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Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Araraquara
Faculdade de Ciências e Letras
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Doutorado
A Política Externa Brasileira, o Itamaraty e o Mercosul
Marcelo Passini Mariano
Araraquara SP
2007
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Este trabalho está licenciado sob uma
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MARIANO, Marcelo Passini
A Política Externa Brasileira, o Itamaraty e o Mercosul. Araraquara, 2007. p. 215
Tese de Doutorado Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
1.Política Externa 2.Política Exterior do Brasil 3.Mercosul 4.Processos de
Integração Regional 5.Itamaraty 6.Ministério das Relações Exteriores
3
Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Araraquara
Faculdade de Ciências e Letras
Curso de Doutorado em Sociologia
Marcelo Passini Mariano
A Política Externa Brasileira, o Itamaraty e o Mercosul
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista, Campus de Araraquara, sob a orientação
do Prof. Dr. Enrique Amayo Zevallos e co-
orientação do Prof. Dr. Tullo Vigevani (Unesp
Campus Marília).
Este exemplar corresponde à redação final da tese defendida e aprovada pela Comissão
Julgadora em 05/06/2007
Orientador: Prof. Dr. Enrique Amayo Zevallos
Co-orientador: Prof. Dr. Tullo Vigevani
Comissão Julgadora:
Prof. Dr. Enrique Amayo Zevallos
Prof. Dr. Marco Aurélio Nogueira
Prof. Dr. Rafael Antonio Duarte Villa
Prof. Dr. Luis Fernando Ayerbe
Prof. Dr. André Roberto Martin
4
Dedico esta tese com todo
carinho e amor à minha
esposa,
Karina,
e às minhas filhas,
Marina e Isabela.
5
Agradecimentos
Agradeço, em primeiro lugar, ao Prof. Dr. Enrique Amayo Zevallos por aceitar ser
meu orientador nesta tese trabalhando em conjunto com o Prof. Dr. Tullo Vigevani, co-
orientador desta pesquisa.
À minha família, em especial à Karina, que tem sido uma grande companheira nos
melhores momentos e também nos mais difíceis, especialmente naqueles em que o trabalho
realizado para esta pesquisa significou uma maior ausência da vida familiar. Agradeço por ter
dado todo o amor e atenção às nossas filhas nos momentos em que a minha concentração na
tese estava em alta e a minha paciência em baixa. Agradeço por sua ajuda, incentivo e
carinho.
Às minhas filhas, Marina e Isabela, por estarem sempre pertinho, trazendo uma
imensa alegria e dando ânimo para terminar o trabalho.
Aos meus pais, Gonçalo e Élide, por tudo o que fizeram por mim, pelos
ensinamentos, pelo apoio e pela compreensão em todos esses anos. Agradeço também às
minhas irmãs, Teresa e Débora, à Giovana, à Cristina, que de uma forma ou de outra,
acabaram influenciando nesta realização.
Aos pesquisadores do CEDEC com quem convivo, especialmente ao Prof. Dr. Tullo
Vigevani e o seu constante estímulo à pesquisa. Grande parte do conteúdo deste texto tem
relação direta com as discussões e atividades das pesquisas realizadas sob sua coordenação.
Agradeço à oportunidade de debater e informalmente trocar idéias com os pesquisadores
Marcelo Fernandes de Oliveira, Maria Inês Barreto, Regiane N. Bressan, Armando Gallo
Yahn, Gabriel Cepaluni, Gustavo Faverão. Faço um agradecimento especial ao Haroldo
Ramanzini Jr. por seus comentários, críticas, interesse e, principalmente, pela incrível
capacidade para fazer as perguntas certas.
6
Resumo
O objetivo desta pesquisa foi verificar a forma como o Mercosul está inserido no
conjunto da política externa brasileira e como esta influenciou o desenvolvimento do bloco. A
partir disso, estabelecemos quais seriam as principais relações entre as posições do governo
brasileiro e as limitações existentes na arquitetura institucional da integração. O resultado
deste esforço foi a delimitação do que poderíamos chamar de um modelo de Mercosul
presente na política externa brasileira, que em geral não privilegia o aprofundamento da
integração, mas a sua expansão para o restante da América do Sul.
A análise empírica da postura brasileira no processo negociador do Mercosul
demonstrou a existência de uma estratégia diplomática de gestão da integração que se limitou,
em grande parte, à tentativa de garantir uma coesão mínima necessária, e em grande medida
subordinada, ao objetivo brasileiro de garantir melhores condições para o enfrentamento das
negociações dos grandes acordos regionais, Alca e Mercosul-União Européia, e no âmbito do
comércio multilateral.
Verificou-se que os elementos formadores da relativa linha de continuidade da
política externa brasileira - autonomia e desenvolvimento-, são válidos também para o
entendimento da postura do Brasil no Mercosul, observando que estes se concretizam através
da defesa do que chamamos de "princípio da intergovernamentalidade" e da promoção da
expansão do bloco.
A tese demarca a intensificação das pressões sobre as condições tradicionais de
formulação e implementação das decisões no campo da política externa, com especial atenção
aos assuntos diretamente ligados à gestão brasileira do Mercosul. Esta análise permite
compreender melhor o aumento da tensão sobre as condições que garantem uma situação de
continuidade e previsibilidade da atuação externa brasileira.
Como conclusão final verificou-se que o próprio desenvolvimento do Mercosul,
juntamente com outros fatores, contribui para o aumento dessa tensão, elevando a
probabilidade de uma ruptura nesta linha de relativa continuidade da política externa
brasileira.
7
Abstract
The aim of this research was to verify the insertion of the Mercosur in the Brazilian
foreign policy and how it influenced the development of this block. We establish the main
relations between the existing proposals of the Brazilian government model of integration and
the limitations of the institutions of the real process. The result of this effort is a drawing of
Brazilian model to Mercosur in his foreign policy. In this approach we noticed that the goal of
a deepening integration is not reached, but its expansion for others South American countries.
The empirical analysis about the Brazilian position in the Mercosur shows a
diplomatic strategy to manage integration inside a logic able to guarantee the cohesion, and in
great measured subordinated to a Brazilian objective of obtain better bargain conditions at
other negotiations about regional agreements, as Alca and Mercosul-European Union, and
also in the scope of the multilateral level.
We verified that the basic elements of the continuity in the Brazilian foreign policy -
autonomy and development -, to understand the Brazilian position in the Mercosul are valid,
and they are part of the “intergovernmental principle”.
This research shows the rising of demands to change the traditional conditions of
making decisions in the Brazilian foreign policy, specially in the Mercosul case. The analysis
allows to understand the increase of the tension on the conditions that guarantee continuity
and previsibility of the Brazilian external performance. Finally, a breakdown in this continuity
it's possible because of the Mercosul evolution allied with other factors.
8
Sumário
Agradecimentos.......................................................................................................................... 5
Resumo ....................................................................................................................................... 6
Abstract....................................................................................................................................... 7
Sumário....................................................................................................................................... 8
Introdução e Hipóteses ............................................................................................................ 10
1. A Diplomacia e a Continuidade na Política Externa Brasileira .......................................... 15
1.1. Princípios, Valores e Tradições .................................................................................... 15
1.2. Singularidade ................................................................................................................ 21
1.2.1. Ausência de canais institucionalizados de participação e controle da política
externa brasileira............................................................................................................. 28
1.2.2. A relativa autonomia do Itamaraty e a autorização presidencial ........................ 30
1.2.3. Cultura política e legitimação do corpo diplomático ........................................... 30
2. Autonomia e Desenvolvimento na Política Externa Brasileira ........................................... 33
2.1. O Significado dos Paradigmas..................................................................................... 33
2.2. Americanismo .............................................................................................................. 34
2.3. Universalismo ou Globalismo .....................................................................................36
2.4. Autonomia ................................................................................................................... 38
2.6. A Autonomia através do tempo ................................................................................... 43
2.6.1. Autonomia na Dependência ................................................................................. 43
2.6.2. Autonomia pelo Distanciamento .......................................................................... 45
2.6.3. Autonomia pela Participação ou Integração ........................................................ 46
3. As Pressões Sobre a Diplomacia no Pós-Guerra Fria ......................................................... 57
3.1. A Democratização ....................................................................................................... 58
3.2. A liberalização, a abertura da economia e a internacionalização brasileira .................62
3.3. Conseqüências do aumento da pressão ........................................................................ 66
4. Processos de Integração Regional e Política Externa .......................................................... 70
4.1. Modelo analítico mínimo ............................................................................................. 71
4.1.1. Pressupostos ......................................................................................................... 72
4.1.2. Conseqüências da Integração ............................................................................... 78
4.1.3. Principais variáveis ............................................................................................. 82
5. As posições brasileiras no Mercosul: Período de Transição ............................................... 89
9
5.1. Tratado de Integração e Cooperação de 1988 ............................................................. 92
5.2. A política externa brasileira e o novo contexto ............................................................93
5.2.1. O Período Collor .................................................................................................. 95
5.2.2. O governo Itamar ............................................................................................... 107
6. As Posições Brasileiras no Mercosul: Pós-Ouro Preto....................................................... 117
6.1. Primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso: 1995 a 1998 .................................. 119
6.2. O Segundo Governo Fernando Henrique Cardoso: 1999-2002 ................................. 126
6.3. O Período Lula da Silva.............................................................................................. 146
7. Considerações Finais e Comprovação de Hipóteses.......................................................... 171
7.1. O Modelo de Mercosul contido na Política Externa Brasileira ................................. 171
7.1.1. Introdução ao Modelo Brasileiro ....................................................................... 172
7.1.2. Centralidade dos Governos ................................................................................ 173
7.1.3. A Vontade Política Concentrada nos Presidentes .............................................. 173
7.1.4. A Defesa da Estabilidade Democrática na Região ............................................. 174
7.1.5. A Articulação Diplomática Brasil - Argentina .................................................. 175
7.1.6. A Diplomacia como Formuladora ..................................................................... 176
7.1.7. Estrutura Institucional Predominantemente Intergovernamental ....................... 178
7.1.8. Inexistência de um Paymaster ............................................................................ 181
7.1.9. A União Aduaneira como Limite ....................................................................... 183
7.1.10. O Regionalismo Aberto ................................................................................... 185
7.1.11. A Estratégia de Integração Direcionada para os Assuntos Menos Polêmicos . 186
7.1.12. A Ausência de Mecanismos de Redução de Impacto ...................................... 187
7.1.13. A Participação e Inclusão Limitada de Novos Atores Domésticos .................188
7.1.14. Solução de Conflitos pela Via Diplomática ..................................................... 189
7.1.15. Modelo Voltado para Expansão e Não para o Aprofundamento ..................... 190
7.2. Comprovação de Hipóteses ....................................................................................... 194
7.2.1. Hipótese 1 .......................................................................................................... 194
7.2.2. Hipótese 2 .......................................................................................................... 201
7.2.3. Hipótese 3 .......................................................................................................... 203
Referências Bibliográficas...................................................................................................... 205
10
Introdução e Hipóteses
Esta pesquisa parte do pressuposto de que o Brasil é o principal membro do
Mercosul. Sendo assim, este país deveria ter um modelo de integração que fundamentaria
suas posições nas negociações do bloco e que estaria vinculado à sua política externa como
um todo. Portanto, o objetivo central desta pesquisa foi verificar a forma como o Mercosul
está inserido no conjunto da política externa brasileira e como esta influenciou o
desenvolvimento do bloco.
No entanto, reconhecemos que a política externa brasileira possui um padrão de
comportamento específico que marca a singularidade de sua formulação e implementação. Há
uma relativa linha de continuidade que permite, com razoável probabilidade de acerto,
identificar o leque de opções de seus formuladores. Essa questão já foi amplamente trabalhada
e existe uma extensa bibliografia sobre o tema, da qual nos apropriamos neste trabalho e
assumimos alguns de seus pressupostos e conclusões.
Como resultado disto utilizamos dois conceitos que aparecem nessa bibliografia
como as questões centrais que permeiam o desenvolvimento da política externa brasileira:
autonomia e desenvolvimento. Estes são princípios e ao mesmo tempo objetivos que ajudam
na consolidação de um padrão do comportamento externo brasileiro.
Assumimos neste texto a existência desse padrão de comportamento externo, no
entanto, é importante ressaltar que, apesar dessa interpretação ter um bom respaldo na
bibliografia sobre política exterior do Brasil, a continuidade na condução das ações externas
pode resultar muito mais da organização diplomática em si - enquanto corpo político da
estrutura estatal com grande capacidade de reprodução, através dos procedimentos já
institucionalizados de transferência de valores, formação e arregimentação - do que da
constante vigilância dos princípios defendidos pelos tradicionais formuladores
1
.
Tendo exposto estas questões sobre a continuidade, nos Capítulos 1 e 2, apontamos o
fato de que ela foi possível devido a certo isolamento, ou insulamento, do Itamaraty no trato
da política externa. Contudo, esta pesquisa demonstra que essa relativa autonomia da
diplomacia estaria se esgotando devido às pressões cada vez mais intensas por parte de outros
atores governamentais e não-governamentais interessados em influenciar o processo decisório
1 Para uma interessante análise sobre essa questão ver: LIMA, Maria Regina Soares de. “Aspiração
Internacional e Política Externa”. In: Revista Brasileira de Comércio Exterior (RBCE-LATN), Rio de
Janeiro, no. 82, janeiro-março de 2005.
11
da política externa.
Verificamos também que o Mercosul é um elemento importante para o aumento
dessas pressões, pois os processos de integração regional apresentam uma lógica de
funcionamento que extrapola o campo de atuação da política externa. Podemos pensar neles
como fazendo parte inicialmente desse âmbito externo, sendo tratados quase que
exclusivamente pela ação diplomática. Mas em pouco tempo seu funcionamento apresenta
implicações e efeitos importantes sobre a esfera doméstica dos países-membros, estimulando
os grupos organizados da sociedade e outros representantes governamentais a pressionarem
pela criação de espaços de participação, como forma de influenciar o andamento da
integração.
Ao longo do terceiro capítulo, discutimos como essas pressões têm aumentado,
criando fortes tensões nos mecanismos tradicionais de formulação da política exterior do
Brasil, resultando na intensificação da tensão sobre os elementos formadores da tradição de
continuidade, assim como os princípios que a orientam.
Em seguida, no quarto capítulo, demonstramos como essas pressões estão vinculadas
ao que denominamos nesta pesquisa de necessidades próprias dos processos de integração
regional. Partimos do pressuposto de que o funcionamento destes leva naturalmente a um
aumento da interdependência entre os países em diversos níveis: econômico, político,
cultural etc. o que envolve novas demandas, muitas delas voltadas para a transferências de
funções do plano nacional para o nível regional.
Essa transferência se realizaria por meio de uma maior institucionalização do
processo de integração, podendo caminhar inclusive para uma lógica supranacional. De
qualquer forma, independentemente da característica institucional predominante na integração
intergovernamental ou supranacional concordamos com a idéia de que se intensifica a
necessidade de estabelecer mecanismos formais para expressão dessas demandas. Sejam eles
órgãos de participação direta ou para a solução de controvérsias, que são muito comuns nestes
processos.
As análises sobre o Mercosul, demonstram em geral, que a crise vivida por esse
bloco desde 1999 não é decorrente somente dos problemas comerciais, embora estes sejam a
expressão mais evidente dela, mas é uma crise do próprio modelo de integração adotado.
Como dissemos, o Brasil é o principal parceiro deste bloco e, portanto, podemos
assumir que a sua percepção quanto ao modo como o Mercosul deveria se desenvolver foi
fundamental. A partir disso, estabelecemos quais seriam as principais relações entre as
12
posições do governo brasileiro e as limitações existentes na arquitetura institucional da
integração. O resultado deste esforço foi a delimitação do que poderíamos chamar de um
modelo de Mercosul presente na política externa brasileira, que em geral não privilegia o
aprofundamento da integração, mas a sua expansão para o restante da América do Sul.
A partir destes pressupostos estabelecemos três hipóteses que nortearam o
andamento da pesquisa. A primeira, e principal, é que se existe um padrão de comportamento
da política externa brasileira, baseado na busca da autonomia enquanto princípio fundamental
e do desenvolvimento enquanto objetivo central, e se existe um padrão de comportamento
governamental brasileiro no Mercosul, baseado na defesa constante da
intergovernamentalidade enquanto princípio fundamental e da expansão enquanto objetivo
central; então a autonomia está para a intergovernamentalidade assim como o
desenvolvimento está para a expansão, ou seja, intergovernamentalidade e a expansão
estruturam o modelo brasileiro de Mercosul que tenta trazer para a esfera das negociações da
integração a característica de continuidade presente na política externa brasileira.
A verificação desta hipótese foi realizada nos capítulos 5 e 6, nos quais analisamos o
desenvolvimento do Mercosul a partir da postura do governo brasileiro, identificando os
elementos centrais de seu modelo de integração exposto com mais clareza no último
capítulo deste trabalho.
A análise empírica da postura brasileira no processo negociador do Mercosul feita
nos capítulo 5 e 6 verificou se houve de fato uma estratégia diplomática de gestão da
integração, e em caso afirmativo, qual foi. De qualquer forma, buscamos evidências que
demonstrassem que os elementos formadores da relativa linha de continuidade da política
externa brasileira seriam válidos também para o entendimento da postura do Brasil no
Mercosul.
A partir dessa primeira hipótese que vincula o padrão de comportamento da política
externa ao modelo de integração do governo brasileiro, elaboramos uma segunda suposição
que só poderia acontecer caso a primeira fosse comprovada: se os processos de integração
regional pressupõem a possibilidade de aprofundamento, então o aprofundamento no modelo
brasileiro seria limitado pelas possibilidades colocadas pelas instituições intergovernamentais
e pela tentativa constante de expandir o processo, no sentido de aumentar o número de
participantes.
Neste caso, a atual crise do Mercosul indicaria que o processo estaria próximo desse
limite e que, portanto, o modelo proposto pelo governo brasileiro deveria de alguma forma ser
13
repensado para permitir o aprofundamento ou a expansão do mesmo.
Essa hipótese leva a uma terceira: se o aprofundamento da integração pressupõe a
superação do modelo atual de integração e a se a superação do modelo atual implica na
superação do modelo brasileiro, então um Mercosul profundo significaria uma ruptura na
linha de continuidade característica da política externa brasileira, o que até o momento não
aconteceu.
Esta última suposição explicaria a intensificação das pressões sobre as condições
tradicionais de formulação e implementação das decisões no campo da política externa, com
especial atenção aos assuntos diretamente ligados à gestão brasileira do Mercosul.
Por último, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que além da revisão
bibliográfica sobre o tema, buscamos implementar algumas técnicas de pesquisa apoiadas em
um uso mais intenso das inovações das tecnologias de informação, principalmente a partir de
programas e soluções de gerenciamento eletrônico de documentos, que estão sendo
desenvolvidas no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). Essas tecnologias
nos permitiram formar, organizar e indexar bases de dados específicas para o estudo da
política externa e, particularmente, para os estudos sobre o Mercosul. Essas bases são
formadas por hemerotecas digitalizadas, banco de normativas do Mercosul, coleções de
clippings específicos sobre o assunto, dados baixados da internet, documentos e textos
diversos, entre outros
2
. Grande parte da pesquisa histórica sobre a gestão governamental
brasileira dos assuntos do Mercosul foi realizada através da procura nestas bases de dados,
através de software de indexação e pesquisa por cruzamento de termos. Assim, procuramos
dar um tratamento cronológico aos acontecimentos, que se verifica nos capítulos 5 e 6,
mesmo partindo de um método de busca que não tem relação direta com a ordem dos fatos,
pois privilegia a procura de variáveis pré-determinadas pela metodologia da pesquisa, como
exposto no capítulo 4, o que nos permitiu procurar determinados assuntos específicos,
permitindo separar primeiramente as informações e, assim feito, partirmos para a estruturação
dos argumentos e fatos. Para esta última tarefa utilizamos um software de criação de mapas
mentais, onde uma estrutura de árvore hierárquica e flexível permitiu construir a totalidade do
2 Algumas das principais bases de dados utilizadas foram: Normativas Mercosul; hemeroteca Integração
Regional 1986-2004; hemeroteca Política Exterior Econômica; notícias coletadas a partir das bases de
discursos e imprensa do Ministério de Relações Exteriores disponível em seu site na internet; notícias coletas
a partir dos serviços de clipping da Câmara Federal disponível em seu site na internet. Algumas destas bases
estão disponíveis no site do Consórcio de Informações Sociais (CIS) através do www.cis.org.br, e outras
estão sendo preparadas e organizadas para a disponibilização futura.
14
que seria a pesquisa. A parte escrita foi realizada neste mesmo programa, sendo
posteriormente transferido para um editor de textos a fim de fazer a formatação e os últimos
ajustes, até se transformar no texto final. Mesmo durante essa última fase, a checagem de
determinados dados através do mecanismo de busca eletrônica novamente auxiliou na
confirmação das conclusões.
Por fim, é importante reforçar que o material colhido mostrou-se extremamente
frutífero e suficiente, principalmente devido à utilização da indexação eletrônica sobre as
bases selecionadas, que dispunham de uma quantidade muito grande de informação. Sendo
assim, optamos por não realizar entrevistas e dedicar o esforço a essa forma de pesquisa.
Ressaltamos, contudo, que esta análise fundamentou-se em boa medida nas falas, textos,
documentos, declarações públicas de diplomatas e representantes governamentais,
especialmente os presidentes, obtidas a partir do levantamento empírico e confrontadas com a
análise da bibliografia especializada e dos fatos noticiados.
15
1. A Diplomacia e a Continuidade na Política
Externa Brasileira
1.1. Princípios, Valores e Tradições
Analisando o desenvolvimento histórico da política externa do Brasil, a partir da
literatura especializada, identificamos a existência de elementos norteadores das decisões
tomadas nesse campo. Amado Cervo (1992), por exemplo, os descreve como tradições que
acompanham a história da política externa brasileira, capazes de sobreviver às mudanças de
governo e às próprias alterações organizacionais do Estado, sendo representadas pela
orientação pacifista, a juridicista e a pragmática (CERVO, 1994)
3
.
Este autor entende que ao menos três tradições se apresentam como constantes, mas
com importância variada, dependendo da situação doméstica e das modificações no contexto
internacional. Em determinados momentos históricos, uma tradição pode impor-se sobre
outras, em razão de fatores diversos como os constrangimentos da evolução do sistema
internacional ou o jogo de forças políticas que compõem o centro decisório, entre outros.
A idéia de que existem princípios que podem ser identificados como elementos
formadores do comportamento externo brasileiro não está presente apenas na bibliografia
especializada (BUENO e CERVO, 1992 e 1986; LAFER, 2004; PINHEIRO, 2004;
OLIVEIRA, 2005-a), mas principalmente nos discursos e na forma como a diplomacia se
expressa a respeito das alternativas possíveis e das escolhas realizadas em nome do interesse
nacional.
“(...) como o Brasil deseja relacionar-se com a comunidade
internacional? A resposta básica pode ser encontrada em princípios que
tradicionalmente têm orientado a nossa política externa, como os da não
3 O Pacifismo refere-se à posição defendida pela diplomacia brasileira de buscar solucionar os conflitos por
meio de negociações. Isto é, a política externa brasileira tradicionalmente resiste à idéia de usar a força para
resolver as controvérsias no plano internacional. Já o juridicismo relaciona-se com a postura de respeito aos
tratados, acordos e convenções internacionais, aceitando-os enquanto instrumentos ordenadores da interação
entre os atores estatais e do próprio sistema de Estados. Finalmente, temos o pragmatismo, também
entendido como realismo na política externa brasileira. Essa tradição baseia-se na análise sobre o sistema
internacional, a posição do Brasil neste sistema, as relações com as potências e a capacidade de defesa dos
interesses nacionais para, a partir destes condicionantes, orientar a ação externa. Essas tradições
fundamentam-se no princípio da não confrontação, que se traduz no discurso e na ação marcada pelo respeito
da auto-determinação dos povos e na defesa da política de não intervenção. Podemos verificar que tanto o
primeiro elemento quanto o segundo estão intimamente interligados (CERVO, 1994).
16
intervenção, respeito à autodeterminação, não ingerência em assuntos
internos, e solução pacífica de controvérsias. Ao invocar tais princípios,
não quero dar a impressão de que os mesmos sejam hoje utilizados da
mesma forma como no passado Ao contrário, embora a essência esteja
até hoje preservada, sua aplicação tem sido atualizada, como ocorreu,
por exemplo, no campo dos direitos humanos, da democracia e do meio
ambiente (...)” (LAMPREIA, 1998)
4
.
Mesmo quando interpretações acadêmicas buscam localizar paradigmas explicativos
para a forma dominante da política externa de um determinado período histórico, ainda assim
verificamos que esses paradigmas contemplam e validam os princípios norteadores da atuação
internacional do país.
Um exemplo disso é a análise a respeito do paradigma universalista presente na
política externa brasileira feita por Lessa para a qual o "(...) universalismo que, juntamente
com o pacifismo, o juridicismo e o realismo, constituem a moldura conceitual da práxis
diplomática brasileira (...)” (1998: 29).
Também é recorrente no discurso diplomático a idéia dos valores que balizam a
atuação internacional brasileira e que, por sua vez, justificam a defesa constante dos
princípios que caracterizariam a sua singularidade. O trecho a seguir escrito pelo Embaixador
Luiz Felipe de Seixas Corrêa é um dos muitos outros exemplos desse fato:
"(...) Dessa trindade de valores básicos, unidade, grandeza e visão de
futuro, decorrem outros que, igualmente informados pela experiência
histórica do Brasil caracterizam a sua projeção no mundo: o
nacionalismo, a busca da igualdade soberana entre as nações, e o
pragmatismo (...)” (CORRÊA, 2000: 27).
Ressaltamos que o reconhecimento da existência destes elementos norteadores é
acompanhado da idéia de uma continuidade quase inerente ao comportamento brasileiro na
arena internacional. O atributo "tradicional" reforça o reconhecimento de que a ação
diplomática brasileira é singular e, ao mesmo tempo, dotada de um padrão geral capaz de se
ajustar às circunstâncias dominantes de cada época. “Faz parte de nossa melhor tradição
diplomática, desde a Independência, dar sentido realista à nossa política externa, recusando
iniciativas de fácil fosforescência, e evitando guinadas bruscas de doutrina e de
4 Exposição do Embaixador Luiz Felipe Lampreia, então Ministro de Estado das Relações Exteriores, no X
Fórum Nacional - As Perspectivas da Situação Mundial e a Política Externa do Brasil. 12 de maio de 1998.
17
comportamento
5
(LAMPREIA, 1999).
Essa capacidade de adaptação contribui para a continuidade - que para diversos
autores resulta da conduta adotada pelo corpo diplomático ao orientar-se segundo esses
princípios, tradições e valores (CERVO, 1994; VAZ, 1999; SILVA, 2002; FAVERÃO, 2006)
- e permite uma maior previsibilidade às análises sobre a política externa do Brasil. Isso não
significa uma ausência de mudanças, mas implica em afirmar que estas mudanças são
variações dentro de um determinado espectro de possibilidades.
“O grau de previsibilidade da política exterior do Brasil é dos mais elevados em
termos comparativos. Através do tempo, constitui-se um conjunto de valores e princípios de
conduta externa que perpassou as inflexões e mudanças da política (...)” (CERVO, 1994: 26).
Neste caso, o atributo previsível não é somente uma constatação da bibliografia especializada,
mas é a todo o momento reforçado e reformulado pelo corpo diplomático. Para esta
instituição, a previsibilidade representa
“(...) A credibilidade internacional de um país depende, em grande
medida, de uma atuação externa fundada no respeito a valores e
princípios. A pendularidade, o recurso a decisões de impacto, as
flutuações ideológicas e o oportunismo diplomático tendem a corroer a
confiança junto aos demais países e a minar a credibilidade externa. Um
dos patrimônios do Itamaraty e da diplomacia brasileira é o legado de
uma atuação fundada em valores permanentes, que conferem um
mínimo de regularidade ao comportamento externo do País e, portanto,
à sua própria respeitabilidade como interlocutor de seus parceiros (...)
(BARROS, 1998: 20)
6
.
“(...) A ausência de uma moldura que acomode adequadamente as
tendências do mundo contemporâneo recomenda a adoção pelo Brasil
de uma política externa aberta, flexível às transformações que estamos
vivenciando. Isto sem prejuízo de princípios. A estrita observância de
certos princípios que consideramos básicos confere alto grau de
previsibilidade à diplomacia brasileira e reforça sua credibilidade e
5 Discurso do Embaixador Luiz Felipe Lampreia, Ministro de Estado das Relações Exteriores, por ocasião da
posse do Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, no cargo de Secretário-Geral das Relações Exteriores..
Brasília, 04/01/1999.
6 Embaixador Sebastião do Rego Barros.
18
confiabilidade (...)". (BARBOSA, 1996: 75)
7
.
Desta forma, temos como característica geral da política externa brasileira a
continuidade. Este pressuposto tem importância central em nossa análise, pois ao aceitar este
pressuposto seria possível compreender melhor as possibilidades e limitações do processo de
integração no Mercosul frente à política externa brasileira, tendo em vista que o governo
brasileiro é o principal agente do bloco.
A previsibilidade e a continuidade, juntamente com o reforço dos princípios,
tradições e valores característicos da política externa brasileira, como o pragmatismo,
aumentam a percepção de que se trataria de uma política de Estado e, por isso mesmo, capaz
de desvincular-se das mudanças de governo e de circunstâncias políticas específicas (VAZ,
1999).
A justificativa diplomática deste aspecto busca ressaltar o perigo e as conseqüências
de possíveis escolhas equivocadas, resultantes dessas conjunturas governamentais. Em base a
esta argumentação se reforça, direta e indiretamente, a necessidade de existência, a eficiência
e a manutenção de formuladores capazes de construir uma compreensão da política externa
nacional que transcenda os governos.
“(...) O outro princípio é o da prevalência da visão de futuro sobre o
imediatismo. O Itamaraty procura atuar tendo em vista a perspectiva de
longo prazo, evitando modismos, soluções circunstanciais e
precipitações que desconsideram dificuldades futuras, o grau de
desgaste político e a eventual perda de credibilidade. O anseio mais
imediato é avaliado com base nos seus benefícios e custos no futuro,
não em seus resultados mais visíveis e freqüentemente de apelo mais
fácil (...)” (BARROS, 1998: 19)
8
.
Assumimos neste texto a premissa da existência de uma linha de continuidade na
política externa brasileira, amplamente respaldada na bibliografia. Entretanto, esse
entendimento tem apontado como causa principal a constante vigilância aos princípios
defendidos pelos formuladores tradicionais. A atenção aos princípios e valores seria a
explicação central para a existência de um padrão no comportamento do Estado brasileiro no
plano internacional. É neste ponto que diferimos dessa linha de interpretação e pressupomos
7 Embaixador Rubens Barbosa.
8 Embaixador Sebastião do Rego Barros.
19
que a continuidade na condução das ações externas explica-se mais pela organização
diplomática em si - enquanto corpo político da estrutura estatal com grande capacidade de
auto-reprodução, através dos procedimentos já institucionalizados de transferência de valores,
formação e arregimentação do que pelos princípios apontados anteriormente.
Entendemos ser possível e necessário questionar as reais causas dessa continuidade,
sem duvidar da existência desta margem mais ou menos delimitada de atuação externa.
Segundo Maria Regina S. de Lima (1994; 2005) a estabilidade da política externa brasileira é
mais resultado de uma narrativa construída pela diplomacia e reforçada por importante
parcela da academia brasileira que se dedica ao assunto, do que um dado da realidade. A
mesma autora afirma que
"(...) o forte componente institucional na formação da política externa,
que se apresenta no papel preponderante do Ministério das Relações
Exteriores na formulação e implementação daquela política... não
apenas garantiu poder de agenda àquele ministério, como reforçou o
mito da estabilidade da política externa como uma política de Estado e
não de governo, o que lhe asseguraria significativa continuidade ao
longo do tempo (...)” (LIMA, 2005).
Concordamos quanto ao "mito" de entender a política externa como uma política de
Estado, inclusive sendo este um dos pontos centrais de influência sobre aqueles que analisam
esse tema. Apesar disso, é possível identificar na análise bibliográfica e empírica elementos
que comprovam a existência da estabilidade da atuação internacional do Brasil. O corpo
diplomático apropria-se deste fato da realidade para reforçar seu discurso político, mas a
construção discursiva não tem importância de causalidade para a continuidade da política
externa brasileira. Esta é mais um elemento constituinte da história do país do que uma
construção subjetiva, mesmo que ainda não tenhamos compreendido adequadamente as reais
causas desta característica singular.
Neste mesmo sentido, portanto, vale lembrar a afirmação da própria autora e de
Gérson Moura de que "(...) as explicações mais completas de uma política externa não se
esgotam naturalmente nas justificativas e motivos que ela mesma se dá. Por isso, devemos
procurar fora das formulações oficiais as razões mais profundas de sua adoção (...)" (LIMA e
MOURA, 1982: 361).
No entanto, não aprofundaremos essa discussão porque entendemos que o ponto
essencial para os objetivos desta análise, que trata da forma como o Mercosul é trabalhado na
20
política externa brasileira, não está na busca das causas mais profundas dessa continuidade,
mas no entendimento da crescente tensão sobre alguns dos elementos formadores desta
política, principalmente a partir das pressões sobre sua relativa estabilidade que se
intensificam com a redemocratização dos anos 1980 e que se ampliam nos anos 1990. O
próprio advento da integração no Cone Sul pode ser entendido como mais uma fonte de
pressão sobre a continuidade da política externa, como veremos mais adiante, já que de certa
forma aumenta o número de atores domésticos que tentam acompanhar e influenciar a agenda
internacional do país.
Alguns estudos específicos sobre a política externa brasileira também demonstram
que a tese da autonomia decisória do Itamaraty não é facilmente verificada às vezes, mas,
mesmo assim, ressaltam a grande capacidade de influência do Itamaraty no processo de
tomada de decisões e sua conseqüente capacidade de garantir uma relativa continuidade na
formulação e na implementação da política externa. Em alguns casos, essa capacidade de
influência extrapola a esfera de atuação diplomática avançando sobre parcela das atribuições
da política econômica nacional (FARIAS, 2006).
No entanto, na bibliografia analisada não se verificou estudos exaustivos que
permitam comprovar uma diferenciação entre o momento da formulação decisória e o da sua
implementação. Lembramos que essa divisão é um artifício analítico para melhor
compreender a dinâmica da tomada de decisões em política externa, mas as informações
colhidas nesta pesquisa parecem indicar que na história da política externa brasileira a
explicação da continuidade é mais válida durante a implementação do que no próprio
processo formulador.
No caso da política brasileira para o Mercosul, a pesquisa empírica realizada indicou
a existência de uma ampla autonomia do Itamaraty ao implementar diretrizes previamente
formuladas, por exemplo, no âmbito da presidência da República. O fato de a diplomacia
coordenar os trabalhos do governo brasileiro para este tema, por si só, garante grande
autonomia decisória, já que dispõe de recursos de poder adquiridos durante o
desenvolvimento da própria estrutura estatal brasileira.
Mesmo não sendo o objetivo deste trabalho fica a sugestão para um maior
aprofundamento futuro desta questão, pois no levantamento bibliográfico para esta pesquisa
foi notória a escassez de estudos baseados em instrumentais analíticos e teóricos específicos
para o entendimento do desenvolvimento e funcionamento do corpo diplomático brasileiro.
Talvez essa sugestão de análise possa ajudar a melhorar as explicações das descontinuidades
21
na política externa brasileira, como já havia alertado Lima (1994), permitindo compreensões
mais profundas de momentos como o da formulação da Política Externa Independente no
início dos anos 1960, elaborada por um grupo restrito liderado por San Tiago Dantas
trabalhando à margem do Itamaraty (CERVO, 1994), ou para o breve período do Governo
Collor.
De qualquer forma, o ponto central para nossa análise é o reconhecimento dessa
singularidade da política externa brasileira que pode ser explicada com base em diferentes
argumentos e supostos.
1.2. Singularidade
Nesta parte do texto identificamos brevemente algumas explicações para esta
singularidade. Este esforço se justifica pelo fato de que na história brasileira o Ministério das
Relações Exteriores e o seu corpo de diplomatas têm ampliado sua influência no
desenvolvimento da própria estrutura estatal ao longo do tempo. Isto garantiu grande
prerrogativa na condução da política externa brasileira e, também, do seu processo formulador
(CHEIBUB, 1985).
Podemos dizer que uma primeira explicação fundamenta-se a partir das
características do país e sua localização no mundo, traduzindo-se na idéia de potência média.
Do ponto de vista analítico, busca entender a dinâmica das relações internacionais e a
especificidade brasileira a partir da sua situação geográfica, suas principais características
estruturais e os padrões de comportamento externo.
Esse tipo de enfoque entende que as potências médias priorizam a construção de
coalizões nas arenas multilaterais como forma de diminuir o poder relativo das grandes
potências, o que explica a necessidade de aceitarem a construção destas organizações
internacionais. No entanto, no nível regional buscam aumentar sua capacidade de influenciar
as nações menores, gestando zonas de influência regional com o objetivo de diminuir as
possibilidades de atuação direta e indireta de outras potências (SENNES, 2001; MARQUES,
2005).
A idéia de potência média, além de contribuir para a construção de um arcabouço
analítico que ajuda na compreensão da atuação internacional do Brasil, também diz respeito à
forma como a imagem deste país é construída e reconstruída no que podemos chamar de um
imaginário nacional.
Em estudo realizado por Marques (2005) sobre a imagem internacional brasileira de
22
potência média no período do governo Fernando Henrique Cardoso, verificou-se que a
própria diplomacia, através de seus discursos e atuação nas arenas multilaterais, considera e
reforça essa idéia. O resultado dessa postura não se resume num esforço de auto-identificação
perante os outros atores internacionais, mas também na absorção desta idéia por parte das
elites brasileiras.
O fortalecimento desta visão interna e externamente, reforçaria as opções que
buscam aumentar a capacidade de influência brasileira no sistema internacional, fortalecendo
a idéia de que isso resultaria em um aumento das margens de ação externa e no
estabelecimento e fortalecimento de seu papel de mediador.
Essa busca por maior influência internacional não é exclusiva do corpo diplomático
brasileiro, mas se estende através do tempo sendo compartilhada pelas elites, esperando obter
com essa postura o reconhecimento e aceitação internacional enquanto uma liderança regional
(LIMA, 2005).
Segundo Marques (2005) a elite brasileira, além de compartilhar da aceitação dessa
imagem do Brasil como potência média, sustenta-se na capacidade diplomática nacional em
difundir internacionalmente essa percepção, o que acabaria justificando até a tentativa de
alcançar um assento no Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas).
Este autor afirma ainda que
“(...) embora o país apresente uma extensão territorial continental,
reservas de recursos naturais e um mercado consumidor potencial e
relativamente grande, o Brasil não manifesta força militar relevante ou
presença considerável no comércio mundial. Contudo, o entendimento
brasileiro do país como potência média sustenta-se na força das idéias e
das percepções para influenciar as decisões no sistema internacional
(...)” (idem: 110).
Para os fins desta pesquisa, vale dizer que essa interpretação analítica e a sua
conseqüente instrumentalização para a defesa de interesses particulares, reforçam as
conclusões dos estudos que apontam uma tentativa brasileira de exercer uma liderança
regional. Mais adiante veremos que, se não exerce uma liderança no Mercosul, ao menos
ajuda na explicação da dificuldade em aceitar os custos inerentes ao aprofundamento de um
processo de integração regional. A imagem de potência média pode ser entendida como mais
uma forma de justificar a pouca disposição do governo brasileiro em aprofundar as
instituições do bloco e criar mecanismos comunitários de financiamento da integração.
23
Uma segunda explicação centra suas atenções na formação do Estado brasileiro e na
contribuição da diplomacia neste processo. Para esta abordagem as origens da importância da
diplomacia na história do país remontam à própria formação da nacionalidade brasileira, na
qual o Estado precede e teve papel protagônico na construção nacional. Neste processo o peso
assumido pela burocracia estatal na sociedade brasileira pode ser considerado com um dos
fatores determinantes, tendo a diplomacia, enquanto corpo político-administrativo, um papel
de destaque (DANESE, 1999; LAFER, 2004).
Essa coincidência entre Estado e nacionalidade contribuiu para o desempenho
diplomático na defesa dos interesses estatais e, simultaneamente, a própria atuação externa
alimentou a formação do que hoje é chamada de nação brasileira (DANESE, 1999). Acentua-
se assim o amplo reconhecimento de que, tradicionalmente, o Ministério das Relações
Exteriores exerce um papel central na formulação e na implementação da política externa
brasileira, influindo diretamente nas linhas e estratégias seguidas pelo governo no plano
internacional. No entanto, esse tipo de explicação vai um pouco além, sobrevalorizando o
papel desempenhado pela diplomacia.
Como exemplo deste certo exagero podemos citar o período do Império e seu
destaque diplomático com relação à sua vizinhança, principalmente na construção de
condições futuras para a consolidação de suas fronteiras, o que ocorrerá definitivamente
durante a Primeira República e mais especificamente sob a gestão de Rio Branco a frente da
pasta de Relações Exteriores. Essa supremacia foi mais resultado da estabilidade e da coesão
da elite imperial do que da presença marcante de um corpo diplomático estatal mais
desenvolvido (CHEIBUB, 1985).
Se a funcionalidade do corpo diplomático para a formação do Estado brasileiro
durante o Império foi relativa, ao mesmo tempo, podemos afirmar que gradativamente esta
ganhou força com a consolidação das fronteiras nacionais através da ação diplomática no
período Rio Branco (1902-1912), aumentando seu prestígio enquanto estrutura burocrática
estatal entendida como eficiente e necessária.
Apesar da grande importância atribuída à figura do Barão de Rio Branco e suas
qualidades pessoais, tendo repercussão não somente ao período de sua gestão, mas se
prolongando através dos anos, não podemos deixar de ressaltar que sua gestão perpassou
quatro governos - Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca -,
coincidindo com o auge do período representando pela produção de café, sendo beneficiado
indiretamente pela reforma financeira implementada por Campos Sales e por um período de
24
estabilidade institucional (BUENO e CERVO, 1986). Estava, portanto, gerenciando o
interesse nacional que, nesta época, se confundia com os interesses do setor agroexportador
dominante.
Se alguns estudos acadêmicos permitem relativizar o papel da diplomacia na
formação do Estado brasileiro, por outro lado, o discurso diplomático é repleto de afirmações
que o acentuam e, em determinados momentos, permitem identificar a ligação com as forças
dominantes em diferentes etapas da história brasileira, como nas palavras do Embaixador
Rubens Barbosa:
“(...) A diplomacia brasileira tem uma forte tradição de continuidade e
previsibilidade, mantida há mais de um século graças ao
profissionalismo dos seus quadros e legitimidade que lhe tem sido
tradicionalmente conferida pelo consenso das forças partidárias internas
(...)”. (1996: 71)
A terceira explicação, que também nos parece ser a mais interessante, é uma
abordagem organizacional, que trata das características institucionais do processo decisório e
do desenvolvimento do corpo diplomático através dos anos, fortalecendo-se enquanto uma
agência singular na estrutura burocrática estatal brasileira. Neste caso é interessante notar que,
apesar do fato do Ministério das Relações Exteriores contar com o reconhecimento de sua
importância, ao mesmo tempo, não tem sido objeto constante de análises mais aprofundadas
sobre o seu funcionamento institucional.
Podemos dizer que uma das explorações mais bem realizadas se deu em meados dos
anos 1980, com a pesquisa realizada por Zairo Cheibub (1984). Há, portanto, uma grande
demanda por estudos que abordem os impactos sofridos pela organização como resultado do
processo de democratização, o avanço da globalização, o surgimento dos novos atores
domésticos interessados nos assuntos internacionais e a abertura brasileira ao mercado
internacional.
Neste tipo de explicação é comum que o primeiro esforço concentre-se nas
características institucionais da diplomacia. O corpo diplomático possui uma localização
específica na estrutura estatal, com capacidade de institucional de manter-se enquanto grupo
homogêneo e diferenciado do restante das agências burocráticas (ARBILLA, 2000).
Apesar do avanço da diplomacia presidencial a partir do processo de
redemocratização, podemos dizer que o corpo diplomático garantiu a importância de sua
25
presença na formulação e na implementação decisória em matéria de política externa. O
simples fato das nomeações para embaixadores serem quase que totalmente compostas por
membros provenientes da estrutura diplomática, nos mostra que a corporação consegue
difundir a imagem de que possui uma capacidade técnica específica imprescindível à
atividade de representação externa.
Essa opinião não se concentra somente na presidência da República, mas extrapola
para setores como a comunidade intelectual e também na classe política. Uma razão para esta
aparente falta de interesse da classe política em ocupar cargos no Ministério resultaria da
percepção de que as questões externas ainda estão muito distantes das questões de interesse
do eleitorado (ARBILLA, 2000).
O trecho abaixo demonstra muito bem essa realidade e também ajuda a revelar o
entendimento da própria diplomacia sobre essa questão, onde o tratamento do tema acaba
tendo finalidade de justificação burocrática da sua especificidade e também como mecanismo
de auto-identificação de grupo.
Diferentemente da maioria dos países, nenhum cargo da estrutura do
Ministério das Relações Exteriores, além do Ministro de Estado e do
Consultor Jurídico, pode ser preenchido por não-diplomatas. O
Presidente da República dispõe, porém, da faculdade de indicar para o
cargo de Embaixador pessoas de sua confiança que não sejam membros
da carreira de diplomata. A quase totalidade dos Embaixadores do
Brasil, no entanto, tem sido escolhida entre funcionários de carreira.
Atualmente, ocupam funções no exterior apenas dois Embaixadores
políticos (UNESCO e Cuba). Esse é um dos aspectos essenciais da
tradição de estabilidade e de profissionalismo do serviço diplomático
brasileiro (CORRÊA, 1999)
9
.
Esse ponto diz respeito às capacidades do corpo diplomático, ao longo dos anos, em
se fortalecer enquanto uma agência destacada na estrutura estatal brasileira. Ele se refere a
algo que é intrínseco à organização burocrática: a busca de auto-reprodução.
Nesse processo o elemento básico de explicação é a eficiência em transmitir valores
para os seus membros, ou seja, conseguir com que os indivíduos aceitos na organização
9 Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, então Secretário-Geral das Relações Exteriores no Centro de
Formação e Aperfeiçoamento de Recursos Humanos (CEFARH) da Secretaria de Inteligência do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República na palestra “A política externa brasileira”. Brasília,
05/11/1999.
26
incorporem os princípios valorativos, as relações de autoridade, os papéis previamente
definidos, enfim, tudo aquilo que faz esse indivíduo se auto-definir enquanto membro deste
agrupamento. Para isso diversos mecanismos podem ser empregados: desde a arregimentação
até mecanismos que podem ser vistos como verdadeiros ritos de passagem onde se
consolidam a aceitação de papéis e a legitimação das relações de autoridade.
O Itamaraty é uma divisão administrativa do Estado, que desenvolveu internamente
mecanismos de identificação que permitem aos seus membros diferenciar-se dos demais
integrantes da estrutura estatal nacional e, mais amplamente, do restante da sociedade. Para
que isso ocorresse, não bastou somente o reconhecimento dos próprios membros deste grupo,
mas o dos atores que se encontram fora da própria corporação, reforçando a percepção de que
se trata de um fato da realidade que caracteriza a diplomacia brasileira enquanto tal. As
pesquisas recentes que avaliam a percepção das elites e dos públicos de massa sobre essa
questão parecem validar esse argumento (SOUZA, 2002; HOLZHACKER, 2006).
O rigoroso processo de arregimentação e os cursos realizados para o ingresso na
carreira diplomática, nas palavras de Cheibub (1985: 128), "(...) tem sido a forma através da
qual o Itamaraty consegue neutralizar a heterogeneização crescente dos seus quadros e manter
um alto grau de coesão e um sprit de corps bem desenvolvido entre seus membros (...)”.
Um outro aspecto relativo a essa capacidade de auto-reprodução centra-se em sua
adaptabilidade às mudanças de governo e, também de regime político, como ficou bem
demonstrado no período militar sob o governo Castelo Branco, quando esta organização
aceitou momentaneamente as novas diretrizes governamentais, afastando-se da formulação da
política exterior e "(...) trocou dignidade por sua integridade para evitar a caça às bruxas que
surgia em outras agências (...)" (PINHEIRO, 2004). Após o fim do período Castelo Branco, a
corporação ganhou gradativamente a confiança do núcleo governamental, tendo seu ápice no
Governo Geisel com a implementação do que veio a ser chamado de "pragmatismo
responsável" na política externa brasileira.
Essa capacidade adaptativa não se refere somente às mudanças governamentais, mas
também às novas idéias trazidas por seus novos integrantes. A corporação demonstrou, a
partir dos mecanismos institucionais construídos ao longo dos anos, grande capacidade de
moldar novos conceitos aos princípios, diretrizes e valores que a organização
tradicionalmente busca manter como forma de sustentar a idéia de continuidade ou, nas
palavras de Arbilla (2000: 346) "aparência de continuidade".
As inovações têm maiores chances de se institucionalizar quando são provenientes
27
do Poder Executivo. No entanto, também existem dificuldades para compor os quadros
representativos das mudanças de governo na própria estrutura do Ministério de Relações
Exteriores, indicando, no que muitas vezes a orientação presidencial busca sua adaptação
aproveitando-se das divisões internas da corporação diplomática (idem).
No que se refere ao espírito de corpo do Itamaraty, ou sentimento de identificação
enquanto grupo diferenciado e presente no interior da estrutura estatal brasileira podemos
dizer que este se iniciou no período da gestão Rio Branco e seguiu, posteriormente,
reforçando-se até o primeiro governo de Getúlio Vargas, com o desenvolvimento da
organização e de sua expansão burocrática (BUENO, 1992). Letícia Pinheiro (2004) afirma
que o Barão de Rio Branco, enquanto artífice da construção deste espírito de corpo do
Itamaraty reeditou uma realidade já existente no período Imperial, quando se realizava o
recrutamento dos novos integrantes nas famílias da elite que nutriam relações profundas com
a política oficial ou com o setor militar. Assim, nessa gestão, houve também uma
preocupação com a padronização da origem social dos novos membros a fim de garantir
maior coesão no interior da organização.
Os processos de construção de identidade de grupo não se baseiam somente no
desenvolvimento dos mecanismos de auto-identificação, mas também é muito relevante a
capacidade de criar as condições para que sejam percebidos pelo demais atores enquanto um
grupo específico e, neste caso, o reconhecimento da comunidade internacional é essencial. Ao
analisar a política externa durante o período militar Shiguenoli Miyamoto reforça a idéia de
"(...) o que se deve pensar no intercâmbio do Brasil com o resto da
comunidade internacional é a existência de uma instituição
burocratizada, hierarquizada, que mantém através da formação de um
corpo altamente preparado, uma tradição de dezenas de anos em
assuntos diplomáticos (...)” (2000: 191).
Dentre as interpretações que buscam entender a política externa brasileira a partir das
suas relações com a estrutura política e institucional, está baseada na constatação do
isolamento burocrático da diplomacia, que mais do que uma constatação debruça-se, entre
outras coisas, sobre as repercussões desta característica sobre as decisões tomadas, seus
efeitos sobre a ampliação do debate das questões externas, as possibilidades de controle em
um ambiente democrático e, também, a legitimidade do processo decisório (LIMA, 1994,
2000; VIEIRA, 2001; PINHEIRO, 2004; OLIVEIRA, 2005-a).
28
Esta característica singular resultou, entre outros fatores, em um relativo isolamento
na forma como o debate sobre as questões internacionais foi conduzido pela diplomacia,
havendo ainda pouco intercâmbio de informações com o restante da sociedade (PINHEIRO,
2004).
As características insulares do Itamaraty possuem origens estruturais importantes que
permitem sua especialização, eficiência e também um distanciamento da política doméstica,
além da pouca interação com outros setores componentes da sociedade brasileira. O resultado
mais evidente é o diminuto debate existente na opinião pública acerca das questões
internacionais e sobre a forma como a diplomacia tem conduzido essas negociações (LIMA,
2000; PINHEIRO, 2004; CERQUEIRA, 2005).
Do ponto de vista estrutural podemos descrever ao menos três fatores
predominantes.
1.2.1. Ausência de canais institucionalizados de participação e controle da política
externa brasileira
O primeiro é a restrição dos canais institucionalizados de participação política e
controle da política externa. Conseqüentemente há limitações na incorporação de novas idéias
e interesses na pauta de discussão, restringindo a capacidade real de influenciar a gestão das
relações exteriores do Brasil a um pequeno número de pessoas (VIEIRA, 2001).
A inadequação dos mecanismos institucionais que viabilizariam a expressão dos
grupos de interesses não se restringe somente aos diversos setores da sociedade civil, mas
também a outras esferas governamentais, o que pode, em alguns casos de disputas relativas às
negociações comerciais internacionais, resultar em perdas dos pleitos encabeçados pela
diplomacia. O tratamento dos assuntos relativos à política comercial, que normalmente
exigiria a participação mais ampla de outras agências do próprio governo federal, quando
ficar muito concentrado na diplomacia econômica acaba tendendo a uma perda de sua
eficiência. Em alguns casos específicos, onde esta situação é momentaneamente superada
percebe-se a possibilidade de resultados favoráveis, como na vitória brasileira nos casos do
aço e de patentes de medicamentos no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio)
(OLIVEIRA, 2005-b).
As críticas sobre a insuficiência de canais formais ou informais, que viabilizem a
ampliação do leque de atores e interesses na agenda da política externa brasileira, e também o
seu controle democrático, são corroboradas por recente estudo a respeito das percepções das
29
elites e dos públicos de massa sobre o tema (HOLZHACKER, 2006). Apesar do
reconhecimento de um avanço neste sentido, ao menos nos últimos anos, a percepção geral é
de que as possibilidades reais de interação com os formuladores tradicionais da pauta
brasileira de relações exteriores ainda é reduzida e, mesmo quando há essa oportunidade, os
resultados são mais informativos das opções existentes e das escolhas realizadas. Dependendo
do tema e do interesse do corpo diplomático pode haver maior ou menor abertura à
participação.
Em recente estudo que abordou a aceleração ou bloqueio da tramitação de projetos
de lei, durante o primeiro governo de Lula da Silva, relacionados às negociações comerciais
internacionais e especificamente à ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), percebeu-
se a utilização por parte do Poder Executivo dos mecanismos existentes para influenciar a
tramitação da pauta do Legislativo. Assim, parece haver forte correspondência entre as
medidas com o objetivo de controlar o debate legislativo e os interesses publicamente
manifestados pelo Itamaraty, seja em seus discursos ou nas posições tomadas nessas grandes
negociações. Assim, no que se refere ao controle da política externa brasileira, ainda se
verifica uma capacidade ampliada de ação autônoma da diplomacia, onde instrumentos
democráticos de controle ainda são pouco desenvolvidos (OLIVEIRA, 2005-b).
O mesmo poderia ser dito no período dos governos de Fernando Henrique Cardoso,
onde esta autonomia se manteve e a capacidade de influência da diplomacia além da esfera
dos temas externos foi importante. Como regra geral, o sistema político brasileiro permite ao
Poder Executivo gerenciar a agenda internacional mantendo o papel central da diplomacia
estatal, enquanto o Poder Legislativo ainda manifesta o costume de abster-se da sua
capacidade decisória evitando contrariar acordos aprovados pela presidência da República
(CERQUEIRA, 2005; MARIANO, 2001).
Um exemplo que demonstra essas conclusões e, principalmente, com relação à
instrumentalização do apoio de setores da sociedade civil, foi a criação por decreto
presidencial da Seção Nacional da ALCA no segundo governo de Fernando Henrique
Cardoso. A seção tinha o objetivo de manter os diversos setores da sociedade civil
informados, ou "em estado de alerta", sobre o andamento das negociações da ALCA. Esse
fato é interessante tendo em vista o objeto desta tese, já que esta postura do governo
brasileiro, pelo menos até 2003, não se verifica no caso do Mercosul. Podemos dizer inclusive
que a postura é invertida, onde a ampliação dos mecanismos de participação de novos atores
no processo parece ser visto como um elemento que impede a manutenção da autonomia
30
diplomática sobre o assunto.
1.2.2. A relativa autonomia do Itamaraty e a autorização presidencial
O segundo fator refere-se à forma como a relativa autonomia do Itamaraty é operada.
