sustentar minha defesa de uma história dos conceitos: ela pode ser escrita, posto
41
KOSELLECK, Reinhart. "Social history and conceptual history". In: KOSELLECK, R. The
practice of conceptual history: timing history, spacing concepts, op. cit., p. 25.
42
Idem. "História dos conceitos e história social". In: KOSELLECK, R. Futuro Passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
Cf. p. 98.
43
Idem. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos, op. cit., p. 138.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
26
que em cada utilização específica [...] de um conceito, estão contidas as forças
diacrônicas sobre as quais eu não tenho nenhum poder e que se expressam pela
semântica.
44
São estas forças diacrônicas que possibilitam que o significado de um
conceito possa conter em si elementos de experiências passadas, da realidade
presente, e expectativas em relação ao futuro, o que faz com que os conceitos
tenham uma estrutura temporal bastante complexa.
Estes dois procedimentos históricos, sincronia e diacronia, segundo
Koselleck, possuem vantagens e desvantagens que são complementares entre si.
De maneira geral, os historiadores trabalham alternando as duas perspectivas,
dando preferência à sincronia quando descrevem as circunstâncias, e à diacronia
quando narram as suas transformações
45
.
O historiador procede diacronicamente quando procura explicar um
evento, ou seu contexto, seguindo o fio de uma corrente causal. Este método,
contudo, pondera Koselleck, não é suficiente, tendo em vista que, embora toda
história possua estruturas formais passíveis de recorrência e repetição, aquilo que
é novo em cada história não é perceptível a partir de uma explicação causal. Isto
porque toda explicação causal pressupõe que seja possível deduzir um fenômeno
de outro, ainda que sejam dissimilares, estabelecendo assim uma relação que não
necessariamente precisa estar contida no fenômeno a ser explicado.
Consequentemente, se se deseja compreender um evento histórico em sua
singularidade, se pode atribuir à corrente de causalidade um papel subsidiário
na investigação. É preciso, portanto, explica Koselleck, proceder tanto de forma
sincrônica quanto diacrônica: "que se fundamente não apenas post eventum [após
o fato acontecido], mas que se mostre também in eventu [no acontecer] o que
aconteceu, e como aconteceu".
46
Esta alternância entre análise sincrônica e diacrônica reflete, na avaliação
de Koselleck, uma das vantagens da Begriffsgeschichte, uma vez que torna
possível demonstrar não a persistência de experiências passadas, como também
a viabilidade de teorias passadas, através da análise das múltiplas camadas de
significados atribuídos a um conceito ao longo de períodos cronologicamente
44
KOSELLECK, R. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos, op.cit., p. 141.
45
Idem. "Terror e sonho: anotações metodológicas para as experiências do tempo no Terceiro
Reich". In: KOSELLECK, R. Futuro Passado, op.cit. Cf. p. 260.
46
Ibid., p. 263.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
27
distintos. Neste sentido, acrescenta, a Begriffsgeschichte "ultrapassa a alternativa
estreita entre diacronia e sincronia, passando a remeter à possibilidade de
simultaneidade da o-simultaneidade."
47
É, portanto, precisamente esta
interrelação entre os eventos sincrônicos, em sua dimensão de atualidade, e as
estruturas diacrônicas, em sua dimensão temporal, que, na perspectiva do autor, é
passível de investigação histórica, dado que "in actu, todas as dimensões
temporais estão sempre entrelaçadas"
48
.
Para ilustrar seu ponto de que a diacronia es contida na sincronia,
Koselleck cita o exemplo do conceito de Koinonia politike formulado por
Aristóteles no contexto da realidade específica da polis grega, posteriormente
traduzido para o latim como societas civilis, dentro de uma realidade concreta -- a
romana -- completamente diversa:
A palavra pode permanecer a mesma (a tradução do conceito), no entanto o
conteúdo por ela designado altera-se substancialmente. O que portanto é uma
societas civilis depende do momento em que o termo é empregado, se no primeiro
ou quarto século depois de Cristo. Isto significa assumir sua variação temporal,
por isso mesmo histórica, donde seu caráter único articulado ao momento de sua
utilização.
49
Esta alteração do conceito no tempo remete a outro ponto central da teoria
de Koselleck, que vem a ser a distinção entre "palavra" e "conceito". Na
perspectiva do autor, cada conceito está associado a uma palavra, mas nem toda
palavra pode se transformar em conceito e ter uma história:
De forma [...] simplificada, podemos admitir que cada palavra remete-nos a um
sentido, que por sua vez indica um conteúdo. No entanto, nem todos os sentidos
atribuídos às palavras eu consideraria relevantes do ponto de vista da escrita de
uma história dos conceitos. Quando da [...] pesquisa [...] visando a produção do
Dicionário de conceitos, foram [...] selecionadas as palavras cujos sentidos
interessavam: a saber, conceitos para cuja formulação seria necessário um certo
nível de teorização e cujo entendimento é também reflexivo.
50
Outro aspecto que distingue o conceito em relação à palavra é a
ambiguidade de que aquele é, necessariamente, portador. Palavra e conceito são,
47
KOSELLECK, R. "História dos conceitos e história social". In: KOSELLECK, R. Futuro
Passado, op. cit., p. 115.
48
Idem. "Social history and conceptual history". In: KOSELLECK, R. The practice of conceptual
history, op. cit., p. 30.
49
Idem. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos, op. cit., p. 138.
50
Ibid., p. 135.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
28
por natureza, ambíguos. A palavra, contudo, pode através do uso perder esta
característica, enquanto que o conceito tem que permanecer ambíguo para ser um
conceito. Isto porque, nele, significante e significado precisam coincidir. Os
conceitos, ensina Koselleck,
são, portanto, vocábulos nos quais se concentra uma multiplicidade de
significados. O significado e o significante de uma palavra podem ser pensados
separadamente. No conceito, significado e significante coincidem na mesma
medida em que a multiplicidade da realidade e da experiência histórica se
agrega à capacidade de plurissignificação de uma palavra, de forma que seu
significado só possa ser conservado e compreendido por meio dessa mesma
palavra. Uma palavra contém possibilidades de significado, um conceito reúne
em si diferentes totalidades de sentido. Um conceito pode ser claro, mas deve ser
polissêmico.
51
Uma palavra, assim, transforma-se em conceito quando a totalidade de um
determinado contexto político-social -- em termos de significado e experiência --
no qual e para o qual uma palavra é empregada pode ser condensada em uma
determinada palavra.
Um conceito não deve ser considerado apenas na sua acepção de
fenômeno linguístico, mas deve também ser percebido como um indicativo de
fatos que transcendem os próprios limites da língua, sustenta o autor, que defende
a hipótese de que "todo conceito é sempre concomitantemente Fato (Faktor) e
Indicador (Indikator)".
52
Keith Tribe comenta, na citada introdução à edição inglesa de Futures
Past, que, ao elaborar o projeto para o dicionário de conceitos, Koselleck definiu
quais questões deveriam ser consideradas em relação a cada termo, como forma
de determinar sua inclusão ou não na obra. Em linhas gerais, as seguintes
perguntas se aplicavam: o conceito está em uso corrente? disputa em torno de
seu significado? Qual o alcance social de sua utilização? Em que contextos o
termo aparece? O termo em questão se articula com algum conceito que lhe seja
correspondente, seja para complementá-lo ou para se lhe opor? Quem usa o termo,
para qual propósito, e para se dirigir a quem? quanto tempo está em uso? Qual
a validade do termo dentro da estrutura do vocabulário social e político? A quais
51
KOSELLECK, R. "História dos conceitos e história social". In: KOSELLECK, R. Futuro
Passado, op. cit., p. 109.
52
Idem. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos, op. cit., p. 136.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
29
outros termos se sobrepõe, e convergência entre ele e outros termos ao longo
do tempo?
53
Esta cadeia de perguntas e respostas delimita o campo semântico dentro do
qual o conceito está incluído e se articula, e as mudanças no campo da semântica,
lembra Koselleck, se processam de forma muito mais lenta do que no campo do
uso pragmático da língua.
54
Os métodos utilizados pela Begriffsgeschichte, define Koselleck, provêm
das seguintes áreas: história da terminologia filosófica; gramática e filologia
históricas; semasiologia; e onomasiologia .
55
Se a Begriffsgeschichte tem como objetivo fazer descobertas relevantes
para a história -- social ou intelectual --, não pode limitar o estudo de um conceito
à investigação dos significados das palavras e de suas transformações, ou analisar
um fenômeno com base exclusivamente na expressão que o define.
Neste sentido, afirma Koselleck, a pesquisa não pode ser feita recorrendo-
se unicamente à semasiologia. É necessário alternar as abordagens semasiológica
isto é, investigar o sentido das palavras, partindo do significante (ou expressão
oral da língua), para estudar o significado (ou conceito); e onomasiológica -- que
percorre o caminho inverso: estuda as expressões de que se utiliza uma língua
para traduzir determinada noção, partindo do significado para estudar o
significante. Só assim torna-se possível captar e registrar a variada gama de
termos utilizados para designar realidades concretas idênticas, ou percebidas
como idênticas, e, desta forma, demonstrar como os conceitos são formados.
Para se dar tratamento histórico às palavras, expressões paralelas com as
quais possam se articular e entrelaçar devem também ser objeto de investigação,
assim como as correntes ideológicas que se cristalizaram em torno da expressão
estudada. Assim procedendo, é possível estabelecer se um determinado conceito
constitui um fator em, e um indicador da história com a qual se relaciona.
O campo semântico no qual se inscreve um determinado conceito,
portanto, tem de ser pesquisado e a conexão entre os termos que com ele
interagem precisa ser igualmente estabelecida. É preciso investigar os conceitos
que estejam em transformação e que se sobrepõem, interpretar as novas
53
TRIBE, Keith. "Translator´s introduction". In: KOSELLECK, R. Futures Past, op. cit. Cf. p. xii.
54
KOSELLECK, R. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos, op. cit. Cf. p. 141.
55
Idem. "História dos conceitos e história social". In: KOSELLECK, R. Futuro Passado, op. cit.
Cf. p. 97.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
30
construções, explicando porque uma expressão acrescentada à linguagem em um
determinado período não se manteve como um conceito central no período
seguinte. Koselleck entende que
Não é possível verificar o valor de um termo como "conceito" válido para o
complexo social ou para as confrontações políticas sem incluir os conceitos
paralelos ou contrários, sem se reportar a uma ou outra noção geral ou
particular e sem se registrar a intersecção entre as duas expressões.
56
Alternando o uso da semasiologia e da onomasiologia, a história dos
conceitos tem como alvo último a história concreta (Sachgeschichte), em suas
continuidades e permanências.
Com relação às fontes ou textos com os quais um pesquisador da história
dos conceitos deve trabalhar, existem, segundo Koselleck, três tipos. Em certa
medida, o significado das fontes utilizadas depende do tipo de pergunta que o
pesquisador escolhe fazer e da metodologia que opta por aplicar. Mas as fontes
possuem também uma estrutura temporal independente, que lhes é própria.
um primeiro tipo de fonte constituído, por exemplo, de jornais, cartas,
memoranda e palestras, que são únicos e cujo objetivo é o consumo instantâneo e
o uso imediato. Estes possuem uma única camada temporal. do segundo tipo
de fonte -- do qual são exemplos os dicionários e as enciclopédias -- pode-se dizer
que contém várias camadas temporais. Estas possibilitam a observação da
emergência gradual de novas camadas de significado, e proporcionam ainda a
oportunidade de se constatar a repetitividade da semântica. São textos que
gradualmente se adaptam às transformações da realidade Existe, ainda, um
terceiro tipo de fonte, na qual se incluem os chamados "textos clássicos", os quais
têm a pretensão de ser portadores de verdades eternas e valores permanentes,
mantendo-se inalterados.
57
Feita esta brevíssima e, portanto, necessariamente incompleta apresentação
panorâmica da história dos conceitos como pensada por Koselleck, resta dizer
qual o critério utilizado para desenvolver a pesquisa.
56
KOSELLECK, R. "História dos conceitos e história social". In: KOSELLECK, R. Futuro
Passado, op. cit., p. 113.
57
Idem. "Some reflections on the temporal structure of conceptual change". In: MELCHING, W.;
VELEMA, W. (Ed.). Main trends in cultural history: ten essays. Amsterdam: Rodopi , 1994,
pp.15-16.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
31
Como a proposta é trabalhar com uma fonte primária, a revista Cultura
Política, que por ser uma publicação periódica pode ser incluída na primeira
categoria de fontes relacionadas por Koselleck, a pesquisa foi conduzida a partir
da investigação da disputa que se estabelece em torno da redefinição do conteúdo
do conceito de democracia tendo sempre em mente o contexto sobre o qual os
textos da revista visavam atuar para transformar. Isto equivale a dizer que meu
esforço foi dirigido à análise da alteração do conteúdo do conceito tendo como
pano de fundo a realidade concreta, única e específica da consolidação da ordem
instituída pelo Estado Novo, ou seja, em sua dimensão sincrônica, mais do que
diacrônica. O que não significa excluir ou ignorar a dimensão diacrônica, posto
que, como sublinha Koselleck, esta está contida naquela.
E para tentar determinar a qual fenômeno o centro de gravidade do
conceito de democracia permanece associado, nesta tentativa específica de re-
significação, procuro analisar o campo semântico no qual se insere o conceito
recorrendo, principalmente, à semasiologia, ou seja, à investigação do significado
do termo a partir do estudo das palavras (ou significantes) que, no contexto ao
qual pertence Cultura Política, se entrelaçam para constituir tal conceito e
conferir-lhe o novo sentido.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
2.
Considerações iniciais
2.1.
Intelectuais e poder: uma relação delicada
Embora não constitua o núcleo da investigação proposta no presente
trabalho, o tema da complicada relação entre intelectuais e poder, em especial ao
longo dos anos em que vigorou o Estado Novo, período no qual se insere a revista
pesquisada, merece aqui uma abordagem, ainda que breve e sem a pretensão de
tratar o assunto em toda a sua complexidade, para melhor colocar em perspectiva
a maneira como a questão se reflete nas páginas de Cultura Política.
Raúl Antelo, em capítulo de Literatura em revista dedicado à análise da
colaboração de alguns intelectuais naquele periódico, transcreve o seguinte
depoimento dado por Joel Silveira ao jornal Folha de São Paulo, durante
entrevista realizada em 9 de janeiro de 1979:
[...] o DIP criou uma série de livros pequenos, tudo sobre Getúlio Vargas e o
Teatro, Vargas e o Cinema, Vargas e a Literatura. Pagavam um dinheirão, em
termos da época. Um pobre intelectual que ganhava, vamos dizer Cr$1.500 com
a edição de um romance, eles botavam Cr$10.000 no bolso dele para escrever
quarenta páginas sobre a coisa. Isso era um negócio terrível. Poucos resistiram.
-- Poderia citar alguns nomes?
-- Não é bom porque a maioria são meus amigos. A fraqueza humana é terrível.
Eu sei, por exemplo, que o Graciliano Ramos não resistiu. Osório Borba e
Carlos Drummond de Andrade também. Resistiram, particularmente, os
intelectuais de esquerda, o pessoal ligado ao Partido Comunista, por motivos
conhecidos, né?
58
No dia seguinte, 10 de janeiro, relata Antelo, o jornal publicou uma
correção do teor da entrevista. Na redação expurgada (palavras de Antelo) o
"não" que antecede o verbo "resistiu" é suprimido, e a frase aparece em nova
versão: "[...] Eu sei, por exemplo, que o Graciliano Ramos resistiu. O Osório
Borba e o Carlos Drummond de Andrade também [...]".
59
58
SILVEIRA, Joel. Depoimento à Folha de S. Paulo, 9 de janeiro de 1979. Apud ANTELO, Raúl.
"Cultura Política". In: ANTELO, R. Literatura em revista, op. cit., p. 9.
59
Ibid., p. 89, nota 8.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
33
Carlos Lacerda, em uma das passagens do livro Depoimento, faz uma
observação igualmente cáustica acerca da proximidade, tantas vezes perigosa,
entre intelectuais e poder que se desenvolveu na esteira da política cultural
idealizada pelo regime de exceção instituído em novembro de 1937. Discorrendo
sobre Lourival Fontes, por muitos anos a grande força motriz por trás do DIP, a
quem atribui a criação do "mito Vargas", Lacerda comenta:
No DIP, ele mobilizou toda a intelligentzia brasileira para escrever sobre o
Getúlio Vargas. Eu tenho aqui alguns panfletos [...] que são coisas [...] de deixar
a gente meio envergonhado a respeito da intelligentzia nacional. Porque os
sujeitos, em troca de uns dinheirinhos do DIP, escreviam assim: Getúlio Vargas e
as Crianças, A Infância Maravilhosa de Getúlio Vargas [...]. E esses folhetos
eram assinados [...] por homens como Gilberto Amado. Para dar um exemplo.
Poderia citar muitos exemplos. [...] Inúmeros outros. Nenhum deles percebia
bem o que estava fazendo.
60
Tudo indica que tanto a observação do jornalista e escritor Joel Silveira,
quanto a do jornalista e político Carlos Lacerda remetem à atitude de intelectuais
cujos nomes, a princípio, não se poderia incluir nas hostes dos que davam suporte
ao governo, como é o caso, por exemplo, de Graciliano Ramos e Carlos
Drummond de Andrade, citados por Silveira, ou de Gilberto Amado, a quem
Lacerda especificamente menciona.
Apesar da posição expressa pelo político carioca no sentido de que
nenhum dos personagens envolvidos "percebia bem o que estava fazendo", no
caso concreto dos autores que ilustram com seus ensaios as páginas de Cultura
Política talvez seja lícito inferir-se que boa parte não só sabia perfeitamente o que
estava fazendo, como alguns o faziam por convicção. Os comentários de Joel
Silveira e de Lacerda despertam curiosidade quando se lê, por exemplo, o que
escreve o redator da introdução a um artigo de Graciliano Ramos, veiculado no
segundo número da revista:
O sistema eleitoral da Primeira República criou, no interior do Brasil,
curiosos tipos de caudilhos. [...] Todo um grupo de interesses pessoais se
organizava em redor dessas figuras, que comandavam os negócios sociais. Cada
uma delas podia repetir a frase simbólica de Luís XIV: "L'État c'est moi". E era
mesmo. Depois de novembro de 1937, as coisas mudaram de rumo. Essas figuras
caíram, se apagaram, se dissolveram na onda revolucionária que introduziu
novos costumes e novos métodos de conduzir a vida regional. [...] E é a pena
60
LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 125.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
34
segura de um dos maiores romancistas do Brasil de hoje que nos vai pintar, em
poucas palavras, esse quadro tão familiar aos que conheceram o Nordeste
alguns anos atrás.
61
Em outras palavras, o que o autor da introdução está anunciando é que
Graciliano Ramos vai descrever como funcionava, ou melhor, como não
funcionava o sistema da democracia representativa no período que antecede a
instituição do Estado Nacional. Desta forma sugestionado, o leitor é levado a
perceber, no pequeno conto que se segue, precisamente este sentido. Graciliano
fala dos dissabores enfrentados por um governador que, decidido a viajar pelo
interior de seu Estado na tentativa de "endireitar os orçamentos municipais"
62
, vê-
se às voltas com as "mesmas lamúrias, os mesmos enredos, as mesmas pequenas
safadezas" que tanto o incomodavam quando atendia em seu próprio gabinete, na
capital. A história gira em torno da ascensão e queda de uma legítima
representante do "caudilhismo feminino" -- termo empregado pelo autor do texto
de introdução--, personificada na figura de D. Maria Amália, esposa de um
influente chefe político local. "Senhora terrível, sempre com um inimigo para
deitar abaixo e um amigo para colocar", como a definia o governador, a
personagem julgava-se no direito de exigir favores e privilégios para seus
eleitores e adotava, "por intermédio do marido, o negócio de vendas à vista, tanto
por voto".
Fica claro que o propósito da revista, ao publicar o conto de Graciliano, é
apresentar D. Maria Amália como mbolo do caos em que se encontrava o país
antes que o golpe deflagrado em novembro de 1937 viesse por cobro a essa
prática, identificada como um dos empecilhos ao funcionamento da verdadeira
democracia. A propaganda fica implícita. O trecho destacado a seguir parece
evidenciar esta intenção, inclusive pela menção que faz ao destino reservado, no
cenário político pós-1937, ao tipo de personagem sintetizado na figura de D.
Maria Amália, que passa a viver "descontente" com o desaparecimento de sua
influência. A idéia é associar o novo regime ao fim da atuação de castas
privilegiadas:
61
Introdução ao conto de Graciliano Ramos publicado, sem título, na seção "Quadros e Costumes
do Nordeste". Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril de 1941, p. 246. (Na edição em livro, publicada
em 1962, o conto recebeu o título de "D. Maria Amália").
62
RAMOS, Graciliano. Conto publicado, sem título, na seção "Quadros e Costumes do Nordeste".
Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril de 1942, p. 246.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
35
Essa figura antipática e exigente cresceu tanto que tomou para o governador as
proporções duma calamidade. D. Maria Amália tornou-se um símbolo. Foi a
representação da trapalhada econômica, social e política. [...]
E D. Maria Amália subia.
Depois desceu. Hoje é uma senhora grisalha, gorda, respeitável, com boas cores,
bom estômago, boa memória. E vive descontente.
63
O interessante, porém, é que este final, que consta na versão do conto
publicada em Cultura Política, é completamente diferente do final do mesmo
conto conforme aparece no livro Viventes das Alagoas, publicado postumamente
em 1962, no qual estão reunidas as crônicas de Graciliano Ramos veiculadas na
revista. Eis o final que aparece na versão do livro:
E D. Maria Amália crescia.
Hoje é uma senhora bem conservada, respeitável, com excelentes relações.
Algumas pessoas julgaram há tempo que ela ia morrer. Tolice. Morrer tão moça,
quando, como diz o poeta, este mundo é um paraíso!
Resistiu a todas as comissões de sindicância e está forte, gorda e bonita.
64
A leitura deste final indica que, ao contrário do que queria fazer crer o
discurso oficial, os problemas persistiam e personagens como D. Maria Amália,
longe de desaparecerem ou passarem a viver "descontentes", mantiveram sua
influência, sobrevivendo "a todas as comissões de sindicância". Resta saber qual
dos dois finais foi o originalmente escrito por Graciliano Ramos: o que aparece
em Cultura Política ou o do livro editado em 1962. Caso tenha sido este último,
isto seria um indicador de que os editores da revista teriam alterado o final com o
propósito exclusivo de criar uma imagem positiva do governo Vargas. Mas se foi
o da revista, pode significar que a versão publicada postumamente teria sido
modificada para apagar uma possível imagem negativa de Graciliano.
65
63
RAMOS, Graciliano. Conto publicado, sem título, na seção "Quadros e Costumes do Nordeste".
Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril de 1942, p. 247.
64
RAMOS, Graciliano. "D. Maria Amália". In: RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas:
quadros e costumes do Nordeste. 14ª. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1984, p. 31.
65
Tal investigação, porém, representaria um desvio em relação ao objetivo principal deste trabalho
que, infelizmente, as limitaçaões de tempo não me permitem fazer. Certamente devem existir
estudos publicados sobre este aspecto específico, pois trata-se de fato relevante para a pesquisa
sobre as diretrizes culturais do Estado Novo. Raúl Antelo, por exemplo, tangencia este ponto em
Literatura em revista, ao comentar que uma determinada passagem de um outro conto de
Graciliano Ramos que aparece na edição definitiva de Viventes das Alagoas, de 1962, foi omitida
na versão publicada em Cultura Política, frisando que esta "ausência" se torna mais significativa
que a presença. Antelo observa que o livro lançado em 1962 é uma versão não corrigida por
Graciliano, restando supor que os contos que o integram estejam baseados nos originais enviados
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
36
Esta flagrante discrepância entre as duas versões -- especialmente se a
publicada em 1962 tiver sido a original -- é sem dúvida elemento a ser
considerado no debate em torno da produção literária de Graciliano Ramos
durante o período em que esteve estreitamente ligado, por laços profissionais, ao
governo autoritário de Vargas. Seus muitos admiradores postulam jamais ter o
autor renunciado a produzir uma literatura de acentuado teor crítico, não havendo
em seus escritos quaisquer referências de caráter elogioso à pessoa de Getúlio
Vargas ou ao seu governo, muito embora tivesse sob sua responsabilidade a
revisão de textos e a redação de crônicas sobre os costumes do Nordeste para
Cultura Política.
O caso de Graciliano Ramos é emblemático. Preso em 1936, em pleno
governo Vargas, sob suspeita de ser comunista e estar envolvido em atividades
subversivas, passou quase um ano encarcerado sem que qualquer acusação formal
jamais tivesse sido apresentada contra ele. Parte da pena foi cumprida na
penitenciária de Ilha Grande. A experiência, como se sabe, transformou-se no
clássico Memórias do Cárcere, publicado postumamente em 1953. Em abril de
1941 foi recrutado por Almir de Andrade para integrar os quadros do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), onde produziria alguns textos
para a revista Atlântico, contemporânea de Cultura Política, e um total de 25
contos para esta última, publicados entre abril de 1941 e agosto de 1944. Segundo
informa Raúl Antelo, ao longo dos dois primeiros anos em que colaborou com o
periódico, a contribuição de Graciliano foi mensal, sendo que os primeiros 18
textos por ele elaborados foram publicados, sem tulo, em "Quadros e costumes
do Nordeste", uma das seções fixas de Cultura Política. Os demais textos
apareceram, já com título, na seção "Quadros e costumes regionais", que sucedeu
aquela após a reformulação da estrutura da revista. Sobre a participação do
escritor alagoano em Cultura Política, diz Antelo:
Graciliano Ramos [...], que começara escrevendo crônicas do Nordeste, ao que
parece, coagido pela delicada situação econômica que atravessava e tentado
pelos duzentos a quatrocentos cruzeiros com que se retribuía cada colaboração,
continuará na revista até 1943. Não escreverá crônicas apenas. Com a entrada
na guerra e as contradições internas ao Estado Novo, poucos são os intelectuais
de prestígio dispostos a escrever na revista. A maior parte deles eram técnicos e
pelo autor à revista Cultura Política. ANTELO, Raúl. "Cultura Política". In: ANTELO, R.
Literatura em revista, op. cit. Cf. p. 30.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
37
oficiais do Exército que não zelavam precisamente pela pureza do estilo. Pois
frequentemente o autor de Vidas Secas empreenderia também uma revisão
vigilante desses textos [...].
66
Também digno de nota é um artigo escrito para a revista por Gilberto
Freyre, a quem o diretor de Cultura Política, Almir de Andrade, se refere como
genuíno representante da "ala independente e realista da intelectualidade
brasileira" que vinha trabalhando no sentido de "ajustar-se às realidades de um
mundo novo, livre dos preconceitos e dos vícios intelectuais do passado"
67
. Vale
recuperar uma pequena parte da trajetória deste importante intelectual, para
melhor situá-lo no contexto de Cultura Política. Freyre, que deixara o Brasil em
exílio voluntário quando da vitória da Revolução de 1930 e da chegada de Vargas
ao poder, retorna ao país em 1933. Em 1935 foi convidado pelo então Ministro da
Educação, Gustavo Capanema, para ministrar uma cadeira de sociologia na
Faculdade de Direito do Recife. Outro convite, também em 1935, desta vez
partindo de Anísio Teixeira, o leva a lecionar na Universidade do Distrito Federal.
Ainda no mesmo ano, sofre um revés ao ser acusado de pertencer aos quadros da
Aliança Nacional Libertadora, frente de oposição ao Governo Vargas, em virtude
da reprodução de artigos seus por periódicos ligados à organização. Em 1937 foi
indicado para ocupar a função de consultor técnico do Patrimônio Nacional, cargo
que manteria até 1957. Após a deposição de Vargas em outubro de 1945, a
destacada atuação de Freyre no movimento pela redemocratização do país
permite-lhe lançar sua candidatura a deputado na Assembléia Nacional
Constituinte, tendo sido eleito em dezembro de 1945.
Em artigo veiculado no número 5 da revista
68
, na seção "O pensamento
político do Chefe do Governo", Gilberto Freyre discorre sobre o que reputa um
importante movimento ocorrido sob a administração de Getúlio Vargas em termos
de técnica de governo, no sentido de deslocar de uma perspectiva meramente
política para uma perspectiva social e econômica o foco central das ações
governamentais. O resultado almejado, a partir dessa mudança de foco, à qual o
autor se refere como "experimentação social", seria encontrar soluções inovadoras
66
ANTELO, Raúl. "Cultura Política". In: ANTELO, R. Literatura em revista, op. cit., p. 26.
67
ANDRADE, Almir de. Democracia social e econômica. Cultura Política. Ano I, nº. 6, agosto de
1941, p. 166.
68
FREYRE, Gilberto. A propósito do Presidente. Cultura Política. Ano I, nº. 5, julho de 1941, pp.
123-125.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
38
para os problemas do país, libertando-se da "rotina política e do estreito
ritualismo jurídico e financeiro que se comunicara do Segundo Império à
Primeira República"
69
. O fato de se imprimir ao governo uma orientação
sociológica era, na sua avaliação, por si suficiente para marcar o Estado
Nacional como o advento de uma nova era na história da administração pública
brasileira. E não se furtava em apontar Vargas como o arquiteto da nova
orientação, cujas idéias brotavam não de teorias abstratas, senão que da cuidadosa
observação dos fatos do Brasil real:
Nenhum bacharel menos bacharelesco do que o Presidente Getúlio Vargas
governou o Brasil. Nenhum inclinou-se tanto às soluções sociológicas e
econômicas dos problemas [...]. Nenhum mais lido naqueles escritores, antes
naturalistas do que retóricos, que desde Gabriel Soares de Souza nos põem em
contato com a terra do Brasil e com a gente nativa, mestiça ou adventícia das
vastas regiões: com as suas virtudes, seus alimentos, suas doenças, seus
problemas, suas necessidades, suas possibilidades, suas aspirações.
70
Mais importante, porém, para a relação entre intelectuais e Estado que está
aqui sendo analisada, é o elogio -- seguido de conveniente ressalva -- que faz
Gilberto Freyre a Getúlio Vargas em virtude de haver este se afastado do
"intelectualismo de sabor jurídico e ranço coimbrão" que se alastrara pelo país ao
longo do Segundo Império e da Primeira República:
Dele afastou-se, um tanto pela pressão das circunstâncias, mas muito, também,
pelas suas predisposições de homem de inteligência realista, o presidente Getúlio
Vargas. Justiça lhe seja feita; e, desta vez, por quem não se especializou nunca
em apologética; e está longe de ser um entusiasta absoluto dos métodos atuais de
governo e de administração.
71
[grifo meu]
Esta última frase, aliás, vem corroborar o que diz o redator da introdução
ao artigo de Freyre, ao chamar a atenção para a "autoridade intelectual de quem o
escreveu"
72
.
O que movia expoentes da literatura brasileira, como Graciliano Ramos e
Gilberto Freyre -- para citar apenas dois autores em tese não simpatizantes do
novo regime -- a escrever nas páginas de Cultura Política não é, certamente,
69
FREYRE, Gilberto. A propósito do Presidente, op. cit., p. 124.
70
Ibid., p. 125.
71
Ibid., loc. cit.
72
Texto de apresentação a FREYRE, Gilberto. A propósito do Presidente, op. cit. Cf. p. 123.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
39
pergunta que possa ser respondida no âmbito desta dissertação, pois as questões
envolvidas são inúmeras e requerem outro tipo de abordagem. Para uma pesquisa
em maior profundidade sobre a relação entre intelectuais e poder seria necessário
realizar extensa consulta aos excelentes trabalhos publicados sobre o tema e que
se tornaram referência nesta área de estudo.
No livro Os intelectuais e o poder, por exemplo, Norberto Bobbio alerta
para a inadequação de se falar sobre os intelectuais como se formassem uma
categoria homogênea, numa atitude que ele rotula de "falsa generalização"
73
. O
livro é referência essencial para quem se dispõe a estudar o assunto, na medida em
que o pensador político italiano, para além de suas próprias reflexões, fala de
obras que considera seminais para se estabelecer este tipo de debate. Dentre elas,
apresenta algumas que reputa entre as mais importantes e que, de modo
extremamente resumido e panorâmico, comento a seguir.
De Julien Benda destaca La trahison des clercs, escrito em 1927, que
apresenta como sendo uma polêmica sobre as relações entre cultura e vida política
e uma especulação sobre os deveres e a função do intelectual na sociedade. A
posição assumida por Benda, segundo Bobbio, é de que a missão dos intelectuais
é "defender e promover os valores supremos da civilização, que são
desinteressados e racionais". Percebe, portanto, qualquer movimento no sentido
de permitir que sua atividade se subordine "aos interesses contingentes e às
paixões irracionais da política" como uma "traição" desta missão.
74
Sobre a missão do "clerc" na ótica de Benda, a socióloga Helena Bomeny
acrescenta ser ela a de "protestar contra todos os rebaixamentos espirituais",
ainda que exigidos "em nome da pátria". Sua atuação, neste sentido, funcionaria
como elemento de "perturbação do Estado"
75
. Para manter nítida a fronteira que
separa o pensamento de sua apropriação para fins políticos, é necessário evitar
comprometer a independência e o distanciamento que devem marcar a atividade
intelectual, razão pela qual os "clercs" não se devem deixar atrair para a "arena
movediça da história".
76
73
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na
sociedade contemporânea. 2ª. reimpressão. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p. 9.
74
Ibid., p. 32.
75
BOMENY, Helena. "Infidelidades eletivas: intelectuais e política". In: BOMENY, Helena
(Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001, p. 12.
76
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
40
Bobbio aponta, também, Ideologia e Utopia, publicado em 1929 por Karl
Mannheim, como estudo relevante nesta área. Ao contrário de Benda, que analisa
o tema em seu aspecto moral, pondera Bobbio, para Mannheim a função dos
intelectuais -- que no seu entender formam não uma "classe", mas uma
"categoria" -- reveste-se de uma característica "teorética e prática"
77
. Na medida
em que no ambiente político de uma nação convivem diversas ideologias
portadoras de perspectivas apenas parciais, o ideal, para Mannheim, seria
produzir-se uma síntese capaz de fazer convergir as perspectivas em conflito,
conferindo-lhes uma visão mais abrangente e uma configuração mais dinâmica.
Destaca ainda Ortega y Gasset, autor, entre outras obras importantes, de La
rebelión de las masas, publicada em 1930. Na ótica deste pensador, os intelectuais
constituem a "parte viva, progressista e moderna da nação", contrapondo-se às
massas, "produzidas pela democracia doente dos nossos tempos" e que devem
limitar-se a se deixar conduzir pela minoria formada pelos "espíritos
clarividentes". Ortega, avalia Bobbio, talvez tenha sido o autor que de forma mais
veemente reforçou o "espírito de casta" dos intelectuais.
78
Quanto ao pensamento do italiano Benedetto Croce, Bobbio ressalta sua
convicção de que os intelectuais tinham uma função política própria que lhes
cabia desempenhar, qual seja, a de "afirmar o valor da liberdade entendido como
ideal moral da humanidade"
79
. Tal função, para Croce, demarcava a fronteira
entre o papel do intelectual e o papel do político e firmava a importância do
intelectual na sociedade.
Bobbio pondera que se o debate travado em torno das relações entre
intelectuais e classe política vinha progressivamente se revestindo de uma aura de
preocupação, isto em muito se devia ao pressuposto de que os intelectuais
pudessem efetivamente constituir um grupo homogêneo e diferenciado dentro do
corpo social. Ele resume, de modo esquemático, o pensamento desses quatro
autores para exemplificar sua análise, chamando a atenção para o fato de que em
cada um deles está consubstanciado, implícita ou explicitamente, um "perigo de
degeneração":
77
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder, op. cit., pp. 32-33.
78
Ibid., p. 33.
79
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
41
1. o intelectual não tem uma tarefa política, mas uma tarefa eminentemente
espiritual (Benda); 2. a tarefa do intelectual é teórica mas também mediatamente
política, pois a ele compete elaborar a síntese das várias ideologias que dão
passagem a novas orientações políticas (Mannheim); 3. a tarefa do intelectual é
teórica mas também imediatamente política, pois apenas a ele compete a função
de educar as massas (Ortega); 4. a tarefa do intelectual também é política mas a
sua política não é a ordinária dos governantes, mas a da cultura, e é uma
política extraordinária, adaptada aos tempos de crise (Croce).
80
Esta tendência dos intelectuais a se perceberem como uma classe isolada
que paira acima dos demais segmentos da sociedade é apontada por Bobbio como
um "vício fundamental" cujos desdobramentos, no limite, podem levar
precisamente ao caminho que se pretendia evitar: o envolvimento acrítico na
esfera da política, na forma de um "partidarismo da cultura que desafia,
orgulhoso do escândalo, as inúteis vestais consagradas ao culto dos valores
puros."
81
Bobbio reconhece que a existência dos intelectuais como segmento que
acredita exercer, ou que efetivamente exerce, um papel próprio na sociedade é um
fato. Mas argumenta que sua existência, neste sentido, estaria condicionada
primordialmente à capacidade de não se identificarem de forma tão absolutamente
completa com a classe política a ponto de se fundirem com ela, ainda que o estudo
de problemas ligados à política possa estar no centro de suas reflexões e "mesmo
quando se constata a existência de casos em que é perfeita a identificação na
mesma pessoa do intelectual e do político."
82
Considera essencial que a cultura,
no sentido mais abrangente do termo, que se refere à esfera em que se formam as
ideologias e se produzem os conhecimentos, em nenhum momento venha a ser
totalmente reduzida à esfera do político. Faz questão de frisar, contudo, que não
se trata de rejeitar a política, mas sim de "transcendê-la", o que não implica
ignorar sua função imprescindível.
83
O autor propõe o uso de duas categorias -- "ideólogos" e "expertos" --,
por ele criadas como critério de distinção para melhor organizar o debate em torno
da tarefa política do intelectual. Aos "ideólogos", esclarece, compete elaborar
princípios que possam servir de base para se justificar determinada ação, fazendo
com que seja aceita, o que equivale a dizer que "em sentido forte, a ação é
80
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder, op. cit., p. 34.
81
Ibid., p. 36.
82
Ibid., p. 83.
83
Ibid. Cf. pp. 80-81.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
42
'legitimada', pelo fato de estar conforme aos valores acolhidos como guia da
ação"
84
. aos "expertos" está reservada a tarefa de identificar quais
conhecimentos devem ser mobilizados para a consecução de um determinado fim,
permitindo assim que a ação que corresponde a esse fim "possa ser chamada de
racional segundo o objetivo."
85
E adverte:
Onde há correspondência perfeita entre a direção política e a ideologia, ou onde
o experto é chamado para oferecer seus serviços para uma solução
determinada de antemão, temos certeza de que nos encontramos perante uma
sociedade não-livre, da qual um dos indicadores mais característicos é o
primado da política sobre a cultura, a redução total da esfera em que se
desenrolam as batalhas ideais à vontade de domínio de quem detém o poder, com
a consequente redução dos ideólogos a doutrinadores e dos expertos a
mandarins.
86
Estas observações de Bobbio são perfeitamente aplicáveis ao movimento
que se observava no interior do Estado autoritário liderado por Getúlio Vargas.
Um regime que pretendia monopolizar todas as esferas de atividade da sociedade,
subordinando-as à instância política. Um Estado que se impunha como mediador
de conflitos e intérprete único da vontade nacional, que considerava legítima a
interferência ideológica sobre o processo de criação intelectual, como forma de
adequar a produção cultural aos objetivos políticos.
O único monopólio que deve caber ao Estado, alerta Bobbio, é o
monopólio da força, e a tarefa primordial dos intelectuais deve ser a de impedir
que o monopólio da força se transforme, também, em monopólio da verdade.
87
Em ensaio publicado no livro Intelectuais e Estado, no qual analisa essa
relação a partir de situações específicas características dos Estados Novos
português e brasileiro, Denis Rolland
88
debate o problema levantando a seguinte
questão:
No que concerne à relação com o Estado, a questão mais complexa é saber se ele
é capaz de fazer ou desfazer o intelectual. A valorização pelo Estado pode ou tem
podido "fazer" os intelectuais aos olhos dos contemporâneos? Ao contrário, um
intelectual demasiadamente ligado ao poder, sobretudo autoritário, pode ou tem
84
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder, op. cit., p. 73.
85
Ibid., pp. 73-74.
86
Ibid., p. 84.
87
Ibid. Cf. p. 81.
88
Professor da Univesidade Robert Schuman, Strabourg 3, França.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
43
podido ser posteriormente "desclassificado", tirado desta categoria sociocultural
por um julgamento retrospectivo?
89
[grifo meu]
Na avaliação deste autor, a ligação com o Estado é fator preponderante no
processo de se "fazer" ou "desfazer" um intelectual. Este pode vir a ter sua
imagem conspurcada, em especial em um eventual contexto de retorno à
democracia, caso tenha estabelecido fortes vínculos com o Estado durante período
sob regime de exceção. No caso do Estado Novo brasileiro, Rolland enfatiza a
forte atuação do Estado no sentido de, envolvendo os diversos segmentos da
opinião pública na lógica política do Estado, enquadrar os intelectuais,
transformando-os em instrumentos do poder a serviço da propaganda
governamental.
Edward Said, um dos mais destacados críticos literários do culo XX,
autor de inúmeros livros e artigos sobre cultura e política, tece um comentário que
considero essencial ao tema discutido nesta dissertação e que, aplicado ao cenário
específico do Estado Novo, contribui para lançar luz sobre a atividade dos
colaboradores de Cultura Política. Em Representações do Intelectual, ao discorrer
sobre a clássica definição de intelectual formulada por Julien Benda em La
trahison des clercs, Said ressalta que
De acordo com Benda, o problema dos intelectuais de hoje é que eles
concederam sua autoridade moral àquilo que, numa frase premonitória, ele
chama "a organização de paixões coletivas", tais como o sectarismo, o
sentimento das massas, o nacionalismo beligerante, os interesses de classe.
Benda escreveu isso em 1927, bem antes da época dos meios de comunicação de
massa, mas ele pressentiu quão importante era para os governos terem como seus
servidores aqueles intelectuais que podiam ser convocados não para dirigir, mas
para consolidar a política governamental, para expelir propaganda contra
inimigos oficiais, eufemismos e, em escala mais ampla, sistemas inteiros da Nova
Língua Orwelliana, capazes de dissimular a verdade do que estava acontecendo
em nome de "conveniências" institucionais ou da "honra nacional".
90
[grifos
meus]
89
ROLLAND, Denis. "O historiador, o Estado e a fábrica dos intelectuais". In: RIDENTI,
Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006, p. 95.
90
SAID, Edward W. "Representações do Intelectual". In: SAID, E.W. Representações do
Intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 21-22.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
44
Said sintetiza a delicada e difícil posição do intelectual descrevendo-o
como alguém que tenta permanentemente equilibrar-se "entre a solidão e o
alinhamento."
91
Em que bases esta "relação delicada" entre intelectuais e poder se refletia
nas páginas de Cultura Política?
Recorro, mais uma vez, a citação extraída de um dos números da revista
para prosseguir nesta especulação em torno do tema. O que o Estado pensava fica
bastante explícito nas palavras a seguir reproduzidas, que refletem sua expectativa
quanto ao papel que entendia caber ao intelectual no novo contexto político:
[O] Estado brasileiro se volta para os intelectuais do Brasil, convertendo a
indiferença de ontem em simpatia de hoje, mostrando-lhes a função social que
lhes compete nesse movimento recriador de valores, que se impôs. [...]Como uma
iniciativa espontânea da nova política do Brasil, a inteligência está sendo
chamada a participar de todas as iniciativas oficiais do governo, que a separa
em grupos de especialistas capazes ou técnicos, cujo concurso tem sido dos mais
fecundos ao progresso intelectual das gerações que vão surgindo. [...]
Conciliando a inteligência com a vida da nação, a política brasileira deste
instante prossegue no cumprimento de seu programa realista e socializador,
segundo o qual todas as atividades intelectuais devem ser centralizadas e incidir
para um vértice comum: -- o progresso do país para o bem coletivo. [...]
Ordenando as classes intelectuais, o Estado o faz para melhor integrá-las na
colaboração que exige de todos, para o benefício de cada um. [...] O Governo
reconhece [...] até onde poderá caminhar sozinho. Mas deseja, por isso, que os
filhos do país compreendam as responsabilidades que lhes competem,
convidando-os a participar de suas realizações como colaboradores necessários
da obra de dignificação intelectual que encetou.
92
O redator deste editorial (o texto não é assinado) enfatiza, ainda, que a
cultura constitui apenas um luxo e a ilustração mero décor se não estiverem postas
a serviço das necessidades de cada época.
Este chamado aos intelectuais para que assumam sua responsabilidade face
à construção da nova ordem aparece em outros artigos da revista. De forma geral,
porém, observa-se a preocupação em enfatizar que a colaboração deve ser
espontânea e de assegurar que não haverá interferência de órgãos do governo no
sentido de orientar os colaboradores acerca do conteúdo dos artigos, nem de
"filtrar" o que está sendo escrito. Como frisado na abertura da seção "Brasil
91
SAID, Edward W. "Representações do Intelectual". In: SAID, E.W. Representações do
Intelectual: as Conferências Reith de 1993, op. cit., p. 35.
92
A ordem política e a evolução intelectual. Texto de introdução aos artigos veiculados na
subseção "Evolução Intelectual". Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril de 1941, pp. 259-260.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
45
social, intelectual e artístico" do primeiro número de Cultura Política, "elementos
de diversas correntes literárias, artísticas e científicas se encontram aqui
representados, pois esta Revista não tem partidos [...]."