A conclusão geral é que no sistema presidencial brasileiro há uma relação direta entre a
relativa autonomia gozada pelo Itamaraty e a autorização recebida pela figura presidencial
(LIMA, 1994). A autora descreve que a variação se dá no estilo presidencial para conceder
essa autorização, que pode ser por delegação, como no período do governo Médici, ou por
afinidade de posições entre a presidência e o corpo diplomático, como no período dos
governos Geisel e Sarney, podendo inclusive concluir sobre a existência de uma maior
autonomia em momentos de autoritarismo do que de democracia, tendo em vista o papel que
pode ser desempenhado pelo Poder Legislativo em um ambiente de abertura política.
Segundo Marques (2005), em geral, a política externa acaba expressando as
concepções gestadas pela diplomacia estatal, tendo posteriormente a aprovação presidencial.
No entanto, isso não significa ausência de oposição, mas esta tende a ser pontual e não se
manifesta com relação aos objetivos mais gerais.
1.2.3. Cultura política e legitimação do corpo diplomático
O terceiro e último fator estrutural se concentra nas características dominantes da
cultura política nacional e da legitimação obtida pelo corpo diplomático em relação às suas
atividades. Já abordamos anteriormente a tendência geral de abdicação do Poder Legislativo
em relação às questões internacionais e a dificuldade sentida pelos setores sociais organizados
em participar das discussões e influenciar a tomada de decisões.
No entanto, alguns autores reforçam o resultado desse modo de operação (LIMA,
1994, 2000; VIEIRA, 2001) ao permitir o estabelecimento de uma percepção de consenso
interno baseado na idéia da existência de um interesse nacional unitário, na qual a diplomacia
cumpriria um papel legítimo através da constante vigilância de defesa e promoção desse
interesse geral.
É importante notar que as relações institucionais presentes no sistema político
brasileiro e a forma como as questões internacionais são encaminhadas, acompanham, por
outro lado, uma cultura política que delimita essa realidade como legítima, onde a idéia da
existência de uma agência estatal especializada para o tratamento destas questões assume o
atributo de tradicional, reforçando o caráter de continuidade descrito anteriormente. Vale
31
ressaltar que esse tipo de conclusão respalda-se em alguns estudos realizados com a finalidade
de avaliar as percepções de diferentes atores sociais e dos públicos mais gerais sobre a agenda
externa brasileira (SOUZA, 2002; HOLZHACKER, 2006).
A avaliação dos elementos subjetivos que apontam para uma percepção geral de
continuidade na forma como as relações políticas específicas ao temas internacionais são
geridas reforçam, de alguma forma, o argumento da singularidade da política externa
brasileira baseada em uma relativa continuidade, lembrando que este é um dos pressupostos
centrais deste trabalho.
Além dos fatores estruturais acima apontados, é importante lembrar que
isoladamente estes não seriam suficientes para o fortalecimento da autonomia diplomática e o
seu relativo insulamento das questões domésticas. Também devem ser considerados os fatores
conjunturais, representados pela especificidade dos temas que ao longo do tempo compõem a
agenda internacional brasileira e os impactos internos provenientes das conseqüências das
escolhas externas. Neste sentido, os efeitos da abertura econômica dos anos 1990 e o avanço
do processo de globalização, tendem a distribuir os impactos sobre diversos setores sociais,
fazendo com que as probabilidades de politização da política externa aumentem (LIMA,
2000).
Apesar da tese do insulamento burocrático ter um bom respaldo na bibliografia
especializada, é importante notar que em alguns momentos esse relação não é tão automática.
Em estudo realizado sobre a atuação do Brasil nas negociações do GATT (General
Agreement on Tariffs and Trade), relativo ao período de 1947a 1993, Farias (2006) constatou
que, neste caso em particular, outras agências tiveram uma importante atuação influindo
diretamente na formulação da política externa brasileira e, conseqüentemente, diminuindo a
liberdade do Itamaraty em administrar essas questões.
Em estudo realizado sobre o contencioso a respeito da Informática entre Brasil e
Estados Unidos durante os anos 1980, Tullo Vigevani (1995) demonstra as limitações da
autonomia dos atores domésticos participantes da formação da política externa neste caso em
particular que assumiram uma postura defensiva diante das fortes pressões externas e dos
interesses organizados fora do âmbito de influência doméstica.
Entendemos que o trabalho de Farias (2006) não é suficiente para invalidar a tese do
insulamento burocrático e, inclusive, não era o seu objetivo, no entanto suas considerações,
somadas às conclusões de Vigevani (1995) demonstram que o processo decisório sobre
política externa no Brasil é por demais complexo e ainda pouco estudado, exigindo pesquisas
32
empíricas sobre momentos específicos de sua formulação e de sua implementação, como
forma de estabelecer as relações de causalidade existentes no âmbito da atuação externa do
país.
33
2. Autonomia e Desenvolvimento na Política
Externa Brasileira
As análises sobre a política externa brasileira apontam para a existência de dois
objetivos gerais em sua evolução, ao menos a partir da década de 1930. Estes são a busca de
autonomia e de desenvolvimento. A forma como as ações se organizam para atingir esses
objetivos pode ser identificada através da construção, coexistência e alternância dos
paradigmas dominantes que têm caracterizado a história da política exterior do país.
Torna-se relevante, então, entender como esses paradigmas se alternaram e como os
significados dados à autonomia e ao desenvolvimento se reajustaram à realidade doméstica e
internacional. Esta breve recapitulação permitirá, posteriormente, identificar como esses
objetivos se apresentam quando a política externa brasileira trata da questão da integração no
Mercosul. Entendemos que o resultado deste trabalho ajudará na compreensão do que mais
tarde trataremos como sendo o modelo de Mercosul contido na política externa brasileira e
como este se fundamenta no que chamaremos de Princípio da Intergovernamentalidade
2.1. O Significado dos Paradigmas
Os paradigmas no estudo da política externa brasileira são construções analíticas
capazes de ajudar na compreensão da formulação, organização, desenvolvimento e
justificativa de escolhas e ações estratégicas. É uma forma de organizar o entendimento a
respeito de grandes linhas históricas de atuação. Neste sentido, concordamos com Amado
Cervo ao afirmar que a "(...) coexistência de paradigmas, inadmissível nas ciências exatas e
naturais, embora paradoxal, é possível nas ciências humanas e sociais, onde eles adquirem a
função metodológica de organizar a matéria e de dar-lhe inteligibilidade orgânica mediante
uma visão compreensiva dos fatos (...)” (2002).
Se os paradigmas consistem em modelos de organização dos acontecimentos
históricos que indicam possibilidades de escolha, então, ao analisar os discursos, declarações,
documentos e até mesmo os textos elaborados por aqueles que têm capacidade de decidir,
principalmente a diplomacia oficial, veremos que muitas vezes estes necessitam organizar
determinada linha de ação e justificá-la perante o próprio governo, a comunidade acadêmica
ou a sociedade em geral e o fazem desenvolvendo conceitos capazes de sintetizar as
alternativas entendidas como possíveis e defendendo as escolhas realizadas.
34
Assim, conceitos, como por exemplo, "autonomia pela integração" ou "autonomia
pela participação", surgidos nos anos 1990 a partir da própria formulação diplomática,
buscavam delimitar as margens de escolha de um determinado período histórico. Desta forma,
estes não são, e não podem ser, entendidos enquanto conceitos com validade científica. Antes
disso, são o próprio fato a ser estudado.
Podemos dizer que há dois paradigmas dominantes na política externa brasileira: o
americanismo e o universalismo ou globalismo, que se confundem com duas tendências
históricas predominantes a partir da Segunda Guerra Mundial, o que se chamou de
desenvolvimento liberal associado e de modelo do nacional-desenvolvimentismo.
Na tendência do desenvolvimento liberal associado, de forma geral, as políticas
domésticas e externas se alimentam do ocidentalismo, nutrindo relações especiais com os
Estados Unidos, caracterizando-se pela aceitação de um sistema de segurança coletiva
regional, de atração de capitais externos, de relaxamento cambial e de remessas de lucros. Isso
pode ser verificado principalmente nos governos Dutra, Castelo Branco e Collor.
Já no segundo caso, o modelo do nacional-desenvolvimentismo, as características
fundamentais são o pragmatismo na política externa, o controle dos setores econômicos
estratégicos, o protecionismo como instrumento de política industrial, o universalismo nas
parcerias econômicas, ideológicas e políticas e, por fim, a nacionalização da segurança.
Alguns governos em que essa tendência pode ser verificada, em maior ou menor grau, são os
governos de Vargas, com a Política Externa Independente, Costa e Silva e José Sarney
(CERVO, 1994).
Assim, podemos dizer que, de uma forma ou de outra, os períodos pelos quais essas
tendências se revelam mais evidentes, contribuem para resgatar e reformular os paradigmas
dominantes que informam as escolhas adotadas em cada época. A relação direta com o
modelo de desenvolvimento econômico e do relacionamento com a potência norte-americana,
faz com que esses fatores sejam sempre levados em consideração ao se analisar a forma como
a autonomia brasileira é gerida e como os objetivos são traçados.
2.2. Americanismo
O paradigma americanista revela-se como realidade inerente à condição brasileira na
medida em que se consolida o poder norte-americano enquanto potência mundial. Dadas as
características nacionais e a sua posição na estrutura de poder mundial, a análise das escolhas
brasileiras, de alguma forma, não pode deixar de considerar os posicionamentos adotados pela
35
política externa norte-americana em relação ao continente e, mais especificamente à América
do Sul e ao Brasil. Este paradigma se estabelece já a partir da Proclamação da República e
tem seu auge no período Rio Branco.
Se no início da República os motivos principais que orientavam a política externa
brasileira em direção aos EUA era o seu próprio reconhecimento, buscando paralelamente um
contrapeso às ações do imperialismo europeu, a partir do Barão de Rio Branco o foco
principal de relacionamento da política externa se desloca de Londres para Washington
(BUENO, 1992-b).
Neste período, o reconhecimento do papel dos EUA, enquanto liderança continental
e o simultâneo estreitamento de relações assumiu um caráter pragmático e outro preventivo.
No primeiro caso, além do objetivo de contenção da Argentina sem despertar sua
desconfiança, buscava consolidar uma preponderância brasileira na América do Sul e permitir
o exercício de sua soberania, isto é, manter algum grau de autonomia. No segundo caso, o
objetivo era o de prevenir possíveis intromissões das potências européias. O resultado seria a
construção de um sistema de poder continental liderado pelos Estados Unidos, havendo,
portanto o reconhecimento da existência de um sistema europeu e outro americano (BUENO,
1992-c).
O americanismo de Rio Branco, contrariamente ao período anterior e também ao
posterior, assumiu um caráter essencialmente pragmático. Não se tratava de um alinhamento
automático à potência norte-americana, nem uma oposição sistemática às potências européias,
já que estas consistiam de grandes fornecedores de capitais e eram fontes da imigração, tão
importantes para a sustentação do sistema agrário-exportador.
No entanto, o mercado norte-americano era o destino da maior parte da exportação
brasileira de café. A amizade com os EUA tinha forte sentido no plano estratégico mundial e,
particularmente, para as aspirações de liderança brasileira sem, no entanto, envolver
compromissos formais para este alinhamento (CERVO, 1986).
Usamos esse período para exemplificar como o paradigma americanista, ou qualquer
outro paradigma, se fortalece em um determinado período histórico, ou seja, quando há uma
forte relação entre o padrão econômico adotado internamente, um atendimento às
necessidades da elite dominante numa situação de elevado grau de coesão e, simultaneamente,
uma funcionalidade naquilo que seria o objetivo último de qualquer política externa que é a
manutenção ou ampliação da capacidade de ação autônoma no sistema internacional.
36
2.3. Universalismo ou Globalismo
O segundo paradigma dominante é conhecido como universalismo (LESSA, 1998;
OLIVEIRA, 2005-b) ou também como globalismo (PINHEIRO, 2004). Teve seu início
durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart (1961-64) quando da formulação da
"Política Externa Independente". É importante lembrar que as condições reais de
implementação só vieram mais tarde durante os anos 1970, em pleno período militar,
principalmente com o governo de Ernesto Geisel e a formulação do "Pragmatismo
Responsável".
A inovação da política externa independente estava no fato de consistir em uma
ruptura com o padrão de desenvolvimento do relacionamento diplomático brasileiro vigente
até os anos 1960. Seu foco central estava no distanciamento do centro de poder norte-
americano, a partir de uma diversificação de suas relações internacionais.
A razão para essa mudança foi que a análise realista da situação internacional
concluía que a evolução do poder mundial em torno do eixo Leste-Oeste não trazia benefícios
concretos às necessidades de desenvolvimento brasileiro e dos países subdesenvolvidos.
Desta forma, o diagnóstico indicava que a saída possível seria revelar as reais diferenças no
relacionamento Norte-Sul. Para isso, a inserção internacional do Brasil deveria privilegiar a
ampliação das parcerias com nações desenvolvidas ou em desenvolvimento, retirando a
importância dada às questões de segurança internacional e acentuando aquelas relativas ao
desenvolvimento econômico.
Por último, é importante notar que a Política Externa Independente, apesar de
inovadora, reforçava princípios já existentes na conduta externa brasileira, como o princípio
de não-intervenção, a autodeterminação dos povos, a igualdade jurídica das ações, além da
solução pacífica dos conflitos (OLIVEIRA, 2005-b).
As condições políticas internas à época da sua formulação dificultaram a sua
execução. Após a queda do governo Castello Branco, gradativamente, essas condições foram
sendo estabelecidas, permitindo não só a sua execução, mas também o fortalecimento deste
conjunto de idéias em torno de um paradigma que se estruturava, entre outras coisas, na
sustentação do padrão de desenvolvimento baseado na industrialização por substituição de
importações, na existência de uma relativa estabilidade doméstica mantida com forte
crescimento econômico e repressão política e, também, dava funcionalidade à política externa
ao permitir melhores condições para o exercício da autonomia.
37
No que se refere aos paradigmas, seja o americanismo ou o universalismo, haveria
aparentemente uma correlação entre a vertente pragmática e sua capacidade de cristalizar um
conjunto de valores e posturas capazes de orientar as ações externas em um determinado
período histórico.
Tanto Lessa (1998) quanto Vaz (1999) indicam a ocorrência ou a predisposição da
política externa brasileira com relação ao universalismo, visto que a orientação pragmática
acaba reforçando os objetivos de busca de resultados concretos para o desenvolvimento
econômico e também de garantia da autonomia. A política externa brasileira possuiria, a partir
da observação histórica, uma tendência quase que natural para o universalismo,
principalmente quando visualizados os resultados de fortalecimento da diplomacia estatal.
Nas palavras de Lessa
"(...) sendo entendida como fator de ampliação da liberdade
diplomática, a construção do universalismo, desde os seus primórdios,
foi temperada por boa dose de pragmatismo, outro elemento
característico da praxis diplomática brasileira e fundamental para a
compreensão da Política Exterior do Brasil no século XX (...)” (1998:
31)
Apesar de concordar com essa conclusão, entendemos ser importante lembrar que o
pragmatismo não é, a priori, incompatível com o paradigma americanista, mas as condições
históricas do pós-Segunda Guerra têm inviabilizado sua reformulação em uma vertente não
idealista, como bem demonstrado nos governos Dutra, Castelo Branco e Collor.
Em parte da bibliografia especializada consta ainda que esses princípios se ajustam,
em maior ou menor grau, aos objetivos de garantia da autonomia e da busca de condições
para o desenvolvimento nacional. Autonomia e desenvolvimento poderiam ser entendidos,
portanto, como elementos que caracterizam a atuação externa brasileira (PINHEIRO, 2004;
SENNES, 2001, SILVA, 2002).
Sendo assim, o estudo da postura brasileira diante da integração no Mercosul
necessita de alguma forma, contemplar como esses dois elementos são abordados e adaptados
à realidade da construção do bloco regional. Para isso, necessitamos explorar um pouco a
respeito de como as noções de autonomia e desenvolvimento apresentam-se nas relações
externas brasileiras em geral.
38
2.4. Autonomia
Se o sistema internacional pode ser entendido como uma forma de organização das
relações de poder a partir da existência de Estados nacionais soberanos, independentemente
de haver um elevado grau de interdependência, então o exercício da autonomia acaba sendo
uma das principais conseqüências da própria lógica de seu funcionamento. Esta, apesar de ser
o objetivo central do Estado nacional, não é absoluta. A autonomia caracteriza-se por sua
relatividade e por sua multi-dimensionalidade, isto é, um Estado pode ser entendido como
mais ou menos autônomo em relação a outro Estado, em uma determinada área da vida
humana e em um determinado período histórico.
De forma geral, podemos dizer que a autonomia se refere à tentativa constante de
manutenção da capacidade de influência e escolha no sistema internacional, significando,
portanto, a ampliação das margens de manobra nas relações internacionais.
Não é nosso objetivo descrever teoricamente a lógica do funcionamento inter-estatal
nem abordar as diferentes concepções analíticas de autonomia
10
. Assim, como forma de
atender aos objetivos deste texto, é importante compreender como a autonomia é tratada pela
política externa brasileira e, em especial, pela diplomacia.
“Como os soberanos de ontem, os Estados de hoje buscam preservar a
sua independência e a sua segurança, proteger e promover os seus
interesses, influenciar os demais e, ao mesmo tempo, resistir a
influências indevidas de terceiros. Em última análise, esses foram e
continuam a ser os objetivos da ação diplomática (...)” (CORRÊA,
2000: 23)
11
.
A diplomacia brasileira desenvolveu concepções de autonomia ao longo dos anos,
que ajustam suas características principais a um determinado momento da vida política
nacional e internacional, a fim de conferir legitimidade para as escolhas realizadas e orientar
as expectativas dos demais atores, sejam estes domésticos ou externos.
Assim, a idéia de autonomia - que se liga ao objetivo fundamental de qualquer
Estado soberano e dá sentido à própria ação diplomática - ganha qualidades que informam as
10 Para uma interessante descrição sobre o significado geral de autonomia nas relações internacionais ver:
VIEIRA, Pedro de C. A. Autonomia pela Integração: O Discurso Diplomático Brasileiro em Tempo de
Renovação de Credenciais (1995 2001). Dissertação de Mestrado Instituto de Relações Internacionais
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2002.
11 Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa.
39
maneiras pela qual a condição de autônomo será mantida. A idéia geral de autonomia que por
si só é compreendida como vazia de conteúdo político ou ideológico e fortalece a idéia de
continuidade e tradição, recebe atributos de circunstância nas quais preferências políticas de
um período podem se manifestar. Isso ajuda a entender as denominações recebidas ao longo
do tempo: "autonomia pelo distanciamento", "autonomia pela participação" e "autonomia pela
integração".
Vieira (2002) em seu estudo sobre a diplomacia brasileira e a forma como o seu
discurso apresentava a chamada "autonomia pela integração", que caracterizou a política
externa do governo Fernando Henrique Cardoso, demonstra a forma como ocorre a
acomodação entre a "tradição" diplomática e as necessidades do momento, chamando-a de
adequação ao padrão hegemônico.
A construção de "conceitos" por parte do corpo diplomático constitui-se em uma das
formas, já descritas anteriormente, de interpretação da realidade com fins de estruturar a
adaptação organizacional às mudanças no meio político, reforçando a idéia de continuidade e
recriando as condições para que esta se materialize.
A autonomia, entretanto, continua a ser um objetivo essencial para o
Brasil, ou seja, devemos buscar sempre ampliar nossa capacidade de
atuar no meio internacional com margem de escolha e manobra
suficiente não completa, evidentemente para seguir os caminhos
delineados pela vontade nacional, pelas opções e condições do País
(LAMPREIA, 1998: 8)
12
.
A autonomia aparece discursivamente de diferentes formas, dependendo das
circunstâncias políticas nas quais é formulada. No entanto, se apresenta como uma tentativa
constante da diplomacia em obter condições favoráveis de exercício desta a autonomia. De
forma geral, significa ampliação das margens de manobra do Brasil no sistema internacional.
Além de realismo, é preciso trabalhar com claro sentido de História. O
que em um dado momento talvez se afigure como uma avenida
luminosa pode transformar-se, pouco depois, em obscuro beco sem
saída. Daí a necessidade de buscarmos invariavelmente, em nosso
relacionamento externo, o maior grau possível de autonomia. Este
sempre foi e continua a ser um parâmetro básico da diplomacia
brasileira. Autonomia não se confunde com isolamento ou auto-
12 Embaixador Luiz Felipe Lampreia.
40
suficiência, mas com a preservação de margens de escolha e manobra
suficientes para que sejamos capazes de seguir os caminhos delineados
pela vontade e pelos interesses da Nação a que servimos (LAMPREIA,
1999-b).
O interesse do Brasil, neste caso, é semelhante à idéia de interesse nacional.
Entretanto, utilizamos neste texto a idéia de interesse nacional enquanto a apreensão de um
acontecimento empírico, ou seja, como concepções valorativas de um determinado ator
político a respeito da validade desta idéia ou da sua utilização ideológica para justificar
interesses particulares. Do ponto de vista teórico deste trabalho esclarecemos que o interesse
nacional expressa na realidade, outros interesses válidos durante um determinado período
histórico e que só podem ser revelados a partir da pesquisa empírica e contextual.
Partimos do pressuposto de que o interesse nacional não está dado e quando há a
necessidade de usar esse termo, estamos nos referindo aos interesses em competição
existentes no interior do Estado nacional. A concepção que nos orienta interpreta a ação do
Estado enquanto resultante do jogo político dos atores domésticos.
O Itamaraty e os demais atores políticos não utilizam a noção de interesse nacional
como instrumento científico de análise, inclusive não há razão para isso. Não significa que
não possam, em determinados momentos, expressar a utilização de concepções teóricas de
validade científica, como por exemplo, as concepções da escola Realista das relações
internacionais. No entanto, para os fins desta análise, essas manifestações são interpretadas
enquanto conteúdo de conhecimento geral da cultura política nacional.
A noção de desenvolvimento para a política externa brasileira significaria, além de
assumir uma postura de promoção dos interesses econômicos, também a função de dar o
suporte internacional para as políticas governamentais que buscam alternativas à condição de
país não-desenvolvido ou, na ausência dessa orientação, de se proteger da aceitação de
acordos ou limitações internacionais que diminuam a capacidade presente ou futura do Estado
nacional em estabelecer políticas domésticas com esse objetivo.
Depois da consolidação jurídica das fronteiras nacionais, que devemos a
Rio Branco, o tema forte da política externa do Brasil tem sido o
desenvolvimento do país, trabalhado à luz de distintas conjunturas
internas e externas, por meio de uma inserção soberana no mundo
41
(LAFER, 2001)
13
.
A história brasileira demonstra que não existem problemas sérios de segurança
nacional, consolidação territorial e gestão das relações com a vizinhança. Esta situação
liberaria grande parte do esforço externo brasileiro no sentido de tentar suprir suas
necessidades de desenvolvimento. O discurso diplomático é repleto deste tipo de referência,
que acaba por justificar e fortalecer o papel da diplomacia enquanto um dos agentes
privilegiados de transformação da realidade nacional, principalmente em um mundo
caracterizado por forte interdependência econômica.
O desafio do desenvolvimento nacional é a prioridade do trabalho do
Itamaraty. As questões da paz, da segurança ou da definição territorial
do Estado que são aquelas mais tradicionalmente associadas à
imagem da diplomacia não representam preocupações imediatas para
o país. Vivemos em paz com nossos vizinhos desde o final da Guerra
do Paraguai, e temos com todos um padrão consolidado de relações
fraternas e exemplares (CORRÊA, 1999: 17)
14
.
Este entendimento é reforçado pela percepção das elites brasileiras de que as
ameaças externas advêm mais de suas fraquezas econômicas do que de questões de segurança.
Idéia que se apóia na interpretação de que o Brasil se situa em uma posição confortável do
ponto de vista da segurança regional e também pelo fato de pertencer à zona de influência
norte-americana. Isso explicaria o forte apoio ao componente desenvolvimentista na política
externa brasileira (LIMA, 2005).
Os formuladores da política externa brasileira devem estar sempre
atentos a este condicionamento básico. Não devem esquecer que o
sentido principal da política externa precisa ser a busca do
desenvolvimento, em todos os seus múltiplos aspectos (LAMPREIA,
1999).
15
O trecho abaixo, de Maria Regina Soares de Lima (2005: 28), nos ajuda a completar
essa compreensão:
13 Discurso de posse do professor Celso Lafer no cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores. Brasília,
29/01/2001.
14 Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa.
15 Discurso do embaixador Luiz Felipe Lampreia, Ministro de Estado das Relações Exteriores, por ocasião da
posse do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, no cargo de Secretário-Geral das Relações Exteriores.
Brasília, 04/01/1999.
42
“Esta situação peculiar de situar-se no quintal da área de influência
norte-americana e, simultaneamente, constituir-se na potência
econômica regional em um contexto geopolítico estável, gerou um
sentimento peculiar entre as elites brasileiras. As definições de ameaças
externas e as percepções de risco são basicamente derivadas de
vulnerabilidades econômicas e não de segurança. Sendo as principais
vulnerabilidades, na visão das elites, de natureza econômica, a política
externa sempre teve um forte componente desenvolvimentista. Na
verdade, está última tem sido considerada como um dos principais
instrumentos para propósitos de desenvolvimento”. (LIMA, 2005: 28).
Assim como no caso da importância da noção de "interesse nacional" com relação ao
objetivo de manutenção da autonomia, a busca por desenvolvimento se refere a uma noção
geral de "desenvolvimento nacional". Este caráter generalista aliado a um entendimento geral
de que o desenvolvimento é um resultado quase que natural das escolhas externas, reforça
mais uma vez a idéia de continuidade.
A noção de desenvolvimento, concretamente, está associada às concepções correntes
de uma época sobre o seu significado. Em um determinado momento pode significar
crescimento industrial e do mercado interno, em outro pode ser desenvolvimento social e
ambientalmente sustentável, ou qualquer outra prioridade estabelecida. Assim, a utilização
diplomática da noção de desenvolvimento permite conjugar tradicionalismo e,
simultaneamente, manter as opções abertas às necessidades de ajustes governamentais de cada
época.
Da mesma forma que a autonomia, o desenvolvimento é outro objetivo presente na
evolução da política externa brasileira. A própria condição de país não desenvolvido faz com
que o poder público tenha como desafio a sua superação. Neste sentido, as ações externas
buscam ganhos que contribuam com o processo de desenvolvimento econômico. Se isso não é
possível, ao menos procuram manter os benefícios já adquiridos e evitar perdas provenientes
de alterações nas relações econômicas internacionais. Este tipo de constatação está presente
tanto nas elaborações e discursos diplomáticos (DANESE, 1999) quanto nas constatações
históricas presentes em estudos acadêmicos (SANTOS, 2005; HOLZHACKER, 2006).
Se a autonomia é o objetivo prioritário na política externa, então, para o caso de um
país não desenvolvido como o Brasil, o desenvolvimento seria o segundo objetivo mais
importante. É da combinação desses dois elementos fundamentais que os diagnósticos sobre a
realidade internacional são elaborados, as possibilidades são definidas e as escolhas são
43
realizadas. Os resultados destes grandes movimentos de organização apresentam-se na forma
de paradigmas e diretrizes de inserção internacional a serem seguidas, que revelam as forças
domésticas dominantes diante das possibilidades do cenário internacional.
2.6. A Autonomia através do tempo
Ao longo da história brasileira, a noção de autonomia assumiu diversos significados,
ou melhor, recebeu predicados indicativos do momento e do contexto tanto interno como
externo em que a ação diplomática deveria se desenvolver e, portanto, qual seria a margem
de manobra de sua autonomia. A seguir, discutiremos esses significados e suas implicações.
2.6.1. Autonomia na Dependência
O período que vai de 1935 a 1941 ficou conhecido como "eqüidistância pragmática"
e marca a tentativa brasileira de obter vantagens perante o conflito entre os dois centros de
poder da época, os EUA e a Alemanha. Neste momento, isso era possível, uma vez que a
posição geográfica brasileira durante a Segunda Guerra Mundial e a decisão de manter-se
neutro garantiria condições de barganha inéditas na história das relações internacionais do
Brasil, que desenvolvia relações comerciais com os dois países (BUENO, 1992-d).
Este período é particularmente interessante para esta pesquisa, não somente porque a
diplomacia tinha condições de negociar sua adesão a um dos lados, oferecendo sua
participação direta na guerra e, conseqüentemente, o fornecimento de alimentos, matérias-
primas essenciais ao esforço militar e a possibilidade de utilização de bases militares no
Atlântico Sul, mas porque demonstra claramente as articulações possíveis entre a gestão das
ações externas e a capacidade governamental de mobilização dos atores domésticos.
Com respeito à Alemanha, o Brasil praticava o comércio compensado, trocando
diretamente os produtos brasileiros por produtos industrializados alemães. Se por um lado,
este tipo de comércio favorecia os industriais brasileiros, pois permitia o controle sobre a
quantidade de produtos concorrentes estrangeiros que entravam no mercado interno, além de
contentar setores militares com o material bélico que supriria as necessidades de
modernização das forças armadas, por outro, não gerava moeda conversível capaz de atender
à demanda de honrar os compromissos externos (BUENO, 1992-d).
O aumento do relacionamento comercial entre Brasil e Alemanha despertava muita
apreensão do governo norte-americano e dos setores domésticos simpatizantes. Vale lembrar
que em 1935 o Brasil havia assinado um acordo com cláusula de nação mais favorecida com
44
os EUA, causando muita polêmica interna, porque favorecia o café, mas aumentava a
concorrência do produto industrializado americano no mercado brasileiro dificultando a
produção nacional.
Desta forma, a divisão existente no seio da sociedade brasileira e que também se
apresentava no próprio núcleo do governo criava as condições para que o presidente
manifestasse sua intenção de apoio variando o lado conforme as ofertas fossem melhorando.
A eqüidistância pragmática consistia, assim, no movimento pendular do governo
com relação à política doméstica a fim de construir as bases de apoio à opção final, que seria a
aceitação da melhor oferta em troca da aliança total. Ao mesmo tempo, a diplomacia ganhava
grande funcionalidade devido à prontidão com que gerenciava as relações com os dois pólos
de poder no sentido de amenizar os impactos externos causados pelas declarações e ações
domésticas, sem falar na negociação dos termos do alinhamento.
Quanto mais essa situação de indefinição durasse maior seria a capacidade de
barganha brasileira. Isso explica porque, nas palavras de Gerson Moura, "(...) os maiores
ganhos da política externa do governo Vargas tenham ocorrido no período da quebra da
eqüidistância pragmática e não durante a sua vigência" (1980: 185).
Isso ocorreu quando as condições de apoio interno, em virtude dos acontecimentos
internacionais, apontaram somente para um lado. A precipitação deste momento aconteceu
após o ataque japonês à Perl Harbour, em 1941. A solidariedade da opinião pública nacional
inviabilizou qualquer possibilidade governamental de aceno aos países do Eixo. Estabeleceu-
se, portanto, a cooperação militar e econômica com os Estados Unidos, recebendo crédito
para a compra de armamentos com preços abaixo dos de mercado e, principalmente, a
instalação da siderurgia que iria dar sustentação ao processo de desenvolvimento brasileiro a
partir da indústria de base (BUENO e CERVO, 1986-b).
O custo desta operação foi a perda acentuada da autonomia brasileira em troca de
benefícios diretos ao processo de desenvolvimento, o que explica a idéia de "autonomia na
dependência". Tratava-se da negociação da dependência política e econômica sustentada pelo
apoio das elites domésticas à inauguração de um processo consistente de industrialização,
além de melhorar as condições militares do Brasil diante dos vizinhos latino-americanos
(MOURA, 1980).
Os resultados deste período para a política externa brasileira repercutem até nossos
dias: desde o fortalecimento da corporação diplomática diante das outras agências
governamentais, o prestígio e legitimidade obtidos, até a cristalização dos valores e práticas
45
adquiridas por este aprendizado.
2.6.2. Autonomia pelo Distanciamento
Um outro período importante na política externa brasileira foi o da implantação do
"pragmatismo ecumênico e responsável" durante os anos de 1970, em pleno regime militar, e
que difere muito da estratégia de inserção internacional da "autonomia na dependência", já
que as escolhas brasileiras extrapolaram a força gravitacional exercida pela potência norte-
americana.
Do ponto de vista analítico é possível perceber a inauguração do paradigma que é
comumente chamado de universalismo ou globalismo, em condições reais de implementação.
O objetivo geral era o de manter e ampliar o modelo de desenvolvimento implantado,
baseado na substituição de importações que sustentava o ritmo de crescimento industrial
acelerado. Este era entendido como fiador da relativa estabilidade do regime repressor, pois
permitia a diminuição das pressões políticas domésticas ao acomodar interesses econômicos
setoriais.
Em verdade, a formulação diplomática de "autonomia pela distância", também
conhecida como "autonomia no multipolarismo", resgatava os princípios da política externa
independente, formulada durante os governos Jânio Quadros e João Goulart no início dos
anos 1960 (OLIVEIRA, 2005).
Neste novo contexto, o governo Geisel deixou de lado o conceito de fronteiras
ideológicas introduzido logo após o golpe militar no governo de Castello Branco e promoveu
o distanciamento do centro hegemônico, diversificando enormemente o relacionamento
externo. Situação que se prolongou até, pelo menos, o governo Figueiredo.
Mesmo aceitando o papel norte-americano no conflito entre países capitalistas e
socialistas, a diplomacia brasileira justificava suas ações com o argumento econômico, para o
qual o objetivo primordial era atender às demandas do modelo de desenvolvimento existente,
ou seja, diversificação de mercados para os produtos industrializados brasileiros e novos
fornecedores de energia e matérias-primas.
Não havia conflitos sérios do ponto de vista dos interesses políticos entre Brasil e
EUA, mas o mesmo não era possível afirmar sob a ótica econômica. A vulnerabilidade
resultante da existência do regime político autoritário fazia com que as ações externas se
pautassem pelo distanciamento dos temas e acordos internacionais polêmicos (PINHEIRO,
2004).
46
A autonomia - enquanto conjunto de elementos que reforçam o tradicionalismo
diplomático era reformulada através da recuperação dos princípios, valores e tradições já
presentes à época da Política Externa Independente. Mas a ampliação das margens de
manobra, era exercida diminuindo a importância dada às questões de segurança internacional
e justificava-se, na mesma medida, com o argumento de que os EUA não propiciavam
benefícios econômicos concretos. Assim, as condições da autonomia eram dadas pelo
atendimento das demandas econômicas, através da universalização das parcerias para além
das existentes com os países desenvolvidos do mundo ocidental, envolvendo o
restabelecimento das relações com a China, a aproximação com países da África, da Ásia, do
Leste-Europeu e da América Latina, com um estreitamento das relações com os vizinhos.
O atributo de distanciamento atendia às demandas da conjuntura política de então,
caracterizada pela manutenção do sistema autoritário e pelo atendimento às elites dominantes.
Os temas da agenda internacional e os regimes que continham valores conflitantes com esta
realidade eram evitados. Esta tática não se aplicava às divergências em termos de interesses
econômicos presentes no ordenamento internacional, já que o sistema beneficiava
enormemente os países desenvolvidos em detrimento daqueles em desenvolvimento. Estavam
criadas, portanto, as condições para uma ação internacional onde os objetivos do Brasil se
colocariam como representativos dos interesses das nações que buscavam a superação da
condição de subdesenvolvido.
Novamente a funcionalidade adquirida pela política externa brasileira com relação à
organização burocrática estatal, principalmente na figura de seus diplomatas, fortaleceu ainda
mais a vertente pragmática no interior da corporação consolidando, definitivamente, a
importância do tema do desenvolvimento na prática diplomática.
2.6.3. Autonomia pela Participação ou Integração
Com a redemocratização, a partir dos anos 80, inicia-se um período caracterizado
pela ausência das condições que permitiram, no passado, o estabelecimento dos grandes
paradigmas que acompanharam a história da política externa brasileira. Acreditamos que, de
uma forma ou de outra, o conjunto de elementos necessários para isso continua inexistindo.
Assim, essa nova realidade refere-se diretamente ao nosso objeto de pesquisa, pois
mesmo o Tratado de Assunção, que cria formalmente o Mercosul em 1991, possui seus
antecedentes nas iniciativas de cooperação entre Brasil e Argentina de meados dos anos 1980
47
durante o governo Sarney
16
.
Concordamos com Letícia Pinheiro (2004) sobre o fato de que a redemocratização
associada ao fim do modelo predominante de desenvolvimento econômico, baseado na
substituição de importações, colocou um ponto de interrogação sobre o americanismo e o
globalismo, paradigmas dominantes da política externa brasileira.
No plano doméstico havia o duplo desafio de reconstrução das instituições
democráticas, ao mesmo tempo em que se consolidava uma forte crise econômica, com baixo
crescimento, disparada da inflação e crescente endividamento externo.
A situação não era melhor no plano externo, caracterizado por fortes
constrangimentos econômicos que aumentavam a vulnerabilidade brasileira no sistema
internacional. Assim como outros países do hemisfério Sul, o Brasil vivia sob a urgência de
geração de grandes superávits comerciais para o pagamento do serviço da dívida externa. O
resultado dessa situação era o aumento do protecionismo entre os países, já que os objetivos
eram os mesmos, dificultando a cooperação Sul-Sul. Por outro lado, a postura do governo de
Ronald Reagan nos anos 1980, acompanhado em certa medida pela Alemanha ocidental e
demais países industrializados, também dificultavam os esforços para melhorar o
relacionamento com os países do Norte.
Os novos temas das relações internacionais, como direitos humanos, meio ambiente,
narcotráfico, não-proliferação nuclear, entre outros, provocavam uma mudança substancial da
agenda internacional ao mesmo tempo em que aumentavam o ímpeto para a sua
instrumentalização no relacionamento entre os países (OLIVEIRA, 2005). Esta conjuntura
internacional e doméstica tornava clara a dificuldade de formulação de qualquer alternativa de
inserção internacional. Com respeito às relações com os Estados Unidos ocorria um
importante conflito que girava em torno da lei brasileira de proteção à indústria de
informática, onde a existência de fortes interesses internacionais fazia com que a formulação
da política externa sobre o tema adquirisse uma postura reativa (VIGEVANI, 1995). Também
havia situações conflituosas com relação à utilização da energia nuclear, à dívida externa e à
exportação de alguns produtos brasileiros, como calçados e aviões.
Com relação ao comércio multilateral e às negociações em torno da Rodada Uruguai
do GATT, o Brasil revia a sua tática de oposição às questões envolvendo os novos temas do
comércio internacional e, em especial, às negociações sobre propriedade intelectual. Isto
16 Isto será objeto de análise mais pormenorizada em capítulo posterior.
48
representaria uma mudança de postura, no sentido de aceitar, de alguma forma, os custos
provenientes das negociações comerciais internacionais (PINHEIRO, 2004).
Para o Itamaraty, esta nova situação não abalava a sua relativa autonomia na
formulação da política externa brasileira, continuando a contar com grande prestígio na
própria estrutura governamental, assim como na sociedade em geral, sustentado pela grande
profissionalização de seus quadros (HIRST e LIMA, 1990; PINHEIRO, 2004).
Historicamente na política externa brasileira, para haver um período caracterizado
pelo predomínio de um paradigma é preciso condições internacionais favoráveis a uma
inserção fundamentada no modelo de desenvolvimento vigente e, ao mesmo tempo,
sustentada por um governo que consiga atender às demandas das principais elites domésticas
e que mantenha a estabilidade do sistema político. Essas condições não existiam na segunda
metade dos anos 1980.
O curto período do governo Collor de Mello foi caracterizado pela grave crise
política doméstica que culminou com seu impeachment e, com respeito às ações externas, à
tentativa frustrada de reedição do paradigma americanista e à formulação da idéia de
"autonomia pela participação". A idéia era criar as condições para a modernização da
economia brasileira a partir da sua internacionalização, na tentativa de estabelecer o modelo
de desenvolvimento ajustado ao apelo da liberalização econômica, aderindo aos ideais
presentes no corolário de medidas propostas pelos países industrializados e pelas instituições
financeiras internacionais, compilado em torno do que veio a ser chamado de "Consenso de
Washington".
Conforme descrito anteriormente, no período da Política Externa Independente (de
1961 a 1964) e na de alguns governos militares a partir de 1967 (particularmente na
presidência de Geisel de 1974 a 1978), essa busca pela autonomia se deu por meio de um
distanciamento. No período do Pós-Guerra Fria, acentuou-se o debate em parte das elites e
dos formuladores da política externa sobre uma postura mais participativa frente às grandes
questões internacionais, sem deixar de lembrar que, durante boa parte da Guerra Fria a
política externa brasileira foi, de maneira geral, mais influenciada pelos preceitos formulados
por Araújo Castro que se posicionava de forma contrária e resistente à consolidação de
instituições e regimes internacionais considerados “engessadores” da hierarquia do poder
existente. Isso alicerçava a postura da autonomia pelo distanciamento.
O ordenamento mundial do início dos anos 1990 parecia colocar para o Brasil a
necessidade de reforçar sua opção universalista, ou seja, promover uma diversificação de suas
49
relações internacionais, estabelecendo uma lógica em sua política externa pautada pela
participação ativa neste novo ordenamento que se anunciava, diferentemente do que ocorrera
em épocas anteriores.
A forma encontrada para executar essa nova estratégia de inserção internacional seria
participando em diferentes foros, organizações e regimes internacionais, mas principalmente,
por meio da promoção e da participação em processos de integração regional na América do
Sul. Estabelecia-se, então, a noção de autonomia pela participação em contraposição à
autonomia pela distância, operada pela diplomacia brasileira no auge do sistema bipolar
(FONSECA Jr., 1998).
É importante notar que a presença do Itamaraty enquanto ator fundamental no
processo de formulação decisória da política externa foi, momentaneamente, diminuída em
favor da atuação direta do presidente da República. A prerrogativa presidencial no trato das
questões externas e, o que veio a ser conhecido na bibliografia especializada como
"diplomacia presidencial", já tinha feito seu ensaio durante o governo de José Sarney,
principalmente em relação ao processo de integração entre Brasil e Argentina, mas com
Collor ganhou maior visibilidade em virtude de suas características pessoais e estilo de
governo.
Se até 1988, os parâmetros da política externa brasileira davam sentido às políticas
protecionistas, nesta nova configuração Pós-Guerra Fria havia uma necessidade gritante de
sua readequação. Seus formuladores passam a nortear suas estratégias de ação levando em
conta questões como defesa dos direitos humanos, proteção do meio ambiente, democracia,
direitos sociais e, no campo econômico, por reformas liberais que traziam consigo a idéia da
integração econômica. Por conseqüência, ganharam peso na agenda internacional temas como
economia, comércio, competitividade, fluxos tecnológicos, investimentos, fluxos financeiros,
em contraste com a aparente diminuição da importância de questões ligadas à segurança.
Os governos brasileiros desse período buscaram formas de promover a adaptação às
modificações no ambiente internacional. O Ministério das Relações Exteriores criou
departamentos e divisões e adequou suas subsecretarias, visando responder a esses novos
temas. No plano interno, durante os anos 90, diversas medidas foram adotadas em
consonância à inserção internacional e aos regimes internacionais efetivos ou em debate,
como a estabilização econômica, a liberalização cambial, o fim parcial de subsídios, a adoção
de uma nova legislação sobre propriedade intelectual, a maior liberalização das importações, a
relativa liberalização dos investimentos, a privatização de empresas estatais e a renegociação
50
da dívida externa (VIGEVANI e OLIVEIRA, 2004).
A crise política que acabou levando ao final agonizante do governo Collor diminuiu
as possibilidades de participação brasileira no sistema internacional, mesmo com o papel do
Ministro Celso Lafer apresentando uma melhor definição do que seria a idéia de autonomia
pela participação. No entanto, sua consolidação acontecerá somente a partir da posse do vice-
presidente Itamar Franco (FAVERÃO, 2006).
A política externa esforça-se para adaptar os objetivos de autonomia e
desenvolvimento às circunstâncias internacionais. O significado dado à autonomia passa pelo
ajuste das tradições diplomáticas de apoio aos valores internacionais vigentes, que assumem
caráter de universalidade. Mais uma vez, busca-se reeditar a idéia de continuidade.
Concretamente significou, entre outros fatores, uma maior participação nos foros
internacionais, principalmente com a defesa da necessidade de uma reforma no conselho de
segurança da ONU e a candidatura a um assento permanente, sem falar na aceitação de
maiores custos provenientes da postura favorável em participar das missões de paz. A
manutenção das margens de atuação dependeria, a partir de então, da capacidade em ser
reconhecido como um ator influente nos destinos da ordem internacional Pós-Guerra Fria.
No que se refere à posição brasileira diante destas questões podemos afirmar que a
saída do Ministro de Relações Exteriores Fernando Henrique Cardoso para a entrada de Celso
Amorim não resultou em mudanças importantes na estratégia adotada (FAVERÃO, 2006).
A respeito das questões que se relacionam ao desenvolvimento podemos dizer que se
manteve o padrão de integração da economia brasileira aos fluxos da globalização,
continuando a priorizar os processos de integração regional, tanto no Mercosul quanto nas
intenções de criar uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), além de negociar
acordos comerciais com os EUA e a União Européia.
A postura brasileira também ficou mais clara com relação às negociações comerciais
multilaterais. Aproveitamos para lembrar que estes assuntos serão tratados detalhadamente
mais adiante, pois este período, que a princípio pode parecer como tendo sido transitório,
muito em virtude das perturbações da política doméstica, se mostrou fundamental para as
explicações propostas no início deste texto.
A política externa durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso, ao
mesmo tempo em que manteve a decisão de participar ativamente dos foros internacionais e,
deste ponto de vista não apresenta grande inovação, também buscou retirar desta participação
benefícios mais concretos com a menor geração de custos possível. Se a participação era
51
inevitável então esta deveria ocorrer da maneira mais vantajosa (VIGEVANI e OLIVEIRA,
2004).
Apesar de apresentar uma estratégia considerada como moderada e conciliadora
podemos afirmar que, de maneira geral, o objetivo era reforçar a atitude pragmática perante as
pressões da globalização que atuavam no sentido de relativizar o exercício da autonomia. Para
isso, fortaleceram-se as ações para reforçar a posição de "global player" e "global trader",
resultando na elevação da prioridade assumida pelas grandes negociações comerciais
internacionais (OMC, ALCA, Mercosul-União Européia).
Se havia clareza quanto à existência de um modelo econômico - o mesmo não é
possível afirmar em relação a um modelo de desenvolvimento - só restava buscar no plano
internacional oportunidades que ajudassem na melhoria da capacidade de solução para os
problemas domésticos. Este era o entendimento sobre o perfil de atuação possível no
ordenamento Pós-Guerra Fria (VIGEVANI e OLIVEIRA, 2004; PINHEIRO, 2004).
A intensificação da participação brasileira nos foros multilaterais é acompanhada,
portanto, pela busca de maior institucionalização como forma de garantir ganhos, revelar as
assimetrias de poder existentes e buscar a criação de mecanismos capazes de controlar essas
diferenças. É interessante notar que o mesmo não pode ser afirmado quando analisamos a
posição brasileira perante a integração no Cone Sul, que tem sido contrária ao
aprofundamento institucional do bloco.
Assim, o núcleo da política externa era essencialmente o mesmo da idéia de
"autonomia pela participação", como esclarece o então Ministro de Relações Exteriores Luiz
Felipe Lampreia:
O Embaixador Gelson Fonseca Júnior, em livro recentemente
publicado, faz contraste semelhante da busca, no passado, do que
denomina 'autonomia pela distância', com a atual construção da
'autonomia pela participação'. A concepção é essencialmente a mesma;
embora o conceito de integração talvez seja mais concreto, mais gráfico
(1998:11).
Vale também atentar para a declaração do Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa
que também reforça essa idéia:
“(...) A agenda externa, portanto, vem passando por uma evolução
considerável, mas não mudaram os princípios fundamentais da política
52
externa brasileira, em especial a preocupação permanente de buscar
preservar o maior grau possível de autonomia de ações. Na expressão
do Embaixador Gelson Fonseca Junior, contudo, a busca da autonomia
não mais se faz através do distanciamento, mas sim através da
integração. Em temas como democracia, direitos humanos, meio
ambiente, não proliferação, integração comercial ou abertura
econômica, a atuação da diplomacia brasileira vai ao encontro daquilo
que a sociedade nacional deseja para o País - e não representa, em
absoluto, uma renúncia ao objetivo permanente de resguardar a
autonomia de nossa política externa (...)” (1999)
17
.
Fica, assim, estabelecida a idéia da "autonomia pela integração", que é melhor
explicada nas palavras do mesmo embaixador:
A agenda da diplomacia sofreu alterações, mas não mudaram os
princípios fundamentais da política externa, os que nos acompanham
desde o início de nossa história, em especial o de buscar, mediante a
negociação pragmática e a afirmação dos valores nacionais, preservar a
nossa unidade e a inteireza do nosso projeto nacional de
desenvolvimento, assegurando o maior grau possível de autonomia para
nossos movimentos. Uma autonomia que não mais se atinge pelo
distanciamento, pela recusa ou pela confrontação, mas sim pela
aproximação, pelo diálogo, pela integração (CORRÊA, 2000: 31).
O trabalho de Vieira (2002), que avaliou o discurso diplomático no período que vai
de 1995 até 2001, demonstra claramente o esforço no sentido de adaptar a tradição às
mudanças vividas naquele momento, mantendo a idéia de continuidade. Se a autonomia na
política externa brasileira, de maneira geral, é a forma como se mantém ou se amplia as
margens de manobra no sistema internacional, o trecho a seguir demonstra como o corpo
diplomático pretendia fazer isso:
“(...) A segunda pergunta é como o Brasil deseja relacionar-se com a
comunidade internacional? A resposta básica pode ser encontrada em
princípios que tradicionalmente têm orientado a nossa política externa,
como os da não intervenção, respeito à autodeterminação, não
ingerência em assuntos internos, e solução pacífica de controvérsias
17 Palestra do Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, no Centro
de Formação e Aperfeiçoamento de Recursos Humanos (CEFARH) da Secretaria de Inteligência do Gabinete
de Segurança Institucional da Presidência da República. Brasília, 05/11/1999.
53
(...)” (LAMPREIA, 1998: 10)
Sobre as questões relativas ao desenvolvimento, o discurso faz forte menção à
consolidação da democracia e da situação de estabilidade econômica (VIEIRA, 2002). No
entanto, ressaltamos que ainda não havia condições para a consolidação de um paradigma,
visto que os benefícios possíveis desta estratégia atenderiam apenas ao modelo econômico
caracterizado pela adoção de diversas políticas entendidas como neoliberais. Mesmo havendo
forte funcionalidade entre a política externa e a econômica, inexistia um modelo de
desenvolvimento amplamente apoiado e com capacidade real de promover um crescimento
sustentável, diferentemente das situações anteriores que garantiram a consolidação dos
paradigmas dominantes. Podemos dizer que esta situação perdura até os dias de hoje.
Os dados básicos de nossa presença internacional democracia e
estabilidade econômica traduzem-se em maior credibilidade externa.
Manter e ampliar essa credibilidade de modo algum significa renunciar
a caminhos e escolhas próprios. O atual momento da história mundial
exige, no entanto, que as opções nacionais se façam dentro dos
parâmetros políticos, econômicos, sociais e ambientais predominantes
no meio internacional e correspondam, de modo geral, aos valores e
desejos dos brasileiros” (LAMPREIA, 1998: 8).
A política externa inaugurada a partir do início do governo Lula da Silva, apesar de
polêmica e da ampla cobertura dada pelos meios de comunicação, ainda conta com poucos
estudos acadêmicos analisando-a. Contudo, ela assume grande importância para este texto,
porque nossas conclusões se voltam em boa medida para este período, principalmente no que
se refere à intensificação das pressões sobre o caráter de continuidade das ações externas
brasileiras. Assim, trataremos de forma muito breve, como a autonomia e o desenvolvimento
se apresentam nos dias de hoje.
Apesar da razoável estabilidade de nossa política externa, ao menos nos últimos 40
anos, sustentada por objetivos gerais de inserção internacional de caráter predominantemente
econômico, é possível afirmar que, de maneira, geral os anos 1990 foram caracterizados pela
inexistência de um consenso entre as elites dominantes capaz de apoiar algum paradigma
alternativo ao globalismo (HIRST e LIMA, 2002).
Além desse fato, para tentar compreender este período é oportuno lembrar a
intensificação da diplomacia presidencial, principalmente com relação à integração na
54
América do Sul - e um exemplo importante é a reedição da iniciativa de criação da
Comunidade Sul-Americana de Nações em dezembro de 2004 (BURGES, 2005) - e a
inovação de criar a figura de um assessor especial da presidência da República, função
desempenhada por Marco Aurélio Garcia, que inicia sua atuação tendo um papel importante
na representação do presidente eleito ao encontrar-se com o presidente Hugo Chaves em
dezembro de 2002, em Cararas, manifestando a preocupação do novo governo a respeito da
crise política venezuelana. O mais interessante é notar que isso ocorreu antes mesmo do novo
governo tomar posse, consistindo no primeiro indício de mudanças com respeito às ações
externas, principalmente pelo fato da pessoa escolhida para este papel não ter origem na
diplomacia oficial, mas na atividade de militância partidária (CRUZ e STUART, 2003).
Já em 2003 é possível perceber o esforço no sentido de consolidação de uma postura
predominantemente globalista, tendo como missão prioritária o estancamento do processo de
negociação da ALCA, conforme a análise dos acontecimentos indicou.
Ao mesmo tempo, reforçaram-se as iniciativas em direção à integração da América
do Sul consistindo, de alguma forma, no resgate das idéias presentes na proposta de
constituição de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA) elaborada durante o
governo Itamar Franco, lembrando que o a decisão de voltar-se para a América do Sul já se
apresentava em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso.
A continuidade, diante das circunstâncias domésticas e internacionais, viabilizou-se a
partir do predomínio da perspectiva do globalismo, revisando a forma de negociação com os
países desenvolvidos, fortalecendo a idéia de cooperação Sul-Sul e, também, ajustando a
atuação brasileira no âmbito do Mercosul (VEIGA, 2005). Entendemos que este último fator é
o mais importante de todos, não só porque é o foco principal desta análise, mas porque
acreditamos que este processo possui as condições reais para o surgimento das pressões mais
relevantes sobre o elemento de continuidade da política externa brasileira e, por outro lado, a
pesquisa empírica realizada indicou um significativo esforço diplomático no sentido de
controle e limitação do aprofundamento deste processo, como veremos mais adiante.
Também é importante notar que o esforço com vistas à América do Sul não se
desconecta das iniciativas de estreitamento de relações com outras potências médias, como
África do Sul e Índia, além de outras potências mundiais como China e Rússia (HIRST,
2006).
A idéia de autonomia tem sido fortemente associada à idéia de desenvolvimento, seja
nas posições adotadas nas grandes negociações comerciais internacionais ou na tentativa de
55
associar esse tema com pressões em torno de uma reforma das Nações Unidas. Se não é
possível afirmar que há uma funcionalidade entre a política externa e um modelo de
desenvolvimento econômico em pleno funcionamento, podemos, entretanto, perceber que as
medidas tomadas possuem forte caráter preventivo e buscam sua legitimação com vistas a
uma futura, ou hipotética, condição de consenso interno capaz de sustentar um novo padrão
de crescimento econômico. Os trechos abaixo ajudam a compreender este tipo de orientação:
A Alca é a mais recente, porém a mais ampla iniciativa no quadro dessa
estratégia, pois visa a construir um território econômico único, onde os
Estados subdesenvolvidos não poderão, na prática, ter política
comercial, industrial e tecnológica e, portanto, projetos nacionais de
desenvolvimento (GUIMARÃES, 2006: 353)
18
.
Convencidos de que o multilateralismo representa, para as relações
internacionais, o mesmo avanço político representado pela democracia,
nacionalmente, consideramos indispensável que o processo de reforma
das Nações Unidas contribua para fortalecer a voz dos países em
desenvolvimento e da América do Sul em particular na promoção
da paz (AMORIM, 2004: 45)
19
.
O fato curioso concluído a partir da análise dos discursos e da diplomacia depois de
2003 está na ausência de uma formulação diplomática em torno de um conceito representativo
das diretrizes externas vigentes. Pelo menos no período correspondente ao primeiro governo
Lula da Silva, o esforço diplomático no sentido de construir uma idéia claramente oposta ao
período anterior não foi feito, diferentemente da época da formulação de uma "autonomia pela
integração", que buscava diferenciar-se claramente daquela caracterizada pela "autonomia
pelo distanciamento".
Isso não significa que a orientação externa do atual governo seja, em essência, a
mesma do governo anterior, mas pode significar um aumento acentuado nas pressões sobre a
própria formulação diplomática, colocando em questão a capacidade do Itamaraty em manter
sua relativa e tradicional autonomia.
Historicamente, conforme já demonstrado, o discurso diplomático sobre a autonomia
tem tido o trabalho de sistematizar e adequar os fundamentos da continuidade às
18 Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário-Geral do Ministério de Relações Exteriores
19 Celso Amorim , Ministro de Relações Exteriores do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
56
circunstâncias do momento. Sendo assim, não acreditamos que esse padrão de
comportamento tenha mudado por vontade própria, porque foi uma das formas eficientes de
legitimar as escolhas realizadas e, conseqüentemente, a própria corporação. Pelo contrário, a
paralisação momentânea desta atividade parece denotar o cuidado em não construir e tornar
público um discurso com características de ambigüidade, em virtude da concorrência exercida
pela diplomacia presidencial e as crescentes demandas provenientes de outros atores
domésticos.
O esforço até o momento realizado para descrever, mesmo que brevemente, a forma
pela qual o corpo diplomático constrói e reconstrói o modelo preponderante de ação externa
de um determinado período, teve o objetivo de elaborar um termo de comparação para o
capítulo que tratará do modelo de Mercosul contido na política externa brasileira, a fim de
explicar melhor como, neste caso, as questões de autonomia e desenvolvimento são ajustadas
às intenções manifestas para com a integração regional.
Antes disso, no entanto, é necessário entender de forma mais detalhada como as
pressões acima mencionadas se apresentam concretamente, o que faremos no próximo
capítulo.
57
3. As Pressões Sobre a Diplomacia no Pós-Guerra
Fria
O objetivo deste capítulo é delimitar a existência de uma crescente tensão entre a
conhecida continuidade da política externa brasileira e uma nova realidade marcada pela
intensificação acentuada de pressões resultantes do contexto doméstico, principalmente a
partir da redemocratização brasileira, e das alterações no sistema internacional a partir do
final da Guerra-Fria
20
.
Essas pressões com origens diversas afetam diretamente a diplomacia. Não é nosso
objetivo explorar profundamente esse assunto, mas apenas levantar alguns fatores que
contribuem para essa realidade, a fim de demonstrar como essas pressões desafiam a
conhecida capacidade de adaptação do corpo diplomático e contrastam com a intenção deste
de formatar um modelo de integração para o Mercosul delimitado pelas características que
permitiram manter esse relativo insulamento burocrático.
A diplomacia reconhece essa nova realidade na qual surgem novos atores com
intenção de influir na formulação da agenda externa brasileira. No entanto, em seu discurso
busca diminuir a possibilidade de tensão e valorizar a idéia de respaldo social obtido
tradicionalmente por essa corporação no trato das questões externas.
O aprimoramento do diálogo com a sociedade é indispensável por três
razões fundamentais. Duas são evidentes: a necessidade de que a
política externa reflita cada vez mais fielmente os interesses da
população e de que o Itamaraty preste conta com regularidade de suas
políticas e ações. A terceira razão é menos óbvia, mas de fundamental
importância: é o respaldo da sociedade que legitima e fortalece as
posições de negociação brasileiras nos mais diversos temas
internacionais. (...) A preservação dos interesses do País no
relacionamento com os demais Estados será tanto mais defensável
quanto mais respaldadas internamente forem as posições adotadas pelo
Itamaraty (BARROS, 1998: 23)
21
.
É interessante notar que a política externa em países com um sistema político
20 Essa nova realidade tem sido abordada por diversos autores que trabalham, direta ou indiretamente, com o
tema (HIRST e LIMA, 2002; OLIVEIRA, 2005-b; PRETO, 2006; SANCHEZ, 2006; HOLZHACKER,
2006).
21 Embaixador Sebastião do Rego Barros.
58
caracterizado por uma democracia pluralista consolidada, em geral, apresentam significativa
dificuldade em manter uma mesma linha de atuação externa durante um longo período de
tempo, visto que é necessário lidar com uma maior complexidade resultante da grande
diversidade de interesses no jogo político doméstico e, assim, adaptar suas ações externas ao
atendimento dos anseios internos (DEUTSCH, 1982).
A afirmação acima, ao mesmo tempo em que contrasta com a realidade brasileira em
termos de ampliação da sua agenda internacional, também sugere a possibilidade de que o
aprimoramento das instituições democráticas nacionais possa melhorar as condições de
participação e controle sobre as escolhas externas.
3.1. A Democratização
A democratização a partir de meados dos anos 1980 resultou em modificações
importantes para a formulação da política externa brasileira, em grande parte devido à
existência de um pluralismo conflituoso na vida doméstica. A conseqüência direta, reforçando
o que já foi afirmado, tem sido a diminuição da autonomia do Ministério das Relações
Exteriores sobre a tomada de decisões que trata destas questões, tornando o processo cada vez
mais politizado e revelando a crescente dificuldade em definir o que seria o interesse nacional
(AMARAL JR., 2003). Isso explica, de certa forma, o debate acadêmico sobre as mudanças
ocorridas dentro dos limites dados pela tradição de continuidade (SANTISO, 2002).
Apesar de datarmos o momento em que ocorre a intensificação dessas tensões, é
importante lembrar que o Itamaraty desfrutou de uma maior autonomia justamente durante os
períodos autoritários, em contraposição aos momentos de maior democratização quando o
aumento das pressões políticas domésticas influencia, em alguma medida, o processo de
formulação externa (MARQUES, 2005).
A própria Constituição de 1988 define como orientação básica de nossas relações
internacionais a defesa da democracia e dos direitos humanos enquanto elementos formadores
de nossas ações no plano internacional (SANTISO, 2002).
Se por um lado não podemos afirmar que há uma grande ampliação da participação
na esfera decisória em matéria de política externa, por outro, a partir da pesquisa empírica
realizada para este trabalho reforça-se as evidências encontradas em recente estudo que
analisou os discursos dos principais chanceleres nestes últimos quinze anos (HOLZHACKER,
2006), que demonstra o esforço diplomático em reconhecer as mudanças impostas pela
democratização do sistema político e em afirmar que o Itamaraty está aberto às demandas
59
provenientes dos atores sociais.
Tanto nas atividades diplomáticas tradicionais quanto na prestação de
serviços, o Itamaraty orientou-se nos anos de 1995 a 1998 por uma
meta fundamental, o da crescente aproximação da instituição com a
sociedade. Embora desde a redemocratização do país em 1985, o MRE
já se viesse abrindo, de modo progressivo, ao diálogo com os mais
diversos grupos e entidades sociais, operou-se ao longo dos últimos
quatro anos um aprofundamento da interação com parlamentares,
governos estaduais e municipais, empresários, sindicalistas, ONGs e
imprensa. Esta nova dimensão do diálogo com a sociedade derivou do
espírito democrático e de transparência que marca o Governo do
Presidente Fernando Henrique Cardoso e da convicção de que a política
externa será tanto mais eficiente como instrumento para o
desenvolvimento do País quanto mais afinada estiver com os anseios e
preocupações da sociedade brasileira (BARROS, 1998: 27)
22
.
Numa concepção de política externa mais antiga, os Estados são os únicos atores
com competência internacional. Numa visão mais moderna, no entanto, concebe-se que no
Estado democrático a política externa é formulada a partir de um leque de atores domésticos,
extrapolando o âmbito estritamente governamental.
Neste trabalho utilizamos uma concepção semelhante à exposta por Marcel Merle
(1990), na qual a diplomacia corresponde a uma parcela importante da totalidade de atores
com capacidade de ter algum tipo de influência na formulação e na implementação da política
externa de um Estado. Dentro deste conjunto participam tanto atores domésticos -
empresariado, organizações sindicais, organizações não-governamentais, governos não
centrais, entre outros -, quanto atores transnacionais como organizações internacionais
intergovernamentais, organizações não-governamentais internacionais, empresas
transnacionais, organizações religiosas e outros.
Essa concepção parte do diagnóstico de que as relações internacionais
contemporâneas têm convivido cada vez mais com fenômenos de criação de laços de
solidariedade que ultrapassam as fronteiras estatais, nas quais os interesses, valores e
referências muitas vezes se estabelecem sem respeitar as vontades nacionais. Essa
solidariedade transnacional acaba, de uma maneira ou de outra, competindo com a autoridade
estatal. Ao mesmo tempo, está longe de configurar-se enquanto uma alternativa viável.
22 Embaixador Sebastião do Rego Barros.
60
Assim, se o Estado Nacional se mantém, mesmo com todos esses elementos de
fragilização, então a política externa também mantém a sua importância. Em resumo,
considerando todos estes elementos característicos da realidade atual aceitamos a definição
proposta por Merle (1990) que entende a política externa como o "(...) conjunto de iniciativas
que emanam do ator estatal, tendo em vista mobilizar para o seu serviço o máximo de fatores
disponíveis tanto no ambiente interno como no ambiente externo (...)".
Esses novos atores na formulação da política externa brasileira organizam-se em
grupos representantes de interesses específicos e, assim, é importante considerar que há uma
grande variação entre eles no que se refere ao ímpeto em participar ou tentar influir. Alguns
têm um interesse muito mais direto nos assuntos externos, como os exportadores, enquanto
outros podem ter um interesse momentâneo sobre determinados assuntos (HAAS e
WHITING, 1956).
Na realidade brasileira, e conforme já foi abordado anteriormente, é claro o
predomínio do Ministério das Relações Exteriores que tem sido o ator central na definição da
atuação externa. No entanto, a bibliografia especializada diagnosticou a partir dos anos 1990
o aumento da atividade de novos atores (PRETO, 2006).
A análise de HIRST e LIMA (2002) demonstra a relação entre o aumento da
diversidade de atores com interesse específico nas questões externas e o aumento dos
impactos sobre a forma como o Brasil tem se comportado no plano internacional. O resultado
disso foi um processo decisório mais complexo, havendo a participação de atores domésticos
e internacionais, impactando também sobre a forma de atuação da diplomacia oficial.
É possível inclusive afirmar que a partir da gestão de Celso Lafer (2001-2002) como
chanceler, há um reconhecimento público da necessidade de ampliação dos instrumentos de
interação entre a diplomacia e os demais atores domésticos (OLIVEIRA, 2005-b).
No entanto, o fato de haver ampliação do diálogo com os diversos atores interessados
em discutir a atuação brasileira no mundo, o que de fato tem acontecido
23
, não garante
necessariamente a incorporação de reivindicações setoriais às decisões e posturas externas.
Em geral, a aceitação de demandas setoriais ocorreu quando houve concordância prévia por
parte dos negociadores oficiais (CERQUEIRA, 2005). Esta afirmação é especialmente válida
23 Um dos casos que pode exemplificar a existência de canais de interação entre negociadores governamentais
brasileiros, principalmente a diplomacia, com organizações não-governamentais foi a atuação dos países em
desenvolvimento em torno da flexibilização do acordo de Propriedade Intelectual no âmbito da OMC
(TRIPS), motivados pelo sucesso da política brasileira de apoio governamental aos portadores do HIV/AIDS
(SANTOS, 2005).
61
no que se refere às posições brasileiras nas negociações do Mercosul, entre as quais, várias
vezes, ou ocorre a resistência ao atendimento das demandas ou há certa instrumentação
destas, conforme veremos em capítulo mais adiante.
A opinião pública é outra fonte de pressão sobre a relativa estabilidade da política
externa brasileira que começa a ser melhor estudada. Até poucos anos atrás, o entendimento
geral era de que a opinião pública não se interessava pelos temas internacionais, o que parecia
ter respaldo na pesquisa empírica. Atualmente esta afirmação está sendo relativizada, já que
diversos temas da área de relações internacionais têm repercussão direta sobre a vida das
pessoas e, em alguns casos especiais, há manifestações claras desta nova realidade.
Mesmo sendo apenas uma das formas de verificação dessa mudança, basta fazer uma
rápida pesquisa cronológica em bancos de dados de notícias de alguns dos principais jornais
brasileiros para perceber que, pelo menos a partir da segunda metade dos anos de 1990, há
uma crescente presença deste tipo de notícia em relação aos outros temas em pauta.
Assim, o pressuposto de que existe um absoluto desinteresse e grande
desconhecimento a respeito dos assuntos internacionais por parte da população tem, cada vez
mais, perdido a sua validade. Algumas pesquisas empíricas recentes demonstraram
interessantes surpresas a esse respeito. Cerqueira (2005), ao estudar a diplomacia presidencial
no período Fernando Henrique Cardoso, demonstrou que a performance internacional do
presidente atraía a atenção dos meios de comunicação sobre as ações externas e, quanto mais
um tema permanecia na pauta jornalística mais relevante se tornava para o debate público. O
resultado foi uma crescente atenção por parte dos principais formadores de opinião
enfraquecendo, paulatinamente, o papel central desempenhado pelo corpo diplomático de
transmitir à sociedade as informações sobre as ações implementadas diante de uma
determinada visão do sistema internacional.
Por outro lado, Holzhacker (2006), ao analisar as atitudes das elites e dos públicos de
massa frente ao debate presente no âmbito diplomático, constatou que ainda há forte
capacidade de coordenação dessa discussão por parte do Itamaraty. No entanto, para esta
autora, fica claro o momento transitório vivido pela sociedade brasileira com respeito a essa
questão, na qual a gestação dos temas da agenda externa ganha sentido inverso, deixando a
tradicional lógica de uma determinada elite burocrática levar à sociedade uma agenda pré-
formatada. A conseqüência desta transição tem sido a presença de posições divergentes, em
alguns casos contraditórios, entre as elites e os públicos de massa, assim como entre a
diplomacia oficial e a sociedade em geral.
62
3.2. A liberalização, a abertura da economia e a internacionalização
brasileira
Se a democracia facilitou o estreitamento da ligação entre a formação de nossa
política externa e a opinião pública, além da presença de novos atores, também é verdade que
a abertura econômica em direção ao mercado internacional - seja através da dependência em
relação aos investimentos externos, da internacionalização das empresas nacionais, do
movimento de fusão entre grandes conglomerados empresariais, ou dos resultados das
privatizações realizadas - alterou significativamente a composição dos interesses que
normalmente se fazem representar nas decisões externas, já que a maior interdependência no
plano econômico, além de outras áreas, altera a distribuição dos benefícios obtidos e das
perdas.
As conseqüências da adesão aos regimes econômicos internacionais são forças que
diminuem a capacidade diplomática em manter a confortável situação de insulamento
burocrático. Ainda que permaneçam elementos importantes da prática da delegação ao Poder
Executivo do trato público com respeito às questões internacionais. Isso é fruto não de sua
prerrogativa sobre a política externa estabelecida pela própria Constituição Nacional, o que
lhe garante uma grande dose de legitimidade, mas também da percepção construída através
dos anos de que assim deveria ser, tanto por parte das elites políticas como do Poder
Legislativo (LIMA, 2000).
Este tipo de percepção, que influencia o restante da sociedade, perde gradativamente
suas condições de sustentação, conforme aumentam os interesses em competição,
principalmente no que se refere às conseqüências diretas sobre o cotidiano da população,
multiplicando as diferenças de opiniões e posturas (HOLZHACKER, 2006).
Com relação ao Mercosul, como veremos mais adiante, esta situação parece ter
chegado a um ponto sem retorno, pelo menos no que diz respeito à realidade brasileira a partir
de 2005.
Outra ordem de fatores que contribuem com as pressões para uma ampliação da
discussão sobre as questões externas surge quando o Brasil passa a participar, de forma mais
intensa, das grandes negociações internacionais, tanto na esfera política como econômica
especialmente no âmbito da ONU e da OMC - e nas negociações em torno de processos de
integração regional como o Mercosul e a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Essa nova realidade reforça a atração de mais atores domésticos ao debate sobre as
63
questões internacionais e a atuação brasileira. Neste sentido, houve maior pressão para o
surgimento de novos canais institucionalizados de comunicação e participação da sociedade
civil, como de outras instâncias governamentais, sobre o Ministério das Relações Exteriores
que, a despeito disso, ainda concentra grande parte do poder decisório na construção da
estratégia de inserção internacional do país.
Essas experiências resultantes geralmente da criação de mecanismos negociadores
com algum grau de institucionalização, principalmente no caso da integração regional, estão
profundamente relacionadas a temas domésticos e internacionais, chegando a alguns casos a
perder o sentido em fazer este tipo de separação. Além disso, produzem impactos reais sobre
o estilo de vida de parcelas importantes da população e alteram a percepção dos grupos
domésticos e da opinião pública com respeito às influências do sistema internacional sobre a
vida cotidiana (CERQUEIRA, 2005; HOLZHACKER, 2006).
Vale notar que na atual crise do Mercosul, em virtude do reconhecimento das
conseqüências efetivas originadas pelo seu caráter absolutamente comercial, houve uma
mudança de atitude e de percepção quase que generalizada no sentido da necessidade de
alterar o seu formato institucional, como forma de diminuir os impactos negativos a partir da
criação de instrumentos e políticas específicas para esta finalidade (CAMARGO, 2006).
Já as negociações sobre a possibilidade de criação de uma Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA), em especial no período que vai de 1997 a 2003, serviram de ensaio a
respeito do conjunto de pressões que podem modificar substancialmente a forma como o
Estado brasileiro trata as questões internacionais. Apesar de este ser somente um processo
negociador e, portanto, sua implementação seria executada em um momento posterior, o que
difere em muito da metodologia de integração adotada no Mercosul, verificou-se um nível de
discussão inédito sobre a repercussão de um bloco formado pela totalidade dos países do
continente americano, com exceção de Cuba, e com a presença determinante da potência
norte-americana.
Mesmo com o apoio tácito da diplomacia brasileira à postura predominante de
reprovação à formação deste bloco e apesar da presença de opiniões diversas, podemos dizer
que o debate público foi amplo o bastante para conseguir, mesmo que momentaneamente,
quebrar o padrão de baixo perfil de mobilização com respeito aos assuntos internacionais, no
qual o empresariado, as organizações sindicais, os partidos políticos, as diferentes
organizações da sociedade de civil, com destaque para setores da Igreja Católica, além do
próprio Congresso Nacional, manifestaram e interagiram com grande intensidade
64
(VIGEVANI e MARIANO, 2003; 2005; OLIVEIRA, 2003).
Vale ressaltar como exemplo deste período a campanha política transnacional em
torno da realização de plebiscitos em diferentes países sobre a ALCA e, também, a formação
da Aliança Social Continental composta por uma rede de organizações sociais presentes em
diversos países do continente, com finalidades diversas, mas conjugando esforços e
estratégias contrárias ao avanço do processo.
O fato interessante deste tipo de coalizão social que ultrapassa as fronteiras nacionais
é que mesmo após os motivos iniciais pelos quais se formou a coalizão estarem superados,
ainda permanecem os laços de solidariedade criados, permitindo a continuidade das atividades
no sentido de intervir em outras arenas de negociação, como por exemplo, o acordo de criação
de uma área de livre comércio entre o Mercosul e a União Européia, assim como nos
resultados das negociações comerciais multilaterais.
As modificações não se restringiram ao nível das atitudes, formas de interação e de
repercussão sobre a cultura política, mas também demonstraram que as estruturas do Estado,
quando orientadas sob uma forte perspectiva de perda nas suas capacidades de exercício
legítimo do poder, implementam modificações organizacionais, mesmo que limitadas, no
sentido de lidar com essa crescente complexidade de interesses e, simultaneamente, ganhar
agilidade diante das demandas oriundas da participação nas negociações comerciais
internacionais.
Exemplos importantes deste fato foi a criação de mecanismos formais ou informais
para dar conta das transformações contemporâneas, como o Fórum Empresarial das Américas,
a Coalizão Empresarial Brasileira, Seção Nacional da Alca (SENALCA), a Seção Nacional da
Europa (SENEUROPA), o Comitê Empresarial Permanente e o Fórum Empresarial Mercosul
Europa (OLIVEIRA, 2003).
É possível ainda afirmar que o entendimento geral de aceitação da existência de uma
diferença de tempos entre a política externa e a política doméstica, que é comumente
relembrado nos discursos da diplomacia oficial, se torna cada vez mais insustentável.
No caso do debate sobre a ALCA, além de reviver os componentes culturais e
ideológicos representados no sentimento anti-americanista, as posições contrárias tiveram
forte apoio dos setores descontentes com os resultados das reformas liberalizantes
(ALBUQUERQUE, 1992). As percepções orientadas pela forte desconfiança, tanto nas elites
quanto nos públicos de massa, sobre os possíveis efeitos da criação da área de livre comércio
hemisférica demonstraram a inexistência de um consenso social capaz de sustentar um
65
processo como este, além do desafio colocado para o corpo diplomático no sentido de tentar
coordenar processos tão complexos (VIGEVANI e MARIANO, 2003; HOLZHACKER,
2006).
Outro aspecto que deve ser considerado na atuação externa brasileira no Pós-Guerra
Fria é o surgimento e a consolidação do fenômeno da diplomacia presidencial (DANESE,
1999; PRETO, 2006). Não menos importante do que o conhecimento das linhas gerais da
política externa brasileira, o desempenho da liderança presidencial mostrou-se como um fator
capaz de impulsionar ou, em determinados casos, modificar e até dificultar os rumos da
condução das negociações externas. Por esta razão, constitui-se em mais um elemento
relevante a ser levado em consideração, principalmente no que se refere à necessidade de
avaliação da condução decisória e da conformação do modelo de integração adotado no
Mercosul, inclusive porque esse fenômeno pode ser identificado já no processo de
aproximação entre Brasil e Argentina a partir da assinatura da “Declaração de Iguaçú” pelos
presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín em 1985.
Vale ressaltar que tanto na sua constituição como ao longo de todo o processo
negociador do Mercosul é crescente a concentração da vontade política para o
aprofundamento da integração na figura presidencial (DANESE, 1999; MALAMUD, 2001;
PINHEIRO, 2004).
Em pesquisa realizada sobre a diplomacia presidencial Preto (2006) descreve a
existência de diversas nomenclaturas para o mesmo fenômeno: "nova diplomacia
presidencial", "diplomacia pessoal", "diplomacia personalizada", "diplomacia de cúpula",
"diplomacia de chefes de estado ou de governo" e, também, "diplomacia de mandatários".
Além do fato de ainda ser pouco estudada a autora também concluiu que o seu
conceito ainda permanece indefinido e, se por um lado diversos autores não identificam
problemas sérios na sua utilização, outros entendem que a indefinição denota imprecisão e
impede o seu uso nas análises realizadas.
Entendemos que evitar o seu uso, o que não tem acontecido na bibliografia mais
recente, pode ser um exagero, já que o fato concreto foi verificado empiricamente e revela um
aumento da atividade externa da figura presidencial. Assim, nesta pesquisa, utilizamos o
termo diplomacia presidencial que é predominante na bibliografia especializada e, ademais,
acreditamos que a indefinição na nomenclatura não põe em dúvida a existência do fato.
No caso brasileiro, podemos dizer que esta prática se consolidou definitivamente no
governo de Fernando Henrique Cardoso que já no seu início evidencia essa intenção e
66
apresenta ao longo de sua administração uma grande quantidade de compromissos
internacionais realizados o que, por sinal, foi marcado pela ampla divulgação obtida nos
meios de comunicação (CERVO, 2002; CERQUEIRA, 2005).
Outro instrumento que estamos utilizando como nunca antes em nossa
história diplomática é a diplomacia presidencial, ou seja, o
envolvimento direto, pessoal, do presidente da República na condução
de iniciativas diplomáticas, especialmente por meio de viagens
(LAMPREIA, 1999: 201)
24
.
O presidente da república é, por si só, um ator fundamental no jogo político
doméstico que define a política externa de um Estado democrático. No entanto, e
principalmente no caso brasileiro, sua vontade concorre com outros fatores de influência e
também com o trabalho prévio de encaminhamento da burocracia diplomática. Assim, é
possível afirmar que sua capacidade de influência possui determinados limites que definem
um padrão. Quando a ação presidencial o extrapola, indica que está havendo o exercício da
diplomacia presidencial (DANESE, 1999; PRETO, 2006).
Entendemos ser importante ressaltar que esses limites abarcam tanto as atribuições
constitucionais, como aqueles resultantes da própria forma como a política externa foi
exercida ao longo dos anos, sendo portanto socialmente construídos a partir da consolidação
das expectativas dos diversos atores em situação de interação.
Assim, podemos entender a diplomacia presidencial como mais uma fonte de pressão
sobre a relativa autonomia diplomática na medida em que, a partir de meados dos anos 1990,
acentua-se uma mudança no padrão de comportamento presidencial com relação às questões
externas, que ganha relevância ainda maior no governo de Lula da Silva e tem repercussões
diretas sobre o processo de integração regional do Cone Sul.
3.3. Conseqüências do aumento da pressão
Poderíamos descrever outros fatores com capacidade de incidir sobre a formação da
política externa no Brasil, ao invés disso, abordaremos rapidamente ao menos três
conseqüências da intensificação dessas pressões.
A primeira refere-se à maior complexidade existente e a suas repercussões analíticas.
Lembramos que iniciamos este texto abordando a singularidade da política externa brasileira,
24 Ministro de Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia.
67
que tinha como característica fundamental a continuidade - chegando a receber nesta pesquisa
o status de pressuposto. Mesmo aceitando esse fato, vimos que esta singularidade está
perdendo as condições de sua manutenção nas últimas duas décadas.
Entretanto, ainda não é possível afirmar que esta realidade já se alterou, sendo mais
correto abordar esta questão delimitando a existência de um período de transição. Sendo
assim, torna-se mais fácil o entendimento da dificuldade analítica que caracteriza claramente
o estudo da política externa atualmente. O fator transitório marca a passagem de uma situação
anterior razoavelmente bem definida, para uma futura situação ainda desconhecida. Assim, as
abordagens possíveis sobre a atuação externa brasileira da atualidade lidam, a todo momento,
com a tentativa de compreensão dessas tendências.
A presente análise não foge a esta regra, contudo, os dados analisados indicam que a
ação externa brasileira com relação ao Mercosul permite entender melhor as tensões inerentes
a esse período de transição, assim como verificar o aumento do número de variáveis a serem
estudadas.
Uma segunda conseqüência interessante apresenta-se em alguns trabalhos recentes,
seminários, conferências e, em menor medida, nos meios de comunicação que possuem
alguma dedicação à discussão das questões internacionais. Trata-se da tentativa de estabelecer
um entendimento da política externa enquanto uma política pública ou de frizar um caráter de
diplomacia pública (CERQUEIRA, 2005; PRETO, 2006; SANCHEZ, 2006).
O conteúdo dessa discussão, em si, não é muito relevante, pois partimos do
pressuposto de que a política externa nunca deixou de ser uma política pública, podendo
variar da total inexistência de mecanismos de controle até a existência de instâncias
específicas de representação social e de amplo debate público.
Do ponto de vista teórico e do desenvolvimento metodológico da disciplina de
relações internacionais é possível afirmar que esse debate já foi realizado, pelo menos a partir
dos anos 1960 com os trabalhos de Richard Snyder, Dean Pruitt, Grahan Allison e outros. A
análise da política externa, mesmo apresentando uma significativa diversidade de enfoques
teóricos, é uma área do conhecimento já consolidada, que absorveu conceitos e metodologias
de outras áreas correlatas, apresentando avanços significativos com respeito ao funcionamento
institucional, ao processo de tomada de decisões e, também, com relação aos seus aspectos
cognitivos. Assim, concluímos que este não é o problema central, ao menos do ponto de vista
acadêmico.
Entretanto, o interessante na preocupação em definir com maior exatidão a política
68
externa é o próprio fato de existir essa preocupação. Explicando melhor, a tentativa de criar
essa discussão indica, ou revela, a existência de uma percepção consolidada na cultura política
nacional que atribui um caráter de excepcionalidade inerente à política externa brasileira.
Os proponentes deste debate, em geral, argumentam que há na sociedade brasileira a
crença predominante de que a política externa é uma política de Estado e não de governo, o
que resultaria na legitimação de uma prática governamental que dificulta a incorporação da
diversidade de interesses existentes. Não discordamos desse argumento, inclusive porque esta
idéia, em diversas ocasiões, é reforçada pelo próprio discurso diplomático. Assim, esse debate
poderia ter alguma influência positiva no sentido de promover uma maior abertura à discussão
sobre a agenda externa.
Discordamos da idéia subjacente de que esta confusão também se apresenta nos
estudos realizados sobre o tema, principalmente do seu ponto de vista teórico e metodológico,
resultando na diminuição da capacidade de explicação, já que parcela substancial da realidade
não poderia ser captada.
Entendemos que existem estudos importantes baseados em modelos teóricos que
pressupõem a política externa como dotada de uma especificidade e como matéria
fundamental da ação Estatal, desde que se mantenha a coerência metodológica e conceitual.
Da mesma forma como há estudos bem fundamentados que partem do pressuposto de que a
política externa é basicamente uma política pública e, portanto, de governo.
Assim, não se trata de um problema relativo ao enfoque teórico escolhido pelo
analista, desde que esteja adaptado à explicação que pretende dar e às variáveis que pretende
observar, mas torna-se um problema quando ocorre a apropriação de um conceito ou de uma
concepção teórica por parte de um ator político como forma de justificar e obter legitimação à
sua própria atuação.
Desta forma, podemos concluir que a tentativa recente de promover esse debate
reforça o nosso argumento de que o aumento das pressões sobre a formação da política
externa tem criado uma forte tensão sobre seus elementos formadores e, desta forma, acaba
abalando a capacidade desta em montar sua linha de continuidade.
Chegamos então à terceira conseqüência, que mantêm relação direta com o
crescimento das pressões relatadas acima, já que se trata da própria reação do corpo
diplomático em manter-se como elemento determinante dos resultados obtidos no processo de
formulação e no momento da execução das decisões externas.
A existência de uma singularidade da política externa brasileira tem como principal
69
característica a sua previsibilidade sustentada por uma forte linha de continuidade. Aceitamos,
neste trabalho, o argumento que estabelece a correlação entre esta continuidade e a atenção
dada pela corporação diplomática para manter os elementos que lhe atribuem caráter de
tradição, como o zelo pelos princípios e valores estabelecidos no decorrer do tempo. Também
aceitamos a relação existente entre a tradição, ou sua expressão na idéia de continuidade, e a
legitimidade obtida pela diplomacia.
Procuramos demonstrar as formas pelas quais os elementos de continuidade -
princípios, valores, tradições - são reformulados com o tempo e como adquirem
características circunstanciais, a partir da adaptação discursiva e da construção de modelos
conceituais por parte da diplomacia oficial.
Reconhecemos, no entanto, que apesar de existirem essas correlações ainda
subsistem fortes dúvidas sobre as reais causas desta singularidade. Contudo, este estudo não
tem o objetivo nem a pretensão de resolver esta questão, mas entendemos que análises mais
profundas sobre o funcionamento interno do Itamaraty poderiam ajudar neste sentido.
Feita essa fundamentação mínima da existência dessa singularidade, passamos para a
tentativa de demarcar o surgimento das pressões que, de diversas formas, recaem sobre seus
elementos constituintes, buscando demonstrar a existência de uma situação transitória,
caracterizada por uma forte tensão entre as forças indutoras da transformação e as que
alimentam a manutenção do padrão tradicional de formação da política exterior.
Sendo assim, ficaram claros os esforços do corpo diplomático para manter sua
capacidade de adaptação frente às novas circunstâncias e, conseqüentemente, manter seu
poder decisório. Essa empreitada verifica-se de diferentes maneiras, por exemplo, na
adaptação do discurso, na preocupação em justificar-se perante a imprensa quando uma
decisão é criticada ou, principalmente, no exercício de sua prerrogativa no momento de
implementação das decisões previamente formuladas.
Com base em tudo o que foi escrito até o momento, analisaremos a seguir as
necessidades gerais dos processos de integração regional e sua relação com a política externa
dos Estados participantes, para posteriormente iniciarmos uma reconstrução histórica das
principais posições governamentais brasileiras no processo negociador do Mercosul, a fim de
estabelecer as relações existentes entre a integração e o padrão de desenvolvimento da política
exterior.
70
4. Processos de Integração Regional e Política
Externa
O objetivo deste capítulo é demonstrar a relação entre a singularidade da política
exterior do Brasil e o tema da integração regional, a partir da seleção de algumas variáveis
mínimas que orientarão a pesquisa empírica. Sendo assim, este capítulo terá como resultado
principal a conclusão sobre quais serão estas variáveis.
Podemos dizer que os processos de integração regional, de forma geral, lidam com
duas tendências fundamentais: o aprofundamento e a expansão. No primeiro caso, nos
referimos aos efeitos da maior interdependência econômica, política, cultural, entre outros
aspectos, e à criação de mecanismos comunitários que controlam esses efeitos.
Existem diversas experiências concretas de integração que demonstram diferentes
possibilidades de criação institucional, diversos modelos de integração econômica e variadas
formas de comprometimento entre os Estados envolvidos. No entanto, o fato de estarmos
trabalhando com a noção de aprofundamento implica em reconhecer a existência de múltiplos
níveis de integração que, de uma forma ou de outra, relacionam-se com o grau de autonomia
preservado pelo Estado nacional.
Em relação à expansão, estamos nos referindo à capacidade dos processos de
integração de aumentar o número de Estados associados. Tem o mesmo significado que o
termo alargamento, como é comumente utilizado quando se faz referência ao processo de
integração européia.
Nesta análise é necessária essa distinção porque o Mercosul é tratado, ao menos no
plano do discurso político, como um processo de integração que poderia se aprofundar e
constituir-se em um mercado comum. Independente dos acontecimentos que envolvem a
construção da integração no Cone Sul, partimos da constatação de que esta nasce enfatizando
a questão do aprofundamento e, sendo assim, concluímos que as variáveis que se relacionam a
este aprofundamento devem ser priorizadas na pesquisa empírica.
Assim, sob uma perspectiva pluralista, analisaremos as variáveis que informam os
desdobramentos dos processos de integração regional, para em seguida compará-los com as
intenções e posições adotadas pelo governo brasileiro diante das negociações do Mercosul. A
análise estará concentrada nos atores governamentais, com especial atenção à corporação
diplomática brasileira e à presidência da República.
71
4.1. Modelo analítico mínimo
Em geral, quando se analisa um processo de integração regional a partir de uma
perspectiva da disciplina de relações internacionais, buscam-se nas diferentes teorias de
integração construções analíticas que possam se ajustar ao caso concreto do Mercosul. Há um
debate a respeito da utilidade em se fazer isso, já que a experiência do Cone Sul apresenta
certas particularidades que dificultariam a adoção de um modelo pré-definido. A justificativa
central dessa cautela é que, em sua maioria, estas foram desenvolvidas tendo como
perspectiva a experiência européia.
Malamud (2005) entende que o Mercosul desafia as principais teorias dedicadas ao
estudo de integração regional. Tanto o intergovernamentalismo, que tem a sua maior
representação no trabalho desenvolvido por Andrew Moravcsik (1998), quanto a teoria da
governança supranacional (SANDHOLTZ e STONE SWEET, 1998), enfatizam o papel da
sociedade em dar sustentação e apoio ao processo de integração executado pelas autoridades
nacionais e transnacionais. Neste caso, a ação governamental expressaria uma demanda ou
interesse presente nessa sociedade.
Se o Mercosul inverte esta ordem, pois coloca como central a negociação
intergovernamental como indutora da demanda social por mais integração, então haveria uma
dificuldade razoável para utilizar essas teorias a fim de compreender as especificidades desta
experiência.
Outro exemplo, no caso do intergovernamentalismo liberal, é o pré-requisito de que
para haver integração seria necessária uma condição de forte interdependência econômica. A
idéia por trás desta premissa é que o mercado regional, ao criar interdependência com relação
ao comércio exterior e também ao comércio intra-firma, demandaria mais integração. As
instituições seriam criadas e assumiriam a função de reforçar os acordos resultantes dessa
situação.
Independentemente de concordarmos ou não com esta opinião, concluímos que as
teorias de integração quando utilizadas para o caso concreto da integração na América do Sul,
podem orientar a pesquisa a respeito da dinâmica desses processos, pois apesar da discórdia
quanto aos pré-requisitos, o mesmo não é verdadeiro quando se refere às conseqüências do
processo integrativo.
Por requisitos estamos nos referindo ao tamanho do bloco, o número de membros, a
organização política dos países participantes, os níveis de desenvolvimento econômico, as
72
assimetrias, entre outras características que, de acordo com um ou outro autor, indicam uma
maior ou menor probabilidade de que a integração possa se aprofundar ou não.
Já por conseqüência estamos relacionando as características que a estrutura
institucional de cada bloco administra a fim de que o processo mantenha sua coesão e
possibilidade de aprofundamento; entre estas características podemos citar as diferenças de
competitividade setorial e regional, as controvérsias resultantes da maior interação entre os
atores domésticos, as reações nacionalistas, o crescimento das demandas por maior
integração, a garantia jurídica de implementação das decisões tomadas no âmbito regional, a
inclusão de novos atores na formulação e implementação decisória, a gestão do aumento do
fluxo de comércio intra-bloco, o déficit democrático das novas instituições criadas, entre
tantas outras questões que surgem em virtude da maior complexidade dos temas e da maior
interconexão dos aspectos domésticos e externos.
4.1.1. Pressupostos
De maneira geral essas teorias, mesmo partindo de pressupostos diferentes e
estudando casos diferentes, entendem que um processo de integração regional envolve a
criação de mecanismos e instrumentos institucionais para ordenar o crescimento das relações
de interdependência.
A integração pressupõe a possibilidade de aprofundamento, que se materializa
principalmente por maior interdependência econômica e pela transferência de funções
governamentais antes operadas exclusivamente no âmbito nacional para um arranjo
institucional regional.
Esse arranjo pode assumir diferentes formas, podendo apresentar uma estrutura de
funcionamento institucional estritamente intergovernamental ou apresentar elementos de
supranacionalidade. Mesmo na perspectiva mais intergovernamentalista, que não aceita a
existência de estruturas supranacionais, há a aceitação de que determinados instrumentos
institucionais regionais limitam a capacidade do Estado em manter sua autonomia. Assim, os
processos de integração regional podem ser entendidos como fenômenos caracterizados pela
criação de sistemas de autoridade e controle a fim de administrar em melhores condições, o
aumento das relações de interdependência do sistema internacional, mas partindo da
promoção do adensamento dessas relações no nível regional.
Outra percepção possível no estudo das diferentes correntes teóricas, estando mais
presente nas teorias funcionalistas e neofuncionalistas, é que a evolução dos processos de
73
integração ocorre através da superação sucessiva de determinadas etapas, que delimitam os
diferentes níveis de aprofundamento. Entre os diversos autores é possível verificar a aceitação
da existência dessas etapas, mas, simultaneamente, existe discordância quanto às
características que as delimitam e também com relação ao número necessário delas para se
chegar ao nível mais profundo de integração. Esse tipo de caracterização a partir de uma
tipologia da integração regional foi comumente utilizado por autores como Karl Deutsch,
Amitai Etzioni, Johan Galtung, Ernest B. Haas, entre outros (DOUGHERTY e
PFALTZGRAFF, 1990).
Seguindo esse raciocínio, entendemos que o aprofundamento da integração se
relaciona diretamente com a superação das etapas da integração econômica descritas por Bela
Balassa (1980), pois mais do que uma construção analítica esta descrição tem orientado a ação
daqueles que participam diretamente da formulação decisória e pode ser empiricamente
observada nos tratados e acordos internacionais que estabelecem a formação desses blocos e
nos momentos quando revelam a superação destas etapas. A preocupação aqui não é discutir
se essa divisão analítica se sustenta enquanto construção teórica válida nos dias de hoje, mas
nos apropriarmos dela porque constatamos que cada etapa da integração econômica
correspondeu, de maneira geral, ao verificado nas diferentes experiências históricas, na
medida em que os requisitos mínimos que as delimitam são reconhecidos enquanto tais.
Trata-se mais de um problema teórico do que empírico, já que na pesquisa realizada
foi possível perceber que os atores políticos orientam suas expectativas com relação ao que se
convencionou chamar, por exemplo, de área de livre comércio ou de mercado comum. Assim,
para esta pesquisa, o importante é o entendimento mínimo sobre cada etapa de integração a
fim de termos um referencial sobre a ocorrência de um maior aprofundamento ou até mesmo
de retrocesso.
Desta forma, temos como primeira etapa o estabelecimento de uma área de livre
comércio, na qual as barreiras tarifárias e não-tarifárias são gradativamente reduzidas até
chegar a uma situação próxima do livre trânsito de mercadorias. A segunda etapa acrescenta à
primeira uma política comercial comum entre os países membros, estabelecendo-se uma tarifa
aduaneira comum o que possibilita a criação de uma união aduaneira. Na seqüência, haveria
um mercado comum caracterizado pela livre circulação dos fatores de produção, como bens,
serviços, capitais e, principalmente, mão-de-obra. A quarta etapa seria a formação de uma
união econômica que contaria, fundamentalmente, com o surgimento de uma política
monetária comum e com um elevado grau de harmonização das políticas nacionais. Já a
74
última etapa - mais hipotética do que real -, consistiria na integração econômica total, com a
unificação das políticas monetárias, fiscais, sociais, entre outras, e o estabelecimento de uma
autoridade supranacional com capacidade de impor suas decisões às esferas administrativas e
políticas inferiores.
É importante discutirmos sobre o tipo de experiência que caracteriza o Mercosul.
Alguns autores chamam a atenção para a existência de um "novo regionalismo", que se
contrapõe ao modelo europeu. Assim, estas novas experiências se caracterizam por ser
compostas por países com níveis de desenvolvimento diferenciados, pela tentativa de evitar a
criação de estruturas institucionais burocratizadas, pela desconexão entre o que
tradicionalmente foi entendido como regionalismo político e o regionalismo econômico,
visando criar uma identidade em nível regional (AMARAL JR., 2003).
Do ponto de vista institucional o debate sobre a integração no Mercosul coloca em
contraposição duas alternativas possíveis: o institucionalismo intergovernamental e o
institucionalismo supranacional. Enquanto no primeiro caso os governos são os atores
centrais, produzem as decisões através de um sistema baseado no consenso e mantém um
controle oficial da agenda de integração do bloco, no caso do institucionalismo supranacional
parte-se do princípio de que a integração seria operada prioritariamente por uma estrutura
burocrática comum, com a presença de um sistema decisório misto e que se alimentaria por
um processo de expansão gradativa das demandas por maior integração (HIRST, 1997).
Neste tipo de discussão é possível perceber que o chamado "velho regionalismo" se
liga mais à superação das diversas etapas de integração econômica que acabamos de descrever
logo acima, enquanto que o "novo regionalismo" refere-se à tentativa de fazer com que os
países participantes se ajustem mais rapidamente aos processos econômicos globais, aos
moldes do que veio a ser conhecido como "regionalismo aberto".
Entendemos que a existência dessas duas tendências demonstra os diferentes tipos de
integração da atualidade, as forças e interesses em jogo nas negociações dos processos de
integração - como veremos no caso do Mercosul - e a limitação quanto ao nível de integração
econômica e de criação institucional.
O novo regionalismo é mais do que um método de integração, revela o grau de
comprometimento dos atores envolvidos e as escolhas realizadas, demarcando uma estratégia
de aprofundamento limitada ao que o arranjo intergovernamental permite realizar, ou seja, a
tentativa de controlar a criação de elementos supranacionais resulta em níveis de integração
econômica também limitados.
75
Acreditamos na estreita relação entre a adoção de mecanismos supranacionais e a
superação da etapa de união aduaneira, pois o comprometimento necessário por parte dos
governos envolvidos em uma situação de mercado comum, a fim de garantir a livre circulação
dos fatores de produção, demandaria mecanismos jurídicos comuns e instituições capazes de
implementar as decisões que amenizariam ou reduziriam os efeitos do aumento dessas
interações.
Lembramos que o processo de integração, além de manter a coesão entre os Estados
participantes, necessita criar um ambiente de estabilidade suficiente para orientar as
expectativas dos diversos atores participantes no sentido de aceitar a construção desta nova
realidade regional.
Essa relação entre superação das etapas econômicas de integração e a adoção de
elementos caracterizados por maior supranacionalidade, foram percebidos na análise empírica
realizada nesta pesquisa, mas também pode ser verificado no caso europeu de acordo com a
bibliografia especializada. Durante a chamada estagnação européia, é perceptível a
dificuldade em se consolidar uma união aduaneira e iniciar a etapa de mercado comum, o que
ocorreu somente a partir da superação do "Consenso de Luxemburgo", que mantinha o poder
de veto nacional e inviabilizava o aprofundamento, e a assinatura do "Ato Único Europeu" em
1986, que deu início efetivamente ao processo de criação do mercado comum (MATTLI,
1999; CAPORASO, 2000; PFETSCH, 2001; D'ARCY, 2002; LESSA, 2003).
Apesar de ter condicionantes históricos e estruturais muito diferentes do caso
europeu é perceptível a dificuldade para consolidar a união aduaneira do Mercosul e, neste
texto, buscaremos mais adiante demonstrar a relutância brasileira em adotar instrumentos
institucionais que poderiam ser usados para isso, mas apresentam o risco de diminuir a
autonomia brasileira no âmbito regional.
A existência desta dificuldade no momento que deveria ser de consolidação de uma
união aduaneira e de sua posterior superação, não é somente uma coincidência com a
experiência européia, mas parece demonstrar que as pressões por algum nível de
supranacionalidade tornam-se cada vez mais intensas.
Assim, entendemos que a utilização das etapas de integração econômica como
demarcadoras do aprofundamento são válidas para o entendimento da dinâmica dos processos
de integração regional e, mais adiante, demostraremos que a pesquisa empírica atestou essa
utilidade.
Um outro componente que entendemos ser importante, tem sua origem no enfoque
76
neofuncional: é a capacidade institucional do bloco em manter uma situação na qual as
expectativas quanto ao futuro da integração sejam convergentes (HAAS, 1963; 2004). A
transferência das funções para o âmbito decisório regional, que antes eram exclusivas dos
Estados Nacionais, de alguma forma, demandam modificações na organização das relações de
autoridade e legitimidade a fim de que o processo se realimente, promovendo o
aprofundamento da integração.
Não é possível saber ao certo como as questões e os temas serão conduzidos, pois
isso depende das particularidades de cada fenômeno histórico. Entretanto, em casos como o
do Mercosul, é possível afirmar que geralmente há um centro decisório onde os atores estatais
mantêm grande capacidade de influência, mas, ao mesmo tempo, não há como manter intacta
essa influência por muito tempo.
Isso não quer dizer que esses atores protagonistas não vão reagir, mas se o potencial
de integração for relevante os formuladores tradicionais - aqueles que sustentaram as decisões
iniciais do processo - sofrerão os impactos sobre o seu poder decisório. As expectativas destes
atores tradicionais e dos novos que vão sendo incorporados ao processo, precisam manter um
razoável nível de convergência quanto ao tipo de integração que está sendo construída.
Há, portanto, uma tendência dos protagonistas pressionarem para manter sua
capacidade de influência nas decisões diante da ampliação do espectro de participantes. Desta
forma, a configuração institucional do bloco vai se moldando como resultado da interação
desta diversidade de atores e interesses em competição.
É neste sentido que as diferenças de poder, não somente entre os Estados, mas
principalmente entre os grupos de interesse presentes nas sociedades envolvidas são
transferidas aos poucos para o nível regional. Portanto, a integração pode representar uma
mudança na configuração do poder estatal diante de um sistema internacional em processo de
profundas modificações, mas este esforço em diminuir a autonomia do Estado perante um
crescimento das instituições regionais possui maior probabilidade de avanço quando não
altera profundamente a estrutura de poder de cada sociedade envolvida.
Um processo de integração regional se inicia com a finalidade de manter ou ampliar
as oportunidades dos principais grupos de interesse que representam uma determinada
configuração de forças no nível doméstico. Com relação a este ponto Ernest Haas (1963)
afirma que o estudo da integração é o estudo do processo de desnacionalização do Estado,
pois entende este como uma construção histórica que permite a organização e a realização de
determinadas funções para atender a seus atores internos. À medida que essa organização
77
começa a se transferir para unidades regionais então, de alguma forma, aconteceria uma
transformação do Estado com perda de importantes funções que havia se tornado legitimas
através dos anos. Não basta transferir essas funções, mas saber se as novas instituições
adquirirão também a legitimidade necessária para o exercício destas.
A legitimidade tem como base a atenção aos interesses internos das sociedades
envolvidas na integração. O neofuncionalismo conclui que a integração regional não provoca
mudanças, mas sim a garantia de continuidade de uma situação em que as principais elites
buscam um novo arranjo para se manter enquanto tais, mesmo que para isso tenham que
transferir lealdades para um novo centro decisório e viabilizador de um sistema de autoridade
modificado.
O fato de haver uma correlação entre profundas modificações sociais, políticas e
econômicas nas sociedades que se inseriram em processos de integração - como foi o caso da
Espanha, Portugal ou Irlanda -, não quer dizer que a integração tenha sido a causa disso. As
razões das alterações devem ser procuradas no próprio processo de mudanças históricas de
cada sociedade, sendo a integração um fator adicional que amplificou o efeito destas.
Tendo por base essas considerações buscamos nesta pesquisa verificar se há relação
entre as dificuldades em realizar o aprofundamento do Mercosul e a tradicional formação da
política externa brasileira, dando especial atenção às posições do corpo diplomático.
Se a diplomacia brasileira pode ser entendida como um dos importantes grupos
presentes na organização estatal e se o aprofundamento da integração implica na modificação
das condições sobre as quais a política externa mantém sua singularidade, então é razoável
supor que este ator poderia resistir a um maior aprofundamento do bloco ou faria com que
este assumisse características que de alguma forma mantivessem a sua importância e
protagonismo ou, até mesmo, que permitissem uma expansão desta capacidade de influência
sobre a estrutura do Estado.
O último pressuposto que orienta esta pesquisa é o conceito de "paymaster"
desenvolvido por Walter Mattli (1999) a partir da análise histórica de diversas experiências de
integração regional. Este autor concluiu que a evolução dos processos de integração regional
depende, em grande medida, da existência de um Estado principal disposto a aceitar uma
parcela maior dos custos gerados pelo próprio desenvolvimento da integração. Em geral, este
país cumpre o papel de grande sustentador do processo, pois apresenta maior disposição para
pagar os custos da integração, que não se limitam somente ao aspecto financeiro, mas
fundamentalmente ao institucional e político.
78
O principal exemplo seria a República Federal Alemã que durante os anos 1990, foi
um dos principais financiadores da integração européia, mas também contribuiu para a
configuração institucional que foi adotada, principalmente no que se refere à sua
responsabilidade na introdução e desenvolvimento dos conceitos e práticas de subsídios à
integração e de governança em âmbito regional, como no caso de seus esforços para a
construção de uma política macroeconômica comunitária e de coordenação das políticas
sociais e ambientais, além do Bundesbank (Banco Central Alemão) que foi o modelo para a
formação do Banco Central Europeu. Portanto, esse conceito permite orientar a pesquisa
empírica no sentido de verificar a disposição do governo brasileiro frente ao processo
negociador do Mercosul, focando nos aspectos que se relacionam diretamente com a questão
do aprofundamento da integração. Entendemos que a disposição brasileira em ser o paymaster
da integração no Mercosul se relaciona diretamente com outro aspecto já abordado que é a
capacidade do processo em manter as expectativas dos diversos agentes convergindo para
uma situação de maior aprofundamento da integração e, também, na capacidade institucional
do bloco em oferecer benefícios para as principais elites domésticas a fim de manter a coesão
e a reprodução do processo.
4.1.2. Conseqüências da Integração
Além dos pressupostos descritos, é importante descrever algumas conseqüências
possíveis advindas de uma situação caracterizada por maior integração.
A primeira delas se refere ao próprio aumento da interdependência entre as
sociedades participantes e às demandas resultantes que se direcionam no sentido de frear ou
avançar o aprofundamento do processo. Como já foi dito anteriormente, a maneira de gerir as
relações de interdependência no âmbito regional indica como as expectativas estarão
organizadas. A visão de futuro é fundamental para a estabilidade do próprio processo. Sendo
assim, podemos afirmar que o aprofundamento da integração se relaciona diretamente com a
gestão das relações de interdependência e com as expectativas dos agentes envolvidos.
Uma segunda conseqüência, ligada a anterior, está no fato dos processos de
integração regional se iniciarem como respostas às pressões resultantes de importantes
transformações ocorridas no ambiente internacional. No entanto, o modelo de integração
resultante, além de lidar com as prerrogativas dos Estados e com as identidades nacionais em
questão, necessita corresponder à prioridade mínima de sobrevivência dos principais atores
domésticos, ou seja, as elites que possuem maior capacidade de exercer influência no âmbito
79
nacional e, até certo ponto, regional. No pior cenário, as decisões e o modelo de integração
adotado não deveriam representar nenhuma ameaça aos interesses destes atores enquanto, no
outro extremo, poderiam até mesmo resultar em um dos principais motores para a promoção
destes interesses. Desta forma, é visível a relação entre o desenvolvimento institucional da
integração e o posicionamento dos principais atores quanto às políticas adotadas.
Independentemente de haver um Estado com disposição para pagar os principais
custos do processo, ainda há a necessidade de se lidar com a questão da sobrevivência das
elites domésticas ou de um agrupamento principal representativo de interesses importantes
nas sociedades envolvidas que vejam na integração uma forma de obter ganhos significativos
(MATTLI, 1999; MALAMUD e CASTRO, 2006).
Partilhamos da visão neofuncional de que a integração regional mantém relação
direta com as expectativas de ganho ou perda dos principais grupos de interesse em
competição. A integração é um fenômeno essencialmente pragmático que depende, em larga
medida, da capacidade institucional em processar os interesses de parte importante das elites
governamentais e privadas em interação (DOUGHERTY e PFALTZGRAFF, 1990; HAAS,
2004).
Mesmo que em um primeiro momento a nova realidade regional pareça desvantajosa
para estes agrupamentos, é necessário que haja uma visão futura em que o saldo se torna
positivo em relação aos benefícios provenientes desta nova configuração. Tanto as propostas
governamentais quanto os instrumentos institucionais criados devem, de alguma forma,
indicar a possibilidade de um cenário favorável (MARIANO, 2005).
Uma outra conseqüência possível está relacionada com o envolvimento mais intenso
e o contato entre as realidades doméstica e internacional que o bloco regional proporciona.
Mesmo que a decisão de integrar seja uma ação específica de política externa dos Estados
participantes, o próprio desenvolvimento das negociações tende a criar condições para que
novas demandas e atores sejam incorporados ao processo. Há, portanto, uma forte tendência
para que o centro decisório da integração sofra modificações no sentido de assumir algum tipo
de autonomia com relação à política externa de cada país participante, pelo menos em
determinadas funções fundamentais para o próprio aprofundamento do bloco. Quando esta
tendência se concretiza, torna-se cada vez mais comum a imposição de algum tipo de
limitação para os países membros. Esta não se restringe às de ordem econômica, envolvendo
também ônus resultantes da perda ou da transferência para o nível comunitário de algumas
funções antes exclusivas do Estado-Nação.
80
Mesmo que o processo de integração não apresente instituições ou elementos com
características supranacionais, ainda assim é possível perceber que o funcionamento mínimo
de um bloco regional implica na disposição dos governos envolvidos em perder, ou limitar,
determinadas capacidades nacionais envolvidas no exercício de algumas funções elementares
para andamento do processo integrativo. Desta forma, a questão da autonomia está colocada
desde o início da integração. O que varia com cada experiência concreta é a forma como esta
perda de autonomia é operada e qual a sua amplitude.
Uma quarta conseqüência com a qual todo processo de integração lida refere-se ao
crescimento institucional. Por mais que uma determinada experiência de integração seja
caracterizada por um perfil institucional muito reduzido, ainda é possível identificar o
crescimento das inter-relações burocráticas intergovernamentais necessárias para viabilizar o
gerenciamento mínimo das demandas produzidas. Conseqüentemente, é possível verificar
uma diversidade razoável nas arquiteturas institucionais existentes nas diferentes experiências
de integração, havendo casos de maior institucionalidade, mais burocracia e com presença de
instituições supranacionais e outros baseados em arranjos institucionais intergovernamentais e
reduzida burocracia especializada. Independente do tipo de arquitetura existente é possível
perceber uma relação estreita entre o aprofundamento da integração e o crescimento
institucional.
Entretanto, isto não significa dizer que a presença de instituições mais desenvolvidas
representa a realidade de integração profunda. A probabilidade de sucesso de um bloco
regional está mais ligada à adequação entre o nível de integração alcançado - que pode ser
verificado pelas relações de interdependência criadas e pelos comprometimentos
estabelecidos - e sua estrutura institucional.