93
No trecho maior acima transcrito, porém, algumas passagens parecem
indicar uma tendência a solapar a autonomia dos colaboradores. Como, por
exemplo, quando se fala em "separar" a inteligência por "grupos de
especialistas", ou em "ordenar" as classes intelectuais, ou ainda em "centralizar"
as atividades intelectuais, orientando-as para um "vértice comum", que seria o
"progresso do país para o bem coletivo".
É interessante, para se ter noção de como as diretrizes traçadas pelos
coordenadores da política desenvolvida para a área cultural durante o Estado
Novo se refletiam em Cultura Política, o comentário que faz Elide Rugai Bastos
em ensaio incluído no já mencionado Intelectuais e Estado. Discorrendo sobre o
papel político atribuído à cultura pelo regime instituído em 1937, a autora chama
a atenção para a tentativa de se direcionar até mesmo o modo como os artigos
da revista deveriam ser lidos: "O 'box' de apresentação das diferentes partes
da revista Cultura Política define o sentido da leitura dos artigos que a compõem,
independentemente da intenção de seus autores", lembra ela.
94
Era também a expectativa do Estado que a colaboração prestada fosse
incondicional e tivesse como base a confiança mútua. A passagem transcrita
abaixo, que integra o artigo de abertura de uma das subseções da revista, ilustra
bem este aspecto:
[...] a política pode [...] ser responsabilizada pela evolução ou retardamento
intelectual em determinado período da vida nacional. Estamos falando [...] da
inteligência num sentido muito além daquele que, de modo vulgar, lhe
emprestamos. Isto é, da inteligência enquanto dádiva, da inteligência enquanto
benefício comum, da inteligência a serviço da sociedade, inteligência que se
aprecia associada a algo que veicule a sua marca. [grifos no original]
Dessa inteligência [...] podemos orgulhar-nos, hoje, considerando os resultados
de sua cooperação incondicional às iniciativas do governo. Ele a estimula [...] de
todas as maneiras e ela o trai [...] a confiança na sua força, assim como não
sabe dispensar a ajuda que o Estado lhe fornece.
95
[grifos meus]
93
Texto de introdução à seção "Brasil social, intelectual e artístico". Cultura Política. Ano I, nº. 1,
março de 1941, p. 226.
94
BASTOS, Elide Rugai. "Paulo Augusto Figueiredo e o pensamento autoritário no Brasil". In:
RIDENTI, M., et al. (Org.). Intelectuais e Estado, op. cit., p. 123.
95
Texto de introdução à subseção "A ordem política e a evolução intelectual". Cultura Política.
Ano II, nº. 15, maio de 1942, pp. 286-287.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
46
Chama especial atenção a última frase, por tocar em ponto polêmico da
questão. Qual, exatamente, o tipo de "ajuda" indispensável fornecida pelo Estado
e em que medida tal ajuda poderia comprometer a neutralidade e integridade das
opiniões expressas em Cultura Política pelos intelectuais que ali publicavam seus
prognósticos e diagnósticos sobre os problemas brasileiros? No caso dos autores
dos artigos selecionados para análise na presente dissertação, tornar-se-ia
exercício bastante difícil estabelecer uma fronteira precisa entre quais autores
estariam expressando, de forma efetivamente independente, suas respectivas
visões sobre a situação política, econômica e social brasileira, e quais estariam,
por assim dizer, dando voz a atitudes e posições que eram, na realidade, aquelas
que o governo subscreveria. A dificuldade aumenta ainda mais se tivermos em
mente que, dentre estes articulistas, praticamente todos aqueles cuja qualificação é
informada pela revista ocupavam funções ligadas à administração pública federal,
estadual ou municipal, como se verá na parte da dissertação que trata dos artigos
propriamente ditos. Com raras exceções -- como, por exemplo, o jornalista e
escritor Azevedo Amaral, ou o estudante Pedro Manes (ainda que este fosse aluno
do diretor da revista, Almir de Andrade) -- estamos falando de professores de
escolas e universidades públicas, diretores e funcionários de órgãos e autarquias
governamentais, promotores públicos, procuradores da fazenda, militares.
A este respeito podemos fazer referência à reflexão de Edward Said,
elaborada em um dos capítulos do já citado Representações do Intelectual. Afirma
ele, especulando sobre o risco em que incorrem os intelectuais que servem ao
poder e recebem desse poder alguma espécie de recompensa, que tal relação pode,
sim, interferir na capacidade destes atores de produzir, com o necessário espírito
de independência, as análises e julgamentos críticos que, no seu entender,
constituem a contribuição que se espera de um intelectual. Said enfatiza que
o intelectual propriamente dito não é um funcionário, nem um empregado
inteiramente comprometido com os objetivos políticos de um governo, de uma
grande corporação ou mesmo de uma associação de profissionais que
compartilham uma opinião comum. Em tais situações, as tentações de bloquear o
sentido moral, de pensar apenas do ponto de vista da especialização ou de
reduzir o ceticismo em prol do conformismo são muito grandes para serem
confiáveis. Muitos intelectuais sucumbem por completo a essas tentações e, até
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
47
certo ponto, todos nós. Ninguém é totalmente auto-suficiente, nem mesmo o mais
livre dos espíritos.
96
[grifo meu]
No Brasil da era Vargas, como lembra Helena Bomeny, a atuação de
Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação, entre 1934 e 1945,
exerceu influência decisiva na forma de inserção dos intelectuais na esfera da
política, aproximação que resultou, entretanto, em uma relação "nada pacífica".
97
A participação deste segmento da sociedade no governo, sublinha,
[...] tem sido recuperada com os desconfortos que daí advêm por termos de
incluir naquele período o Estado Novo (1937-1945), um marco da política
autoritária no Brasil. Qual teria sido a aquiescência desses intelectuais na
montagem do autoritarismo? Quanto aceitaram da experiência do fechamento
político e da restrição da liberdade?
98
Bomeny busca, em cartas dirigidas ao ministro Capanema por alguns
daqueles intelectuais, "fonte inestimável para capturarmos a ambigüidade do
casamento entre homens de espírito e rotinas do poder"
99
, material para ilustrar
sua linha de argumentação. A leitura das cartas -- com destaque para as de Pedro
Nava, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade -- a leva a propor que a
participação dos intelectuais na chamada "constelação Capanema" obedeceu a
dois impulsos distintos: de um lado, houve uma reação positiva por perceberem
nesse chamado do governo a tentativa de se construir um Estado do bem-estar,
através da concepção e implementação de políticas que contemplavam diversas
áreas da vida social. Por outro, a tensão expressa na tese de Julien Benda sobre a
traição dos "clercs" evidenciou-se em um movimento de adesão/afastamento e de
entusiasmo/recusa
100
. No início do século XX, avalia a autora, as noções de
ordem e progresso assumiram precedência em relação à aspiração democrática, o
que poderia estar na raiz do fato de que muitos dos projetos pensados para o país a
partir dos anos 1930 por boa parte da intelectualidade brasileira tenham buscado
96
SAID, Edward W. "Falar a verdade ao poder". In: SAID, E. W. Representações do intelectual,
op. cit., p. 90.
97
BOMENY, Helena. "Infidelidades eletivas: intelectuais e política". In: BOMENY, Helena
(Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas, op.cit., p. 14.
98
Ibid., p. 15.
99
Ibid., p. 28.
100
Ibid. Cf. p. 26.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
48
na crença na intervenção do Estado e na fé nos progressos da ciência a sua
inspiração
101
. Diante disto, conclui,
[...] não chega a surpreender que houvesse representantes de todos os segmentos
da vida inteligente num governo que se arvorava em modelo de intervenção
costurado com argumentos de racionalidade, planejamento, combate ao
regionalismo, às oligarquias e ao mandonismo local -- um Estado moderno,
enfim. Daí a acolhida que teve nos mais importantes grupos de intelectuais
daquela geração.
102
A relação entre intelectuais e Estado é também objeto da análise de Sergio
Miceli, em "Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)"
103
. No período
em que vigorou o regime autoritário instituído por Getúlio Vargas, Miceli estima
que houve considerável expansão das investidas do poder dirigente no sentido de
cooptar os intelectuais, acenando com a possibilidade de acesso a carreiras e
funções nas mais diversas áreas da burocracia estatal como forma de atraí-los para
seu projeto político. Neste cenário, o que distingue o governo Vargas e torna a
política cultural elaborada pelo Estado Novo elemento importante no âmbito do
debate sobre a relação entre intelectuais e poder, é o fato do regime haver
conferido à cultura a condição de "negócio oficial", com orçamento próprio e
projetos para a criação de uma intelligentzia. O Estado firmava-se, assim, como
árbitro supremo na condução de assuntos relativos à cultura, outorgando-se o
direito de intervir na produção, difusão e conservação de todo e qualquer trabalho
artístico e intelectual.
104
Envolvidos, desta forma, com a máquina do Estado, fosse prestando
serviços de caráter estritamente burocrático e desenvolvendo suas atividades
intelectuais em paralelo, fosse disponibilizando seu trabalho intelectual
diretamente para a legitimação do projeto político do governo, o resultado prático
de tal relação, avalia Miceli, traduzia-se em um quadro de dependência material e
institucional que passava a definir os termos em que a relação deveria se
101
BOMENY, Helena. "Infidelidades eletivas: intelectuais e política". In: BOMENY, Helena
(Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas, op.cit. Cf. p. 20.
102
Ibid., p. 21.
103
MICELI, Sergio. "Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)". In: MICELI, Sergio.
Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 69-291.
104
Ibid. Cf. pp. 197-198.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
49
constituir. Tratava-se de situação confortável na aparência, mas contaditória na
essência. Se por um lado os intelectuais se sentiam protegidos das "oscilações de
prestígio" e dos humores do mercado, se viam fluir os subsídios para as iniciativas
culturais, por outro lado sua própria produção intelectual acabava por ficar
comprometida. Em tal contexto, resume Miceli,
eles acabam negociando a perspectiva de levar a cabo uma obra pessoal em
troca da colaboração que oferecem ao trabalho de "construção institucional" em
curso, silenciando quanto ao preço dessa obra que o Estado subsidia de algum
modo indireto. Na condição de presas da máquina do Estado e [...] desejosos de
se livrarem dos cerceamentos que costumam tolher os praticantes de uma arte e
uma literatura oficiais, eles resolveram esse dilema cedendo ao encanto de
justificações idealistas. [...]
Diante dos dilemas de toda ordem com que se debatiam por força de sua filiação
ao regime autoritário que remunerava seus serviços, buscaram minimizar os
favores da cooptação lhes contrapondo uma produção intelectual fundada em
álibis nacionalistas. [...]Dando seqüência à postura inaugurada pelos
modernistas, esses intelectuais cooptados se autodefinem como porta-vozes da
sociedade [...].
[...] No tocante às ideologias quase profissionais que os produtores desenvolvem
a respeito de si mesmos, do valor do que fazem e, acima de tudo, da posição
singular que ocupam no espaço da classe dirigente, foi esse o momento-chave na
definição da autoridade de que se reveste o mandato dos incumbidos de gerir a
política cultural do regime.
105
Relevante estudo elaborado pelo sociólogo francês Daniel Pécaut
106
vem
enriquecer o debate sobre a questão do envolvimento dos intelectuais com o
Estado no caso brasileiro. No cenário específico do regime instituído no país por
Getúlio Vargas, e em especial durante o período em que vigorou o Estado Novo,
o autor aponta a intenção do governo de implantar um "autoritarismo
desmobilizador", intenção que se concretizava na tentativa de cooptar os
intelectuais, "mesmo os reticentes para com o autoritarismo"
107
. A atitude refletia
um movimento no sentido de promover uma "cultura do consenso", capaz de
propiciar a aproximação entre os "intelectuais do regime" e os não simpatizantes,
como parte de um projeto mais amplo de conciliação das diversas correntes que
davam apoio regime. A revista Cultura Política, assinala, tinha importante papel a
desempenhar nesse contexto, como parte do "plano de intervenção cultural"
105
MICELI, Sergio. "Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)". In: MICELI, Sergio.
Intelectuais à Brasileira, op. cit., pp. 216-217.
106
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo:
Editora Ática, 1990.
107
Ibid., p. 69.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
50
idealizado pelo governo e coordenado pelo DIP
108
. A liberdade de criação dos
intelectuais teria sido, no seu entender, preservada pelo regime, que lograva "não
acolher os intelectuais rebeldes, mas também ao se referir a eles, manter uma
linguagem que evitasse as rupturas definitivas"
109
. Pécaut retrata esta complicada
relação de forma interessante e objetiva:
O Estado e os intelectuais, compartilhando o desdém pela representatividade
democrática e a nostalgia por uma administração do social que tomasse o lugar
da política, foram levados a agir como sócios a serviço da identidade nacional.
Se os intelectuais aderiram a uma "ideologia de Estado", o Estado aderiu a uma
ideologia da cultura, que era também a ideologia de um governo "intelectual".
Além disso, o Estado não conhecia outra expressão da opinião pública exceto a
representada pelos intelectuais. Vale dizer que o Estado atribuía [...] três papéis
complementares aos intelectuais: concorrer para a definição das finalidades da
ação política, expressar a presença da sociedade civil e dar o exemplo de um
ator social coletivo. No discurso teórico daquele momento, esses três papéis
foram interpretados também como três atributos: definir o que fundamenta a
unidade social e o que se relaciona ao ato transformador; revelar a realidade;
formar uma corporação que assumisse o interesse geral, acima das corporações
encarregadas dos interesses específicos. Mais ainda: uma vez que o Estado
brasileiro se legitimava por uma dupla aptidão -- a de se adaptar às leis que
presidem à evolução do real, e a de promover uma racionalidade que orientasse
o desenvolvimento econômico e gerasse as relações sociais --, ele conferia à
ciência o estatuto de componente primordial da política e, simultaneamente, aos
"intelectuais" o de protagonistas privilegiados da vida política. Estado e
intelectuais estavam mutuamente comprometidos.
110
Como ensina o mestre Antonio Cândido, entretanto, na verdadeira
"batalha de interpretações" em que acabam envolvidos os que se dedicam a
analisar a inserção dos intelectuais em um contexto político marcado por
demandas criadas pelas instâncias detentoras do poder no que tange à produção
cultural, está sempre presente o risco de se incorrer em análises apressadas, com
acentuado viés ideológico e com tendência a "misturar desde o começo do
raciocínio a instância de verificação com a instância de avaliação."
111
Bolivar Lamounier, em cuja análise o chamado "pensamento de 30" se
estende de 1920 a 1945, chamara a atenção para essa tendência a caracterizar
em bloco os intelectuais da década de 1930, convencionando-se designá-los de
108
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Cf. pp. 69-70.
109
Ibid., p. 72.
110
Ibid., pp. 72-73.
111
CANDIDO, Antonio. Prefácio a "Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)". In:
MICELI, Sergio. Intelectuais à Brasileira, op. cit., p. 73.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
51
"autoritários"
112
e, muitas vezes, identificando-os como "fascistas"
113
. Lamounier
questiona a classificação desses pensadores como fascistas, atribuindo-a à falta de
percepção, por parte dos críticos, do esforço que faziam para se distinguir do
fascismo, delimitando "o espaço político que jaz entre o liberalismo e o
fascismo"
114
. Tal atitude, a seu ver, traduz uma certa "vontade" dos analistas,
na medida em que não situam a obra desses autores em seu correto contexto
político e cultural, desta forma atropelando os fatos. A questão que ele se coloca é
se existia entre eles suficiente unidade, suficiente semelhança temática, suficiente
proximidade de premissas, de pontos de partida, para que se possa aplicar a
esses pensadores, em conjunto, alguma categoria como a de ideologia -- sabendo
que um dos significados dessa categoria é o de consistência, de inter-relação ou
de caráter de sistema dentro de um conjunto de idéias.
115
O perigo representado pelo recurso a uma chave simplista para interpretar
a relação entre intelectuais e poder é também salientado por Ângela de Castro
Gomes. Em estudo sobre o envolvimento da elite intelectual com a burocracia
oficial durante o regime estado-novista, a autora faz questão de frisar que a
participação desses atores no projeto político do Estado Novo vem sendo alvo de
análises conduzidas sob as mais variadas óticas. No seu entender, é preciso
afastar, "por premissa teórica", quaisquer idéias de "manipulação" por parte do
Estado, ou de "alienação e traição" por parte dos intelectuais, evitando tomar a
participação de intelectuais em políticas de governo como evidência de adesão
automática às diretrizes ideológicas do regime, ou mesmo como sinal de
"cooptação", entendida como "algo próximo a uma transação mercantil de
caráter utilitário".
116
O debate em torno do assunto, como se vê, é por demais extenso e, pelas
razões apresentadas, não pode ser aqui desenvolvido com a profundidade que
seria recomendável. Acredito, porém, que Ângela de Castro Gomes conseguiu
112
LAMOUNIER, Bolivar. "A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de
1980". In: A revolução de 30: seminário realizado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro,
setembro de 1980. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c1983, p. 549.
113
Ibid., p. 553.
114
Ibid., loc. cit.
115
Ibid., p. 549.
116
GOMES, Ângela de Castro. "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo". In: ABREU,
Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 47.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
52
reunir, em excelente comentário, os muitos elementos em que se desdobra o
problema desta relação delicada, que a autora define, com sensibilidade, como
uma "relação de mão dupla". Por este motivo, escolho fechar esta análise
transcrevendo sua perspicaz apreciação:
A questão do envolvimento de intelectuais com regimes políticos -- sobretudo
autoritários, como no caso do Estado Novo -- é algo bem mais complexo e
instigante. Para se compreender essa dinâmica e o sentido da categoria
cooptação, é relevante reconhecer o interesse e até a necessidade de um regime
de estabelecer contatos com o meio intelectual. Do mesmo modo, é interessante e
necessário, para os intelectuais, participar de um novo espaço político que a eles
se abre, oferecendo tanto oportunidades de tipo financeiro como de prestígio
sóciocultural. Isto é, essa é uma relação de mão dupla cheia de possibilidades
diferenciadas, sendo fundamental atentar para rios pontos, tais como: o
"lugar" do aparelho de Estado que demanda a colaboração dos intelectuais; a
política que está sendo implementada; e o tipo de participação solicitada. Nesses
contatos, portanto, uma variada gama de aproximações, distanciamentos e
negociações pode se estabelecer, fazendo com que intelectuais, mais ou menos
simpáticos a um regime, possam ser cooptados, ou seja, possam negociar
margens de liberdade, que a aberta e radical oposição nunca é possível.
117
[grifo meu]
2.2.
Da importância de Cultura Política
O regime autoritário que vigorou no Brasil entre 1930 e 1945 teve dois
marcos fundamentais. A Revolução de 30 foi o marco inicial. Seus idealizadores
acreditavam que a única maneira de introduzir as profundas mudanças de que, na
sua percepção, o país necessitava para inserir-se na nova ordem mundial -- a
ordem do progresso e da industrialização -- seria contrapor-se e destruir a ordem
política liberal instaurada pela República Velha. O sistema liberal-democrático era
por eles criticado como artificial e importador de modelos externos. Era também
considerado o principal entrave ao projeto de modernização do Brasil e de
construção de uma política que estivesse em sintonia com a realidade nacional:
uma política capaz de promover a integração entre o país "legal" e o país "real".
Se a proposta era esta, a execução, na prática, provou não ser simples. As
dificuldades encontradas para a consolidação do processo revolucionário eram em
grande parte agravadas pelo fato de serem as forças revolucionárias que haviam
117
GOMES, Ângela de Castro. "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo". In: ABREU,
Martha, et al. (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história,
op. cit., p. 47.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
53
tomado parte na Revolução de 30 por demais diversificadas em seus interesses, e
seus projetos para a reconstrução do país nem sempre serem convergentes.
Agitações políticas, de que são exemplos a Revolução Constitucionalista de 1932
em São Paulo e a Intentona Comunista de 1935, alastravam-se pelo país. A
Constituição promulgada em 1934 era percebida por Getúlio Vargas -- eleito,
neste mesmo ano, pelo voto indireto, para a Presidência da República -- e por seu
círculo mais próximo de colaboradores como mais representativa de interesses dos
setores liberais. Na perspectiva deste grupo, os problemas se sucediam,
desafiando o princípio da autoridade e impedindo que se traduzissem em ação as
estratégias concebidas para dar início à grande transformação que deveria mudar a
face do Brasil.
Feito o diagnóstico, a alternativa apresentada foi partir para uma solução
radical: o grande salto qualitativo capaz de alavancar o desenvolvimento do país e
permitir seu ingresso na nova ordem mundial poderia tornar-se realidade se o
processo fosse conduzido por um Estado forte, centralizador e autoritário, que
agilizasse a tomada de decisões.
Estava aberto o caminho para o advento daquele que seria o segundo
marco fundamental da transformação que se iniciara com a Revolução de 30. Em
10 de novembro de 1937, um golpe levou à instauração do Estado Novo. Uma
nova Constituição foi promulgada, uma Constituição outorgada que estabalecia as
bases para o advento de um Estado intervencionista e politicamente centralizado,
conferindo um perfil antiliberal à organização da sociedade. Sob o novo regime,
o Parlamento foi dissolvido, os partidos políticos extintos, e ampliados os poderes
políticos do presidente.
Para além destes dois marcos fundamentais, no entanto, o Estado Novo
possui ainda uma "marca" fundamental, como lembra Ângela de Castro Gomes. E
esta marca é a "ambigüidade". Por este motivo, diz ela, destinam-se ao fracasso
"todos os esforços analíticos que procurem reduzir suas dinâmicas políticas a
esquematismos simplistas e/ou maniqueístas."
118
Ela enfatiza que o Estado Novo
não pode ser retratado como um regime homogêneo, portador de uma "doutrina
oficial compacta". Ainda que seja possível distinguir, em meio às propostas
118
GOMES, Ângela de Castro. "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo". In: ABREU,
Martha, et al. (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história,
op. cit., p. 45.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
54
elaboradas pelo novo regime, um conjunto de idéias que configuram o fio
condutor de um projeto político, uma análise realizada sob a ótica da
homogeneidade inviabilizaria a percepção das nuances de tal projeto.
119
A par da imposição de um Estado autoritário, com forte centralização de
poder e extremamente criativo no que tange ao desenvolvimento de mecanismos
de controle da sociedade, o regime instituído por Vargas deve também ser
analisado pela capacidade demonstrada, no curto período que se estende de 1937 a
1945, de criar as condições para que o país desse um salto de qualidade em termos
de modernização econômica e social, com reflexos positivos na aceleração dos
processos de industrialização e urbanização. Contribuíram para esse salto de
qualidade, como bem avalia Ângela de Castro Gomes, a racionalização do
aparelho burocrático do Estado e a preocupação em implantar políticas sociais
consistentes, destinadas a regular as relações trabalhistas, a ampliar o alcance da
rede de saúde pública, a pensar soluções para a área da educação e traçar diretrizes
para esfera da cultura, na acepção ampla do termo. O que não equivale, adverte
ela, a
minimizar a violência física e simbólica do aparelho de Estado, facilmente
detectadas pela ação da polícia política, da censura, da permanência de padrões
clientelistas na organização pública e, também, da participação no poder do
Estado dos setores agrários, ainda que não com a mesma força e prestígio.
120
O caráter ambíguo do regime implantado em 1937 é também assinalado
por Boris Fausto. Em comentário sobre o fascínio que o Estado Novo exerce até
hoje, o autor observa, em um misto de análise e advertência, não ser ele "um
espécime morto, sobre o qual se possa debruçar com um olhar zoológico".
Aponta como uma das possíveis explicações para tal encanto, à parte os motivos
que se podem atribuir a controvérsias políticas atuais, precisamente o fato de o
Estado Novo ser um regime complexo em sua constituição e objetivos, razão pela
qual, ao invés de examiná-lo com um "olhar frio", deve-se "buscar entender, com
119
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
invenção do trabalhismo, op. cit. Cf. p. 189.
120
Idem. "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo". In: ABREU, Martha, et al. (Org.).
Cultura política e leituras do passado, op. cit., p. 45.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
55
a objetividade possível, que diabo é esse regime que gera essencialmente uma
série de males e, ao mesmo tempo, tem facetas de progresso."
121
O contexto político internacional no qual se insere a implementação, no
Brasil, do estado de exceção que se estendeu de novembro de 1937 a outubro de
1945 é bem recuperado por Lúcia Lippi Oliveira, e sinaliza que o Estado Novo
não pode ser visto como uma anomalia na trajetória política do país:
Nos anos 30, o Brasil não seguiu rumos muito distintos dos que estavam sendo
trilhados pelos países europeus e que eram objeto da atenção dos brasileiros
ilustrados. Mussolini chegou ao poder na Itália em 1923; Hitler, com sua
ascensão à Chancelaria em 1933, acabou de desintegrar a República de Weimar;
Salazar, em 1929, chegou a primeiro-ministro de Portugal; a Espanha se
encontrava, entre 1936 e 1939, banhada no sangue de uma guerra civil. A
França, modelo da nossa civilização humanista, vinha enfrentando fortíssimos
movimentos nacionalistas de direita desde o fim do século XIX, e teve, no caso
Dreyfus, um divisor de águas da política e da sociedade. Nos anos 20, o
nacionalismo integral de Charles Maurras se fez atuante através de L'Action
Française, órgão que teve influência junto aos católicos brasileiros que se
reuniam em torno do Centro Dom Vital e da revista A Ordem.
O Estado Novo ocorreu, portanto, numa onda de transformações por que
passava o mundo, o que reforçava a versão de que a velha democracia liberal
estava definitivamente liquidada.
122
Lúcia Lippi analisa que, em tal contexto, a tentação de se identificar o
Estado Novo com o fascismo europeu era forte e, nesse processo, as
especificidades que marcaram o regime acabavam por não merecer a devida
atenção.
123
O Estado Novo foi anunciado como o alvorecer de uma nova era,
portadora de uma nova ordem política e social. Nas palavras de Ângela de Castro
Gomes, "Os 'revolucionários' de 1937 interpretavam o período que vai de 30 até
o golpe de novembro como um interregno do projeto de fundação do novo
Estado."
124
Mas este Estado autoritário, que suprimia as liberdades políticas,
pretendia, ao mesmo tempo, não ser percebido como supressor das liberdades
121
FAUSTO, Boris. "O Estado Novo no contexto internacional". In: PANDOLFI, Dulce (Org.).
Repensando o Estado Novo, op. cit., p. 20.
122
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. "Apresentação". In: OLIVEIRA, Lúcia. L., et al. Estado Novo:
ideologia e poder, op. cit., pp. 7-8.
123
Ibid., p. 8.
124
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
invenção do trabalhismo, op. cit., p. 195.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
56
individuais. Com tal postura, buscava diferenciar-se dos regimes totalitários.
Como conciliar estas duas imagens?
É neste momento que se torna necessária a produção de um discurso
legitimador. Para defender e justificar os novos rumos que pretendia imprimir às
questões de caráter político, econômico e social, conferindo legitimidade não
às medidas tomadas em preparação para o golpe de 37, como também àquelas
ainda por tomar, o governo buscou apoio junto a setores da elite política e
intelectual do país, considerados estratégicos para o processo de construção do
novo Estado.
Através da estratégia traçada para a área da cultura pelo DIP, o discurso
político produzido por aqueles setores da elite -- que tinha nas páginas de
Cultura Política um de seus mais importantes polos de divulgação -- estendeu sua
influência e imprimiu sua marca às atividades culturais como um todo,
abrangendo não a literatura, mas também o teatro, o cinema, o rádio. Para
explicar o regime, como assinala Mônica Pimenta Velloso,
[...] foi elaborado um projeto político-ideológico extremamente bem articulado,
que soube capitalizar os acontecimentos, reforçar situações e, sobretudo,
convencer da preeminência de uma nova ordem, centrada no fortalecimento do
Estado.
125
Neste esforço de convencimento, que envolve a produção e divulgação de
uma ideologia que se transformara em elemento central do projeto político da
nova ordem, a cultura adquire papel primordial e passa a ser considerada, ainda
segundo Mônica Velloso, "em termos de organização política"
126
. Não a
cultura havia se tornado uma questão de Estado, como política e cultura passaram
a ser questões indissociáveis. Ângela de Castro Gomes, discorrendo sobre a
centralidade da ideologia para a construção da ordem política, sublinha que é
necessário
afirmá-la como recurso de poder fundamental ao esforço de articulação e de
produção não só do que já existe, mas sobretudo daquilo que se deseja que exista.
125
VELLOSO, Mônica Pimenta. "Cultura e poder político: uma configuração do campo
intelectual". In: OLIVEIRA, Lúcia L., et al. Estado Novo: Ideologia e Poder, op. cit., p. 71.
126
Ibid., p. 72.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
57
Daí constituir-se em objeto privilegiado para a revelação de projetos políticos;
daí também seu papel ativo na implementação de tais projetos.
127
[grifo meu]
E daí também, pode-se acrescentar, a importância da colaboração dos
intelectuais. A eles caberia explicar o sentido do ideal que estava na origem da
estrutura institucional autoritária adotada pelo Estado, ideal este que os
construtores da nova ordem insistiam em definir como democrático.
Convocados a se engajar ativamente na produção e divulgação do
arcabouço doutrinário da nova política do Brasil, a participação dos intelectuais
nesta tarefa foi essencial e expressiva. É importante salientar que este projeto
"literário" esteve sempre subordinado ao projeto maior, que era o projeto político.
Com a intenção de evitar confrontos diretos com aqueles que optavam por não
emprestar seu prestígio para dar apoio ao novo regime, o Estado se aplicava em
contornar atitudes que pudessem resultar em uma ruptura definitiva capaz de levar
este segmento a fazer oposição aberta ao governo, apesar da censura que então
vigorava.
A revista Cultura Política foi criada, em tal contexto, como espaço ideal
para abrigar um discurso que deveria constituir-se em instrumento de ação política
a serviço da construção da nova ordem, através, principalmente, de uma releitura
do conceito de democracia.
Idealizada para ser uma revista de estudos brasileiros, condição explicitada
em seu subtítulo -- Revista Mensal de Estudos Brasileiros --, Cultura Política era
uma publicação produzida por e para intelectuais e formadores de opinião.
O título e o subtítulo dizem muito sobre a essência da revista. Vários
ensaios nela veiculados enfatizam a estreita relação entre cultura e política e
procuram demonstrar a relevância desta associação. O próprio diretor, Almir de
Andrade, faz questão de enfatizar a importância de ser o povo não apenas culto,
mas politicamente culto. Para tanto, é fundamental que a produção da cultura seja
resultado da sua organização no sentido de coordenar e unificar esforços e
objetivos para a produção de um conteúdo socialmente útil, orientado para o bem
comum e em harmonia com o projeto maior definido pelo Estado, e não fruto de
127
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
invenção do trabalhismo, op. cit., p. 189.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
58
"esforços desarticulados e dispersos".
128
Organizar a cultura seria, em essência, a
"grande missão" de publicações como Cultura Política. Em artigo intitulado,
precisamente, "Cultura e Política" o diretor explicita esta perspectiva, ao
argumentar que
existe entre a cultura e a política um traço vigoroso de união. A cultura põe a
política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes da inspiração
popular. A política empresta à cultura uma organização, um conteúdo
socialmente útil, um sentido superior de orientação para o bem comum. Cultura
e política são, por isso mesmo, indissociáveis: toda política verdadeira e sadia
deve ser uma expressão da cultura popular, assim como toda cultura verdadeira
e fecunda deve ter um sentido político, deve conter uma aspiração de integrar-se
na vida organizada que a política representa, como cristalização da ordem
social.
Despertar, robustecer, dilatar essa consciência política que precisa existir em
todo esforço de cultura -- é uma das finalidades desta Revista.
129
Esta relação é também salientada por outro colaborador da revista, Paulo
Augusto de Figueiredo, que reputa a cultura como condição essencial da
realização do homem no plano pessoal, como indivíduo, sendo a política a
condição de sua realização no plano coletivo, como cidadão. Para este autor, a
cultura racionaliza a vida, enquanto a política a organiza. Deixa claro, contudo,
que existe uma hierarquia, cabendo a preeminência à política. É ela que "coordena
e superintende todos os processos do desenvolvimento humano", devendo a
cultura integrar-se na política. Política e cultura, sublinha, "operam conjugadas,
na mesma zona vital", sendo a vida o elemento básico da cultura e, por
conseguinte, também da política, "que é a cultura aplicada". Para que a política
seja eficiente, pondera, é imprescindível que atue sobre todas as esferas de
atividade do homem.
130
A escolha do subtítulo, por sua vez, testemunho da relevância que cada
vez mais adquiria a análise crítica daquilo que, à época, se convencionou chamar a
"realidade brasileira". A preocupação com o tema adquire contornos mais
definidos a partir da década de 1920, palco de intensas discussões travadas nos
128
ANDRADE, Almir de. O Estado Nacional e a missão de "Cultura Política". Cultura Política.
Ano II, nº. 18, agosto de 1942, p. 9.
129
Idem. Política e Cultura. Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril de 1941, p. 7.
130
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional. Cultura
Política. Ano II, nº. 18, agosto de 1942. Cf. pp. 13-26.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
59
círculos intelectuais e políticos em torno da elaboração de projetos de
desenvolvimento para o país.
Na esteira destas discussões, constituiu-se uma elite intelectual sensível a
novas idéias, cuja preocupação central era descobrir, a partir de uma volta às
nossas raízes históricas, a real identidade do país para, de posse deste
conhecimento, formular estratégias para transformá-lo em uma nação moderna e
apta a assumir lugar relevante no concerto das nações desenvolvidas.
Como bem observa Márcia de Almeida Gonçalves, coleções como
Brasiliana, Documentos Brasileiros e Biblioteca Histórica Brasileira vieram, a
partir dos anos 1930, consolidar a trajetória ascendente dos estudos sobre questões
ligadas à realidade nacional, expressando um movimento de continuidade em
relação ao "desejo modernista de fundar conhecimentos singularizadores da
nação brasileira". Monteiro Lobato teria, segundo a autora, captado com
sensibilidade este movimento quando, ao referir-se à coleção Brasiliana, afirmou
estar-se assistindo à proliferação de "retratos poliédricos do Brasil"
131
. E
acrescenta:
Como o próprio nome sugere, os Estudos Brasileiros, tema amplo das coleções
referidas, agrupou, em cada uma de suas áreas, problematizações variadas sobre
aspectos da cultura e da sociedade brasileiras. Congregou, nesse sentido, os
esforços analíticos dispostos a iluminar, no sentido do uso da racionalidade, a
compreensão da realidade nacional, na sua contemporaneidade e na sua
historicidade.
132
No campo da política, toda uma linhagem de autores, com destaque para
Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Francisco Campos, entre
muitos outros, questionava a prática de se transplantar para o Brasil instituições
políticas que não se coadunavam com a realidade nacional. Sobre esta dissociação
advertia, por exemplo, Alberto Torres na década de 1910, ao analisar o cenário
em que se gestara a instituição do regime republicano no Brasil:
Os homens públicos estavam [...] longe de possuir o preparo dos fundadores da
república americana. Cientistas, literatos e juristas da escola de Coimbra
131
GONÇALVES, Márcia de Almeida. Em terreno movediço. Biografia e história na obra de
Octávio Tarquínio de Sousa. Tese de Doutorado em História apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003, p. 230.
132
Ibid., p. 231.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
60
trouxeram, para o nosso meio, brilhantes idéias, conceitos teóricos, fórmulas
jurídicas, instituições administrativas, estudados nos centros europeus. Com tal
espólio de doutrinas e imitações, arquitetou-se um edifício governamental, feito
de materiais alheios, artificial, burocrático. Os problemas da terra, da
sociedade, da produção, da povoação, da viação e da unidade econômica e
social, ficaram entregues ao acaso; o estado os olhava com os olhos do fisco;
e os homens públicos -- doutos parlamentares e criteriosos administradores --
não eram políticos nem estadistas; bordavam, sobre a realidade da nossa vida,
uma teia de discussões abstratas, ou retóricas; digladiavam-se em torno de
fórmulas constitucionais, francesas ou inglesas; tratavam das eleições, discutiam
teses jurídicas, cuidavam do exército, da armada, da instrução, das repartições,
das secretarias, das finanças, das relações exteriores, imitando ou
transplantando instituições e princípios europeus. Sob a impetuosidade do
primeiro monarca e o academicismo do segundo, o mecanismo governamental
trabalhou sempre [...] estranho às necessidades íntimas, essenciais, do nosso
meio físico e social.
133
Na vida artística e literária, dando substância a idéias introduzidas pelo
movimento modernista que se iniciara na década de 20, o eco desta preocupação
se traduz, entre outras atitudes, na tendência a valorizar características que passam
a ser percebidas como traços culturais originais brasileiros -- como, por exemplo,
o fato de se falar um mesmo idioma em toda a extensão territorial de um país com
as dimensões do Brasil, a originalidade da nossa música e da nossa arte populares,
e mesmo a mistura racial.
Nos anos 30, em plena fase de diminuição da entrada de imigrantes de
origem européia no país, assiste-se a um processo de valorização do elemento
nacional. O trabalhador rural, por exemplo, até então percebido como pouco
qualificado, passa a ser visto como substituto em potencial para o imigrante, capaz
de contribuir com sua força de trabalho para o esforço de construção da moderna
nação brasileira. O mestiço, por sua vez, de personagem estigmatizado é alçado à
posição de representante da originalidade da raça brasileira.
A "realidade brasileira" afirma-se, assim, como um dos conceitos-chave
da época, na avaliação de Antonio Cândido, materializando-se nos "estudos
brasileiros" de história, política, sociologia, antropologia, que ganham coleções
inteiras a eles dedicados. A tentativa de produzir uma análise crítica da nossa
realidade, escreve ele, teve como traços mais destacados "além da 'consciência
133
TORRES, Alberto. A organização nacional. 3ª. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 62.
(Brasiliana, v. 17; 1ª. ed.: 1914)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
61
social', a ânsia de reinterpretar o passado nacional, o interesse pelos estudos
sobre os negros e o empenho em explicar os fatos políticos do momento."
134
Todo este impulso de renovação e transformação, que se estendia às mais
diversas áreas de atividade -- educação, artes, literatura, estudos históricos e
sociais, veículos de difusão cultural -- aparece refletido nas páginas de Cultura
Política, que busca retratar o momento e traduzir a filosofia orientadora do Estado
Novo. Considerada capaz de conter em si todas as manifestações essenciais que
constituem a expressão do que seja uma nação, era desta forma apresentada, em
suas páginas, tal filosofia:
Filosofia integral, compreendendo a multiplicidade das manifestações vitais de
uma nação, a filosofia de que nasceu o Estado Novo -- e que o integra e dirige --
é toda uma concepção ousada, mas firme, substanciosa e profunda, de um povo
que se descobriu, que afinal se compreendeu a si mesmo e que caminha agora
[...] para um fim pré-estabelecido. As raízes dessa filosofia estão na nossa
história. A compreensão do Brasil, a explicação de sua vida, a procura de sua
alma, a determinação do seu destino -- eis os fundamentos da filosofia que orienta
o Estado Novo.
135
[grifo no original]
Outros artigos da revista veiculam esta preocupação em conhecer e
compreender o Brasil, como é o caso, por exemplo, da introdução à subseção
Evolução Intelectual de seu primeiro número. Na perspectiva do redator, o
interesse pelos estudos brasileiros e a curiosidade sobre nosso passado teriam sido
"repentinamente" suscitados entre nós pelo fato da guerra de 1914. Avalia,
contudo, que
[...] foidepois de 1930 [...] que descobrimos que podíamos atingir o universal
através do nacional. Estes propósitos [...] coincidiam [...] com os princípios da
Revolução política, posterior à Revolução intelectual que vinha se arrastando,
lentamente, desde 1922. [...] E como a política, recentemente inaugurada,
imprimia à vida nacional um sentido eminentemente brasileiro, não tardou muito
que a benéfica influência de seus propósitos invadisse os campos intelectuais (já
amainados pela campanha nativista do modernismo) para frutificar em obras
que [...] recomendam a nossa cultura e dignificam a nossa civilização. Nas
letras, como nas artes, na literatura, como nas ciências, nas pesquisas
desinteressadas ou na crítica revisora de valores, o Brasil já participa como
centro de estudos ou como motivo de nossos trabalhos.
136
[grifo meu]
134
CANDIDO, Antonio. "A Revolução de 1930 e a cultura". In: CANDIDO, A. A educação pela
noite e outros ensaios. 3ª. ed., 2ª. reimpressão. São Paulo: Editora Ática, 2003, p. 190.
135
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O Estado Novo e o Homem Novo. Cultura Política. Ano I,
nº. 1, março de 1941, p. 136.
136
A ordem política e a evolução intelectual. Texto de introdução à subseção "Evolução
Intelectual". Cultura Política. Ano I, nº. 1, pp. 250-251.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
62
Ainda nesta mesma linha de argumentação pode-se citar o artigo de Pedro
Dantas, pseudônimo sob o qual escrevia Prudente de Moraes Neto, publicado na
subseção Evolução Intelectual. Observa ele que os brasileiros substituíram a
atitude "negativista ou de espanto", que os fazia agir como "turistas" em sua
própria terra, por uma genuína vontade de conhecer o Brasil em suas diversas
facetas, aceitando e afirmando a nossa realidade como distinta e orgulhando-se
exatamente daquilo que a torna distinta. Ressalta haver chamado sua atenção um
cartaz utilizado nas comemorações do aniversário da implementação do Estado
Novo, cujos dizeres -- "o Brasil entrou na posse de si mesmo" -- o
impressionaram
[...] pelo conceito em si e pelo fato de haverem sido julgados adequados a fins de
propaganda. Essa circunstância é o indício suficiente de que "entrar na posse de
si mesmo" é, no momento, uma das preocupações dominantes do espírito
nacional. [...] Toda a literatura a que esta seção se refere constitui o mais formal
atestado da aludida preocupação. Em todos os domínios, sob todas as formas, o
Brasil é o grande assunto do espírito brasileiro, a sua última e absorvente
descoberta.
137
[grifo meu]
Cultura Política teve, ao todo, 53 edições, publicadas entre março de 1941
e outubro de 1945. Raúl Antelo sublinha que, na realidade, o último número a ser
oficialmente publicado com a chancela do aparelho estatal teria sido o nº. 50.
Embora publicada em maio de 1945, a edição abrange os meses de março, abril e
maio daquele ano. Os outros três exemplares -- nºs. 51, 52 e 53, respectivamente
de agosto, setembro e outubro de 1945 -- teriam sido editados pelo próprio Almir
de Andrade, após a dissolução da Agência Nacional. Andrade modifica o formato
dos três derradeiros números da revista para torná-lo semelhante ao de Seleções
do Reader´s Digest, como relata Antelo:
[...] o grosso volume de quase trezentas páginas, medindo 16 x 22,50 cm,
encolhe-se a um modesto exemplar, de escassas cento e poucas páginas, de 13,50
x 18,50 cm. Se formato e diagramação relembram as Seleções do Reader´s
Digest, a associação não é casual. Almir de Andrade confessa ter querido atingir
um público maior, e, para tanto, confiara a distribuição da revista a Fernando
Chinaglia, que também administrava Seleções.
138
137
DANTAS, Pedro. Literatura de idéias. Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de 1941, p. 258.
138
ANTELO, Raúl. "Cultura Política". In: ANTELO, R. Literatura em revista, op. cit., p. 11.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
63
Seu corpo de colaboradores, como comentado, contava com pensadores
de grande projeção no meio intelectual brasileiro. Os artigos veiculados não
tinham como alvo o público em geral. Destinavam-se a um segmento mais
específico, capaz de absorver e refletir sobre as questões de natureza política,
econômica e social que, em suas ginas, eram abordadas de forma mais
aprofundada do que a empregada em outras publicações -- como, por exemplo, em
sua "meia-irmã" Ciência Política, cujo conteúdo foi desenvolvido com vistas a
atingir um público mais amplo e não tão intelectualizado. Como observa Ângela
de Castro Gomes, em Cultura Política
[...] utilizava-se uma escrita sofisticada e toda uma bateria de argumentos
fundados na moderna ciência social da época. Esta análise cientificista era
contudo apenas um dos níveis de produção e divulgação do projeto político que
estava sendo construído. A ampla propagação deste projeto e, especialmente, sua
operacionalização recorreram a outro tipo de linguagem e a outros meios de
comunicação.
139
É interessante observar, a este respeito, que Mônica Velloso chama a
atenção para a existência de uma divisão do trabalho intelectual, identificando
duas esferas distintas: a esfera da "produção" propriamente dita das idéias, na qual
estariam envolvidos os "grandes intelectuais", e a da "divulgação" dessas idéias,
em que atuariam os "intelectuais médios". Neste cenário, Cultura Política era o
local por excelência reservado aos intelectuais voltados para a produção do
discurso estadonovista, ao passo que Ciência Política contava com a colaboração
dos "intelectuais médios", a quem caberia a tarefa de decodificar as grandes linhas
traçadas pelos produtores do discurso, de forma a facilitar seu entendimento pelo
público em geral. Nas palavras da autora,
Enquanto a Cultura Política se propõe a "definir" e/ou "esclarecer" o rumo das
transformações político-sociais, fornecendo as coordenadas do discurso, a
Ciência Política se autoconfigura enquanto "escola de patriotismo" voltada para
a difusão dos ensinamentos do Estado Novo.
140
Cultura Política oferecia-se como espaço para o debate de idéias não
entre intelectuais ligados ao novo regime -- ideólogos do Estado Novo como
139
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
invenção do trabalhismo, op. cit., p. 209.
140
VELLOSO, Mônica Pimenta. "Cultura e poder político: uma configuração do campo
intelectual". In: OLIVEIRA, Lúcia L., et al. Estado Novo: Ideologia e Poder, op. cit, p. 76.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
64
Lourival Fontes (diretor do DIP), o próprio diretor da revista Almir de Andrade,
Francisco Campos (redator da Constituição de 1937 e Ministro da Educação no
Governo Vargas), os escritores Azevedo Amaral e Cassiano Ricardo --, mas tinha
a pretensão de apresentar-se, também, como espaço democraticamente aberto à
diversidade de opiniões, capaz de abrigar pensadores de todos os matizes. Não
deve portanto, a princípio, causar estranheza a presença em suas páginas de
articulistas como os escritores Graciliano Ramos e Gilberto Freyre, e o oficial
graduado e futuro teórico do Partido Comunista Nelson Werneck Sodré, em tese
contrários às linhas mestras da nova política.
Para dar materialidade àquilo que "se deseja que exista", algo, portanto,
situado no futuro, era necessário recorrer à tradição, ou seja, àquilo "que já existe"
e está situado no passado. Como observa Ângela de Castro Gomes, a legitimidade
do novo Estado deveria ser, assim, buscada na origem
141
. Este movimento pode
ser percebido nos artigos de Cultura Política.
Reconstituir a história do país a partir da reinterpretação do passado, da
busca das origens "verdadeiras", torna-se assim o objetivo que deveria nortear a
produção literária dos intelectuais sintonizados com o projeto de renovação
nacional. A dificuldade, bem apontada por Mônica Velloso
142
, estaria em
conseguir extrair, da miríade de realidades que se pretendiam como expressão da
essência do Brasil, aquela que refletisse a verdadeira realidade nacional:
Esse universo de contradições, onde se quer o uno no múltiplo, a continuidade na
ruptura, sugere a metáfora do espelho. Pretendendo o igual, ele apenas ludibria,
pois a imagem projetada jamais corresponde ao real. Reflexo e real nunca
poderão se encontrar, posto que são inversos.
143
Fazer com que reflexo e real coincidissem parece ser precisamente o
objetivo de Cultura Política, se atentarmos para as palavras de Almir de Andrade
no editorial de abertura do primeiro número da revista:
Anima-nos [...] a consciência de já [...] havermos traçado um rumo definido para
as nossas caminhadas do porvir. As páginas desta Revista procurarão definir e
esclarecer esse rumo. Elas serão, nesse sentido, um espelho do Brasil. O que
141
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
inveção do trabalhismo, op. cit., p. 190.
142
VELLOSO, nica Pimenta. A literatura como espelho da nação. Estudos Históricos, 2,
1988, p. 248.
143
Ibid., p. 249.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
65
somos, o que pensamos, o que realizamos em todos os setores da nossa atividade
criadora -- na política, na economia, na técnica, nas artes, nas letras, na ciência
-- ficará estampado nestas páginas através do depoimento de todas as gerações
que hoje vivem, em todas as cidades e rincões do Brasil. Uns após outros esses
depoimentos virão, do norte e do sul, do litoral e do centro, de velhos e moços, de
gerações da República e do Império, de antes e de após-guerra. Eles falarão pelo
Brasil. Porque eles são o Brasil.
144
A estrutura da revista e as modificações a que foi submetida ao longo do
período em que se manteve em circulação constituem indícios importantes para
apontar o rumo que tomavam as mudanças instituídas pelo Estado Novo, e o
próprio processo de re-significação do conceito de democracia, em especial face
aos acontecimentos precipitados pela II Guerra Mundial. A revista apresentou
duas fases distintas em sua estrutura editorial. A primeira estende-se do momento
de sua fundação, em março de 1941, até a saída de Lourival Fontes da direção do
DIP, em maio de 1942. A partir daí a estrutura começa a sofrer algumas
alterações, mas é a partir de setembro de 1942 (nº. 19) que elas se intensificam,
resultando em nova organização das seções da revista.
De acordo com levantamento feito por Marcus Figueiredo
145
, as dezoito
primeiras edições de Cultura Política mantiveram praticamente a mesma estrutura
de seções e subseções. No início de cada seção, um pequeno texto introdutório
apresentava, em linhas gerais, o objetivo a que se propunha aquela seção
específica e os temas a serem abordados. Muitos dos artigos, por sua vez, vinham
antecedidos por resumos de aproximadamente um parágrafo, que muitas vezes
pareciam indicar uma tentativa por parte dos editores de direcionar o foco da
leitura para determinados aspectos das questões discutidas. Os resumos traziam
também, embora nem sempre, dados sobre os autores dos ensaios.
A seção "Problemas políticos e sociais", como o próprio nome indica,
debatia temas ligados a estas duas áreas. Nela, segundo Ângela de Castro Gomes,
era construído "de forma mais erudita", por intelectuais de peso como Almir de
Andrade e Cassiano Ricardo, o discurso legitimador, mobilizando-se conceitos
144
ANDRADE, Almir de. A evolução política e social do Brasil. Cultura Política. Ano I, . 1,
março de 1941, p. 8.
145
FIGUEIREDO, Marcus. Cultura Política: revista teórica do Estado Novo, op. cit. Cf. pp. 221-
222. Uma análise criteriosa da estrutura da revista pode também ser encontrada em GOMES,
Ângela de Castro. História e historiadores, op. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
66
como nação, povo, Estado e burocracia, entre outros
146
. Em "O pensamento
político do Chefe do Governo", a cargo de pensadores da estatura de Azevedo
Amaral e Rosário Fusco, eram divulgadas e analisadas as idéias de Getúlio
Vargas. Artigos sobre a nova Constituição e sobre as mudanças introduzidas pela
nova ordem no regime político e jurídico eram comentadas por magistrados de
grande projeção na seção "A estrutura jurídico-política do Brasil". Questões
relativas à legislação social e à política econômica eram tratadas em "O trabalho e
a economia nacional". Relatórios sobre as realizações do governo nas mais
diversas áreas eram apresentados na seção "A atividade governamental", que
recebia a colaboração de autores ligados aos vários setores da burocracia civil e
militar. Uma seção especialmente dedicada à história, "Textos e documentos
históricos", reproduzia documentos considerados relevantes para a imagem de
continuidade com um determinado tipo de passado que se queria afirmar. E,
finalmente, aquela por muitos considerada uma das mais importantes seções de
Cultura Política e tema de grande parte dos trabalhos publicados sobre a revista:
"Brasil social, Intelectual e Artístico". O objetivo, nesta seção, era tornar patente a
influência da política sobre a evolução das atividades sociais, intelectuais e
artísticas do país. Nela eram veiculados editoriais e artigos que versavam sobre
assuntos ligados a literatura, artes, usos e costumes, música e folclore, sempre
com o cuidado de enfatizar o papel desempenhado pelo Estado Novo no
desenvolvimento dessas atividades. Nos dezoito primeiros números da revista, a
seção subdividia-se em quatro subseções: uma de caráter mais abrangente discutia
questões ligadas à influência da política sobre as três áreas mencionadas. As
outras davam tratamento específico e separado a cada uma delas, isto é, à
evolução social, à evolução intelectual e à evolução artística.
147
Pesquisa feita por Ângela de Castro Gomes indica que todas elas, com
exceção de "O trabalho e a economia nacional", foram seções fixas dos primeiros
quinze números da revista.
148
Na edição de maio de 1942 (nº. 15) é introduzida nova seção, visivelmente
por influência do desenrolar dos acontecimentos no cenário mundial. Com o nome
146
GOMES, Ângela de Castro. "O Estado Novo e a recuperação do passado brasileiro". In:
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores, op. cit., p. 128.
147
FIGUEIREDO, Marcus. Cultura Política: revista teórica do Estado Novo, op. cit. Cf. p. 222.
148
GOMES, Ângela de Castro. "O Estado Novo e a recuperação do passado brasileiro", op. cit., p.
128.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
67
de "Política Militar e Defesa Nacional", reflete o pensamento do governo sobre
questões de segurança nacional e seu posicionamento em relação à guerra, já em
preparação para a entrada do país no conflito, o que ocorreria em agosto daquele
ano com a declaração de guerra do Brasil à Alemanha e Itália.
A estrutura de Cultura Política reflete o impacto das mudanças no cenário
político interno e externo. Entre setembro e novembro de 1942, ainda segundo
pesquisa de Ângela de Castro Gomes, o periódico ganha vinte e quatro novas
seções, privilegiando a abordagem de assuntos relativos à guerra e às relações
exteriores, como evidenciam alguns dos títulos -- "Política internacional", "O
Brasil e a guerra", "O Brasil no exterior" -- e de temas correlatos. Em 22 de agosto
de 1943 sai uma edição extraordiária da revista -- Cultura Política: o Brasil na
guerra --, cujas seções são dedicadas exclusivamente ao tema.
O alinhamento do Brasil com os Estados Unidos e a posterior entrada do
país na guerra, aliados às contradições internas que se acentuavam, com reflexos
na organização política do Estado Novo, provoca um redimensionamento do
corpo de colaboradores de Cultura Política. Verifica-se um progressivo
afastamento dos intelectuais de maior prestígio, cautelosos em continuar a
associar sua imagem ao regime, e sua substituição por pessoal técnico e oficiais
do Exército. A revista passa também por uma redefinição de seu perfil,
redirecionado para promover a conscientização e a mobilização da sociedade para
a realidade da guerra, o que lhe confere o caráter de publicação voltada para a
difusão de uma cultura militar, que se mostrava preocupada com a segurança do
país e com a defesa nacional.
149
A forma de organização e o nome das seções vai variando e se
tornando irregular, sendo que algumas edições, como as de abril e dezembro de
1944, não apresentam divisão em seções. Tornam-se escassos os artigos assinados
e mais frequentes matérias referidas como "reportagens especiais de Cultura
Política". Nos três últimos números (51, 52 e 53), como já comentado acima, o
próprio formato da revista é modificado por seu diretor, Almir de Andrade.
Em abril de 1943, em comemoração ao 60º. aniversário de Getúlio Vargas,
é publicada, como anexo à edição de nº. 26, uma separata de Cultura Política que
recebe por título O pensamento político do Presidente. Além de uma pequena
149
GOMES, Ângela de Castro. "O Estado Novo e a recuperação do passado brasileiro". In:
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores, op. cit. Cf. p. 130.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
68
biografia de Vargas, abrangendo até o ano de 1937, e de uma bibliografia
indicando as obras publicadas sobre o Estado Nacional e o pensamento do
Presidente entre 1930 e a data desta edição especial, a separata reproduz artigos e
editoriais veiculados nos primeiros 25 números da revista, tendo como critério de
seleção sua relevância para melhor compreender e interpretar o pensamento de
Vargas.
A repercussão, no contexto da política interna brasileira, dos
desdobramentos que se verificavam no cenário internacional em função do
desfecho para o qual se ia encaminhando a II Guerra, levava os setores
dominantes do país a assimilar e adaptar à realidade nacional os valores
propagados pelas grandes potências ocidentais que se afiguravam como
vencedoras do conflito. Como assinala Gerson Moura, a pressão interna e externa
obrigava o governo a pensar em uma estratégia de transição no sentido de deixar
de lado a moldura institucional autoritária e restaurar a normalidade democrática.
Nesta direção, foi revogada, no início de 1945, a censura à imprensa e
restabelecida a liberdade de organização política. Em fevereiro estabelece-se o
prazo para a realização de eleições gerais no país. Em abril foram libertados
presos políticos e legalizado o Partido Comunista. Em maio foi promulgada a
nova lei eleitoral e convocadas eleições presidenciais para dezembro de 1945 e
estaduais para o ano seguinte
150
. Todos esses eventos certamente influenciaram a
trajetória de Cultura Política.
Pode-se dizer, em ntese, que ao reunir os representantes mais
significativos da elite intelectual brasileira para realizar o objetivo de apresentar e
discutir, em suas páginas, problemas e realidades nacionais relacionados à
política, à economia, ao trabalho, à produção, bem como questões sociais,
científicas, literárias e artitísticas, Cultura Política transformara-se em espaço
privilegiado para a projeção do "espetáculo extraordinário de renascimento do
Brasil Novo."
151
A importância da revista deriva exatamente da forma como esse espetáculo
seria projetado.
150
MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a
Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1991. Cf. p. 50.
151
Texto de introdução à seção "Brasil social, intelectual e artístico". Cultura Política. Ano I, .
9, 10 de novembro de 1941, p. 360.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
3.
A democracia em revista
O título do presente capítulo foi escolhido em função do duplo significado
que se pode atribuir à palavra "revista". Emprego-a tanto no sentido de
"publicação periódica", quanto na acepção de "passar em revista", ou seja,
inspecionar, examinando criticamente. Trata-se, portanto, da democracia em
revista, na revista. E gostaria de iniciá-lo com duas citações.
Uma transcreve o diálogo travado entre Alice e Humpty Dumpty, dois
personagens do já mencionado livro de Lewis Carroll, Através do espelho e o que
Alice encontrou lá:
"Não sei o que quer dizer com 'glória' ", disse Alice [...].
"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty Dumpty [...], "ela significa
exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos".
"A questão é", disse Alice, "se pode fazer as palavras significarem tantas coisas
diferentes".
"A questão", disse Humpty Dumpty, "é saber quem vai mandar -- só isto."
152
A outra reflete uma das considerações de Getúlio Vargas acerca da
natureza democrática do Estado Nacional:
Consideramos mero bizatismo indagar se o novo regime é ou não democrático.
As oligarquias antigas e modernas, os regimes de privilégio, muitas vezes se
apelidaram democráticos. E o eram [...], para uma parte da população que lhe
usufruia as vantagens. Não devemos, por conseguinte, preocupar-nos com os
vários sentidos emprestados à palavra democracia.
153
[grifo meu]
O cerne da questão retratada nas duas passagens acima talvez possa ser
sintetizado na pergunta de outro personagem das aventuras de Alice -- o Mosquito
– o qual, impressionado pela afirmação da menina de que, no mundo do qual ela
viera, os insetos não atendiam pelos respectivos nomes, pondera, inconformado:
"De que serve terem nomes, se não atendem por eles?"
154
A inesgotável disputa em torno do significado da expressão "democracia",
ao longo do tempo, parece ecoar esta pergunta e tem permitido ao termo manter o
152
CARROLL, Lewis. Através do espelho e o que Alice encontrou lá, op. cit., p. 204.
153
VARGAS, Getúlio. Apud UCHOA, Severino. A democracia social brasileira. Cultura Política.
Ano IV, nº. 36, janeiro de 1944, p. 50.
154
CARROLL, Lewis, op. cit., p. 165.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
70
seu caráter polissêmico, informado que é pelos mais variados significantes. Nas
palavras de outro articulista de Cultura Política, Leopoldo Peres, Presidente do
Conselho Administrativo do Estado do Amazonas,
Não há [...] em nosso idioma, e quero crer que em todos os idiomas ocidentais,
pelo menos no que tange à terminologia política ou sociológica, um vocábulo que
mais [...] se adapte a interpretações dissonantes, a controvérsias retrincadas ou
puramente sofísticas. Cada qual lhe atribui o sentido que entende, o valor, a
dimensão, a elasticidade convinháveis. De tal jeito que, sem maior
constrangimento, dele tanto se utilizam os sequazes da esquerda como os adeptos
da direita: tudo se lhes afigura democracia, e da melhor.
155
[grifo meu]
Na avaliação deste autor, não se pode atribuir à democracia a característica
de ser um sistema rígido, ou mesmo uma categoria lógica. Ela deve ser percebida
como um conceito de natureza pragmática, "um dado da experiência política, a
definir, sob critérios gerais, situações particulares em cada hipótese". Mas,
adverte ele, isto não implica que se deva concordar com o juízo formulado por
Tristão de Ataíde acerca do termo: o de ser a democracia "uma expressão que
nada diz, porque diz demais, e serve para veicular os conceitos mais disparatados
e para exprimir os regimes mais diversos entre si".
156
É precisamente esta fluidez, que se traduz na multiplicidade de
significados, um dos fatores que garantem ao termo "democracia" o status de
conceito, e não de mera palavra, como ensina Kosellek.
O desenrolar desta disputa que se trava em Cultura Política em torno da
essência do conceito constitui o foco da investigação do presente capítulo, tendo
sempre em mente, também como ensina Koselleck, o entrelaçamento entre a
realidade concreta dos fatos e a sua apreensão linguística, já que não se pode
atribuir à linguagem o papel de único reflexo da vida social. Como argumenta este
autor, independente da preferência por argumentos linguísticos ou não-
linguísticos, e embora seja possível afirmar que a decisão é, em última instância,
articulada pela linguagem, isto não significa atribuir prioridade à linguagem sobre
a realidade factual.
157
155
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia. Cultura Política. Ano IV, nº. 38,
março de 1944, p. 13.
156
ATAÍDE, Tristão de. Apud PERES, Leopoldo, op. cit., pp.13-14.
157
SEBASTIÁN, Javiér Fernández; FUENTES, Juan Francisco. Conceptual history, memory and
identity: an interview with Reinhart Koselleck. Contributions to the History of Concepts, vol. 2,
nº. 1, março de 2006. Cf. pp. 106-108.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
71
3.1.
Em busca do passado "adequado"
Três frases me parecem conter a essência da estratégia de propaganda
elaborada e coordenada pelo DIP para a difusão das diretrizes doutrinárias do
novo regime. No caso específico de Cultura Política, o público alvo, como visto,
eram os formadores de opinião, mas o Departamento, valendo-se de diferentes
meios de comunicação, visava ampliar o mais possível o alcance da divulgação
desse ideário, com o propósito de também manter o público em geral informado
sobre o curso das transformações implementadas.
Cito, em primeiro lugar, a bem conhecida frase de abertura da Declaração
de Independência Americana:
Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário a um povo
dissolver os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da
Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do
Deus da natureza, o respeito digno às opiniões dos homens exige que se
declarem as causas que os levam a essa separação.
158
A frase foi escolhida em função da necessidade nela expressa de que "se
declarem as causas", ou seja, de que as ações dos governantes sejam explicadas e
justificadas.
É interessante observar que este "imperativo da justificação" tem sua
relevância enfatizada por Michael Pollak
159
. Diz ele:
Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referências que
possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é
indispensável para superar a simples "montagem ideológica", por definição
precária e frágil. [...] Todo trabalho de enquadramento [no sentido de fornecer
quadros de referência] de uma memória de grupo tem limites, pois ela não pode
ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a certas exigências
de justificação. Recusar levar a sério o imperativo de justificação sobre o qual
repousa a possibilidade de coordenação das condutas humanas significa admitir
o reino da injustiça e da violência.
160
158
Tradução disponível no site http://pt.wikisource.org
159
Pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques, ligado ao Institut d´Histoire du
Temps Present e ao Groupe de Sociologie Politique e Morale.
160
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
vol. 2, n°. 3, 1989, pp.3-15.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
72
Explicar e justificar ações é, muitas vezes, tarefa que requer a mediação
de intelectuais. Estes, selecionando e interpretando fatos, tentam conferir
legitimidade histórica aos acontecimentos presentes, enfatizando experiências
específicas com o propósito de estabelecer uma idéia de continuidade com
determinado tipo de passado -- ainda que tal tentativa possa produzir resultados
um tanto artificiais. O discurso assim produzido, será, portanto, sempre carregado
de intencionalidade.
É esta a idéia contida na segunda e na terceira das três frases escolhidas,
pinçadas por estarem relacionadas à própria forma como se organiza a escrita da
história, e que transcrevo a seguir.
Começo por uma afirmativa retirada de palestra proferida na JFK School
of Government da Universidade Harvard, em fevereiro de 2002, pelo linguista e
filósofo político americano Noam Chomsky:
A história é aquilo que é criado por intelectuais bem-educados, e não tem que ter
qualquer semelhança com aquela coisa chamada história pelas pessoas
ingênuas.
161
A terceira e última frase é de autoria do antropólogo francês Claude Lévi-
Strauss: "A história não é portanto jamais a história, mas a história-para."
162
Espero poder demonstrar, a partir da leitura e análise de artigos de Cultura
Política, que o processo acima descrito -- qual seja: a construção, por intelectuais
"bem-educados", de uma "história-para", movida pelo "imperativo de
justificação" -- foi o seguido pelos colaboradores da revista com o objetivo de
consolidar, nos corações e mentes dos governados, a convicção de que o novo
sentido atribuído à idéia de democracia pelo regime de 1937, e pelo qual o
governo pautava suas ações, era a democracia em sua forma autêntica, buscando
assim conferir-lhe legitimidade.
Já no primeiro número da revista, este propósito transparece nas palavras
do redator da introdução a uma das seções de Cultura Política. Teoriza ele sobre o
movimento de ressureição do nosso passado em que os autores de então se
161
CHOMSKY, Noam. Distorted Morality: America´s war on terror? Disponível em DVD.
[Tradução minha. A frase no original é: History is what is created by well-educated intellectuals
and it doesn´t have to have any resemblance to that thing called history by naive people.]
162
LÉVI-STRAUSS, Claude. "Histoire et dialectique". In: La Pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
Apud LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1989, p. 23.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
73
encontravam empenhados, na tentativa de, em seus livros, "justificar a coerência
de nosso presente social e político, com o espírito das nossas tradições de
ontem."
163
Do número 21 da revista, transcrevo o trecho a seguir, que vem ilustrar
ainda melhor este sentido de justificação pelo apelo às origens históricas:
Todos os postulados do novo regime encontram plena justificativa em nossas
origens históricas. Não houve portanto [...] nenhum rompimento da nossa
evolução, mas uma volta ao roteiro certo. [...] A nossa situação política de hoje
realiza objetivamente o subjetivismo libertário dos Inconfidentes e [...] de todos
os movimentos nativistas que ficaram [...] esquecidos no registro da nossa
história. Tanto no ciclo das revoluções nativistas [...] como [...] com o advento
da Independência, o analista [...] de nossas realidades sociais poderá encontrar
as raízes mais longínquas do instituto jurídico que, sob a exata designação de
Estado Nacional, consubstancia a vida política da nação.
O exame do nosso passado mostrará como, no tempo e no espaço, têm sido as
duas constantes de nossa vocação política: Autonomia e Unidade. [...] O 10 de
Novembro foi o encontro dessa vocação. [...] Fidelidade às nossas tradições --
eis uma frase que pode servir de chave para a compreensão do Estado
Nacional.
164
[grifo meu]
Os idealizadores do movimento que se iniciara em 1930 e que veio a se
consolidar em 1937 pretendiam apresentá-lo como a restauração de uma ordem
que consideravam haver sido interrompida -- ou corrompida -- durante os anos de
vigência da República Velha, atribuindo-lhe um sentido de retomada do contato
com a realidade nacional. Tal restauração deveria ser entendida não como uma
volta ao passado, mas como um novo começo, como sugere Ângela de Castro
Gomes
165
.
Como já explicitado, minha hipótese é que, para explicar e justificar a
idéia de "novo", da qual, aliás, era portadora a própria denominação do regime
instaurado em novembro de 1937 -- Estado Novo -- produziu-se todo um discurso
no sentido de re-significar o conceito de democracia.
Em Cultura Política, esta intenção fica evidente desde o editorial de
abertura de seu primeiro número, redigido por Almir de Andrade. Discorrendo
sobre a época conturbada que o mundo então atravessava, ele fala da necessidade
163
A ordem política e a evolução intelectual. Texto de introdução aos artigos que integram a
subseção "Evolução Intelectual". Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de 1941, p. 251.
164
O pensamento político do Presidente através dos estudos de Cultura Política. Cultura Política.
Ano II, nº. 21, 10 de Novembro de 1942, pp. 193 e 194. (Edição especial comemorativa do 5º.
aniversário do Estado Nacional).
165
GOMES, Ângela de Castro. "O redescobrimento do Brasil". In: GOMES, Ângela de Castro. A
invenção do trabalhismo, op. cit., p. 191.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
74
de que as instituições "se modifiquem e se renovem" para acompanhar as novas
tendências assinaladas para o futuro, capacitando-se para dar "mais humanidade
ao Estado, melhor assistência social às populações, maior amparo e dignidade à
personalidade humana"
166
. E introduz a idéia do que seria a nova concepção de
democracia:
A democracia subsistirá, por certo, aos grandes embates e às grandes provações
por que a estão fazendo passar. Porque, na verdade, a democracia encerra todo
o sentido social da própria evolução da civilização humana.
Mas a democracia é uma instituição viva e, por isso mesmo, uma instituição que
evolui e que acompanha as mutações da vida. A democracia é um ideal de
solidariedade humana, de respeito ao trabalho e aos frutos do trabalho, de
lealdade e sinceridade na cooperação de todos os homens para o bem comum --
sem distinções de privilégios, nem de raças, nem de classes, nem de fortunas.
A evolução que aguarda as democracias de hoje é, indubitavelmente, a que as
levará, cada vez mais, nesse sentido de uma ordem social superior -- onde não
haja a hipocrisia das fórmulas sonoras e vazias, nem a exibição de princípios ou
de declarações de direitos que nunca foram cumpridos e que serviram de
pretexto para explorações políticas de toda espécie.
167
O estreitamento dos canais de comunicação entre povo e elite governante
também fazia parte do novo ideal:
O verdadeiro ideal democrático impõe uma aproximação cada vez maior entre o
governo e o povo, entre o Estado e o homem comum -- afim de que possa aquele
servir, não meramente a fins políticos, mas essencialmente à cultura, à alegria,
ao bem-estar, à felicidade de todos e de cada um em particular
168
.
Da leitura destes dois pequenos trechos, extraídos do artigo de abertura da
primeira edição do periódico, já é possível ter uma noção do material que a revista
contém para orientar a investigação aqui proposta.
Se a ideologia oficial pela qual se pautavam as aspirações dos
idealizadores da nova ordem deve ser entendida como instrumento de
consolidação dessa ordem, era natural que, em tal contexto, a colaboração dos
intelectuais fosse mobilizada para divulgar as diretrizes doutrinárias que
orientavam o projeto de reconstrução nacional. A arma de que dispunham para
166
ANDRADE, Almir de. A evolução política e social do Brasil. Cultura Política. Ano I, n°. 1,
março de 1941, p. 5.
167
Ibid., pp. 5-6
168
Ibid., p. 7
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
75
levar avante semelhante tarefa era a sua "pena", espada poderosa
169
com a qual
produziriam o discurso político destinado a interpretar e dar sentido não apenas às
ações realizadas pelo governo no período 1930-1937, mas também às iniciativas a
serem futuramente implementadas com vistas a superar obstáculos e acelerar o
desenvolvimento sócio-econômico do país. E a redefinição do conceito de
democracia estava no centro deste processo.
Com este propósito em mente, acredito que se estava construindo, nas
páginas da revista -- vitrine para a exposição da nova doutrina -- uma ponte de
mão dupla entre presente e passado. Arquitetos desta construção, os intelectuais
convidados para o esforço davam início ao trabalho projetando, primeiramente, o
sentido presente-passado. Tendo como foco a ordem que haviam sido convocados
a legitimar, partiam das necessidades do presente para buscar, no passado, os
insumos a serem utilizados como fundamento da estrutura a ser erguida. Este
material, devidamente selecionado, organizado e interpretado, se constitui na
matéria prima de um passado "adequado", o qual seria, então, mobilizado pelo
discurso legitimador para construir o trecho passado-presente da ponte. Ao traçar
desta forma o caminho de volta, seu objetivo era consolidar a noção de que as
mudanças implementadas no presente expressavam uma continuidade histórica
em relação a uma trajetória iniciada em um passado supostamente portador da
"verdadeira" realidade nacional e que apontava para uma determinada direção, da
qual o país teria se "desviado" por diversas vezes durante a vigência de regimes
que antecederam o Estado Novo.
O trecho a seguir, extraído de uma das seções praticamente fixas que
compunham a revista em suas primeiras dezoito edições, vem ao encontro desta
observação:
O atual governo é o primeiro a esforçar-se por manter o Brasil coerente com a
sua linha evolutiva tradicional. Porque sem o sentido do passado não há coesão
social possível. É o sentido da duração de nós mesmos, no dizer de Henri
Bergson, que nos dá o sentido da nossa própria personalidade. Isso para os
povos, como para os indivíduos. Uma das nossas preocupações básicas,
portanto, será conservar o contato constante do presente com o passado. O
Brasil de ontem -- da Colônia, do Império, da Primeira República -- deve
conservar-se bem vivo em nossa memória. [...] Porque só ele explicará o que
169
Tomo a liberdade de me apropriar do título de um dos capítulos de livro organizado por James
Tully: “The pen is a mighty sword: Quentin Skinner´s analysis of politics”. Cf. TULLY, James
(Ed.). Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. New Jersey: Princeton University
Press, 1989.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
76
somos hoje e o que seremos amanhã. -- Páginas escolhidas de escritores de
ontem, brasileiros ou estrangeiros [...] -- serão o conteúdo desta seção. Elas nos
reconduzirão, através de testemunhos autênticos, ao que há de mais vivo e de
mais puro em nosso passado social.
170
[grifo meu]
Esta última frase, em especial, me parece ilustrar o movimento que orienta
a construção da ponte entre o Brasil de "hoje" e de "ontem". Percebo aqui um
intelectual que parte do presente para buscar, na história, "testemunhos
autênticos", capazes de refletir o que há "de mais vivo e de mais puro em nosso
passado social" -- ou seja, o discurso legitimador buscando o passado
"adequado".
Ainda mais uma passagem, transcrita de outro artigo, este de autoria de
Odorico Costa, diretor da Imprensa Oficial do Estado de Goiás, reforça a
tendência a se atribuir um "sentido" à nossa história, sentido esse que seria,
finalmente, realizado com o advento do Estado Novo:
Examinando-se a história da formação brasileira, sente-se com muita clareza e
com muita precisão, que o país queria alguma coisa, aspirava a um bem que não
se definira ainda. Essa caça ao imponderável durou todo o primeiro Império,
durou toda a Regência, durou todo o segundo Império e durou, ainda, toda a
Velha República. [...] Vezes sem conta, ao fim de determinadas etapas, julgou-se
que essa [...] aspiração nebulosa e imprecisa, tinha sido conquistada [...]. Ao
fim de algum tempo, entretanto, verificava-se que [...] a mesma aspiração
inconsciente, mas preponderante, continuava empolgando as camadas populares
do Brasil. [...] Essa aspiração, assim mal definida em seus contornos, está hoje
perfeitamente delineada: o que o Brasil desejava era a dissolução dos partidos
políticos, era a destruição da influência dos políticos nos seus processos de
evolução, era a sua emancipação da tutela enxovalhante dos políticos sem
escrúpulos. O que o Brasil queria no primeiro Império, na Regência, no segundo
Império e na Velha República era a moralização de seus costumes políticos e a
moralização de seus processos administrativos. Essas conquistas vieram com o
10 de novembro. Desde 10 de novembro, o Brasil é outro. Libertou-se do
gangsterismo eleitoral e libertou-se de influências negativas que o anemiavam.
171
Outra fonte interessante para a análise aqui proposta é o artigo de Cassiano
Ricardo, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, que recebe o
sugestivo título de "O Estado Novo e o seu sentido bandeirante"
172
. Nele o autor
170
Texto de apresentação da subseção "Páginas do passado brasileiro", que integra a seção "Brasil
Social, Intelectual e Artístico". Cultura Política. Ano I, n°. 1, março de 1941, p. 245. (Não há
indicação de autor).
171
COSTA, Odorico. A dissolução dos partidos políticos brasileiros. Cultura Política. Ano III, nº.
34, novembro de 1943, p. 175.
172
RICARDO, Cassiano. O Estado Novo e o seu sentido bandeirante. Cultura Política. Ano I, nº.
1, março de 1941, pp. 110-132.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
77
retoma o tema tratado em seu livro Marcha para o Oeste: a influência da
bandeira na formação social e política do Brasil (1940), no qual investiga qual
grupo social teria dado origem, no Brasil, à democracia.
No artigo, como informa o redator da introdução, Cassiano Ricardo busca
lançar uma ponte entre o movimento das "bandeiras" e a nova orientação política
idealizada para o país, na tentativa de estabelecer a conexão entre o sentido social
e político da bandeira e o sentido da evolução da democracia em direção ao
Estado Nacional. O objetivo é mostrar que o Estado Novo é o reencontro do
Brasil consigo próprio, seu "retorno às suas fontes históricas, étnicas, econômicas
e políticas", e que o regime de 10 de novembro de 1937 pode ter suas raízes
históricas traçadas desde o movimento bandeirante. O Estado Novo, especula o
autor, "obedece a uma imposição das atuais circunstâncias, ou encontra
explicação nas linhas dentro das quais se processa, desde o primeiro momento, a
nossa formação social?". A resposta, para ele, é que o Estado Novo "realiza o
governo forte, a democracia (não a de pura ficção jurídica) e retoma o sentido da
brasilidade, que está na marcha para o Oeste."
173
A democratização social pela mestiçagem e o tratamento igual para todos,
sem preocupação com classe e posição social, assim como a solidariedade social,
são algumas das marcas da sociedade bandeirante. Tratava-se, na avaliação de
Cassiano Ricardo, de uma democracia "rudimentar", exercida sob a forma de
participação direta através de "decisões plebiscitárias" sobre questões de maior
relevância, e na qual a escolha dos governantes locais se dava pelo processo
eleitoral. E acrescenta que, antecipando o espírito das democracias modernas,
estabelecem os edis, certa ocasião, esta coisa sumária e edificante: segredo nas
resoluções da câmara. [...] Nada de muita verborragia. Muito palavrório só
poderia prejudicar os interesses do povo. Traduzido para a linguagem política,
queriam eles demonstrar, já naquela época, a falência dos regimes tagarelas e
parlamentares [...] .
174
Para Cassiano Ricardo, a bandeira representa "o nosso primeiro ensaio de
self-government", e constitui a origem do "apego" do povo brasileiro ao governo
forte, pois "o governo forte decorre da autoridade mesma de que se revestia o
173
RICARDO, Cassiano. O Estado Novo e o seu sentido bandeirante, op. cit., p. 111.
174
Ibid., p. 115.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
78
condutor da bandeira para realizar as aspirações do grupo e manter-lhe a [...]
unidade". A bandeira, teoriza,
[...] é um Estado [...] com um governo forte -- um executivo que tudo dispõe e
tudo ordena; enfim, uma autoridade que exerce funções policiais e judiciárias e
em torno da qual se reúnem, dentro da mais estreita solidariedade, e
hierarquicamente dispostos, os elementos componentes do agrupamento.
175
O grupo possui uma espécie de Constituição, na qual estão inscritas as
normas de governo, e seu chefe pode ser comparado a um chefe de Estado.
Preside, portanto, tal sociedade um governo legal, que garante a ordem civil.
Existe ali, nas palavras do escritor, uma "forma de governo" que ele percebe como
o "germe de uma democracia social interessantíssima."
176
Para tornar mais sólida a ponte que tenta construir, Cassiano observa que é
em momentos de crise que se volta a recorrer à atuação de um líder único, capaz
de tomar a si a responsabilidade de exercer o poder. Neste sentido, a maior
concentração de autoridade no Executivo que caracteriza o Estado Novo nada
mais refletiria que um apelo às nossas origens, ao nosso espírito bandeirante. O
mesmo se poderia dizer da instituição do plebiscito como forma de dispensar as
"representações fúteis e os intermediários anacrônicos."
177
O Brasil só se realiza plenamente quando revive o espírito bandeirante,
afirma, e a melhor tradução desse espírito é
[...] José Bonifácio combatendo o liberalismo francês, em favor da unidade
brasileira; é Pedro I dissolvendo a constituinte, em favor da Autoridade forte; é
Feijó, na regência, evitando a dissolução das províncias; é Pedro II exercendo o
seu poder pessoal, mais governando do que reinando; é Deodoro instituindo o
presidencialismo e nos salvando do regime parlamentar; é Floriano [...]
consolidando a República.
178
O Estado Novo, com a adoção de medidas como o fortalecimento do
Executivo e a atribuição de maior poder pessoal ao Chefe da Nação, é visto pelo
autor como a representação, por excelência, da nossa formação social:
175
RICARDO, Cassiano. O Estado Novo e o seu sentido bandeirante, op. cit., p. 123.
176
Ibid., loc. cit.
177
Ibid., p. 131.
178
Ibid., p. 132.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
79
Não haverá mesmo surpresa em se dizer que o Estado Novo é várias vezes
bandeirante. Bandeirante no apelo às origens brasileiras: na defesa de nossas
fronteiras espirituais contra quaisquer ideologias exóticas e dissolventes da
nacionalidade; no espírito unitário, um tanto anti-federalista; na soma de
autoridade conferida ao chefe nacional; na "marcha para o oeste" que é também
sinônimo do nosso imperialismo interno; e no seu próprio conceito, isto é, no seu
conceito "dinâmico" de Estado.
179
O mesmo movimento, no sentido de traçar uma "linha do tempo" ao longo
da qual os eventos se sucedem, tal qual uma flecha lançada em determinada
direção, pode ser percebido nas palavras com que Almir de Andrade busca
justificar os acontecimentos que culminaram na instauração do Estado Novo:
A ordem política representa, para cada povo, uma necessidade de vida e de
organização. [...]. O Estado representa, para a nação que o constrói, um
instrumento de defesa da sua liberdade: liberdade de criar para si instituições
adaptadas à sua maneira de ser, liberdade de trabalhar para consolidar as bases
da sua subsistência e prosperidade econômica, liberdade de reclamar para si o
espaço da terra e a forma de governo de que necessita para progredir.
Historicamente -- e hoje mais do que nunca -- o Brasil sempre reconheceu a
veracidade desses princípios.
180
Pondera ele que, numa época em que as peculiaridades da formação social
e política do Brasil clamavam pela unidade que só um governo monárquico
poderia proporcionar, o país tornou-se um Império, forma de organização política
que não fora adotada por nenhum outro país americano. Quando condições
históricas diferentes apontaram para a necessidade de uma nova mudança na nossa
estrutura política, foi proclamada a República e adotados os princípios da liberal-
democracia. O país buscou sempre organizar-se politicamente em consonância
com suas necessidades, adotando o sistema que melhor refletisse suas condições
econômicas, sociais, administrativas e mesmo espirituais. Nessa mesma linha,
conclui,
Mais uma vez, mudamos em Novembro de 1937, o nosso sistema de governo,
procurando adaptá-lo às nossas realidades mais prementes e também àquilo que
julgávamos ser as tendências mais imediatas da evolução política do mundo na
fase de transição por que passa. Pelo que fizemos em nosso país, nenhuma
explicação devemos aos demais. O sistema político que adotamos nasceu das
179
RICARDO, Cassiano. O Estado Novo e o seu sentido bandeirante, op. cit. , p. 132.
180
ANDRADE, Almir de. A soberania internacional do Brasil. Cultura Política. Ano I, nº. 3,
maio de 1941, pp. 5-6.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
80
condições históricas e sociais que precipitaram a Revolução de 1930 e que se
cristalizaram no atual regime.
181
A história se apresenta, assim, como algo dinâmico, sempre em
construção, mas cujo resultado final é a transformação dos fatos selecionados em
discurso legitimador. O risco que se corre, como adverte Robert Darnton, é
permitir que a história assim feita possa ser "convertida em qualquer coisa que
impressione nossa fantasia", ignorando-se os fatos e prestando-se atenção apenas
no discurso:
Como historiador, estou com aqueles que vêem a história como uma construção
imaginativa, algo que precisa ser pensado e retrabalhado interminavelmente.
Mas não acho que ela possa ser convertida em qualquer coisa que impressione
nossa fantasia. Não podemos ignorar os fatos nem nos poupar ao trabalho de
desenterrá-los, só porque ouvimos falar que tudo é "discurso".
182
É importante, ao acompanhar o movimento que está por trás da intenção
de re-significar o conceito de democracia, não perder de vista a advertência de
Darnton de que o discurso precisa estar ancorado nos fatos. Se existe uma ponte
ligando o discurso legitimador do presente a fatos históricos no passado, e se esta
ponte pode ser construída pelos intelectuais "bem-educados" de que fala Noam
Chomsky, ao sabor da ideologia do momento, é preciso estar atento para a
necessidade de, reconstituindo o movimento realizado pelos intelectuais,
aprofundar a investigação dos fatos como forma de detectar, no interior do
discurso, aquilo que constitui "a simples 'montagem ideológica', por definição
precária e frágil", como adverte Pollak. Em outras palavras: ter consciência de se
estar lidando com a "história-para" de que nos fala Lévi-Strauss.
3.2.
A democracia em Cultura Política: construindo o conceito
Democracia autoritária, corporativa, econômica, realista, funcional. Estes
são apenas alguns dos muitos adjetivos que qualificam o termo "democracia" ao
181
ANDRADE, Almir de. A soberania internacional do Brasil, op. cit., pp. 6-7.
182
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 69.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
81
longo das páginas da revista, em meio ao turbilhão de idéias transformadoras
centradas no projeto de reconstrução nacional.
Dois anos antes do lançamento da revista, Oliveira Vianna já chamava a
atenção para o fato de que
Há presentemente um vivo movimento de interesse em torno da velha tese da
"democracia liberal" e da nova tese da "democracia autoritária". Revivem-se
antigos debates sobre a "soberania do povo"; sobre o "sufrágio universal"; sobre
a "representação política"; sobre o "princípio de liberdade"; sobre o Estado
Totalitário, contraposto ao Estado Liberal; sobre o "princípio do chefe"; sobre
as "novas fontes da opinião democrática"; sobre a "organização corporativa",
etc.
183
Já no número de abertura, como mencionado anteriormente, Cultura
Política define sua linha de atuação em artigo no qual seu diretor, Almir de
Andrade, explicita o conceito de democracia que deveria orientar o novo Estado
na consolidação de seus objetivos. A nova democracia vem imbuída de forte
noção de "utilidade social", que se expressa através da valorização do homem pelo
respeito ao trabalho. A ela também se associa um sentido de solidariedade
humana:
A enorme, a eterna vitalidade das instituições democráticas decorre da sua
grande missão histórica, que é garantir a expansão socialmente útil da
personalidade humana, distribuir os bens sociais na medida das capacidades e
necessidades de cada um, assegurar a ordem para a melhor eficiência do
trabalho, fortalecer os vínculos da solidariedade econômica, afetiva e moral
entre os indivíduos e as classes, disciplinar as forças econômicas e políticas para
que não proliferem os individualismos e possa haver, entre os homens, maior
justiça, equidade, respeito e compreensão mútua.
184
Um novo homem seria o cidadão desta nova democracia. A ele seriam
conferidos direitos sociais, em substituição aos direitos políticos que lhe estavam
sendo subtraídos. Ser-lhe-ia dado, sobretudo, um sentido de pertencimento, ao
permitir sua organização em corporações que funcionariam como um canal direto
de comunicação com o poder central, eliminando a necessidade de intermediação
via partidos políticos. A relação entre o novo indivíduo e o Estado deveria
caracterizar-se pela ausência de conflito, isto é, deveria ser uma relação em que o
183
VIANNA, Oliveira. O idealismo da constituição. 2ª. ed. aumentada. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1939, p. XI.
184
ANDRADE, Almir de. A evolução política e social do Brasil, op. cit., pp. 6-7.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
82
indivíduo fosse considerado em sua dimensão humana, enquanto o Estado atuaria
na capacidade de instância coletiva. Era esperado que os interesses dessas duas
instâncias caminhassem na mesma direção. Nas palavras de Paulo Augusto de
Figueiredo, outro dos colaboradores da revista,
Homem e Estado, no Brasil, não se colocam em campos diferentes ou adversos.
Sendo o Estado a Nação mesma, e sendo a Nação uma pessoa, a pessoa coletiva,
nacional, porém real, viva, por isso mesmo se processam naturalmente, entre
nós, as relações entre o indivíduo e o Estado, o indivíduo pelo Estado se
construindo, e o Estado no indivíduo se edificando. Ao fim, tais relações são
relações de homem a homem, sendo o Estado como que o instrumento de
adaptação de interesses, de ordenação de valores, de orientação de atividades.
185
[grifos no original]
Uma passagem extraída de artigo de autoria de Azevedo Amaral que
integra o primeiro número da revista -- posteriormente reproduzido em edição
especial de Cultura Política comemorativa do 60º. aniversário de Getúlio Vargas,
publicada em forma de separata -- pode ilustrar esta busca pela convergência de
interesses entre Estado e sociedade que se impunha como uma das questões vitais
da "nova democracia".
O ensaio versa sobre uma afirmação feita por Vargas no sentido de que a
democracia precisa se adaptar aos novos tempos se pretende sobreviver, posto que
nada há de imutável. Criticando o "apriorismo ideológico", o subjetivismo e a
falta de percepção da realidade nacional que caracterizam aqueles que alimentam
a "noção ilusória" de que possam existir regimes políticos predestinados a se
impor e subsistir como formas definitivas de organização das sociedades, e que
acreditam ser papel das sociedades adaptar-se às instituições ao invés destas
refletirem a vontade social, Azevedo Amaral enfatiza que o verdadeiro estadista
deve se empenhar em "dar aos povos que dirigem instituições configuradas pelas
exigências da realidade social". E procura mostrar que, sob este aspecto, a
orientação ideológica de Vargas estava em perfeita consonância com a
necessidade de renovação:
O Presidente Getúlio Vargas inclui-se na categoria desses estadistas dinâmicos e
criadores. E a sua obra, que é o Estado Nacional brasileiro, reflete […] o
espírito realista e progressista da mentalidade que não se conforma com a ilusão
185
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. A pessoa humana no Estado Nacional. Cultura Política.
Ano III, nº. 34, novembro de 1943, p. 23.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
83
da permanência perpétua e da imutabilidade das coisas. A história das origens e
do surto da própria democracia contém […] a prova mais inequívoca da
verdade, tão oportunamente focalizada pelo Presidente, ao afirmar que nada há
imutável e que os regimes políticos, derivando-se de fatores em ação num dado
momento histórico, têm forçosamente de se modificar e transformar mesmo em
instituições radicalmente diferentes, sob a influência de novas condições do clima
espiritual e do dinamismo da sociedade que o gerou.