O sucesso de uma integração é a própria estabilidade do processo, ou seja, está mais
relacionado com a capacidade institucional em processar as demandas que são geradas pelo
aumento da interdependência e da complexidade, como forma de manter as expectativas dos
diversos agentes envolvidos no sentido de continuar aprofundando o processo. Assim, o
sucesso de um processo de integração pode ser entendido como a própria capacidade da
integração em se reproduzir. Concordamos com a afirmação de Peter Smith (1993) de que os
processos de integração regional podem falhar, ou não, de acordo com o excesso ou falta de
institucionalização. O problema está em encontrar um equilíbrio institucional que sustente um
contexto estrutural favorável e um adequado sistema decisório.
Outra conseqüência levantada neste trabalho diz respeito ao já conhecido déficit
81
democrático dos processos de integração. O simples fato de haver uma maior complexidade,
advinda da conseqüente situação de maior interdependência, aliada ao fato de que novos
agentes possam estar participando do processo, além de aumentar a probabilidade de que haja
alguma perda na autonomia nacional, também torna o sistema decisório muito mais
complexo. Isto se deve em parte à própria complexidade dos temas tratados que apresentam
características do mundo doméstico, mas também do mundo externo.
No entanto, este déficit democrático, ou maior dificuldade de controle sobre as
decisões tomadas, tem relação direta ao fato de estar se formando um novo sistema de
interação política em que as relações de autoridade e os papéis ainda estão em processo de
formação. Podemos dizer que haveria uma velocidade da integração que é diferente daquela
com que os atores políticos absorvem as novas informações e reconhecem o ambiente de
integração, o que muitas vezes resulta em desconfianças quanto ao próprio processo e às
perspectivas visualizadas.
Assim, a integração regional tem como uma de suas principais características a
grande complexidade decisória, por se tratar de relações transnacionais, que resulta em maior
dificuldade para os agentes políticos exercerem algum controle democrático (KAISER, 1981).
Ao mesmo tempo em que a interação regional representa deficiências na forma como
as questões são debatidas e encaminhadas, também é um espaço de aprendizagem. Os
diferentes agentes políticos acabam percebendo a diversidade de interesses em jogo e
promovem um ambiente mais politizado ao lidarem com as questões próprias da dinâmica da
integração, que em muitos casos se concentram em assuntos aparentemente técnicos,
(DOUGHERTY e PFALTZGRAFF, 1990; HAAS, 2004).
Para que a organização regional consiga lidar com a concordância e o estranhamento
dos interesses em competição é necessário que demonstre sua capacidade em levar para o
ambiente regional as reivindicações existentes, diminuindo as chances de utilização do
sistema político nacional como mecanismo de paralisação do processo. O problema não está
na tensão política regional - pelo contrário, pois pode ser entendido como um indicador do
potencial integrativo -, mas na ausência de mecanismos comuns para o seu encaminhamento.
Finalmente, a última conseqüência é o aumento das pressões sobre o principal Estado
do processo de integração - o paymaster - para que pague pelo exercício de sua liderança. O
reconhecimento de seu papel de principal impulsionador da integração está diretamente
relacionado com a disposição governamental em aceitar os custos financeiros e políticos
intrínsecos ao aprofundamento do bloco. Podemos dizer que a perda de autonomia no nível
82
regional seria compensada pela possibilidade de ganhos no âmbito extra-regional, ou seja, a
integração necessita estar fortemente ligada às estratégias definidas pelas políticas externas de
cada país participante. Se isso implica na aceitação da existência de um Estado com o papel
de liderar o processo, então é previsível que esta fatura seja cobrada.
O oferecimento de benefícios aos demais associados por parte deste Estado líder
pode ser realizado de diferentes formas, dependendo do nível de integração almejada. Se o
objetivo é de maior aprofundamento do bloco, então se espera que os benefícios se realizem a
partir destas instituições. Se a estratégia adotada pelo paymaster é oferecer os benefícios
usando a própria estrutura econômica e governamental nacional, então podemos concluir que
os objetivos de sua política externa representam importante limitação para a amplitude da
organização regional. Pois, a arquitetura institucional do bloco corresponde, em alguma
medida, aos objetivos presentes na política externa do Estado pagador com relação ao seu
posicionamento e à sua estratégia de inserção internacional.
4.1.3. Principais variáveis
Feita a descrição dos pressupostos e das principais conseqüências dos processos de
integração regional necessários para entender sua dinâmica, passamos para a delimitação das
variáveis que foram pesquisadas para a compreensão de como o Mercosul se insere na política
externa brasileira, levando em consideração sua singularidade, exposta nos capítulos iniciais
deste trabalho.
O primeiro passo para determinar quais variáveis seriam pesquisadas remete-se aos
acontecimentos relacionados à tentativa de consolidar a união aduaneira. Conforme acabamos
de descrever, é nesta fase que surgem com mais força diversas questões cruciais sobre o
aprofundamento da integração, principalmente pelo fato de que os temas ligados à diminuição
da autonomia do Estado se evidenciam, uma vez que é necessário um maior
comprometimento para fazer com que a tarifa externa comum seja aplicada.
Apesar de iniciarmos a verificação dos fatos a partir dos antecedentes diretos do
Mercosul e, portanto, nos referirmos aos esforços de cooperação e integração entre Brasil e
Argentina a partir de meados dos anos 1980, nossa análise aborda o período que se inicia com
a assinatura do Protocolo de Ouro Preto (em 1994) chegando até os dias de hoje, já que a
etapa de união aduaneira ainda não foi concluída, permanecendo diversas dificuldades para a
sua implementação, sem falar no fato de que a área de livre comércio ainda conta com
importantes exceções, como no caso do setor de automóveis e do açúcar.
83
A primeira série de variáveis identificadas com relação à postura brasileira diante dos
desafios colocados pela integração no Cone Sul diz respeito às medidas e às posições para
administrar e resolver os conflitos que naturalmente surgem, pois o fato de haver um mercado
em ampliação coloca diferentes níveis de competitividade em contato e, portanto, aumentam
as probabilidades de descontentamentos por parte daqueles setores menos competitivos e com
baixa capacidade para absorver os custos desta nova situação.
Não é nosso intuito fazer o levantamento dos conflitos no Mercosul, mas o de
analisar aqueles que surgiram com maior força e intensificaram as preocupações tanto de
setores privados envolvidos como dos governos que tiveram que dar algum tipo de tratamento
a estes contenciosos. Assim, priorizamos as demandas que conseguiram, de alguma forma,
mobilizar esforços governamentais no sentido de buscar alguma solução.
Os conflitos são inevitáveis nos processos de integração regional. O problema não
está na sua existência, mas na forma como são encaminhados. Entre os diversos autores que
trabalharam com esta temática há um consenso de que existem basicamente duas formas de
gerenciar os contenciosos: formal ou informalmente. No primeiro caso, a solução do conflito
envolve, em algum momento, a utilização de instrumentos jurídicos e institucionais
específicos (SCHMITTER e MALAMUD, 2005). No segundo caso a solução pode se dar por
uma negociação direta entre os setores envolvidos, como em diversos casos ocorridos no
Mercosul. Em alguns esse tipo de solução pode se provar eficiente, pelo menos durante algum
tempo, mas em grande parte dos casos não há uma solução definitiva para suas reais causas, o
que traz novamente o conflito à tona.
Entretanto, verificamos neste trabalho que além destes dois aspectos, o
encaminhamento destes conflitos pode ser direcionado para as instituições nacionais ou
podem ser trabalhados pelas estruturas institucionais regionais.
A existência de conflitos significa que a segunda série de variáveis a ser verificada é
a postura do governo brasileiro diante dos fatos e a expectativa quanto à modificação das
assimetrias regionais e setoriais existentes que são as causas fundamentais dos próprios
conflitos.
Se a solução dos conflitos é algo importante para um processo de integração que se
pretende mais profundo, então a busca pela redução das assimetrias acaba sendo uma das
tarefas principais daqueles que negociam as decisões centrais do bloco. Quando estas
assimetrias não podem ser reduzidas, buscam-se formas de administrá-las ou diminuir seus
efeitos negativos não só sobre os diversos agentes envolvidos, mas para a própria estabilidade
84
do sistema integrativo em criação. Portanto, atenção especial será dada à percepção dos
agentes governamentais brasileiros quanto à existência destas assimetrias e à forma como
estas deveriam, ou estariam, sendo administradas.
No Mercosul, a articulação dos interesses setoriais e regionais assume uma
importância crucial não só para o bloco, como também para a execução dos projetos
nacionais, porque a integração se relaciona diretamente com as necessidades nacionais de
inserção competitiva na região e na economia mundial (PEÑA, 2001).
Outros fatores levantados remetem-se à necessidade de financiamento do próprio
processo integrativo. Na medida em que existem conflitos, assimetrias, demandas diversas,
inclusive provenientes do próprio crescimento institucional, então também há a necessidade
de que estes sejam financiados de alguma forma. A integração pode ser entendida como uma
resposta ao próprio crescimento das relações de interdependência, no entanto, um
aprofundamento do processo resulta também na intensificação destas relações, tornando-as
mais complexas e demandando mais recursos para sua administração. Todo bloco regional
lida com o tema delicado do seu financiamento, seja para amenizar os conflitos, para diminuir
as assimetrias ou até para sustentar a criação de uma nova burocracia especializada. Isto
ocorre tanto num processo estritamente intergovernamental, como num com características de
supranacionalidade. Desta forma, levantamos as posições do governo brasileiro e as
cobranças dos demais parceiros com o respeito a essa questão.
No Mercosul, é possível perceber uma relutância em investir no que seria óbvio,
como energia, transporte, infra-estrutura de integração física, com especial atenção aos meios
que viabilizam o comércio transfronteiriço (SCHMITTER e MALAMUD, 2005). O fato de
haver o reconhecimento desta necessidade por parte das autoridades não significa uma
disposição para criar fundos comunitários com esta finalidade, pelo contrário, é possível
perceber que por parte do Brasil há uma preferência pela utilização dos mecanismos nacionais
de investimentos. Assim, esta disposição será um dos fatores a serem verificados.
O incremento nas transações em âmbito regional leva também ao aumento na
diversidade e na quantidade dos atores domésticos que decidem, de alguma forma, participar
do processo de integração. Mais do que um indicador do potencial integrativo, a inclusão de
novos atores representa uma característica a ser pesquisada, pois, de uma forma ou de outra,
aumenta as possibilidades de mudança na composição de forças presentes no processo
decisório.
Este aspecto se torna, diante da particularidade do caso brasileiro, muito importante
85
para a orientação da pesquisa empírica sobre o Mercosul, principalmente com relação às
posições governamentais sobre essa questão. O enfoque neofuncional já indicava a
importância das articulações de interesse transnacionais para o dinamismo da integração e de
suas repercussões para o sistema decisório em formação (HAAS, 1963; 2004; SCHMITTER e
MALAMUD, 2005).
A idéia que estaria por trás deste tipo de afirmação era a de que os interesses são
mais essenciais ao sucesso do projeto integracionista, do que a própria formação de uma
identidade comum, que poderia vir em momento posterior (DOUGHERTY e
PFALTZGRAFF, 1990).
A arquitetura institucional do processo em alguma medida deverá lidar com a
articulação destes interesses. Assim, ao mesmo tempo em que fornece um ambiente para o
estabelecimento destas ligações, também pode prejudicar esse processo de inclusão de novos
atores, dependendo dos mecanismos institucionais criados. Este aspecto refere-se ao que já
descrevemos como a necessidade de manter as expectativas favoráveis ao aprofundamento e à
continuidade do processo de integração. Esta característica é particularmente importante para
nosso objeto de estudo devido ao reconhecido baixo perfil de participação de potenciais
agentes de integração nas experiências latino-americanas, como os parlamentos e os tribunais
nacionais (MALAMUD e CASTRO, 2006).
No entender de Karina L. P. Mariano (2005) a institucionalização deste tipo de ator,
principalmente com respeito ao Poder Legislativo, poderia resultar em uma maior facilidade
em obter o aprofundamento do processo de integração, ao diminuir a dependência com
relação à vontade política governamental e aos interesses imediatos.
As reivindicações desses novos atores governamentais ou não-governamentais que
antes não participavam das decisões tomadas forçam as estruturas criadas pela própria
dinâmica da integração, provocando alterações decisórias e pressionando pela criação de
canais para encaminhamento dessas demandas. Assim, a questão da inclusão de novos agentes
está diretamente relacionada com o problema do déficit democrático que esse tipo de
fenômeno normalmente apresenta (KAISER, 1981; MARIANO, 2000).
Tendo em vista as características da formação da política externa brasileira é
perceptível a relevância em se atentar às posições governamentais brasileiras, principalmente
às posturas e aos discursos dos negociadores envolvidos diretamente no dia-a-dia do
Mercosul.
Uma outra série de variáveis a ser apreendida dos fatos, corresponde às novas
86
demandas que o próprio desenvolvimento da integração produz. As assimetrias ou diferenças
de competitividade podem ser previstas, no entanto, as novas demandas surgem como
resultado da interação entre os diversos agentes e dos interesses presentes nas sociedades
participantes.
Mais uma vez o foco será na forma como essas demandas são recebidas pelo governo
brasileiro e qual a sua capacidade institucional em processá-las. Muitas dessas demandas
podem ter origem no próprio funcionamento inter-burocrático mais ligado à gestão do
processo. Entretanto, é possível perceber que uma outra fonte importante de novas demandas
resulta das alterações nas conjunturas políticas ou econômicas nacionais. No caso particular
do Mercosul é visível o poder de influência das crises políticas e/ou econômicas nos destinos
do processo. Esses momentos são reveladores das intenções dos governos envolvidos e,
particularmente, das posições brasileiras diante das dificuldades reais do bloco.
Além das variáveis já citadas que, de forma geral, estão relacionadas entre si porque
são resultantes da maior complexidade do sistema de integração, é importante avaliar as
intenções e posições dos governos com relação à expectativa de que o bloco se constitua
numa alternativa viável para os objetivos de política externa de cada um.
Assim, estaremos focalizando as características que dizem respeito à visão
governamental brasileira de integração, ou seja, estamos nos referindo à existência de um
modelo de Mercosul que é defendido pelos negociadores brasileiros. É possível afirmar que
cada agente com capacidade de influência no bloco possui um determinado modelo de
integração que orienta suas ações.
O governo brasileiro é um ator de suma importância no desenvolvimento do processo
negociador, por esta razão focalizaremos nossa atenção nas manifestações diplomáticas dos
atores governamentais para, ao final desta pesquisa, reconstruir o que seria um modelo de
integração contido na política externa brasileira, considerando como a liderança do processo é
exercida e qual é a sua disposição em aceitar os custos da integração, quais são as cobranças e
em que momentos estas aparecem com mais força, além de tentar compreender quais as
respostas por parte do governo brasileiro.
A questão da liderança se liga ao que já abordamos sobre a importância de haver um
Estado disposto a oferecer maiores benefícios, conforme a noção de "paymaster" muito bem
demonstrou (MATTLI, 1999). Diversos estudos apontam para o fato de que a integração
regional precisa de atores capazes de aceitar custos maiores do que os aceitos pelos demais.
Essa desproporção é o custo de assumir a liderança do processo (SCHMITTER e
87
MALAMUD, 2005). Nesse sentido, os períodos de crise do Mercosul também são momentos
de maior cobrança sobre o Estado líder, o que justifica nossa atenção sobre a forma como as
negociações é encaminhadas.
Por fim, relacionando todas essas variáveis com os objetivos da política externa
brasileira, analisamos como a questão das pressões para o estabelecimento de elementos de
supranacionalidade acontece. Entendemos que este recorte permite fazer uma junção entre os
pressupostos levantados, as conseqüências do que entendemos ser mais ou menos geral nos
processos de integração e as variáveis selecionadas.
É de amplo conhecimento o fato de que o governo brasileiro é um grande defensor
das instituições intergovernamentais no Mercosul, no entanto, entendemos que o estudo
empírico da forma como esta defesa tem sido realizada pode revelar em que medida as
posições brasileiras influenciam as decisões tomadas em âmbito regional, e qual o papel
reservado para o bloco na totalidade de atuação externa brasileira.
Assim, resumindo, os elementos empíricos priorizados no levantamento realizado
nas bases de dados previamente selecionadas, foram as seguintes variáveis:
a consolidação da união aduaneira;
os conflitos e divergências diplomáticas;
as assimetria regionais e setoriais;
o financiamento da integração;
a inclusão de novos atores;
o surgimento de novas demandas;
a viabilidade do bloco para os objetivos da política externa dos Estados participantes;
o exercício da liderança;
as pressões por elementos de supranacionalidade e sobre a autonomia nacional.
É importante ressaltar que essas variáveis ajudam na ligação entre o que aponta a
bibliografia especializada sobre política externa brasileira, na qual a singularidade da atuação
externa do Brasil permite manter uma situação de razoável previsibilidade.
Percebemos que esse conjunto de elementos pesquisados a respeito do Mercosul e
das posições brasileiras, em princípio, não apresenta incongruências com o tradicional
objetivo de busca por melhores condições para o desenvolvimento. Entretanto, notamos que a
maioria dessas questões desafia a manutenção da autonomia e a busca por maior margem de
manobra no sistema internacional.
Assim, buscamos compreender como é possível, ou não, compatibilizar a integração
88
regional com as tradições da política externa brasileira consideradas como condicionantes da
continuidade nas linhas de atuação adotadas, e com relação à relativa autonomia do corpo
diplomático brasileiro. Esta análise leva em consideração a possibilidade de que o resultado
das negociações no Mercosul influencia o aumento das tensões sobre as bases que sustentam a
continuidade dessa política externa.
89
5. As posições brasileiras no Mercosul: Período de
Transição
O contexto político e econômico do Brasil e da América Latina nos anos 1980 foi
marcado pela crise do modelo de desenvolvimento aplicado na região, baseado na existência
de um Estado forte com grande capacidade de intervenção na economia, e numa política de
substituição de importações.
Este contexto de instabilidade econômica e política aumentou enormemente as
pressões sobre os governos por reformas que, em pouco tempo, juntamente com outras razões,
desestabilizaram os governos militares e resultaram na redemocratização dos países da
América Latina. A situação doméstica brasileira seguiu esse padrão regional, fazendo com
que esse tema ocupasse intensamente as discussões políticas e acadêmicas na década de 1980.
Além da crise interna, o novo contexto internacional marcado pela intensificação das
relações financeiras, produtivas e comerciais que mais tarde foi chamado de globalização -
forçou os países a reformularem suas políticas externas, especialmente no que se refere à
forma como deveriam realizar sua inserção internacional. Um dos efeitos mais evidentes desta
reformulação foi o fortalecimento de uma nova onda de regionalização - iniciada em meados
da década de 1980 (HURRELL, 1995) - e um movimento de adesão diferenciada a inúmeros
regimes internacionais.
Frente a este contexto consolida-se na América Latina um clima de abertura política
e de crise econômica, no qual a aproximação entre Brasil e Argentina ganhou força, sendo o
antecedente direto do processo de integração que nos anos 90 será conhecido como o
Mercosul. É importante ressaltar que os esforços de aproximação entre os dois países já
aconteciam no período final do regime militar brasileiro, pois no final dos anos em 1970 foi
assinado o acordo Itaipu-Corpus entre Argentina, Brasil e Paraguai visando o aproveitamento
dos recursos hídricos da Bacia do Prata. Mas será com a volta da democracia que a integração
regional se viabilizou (HIRST, 1988; MOURA, 1988).
A assinatura da Declaração de Iguaçu em 1985, pelos presidentes José Sarney e Raúl
Alfonsín foi o marco inicial desse processo de integração sub-regional e definiu os objetivos
principais de todo o processo, pois pretendia ir além do simples aumento dos fluxos
comerciais. Era uma tentativa de criar mecanismos capazes de diminuir as probabilidades de
um retrocesso autoritário, fortalecendo a redemocratização desses dois países e da região, sem
90
falar na urgência em buscar formas de reativação das economias diante das dificuldades
internacionais (HIRST, 1988).
Este primeiro passo foi fundamental para o desenvolvimento posterior da integração,
pois sem falar nos avanços paralelos que foram muito significativos para o estabelecimento da
confiança bilateral, permitiu um acúmulo de conhecimento e de gerenciamento conjunto
como no caso dos programas nacionais de desenvolvimento e de utilização da energia nuclear.
Um fato fundamental a ser destacado nesta iniciativa é ela ter sido impulsionada pela
vontade presidencial, o que não pode ser considerado como um simples detalhe, pois ao longo
de todo o processo esta característica foi importante no avanço ou no retrocesso nas
negociações.
A partir desta primeira experiência de cooperação iniciou-se no ano seguinte (em
1986) o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE) entre Argentina e Brasil
que teve forte importância para todo o processo, já que em curto espaço de tempo demonstrou
o potencial integrativo existente e a possibilidade da sua efetiva implementação. O formato
institucional utilizado baseou-se na criação e execução de diversos protocolos setoriais com o
objetivo de desenvolver laços de interdependência entre as duas economias, entendido como a
forma mais eficiente de diminuir as desconfianças historicamente construídas entre os dois
países, além de servir de âncora para a redemocratização.
Os protocolos foram formulados seguindo três princípios fundamentais: o
gradualismo, a flexibilidade e o equilíbrio. Estes princípios foram válidos por um curtíssimo
espaço de tempo, pois no médio ou longo prazo verifica-se que somente a flexibilidade se
manteve, ou seja, o que permaneceu foi a possibilidade de revisão das decisões tomadas.
Tanto o gradualismo, que significava a possibilidade de garantir tempo para a adaptação dos
agentes econômicos, quanto o equilíbrio, que representava diminuir as possibilidades de
especialização produtiva e comercial entre os países como forma de manter benefícios
mútuos, perderam gradativamente sua importância.
A implementação dos protocolos resultou rapidamente no aumento do comércio
entre os dois países, e estava a cargo dos ministérios de relações exteriores e dos setores
governamentais ligados ao tratamento do comércio exterior (HIRST e LIMA, 1990). Embora
o processo estivesse estruturado em torno dos atores governamentais, permitiu que alguns
setores econômicos privados ganhassem alguma capacidade de intervenção nas negociações
(HIRST, 1991). Assim, desde o início é possível verificar a participação de atores não
governamentais, apesar de restrita, e a emergência de expectativas nos atores domésticos
91
voltadas para uma maior integração porque esta representava uma estratégia de manutenção
da sua situação ou de ampliação dos benefícios resultantes de uma maior interdependência.
Podemos dizer que durante a implementação dos Protocolos havia a percepção de
que a articulação entre os dois países promoveria não somente melhores condições de
inserção na economia internacional, mas também contribuiria para melhorar a situação da
América Latina no mundo. Neste momento já ficava claro que pelo menos dois desafios
econômicos deveriam ser enfrentados: as diferenças nos níveis de produtividade das
estruturas produtivas e a harmonização das políticas econômicas. (ARAUJO Jr., 1988).
A idéia era garantir um aproveitamento das vantagens comparativas entre os setores
produtivos, sem permitir que houvesse uma especialização nas trocas, de forma que um
forneceria apenas produtos agrícolas e o outro, industrializados. Nesse momento ainda era
possível verificar alguma discussão em torno da criação de empresas binacionais ou de uma
articulação dinâmica entre setores produtivos dos dois países.
De maneira geral, o PICE buscava dar continuidade ao modelo de industrialização
baseado na substituição de importações herdado do período militar e, diante das
circunstâncias, esperava-se que isso ocorresse em bases regionais por meio de medidas
voltadas para a criação de uma complementação industrial e de empresas binacionais (HIRST,
1988). Do lado argentino é possível perceber a tentativa de reverter os efeitos da abertura
comercial iniciada nos anos 1970 e que resultou na desindustrialização do país.
Assim, as preocupações com o sucesso da integração concentravam-se na capacidade
dos países em superar suas dificuldades econômicas (ARAUJO Jr., 1988; HIRST, 1988) e no
aumento das articulações burocráticas intergovernamentais em torno de um projeto de
desenvolvimento compartilhado em que as políticas externas de cada um ganhavam maior
capacidade de articulação com relação às políticas econômicas a serem implementadas.
A eficiência dos protocolos, principalmente do ponto de vista da rapidez para a
criação de fluxos comerciais estava presente não só no discurso presidencial, mas também nas
manifestações diplomáticas brasileiras e em estudos acadêmicos realizados (BAPTISTA,
1991). Em diversas ocasiões era um dos argumentos principais para a justificativa da
formação do Mercosul, no início dos anos de 1990.
Por outro lado, esses protocolos não previam medidas para a harmonização de
políticas macroeconômicas, o que somente seria feito no acordo de integração do final de
1988 (ARAUJO Jr., 1991). Vale lembrar que neste acordo as condições domésticas para sua
implementação eram mais desfavoráveis devido à aceleração da crise econômica e social.
92
Assim, a eficiência dos protocolos serviu como modelo ou indicador da viabilidade da
integração no Cone Sul no referente ao aspecto comercial e não à capacidade da própria
integração em construir mecanismos de diminuição e gerenciamento dos impactos advindos
do aumento da interdependência econômica.
5.1. Tratado de Integração e Cooperação de 1988
O Tratado de Integração e Cooperação entre Argentina e Brasil foi negociado num
momento muito complicado, quando os governos voltaram-se mais para as questões
domésticas, caracterizadas por forte crise econômica. A idéia era dar continuidade à
integração iniciada, evitando o seu desmantelamento.
Uma de suas características era traçar objetivos gerais a serem implementados
principalmente através de mecanismos já estabelecidos, como os protocolos de 1986 e os
acordos negociados no âmbito da ALADI (Associação Latino Americana de Integração).
Parte do apoio recebido para esse acordo veio de pressões empresariais. Este setor
preocupava-se em manter os vínculos comerciais estabelecidos (ARAUJO Jr., 1991) porque
neste momento era clara a desarticulação das forças de sustentação decisória presentes à
época do PICE. A perda de dinamismo na tomada de decisões tinha origem principalmente na
crise macroeconômica e a política vivida pelos dois países.
Um dos resultados imediatos desta situação conjuntural foi uma maior restrição no
número de atores participantes e a concentração decisória em torno dos ministérios de
relações exteriores (HIRST e LIMA, 1990). Este fato reflete-se nos canais estabelecidos para
a participação da sociedade no processo, como no caso da criação da Comissão Parlamentar
Conjunta de Integração que concentrou suas funções no objetivo de facilitar a aprovação das
medidas aprovadas no âmbito regional nas respectivas Casas Legislativas. Desde o início a
Comissão Parlamentar apresentou capacidade decisória limitada, não somente pelo fato de
não ser eleita com esta finalidade ou pelo desinteresse manifestado pelos parlamentares, mas
principalmente por ter uma atribuição apenas consultiva.
A centralização decisória em torno dos negociadores governamentais - e no caso
específico do Brasil em torno do Itamaraty - e o próprio desenvolvimento dessa experiência
de integração estimularam a criação de mecanismos mínimos para garantir a viabilidade da
implementação das decisões geradas. Neste caso, o caráter intergovernamental exige o
estabelecimento de mecanismos para a internalização das decisões tomadas nos sistemas
jurídicos nacionais e, desta forma, o próprio funcionamento da integração resulta no aumento
93
da probabilidade de atração de novos atores domésticos, o que em geral altera a forma como
as decisões são tomadas e a capacidade de controle dos formuladores iniciais sobre o processo
(MARIANO, 2000).
É possível afirmar que até o final dos anos 1980 a integração do Cone Sul
apresentava um caráter mais voltado aos objetivos de desenvolvimento econômico e social
(MOURA, 1988). A inserção comercial destes países era um tema prioritário, mas isso ainda
não significava a aceitação de que a abertura do mercado regional aos fluxos de comércio
mundial seria um objetivo em si ou que seria o meio principal de interação entre os agentes
sociais e, portanto, as assimetrias existentes poderiam ser resolvidas com a participação
reduzida de instituições comunitárias.
A assinatura da Ata de Buenos Aires pelo presidente brasileiro Collor de Mello e
pelo argentino Carlos Menem em meados de 1990 deixa clara a mudança no perfil da
integração que assume nesse momento, objetivos ambiciosos, prazos irreais e volta-se
primordialmente para a abertura dos mercados nacionais. Os princípios de gradualismo e
equilíbrio presente nos protocolos de 1986 são deixados de lado, enquanto a flexibilidade, que
se refere à capacidade institucional de se ajustar às circunstâncias, consolida-se
gradativamente como uma das características mais importantes desse processo.
Embora não seja fácil determinar com exatidão o papel que a integração teve nos
processos de abertura comercial destes países, é possível afirmar que ela repercutiu sobre o
desenvolvimento da integração econômica (KUME e PIANI, 2005). Verifica-se que, a partir
da Ata de Buenos Aires, inicia-se a fase da integração sub-regional conectada à estratégia de
abertura econômica dos países da região, encerrando o período que podemos chamar de
desenvolvimentista iniciado em 1985.
5.2. A política externa brasileira e o novo contexto
A relativa autonomia do Itamaraty na formulação da política externa brasileira
começa a mudar na medida em que as alterações dos cenários nacional, regional e
internacional se consolidam. O processo de redemocratização lançou novas perspectivas à
diplomacia brasileira, enquanto o fim da Guerra Fria estabeleceu o desafio de criar condições
de influência frente às incertezas de um sistema internacional em processo de reordenamento.
A redemocratização criou certo consenso em torno dos principais desafios do Brasil.
No plano da política doméstica, o país deveria reconstruir e consolidar suas
instituições democráticas, como forma de garantir a estabilidade do sistema político. Ao
94
mesmo tempo, deveria ser capaz de impulsionar uma nova fase de desenvolvimento como
forma de recuperar a estabilidade econômica e estimular o crescimento, mas principalmente
superar os problemas estruturais, especialmente na área social, que não foram devidamente
enfrentados durante o período de forte crescimento industrial promovido durante o regime
militar e que se agravaram na chamada “década perdida”.
Para a diplomacia brasileira, essas questões eram importantes e estavam intimamente
relacionadas com o problema da perda de participação do Brasil no total do comércio mundial
e no distanciamento da economia brasileira com relação à reestruturação produtiva processada
em nível global. É neste contexto que se inicia a construção de uma nova estratégia de
inserção internacional que se prolonga até os dias atuais.
Além dos condicionantes domésticos e regionais apontados, o fim da Guerra-Fria em
1989 transformou não somente a ordem internacional prevalecente durante o período
posterior à Segunda Guerra Mundial, passando de uma lógica bipolar para um ordenamento
multipolar, mas também as estratégias dos países que rapidamente se encontraram num
contexto em que as regras até então vigentes no sistema internacional foram reformuladas.
É preciso lembrar que neste mesmo período o fenômeno da globalização econômica
e financeira ganhou relevância, com os aspectos econômico-comerciais predominando sobre
as questões militares na agenda internacional. Situação esta que foi relativamente alterada
pelos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
O início deste período desafiou os principais formuladores da política externa
brasileira a identificar quais seriam as opções de inserção para o Brasil nesta nova realidade,
especialmente porque havia uma percepção de que ocorreria um agravamento na tendência de
marginalização sofrida pelos países latino-americanos. Ao mesmo tempo, as dúvidas sobre
qual seria o papel desempenhado pela Europa e pelos Estados Unidos neste novo
ordenamento mundial representavam maior dificuldade para conjugar as necessidades de
desenvolvimento com as perspectivas de inserção que o cenário internacional sugeria.
O regionalismo surge como reação à situação de expansão dos movimentos globais,
enquanto instrumento para aumentar os benefícios provenientes da globalização e diminuir os
seus impactos negativos na vida doméstica. Ao mesmo tempo em que é reativo às mudanças
no ambiente internacional, o regionalismo aumenta a intensidade desses processos, ao criar
redes de cooperação e de interdependência (AMARAL JR., 2003). É um fenômeno
impulsionado pelos Estados Nacionais, mas que apresenta uma relevância maior dos atores
privados enquanto executores deste processo.
95
Diante dessas mudanças, as opções brasileiras se reduzem, reforçando a perspectiva
da diversificação das relações externas e de uma maior participação nos foros, organizações e
regimes internacionais. É neste ambiente que a integração na América do Sul ganha
relevância.
Um dos fatores de forte pressão neste sentido foi a Iniciativa para as Américas
formulada pelos EUA em 1990, colocando para Brasil e Argentina o desafio de adaptar seus
objetivos domésticos e externos a essa nova realidade. Do ponto de vista argentino, esta
Iniciativa tinha o apoio de importantes setores da sociedade, principalmente por reforçar a
política econômica neoliberal que estava sendo implementada e a ligação econômica com os
Estados Unidos tinha forte repercussão doméstica (VAZ, 2002). No caso brasileiro, a
situação era mais complicada em virtude da maior diversidade e complexidade da economia
brasileira o que gerou resistências a essa proposta, mesmo havendo apoio de setores
governamentais e não-governamentais sobre a possibilidade de aumentar a interdependência
econômica com os EUA.
5.2.1. O Período Collor
O modelo de regionalismo aberto adotado a partir de 1990 abandona a idéia de
desenvolvimento presente entre os anos 1985 e 1989, buscando o aumento das relações de
interdependência dentro do bloco na mesma medida em que estas se articulavam com os
centros econômicos mundiais. O surgimento do Mercosul como um fenômeno caracterizado
pelo "regionalismo aberto" assume grande prioridade na agenda internacional brasileira
(VIGEVANI e OLIVEIRA, 2004).
No entanto, ao longo do processo este caráter fundamentado nos aspectos
econômicos e comerciais dificultou a discussão voltada para a construção de um projeto
comum capaz de harmonizar e coordenar políticas econômicas e sociais (MARIANO, 2005).
Sendo assim, é válida a percepção de que desde o seu início, o Mercosul idealizado pelo
governo brasileiro seria diferente da concepção argentina e dos outros países membros, assim
como é possível afirmar que há uma concepção de Mercosul própria da diplomacia brasileira.
O Mercosul resultou da assinatura do Tratado de Assunção, em março de 1991,
englobando além do Brasil e a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. Sua criação e
implementação coincidiram com o período muito peculiar da política externa brasileira,
quando a figura presidencial ganhou uma capacidade momentânea de grande intervenção no
processo decisório da mesma.
96
Embora o governo Collor de Mello corresponda a um período curto de tempo na
história política brasileira, o mesmo não pode ser dito com relação às conseqüências das
escolhas governamentais realizadas, especialmente no plano regional. No caso do Mercosul é
possível verificar a perpetuação de várias características deste período, sendo importante
entender um pouco melhor como a política externa daquela época foi influenciada.
O conceito de novas democracias desenvolvido por Weffort (1992) ajuda na
compreensão do caso brasileiro porque se aplica em países que passaram por uma transição
democrática, após um período autoritário, mas que não conseguiram erradicar totalmente
algumas características deste passado apesar da instauração da democracia. Estas
características podem ser desde formas de organização institucional até atitudes advindas de
uma cultura política autoritária.
Weffort ressalta o papel das lideranças políticas nestas novas democracias que para
se manterem necessitam de lideranças relevantes no cenário político que não sejam
essencialmente antidemocráticas. Do mesmo modo, para que essa democracia possa se
consolidar é preciso que estas lideranças importantes atuem tendo em vista o aperfeiçoamento
do processo democrático.
No que se refere aos líderes das novas democracias, vemos que Weffort identifica
dois tipos: a) aqueles que surgem da oposição democrática, como Alfonsín e Menem na
Argentina, ou Ulisses Guimarães, Mário Covas, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso
e Lula no Brasil; e b) aqueles que foram "convertidos" durante a transição, ou seja, eram
integrados ao sistema autoritário e adquiriram nova identidade política, como Sarney e Collor.
É importante acentuar que este segundo tipo de liderança, ao menos no caso brasileiro, teve
um forte peso durante a formulação das políticas de integração no Cone Sul.
Essas novas democracias são fundamentalmente regimes mistos, na medida em que
se caracterizam pela presença de instituições democráticas semelhantes às da democracia
representativa -, e ao mesmo tempo possuem elementos típicos do passado autoritário pelo
qual passaram. Essa mistura pode ser observada pela permanência de setores da estrutura
burocrática criado no período autoritário, pela preeminência do Executivo sobre o Parlamento,
pela cultura política que em determinados aspectos ainda se remete a práticas autoritárias,
pelas ligações institucionais que em alguns níveis ainda limitam a autonomia da sociedade
civil, pela prática do governo na utilização de decretos, entre outras características.
A noção de novas democracias para Weffort é para diferenciar estes regimes
democráticos das chamadas "velhas democracias", às quais o autor se refere como sendo
97
democracias estáveis. Estas últimas são as democracias ocidentais do tipo representativa, que
têm como característica uma maior estabilidade institucional e uma acomodação do
entusiasmo democrático das lideranças, o que justamente é substituído, em maior ou menor
grau, pelas formas desenvolvidas de ação política, regras processuais e cultura política mais
adaptada à continuidade democrática. Isso não quer dizer que as lideranças democráticas nas
velhas democracias percam sua importância, mas seguramente não carregam uma
responsabilidade tão acentuada para a consolidação democrática quanto àquelas vivenciadas
nas novas democracias.
O governo Collor conciliou essa transição democrática
25
o que representava
mudanças no cenário interno com importantes alterações na política externa e,
conseqüentemente, com o início da formação do Mercosul.
Outro fator importante que define esta idéia é a convivência da democracia com uma
crise sócio-econômica aguda, que tanto desenvolve um processo de desigualdade como o
acentua. Isso tudo resulta numa organização institucional mais delegativa do que
representativa ou participativa.
Essa noção de democracia delegativa foi desenvolvida por Guillermo O'Donnell
(1991) e tem como premissa básica o fato do presidente ser eleito para governar como achar
conveniente, tendo como limite as relações de poder estabelecidas. Sendo ele a encarnação da
nação, deve identificar o interesse nacional apresentando-se acima dos partidos e dos
interesses organizados. Após a eleição, os eleitores voltam a ser espectadores passivos e
aguardam do presidente as medidas "necessárias" a serem tomadas. Estas podem ser
extremamente duras para a nação, pois ela delegou ao presidente o direito de aplicá-las. São
essas características que explicam os freqüentes pacotes econômicos de eficácia duvidosa,
diferentemente do que ocorre nas democracias representativas nas quais a tomada de decisões
é lenta e incremental, segundo O'Donnell, tendo mais chance de ser implementada e
apresentar responsabilidade compartilhada.
Com base neste forte componente delegativo identificado por esse autor nas
democracias latino-americanas, Weffort define a democracia delegativa, como sendo
"(...) uma espécie particular de democracia representativa, na qual há
25 Como o próprio nome expressa, esta situação não constitui uma ruptura absoluta do período autoritário para a
democracia. É natural que exista uma "mescla" de características que "ligam" um período a outro,
principalmente devido ao fato de algumas destas democracias terem passado por uma fase de
"descompressão" e "abertura". O grau de rompimento com o passado autoritário varia de país para país.
98
uma preponderância de comportamentos e relações delegativas no
interior de um padrão institucional definido pelo sistema representativo.
Evidencia uma preeminência geral, por exemplo, lideranças
personalistas, eleições plebiscitárias, voto clientelístico etc. sobre
relações parlamentares, partidárias etc. A despeito do fato de as
instituições definirem-se de acordo com um padrão representativo, o
comportamento tanto da população como da liderança é
predominantemente delegativo. (...)" (1992).
Tendo definido o caráter delegativo destas democracias, este autor também delimita
um outro fator muito importante para nossa análise, que diz respeito às lideranças nas novas
democracias que
"(....) ajustam-se ao padrão de um aglomerado disperso e instável,
debilmente unificado por uma competição democrática e por uma
atmosfera de sentimentos democráticos predominantemente na opinião
pública. De qualquer modo, não é um padrão no qual os líderes sejam
conscientes de seu papel como grupo (estrato, classe ou elite) na
consolidação da democracia (...)" (idem)
Esses líderes não estão ligados diretamente a determinados setores sociais, antes
disso, são "artificialmente" forjados por um amontoado de fatores dados numa situação
específica, na qual o papel da formação da opinião pública em torno de expectativas
momentâneas pesa muito. A relação entre o líder e a sociedade é construída em base às
demandas sociais, advindas de um estado de crise social e econômica, aliada à imagem de
solução rápida dos problemas demandados. Portanto, as expectativas se formam tendo como
pano de fundo este cenário, e não através da articulação de interesses comuns que buscam na
participação e na representação uma forma de agir.
Tanto o Brasil quanto a Argentina passavam por uma conjuntura similar à exposta
acima e, sendo os principais países na integração do Mercosul, podemos dizer que parte desta
realidade se transfere e consolida nos mecanismos institucionais e no próprio caráter que a
integração assume a partir da assinatura do Tratado de Assunção.
A experiência européia de integração que serviu de modelo para diversas teorias
sobre esse tipo de experiência, não apresentava condicionantes sociais e econômicos que
fortalecessem a situação de desigualdade, apesar de no pós-guerra passarem por uma fase de
reconstrução. Ao mesmo tempo, sua organização política identificava-se com a democracia
99
representativa e, de maneira geral, não partilhava dos componentes característicos da
democracia delegativa. Os grupos de interesse, assim como outros atores políticos relevantes,
se articulavam no âmbito de regras e procedimentos construídos a partir das concepções
participativas e representativas. Os Parlamentos nacionais davam, em certo sentido, a
legitimidade necessária ao processo, sem falar na constituição do Parlamento Europeu, apesar
deste não ter atribuições legislativas no sentido estrito. De qualquer forma, é possível afirmar
que a formulação das decisões políticas estava mais apta à inclusão de novos atores,
permitindo uma interação em torno de interesses partilhados.
Já no caso das novas democracias, o forte componente delegativo altera parcialmente
a maneira como a articulação de interesses, tão importante para o aprofundamento do
processo, se manifesta. Deste modo, a análise da importância deste período para o início do
processo de integração no Mercosul deve ser feita levando em consideração: a) um maior
peso das atitudes políticas que se originam a partir de expectativas orientadas pelo
componente delegativo, tanto por parte da sociedade como dos atores governamentais; b) a
atuação do líder que se baseia numa relação mais autônoma, acima dos demais atores
participantes do processo; e c) os "resquícios" autoritários que podem permanecer nas
instituições e na tomada de decisões.
A atuação do Presidente Collor durante a determinação de sua política externa
exemplifica a amplitude de ação que um líder nas novas democracias poderia alcançar na
formulação das decisões, abalando momentaneamente o elemento de continuidade da ação
externa brasileira, conforme já exposto no início deste texto.
O governo Collor pautou sua política externa pelo reexame das bases que
sustentaram até então o desenvolvimento brasileiro. O objetivo era inserir competitivamente o
país na economia mundial, e para isso era necessário "enterrar" de vez a política de
industrialização substitutiva de importações. Essa forte relação entre a situação econômica
interna e a necessidade de inserção competitiva se apresentava claramente neste período que
inicia a abertura comercial, eliminando os obstáculos não-tarifários e reduzindo rapidamente
as barreiras tarifárias. Simultaneamente, o país passava por um período recessivo aprofundado
pelas medidas econômicas tomadas que aliado à abertura, fazia com que se agravasse a
situação econômico-social.
Além dessa orientação econômica, o fascínio que Collor e alguns setores que o
apoiavam apresentavam pelos EUA influenciou diretamente no diagnóstico feito no período
Pós-guerra Fria. Acreditava-se numa nova ordem internacional com orientação multipolar, na
100
qual os Estados Unidos seriam a única potência mundial e assumiriam um papel cada vez
mais determinante nas relações internacionais, já que não haveria outros atores internacionais
com os requisitos de potência dominante.
Confundindo força militar com força econômica, o governo Collor não ponderou o
fato dos EUA viverem uma situação interna complicada no que se refere aos problemas
econômicos e sociais, e assim, não enxergou que as questões domésticas americanas estavam,
cada vez mais, sendo predominantes no seu posicionamento externo. Também não levou em
devida consideração a emergência de novos pólos de poder econômico e tecnológico,
principalmente com as formas de organização produtiva e de mercado que se desenvolviam na
Europa Ocidental e no Leste Asiático, e que necessitavam progressivamente do Estado na
regulação da atividade econômica.
Collor tentou limitar sua política externa às relações com os EUA. Nas palavras do
Embaixador Paulo Nogueira Batista:
"(...) Collor não soube entender aquilo que se pode dizer estava escrito
no muro em letras garrafais, a saber, que os Estados Unidos, embora
hajam saído da Guerra Fria como a única superpotência militar, já não
são mais a única superpotência econômica; não se acham, por
conseguinte, em condições de impor e garantir, sozinhos, uma 'nova
ordem mundial'. Além disso, não soube o ex-presidente compreender
que os Estados Unidos já não podem mais se permitir a generosidade
com que exerceram sua hegemonia no mundo ocidental, na política
americana, além das prioridades de recuperação da sua própria
economia, têm de enfrentar agora forte concorrência internacional no
plano econômico e no tecnológico; e que têm, nessa nova fase, de jogar
duro, através sobretudo de ações governamentais - medidas anti-
dumping, taxas compensatórias, quotas - com ou sem apoio nas regras
do GATT, na defesa do seu mercado e das vantagens comparativas de
que ainda dispõem, principalmente nas áreas da ciência e tecnologia
(...)" (1993).
Vale ressaltar que essa visão e estratégia não era defendida só pelo governo Collor,
mas também por outros líderes latino-americanos, principalmente Carlos Menem da
Argentina.
Esses países decidiram levar adiante o projeto de integração mantendo suas políticas
de liberalização, o que por si só não garantia o aprofundamento da mesma. Desse modo,
101
desconsideraram as necessidades de ajustes em determinados setores econômicos e o impacto
que o processo teria nas novas condições de competitividade, pois nessa concepção a
competição no mercado ampliado acabaria por resolver os possíveis problemas.
Podemos dizer que o papel do Itamaraty na formulação da política externa do
governo Collor foi alterado, não participando ativamente de sua formulação. Sua atitude
fundamentalmente "compensatória" limitou-se a minimizar os efeitos que a postura
presidencial provocava.
(...) O Ministério das Relações Exteriores não participou ativamente da
formulação da política externa de Collor nem foi tampouco o seu
principal executor. Naquilo que lhe coube executar, teve, porém, graças
ao profissionalismo de seus quadros, atuação minimizadora do custo de
algumas posturas presidenciais (...)” (BATISTA, 1993: 122)
26
.
No entanto, no caso do Mercosul essa afirmação deve ser relativizada, pois a análise
dos fatos revela que o quadro profissional do Itamaraty deu continuidade às negociações mais
específicas do processo de integração mantendo sua essência, mesmo depois da queda de
Collor e durante todo o período de transição do bloco (1991-1994). A atuação do corpo
diplomático, além de decisiva na formulação do acordo 4 + 1 entre o Mercosul e os Estados
Unidos ajudou a manter a continuidade do bloco, mesmo havendo importantes setores
presentes principalmente nos demais países participantes prontos para ceder à tentação de
tratar bilateralmente com os EUA no âmbito da Iniciativa para as Américas. O tipo de atração
que os EUA apresentavam para Collor e os setores que o apoiavam foi ponderado pela ação
do Itamaraty e pela própria seqüência de acontecimentos que culminou com o processo de
impeachment, o que garantiu melhores condições de continuidade da integração regional no
Cone Sul.
O Tratado de Assunção foi negociado neste período que correspondeu ao que Amado
Cervo chamou de
"(...) Estado normal, invenção latino-americana dos anos noventa, foi
assim denominado pelo expoente da comunidade epistêmica argentina,
Domingo Cavallo, em 1991, quando era Ministro das Relações
Exteriores do Governo de Menem. Aspiraram ser normais os governos
latino-americanos que se instalaram em 1989-90 na Argentina, Brasil,
26 Embaixador Paulo Nogueira Batista.
102
Peru, Venezuela, México e outros países menores. A experiência de
mais de uma década revela que esse paradigma envolve três parâmetros
de conduta: como Estado subserviente, submete-se às coerções do
centro hegemônico do capitalismo; como Estado destrutivo, dissolve e
aliena o núcleo central robusto da economia nacional e transfere renda
ao exterior; como Estado regressivo, reserva para a nação as funções da
infância social (...)" (2002: 6).
Esse período demonstrou que a influência presidencial teve capacidade de
interferência na integração, influenciando decisivamente os rumos tomados pelo processo. No
entanto, não é possível afirmar que essa seja a causa do caráter nitidamente comercial ou
intergovernamental e pouco institucionalizado do bloco. Certamente a manutenção do
princípio de regionalismo aberto como característica importante do Mercosul relaciona-se
fortemente com esse caráter neoliberal, entretanto não explica a resistência da diplomacia
brasileira no que se refere ao aprofundamento institucional do processo, inclusive porque
diversos de seus negociadores diretos tinham concepções divergentes das predominantes nesta
época. Na gestão de Celso Lafer são retomados alguns fundamentos globalistas da política
externa e busca-se, simultaneamente, a volta do Itamaraty ao núcleo do processo decisório
(PINHEIRO, 2004).
De qualquer forma, na criação do Mercosul estabeleceu-se que até o final de 1994
deveria estar consolidado o mercado comum. O curtíssimo prazo estabelecido para essa tarefa
gerou diversas interpretações. A interpretação dominante assume o fato de que o objetivo
manifesto do Tratado de Assunção era a constituição de um mercado comum em um
curtíssimo espaço de tempo e, em geral, a explicação para este prazo nada realista é o próprio
clima político que se vivia à época da sua assinatura, onde o objetivo de abertura econômica
se sobrepunha às necessidades inerentes à formação de um mercado comum (VAZ, 2002).
No entanto, segundo Felix Peña (2006) há um equívoco quanto ao entendimento do
prazo estabelecido e que pode ser explicado devido às diferenças na tradução do texto do
Tratado. Segundo este autor, a versão em espanhol apresenta que neste prazo "(...) deberá
estar conformado (...)" o mercado comum, enquanto na versão da língua portuguesa está
escrito que "deverá estar estabelecido". A diferença, portanto, seria que o sentido de
"estabelecido" se relaciona a alguma coisa que já foi constituída, que já está pronta, enquanto
a idéia implícita na palavra "conformado" é a de dar forma a alguma coisa. Peña conclui que
no momento da redação do Tratado de Assunção o sentido correto que os negociadores
103
tinham em mente se relacionava mais com a palavra "conformado" para o período de
transição - que se iniciaria logo após a sua assinatura e deveria terminar no final de 1994
quando o processo tomaria forma a partir da definição do seu objetivo central e dos
compromissos que surgiriam durante o próprio período transitório.
Independente da explicação correta, entendemos que a leitura do Tratado de
Assunção indica a presença da possibilidade da constituição de um mercado comum, mesmo
que seja enquanto uma manifestação de intenções. No entanto, não estabelece claramente
como esse objetivo seria alcançado. Os instrumentos indicados no texto do Tratado informam
que ao final do período de transição haveria o início de uma união aduaneira.
O período de transição, assim, era uma primeira etapa correspondente ao
estabelecimento de uma área de livre comércio (MARIANO, 2000). Portanto, entendemos
que a interpretação fornecida por Peña (2006) parece estar mais próxima do sentido que pode
ser extraído de seu texto, no qual o mercado comum seria mais uma manifestação discursiva
das intenções dos governos, enquanto uma possibilidade de futuro.
O objetivo de fazer esta breve discussão a respeito dos prazos de objetivos do
Tratado de Assunção está no fato de que revela a possibilidade de aprofundamento do
processo. Assim, o Mercosul é um processo de integração que não guarda nenhuma restrição,
pelo menos em tese, quanto ao seu limite, diferentemente de processos como o NAFTA (Área
de Livre Comércio da América do Norte) ou da negociação no âmbito da ALCA.
O Tratado de Assunção expande para os quatro países participantes o acordo de
complementação econômica nº. 14 negociado entre Brasil e Argentina no âmbito da ALADI,
que tratava da operacionalização de um instrumento de desgravação tarifária linear e
automático (VAZ, 2002). Era a continuação e a ampliação da decisão tomada entre os dois
principais países de criar, em curto espaço de tempo, uma área de livre comércio.
Se na primeira metade dos anos 1990 as negociações intergovernamentais no âmbito
do Mercosul consumiam grande parte dos esforços diplomáticos dos países envolvidos
(HIRST, 1995), também aumentavam a intensidade das interconexões entre as questões
externas e domésticas, chamando a atenção de outros atores internos sobre as conseqüências
ou as possibilidades que se estabeleceriam em torno da integração.
O Tratado de Assunção estabeleceu uma estrutura institucional de caráter
intergovernamental, na qual os atores predominantes eram governamentais e a cada Estado
participante era reservado o poder de veto às decisões tomadas. A coordenação geral dos
trabalhos ficava a cargo dos ministérios de relações exteriores.
104
No que se refere à participação dos atores não-governamentais é possível afirmar que
esta era muito restrita e dependia do impulso inicial dado pelos participantes governamentais.
Os atores sociais, como setores empresariais ou sindicais, podiam contar com canais
institucionais limitados na tentativa de exercer alguma e influência sobre o processo
(MARIANO, 2000) e sua atuação foi mais reativa às possíveis conseqüências da integração
no início do processo. Tanto os partidos quanto as lideranças políticas não manifestaram
interesse significativo a respeito desse fenômeno (VIGEVANI e VEIGA, 1991).
Vale ressaltar que as entidades sindicais, apesar de apresentarem uma preocupação
específica quanto às possibilidades de impactos diretos nas relações de trabalho, passavam
por uma situação de crise em virtude da situação econômica e das reformas implantadas
nesses países (HIRST, 1991). Assim, desde o início do processo houve uma dificuldade geral
em construir expectativas comuns a respeito do próprio desenvolvimento da integração.
Talvez isso seja conseqüência do próprio método integrativo adotado que correspondia à idéia
de uma flexibilidade institucional para formular e implementar as decisões do bloco e que
estava presente na formulação dos protocolos de 1986, assinados entre os governos do Brasil
e da Argentina.
A atuação do governo brasileiro durante o primeiro ano de Mercosul tinha como
preocupação básica dos negociadores viabilizar a área de livre comércio entre o bloco, tendo
como prioridade a manutenção do ritmo acelerado da integração comercial. Esta afirmação é
verificada a partir da análise empírica dos acontecimentos e foi manifestada em diversas
ocasiões e por diferentes autoridades diretamente ligadas às negociações. Ao mesmo tempo,
não houve referências importantes com relação às questões substanciais para o
aprofundamento da integração.
É relevante notar que já no início da formação do bloco, o principal negociador
brasileiro desta época, o Embaixador Rubens Barbosa, manifestava
27
a intenção da
diplomacia em se aproximar com os países do Pacto Andino (Colômbia, Peru, Equador e
Bolívia). Isto indica uma tendência do corpo diplomático em defender a expansão do bloco.
Assim sendo, o modelo de integração regional adotado no Mercosul resultou do
processo de negociação intergovernamental que se desenvolveu ao longo dos anos. Porém, o
Tratado de Assunção já apresentava fortes indícios das características fundamentais deste
processo e as negociações durante o chamado "período de transição" confirmam em grande
27 GAZETA MERCANTIL. “Novas Regras para o Mercosul”. São Paulo: 17/12/1991.
105
parte o que já havia sido definido, como também consolidam práticas e expectativas advindas
da interação entre os atores participantes respondendo, de alguma forma, ao jogo de interesses
existentes e às diferenças nas capacidades de influenciar a tomada de decisões.
Qualquer processo de integração regional, de maneira geral, trata de assuntos os mais
variados possíveis e, portanto, aborda temas não exclusivos às preocupações determinantes
das políticas externas de cada país envolvido. Entretanto, no caso específico do Mercosul, foi
determinante a importância das diretrizes e dos objetivos presentes nas políticas externas dos
Estados participantes, principalmente com relação aos dois principais membros.
O esforço de compreensão aqui empreendido centra-se exclusivamente na
perspectiva brasileira, já que entendemos, conforme o exposto anteriormente, que o modelo
de integração predominante no Mercosul tem estreita relação com as posições deste país e,
portanto, nossa busca se direciona no sentido de verificar se este modelo brasileiro de alguma
forma se diferencia do discurso diplomático.
Durante o período de transição a posição brasileira buscava garantir a consolidação
do processo de abertura da economia e, simultaneamente, consolidar o bloco como base da
sua inserção internacional, principalmente através da construção da união aduaneira (VAZ,
2002). Para tal, os representantes brasileiros, liderados pelo Embaixador Rubens Barbosa,
negociaram no ano de 1992 o que veio a ser chamado de Cronograma de Las Leñas. Este
programa de trabalho estabelecia detalhadamente as várias medidas necessárias para viabilizar
o funcionamento da união aduaneira a partir do início de 1995.
Consideramos que a partir deste momento o formato de Mercosul começa a ser
definido nos moldes do que foi levantado por Félix Peña (2006), ou seja, o próprio andamento
das negociações produziria decisões e estas seriam implementadas gradualmente, o que
formataria o objetivo central do processo que era chegar a uma união aduaneira. O
gerenciamento disto foi feito com o estabelecimento de instituições mínimas e de caráter
exclusivamente intergovernamental.
O Cronograma centrava-se na administração de uma integração essencialmente
comercial e diminuía a importância dada às demais áreas da política econômica. O argumento
utilizado pelos negociadores era que uma união aduaneira não necessitaria de instituições
mais complexas, nem de esforços significativos para a coordenação das políticas
macroeconômicas entre os países membros. De maneira geral, esta aceleração em direção à
conclusão da área de livre comércio e o estabelecimento dos meios para a formação de uma
união aduaneira expressava os interesses brasileiros (VAZ, 2002).
106
É interessante notar que o resultado da Cúpula de Las Leñas, além do próprio
Cronograma de iniciativa brasileira, também reconheceu que seria muito improvável o pleno
funcionamento de um mercado comum no período que havia sido estabelecido. Houve,
portanto, o reconhecimento entre todas as delegações governamentais de que os prazos eram
irreais.
Os representantes solicitaram ao Grupo Mercado Comum (GMC) - o órgão executivo
do bloco - que fosse apresentado na primeira metade de 1994 ao Conselho do Mercado
Comum (CMC) outro cronograma com as indicações do que seria necessário fazer para que
houvesse o estabelecimento do mercado comum. Este cronograma nunca foi apresentado
(PEÑA, 2006).
Em 1992, como resultado da aceleração do processo de integração e da
implementação das medidas previstas pelo Cronograma de Las Leñas que aprofundavam a
abertura comercial entre os países, era possível verificar a tendência de especialização
comercial e produtiva entre as economias brasileira e argentina, assim como a expectativa de
conflitos comerciais nos setores com grande diferencial de competitividade.
Em texto publicado na imprensa brasileira, o Embaixador Rubens Barbosa
reconhecia os efeitos da abertura econômica intra-bloco e também extra-bloco, aceitando o
fato de que alguns setores começariam a sentir os impactos dessa abertura, mas entendia que
isso era um processo natural para modernizar a economia brasileira e também aumentar a
competitividade.
O texto deixa claro que da parte dos negociadores brasileiros não havia intenção de
aprimorar instrumentos comuns para a solução de conflitos comerciais e a diminuição das
assimetrias econômicas entre os países. A idéia era que a própria dinâmica do mercado
poderia dar conta desse tipo de problema e, simultaneamente, ainda manter expectativas
favoráveis em direção à manutenção da integração.
O Embaixador Rubens Barbosa era o principal responsável pela negociação do
Cronograma de Las Leñas. A análise de sua atuação frente às questões de integração no
Cone Sul, demonstrou que este se empenhou em destravar os empecilhos existentes ao
comércio no bloco, reforçando a necessidade de acelerar o processo. Quase a totalidade de seu
trabalho focou-se neste sentido.
Entre os negociadores brasileiros a única voz que se apresentou dissonante nesta
estratégia de integração comercial acelerada foi a do Embaixador Samuel Pinheiro
107
Guimarães
28
que considerava como prejudicial a redução tarifária automática. Vale lembrar
que o diplomata foi um importante formulador do tratado bilateral entre Argentina e Brasil de
1988, que apresentava um caráter muito diferente ao do Tratado de Assunção que absorveu
em seus mecanismos o clima do momento baseado nas tendências liberalizantes e, portanto, a
parte do corpo diplomático que estava negociando as questões comerciais do Mercosul não
compartilhava de sua visão e não fez nenhuma menção importante sobre as questões
fundamentais para o aprofundamento da integração.
5.2.2. O governo Itamar
O ano de 1993 é particularmente importante do ponto de vista das manifestações
diplomáticas brasileiras sobre as intenções a respeito dos desequilíbrios do processo, do papel
atribuído às instituições do bloco e da grande prioridade dada ao aumento do comércio intra-
bloco. Renato Marques, que na época era Secretário de Comércio Exterior, mas que no
governo Collor ocupara o cargo de Diretor do Departamento de Integração Latino-Americana
do Ministério das Relações Exteriores, apresenta preocupação em avançar no intercâmbio
comercial com o qual o Brasil poderia obter ganhos. Este diplomata propõe modificações
jurídicas para garantir esses ganhos, apresentando uma visão limitada de integração na qual o
importante é a regulação dos fluxos comerciais para produtos sensíveis. Sua posição
fundamentava-se na idéia de que a concorrência com regulamentação mínima governamental
garantiria a diminuição dos custos para os consumidores, sem a necessidade de se pensar em
medidas no nível das instituições do bloco
29
.
Neste mesmo ano, foi publicada na imprensa a manifestação isolada do Embaixador
Guido Soares (1993), que não desempenhou papel central entre os formuladores brasileiros no
processo de tomada de decisões do Mercosul, abordando a questão da soberania, das
instituições e da supranacionalidade. O Embaixador ressalva em seu artigo que o Estado
brasileiro, historicamente, apresenta forte resistência à supranacionalidade, como no caso da
aceitação de um tribunal internacional, e que este seria o principal empecilho para o
Mercosul. É importante destacar que esta manifestação pública ocorreu em virtude da
discussão travada no âmbito da cúpula do Mercosul e no Grupo Ad Hoc sobre Assuntos
Institucionais, apesar da pouquíssima cobertura da mídia a seu respeito.
28 GAZETA MERCANTIL. “Mecanismos automáticos de redução tarifária prejudicam a integração”. São
Paulo: 12/11/1992.
29 GAZETA MERCANTIL. “Comércio Exterior propõe grupo de trabalho para regular comércio agrícola”. São
Paulo: 17/09/1993.
108
Em meados de 1993 ficou evidente a escalada de conflitos comerciais entre Brasil e
Argentina, o que levou o Itamaraty a organizar uma reunião para discutir esses problemas na
primeira quinzena de maio
30
. Neste encontro evidencia-se a posição encabeçada pelo
Embaixador Rubens Barbosa no sentido de aceleração para a criação de uma integração
baseada no comércio, que era a estratégia adotada desde 1991. Este embaixador, que no
âmbito da diplomacia teve um importante papel como negociador no período de transição do
Mercosul, manifesta uma visão estritamente comercial, aceitando inclusive a especialização
produtiva ao ressaltar que o setor de bens de capital já estava bem adaptado e que alguns
outros setores necessitavam da implementação de algum tipo de ajuste, mas em nenhum
momento mencionou qualquer tipo de mecanismo da própria integração para realizá-lo,
pressupondo que esta tarefa caberia a cada Estado, se assim o desejasse, ou como resultado
das próprias ações de mercado. O diplomata declarou também que não via nenhum problema
nos conflitos existentes, em contrapartida ressaltou o número crescente de joint-ventures
argentino-brasileiros realizadas após a criação do Mercosul.
Na mesma notícia, o próprio Ministro das Relações Exteriores da época, que não era
o originário do Itamaraty, Fernando Henrique Cardoso, manifestava a necessidade de discutir
a eficiência dos mecanismos de solução de conflitos e a possibilidade da criação de fundos de
reconversão produtiva e agrícola. Verifica-se que em 1993 aparecem publicamente as
primeiras manifestações significativas de atores governamentais brasileiros, ligados direta ou
indiretamente à tomada de decisões do Mercosul, sobre as questões fundamentais para iniciar
um processo de aprofundamento da integração regional, mesmo que estas não fossem
propostas, mas apenas sugestões de uma pauta para discussão. De qualquer forma, nota-se
que, em essência, o caráter comercial do processo está consolidado, mesmo com a mudança
de governo.
O dado que não pode ser esquecido é que no primeiro caso, o Embaixador Guido
Soares não era uma peça central da formulação ou da implementação decisória nas
instituições do Mercosul, enquanto no segundo, o ministro não tinha origem na corporação.
Portanto, inexistem ainda proposições da burocracia diplomática diretamente ligada às
negociações no Mercosul com respeito ao seu aprofundamento, embora elas abordem o tema
da expansão.
A partir de 1994 o debate a respeito das instituições do Mercosul deveria ser mais
30 GAZETA MERCANTIL. “Itamaraty avalia conflitos no Mercosul”. São Paulo: 10/05/1993.
109
evidente, contudo podemos dizer que a diplomacia manteve o mesmo cuidado em não
polemizar sobre este assunto, limitando-se a tratá-lo no interior do Grupo Ad Hoc sobre
Assuntos Institucionais. A diplomacia brasileira somente tratou publicamente aqueles
assuntos que não se referiam diretamente às questões ligadas ao aprofundamento da
integração regional, como mecanismos institucionais de redução das desigualdades.
Isto é, os diplomatas discutiam publicamente as questões relativas à diminuição das
barreiras comerciais ou as possibilidades de vantagens que o Mercosul poderia trazer no
relacionamento comercial internacional, mas não abordavam o tema do caráter
intergovernamental ou supranacional - das instituições definitivas do Mercosul tal como
estava previsto pelo Tratado de Assunção.
Em matéria jornalística
31
tratando do andamento das discussões a respeito das
instituições do bloco fica claro o cuidado em não tornar público qualquer posição brasileira a
esse respeito. Nela o diplomata Renato Marques, importante negociador do Mercosul, que
participava das discussões do Grupo Ad Hoc sobre Assuntos Institucionais e do próprio texto
do Protocolo de Ouro Preto, apenas manifesta que havia uma discussão a respeito do sistema
de votação e se as instituições seriam intergovernamentais ou supranacionais, sem apresentar
nenhuma referência à posição brasileira que já estava definida.
A pesquisa realizada em jornais da época demonstra não só a ausência do debate
público sobre uma questão tão importante, que determinaria o curso do processo nos anos
posteriores à aprovação do Protocolo de Ouro Preto, como também uma grande ausência de
intervenções e de declarações da diplomacia com relação a esses assuntos.
O final do período de transição foi marcado pela discussão no Grupo Ad Hoc sobre
Assunto Institucionais, que tinha a incumbência de definir o formato institucional do bloco a
ser apresentado na reunião de Ouro Preto. Suas reuniões foram realizadas em um círculo
muito restrito de participantes e retratava, principalmente no caso brasileiro, a coordenação
decisória desempenhada pelo Ministério das Relações Exteriores. A evolução dos trabalhos
realizados neste grupo e a sua conclusão, que se encontra no próprio texto do Protocolo de
Ouro Preto (1994), permitem visualizar a posição quase que irredutível por parte do corpo
diplomático brasileiro com respeito ao caráter intergovernamental do processo.
A discussão sobre a intergovernamentalidade e a supranacionalidade não significava
somente uma escolha entre essas duas opções. É possível entender analiticamente as
31 GAZETA MERCANTIL. “Mercosul inicia debate sobre local que sediará as instituições do bloco”. São
Paulo: 28/09/1994.
110
instituições intergovernamentais ou supranacionais enquanto modelos idealizados, mas que
não correspondem necessariamente à realidade dos processos de integração regional
existentes, mesmo no caso da União Européia, que seria a experiência deste tipo mais
aprofundada. Portanto, os processos de integração regional são fenômenos de construção de
instituições internacionais intergovernamentais com maior ou menor presença de elementos
supranacionais.
Do ponto de vista dessa graduação podemos dizer que a posição defendida pela
delegação brasileira, durante a discussão sobre qual seria o formato institucional a ser adotado
a partir de 1995, era a mais restrita de todas, sendo seguida de perto pela delegação argentina.
No outro extremo estava a posição da diplomacia uruguaia que tinha forte simpatia do outro
país menor, o Paraguai.
Como explicação para essas diferenças de opiniões é comumente relacionado o peso
econômico dos países - tanto no tocante à percentagem do seu produto interno bruto ou à
população de cada país com relação ao total do bloco -, indicando que os maiores Estados
receavam perder soberania ou a capacidade de influência nas decisões tomadas. Essa é uma
das explicações possíveis para as posições.
No caso argentino havia ainda a expectativa de uma possível diminuição da sua
capacidade e liberdade em definir sua política econômica e comercial, o que não era
interessante diante da conjuntura política dominante naquele momento. Já os governos
paraguaio e uruguaio buscavam garantir a situação de igualdade jurídica entre os membros e
eram mais favoráveis ao estabelecimento de mecanismos supranacionais, devido às suas
características intrínsecas. O resultado comum a partir desta diversidade de interesses foi a
manutenção da intergovernamentalidade e da regra do consenso (MARIANO, 2000; VAZ,
2002).
Em estudo realizado a respeito da evolução da estrutura institucional do Mercosul
(MARIANO, 2000) constatou-se que o resultado das negociações apontava para a existência
de uma barganha entre dois grupos de países: os maiores (Brasil e Argentina) e os menores
(Paraguai ou o Uruguai). A existência dessa diferenciação de posições permite dizer que
"(...) estes dois grupos de países acordaram em torno de uma concessão
mútua: enquanto os dois maiores países aceitaram manter a regra do
consenso, os dois menores renunciaram a sua posição em torno de
instituições com caráter supranacional. Desta forma a cooperação entre
eles garantiu ganhos para todos e adiou a definição da conformação
111
institucional do Mercado Comum para uma discussão futura (...)"
(idem).
Em pesquisa sobre a evolução do processo negociador do Mercosul Alcides Costa
Vaz chega a mesma conclusão ao afirmar que
"(...) a posição do Brasil e da Argentina de manter a natureza
intergovernamental dos órgãos do Mercosul e de não incorporar,
naquele momento, nenhum componente de supranacionalidade à
estrutura orgânica do bloco, como pretendiam os dois outros países,
deveria ter, como contrapartida, a preservação do consenso como
critério básico do processo decisório como forma de acomodar os
interesses do Uruguai e do Paraguai (...)" (2002: 221).
Apesar de concordamos com as duas observações, já que o resultado realmente foi
esse, entendemos ser importante diferenciar a posição brasileira da argentina, pois a delegação
do Brasil apresentou nas discussões uma posição propositiva no sentido da continuidade
institucional existente, sendo fortemente reativa e defensiva com relação às propostas das
outras delegações que iam ao sentido da incorporação de mecanismos supranacionais. Isto
pode ser visto nas atas das reuniões realizadas.
Ao mesmo tempo, é possível afirmar que havia maior flexibilidade por parte dos
negociadores argentinos ao menos com relação ao tratamento jurídico e legislativo das
decisões do bloco, o que se relacionava diretamente à questão da soberania. Não temos
elementos empíricos disponíveis para afirmar que naquele momento havia uma proposta clara
do governo argentino neste sentido, entretanto, verifica-se uma maior tolerância à discussão
desse tema e à proposta de criar pelo menos algum tipo de mecanismo inicial de adaptação
para uma situação futura na qual a questão da supranacionalidade pudesse ser melhor
absorvida pelos Estados participantes.
O trecho abaixo extraído da Ata da IV Reunião do Grupo Ad Hoc Sobre Assuntos
Institucionais, realizada em Brasília nos dias 28 e 29 de setembro de 1994, esclarece esta
questão:
"(...) Em reação à interpretação uniforme e ao controle de legalidade das
normas emanadas dos futuros órgãos do Mercosul, a Delegação
Argentina sugeriu a possibilidade de criação de uma Comissão de
Magistrados que seria integrada por membros dos Supremos Tribunais
de cada Estado Parte. Algumas delegações consideraram a necessidade
112
de que as normas emanadas dos futuros órgãos do Mercosul que não
requeiram aprovação legislativa tenham aplicação direta e imediata nos
Estados Partes. A esse respeito, a Delegação do Brasil informou que o
ordenamento jurídico brasileiro atual condiciona o início da vigência de
qualquer tipo de norma à observância dos princípios constitucionais da
legalidade e da publicidade. Nesse sentido, a Delegação Uruguaia
apresentou documento preliminar de trabalho contendo projeto de
criação de um Tribunal de Justiça do Mercosul (...)".
Outro aspecto importante sobre a posição brasileira se refere à proposta de rever o
sistema decisório para a produção de decisões. De acordo com a análise das atas das reuniões
do Grupo Ad Hoc sobre Assuntos Institucionais, dos textos das normativas do Mercosul,
assim como declarações das autoridades brasileiras, verifica-se que se tratava na verdade de
um argumento que vinha a público quando as demandas por instituições supranacionais
surgiam com mais força. Era uma forma de desestimular o debate em torno desta questão e a
condição para o debate apresentada, conforme veremos mais adiante, era de que o governo
brasileiro somente aceitaria a discussão sobre mecanismos supranacionais se antes disso fosse
discutida a questão do peso decisório de cada Estado.
Resumidamente podemos dizer que o período de transição do Mercosul definiu o
modelo de integração adotado e que a atual crise, que se estabeleceu a partir de 1999, é a
expressão de seu esgotamento.
Este período iniciado com o Tratado de Assunção (em 1991) e encerrado com a
assinatura do Protocolo de Ouro Preto (no final de 1994) foi marcado pela manutenção de
uma estrutura institucional que privilegiou a negociação intergovernamental, a partir da
atuação das diplomacias e é sustentada pela vontade presidencial.
Se os presidentes demonstraram uma importante capacidade para influenciar o
desenvolvimento da integração, por outro lado, o método negociador baseado na coordenação
diplomática permitiu um razoável poder de veto aos negociadores que estavam envolvidos
diretamente na implementação das decisões.
Também é importante lembrar que a dificuldade em avançar, tanto na abertura do
processo aos novos atores domésticos, quanto no estabelecimento de instrumentos comuns
para a administração dos desequilíbrios existentes, indicara a tendência desta integração em
ter um nível de aprofundamento limitado ao estabelecimento de uma união aduaneira. Esta
situação se acentua em virtude do baixo perfil de atuação dos partidos políticos e dos poderes
113
legislativos.
Um fato interessante é que mesmo mantendo uma tendência clara de tensão
comercial não houve a disposição, principalmente por parte do governo brasileiro, em utilizar
e aprimorar durante o período de transição o mecanismo de solução de controvérsias do bloco
que era o Protocolo de Brasília (MARIANO, 2000).
A posição dos negociadores brasileiros a respeito da questão das assimetrias entre os
países participantes era mais no sentido de oferecer benefícios por parte do governo brasileiro,
do que no de aceitar e contribuir para o estabelecimento de instrumentos comunitários. A
idéia de fundo era que se as assimetrias não fossem resolvidas pela própria lógica do mercado
ampliado, então seriam tratadas enquanto exceções e não como conseqüências naturais de um
processo de integração que demanda mecanismos institucionais comunitários para sua
administração. Como exemplo basta verificar que a perspectiva de uma aceleração das
negociações em torno de uma área de livre comércio hemisférica no segundo semestre de
1994, resultou em maiores concessões brasileiras para os países vizinhos (MELLO, 2000;
FAVERÃO, 2006).
Essas concessões são uma das características mais marcantes da postura do governo
brasileiro em relação ao Mercosul, e se apresentam de diversas formas, desde a tolerância de
um maior déficit na balança comercial com os sócios até a aceitação de uma maior
flexibilidade nas regras de funcionamento do bloco. O seu objetivo final é administrar uma
coesão mínima como forma de sustentar os objetivos maiores da inserção internacional
brasileira.
Desta forma, o protocolo assinado na cidade de Ouro Preto em 31 de dezembro de
1994 consolidou em seu texto o resultado das negociações realizadas no âmbito sub-regional.
O modelo de integração resultante é fruto, sobretudo, das assimetrias existentes entre os
países em diversos aspectos da realidade e das determinações dos dois principais sócios, com
destaque para a atuação diplomática brasileira que conseguiu defender o princípio da
intergovernamentalidade nas instituições criadas, que se constitui no elemento estrutural do
processo de formação da integração no Cone Sul.
Mas também é fruto das circunstâncias, caracterizadas por um sistema internacional
em processo de reordenamento, uma economia internacional que se transformava a partir de
novos padrões produtivos e tecnológicos, uma reestruturação dos sistemas políticos dos países
da região, por processos de abertura e liberalização econômica, além da instabilidade política,
econômica e social vivida nos países participantes.
114
Entre os vários elementos formadores do Mercosul a adoção e implementação das
políticas neoliberais nos países-membros tiveram um peso importante nas explicações a
respeito do formato geral de seu funcionamento, havendo uma grande variação a respeito da
importância que deve ser atribuída a esta variável, seja nas análises acadêmicas ou da própria
diplomacia (CERVO, 2002; VAZ, 2002; FLORES, 2005; GUIMARÃES, 2002).
No entender de Flores (2005), o discurso governamental desta época utilizava o
Mercosul como justificativa para os reais objetivos de implementação no país das medidas
neoliberais presentes no Consenso de Washington. Este momento específico da vida política
brasileira, assim como da Argentina, teve como principal característica a liberalização
irrestrita do comércio, apresentando um avanço expressivo no processo de integração
econômica. Um de seus objetivos primordiais era demonstrar aos agentes econômicos
internacionais que a abertura econômica estava sendo implementada e era uma prioridade
destes governos. Isto acabou enterrando de vez a estratégia de integração presente na segunda
metade dos anos 1980, que tinha um viés mais desenvolvimentista (VAZ, 2002).
As palavras do atual Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores, Samuel
Pinheiro Guimarães, que na época representava a parte vencida dentro da corporação
diplomática e também das forças dominantes que compunham o governo Collor, demonstram
este tipo de compreensão:
“(...) O Mercosul, não o programa de integração com a Argentina, fo i
imaginado dentro de uma política econômica geral neoliberal dentro
dos países, o livre-comércio entre os países, apesar de serem muito
desiguais resolveria todos os problemas e não resolveu (...) A miopia da
estratégia brasileira ao abandonar o modelo político da cooperação
Brasil Argentina e trocá-lo pelo modelo neoliberal comercialista de
integração preconizado pelo Tratado de Assunção foi notável. O
esquema do Mercosul diante das assimetrias excessivas mesmo entre os
dois principais países, da inexistência de políticas econômicas comuns e
das tensões políticas causadas pelos dois outros parceiros muito
menores, livre-cambista e importadores, levaria à manifestação da
política comercial brasileira (e argentina), à crise interna do Mercosul e
a tentativas de resolvê-la pela radicalização do Mercosul em termos de
liberalização comercial e por meio de propostas utópicas de
institucionalização. O Mercosul e sua Tarifa Externa Comum (TEC), as
políticas cambiais como o currency board (paridade fixa) argentino e o
câmbio quase fixo brasileiro e as políticas de privatização e
115
desregulação somente poderiam levar ao que levaram:
desnacionalização das economias, aumento da vulnerabilidade externa,
ameaça permanente de crise de pagamentos, subordinação crescente ao
FMI (e aos Estados Unidos), exclusão social, desarticulação
institucional, ressentimento entre os dois países, fenômenos que
somente não chegaram a ser tão graves no Brasil quanto na Argentina
graças ao fato de que a execução dessas políticas no Brasil foi
desacelerada no período de 1992 a 1994.” (GUIMARÃES, 2006: 357).
Diante destas interpretações entendemos que a aplicação das medidas neoliberais foi
certamente um elemento importante na compreensão do desenvolvimento da integração do
Mercosul. Entretanto, acreditamos que isto não é suficiente, pois a grande capacidade de
influência brasileira, liderada por seu corpo diplomático, sobre a forma como as negociações
foram encaminhadas e o formato institucional adotado merecem maior relevância nos
esforços explicativos. A análise dos acontecimentos fortalece esta perspectiva. Não se trata de
desmerecer outros condicionantes, mas de ordená-los segundo sua importância. O esforço a
que nos propomos é o de demonstrar que a adoção de medidas neoliberais durante o período
de transição é um fator relevante para a compreensão do bloco, mas ganhou uma importância
maior para a explicação do que realmente teve.
No próximo capítulo analisamos algumas variáveis que se perpetuam no bloco, como
a defesa da intergovernamentalidade e da expansão para a América do Sul, demonstrando que
a adoção do neoliberalismo nos anos 1990, mais do que um elemento empírico, acabou
dificultando a visualização das variáveis com maior característica de causalidade.
A idéia de regionalismo aberto sintetizou princípios esperados de um processo de
integração conectado ao ordenamento da economia mundial no Pós-guerra Fria. Era mais que
uma orientação presente em grande parte daqueles que cuidavam do dia-a-dia do processo,
revela premissas com capacidade de limitar a amplitude e a profundidade destes processos de
integração regional contemporâneos.
A lógica interna de funcionamento dos processos integracionistas da América Latina
respondem, de alguma forma, à força de atração que o mercado mundial exerce sobre a
definição das políticas de desenvolvimento nacionais (CAMARGO, 2000). Ressalta-se muito
o caráter comercial do Mercosul, inclusive no presente texto. Contudo, é importante frisar que
este resultou do próprio processo negociador sendo, ao mesmo tempo, um dos principais
objetivos da integração. Assim, este caráter é simultaneamente causa e conseqüência.
116
O que podemos chamar de influência dos fatores exógenos na moldagem do bloco, e
que acabam explicando este predomínio das relações comerciais, é um dos fatores mais
relevantes de qualquer esforço analítico a ser implementado porque fornece pistas das
fronteiras deste processo, mas não esclarece como os atores políticos interagem a fim de
expandir ou contrair essas fronteiras. É por esta razão que acentuamos a importância do
entendimento da atuação governamental brasileira como forma de chegar a uma melhor
compreensão da dinâmica da integração no Cone Sul.
O Protocolo de Ouro Preto consolidou a estrutura institucional já existente e sua
principal modificação foi no sentido de gerenciar a Tarifa Externa Comum, como forma de
viabilizar o estabelecimento da união aduaneira. A criação da Comissão de Comércio do
Mercosul (CCM) expandiu os órgãos com capacidade de produzir decisões, além do Conselho
do Mercado Comum (CMC) e do Grupo Mercado Comum (GMC). A coordenação dos
trabalhos da CCM ficou a cargo dos ministérios de relações exteriores e a função deste novo
órgão é a de concentrar todas as atividades relacionadas à aplicação da política comercial do
Mercosul, produzindo diretrizes que são obrigatórias para os Estados-partes, além das
propostas encaminhadas ao GMC.
Do ponto de vista da participação dos atores não-governamentais, a novidade foi a
criação do Fórum Consultivo Econômico e Social (FCES), do qual participam as
representações de setores organizados das sociedades envolvidas. Além dos setores
empresariais e sindicais que já atuavam no âmbito do Mercosul, este órgão possibilitou a
participação de outras organizações da sociedade civil (MARIANO, 2000).
Reconhecemos que o Protocolo de Ouro Preto define melhor as atribuições e
competências dos órgãos existentes. Porém, não apresentou inovação significativa no que se
refere à construção de mecanismos institucionais que permitissem o aprofundamento maior
do bloco, principalmente com respeito aos mecanismos para a solução de controvérsias e às
políticas voltadas para a administração das assimetrias entre os países. Entretanto, ao permitir
a construção da união aduaneira pavimentou a estrada que levará o Mercosul em direção aos
objetivos de expansão.
117
6. As Posições Brasileiras no Mercosul: Pós-Ouro
Preto
A partir deste momento, o foco de atenção deste trabalho se volta para a forma como
o governo brasileiro administra as tensões internas do bloco com o objetivo de manter uma
coesão suficiente para seus objetivos de inserção comercial internacional. Se admitirmos que
o Tratado de Assunção buscava pavimentar a estrada que levaria à constituição futura de um
mercado comum a partir da realização do livre comércio, da tarifa externa comum, da
coordenação macroeconômica e dos acordos setoriais, então é necessário verificar que no
período de transição a atenção concentrou-se nos objetivos de consolidação da área de livre-
comércio e de iniciar a união aduaneira (PEÑA, 2006).
Considerando os objetivos desta pesquisa, podemos dizer que a política externa do
governo brasileiro com relação ao Mercosul do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso
(1995-1998) correspondeu à consolidação da estratégia de integração consagrada no
Protocolo de Ouro Preto, que tinha como principais características a gestão de uma coesão
mínima entre os sócios, a manutenção da união aduaneira mesmo com imperfeições, a
limitação dos mecanismos decisórios comunitários, a gestão diplomática dos conflitos
comerciais e a busca da expansão do bloco.
No que se refere ao segundo governo (1999-2002) verificamos o esgotamento desta
estratégia precipitada pela conjugação de fatores domésticos, tanto no Brasil como em seus
parceiros, e externos, como os efeitos da conjuntura econômica e política internacional.
A crise iniciada em 1999 não é somente fruto da desvalorização do real, da crise
argentina e da influência das pressões externas, é a expressão do limite do modelo de
integração adotado no qual os conflitos, por menores que sejam, ganham dimensão política
desproporcional, inexistindo mecanismos institucionais capazes de amenizá-los ou resolvê-
los.
É importante ressaltar que mesmo essa última afirmação deve ser ponderada, pois
não é possível afirmar com toda a certeza de que os mecanismos de solução de controvérsias
existentes desde 1992 (Protocolo de Brasília) eram insuficientes, porque foram muito pouco
utilizados. Mas pode-se dizer que havia por parte dos governos, principalmente do brasileiro,
a idéia de que não era interessante exercitar esse mecanismo, priorizando-se a solução
diplomática.
118
É interessante ressaltar que esta posição brasileira no Mercosul era diametralmente
oposta à posição com relação aos mecanismos de solução de controvérsias da OMC. O que há
de comum nos dois casos é a manutenção da prerrogativa diplomática.
Uma das formas possíveis de se estudar o Mercosul é focar a análise no
comportamento dos governos brasileiro e argentino, verificando as implicações deste
relacionamento para todo o processo. Vale dizer, inclusive, que este método analítico foi
amplamente utilizado na bibliografia especializada.
No entanto, nossa análise prioriza a compreensão do comportamento brasileiro com
respeito ao bloco. O motivo dessa escolha, conforme já descrito nos capítulos iniciais ao
abordarmos a evolução da política externa brasileira e a sua singularidade, justifica-se pela
centralidade que o país tem nos destinos da integração. Esse fato tem sido comprovado tanto
pelos diversos estudos realizados quanto pela revisão bibliográfica e a análise de documentos
e bancos de dados de notícias feitas por esta pesquisa.
Sendo assim, prosseguimos com a descrição dos acontecimentos lembrando que a
história aqui contada reflete uma perspectiva centrada na política externa brasileira e na
atuação dos seus principais negociadores. Assim, uma das conseqüências pode ser a ausência
de informações que não se relacionam diretamente com esta perspectiva, pois a idéia foi
privilegiar os elementos empíricos que auxiliam diretamente na solução das questões
propostas no início deste trabalho. Não há a intenção de recontar a história do Mercosul, o que
já está razoavelmente bem feito em diversas publicações existentes, mas de reconstruir, ainda
que parcialmente, a história da influência brasileira no formato de integração adotado na
região.
O início da implementação da Tarifa Externa Comum em 1995, visando a
constituição de uma união aduaneira, teve como pano de fundo os esforços dos governos da
região em absorver os impactos da crise mexicana do ano anterior, principalmente no Brasil e
na Argentina. Embora o foco da análise pudesse ser posto sobre as políticas econômicas e
seus respectivos programas de estabilização, pois certamente este fato é relevante na
observação das opções governamentais, não é possível afirmar que este seja determinante para
o tratamento das questões que entendemos como essenciais para o aprofundamento da
integração.
Consideramos que as mudanças no ambiente internacional influenciam nas escolhas
tomadas, mas não necessariamente nas manifestações das intenções dos atores políticos que
revelam expectativas quanto à própria integração. Por exemplo, podemos imaginar uma
119
mudança repentina na situação internacional ou na conjuntura regional que frustraria projetos
governamentais quanto ao tratamento de uma determinada questão importante para o processo
de integração. Isto acontece a todo o momento, mas não impede um ator de manifestar sua
opinião do que deveria ser feito ou até mesmo uma explicação sobre as razões para não estar
sendo feito algo nesse sentido.
Sendo assim, ao procurarmos manifestações ou acontecimentos relacionados aos
temas caros ao aprofundamento de um processo de integração regional - como a
intergovernamentalidade, supranacionalidade, controvérsias comerciais, assimetrias,
mudanças políticas, entre outros - conseguimos relacioná-los com as posturas brasileiras
adotadas ao longo do tempo. Já fizemos uma parte importante deste trabalho, mas o
levantamento a partir de 1995 nos permite perceber melhor como modelo de integração
regional do Mercosul alcançou o seu auge para logo depois entrar em crise, que se mantém até
os dias atuais, apesar de importantes modificações ocorridas, sobretudo a partir de 2004.
6.1. Primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso: 1995 a 1998
Um dos fatores relevantes da negociação brasileira na integração durante o governo
Fernando Henrique Cardoso foi a atuação do Embaixador Botafogo Gonçalves, que foi um
importante operador do Mercosul na fase inicial de implantação da união aduaneira. Na
análise realizada dos acontecimentos a partir dos bancos de dados utilizados e da bibliografia
existente é possível perceber que suas intervenções no processo se concentraram em uma
espécie de administração da integração comercial, de acordo com a idéia predominante de que
os próprios resultados da ampliação e abertura dos mercados amenizariam os problemas de
competitividade, pois o crescimento brasileiro levaria ao aumento do poder de compra
nacional que poderia reduzir as tensões intra-bloco, ao absorver parcela importante das
exportações dos países vizinhos.
Outra tarefa importante e que ocupou boa parte das atenções brasileiras foi sua ajuda
no sentido de coordenar as negociações do Mercosul com os EUA, no âmbito da negociação
da ALCA e com a União Européia. O que começará a ser uma das principais características
das intenções brasileiras: utilizar o bloco como plataforma de gestão da estratégia de inserção
internacional em consolidação, que terá seu ápice oito anos mais tarde, na gestão do Ministro
Celso Amorim durante o governo Lula da Silva.
Entendemos que mais do que concentração de atividades a cargo de uma única
pessoa, o conjunto dessas tarefas ressaltou ainda mais o caráter solidamente comercial na fase
120
inicial de implantação da união aduaneira.
O fato de já haver um processo de constituição da tarifa externa comum liberava o
governo brasileiro para a busca da expansão do bloco e, portanto, é dado prosseguimento às
conversações com o Chile, Bolívia e Venezuela, principalmente devido ao início do processo
negociador da ALCA. Vale destacar nesta negociação a participação do Embaixador José
Arthur Denot Medeiros, que também era um dos principais negociadores do processo de
instalação da Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), órgão criado para gerenciar a TEC
(Tarifa Externa Comum), e do Embaixador Renato L. R. Marques.
Assim, podemos dizer que a relação entre a criação da união aduaneira e a sua
função de permitir, não só a ampliação da integração aos países da América do Sul, mas
também de conformar o próprio bloco enquanto plataforma ou instrumento, possibilitaria um
aumento da capacidade de influência brasileira diante das negociações comerciais
internacionais, seja com relação aos grandes acordos regionais ou às negociações
multilaterais.
O significado de aprofundamento da integração assumido pela política externa
brasileira, portanto, era a própria consolidação da União Aduaneira. A indicação era no
sentido da expansão e não do aprofundamento.
Diante da quase inexistência de manifestações da diplomacia com respeito ao debate
sobre as instituições do Mercosul, é interessante observar as declarações do chefe da Divisão
Mercado Comum do Itamaraty, Carlos Alberto Simas Magalhães, em discussão promovida
pela Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul (CPC) a respeito do tema
32
.
Em geral, a postura da corporação diplomática brasileira é de omissão quando
questionada sobre esse tema, como este caso demonstra. Ela se revela defensiva, mantendo-se
muito cautelosa ao relacionar a impossibilidade de criar instituições supranacionais, não
porque esta diminua a autonomia do Estado ou porque haja um entendimento contrário
generalizado a esse respeito no Itamaraty, mas porque a Constituição brasileira não permitia,
sendo necessária uma revisão constitucional para isso.
No entanto, em nenhum momento este negociador indica alguma disposição para
viabilizar a possibilidade de modificação da legislação neste sentido. Ao mesmo tempo,
argumenta que a tendência do bloco é a evolução de um sistema baseado no consenso para um
fundamentado em votações qualificadas, ou algo misto que poderia vigorar após a
32 GAZETA MERCANTIL. “Brasil, entre os interesses nacionais e os do Mercosul”. São Paulo: 20/10/1995.
121
consolidação da TEC.
É interessante notar que Simas Magalhães foi um dos negociadores da delegação
brasileira nos trabalhos do Grupo Ad Hoc que decidiu sobre o formato institucional do bloco.
Sua observação coincide exatamente com a ordem dos argumentos brasileiros durante esta
negociação, na qual em primeiro lugar apresentava-se uma posição centrada no caráter
intergovernamental das instituições que deveriam ser consolidadas e, posteriormente, como
elemento de barganha com relação aos países menores, defensores de instituições mais
profundas, propunha a mudança no sistema decisório que dá a cada país a capacidade de veto
(MARIANO, 2000).
Confirma-se nossa percepção de que a proposta dos negociadores brasileiros de
mudança no sistema de decisão, que seria baseado nas diferenças de importância de cada país
no bloco, não se tratava de uma proposta em seu sentido pleno, mas de um argumento de
dissimulação quando as pressões em torno do aprofundamento institucional se mostravam
mais acentuadas. Até o momento, as manifestações do corpo diplomático neste sentido
corroboram essa postura.
O ano de 1996 é marcado por algumas manifestações públicas reveladoras das
intenções dos negociadores oficiais brasileiros com respeito à visão de Mercosul
compartilhada por eles. Durante o primeiro semestre deste ano, o ministro das relações
exteriores, Luiz Felipe Lampreia, declarou que havia negociações concretas com o Equador,
Colômbia e Venezuela, além de conversas correntes com a Bolívia, no sentido de avançar no
estabelecimento de uma área de livre comércio desses países com Mercosul, demonstrando a
manutenção da decisão brasileira em ampliar o processo.
Por outro lado, é dada continuidade à tentativa de esvaziar a importância de um
tratamento público à medida que pudessem aprofundar o bloco, reforçando o caráter
comercial adquirido e que permitia uma maior facilidade no controle das pressões
provenientes das diferenças de competitividade setorial, em virtude do crescimento dos fluxos
comerciais entre os países.
No que se refere à visão estritamente comercial do processo, no final deste mesmo
ano, o diplomata Renato Marques em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, e reproduzida
a seguir, revela claramente a posição oficial na qual as diferenças econômicas e setoriais
seriam resolvidas simplesmente pela abertura do mercado e da livre competição, não tendo
nenhuma referência a possíveis mecanismos institucionais da própria integração que
amenizariam os impactos resultantes, como a própria destruição de algum setor.
122
Este tipo de postura dominante no modelo de integração do corpo diplomático
brasileiro, mesmo que indiretamente, demonstrava uma grande falta de preocupação com
respeito aos impactos sociais do processo, subestimando uma possível formação de pressões
desintegradoras.
“(...) diagnóstico algum poderá encobrir a realidade de que a indústria
de açúcar no Brasil, mesmo que deixe de produzir álcool, é a de maior
produtividade e eficiência. Do mesmo modo, a produção de trigo
argentino é a mais eficiente, a de produtos lácteos do Uruguai e a de
algodão do Paraguai. Nem por isso, o Brasil deixou de abrir o mercado
em relação a esses setores (...) Não tem razão para excluir um produto
em exceção (...) Foi o que aconteceu com os produtores de trigo no Rio
Grande do Sul, em função da abertura. Mas no conjunto, ganhou o
consumidor brasileiro com maior qualidade e preços mais competitivos
(...)”
33
Ainda sobre o tema do açúcar, o Embaixador José Botafogo Gonçalves que assumira
desde o ano anterior a coordenação da negociação no Mercosul por parte do governo
brasileiro, como Subsecretário Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio
Exterior do Itamaraty, completa e reforça os argumentos apresentados na presente pesquisa:
"(...) Esperamos demais por esta abertura (...) Sabemos que para os
argentinos é uma questão social e que a abertura do mercado de açúcar
pode custar empregos. Mas todos estão se esforçando: o Brasil abriu o
seu mercado para o trigo da Argentina, para lácteos do Uruguai e para
algodão do Paraguai. Sem abertura não há Mercosul (...)”
34
Podemos dizer que essa orientação centrada nas leis do mercado e desconectada das
necessidades inerentes aos processos de integração regional é generalizada na política externa
dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso e já era manifestada ainda antes. Em
declaração sobre a forma que o bloco deveria lidar com as conseqüências do processo
integrativo para as diferenças de competitividade na agricultura, feita por Fernando Henrique
quando ainda era Ministro das Relações Exteriores do Governo Itamar Franco, no início de
1992, afirma que os produtores brasileiros
33 JORNAL DO BRASIL. “Ainda há polêmica sobre couro e açúcar”. Rio de Janeiro: 16/12/1996.
34 GAZETA MERCANTIL.“Presidentes oficializarão novo parceiro de fora”. São Paulo: 16/12/1996.
123
"(...) sofrerão efeito devastador na abertura de mercado (...) Isso, em vez
de levar o país a recusar a integração, deve levá-lo a definir políticas
específicas de ajuste. Assim, como ainda agora os produtores de cebola
e de batata vêm sofrendo prejuízos pelas importações da Argentina,
amanhã poderemos orientar nossos agricultores a deslocarem-se para
outras culturas mais competitivas (...)"
35
Neste tipo de entendimento, se os esforços realizados pelos próprios produtores
forem insuficientes para alcançar a competitividade, então cada Estado deveria desenvolver
estratégias próprias para solucionar os possíveis problemas resultantes da dinâmica da
integração. Não se faz menção à criação de instrumentos comunitários criados com essa
finalidade.
No final de 1996, foi publicado um texto curioso assinado pelo principal negociador
brasileiro, Botafogo Gonçalves, no jornal Gazeta Mercantil intitulado "O Mercosul Virtual"
36
,
no qual o objetivo era apresentar uma proposta alternativa de apoio o funcionamento
institucional do Mercosul e, simultaneamente, era uma prestação de contas diante das
crescentes referências na imprensa escrita, apesar de ainda muito limitadas, sobre a
insuficiência institucional do bloco e a necessidade de repensá-las, inclusive quanto ao seu
caráter intergovernamental e a necessidade de haver estrutura física e burocrática específica.
O interessante deste texto é a alternativa proposta que, em nossa interpretação, tinha
mais o objetivo de esvaziar a discussão do que ser uma resposta concreta às demandas que
surgiam. A partir do diagnóstico de que as instituições comunitárias, como no caso europeu,
demandavam muitos recursos e poderiam criar uma burocracia desnecessária, o Embaixador
propõe a discussão sobre a possibilidade de criar uma infra-estrutura de funcionamento do
bloco baseada nos benefícios que a tecnologia da informação poderia oferecer.
"(...) Em outras palavras, a troca de e-mails e fac-símiles, as áudio e
videoconferências não atenderiam a contento os que trabalham na
consolidação do Mercosul? (...) Acredito que as facilidades que nos são
colocadas à disposição pela Internet, por exemplo, satisfazem às
necessidades de comunicação e de transmissão de expedientes entre os
quatro parceiros fundadores. Muito pouco há o que construir; poder-se-
ia aproveitar a estrutura física existente nos quatro países para a criação
de pontos focais, que seriam ligados a um escritório central virtual, cuja
35 GAZETA MERCANTIL.”Fernando Henrique ressalta dificuldades na integração”. São Paulo: 27/03/1992.
36 GONÇALVES, José Botafogo“O Mercosul virtual”. São Paulo: Gazeta Mercantil, 14/11/1996.
124
administração poderia acompanhar a presidência “pro tempore” e dela
fazer parte. Os pontos focais a que me referi nada mais seriam do que
escritórios físicos, situados em edifícios públicos, encarregados de
processar as informações recebidas e de transmiti-las pelas infovias ao
escritório virtual, uma URL. Assim, qualquer interessado poderia
encaminhar seu pleito ou contribuição sem o ônus do deslocamento
físico. Tal procedimento, a meu ver, resultaria em substancial redução
de custo e de tempo na gerência do Mercosul ( ...)" (GONÇALVES,
1996).
Nesta declaração afirma-se a idéia de que os importantes problemas institucionais do
Mercosul poderiam ser solucionados a partir da aplicação da tecnologia da informação. De
fato estas são utilizadas em diversas organizações, aprimorando e acelerando os
procedimentos burocráticos. Este é apenas o elemento de curiosidade do texto publicado,
sendo necessário ressaltar que no início do artigo o Embaixador reconhece as manifestações
existentes no sentido de repensar o funcionamento institucional então existente, sem se
empenhar em comentar favorável ou contrariamente a respeito das mesmas.
Concluímos que o intuito do texto do Embaixador é desviar a discussão a partir de
uma abordagem alternativa. Mesmo na explicação desta nova abordagem, conforme é
possível verificar no texto reproduzido, fica clara a reduzida importância atribuída à
participação dos demais atores domésticos, que poderiam se limitar a enviar seus pleitos para
o simples processamento de uma estrutura burocrática minimalista.
O ano de 1997 foi dominado pelas oportunidades de negócios no Mercosul, pela
manutenção do nível elevado no intercâmbio comercial entre os países, pela instabilidade
financeira internacional e, principalmente, pela aceleração das negociações para a formação
da ALCA.
Não houve intervenção significativa do Itamaraty sobre o processo a fim de manter a
coesão como no ano anterior, pois as atenções voltavam-se para as negociações hemisféricas e
para a vulnerabilidade dos países participantes com relação ao sistema financeiro
internacional, o que diminuíam momentaneamente as pressões sobre as fragilidades da
integração no Cone Sul.
Neste momento o bloco estava chegando ao ápice da estratégia de integração baseada
nas questões de mais fácil entendimento, permitindo a manutenção da quase completa
ausência de uma postura propositiva no sentido do aprofundamento. O aquecimento das
trocas intra-bloco tinham uma grande parcela da responsabilidade na diminuição da percepção
125
dos custos da integração. O momento, mesmo que desfavorável do ponto de vista da
economia mundial, era propício para a manutenção da gestão brasileira da coesão do bloco.
O auge dessa situação ocorreu no ano seguinte, coincidindo com o último ano do
primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, no tocante à estratégia de postergar a tomada
de decisões sobre a possível criação de mecanismos comuns efetivos de administração das
diferenças e de diminuição de impactos no âmbito regional.
É preciso lembrar que 1998 foi um ano eleitoral, quando o governo se volta mais
para sua vida doméstica diante da perspectivas do resultado das eleições. De qualquer forma,
este foi o ano limite do modelo de integração construído desde 1991, porque a partir de 1999
se inaugura o período de crise do processo, alimentado constantemente pelas divergências de
opiniões entre os atores domésticos quanto ao que deveria ser a integração. O padrão de
atuação da política externa brasileira frente às dificuldades e obstáculos resultantes da maior
interdependência entre os países, realizado por meio da gestão diplomática dos conflitos
comerciais e das demandas dos parceiros, foi colocado em teste.
Em resumo, a atuação governamental brasileira implementou o que chamamos de um
gerenciamento da coesão, onde era oferecido um mínimo de benefícios aos parceiros, em
geral de forma reativa ao aumento das pressões recebidas. Quando se acelerava o avanço das
grandes negociações comerciais - ALCA, União Européia-Mercosul, OMC -, esta necessidade
de oferecer benefícios diminuía em razão da funcionalidade que o bloco do Cone Sul assumia
para o enfrentamento destes grandes desafios. Assim, os outros governos participantes do
Mercosul aceitavam, momentaneamente, custos maiores dentro do bloco, pois este acabava
permitindo manter uma capacidade maior de negociação no âmbito dos grandes acordos
regionais e no âmbito do comércio multilateral. Essa, portanto, tem sido uma das formas a
partir da qual o governo brasileiro tem feito a gestão da oferta de benefícios aos parceiros e
explica, em grande medida, a utilização da integração no Cone Sul como instrumento ou
plataforma que permitiria um objetivo maior, que está situado além das fronteiras do bloco.
Esse momento especial da gestão do Ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe
Lampreia, tinha o Embaixador Graça Lima como negociador chefe para assuntos do
Mercosul, que ocupava o cargo de Subsecretário de Assuntos de Integração, Econômicos e de
Comércio Exterior, deixado pelo Embaixador Botafogo Gonçalves que assumiu o Ministério
da Indústria, Comércio e Turismo, e o Embaixador Renato L. R. Marques como Diretor do
Departamento de Integração Latino-Americana.
Ambos compartilham da idéia do Mercosul ser um instrumento fundamental para a
126
inserção comercial internacional do Brasil e de ampliação para toda a América do Sul, que
está plenamente consolidada. Entretanto, veremos que a partir de 1999 o tratamento dado à
consolidação desse instrumento se mostrou ineficaz para suportar os efeitos das dificuldades
econômicas e financeiras enfrentadas pela economia brasileira, principalmente com a
desvalorização do Real, o início da crise generalizada na Argentina e o término das exceções
que os países definiram com relação à aplicação da TEC.
A bibliografia a respeito do Mercosul, de maneira geral, reconhece que os anos 1990
representou para a diplomacia brasileira o abandono dos projetos de desenvolvimento
tecnológico a partir de esforços comuns e de um perfil de integração econômica mais
desenvolvimentista. O foco foi a ampliação do mercado regional e o aumento da capacidade
de negociação internacional, principalmente por parte do Brasil e Argentina (CERVO, 1998).
Entretanto, percebemos nesta pesquisa que independente da orientação adotada, mais
liberal ou mais desenvolvimentista e nacionalista, há características comuns que se sobrepõem
e se mantém no comportamento brasileiro em relação à evolução do bloco. Demonstramos
que a defesa destas características se conectam aos objetivos de manutenção da continuidade
da política externa brasileira - que nos capítulos iniciais chamamos a atenção para a sua
singularidade - e o principal meio para isso tem sido a atuação direta do corpo diplomático em
torno da defesa da intergovernamentalidade. Parece que a defesa desse princípio ganha,
através do tempo, maior capacidade de explicação a respeito da dinâmica de funcionamento
do bloco e das intenções reservadas ao Mercosul na totalidade da atuação externa brasileira.
Assim, é no período de crise do modelo de integração que poderemos perceber
melhor as intenções dos atores domésticos porque se inicia uma intensificação das pressões
sobre o padrão de formulação da política exterior do Brasil, conforme relatado anteriormente,
que nos facilitará entender melhor as questões envolvidas.
6.2. O Segundo Governo Fernando Henrique Cardoso: 1999-2002
O ano de 1999 marca o total esgotamento do modelo de integração adotado e inicia
um período de grave crise que até o momento não foi superada. O foco da crise alterou-se
diversas vezes ao longo dos anos, conforme veremos na seqüência, mas entendemos que
representa "erupções" provenientes de um modelo de integração que sufocou demandas
legítimas e que, a partir deste ponto, emergem sem ter uma arquitetura institucional capaz de
conter o seu transbordamento.
Da perspectiva dos negociadores brasileiros, verificamos a erosão acelerada da
127
capacidade de gestão da crise e da manutenção da coesão, não somente devido ao acirramento
dos conflitos comerciais ou das repercussões da desvalorização cambial brasileira, mas
principalmente pela instabilidade da própria integração, o que potencializava as pressões
desintegradoras existentes.
Podemos ainda concluir que este período demonstrou ao governo brasileiro e à sua
corporação diplomática, principalmente, o limite da postura comumente apresentada de tratar
a integração enquanto um processo limitado no seu aprofundamento e aberto à inclusão de
novos países. Se isso atendia plenamente aos interesses governamentais brasileiros, deixou
insatisfeitos os países menores e também o principal parceiro, a Argentina.
Diante das intenções brasileiras centradas na expansão do bloco, que já estavam
presentes desde o seu início, mas que se intensificaram a partir da proposta de criação da
ALCSA no governo de Itamar Franco e consolidaram-se no governo de Fernando Henrique
Cardoso, entende-se a declaração do chanceler argentino Guido Di Tella a respeito do
descontentamento do governo de seu país sobre a expansão do bloco, manifestando que já
havia uma grande dificuldade em manter a coesão de quatro membros plenos e dois
associados (Chile e Bolívia), sendo impraticável continuar neste sentido
37
.
Diante desta situação de descrédito generalizado as intervenções diplomáticas
públicas se limitam a esclarecer o significado da existência do Mercosul para o Brasil, diante
dos desafios representados pelas negociações comerciais internacionais, chegando a afirmar
que, nas palavras do Embaixador Luiz Felipe Seixas Corrêa "(...) o que está em jogo é a
criação de uma zona de prosperidade compartilhada para toda a América do Sul (...) que
nasceu da aproximação Brasil-Argentina (...)"
38.
O aprofundamento da crise entre os governos do Mercosul, principalmente com
relação às relações bilaterais entre Brasil e Argentina, chegou a tal ponto que dentro do
governo brasileiro aventou-se a idéia de sair do processo de integração.
Depois de passar um dos piores anos para o processo de integração no Cone Sul, o
ano 2000 inicia-se com o intuito expresso do governo brasileiro de não deixar o bloco
desintegrar-se. Esta postura fornece elementos empíricos importantes para compreender
melhor a dinâmica que tem sustentado todo processo, principalmente com respeito à
perspectiva diplomática e ao papel desempenhado pela figura presidencial.
37 OESP. “Argentina defende expansão lenta do Mercosul”. São Paulo: 13/05/1999.
38 CORREA, Luiz Felipe de Seixas-. “O Equilíbrio no Mercosul”. O Estado de S. Paulo. São Paulo:
09/03/1999.
128
A bibliografia especializada sobre o Mercosul ressalta, predominantemente, a
concentração da vontade política na Presidência da República de cada país. Em geral, o
entendimento é de que os presidentes possuem grande capacidade de fazer avançar o
processo, superando crises políticas, ou de bloquear este avanço sendo o causador principal
destas grandes crises.
Durante o ano de 2000 este argumento ficou evidente, quando a vontade presidencial
por parte do Brasil foi acionada com o objetivo de salvar o processo. A peculiaridade dos
acontecimentos que marcaram esse ano fornece elementos suficientes para concluirmos, a
respeito das finalidades do Mercosul na política externa brasileira, que houve uma tensão
latente entre a diplomacia e a vontade presidencial, sendo que em alguns momentos ela foi
mais evidente.
Alguns indícios indicam como essa tensão foi administrada. Acreditamos que as
possibilidades de divergências entre esses dois atores governamentais se revelam mais
facilmente no momento da formulação decisória, quando os interesses ligados à dinâmica
eleitoral e à coalizão governamental, determinantes da vontade presidencial, podem se opor
aos interesses corporativos característicos de uma burocracia consolidada como a do
Ministério das Relações Exteriores.
De qualquer forma, percebe-se que num primeiro momento a capacidade decisória da
autoridade presidencial pode prevalecer. Já durante a implementação, no segundo momento, o
jogo pode se inverter, pois a diplomacia oficial detém recursos de poder e de influência
consolidados durante anos e, sobretudo, com reconhecida legitimidade. Os acontecimentos
deste ano demonstraram uma vontade presidencial predominante no momento da formulação,
tomando inclusive algumas medidas preventivas no sentido de garantir a implementação
destas, e demonstraram também a reação corporativa durante o processo de implementação.
Diante da escalada de conflitos comerciais e da crise diplomática entre o governo
argentino e o governo brasileiro, aparecem duas posturas no governo brasileiro: a do Ministro
das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, em manter a forma como tradicionalmente a
diplomacia vinha tratando as questões essenciais da integração regional, e a do Presidente da
República, Fernando Henrique Cardoso, que resolve fazer os esforços necessários para que o
Mercosul não se desintegre totalmente. Para que sua decisão tenha maiores possibilidades de
implementação, o presidente criou o cargo de Embaixador Extraordinário para Assuntos do
Mercosul que deveria ser uma ligação direta dos negociadores brasileiros com a Presidência
da República. O escolhido para ocupar esse cargo foi um integrante do próprio Itamaraty, o
129
Embaixador Botafogo Gonçalves, que ocupava a Secretaria Executiva da Câmara de
Comércio Exterior (CAMEX) e era reconhecido por sua experiência no tema. Ele era
considerado pela diplomacia argentina como um negociador duro, mas favorável ao processo.