186
[grifo meu]
Ao sublinhar que as instituições, para acompanhar as exigências dos novos
tempos, precisam incorporar a disposição de transformar-se, ainda que em
"instituições radicalmente diferentes", o autor parece sinalizar para a
possibilidade de uma ampla flexibilização do campo linguístico dentro do qual a
definição do conceito de democracia possa vir a se inscrever.
Em artigo assinado por Aloísio Maria Teixeira
187
, juiz no Distrito Federal,
no qual o autor fala do sentido da república e da democracia, justifica o
fortalecimento do Executivo e procura traçar a linha divisória entre os conceitos
de "governo forte" e "ditadura" -- apresentando aquele como uma "defesa da
democracia" --, a modalidade de governo implementada com o Estado Nacional e
consolidada na Constituição de 1937 é descrita como um regime democrático,
apesar da abolição do sufrágio universal, da extinção dos partidos políticos e da
concentração de poderes na pessoa do presidente. Isto porque o poder político
continuaria a emanar do povo e a ser exercido em seu nome, ainda que apenas de
forma indireta, sendo o sufrágio direto limitado às eleições municipais.
Argumenta o articulista que o regime representativo, nos moldes estabelecidos
pela democracia liberal, não passava de "ficção doutrinária", uma vez que o
sufrágio universal ter-se-ia mostrado incapaz de produzir resultados satisfatórios.
E justifica:
[C]om o advento da nova Constituição, o poder político passou a ser emanado
do povo com mais segurança e com mais intensidade [...]. Os eleitores, [...]
chamados para escolher os dirigentes da Nação, passavam a maior parte do
tempo alheios às questões de política, de administração e de governo. Quando
mobilizados para as campanhas eleitorais, todos os problemas se apresentavam
de uma só vez à sua atenção, quase todos complexos e [...] ininteligíveis à massa.
[...] [A] apresentação dos problemas se fazia, nas campanhas eleitorais, do
ponto de vista da propaganda, deformadas as questões pelos interesses
186
AMARAL, Azevedo. Realismo político e democracia. O Pensamento Político do Presidente:
Separata de artigos e editoriais dos primeiros 25 números da revista "Cultura Política". Rio de
Janeiro, 19 de abril de 1943, pp. 25-26
187
TEIXEIRA, Aloísio Maria. A Constituição de 10 de Novembro de 1937: comentário ao artigo
1º. Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de 1941, pp. 177-187.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
84
partidários em jogo. Como [...] querer que a massa pudesse fazer um juízo [...]
seguro sobre questões remotas, sem ligação com a sua vida habitual [...]?
188
Reputa, portanto, o Estado liberal, com seu modelo de representação,
como insuficiente para realizar a democracia, e conclui:
[A] Constituição de 10 de Novembro de 1937 não abandonou o sufrágio popular,
mas apenas reservou ao sufrágio universal o lugar próprio ou a função mais
adequada à sua natureza, restringindo-o às questões mais simples e gerais [...] e
para cuja discussão não se exige da massa eleitoral senão a visão panorâmica da
vida política. Manteve ela a forma verdadeiramente democrática, capaz de ser
realizada por ter, de acordo com as [...] tendências do moderno direito
constitucional, abandonado o liberalismo e instituído um Poder Executivo forte --
elemento indispensável à existência de uma democracia de fato, e não de
ficção.
189
[grifos meus].
No mesmo número da revista, outro autor também vem a público reafirmar
o caráter democrático do Estado Nacional. Em artigo em que analisa as vantagens
da nova Constituição sobre as cartas anteriores, que haviam falhado em
corresponder às reais necessidades do país, Ulisses Ramalhete Maia, Inspetor
Chefe do Ensino Secundário, Profissional e Técnico no Espírito Santo, postula ser
a nova ordem "a mesma forma republicana democrática" antes existente, apenas
reassentada em nova estrutura que, abandonando procedimentos que lhe
conferiam caráter "demasiadamente liberal", assumira a feição de um Estado
"forte e autoritário". No seu entender, o golpe de 1937 se justificara por não restar
a Getúlio outra alternativa face às dificuldades enfrentadas por seu governo para
implantar o projeto de país idealizado pelo movimento de 1930, desafiado que era
"a todo momento, com as revoltas e intentonas extremistas de todo jaez, ora nas
metrópoles, ora nas capitais e cidades dos Estados, no norte e no sul do país."
190
Antes de prosseguir na análise dos artigos selecionados, gostaria de
retomar e deter-me um pouco mais na leitura do ensaio de Azevedo Amaral
referido acima, "Realismo político e democracia
"191
. E o faço por considerá-lo
uma das peças fundamentais do processo de construção do conceito de
188
TEIXEIRA, Aloísio Maria. A Constituição de 10 de Novembro de 1937: comentário ao artigo
1º., op. cit., pp. 185-186.
189
Ibid., p. 187.
190
MAIA, Ulisses Ramalhete. A situação atual do Estado Brasileiro: vantagens da Constituição de
1937 em relação às anteriores. Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de 1941, p. 80.
191
AMARAL, Azevedo. Realismo Político e Democracia. Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de
1941, pp.157-173.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
85
democracia que se está procurando firmar nas páginas de Cultura Política. Nele
são delineados muitos dos principais argumentos e introduzidos muitos dos
termos que se vão entrelaçar para informar o novo conceito, e que serão
reproduzidos à exaustão pelos demais colaboradores do periódico em seus
respectivos ensaios.
No artigo, este teórico do Estado Novo vai construindo seu modelo do que
seja a verdadeira democracia a partir de alguns critérios. Cito alguns: ausência de
intermediários (partidos) entre Nação e Chefe do Governo; a já mencionada
capacidade de adaptação às mutações do fluxo histórico; a busca de um equilíbrio
dinâmico, alcançável pela resolução do conflito autoridade versus liberdade via
soluções que incorporem os imperativos da realidade social ao invés de ater-se a
apriorismos ideológicos; capacidade de conciliar poder e justiça; preocupação em
promover o bem estar do povo, submetendo o interesse privado ao conceito maior
de bem comum; assegurar a cada um a possibilidade de exercer funções
compatíveis com sua capacidade, sempre tendo em vista o bem público;
reconhecer que as instituições devem se adaptar à sociedade, e não esta àquelas.
Na concepção de Azevedo Amaral, o Estado Nacional encarna à perfeição o
espírito realista e progressista que deve caracterizar as instituições renovadas.
A verdadeira democracia, como a define o autor, é aquela que, expurgada
dos erros e ficções do modelo liberal e individualista, torna-se uma
forma de autêntico governo popular, [...] uma organização estatal destinada a
realizar as justas aspirações das massas e a proporcionar a estas uma
intervenção na marcha dos negócios públicos, em harmonia com os imperativos
da ordem social e com as injunções da segurança e da prosperidade da nação.
Mas a existência dessa verdadeira democracia, que nada [...] pode ter em
comum com as heresias elaboradas em torno do liberalismo individualista, só se
torna possível quando são eliminados esses erros e renovado por completo o
conceito democrático, de acordo com uma ideologia apoiada na apreciação
objetiva de realidades essenciais e iniludíveis.
192
[grifo meu]
Aqui, Azevedo Amaral mais uma vez defende a tese da mudança radical,
ao apontar para a necessidade de renovação completa do conceito de democracia.
A sua idéia do que seja essa mudança radical é introduzida mais adiante, quando
sustenta que "a democracia nova será a democracia das corporações"
193
. Estas
192
AMARAL, Azevedo. Realismo Político e Democracia, op. cit., p. 165.
193
Ibid., p. 169.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
86
sim, pontifica, são as fontes originárias da autêntica vontade popular, orientadas
que estão para a realização do bem público.
As corporações se opõem aos partidos, eixo da estrutura liberal-
democrática. Os partidos seriam, na avaliação do autor, a instituição responsável
pela dispersão das energias políticas da nação, cuja ação se perde e se atomiza em
função do sufrágio universal. A democracia nova deve ter um só partido,
argumenta. E este é o partido do Estado, que é também, por identificação, o
partido da Nação. Ao sistema pseudo-representativo da liberal-democracia,
portanto, insiste ele que a "democracia nova" precisa
[...] opor uma autêntica representação, na qual as forças ativas da sociedade,
concretizadas nas corporações organizadas, exerçam sua função natural e
legítima de atuação no Estado e de orientação dos destinos da nacionalidade.
Fora dos quadros da organização corporativa das forças econômicas,
profissionais, intelectuais e morais, que constituem a nação viva e ativa, é
impossível estabelecer um sistema realista de representação, sem o qual a
democracia não conseguirá sobreviver.
194
Não é difícil perceber que o grande contra-conceito que desponta da leitura
do artigo é a democracia liberal, a que o autor também se refere como democracia
"parlamentar", ou ainda, de maneira um tanto pejorativa, democracia "eleitoral".
Esta nada mais representa do que um desvirtuamento da essência da idéia
democrática e é por ele associada, de forma extremamente crítica, a egoísmo,
individualismo, vontade de domínio da grande burguesia, capitalismo pelo seu
lado desumano expresso na concentração de riqueza, sistema pseudo-
representativo que dá às massas um simulacro de poder político, ficção eleitoral,
dogma do sufrágio universal "promíscuo e direto", massas incultas e semi-
analfabetas incapazes de conferir sentido ao voto, parlamentos eleitos que não
realizam a verdadeira vontade nacional. A lista é longa e não se limita às
associações aqui reproduzidas. O resultado, na prática, traduz-se na desilusão das
massas, que acorrem pressurosas aos apelos dos credos extremistas e
revolucionários.
O erro básico dessa forma desvirtuada de democracia, na concepção de
Azevedo Amaral, estava em acreditar na idéia de igualdade dos povos e dos
indivíduos. Estava na suposição de que existia entre os povos -- não só de
194
AMARAL, Azevedo. Realismo Político e Democracia, op. cit., pp. 168-169.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
87
diferentes nações, mas também entre os indivíduos que constituem uma mesma
nação -- uma "igualdade e uniformidade" que ele reputa "em flagrante e violenta
contradição com os fatos patenteados pelo exame objetivo da realidade"
195
, por
ser esta uma noção formulada de modo apriorístico pelos "teoristas da
democracia moderna" com base no pressuposto de que as diferenças existentes
seriam apenas de "caráter quantitativo"
196
. Tal suposição, no seu entender,
decorria de um erro ainda mais grave, que consistia no "falso conceito
igualitário"
197
que orientara toda a filosofia política originada na esteira da
Revolução Francesa em fins do século XVIII. Tal filosofia cristalizara-se na
crença de que, sendo os homens e os povos "qualitativamente iguais e não
existindo senão diferença de nível no processo evolutivo"
198
, era válido prever a
"universalização artificial" das práticas das instituições liberais democráticas.
O antídoto, para ele, apresentava-se sob a forma da "idéia nacional". Esta
postulava o princípio de que cada povo, por constituir uma entidade sociológica
peculiar, deve pautar a organização das suas instituições sociais e políticas
tomando por base unicamente as suas próprias necessidades, ditadas pela
realidade específica que o caracteriza. E o autor conclui, como que traduzindo em
linguagem bem clara para não deixar dúvidas: "Desse postulado fundamental [...]
decorre o direito sagrado de cada nação organizar-se na órbita da sua vida
interna como bem lhe aprouver"
199
. O Estado Nacional brasileiro, a seu ver, teria
erigido o edifício de sua organização política em sintonia com tal postulado. Neste
sentido, observa Azevedo Amaral, a Constituição de 1937 e os atos adicionais
deveriam ser percebidos como uma obra de "realismo sociológico".
200
Há, ainda, outro aspecto que concorre para informar o conceito da
democracia nova: o sentido econômico impresso em suas finalidades. Azevedo
Amaral teoriza que o Estado Nacional conseguira, através de uma "intervenção
reguladora" das atividades econômicas, estabelecer mecanismos capazes de
manter em equilíbrio as forças criadoras da iniciativa individual e os interesses
coletivos da sociedade.
195
AMARAL, Azevedo. Realismo Político e Democracia, op. cit., p. 166.
196
Ibid., loc. cit.
197
Ibid., loc. cit.
198
Ibid., loc. cit.
199
Ibid., p. 167.
200
Ibid., p. 168.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
88
Por último e, ao que tudo indica, mais importante, o autor destaca aquele
que parece considerar o fator chave da democracia nova, que é a ação do estadista:
Na democracia nova os preceitos aprioristicamente estabelecidos, os postulados
rígidos e imutáveis, cedem lugar à ação constante da personalidade do estadista
[...]. O poder pessoal, que as ficções do liberalismo democrático depreciaram,
desfigurando-o e fazendo-o perder a sua significação fundamental, ressurge
como elemento básico e insubstituível na direção das atividades do Estado e no
encaminhamento da marcha progressiva da Nação.
201
Conforme comentado anteriormente, acredito concentrar-se neste artigo a
essência da receita do que os teóricos procuram estabelecer como a democracia
"autêntica". Grande parte dos ingredientes aqui relacionados veremos ressurgir
nos próximos artigos. Misturados a outros componentes, constituem parte dos
experimentos realizados na tentativa de encontrar a definição ideal, o conceito
único -- no sentido koselleckiano -- capaz de traduzir, em uma só palavra,
"democracia", a experiência concreta que ali, naquela época e naquele contexto,
se estava vivenciando.
Em seu sexto número, Cultura Política reproduz, na seção de abertura,
artigo de autoria do então diretor do DIP, Lourival Fontes
202
, o qual havia sido
publicado pela primeira vez em agosto de 1931 em outro periódico, Hierarquia, à
época também dirigido por ele. A exemplo de Cultura Política, Hierarquia era
uma revista dedicada ao estudo de problemas políticos e sociais do Brasil. A idéia
de reproduzir o artigo em Cultura Política era justamente mostrar o que nele
havia de atual -- decorrida uma década desde sua primeira publicação -- em
termos de apreciação crítica e previsão no tocante à evolução política do Brasil, e
também no que dizia respeito à trajetória que, na percepção do autor, viria a ser
percorrida pelo sistema representativo nas democracias modernas.
Logo no início do artigo vemos surgir com força a exortação à importância
da ação do líder, tema, como já visto, caro a Azevedo Amaral, que o abordara
enfaticamente em artigo aqui analisado. Diz Lourival Fontes, referindo-se à
história do progresso humano, que este se processa invariavelmente sob a direção
de "condutores predestinados", de "salvadores privilegiados", indivíduos que se
situam em um patamar superior em relação aos demais componentes da
201
AMARAL, Azevedo. Realismo Político e Democracia, op. cit., p. 172.
202
FONTES, Lourival. Democracia, eleição e representação. Cultura Política. Ano I, nº. 6, agosto
de 1941, pp.5-9.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
89
comunidade e que, por isto, encontram-se em posição de liderá-los em momentos
de transformações radicais. Nas palavras do autor,
Na marcha ascencional para a dominação e para a expansão política, os povos
reúnem-se em torno de nomes, de chefes, de dirigentes, de personalidades
representativas, de valores típicos, que emergem e se destacam no seio das
massas humanas, não por elas escolhidos à sua imagem como na liberal-
democracia, mas por elas aceitos como personificações da vontade coletiva.
203
Esta questão parece ser de tal forma essencial para a construção do
conceito, que Lourival Fontes chega a afirmar não ser democracia, mas sim
"falseamento e traição" do ideal democrático
a incapacidade, a inadaptação e a falência dos povos, na sua função de escolha
dos dirigentes que representem a nação no seu conjunto material e espiritual, e
não a concorrência de interesses ocasionais e o monopólio das posições do
poder pela pressão das forças secretas, enfeixadas em oligarquias financeiras ou
nas grandes entrosagens políticas que se alternam na exploração da coisa
pública.
204
E investe contra a liberal-democracia, acusando-a de haver suprimido o
que de genial havia na manifestação do indivíduo superior, "imobilizando-o na
sujeição e na tirania das massas amorfas".
205
O contra-conceito apresenta-se, também neste artigo, na forma das
insuficiências características da liberal-democracia, forma de governo que, na
avaliação do autor, não consegue fazer coincidir os interesses dos órgãos de
representação política com as manifestações da vontade coletiva. As mesmas
críticas feitas por Azevedo Amaral são aqui repetidas no que se refere à atuação
desagregadora dos partidos políticos e aos efeitos desastrosos do "atomismo
sufragista"
206
. O regime mais representativo da idéia nacional, na concepção de
Lourival Fontes, é aquele exercido a partir das forças sociais organizadas, e não o
que resulta da atuação de partidos políticos. Estes priorizam sempre seus
interesses particulares em detrimento do interesse público e procuram impor ao
governo a sua própria agenda política, bem como usar o Estado para a realização
de seus negócios privados.
203
FONTES, Lourival. Democracia, eleição e representação, op. cit., p. 6.
204
Ibid., loc. cit.
205
Ibid., loc. cit.
206
Ibid., p. 8.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
90
Da análise do artigo do diretor do DIP é possível perceber que, dos valores
que se entrelaçam para formar o conceito de democracia, alguns ganham destaque
especial. São eles: a existência de um líder; a constituição de um Estado forte e
autoritário; a eliminação dos partidos políticos; a ausência de conflito entre as
classes, e entre indivíduo e Estado; a ligação com a realidade objetiva, baseada na
experiência e na observação dos fatos, como forma de não aspirar ao impossível;
forças sociais organizadas como únicos representantes legítimos dos interesses da
nação; a imposição de hierarquia e disciplina. As palavras com que encerra o
artigo parecem traduzir o sentido que o autor busca conferir ao conceito:
[N]o momento em que a crise industrial se estende com seus [...] corolários de
anarquia e de miséria, em que as classes se erguem como forças anti-sociais, [...]
o assalto dos instintos se levanta contra todos os símbolos de pátria, de religião,
de propriedade, de hierarquia e de disciplina, ameaçando subverter o patrimônio
acumulado em vinte séculos de história -- só os povos suicidas, que perderam a
capacidade de resistência, [...] não chegam à compreensão de que somente na
potência do Estado, na sua supremacia e superioridade de fins, na sua força
disciplinadora e coordenadora, na sua soberania sem contrastes, residem a
tutela e a proteção dos direitos, a paz social, a justiça entre as classes, a
felicidade e o bem-estar dos cidadãos.
207
O artigo a seguir, também veiculado no sexto número de Cultura Política,
na seção "O pensamento político do Chefe do Governo", traz a assinatura do
próprio Presidente da República
208
. Nele encontram-se reproduzidos os principais
trechos de duas entrevistas concedidas por Getúlio Vargas em junho de 1941 aos
jornalistas Ricardo Saenz Hayes, do La Prensa, e Fernando Echague, do La
Nación, ambos jornais de Buenos Aires.
Logo de início, Getúlio faz questão de frisar a originalidade do conceito
consubstanciado para dar forma ao regime que recebeu o nome de Estado Novo,
ou Estado Nacional, para cuja constituição seus idealizadores não teriam
procurado se inspirar em qualquer modelo vigente. Na visão do Presidente, ao
bom observador, que se dispusesse a examinar "sem prevenções" a estrutura
política então implementada, não escaparia o fato de estar ela assentada em
princípios "legitimamente democráticos"
209
. Argumenta ele que, tomando por
207
FONTES, Lourival. Democracia, eleição e representação, op. cit., p. 9.
208
VARGAS, Getúlio. A democracia brasileira diante da América e do mundo. Cultura Política.
Ano I, nº. 6, agosto de 1941, pp. 153-159.
209
Ibid., p. 155.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
91
base a realidade brasileira, instituíra-se no país uma democracia "realista e
funcional", a qual
por suas características, difere de muitas organizações americanas; representa,
porém, a forma necessária de concentração da autoridade, que permite a uma
nação de vasto território [...] adquirir estrutura capaz de resistir às crises do seu
próprio crescimento e às graves perturbações por que atravessa o mundo.
Afasta-se dos modelos do liberalismo e prescinde das grandes assembléias e das
discussões estéreis, para concentrar seu esforço na ação construtiva e rápida.
210
Levanta, a seguir, a bandeira do que viria a se tornar um dos pilares da
nova ordem, que é a questão da organização do trabalho e do amparo ao
trabalhador. Getúlio critica duramente o fato de que, abolida a escravatura e
proclamada a república, transcorreriam ainda várias décadas sem que qualquer
benefício concreto daí resultasse para o trabalhador brasileiro, fosse em termos de
organização ou de segurança econômica. E destaca a "ação construtiva e rápida"
de seu governo no sentido de sanar tal situação, feito realizado dentro da mais
absoluta ordem e sem provocar conflitos:
O que não foi possível em tão largo espaço de tempo, realizou-se no decênio
1930-1940. [...] A legislação em vigor ampara, legal e economicamente, a todos
os que trabalham. [...] Chegamos a estes resultados [...] dentro da forma
próspera, construtiva e ordenada em que se desenvolvem as atividades
econômicas do país, sem que seja necessário o recurso às repressões políticas,
nem às medidas de caráter policial. Evitamos os antagonismos de classe e
combatemos as infiltrações extremistas[...].
211
Coloca em pauta o problema da exploração das reservas de ferro do país e
da criação da indústria do aço, vital para o desenvolvimento da economia, para
mais uma vez bater-se contra a instituição da democracia parlamentar. Sublinha
que o advento do Estado Nacional tornara possível, finalmente, superar os
obstáculos impostos pelos intermináveis debates parlamentares, nos quais a
interferência de interesses partidários e financeiros de caráter estritamente
particular acabava por se traduzir em divergências que impediam a
implementação de "iniciativas úteis e de interesse geral"
212
para o Brasil.
210
VARGAS, Getúlio. A democracia brasileira diante da América e do mundo, op. cit., p. 155.
211
Ibid., p. 156.
212
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
92
Getúlio insiste na tese de que o país, sob o novo regime, é uma democracia
"econômica", mais do que política, que respeita as nossas peculiaridades
históricas. Acentua, ainda, a importância das associações sindicais e corporativas
para o bom funcionamento das instituições democráticas. Eis aqui, definidos pelo
próprio Presidente, os critérios que davam substância ao conceito:
[O] Brasil nunca deixou de ser, sob o novo regime, uma democracia, de vez que,
mais que as palavras e as convenções legais das democracias parlamentares, o
regime atende aos interesses do povo e consulta as suas tendências através das
organizações sindicais e associações produtoras. É mais uma democracia
econômica do que política; e, por isso, apresenta, simplificado, o mecanismo
adequado de consulta e de controle da opinião pública.
Não temos assembléias numerosas onde seja possível, à custa do dinheiro
público, desperdiçar tempo em arroubos oratórios e debates estéreis.
Substituímo-las [...] pelos Conselhos Técnicos, pela consulta direta aos órgãos
representativos da vida econômica e social do país.
Na realidade, o que parece divergência ideológica e doutrinária do regime
brasileiro, em relação aos demais Estados da América, é somente afirmação de
nossas peculiaridades históricas. Tínhamos numerosos problemas a resolver
internamente, e os estamos resolvendo com rapidez, graças à centralização do
poder. [...] [O] que estamos fazendo tem por objetivo supremo unificar o Brasil,
moral e economicamente, dentro de um programa de realizações que abranja
todos os setores da atividade.
213
Para Getúlio Vargas, portanto, o conceito ideal de democracia deve ser um
conceito original e precisa reunir em si alguns elementos, dentre os quais se pode
ressaltar: ser uma democracia realista e funcional, e mais econômica do que
política; concentrar a autoridade na medida necessária; ser capaz de agir de forma
construtiva e rápida, passando ao largo das discussões estéreis dos partidos; dar ao
trabalhador organização e segurança econômica; eliminar as possibilidades de
conflito; transferir a questão social para outro âmbito que não o da ação policial.
Ainda no número 6 de Cultura Política e na mesma seção, "O pensamento
político do Chefe do Governo", mais um dos expoentes da nova ordem vem a
público registrar suas idéias. Trata-se do diretor da revista, Almir de Andrade. No
artigo
214
, o autor tece comentários sobre as questões abordadas por Getúlio Vargas
nas entrevistas concedidas aos jornais La Prensa e La Nación, mencionadas
acima.
213
VARGAS, Getúlio. A democracia brasileira diante da América e do mundo, op. cit., p. 158.
214
ANDRADE, Almir de. Democracia social e econômica. Cultura Política. Ano I, nº. 6, agosto
de 1941, pp. 160-175.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
93
Almir de Andrade chama a atenção para o fato de estar o mundo vivendo
uma revolução intelectual de grandes proporções, cujo corolário seria a "inversão
radical"
215
de todas as formas de pensar, idealizar e doutrinar. No bojo de tal
revolução estaria sendo gestada uma nova concepção de vida, preocupada em
encontrar soluções mais realistas e humanas para os problemas que desafiavam o
homem moderno. Nesse processo, ressalta o autor, há que se reconhecer a
primazia da ação, baseada na experiência, sobre a idéia, elemento desvirtuador
que desvia de sua verdadeira rota os acontecimentos históricos. O homem
moderno, argumenta,
está aprendendo a compreender que existe alguma coisa de infinitamente maior
que a profundidade de sua própria inteligência: é a profundidade do real. [...]
Por isso, o pensamento moderno vai-se edificando não mais pela idéia, mas pela
ação. A "idéia" vai-se transformando numa projeção dinâmica da ação sobre o
espírito: a inteligência idealiza vivendo, experimentando, aprendendo,
construindo.
216
A inversão radical à qual o autor faz referência traz implícita a noção de
ascensão do espírito popular, que vê finalmente chegada a hora de "erguer-se até
o plano intelectual das elites e fecundá-las com a [...] experiência das lutas e
sofrimentos humanos"
217
. No Brasil, observa, esse movimento se traduz na
interrogação da própria realidade, como ponto de partida para a elaboração de
diretrizes governamentais.
Almir de Andrade realça a orientação mais social e econômica do que
política assumida pela nova democracia e especula acerca da inutilidade de
perguntar se essa democracia já estava realizada, uma vez que tudo o que existe
está em constante movimento. E o movimento, na sua percepção, tendia em
direção ao abandono do "culto formal às idéias vagas" que marcara os séculos
anteriores e à valorização de um "culto realista", que seria o "culto ao trabalho,
sob todas as suas formas e em todos os seus efeitos materiais e espirituais"
218
. O
foco de qualquer ação política deveria, assim, estar centrado no campo econômico
e social, seu objetivo maior sendo o amparo ao trabalho e à energia criadora do
homem. E arremata:
215
ANDRADE, Almir de. Democracia social e econômica, op. cit., p. 161.
216
Ibid., p. 162.
217
Ibid., p. 163.
218
Ibid., p. 167.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
94
Não se justifica que os povos continuem lutando por idéias vagas, por
pensamentos bonitos e bem arquitetados, por palavras musicais e apaixonadas
como "liberdade", "igualdade", "soberania do povo" e outras tantas criações
ideológicas que nunca tiveram uma concretização real e definitiva em fatos e
ações, capazes de assegurar o progresso das formas de coexistência humana.
219
No artigo, o diretor da revista retoma a questão, já abordada por Vargas,
de ser o regime instaurado em novembro de 1937 mais uma democracia
econômica do que política, voltada primordialmente para a organização do
trabalho, para a extinção de privilégios e distinções, para a promoção de justiça
social e da igualdade de oportunidades.
O Estado moderno, argumenta, prescinde da orientação dos partidos,
contaminados pela presença de deputados e senadores preocupados unicamente
com questões pessoais ou de interesse mais imediato de suas respectivas legendas.
Suas funções deveriam ser, cada vez mais, delegadas à administração de órgãos
técnicos, estes sim representativos da vida econômica do país e capacitados a
apreender as reais necessidades sociais, através da observação e da experiência
direta.
Também aqui, seguindo a linha adotada pelos demais autores analisados, a
crítica dirige-se com veemência à incapacidade do sistema político liberal de
realizar a verdadeira democracia. Suas declarações de direitos não havian logrado
traduzir-se em medidas práticas, o que conferia à democracia liberal o perfil de
um regime puramente formal, idealizado. Tratava-se, na essência, de uma
"democracia de doutrina e de sistema", uma democracia "deturpada, desviada
dos seus verdadeiros fins pela hipocrisia das ficções eleitorais e das inúteis
controvérsias parlamentares."
220
A parte final de suas reflexões dedica-a o autor a especular sobre o futuro
da democracia brasileira. E o eixo dessas reflexões é a capacidade de liderança do
estadista: seu senso da realidade, seu instinto para perceber as oportunidades, sua
clareza para propor soluções, qualidades essenciais para conduzir os destinos de
uma sociedade em momentos críticos de transição.
Todas essas qualidades, na perspectiva de Almir de Andrade, estavam
reunidas na pessoa do Chefe do Governo. Getúlio Vargas possuiria não apenas
219
ANDRADE, Almir de. Democracia social e econômica, op. cit., p. 168.
220
Ibid., p. 169.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
95
senso de realismo social e político, mas também a experiência dos homens, a
experiência dos fatos e a experiência das reações coletivas. Nada mais natural,
portanto, que o futuro da democracia brasileira fosse confiado à figura que "muito
particulares contingências históricas e sociais mantiveram à frente da nossa vida
política, desde 1930", pois um Chefe de Estado representa um "órgão de
coordenação, de interpretação e de direção, sem o qual nada se pode fazer"
221
.
Associa, portanto, o sucesso da democracia à coesão incondicional em torno do
líder. Se a experiência passada serve de indicador para a experiência futura,
assevera, "é de se esperar que, sob a mesma direção, a democracia brasileira
continue progredindo [...]".
222
A verdadeira democracia, na visão deste autor, apresenta, como se pode
observar, uma série de elementos em comum com aqueles ressaltados nos artigos
que já foram objeto de análise. Entre eles, a primazia da ação sobre os idealismos
vazios de intelectuais que "andam a catar idéias e a desenvolver raciocínios nos
gabinetes"
223
, a ascensão do espírito popular como fonte de produção de idéias a
partir da experiência e da observação das realidades sociais, um enfoque mais
social e econômico do que político, valorização do trabalho, justiça social,
igualdade de oportunidades, sistema de partidos substituído pelos conselhos
técnicos, coesão em torno do líder e capacidade de liderança do estadista.
Em 10 de novembro de 1941 foi publicada uma edição extraordinária de
Cultura Política, comemorativa do quarto aniversário do Estado Novo. Neste
número, o Professor da Escola Técnica Secundária da Prefeitura do Distrito
Federal, João Paulo Muller, contribuiu com um artigo intitulado "À margem da
democracia brasileira", incluído na seção "Problemas Políticos e Sociais"
224
. Seu
longo ensaio é dedicado ao estudo da evolução do regime democrático a partir de
uma análise do determinismo geográfico e do espírito humano, passando pela
formação das raças e sua influência na interpretação da democracia para, ao final,
discutir o novo sentido da democracia brasileira.
Cita Heráclito para afirmar que na natureza tudo é dinamismo, movimento
e forças em equilíbrio, recorre a Diderot para observar que a natureza desconhece
221
ANDRADE, Almir de. Democracia social e econômica, op. cit., p. 175.
222
Ibid., loc. cit.
223
Ibid., p. 163.
224
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira. Cultura Política. Ano I, nº. 9, 10
de novembro de 1941, pp. 3-16.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
96
a igualdade, e vale-se de Lamarck para ressaltar que a natureza não forma classes,
ordens ou espécies constantes, mas tão somente indivíduos. Seu ponto é mostrar
que o mesmo dinamismo, a mesma desigualdade, e a mesma tendência cada vez
mais acentuada à individualização estão presentes nos fatos sociais.
Discorre, citando Bacon, Ratzel, La Blache e Morgan, sobre o papel
exercido pelas novas ciências, como a geografia humana, a biotipologia e a
endocrinologia, na redefinição de conceitos políticos que se acreditava
estabelecidos. Estas ciências seriam instrumentais ao estudo da psicologia dos
povos, na medida em que poderiam mapear as diferenças individuais -- em termos
de caráter, constituição e caracteres raciais, por exemplo -- e assim observar a
influência do meio geográfico, do clima e da alimentação sobre o indivíduo. Frisa
a importância do determinismo geográfico, contrabalançado pela idéia ou espírito,
na configuração do destino dos povos. Neste sentido, teoriza ser essencial que o
governante conheça a psicologia do povo que governa e esteja familiarizado com
a realidade física do meio, para sobre ele aplicar sua "força mental"
225
como fator
de transformação, construindo a ordem social e política que lhe seja mais
adequada, ao invés de importar política "como qualquer mercadoria"
226
.
A política, na avaliação de João Paulo Muller, transcende, desta forma, o
âmbito da filosofia, e em alguns de seus aspectos só pode ser entendida à luz dos
ensinamentos científicos. Em vista dessas novas contribuições, a questão da
formação dos povos adquire maior relevância, uma vez que a compreensão da
psicologia de um povo só seria possível mediante o conhecimento das suas raças
formadoras. Chama em seu auxílio, neste particular, o testemunho de Oliveira
Viana, em cuja apreciação "uma nação não pode ser indiferente nem à qualidade
nem à quantidade dos elementos raciais que entram na sua composição"
227
.
Discussões sobre imigração, cruzamentos étnicos, adaptação e alimentação
deveriam, em consequência, ser deslocadas para a esfera da política.
O autor expressa preocupação no que concerne a maneira como os povos
ainda em formação interpretam os preceitos democráticos. No caso específico do
Brasil, questiona a capacidade de um povo tão heterogêneo -- que reúne em sua
composição índios, negros, caboclos, mestiços e brancos das mais diferentes
225
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira, op. cit., p. 5.
226
Ibid., p. 4.
227
Ibid., p. 9.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
97
origens -- conseguir captar em toda a sua complexidade a difícil linguagem
constitucional, e ter sobre a democracia o mesmo entendimento e a mesma
interpretação. Avalia que a diversidade de etnias, aliada à extensão territorial do
país e agravada pelo fato de termos uma Constituição "exótica", favorecia a
tendência a idéias separatistas. Na sua perspectiva, "o texto constitucional, não se
adaptando ao espírito do povo, permitia o desagregamento da nação à luz dos
seus princípios."
228
Toda esta argumentação tinha por objetivo justificar a "democracia
autoritária" instituída em 10 de novembro de 1937. Ela teria a legitimá-la a
necessidade da formação de um povo brasileiro, categoria até então, no seu
entender, inexistente:
A observação imparcial vinha [...] revelar que não existia ainda "um povo
brasileiro" e que era necessário [...] formá-lo. [...] Urgia uma ação imediata.
[...] Em tempo [...] compreendeu-se que a "psicologia do povo brasileiro" era
dispersiva, desagregante, separatista. Era necessário unir as diversas partes num
todo. Ruiu assim a democracia clássica e surgiu a democracia autoritária, com um
programa baseado na psicologia da terra, chamando a si a [...] tarefa de formar
a nacionalidade.
229
[grifo meu]
A exemplo de outros autores, João Paulo Muller é um crítico ferrenho da
importação de idéias. Via como grande equívoco o fato de os republicanos,
fascinados pelas palavras "liberdade, igualdade e fraternidade" -- que traduziam
os ideais políticos então predominantes -- não terem percebido os potenciais
conflitos que poderiam ser gerados por se governar um país complexo como o
Brasil com base em um texto constitucional edificado sobre idéias copiadas da
psicologia de outros povos. Considerava essencial que ideais políticos passassem
por um processo de "aclimatação" antes de serem aqui adotados. Nossa
Constituição, afirma ele, "tomava hipótese e presunções por fatos incontestáveis"
e incorria em erros como o de considerar o povo brasileiro como uma "entidade
homogênea, de alto espírito político e capacidade cívica"
230
. Se tais qualidades
concorreram para o sucesso do regime democrático em países como Inglaterra e
Estados Unidos, observa, estavam longe de corresponder à nossa realidade
nacional.
228
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira, op. cit., p. 8.
229
Ibid., loc. cit.
230
Ibid., p. 10.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
98
O autor socorre-se, novamente, de pensadores clássicos para comentar que
a democracia, apesar de seus inúmeros defensores, é também a mais criticada das
formas de governo. Pondera que, para Durant, a democracia seria o governo dos
que não sabem; para Carlyle, uma auto-cancelação com resultado zero; Nietzsche
a teria definido como um Estado que se assemelhava a uma desordem organizada;
Sainte-Beuve preconizava que nela a competência como critério tenderia a
desaparecer; Stephen a teria criticado como o regime em que "manda o homem de
mais relações e abraços"
231
; e, finalmente, Rousseau haveria afirmado que a
verdadeira democracia jamais existira nem jamais existiria, dado que é contra a
ordem natural das coisas que a maioria governe a minoria. Em comentário
carregado de crítica, João Paulo Muller assinala que, para o autor do Contrato
Social, as leis é que haviam criado a desigualdade entre os homens, o que, em
sentido inverso, significaria que se não existissem leis os homens reverteriam à
igualdade original, voltando ao "estado de natureza". E acrescenta:
[...] Ninguém melhor do que Voltaire fez a crítica da obra: "Jamais alguém se
esforçou tão inteligentemente para transformar-nos em animais; a leitura do seu
livro dá-nos vontade de andar de quatro." [...] E o que dizia Voltaire da
democracia? Que "a democracia pura é o despotismo da canalha".
232
Muller enfatiza que o problema não está na democracia em si. Está, isto
sim, na falta de visão dos governantes, incapazes de perceber não ser a
democracia um conceito imutável, mas um ideal político que, como todas as
idéias, tem necessariamente de evoluir, adaptando-se às necessidades de seu
tempo. Tornara-se imperativo, portanto, proceder a uma atualização de fórmulas
políticas. A democracia contemporânea, ou nova democracia, pondera, é mais do
que apenas "o governo do povo pelo povo". Ela deve funcionar como mecanismo
de eliminação de conflitos, através da imposição do princípio "da autoridade para
o bem do povo", e ter como projeto "desenvolver os legítimos direitos e
aspirações de todas as classes sociais, indistintamente", afirmando-se como um
"regime de cooperação, equilíbrio e congregação de forças"
233
. E conclui
sublinhando que, apesar da existência de diferenças entre a democracia "clássica"
e a "autoritária", o substrato é o mesmo:
231
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira, op. cit., p. 11.
232
Ibid., p. 12.
233
Ibid., p. 13.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
99
Compreendem-se finalmente as diferenças entre a democracia clássica e a
democracia autoritária. Não há, porém, várias modalidades de regimes
democráticos. A democracia é uma só. Sendo porém um ideal político, está
sujeita a várias interpretações, conforme as épocas históricas.[...] O substrato
porém é o mesmo: "força orientada para o bem do povo".
234
A entrada das multidões no cenário político é outro aspecto que permeia a
análise do autor sobre a democracia em geral, e a democracia brasileira em
particular. A objeção que levanta é que a multidão despersonaliza, impedindo o
homem de manter em um nível elevado seus padrões morais e intelectuais. Mais
uma vez, é em autores consagrados que busca argumentos para corroborar seu
ponto de vista, dos quais percorro apenas alguns. De Gabriel Tarde, cita a noção
de "eletrização" que caracterizaria o homem reunido em multidões. Dos escritos
de Maeterlink, escolhe a observação de que "uma reunião de quinhentos Renans
teria a mentalidade de quinhentos porteiros". Em Taine, a referência à dualidade
da alma, que torna o homem capaz tanto de ações de suprema grandeza, quanto da
prática das piores atrocidades.
235
Todos esses conceitos, teoriza, tiveram profundo impacto sobre os
princípios que constituíam o próprio fundamento do ideal democrático,
modificando de forma indelével sua estrutura e tornando inevitável a substituição
da democracia em sua forma clássica pela democracia autoritária:
À luz da ciência o "governo do povo pelo povo" passou a ser encarado como
sendo autoridade desenfreada da massa, governo das multidões acéfalas, mais
prontas para a destruição do que para a construção, governo apoiado no número
e não na qualidade, na força da multidão e não na inteligência dos homens. Não
podia viver a velha democracia. A dualidade da alma humana, a desintegração
do eu nas multidões, a facilidade com que se manifestam "as tendências
instintivas e animalescas" nos homens aglomerados, tudo isso veio derrubar o
valor atribuído ao elemento básico da democracia -- a massa. Ruíram assim os
velhos tabus democráticos. Surgiu a democracia autoritária.
236
[grifo meu]
A parte final do artigo é reservada a comentários sobre o processo de
reconstrução nacional inaugurado com a implantação do Estado Novo. O autor
procura mostrar que houve avanços em todos os setores, na esteira da elaboração
234
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira, op. cit., p. 13.
235
Ibid., p. 14.
236
Ibid., p. 15.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
100
de leis que vieram "acordar as energias múltiplas da nação, até então
entorpecidas por falta de estímulo legal."
237
No campo político, avalia, abandonou-se a importação de idéias em prol
da adoção de princípios democráticos deduzidos da "fisionomia psicofísica da
nação". Com isso, nasce a "nova democracia", em versão atualizada e adaptada à
realidade nacional, cuja força condutora deixa de ser o "despotismo anárquico das
massas" para ser o "governo da inteligência e da ordem para o bem do povo"
238
.
Na área social, a "democracia autoritária" estendia sua rede de proteção às
classes até então desprotegidas pela lei. O autor percebe, na instituição do direito
trabalhista brasileiro, o "argumento irrefutável àqueles que não vêem aqui uma
democracia"
239
. No tocante à educação, ressalta o aumento expressivo do número
de escolas.
João Paulo Muller conclui seu ensaio perguntando como, afinal, definir
essa nova forma de governo. A resposta, diz ele, pode ser encontrada nas palavras
do próprio Getúlio Vargas, que a definira como uma democracia realista e
funcional, moldada em função da realidade brasileira, e mais econômica do que
política, razão pela qual possui "simplificado, o mecanismo adequado de consulta
e de controle da opinião pública."
240
Da análise deste artigo pode-se depreender que, para o autor, a democracia
autoritária se define como necessária ao processo de formação do povo brasileiro
e como forma de neutralizar a presença da massa na vida política. Ela é o governo
da inteligência e da ordem, que se contrapõe ao despotismo anárquico das massas.
Fica claro que ele não vê a democracia como um regime de massa: ao contrário, a
atuação desta impede a realização daquela. E traz para a discussão do conceito de
democracia dois fatores: raça e determinismo geográfico. Para instituir a forma de
governo mais adequada, o governante deve conhecer bem a terra e o povo que irá
governar e, para conhecer bem o povo, é essencial saber quais são as suas raças
formadoras. Neste sentido, critica a tentativa de construir instituições a partir da
adaptação de idéias exógenas: o parâmetro deve ser unicamente a realidade
nacional. As democracias clássicas, como as da Inglaterra e Estados Unidos,
seriam bem sucedidas em função de serem tais países constituídos por um povo
237
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira, op. cit., p. 15.
238
Ibid., loc. cit.
239
Ibid., loc. cit.
240
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
101
homogêneo, possuidor de acentuado espírito político e capacidade cívica. O
quadro no qual se inscrevia a realidade brasileira seria, no entanto, bem diferente,
o que tornava necessário impor a autoridade para o bem do povo. A democracia
nova não era apenas o governo do povo pelo povo: pela imposição da autoridade,
ela visava a eliminação dos conflitos e a defesa dos direitos e interesses de todas
as classes sociais, colocava-se ao lado do progresso, incentivando a cooperação, a
congregação de forças e a busca do equilíbrio. O conceito não pode ser imutável,
mas o substrato da democracia permanece um só: ela é uma força orientada para o
bem do povo. A legislação trabalhista é apresentada, por João Muller, como prova
irrefutável de que o Estado Nacional é uma democracia.
Ainda nesta mesma edição comemorativa de Cultura Política, na seção "A
estrutura jurídico-política do Brasil", Roberto Piragibe da Fonseca, livre-docente
da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, publica um artigo
intitulado "O nacionalismo democrático do Estatuto de 1937 e o direito político
externo".
241
No artigo, que versa sobre a forma como a Constituição de 1937 se situa
em relação às novas tendências que então se delineavam no âmbito da
comunidade jurídica internacional, o autor discorre sobre a noção de
nacionalismo, analisa o que chama de "mística democrática" dos Estados
modernos e, seguindo a mesma linha de outros artigos da revista, expressa sua
visão sobre a falência do liberalismo.
Seu objetivo é provar que a Constituição de 10 de novembro está
perfeitamente inserida na tendência internacional que caracteriza as constituições
modernas. A ela não se aplicariam, portanto, as ressalvas que lhe faziam seus
críticos, em cuja percepção a Carta estaria marcada por um "arraigado espírito
nacional". Este viés nacionalista torná-la-ia incompatível com o pretendido
internacionalismo e inviabilizaria a prática do direito político externo. Esses
mesmos críticos, "agitadores de profissão", preconizavam que "não somos mais
uma democracia [...] e que é geral a desconfiança contra o Brasil totalitário"
242
[grifo no original]. Contra essa corrente, o autor opta por reafirmar o perfil, na sua
ótica, internacionalista daquela Carta, sublinhando que, embora a Constituição do
241
FONSECA, Roberto Piragibe da. O nacionalismo democrático do Estatuto de 1937 e o direito
político externo. Cultura Política. Ano I, nº. 9, 10 de novembro de 1941, pp. 190-198.
242
Ibid., p. 193.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
102
Estado Nacional não estivesse subordinada ao "direito das gentes"
243
, como
ocorria com a Constituição da Tchecoeslováquia de 1920, nem reconhecesse
como parte integrante do direito nacional as normas internacionais, como o fazia a
Constituição de Weimar,
da rigidez nacionalista do Estatuto brasileiro, da sua sobriedade e temperança
vocabular a respeito, ressuma [...] um internacionalismo forte e objetivo que bem
se coaduna com o espírito realista que presidiu a sua redação, num momento em
que a gravidade das equações a solucionar [...] não poderia tolerar a ênfase dos
idealismos irresponsáveis.
244
No seu modo de ver, a forte associação que se fazia entre o "direito das
gentes" e a "mística democrática" derivava do entendimento de que esta seria,
dentre todas as místicas políticas, a única compatível com o direito internacional.
Mas a democracia, argumenta o autor, está na própria essência do direito político
internacional. Este, sendo democrático por natureza, só conseguiria vicejar em
ambiente democrático. Logo em seguida, faz questão de ressalvar que não está se
referindo à democracia como sinônimo de "licença, pretendendo ser sinônimo de
liberdade", mas sim a uma democracia que define como "bem proporcionada".
Este tipo de democracia, explica, é aquela em que a autoridade sabe a exata
medida das responsabilidades que lhe cabe assumir e possui a força necessária --
sobretudo moral -- para impor aos governados o seu aparato legal, sem incorrer
em desrespeito aos direitos dos indivíduos que constituem a comunidade nacional
e política. E é justamente neste sentido, adverte, que
a falência da chamada liberal democracia não significa falência da democracia
"in se", e sim de coisa que erradamente se tinha por tal, pois "a crise
democrática -- na frase precisa do conde Sforza -- demonstra apenas que é
necessário realizar a democracia".
245
Invoca o artigo 1º. da Constituição, cujo texto postula que "o poder
político emana do povo e é exercido em nome dele e no interesse do seu bem
estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade", para
novamente criticar os que insistiam em afirmar que o Brasil não era uma
243
Termo do direito romano que se opõe ao direito "civil" (do civis -- cidadão). O jus gentium --
direito "das gentes" -- era o direito dos não-cidadãos.
244
FONSECA, Roberto Piragibe da. O nacionalismo democrático do Estatuto de 1937 e o direito
político externo, op.cit., p. 193.
245
Ibid., p. 196.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
103
democracia, e volta a asseverar que somente em um ambiente democrático pode o
direito das gentes prosperar. É sua convicção que, sob o comando de Getúlio
Vargas, o Brasil via realizar-se a "autêntica democracia de que nos fala o conde
Sforza"
246
, o que explicaria seu sucesso no âmbito das relações internacionais.
Trata-se de mais um autor, como se depreende do texto, a insistir que a
liberal democracia não é a verdadeira democracia, e que portanto a tão discutida, à
época, crise democrática seria, na realidade, uma falsa crise. A democracia
autêntica, na forma como a percebe, não deve ser confundida com licença como
sinônimo de liberdade e não prescinde da imposição da autoridade na medida
certa. E introduz mais um adjetivo para qualificá-la: democracia bem
proporcionada.
O décimo número da revista traz, mais uma vez na seção "O pensamento
político do Chefe do Governo", artigo cujo título é uma pergunta: "Onde a
verdadeira democracia?
"247
. Para respondê-la, o autor, Belfort de Oliveira, da
Divisão de Divulgação do Departamento de Imprensa e Propaganda, passeia pela
história do país, abrangendo o período que se estende do final do Império até
chegar à Revolução de 1930 e ao advento do Estado Nacional em 1937.
Seu intuito é mostrar que, antes de 1930, enquanto governos de vários
países preocupavam-se em implantar uma moderna legislação social, o Brasil
hesitava em elaborar leis que valorizassem o trabalho e amparassem o trabalhador.
Corrobora esta afirmação fazendo referência à entrevista concedida por Getúlio
Vargas a um jornal de Buenos Aires, já abordada no início deste capítulo, na qual
o Presidente comenta o fato de o país haver passado praticamente meio século,
após a abolição da escravatura, sem adotar quaisquer providências concretas no
sentido de organizar e regular a assistência ao trabalho.
Com este propósito em mente, o autor percorre de forma crítica as diversas
tentativas que, a partir 1888 e durante a Primeira República, foram feitas no
intuito de estender ao trabalhador brasileiro uma proteção adequada. Desta
análise, conclui que as medidas propostas no terreno das relações trabalhistas até
246
FONSECA, Roberto Piragibe da. O nacionalismo democrático do Estatuto de 1937 e o direito
político externo, op.cit., p. 197. [Roberto Piragibe deve estar se referindo, embora não especifique,
ao Conde Carlo Sforza (1872/1952), diplomata e político italiano, ativamente engajado na luta
anti-fascista, autor de livros sobre diplomacia, política internacional, regimes ditatoriais e
totalitários europeus, e o pensamento de Maquiavel, entre outros].
247
OLIVEIRA, Belfort de. Onde a verdadeira democracia? Cultura Política. Ano I, nº. 10,
dezembro de 1941, pp. 113-123.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
104
1930 resumiam-se a algumas poucas disposições legais, dispersas em artigos da
lei civil e comercial, ao invés de formar um sistema legal próprio e coeso. E
mesmo essas disposições limitavam-se a atender aos interesses de apenas um
pequeno grupo de trabalhadores, os ferroviários.
A desorganização gerava um clima de instabilidade e insegurança que
tendia a levar as classes operárias a seguir por caminhos perigosos. Algumas
categorias tentavam se organizar em associações, que acabavam por desaparecer
espontaneamente, ou eram dissolvidas pela polícia. Como resultado prático da
falta de articulação, o país parecia caminhar para um cenário de luta de classes,
tendência já esboçada pela realização de greves e outras manifestações através das
quais os trabalhadores expressavam seu descontentamento com a situação vigente.
A Revolução de 1930 teria realizado a "missão histórica de salvar [...] a situação
e operar o milagre."
248
Neste sentido, argumenta, a criação de um estatuto próprio para a
categoria, consubstanciado no texto da Legislação Trabalhista, constituiria a pedra
de toque do governo Vargas, na medida em que vinha substituir a noção de luta de
classes pelo conceito orgânico de colaboração entre elas. Com a introdução desse
arcabouço legal, alicerçado por um Ministério especial e reforçado pela instituição
da Justiça do Trabalho, construía-se o "edifício de linhas modernas" de que o país
tanto precisava para equiparar-se às nações mais desenvolvidas em termos de
legislação social. Como expressão da importância de tais conquistas, o articulista
se reporta a palavras do próprio Getúlio Vargas:
Para gáudio nosso, com o levantamento desse edifício -- palavras do próprio
arquiteto que o projetou e o plasmou -- "Não dividimos os brasileiros, não
criamos castas, não tentamos nivelamentos destruidores do valor individual,
oriundos de desvairadas utopias. Fizemos apenas o que o bom senso indicou --
aproximar os homens e de todos exigir compreensão, colaboração, entendimento,
respeito aos deveres sociais".
249
Onde está, então, para Belfort de Oliveira, a "verdadeira democracia"?
Certamente não pode ser encontrada na fórmula tradicional, "tal como é entendida
e praticada na parte setentrional do Continente", em que o povo não era chamado
a participar nas ações de um Estado que dividia as esferas do direito público e do
248
OLIVEIRA, Belfort de. Onde a verdadeira democracia?, op. cit., p. 122.
249
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
105
direito privado em artérias que não se comunicavam. Em outras palavras, ela não
está nos princípios liberais. No seu modo de ver, que expõe transcrevendo, mais
uma vez, palavras do Presidente, a verdadeira democracia está
na concepção "realista e funcional" do modelo getuliano -- onde as classes
laboriosas comungam, diariamente, com o Estado "nas suas quase seiscentas
colônias de pescadores, nas suas treze delegacias do trabalho marítimo, nos seus
cento e cinquenta tribunais de Justiça Social, nas suas duas mil e quinhentas
assembléias sindicais, nas várias seções e conselhos regionais das suas
corporações de advogados e engenheiros, nos cem corpos administrativos das
suas instituições de Previdência e, por fim, nos seus três altos Conselhos
Consultivos de Economia".
250
O substrato da democracia, para ele, portanto, está na eliminação do
conflito pela organização e amparo das classes trabalhadoras. É uma democracia a
ser exercida no âmbito das corporações e dos conselhos técnicos.
Na edição de março de 1942, Cultura Política inaugura uma nova
subseção, "Página Acadêmica", como forma de promover a aproximação entre
jovens universitários e a área cultural do governo. O objetivo era abrir a revista à
colaboração de alunos de cursos superiores, comprometendo-se a direção do
periódico a publicar um artigo por número, em qualquer de suas seções, de acordo
com o respectivo conteúdo.
A primeira contribuição veio de Pedro Manes, aluno de Direito
Constitucional do 2º. ano da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil,
curso ministrado pelo diretor de Cultura Política, Almir de Andrade. O artigo,
publicado na seção "A estrutura jurídico-política do Brasil", tem como título "A
Constituição de 37 e a idéia democrática."
251
Afirmando ter sido o regime liberal posto em cheque em virtude da crise
econômica e financeira em meio à qual o mundo então se debatia, o autor é mais
um a fazer questão de demarcar a linha divisória precisa entre democracia e
liberalismo, ressalvando que um Estado não deixa de ser democrático por não ser
liberal. As consequências dessa crise, que colocava em campos opostos os
interesses das diferentes classes, traduziam-se na necessidade de reformas sociais
profundas. O Estado tendia, assim, a passar por uma transformação de tal
250
OLIVEIRA, Belfort de. Onde a verdadeira democracia?, op. cit., p. 123.
251
MANES, Pedro. A Constituição de 37 e a idéia democrática. Cultura Política. Ano II, nº. 13,
março de 1942, pp. 122-131.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
106
magnitude que a nova ordem política daí resultante dificilmente seria compatível
com os princípios da democracia parlamentar formal.
Na mesma linha de argumentação já desenvolvida por outros autores na
revista, Pedro Manes pondera que não eram os princípios da democracia em si que
estavam em crise, mas sim os da democracia parlamentar. Da mesma forma como
liberalismo não é o mesmo que democracia, argumenta, esta não é sinônimo de
parlamentarismo e, portanto, o que se observava era uma crise do
parlamentarismo, aliada à do liberalismo. Cita os Estados Unidos e a Suíça como
exemplos de democracias em que não prevalece o princípio parlamentar.
O verdadeiro ideal democrático, sublinha, não pode perder de vista as
realidades sociais e as necessidades práticas. Seu papel deve ser buscar soluções
para os problemas sociais e econômicos, dos quais o Estado liberal-democrático
procura distanciar-se:
Procurando realizar o ideal puramente abstrato da liberdade, o Estado,
consoante a concepção liberal, não intervém não ordena nem orienta,
disciplinando, num determinado sentido, as atividades sociais e, mormente, as
econômicas.
252
Neste sentido, a Constituição de 1937 seria democrática precisamente por
não ser liberal. O fato de aquela Carta não adotar a prática do sufrágio universal
como forma de escolha do dirigente supremo do país, avalia, não invalidaria esta
afirmação, uma vez que, a ser verdade que o Estado é produzido pela vontade
popular, "os meios pelos quais a vontade popular se faz sentir têm de ser
estabelecidos de acordo com a realidade social."
253
O autor critica as novas Constituições, promulgadas no pós-guerra, por
estabelecerem o primado do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo. Tratava-
se, na sua percepção, de um grande equívoco, que só poderia conduzir ao
enfraquecimento do Estado. O motivo, explica, estava em que a eterna luta entre
os partidos cerceava o Poder Legislativo no exercício de suas funções, resultando
na paralização tanto do Executivo quanto do Legislativo, incapacitando-os para
suprir as necessidades do Estado e garantir o funcionamento dos serviços
252
MANES, Pedro. A Constituição de 37 e a idéia democrática, op. cit., p. 126.
253
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
107
públicos. Desenhava-se, assim, o cenário perfeito para a instalação de uma crise,
que poderia desacreditar o Estado e, consequentemente, a própria democracia.
A solução indicada, como não poderia deixar de ser, é o fortalecimento do
"Poder Executivo democrático", tendência universal que, segundo Manes, poderia
concretizar-se através do estabelecimento de uma ditadura, forma mais radical, ou
da elaboração de uma estrutura constitucional orientada para o fortalecimento do
Executivo. Poderia, ainda, assumir a forma de um regime parlamentar, "como
querem [Mirkine] Guetzévitch e [Michel] Dendias", ou presidencialista, "como
acha mais eficaz Giraud". O Executivo forte, acrescenta, seria, na ótica de
Guetzévitch, uma "necessidade técnica do regime de liberdade" e, nas palavras de
[Arturo] Alessandri, a única maneira de se "manter a democracia, fugindo-se da
ditadura"
254
. Manes afirma traçar a fronteira entre "ditadura" e "governo forte" a
partir da distinção feita por Burdeau, em cuja concepção o governo ditatorial
busca apoiar-se em um partido, ao passo que o governo forte prefere apoiar-se na
nação como um todo.
O Executivo forte é visto por ele como uma evolução natural da trajetória
política brasileira. O país via-se na contingência de fazer face à séria crise
econômica, social, política e espiritual que se abatera sobre o mundo
contemporâneo, e o único instrumento com que podia contar, para contorná-la, era
uma Constituição inadequada. Uma Constituição, acentua, recorrendo a palavras
do próprio Vargas, "antedatada em relação ao espírito do tempo", destinada a
uma realidade que não mais existia e fundada em princípios cuja validade não
mais se sustentava diante da crise, deixando as instituições existentes expostas "à
investida de seus inimigos, com o agravante de enfraquecer e anemizar o poder
público"
255
. Considera que a implementação do Estado Novo impusera-se, em tal
contexto, como um "imperativo de salvação nacional" e que a Constituição de
1937 fundava-se em preceitos essencialmente democráticos. Transcreve, uma vez
mais, palavras de Vargas, colhidas em Nova Política do Brasil, como forma de
avalizar esta afirmativa:
"[...] O regime instituído a 10 de Novembro é democrático, mantendo os
elementos essenciais ao sistema; permaneceu a forma presidencialista e o
caráter representativo. O reforço da autoridade do Chefe da Nação é a tendência
254
MANES, Pedro. A Constituição de 37 e a idéia democrática, op. cit., p. 129.
255
Ibid., p. 130.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
108
normal das organizações políticas modernas. Essa forma de concentração do
poder corresponde ao imperativo de ordem prática, tanto social como
econômica. E [...] mesmo os países de regime parlamentar recorrem,
frequentemente, a essas medidas sempre que têm de fazer face a situações
excepcionais ou de crise de força interna. Atendendo diretamente aos interesses
do povo, sem necessidade de intermediários, mais democráticos ainda se
revelam."
256
Prossegue na defesa do caráter democrático do Estado Nacional,
afirmando não ser correto atribuir à Carta de 37 características do regime fascista.
Este, por apoiar-se em um partido único integrado ao Estado e não respeitar a
soberania do povo, seria anti-democrático na essência, diferenciando-se, pois,
radicalmente, do cooperativismo que é a marca do novo regime brasileiro. Critica,
também, os que se referem à Constituição como bolchevista, regime que recusa a
igualdade democrática ao privilegiar uma determinada classe. Tampouco aceita
que se possa acusar aquela Carta de nazista. Pondera que o Presidente Vargas
teria se limitado a adaptar o sistema político brasileiro às realidades do país, tendo
por base sua trajetória e necessidades históricas, congregando todas as "forças
vivas nacionais" em um ambiente marcado pela ordem, pela coesão social e,
principalmente, pela autoridade.
Em artigo publicado no décimo sexto número da revista, na seção
"Problemas políticos e sociais", a democracia ganha mais um adjetivo:
democracia objetiva.
257
Menelick de Carvalho, Diretor da Secretaria do Interior do Estado de
Minas Gerais e autor do texto, direciona o artigo no sentido de explicitar a
oposição entre a liberal-democracia e a "democracia anti-liberal", por ele referida
como democracia "objetiva". Observa que o adjetivo "liberal", que antecede a
expressão democracia, não é de forma alguma um adjetivo "otimista, renovador e
reafirmador do princípio do governo popular", mas antes uma expressão
pejorativa, que antagoniza e nega a realização do bem comum -- objetivo máximo
a ser alcançado por um regime verdadeiramente democrático. Nesse sentido, seria
o liberalismo o "inimigo aguerrido" da democracia, na medida em que privilegia a
preeminência do interesse individual sobre aqueles da coletividade. Para ele,
256
VARGAS, Getúlio. Nova Política do Brasil. Apud MANES, Pedro. A Constituição de 37 e a
idéia democrática, op.cit., p. 130.
257
CARVALHO, Menelick de. Democracia objetiva e liberalismo romântico. Cultura Política.
Ano II, nº. 16, junho de 1942, pp. 29-37.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
109
democracia é o fato e liberalismo o fenômeno; aquela afirma a verdade, este a
nega. "A angústia de um século em decadência", avalia, "criou o meio-termo, o
consórcio impossível das duas potências em choque", dando origem ao conceito
de "liberal-democracia".
258
Carvalho apoia-se no testemunho de políticos e intelectuais de relevo para
advertir contra os riscos que ameaçam destruir os fundamentos democráticos e
para sublinhar a necessidade de se introduzir mudanças e "rejuvenescer
conceitos". Nesse espírito, afirma que, nos Estados Unidos, o Presidente
Roosevelt foi reeleito em função do slogan adotado em sua campanha: "Tudo pelo
povo, mas para o povo e pelo governo"
259
. Reporta, também, as palavras de
Herbert Hoover, Presidente dos Estados Unidos no período 1929-1933, o qual,
em artigo datado de setembro de 1940 e traduzido na edição de outubro do mesmo
ano pela revista Inteligência, discorria sobre as reuniões que mantivera dois anos
antes com líderes de quatorze nações européias na tentativa de compreender qual
o motivo que afastara tantos povos daquele continente dos regimes de liberdade.
Hoover impressionara-se com a dimensão da "revolução em idéias e em Governo
que tais países vinham realizando pela própria vontade do seu povo", bem como
com o fato de a ditadura haver sido, nesses países, "acolhida com alívio contra a
confusão estabelecida por poderes sancionados pelos chefes parlamentares, ou
confirmados por atos eleitorais". Tal postura, na avaliação do ex-Presidente, era
indicativa de que nos lugares em que regimes ditatoriais ascenderam ao poder, o
povo havia desesperado da democracia por não mais percebê-la como forma de
governo capaz de propor e implementar soluções concretas para seus problemas
objetivos.
260
Carvalho chama a atenção para um artigo publicado no The New York
Times Magazine em outubro de 1940 e traduzido na edição de dezembro daquele
ano da revista Inteligência. Nele, o diretor do periódico inglês The Economist,
Geoffrey Crowther, alertava sobre o fato de que na Inglaterra, berço e guardiã da
noção de liberdades individuais, já se discutia a necessidade de promover um
"rejuvenescimento do velho conceito de liberdade". O trecho do artigo
reproduzido por Carvalho, embora um pouco longo, merece ser aqui transcrito
258
CARVALHO, Menelick de. Democracia objetiva e liberalismo romântico, op. cit. Cf. pp. 30-
31.
259
Ibid. Cf. p. 31.
260
Ibid. Cf. p. 32.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
110
não apenas por ter como autor o diretor de uma das mais tradicionais e
prestigiadas revistas inglesas, e por ser o periódico americano que o publicou um
dos mais destacados veículos de informação da imprensa norte-americana, mas
principalmente pelo que representa em termos de expressão de um sentimento --
quase que um mea culpa --, de questionamento do status quo e de análise das
novas variáveis introduzidas no cenário político internacional em função da crise
em que o mundo então se debatia em variadas frentes:
"Pode deplorar-se e detestar-se a solução que Hitler e Stalin encontraram para
resolver o problema das relações entre o indivíduo e o Estado. Mas, não
necessitará a nossa solução um rejuvenescimento? Ela assenta, ainda hoje, no
grande progresso de um século em que os direitos políticos do cidadão foram
afinal codificados e estabelecidos -- na França, pela Revolução, na América,
pela Declaração da Independência e o Código dos Direitos, na Grã-Bretanha,
[...] pela Era da Reforma. Desde então, a democracia assentou suas bases na
liberdade de falar, pensar e escrever, na tolerância, na igualdade perante a lei e
no governo representativo. São conquistas de nossos antepassados. Muitas
dessas liberdades existiam, já, muito antes da sua codificação. O merecimento
das gerações liberais consistiu em codificá-las e gravá-las [...] nas tábuas da lei.
Não terá chegado o tempo de ir mais além? O cidadão de uma democracia
deveria não só ser garantido nas suas liberdades políticas, mas também num
mínimo econômico, sem o qual a consecução da felicidade é simples frase, vazia
de sentido. Segundo esse conceito, pelo Código dos Direitos Humanos, o
indivíduo, unicamente em virtude da sua cidadania, deveria possuir a certeza de
um certo mínimo de alimentos, de vestuário e de habitação decente. Deveria ter a
garantia, se fracassasse [...], de poder ganhar a sua vida. Fosse qual fosse a sua
situação econômica, deveria poder receber [...] cuidados médicos. Deveria
poder educar-se e desenvolver todas as suas capacidades. [...] Os pais deveriam
ter a garantia de que os seus filhos seriam protegidos, em todas as necessidades
elementares da vida. Não há razão para que este ideal seja um sonho distante.
Ao contrário, como por ocasião dos fundamentos do liberalismo político, há 150
anos, é mais uma questão de codificação e universalização daquilo que já
largamente existe. Nem esse mínimo de garantias seria custoso demais para as
forças da comunidade. Uma comunidade é capaz de garantir benefícios aos seus
membros unicamente graças à cooperação de todos, e isto também necessita de
ser colocado em nova luz, como visão nova da comunidade democrática. Se o
Estado garantir o mínimo de direitos ao cidadão, então o cidadão deverá
garantir um mínimo de deveres ao Estado."
261
Trata-se, sem dúvida, de um ponto de inflexão da maior relevância no
pensamento de representantes -- autor e órgão de imprensa -- dos dois países
considerados como matrizes do credo liberal, e nisto reside a importância do
artigo. E mais interessante se torna pelo fato de um intelectual ligado ao
261
CROWTHER, Geoffrey. The New York Times Magazine. New York, outubro de 1940.
Reproduzido em Inteligência. São Paulo, dezembro de 1940. Apud CARVALHO, Menelick de.
Democracia objetiva e liberalismo romântico, op. cit., pp. 33-34.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
111
pensamento autoritário apropriar-se de seu conteúdo para explicar e justificar uma
concepção doutrinária que se situa no extremo oposto do espectro político. Mas o
que mais chama a atenção é a semelhança dos argumentos empregados pelo
diretor da revista inglesa -- pilar do liberalismo -- e por articulistas que escrevem
em Cultura Política -- vitrine para a exposição de um ideário autoritário -- em
defesa de mudanças que, nas suas respectivas percepções, poderiam salvar a
democracia da derrocada que viam como inevitável.
Menelick de Carvalho aproveita a deixa introduzida pelo artigo de
Geoffrey Crowther para saudar a capacidade de visão dos idealizadores do Estado
Nacional. Não perde a oportunidade de enfatizar que, em um momento da história
em que convicções políticas seculares pareciam perder sua "consistência
orgânica", os princípios nelas contidos vinham transmudar-se na "democracia
objetiva que a Constituição de 1937 instalou pacificamente em nosso país"
262
,
enquanto nos países que deram origem à tradição liberal esses ideais
"transmudados" ainda eram apresentados e discutidos como se não passassem de
um sonho distante.
E qual o sentido da "democracia objetiva"? Na concepção de Carvalho, é
constituir um Estado que trabalhe, lado a lado com o homem, na direção da
conquista do ideal maior, que é o bem comum. Bem comum, sublinha ele
tomando por base palavras do próprio Vargas, cuja tradução concreta era visível
no esforço empreendido pelo governo de elaborar uma política trabalhista
extensiva a todos os grupos sociais, estabelecer um padrão mínimo de qualidade
de vida para a maior parte da população, dar assistência e proteção à família e à
infância, construir casas populares, postos de saúde, creches e maternidades e
instituir o ensino profissional. Seguindo esta linha de ação, o governo estava
trabalhando no sentido de melhorar os índices de saúde e produtividade, etapa
importante no processo de solucionar problemas estruturais que se haviam
transformado em entraves ao progresso do país.
O autor do próximo artigo a ser examinado parece compartilhar da opinião
expressa por Menelick de Carvalho sobre a necessidade de se atualizar o "velho
conceito" de liberdade. É este, precisamente, o tema que H. Lagden, pertencente
262
CARVALHO, Menelick de. Democracia objetiva e liberalismo romântico, op. cit., p. 35.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
112
aos quadros do DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público,
escolheu desenvolver em seu ensaio "O processo das democracias".
263
Veiculado na seção "Problemas Políticos e Sociais", o artigo começa por
afirmar que, em política, pensamento é ação. Sendo assim, e considerando que a
liberdade de pensamento é, nesse campo, uma atividade de risco, em virtude de
sua potencial capacidade de propagar "idéias demolidoras e nocivas", caberia ao
Estado defender-se impondo limites a toda expressão do pensamento em matéria
política. Tal interferência por parte do Estado, na medida em que não constitui
uma limitação ao livre pensamento como atividade construtora, ou seja, como
forma de aspirar ao aperfeiçoamento individual ou ao da sociedade como um
todo, não representaria, de modo algum, uma afronta ao caráter democrático do
regime. Afinal, teoriza o autor, a liberdade não deixa de ser liberdade por poder
ser exercida apenas de forma relativa, e não absoluta, e a "liberdade, entendida
[...] como ação construtora, [...] nenhum Estado democrático tolhe, reprime ou
dificulta."
264
O que torna este artigo interessante é, em especial, o argumento
empregado por Lagden para tentar demonstrar que é falsa a premissa de que a
liberdade não existe se não for completa e absoluta. É um argumento que se
poderia rotular de sofístico, no qual o autor traça um cenário em que os conceitos
de democracia e totalitarismo poderiam, hipoteticamente, convergir, igualando-se:
Basta considerar que, se as democracias suprimissem, de fato, as liberdades,
pela simples razão de, em alguns casos, as limitarem, não haveria motivo para
que os regimes de força as censurassem ou combatessem, uma vez que estariam
procedendo de forma perfeitamente igual. [...] Se os totatitários, por princípio, só
admitem as coisas totalmente, isto é, ou a liberdade total, que não praticam, ou a
sua total ausência, nada haveria mais parecido com um totalitarismo do que a
existência, nas democracias, ou de uma liberdade absoluta, ou de sua total
inexistência.
Segue-se, pois, que a liberdade restrita, tal como se mostra a do pensamento
político em certos casos de necessidade, enfim, a liberdade relativa das
democracias, é o traço que as distingue da bruteza totalitária.
265
[grifo meu]
Seu ponto é que a liberdade, ao aceitar esta única limitação, restrita ao
âmbito do pensamento político, passando a ser relativa e prática ao invés de
263
LAGDEN, H. O processo das democracias. Cultura Política. Ano II, nº. 17, julho de 1942, pp.
41-47.
264
Ibid., p. 42.
265
Ibid., pp. 43-44.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
113
absoluta e teórica, "humanizou-se", tornando-se, a exemplo do homem,
"imperfeita". É esta liberdade, assim humanizada, que Lagden contrapõe ao
tradicional conceito de liberdade absoluta, que, por não se mirar "no espelho das
realidades", não era humana, mas "postiça".
266
Lagden pondera, ainda, que não basta que a liberdade seja relativa.
Tratando-se de uma força, ela deve também ser dirigida. Só assim torna-se
possível aproveitá-la. Aos críticos da liberdade dirigida, o autor contra-argumenta
que confundem liberdade, que é de ordem prática, com livre arbítrio, que é de
ordem intelectual. Ressalta que o papel da democracia não deve ser o de suprimir
a liberdade, mas sim de dirigir e orientar sua força para o trabalho construtivo,
criando as condições para que floresça e desenvolva suas capacidades, desta
forma consolidando-a. Entende que a liberdade, abandonada a si própria,
[...] acabava sofrendo da força que desconhecia. Ela, a inimiga das ambições
descomedidas, a adversária nata dos potentados e déspotas, a alma dos
oprimidos e dos fracos, exauria-se na impotência, perdida nos desatinos da sua
própria indisciplina.
267
A democracia, portanto, na percepção deste articulista, deve constituir-se
com base neste conceito renovado de liberdade, uma liberdade relativa e dirigida,
à qual ele se refere como liberdade "essencial".
Também na seção "Problemas Políticos e Sociais", o décimo-oitavo
número de Cultura Política traz um ensaio escrito por Paulo Augusto de
Figueiredo. Presidente do Departamento Administrativo do Estado de Goiás, ex-
Professor de Teoria do Estado na Faculdade de Direito e ex-Procurador Fiscal da
Fazenda daquele mesmo Estado, ex-Promotor Público em Bonfim, Paulo
Figueiredo foi tema de trabalho apresentado por Elide Rugai Bastos no Seminário
Internacional "Intelectuais, Sociedade e Estado", realizado em Campinas em
setembro de 2004, que sobre ele escreve:
Entre os autores da década de 1930 e início de 1940 analisados pela
bibliografia, seu nome pouco aparece. Embora seus escritos sejam algumas vezes
citados, não se confere o devido lugar a esse autor cujo debate, principalmente
266
LAGDEN, H. O processo das democracias, op. cit. Cf. p. 45.
267
Ibid., p. 46.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
114
aquele referido à crítica do liberalismo, é incorporado por vários escritores do
período e mesmo nos discursos do chefe do governo e dos ministros.
268
De fato, dos artigos selecionados para compor a presente dissertação, O
conteúdo democrático do Estado Nacional, de Paulo Figueiredo
269
, é dos mais
importantes para se compreender, na sua essência, o conteúdo ideológico que dava
sustentação ao projeto político arquitetado em 1937.
Da mesma forma como H. Lagden professa a "humanização" da liberdade,
como visto acima, Paulo Figueiredo deixa transparecer, na crítica que faz ao
liberalismo democrático, sua percepção de um igual movimento na trajetória da
democracia no sentido de "humanizar-se". Na origem desse movimento estaria o
erro básico do Estado liberal, que é o de operar exclusivamente no âmbito do
racional, das idéias abstratas, como que pairando acima da realidade concreta,
distorcendo assim o papel da política, que seria o de
[...] racionalizar as forças da sociedade, [...] torná-las conscientes, visto que só
o consciente pode operar segundo planos definidos e para fins determinados. O
raciocínio liberal [...] obrava em plano distinto, fora da realidade, longe da vida.
[...] Havia, por conseguinte, um desajuste entre os homens e as instituições.
Entre o Estado e a sociedade, que nele não tinha expressão real.
270
Na prática, essa postura resultou na necessidade de superação do
liberalismo democrático, levando a democracia a se transformar, "evoluindo do
plano liberal para o da realidade. 'Socializou-se'. Humanizou-se. Vivificou-se"
271
.
E sendo o homem a grande realidade, à democracia não restara alternativa senão
transformar-se, integrando-se na vida para manter-se coerente com seus próprios
ideais. Essas mudanças, pontifica o autor, são a prova de que as instituições
precisam estar sempre em movimento, em sintonia com as necessidades de seu
tempo, para poder realizar seus fins:
[...] o Estado há de ser um Estado dinâmico, vivo, em constante movimento. Só
dessa maneira poderá, acompanhando as mutações da vida, realizar as
finalidades da vida. [...] Só o Estado integral realiza os fins do homem, como
268
BASTOS, Elide Rugai. "Paulo Augusto Figueiredo e o pensamento autoritário no Brasil". In:
RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado, op.
cit., p. 121.
269
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional. Cultura
Política, Ano II, nº. 18, agosto de 1942, pp. 13-26.
270
Ibid., p. 14.
271
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
115
indivíduo e como cidadão. Um mínimo de fins particulares; o máximo de fins
gerais, sociais. O indivíduo integral é a síntese dos indivíduos. O Estado integral
expressa e busca efetivar as aspirações desse indivíduo. Daí a necessidade da
integração dos homens no Estado, o que significa humanização do Estado.
Quando isto sucede, então liberdade e autoridade -- os dois termos políticos
fundamentais -- se reconciliam, se ajustam, operam num mesmo sentido.
272
[grifo
meu]
Paulo Figueiredo expressa uma visão bastante tradicional no que diz
respeito ao papel das massas e das elites em um regime democrático, visão esta
que passa por uma acentuada noção de hierarquia e disciplina. Daí a importância
que atribui à relação entre os "dois termos políticos fundamentais", liberdade e
autoridade: em uma democracia autêntica, deve haver o máximo de liberdade e o
máximo de autoridade, entendida esta como disciplina, hierarquia e direção.
Pondera que, se a democracia é o governo do povo, é preciso ter presente que o
termo "povo" não deve ser referido apenas ao operário, ao burguês, ou à "gente
rica". Povo é nação, explica, e a nação
[...] está acima de todas as classes, que ela inclui e supera. Nação organizada é
o Estado. Por isso, o Estado é um organismo de funções múltiplas, complexas,
variadas. [...] As massas têm, assim, no Estado democrático, o seu lugar, o seu
papel, porém as funções de comando não lhes competem. [...] O governo cabe às
elites. Democracia não exclui disciplina de forças, diferenciação racional de
funções, hierarquização de valores. As massas têm a sua missão a cumprir,
porém diferenciada da missão das elites. Devem ser educadas, orientadas,
esclarecidas. Para o seu próprio bem.
273
Paulo Figueiredo justifica seu pensamento no tocante ao papel das massas
e das elites a partir do pressuposto de que o ideal da civilização é atingir a
perfeição social. Para corroborar sua posição, busca apoio nos escritos de Adolfo
Agorio, Oswald Spengler e J. Enrique Rodó. De Agorio, além da afirmação de
que "Todo o patrimônio do progresso humano constitui o trabalho de uma dúzia
de homens de gênio", o autor toma emprestada a idéia de que a massa, em relação
à perfectibilidade social, não passa de um meio do qual se valem os "espíritos
superiores" para realizar suas idéias e sonhos. De Oswald Spengler, cita a máxima
segundo a qual "Os grandes indivíduos são os que fazem a história. Aqueles que
se apresentam em 'massa' somente podem ser um objeto para ela"
274
. De Rodó,
272
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit., p. 16.
273
Ibid., pp. 18-19.
274
Ibid. Cf. p. 19.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
116
extrai a noção de que a democracia, ainda que não seja um governo de classes,
não exclui a presença de um elemento aristocrático, cujo papel seria o de
estabelecer a superioridade dos melhores. Em uma democracia, o dever do Estado,
segundo Rodó, estaria justamente em
predisponer los medios proprios para provocar uniformemente la revelación de
las superioridades humanas dondequiera existan. De tal manera, más allá de esta
igualdad inicial, toda desigualdad estará justificada.
275
[grifo meu]
Com base em tais premissas, Paulo Figueiredo atribui a crise da liberal
democracia ao fato de ser essa forma de governo, assim como o comunismo, o
regime das massas.
No caso do Brasil, explica, o liberalismo praticado na Velha República --
"verborrágica, inativa, inoperante"
276
-- demonstrava estar totalmente dissociado
da realidade nacional. As instituições e as leis não expressavam aquela realidade e
tampouco o poder constituído direcionava suas energias para a solução dos graves
problemas sociais, econômicos e políticos, passando ao largo das legítimas
aspirações nacionais. Tudo o que existia de genuinamente nacional no Brasil
deveria, portanto, ser creditado exclusivamente à ação antiliberal, ainda que possa
ter resultado do empenho de expoentes do pensamento liberal, "obra de
brasileiros que, acima das ideologias jurídicas, colocavam a realidade
nacional"
277
. Nessa categoria, Paulo Figueiredo inclui o Marquês de Olinda, o
Regente Feijó, Bernardo de Vasconcelos, Evaristo da Veiga, o Marquês de
Paraná, o Visconde de Uruguai, o Visconde de Itaboraí e o Duque de Caxias.
Todos liberais, assinala, por serem homens de seu tempo, mas cujo entusiasmo
pelos ideais de liberdade e democracia não os impedia de estar atentos às reais
necessidades do país. Reserva também elogios a Pedro II, por não ter hesitado em
usar seu prestígio pessoal para tentar neutralizar a "obra dissolvente dos
'liberais'."
278
Estes, observa em crítica explícita à importação de idéias, vivendo
no Brasil, tinham a cabeça na Europa.
275
RODÓ, J. Enrique. Ariel. Valencia, Espanha: Ed. Prometeo. Apud FIGUEIREDO, Paulo
Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit., p. 19.
276
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. Op. cit., p. 19.
277
Ibid., p. 20.
278
Ibid., p. 19.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
117
Sua visão do regime liberal, como de resto é a dos demais articulistas aqui
apresentados, é extremamente cáustica e depreciativa e ele atribui à prevalência
dessa ideologia no ambiente político brasileiro o fato de não ter sido possível,
durante tanto tempo, implantar no país a verdadeira democracia:
O regime liberal colocava acima de tudo o indivíduo. Mas o indivíduo em si,
porque o real [...], que queria trabalho, saúde, instrução, ordem -- este ele não
focalizava [...]. [E]ra um regime puramente teórico. [...] Não era, pois, um
regime do povo. Não era uma democracia. Era um regime de "panelinhas", do
"compadresco", do "coronelismo". O liberalismo era um regime de castas,
dominando a pior -- a do dinheiro. Por isso tudo, não existiu, na Velha
República, democracia.
279
[grifo meu]
O movimento capaz de levar as elites, e também as massas, a acordar para
a necessidade de repensar a maneira como o país vinha sendo conduzido só seria
deflagrado a partir do momento em que se aprofundasse o contato com a realidade
nacional, analisa o autor. A compreensão da realidade evoluiria gradualmente em
direção ao natural abandono de fórmulas políticas, como a liberal democracia,
esvaziadas pelo próprio ritmo de um mundo em constante e acelerado processo de
transformação social, e à conseqüente aspiração por novas fórmulas, sintonizadas
com os novos tempos, capazes de traduzir, na prática, essa realidade.
É justamente neste ponto de inflexão que o autor situa o tema -- caro a
todos os ideólogos do autoritarismo -- da centralização do poder nas mãos de um
Chefe de Estado:
[...] ao mesmo tempo em que em nossa inteligência ganhava corpo o repúdio à
liberal-democracia, crescia, [...] entre nós, a consciência da necessidade de um
Chefe de Estado responsável, capaz. O poder central e forte, verdadeira vocação
nacional, agitava-se no subconsciente pátrio e aos poucos ia reingressando no
consciente nacional.
280
[grifo meu]
Para provar que a tendência à unidade e ao executivo forte fora sempre
uma vocação natural no Brasil, Paulo Figueiredo comenta a presença desse
"imperativo nacional" nas Constituições brasileiras desde a monarquia,
recorrendo, para tanto, a artigo publicado em outro número da revista por Mario
279
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit., p. 20.
280
Ibid., p. 22.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
118
Casassanta
281
, Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da
Universidade de Minas Gerais. Proclamada a independência, observa Figueiredo
citanto Casassanta, instaurou-se no país uma monarquia constitucional
representativa em que o Imperador tinha total autonomia para nomear e destituir
ministros. A Constituição republicana de 1891 teria seguido, nesse aspecto, a
mesma linha da de 1824: "Suprime o parlamentarismo que ela não continha,
retorna ao executivo forte e independente que ela previa"
282
. O Estado Novo,
portanto, ao também privilegiar um Executivo forte, estaria em perfeita
consonância com uma prática que, afinal, remontava às próprias raízes da história
política brasileira. Mesmo na Constituição de 1934, acrescenta, em cujo texto "se
misturavam as teorias mais absurdas"
283
, a intenção original fora a de se
estabelecer um poder Executivo forte.
Paulo Figueiredo endossa a tese de que só um poder centralizado e forte,
como o instituído pelo Estado Nacional, seria capaz de realizar a verdadeira
democracia, pois esta não prescinde da autoridade. E a autoridade, para a liberal
democracia, não passaria de um mito. Por "democracia verdadeira" ele entende
não a democracia discursiva e retórica dos comícios e dos parlamentos, mas
[...] uma democracia autoritária, social e econômica, onde todas as classes, pelos
seus órgãos representativos legítimos, têm os seus interesses regulados,
dirigidos, satisfeitos. Democracia que não exclui responsabilidade nem
moralidade, que respeita e assegura, realmente, os direitos individuais. Que
integrou o indivíduo na comunhão social, interessando-o na coisa pública. [...]
Uma democracia que organiza e dignifica o trabalho braçal e intelectual; que
planifica a educação, dando-lhe um cunho técnico, um conteúdo realista, um
sentido nacional, visando o desenvolvimento não só do indivíduo, mas também do
cidadão; que humaniza o direito; que dirige a economia, segundo princípios de
uma ética nacional. É [...] uma democracia que age não somente em extensão
[...], mas também, e principalmente, em profundidade [...].
284
[grifo meu]
Acredito que, ao definir desta forma quais os princípios que, na sua visão,
constituem o espírito da "verdadeira democracia" -- admitindo, inclusive, a
necessidade de que ela seja "autoritária" -- Paulo Figueiredo, em rápidas
281
CASASSANTA, Mario. Executivo forte, tendência nacional. Cultura Política, Ano I, nº. 7,
setembro de 1941, pp. 135-141.
282
Ibid. Apud FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional,
op. cit., p. 22.
283
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. Op. cit., loc. cit.
284
Ibid., p. 23.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
119
pinceladas, traça um dos mais fiéis retratos da estrutura ideológica do Estado
Novo.
A exemplo de outros autores, também ele faz questão de deixar nítida a
diferença entre a ideologia autoritária que alicerçara a construção do Estado
Nacional, e a ideologia que informava os regimes totalitários e o Estado liberal.
Diferencia-a, em primeiro lugar, do Estado totalitário -- aí incluído o regime
comunista -- e do Estado liberal por ser um governo do povo, mas não das massas,
não de classes. E acrescenta que, se no Estado comunista o homem é atributo da
economia, no fascista do próprio Estado e, no liberal, da razão pura, no Estado
Nacional a economia, a idéia e o Estado só existem em função do homem, que é o
seu eixo e deve pairar acima de qualquer categoria, seja ela social, racional ou
econômica. É por este motivo, sublinha, que o Estado Nacional brasileiro tem por
objetivo a "superiorização das massas", e não a "inferiorização das elites". Nisto
residiria a sua característica moral essencial, dado que
assim como cada indivíduo deseja alcançar a sua plenitude, o Estado busca a
formação plena do homem como cidadão -- isto é, da coletividade. E esta, só se
superando, só se integrando em instâncias gradualmente superiores, poderá
atingir a plenitude. É isto, sem dúvida, a verdadeira democracia.
285
[grifo meu]
Paulo Figueiredo vai gradualmente encaminhando sua argumentação no
sentido de demonstrar a necessidade inevitável, apontada por Francisco Campos
em O Estado Nacional, de se inverter o conceito de democracia, para adaptá-la às
conquistas do mundo moderno. Para Francisco Campos, em uma época em que
transformações sociais profundas, impulsionadas por conquistas científicas
inovadoras nas mais diversas áreas, se sucediam em velocidade vertiginosa,
liberdade e garantias individuais -- ideais negativos -- não mais poderiam ser
considerados instrumentos adequados e suficientes para estender a todos os
benefícios advindos de tantas mudanças radicais. Tornara-se, portanto, urgente e
imprescindível, e o Estado Nacional compreendera essa urgência,
"[...] inverter o conceito de democracia próprio do século XIX. O problema
constitucional não era mais o de definir negativamente a esfera da liberdade
individual, mas organizar o poder ao serviço dos novos ideais da vida; não era
mais o caso de definir, de modo puramente negativo, os direitos do indivíduo,
mas atribuir aos indivíduos direitos positivos por força dos quais se lhe
285
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit., p. 23.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
120
tornassem acessíveis os bens de uma civilização essencialmente técnica e de uma
cultura cada vez mais extensa e voltada para o problema da melhoria material e
moral do homem. [...] A Constituição de 10 de Novembro atende, de modo cabal,
às transformações que, em nosso século, se encontram em via de rápida
realização, nos ideais e nas instituições democráticas."
286
[grifo meu]
Além de subscrever a idéia da inversão do conceito de democracia exposta
no texto de Francisco Campos, Paulo Figueiredo vai além e cria um neologismo
para dar conta desse conceito invertido: "humanocracia". Porque age de forma
integral, objetiva e concreta, o verdadeiro Estado democrático trabalha no sentido
de integrar o indivíduo no Estado, desta forma eliminando o conflito original que
coloca esses dois atores em campos opostos. Tal conflito, ressalta, só pode ser
solucionado por um Estado com forte conteúdo humano, donde a idéia de
humanocracia:
Tendo este um conteúdo humano, e havendo identidade de fins do indivíduo e do
Estado, como já mostrava Aristóteles, claro é que só um Estado integral, que
considere todos os valores humanos e os integre, em síntese final, num todo
superior, resolverá o problema. [...] É como se vem agindo no Estado Nacional.
Estado humano, integralmente humano, o Estado Nacional realiza a democracia
integral. Democracia de essência. [...] Humanocracia. [...] Essa, a democracia
brasileira. E é isso a democracia.
287
[grifos meus]
Eis, portanto, a democracia com sinal "invertido" na concepção de Paulo
Figueiredo. Uma democracia que integra o indivíduo no Estado, que possui uma
acentuada noção de hierarquia, de disciplina e do equilíbrio adequado entre
liberdade e autoridade, que define o papel que cabe às massas e às elites, que cria
condições para o desenvolvimento dos "espíritos superiores", justificando, por
conseguinte, a existência da desigualdade para além da igualdade inicial. Uma
democracia que só pode ser efetivamente realizada por um Estado forte, com o
poder centralizado nas mãos de um Chefe capaz de apreender a realidade
nacional, criar instituições que se coadunem com ela e colocar o homem como
centro dessa realidade. Uma democracia ativa, positiva, humanizada --
humanocracia --, que promova os valores humanos e a realização plena do
homem.
286
CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. Rio de Janeiro: Liv. José Olimpio, 1941. Apud
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de . O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit., p. 25.
287
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. Op. cit., p. 25.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
121
O ensaio intitulado "Conceito de democracia no Estado Nacional"
288
,
publicado na seção "Doutrina Política" por Castro Costa, Chefe do Serviço de
Organização do Departamento do Serviço Público do Estado de Goiás, não chega
a falar em inversão do conceito, como faz Paulo Figueiredo, mas teoriza que o
conceito não cabe nos limites da "rigidez etimológica" da palavra.