Na mesma época em que o Embaixador assumiu esse cargo, o Ministro Lampreia
declarou que o governo brasileiro era contrário à criação de um mecanismo de solução de
controvérsias permanente, em resposta à crescente demanda Argentina nesse sentido. Vale
lembrar que este pleito não era somente momentâneo, pois tinha apoiadores declarados não só
na comunidade jurídica dos países participantes, como também era uma demanda antiga dos
países menores. O argumento do Ministro era de que o Protocolo de Brasília era suficiente
para dar conta dos crescentes conflitos comerciais
39
. A partir desta declaração é possível
verificar uma cisão interna entre os negociadores brasileiros no Mercosul: há uma diferença
substancial entre a Presidência da República e os interesses da corporação diplomática.
Logo ao assumir o novo cargo o Embaixador Botafogo Gonçalves deixa claro o seu
perfil de atuação diante dessa nova determinação do governo. Ressalta desde o início a
necessidade de ampliação do processo para a América do Sul, mostrando as dificuldades tanto
na Rodada do Milênio da OMC, visto os acontecimentos em Seattle, como em relação às
negociações para formação da ALCA e da área de livre comércio entre Mercosul e União
Européia. A idéia era justificar a expansão como algo inevitável diante das circunstâncias
internacionais e, ao mesmo tempo, sinalizar principalmente para o governo argentino que o
Brasil continuaria rumo à América do Sul, no sentido de aceitar a absorção de alguns custos a
fim de diminuir as pressões setoriais e permitir o mínimo de coesão do bloco.
Quanto a este segundo fator o Embaixador chegou a argumentar que os próprios
conflitos setoriais eram naturais de um processo de integração e que, em alguns casos,
surgiam entendimentos que serviam como "amortecedores" dos impactos econômicos. O
exemplo em questão era o contencioso no setor de calçados e um acordo momentâneo entre as
associações de produtores dos países.
É interessante notar que continuava a visão de integração baseada em uma dinâmica
regida prioritariamente pelos próprios mercados. No caso brasileiro a defesa deste tipo de
integração não é um fim em si mesma, mas reforça os objetivos de autonomia brasileira
historicamente presentes na política externa, já que o país possui comparativamente mais
recursos de poder na região. A funcionalidade da idéia deste modelo integracionistas, além de
39 GAZETA MERCANTIL. G “Botafogo é embaixador para o Mercosul”. São Paulo: 14/01/2000.
130
se apoiar em interesses domésticos importantes na sociedade brasileira, também ajudava a
"camuflar" as reais intenções dos negociadores brasileiros que era a da manutenção do
princípio da intergovernamentalidade do processo. Assim, em momentos de crise e de
pressões por aprofundamento da integração, o governo brasileiro não respondia com mais
integração a partir do estabelecimento de mecanismos comunitários, mas com a oferta de
benefícios a partir das instituições nacionais.
A demonstração de que o governo brasileiro poderia oferecer mais benefícios foi
dada pela intenção em apoiar a proposta argentina de fortalecimento das cadeias produtivas no
Mercosul e pela idéia de que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social) poderia cumprir um papel importante no financiamento de projetos comuns entre
brasileiros e argentinos
40
. Um outro fator que demonstra claramente a postura de favorecer a
flexibilidade institucional do processo é a proposta brasileira de rever algumas tarifas com o
Paraguai e com o Uruguai, argumentando que essas exceções eram pontuais e diferenciadas,
já que o Brasil não teria condição para financiar o desenvolvimento econômico desses países.
O que entendemos como inovação é a aceitação pública por parte do Embaixador
Botafogo Gonçalves da possibilidade de criação de um fundo comunitário para ajudar a
diminuir os problemas com os países menores
41
. O surgimento mesmo que pontual da idéia de
criação de um fundo por parte de um representante do governo brasileiro é uma inovação no
processo, já que era corrente a postura de omissão ou contrária a esse tipo de solução. No
entanto, essa manifestação não encontrava respaldo nos demais negociadores brasileiros para
o Mercosul. Essa afirmação assumiu um caráter mais retórico ou podemos dizer de opinião
pessoal, já que em termos práticos isso não se realizou e também não foi reforçado por outros
negociadores.
Assim, ainda é válido o entendimento de que o pagamento dos custos da integração
por parte do governo brasileiro, e não estamos falando somente de custos financeiros, mas
fundamentalmente dos políticos, não se direcionam à criação ou intermediação de instituições
comunitárias com a finalidade de concretizar esse pagamento. É o que explica a idéia de uma
utilização do BNDES já no governo de Fernando Henrique Cardoso e, sua efetiva aplicação
durante o primeiro governo Lula da Silva. Se esse pagamento mínimo é necessário então, na
concepção predominante do governo brasileiro, ele deveria ser realizado através das próprias
40 GAZETA MERCANTIL. “Botafogo tentará ampliar o Mercosul”. São Paulo: 02/02/2000.
41 GAZETA MERCANTIL. “Botafogo quer rever algumas tarifas com países do Mercosul”. São Paulo:
24/02/2000
131
instituições nacionais brasileiras.
Esta nova postura é parcialmente reforçada pelo Ministro das Relações Exteriores
Luiz Felipe Lampreia, que manifestou a intenção brasileira de promover o aprofundamento do
Mercosul
42
, sem especificar o que entendia por isso. Chegou a afirmar que havia a intenção de
aprimorar os mecanismos de solução de controvérsias, sem também explicar como isso seria
feito, dando a entender que mantinha a posição de que esse aprimoramento estaria
concentrado no próprio Protocolo de Brasília conforme suas declarações anteriores e,
portanto, não significava a aceitação de um Tribunal Permanente. Outro fato interessante é
que o anúncio de aprofundamento é acompanhado pela intenção de transformar os países
associados, Chile e Bolívia, em membros efetivos.
Em pleno clima de preparação para a reunião de "relançamento" do Mercosul, que
deveria ocorrer no mês de abril, o Embaixador Botafogo Gonçalves demonstra parte das
intenções brasileiras como proposta para esta nova etapa, evidenciando a limitação do
entendimento a respeito do que seria necessário para o aprofundamento do Mercosul, sendo
mais correto dizer sobrevivência. Seria um processo em três etapas: a identificação dos
contenciosos existentes, a solução destes e, feito isto, o aprofundamento da integração
43
.
É interessante notar que, além do fato de ser uma visão muito simplificadora dos
reais problemas, apresenta uma desconexão entre os conflitos e a própria questão do
aprofundamento, ou seja, neste tipo de diagnóstico não há relação entre a existência de uma
situação de proliferação de conflitos e a ausência de mecanismos que viabilizem uma situação
de maior aprofundamento da integração.
Vale lembrar também que esta visão de aprofundamento se concentra mais no
destravamento dos obstáculos ao comércio intra-bloco, em detrimento do desenvolvimento de
mecanismos comunitários de promoção deste aprofundamento e de diminuição dos impactos
negativos provenientes do próprio fato de países diferentes estarem se integrando. Ela é
coerente com a postura manifestada à época da sua atuação no início do governo de Fernando
Henrique Cardoso, quando era o negociador chefe do Itamaraty para o Mercosul. Entretanto, é
importante dizer que na análise cronológica realizada a respeito das manifestações públicas do
Embaixador Botafogo Gonçalves é perceptível o aumento de sua tolerância com respeito à
42 GAZETA MERCANTIL. “Brasil quer consolidar Mercosul, diz Lampreia”. São Paulo: 18/02/2000
43 GAZETA MERCANTIL. “Brasil quer nova agenda de negociações para o Mercosul”. São Paulo:
02/03/2000.
132
aceitação de instrumentos comunitários
44
.
Em reunião preparatória do relançamento do Mercosul, ocorrida no final de março, o
Embaixador Botafogo Gonçalves e o Vice-chanceler argentino divulgaram conjuntamente na
imprensa
45
a concordância com respeito à criação de um tribunal permanente para solução de
controvérsias comerciais, apesar da existência de grandes divergências entre os dois países,
além de indicar que outros temas seriam tratados em reuniões posteriores, como a questão das
zonas francas, dos regimes de origem assim como o tratamento preferencial dos temas de
serviços e compras governamentais.
Sobre o mesmo assunto, no mês de maio, o Ministro Lampreia, ao analisar os últimos
doze meses de Mercosul, declara que estava descartada a criação de um Tribunal Permanente
no bloco
46
, reforçando seu argumento de que a realidade dos países do Mercosul é muito
diversa dos países da Europa, utilizada por ele como exemplo. A proposta brasileira, portanto,
seria de aperfeiçoar a seleção dos juízes que poderiam fazer parte do Tribunal Arbitral do
bloco, mecanismo de solução de controvérsias que se constitui para julgar um determinado
conflito quando o Protocolo de Brasília é acionado, dissolvendo-se após o seu julgamento.
O ano de 2000 encerrou-se garantindo a sobrevivência do bloco, mas sem apresentar
medidas concretas que resultassem em um tratamento específico para os temas substancias da
integração, como o financiamento do próprio processo, o aprimoramento dos mecanismos de
solução de conflitos, a criação de órgãos capazes de gerenciar as diferenças setoriais e de
competitividade, entre outros. Pelo contrário, as indicações são de que o governo brasileiro
manteve o que podemos chamar de "linha dura" na gestão do Mercosul, fazendo referências
fortes à recusa da Argentina em abrir o mercado de açúcar. Além disso, manteve os esforços
no sentido de ampliação do número de membros no processo, apesar da perda representada
pelo anúncio do governo chileno de que iria negociar diretamente com os EUA para obter sua
incorporação ao acordo de comércio da América do Norte (NAFTA), causando a irritação do
Ministro Lampreia e um forte mal-estar na Presidência da República, tendo em vista os
esforços pessoais feitos nesse sentido
47
.
Os acontecimentos de 2001, analisados sob a perspectiva brasileira, demonstram o
44 Exemplo disso também pode ser visto na manifestação de sua opinião a respeito da conveniência de um
ordenamento jurídico comum para a defesa comercial como forma de evitar a aplicação unilateral de medidas
compensatórias. OESP. “Mercosul fica sem defesa comercial comum”. São Paulo: 08/12/2000.
45 OESP. “Outras pendências ainda causam impasse entre vizinhos do Mercosul”. São Paulo: 25/03/2000.
46 GAZETA MERCANTIL. “Mercosul cria política comum para compras”. São Paulo: 10/05/2000.
47 OESP. “Negociações com o Chile estão suspensas”. São Paulo: 03/12/2000;
GAZETA MERCANTIL. “Mercosul é motivo de preocupação”. São Paulo: 30/08/2000.
133
ensaio do que virá a ser o final do governo Fernando Henrique Cardoso e a capacidade de
adaptação do corpo diplomático em se preparar para as possíveis mudanças no próximo
governo.
A substituição do Ministro Lampreia por Celso Lafer no Ministério das Relações
Exteriores significa a reafirmação da Presidência em manter o mínimo de coesão no Mercosul
e, do ponto de vista da burocracia negociadora, inicia-se uma série de alterações nos postos
mais importantes com respeito à capacidade brasileira de negociação comercial internacional,
firmando a orientação no sentido de consolidar o Mercosul enquanto plataforma brasileira de
manutenção ou de expansão da margem de manobra governamental diante dessas
negociações.
Já no primeiro trimestre, Celso Lafer indica publicamente uma postura de contenção
no oferecimento de benefícios para os parceiros menores do Mercosul e, simultaneamente,
fortalece a tradicional articulação entre os dois principais países do bloco. O objetivo
declarado era o da manutenção da união aduaneira, mesmo que repleta de problemas, pois
havia uma expectativa quanto ao advento de um período muito difícil com respeito às
negociações com os Estados Unidos, a Europa e no nível multilateral. Comentando esta
postura, principalmente com relação ao governo uruguaio e paraguaio, afirmou: "(...) Só
vamos pagar o preço da liderança se mantivermos a coesão do processo (...)" (OESP, 2001)
Tendo em vista a situação complicada pela qual o Mercosul passava, principalmente
pela decisão unilateral do governo argentino em permitir a suspensão da cobrança da tarifa
externa comum para importação de bens de capital produzidos fora do Mercosul,
prejudicando um dos setores industriais brasileiros que teve grandes benefícios com o bloco, o
ex-ministro Lampreia declarou que o futuro da integração estava em risco (OESP, 2001-b), já
que a possibilidade de inviabilizar definitivamente a união aduaneira alteraria um dos seus
princípios básicos que era a existência da TEC. Como conseqüência o Mercosul perderia sua
funcionalidade nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas.
Essa declaração, assim como outras que se seguirão durante o final do governo
Fernando Henrique Cardoso, revela o nível de aprofundamento da integração do Cone Sul
esperado pela diplomacia. Em nosso entender o que poderíamos chamar de "modelo
diplomático brasileiro de Mercosul" prevê a existência de uma união aduaneira, não havendo
indícios empíricos que comprovem a intenção real de uma integração mais profunda, exceto
no discurso.
Assim, a contradição entre o discurso e as ações efetivas com respeito à integração,
134
durante uma década de processo integrativo, que resultou em uma crise de expectativas com
respeito à integração por parte das diplomacias dos países membros, já que podemos concluir
que no processo de aprendizado resultante da interação intergovernamental, os atores criaram
suas expectativas quanto aos demais participantes e, no caso dos negociadores
governamentais brasileiros, o padrão de comportamento consolidado não condiz com o papel
esperado de principal ator e motor do processo integrativo.
Reforçando esta postura do governo brasileiro, em abril do mesmo ano o embaixador
brasileiro na Organização Mundial do Comércio Celso Amorim, ao ser indagado sobre quais
as possíveis implicações para o comércio multilateral e para a política externa brasileira caso
houvesse algum avanço para a formação da ALCA na reunião que se realizaria em Quebec no
Canadá, foi categórico ao afirmar que não importava o resultado das negociações
hemisféricas, pois a prioridade era o sistema multilateral, prevendo uma nova rodada global
de negociações que abordasse o déficit de desenvolvimento (GAZETA MERCANTIL, 2001-
a).
Quase ao mesmo tempo, o Embaixador José Alfredo Graça Lima, então
Subsecretário de Assuntos Econômicos e Integração do Itamaraty, conhecido por seu perfil
multilateralista, manifesta a expectativa de que o acordo da área de livre comércio entre
Mercosul e União Européia pudesse sair antes mesmo da conclusão da negociação na ALCA
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2001).
Esta afirmação por parte do governo brasileiro indicava algo que até os dias de hoje
tem validade. Trata-se da importância de um acordo deste tipo para diminuir as cobranças
oriundas dos países participantes do Mercosul para que o Brasil pague pela coesão que
necessita. Acreditamos, apesar de não ser o objetivo deste texto, que o acordo com a Europa
poderia ser entendido pelo governo brasileiro, principalmente pelo corpo diplomático, como
uma forma eficiente de manter a coesão no Cone Sul, adquirir melhores condições de
negociar com os EUA em virtude da disputa entre as duas potências por esta zona de
influência econômica e capacitar-se na negociação multilateral, mesmo que houvesse a
necessidade de aceitar um determinado nível de custos (VIGEVANI e MARIANO, 2005;
THORNSTENSEN, 2003; VEIGA, 2005)
Em junho deste mesmo ano, às vésperas da Reunião de Cúpula do Mercosul, ocasião
em que se comemorariam os 10 anos do Tratado de Assunção, é publicado na imprensa o
texto do Embaixador Luiz Felipe de Seixas Correa apresentando uma expectativa mais
favorável em relação ao processo e claramente endereçado aos governos participantes, numa
135
tentativa de transmitir as atuais orientações brasileiras (CORREA, 2001).
Seu argumento inicial é de que o Mercosul fornecia aos países membros a
capacidade de enfrentar "(...) com maior peso relativo às difíceis negociações comerciais
regionais, em inter-regionais e globais que compõem a agenda internacional (...)" (idem).
Na seqüência argumenta que a crise vivida no processo tem como origem o seu
próprio sucesso, caracterizado por um expressivo aumento do comércio entre os países.
Assim, podemos perceber no embaixador a tentativa de não apontar culpados ou maiores
responsáveis o que, por sinal, era de esperar já que se trata de um diplomata de carreira. No
entanto, prossegue buscando ligar a crise a um descuido dos governos e, portanto,
compartilhado por todos, com relação à necessidade de se buscar o aprofundamento da
integração: "(...) Esquecemo-nos de que sem políticas setoriais conjuntas, sem reconversão de
setores improdutivos, sem o aproveitamento eqüitativo das vantagens comparativas de cada
um não haveria jamais integração (...)" (idem)
Mesmo não tendo sido o objetivo desta pesquisa abordar a posição dos demais
países, levantamos alguns elementos de conhecimento geral, bastando fazer uma leitura atenta
às notícias divulgadas pela imprensa de qualquer uma das nações ou mesmo na bibliografia
especializada sobre o assunto, de que as medidas citadas acima eram demandas concretas dos
demais atores governamentais e não-governamentais em geral. Portanto, esse discurso tem
dificuldade em se justificar baseado em acontecimentos concretos.
Mais adiante apresenta a solução: dedicar-se mais uma vez ao Mercosul, buscando o
seu aprofundamento. Entendemos que o discurso do aprofundamento, diferentemente do
discurso da expansão, é baseado em proposições genéricas e não é acompanhado de medidas
ou de intenções específicas para chegar a esse aprofundamento, como demonstra o trecho
abaixo:
Só há, portanto, um caminho: rededicarmo-nos plenamente à razão de
ser do Mercosul, à visão que o engendrou como um projeto estratégico
de natureza política e econômica. Em outras palavras: promover a
integração profunda entre os sócios. Integração gera crescimento, gera
escalas de produção e de consumo, gera plataformas eficientes de
exportação; integração, em suma, cria confiança, solidez, capacidade de
resistência às crises. O comércio virá junto, como num arrastão (...)
(idem).
Baseado nas diversas informações já levantadas e também na pesquisa empírica
136
realizada, afirmamos que quando o discurso é defensivo - no sentido de resistir a alguma
proposta concreta que pudesse promover o aprofundamento, como exemplo citamos a reação
à proposta de criação de um tribunal de justiça do Mercosul-, ele é específico e preciso nas
justificativas contrárias a esse tipo de proposição. Acreditamos que esse tipo de prática
diplomática pode ser explicado enquanto uma tática burocrática de aumento de seu poder
relativo.
Essa corporação burocrática, conforme analisado anteriormente, dispõe de recursos
de poder que se fundamentam, entre outros fatores, na sua reconhecida capacidade de
negociação. Sendo assim, é no próprio processo negociador e na implementação que esse
diferencial se mostra mais relevante. Nos processos decisórios em que os negociadores
brasileiros apresentam o maior poder relativo, como é o caso do Mercosul, a preferência é por
círculos mais restritos de negociação, pois as chances de influência sobre os atores são
maiores.
Inversamente, dada a fragilidade negociadora brasileira, nos processos da ALCA ou
nas negociações multilaterais, a opção por uma maior transparência dos conteúdos
negociadores ou da atuação conjunta com outros setores da sociedade garantiriam
probabilidades maiores de ganhos ou justificariam posições mais duras. Isso fica claro a partir
de 2003 com o respeito às negociações que levaram a proposta de "Alca Light" e também na
estratégia negociadora brasileira à frente do G20 no âmbito da OMC (VIGEVANI e
MARIANO, 2005).
Voltando ao texto do Embaixador Correa, percebemos que as propostas brasileiras
pareciam mais um pedido de confiança, apesar do histórico de ações concretas que claramente
não ampara o discurso, levando à necessidade de fundamentá-la como forma de garantir
coerência desse apelo. A forma encontrada foi alertar sobre as dificuldades que estavam por
vir no sistema internacional e a fragilidade negociadora dos países do bloco, atribuindo a idéia
de que não havia outra escolha razoável.:
Há tempo. Mas não muito. Os desafios da Alca, da negociação com a
União Européia e de uma futura rodada global no âmbito da OMC estão
à porta. Podemos, cada qual, tentar a sorte individualmente nesses
complexos exercícios, em que estão em jogo desde já as nossas próprias
perspectivas de desenvolvimento(...) Por suas dimensões, o Brasil, em
princípio, estaria proporcionalmente mais apto do que os demais sócios
a deixar-se seduzir pela tentação da aposta individual. Mas ainda assim
137
preferimos a opção da integração. Valemos mais reunidos do que
divididos (...). (CORREA, 2001)
O Embaixador declara ainda que a estratégia brasileira terá três frentes. Vale a
reprodução literal de sua citação não somente para demonstrar a sua generalidade, mas para
reforçar os argumentos que temos defendido do que seriam, em realidade, os objetivos do
Mercosul presentes na política externa brasileira e que, em geral, apresentam uma razoável
ambigüidade com relação ao discurso que, em muitos momentos, apontavam no sentido de
uma integração profunda capaz até de gerenciar um hipotético mercado comum futuro.
Uma reafirmação inequívoca da inteireza do projeto do Mercosul
enquanto uma união aduaneira instrumentada por uma tarifa externa
comum; uma aceleração dos tempos, dos instrumentos de política e das
instituições que darão sustentação à meta de integração profunda
representada pelo mercado comum; e uma negociação pragmática dos
problemas concretos de competitividade e de assimetrias com que nos
defrontamos atualmente (...) (idem).
No final de junho de 2001, diante das dificuldades em manter a coesão do bloco
frente ao desafio de negociar com a União Européia, o Presidente Fernando Henrique
Cardoso, em viagem à Bolívia, faz uma inesperada declaração pública que demonstra uma
grande desconexão momentânea com o discurso e as atitudes do corpo diplomático.
Demonstra claramente o exercício da diplomacia presidencial, pois vai além das posições
administradas pela diplomacia, afirmando que o Mercosul era um projeto viável e que
necessitava se fortalecer e, para isso, seria o momento de se pensar na adoção de instituições
supranacionais para viabilizar o aprofundamento da integração física e econômica. “Algumas
pessoas condenaram o Mercosul à morte. Mas isso é um grande erro (...) Temos que começar
a organizar instituições supranacionais no Mercosul, e não depender apenas de uma ação
política dos presidentes (...)
48
Essa afirmação, além de não encontrar eco no interior da corporação diplomática,
fortalece a idéia de que em determinados momentos essa tensão existente entre a condução
presidencial dos assuntos relacionados ao Mercosul se confrontam com os objetivos que
respondem mais à lógica de funcionamento do corpo diplomático. É a partir da constatação
dessas tensões que podemos construir uma explicação que identifica um projeto de Mercosul
48 GAZETA MERCANTIL. “Novo plano só reorganiza anteriores”. São Paulo: 29/06/2001.
138
diplomático que pode ser distinto da idéia de Mercosul dos presidentes ou das forças políticas
que dão sustentação ao governo.
Mesmo havendo uma razoável diversidade de atores que compõem o todo
representado pelo processo de tomada de decisões em política externa, podemos dizer que no
interior deste jogo que define as ações externas, alguns atores têm maior capacidade de
influência sobre as decisões do que outros. Se for verdade que o Presidente é uma força
indiscutível no processo, também é verdade, de acordo com os fatos analisados, que o corpo
diplomático manteve na condução do Mercosul um grande grau de autonomia e, como
veremos, esta é exercida no dia-a-dia deste jogo decisório. Diferente das intervenções
presidenciais, que mesmo tendo grande relevância são pontuais e dependem dos atores
governamentais especializados para implementação destas orientações. Há, na verdade, uma
significativa distância entre a formulação e a implementação das decisões em política externa
no Brasil, pelo menos é o que se percebe na condução das negociações no âmbito regional.
Desta forma, estamos de acordo com Seitenfus e Ventura (2001) de que
A surpreendente defesa de instituições supranacionais pelo chefe de
Estado brasileiro pode resultar de uma autocrítica quanto ao
aprofundamento que não houve ou pode simplesmente estar vinculada à
constatação de que nosso país tem muito a ganhar na associação com a
União Européia - e o Mercosul é o único interlocutor possível para isso.
A declaração presidencial não repercutiu significativamente e o segundo semestre de
2001 teve início com as atenções voltadas para as pressões sobre a Tarifa Externa Comum,
principalmente por parte do governo argentino, aumentando os questionamentos a respeito da
manutenção da união aduaneira que, inclusive, era requisito para a negociação da área de livre
comércio com a Europa.
O principal negociador europeu, Pascal Lamy, em visita oficial ao Brasil a fim de
tratar do prosseguimento das negociações comerciais lideradas nesse momento pelo Brasil
(GAZETA MERCANTIL, 2001-b), devido às dificuldades domésticas argentinas, deixou
clara a falta de interesse da Europa no caso de ter que negociar com um Mercosul em formato
de área de livre comércio, pois entendia que se assim fosse, a perspectiva era de diluição do
Mercosul no âmbito da negociação da ALCA.
Mesmo havendo a aceleração das negociações hemisférica e também com os
europeus, o que ajudava o governo brasileiro a conseguir a aceitação de sua liderança por
139
parte dos parceiros do bloco, a realidade da integração no Mercosul era marcada pela
dificuldade em manter a disciplina necessária para o funcionamento pleno de uma união
aduaneira, mantendo aceso o questionamento quanto à sua viabilidade.
O caso específico que demonstra bem a dificuldade em manter a coesão foi a
manifestação pública do ex-Ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, a
respeito da inviabilidade da Tarifa Externa Comum, chegando a propor que o governo
brasileiro deveria aceitar a suspensão desta por tempo indeterminado, já que a união aduaneira
era um "(...) faz de conta (...)" (OESP, 2001-c). Afirmava que voltando à situação de área de
livre comércio facilitaria a adesão do Chile e da Bolívia.
O Ministro Celso Lafer representando o sentimento mais ou menos generalizado
entre os negociadores oficiais, imediatamente reage comentando essas declarações e
afirmando que a sugestão do ex-ministro propunha a realização de um grande retrocesso
baseado em problemas conjunturais, e que o resultado seria o aborto de um processo
estratégico brasileiro, além da diluição do bloco na área de livre comércio hemisférica.
A deterioração do relacionamento com a Argentina continuou, chegando à quase
ruptura quando após declarações do então Ministro da Economia argentino Domingo Cavallo
a respeito do regime de câmbio brasileiro, o presidente brasileiro solicitou a volta para o
Brasil do então Representante Especial da Presidência para o Mercosul, Embaixador José
Botafogo Gonçalves, que estava negociando justamente a proposta que o Mercosul
apresentaria à União Européia , .
No entanto, no mês seguinte, como forma de manter sua decisão em sustentar o
processo de integração até o fim de seu governo, o Presidente indicou Botafogo Gonçalves
para assumir a embaixada em Buenos Aires, reforçando também essa decisão o fato de que
dentro de poucos meses a Argentina assumiria a presidência pró-tempore do bloco.
A presença de Botafogo Gonçalves à frente da embaixada argentina sinalizou que,
mesmo sendo considerado como um negociador difícil era reconhecido também por suas
propostas de um Mercosul um pouco mais profundo, aceitando inclusive a existência de um
órgão permanente para solução de conflitos.
Isso não significava que as posições do Embaixador, pelo menos até este momento,
representassem uma integração que extrapolaria a visão predominante da integração
comercial, mas demonstra a posição governamental daquele momento em permitir o que ele
chamava de uma maior flexibilidade em virtude das dificuldades internas pelas quais a
Argentina passava. Indicava, portanto, a aceitação mesmo que temporária de exceções sobre
140
os mecanismos existentes da integração.
O último ano do governo Fernando Henrique Cardoso é muito importante para esta
pesquisa porque demonstra a consolidação da estratégia de adaptação do corpo diplomático
iniciada no ano anterior, tendo em vista não somente a utilização do Mercosul como
instrumento de enfrentamento da aceleração nas negociações comerciais internacionais, mas
a preocupação da corporação em se preparar para o resultado das eleições presidenciais, que
por sinal, já apontavam para uma perspectiva mais nacionalista e menos liberal,
independentemente se o presidente fosse o candidato do governo, José Serra, ou o candidato
da oposição Luiz Inácio Lula da Silva.
Um núcleo decisório que representava a orientação multilateral na política externa
brasileira e o tratamento de subordinação do Mercosul a esses objetivos era representado
basicamente pela presença dos embaixadores Clodoaldo Hugueney - que acumulava a
Subsecretária Geral de Integração, Assuntos Econômicos e Comércio Exterior além da
Representação do Presidente da República para Assuntos do Mercosul, delegando a
coordenação das tarefas deste último cargo ao Embaixador Carlos Alberto Simas Magalhães;
o Embaixador na União Européia José Alfredo Graça Lima; o Embaixador na OMC Luiz
Felipe de Seixas Correa; e também o Embaixador na Argentina Botafogo Gonçalves. Deve-se
ainda acrescentar como negociador extra-corporação, mas com relevante papel desempenhado
nas negociações desde o ano anterior com a Argentina do então Secretário do
Desenvolvimento da Produção do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio,
Reginaldo Arcuri, lembrando que ele ocupará no novo governo a direção da Secretaria
Técnica do Mercosul, que foi uma proposta brasileira proveniente deste núcleo negociador e
que será instalada no início do governo Lula da Silva.
É interessante notar que essa consolidação de ocupação de cargos internos à
corporação, de maneira geral, se manteve a mesma com o a vitória de Lula da Silva
permanecendo atuante até pelo menos 2004. Este núcleo decisório seria o responsável por
fazer as adaptações corporativas necessárias para a transição em direção ao próximo governo,
conseguindo administrar a agenda comercial externa de forma que, em maior ou menor grau,
teria grande probabilidade de ser aproveitado no governo seguinte – o que de fato aconteceu -,
diante dos compromissos assumidos, da complexidade dos temas tratados e do risco de alterar
a escalação da equipe de negociadores em curto espaço de tempo.
Logo ao assumir os trabalhos de chefiar a negociação comercial brasileira, o
Embaixador Clodoaldo Hugueney afirmou com relação ao Mercosul que uma de suas
141
prioridades era a de "(...) limpar a mesa (...)"
49
, referindo-se à situação conflituosa existente
no bloco. Além dos problemas advindos da burocracia existente nas relações
intergovernamentais, que em muitos casos dificultam o avanço do comércio entre os países, o
Embaixador propôs a criação do Convênio de Créditos Recíprocos que poderia ajudar a
economia da Argentina, que passava por uma situação de crise, ajudando a diminuir os
impactos no relacionamento entre os dois principais países. Outra indicação era no sentido de
incentivar acordos no setor automotivo, buscando o aprofundamento maior das cadeias
produtivas, como as de madeiras, têxteis, couros e calçados
50
.
Entre outras prioridades ficou clara a incumbência de manter minimamente o
funcionamento da união aduaneira, reforçando que sua função principal era de consistir em
um mecanismo eficaz para as grandes negociações comerciais internacionais nas quais o
Brasil e o Mercosul estavam participando. Isto foi expresso em diversas afirmações públicas.
"(...) Se queremos negociar a Alca, temos que ter uma TEC que funcione (...)"
51
. Ou ainda,
"Quer queira quer não, o Mercosul vai ter que estabelecer uma definição da TEC, até porque
serve não só para negociar com a Europa, mas também para as negociações da Alca e da
OMC (...)"
52
.
Na análise dos acontecimentos do ano 2001 até pelo menos o início do segundo
semestre é perceptível o esforço dos negociadores brasileiros liderado pelo Embaixador
Clodoaldo Hugueney e, em seguida pelo Embaixador Botafogo Gonçalves, além da atuação
do Secretário do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Reginaldo Arcuri, no
sentido de garantir para o próximo Presidente da República um "Mercosul mais fortalecido
(...)", de acordo com as próprias palavras do Embaixador Hugueney
53
O segundo semestre desse ano iniciou-se com o Brasil ocupando a presidência pró-
tempore do Mercosul em pleno clima de eleições brasileiras e crise econômica argentina,
além do encaminhamento das negociações realizadas no âmbito hemisférico. Podemos dizer
que os acontecimentos acompanhavam as declarações diplomáticas no sentido de elevar o
bloco em crise para uma situação de um funcionamento mínimo, preparando-o para as
mudanças políticas do próximo ano, principalmente com respeito ao início do novo governo
49 VALOR ECONÔMICO. "País tem de "limpar a mesa" no Mercosul, afirma embaixador”. São Paulo:
27/02/2002.
50 GAZETA MERCANTIL. “Negociação com UE começa a andar”. São Paulo: 04/04/2002.
51 OESP. “Enfraquecimento do Mercosul pode afetar Alca, diz embaixador”. São Paulo: 30/04/2002.
52 FOLHA DE SÃO PAULO. “União Européia cobra definição do Mercosul”. São Paulo: 13/05/2002.
53 OESP. “Brasil decide ir sozinho contra os EUA na OMC”. São Paulo: 14/06/2002.
142
brasileiro, como fica claro em declaração do próprio Embaixador Hugueney: "O momento é
extremamente difícil, delicado, de crise econômica e ano eleitoral, mas podemos lançar ações
não retóricas que garantam a credibilidade do Mercosul (...)"
54
.
Um caso interessante deste período foi que semanas antes da definição eleitoral, pela
primeira vez, o Ministro das Relações Exteriores brasileiro afirmou publicamente que havia
necessidade de criação de mecanismos de financiamento da integração e especificou como
isso deveria ser feito. Apesar desta idéia já ter aparecido durante a gestão do ex-ministro Luiz
Felipe Lampreia, ainda não havia adquirido status dentro da corporação, sendo em muitos
casos uma proposta individual ou esvaziada de suporte institucional, já que em anos anteriores
o Embaixador Botafogo Gonçalves levantara a idéia de utilizar o BNDES como mecanismo
de diminuição das pressões intra-bloco.
No entanto, a proposta atual brasileira deve ser analisada com certo cuidado, pois
ainda não podemos dizer que se referia a um mecanismo de financiamento que pudesse
permitir o aprofundamento da integração. Acreditamos, inclusive, que este não era o objetivo,
mas sim o de proporcionar o mínimo de coesão necessária para o enfrentamento das
negociações comerciais internacionais, o que possibilitaria concretizar esta postura corrente
na política externa brasileira conforme já foi demonstrado.
O mecanismo de financiamento da integração tinha o objetivo claro de dar suporte ao
projeto brasileiro de expansão do bloco. Para isso propunha o avanço das negociações entre o
BNDES, a Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Fundo Financeiro para o
Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata), com o objetivo de financiar o comércio e os
projetos de investimentos no âmbito do acordo que estava se estabelecendo entre o Mercosul
e a Comunidade Andina (CAN).
Na visão do Ministro Celso Lafer essas conversações deveriam se concretizar para
que em dezembro desse ano houvesse o início do acordo com a CAN
55
.
Essa proposta encontrou resistência do governo paraguaio, que exigiu dos
negociadores brasileiros um esforço adicional na tentativa de convencê-lo da necessidade
desta expansão. A desconfiança paraguaia fundamentava-se na percepção de que o Mercosul
diminuiria ainda mais sua capacidade de oferecer-lhe benefícios na medida em que esses
mecanismos financeiros, a serem criados, poderiam ser direcionados fundamentalmente aos
54 GAZETA MERCANTIL. “Crise econômica e eleições emperram as negociações em bloco”. São Paulo:
14/06/2002.
55 OESP. “Mercosul e andinos abrem caminho para acordo”. São Paulo: 16/09/2002.
143
países andinos. O governo uruguaio também manifestou o descontentamento a esse respeito e
com a forma como as negociações foram realizadas.
Podemos afirmar que até o final do governo Fernando Henrique Cardoso a expansão
parecia ser um objetivo claro do Mercosul, contido na política externa brasileira, enquanto a
disposição do governo brasileiro em pagar os custos da integração se voltava para a expansão
e não para o aprofundamento. Mesmo privilegiando a ampliação rumo à América do Sul, esta
ainda demonstra uma clara preferência pela utilização das instituições nacionais brasileiras,
evitando a constituição de mecanismos comunitários no âmbito do bloco expandido.
No mês de dezembro, com o resultado das eleições brasileiras já definido, percebe-se
a preocupação do corpo diplomático em adaptar-se às novas circunstâncias. Além do avanço
nas intenções acima descritas, o encerramento da gestão brasileira na presidência pró-tempore
do Mercosul também foi marcado pelos esforços para:
transformar a Secretaria Administrativa do Mercosul, que desempenhava funções
voltadas para dar um suporte mínimo à realização das negociações
intergovernamentais, em uma Secretaria Técnica com capacidade de melhorar o apoio
às negociações externas do bloco, além de realizar as tarefas corriqueiras para o
andamento dos trabalhos internos;
negociar com os governos paraguaio e uruguaio no sentido da aceitação da negociação
com a CAN;
avançar na incorporação do Fonplata na Corporação Andina de Fomento
56
;
promover um diálogo maior com a sociedade.
Resumindo, podemos dizer que tanto a corporação diplomática quanto o próprio
bloco apresentavam-se, em maior ou menor grau, ajustados ao início do governo Lula da
Silva. Levando em consideração essa maior disposição em debater o processo, vale ressaltar
que ao fechar as cortinas do segundo governo Fernando Henrique Cardoso foi realizado no
Rio de Janeiro, por iniciativa governamental, um seminário reservado e presidido pelo
Ministro Celso Lafer para a discussão de propostas formuladas por empresários, sindicalistas,
acadêmicos e especialistas governamentais com o intuito de fortalecer o Mercosul
57
.
Em meio a esse esforço final do governo Fernando Henrique Cardoso em promover
uma discussão mais aberta a respeito do Mercosul, foi possível visualizar novamente as
56 VALOR ECONÔMICO. “Bloco começa a discutir na próxima semana livre comércio com o Peru”. São
Paulo: 06/12/2002.
57 GAZETA MERCANTIL. “Brasil tenta fazer Paraguai aceitar bloco andino”. São Paulo: 05/12/2002.
144
diferenças de opinião entre o ex-Ministro Lampreia e o Embaixador Botafogo Gonçalves.
Mais do que uma simples divergência de opinião, essas manifestações evidenciaram as
divisões que estariam presentes no governo Lula da Silva, com relação ao próprio corpo
diplomático.
As afirmações do ex-Ministro Lampreia demonstraram claramente a percepção de
que o modelo de integração vigente até aquele momento havia se esgotado e propunha, mais
uma vez, uma flexibilização da arquitetura montada. Mesmo dando a entender que isto não
significaria a superação do mesmo, não propunha um modelo alternativo capaz de realizar o
que ele afirmava ser o objetivo de construir um mercado comum. Em nosso entender os
trechos abaixo reproduzidos demonstram a inexistência de uma proposta que fosse mais do
que uma integração calcada em instituições intergovernamentais, principalmente se
lembrarmos que o ex-Ministro esteve à frente da gestão do período de consolidação do
mesmo:
O Mercosul não deve ser considerado como a principal forma de
inserção internacional do Brasil. Pelo tamanho de sua economia e pelo
peso dos seus principais ativos, o Brasil tem capacidade para uma
inserção própria. Pode negociar singularmente com nossos principais
parceiros industrializados na OMC ou acordos regionais de integração.
Não tenho dúvida de que, embora possível, esse caminho individual
será menos vantajoso do que uma postura unificada de um bloco como
o Mercosul (...) (LAMPREIA, 2002: 204).
A sobrevivência do projeto, ainda que em um formato mais simples e
gradual, é o objetivo principal a ser atingido. Seria desastroso
abandonar o belo projeto de integração regional que chegou a florescer
consideravelmente. Precisamos encontrar caminhos possíveis e não
insistir em forçar o irrealista (...) (idem: 206).Considero muito difícil
um relançamento do Mercosul em futuro previsível nas linhas do
ambicioso projeto que chegamos a perseguir, na década de 90, de
chegar mais rapidamente do que a Europa a um mercado único de
circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas. O Mercosul está
precisando de pragmatismo. Ficou evidente que o modelo estabelecido
em Ouro Preto revelou-se inviável em curto prazo, pelo menos. Por
isso, parece-me que o momento agora é de flexibilização de seus
compromissos e instrumentos. Mas não pode haver uma desfiguração
tão forte que o Mercosul se descaracterize (...) (idem: 205)
145
Já nas palavras de Botafogo Gonçalves era possível perceber as indicações do
esgotamento do modelo, tomando o cuidado de isentar a gestão diplomática brasileira com
respeito a essa forma de conduzir a integração, pois atribuía sua existência a um descuido por
parte dos negociadores em face aos momentos favoráveis, ou seja, o discurso era de que os
problemas institucionais do Mercosul resultaram mais da distração dos negociadores em um
situação de calmaria e menos da defesa de uma escolha específica por parte do corpo
diplomático, que apontava para um projeto de integração que se consolidou enquanto tal.
Apesar do conteúdo retórico, é possível verificar o reconhecimento de uma divisão interna ao
governo brasileiro quanto à sua disposição em liderar o processo.
A sobrevivência e o fortalecimento do Mercosul dependem da
capacidade de seus sócios de perceberem o projeto como destino e
identidade de seus membros. O aprofundamento do processo de
integração também é essencial para a estabilidade e a melhor inserção
internacional de seus membros. Ao Brasil, o país politicamente mais
estável e de maior economia da região, cabe exercer um papel mais
efetivo de liderança no processo, patrocinando medidas para a crescente
institucionalização do bloco, como a criação de normas comuns e de
um Banco do Mercosul (...) (GONÇALVES, 2002: 147).
O que se deve ter em mente é que a capacidade do Brasil de exigir dos
demais países o cumprimento das normas de integração vigentes e o
compromisso com novas iniciativas e acordos é diretamente
proporcional ao engajamento do Brasil no processo integracionista, à
assimilação de uma genuína mentalidade de integração. Ainda persiste
uma espécie de “déficit” de liderança brasileira, até mesmo na hora de
cobrar dos demais países respeito e lealdade a um projeto de integração
como o Mercosul, porque persiste também nossa ambigüidade sobre se
queremos ou não investir em uma integração de fato e arcar com os
custos de uma crescente coordenação com os demais países (...) (idem:
155)
A virtude da leveza institucional no momento da bonança se
transformou no vício da inoperância no momento da crise (...) (idem:
157).
Em suma, o período Fernando Henrique Cardoso se iniciou buscando a continuidade
146
do projeto de superação do modelo de desenvolvimento fundamentado na industrialização a
partir da substituição de importações, implementado no governo Collor. Para isto, realizou as
medidas econômicas voltadas para a abertura comercial, privatizações, contenção nos gastos
públicos, enfim o conjunto de propostas conhecidas como sendo neoliberais, além do
programa de estabilização da moeda.
Ao mesmo tempo em que conseguiu aumentar a credibilidade brasileira no sistema
internacional também demonstrou o aumento da vulnerabilidade advinda da maior
interdependência com relação ao sistema financeiro internacional, principalmente com as
crises mexicana, asiática e russa, que marcaram o ambiente no qual política externa estava
operando (PINHEIRO, 2004).
Vale ressaltar que na análise dos discursos de autoridades brasileiras nos foros
internacionais verifica-se a tentativa de melhorar a imagem brasileira a partir dos argumentos
de que o Brasil consolidaria a democracia, realizaria a abertura econômica e estabilizaria a
moeda. Isso fortaleceu sua auto-identificação como país mediador com características de
potência média e que contava com uma tradição diplomática que garantia confiança para uma
atuação com este perfil. (MARQUES, 2005).
Este projeto político se incorporava na política externa por meio da orientação
baseada na "autonomia pela integração", que buscava simultaneamente maior adesão aos
regimes internacionais e às instituições que davam certa ordem ao sistema, e garantir sua
margem de ação, mesmo reconhecendo as limitações de poder do Estado. Já no plano
regional, a postura foi de fazer valer o seu diferencial de poder, utilizado para exercer a
liderança brasileira e instrumentalizando o Mercosul para gerenciar os efeitos da globalização
(PINHEIRO, 2004).
As análises que apontam o Mercosul como fruto das circunstâncias e da adoção das
políticas neoliberais nos países da região, não explicam de forma suficiente a forte defesa
brasileira da intergovernamentalidade no processo de integração. A vigília deste princípio está
mais ligada às raízes formadoras da nossa política externa do que às opções do projeto
político adotado durante os governos de Fernando Henrique Cardoso.
Nossa percepção é que esse projeto encobria os objetivos da política externa
brasileira e do modelo de integração defendido por esta. Na medida em que esse projeto
político muda, mesmo com a continuidade da política econômica no primeiro governo Lula da
Silva, inicia-se o processo de descobrimento destas raízes, onde as tensões sobre os elementos
de continuidade da política exterior aumentam e ajudam a revelar a capacidade de resposta do
147
corpo diplomático.
6.3. O Período Lula da Silva
Já no primeiro mês do novo governo o Itamaraty anuncia medidas de mudança
organizacional e da corporação no sentido de responder às novas demandas
58
. A impressão
inicial era de que este governo conseguira imprimir uma mudança na orientação na política
externa, principalmente no que se refere ao Mercosul e às prioridades da integração na
América do Sul.
Havia um novo direcionamento que tendia mais para um perfil nacionalista e
desenvolvimentista, principalmente com a volta de Celso Amorim à frente do Ministério das
Relações Exteriores e da presença do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães na Secretaria-
Geral. No entanto, isso não significava que o núcleo decisório deste órgão e a própria política
externa com relação ao Mercosul e às negociações comerciais internacionais haviam sofrido
forte alteração, mesmo com o início do funcionamento do Protocolo de Olivos que
aprimorava o sistema de solução de controvérsias e foi uma decisão tomada no final do
governo anterior.
Pelo contrário, fica claro o resultado da bem-sucedida estratégia de adaptação do
Itamaraty, iniciada mais de um ano antes, assim como o aprofundamento das orientações
previamente estabelecidas. O simples fato de que já na primeira quinzena de 2003 essas
modificações internas se apresentavam razoavelmente formuladas, é suficiente para verificar
esse fato, principalmente porque ao longo deste ano essas modificações são gradativamente
implementadas e com relativo sucesso.
Isso não significa afirmar que inexistiam conflitos internos, principalmente com o
setor da diplomacia que saíra mais fragilizado com o resultado das eleições, assim como
conflitos entre o novo governo, parte das forças que o apoiavam e o próprio corpo
diplomático.
A primeira das modificações anunciadas pelo Itamaraty foi a criação da
Subsecretaria Geral de Assuntos da América do Sul (SGAS) para tratar de temas relativos ao
Mercosul, inclusive as demandas por aprofundamento, assim como das negociações para
ampliação do bloco em direção à América do Sul, em especial o acordo com a Comunidade
Andina, e do aprofundamento e ampliação dos projetos de infra-estrutura no continente sul-
58 OESP.“Itamaraty cria setor dedicado América do Sul”. São Paulo: 11/01/2003.
148
americano.
À frente dessa nova estrutura estava o Embaixador Luiz Felipe Macedo Soares,
conhecido por ter um bom relacionamento pessoal com o novo presidente, que concentraria
atribuições antes pertencentes a Subsecretaria Geral de Assuntos Políticos (SGAP) e à de
Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior (SGIE).
No momento da sua posse, no mês de maio, Macedo Soares declarou que seu
objetivo era o de atender à prioridade do novo governo que se voltava para a América do Sul.
A prioridade para a América do Sul contempla a construção da
integração física, econômica e comercial; e a cooperação política e
social (...) Trata-se de uma mudança conceitual sem precedentes, sem
prejuízo das relações com outros países latino-americanos e do Caribe
(...) Queremos intensificar o relacionamento com cada país da região,
para que a América do Sul funcione como espaço de prosperidade, com
elevação dos padrões político, social e econômico (...)
59
Anunciava ainda a ênfase ao projeto de integração física iniciado no governo anterior
e aos projetos nas áreas de comunicação, energia e transportes. Num primeiro momento,
parece que o Embaixador Clodoaldo Hugueney (SGIE) perdera a responsabilidade sobre as
negociações do Mercosul com os países não pertencentes à América do Sul, com relação à
ALCA e também com relação ao acordo com a União Européia. Entretanto, o que parece ter
ocorrido foi uma maior especialização na condução das negociações comerciais, resultando na
concentração do Embaixador Hugueney em torno das negociações da OMC e, principalmente,
com seu papel no acompanhamento dos contenciosos no nível multilateral.
O que lhe restou acabou sendo o núcleo das ações e das prioridades na condução da
política externa do primeiro governo Lula da Silva: a aposta em favor da arena multilateral,
calcada no apoio que poderia advir da diversificação das relações internacionais brasileiras.
Houve na verdade uma melhor distribuição das atribuições dentro do Ministério, a
fim de gerenciar melhor a coesão no Mercosul e a condução brasileira nas grandes
negociações comerciais, tendo como primeira prioridade as negociações na OMC, seguidas
pela resistência às negociações com os Estados Unidos no âmbito da ALCA. Restava ao
Mercosul o papel de instrumento para alcançar esses objetivos maiores, deixando clara a sua
subordinação quanto aos interesses brasileiros de inserção comercial internacional.
59 GAZETA MERCANTIL. “A América do Sul é a prioridade no Itamaraty”. São Paulo: 08/05/2003.
149
A criação da Subsecretária Geral de Assuntos da América do Sul (SGAS), além de
consolidar os objetivos de expansão do modelo diplomático do Mercosul, tinha igualmente o
propósito de gerenciar a coesão do bloco a partir do estreitamento das relações entre Brasil e
Argentina, entendidas como o centro deste processo, o que parece resgatar as origens da
integração na segunda metade dos anos 1980.
Para o Ministro Celso Amorim chegara a “hora da verdade para o Mercosul”, que
deveria ter uma posição comum frente às negociações hemisférica e com relação à União
Européia. O discurso era de que o bloco era prioritário para o governo brasileiro e a relação
bilateral como a Argentina era "a coluna vertebral do processo de integração"
60
.
Ao mesmo tempo em que se buscava a retomada da articulação entre Brasil e
Argentina, aceitou-se tratar os temas caros ao aprofundamento da integração, enquanto
posição conjunta dos governos brasileiro e argentino, como é o caso das assimetrias existentes
entre os países. Esta aceitação respondeu não somente à nova postura do governo Lula da
Silva, mas também à ocorrência de fortes pressões argentinas, e principalmente paraguaias e o
uruguaias. Vale dar destaque e atenção às declarações do Ministro Celso Amorim:
O entendimento entre Brasil e Argentina é fundamental para o
andamento de temas como o Mercosul, a Alca, o multilateralismo (... )
Se há desacordo entre os dois, o Mercosul não anda (...) Se houver
acordo, não é o suficiente para fazer o Mercosul andar, mas torna mais
fácil a conversa com os outros (...)" Pela primeira vez, vamos expressar
que aceitamos a questão das assimetrias (...) Mas não como uma coisa
permanente, pois Paraguai e Uruguai não devem ter o desejo de viver
na exceção (...)
61
O curioso desta afirmação é o reconhecimento público da ausência deste tema na
política externa brasileira com respeito ao Mercosul e a solução proposta na qual se baseava o
aprofundamento das discussões em torno de um fundo regional que deveria ter recursos
provenientes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do BNDES e da
Corporação Andina de Fomento. O fundo, portanto, não seria de uso exclusivo dos países do
Mercosul e também não indicava que seria incorporado à estrutura institucional do bloco.
Portanto, podemos afirmar que o financiamento não se voltava necessariamente para o
aprofundamento do bloco, embora estivesse de acordo com as necessidades para permitir sua
60 OESP. “Para Amorim, Mercosul requer definição”. São Paulo: 05/02/2003.
61 OESP. “Brasil e Argentina buscam estratégia para bloco”. São Paulo: 16/12/2003.
150
expansão, mantendo a determinação consolidada já no governo anterior.
Essa postura de maior generosidade segundo o Ministro Celso Amorim se justificava
porque “(...) o Brasil não pode, com relação a países menores, sobretudo Uruguai e Paraguai,
agir como se estivesse agindo com a União Européia ou a República da China, que são
gigantes (...)” (TACHINARDI, 2003-a).
O discurso diplomático estava afinado com as intervenções presidenciais:
“(...) É necessário fortalecer as agendas política, social e cultural do
Mercosul, dar-lhe uma dimensão mais humana (...) o fortalecimento do
Mercosul é imprescindível para levar adiante as negociações com os
outros países e blocos, pois será assim garantida uma presença influente
da América do Sul no mundo (...) nós temos de ter uma política de
generosidade com os países de economia mais fraca, facilitando e
incentivamos que as coisas aconteçam (...) Nós todos tomamos
consciência que somos pobres, tomamos consciência que temos coisas
em comum e temos soluções para problemas em comum, e quando
tomamos consciência de que se nos juntarmos e estabelecermos
políticas comuns, ficará mais fácil resolver os nossos problemas junto a
outros países (...)” Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003 apud
MONTEIRO e GOITIA, 2003).
O trecho acima citado demonstra o interesse do governo brasileiro em assumir a
liderança do processo na América do Sul para, simultaneamente, fortalecer-se em seus
esforços de inserção internacional. Sua intenção era ligar os objetivos de expansão com o de
aprofundamento, representando uma mudança significativa da postura brasileira.
A inovação não estava no fato de pronunciar uma intenção de aprofundamento,
porque algo similar já fora pronunciado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no
final de seu segundo mandato - conforme já relatado -, mas em que essa afirmação encontra
eco nos discursos do Ministro das Relações Exteriores e em parte da diplomacia diretamente
envolvida, principalmente com a entrada do Embaixador Macedo Soares na SGAS.
Esta proposta governamental respaldava-se nas forças que sustentavam o novo
governo, principalmente com relação à novidade expressa pelo apoio partidário e de setores
organizados ligados às organizações sindicais e a outros setores não-governamentais.
Aparece um novo tipo de intervenção na diplomacia presidencial, com a criação do
cargo de Assessor Presidencial para Assuntos Internacionais, função assumida por Marco
Aurélio Garcia, que se constitui numa inovação na maneira como os assuntos internacionais
151
do governo brasileiro são tratados.
“(...) Hoje temos um eixo importante para a reconstrução do Mercosul
que deverá incidir sobre a política sul-americana (...) uma nova visão do
processo de integração. Não nos interessa que uma fábrica feche as
portas na Argentina e abra-as em São Paulo. Isso é válido para uma
empresa instalada no Uruguai e no Paraguai. É fundamental assumir o
destino das economias da região (...)” Marco Aurélio Garcia (2003
apud TACHINARDI, 2003-b).
No entanto, é importante verificarmos como se deu a implantação destas novas
orientações. Um fator que reforça nossa percepção de que a estratégia de adaptação
diplomática para a transição governamental obteve sucesso, ao menos com relação ao
Mercosul, foi a posse de Reginaldo Arcuri como titular da Secretaria Técnica do Mercosul
62
,
proposta brasileira transformada em decisão do bloco.
De acordo com a análise das negociações em que esteve envolvido, é possível dizer
que mesmo Arcuri não tendo origem na corporação diplomática, apresentava uma forte
ligação com o perfil multilateralista que se fortaleceu na política externa brasileira e, por outro
lado, parecia contar com o apoio presidencial e de setores que o apoiavam pois, em princípio,
sua postura não vetava medidas que pudessem aprofundar o Mercosul.
Assim, a Secretaria Técnica administrava a expansão do bloco, mas simultaneamente
sinalizava com a possibilidade de criação de mecanismos voltados para a gestão do
aprofundamento da integração, o que era muito importante principalmente para os países
menores e de setores organizados da sociedade civil que apoiaram o novo presidente na
campanha eleitoral. Se a política econômica do novo governo parecia não agradar essa base
de apoio, o mesmo não era possível dizer com relação à política exterior.
Já em meados de 2003 evidencia-se o grande esforço realizado no sentido de efetivar
as novas orientações que até aquele momento apresentavam como novidade a intensificação
das diretrizes básicas formuladas no período anterior e, em especial, a diversificação mais
intensa das relações internacionais do país a partir do Mercosul. No final de abril, por
exemplo, verifica-se o incremento das conversações do bloco e a Índia. Na ponta dessa nova
orientação estava a criação do G20 e o seu efeito sobre as negociações da Rodada Doha, além
da sinergia resultante que ajudou nas negociações hemisféricas até conseguir o impasse do
62 VALOR ECONÔMICO. “Argentina aceita postergar entrega de proposta à Alca”. São Paulo: 05/02/2003.
152
processo com a proposta brasileira de criação da "ALCA Light".
Além da condução direta do Ministro Celso Amorim nestas negociações, cabe
destacar a atuação dos Embaixadores Hugueney e Simas Magalhães. Houve igualmente um
aumento de poder nas mãos de Adhemar Bahadian na co-presidência brasileira nas
negociações da ALCA
63
, que antes disso ocupara o cargo de Cônsul Geral da Embaixada
Brasileira em Buenos Aires e trabalhou diretamente com Celso Amorim até o ano de 2001, na
missão brasileira em Genebra. Mais uma vez, reforçava-se o perfil multilateralista da política
exterior do Brasil.