Embora o senso comum tome a expressão "governo do povo" como
tradução literal da expressão "democracia" para reivindicar prerrogativas sociais
muitas vezes "obscuras e indistintas", escreve o autor, o conceito, na realidade,
reúne em si uma série de circunstâncias políticas e sociais por demais complexas e
de difícil assimilação pelo "homem de cultura medíocre". O que se vinha
observando, na verdade, afirma, era a gradual corrosão do processo democrático
na sua própria essência, na medida em que a prevalência do princípio do "maior
número" criava condições para que se protagonizasse uma autêntica comédia
eleitoral. E assim,
[...] a democracia elege, por intermédio das comédias eleitorais de hoje, a
minoria aristocrática que constitui o governo, desvirtuando a essência de sua
organização e provando a sua impraticabilidade dentro da rigidez etimológica
do vocábulo.
289
O verdadeiro significado da democracia para Castro Costa não está contido
no princípio consagrado na declaração de independência dos Estados Unidos, e a
seu ver "discutível", de que "todos os homens nascem iguais", mas sim na
igualdade de todos perante a lei. Isto porque, diz ele citando H.G. Wells, "os
homens não nascem iguais, nem livres; nascem em uma múltipla diversidade e
emaranhados em uma contextura social antiga e complexa"
290
, donde não se
poder inferir ser a democracia uma evolução natural da organização da sociedade,
que viria realizar uma teórica "liberdade inata" do ser humano. Ela é um conceito
científico, construído a partir de dados da experiência.
Castro Costa alinha-se com outros articulistas de Cultura Política ao
expressar a convicção de que, considerando que todas as formas de governo se
equivalem e contêm tanto aspectos positivos quanto negativos, cada sociedade
288
COSTA, Castro. Conceito de democracia no Estado Nacional. Cultura Política. Ano III, nº. 32,
setembro de 1943, pp. 25-27.
289
Ibid., p. 25.
290
Ibid., p. 26.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
122
deve ser livre para organizar-se adotando a forma que melhor se ajuste à sua
trajetória política e às suas necessidades históricas. Ao longo desse processo, é
essencial que ideologias exóticas e dissociadas da realidade do país sejam
abandonadas. Getúlio Vargas, avalia o autor, seguindo à risca tal preceito, ou seja,
passando ao largo de fórmulas importadas e tendo como objetivo maior interpretar
e realizar as autênticas aspirações do povo brasileiro, teria construído para o Brasil
uma democracia "sui generis", cuja tradução seria, precisamente, o conceito
democrático do Estado Nacional.
É interessante mencionar, pela atualidade nestes tempos em que, na esteira
das mudanças introduzidas na Venezuela pelo presidente Hugo Chávez, tanto se
discute sobre um hipotético conceito "bolivariano" de democracia, as palavras de
Simon Bolívar com que Castro Costa escolheu fechar seu ensaio. Proferidas por
aquele líder durante o Congresso de Angostura, são transcritas no artigo com a
intenção de estabelecer uma convergência entre o pensamento do Libertador e a
obra de Getúlio Vargas:
"O espírito da lei não deve estar de acordo com o espírito do povo que deve
reger? Não é uma raridade que, apropriada a um povo, se ajuste a outro? Não é
certo que as leis devem observar a conformação e a situação do país, as
imposições do clima, a qualidade do solo, sua expansão e o modo de vida de seus
habitantes? Que devem conceder a liberdade na medida a não permitir que seja
transgredida e de acordo com a religião do povo, de suas inclinações, sua
riqueza, seu número, seu comércio, seus hábitos e suas possibilidades? É este
código que devemos consultar, e não o de nenhuma outra nação! Precisamos,
assim, dar ao país um governo que, resguardando as bases do sistema
republicano, conserve, no entanto, a firmeza necessária para abrigar o povo ao
respeito da moral e das necessidades do Estado."
291
Assim posta, a afinidade entre os ideais professados pelos dois líderes, e
também entre este discurso de Bolívar e a apreensão linguística do cenário
político do Estado Nacional registrada na revista pelos autores dos ensaios aqui
apresentados, parece eloqüente.
Neste mesmo número de Cultura Política ainda outro artigo aborda
diretamente a questão da democracia. Inserido na seção "O Estado Nacional, seu
Espírito e Realizações", o longo ensaio (só de bibliografia são cinco páginas) tem
291
BOLÍVAR, Simon. Discurso de Angostura [Palavras pronunciadas em discurso feito em 15 de
fevereiro de 1819, durante o Congresso de Angostura, realizado na cidade venezuelana de mesmo
nome, atualmente denominada Ciudad Bolívar]. Apud COSTA, Castro. Conceito de democracia
no Estado Nacional, op. cit., p. 27.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
123
por título "A democracia e o Estado Nacional"
292
, e é de autoria do Professor de
Sociologia Educacional no Curso de Aperfeiçoamento e Especialização do
Ministério da Cultura, A. César Veiga.
Para melhor situar o tema a ser desenvolvido no ensaio -- cujo objetivo
final, desnecessário dizer, é justificar o substrato autoritário da doutrina estado-
novista --, César Veiga volta atrás no tempo para falar da Escola Monográfica,
instituída na França em finais do século XIX por Pierre Frédéric Guillaume Le
Play e continuada posteriormente por seus discípulos Henri de Tourville, Edmond
Demolins, Robert Pinot e Paul Rousiers. As pesquisas realizadas pelo grupo eram
conduzidas com base no critério científico de análise dos fenômenos sociais
através da observação próxima e direta dos fatos, bem como pelo exame objetivo
das relações daí derivadas e passíveis de serem verificadas. Dentro desse espírito,
a Escola propôs-se a empreender um estudo acerca do funcionamento da
sociedade como um "sistema coletivo", tomando, para tanto, como modelo, as
relações que se desenvolviam no seio de um grupo que pudesse ser considerado
como representativo, em escala menor, desse universo maior. O grupo escolhido,
por ser o mais constante, foi a família. A primeira realização dessa escola
sociológica foi, portanto, explica César Veiga, uma classificação dos tipos de
família.
Evidentemente, não cabe no escopo desta dissertação, por não ser o
objetivo aqui proposto, acompanhar os detalhes da realização da pesquisa, descrita
de forma minuciosa pelo autor. É pertinente, contudo, registrar os tipos de família
classificados pelo grupo liderado por Le Play, uma vez que cada tipo será por eles
vinculado a uma determinada forma de organização da sociedade.
Na família "patriarcal", que o estudo aponta como característica das
populações "menos evoluídas" do oriente, o indivíduo é totalmente absorvido pela
comunidade, permanece em total dependência em relação a ela e submete-se de
forma completa à autoridade do chefe. Esta classificação possui uma variante, a
família "quase patriarcal", que se distingue da primeira por apresentar um certo
grau, ainda que incipiente, de iniciativa individual. Na família "instável", ou
"estatista-comunitária", por sua vez, o indivíduo é visto como mero instrumento
dos políticos ou dos governos. Nela, os jovens não são formados no respeito à
292
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional. Cultura Política. Ano III, nº. 34,
novembro de 1943, pp. 35-67.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
124
tradição, como ocorre no tipo "patriarcal", nem incentivados a agir de forma
independente, criativa e inovadora, como é o caso do tipo "particularista". Nas
sociedades estabelecidas a partir da família "estatista-comunitária" a comunidade
de família é substituída pela comunidade pública. O tipo de Estado que daí resulta
vem a ser um Estado comunitário, interventor e centralizador, estruturado em
torno de uma forte burocracia oficial -- donde o grande interesse pela carreira
militar e pelo emprego público. A França, a Alemanha e a maior parte das nações
do oeste europeu são citadas como exemplos de sociedades constituídas a partir de
famílias "estatistas-comunitárias". A família "particularista" seria, dentro desse
sistema de classificação, de acordo com a pesquisa, o tipo mais evoluído, e teria
servido de base, primordialmente, para a formação das sociedades escandinavas,
helvéticas, inglesa e norte-americana. Nela, os jovens eram orientados a
desenvolver a iniciativa individual e a se conduzir de forma independente. O
indivíduo não podia contar com a família, como no tipo "patriarcal", ou com o
Estado, como no tipo "estatista-comunitário". Seu sucesso dependia
exclusivamente da energia e capacidade pessoais, e a educação era direcionada
para o aperfeiçoamento das qualidades individuais e para a formação de homens
de ação. A sociedade que se organiza a partir do tipo de família "particularista" é
apontada como a melhor capacitada a realizar as aspirações de progresso e,
consequentemente, vista como meta a ser atingida pelas demais sociedades.
Neste ponto, César Veiga estabelece o primeiro vínculo entre tipo de
família e organização da sociedade, para logo em seguida introduzir seus
questionamentos e apontar os equívocos gerados pela falta de explicação
adequada sobre o que teria ocorrido com a trajetória da democracia:
Que é a sociedade particularista senão a mesma sociedade democrática? Que é o
demos grego senão o grupo social misto em que se fundiam [...] as castas e
classes, para valorizar os indivíduos segundo o seu merecimento pessoal [...]?
Que é a democracia antiga senão o governo do demos, que tinha o caráter de
universalidade e substituía o antigo genos, a família primitiva, [...] aristocrata,
que constituíra a casta oligárquica e tirânica [...]? E como se explica que, sendo
forma adiantada de existência dos povos, se perdesse e mesmo se extinguisse por
tanto tempo da história social e, voltando ao cenário da civilização, só se realize
em alguns povos [...]? [A] falta de explicação clara dessas dúvidas é que tem
dado lugar aos equívocos que tantas vicissitudes têm custado às populações
modernas.
293
293
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional, op. cit., p. 40.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
125
O primeiro desses equívocos, avalia, deriva da imprecisão de que se
reveste a forma democrática de organização social. Talhados para tempos de paz e
de trabalho, os regimes democráticos viram-se, durante a guerra, na contingência
de ter que reverter, ainda que por período limitado, a um tipo de governo
intervencionista e centralizador, forte e autoritário, característico da forma de
organização "estatista-comunitária" -- ou "socialista" -- para fazer face aos graves
acontecimentos que então os desafiavam:
Quando se impõe uma só finalidade de ação, uma só mística de pensamento e
uma coordenação geral de todas as técnicas para um só objetivo, claro é que a
única forma de governo forte e autoritária e a de vida social eficiente é a
estatista-comunitária. O governo absorvente, que fracassa na paz construtiva
porque não pode ser onímodo, triunfa [...] na guerra por ser unímodo.
294
O segundo equívoco, esclarece, ocorre em função de ser comum tomar-se
a "forma de organização" particularista ou democrática, ou mesmo a estatista-
comunitária, ou ainda a aristocrática, como "formas de governo". Basta atentar,
diz ele, para o fato de que qualquer dessas formas de sociedade pode adotar o
regime político de outra, para que imediatamente tal equívoco se desfaça.
César Veiga é mais um a engrossar as fileiras dos críticos das idéias
importadas. Sustenta que "não bastaria copiar as instituições de um povo
autenticamente democrata para se fazer de uma população aristocrática ou
patriarcal uma nação também democrata"
295
, e repudia aqueles que se recusam a
reconhecer que todas as tentativas de imitação impostas com base na mera cópia
de regras de conduta exóticas resultaram em experiências contraproducentes. O
que ocorre com os partidos políticos em países "pseudo-democratas" é, para ele,
exemplo típico desse fenômeno. Enquanto nas democracias "autênticas" o número
de partidos é reduzido, "um Tory e um Whig, um Republicano e um Democrata",
nas democracias "de ficção" as agremiações partidárias multiplicavam-se em uma
infinidade de partidos sem expressão política. O resultado prático, como não
poderia deixar de ser, era que
a noção das instituições democráticas visando a um cômputo dos interesses
gerais dominantes no momento, era [...] desvirtuada pela preocupação
individualista da caça ao cargo ou emprego público de deputado, a que servia
294
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional, op. cit., p. 42.
295
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
126
esse processo demagógico de iludir a opinião [...] popular com [...] místicas e
teorias salvadoras [...]. Enquanto essas incapacidades [...] sequer tentavam
governar o país, [...] embaraçando e impedindo com suas [...] disputas de
partidos e ideologias, nos bastidores [...] apaniguavam-se esses irreconciliáveis
adversários para [...] ludibriar a massa popular [...]. Que era isso senão a
política de uma casta, o governo de uma elite de privilegiados improdutivos, uma
oligarquia de modelo aristocrático antigo?
296
As democracias autênticas também possuem suas elites, assinala o
professor, mas estas não constituem, de modo algum, "castas fechadas em
compartimentos estanques", capazes de em pouco tempo dissociar-se das
aspirações das massas e perder a dimensão do que seja o interesse nacional.
Existem, enfim, observa, duas formações sociais entre os povos de
civilização ocidental, caracterizadas em dois grupos distintos: aqueles que Le Play
e Max Weber definem como de formação "particularista", ou "capitalista", e aos
quais César Veiga prefere se referir como "democratas"; e aqueles, ainda segundo
a concepção de Le Play e Weber, de formação "estatista-comunitária", ou
"socialistas", que Veiga opta por denominar "aristocratas". O Brasil é incluído
pelo autor no rol das sociedades de formação estatista-comunitária, ou aristocrata,
por ser "afeita a ideologias e prosápias"
297
. Dessas duas formações, a primeira
tende para a pluralidade, enquando a segunda se caracteriza pela uniformidade,
em termos de pensamento e ação. Na percepção deste intelectual, não paira dúvida
sobre ser a forma de organização social "particularista/democrata" a mais
completa, eficiente e adiantada. Não obstante, alerta,
A própria massa popular [...] jamais esquecera o seu velho bom senso de
considerar de vez em quando a experiência dos fatos. E esta, se convencia por
um lado de que a segurança, a tranquilidade e a prosperidade na ordem social
estavam com esses povos vigorosos e independentes, por outro lado também a
inteirava de que a simples cópia de suas instituições pelos povos emotivos
redundara sempre num completo fracasso. [...] Seria de esperar que os líderes
desses povos pensassem que, se as místicas não mais atuavam, é porque sua
época já passara, convindo em seu lugar experimentar o pragmatismo realista,
que tanto serenara as nações particularistas.
298
O caminho escolhido, no entanto, em meio à crise que ameaçava levar de
roldão o ideal democrático, foi a rota aparentemente mais fácil das fórmulas
296
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional, op. cit., p. 44.
297
Ibid., p. 60.
298
Ibid., p. 58-59.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
127
milagrosas, apregoadas por reformistas inconseqüentes. E, então, ainda mais uma
vez o destino político das sociedades foi afetado pelo
triunfo completo do engodo sobre a realidade, do equívoco sobre a verdade: as
massas populares aceitaram como argumentos contra os povos democratas os
fatos inauspiciosos que haviam demonstrado a impossibilidade da desejada
democracia entre os povos aristocratas. Combatia-se o que se julgava a causa da
prosperidade de outras nações, porque não se conseguira alcançar a mesma
prosperidade. Era quase o mesmo que procurar destruir justamente o que se
queria.
299
Instala-se, assim, uma acirrada campanha contra a verdadeira democracia.
No Brasil, tal tendência assumiu a forma do liberalismo político total, que resultou
na "mais completa forma sociológica de preciosismo democrático, abúlico e
inoperante de que se tem notícia"
300
, praticada ao longo de meio século do
Segundo Reinado e mais quarenta anos de República. Urgia organizar, nas "falsas
democracias", um esforço de reconstrução, tarefa que não se afigurava fácil. A
visão de mundo triunfante era certamente a dos povos democratas/particularistas,
representados pelos países anglo-saxões, helvéticos, escandinavos e batavos. Aos
demais, só restava como alternativa "sucumbir, com seus tradicionais costumes,
ou criar-se novos costumes adaptados à época."
301
A ameaça de insucesso levou vários países a buscar formas rápidas e
miraculosas de realizar essa adaptação, desencadeando processos de
modernização nas mais diversas frentes, desde a educação, considerada a mais
importante, passando pelas áreas de justiça, trabalho, agricultura, indústria,
comércio, viação, forças armadas, relações internacionais. A pressa, entretanto,
sempre má conselheira, levou muitos desses povos ao emprego da força e da
violência na tentativa de acelerar a implementação dos projetos, não raro levando
a resultados exatamente opostos ao planejado. Se a passividade do liberalismo
conduzira países ao "nirvana da inanidade", especula César Veiga, a "super
atividade emotiva e irrefletida" dos regimes totalitários resultara, por outro lado,
na derrota dos projetos pela própria truculência.
O Estado Nacional conseguira manter-se distante desses dois extremos,
afirma. Sendo o Brasil, contudo, uma sociedade de formação estatista-comunitária
299
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional, op. cit., pp. 59-60.
300
Ibid., p. 60.
301
Ibid., p. 62.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
128
-- ou seja, aquela cuja estrutura tem por base a família do tipo "instável", na qual o
indivíduo não recebe educação eficaz, que possa capacitá-lo socialmente e
incentivá-lo a exercer sua criatividade e autonomia -- essa tarefa seria tanto mais
difícil. O país passara um tempo excessivamente longo sem um projeto de
educação popular que se estendesse a todo o território nacional. Cuidando-se
somente da educação das elites, instituíu-se no país duas mentalidades que não se
comunicavam entre si.
Apenas através da "política da orientação administrativa" o país poderia
ser salvo e redimido da inexperiência, da desordem e da ignorância, pontifica o
articulista. Foi esta, a seu ver, a política adotada por Vargas para conduzir o
processo de reconstrução nacional. E é enfatizando a centralidade do papel do
Chefe da Nação para o sucesso da verdadeira democracia que César Veiga encerra
seu ensaio:
No futuro, quando se julgar a tarefa empreendida pelo Estado Nacional no
Brasil, essa [...] reativação da energia nacional coordenada pelo governo como
seu principal mister, em todos os setores da vitalidade nacional, um fenômeno
superará a todos: essa forma de educação pelo exemplo da atitude, que atua
sobre todas as demais influências no ânimo das multidões; a tranqüila segurança
com que assume a responsabilidade tão temida pelos políticos das falsas
democracias, de readaptar o seu povo pela sua própria direção e orientação,
Getúlio Vargas [...].
302
Em suma, com esta conclusão, que destaca o papel desempenhado pelo
líder como a chave para a concretização do projeto político idealizado pelos
arquitetos do Estado Novo, César Veiga mira, a um só tempo, a defesa da
verdadeira democracia e a justificativa do autoritarismo. Ao explicitar sua visão
da sociedade brasileira como uma sociedade estruturada a partir da família do tipo
"instável", isto é, uma sociedade em que os indivíduos, incapazes de pensar e agir
de forma autônoma, ficam à mercê do arbítrio de políticos e governantes e
permanecem na dependência do Estado, está justificando o autoritarismo. E ao
validar o exercício do autoritarismo por considerá-lo instrumento mais eficaz em
tempos de guerra, acredita estar defendendo a democracia. Aqueles eram, afinal,
tempos de guerra, não só externa mas também interna, esta traduzida na luta pela
reinstituição do que se convencionara chamar de a verdadeira democracia. Esta
conciliação entre democracia e autoritarismo torna-se possível, na perspectiva do
302
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional, op. cit., p. 62.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
129
autor, porque, no seu entender, vale lembrar, o conceito de democracia não se
refere a uma forma de governo, mas representa tão somente uma das várias
formas de organização da sociedade. E, como tal, nada haveria que
incompatibilizasse o seu funcionamento com a prática de um regime político
autoritário.
Na edição de dezembro de 1943 da revista, novo artigo de Almir de
Andrade faz referência específica à questão da democracia, trazendo o tema uma
vez mais para o centro do debate. Em "A bandeira, a democracia e o Estado
Nacional"
303
, ensaio que abre a edição, o diretor de Cultura Política volta a
postular a inevitabilidade da adaptação dos ideais às circunstâncias históricas
características de cada época como sendo a "condição básica do realismo e da
eficácia das nossas atitudes"
304
. Neste sentido, não só os critérios de governo
devem adaptar-se às necessidades e aspirações da sociedade, mas a própria
concepção de democracia deve adequar-se às condições sociais e econômicas
vigentes.
A ideologia liberal, sob este aspecto, teria correspondido às exigências de
um determinado momento da história, que se iniciara ao final do século XVIII e
se estendera ao longo do XIX, e em nenhuma hipótese deveria ser tomada como a
tradução do autêntico espírito da democracia. Seus princípios contribuíram para
consolidar o movimento liberal na Inglaterra, além de influenciar o processo que
resultou na Revolução Francesa e na independência dos Estados Unidos e de
outros povos americanos. No Brasil, os idealizadores do movimento que culminou
com a proclamação da República em 1889, assim como os responsáveis pela
agitação liberal que marcou o período final do Império, sendo homens do seu
tempo, acreditavam de fato no governo dos partidos e assembléias populares
como sendo o meio por excelência de promover o bem comum, e reputavam
correta a atitude passiva do Estado, característica do liberalismo, diante das
desigualdades econômicas e sociais, e do excesso de individualismo. Pertenciam,
enfim,
[...] a um mundo cujo principal objetivo político era lutar contra o arbítrio e a
prepotência dos reis absolutos [...]; um mundo [...] que só podia conceber a
felicidade social como um problema de fortalecimento do indivíduo [...]
303
ANDRADE, Almir de. A bandeira, a democracia e o Estado Nacional. Cultura Política. Ano
III, nº. 35, dezembro de 1943, pp. 7-14.
304
Ibid., p. 7.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
130
oprimido, e de enfraquecimento do Estado [...] onipotente. Daí surgiu a
ideologia liberal, que tinha por fim substituir a autoridade dos reis pela
autoridade do parlamento e das câmaras populares, e que só os espíritos
derrotistas ou mal informados poderão confundir com a verdadeira essência do
pensamento democrático [...].
305
[grifo meu]
O mundo que emergiu ao final da Primeira Guerra Mundial, contudo, pôs
em evidência questões inteiramente novas, oriundas em grande medida da
produção econômica em larga escala, alavancada pelo crescimento experimentado
pela indústria na esteira do acelerado desenvolvimento da técnica. Tornara-se
crucial, face a esses desdobramentos, encontrar soluções para problemas que não
eram perceptíveis no horizonte dos fundadores do ideário liberal e com os quais
não estavam, conseqüentemente, capacitados a lidar. Em tal contexto, o Estado
via-se na iminência de intervir de forma direta nas relações sociais, com vistas a
regulamentá-las para prover a adequada proteção ao trabalhador contra os
excessos do capital e da máquina.
É neste sentido, esclarece Almir de Andrade, que, diferentemente da
democracia liberal, a democracia que a Constituição de 1937 subscrevia era uma
democracia social e econômica:
[...] porque seus problemas são fundamentalmente econômicos e os seus
objetivos são a realização do máximo de justiça social, dentro de uma sociedade
de interesses divididos pelas próprias contingências da distribuição da riqueza e
da utilização do trabalho humano.
306
[grifo meu]
Reitera, portanto, o autor que, na sua essência, o conceito de democracia é
constituído pela idéia de justiça social, pela defesa do bem comum e da igualdade
de direitos e oportunidades, e pela capacidade de corresponder às necessidades e
aspirações dos povos conforme se apresentem em cada fase da história. É esta a
forma que o conceito assumira desde o advento do Estado Nacional e é nesses
moldes que tendia a se difundir pelas nações envolvidas na Segunda Guerra
Mundial.
Severino Uchoa, próximo autor a ter seu ensaio aqui analisado, deixa clara
logo no título de seu artigo, publicado na seção "Idéias Políticas", a sua definição
do novo regime: trata-se de uma democracia "social".
305
ANDRADE, Almir de. A bandeira, a democracia e o Estado Nacional., op. cit., p. 10.
306
Ibid., p. 12.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
131
Em "A democracia social brasileira"
307
, o articulista discorre sobre o
sentido social que orienta a Constituição de 1937 e lhe confere seu caráter
democrático. A intenção é criticar aqueles que acusam o Estado Novo de não ser
uma democracia por entenderem estar a essência desta forma de governo no
"nivelamento de todos os homens -- como se fossem todos iguais -- em um estado
médio de existência que, por não ser possível, torna sempre inimigos o indivíduo
e o Estado"
308
. Com tal propósito, junta-se ao coro dos que advogam a
necessidade de um Executivo forte, com suficiente autoridade para eliminar esse
conflito -- de resultados nefastos para o progresso do país -- e, assim, realizar o
verdadeiro ideal democrático. É, neste sentido, mais um a desqualificar a atuação
dos partidos políticos, cujos membros, engajados na luta pelo poder e na defesa de
seus interesses particulares, proporcionavam ao povo "ingênuo" um espetáculo
que este, no seu desamparo e na sua ingenuidade, não percebia tratar-se de mero
simulacro de democracia.
Aos idealizadores da Constituição de 1937, pondera, deve ser atribuído o
mérito de, imbuídos da certeza de ser o trabalho o motor do progresso, da riqueza
e da soberania de uma nação, haverem suprido a lacuna que deixava ao desamparo
justamente a parte mais fraca no conflito -- a classe trabalhadora. Deriva daí o seu
aspecto democrático:
Sendo fundamento da democracia a luta contra toda a espécie de servidão e
constituindo preocupações [...] do Estado Nacional o amparo às classes
operárias, a igualdade da justiça [...], o reconhecimento do mérito nas
competições aos cargos públicos, a proteção [...] a todos os que contribuem para
a prosperidade do país, é evidente que a democracia existe em seu conteúdo, com
características próprias ao nosso meio social e nas condições particulares da nossa
civilização.
309
[grifo meu]
A preocupação em criar leis que assegurassem total assistência ao
trabalhador traduzia-se, na prática, não só na melhora do nível de vida daquele
segmento da sociedade, como também no aumento da produtividade. Em
consequência, reporta o autor, enquanto em diversos países a classe trabalhadora
representava uma ameaça aos respectivos governos por propagar idéias
307
UCHOA, Severino. A democracia social brasileira. Cultura Política. Ano IV, nº. 36, janeiro de
1944, pp. 50-54.
308
Ibid., p. 51.
309
Ibid., p. 52.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
132
revolucionárias, no Brasil, ao contrário, era "uma das forças mais importantes
para a segurança do poder constituído."
310
Severino Uchoa credita à democracia social brasileira o fato de haver
tornado acessível a uma parcela mais ampla da população a liberdade econômica,
que ele reputa primordial em relação a "certas liberdades consagradas nos
regimes democráticos estrangeiros"
311
, de pouca ou nenhuma utilidade para o
povo brasileiro.
Elogia a estrutura deste conceito de democracia por estar fundamentada
nas virtudes da fraternidade e na distribuição equitativa de direitos e benefícios, e
por libertar o Brasil da "prisão das fórmulas", invertendo a equação ao colocar as
fórmulas a serviço do Brasil.
Ainda neste número de Cultura Política, e na mesma seção "Idéias
Políticas", o economista Celso Furtado assina o artigo "A feição funcional da
democracia moderna
"312
. Furtado propõe abordar o tema sugerido no título a partir
de uma investigação do surgimento, no Ocidente, do conceito de "interesse
público", em sua origem oposto à idéia de "governo".
Tal antinomia merece ser estudada, postula, para melhor se compreender
de que forma, ao longo do processo de constituição dos Estados modernos, a
trajetória dessas duas instâncias, na busca da realização dos seus respectivos
desígnios, seguiram rumos diferentes, trilhando caminhos que as distanciavam
cada vez mais. Neste cenário, as instituições democráticas nasceram com o
objetivo primeiro de defender o interesse público contra o excesso de poder
concentrado em mãos de governos que, por não emanarem do povo, eram
percebidos como potencial ameaça ao bem-estar público. Tão acentuado tornou-se
esse distanciamento entre governo e povo, escreve Furtado, que "à época de
implantação dos regimes democráticos na Europa e na América, Jefferson podia
afirmar que 'o melhor governo é o que governa menos'."
313
A antinomia originária governo-povo, bem como sua permanência, em
pleno século XX, como fator de relevo em países ocidentais só se explicam,
ressalta, pela consciência de que o Estado moderno é um ente artificial, cuja
310
UCHOA, Severino. A democracia social brasileira, op. cit., p. 53.
311
Ibid., loc. cit.
312
FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna. Cultura Política. Ano IV, nº.
36, janeiro de 1944, pp. 55-58.
313
Ibid., p. 56.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
133
criação foi presidida pela aliança entre os interesses de determinadas forças
políticas e de parcelas da sociedade preocupadas em defender seus
empreendimentos mercantis. As reivindicações e aspirações das "forças mais
profundas emanantes do complexo de fatores que dão fisionomia aos grupos
sociais"
314
foram, nesse contexto, relegadas a segundo plano. Por este motivo,
esclarece, aqueles que se dedicam, contemporaneamente, a estudar o Estado
moderno focalizam prioritariamente seus elementos funcionais, antes que sua
moldura institucional. Esta tendência de "ampliação funcional", acrescenta, é
essencial para determinar certas características do Estado e provar que, para dar
conta das novas questões postas pela progressiva complexificação do tecido
social, ele necessita extravasar os limites que lhe foram impostos pelos
racionalistas do século XVIII e que acabaram por transformar-se em "tabu":
Os teóricos mais modernos da democracia têm-se referido com acerto a este
desvio do centro de gravidade do Estado moderno. A ação governamental,
forçando os quadros institucionais que lhe foram delimitados, passa a
caracterizar-se essencialmente como função moderadora de incidência direta no
organismo social. [...] Conservando a sua feição democrática originária, o
governo moderno se apresenta como regulador e orientador dos elementos vivos
constituintes do complexo social.
315
Furtado observa que é a interrelação entre os diferentes grupos em que se
congregam esses "elementos vivos constituintes do complexo social" que consiste
na força motriz das sociedades democráticas. O papel do Estado democrático
moderno em tal contexto é, portanto, além de garantir a ordem interna e a
segurança externa, precisamente o de identificar e arbitrar possíveis conflitos na
"corrente circulatória" social e, desta forma, canalizar todas as energias para o
desenvolvimento "dos elementos potenciais do agrupamento humano"
316
. Para
tanto, cabe-lhe atuar na justa medida que lhe permita não apenas evitar
monopolizar o fator iniciativa, diferenciando-se assim do Estado socialista, como
também evitar transformar toda e qualquer iniciativa em mero instrumento de
eficiência estatal, afastando-se desta forma do viés fascista. Esta justa medida
traduz-se, na prática, em orientar a ação para que se configure como fator de
utilidade social, visando ao bem comum. É neste sentido, argumenta o autor, que
314
FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna, op. cit., p. 56.
315
Ibid., p. 57.
316
Ibid., p. 58.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
134
o Estado democrático moderno se diferencia do Estado democrático clássico,
essencialmente estático. Assim, conclui,
Seja congregando os elementos diretamente interessados, no intuito de promover
uma compreensão perfeita dos interesses comuns e ligar esses interesses [...] aos
imperativos sociais; seja pela institucionalização de serviços, que não é menos
que uma delegação de poder público, através da qual o governo se aparelha
para assistir os interesses coletivos nos seus aspectos menos configurados; seja
ainda pela aliança de seu potencial econômico com elementos da economia
particular, num [...] hibridismo jurídico onde se auscultam os interesses
individuais e coletivos -- de muitas maneiras [...] o Estado democrático moderno
ampliou sua capacidade funcional no propósito de se adaptar à realidade presente
sem se afastar totalmente de seus elementos estruturais originários, o que lhe
permitiu sobreviver e contornar as crises que irromperam em algumas nações
sob a forma de mutações radicais.
317
[grifo meu]
Também Celso Furtado, como se pode extrair da leitura do texto, advoga o
caráter democrático do Estado Nacional ao justificar a necessidade de mudança
no conceito de democracia, mudança esta que passa pela ampliação da sua
"capacidade funcional" -- o que, na essência, significa centralização do poder e
intervenção direta do Estado no sentido de orientar e regular o funcionamento do
organismo social. Os argumentos apresentados pelo autor permitem aproximar o
seu entendimento, no tocante ao conceito, do modelo proposto por Getúlio Vargas
ao definir o regime estabelecido pela Constituição de 1937 como uma democracia
"realista e funcional".
De todas as edições de Cultura Política, a de número 36 é a que contém
maior quantidade de artigos que trazem o termo "democracia" no próprio título.
Ainda na seção "Idéias Políticas", a revista publica mais um ensaio sobre o tema:
"As idéias democráticas e o artificialismo constitucional no Império
"318
, de autoria
da Professora do Instituto de Educação e Presidente da União dos Educadores,
Mercedes Dantas.
A autora escolhe como ponto de partida para expor seu pensamento o
processo de consolidação da idéia liberal, processo que, na sua perspectiva, no
decorrer do século XVIII elevara a crítica e a razão à condição de "deuses leigos
que hão de presidir a organização do Estado"
319
. Ressalta a influência que teriam
317
FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna, op. cit., p. 58.
318
DANTAS, Mercedes. As idéias democráticas e o artificialismo constitucional no Império.
Cultura Política. Ano IV, nº. 36, janeiro de 1944, pp. 59-68.
319
Ibid., p. 60.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
135
exercido os princípios liberais na precipitação dos acontecimentos que
culminaram na declaração de independência americana e na Revolução Francesa,
discorre sobre os desdobramentos desses eventos na Europa e na América do Sul,
e avalia como o choque entre os ideais forjados pela filosofia política da época
pavimentou o caminho para os conflitos do século XIX.
A recepção, nos países da América do Sul, dos ideais liberais, sintetizados
nas "palavras que, por muito tempo, encheran de sonhos as repúblicas sul-
americanas -- democracia, liberalismo, liberdade"
320
, ressalta a professora,
percorreu, no entanto, caminhos tortuosos, confrontada com obstáculos à sua
correta apreensão, representados por problemas como dispersão demográfica,
baixo nível intelectual das massas, subordinação econômica e ausência de tradição
no campo da ciência política. Isto teria dificultado a constituição, nessas nações,
de uma opinião pública organizada e de um sistema representativo que
efetivamente traduzisse a vontade do povo. Ainda assim, alguns princípios foram
absorvidos e incorporados, como, por exemplo, a igualdade perante a lei e a idéia
de progresso. Investigar o impacto dessas idéias no Brasil, em termos de sua
formação política, é o objetivo de Mercedes Dantas.
Traçando um rápido painel da história do país desde o período colonial, a
professora concentra-se, inicialmente, na análise da Constituição do Império,
"quase toda calcada sobre a carta portuguesa" e que apenas em seu artigo 3º.
inclui a palavra "constitucional"
321
, que ela critica como apenas um rótulo para
tentar disfarçar "o velho absolutismo" herdado de Portugal
322
. Conclui desta
análise que, no Brasil, as revoluções democráticas dos séculos XVIII e XIX
tiveram sua influência limitada ao campo da teoria, dado que, não obstante conter
artigos de cunho aparentemente liberal, a Constituição de 1824 na realidade
refletia uma excessiva centralização do poder em mãos do Imperador. O Primeiro
Reinado, nesse aspecto, é retratado como um período de "luta sem tréguas entre o
Imperador absolutista e a Assembléia Geral, que exigia ser tratada
constitucionalmente [...] como representante da nação"
323
. O Segundo Reinado
não merece avaliação muito diferente: um parlamento composto de Câmara liberal
320
DANTAS, Mercedes. As idéias democráticas e o artificialismo constitucional no Império, op.
cit., p. 61.
321
Ibid., p. 62.
322
Ibid., p. 64.
323
Ibid., p. 66.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
136
e Senado conservador, sujeito a sucessivas intervenções do Imperador que,
dissolvendo a Câmara, mantinha o controle sobre a política partidária. Não
passava de "falso constitucionalismo", mera imitação das instituições inglesas. Os
verdadeiros beneficiários desse sistema político, argumenta, eram os chefes locais.
Era a sua vontade que os partidos políticos representavam, e não a vontade dos
eleitores, já que não havia no país opinião pública e muito menos consciência
política formada, ou sequer um sentimento nacional a unir as várias províncias.
Este quadro de extrema desorganização, assinala a professora, deixou
marcas indeléveis na trajetória política do país em termos de atraso na
concretização de seu desenvolvimento econômico e social, e só viria a ser
revertido com a promulgação da Constituição de 1937:
As grandes palavras do século passaram por fim como vocábulos que eram. É
certo que nos ajudaram a atravessar mais de cem anos fora da realidade
nacional, alheios aos problemas fundamentais do país, deixando-nos [...]
naquele preâmbulo da história, do qual a Constituição de 1937 nos tirou [...].
Hoje, nos seus postulados, encontramos a verdadeira expressão democrática de
governo, chegamos [...] à prática de relações [...] mais compreensivas e exatas
entre o povo e seu Chefe, na vigência das quais a nação, reestruturada,
readquire o posto privilegiado que o destino lhe outorgou um dia.
324
Transparece, da leitura do artigo, a semelhança entre a linha de
argumentação seguida por Mercedes Dantas e a de vários outros autores já
examinados aqui: a mesma crítica à importação de idéias e instituições, ao
alheamento em relação à realidade nacional e ao desvio de percurso na trajetória
do nosso desenvolvimento ocasionado pela adoção dos princípios da liberal-
democracia, à atuação dos partidos políticos e ao sistema eleitoral; a ênfase no
retorno às nossas autênticas origens históricas como parte do projeto de
reconstrução nacional, impulsionada pela "verdadeira expressão democrática"
expressa no texto da Constituição de 1937; a importância atribuída ao papel do
líder e à identificação entre este e o povo. A mesma sensação, enfim, de que
apenas o Estado Nacional conseguira dar substância ao ideal democrático, o qual,
nas Constituições que antecederam a de 1937, teria existido apenas na forma.
324
DANTAS, Mercedes. As idéias democráticas e o artificialismo constitucional no Império, op.
cit., p. 68.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
137
Em março de 1944 a revista traz, na seção "Doutrina Política", mais uma
contribuição ao debate. Trata-se de "Concepção brasileira de democracia", artigo
citado no início deste capítulo, assinado por Leopoldo Peres
325
.
Apenas para lembrar, no entendimento deste autor não cabe à democracia,
como princípio, a culpa pela "flexibilidade ideológica"
326
atribuída ao termo por
aqueles que intentam desvirtuar-lhe a essência para conformá-la às suas próprias
conveniências.
O objetivo do articulista, no ensaio, é mostrar que o regime implantado no
Brasil em 1937 era uma democracia "diferente". Com este intuito em mente, e
visando dar maior respaldo à idéia que pretende desenvolver, cita o "depoimento
autorizado e insuspeito de um representante da maior, da mais perfeita das
democracias coroadas do mundo", Lord Davidson. Em entrevista concedida a
jornalistas de São Paulo por ocasião de sua visita ao país, em 1942, este
economista britânico fizera a seguinte observação:
"O Brasil é uma democracia. Naturalmente, o fenômeno democrático, no Brasil,
difere do mesmo fenômeno na Suíça, Inglaterra, Estados Unidos e México. Se o
Brasil não fosse uma autêntica democracia, ajustada às suas necessidades e
peculiaridades, não teria rompido as suas relações com as potências do eixo. Ao
contrário, teria apoiado Hitler e Mussolini, ao invés de anatematizar os métodos
ajustados pelos totalitários. A democracia é, acima de tudo, um princípio. E cada
povo tem o direito de interpretar esse princípio como bem entende. O Brasil deu
uma interpretação brasileira ao fenômeno democracia. E o regime, pelo que me
foi dado observar, consulta aos interesses nacionais e aos ideais da maioria dos
brasileiros. Um regime que está de acordo com a vontade da maioria. E um
regime que está de acordo com a vontade da maioria realiza um ideal
democrático."
327
[grifo meu]
É interessante observar, a partir do trecho grifado, que a escolha por
Leopoldo Peres destas palavras de Lord Davidson, para reforçar seu ponto de
vista pode ser considerada uma contradição em termos. Isto porque tais palavras,
na realidade, parecem endossar precisamente a prática por ele condenada da
"flexibilização ideológica".
O autor não foge à regra de demonizar a liberal-democracia, a qual reputa
como "a doutrina e a prática de uma democracia puramente política, alicerçada
325
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit.
326
Ibid., p. 13.
327
Lord DAVIDSON, citado por: COSTA, Licurgo. Cidadão do Mundo. Rio de Janeiro: Liv. José
Olímpio Editora, 1943. Apud PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit.,
pp. 15-16.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
138
na mística do sufrágio direto"
328
, inadaptada à realidade brasileira e responsável
pela transformação do país no "paraíso da irresponsabilidade político-
administrativa, o eldorado dos engodos [...] eleitorais, do caciquismo e da
demagogia"
329
. A mística em torno do sufrágio direto, relata, mantivera-se
praticamente inalterada após a Revolução de 1930, só tendo sido este "liberalismo
de ficção" efetivamente derrotado graças aos novos princípios delineados na Carta
de 1937. Adverte, contudo, que é preciso estar atento à ameaça de um possível
retorno desse misticismo, ameaça que pairava no ar na esteira do sucesso
experimentado pelas Nações Unidas na aniquilação dos regimes totalitários.
Tampouco se furta a bater na tecla da necessidade inevitável de adaptação
do ideário democrático às exigências de seu tempo, como forma de enfrentar os
desafios postos pela sempre cambiante realidade social. É justamente na
capacidade de renovação, essencial à sua própria sobrevivência, que reside a
vitalidade do conceito, ensina Leopoldo Peres, subscrevendo tese já endossada por
tantos autores na revista. Como parte desse processo de adaptação e renovação,
diz ele, fazendo referência a argumento defendido por Julien Benda em La grande
épreuve des démocraties (1942), torna-se muitas vezes imperativo aos governos
democráticos transigir com princípios inscritos nos fundamentos clássicos da
doutrina. Isto era especialmente verdade em cenários de crise, como o que se
desenhara com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em que o combate aos
sistemas baseados na força e na violência constituira-se em prioridade, exigindo
da democracia, regime por natureza mais afeito a tempos de paz, exatamente essa
atitude de transgressão.
Convém observar que argumento semelhante, qual seja, o de precisar a
democracia, em determinadas circunstâncias, transigir com seus próprios
postulados com o propósito de enfrentar forças que se lhe opõem, visando ao final
a realização de um bem maior -- em outras palavras, proceder a uma espécie de
retirada estratégica, para depois voltar a avançar -- foi empregado anteriormente
em Cultura Política, em artigo aqui analisado. Em "A democracia e o Estado
Nacional", A. César Veiga já sublinhara que as sociedades organizadas sob a
forma democrática podem, em tempos de guerra, ver-se na situação de ter de
regredir provisoriamente à forma de organização "estatista-comunitária", cuja
328
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit., p. 14.
329
Ibid., p. 15.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
139
característica é o governo intervencionista e centralizador. Isto porque, como
frisou no artigo, apenas um governo forte e autoritário possui as qualidades
necessárias para liderar com sucesso qualquer missão que exija a coordenação de
todas as técnicas disponíveis para a realização de um só objetivo.
330
Para que o fenômeno da democracia seja entendido na sua verdadeira
dimensão, escreve Leopoldo Peres, aludindo ainda ao pensamento de Julien
Benda, é imprescindível
excluir os elementos espúrios que se lhe introduziram no conceito, e que o autor
distribui nas quatro falsas ou falaciosas noções do liberalismo, do pacifismo, do
universalismo e do racionalismo. Eliminados esses "elementos parasitários" da
democracia, desse modo restituída a sua genuína concepção de governo popular,
a serviço da justiça e da liberdade, nada há que se oponha à excelência e à
durabilidade desse sistema ideal de organização política.
331
[grifos meus]
A exemplo de tantos intelectuais que se debruçaram sobre a análise dos
problemas brasileiros, e recorrendo a escritos de dois dos mais destacados
representantes desta categoria -- Azevedo Amaral e Almir de Andrade -- para
corroborar suas idéias, este teórico do autoritarismo é também um crítico daqueles
que, fascinados pelas fórmulas abstratas, dissociam-se da realidade política e
social do país, incapazes de perceber que o ideal democrático moldado no século
XIX não mais correspondia, em forma ou substância, aos anseios das sociedades
contemporâneas.
Os fatores econômicos e sociais que propiciaram a emergência da
democracia liberal, pondera, tiveram o seu momento e passaram. Daí a pertinência
da afirmação de Azevedo Amaral no sentido de que o sistema liberal-democrático
constituiu a expressão política do domínio de um determinado grupo social, "a
que o condicionamento econômico de um momento dado na evolução dos povos
ofereceu possibilidades de incontestável hegemonia"
332
e que, portanto, não há
como nem porque tomar a liberal-democracia como a democracia em si.
Concorda com aquele autor quanto à necessidade de expurgar a democracia dos
"erros e ficções" presentes na concepção liberal, para deixá-la emergir na sua
concepção genuína, que é a realização do bem do povo, assegurando a todos a
330
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional, op. cit. Cf. p. 42.
331
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit., p. 16.
332
Ibid., p. 17.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
140
possibilidade de exercer as funções mais adequadas às suas respectivas
capacidades, tendo sempre em vista o bem público.
De Almir de Andrade, Leopoldo Peres menciona um ensaio publicado em
O Pensamento Político do Presidente, separata de Cultura Política editada em
1943, já referida acima. O ensaio, que versa sobre as diretrizes da democracia
social e econômica do Estado Nacional, contribui para trazer o tema da liberdade
novamente para o centro da disputa em torno do conceito de democracia ao
ressaltar que, desviando o foco de suas preocupações do problema da liberdade
para concentrá-lo no da justiça social, o governo sinalizara para um deslocamento
da questão fundamental da democracia. O liberalismo democrático, fundamentado
no "angelismo social de Rousseau", observa Peres, justificava-se contra o arbítrio
de um Estado que exercia a autoridade como "instrumento de opressão às
liberdades individuais e aos direitos imprescritíveis da consciência humana"
333
,
razão pela qual a liberdade constituíra-se no problema por excelência da
democracia. Resolvido esse problema, contudo, através do estabelecimento do
primado dos direitos do indivíduo, as desigualdades sociais ao invés de serem
reduzidas acabaram por acentuar-se, em função dos excessos do liberalismo
político e econômico. Logo tornou-se evidente que a liberdade, por si só, não era
capaz de conduzir ao almejado equilíbrio nas relações sociais. Assim é que
A experiência deste século e meio de individualismo à outrance, de liberalismo
liberticida ou suicida, veio colocar em destaque o desconcertante paradoxo da
democracia (entenda-se sempre -- liberal-democracia) contra a liberdade. Em
conseqüência, houve que deslocar na problemática do Estado e do governo, a
questão fundamental da democracia, do plano da liberdade para o da justiça
social. "O que há de eterno no ideal democrático -- escreve [Almir de Andrade]
-- é essa aspiração de justiça social. Mesmo o problema da liberdade, tão
exagerado pelos filósofos do liberalismo, passa para o segundo plano, diante do
problema da justiça: pois a liberdade só se legitima quando é justa, [...] quando
não interfere abusivamente na órbita dos interesses alheios, quando não se faz
instrumento de reivindicações egoísticas e de lutas de classes, de partidos e de
nações".
334
[grifo meu]
Leopoldo Peres subscreve a observação de Almir de Andrade de que nesta
inversão de prioridades, concretizada graças à "orientação reformadora do
Presidente Vargas"
335
, em que problemas políticos passam a ser avaliados sob a
333
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit., p. 18.
334
Ibid., loc. cit.
335
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
141
ótica da justiça social, reside o fator que confere à nova democracia brasileira o
seu sentido de democracia "diferente", de conteúdo eminentemente humano. Em
complemento a esta análise do autor, pode-se citar palavras do próprio Presidente,
destacadas de discurso proferido no estádio do Pacaembu em 1º. de maio de 1944.
Discurso no qual, aliás, já é possível detectar a preocupação de Vargas com o
espocar de movimentos em favor do restabelecimento dos direitos políticos, aí
incluído o direito de voto -- fenômeno ao qual Leopoldo Peres havia se referido
como o "recrudescimento [...] daquele misticismo, [...] daquela mitologia
demagógica, que impôs ao povo brasileiro perto de cinquenta anos de comédia
eleitoral"
336
:
O fim da guerra, com a vitória das Nações Unidas, aproxima-se. Depois de
alcançá-la, dominados os inimigos externos, precisamos vencer os inimigos de
outra ordem e não menos perigosos, que são a discórdia, a incompreensão, o
egoísmo de classe, a intransigência dos interesses privados. A liberdade, no
sentido estrito de franquias políticas, não basta para resolver a complexa
questão social. Sem a independência econômica converte-se quase sempre em
licenciosidade, em ludibrio para o povo, que não mata a fome com o direito de
voto nem educa os filhos com o direito de reunião. Amparar economicamente os
trabalhadores equivale a dar-lhes o verdadeiro sentido de liberdade e segurança
para expressar as suas opiniões políticas.
337
[grifo meu]
Reafirma Leopoldo Peres, ao final do ensaio, ser o Estado Nacional um
regime democrático na essência, uma democracia "substantiva", ainda que
constituída como um governo forte, centralizado e orgânico, visto que
À democracia de partidos, democracia facciosa, que permitia o monopólio do
poder e a sua exploração a benefício exclusivo de grupos ou indivíduos
privilegiados, preferiu uma democracia de substância e de fins, de disciplina e de
ordem, de trabalho e de ideal cívico. Uma democracia substantiva que, ao invés
de se entregar às orgias da politicalha e do caudilhismo, trata de aparelhar as
forças econômicas da nação, de mobilizar as suas riquezas, de assegurar a sua
unidade, de solidificar os valores morais e espirituais da sua consciência
profunda.
338
[grifo meu]
336
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit., p. 14.
337
VARGAS, Getúlio. Discurso de Pacaembu. Cultura Política. Ano IV, nº. 40, maio de 1944,
p. 22.
338
PERES, Leopoldo. Op. cit., p. 19.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
142
O último dos artigos selecionados para análise neste capítulo aparece na
edição de junho de 1944 de Cultura Política, em seção intitulada "Finanças".
Trata-se de "Orçamento e democracia", de autoria de Cláudio Martins.
339
O autor inicia sua exposição apontando a existência de uma
complementaridade entre orçamento e democracia e sugerindo que a consolidação
dos ideais democráticos teria recebido forte impulso a partir do momento em que
"a Nação conseguiu impor ao Governo de um só, ou de poucos, o direito de votar,
ela mesma, os tributos que se lhe impunham arbitrariamente"
340
. Neste sentido,
argumenta, o direito orçamentário se configura como a primeira manifestação
concreta da democracia. Tal direito, contudo, sofreria uma série de revezes ao
longo da história por conta de obstáculos impostos por governantes que
percebiam, na sua expansão, uma ameaça à permanência do regime absolutista.
Esses empecilhos, no entanto, não impediriam que o postulado "Não há taxação
sem representação"
341
, consagrado, ainda que em outro contexto, na Carta Magna
inglesa, viesse a se cristalizar como marco inicial da legítima aspiração
democrática de igualdade de direitos e oportunidades.
O excesso de individualismo característico da democracia liberal, na visão
de Cláudio Martins, transformara o orçamento público em instrumento do qual se
serviam os "demagógicos representantes do povo" para criar toda sorte de
embaraços ao exercício da função governamental, em especial ao subtrair ao
Poder Executivo "contra todas as regras da lógica e do bom senso"
342
a iniciativa
das leis de orçamento. No Brasil, por exemplo, esta atribuição, em conformidade
com o artigo 34, § 1, da Constituição de 1891, era da competência exclusiva do
Congresso Nacional.
Em muitos países, assinala o autor, essa "incongruência"
343
já vinha sendo
corrigida. Caso dos Estados Unidos da América do Norte, país que, até 1920,
enfrentara séria crise orçamentária e que reagira instituindo um departamento
governamental especialmente voltado para tratar de assuntos orçamentários, o
"Bureau of Budget". O governo brasileiro, por sua vez, "que está dando ao mundo
339
MARTINS, Cláudio. Orçamento e democracia. Cultura Política. Ano IV, nº. 41, junho de
1944, pp. 83-87.
340
Ibid., p. 83.
341
Ibid., p. 84.
342
Ibid., p. 85.
343
Ibid., p. 87.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
143
uma lição de democracia"
344
, centralizou todas as questões ligadas ao orçamento
em um órgão específico criado para este fim -- o Departamento Administrativo do
Serviço Público, subordinado à Presidência da República, ao qual compete
elaborar a proposta orçamentária a ser encaminhada anualmente à Câmara dos
Deputados. As providências não se esgotam aí, diz ele, mas o projeto está
rigorosamente de acordo com o estado atual de democracia social. Expressões
de uma mesma conquista popular, o orçamento e a democracia estão marchando
para a perfeição técnica que é de desejar. Quando atingirem a meta visada, esta
última terá firmado o seu conceito.
345
[grifo meu]
Duas circunstâncias interessantes chamam a atenção neste artigo. Em
primeiro lugar, é curioso observar que, embora o tema continue a ser debatido em
números posteriores de Cultura Política, o último artigo a incluir em seu título o
termo "democracia" tenha sido publicado mais de um ano antes da extinção do
periódico, cujo derradeiro exemplar circularia em outubro de 1945. Digno de nota,
também, é o "deslocamento" da discussão: até então abordado primordialmente
em seções que tratavam de idéias políticas e questões sociais, o tema faz a sua,
por assim dizer, última "aparição oficial" em uma parte da revista dedicada a
tratar de finanças.
346
No capítulo que se segue procurarei fazer, com base nos artigos aqui
apresentados, uma análise mais sintética desta disputa pela forma "adequada" de
definir o conceito de democracia patrocinada por Cultura Política, para formular
algumas considerações finais.
344
MARTINS, Cláudio. Orçamento e democracia, op. cit., p. 87.
345
Ibid., loc. cit.
346
Cabe, ao finalizar esta parte do trabalho, uma observação sobre um artigo não incluído neste
capítulo. Publicado na seção "Política militar e defesa nacional" pelo Coronel-Aviador Lisias A.
Rodrigues, o artigo, que tem por título "Isolacionismo e defensiva na democracia" (Cultura
Política. Ano II, nº. 15, maio de 1942, pp. 222-225), deixou de ser aqui analisado por não tratar
especificamente da questão da democracia. O objetivo do autor é apenas analisar os fatores que
concorreram para gerar, no Brasil, uma mentalidade isolacionista e defensiva, por ele considerada
extremamente prejudicial aos interesses e à soberania nacionais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
4.
Uma "batalha semântica"
Se c'è um concetto che quasi esemplifica quanto
tortuosamente si sia costruita nel tempo l'idea di
Occidente, e quanto, pur essendo fragile e in fondo
fittizia, un'idea possa contribuire a fare la realtà,
esso è proprio il concetto di democrazia.
347
Em Futuro Passado, Koselleck teoriza que a re-significação de conceitos e
a introdução de neologismos no uso da linguagem vêm ampliar o campo
semântico dentro do qual tais termos são mobilizados, contribuindo deste modo
para transformar o espaço de experiência política e social existente e fixar novos
horizontes de expectativa. Para tornar mais clara esta idéia, cita como exemplo
alguns conceitos aos quais se refere como os ismos -- conservadorismo,
liberalismo, republicanismo, democratismo, socialismo --, que teriam exercido o
papel de "conceitos de agrupamento e de dinâmica para ordenar e mobilizar as
massas estruturalmente desarticuladas"
348
. É em momentos de crise, suscitados
no limiar de grandes transformações, que a busca por conceitos "adequados" se
intensifica e se traduz, segundo o historiador alemão, em verdadeira "batalha
semântica", cujo propósito é "definir, manter ou impor posições políticas e sociais
em virtude das definições"
349
. Em um cenário de mudança radical, como foi o da
Revolução Francesa, apontada pelo autor como ponto de inflexão em termos da
importância que daí em diante adquirem as batalhas semânticas, dá-se um fato de
extrema relevância: acentua-se o distanciamento entre o espaço de experiência e o
horizonte de expectativa, de tal sorte que o significado de conceitos existentes não
mais consegue dar conta de fatos observados na realidade imediata. Rompido o
equilíbrio entre estas duas instâncias, os conceitos passam, então, a incorporar um
forte elemento de esperança em relação à possibilidade de realizações futuras, ou
seja, eles apontam para o futuro. Transformam-se em conceitos de expectativa, ou
em conceitos de movimento e, como tal, buscam influenciar a organização de
uma nova estrutura social. Trata-se de um processo dinâmico no qual, com o
347
PARSI, Vittorio Emanuele. "Prefazione". In: CONZE, W.; KOSELLECK, R.; MAIER, H.;
MEIER, Ch.; REIMANN, H.L. Democrazia. Veneza: Marsilio Editori, 1993, p. 9.
348
KOSELLECK, Reinhart. "História dos conceitos e historia social". In: KOSELLECK, R.
Futuro Passado, op. cit., pp. 102-103.
349
Ibid., p. 102.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
145
transcurso do tempo, os espaços de experiência se deslocam, abrindo caminho
para novos horizontes de expectativa.
Na concepção de Koselleck, os conceitos políticos e sociais, analisados em
perspectiva estritamente temporal, podem ser divididos em três grupos. Ao
primeiro pertencem os conceitos tradicionais firmados na doutrina de Aristóteles,
cujos significados permanecem em parte inalterados e cuja validade empírica se
mantém, mesmo sob condições modernas. O segundo reúne conceitos cujo
conteúdo foi modificado de forma tão radical que, ainda que designados pela
mesma palavra, os significados dificilmente são comparáveis e podem ser
recuperados apenas historicamente. Ao terceiro grupo, por sua vez, são
assinalados os neologismos, expressões que surgem como reação a circunstâncias
sociais e políticas específicas e que procuram registrar, ou mesmo provocar, o
elemento de ineditismo nelas presente. Tal esquema temporal permite inúmeras
transições e sobreposições. A história do conceito de democracia, exemplifica,
pode ser escrita levando-se em consideração os três aspectos:
A antiga democracia como forma constitucional e possível da polis: ela conhece
determinações, procedimentos ou regularidades que são encontradas ainda hoje
na democracia. No século XVIII, o conceito de democracia foi atualizado para
designar novas formas de organização dos grandes Estados modernos. No que
diz respeito ao governo das leis ou ao princípio de igualdade, os velhos
significados são retomados e modificados. Mas, no que diz respeito às mudanças
sociais em decorrência da Revolução Industrial, são acrescentadas novas
valências ao conceito: ele se torna um conceito de expectativa que, sob a
perspectiva histórico-filosófica -- seja legislativa ou revolucionária -- precisa
satisfazer necessidades até então desconhecidas [...] para poder liberar seu
verdadeiro sentido. Finalmente, "democracia" se torna um arquilexema, um
conceito generalizante, que, daqui por diante, tomando o lugar de "república" (=
politeia), impele todos os outros tipos de Constituição para a ilegalidade como
forma de governo. Por trás dessa generalidade global, que pode ser ocupada, do
ponto de vista político, de modos completamente diversos, faz-se necessário
moldar novamente o conceito por meio de definições adicionais. Somente assim é
que ele pode ser funcional politicamente: surgem a democracia popular
representativa, a cristã, a social, etc.
350
Quanto mais abstratos e generalizantes os conceitos, não importando quais
os elementos de experiência ou expectativa a eles inerentes, ressalta Koselleck,
maior o número de partidos que podem deles se apropriar para seus propósitos
específicos. Conceitos políticos e sociais tornaram-se, por esse processo,
350
KOSELLECK, Reinhart. "História dos conceitos e historia social". In: KOSELLECK, R.
Futuro Passado, op. cit., pp. 106-107.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
146
instrumentos de direção do movimento histórico, passando de simples indicadores
a fatores das mudanças que marcaram a sociedade civil a partir do século XVIII.
A democracia, por exemplo, ao transformar-se em conceito universal,
generalizante, é lançada ao centro de acirrada disputa entre as diversas correntes
políticas. Cada qual tenta impor sua própria definição no que concerne ao uso
mais adequado do conceito e ao modo correto de interpretá-lo, como forma de
impedir que adversários façam uso das mesmas palavras para expressar algo que
possa estar em desacordo com o seu próprio entendimento do conceito.
351
Quentin Skinner descreve processo semelhante, referindo-se a ele como
"redescrição retórica" (rethorical redescription). Discorrendo sobre a forma de
mudança conceitual na qual está interessado, o autor assinala que tais mudanças
ocorrem quando uma ação, ou uma situação, é descrita por um termo que expressa
julgamento de valor e que, normalmente, não seria mobilizado para se referir
àquela ação ou situação. O objetivo é convencer o público ao qual se dirige o
discurso de que, apesar das aparências em contrário, e tendo em vista o sentido
usual do termo, a sua utilização, nas circunstâncias específicas às quais está sendo
aplicado, é perfeitamente adequada. O efeito esperado deste trabalho de persuasão
é fazer com que o procedimento em questão seja percebido sob uma nova ótica
moral, de modo que uma ação anteriormente considerada louvável passe a ser
vista como condenável, enquanto uma prática antes alvo de condenação pareça,
agora, digna de louvor. Skinner enfatiza que, em toda tentativa de se legislar sobre
o uso "correto" de termos que expressam conteúdo normativo, está implícito um
componente ideológico. Assim, sempre que tais termos forem utilizados, sua
aplicação estará refletindo a vontade de impor uma visão moral específica sobre a
organização da realidade social
352
. A essência da técnica é por ele exemplificada
tomando por base a Institutio Oratoria, de Quintiliano:
Como enfatiza Quintiliano, pode-se assim dizer que a essência da técnica
consiste em substituir uma determinada descrição valorativa por uma expressão
rival, que sirva para retratar a ação de forma não menos plausível, mas que
sirva ao mesmo tempo para colocá-la em uma perspectiva moral contrastante.
351
KOSELLECK, Reinhart. "Modernidade: sobre a semântica dos conceitos de movimento na
modernidade". In: KOSELLECK, R. Futuro Passado, op. cit. Cf. pp. 301-302.
352
SKINNER, Quentin. Visions of politics. Volume I: Regarding method. New York: Cambridge
University Press, 2002. Cf. p. 182.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
147
Busca-se persuadir a audiência a aceitar a nova descrição e, deste modo, adotar
nova atitude com respeito à ação em questão.
353
A batalha semântica em torno do conceito de democracia da qual Cultura
Política torna-se palco privilegiado desenrola-se em um dos momentos de crise
que a história do Brasil registra. Trata-se, neste caso específico, de uma crise
interna, agravada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, sem dúvida um forte
fator de modificação tanto do campo de experiência quanto do horizonte de
expectativa. E a tendência ressaltada por Koselleck de, em situações como essa,
um conceito passar a apontar para o futuro transparece em muitos dos artigos da
revista nos quais o tema é abordado. A análise de Paulo Figueiredo, a seguir
destacada como exemplo, denota forte carga de expectativa em relação à
concretização futura de aspirações de que o conceito, no seu entender, deveria ser
portador:
Um golpe de vista histórico na vida das nações mostra que o sistema único
possível de ser condição existencial favorável ao indivíduo e às sociedades
humanas é a democracia. Entrementes, dado o fracasso liberal, e considerados
os fatos históricos permanentes, é preciso lembrar, com Tristão de Ataíde, que "o
problema é agora saber que espécie de democracia vai prevalecer no século
XX". Cremos mesmo que melhor diríamos se, completando o pensamento do
ilustre escritor, disséssemos que o problema não é bem saber que espécie de
democracia deve prevalecer, e sim fazer vigorar, realmente, a democracia. É
que, acreditamos, os passados regimes ditos democráticos apenas tangenciaram
a democracia, e em pontos diferentes, incidindo, por exemplo, o liberalismo em
seu aspecto jurídico, o sistema ateniense em seu aspecto político, o comunismo
em seu aspecto econômico, nenhum deles a compreendendo em sua totalidade.
Ora, a democracia não pode ser mutilada. Ela é ou não é. E, para ser, há de se
fazer valer em seu todo, em suas forças éticas, jurídicas, sociais e econômicas.
Por isso, [...] a democracia só poderá ser no cristianismo, o único sistema que vê
o homem como pessoa e a sociedade como uma pessoa de pessoas humanas. [...]
[A] democracia há de ser uma democracia orgânica, qualitativa, cristã.
354
[grifos no original].
Vista através do "espelho" que Cultura Política se propõe a ser, a forma
política que estrutura e organiza o Estado Novo, como se pode observar nos
artigos apresentados no capítulo anterior, reflete uma imagem prismática, que se
desdobra em múltiplos adjetivos e cuja essência vai sendo delineada por criteriosa
substantivação -- recursos lingüísticos aplicados como meio de acentuar e dar
353
SKINNER, Quentin. Visions of politics, op. cit., p. 183 [tradução minha].
354
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. A pessoa humana no Estado Nacional. Cultura Política.
Ano III, nº. 34, novembro de 1943, p. 27.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
148
suporte à imagem para, ao final, projetar no conceito o novo significado que se lhe
intenciona atribuir.
Como extrair os inteiros do mosaico de expressões mobilizadas por estes
autores para adjetivar e substantivar o conceito de democracia, de forma a traçar
um painel capaz de reproduzir, em perspectiva mais definida, o núcleo de seu
pensamento? Quais os principais argumentos que os levaram a subscrever, com
aparente segurança e convicção, a idéia -- verdadeiro leitmotiv dos artigos
publicados na revista -- de que a forma de governo consolidada pela Constituição
de 1937 viera concretizar o ideal da verdadeira democracia, apenas modificada a
sua estrutura para distanciá-la da concepção liberal? Idéia, aliás, bem resumida na
concepção "realista" de democracia proposta por Almir de Andrade em um de
seus artigos:
Mas é no Brasil, é no pensamento político do atual Presidente da República, que
pela primeira vez encontramos, realizada na prática e simultaneamente explicada
na doutrina como tal, uma democracia não-liberal -- ou seja, uma democracia
onde a idéia de justiça social, de eqüidade, de liberdade justa e socialmente útil
importa muito mais que a idéia individualista da liberdade em si, não raro
prejudicial à felicidade coletiva e à justa distribuição dos interesses comuns.
355
[grifos meus]
Os "seis princípios básicos" desta concepção de democracia, delineados
por ele em ensaio anterior com a observação de que um regime será tanto mais
democrático quanto melhor conseguir realizá-los todos, talvez sejam um bom
começo para se tentar esta análise mais sintética -- que arrisca repetir aspectos já
abordados, mas que considero essenciais para melhor fixar pontos importantes
que estruturam o discurso veiculado em Cultura Política:
I) O respeito à personalidade, em suas prerrogativas de independência
e liberdade socialmente útil;
II) O respeito ao valor do trabalho, ou seja, a valorização do homem
pelo que trabalha e produz, e não pelos privilégios que haja adquirido;
III) A eqüidade: a decisão de dar a cada um o que é seu, segundo as suas
necessidades e de acordo com as suas capacidades;
IV) A igualdade de oportunidades, concedida a todos os homens na luta
pela vida, para que se revelem, em seu justo preço, todos os valores materiais e
morais;
V) A fraternidade e a solidariedade humana, produzindo a cooperação
de todos os homens para o bem comum;
355
ANDRADE, Almir de. As diretrizes da nova política do Brasil. Cultura Política. Ano III, nº.
23, janeiro de 1943, p. 17.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
149
VI) O bem-estar de cada um e de todos, a felicidade social como objetivo
supremo da vida política, superior ao Estado e aos fins políticos do Estado.
356
[grifos no original]
Trata-se, para o diretor da revista, de uma democracia política que
nenhuma relação guarda com a democracia de forma e de palavras
consubstanciada na vertente liberal. Três são os grandes princípios que, no seu
entender, orientam o regime instituído a 10 de novembro de 1937. A "unificação
do poder político", que implica romper com a tradição da separação dos poderes
que norteara a organização das constituições liberais desde Montesquieu. O
"federalismo centralizado", como reação contra a excessiva descentralização
implantada pela Constituição de 1891 sob inspiração do modelo norte-americano.
E a "democracia social e econômica", significando abandonar o caminho da
democracia liberal, do liberalismo político e econômico
357
. É, afirma, uma
democracia de trabalho e de ação, de eqüidade, de seleção de capacidades e de
valores, que visa servir aos interesses da nação. É um sistema que conseguiu
resolver o conflito entre governantes e governados e impedir que os interesses dos
partidos continuassem a se sobrepor aos interesses da sociedade. O papel do
governo é sondar, interpretar e definir os interesses objetivos que a sociedade se
impõe a si mesma e que derivam da sua própria natureza, com o objetivo de
dirigí-los e realizá-los.
358
A leitura dos artigos selecionados -- sempre que possível ampliada para
incluir outros artigos importantes para a pesquisa -- revela uma profusão de
adjetivos a qualificar o termo democracia, alguns já mencionados no capítulo
anterior: autoritária; forte; verdadeira; autêntica; real; brasileira; original;
realista e funcional; anti-liberal; não-liberal; substantiva; de fato; de conteúdo;
nova; renovada; das corporações; econômica; social; social e econômica;
objetiva; organizada; construtiva; positiva; ativa; bem proporcionada; orgânica;
integral; "sui generis"; diferente; redentora; viva; cultural. Além de um
neologismo: humanocracia.
356
ANDRADE, Almir de. O regime de 10 de Novembro e a ordem política e constitucional.
Cultura Política. Ano II, nº. 21, 10 de novembro de 1942, p. 11.
357
Ibid. Cf. pp. 7-8.
358
Idem. Getúlio Vargas e a doutrina brasileira de Governo. Cultura Política. Ano II, nº. 15, maio
de 1942, p. 9.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
150
Quanto aos substantivos que vêm se associar ao significante "democracia"
para lhe conferir significado, a lista é extensa. O conceito de democracia que estão
a construir os intelectuais nas páginas de Cultura Política remete tanto a
expressões simples, quanto a frases mais longas que se destinam a dar-lhe
substância, definindo seus objetivos ou dizendo o que a democracia, no
entendimento destes autores, "não é".
Em meio ao conjunto de vocábulos e expressões que se entrelaçam para
constituir o conceito, encontramos centralização, unidade, autoridade, disciplina,
hierarquia, ordem, nacional, nacionalismo, nacionalidade, inteligência, tradição,
ação, trabalho, educação, corporações, responsabilidade, moralidade, verdade,
prosperidade, progresso, eqüidade, liberdade, igualdade, fraternidade, felicidade,
oportunidade, reunião, solidariedade, harmonia, equilíbrio, cooperação, justiça,
paz, renovação, adaptação, reconstrução, segurança, bem comum, realidade,
realismo, originalidade.
Em um plano mais geral, afirma-se que a verdadeira democracia deve
exprimir vida, respeitar a pessoa humana, agir de forma rápida, direta e em um
plano objetivo e concreto, solidificar os valores morais e espirituais, integrar todos
os valores de forma harmoniosa, obedecer as forças profundas da sociedade,
integrar o indivíduo na comunhão social e interessá-lo na coisa pública, tornar os
benefícios das transformações técnicas e das conquistas materiais acessíveis ao
maior número possível, respeitar e assegurar realmente os direitos individuais,
planificar a educação, formar a nacionalidade, dirigir a economia, prover
orientação administrativa, reprimir os privilégios de casta, lutar contra a servidão,
fazer valer a vontade da maioria sem prejuízo dos direitos da minoria, conciliar os
princípios da autoridade e da liberdade, solucionar os problemas sociais e
econômicos, amparar as classes desprotegidas, promover a paz social, ser justa na
distribuição do sacrifício e na percepção do benefício, humanizar o direito,
humanizar o Estado, evitar antagonismos de classes, amparar e realizar as
aspirações da classe trabalhadora, substituir as assembléias pelos conselhos
técnicos, intervir diretamente na regulamentação das relações sociais, garantir a
ordem interna e a segurança externa. Deve ser o governo da inteligência e da
ordem, um governo popular a serviço da justiça e da liberdade, demonstrar
capacidade de escolher um Chefe, ser inspirada nos postulados de um
nacionalismo construtivo, refletir a realidade nacional e as peculiaridades
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
151
históricas do país, conservar a pureza das tradições, ser capaz de renovar-se para
se adaptar às necessidades político-sociais contemporâneas sem se afastar
totalmente de seus elementos estruturais originários, ser aberta à evolução das
forças econômicas, reconhecer o mérito nas competições aos cargos públicos.
Deve, enfim, ser uma democracia que age não só em extensão, mas também em
profundidade.
Alguns aspectos enfatizados na revista merecem análise mais cuidadosa.
Associa-se a democracia a um Estado que trabalha com o homem na
conquista do "bem público" (ou bem comum), remetendo às noções de "reunião",
"solidariedade", "cooperação", "justiça" na distribuição do sacrifício e no
recebimento do benefício, "centralização" da função normativa jurisdicional.
Associa-se, também, à idéia de "liberdade" como função, e não como instinto,
como bem e não como mal, de um em razão da de todos.
359
A noção de "liberdade", por seu turno, tem o horizonte bem delimitado nas
páginas da revista. No conceito re-significado de democracia, a liberdade, para ser
construtiva, deve ser "relativa", no sentido de que pode e deve haver restrições à
livre expressão do pensamento político. Sendo a liberdade uma força, precisa ser
"dirigida", pois uma força entregue a si própria acaba tornando-se improdutiva e
dispersiva.
360
Se o significante "liberdade" é mobilizado para dar substância ao
conceito de "democracia", o fato de estar tal liberdade caracterizada como
"relativa" permite inferir tratar-se a democracia, da mesma forma, de uma
"democracia relativa".
Remete a idéia de "liberdade" à noção de "felicidade", entendida como
possibilidade de acesso a algumas garantias básicas, representadas por um mínimo
econômico capaz de prover a necessidades essenciais como alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos, educação, assistência em caso de
desemprego, velhice ou acidente, proteção aos filhos e planejamento familiar.
Essa "nova visão da comunidade democrática" nos envia de volta à noção de
"cooperação": só mediante a cooperação de todos é possível concretizá-la.
361
É necessário, ainda, à "liberdade individual", para configurar-se como
legítima, ser capaz de promover a "felicidade social", o que só se torna possível se
359
Cf. CARVALHO, Menelick de. Democracia objetiva e liberalismo romântico, op. cit.
360
Cf. LAGDEN, H. O processo das democracias, op. cit.
361
Cf. CARVALHO, Menelick de. Democracia objetiva e liberalismo romântico, op. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
152
a liberdade for "socialmente útil" e "justa". Tendo isto como premissa, o Estado
Novo orienta sua política no sentido de deslocar o problema fundamental da
democracia do plano da "liberdade" para o plano da "justiça", tendo em vista que
o que há de eterno no ideal democrático é a aspiração de "justiça social", cuja
meta é promover a "harmonia" e por em "equilíbrio" as necessidades comuns a
todos. Este deslocamento é entendido como a origem do sentido "diferente" e
eminentemente "humano" da nova democracia brasileira.
362
O "respeito à pessoa humana" aparece como um dos dogmas fundamentais
daquilo que se anuncia como a nova democracia brasileira, e se expressa através
da idéia de ser o "homem" a "grande realidade da democracia". Ele deve ser o
centro das ações do Estado. Para tanto, é necessário um Estado que seja meio e
não fim, que saiba fazer convergir de forma harmoniosa os interesses do indivíduo
e do cidadão, que seja capaz de adaptar os critérios de governo às aspirações e
necessidades populares. É este o sentido do termo "humanocracia", empregado
por Paulo Figueiredo para melhor definir o que chama de "democracia integral",
na qual povo e governo, integrados no Estado, se associam na busca da felicidade
de todos e de cada um
363
.
A "igualdade" também informa o conceito de democracia, apresentada
como "igualdade de oportunidades" e "igualdade de todos perante a lei". Assim é
que a nova democracia proclama ter por objetivo assegurar os legítimos direitos e
criar condições para a realização das justas aspirações de todas as classes sociais,
indistintamente, substituindo o império do individualismo pela afirmação do
conceito de bem comum. A cada um deve ser proporcionada a possibilidade de
exercer as funções compatíveis com a sua capacidade e em conformidade com o
bem público.
Mas a "igualdade", por outro lado, é desqualificada quando associada à
democracia na acepção de igualdade absoluta de todos os homens, consolidada no
século XVIII. Neste sentido a igualdade é apontada como uma "heresia", uma
"idéia arbitrária e contrária à realidade natural", que contribui para desvirtuar e
perverter a idéia democrática, e a ela é preciso opor a "ordem" e a "hierarquia
"364
,
362
Cf. ANDRADE, Almir de. As diretrizes da nova política do Brasil, op. cit.; e PERES,
Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit.
363
Cf. FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit.; e
A pessoa humana no Estado Nacional, op. cit.
364
Cf. AMARAL, Azevedo. Realismo político e democracia, op. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
153
mais duas palavras com freqüência utilizadas nos artigos para compor o
significado de democracia. Em um regime democrático, observa Paulo
Figueiredo, é papel do Estado criar um ambiente de igualdade de oportunidades
que permita aos mais capacitados desenvolver as suas habilidades. No entanto,
para além desta igualdade inicial, toda desigualdade estaria justificada.
"Disciplina de forças", "hierarquização de valores" e "diferenciação racional de
funções" são três das expressões mobilizadas por ele para substantivar o
significante "democracia". No Estado democrático, o governo cabe às "elites". Às
"massas", cabe exercer funções diferenciadas e receber educação, orientação e
esclarecimento, para o seu próprio bem
365
.
Como se percebe, a noção de "igualdade" entra na composição do conceito
de democracia em meio a forte polêmica acerca de seu significado. E de forma,
pode-se dizer, até mesmo contraditória, visto que, se de um lado existe a recusa do
que se poderia chamar "igualdade natural", por outro inúmeras medidas são
propostas visando promover a igualdade, inserindo nos programas de governo
segmentos da população até então ignorados pelas políticas públicas. Exemplos
disto são a criação das leis trabalhistas, a instituição do salário mínimo, da
Previdência Social, a ampliação do acesso à educação e à saúde, e tantas outras
ações direcionadas para a implementação de um Estado de bem-estar social, com
vistas a tornar mais igualitária a distribuição de benefícios. Mas esta tentativa de
nivelamento de forma alguma significava abandonar a idéia de que existem duas
classes de pessoas, como se viu em vários dos artigos analisados: uma elite a
quem cabe liderar, e uma massa cujo papel é aceitar a liderança.
O conceito de democracia está também estreitamente associado pelos
articulistas às noções de "realidade social" e "realidade nacional". Em um dos
artigos, é definido como a expressão orgânica da "vontade social" em obediência
aos imperativos da "realidade social".
366
Entre os termos com maior freqüência e ênfase empregados em conexão
com "democracia" está o "trabalho". A "organização do trabalho", a "valorização
e o amparo ao trabalhador", sob a forma de uma moderna "legislação trabalhista"
que viria resolver o eterno problema do conflito entre as classes, é, como se sabe,
aspecto central do projeto getulista e tem sido objeto de inúmeros estudos,
365
Cf. FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit.
366
Cf. AMARAL, Azevedo. Realismo político e democracia, op. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
154
destacando-se como um dos mais relevantes o já mencionado A invenção do
trabalhismo, de Ângela de Castro Gomes. A verdadeira democracia estaria no
amparo às massas trabalhadoras, célula da vida nacional
367
. Segue-se que o regime
mais representativo não seria aquele que se apóia na atuação dos partidos, mas o
que emana das forças ativas da sociedade, que são as corporações organizadas. É a
democracia das "corporações", entidades que se contrapõem à massa anônima do
eleitorado como "fontes originárias e legítimas da autêntica representação" da
vontade do povo, desempenhando também o papel de centros de atividade
econômica orientada no sentido do bem público
368
.
Todas as expressões mencionadas parecem convergir para um objetivo
maior, que poderia ser sintetizado na realização do "bem público", do "bem
comum". Uma das definições de democracia apresentadas na revista é justamente
a de "força orientada para o bem do povo"
369
. O "bem comum", como finalidade
do Estado democrático e princípio de limitação das liberdades individuais
370
, está
entre as expressões mais freqüentemente mobilizadas nos artigos em associação
ao conceito de democracia, neste esforço de reconfiguração de seu significado.
No entanto, a "intervenção direta do poder público" -- no caso do Estado
Novo, leia-se "do chefe da Nação" -- é apontada como a única forma de substituir
a preeminência do individualismo pela afirmação do princípio do bem comum,
privilegiando a realização do bem coletivo ao invés dar prioridade aos interesses
privados. O instrumento por excelência de realização do "bem comum", assim
como da "justiça", é a "autoridade"
371
. A diferenciação do conceito em relação à
concepção liberal se amplia.
Intrínseca à constituição do novo conceito de democracia está a completa
identificação entre "democracia", "nação" e "Estado", proposta nos seguintes
termos: governo democrático é governo de povo; povo é nação; nação está acima
de todas as classes; e, finalmente, nação organizada é o Estado
372
. E apenas um
Estado forte, pela sua potência, supremacia, superioridade de fins, força
disciplinadora e coordenadora, e soberania sem contrastes possui a capacidade de
367
Cf. OLIVEIRA, Belfort de. Onde a verdadeira democracia?, op. cit.
368
Cf. FONTES, Lourival. Democracia, eleição e representação, op. cit.; LAGDEN, H. O processo
das democracias, op. cit.; FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado
Nacional, op. cit.
369
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira, op. cit., p. 13.
370
Cf. ANDRADE, Almir de. As diretrizes da nova política do Brasil, op. cit.
371
Cf. ANDRADE, Almir de. As diretrizes da nova política do Brasil, op. cit.
372
Cf. FIGUEIREDO, Paulo Augusto de . O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
155
tulelar e proteger os direitos, assegurar a paz social, a justiça entre as classes, a
felicidade e o bem-estar dos cidadãos
373
. O Executivo poderoso é apresentado
como uma necessidade técnica do regime de liberdade e único meio de manter a
democracia, evitando a ditadura. A unidade "democracia-Estado-nação" se traduz
na idéia de que a democracia nova só comporta um único partido, o partido do
Estado, que é também o partido da nação. Elimina-se assim os intermediários e
estabelece-se o "contato direto entre o povo e o poder público", personificado na
figura do Presidente da República. O "poder pessoal" do Chefe de Estado, nesse
contexto, torna-se elemento básico e insubstituível, pois é ele o órgão de
coordenação, interpretação e direção sem o qual nada se realiza. A excessiva
concentração de poderes nas mãos do Presidente da República é justificada como
sendo fato comum às modernas nações democráticas, pois tudo depende da ação
constante da personalidade do estadista.
374
Ponto exemplificado pelo pensamento
de Almir de Andrade. Lançando o olhar em direção ao futuro, ao pós-guerra, para
especular sobre a possibilidade de concretização dos ideais inscritos no conceito
de democracia, Almir de Andrade afirma acreditar que o triunfo dos princípios
democráticos essenciais -- "liberdade socialmente útil", "eqüidade", "justiça
social" -- traria consigo a conquista da "felicidade" material, espiritual e moral, a
"melhoria das condições de vida" e a "diminuição das injustiças e desigualdades
sociais".
375
Ao mesmo tempo em que olha para o futuro, na seqüência da frase o
olhar parece se deslocar para o passado, caminhando o autor na direção contrária a
um dos postulados centrais do moderno ideal democrático. Se o ideal aspira a um
governo de leis e não de homens, o diretor de Cultura Política afirma que "o
essencial, para a vida dos povos, não é que haja leis e fórmulas democráticas --
mas sim que haja homens e chefes democráticos."
376
Insiste em considerar a
democracia "real" -- termo usado por ele -- antes um sistema de ação que um
sistema de idéias, e é neste sentido que deve depender mais do estadista que
governa do que do Estado que se organiza. Não considerava possível compreender
373
Cf. FONTES, Lourival. Democracia, eleição e representação, op. cit.
374
Cf. AMARAL, Azevedo. Realismo político e democracia, op. cit.; ANDRADE, Almir de.
Democracia social e econômica, op. cit.; MANES, Pedro. A Constituição de 1937 e a idéia
democrática, op. cit.
375
ANDRADE, Almir de. O Presidente, o Brasil e a guerra. Cultura Política. Ano III, nº. 33,
outubro de 1943, p. 31.
376
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
156
o momento político pelo qual passava o Brasil sem se aceitar esta premissa como
verdadeira.
Evidencia-se o "sentido econômico" dado ao conceito de democracia, na
medida em que, com a "concentração da autoridade" na pessoa do Chefe e com a
"extinção dos partidos", a tomada de decisões antes realizada no âmbito das
Assembléias passa a ser feita através de consulta direta aos "Conselhos Técnicos",
órgãos representativos da vida econômica e social do país. Consideravam, assim,
os teóricos da nova democracia -- que a apresentam como uma democracia mais
"econômica" do que "política" -- natural e pertinente simplificar o mecanismo de
consulta e de controle da opinião pública, abolindo o sufrágio universal como
instrumento de escolha da autoridade maior do país. O fato de ser o Estado uma
expressão da vontade popular não era percebido como motivo para ratificar o
"sufrágio universal" como sistema necessário de escolha do Presidente da
República, ou fator determinante do período de duração do cargo e da
possibilidade ou não de sua reeleição. Os canais de expressão da vontade popular
deveriam ser estabelecidos em conformidade com a "realidade social
"
.
377
O que, na percepção dos intelectuais colaboradores de Cultura Política, a
democracia "não é" contribui também para definir a sua essência. Alguns pontos
sobressaem nesta tentativa de dar substância pela negação.
A democracia não é um "sistema rígido", uma "categoria lógica" ou um
conceito "a priori". Ao contrário, é referida como um conceito pragmático, um
dado da experiência política que define, sob critérios gerais, situações particulares.
É, sobretudo, um princípio que cada país tem o direito de interpretar como melhor
entender
378
. Não pode ser mera "adaptação artificial" ou "cópia das instituições
políticas" de um regime que não se coadune com a realidade nacional. Não é o
"governo do povo pelo povo", que caracteriza a "democracia demagógica", mas
sim governo do povo "para" o povo, marca da democracia real
379
. Não é um
regime que tolera "privilégios de casta", "opressões de classe", "preconceitos
raciais" e "desigualdades de fortuna". Não é um sistema que elege seus dirigentes
por meio das "comédias eleitorais". Não é "liberalismo", "pacifismo",
377
Cf. MANES, Pedro. A Constituição de 1937 e a idéia democrática, op. cit.
378
Cf. PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia, op. cit.
379
A ordem política e a evolução social. Artigo de abertura da subseção "Evolução Social", na
seção "Brasil Social, Intelectual e Artístico". Cultura Política. Ano II, nº. 18, agosto de 1942. Cf.
pp. 309-310.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
157
"universalismo" ou "racionalismo". Não é "irresponsabilidade político-
administrativa", "engodos eleitorais", "caciquismo", "demagogia", "politicagem
liberal-democrática". Não é a "heresia da igualdade", o nivelamento de todos os
homens como se fossem todos iguais, o que, por não ser possível, só poderia
contribuir para criar tensões permanentes entre o indivíduo e o Estado. Não é a
"autoridade desenfreada da massa", o "governo das multidões acéfalas", apoiado
no número e não na qualidade, na força da multidão e não na inteligência dos
homens. Não é a "participação de todos no governo", princípio irrealizável. Não é
sinônimo de "liberdade" no sentido de "licença". Não é "parlamentarismo". Não é
"uniformidade".
O conceito vai assim adquirindo contornos mais nítidos. A resposta aos
que criticavam a nova concepção de democracia que gradualmente se desenhava,
insistindo em apontar fraturas entre o discurso e a prática, pode ser encontrada na
seguinte frase de Almir de Andrade: "À sociedade interessam muito menos as
formas dos regimes políticos do que os seus resultados concretos, do que a sua
eficiência na defesa dos interesses humanos. Não importam os rótulos dos
regimes."
380
Como contra-conceitos mais diretos a este conceito de democracia,
aparecem o liberalismo, ou liberal-democracia, e os regimes totalitários --
nazismo, facismo, comunismo.
Alguns adjetivos se sobressaem na qualificação da liberal-democracia:
democracia desvirtuada, parlamentar, eleitoral, formal, idealizada, de doutrina,
de sistema, puramente política, deturpada, desumana, pseudo-representativa,
fictícia, racionalista, universalista, passiva, intelectualista, dogmática, sem vida.
O conceito é associado a regime das massas, ditadura da burguesia, ultra-
individualismo, egoísmo, igualdade absoluta de todos os homens, liberdade como
problema fundamental da democracia, mínimo de governo como fonte de
conflitos destrutivos, dogma da representação das massas pelo sufrágio universal,
mística do sufrágio direto, dissolução da vontade popular, sistema de partidos,
substituição do conceito de representação pelo sistema eleitoral, atomismo
sufragista, hipocrisia das ficções eleitorais e das inúteis controvérsias
parlamentares, onipotência dos parlamentos, disputas de partidos e ideologias,
380
ANDRADE, Almir de. As diretrizes da nova política do Brasil, op. cit., p. 13.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
158
discussões estéreis e formalísticas, parlamentos em que não se impõe a verdadeira
vontade nacional, regime de castas, governo de uma elite de privilegiados
improdutivos, falta de coincidência entre as manifestações da vontade coletiva e
os órgãos de representação política, desajuste entre os homens e as instituições,
farsa do governo da maioria, ilusão de governar-se a si mesmo, miragens falsas de
liberdade, primado das liberdades e direitos individuais, prevalência do indivíduo
sobre a sociedade, luta de uns contra os outros e do indivíduo contra a
coletividade, criação ideológica sem concretização real, obediência a princípios
abstratos, preocupação individualista da caça ao cargo ou emprego público de
deputado, ilusão da opinião popular com místicas e teorias salvadoras, sistema
desumano por omissão, ideal fora da realidade, longe da vida, racionalismo
excessivo, regime que desnatura a sociedade, exploração do homem pelo homem,
falta de ética, negação da verdade.
Escreve um dos articulistas de Cultura Política, sobre o regime instituído
em 1937, não ser ele fascista, visto ser o fascismo anti-democrático por apoiar-se
em um partido único integrado no Estado e não respeitar a soberania do povo, e
também por diferir o cooperativismo brasileiro do italiano, no sentido de que este
reúne as classes no Partido Fascista, como órgão do sistema administraivo.
Tampouco é bolchevista, porque esta forma de governo repudia a igualdade
democrática e consagra a desigualdade dos indivíduos. Reputa a Constituição de
1937 como a antítese do sovietismo, que atrofia o capitalismo e faz leis que
privilegiam uma determinada classe, o que contribui para fomentar a violência.
Também não se deveria compará-lo ao regime nazista. É um sistema político
adaptado às realidades brasileiras.
381
Afirma outro que o Estado totalitário é
ilegítimo porque sobrepõe-se ao homem, que deve ser a meta suprema do
interesse do Estado, absorvendo-o e aniquilando-o.
382
Afirma ainda que é
ilegítimo o Estado Liberal por ser racionalista, universalista, não possuir
substância histórica e nacional, não ter raízes nem caráter e ser desprovido de
substância humana.
383
381
Cf. MANES, Pedro. A Constituição de 1937 e a idéia democrática, op. cit.
382
Cf. FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O conteúdo democrático do Estado Nacional, op. cit.,
p. 14.