É importante frisar que uma importante ação do governo brasileiro com relação ao
funcionamento do Mercosul foi o apoio para a criação da Comissão de Representantes
Permanentes do Mercosul (CPRM), por decisão do CMC (Conselho do Mercado Comum) em
outubro de 2003. Esta comissão estaria ligada diretamente ao órgão de cúpula do bloco, o
CMC, e seria composta por um representante de cada Estado participante além do seu
presidente. Um detalhe a ser levado em consideração é que o Presidente da CRPM é proposto
pelos Presidentes da República de cada sócio do Mercosul. A aprovação dessa decisão
demonstra uma tentativa de ligação mais direta entre as instituições do Mercosul e a
Presidência da República.
Está estipulado pelo Protocolo de Ouro Preto (de 1994) que ao completar 10 anos
desde sua assinatura, o Mercosul deveria passar por uma revisão institucional, com o objetivo
de avaliar a adequação dos órgãos e mecanismos institucionais estabelecidos durante todo o
processo de integração.
Desta forma, o ano de 2004 teve início com algumas promessas de transformação e,
principalmente porque as negociações hemisféricas pareciam estar controladas, ao menos do
ponto de vista do governo brasileiro, havendo a discussão sobre a criação de um fundo de
investimentos com o objetivo de reduzir ou amenizar os impactos da própria integração e,
também, a perspectiva de criação de um Parlamento do Mercosul.
Esse panorama favorável não significou, contudo, uma trégua nos conflitos
comerciais entre os dois principais parceiros, nem a perspectiva de um melhor relacionamento
entre o Presidente Lula da Silva e o Presidente argentino Néstor Kirchner, sendo crescente as
demandas para que o governo brasileiro oferecesse benefícios adequados ao nível de liderança
que pretendia implementar no nível sub-regional.
63 VALOR ECONÔMICO. “Cônsul em Buenos Aires será co-presidente da Alca”. São Paulo: 19/05/2003.
153
Com relação ao mecanismo de financiamento a ser criado, ainda era perceptível o
entendimento brasileiro de que este deveria apoiar-se em instituições nacionais ou, se assim
não fosse possível, em instituições não exclusivas ao Mercosul. A posição brasileira pregava a
necessidade de adaptar os instrumentos de financiamento existentes no âmbito do BNDES
para tal finalidade, como demonstra a opinião do Embaixador Botafogo Gonçalves, que
deixava a Embaixada Argentina e se aposentava da carreira diplomática para assumir a
Presidência do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) localizado na cidade do
Rio de Janeiro:
Eu sustento a idéia de que o BNDES possa ter, além de suas funções
atuais, uma função de órgão de fomento regional. Sou favorável à
extensão da atuação do BNDES para além das fronteiras e à busca de
mecanismos de integração financeira do BNDES, seja para
investimentos em infra-estrutura, financiamento do comércio ou
investimentos produtivos de longo prazo. De tal maneira que esses
investimentos integrem as economias da região. Se temos e queremos
ter um mercado unificado, não há por que distinguir um do outro (...)
64
Ao mesmo tempo, crescia o debate sobre a questão da revisão institucional entre os
negociadores do bloco e também na imprensa escrita, apontando para a necessidade de
repensar a intergovernamentalidade do Mercosul e para a possibilidade de adoção de órgãos
supranacionais.
Conforme descrito anteriormente é tradição do corpo diplomático brasileiro não
tratar publicamente a questão da supranacionalidade, exceto quando provocado. Sendo assim,
em meados desse ano o ex-Embaixador Rubens Barbosa intervir na discussão, apresentando
argumentos com o mesmo conteúdo das posições defendidas dez anos antes, à época da
definição das instituições criadas pelo Protocolo de Ouro Preto.
Seu argumento central era que a discussão da supranacionalidade deveria ser
precedida necessariamente pelo debate sobre a necessidade de um mecanismo de votação com
peso diferenciado, acabando com a capacidade de veto dos países membros. Para o
Embaixador "Se o objetivo é criar uma instituição supranacional, não se pode deixar de lado o
voto ponderado (...)"
65
.
Às vésperas da realização do que deveria ser reconhecido na história da integração
64 FSP. “Embaixador pede mudança no BNDES”. São Paulo: 06/05/2004.
65 VALOR ECONÔMICO. “Barbosa propõe peso aos votos no bloco”. São Paulo: 18/05/2004.
154
regional do Mercosul como um momento de reafirmação do compromisso e de um salto de
qualidade em direção ao aprofundamento do bloco, o ex-Embaixador intervém novamente,
com um texto assinado e publicado no jornal O Estado de S. Paulo, com o título "O Mercosul
na visão do PT" (BARBOSA, 2004).
Neste artigo, o Embaixador retoma mais uma vez o argumento defendido desde a
época em que era o principal negociador brasileiro no bloco, durante o governo Collor de
Mello, acrescentando que o Protocolo de Ouro Preto previa uma reforma institucional, mas
não uma alteração do regime intergovernamental. Mesmo assim, defendia a possibilidade de
discussão sobre o processo decisório do Mercosul no sentido de buscar a criação de um voto
ponderado, afirmando que esta sua sugestão não tinha um caráter retórico e deveria significar
uma reflexão conjunta entre os parceiros.
Mais uma vez, é importante frisar que apesar de sua preocupação em afirmar que esta
proposta estava na pauta de negociações dez anos, são fortes os indícios que demonstram a
sua falta de fundamento na história das posições brasileiras perante o Mercosul. Nas poucas
vezes em que apareceu esta proposta, foi como reação ao aumento acentuado das pressões
para a revisão do caráter intergovernamental do bloco.
A diferença neste momento foi que o aumento mais significativo deste tipo de
pressão não se situava somente nos países vizinhos, mas em parte significativa do novo
governo e nas propostas da própria Secretaria Técnica do Mercosul, amparada também pelo
apoio de setores não-governamentais. No entanto, até aquele momento, não era possível saber
com clareza a posição do presidente brasileiro a respeito desta questão e nem do Embaixador
Macedo Soares que parecia ter posições mais afinadas com a presidência. Percebe-se com
respeito às ações do Subsecretário Geral da América do Sul, Macedo Soares, maior
disposição na oferta de benefícios aos parceiros, principalmente com respeito aos estímulos
para a criação de fundos estruturais de diminuição das assimetrias
66
.
Outro ponto importante para esta pesquisa é a crescente pressão por discutir o tema
da supranacionalidade, principalmente da parte do governo argentino que exigia uma resposta
brasileira sobre este assunto. Isto permitiu evidenciar melhor as intenções da diplomacia
brasileira e reforça nosso argumento de que a integração no Mercosul, enquanto um modelo
presente no desenrolar da política externa a partir de 1991, não contempla a possibilidade de
aprofundamento do bloco em direção ao mercado comum, já que é um projeto exclusivamente
66 VALOR ECONÔMICO. “Cúpula deve aprovar a instituição de fundos”. São Paulo: 13/12/2004.
155
intergovernamental.
O trecho abaixo reproduz uma reportagem realizada sobre esse tema e demonstra a
diferença de opiniões entre os chanceleres do Brasil e da Argentina:
Bielsa lembrou que em todas as crises da história da União Européia,
que é, supostamente, o modelo que inspira o Mercosul, "a solução foi
mais integração". Indagado se a institucionalização que tem em mente
envolve, como na Europa, a cessão de soberania a uma instância
supranacional, o chanceler argentino disse que "todo processo de
integração é uma visão superior de soberania, feita não mais apenas no
âmbito nacional, mas no regional". Diante da mesma pergunta, o
chanceler brasileiro disse que "cessão de soberania é uma expressão
muito dramática". Disse que a idéia de uma maior institucionalização
do Mercosul está posta e será discutida ainda este ano em nova reunião
em Ouro Preto, que marcará o décimo ano da criação do Mercosul (...)
67
Em 2004, além da reativação das discussões sobre o Mercosul, deve-se ressaltar a
demonstração de que o nível multilateral poderia resultar em benefícios concretos ao Brasil,
fortalecendo ainda mais essa perspectiva na política externa do governo Lula da Silva. Um
fato marcante foi a vitória brasileira sobre a União Européia com relação ao açúcar, no âmbito
da OMC. As declarações do ministro Celso Amorim manifestavam seu contentamento sobre
esta situação: "Estamos muito satisfeitos. Depois do algodão, do açúcar e do resultado de
Genebra [acordo entre os países da OMC para acabar com os subsídios às exportações
agrícolas], acho que estamos muito bem (...)"
68
.
Vale lembrar que essas vitórias fortaleciam o Embaixador Clodoaldo Hugueney,
Subsecretário Geral para Assuntos Econômicos do Itamaraty, que tinha papel central na
coordenação dessas negociações, reforçando nosso entendimento de que a opção multilateral
é a essência da política externa brasileira, já presente mesmo antes do governo Lula da Silva.
Esta constatação estabelece uma relação de subordinação do bloco sub-regional a esses
objetivos.
Assim, até o ano de 2004 pelo menos, a explicação para a evolução do processo de
integração pende para a forma como o corpo diplomático administrou a manutenção desta
escolha geral, diminuindo a influência da explicação que se concentra mais na divisão
67 OESP. “Diferenças com Kirchner continuam”. São Paulo: 21/09/2004.
68 VALOR ECONÔMICO. “Brasil vence disputa do açúcar com UE”. São Paulo: 05/08/2004.
156
tradicional entre liberais e nacionalistas presentes no interior da corporação. A defesa da
intergovernamentalidade uniu ambos os lados da corporação no tocante à integração regional
e à opção multilateral.
Até esse momento não houve, por parte do corpo diplomático, a defesa da fórmula de
aprofundamento da integração com expansão, já que a implementação do aprofundamento
resultaria em uma ruptura no padrão de formulação da política exterior do Brasil.
Os acontecimentos a partir deste ponto demonstram que o aumento das tensões,
estimuladas principalmente pela nova composição das forças governamentais, atingem um
nível crítico para a manutenção da singularidade da política externa brasileira, na qual a
relativa autonomia do corpo diplomático verificada especialmente no momento de
implementação decisória, perde sua base de sustentação.
Em dezembro de 2004, realizou-se a Reunião de Cúpula do Mercosul na cidade de
Ouro Preto, comemorando os dez anos do Protocolo assinado em 1994 e assumindo a
incumbência de fazer uma revisão institucional. A perspectiva era de que este momento seria
fundamental para todo o processo de integração, inclusive porque ocorria inserido num clima
de contestação das políticas neoliberais implementadas nestes países e cujos efeitos
relacionavam-se claramente com a crise econômica, política e social vivida pela Argentina.
No entanto, as condições para o sucesso desta reunião foram sendo gradativamente
corroídas durante todo o ano de 2004, devido ao agravamento da crise comercial entre os dois
principais parceiros, Brasil e Argentina, tendo como centro destes conflitos comerciais o setor
de produção de eletrodomésticos, conhecido como linha branca, ou seja, geladeiras, máquinas
de lavar, fogões.
A chamada "Guerra das Geladeiras" recebeu ampla cobertura por parte da mídia,
especialmente porque sua causa foi em boa medida atribuída à personalidade do presidente
argentino, que teve sua importância no acirramento do contencioso, assim como ocorre
atualmente no caso do contencioso em torno da instalação de indústrias papeleiras no
Uruguai.
De qualquer forma, esse episódio demonstra a vulnerabilidade das economias do
bloco quando um setor - neste caso, dominado por empresas multinacionais com plantas nos
dois países - decide transferir sua produção de um mercado para o outro em razão das
mudanças no preço dos fatores produtivos. Este tipo de conseqüência é esperado num
processo de integração regional. Contudo, o Mercosul não dispunha de mecanismos
comunitários para controlar ou diminuir dos efeitos negativos advindos do aproveitamento
157
das vantagens competitivas, que pode gerar desemprego e crise social.
Outro fato que contribuiu para o esvaziamento dessa Reunião de Cúpula foi a reunião
de presidentes da América do Sul, realizada dias antes na cidade de Cuzco (Peru), durante a
qual foi lançada a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA). A criação deste novo
espaço de integração resultou de iniciativa e liderança brasileira, causando descontentamento
no governo argentino e desconfiança nos parceiros menores.
O clima desfavorável entre os dois principais países resultou em uma Reunião de
Cúpula com poucas decisões significativas, frustrando as expectativas de diversos setores
domésticos, apesar de indicar com clareza a postura brasileira de aceitar a criação de
instrumentos de integração que possibilitassem um maior aprofundamento. Evidenciou-se
também que o apoio a esta postura aumentava proporcionalmente quanto mais próximo
estivesse da Presidência da República.
Além disso, os membros plenos do Mercosul reconheceram que o processo de
integração tinha que adaptar-se aos objetivos de todos os países e que os benefícios do
processo deveriam priorizar os integrantes mais antigos. Torna-se evidente que as intenções
de liderança brasileira tinham um custo e que os demais países do bloco estavam dispostos a
cobrá-los.
Em suas falas o presidente Lula da Silva demonstrou a preocupação em implementar
essas novas orientações, reconhecendo a necessidade de instituições mais desenvolvidas,
dentro de uma percepção de que o processo deveria incorporar outros atores das sociedades,
alterando a forma como foi negociado até então.
Mais do que retórica, verifica-se pelo desenrolar dos acontecimentos que esta
intenção foi gradativamente implementada, mesmo que limitadamente e sem o apoio explícito
do corpo diplomático. A impressão é que a diplomacia presidencial apresenta grande força em
momentos de formulação como este, porém não dispõe na estrutura estatal de recursos de
poder suficientes para que suas determinações sejam implementadas na íntegra, ou algo mais
próximo disso.
Notamos que a Presidência reconhece esse fato e busca medidas alternativas para
diminuir a diferença entre o momento de formulação e o da implementação, no intuito de
aumentar o controle sobre a relativa autonomia do Ministério das Relações Exteriores. Isso já
acontecera no período anterior, com a criação da Representação da Presidência da República
para Assuntos do Mercosul no final do segundo governo Fernando Henrique Cardoso.
Entretanto, há uma mudança significativa nesta tática: o governo anterior privilegiou
158
alterações ocorridas na própria estrutura do Estado, enquanto o de Lula da Silva implementou
modificações formais no processo decisório e adicionou elementos informais para influenciar
o processo, o que explica a ampliação dos canais de participação dos atores não-
governamentais.
Abaixo podemos perceber nas declarações presidenciais a tentativa de marcar uma
mudança de rumo representada pela conciliação entre a expansão e o aprofundamento da
integração.
Eu sei que, às vezes, muita gente fica preocupada, porque depois dos
Presidentes fala uma quantidade enorme de entidades. É porque o
Mercosul, para se consolidar definitivamente, não pode ser uma coisa
apenas dos Presidentes, ele precisa envolver os nossos dirigentes
sindicais. Os problemas sociais têm que ser discutidos com maior
dimensão do que apenas um problema econômico. Nós precisamos
envolver os nossos artistas, os nossos intelectuais, nós precisamos
envolver, portanto, o que nós tivermos de sociedade organizada, na
nossa região, para debater o Mercosul (...) Ao concluir, há pouco mais
de um mês, a Reunião de Cúpula do Rio, eu recordava a nossa
disposição de trabalhar com entusiasmo pela integração regional,
começando pela realização do potencial do Mercosul e prosseguindo
pela consumação de um espaço político, cultural, econômico e
comercial comum na América Sul. Foi neste sentido que fiz questão de
convidar para este encontro semestral do Mercosul todos os Presidentes
sul-americanos (...) Aperfeiçoamos as instituições do bloco, ainda que
nesse particular seja necessário acelerar o passo (...) Criamos uma
Comissão Parlamentar Conjunta, que é hoje o embrião do Parlamento
do Mercosul ( ...) O Objetivo 2006, que definimos no ano passado em
Assunção, traça um roteiro seguro para a reconstrução do Mercosul e,
sobretudo, para o resgate de suas aspirações originais (...) Vamos
consolidar a União Aduaneira, condição necessária para chegar ao
Mercado Comum (...) Estamos constituindo, a partir de 2005, um fundo
estrutural para corrigir as assimetrias entre nossas economias e ajudar
na integração de nossas cadeias produtivas (...) (SILVA, 2004)
Ressaltamos que não só o Legislativo brasileiro muda o seu tradicional perfil de
atuação o Mercosul, caracterizado por uma participação limitada e consultiva, mas que agora,
parte deste envolveu-se no processo de criação de um Parlamento do Mercosul, como parcela
do Judiciário brasileiro demonstrou uma perspectiva de maior participação nos rumos da
159
integração, como apontam as declarações do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson
Jobim:
A integração estava sendo gestada pelo Executivo, que tem esta função,
o Parlamento já estava participando do processo, mas o Judiciário, não
(...) Então, teremos um foro permanente em Brasília para discutir
exatamente as reformas necessárias para que possamos entrar neste
processo de integração (...) Precisamos de um processo de
uniformização de integração para que possamos caminhar,
progressivamente, num futuro, para a criação de um tribunal
supranacional (...)
69
O ano de 2005 marcou o início de uma mudança significativa por parte do governo
brasileiro na forma de conduzir o Mercosul. De um lado, houve um aumento das investidas
da diplomacia presidencial no sentido de alterar a composição das forças participantes do
processo e implementar medidas, mesmo que limitadas, para o aprofundamento e expansão do
Mercosul, lembrando que estas já foram anunciadas no ano anterior. Por outro lado, começam
a se desagregar as condições que garantiam ao corpo diplomático implementar as medidas
necessárias para a manutenção do princípio da intergovernamentalidade.
O avanço dessas duas tendências só não foi maior devido ao acirramento da crise
política e institucional na vida doméstica brasileira, demandando uma concentração de
esforços governamentais e das forças políticas mais próximas ao governo no sentido de
administrar a situação, no intuito de chegar ao próximo ano em condições de disputar a
reeleição do presidente Lula da Silva. É inegável que a perda de credibilidade do governo no
plano interno repercutiu na sua capacidade de intervenção nos assuntos internacionais. Assim,
a corporação diplomática ganhou um pouco mais de tempo para gerenciar o aprofundamento
dessas tendências.
Paralelamente, houve um aumento nas críticas à condução da política externa
brasileira nos meios de comunicação. Boa parte delas originava-se de manifestações de ex-
membros do corpo diplomático ou de personalidades que, ao longo dos anos, tiveram contato
direto ou alguma influência na formulação e discussão da agenda internacional brasileira. Em
geral, o tema principal dessas críticas era levantar dúvidas sobre os benefícios concretos das
ações relacionadas à tentativa brasileira de exercer uma liderança sul-americana, à
69 OESP. “Lula admite dificuldades para unificar o Mercosul”. São Paulo: 01/12/2004.
160
intensificação dos esforços para a diversificação das relações internacionais do país - como a
realização da reunião de Cúpula da América do Sul com os Países Árabes no mês de maio -,
ou os erros táticos como a fracassada indicação do Embaixador Luiz Felipe de Seixas Correa
para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio.
No referente à inserção internacional comercial brasileira manteve-se a determinação
do governo em reforçar seu perfil multilateral, principalmente com a substituição do
Embaixador Seixas Correa pelo Embaixador Clodoaldo Hugueney na representação brasileira
na OMC
70
. Essas adequações buscavam adaptar melhor o país ao momento crítico vivido nas
negociações comerciais multilaterais, já que em dezembro desse mesmo ano haveria uma
reunião em Hong Kong na qual se previa a conclusão da Rodada Doha.
É perceptível nesse momento o aumento das divergências de opinião no interior da
corporação diplomática quanto à gestão das relações comerciais brasileiras. Um exemplo
disto foi a declaração do Embaixador Graça Lima na imprensa brasileira a respeito do
encaminhamento das negociações na OMC, e particularmente com a União Européia, frisando
que o governo brasileiro poderia fazer concessões aos europeus em troca de outras que, de
qualquer maneira, acabariam sendo feitas
71
.
A condução da política externa brasileira com relação às grandes negociações
comerciais internacionais demonstrava uma postura mais agressiva, mas limitada ao tema da
agricultura, pois em relação aos demais temas a postura dominante era a defensiva. No
entanto, no âmbito do Mercosul, ainda era possível verificar uma atitude voltada para manter
sua margem de manobra no tratamento dos temas econômicos (VEIGA, 2005).
Em meados de 2005 a Presidência brasileira explicita publicamente seu esforço para
aprofundar o bloco, sem deixar de demonstrar seu desejo de expandir a integração para toda a
América do Sul. As manifestações admitiam que historicamente o bloco distribuiu
desigualmente os benefícios para seus sócios e que o governo brasileiro reverteria essa
questão, principalmente com relação às reclamações paraguaias e uruguaias
72
.
No caso particular do relacionamento com o Paraguai, lembramos que se
acumularam uma série de problemas, originando uma situação na qual o sentimento geral era
de que o Mercosul não proporcionou os benefícios esperados e que caberia ao governo
brasileiro uma maior parcela da responsabilidade sobre a forma como o bloco estava
70 FSP. “Incentivo deve respeitar OMC, diz embaixador”. São Paulo: 13/06/2005.
71 FSP. “UE elogia plano da Fazenda para cortar tarifa”. São Paulo: 05/10/2005.
72 OESP.“Consenso melancólico”. São Paulo: 22/06/2005.
161
funcionado (HIRST, 2005).
Próximo ao final do ano, a situação de crise iniciada em 1999 mostrava-se longe de
uma solução, sendo agravada, entre outros motivos, pela tensão entre os governos argentino e
uruguaio em torno da construção das indústrias multinacionais produtoras de papel, conhecida
como "Guerra das Papeleras", e pela situação de maior instabilidade do sistema político
brasileiro.
Essa crise era fundamentalmente institucional, pois não era acompanhada por uma
queda nas taxas de crescimento dos fluxos comerciais intra-bloco. Pelo contrário, o comércio
estava aquecido. No entanto, apesar de um ambiente desfavorável, verificamos uma mudança
substancial no encaminhamento dado pelo bloco, com a perspectiva do governo brasileiro em
aceitar maiores custos para a manutenção da integração regional.
Em uma análise otimista a respeito do futuro do Mercosul, mas que aborda muito
bem as modificações implementadas na Reunião de Cúpula do Mercosul ocorrida em
dezembro de 2005 na cidade de Montevidéu, Felix Peña (2006) aponta algumas alterações
importantes indicativas de transformações institucionais na arquitetura do bloco.
Diversas decisões foram tomadas nesta reunião com a finalidade de permitir um
melhor funcionamento da união aduaneira, como a cobrança dupla da Tarifa Externa Comum,
o tratamento das assimetrias existentes, a regulamentação do FOCEM (Fundo de
Convergência Estrutural do Mercosul). Além disto, tomaram-se decisões com o objetivo de
melhorar o funcionamento institucional, como a assinatura do protocolo criando o Parlamento
do Mercosul, a aprovação das regras de funcionamento do Tribunal Permanente de Revisão e,
por fim, a criação de um grupo de alto nível para fazer uma proposta de modificação
institucional do bloco.
Outras medidas aprovadas apontam para a expansão do bloco: avanço no
aprimoramento das regras de adesão para os novos Estados, os preparativos para a adesão da
Venezuela como membro pleno e o estabelecimento de uma situação de transitoriedade, na
qual este país teria direito a participar dos órgãos do Mercosul sem capacidade decisória
(PEÑA, 2006).
Já 2005 foi o início de uma nova etapa do processo de integração no Cone Sul,
principalmente depois da reunião do CMC. É nítida a tendência de inclusão de novos atores
ao processo, incorporando suas demandas, assim como os questionamentos dos países-
membros a respeito do papel desempenhado pelo governo brasileiro.
Ao mesmo tempo, o projeto de expansão do bloco em direção à América do Sul
162
promovido pelo corpo diplomático ganhou defensores na própria Presidência brasileira e em
parcela da sua base de apoio político. Esse apoio extra-diplomático se fundamenta em
interesses diversos como as intenções de projeção e liderança no plano internacional da
Presidência, os interesses parlamentares, sindicais, de grupos organizados em torno dos
chamados valores universais, dos movimentos que buscam uma identidade latino-americana
ou expressam sentimentos anti-norte-americanos, de redes de organizações sociais, de
iniciativas de governos não-centrais, entre outros.
O interessante é que esse apoio foi acompanhado de demandas que pressionam os
governos e a própria estrutura institucional no sentido do aprofundamento do processo de
integração, traduzindo-se em sustentação às políticas visando a diminuição das assimetrias, a
ampliação de canais de participação e, principalmente, questionando a funcionalidade das
instituições estabelecidas.
Essas pressões atingem, de alguma forma, a relativa autonomia do Itamaraty na
formulação da política externa e, conseqüentemente, a forma de gestão governamental dos
assuntos relativos ao Mercosul. Isto não significa perda da capacidade brasileira de influenciar
os destinos do bloco, mas uma alteração nas forças que compõem o processo decisório. Estão
interagindo de forma concorrente, diversas visões de Mercosul.
A novidade está no modo de conciliar tendências que em uma situação de profunda
assimetria, se tornam necessariamente conflitantes. De um lado estão as pressões para o
aprofundamento da integração e do outro para a expansão, incluindo novos Estados-membros.
Historicamente o Mercosul não constituiu instituições nem mecanismos de
financiamento da integração e mesmo os que estão sendo criados possuem grandes limitações
de recursos. Acrescenta-se a isso a histórica falta de disposição governamental brasileira em
custear o processo, a escassez de recursos e as fortes demandas internas para que o governo
financie o desenvolvimento.
Uma saída possível seria resgatar a idéia muitas vezes lembrada pelos governos
argentino, paraguaio e uruguaio, de privilegiar os mecanismos de financiamento e as
modificações institucionais para os quatro membros originários. No entanto, desde 1991 a
postura brasileira foi de defender o princípio da intergovernamentalidade, limitando o
aprofundamento da integração aos instrumentos para a manutenção deste princípio.
Chamamos a atenção para uma manifestação do Ministro Celso Amorim em
dezembro de 2005 a respeito do pedido de adesão da Bolívia e da possibilidade da Venezuela
de se tornarem membros plenos do bloco, que pode ser esclarecedora das intenções
163
diplomáticas diante de uma situação cada vez mais complexa: "O Sul, de Mercosul, não é de
Cone Sul. Tanto que é Mercado Comum do Sul. Foi a mídia quem transformou em Cone Sul
(...)"
73
Em resumo, o ano de 2005 é importante para a análise do nosso objeto porque
demonstrou que, concretamente, os resultados ainda são muito limitados em vista às
crescentes demandas que o bloco precisa enfrentar. Até este momento não houve integração
significativa das cadeias produtivas, de investimentos capazes de reverter as pressões
alimentadas pelas assimetrias e a facilitação do comércio, tendo por base inclusive o
transporte intercontinental, se modernizou em um ritmo muito menor do que necessário
(BURGES, 2005).
O ano de 2006 é inaugurado em clima de impasse nas negociações multilaterais,
devido aos resultados da reunião de Hong Kong no final do ano anterior, mas com
modificações importantes na integração do Mercosul, mesmo em uma situação de crise
ocasionada pelo prolongamento do conflito entre os governos argentino e uruguaio.
As discussões sobre a necessidade de aprofundamento institucional e de mecanismos
comunitários para manutenção da coesão continuaram na pauta do processo, envolvendo em
alguns momentos, membros do corpo diplomático e ex-embaixadores que, muitas vezes, em
suas declarações enfatizavam que o problema do Mercosul não era tanto sua inconsistência
institucional, mas uma baixa internalização das decisões tomadas devido à falta de vontade
política dos governos
74
.
Diante da persistência no descontentamento uruguaio e das tentativas deste país para
estabelecer um acordo comercial com os EUA, o Ministro Celso Amorim declarou durante
reunião da Comissão de Relações Exteriores do Senado (em maio de 2006), a necessidade de
maior generosidade brasileira com os vizinhos, posição esta já formulada no início do
governo Lula da Silva, que até esse momento não se concretizara em medidas neste sentido.
Nas palavras do ministro,
Não podemos criar uma política industrial brasileira e tratar do
Mercosul como apêndice (...) Se eu fosse uruguaio, também estaria
desiludido com o Mercosul (...) Se algo faltou na política externa
brasileira, foi ter uma atitude mais aberta e de mais longo prazo com
73 OESP. “Venezuela começa hoje a entrar no Mercosul”. São Paulo: 08/12/2005.
74 OESP. “Os acordos reforçam a integração”. São Paulo: 13/02/2006; GAZETA MERCANTIL. “Mercosul:
êxito comercial, mas...”. São Paulo: 27/03/2006.
164
nossos parceiros no Mercosul (...) É um problema cultural: temos de ter
generosidade, estender os empréstimos do BNDES, ter políticas de
compras governamentais para produtos uruguaios (...) Falamos muito e
fizemos pouco (...) a integração da América do Sul é nosso destino; se
não for por bem será por mal (...)
75
Mais uma vez, a intervenção do Ministério das Relações Exteriores expressa uma
forma de manter a coesão baseada no oferecimento de benefícios diretos por parte do governo
brasileiro. Entretanto, estes assumem um caráter de concessão e são manifestos em momentos
de forte cobrança por parte dos vizinhos e, em geral, ficam no plano das promessas
apresentando grandes dificuldades para se concretizar. Tal comportamento indica que o
problema da coesão entre os membros do Mercosul não é entendido como resultante da
própria arquitetura da integração e das instituições criadas, mas depende da capacidade de
gestão brasileira com relação a essas demandas. Esta postura coloca o Mercosul como
instrumento da política externa brasileira e, desta forma, cria uma dependência entre o
aprofundamento da integração e a disposição governamental brasileira em aceitar os
mecanismos necessários para a realização desta tarefa.
Simultaneamente, os efeitos da crise com a Bolívia em torno da questão do gás
natural - e a aproximação da Venezuela ao bloco defendida pela composição política próxima
à Presidência da República, com destaque para o Assessor da Presidência para Assuntos
Internacionais, Marco Aurélio Garcia, acirrou os ânimos e dividiu as opiniões no que
podemos chamar de comunidade brasileira de política externa sobre os seus efeitos na
integração sub-regional e na América do Sul. Este debate girou em torno da dicotomia entre
ideologia e pragmatismo presentes na política externa brasileira, sem falar que essa discussão
ocorreu em pleno clima de campanha eleitoral para presidente da República.
Em meio a essa situação complicada realizou-se uma importante Reunião de Cúpula
do Mercosul, em julho de 2006 na cidade de Córdoba, quando foram reafirmadas as intenções
para implementar medidas que tratem das assimetrias, das modificações institucionais e da
expansão do bloco (CMC, 2006)
76
.
No tocante ao primeiro aspecto, as assimetrias, podemos dizer que os seguintes
temas foram mais relevantes:
75 VALOR ECONÔMICO. “Brasil falhou com sócios menores do Mercosul, diz Amorim”. São Paulo:
10/05/2006.
76 Comunicado Conjunto dos Presidentes do Mercosul e Estados Associados. Córdoba, julho de 2006.
Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/comunicado2 acesso em 2/12/2006.
165
a) implementação do Fundo para Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM);
b) continuidade nos esforços para acabar com a dupla tributação da Tarifa Externa
Comum;
c) aceitação da proposta brasileira de designar um funcionário para concentrar os
trabalhos de articulação entre os setores público e privado, a fim de aumentar os
investimentos produtivos na região e nos países menores.
Esta função seria a de Conselheiro para a Integração Produtiva no Mercosul, tendo os
seus custos cobertos pelo governo brasileiro. O nome indicado foi o de Reginaldo Braga
Arcuri, já atuante nas negociações do Mercosul desde o governo Fernando Henrique Cardoso,
quando foi Secretário do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio e também
ocupou a diretoria da Secretaria Técnica do Mercosul quando esta sucedeu a antiga Secretaria
Administrativa;
d) a criação de um Banco de Desenvolvimento do Mercosul com a finalidade de
financiamento de projetos de infra-estrutura, proposto pelo governo argentino;
e) e a instrução dada aos ministros das áreas produtivas para que elaborassem um
Plano de Desenvolvimento e Integração Produtiva Regional a ser apresentado na próxima
reunião de Cúpula do Mercosul.
No caso dos aspectos institucionais, os pontos mais importantes foram a reafirmação
da necessidade de avançar nos trabalhos do Grupo de Alto Nível sobre Reforma Institucional,
o apoio às ações da Comissão Parlamentar Conjunta para instalar o Parlamento do Mercosul
até o final do ano e, por fim, é importante ressaltar a intensificação da presença de novos
atores na tentativa de influenciar o debate sobre a integração, destacando a realização paralela
da Cúpula Social do Mercosul, que contou com apoio direto da Secretaria Geral da
Presidência da República do Brasil, e a consolidação dos governos não-centrais como um
novo ator importante potencial de influência no processo.
Do ponto de vista da expansão do bloco, consolidou-se a idéia de expansão para a
América do Sul e a promoção do aprofundamento, independentemente das dificuldades
inerentes a essa tarefa. Houve um reforço na idéia de coexistência entre vários processos de
integração regional na América do Sul, como a construção da Comunidade Sul-americana de
Nações (CASA). O argumento mais importante para fundamentar esse discurso da expansão,
além da ampliação dos projetos de infra-estruturas - principalmente na área energética -, é a
funcionalidade disto para o enfrentamento das grandes negociações comerciais internacionais,
fazendo parecer que os objetivos brasileiros são semelhantes aos de qualquer outro país do
166
continente sul-americano.
No entanto, a medida mais importante dentro dessa lógica de expansão foi aceitar
tornar a Venezuela um membro pleno do processo, indicando a necessidade de avançar nos
procedimentos para que este país adquirisse esse status e a capacidade futura de participar das
decisões tomadas.
O levantamento dos acontecimentos demonstra que as posições atribuídas à
diplomacia presidencial divergem significativamente com algumas posições consideradas
exclusivas da corporação diplomática. Estas diferenças centram-se nas questões relativas ao
aprofundamento da integração, principalmente com relação à aceitação de uma evolução
institucional e ao papel brasileiro de principal pagador do processo. No entanto, do ponto de
vista da expansão, é perceptível a coincidência dos objetivos, mesmo que motivados por
interesses e valores diferenciados. A histórica defesa diplomática da expansão do processo em
direção à América do Sul concilia-se com mais força com a diplomacia presidencial neste
momento.
Os discursos que levantam a perspectiva da América do Sul, tanto por parte da
presidência quanto por parte da corporação diplomática, apresentam forte similaridade,
diferentemente das questões que abordam o esgotamento do caráter intergovernamental das
instituições. A seguinte declaração do presidente Lula da Silva durante a Reunião de Cúpula
de Córdoba ilustra bem esta coincidência de objetivos:
Algumas vozes insistem que, diante dos problemas que o Mercosul
enfrenta, torna-se difícil justificar o aprofundamento das estruturas do
bloco. Na verdade, o que vejo é o contrário. A complexidade de nossos
desafios exigirá instituições cada vez mais fortes, ágeis e transparentes.
Mais Mercosul significa, necessariamente, mais institucionalidade (...)
Queria, meu companheiro Kirchner, terminar aqui dizendo que no
nosso mapa, aqui, na nossa bandeira falta a estrela da Venezuela e que
logo, logo nós iremos ter a da Venezuela, a da Bolívia e, quem sabe,
teremos toda a América do Sul envolvida (...) Nós, simplesmente, não
falamos mais em Alca, simplesmente, a tensão desapareceu. Hoje,
quem quiser falar em Alca, tem que falar primeiro em Mercosul. Tem
que falar em Mercosul porque nós, a partir da nossa realidade,
queremos construir acordos com todos os países do mundo, mas
queremos que a nossa soberania seja respeitada (...) Nós, no Mercosul,
estamos mudando essa maneira de enxergar o mundo. Nós estamos
mudando a geografia comercial estabelecida pelos países ricos há muito
167
tempo. Foi do Mercosul que surgiu o G-20 e foi o G-20 que impôs
respeitabilidade aos países em desenvolvimento nas mesas de
negociação (...) Estamos provando que o Mercosul só faz aumentar
nossas capacidades individuais de inserção internacional. Hoje,
celebramos acordos econômicos e comerciais com Cuba e Paquistão. E
são muito boas as perspectivas das negociações com a Índia, o
Conselho de Cooperação do Golfo, com a União Aduaneira da África
Austral, entre outras (...) (SILVA, 2006 -a).
Em resumo, a reunião de Córdoba pode ser entendida como o momento onde a fatura
advinda da liderança brasileira assim como a instrumentalização do Mercosul como
plataforma da sua dupla inserção internacional foi cobrada com mais intensidade. Isso
aconteceu pela forte ação dos outros governos participantes e também de setores organizados
presentes nas sociedades envolvidas. as pressões acumuladas desde o nascimento do Mercosul
culminaram numa situação na qual a arquitetura construída não tem dado conta do
processamento das demandas que, por outro lado, tendem a se intensificar devido às
conseqüências do aumento das redes de interdependência, mesmo havendo uma mudança
substancial na postura brasileira no sentido de admitir uma parcela maior de sua
responsabilidade.
Assim, do ponto de vista da expansão do processo, os objetivos da diplomacia
presidencial coincidem com o que chamamos de modelo de integração defendido pelo corpo
diplomático, o mesmo não vale com respeito ao aprofundamento institucional. Neste sentido é
interessante notar que, em seminário promovido pela Rede Mercocidades na cidade de Santo
André em agosto de 2006, o diretor do Departamento de Integração do Itamaraty e um dos
principais operadores brasileiros no Mercosul, José Antônio Marcondes Carvalho,
argumentou para um público formado basicamente por membros de governos não-centrais,
acadêmicos e organizações da sociedade civil, que era preciso entender que "(...) o Mercosul
foi, é e por um bom tempo continuará sendo intergovernamental (...)”
77
, ao comentar uma
manifestação do Presidente Lula da Silva realizada na reunião de Córdoba sobre o fato de que
o Brasil não deveria temer a discussão sobre a intergovernamentalidade.
Diante deste descompasso, concentraremos nossa atenção a partir de agora em
verificar se o governo brasileiro tem disposição e capacidade para enfrentar tamanho desafio.
77 Mesa Redonda: “Os Desafios do Mercosul” durante o Seminário Internacional Mercosul: uma perspectiva
dos governo dos locais e da sociedade civil. Local: Teatro Municipal de Santo André, 10 de agosto de 2006.
168
No segundo semestre de 2006, a condução da política externa brasileira com respeito
ao Mercosul e à América do Sul enfrentou fortes críticas de diversos setores que
tradicionalmente debatem a agenda internacional do Brasil, lembrando também que os ânimos
estavam exaltados em virtude da proximidade das eleições presidenciais. É perceptível nas
declarações de personalidades que já estiveram à frente das negociações do Mercosul o
descontentamento em relação à entrada da Venezuela no bloco. Na visão do ex-chanceler
Luiz Felipe Lampreia era “(...) ruim para a imagem do bloco ter um país que se retira de uma
reunião com a União Européia (UE), que está preocupada com a produção de armas nucleares
no Irã, país que Chávez tem relações fraternais (...)" e nas palavras do ex-embaixador José
Botafogo Gonçalves "(...) o governo não sabe o que quer do Mercosul (...)”
78
.
O fato de haver críticas demonstra que as condições na qual a relativa autonomia do
Itamaraty opera, estão se desagregando ainda mais. Por outro lado, demonstra que a política
externa do governo Lula da Silva atraiu a atenção de uma parcela maior da população sobre
os assuntos externos do Brasil, tendo inclusive algum papel de importância no período
eleitoral. Vale notar que o Ministro Celso Amorim acabou participando, de uma forma mais
intensa, da campanha eleitoral para o segundo turno das eleições.
Terminada a eleição e já definido o vencedor, o então Ministro Celso Amorim -
ainda sem ter certeza se continuaria no cargo no próximo mandato -, afirmou que o presidente
Lula da Silva estava determinado a aprofundar ainda mais sua política externa com relação à
América do Sul, disponibilizando mais recursos econômicos aos países vizinhos e teria como
prioridade o Paraguai e o Uruguai
79
.
Ressaltamos que a partir desse momento, as manifestações sobre os processos de
integração na América do Sul provenientes da chamada diplomacia presidencial passam a
abordar o tema da supranacionalidade de forma mais pública, o que não era possível verificar
antes nos discursos presidenciais. Embora na reunião de Córdoba o presidente Lula da Silva
tenha mencionado a necessidade de rever a intergovernamentalidade, nos discursos de
dezembro de 2006 realizados no âmbito da Comunidade Sul-Americana de Nações e do
Mercosul, aparecem as primeiras declarações públicas de aceitação de custos provenientes da
possível adoção de mecanismos supranacionais. É, sem dúvida, uma inovação no
posicionamento governamental brasileiro com respeito à sua política externa. Mais do que a
oferta de benefícios econômicos aos parceiros, agora surge a possibilidade de lidar com os
78 GAZETA MERCANTIL. “País corre risco de isolamento político”. São Paulo: 08/08/2006.
79 FSP. “Amorim afirma que política externa vai ser aprofundada”. São Paulo: 30/10/2006.
169
custos políticos comumente presentes em processos de integração mais profundos, mesmo
que isto ainda ocorra no nível do discurso.
A primeira manifestação neste sentido aconteceu na Bolívia em 8 de dezembro,
durante a cerimônia de abertura da II reunião de chefes de Estado e de governo da
Comunidade Sul-Americana de Nações:
Um projeto tão amplo como o da nossa Comunidade tem que contar
com instituições que permitam realizar nossos projetos. Por isso, o
Brasil apóia, com entusiasmo, as propostas elaboradas pela Comissão
Estratégica de Reflexão, que trabalhou durante este ano, a nosso
pedido, e que inspira grande parte de nossa decisão de hoje. Se
queremos uma Comunidade forte, é preciso dotar-lhe dos instrumentos
necessários. Cedo ou tarde deveremos assumir certo conteúdo de
supranacionalidade no processo de integração (...) Passo decisivo para o
futuro dessa integração será a negociação de um acordo ou tratado
constitutivo, que lhe dê consistência jurídica, densidade político-
institucional e identidade internacional a nossa comunidade (...)
(SILVA, 2006-b).
A segunda declaração nesse sentido aconteceu no discurso feito na sessão de
abertura da constituição do Parlamento do Mercosul realizada em Brasília no dia 13 de
dezembro:
Sabemos que o Parlamento do Mercosul não terá, pelo menos
inicialmente, função legislativa. Não vai se sobrepor aos Congressos
Nacionais de cada Estado Parte. Mas terá papel decisivo para fazer
avançar a harmonização das legislações nacionais em diversas áreas. E,
quando for necessária aprovação legislativa, tornará mais ágil a
incorporação das normas do Mercosul aos ordenamentos jurídicos
internos. Servirá de laboratório político importante para avançarmos
futuramente no plano da supranacionalidade, seguindo as grandes
experiências de integração em curso no mundo (...)
Falamos das relações internacionais, muitas vezes, sem levar em conta a
necessidade de generosidade dos dois maiores países do bloco, que são
a Argentina e o Brasil, com os países menores. Se quisermos que a
Bolívia entre no Mercosul, e certamente entrará no Mercosul, é preciso
que tenhamos consciência de que precisamos ajudar a Bolívia,
170
precisamos trabalhar projetos conjuntos, precisamos trabalhar o
desenvolvimento porque, senão, esses países não encontrarão nenhuma
razão para estar no Mercosul (...) (SILVA, 2006-c).
Antes de fazermos algumas considerações a respeito do conteúdo e destes trechos é
importante comparar com o discurso realizado pelo ministro Celso Amorim durante a abertura
da Segunda Cúpula Social do Mercosul realizada no dia 13 de dezembro:
Vamos celebrar em breve, já celebramos oficialmente a entrada da
Venezuela, mas em breve os Parlamentos todos devem ratificar essa
entrada, teremos um Mercosul que irá do Caribe à Terra do Fogo. Isso
dá uma vértebra sul-americana ao Mercosul, que antes era
freqüentemente confundido apenas como um Mercado Comum do Cone
Sul, coisa que nunca foi, mas que agora verdadeiramente impossível
fazer essa confusão. E sobretudo um Mercosul que é um Mercosul dos
povos (...)
A coincidência desses dois eventos é muito feliz porque ela ilustra algo
que de maneira resumida tentei dizer para a imprensa. O que significa
esse momento? Significa que nós passamos da fase de um Mercosul
exclusivamente dos Estados para uma fase do Mercosul dos povos. Eu
acho que esse salto em direção a uma integração efetiva da população,
dos ministros que estão encarregados de setores variados de governo, é
que esse evento simboliza. Acho que é uma oportunidade ímpar para
aprofundarmos o diálogo entre os vários setores da sociedade civil mas
também da sociedade civil com o Governo, e agora com o Parlamento,
num momento muito especial do Mercosul, num momento em que o
Mercosul inclusive assume a sua posição verdadeira de um processo de
integração, não só ao aprovar o Parlamento, mas também ao aprovar o
Fundo de Convergência do Mercosul, um reconhecimento de que existe
o fenômeno das assimetrias dentro do Mercosul, e que ele é um
fenômeno que tem que ser considerado, com o qual temos que lidar. E
esse sentimento de que o Mercosul, como freqüentemente se diz, não
pode ter como objetivo apenas o lado comercial (...) (AMORIM, 2006).
Tanto nas declarações do presidente quanto do Ministro das Relações Exteriores é
possível perceber a presença da postura da generosidade com os países menores, os objetivos
de expansão para a América do Sul, a idéia de democratizar o processo, enfim, conciliar os
objetivos de expansão com o aprofundamento da integração, mesmo sem apresentar uma idéia
171
clara de como operar esses processos tão complexos.
Porém, o fato para o qual chamamos a atenção está na significativa diferença entre a
diplomacia presidencial e as intenções do Ministério das Relações Exteriores no que se refere
ao nível de aprofundamento esperado para esses processos. Enquanto a diplomacia
presidencial indica a aceitação das conseqüências implícitas na adoção de elementos de
supranacionalidade e, portanto, admite a possibilidade de constituição de etapas superiores ao
simples funcionamento de uma união aduaneira, a posição do Itamaraty ainda se concentra na
associação do aprofundamento da integração com o princípio da intergovernamentalidade do
processo. Isto não significa que a diplomacia não avançou em sua proposta de
aprofundamento, mas indicaria que esta maior flexibilidade tem como limite a exploração
máxima do que as instituições intergovernamentais permitem realizar. A supranacionalidade,
mesmo que hipotética ou a ser adotada de forma muito limitada, permanece como um assunto
que a diplomacia e o próprio chanceler não parecem dispostos a tratar.
172
7. Considerações Finais e Comprovação de
Hipóteses
7.1. O Modelo de Mercosul contido na Política Externa Brasileira
Neste capítulo apresentamos o que podemos chamar de um modelo de Mercosul
presente na política externa brasileira, a partir do que foi trabalhado nesta pesquisa. Além da
revisão da bibliografia especializada, reconstruímos os passos dos negociadores brasileiros
com respeito ao processo de integração. Esta reconstrução partiu das variáveis selecionadas
no que convencionamos indicar como necessidades básicas presentes em qualquer processo
de integração regional. Além disso, relacionamos os objetivos tradicionais da ação externa
brasileira, autonomia e o desenvolvimento, com o Mercosul, mesmo que de forma indireta.
A partir deste ponto retomamos os principais assuntos tratados para estabelecer uma
compreensão do que seria a essência do processo de integração, e determinar melhor a
influência do governo brasileiro sobre ele.
Esta pesquisa centra sua análise na dinâmica do corpo diplomático. No entanto, o
entendimento do funcionamento do Ministério das Relações Exteriores por si só é uma tarefa
muito complexa, principalmente pelo fato de que há uma reconhecida dificuldade em obter
todas as informações necessárias a fim de realizar um estudo deste tipo. Além deste aspecto, a
literatura sobre a política externa brasileira apresenta um número muito reduzido de estudos
dedicados aos processos internos de tomada de decisão, às forças internas presentes na
corporação diplomática e ao funcionamento e papel desta organização no conjunto da
burocracia estatal brasileira.
Assim, partimos da aceitação destas limitações e reduzimos nossa análise somente
aos aspectos diretamente relacionados às hipóteses iniciais desta pesquisa. Desta forma, a
análise empírica concentrou-se nas demandas da integração e nas reações dos negociadores
brasileiros, tendo como parâmetro de comparação as considerações presentes na bibliografia
selecionada, as decisões tomadas pelo governo brasileiro e as normas estabelecidas no âmbito
do arranjo institucional intergovernamental do Mercosul.
É perceptível a importância que demos às falas, declarações, manifestações e
discursos das autoridades brasileiras diretamente envolvidas no processo negociador.
173
7.1.1. Introdução ao Modelo Brasileiro
Em linhas gerais, a posição brasileira assume uma importância central na definição
de algumas questões que fundamentais para o aprofundamento institucional do bloco e que
estão presentes nos principais estudos sobre o Mercosul. Entre alguns exemplos podemos
citar: a defesa constante do modelo essencialmente intergovernamental; a dificuldade em
aceitar a criação de mecanismos institucionais comunitários - tais como estruturas de fomento
e de financiamento da integração, que a literatura especializada considera essenciais para lidar
com as diferenças regionais e de competitividade -; e também a constante tentativa de evitar a
utilização do mecanismo de solução de controvérsias criado no âmbito do Mercosul,
privilegiando a negociação prévia entre os governos.
Concordamos com essas observações, mas consideramos importante ressaltar
algumas outras para compor o que chamamos aqui de modelo brasileiro de integração no
Mercosul. É importante destacar que as observações abaixo, que compõem este modelo,
foram extraídas dos acontecimentos estudados desde pelo menos a assinatura do Tratado de
Assunção até o final de 2006. Portanto, mesmo admitindo que a partir de 2005 seja possível
ver uma mudança significativa do andamento do processo, ainda assim permanece um esforço
em sua defesa, presente no próprio corpo diplomático e também em parcela significativa da
comunidade brasileira de política externa.
O período estudado demonstrou que este modelo de integração foi defendido durante
grande parte do tempo, embora sua decadência tenha se iniciado ainda no final dos anos 90.
Apesar de estar esgotado ainda não foi completamente substituído, inclusive porque este
modelo é coerente com as linhas gerais presentes na atuação externa brasileira, descritas no
início desta pesquisa. Sua completa superação acabaria sendo conseqüência de uma ruptura
nesta linha de continuidade que marca a história da ação externa brasileira.
Devemos levar em consideração o fato de que são crescentes as pressões sobre esta
continuidade histórica, mas uma ruptura deste nível mostra-se historicamente muito difícil,
principalmente porque recai sobre o objetivo máximo de busca de autonomia no sistema
internacional.
A tentativa de organizar os elementos que definem um modelo de Mercosul na
política externa brasileira é, portanto, compreender como a ação governamental brasileira se
colocou frente aos efeitos da maior interdependência econômica, política, cultural, entre
outros aspectos, e à criação de mecanismos comunitários que controlam esses efeitos.
174
Existem diversas experiências concretas de integração que demonstram diferentes
possibilidades de criação institucional, diferentes modelos de integração econômica e variadas
formas de comprometimento entre os Estados envolvidos. No entanto, o fato de trabalharmos
com a noção de aprofundamento implica em reconhecer que existem diferentes níveis de
integração e, de uma forma ou de outra, ele se relaciona com o grau de autonomia preservado
pelo Estado nacional. Este modelo, portanto, corresponde em alguma medida à forma como o
Estado brasileiro se ajustou a essa tendência de diminuição da autonomia nacional em relação
ao processo de integração.
7.1.2. Centralidade dos Governos
O primeiro elemento deste modelo é a própria centralidade dos governos nos
destinos do processo de integração, que pode ser verificada em toda a história do bloco, desde
o seu antecedente direto em 1985, a Declaração de Iguaçu, até os dias atuais. Quando falamos
em centralidade dos governos estamos nos referindo essencialmente ao Poder Executivo.
Essa centralidade poderia ser explicada pela própria arquitetura de integração
adotada, que é intergovernamental. Entendemos que isso seria uma forma de reduzir a
explicação. O fato de haver intergovernamentalidade não implica em redução da participação
dos outros poderes do Estado, nem dos demais atores domésticos. É possível haver blocos
essencialmente intergovernamentais com uma concomitante agenda de integração mais
participativa e transparente.
Assim, o que explica a centralidade dos governos no Mercosul é a estrutura de
interesses domésticos dos países participantes, a capacidade de influência dos principais
atores em interação e a seqüência de acontecimentos históricos, que traduzem alternativas e
escolhas específicas desta experiência integrativa.
7.1.3. A Vontade Política Concentrada nos Presidentes
Se há uma centralidade governamental neste modelo, também é possível perceber
pela análise dos acontecimentos realizada, que dentre os atores governamentais é reservado
um papel especial para a Presidência da República no processo decisório. A vontade política
concentrada nos presidentes já foi por diversas vezes descrita na bibliografia sobre o tema
(VIGEVANI e VEIGA, 1991; HIRST, 1991; MALAMUD e CASTRO, 2006).
A pesquisa empírica neste trabalho confirma esse entendimento, percebendo que essa
vontade política - que em muitos casos impulsiona o processo e em outros busca a solução de
175
uma situação de crise, ou ainda pode ser a própria causa de uma situação de crise - se mostra
mais relevante nos momentos que entendemos ser de formulação decisória.
Se a vontade política presidencial é o próprio motor do processo de integração no
Cone Sul, ela se dá principalmente em momentos curtos, devido à própria dinâmica das
atividades e atribuições presidenciais que estão voltadas na maior parte do tempo para a vida
doméstica de cada país, e também pela própria estrutura decisória criada.
Apesar disso, foi possível perceber que a atuação presidencial tem capacidade de
mudar os rumos dos acontecimentos na integração do Mercosul. No entanto, essa capacidade
é relativa, pois o dia-a-dia da integração é operado pelas agências governamentais
especializadas no tema, tornando mais difícil o acompanhamento sistemático dessas questões.
Esse cotidiano é o que chamamos de momento da implementação decisória, onde os
operadores governamentais, que no caso brasileiro correspondem basicamente à corporação
diplomática, também exercem uma importante influência sobre os destinos da integração.
Assim, a vontade política concentrada nos presidentes seria o segundo elemento deste
modelo.
7.1.4. A Defesa da Estabilidade Democrática na Região
Tanto a centralidade dos governos, como a grande importância da vontade política
presidencial se fundamenta na defesa da estabilidade democrática na região. Este terceiro
elemento ajuda na explicação dos dois anteriores, pois o início da cooperação argentino-
brasileira se explica em parte pela emergência dos governos civis nos dois principais países,
que viam na integração econômica uma forma plausível de aumentar as chances do processo
de redemocratização, diminuindo a probabilidade de um retrocesso autoritário.
A importância da defesa da democracia como característica do modelo de integração
não se justifica somente pelo momento inicial que deu partida ao processo. Ela se fortaleceu
ao longo dos anos, o que nos habilita a identificá-la como essencial à arquitetura institucional.
Essa defesa da democracia, no entanto, não é muito precisa quanto ao tipo de
democracia que se deseja para os países participantes. É definida essencialmente por oposição
aos movimentos de ruptura da ordem política com o estabelecimento de ditaduras militares,
realidade esta que marcou grande parte da história política latino-americana. Assim, não
podemos esperar um detalhamento sobre qual a forma de democracia que os países deveriam
ter, se parecida com a idéia de uma democracia representativa ou não, ou se o processo de
integração em si deveria ser mais transparente, participativo e democrático.
176
No modelo de integração da política externa brasileira, a defesa da democracia
assume papel de característica fundante do próprio processo e é um de seus próprios
objetivos. Não há relação com a questão do aprofundamento do bloco. O importante é que em
momentos de possível ruptura da ordem democrática em algum dos países participantes,
mesmo com instituições comuns pouco desenvolvidas, haverá uma reação dos demais através
da ação presidencial e diplomática com o objetivo de evitar uma crise maior. Esses momentos
emergenciais foram verificados nos anos 90 quando o General Lino Oviedo tentou assumir o
poder à força no Paraguai.
A prática de dissuadir essas tentativas de golpe, seja por meios diplomáticos ou pela
ação direta dos presidentes, aconteceu antes mesmo da sua regulamentação, realizada a partir
do Protocolo de Ushuaia, que é adicional ao Tratado de Assunção, e que trata do
compromisso democrático no bloco (ALMEIDA, 2002).
7.1.5. A Articulação Diplomática Brasil - Argentina
Um quarto elemento deste modelo se volta, como os três anteriores, ao momento
fundante do processo, ou seja, estamos nos referindo à importância estratégica da articulação
diplomática entre Brasil e Argentina, como o centro nervoso do processo.
Essa articulação foi amplamente salientada pela bibliografia que trata deste assunto
(VAZ, 2002; CAMARGO, 2006). É notória a diferença de importância dada aos assuntos que
envolvem os dois principais países em detrimento dos outros menores. As posições brasileiras
apontaram nesse sentido, o que foi demonstrado a partir dos acontecimentos de 2004. O
reconhecimento público do governo brasileiro sobre o tratamento diferenciado que havia tido
com relação ao Paraguai e ao Uruguai não denota somente uma mudança nas posições
políticas representada pelo governo de Lula da Silva, porque entendemos que este fato é fruto
da situação anacrônica em que a defesa deste modelo de integração se encontra, dada à
intensificação das pressões sobre a própria arquitetura do bloco e sobre os negociadores
governamentais brasileiros.
No entanto, com respeito a essa característica, apesar de ter sido marcante durante
grande parte do tempo, é interessante a interpretação de Mônica Hirst a respeito da prioridade
do Itamaraty atribuída à América do Sul, que além de parte dos objetivos de inserção
internacional do país, parece ser uma forma de substituir "la propuesta anterior de máxima
prioridad a la alianza estratégica con Argentina” (2006: 139).
Esta pesquisa demonstra que no modelo de integração defendido pela diplomacia
177
brasileira, a expansão para a América do Sul já se apresentava desde o seu início em 1991.
Entretanto, é difícil afirmar se a expansão acabaria por substituir a articulação originária.
Nossa ponderação vai no sentido apontado pela própria análise empírica, que nos permite no
máximo afirmar que o governo brasileiro, seja do ponto de vista da atuação do corpo
diplomático ou da diplomacia presidencial, busca em diversos momentos a concordância por
parte do governo argentino a respeito da expansão do processo, tendo obtido o seu aceite até o
momento.
Assumimos uma posição de cautela em relação a essa característica, ou seja, os
dados analisados ainda apontam para a centralidade da articulação entre Brasil e Argentina no
modelo governamental brasileiro, mesmo que essa seja substituída na medida em que os
objetivos de expansão são concretizados. Lembramos que tentamos extrair e definir a
existência de um modelo gestado através dos anos e, portanto, mais do que um planejamento
prévio trata-se, na verdade, de um processo histórico que sofre as interferências dos
movimentos conjunturais.
Como conclusão dos quatro primeiros fatores levantados, temos que estes não
inviabilizam a priori o aprofundamento da integração. Assim, não existe uma relação direta
entre eles e a não adoção de mecanismos e políticas que possibilitassem um arranjo
institucional do bloco capaz de promover o avanço da integração econômica e política.
A noção de avanço, neste caso, significa aprofundamento como já foi tratado
anteriormente. Também é importante notar que estes elementos se referem direta e
indiretamente ao exercício da diplomacia presidencial. A centralidade do governo no bloco é
fruto, em grande parte, do esforço presidencial em dar início à integração que tinha como um
dos grandes objetivos a defesa da democracia nos dois principais países.
7.1.6. A Diplomacia como Formuladora
Outro elemento que caracteriza o modelo é a diplomacia como formuladora e,
conseqüentemente, como principal instrumento de modelagem da própria integração. Nesta
concepção, a arquitetura institucional do bloco é reflexo direto do próprio processo
negociador, ou seja, o modo de fazer a integração é contínuo e depende do jogo de forças e
interesses entre os principais negociadores.
A vontade política está concentrada nos presidentes, mas esta se apresenta com mais
força em determinados momentos, principalmente naqueles que exigem autorização para
seguir em frente sobre determinados temas, nos momentos emergenciais que envolvem crises
178
institucionais domésticas e na superação ou na criação de situações de crises. Nos demais
momentos, que correspondem à maior parte do tempo, o processo fica sob a coordenação
quase que exclusiva da diplomacia, que trabalha diretamente com as demandas que surgem
todos os dias e na própria orientação dada durante as reuniões de Cúpula do bloco.
Essa característica é fundamental para entender o modelo, já que dentre os principais
atores do processo é perceptível a superioridade que o corpo diplomático brasileiro assume
como importante gestor da integração. Se for verdade que a diplomacia brasileira, do ponto de
vista jurídico, tem as mesmas competências que as dos demais países, também é válido
afirmar que, do ponto de vista técnico e político, o Itamaraty possui capacidades que lhe
garantem uma vantagem relativamente grande no processo decisório do bloco.
Para reforçar o reconhecimento da centralidade da diplomacia e sua ligação com os
elementos já levantados vale atentar para a conclusão de Alcides Costa Vaz ao lembrar que
apesar da influência crescente das burocracias econômicas no processo
negociador, não se produziu, em nenhum aspecto, o esvaziamento
político do Mercosul e de sua projeção diplomática, como o atesta, por
exemplo, a ativa diplomacia presidencial e ministerial então conduzida,
o que justificava que a coordenação das negociações se mantivesse na
órbita das chancelarias mesmo nas fases marcadas pela predominância
dos temas econômicos na agenda negociadora (...) (2002: 272).
A idéia é de que o processo negociador seja essencialmente um processo conduzido
pelos atores diplomáticos, pois além de fortalecer seu papel no interior do bloco, isto permite
a manutenção de sua importância na própria estrutura do Estado brasileiro.
Entre as principais forças endógenas ao Mercosul, ou seja, aquelas presentes na
própria dinâmica de interesses e expectativas que orientam a ação dos atores domésticos em
relação à integração, a atuação da diplomacia brasileira foi central para o formato assumido
pela integração ao longo dos anos, sendo esta um ator de grande relevância no destino e na
condução das decisões que definem a estrutura institucional do bloco.
O levantamento e a análise dos acontecimentos envolvendo as posições brasileiras
demonstraram em vários momentos esse fato. Vimos que o Itamaraty possui uma capacidade
e uma importância singular na formulação decisória que estabelece a estratégia de inserção
internacional do país e, ao mesmo tempo, o faz dentro do discutido insulamento do debate
sobre as questões internacionais no Ministério das Relações Exteriores e a grande
profissionalização que este apresenta, podendo este órgão ser entendido como um
179
subconjunto do Estado brasileiro com demandas e orientações próprias.
Essa verificação demonstra a importância de entender qual a relação desta agência
estatal com os destinos da integração regional, já que representa o pivô da ação internacional
contemporânea brasileira, pelo menos no nível dos discursos oficiais.
7.1.7. Estrutura Institucional Predominantemente Intergovernamental
De todos os elementos que compõem o modelo de Mercosul da política exterior do
Brasil podemos dizer que a defesa da manutenção de instituições intergovernamentais é o
mais importante, e permite fazer as ligações necessárias entre os demais.
O histórico da postura brasileira demonstrou claramente a importância atribuída a
esse ponto, demonstrando que uma mudança nesse aspecto interferiria na própria estrutura do
modelo. Também foi possível perceber que é em relação a esse tema que há maior
divergência, não só entre o Brasil e os demais países, mas principalmente entre o que
chamamos de diplomacia presidencial e as posições do corpo diplomático.
Foram marcantes as tentativas de bloqueio por parte dos negociadores brasileiros
com respeito ao avanço sobre essa discussão durante o processo negociador do Mercosul.
Além disso, defesa acirrada em manter o caráter intergovernamental do bloco foi de todos os
elementos o que mais se manteve ao longo do tempo, principalmente com relação à coerência
do discurso diplomático. Podemos inclusive afirmar que a esta é uma característica presente
nas diversas correntes internas da diplomacia. Tanto as posições mais nacionalistas, quanto as
mais liberais entendem que a intergovernamentalidade deve ser respeitada, já que se apóia no
objetivo essencial da ação externa brasileira de ampliação das margens de manobra no sistema
internacional, ou autonomia.
Sobre este aspecto trataremos um pouco mais adiante ao abordarmos o que estamos
chamando de "princípio da intergovernamentalidade" e sua relação com os objetivos
essenciais da política externa brasileira.
Sobre as instituições supranacionais, Malamud (2005-b) bem observa que
diferentemente da União Européia, o Mercosul nunca chegou a ter este tipo de arranjo
institucional, no entanto, sua explicação para isso é de que os governos não queriam perder o
controle sobre o andamento do processo de integração e, um outro motivo, seria a tentativa de
evitar as experiências de integração mais antigas na América Latina que foram consideradas
como tendo certo excesso de instituições, como no caso do Pacto Andino.
Aceitamos o diagnóstico de Malamud, no entanto acreditamos que a explicação para
180
o caso do Mercosul está mais para a tentativa do corpo diplomático em manter as linhas gerais
da política externa brasileira, o que, por conseguinte resultaria na manutenção da capacidade
corporativa de influência sobre os destinos do próprio processo de integração e também na
formulação da agenda externa brasileira.
Vimos que o discurso diplomático busca fundamentar uma realidade específica do
Mercosul, composta de fatores que ligam a experiência do Cone Sul a um processo
caracterizado por pouca construção institucional e, essencialmente, intergovernamental. Vale
lembrar que, em geral, esses fatores não são muito bem explicados e referem-se às
características históricas do Brasil e de sua posição no mundo.
Ao mesmo tempo, essa construção discursiva apresenta a possibilidade de gestão de
um mercado comum a partir de instituições mínimas, onde as diplomacias seriam importante
ponto de apoio das negociações. Como exemplo desta concepção, Paulo Roberto de Almeida
afirma que o Mercosul não é nenhuma cópia e nem tem inspiração na União Européia. Se
fosse para ter alguma comparação este autor propõe que o correto seria comparar com o
Benelux. A permanência do projeto de mercado comum sub-regional seria uma forma de ter
um “(...) perfil ótimo da inserção econômica internacional dos países membros às
possibilidades de construção de uma interdependência regional que complemente o processo
de globalização mercantilista” (2002).
Seguindo essa mesma linha e como forma de fortalecer seu argumento, o autor
desqualifica aqueles que propõem a adoção de instituições ou mecanismos de caráter
supranacional com o argumento de que “em outros termos, o que foi realizado foi o Mercosul
possível, não o ideal ou aquele imaginado por observadores acadêmicos ou comentaristas
pouco informados dos meios de comunicação” (idem).
Esse tipo de argumentação se direciona, por exemplo, a especialistas da área de
direito internacional e de relações internacionais como Ricardo Seitenfus e Deyse Ventura,
que se dedicam ao estudo do funcionamento das organizações internacionais e, em particular,
ao do Mercosul. Estes autores, entre tantos outros, entendem que as instituições
supranacionais poderiam criar as condições para o cumprimento dos tratados assinados e para
construir uma política comercial comum (SEITENFUS e VENTURA, 2001), o que a análise
empírica desta pesquisa demonstrou ser muito improvável ocorrer com as instituições atuais.
As posições do Itamaraty sobre esse assunto podem ser compreendidas na seguinte
afirmação do ex-Ministro das Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia:
181
Creio que o Brasil não deve aceitar o conceito de uma autoridade
supranacional nos moldes da Comissão Européia, nem a idéia de que
possa haver uma subordinação do sistema judiciário nacional a uma
instância do Mercosul. Mas haverá certamente possibilidade de avaliar
níveis intermediários, como a criação de um secretariado técnico capaz
de realizar estudos e projetos para a consideração dos governos, que
represente um avanço no sentido da maior institucionalização do
Mercosul (...) (2002: 205).
Mesmo em pleno processo de mudança do discurso governamental brasileiro,
principalmente com a nova orientação dada a partir da diplomacia presidencial, um dos
principais operadores do Itamaraty sobre o dia-a-dia do Mercosul, José Antônio Marcondes
de Carvalho (2006), afirma que o importante não seria discutir se as instituições deveriam ser
intergovernamentais ou supranacionais, mas saber se as atuais instituições são adequadas ao
Mercosul.
Concordamos com o fato de buscar a adequação das instituições ao real nível de
interdependência de um processo de integração. Porém, os acontecimentos do Mercosul e o
histórico das posições brasileiras demonstram uma preocupação constante do corpo
diplomático em evitar este debate público. Seguindo esta linha de raciocínio, Marcondes de
Carvalho que é um importante negociador do Mercosul afirma que
Não há uma relação direta a priori entre instituições supranacionais e
efetividade. Por si só, a introdução, no arcabouço jurídico institucional
de um processo de integração, de elementos tradicionalmente
associados ao conceito de supranacionalidade não assegura a
consecução dos objetivos atribuídos à organização ou o adequado
cumprimento das decisões adotadas nesse âmbito. Por outro lado, nada
impede que, na ausência desses elementos, as instituições possam criar
uma efetiva integração entre seus membros e gerar, naturalmente uma
demanda por maior integração, graças à capacidade de defesa e
promoção dos interesses de seus integrantes (...) (CARVALHO, 2006:
20).
Concordamos com a primeira parte do argumento, de que realmente não há a priori
uma relação direta entre a supranacionalidade e a efetividade da integração, assim como
também não há relação direta entre a intergovernamentalidade e a efetividade da integração.
No entanto, conforme já foi abordado anteriormente nesta pesquisa, existem fortes indícios de
182
que um mercado comum, devido à grande complexidade das questões tratadas,
principalmente com relação ao livre trânsito de pessoas e de capital, tem enormes dificuldades
para se consolidar a partir de instituições estritamente intergovernamentais.
Assim como a rigidez na manutenção de um corpo supranacional pode acabar
prejudicando a própria integração, uma rigidez quanto à intergovernamentalidade também
pode resultar no mesmo efeito. É difícil imaginar a discussão sobre qual tipo de instituição é
mais eficiente aos objetivos do bloco enquanto houver certo "tabu" no trato das questões
relativas aos mecanismo supranacionais.
Nossa conclusão é extraída dos exemplos históricos existentes e da análise
bibliográfica específica sobre casos de integração regional e, desta forma, o Mercosul poderia
ser uma inovação neste sentido. Entretanto, a análise histórica dos acontecimentos e a crise
institucional crônica pela qual o Mercosul tem passado demonstram, até o momento, a
inviabilidade do argumento diplomático.
7.1.8. Inexistência de um Paymaster
Um outro aspecto que foi percebido e que entendemos ser um elemento marcante do
próprio modelo de integração presente na política exterior do Brasil diz respeito à necessidade
em haver um processo de integração coeso, mas sem a existência de um país que seja o
principal pagador, como já exposto ao tratarmos da idéia de "paymaster" de Walter Mattli
(1999).
Nossa conclusão é de que para o modelo de integração da política externa brasileira
pode haver certa liderança do Brasil sobre o processo, desde que esta não se traduza em
transferência profunda de funções e fundos governamentais nacionais para o nível regional.
Os diversos exemplos envolvendo várias crises no bloco demonstraram que a posição
brasileira foi de pagar os custos do processo, sejam estes institucionais ou econômicos, mas a
partir das próprias instituições nacionais, visando sempre manter um mínimo de coesão
necessária à manutenção dos objetivos brasileiros de inserção internacional.
Este elemento do modelo, no qual não existe um principal Estado pagador, foi
amplamente amparado pela análise empírica dos fatos, estando presente em diversos
momentos nos discursos diplomáticos, mas também apresenta uma ampla base de sustentação
na bibliografia que trata deste tema (KLOM, 2003; BURGES, 2005; MALAMUD,
2005,b;VIGEVANI e MARIANO, 2005).
Já identificamos que esse modelo de integração que estamos tentando apreender e
183
organizar entrou em crise principalmente a partir de 1999 e, desta forma, a cobrança sobre
uma maior responsabilidade brasileira perante o processo aumentou, fazendo com que alguns
membros da própria diplomacia reconheçam essa realidade. O então Embaixador Botafogo
Gonçalves, ao término do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso já afirmava que
Seja por razões externas, como a multiplicação de iniciativas comerciais
diluidoras de esquemas preferenciais prévios, seja por razões internas
ao bloco, como a crise de credibilidade decorrente da atual fragilidade
econômica nos quatro países, as ameaças à sobrevivência do Mercosul
são hoje consideráveis, e somente um firme compromisso do Brasil,
como principal liderança, no sentido de dar um passo adiante no
processo de integração, poderá preservar o agrupamento (...) Por essas
razões, é preciso que o Governo brasileiro se convença de que o
aprofundamento do Mercosul é essencial para o Brasil, como
plataforma de inserção internacional e como instrumento de progresso e
estabilidade na região, e reconheça que, se o exercício da liderança
pressupõe custos de várias ordens, a inação nas atuais circunstâncias
terá um preço ainda mais alto.(GONÇALVES, 2002: 148).
Entretanto, mesmo com a nova realidade da integração a partir de 2005 ainda é
possível ver que esta questão continua válida. Apesar da implementação de mudanças reais no
sentido do Brasil se tornar o principal pagador do processo, com o advento recente do
FOCEM ou da instalação do Parlamento do Mercosul, estas foram muito lentas. Não se
consegue atingir a velocidade necessária devido à sucessão de crises institucionais vividas e,
principalmente, à crise de expectativas entre os atores governamentais, gestadas durante anos
e acumuladas principalmente a partir de 1995.
O aumento das diferenças entre as economias brasileira e argentina só se acentuaram,
sem falar da pouca atenção dada aos países menores, o Uruguai e o Paraguai. Nas palavras de
Veiga (2005: 5) "por enquanto, o preço a pagar tem se traduzido em uma postura de tolerância
em relação a medidas protecionistas da Argentina e em concessões assimétricas negociadas
com os países da CAN, posição que se poderia denominar unilateralismo benévolo”.
Esta denominação de "unilateralismo benévolo", que por sinal explica bastante a
atual postura do Itamaraty, pode ser vista com muita clareza no trecho abaixo reproduzido de
uma entrevista com o Ministro Celso Amorim:
ISTO É O Senhor rebate com vigor as críticas de que o Mercosul
implodiu. Mas se está tudo tão bem, então por que o Uruguai quer fazer
184
um acordo de livre comércio com os EUA?
Amorim Acho que o Uruguai tem muitas razões de queixas contra o
Mercosul. Por exemplo, o acesso ao mercado brasileiro tem sido muito
restrito. O Brasil tem que liberar mais, porque é muito maior. O
comércio internacional não deve só ser competitivo, tem que ter
vantagens comparativas. Então, algumas coisas a gente tem que
comprar deles. E a nossa estrutura burocrática está voltada só para o
Brasil; não há uma visão integrada. O Brasil é muito maior do que o
Uruguai e o Paraguai e isso causa mais problemas para eles. Temos que
trabalhar para que esses dois vizinhos tenham uma inserção, temos que
abrir mão de produzir tudo e temos que escoar mais, proporcionar
condições de financiamento para eles.
ISTO É E nós temos um grande superávit com eles...
Amorim O Brasil não pode exportar US$ 1 bilhão para o Uruguai e
importar só US$ 500 milhões; precisamos exportar US$ 1,5 bilhão e
importar US$ 2 bilhões. Como? Com a indústria automobilística, por
exemplo. Partes dos carros poderiam ser produzidas no Uruguai ou no
Paraguai. O banco, ou os faróis, qualquer coisa. É isso que a Europa
fez, é essa cultura de integração que ainda não existe totalmente.
7.1.9. A União Aduaneira como Limite
O objetivo de consolidar uma união aduaneira é mais um elemento do modelo,
porque ela permitiria manter a autonomia enquanto objetivo máximo da política externa
brasileira e, ao mesmo tempo, consolidar o uso do Mercosul e da América do Sul como
plataformas eficientes para a inserção internacional. O bloco deveria, portanto, propiciar
melhores condições para a negociação com as grandes potências econômicas, principalmente
no tocante aos grandes acordos regionais, ALCA e Mercosul-União Européia, e também nas
negociações multilaterais no âmbito da OMC.
Os dados analisados demonstram como esse movimento brasileiro era realizado,
buscando manter uma coesão mínima necessária para enfrentar as grandes negociações.
Também evidenciou a grande dificuldade em sustentar um mínimo de coerência na união
aduaneira para cumprir com esses objetivos.
185
É interessante notar que o discurso diplomático geralmente aponta para o
funcionamento de um futuro mercado comum, enquanto as políticas implementadas, as
manifestações governamentais e as respostas diplomáticas às cobranças dos demais parceiros
no sentido de aprofundar as instituições do bloco demonstraram que a união aduaneira seria,
na realidade, o limite de aprofundamento do ponto de vista das etapas de integração
econômica.
Nossa conclusão se fortalece tendo em vista a defesa constante do que chamamos de
"princípio da intergovernamentalidade", o que, em tese, se adaptaria muito bem aos objetivos
de manter uma tarifa externa comum sem maiores compromissos futuros como o livre trânsito
de pessoas e capitais, característicos de um mercado comum.
Se esse elemento permite manter a autonomia do Estado brasileiro, por outro lado
também é coerente com os objetivos voltados para a busca de melhores condições para o
desenvolvimento econômico nacional. Desta forma, é perceptível a coerência entre o modelo
de integração proposto na política externa brasileira e os seus objetivos máximos, autonomia e
desenvolvimento, que têm garantido a característica singular de continuidade.
Nessa concepção, uma união aduaneira permitiria ao Estado brasileiro um ganho de
escala considerável para sustentar o projeto de desenvolvimento econômico, além de
conseguir melhores condições de inserção econômica internacional, ampliando a importância
do comércio exterior na economia brasileira e atraindo investimentos externos (SARAIVA e
TEDESCO, 2001).
Conforme o abordado no capítulo sobre as diferentes concepções de autonomia e a
tendência em construir novos paradigmas explicativos das escolhas brasileiras, podemos
ainda afirmar que o objetivo de consolidar uma união aduaneira permitiria maior
funcionalidade da política externa aos objetivos governamentais gerais, o que historicamente
garantiu a ampliação da margem de manobra da própria diplomacia na estrutura burocrática
estatal, além de um maior grau de legitimidade para gerir a agenda externa do país.
No entanto, entendemos que para a consolidação de uma união aduaneira é preciso
abordar diversas questões - descritas no capítulo sobre necessidades básicas dos processos de
integração regional -, e, portanto, essa funcionalidade não se consolidou. Mesmo assim, em
plena crise institucional do bloco, vemos um potencial muito grande no que se refere aos
fluxos de comércio intra-bloco, o que permitiu um mínimo de coerência das ações brasileiras
com relação ao Mercosul.
186
7.1.10. O Regionalismo Aberto
O regionalismo aberto seria mais um elemento deste modelo de integração e reforça
os três anteriores: a busca de uma estrutura institucional intergovernamental, a inexistência de
um "paymaster" e o objetivo de consolidar uma união aduaneira.
A concepção de regionalismo aberto considera que um bloco econômico deve estar
adaptado aos fluxos de comércio mundial, não se constituindo numa barreira à produção
mundial, evitando a criação de desvios ao comércio. Seria a formação de arranjos comerciais
regionais com a meta de gerar e não criar obstáculos ao comércio internacional. Desta forma,
esta concepção se liga aos objetivos do próprio processo de globalização econômica e
financeira. O bloco regional deveria ser, de alguma forma, compatível com as normas do
comércio multilateral (KRASNER, 1992; AMARAL JR., 2003).
A noção de regionalismo aberto, mais do que um conceito ou um fato em si, em
diversos momentos e por diversos interlocutores assume a forma de um apelo ideológico,
onde sua razão de existir seria de amplo conhecimento e, portanto, não seria questionada. Esta
noção se apresenta repetidamente no discurso diplomático a respeito das finalidades do
Mercosul.
Atribuir principal prioridade à consolidação e aprofundamento do
Mercosul rumo a um mercado único e à promoção da integração
comercial, energética e viária com todos os países da América do Sul.
Esta orientação não se volta contra ninguém, pois o que preconizamos é
um regionalismo aberto
80
.
Lembramos que este elemento também se liga ao objetivo de expansão do bloco, que
trataremos logo adiante. Se o regionalismo aberto deve manter a proteção do mercado em
níveis muito baixos, permitindo que este se conecte ao próprio processo de globalização,
então haveria uma maior facilidade para a adesão de outros países da América Latina sem
comprometer os objetivos do próprio Mercosul (FLORES NETO, 2000).
Entretanto, a concepção de regionalismo aberto parece mais uma forma de
fundamentar a idéia de manter um perfil institucional baixo no bloco do Cone Sul, pois
conforme análise de Amado Cervo (2002) o comércio intra-bloco cresceu de
80 Exposição do Embaixador Luiz Felipe Lampreia, Ministro de Estado das Relações Exteriores, no X Fórum
Nacional “As Perspectivas da Situação Mundial e a Política Externa do Brasil”.
187
4,1 bilhões de dólares em 1990 para 20,5 em 1997, e 18,2 em 2000. No
período, as exportações do bloco cresceram 50% e as importações
180%. O regionalismo aberto provocou, portanto, um desvio de
comércio, extremamente oportuno para economias incapazes de elevar-
se à competitividade sistêmica global.
7.1.11. A Estratégia de Integração Direcionada para os Assuntos Menos
Polêmicos
Um outro elemento importante para entender a postura brasileira no bloco é a
estratégia de integrar o que é mais fácil, ou o que em algumas interpretações, pode ser
entendido como a estratégia de integração dirigida pelo mercado. Essa característica é
visivelmente percebida nas posições brasileiras a respeito dos mecanismos institucionais
criados e nas posições governamentais brasileiras diante de uma demanda concreta. A solução
seria integrar tudo aquilo que é possível e deixar para um segundo momento tudo aquilo em
que não há consenso.
Essa estratégia corresponderia ao estágio de integração negativa nos processos de
integração regional (NYE, 1994), ou seja, os negociadores diretos e as regras criadas
deixariam para um segundo momento as questões menos consensuais. Este segundo momento
consistiria no estágio mais complexo, ou de integração positiva. O acúmulo de pendências
necessitaria de um esforço conjunto dos diversos atores envolvidos no sentido de superar essa
situação de impasse, pois as instituições criadas provavelmente não estariam adaptadas ao
enfrentamento desta realidade.
Esse também é o entendimento de Malamud (2005-c) ao afirmar que o Mercosul
ainda não completou o estágio de integração negativa, o que explicaria os repetitivos
relançamentos e a baixa realização das medidas propostas nestes momentos de relativo
consenso.
Essa estratégia foi muito importante na fase inicial do processo, para demonstrar aos
diferentes agentes do processo que o aumento da interdependência entre os países
participantes era possível, o que gerou um importante aumento do comércio intra-bloco e
acelerou a adaptação produtiva das grandes empresas nacionais e multinacionais presentes na
região.
No entanto, as instituições do bloco não se preocuparam com a diminuição das
assimetrias existentes, o que permitiu ao processo caminhar relativamente tranqüilo até o ano
188
de 1999 quando esta estratégia se mostrou esgotada e, coincidentemente, também se revelou o
esgotamento da arquitetura institucional do bloco. Assim, consideramos que ainda estamos na
fase de tentar superar esse momento de esgotamento, numa caminhada que já dura quase oito
anos, e na qual verificamos que a postura brasileira tem cumprido um importante papel no
estabelecimento deste impasse.
7.1.12. A Ausência de Mecanismos de Redução de Impacto
A ausência de mecanismos institucionais para reduzir os impactos provenientes do
aprofundamento das relações de interdependência provocados pelo próprio processo de
integração é um outro elemento importante deste modelo. Uma integração de baixo perfil
institucional acabaria por esbarrar nos limites dados pela existência de diferenças de
competitividade setorial e também regional, pois a criação de um espaço ampliado de
interação entre diferentes agentes econômicos evidencia as assimetrias existentes e, na medida
em que a integração não dispõe de soluções eficientes para essa situação, permite inclusive a
exacerbação desses desequilíbrios.
O histórico de conflitos comerciais entre Brasil e Argentina assim como o tratamento
dado aos países menores servem de exemplo dessa característica. Foram nestes momentos que
as pressões pela criação de mecanismos efetivos para lidar com as diferenças foram mais
expressivas, como as demandas pela criação de fundos estruturais, de compensação ou de
reconversão produtiva. Como foi demonstrado, a posição governamental brasileira foi de
fazer concessões em relação à própria disciplina comercial do bloco e evitar a criação destes
instrumentos de financiamento da integração. Nos casos mais extremos, quando a coesão do
bloco estava seriamente ameaçada, voltou-se para os instrumentos nacionais existentes, como
ficou evidente nas propostas de utilização do BNDES.
Vimos também que o argumento diplomático centrou-se na ineficiência de se criar
instrumentos custosos que poderiam com o passar do tempo se burocratizar excessivamente e
perder eficiência. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos fez com que este argumento
gradativamente perdesse efeito, já que em todos esses anos não foi proposta nenhuma
alternativa, a não ser a hipotética eficiência das leis do mercado.
Há uma diferença importante entre a disposição da diplomacia presidencial com
relação à diplomacia ministerial sobre a defesa pela não criação destes mecanismos. O corpo
diplomático foi mais resistente à adoção destes mecanismos regionais, mesmo durante os dois
último anos. Um dos exemplos de lentidão no tratamento desses assuntos é o próprio FOCEM
189
cuja criação foi em dezembro de 2004 durante a Reunião de Cúpula de Ouro Preto, mas até o
final de 2006 ainda não havia sido implementado. Uma das explicações para isto seria a
lentidão do mecanismo de internalização decisória do Mercosul, porque o arranjo
intergovernamental pressupõe que cada Legislativo nacional aprove a decisão.
Pode-se dizer também que a decisão de criar o FOCEM se deu durante uma crise
entre os governos do Brasil e da Argentina, que passava pela discussão da proposta argentina
de criação de um mecanismo de imposição de salvaguardas comerciais. Entendemos que
essas explicações têm sua validade, mas o fato de haver um comportamento histórico
brasileiro no sentido de evitar pagar esses custos nos leva a pressupor que a principal
explicação seria a falta de comprometimento brasileiro.
7.1.13. A Participação e Inclusão Limitada de Novos Atores Domésticos
A limitação da participação de outros atores domésticos também pode ser entendida
como um dos elementos desse modelo. A bibliografia sobre o Mercosul aponta essa realidade
através de diversos estudos sobre a estrutura decisória do bloco, sobre o papel limitado dos
Legislativos nacionais ou das dificuldades que os atores sociais encontram ao tentar participar
do debate sobre a agenda da integração.
Uma das explicações seria que isso reflete a própria arquitetura intergovernamental,
o que não deixa de ser verdade, mas não é suficiente. É possível haver instituições
intergovernamentais com transparência e canais de participação política mais amplos. Já foi
dito que os processos de integração regional geralmente apresentam deficiência democrática
ao criar novas instâncias decisórias.
No caso do Mercosul a melhor explicação seria a importância que a diplomacia
possui em quase todas as fases do processo decisório do bloco em detrimento de outros atores
domésticos. No entanto, a capacidade por parte dos negociadores brasileiros em manter essa
situação parece estar se encerrando.
Reafirmamos que esse modelo de Mercosul presente na política externa brasileira
está esgotado, e gradativamente está se transformando, permitindo-nos verificar, a partir das
manifestações dos diversos negociadores que já tiveram algum contato direto com a gestão
brasileira do Mercosul, os reais limites desse modelo e algumas das possibilidades de
mudança da postura brasileira.
190
7.1.14. Solução de Conflitos pela Via Diplomática
O penúltimo elemento do modelo é a solução de conflitos pela via diplomática e que
está intimamente ligado aos anteriores, pois não há previsão de aprofundamento dos
mecanismos institucionais que possam lidar com as assimetrias existentes e a diversidade de
interesses envolvidos.
Do ponto de vista dos conflitos econômico-comerciais nos processo de integração
regional, em geral, é possível dizer que são encaminhados por pelo menos três formas: a
primeira seria pelas próprias forças do mercado, a segunda através da criação de instrumentos
regionais de diminuição das diferenças de competitividade setorial e regional e a terceira,
quando não há uma fácil solução para estes, através de mecanismos de solução de
controvérsias.
No modelo defendido pelos atores governamentais brasileiros é possível perceber
que a primeira seria a forma principal de lidar com as diferenças, pois mesmo existindo
mecanismos de solução litigiosa desde o início do Mercosul - inicialmente o Protocolo de
Brasília e sua substituição posterior pelo Protocolo de Olivos -, sua utilização foi, em geral,
adiada pelos governos, privilegiando-se a solução diplomática nos assuntos que não se
resolveram "naturalmente".
A posição brasileira no Mercosul foi diametralmente oposta da apresentada com
relação aos conflitos na OMC (PINHEIRO, 2004; OLIVEIRA, 2005-b) e foi verificada na
análise dos acontecimentos, o que nos leva a concluir que privilegiar a solução diplomática,
além de garantir uma situação mais favorável para o governo brasileiro em virtude do
profissionalismo de seu corpo diplomático, também evita que as instituições regionais
ganhem funcionalidade, porque isso implicaria em avançar numa tendência destas assumirem
maiores funções, inclusive criando uma jurisprudência própria sobre o assunto, o que poderia
também diminuir a prerrogativa governamental no andamento das negociações.
Se esse fosse o caminho, a tendência seria de chocar-se com os objetivos nacionais
de obter maior autonomia, ou seja, haveria maior dificuldade em manter a continuidade
enquanto característica fundante da política externa brasileira. Além disso, haveria mais
empecilhos em sustentar o principal elemento do modelo, que trata da manutenção do caráter
intergovernamental das instituições do bloco, o que inviabilizaria a sustentação e coerência do
próprio modelo.
A análise histórica dos acontecimentos a partir de 1991 demonstrou que a produção
191
de conflitos, sejam estes econômicos ou políticos, foi uma constante do processo de
integração, o que demanda a intervenção diplomática para diminuir seus efeitos. As causas,
apesar de serem constantemente apontadas por diferentes interlocutores e atores diretamente
envolvidos, permaneceram presentes e as soluções ficaram a cargo de cada Estado
participante. A idéia é de que as diferenças existem, mas a sua solução não é de
responsabilidade das instituições do bloco.
Nesses casos, a intervenção governamental brasileira foi no sentido de oferecer
benefícios pontuais aos Estados reclamantes, tendo como idéia subjacente que o tamanho da
economia brasileira, se não pode naturalmente ser um atrativo de integração para as demais
economias, ou se não consegue absorver os custos da livre competição pelas "leis do
mercado", então o governo brasileiro poderia intervir com promessas de investimento através
do BNDES, através da idéia de promover uma maior integração das cadeias produtivas, ou de
outro benefício específico a ser negociado.
Se uma das principais funções da criação de normas, procedimentos e instituições
regionais é a de manter as expectativas dos diversos atores domésticos alinhadas ao objetivo
de promover maior integração, então a conseqüência real no Mercosul foi exatamente
contrária. O bloco vive uma constante crise de expectativas quanto ao seu futuro, dificultando
o próprio aprofundamento do processo, o que aumentou a desconfiança dos diferentes atores
participantes.
7.1.15. Modelo Voltado para Expansão e Não para o Aprofundamento
O último elemento que compõe o modelo de Mercosul que é possível apreender da
política externa brasileira diz respeito à prioridade dada à expansão do bloco em detrimento
do seu aprofundamento. Este modelo, portanto, se orienta pela busca no aumento do número
de Estados, expandindo-se para o restante da América do Sul.
Em princípio, entendíamos que isso se evidenciava mais a partir da proposta de
formação da ALCSA, durante o governo Itamar Franco, mas percebemos a partir da análise
histórica que a diplomacia já apresentava essa postura e orientava sua ação desde o início do
processo, em 1991.
A preferência pela expansão reforça a necessidade de manter baixo o perfil
institucional do Mercosul, o que por sua vez diminui o ímpeto pelo tratamento comum das
assimetrias existentes, já que a expansão por si só implica no aumento da probabilidade de
conflitos. O resultado quase que natural dessa escolha aponta para um baixo
192
comprometimento dos governos com a integração, permitindo aos Estados manter sua
autonomia, de certa forma, intocada.
O interessante dessa característica não está somente no fato de causar desconfiança
dos três primeiros países participantes - Argentina, Paraguai e Uruguai - com relação ao
Brasil, mas de fazer com que a expansão seja o ponto no qual esse modelo poderia se
reproduzir. Ou seja, na medida em que o governo brasileiro lidera esse processo de expansão,
faz com que o elemento central do modelo, que é a manutenção das instituições
intergovernamentais, seja na prática a realidade da integração.
Movimentos no sentido de criar elementos de supranacionalidade, como os
verificados por parte da diplomacia presidencial em fins de 2006, se tornam mais retóricos do
que práticos, diante do aumento das pressões e da maior complexidade de interesses
provocados pela expansão do bloco. Manter a coesão do bloco se torna cada vez mais difícil
diante da arquitetura institucional proposta pelo modelo.
A consequência imediata é o aumento da cobrança regional para que o governo
brasileiro pague pela liderança do processo de expansão da integração e, ao mesmo tempo,
limite as possibilidades de aprofundamento do bloco, visto que os recursos são escassos e a
capacidade brasileira de absorver esse nível de demanda é limitada.
Um outro fator que necessariamente deve ser levado em consideração e deixa a
situação mais complicada se refere à necessidade de obter a concordância do governo
argentino para a realização deste objetivo, o que tem demandado muito esforço do corpo
diplomático brasileiro.
Desta forma, o exercício da atividade diplomática na tentativa de gerenciar essa
situação limite assume a função de diminuição dos custos brasileiros. Vimos que a capacidade
de adaptação e de gestão das relações internacionais do Brasil por parte do corpo diplomático
são muito altas, mas mesmo uma corporação burocrática e profissionalizada como o Itamaraty
tem capacidade de intervenção limitada diante deste desafio.
Um possível resultado desse movimento seria o aumento das discórdias internas ao
corpo diplomático sobre qual alternativa seria melhor para manter a capacidade de
gerenciamento do processo de integração. Com respeito a esse fato vemos que ao menos três
soluções tendem a surgir:
a primeira seria o retrocesso do processo de integração para uma fase de área de livre
comércio, que seria o tipo de argumento mais fácil de ser defendido pela linha mais
liberal;
193
a segunda seria a tentativa de manter os objetivos de expansão do bloco, que
entendemos ter um bom respaldo na linha mais nacionalista;
e a última seria buscar o aprofundamento do bloco diminuindo o ritmo de expansão do
mesmo, proposta que parece estar desamparada no meio diplomático e também na
diplomacia presidencial, não só no governo atual como também nos anteriores.
Independente da escolha tomada, podemos dizer que o resultado seria ainda a
diminuição da autonomia da corporação diplomática com relação à gestão dos assuntos
ligados à integração. A diferença estaria essencialmente no tempo de duração em manter o
que parte da bibliografia sobre política externa chama de "autonomia relativa do Itamaraty".
O Mercosul como um processo que privilegia a expansão, por outro lado, também
permite a conjunção das expectativas do corpo diplomático e da diplomacia presidencial. A
principal diferença é que no caso desta última a aposta é de conciliar a expansão com os
objetivos de aprofundamento, como foi visto das ações e discursos presidenciais
principalmente a partir de 2005.
Esse desafio parece por demais ambicioso, diante de instituições frágeis, crise de
expectativas, acúmulo de demandas através dos anos e, também, pelo aumento da
complexidade dos atores em interação. Esse quadro talvez explique a construção discursiva
apresentada pelo Ministro Celso Amorim, principalmente a partir de meados de 2006, no
sentido de qualificar a integração do Mercosul como uma integração de toda a América do Sul
e que não esteja centrada nas burocracias, mas nos "povos". O significado disso ainda não está
claro, mas demonstra um quadro no qual a reconhecida previsibilidade da política externa
brasileira perde sentido, diante das mudanças nas condições em que se assentava a sua
tradicional continuidade.
Em resumo, vimos que o modelo brasileiro se confunde, em grande medida, com o
modelo real de Mercosul que vem sendo construído através dos anos. Entretanto, é importante
ressaltar que ao compararmos essa arquitetura de integração com as conseqüências gerais que
os processos de integração constantemente lidam, expostos no capítulo 4 deste texto,
concluímos que a crise institucional do Mercosul, além de ser expressão do próprio limite do
modelo brasileiro, também pode ser explicada pela desconexão entre grande parte dos
elementos do modelo e o atendimento das necessidades básicas para a formação e
consolidação de blocos regionais.
O aprofundamento, enquanto pressuposto da integração, indica as necessidades de se
194
lidar com as assimetrias regionais, financiar a integração e gerenciar o crescimento das
relações de interdependência, e não encontrou apoio em um modelo que se orienta pela
limitação da construção institucional, por mecanismos de solução de conflitos baseados na
ação diplomática e pela ausência de instrumentos comunitários de redução dos impactos.
Outro aspecto que reflete esse descompasso é a conseqüência de que com o passar do
tempo, o aprofundamento da integração exige a adoção de elementos de supranacionalidade,
resultando em crescimento institucional e até na necessidade de criar formas de evitar o
tendencial déficit democrático. Neste caso, vemos que alguns elementos do modelo não
colaboram nesse sentido, como a manutenção da estrutura institucional intergovernamental, a
idéia de regionalismo aberto, a estratégia de priorizar a integração dos assuntos menos
polêmicos e a baixa participação e inclusão de novos atores domésticos.
Quanto ao atendimento das principais elites e à manutenção das expectativas no
sentido de maior integração, isto foi parcialmente cumprido, principalmente pela habilidade
diplomática brasileira na gestão das sucessivas crises. Outro fator que favorece esse aspecto é
a inexistência de sentimentos contrários à integração latino-americana e com relação ao caso
específico do Mercosul, o que inclusive se verificou em recentes pesquisas sobre a opinião
dos públicos de massa, sendo que o sentimento anti-americano parece ajudar nesse sentido.
Se grande parte dos setores brasileiros não tem muito a reclamar do ponto de vista
dos resultados comerciais obtidos, o mesmo não pode ser dito naqueles menos competitivos
presentes na economia argentina e também em amplos setores da economia paraguaia e
uruguaia. A idéia de um regionalismo aberto, que busca sua justificação em uma integração
baseada na construção de uma união aduaneira com poucos mecanismos de redução das
assimetrias, teve seus momentos de glória, até pelo menos 1998, mas desde 1999 verificou-se
o prolongamento de uma situação de crise institucional e de expectativas, o que desafia a
prioridade dada à gestão diplomática da integração.
A inexistência de um Estado como principal pagador, ou paymaster, é outro fator que
não encontra respaldo nos elementos que apontam para a centralidade dos governos, na
vontade política concentrada na disposição presidencial e na diplomacia com formuladora do
processo. Isso porque a idéia deste paymaster refere-se ao pagamento, não só financeiro, mas
também político par parte do principal Estado do bloco, aceitando as disciplinas comunitárias
e facilitando a transferência de funções governamentais nacionais para as instituições
regionais.
Por último temos que a gestão da interdependência no arranjo institucional criado foi
195
prejudicada pela preferência em expandir o bloco e evitar o aprofundamento. A expansão
combinada com o baixo comprometimento governamental, no sentido de trabalhar as
assimetrias existentes, levou a uma integração que não pode ser muito ambiciosa quanto ao
seu grau de aprofundamento. Ao mesmo tempo, o limite dado por uma união aduaneira que
não se consolida e as dificuldades inerentes na gestão das novas demandas oriundas desta
situação, podem tornar a integração pouco atraente para os governos e importantes setores
domésticos envolvidos, criando uma situação de impasse que levaria ao fortalecimento de
forças desintegradoras, que por sinal parece ser o estágio atual do Mercosul.
Trata-se, portanto, de uma situação limite onde a superação do modelo implica no
enfrentamento de diversos obstáculos, mas a manutenção do mesmo sofre de problemas
similares. Não se trata de um ponto sem volta, mas não está claro para os diversos atores
envolvidos quais os custos envolvidos na decisão de avançar, estagnar ou retroceder.
7.2. Comprovação de Hipóteses
7.2.1. Hipótese 1
A primeira hipótese, que é a principal, partia do pressuposto de que existindo um
padrão de comportamento externo brasileiro, baseado na busca da autonomia enquanto
princípio fundamental e do desenvolvimento enquanto objetivo central, e havendo um padrão
de comportamento governamental brasileiro no Mercosul, baseado na defesa constante da
intergovernamentalidade enquanto princípio fundamental e da expansão enquanto objetivo
maior, então a busca de autonomia no plano do Mercosul se traduziria na tentativa de manter
a intergovernamentalidade enquanto característica fundante da arquitetura institucional no
Mercosul. No caso dos objetivos de desenvolvimento, estes estariam mais ligados à expansão,
ou seja, esta posição revelaria a escolha de que a ampliação no número de participantes
poderia prover melhores condições de desenvolvimento nacional do que o aprofundamento do
bloco e, portanto, uma conseqüente diminuição no ritmo da expansão.
Nesta pesquisa levantamos a existência de princípios que ajudam a política externa a
manter uma coerência, legitimidade e, o mais importante, continuidade. Em geral, esses
princípios são declarados e fazem parte da estrutura principal da construção narrativa da
política externa, orientando ações e justificando escolhas governamentais.
Autonomia e o Princípio da Intergovernamentalidade
Dando seqüência a esse esforço e baseados nos dados e fatos analisados, entendemos
196
ser possível extrair mais um princípio que não é declarado, mas que se mostrou relevante em
quase todos os momentos mais importantes da negociação no Mercosul quando a posição
brasileira era mais duramente cobrada. Trata-se do que chamamos de "princípio da
intergovernamentalidade". Esse princípio, que não aparece publicamente no discurso
diplomático, mas é perceptível nas escolhas realizadas sobre a integração, daria sentido ao
modelo e permite dizer que é mais um elemento que se alinha à idéia de buscar a continuidade
na política externa brasileira.
É pela defesa deste princípio que as posições brasileiras se estruturam ao longo do
tempo. A razão mais imediata disso seria o fato de que a autonomia, como vimos, pode ser
entendida como a ampliação das margens de ação ou de manobra brasileira no sistema
internacional. Se essa foi a forma tradicional de como a ação se orientou, então no caso do
Mercosul não poderia ser diferente.
A tendência seria de ampliar ou manter as possibilidades de escolha. Nosso intuito
não é concluir se isso é ruim ou bom para o governo brasileiro ou mesmo para o bloco.
Apenas buscamos entender as linhas gerais do comportamento brasileiro no Mercosul e
comparar com os desafios normalmente enfrentados nos processos de integração regional.
Como partimos do pressuposto de que os processos integrativos têm como tendência o seu
aprofundamento, e inclusive isso é enfatizado no próprio discurso diplomático brasileiro,
então verificamos diversos problemas de adaptação deste comportamento a algumas
necessidades fundamentais do processo.
A defesa da intergovernamentalidade assumiu ao longo dos anos a característica de
princípio a ser seguido pelos negociadores governamentais brasileiros e o discurso
diplomático é repleto de menções neste sentido, o que exigiu diversas formas de justificar
essa escolha. Como aponta essa declaração de diplomatas brasileiros
Uma forma da construção discursiva fazer isso é ligando a
intergovernamentalidade à realidade da separação das funções do
Estado e das funções do Governo. A supranacionalidade, mesmo da
União Européia, só se exerce na esfera do Governo, enquanto a esfera
do Estado se mantém em um sistema intergovernamental. No Mercosul,
introduzir um sistema supranacional, na esfera do Governo exigiria,
antes, separá-la da esfera do Estado, operação muito difícil em
ambiente político presidencialista. Quanto a introduzir a
supranacionalidade no processo de integração sem separar as duas
esferas, trata-se de alternativa que implicaria uma total união política,
197
que foge ao escopo do projeto do Mercosul. Simplificando:
supranacionalidade, só separando Estado e Governo. E separar Estado e
Governo, só em cultura parlamentarista (FLORÊNCIO e ARAÚJO,
1996: 76).
Esse tipo de argumento encontra respaldo em alguns estudos sobre o Mercosul
(MALAMUD, 2004). No entanto, verificamos que esse tipo de entendimento pode ter algum
valor explicativo, mas não ajuda a esclarecer a postura diplomática brasileira de evitar discutir
esse assunto mesmo quando é cobrada pelos outros governos-partes, que também são
presidencialistas. O mesmo ocorre na orientação constante de evitar o fortalecimento das
instituições intergovernamentais já existentes como no caso do mecanismo de solução de
controvérsias. Ainda sobre esse tipo de argumento verificamos que este não foi central no
discurso brasileiro, sendo mais uma forma de melhorar a justificação das escolhas realizadas.
Uma outra forma de tratar a intergovernamentalidade como a melhor escolha é
reduzindo a possibilidade real de adoção de alguma forma supranacional, como o trecho
abaixo demonstra. Neste tipo de argumentação a supranacionalidade pode até ser considerada,
mas em uma etapa longínqua:
Não há, hoje, perspectiva de instituições supranacionais no Mercosul. O
Protocolo de Ouro Preto deixa claro que os quatro países consideram
que as instituições intergovernamentais são as mais indicadas para
consolidar e desenvolver o processo de integração, como já ocorreu no
breve e intenso período transcorrido desde a assinatura do Tratado de
Assunção (FLORÊNCIO e ARAÚJO, 1996: 77).
Se não há condições reais para a sua implementação, e a diplomacia brasileira
procurou sempre fortalecer-se acentuando o caráter pragmático de suas escolhas, então a
intergovernamentalidade seria a forma correta de lidar com a integração regional, pois estaria
amparada na tradição pragmática, ou realista, que em diversos momentos históricos
caracterizou a atuação externa do Brasil e fortaleceu o próprio corpo diplomático na estrutura
governamental, como já visto no início deste trabalho.
O caráter intergovernamental das instituições do Mercosul é, talvez, a
principal garantia de que as decisões serão implementadas
internamente, já que uma decisão de um órgão intergovernamental é,
para efeitos internos em cada país, uma decisão do governo desse país.
Tem-se aqui um fator essencial de pragmatismo. (FLORÊNCIO e
198
ARAÚJO, 1996: 97).
Sem pretender entrar no mérito das vantagens e desvantagens do
sistema europeu ou deixar de reconhecer que o Mercosul ainda tem
carências importantes na área institucional, é importante destacar que,
sob uma ótica realista, o gradualismo e a flexibilidade que têm pautado
a construção jurídico-institucional do Mercosul nesses últimos quinze
anos revelaram-se fundamentais para a preservação e consolidação do
projeto de integração (...) (CARVALHO, 2006: 5).
Além de fortalecer a tradição pragmática da diplomacia brasileira, percebemos que o
principal argumento do discurso, que tem grande importância para o entendimento e
compreensão da primeira hipótese, está na justificativa de que existiria um grande consenso
nacional sobre a inviabilidade da supranacionalidade no Mercosul e de que o Itamaraty seria o
interlocutor principal de esclarecimento e de defesa do que poderia se tornar uma ameaça à
soberania nacional O trecho abaixo do ex-Ministro de Relações Exteriores Luiz Felipe
Lampreia, em plena crise do Mercosul, demonstra claramente esse tipo de argumento:
O outro tema que vem sendo discutido é a questão de uma autoridade
supranacional. Ou seja, da adoção, no âmbito do Mercosul, do modelo
europeu de uma comissão que tenha a capacidade de regular, de impor
regras e tomar iniciativas, em matéria de concorrência, de comércio, de
impostos, de meio ambiente, etc. Temos tido uma posição negativa no
tocante a essa idéia, mesmo porque o elemento de comparação europeu
não serve necessariamente para o nosso caso. (...) O Brasil não tem
razão nenhuma para abrir mão de sua autonomia. Não conheço
ninguém de responsabilidade, no Brasil, que pudesse aceitar a idéia de
que o governo brasileiro subscrevesse um tratado, no qual delegasse a
uma pessoa ou a um colegiado, por mais qualificado que fossem, a
capacidade de representar, negociar e impor normas para todos os
Estados-membros do Mercosul (...) Creio que seria absolutamente
inaceitável para o Congresso Nacional, para a opinião pública
brasileira, para a imprensa brasileira, que houvesse uma renuncia de
soberania brasileira dessa magnitude. Mesmo porque, na fase em que
estamos, que é uma fase de comércio, a questão de uma autoridade
superior, realmente, não se deveria sequer aventar (...) Mas, no
momento, a idéia de um super xerife, dentro do Mercosul, é uma idéia
que não se justifica. (LAMPREIA, 1999: 305).
199
Com relação a esta última linha de argumentação entendemos que a análise realizada
nos capítulos 5 e 6 permitiu demonstrar como essa orientação se deu no dia-a-dia da
integração no Mercosul. Mesmo assim, entendemos que é importante confrontar o argumento
acima citado com alguns dados que a pesquisa realizada por Souza (2002) apontou.
Esse autor realizou uma pesquisa com o que chamou de comunidade brasileira de
política externa, composta principalmente por autoridades governamentais, congressistas,
empresários, representantes de grupos de interesse, lideres de organizações não-
governamentais, acadêmicos e jornalistas. Com relação ao Mercosul os dados apontaram que
a grande maioria dos entrevistados, aproximadamente 91%, entende que a existência do bloco
é favorável ao Brasil, sendo que 52% destes entendem que a prioridade deve ser sua
ampliação no sentido de construir uma área de livre comércio no continente sul-americano,
enquanto 28% consideram que o seu aprofundamento deveria ocorrer com os quatro membros
originais, já que a pesquisa não incluiu a Venezuela por ter sido realizada em 2002.
No entanto, e esse é o dado mais interessante, aproximadamente 52% dos
entrevistados disseram que apoiavam a transformação do bloco em um mercado comum
dotado de instituições supranacionais e 43% entendiam que o correto seria consolidar a união
aduaneira. Somente 4% foi favorável a um retrocesso no nível da integração econômica,
manifestando a opção por voltar a ser apenas uma área de livre comércio.
Se fizermos uma análise mais apurada destes dados veremos que há certa contradição
quanto às opiniões de expandir para uma área de livre comércio sul-americana e, ao mesmo
tempo, em aprofundar o Mercosul do ponto de vista institucional e também econômico. Neste
sentido vale acrescentar que 17% apresentavam a idéia de que seria interessante seguir as
duas orientações simultaneamente, ou seja, aprofundamento na configuração original e
expansão para América do Sul em torno de uma área de livre-comércio, o que poderíamos
concluir de que neste entendimento haveria uma alternativa de manter a integração na
América do Sul em dois níveis.
Independente das relações entre as diferentes opiniões manifestadas, é possível
perceber que as posições brasileiras, principalmente do ponto de vista da diplomacia, perdem
sustentação nos interesses e visões presentes no nível das relações domésticas, o que reforça
nosso entendimento de que as condições nas quais a defesa do que chamamos de modelo
brasileiro de Mercosul se apoiava estão gradativamente se corroendo e, portanto, a aparente
inconsistência das escolhas brasileiras nos dias de hoje são mais resultado de uma mudança
estrutural na formação da política externa brasileira do que determinações de uma conjuntura
200
governamental. É a demonstração do alto nível de tensão sobre os fatores que
tradicionalmente garantiram a continuidade da atuação externa do Brasil, sendo que a
existência do Mercosul tem contribuído neste sentido.
Outro ponto importante sobre a defesa do princípio da intergovernamentalidade é de
que a pesquisa realizada indicou uma importante diferença de visões entre o corpo
diplomático e a diplomacia conduzida pelos presidentes. Apesar desta última evitar, em
grande parte do tempo, polêmicas sobre a aceitação de elementos supranacionais, verificamos
que à medida que o modelo brasileiro perde condições de sustentação a posição presidencial
assume a necessidade de repensar essa questão tendo em vista o impasse representado pela
crise no bloco que se prolonga desde 1999.
De um lado percebeu-se a investida presidencial em tratar essa questão nos últimos
meses, e por outro, o padrão diplomático em manter o veto a essa questão, mesmo que este
veto apresente-se na forma de silêncio sobre o assunto.
A fala do Presidente Lula da Silva na Reunião de Cúpula do Mercosul, realizada em
meados de 2006 na cidade argentina de Córdoba, permite reforçar essa percepção:
Esta nova etapa do Mercosul que estamos iniciando exigirá que suas
instituições estejam à altura de nossas ambições. É verdade que nossa
integração se dá por decisões essencialmente intergovernamentais, mas
não podemos e não devemos nos assustar com a perspectiva de
construirmos mecanismos supranacionais, como já fizemos no
Protocolo de Olivos
81
.
Desenvolvimento e Expansão
Já com relação à constante defesa da expansão do bloco e à tradicional busca por
desenvolvimento, características da atuação internacional do Brasil, a investigação realizada
sobre as posições brasileiras no Mercosul demonstrou que essa estratégia foi mantida através
dos anos. Ressaltamos a existência de uma preocupação brasileira em liderar o processo de
expansão do bloco.
O desenvolvimento nacional enquanto meta da política externa se apóia no Mercosul,
mas este apoio foi instrumentalizado no sentido de consolidar uma plataforma, mesmo que
não exclusivamente brasileira, para gerenciar a atuação nas grandes negociações comerciais
81 Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por ocasião do Diálogo Aberto dos
Presidentes na Cúpula do Mercosul. Córdoba, julho de 2006. Disponível em:
http://www.mercosul.gov.br/discurso acesso em 2/12/2006.
201
internacionais.
Tanto parte da bibliografia especializada que tenta compreender os principais