383
Idem. O Estado Nacional e a ordem social futura. Cultura Política. Ano IV, nº. 39, abril de
1944, p. 92.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
159
A ambigüidade que marca o Estado Novo emerge em toda a sua força
nesta tentativa de re-significação do conceito de democracia. Pode-se dizer que
muitas das propostas e aspirações expressas nas palavras apresentadas para
substantivar o novo conceito de democracia parecem não estar em confronto
direto com pressupostos que, de um modo geral, se acredita pertencerem ao
conjunto de características que definem o conceito, conforme delineado no século
XVIII e consolidado no XIX -- ainda que os autores dos artigos pesquisados
insistam em enfatizar o seu total repúdio e distanciamento em relação aos ideais
consagrados pela liberal-democracia. No entanto, os problemas de querer chamar
de "democracia" o regime imposto pela Constituição de 1937 se avolumam. A
"liberdade" é "relativa". A "igualdade", como visto, é uma noção bastante
problemática. Como princípio maior, significando a igualdade qualitativa de todos
os homens, é chamada de "heresia", mas como forma de tornar mais igualitário o
acesso a benefícios e oportunidades, é alvo de políticas públicas. O "sufrágio
universal" é apresentado como prática que "desvirtua" o verdadeiro ideal
democrático. O instrumento considerado adequado para realizar a "justiça" e o
"bem comum" é a "autoridade". Esta, por sua vez, está concentrada no Executivo,
na pessoa do "Chefe da Nação". Ainda assim, em vários artigos é transcrito o
Artigo 1º. da Constituição de 1937 -- o qual proclama que o poder político emana
do povo e é exercido em nome dele e no interesse do seu bem estar, da sua honra,
da sua independência e da sua prosperidade -- como prova de ser o novo regime
efetivamente uma democracia.
O Estado Nacional é, enfim, apresentado como um "Estado Síntese,
integração superior do Estado Liberal (tese) e do Estado Totalitário
(antítese)"
384
, para citar argumento empregado por Paulo Figueiredo. E o que o
caracteriza como tal, assinala o autor, é o fato de possuir o sentido de unidade das
monarquias, a correta compreensão de hierarquia das aristocracias, e o fundo
popular das repúblicas. Define-o como um Estado forte, mas não tirânico, cristão
e não comunista, nacional e não "nacionalista", humano e não "classista", popular,
mas não plebeu. Estas seriam as características que, no seu entender, legitimariam
384
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O Estado Brasileiro e o sentido do nacionalismo. Cultura
Política. Ano II, nº. 13, março de 1942, p. 40.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
160
o regime brasileiro como substancialmente democrático
385
. E pontifica, projetando
seu horizonte de expectativas:
Estranho aos totalitarismos e ao liberalismo; humano em seus motivos e fins,
porém nacional em seus processos sociais; fundado em nossas realidades totais;
estruturado em nossa história autêntica e inspirado no cristianismo, pode o
Estado Nacional constituir-se um tipo de Estado singular no mundo. Estado que
se revela mesmo, em seus lineamentos capitais, como o mais próximo da ordem
de amanhã.
386
É esta a imagem de democracia que gostariam que o espelho lhes
devolvesse para, a partir dela, construir uma nova realidade.
385
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O Estado Nacional a a ordem social futura, op. cit., p. 97.
386
Ibid., p. 99.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
5.
Conclusão
A democracia assemelha-se à maré alta; ela só recua
para voltar com mais força sobre seus passos; e, ao final
de um certo tempo, percebe-se que no meio de suas
flutuações ela não cessou de ganhar terreno.
387
Em artigo publicado na revista Estudos Históricos
388
, o cientista político
José Murilo de Carvalho se propõe a "descer aos infernos" para fazer uma visita
ao sociólogo fluminense Oliveira Vianna. E se apressa a explicar o motivo da
escolha de tal expressão. Autor que desfrutara de grande prestígio e influência
entre o final da década de 1920 e início dos anos 1940, a estreita associação com o
governo de Getúlio Vargas e o apoio ao regime de exceção instituído em 1937
renderam, no entanto, a Oliveira Vianna uma imagem negativa entre os
intelectuais após a queda do Estado Novo. A situação foi agravada com o advento
da ditadura militar em 1964. Para muitos de seus críticos, o diagnóstico elaborado
por aquele autor sobre a realidade brasileira, bem como as soluções propostas para
os problemas detectados, constituíam um dos pilares da estrutura ideológica sobre
a qual se assentara o edifício do governo militar. Oliveira Vianna foi então,
reporta José Murilo, mandado aos infernos. E, acrescenta,
Nos infernos ele ainda se encontra [...]. É lá que pretendo fazer-lhe uma visita
não diria amigável, mas desarmada. Depois da longa condenação, parece
chegado o tempo de um julgamento menos marcado por circunstâncias políticas
passadas. [...] Quanto ao apoio à ditadura, foram muitos os intelectuais que
aceitaram posições no governo e de quem não se cobra a adesão com tanto rigor
como de Oliveira Viana. Não se cobrou de Carlos Drummond, de Mário de
Andrade, de Sérgio Buarque, e nem mesmo de Capanema. É certo que ele não só
participou do Estado Novo como também o justificou teoricamente. Mas é
preciso entender que o espírito da época era muito menos liberal do que o de
hoje, o autoritarismo pairava no ar, da direita à esquerda.
389
Creio que a mesma ressalva se poderia aplicar aos colaboradores de
Cultura Política. Afinal, como muito bem observa Edward Said, toda
387
TOCQUEVILLE, Alexis de. Viagens à Inglaterra e à Irlanda. São Paulo: Imaginário: Primeira
Linha, 2000, p. 70.
388
CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
vol. 4, nº. 7, 1991, pp.82-99.
389
Ibid., p. 83.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
162
"intervenção discursiva" está necessariamente referida a um contexto específico e,
nesta condição, "assume um consenso, paradigma, episteme ou práxis existente".
Temos, assim, a opção de "escolher o nosso conceito favorito que denota a norma
discursiva aceita predominantemente"
390
. Em cada situação que se apresenta,
afirma Said,
[...] a marca da era em que vivemos é a tendência de haver uma ortodoxia mídia-
governo dominante contra a qual é muito difícil se posicionar, mesmo que o
intelectual deva supor que se pode claramente demonstrar a existência de
alternativas. Assim, para reafirmar o óbvio, cada situação deve ser interpretada
segundo seus próprios dados, mas (e concordaria que esse é quase sempre o
caso) cada situação também contém uma competição entre um sistema poderoso
de interesses, de um lado, e, de outro, interesses menos poderosos ameaçados de
frustração, silêncio, incorporação ou extinção pela ação dos poderosos.
391
Não se trata, neste trabalho, de fazer um julgamento de valor, seja sobre os
intelectuais que ilustraram as páginas de Cultura Política, seja sobre as idéias por
eles defendidas, mas sim de sugerir que -- a exemplo do que se dispõe a fazer
José Murilo de Carvalho em relação a Oliveira Vianna -- se faça uma reflexão,
com o espírito desarmado pelo distanciamento no tempo, sobre o que de relevante,
por atual, possa existir nas palavras desses autores. E que se procure, através desta
aproximação, identificar os pré-conceitos que nos levam a aceitar sem maiores
questionamentos como sendo de todo absurda a idéia de que, naquele contexto
específico, pudessem propor chamar "democracia" ao conjunto de idéias que dava
corpo ao Estado Nacional. Ainda que o objetivo visado fosse a construção de um
conceito para servir de fundamento teórico a uma determinada ideologia, não soa
prudente desqualificar, de pronto, os argumentos mobilizados e os diagnósticos
feitos.
Numa época como a atual, em que fatos graves relatados a cada dia pelos
meios de comunicação retratam a progressiva e sistemática desmoralização de
instituições vitais da democracia representativa e não raro parecem indicar que o
sistema poderia estar atingindo os limites de sua capacidade de ação, é importante
reler esses ensaios para procurar entender como o conceito de democracia neles
refletido foi moldado. É neste sentido que a investigação aqui proposta sobre a
390
SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
p. 164.
391
Ibid., loc. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
163
concepção peculiar de democracia construída pelos ideólogos do autoritarismo, e
que foi a pedra de toque do regime instituído pela Constituição de 1937, se
justifica. Muitas das questões ali consideradas continuam presentes em nosso
cotidiano político por dizerem respeito a problemas que permanecem na raiz do
descontentamento que, em diferentes regiões, ronda e ameaça a estabilidade de
regimes democráticos. Não seria, portanto, de todo impróprio supor que muitos
dos argumentos então utilizados poderiam ser retomados hoje e que constituiria
grave equívoco desprezar sua força persuasiva.
Koselleck, em entrevista concedida a Javier Fernández Sebastián e Juan
Francisco Fuentes, faz uma consideração interessante sobre a dificuldade de se
tratar determinados temas em função de preconceitos:
[...] o estudo histórico dos conceitos admite diferentes perspectivas e
aproximações. Assim, por exemplo, podemos centrar nossa atenção no marco
normativo do liberalismo, como parece ter sido o caso do léxico espanhol. Eu,
contudo, não incorporaria um marco normativo desse tipo, qualquer que fosse,
porque minha experiência com os colegas teóricos do direito, juristas e teólogos
é que muitos deles foram incapazes de conceber uma história descritiva dos
conceitos, abordagem que, para alguns, parece despertar enormes reticências de
caráter dogmático. De algum modo, eles partem do princípio de que conhecem
"a verdade", de que sabem qual é o "verdadeiro conceito" correspondente a tal
ou qual noção, e não estão dispostos a admitir análises histórico-conceituais que
se choquem com a sua visão normativa das coisas. [...] Os principais teólogos
incorrem frequentemente em erros e falsas interpretações em razão de seus
preconceitos. O melhor seria que transformassem seus preconceitos em
hipóteses. Assim, transformando cada preconceito em uma hipótese ou em um
conceito aberto ao debate, poderíamos perguntar-nos livremente se é, ou não é,
possível ou aceitável tal ou qual coisa.
392
A democracia representativa no Brasil, enfatiza Bolivar Lamounier, foi
desde o século XIX alvo de questionamento por políticos e intelectuais, que a
criticavam como "estrutura importada, idéia fora de lugar, fruto do idealismo
utópico da elite dirigente ou [...] cínico instrumento de dominação a serviço da
classe latifundiária"
393
, prática que o autor aponta como um dos traços mais
marcantes da nossa cultura política.
392
SEBASTIÁN, Javier Fernández; FUENTES, Juan Francisco. "Entrevista com Reinhart
Koselleck". In: JASMIN, Marcelo G.; FERES Jr., João (Org.). História dos conceitos: debates e
perspectivas, op. cit., pp. 142-143.
393
LAMOUNIER, Bolivar. Da independência a Lula: dois séculos de política brasileira. São
Paulo: Augurin Editora, 2005, p. 15.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
164
Nesta mesma linha de argumentação, Sérgio Buarque de Holanda reputava
a democracia, no Brasil, como tendo sido sempre um "lamentável mal-entendido".
Dentre todas as formas de "evasão da realidade", afirma em Raízes do Brasil,
amplificando argumentos que povoam as páginas de Cultura Política,
a crença mágica no poder das idéias pareceu-nos a mais dignificante em nossa
difícil adolescência política e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema
complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às
condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe
imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais
se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde
coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda,
confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com
familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável
mal-entendido.
394
Na realidade, pondera Lamounier, a "questão democrática" só viria a se
constituir efetivamente em uma questão no Brasil depois de 1945, dado que a
Primeira República se configurara como continuação da política oligárquica e que
o regime implantado no período 1937-1945 como desfecho da Revolução de
1930 assumira uma feição ditatorial
395
.
A intensidade emotiva de que se revestem as aspirações em relação àquilo
que se considera que um regime democrático deva ser capaz de proporcionar é
fator essencial na determinação do lado para o qual a balança política acaba por
pender. A percepção de que a mera observância das regras do jogo democrático
nem sempre é suficiente para concretizar essas aspirações pode produzir uma
sensação de descrença e insegurança. Deste sentimento pode resultar que o apoio
inicial à democracia se transforme em rejeição, se valores associados ao ideal
democrático não estiverem fortemente consolidados. Rompida a "sensação de
democracia", abre-se espaço para a aceitação, em alguma medida, de restrições à
liberdade em nome da promessa, por um governo não necessariamente
democrático ou democrático apenas na forma e não na substância, de dar
prioridade à realização de determinados objetivos supostamente comuns a todos
(progresso, emprego, segurança, por exemplo). Daí a importância de se
acompanhar as transformações que se processam no interior da cultura de uma
394
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição comemorativa 70 anos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 176.
395
LAMOUNIER, Bolivar. Da independência a Lula..., op. cit., p 134.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
165
sociedade, no que concerne às suas crenças e expectativas em relação aos poderes
públicos, a ela própria, e aos direitos e deveres de que se acredita portadora. Em
outras palavras: não perder de vista a realidade objetiva. Os articulistas de Cultura
Política aqui analisados mostraram estar atentos a estas variáveis e saber
perfeitamente como trabalhar, em seu discurso, a "sensação de democracia", ou a
sua ausência, no sentido de re-significar o conceito para legitimar a nova ordem
política.
Como mostram na teoria Koselleck e Skinner, em estudos aqui
comentados, e como se pode acompanhar na prática através dos artigos publicados
em Cultura Política analisados nesta dissertação, a re-significação de conceitos --
ou a redescrição retórica, expressão preferida por Skinner -- é arma extremamente
poderosa. Koselleck ilumina este aspecto ao mostrar como a re-significação de
termos, bem como a criação de neologismos, acabam por transformar o espaço de
experiência e definir novos horizontes de expectativa, e também ao chamar a
atenção para a relevância social e política que, no interior desse processo, adquire
a luta pela produção de conceitos "adequados".
396
Volto, nesta conclusão, às ponderações de Koselleck sobre os conceitos de
movimento -- categoria na qual ele inscreve o conceito de democracia -- que
antecipam, na teoria, o movimento histórico e contribuem, na prática, para
influenciar a direção dos acontecimentos políticos.
397
Discorrendo sobre a estrutura temporal da modernidade, cujo eixo era
dado pelo conceito de progresso, o historiador alemão afirma que só foi possível
pensar a modernidade como um novo tempo a partir do distanciamento das
expectativas em relação ao conjunto das experiências existentes
398
. Essa
superação cada vez mais rápida entre as categorias "experiência" e "expectativa"
era parte de um processo deflagrado pela introdução de inovações técnico-
industriais em velocidade nunca vista, sendo a aceleração dos acontecimentos o
resultado prático de tal processo. Nesse contexto, ensina Koselleck, a fórmula que
se consagrou era "quanto menor a experiência tanto maior a expectativa."
399
396
KOSELLECK, Reinhart. "História dos conceitos e história social". In: KOSELLECK, R.
Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, op. cit., p. 101.
397
Idem. "Espaço de experiência e horizonte de expectativa". In: KOSELLECK, R. Futuro
passado, op. cit. Cf. p. 325.
398
Ibid., p. 322.
399
Ibid., p. 326.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
166
Adauto Novaes, em ensaio no qual reflete sobre a crise atual que parece
atingir a política, a cultura, a relação entre o público e o privado e os próprios
valores morais, pondo em xeque conceitos e valores em torno dos quais se
acreditava haver-se formado certo consenso em meio às naturais divergências,
observa que o que há de novo nesta crise, se comparada às anteriores, é que agora
parece praticamente impossível imaginar o futuro. Na medida em que o presente
tende a se constituir como "inteiramente novo", aparentemente descolado de
quaisquer referências prévias, torna-se mais difícil deduzir algo do passado, pois
"Quando tudo aquilo que uma civilização cultivou como 'virtude' na ordem do
pensamento, do senso comum, dos sentimentos e da política transforma-se em seu
contrário, em um 'mal', essa civilização não se reconhece mais"
400
. Com esta
observação, Novaes aponta como marca da contemporaneidade um processo de
descolamento entre experiência e expectativa semelhante ao descrito por
Koselleck.
Uma pergunta feita a Koselleck, a este propósito, por Javier Fernández
Sebastián e Juan Francisco Fuentes na mencionada entrevista com o historiador
alemão permite estender uma ponte entre o comentário de Novaes e a resposta de
Koselleck. Perguntam os entrevistadores:
[...] se é certo que [...] sempre existiu uma brecha entre a realidade factual e a
sua apreensão lingüística, você não tem a impressão de que essa brecha tornou-
se muito grande ultimamente como consequência da esclerose de muitos
conceitos políticos e sociais nascidos ou transformados em seu sentido moderno
há 200 anos, que teriam esgotado a sua capacidade de gerar expectativas e que
já não são capazes de dar conta das novas realidades do início do século XXI
satisfatoriamente?[...] Poderia se dizer que, de modo similar -- embora também
diferente -- ao que se sucedeu há 200 anos, foi quebrado o equilíbrio entre
experiência e expectativa, na medida em que o caráter insólito e opaco do futuro
-- que cada vez é mais difícil de ser pensado como simples prolongamento do
presente -- torna muito difícil a extrapolação para o porvir de conclusões
extraídas de situações anteriores. Agora, se tomarmos como certa esta
obsolescência do nosso universo conceitual, essa espécie de implosão dos
conceitos políticos e sociais, você não acredita que poderíamos estar no umbral
de um outro Sattelzeit de sinal inverso à grande transformação semântica aberta
na segunda metade do século XVIII, uma espécie de Sattelzeit às avessas? E,
neste caso, tendo em vista o que sabemos sobre a primeira revolução conceitual
do mundo moderno, não lhe parece que talvez valesse a pena empreender uma
espécie de "história prospectiva" ou de história dos conceitos do tempo presente?
400
NOVAES, Adauto. "Intelectuais em tempos de incerteza". In: NOVAES, Adauto (Org). O
silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
167
E para finalizar, você ainda considera válido em algum sentido o antigo aforismo
ciceroniano: "Historia magistra vitae"?
401
[grifos meus]
Embora Koselleck, na entrevista, não responda de forma direta a este
segmento da pergunta, parece-me que ele já o havia respondido em grande parte
em Futuro passado, ao esboçar a tese de que a classificação dos conceitos sociais
e políticos em conformidade com as categorias por ele criadas de “expectativa” e
experiência” constitui uma chave para se perceber o tempo histórico em
mutação.
402
Com o propósito de ilustrar este raciocínio, o autor se vale de exemplos
escolhidos no âmbito da ação política e, mais especificamente, da terminologia
constitucional, ordenando os conceitos em algumas categorias distintas e
advertindo tratar-se de classificação tão somente temporal. Existem conceitos que
se limitam a classificar e registrar experiências: são "conceitos de experiência"
que, por estarem referidos a um passado presente e retomar experiências já feitas,
podem continuar a ser usados no futuro sem grandes modificações. Há, por outro
lado, "conceitos que criam experiências". Estes, por não se fundarem
exclusivamente na experiência disponível, operam de forma um pouco diferente
da primeira categoria. Buscam entrever, nas estruturas de longa duração, as
possibilidades futuras que se anunciam nas experiências "imprecisas e ocultas" e
que através delas se manifestam sob a forma de prognósticos capazes de criar um
novo horizonte de expectativa. Há também conceitos que, por não terem qualquer
correspondência em experiências anteriores, configuram-se como conceitos de
antecipação. A eles Koselleck se refere como "conceitos de expectativa."
403
Um dos exemplos mobilizados pelo autor para caracterizar o momento
exato em que ocorre a mudança de perspectiva que converte um conceito pleno de
experiência em um conceito de expectativa, ou em um "conceito de movimento", é
a expressão "republicanismo", cunhada por Kant como forma de sinalizar o
caminho a ser seguido para que a república se tornasse realidade:
401
SEBASTIÁN, Javier Fernández; FUENTES, Juan Francisco. "Entrevista com Reinhart
Koselleck". In: JASMIN, Marcelo G.; FERES Jr., João (Org.). História dos Conceitos..., op. cit.,
p. 161. (Para uma breve explicação sobre o conceito de Sattelzeit, ver nota 17 na p. 162 do livro).
402
KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de experiência e horizonte de expectativa". In:
KOSELLECK, R. Futuro passado, op. cit. Cf. p. 322.
403
Ibid. Cf. pp. 323-324.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
168
O "republicanismo" foi [...] um conceito de movimento, que no espaço da ação
política permitiu realizar aquilo que o "progresso" prometeu cumprir na história
como um todo. O antigo conceito da "república", que chamava a atenção para
uma situação, se transformava em um telos, em objetivo, ao mesmo tempo que --
com o auxílio do sufixo "ismo" -- se temporalizava em um conceito de
movimento. Servia para antecipar teoricamente o movimento histórico e
influenciá-lo praticamente. A diferença temporal entre todas as formas de
governo até então conhecidas e a futura constituição, por todos esperada e
desejada, foi posta sob um conceito que influiu diretamente no acontecer
político.
404
Koselleck chama a atenção para o fato de que nem o republicanismo, nem
qualquer dos conceitos mais marcantes que surgiram a seguir -- democratismo,
liberalismo, socialismo, comunismo, fascismo -- possuíam, ao serem criados, uma
carga de experiência que pudesse ser considerada expressiva, se é que possuíam
alguma, e certamente não traziam em si um conteúdo capaz de traduzir as
aspirações de que eram portadores no momento de sua constituição. Aos conceitos
de movimento, frisa Koselleck, cabia descobrir um futuro novo. E é neste sentido
que a fórmula anteriormente referida -- "quanto menor a experiência tanto maior
a expectativa" -- se aplica.
A aplicação desta fórmula, porém, só se justificava em um contexto em
que experiências passadas não mais se mostravam aptas a fornecer elementos para
as expectativas que se formavam em um mundo cuja marca era o acelerado
processo de transformação, potencializado pelos avanços da técnica. Na perspicaz
análise de Koselleck -- e é aqui que considero que ele responde à pergunta
formulada por Javier Fernández e Juan Fuentes, e também dialoga com a
observação de Adauto Novaes -- na atual perspectiva esta premissa parece
demonstrar tendência a se inverter, restituindo os termos da equação à sua relação
original:
Mas, depois de haverem nascido de uma revolução, quando os projetos políticos
correspondentes se transformam em realidade, as velhas expectativas se
desgastam nas novas experiências. Isso vale para o republicanismo, o
democratismo e o liberalismo, na medida em que a história permite atualmente
emitir um juízo. Pode-se presumir que continuará sendo válido para o socialismo
e também para o comunismo, se este chegar a ser declarado como introduzido na
história.
Poderia assim acontecer que uma antiga determinação relacional viesse a
readquirir seus direitos: quanto maior a experiência, tanto mais cautelosa, mas
404
KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de experiência e horizonte de expectativa". In:
KOSELLECK, R. Futuro passado, op. cit., p. 325.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
169
também tanto mais aberta a expectativa. Para além de qualquer ênfase, ter-se-ia
então alcançado o final da "modernidade", no sentido de progresso otimizante.
405
[grifos meus]
Embora reconheça que as explicações baseadas no passado são pouco ou
nada eficazes em períodos de aceleração histórica, quando as mudanças se
sucedem de forma vertiginosa, Koselleck sugere a possibilidade de, no longo
prazo, submeter-se essas estruturas de aceleração a uma análise. A idéia é
decompô-las em seus vários "estratos temporais", que se entrelaçam e se
influenciam, para daí extrair eventuais pontos em comum e identificar problemas
e experiências que se assemelham ou se repetem
406
. Pois afinal, diz ele, as
experiências só podem ser reunidas porque, sendo experiências, são passíveis de
repetição. Isto indica que devem existir na história estruturas formais e de longo
prazo que viabilizem a recuperação dessas experiências o que, por sua vez,
permite inferir ser possível a superação da diferença entre experiência e
expectativa, "a ponto de a história poder novamente ser ensinada". E acrescenta:
A História só poderá reconhecer o que está em contínua mudança e o que é novo
se souber qual é a fonte onde as estruturas duradouras se ocultam. Também estas
precisam ser buscadas e investigadas, se quisermos que as experiências
históricas sejam traduzidas para uma ciência da história.
407
A História tem mostrado que é preciso estar atento às suas experiências.
Recente artigo de autoria de Luiz Werneck Vianna, que recebe o sugestivo
título de "O Estado Novo do PT"
408
, parece vir ao encontro desta observação. No
ensaio, o autor comenta o processo de centralização em curso no atual governo, o
qual, apesar de diferir em seus motivos de processos similares que tiveram lugar
anteriormente, a eles se assemelha no sentido de também resultar da "ação das
elites ilustradas" e ser um modelo imposto "de cima para baixo", prescindindo da
participação dos cidadãos. O atual governo, observa Werneck Vianna, devido à
sua composição pluriclassista, está organizado sob a forma de um "Estado de
405
KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de experiência e horizonte de expectativa". In:
KOSELLECK, R. Futuro passado, op. cit., p. 326.
406
SEBASTIÁN, Javier Fernández; FUENTES, Juan Francisco. "Entrevista com Reinhart
Koselleck". In: JASMIN, Marcelo G.; FERES Jr., João (Org.). História dos Conceitos..., op.cit.
Cf. p. 163.
407
KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de experiência e horizonte de expectativa", op. cit., p. 327.
408
VIANNA, Luiz Werneck. "O Estado Novo do PT". Julho de 2007. Disponível no site:
http://www.acessa.com/gramsci/
. Acesso em 15 de julho de 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
170
compromisso", reunindo em si forças sociais contraditórias. Este Estado de
compromisso se traduz na criação, "no interior de suas agências", de um
"parlamento" paralelo no qual as classes, as frações de classes, e outros
segmentos sociais podem se expressar a respeito de políticas que tratem de
questões de seu interesse imediato. Nesse "parlamento", sublinha o autor, são
tomadas decisões sobre políticas a serem implementadas e sobre a forma de
executá-las. Se não houver consenso, a decisão final cabe ao presidente.
Configura-se, assim, um processo de "ultrapassagem da representação política"
em favor de uma "representação funcional", que permite contornar "o parlamento
real e o sistema de partidos na composição dos interesses em litígio [...]".
Este processo em muito se aproxima do conceito de "democracia
funcional" que, como visto nos artigos de Cultura Política, se procurou
implementar durante o Estado Novo.
Alguns pontos em comum -- apesar das evidentes diferenças, sobretudo de
contexto -- entre a forma de governo que marcou o Estado Novo e a praticada
atualmente, são realçados por Werneck Vianna:
Sob essa formatação, em que elites dirigentes de corporações integram o
comando da política econômica, em que as centrais sindicais tomam assento no
governo, em que se valoriza a representação funcional -- caso conspícuo o
ministro do Trabalho, alçado a essa posição na condição de presidente da CUT
--, em que se faz uso instrumental das instituições da democracia representativa,
em que se reforçam os meios da centralização administrativa, e, sobretudo, em
que se quer apresentar o Estado como agência não só mais moderna que sua
sociedade, como também mais justa que ela, o que se tem é uma grossa linha de
continuidade com a política da tradição brasileira. Aí, os ecos da Era Vargas e
do Estado Novo, decerto que ajustados à nova circunstância da democracia
brasileira. Também aí um presidente da República carismático, acima das
classes e dos seus interesses imediatos, cujos antagonismos harmoniza, detendo
sobre eles poder de arbitragem, cada vez mais apartidário, único ponto de
equilíbrio em um sistema de governo que encontrou sua forma de ser na reunião
de contrários, e em que somente ele merece a confiança da população
409
. [grifo
no original]
A história parece ensaiar ter aqui a pretensão, já apontada nos idos de 1922
por Oliveira Vianna, de ir além do papel a ela assinalado por Cícero. Dizia este
mestre do pensamento político brasileiro que "Bem razão têm os historiadores
alemães, da escola de Ranke e Mommsen, quando fazem da história, não
409
VIANNA, Luiz Werneck. "O Estado Novo do PT", op. cit.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
171
propriamente como queria Cícero, 'a mestra da vida'; mas, principalmente, 'a
mãe e a mestra da política'."
410
Meu objetivo, ao aprofundar e desenvolver o estudo do tema aqui
proposto, foi acompanhar e tornar claro o processo de redefinição ao qual foi
submetido, nas páginas de Cultura Política, o conceito de democracia. Para tanto,
procurei mostrar como os intelectuais que participaram do processo construíram
sua argumentação no sentido de, mantendo o mesmo significante, tentar dar ao
conceito significado "radicalmente diferente", talvez para fazer face a um desses
momentos da história em que, para usar a expressão de Koselleck, "as velhas
expectativas se desgastam nas novas experiências".
Jorge Luis Borges, nas palavras transcritas na epígrafe que abre esta
dissertação, observa que quando as pessoas começam a desacreditar do excesso de
significantes que se tenta reunir para dar substância ao conceito de "Quimera", a
forma desaparece e a palavra permanece, mas para apenas significar o impossível.
No vazio que se segue, torna-se fácil dar ao conceito qualquer definição,
traduzindo-o em "cualquier otra cosa." Destino semelhante parece ter o conceito
de democracia. Os múltiplos e diferentes ideais, expectativas e aspirações que se
tem procurado juntar, ao longo do tempo, em um mesmo conceito, têm resistido a
"formar un solo animal". Ao contrário do que ocorre com a quimera, no entanto,
que acaba por se dissolver no vazio da ausência de significado, toda esta disputa
em torno do conceito de democracia denota um movimento que se afigura como
positivo: a tentativa de evitar que o termo se transforme em "idea falsa, vana
imaginación", que é, nos diz Borges, como os dicionários hoje definem
"quimera".
410
VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1956, p. 38.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
6.
Referências bibliográficas
Artigos de Cultura Política
A imprensa e a propaganda no quinqüênio 1937-1942. Reportagem especial
de Cultura Política. Cultura Política. Ano II, nº. 21, 10 de novembro de 1942.
A ordem política e a evolução intelectual. Texto de introdução. Cultura
Política. Ano I, nº. 1, março de 1941.
A ordem política e a evolução intelectual. Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril
de 1941.
A ordem política e a evolução intelectual. Texto de introdução. Cultura
Política. Ano II, nº. 15, maio de 1942.
A ordem política e a evolução social. Cultura Política. Ano II, nº. 18, agosto
de 1942.
AMARAL, Azevedo. Realismo político e democracia. Cultura Política. Ano I,
nº. 1, março de 1941.
ANDRADE, Almir de. A evolução política e social do Brasil. Cultura Política.
Ano I, nº. 1, março de 1941.
________________. Política e Cultura. Cultura Política. Ano I, nº. 2, abril de
1941.
________________. A soberania internacional do Brasil. Cultura Política.
Ano I, nº. 3, maio de 1941.
________________. Democracia social e econômica. Cultura Política. Ano I,
nº. 6, agosto de 1941.
________________. Getúlio Vargas e a doutrina brasileira de Governo.
Cultura Política. Ano II, nº. 15, maio de 1942.
________________. O Estado Nacional e a missão de “Cultura Política”.
Cultura Política. Ano II, nº. 18, agosto de 1942.
________________. O regime de 10 de novembro e a ordem política e
constitucional. Cultura Política. Ano II, nº. 21, 10 de novembro de 1942.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
173
ANDRADE, Almir de. As diretrizes da nova política do Brasil. Cultura Política.
Ano III, nº. 23, janeiro de 1943.
________________. O Presidente, o Brasil e a guerra. Cultura Política. Ano
III, nº. 33, outubro de 1943.
________________. A bandeira, a democracia e o Estado Nacional. Cultura
Política. Ano III, nº. 35, dezembro de 1943.
Brasil social, intelectual e artístico. Texto de introdução. Cultura Política. Ano
I, nº. 1, março de 1941.
Brasil social, intelectual e artístico. Texto de introdução. Cultura Política. Ano
I, nº. 9, 10 de novembro de 1941.
CARVALHO, Menelick de. Democracia objetiva e liberalismo romântico.
Cultura Política. Ano II, nº. 16, junho de 1942.
CASASSANTA, Mario. Executivo forte, tendência nacional. Cultura Política.
Ano I, nº. 7, setembro de 1941.
COSTA, Castro. Conceito de democracia no Estado Nacional. Cultura
Política. Ano III, nº. 32, setembro de 1943.
COSTA, Odorico. A dissolução dos partidos políticos brasileiros. Cultura
Política. Ano III, nº. 34, novembro de 1943.
DANTAS, Mercedes. As idéias democráticas e o artificialismo constitucional
no Império. Cultura Política. Ano IV, nº. 36, janeiro de 1944.
DANTAS, Pedro. Literatura de idéias. Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de
1941.
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O Estado Novo e o homem novo. Cultura
Política. Ano I, nº. 1, março de 1941.
__________________________. O Estado brasileiro e o sentido do
nacionalismo. Cultura Política. Ano II, nº. 13, março de 1942.
__________________________. O conteúdo democrático do Estado
Nacional. Cultura Política. Ano II, nº. 18, agosto de 1942.
__________________________. A pessoa humana no Estado Nacional.
Cultura Política. Ano III, nº. 34, novembro de 1943.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
174
FIGUEIREDO, Paulo Augusto de. O Estado Nacional e a ordem social
futura. Cultura Política. Ano IV, nº. 39, abril de 1944.
FONSECA, Roberto Piragibe da. O nacionalismo democrático do Estatuto de
1937 e o direito político externo. Cultura Política. Ano I, nº. 9, 10 de
novembro de 1941.
FONTES, Lourival. Democracia, eleição e representação. Cultura Política.
Ano I, nº. 6, agosto de 1941.
FREYRE, Gilberto. A propósito do Presidente. Cultura Política. Ano I, nº. 5,
julho de 1941.
FURTADO, Celso. A feição funcional da democracia moderna. Cultura
Política. Ano IV, nº. 36, janeiro de 1944.
LAGDEN, H. O processo das democracias. Cultura Política. Ano II, nº. 17,
julho de 1942.
MAIA, Ulisses Ramalhete. A situação atual do Estado brasileiro: vantagens
da Constituição de 1937 em relação às anteriores. Cultura Política. Ano I, nº.
1, março de 1941.
MANES, Pedro. A Constituição de 37 e a idéia democrática. Cultura Política.
Ano II, nº. 13, março de 1942.
MARTINS, Cláudio. Orçamento e democracia. Cultura Política. Ano IV, nº.
41, junho de 1944.
MULLER, João Paulo. À margem da democracia brasileira. Cultura Política.
Ano I, nº. 9, 10 de novembro de 1941.
O pensamento político do Presidente através dos estudos de Cultura Política.
Cultura Política. Ano II, nº. 21, 10 de novembro de 1942.
OLIVEIRA, Belfort de. Onde a verdadeira democracia? Cultura Política. Ano
I, nº. 10, dezembro de 1941.
Páginas do passado brasileiro. Texto de abertura. Cultura Política. Ano I, nº.
1, março de 1941.
PERES, Leopoldo. Concepção brasileira de democracia. Cultura Política.
Ano IV, nº. 38, março de 1944.
RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste. Cultura Política. Ano
I, nº. 2, abril de 1941.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
175
RICARDO, Cassiano. O Estado Novo e seu sentido bandeirante. Cultura
Política. Ano I, nº. 1, março de 1941.
RODRIGUES, Lisias A. Isolacionismo e defensiva na democracia. Cultura
Política. Ano II, nº. 15, maio de 1942.
TEIXEIRA, Aloísio Maria. A Constituição de 10 de novembro de 1937:
comentário ao artigo 1º. Cultura Política. Ano I, nº. 1, março de 1941.
UCHOA, Severino. A democracia social brasileira. Cultura Política. Ano IV,
nº. 36, janeiro de 1944.
VARGAS, Getúlio. A democracia brasileira diante da América e do mundo.
Cultura Política. Ano I, nº. 6, agosto de 1941.
______________. Discurso de Pacaembu. Cultura Política. Ano IV, nº. 40,
maio de 1944.
VEIGA, A. César. A democracia e o Estado Nacional. Cultura Política. Ano III,
nº. 34, novembro de 1943.
Obras consultadas
ANTELO, Raúl. Literatura em revista. São Paulo: Editora Ática, 1984.
BASTOS, Elide Rugai. “Paulo Augusto Figueiredo e o pensamento autoritário
no Brasil”. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis.
Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens
de cultura na sociedade contemporânea. 2ª. reimpressão. São Paulo: Editora
UNESP, 1997.
BOMENY, Helena (Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
BORGES, Jorge Luis. El libro de los Seres Imaginários. Buenos Aires:
Emecé Editores, 2005.
CANDIDO, Antonio. Prefácio a “Intelectuais e classe dirigente no Brasil
(1920-45)”. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
176
CANDIDO, Antonio. “A Revolução de 1930 e a cultura”. In: CANDIDO,
Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 3ª. ed. São Paulo: Editora
Ática, 2003.
CAPELATO, Maria Helena. “Propaganda política e controle dos meios de
comunicação”. In: PANDOLFI, Dulce Chaves (Org.). Repensando o Estado
Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
CARROLL, Lewis. “Através do espelho e o que Alice encontrou lá”. In:
CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2002.
CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana. Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, vol. 4, nº. 7, 1991.
CHOMSKY, Noam. Distorted morality: America´s war on terror? Conferência
proferida na JFK School of Government da Harvard University em fevereiro
de 2002. Disponível em DVD.
CODATO, Adriano Nervo; GUANDALINI Jr., Walter. Os autores e suas
idéias: um estudo sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado
Novo. Estudos Históricos, nº. 32, 2003, pp. 145-164.
COSTA LIMA, Luiz. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de
Janeiro: Rocco, 1989.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO PÓS-1930. Ed.
revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora FGV: CPDOC, 2001.
FAUSTO, Boris. “O Estado Novo no contexto internacional”. In: PANDOLFI,
Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1999.
FIGUEIREDO, Marcus. Cultura Política: revista teórica do Estado Novo.
Dados, nº. 4, novembro de 1968, pp. 221-246.
GOMES, Ângela de Castro. “O redescobrimento do Brasil”. In: OLIVEIRA,
Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado
Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
_______________________. História e historiadores. 2ª. ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 1999.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
177
GOMES, Ângela de Castro. “O redescobrimento do Brasil”. In: GOMES,
Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2005.
_______________________. “Cultura política e cultura histórica no Estado
Novo. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.).
Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
GONÇALVES, Márcia de Almeida. Em terreno movediço. Biografia e história
na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Tese de Doutorado em História.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 2003.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição comemorativa 70
anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
JASMIN, Marcelo Gantus; FERES Jr., João (Orgs.). História dos conceitos:
debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Edições Loyola;
IUPERJ, 2006.
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e
práticos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, nº. 10, 1992.
___________________. “Some reflections on the temporal structure of
conceptual change”. In: MELCHING, W.; VELENA, W. (Eds.). Main trends in
cultural history: ten essays. Amsterdam: Rodopi, 1994.
___________________. “Social history and conceptual history”. In:
KOSELLECK, R. The practice of conceptual history: timing history, spacing
concepts. Stanford: Stanford University Press, 2002.
___________________. “História dos conceitos e história social”. In:
KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
___________________. “Modernidade: sobre a semântica dos conceitos de
movimento na modernidade”. In: KOSELLECK, R. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto:
Ed. PUC-Rio, 2006.
___________________. “Terror e sonho: anotações metodológicas para as
experiências do tempo no Terceiro Reich”. In: KOSELLECK, R. Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
178
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência e horizonte de expectativa”.
In: KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
LAMOUNIER, Bolívar. “A inteligência brasileira na década de 1930 à luz da
perspectiva de 1980”. In: A revolução de 30: seminário realizado pelo Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
(CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, setembro de 1980.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, c1983.
_________________. Da independência a Lula: dois séculos de política
brasileira. São Paulo: Augurin Editora, 2005.
MICELI, Sérgio. “Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)”. In:
MICELI, S. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil
durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1991.
NOVAES, Adauto. “Intelectuais em tempos de incerteza”. In: NOVAES,
Adauto (Org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “Apresentação”. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi;
VELLOSO, Mônica P.; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e
poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
PARSI, Vittorio Emanuele. “Prefazione”. In: CONZE, W.; KOSELLECK, R.;
MAIER, H.; MEIER, Ch.; REIMANN, H.L. Democrazia. Veneza: Marsilio
Editori, 1993.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a
nação. São Paulo: Editora Ática, 1990.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio
de Janeiro, vol. 2, nº. 3, 1989.
RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste.
14ª. ed. São Paulo: Record, 1984.
RICHTER, Melvin. The history of political and social concepts: a critical
introduction. New York: Oxford University Press, 1995.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
179
RODRIGUEZ, Ricardo Vélez. “Introdução”. In: Cultura Política e o
pensamento autoritário. Biblioteca do Pensamento Político Republicano, 21.
Brasília: Câmara dos Deputados: Centro de Documentação e Informação:
Coordenação de Publicações, 1983.
ROLLAND, Denis. “O historiador, o Estado e a fábrica dos intelectuais”. In:
RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis. Intelectuais e
Estado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
SAID, Edward W. “Representações do intelectual. In: SAID, E. W.
Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
________________. “Falar a verdade ao poder”. In: SAID, E. W.
Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
________________. Humanismo e crítica democrática. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SEBASTIAN, Javiér Fernández; FUENTES, Juan Francisco. Conceptual
history, memory and identity: an interview with Reinhart Koselleck.
Contributions to the History of Concepts, vol. 2, nº. 1, março de 2006.
________________________. “Entrevista com Reinhart Koselleck”. In:
JASMIN, Marcelo Gantus; FERES Jr., João (Orgs.). História dos conceitos:
debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Edições Loyola;
IUPERJ, 2006.
SKINNER, Quentin. Visions of politics. Volume I: Regarding method. New
York: Cambridge University Press, 2002.
TOCQUEVILLE, Alexis de. Viagens à Inglaterra e à Irlanda. São Paulo:
Imaginário: Primeira Linha, 2000.
TORRES, Alberto. A organização nacional. 3ª. ed. Brasiliana, v. 17. São
Paulo: Editora Nacional, 1978.
TRIBE, Keith. “Translator´s introduction”. In: KOSELLECK, Reinhart. Futures
Past. On the semantics of historical time. Cambridge, Massachusetts: The
MIT Press, 1985.
TULLY, James (Ed.). Meaning and context: Quentin Skinner and his critics.
New Jersey: Princeton University Press, 1989.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
180
VELLOSO, Mônica Pimenta. “Cultura e poder político: uma configuração do
campo intelectual”. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica P.;
GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1982.
VELLOSO, Mônica Pimenta. A literatura como espelho da nação. Estudos
Históricos, nº. 2, 1988.
VIANNA, Luiz Werneck. “O Estado Novo do PT”. Julho de 2007. Disponível
no site http://www.acessa.com/gramsci/
. Acesso em 15 de julho de 2007.
VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª. ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1939.
______________. Evolução do povo brasileiro. 4ª. ed. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1956.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
181
7.
Apêndice
ARTIGOS PUBLICADOS EM CULTURA POLÍTICA QUE CONTÊM NO TÍTULO
A EXPRESSÃO "DEMOCRACIA" OU TERMO RELACIONADO
Autor Título do Artigo Ano e
n°. da
Revista
Data Seção
AMARAL
Azevedo
Realismo político e
democracia
Ano I,
n°. 1
Março
1941
O pensamento
político do
Chefe do
Governo
ANDRADE,
Almir de
Democracia social e
econômica
Ano I,
n°. 6
Agosto
1941
O pensamento
político do
Chefe do
Governo
ANDRADE,
Almir de
A bandeira, a
democracia e o
Estado Nacional
Ano III,
n°. 35
Dezembro
1943
Editorial de
abertura
CARVALHO,
Menelick de
Democracia objetiva
e liberalismo
romântico
Ano II,
n°. 16
Junho
1942
Problemas
políticos e
sociais
COSTA, Castro Conceito de
democracia no Estado
Nacional
Ano III,
n°. 32
Setembro
1943
Doutrina
política
DANTAS,
Mercedes
As idéias
democráticas e o
artificialismo
constitucional no
Império
Ano IV,
n°. 36
Janeiro
1944
Idéias políticas
FIGUEIREDO,
Paulo Augusto de
O conteúdo
democrático do
Estado Nacional
Ano II,
n°. 18
Agosto
1942
Problemas
políticos e
sociais
FONSECA,
Roberto Piragibe
da
O nacionalismo
democrático do
Estatuto de 1937 e o
direito político
externo
Ano I,
n°. 9
Novembro
1941
A estrutura
jurídico-política
do Brasil
FONTES,
Lourival
Democracia, eleição e
representação
Ano I,
n°. 6
Agosto
1941
Editorial de
abertura
FURTADO,
Celso
A feição funcional da
democracia moderna
Ano IV,
n°. 36
Janeiro
1944
Idéias políticas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
182
Autor Título do Artigo Ano e
n°. da
Revista
Data Seção
LAGDEN, H. O processo das
democracias
Ano II,
n°. 17
Julho 1942 Problemas
políticos e
sociais
MANES, Pedro A Constituição de 37
e a idéia democrática
Ano II,
n°. 13
Março
1942
A estrutura
jurídico-política
do Brasil
MARTINS,
Cláudio
Orçamento e
democracia
Ano IV,
n°. 41
Junho
1944
Finanças
MULLER, João
Paulo
À margem da
democracia brasileira
Ano I,
n°. 9
Novembro
1941
Problemas
políticos e
sociais
OLIVEIRA,
Belfort de
Onde a verdadeira
democracia?
Ano I,
n°. 10
Dezembro
1941
O pensamento
político do
Chefe do
Governo
PERES,
Leopoldo
Concepção brasileira
de democracia
Ano IV,
n°. 38
Março
1944
Doutrina
política
RODRIGUES,
Lisias A.
Isolacionismo e
defensiva na
democracia
Ano II,
n°. 15
Maio 1942 Política militar
e defesa
nacional
UCHOA,
Severino
A democracia social
brasileira
Ano IV,
n°. 36
Janeiro
1944
Idéias políticas
VARGAS,
Getúlio
A democracia
brasileira diante da
América e do mundo
Ano I,
n°. 6
Agosto
1941
O pensamento
político do
Chefe do
Governo
VEIGA, A. César A democracia e o
Estado Nacional
Ano III,
n°. 34
Novembro
1943
O Estado
Nacional, seu
espírito e
realizações
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510846/CA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo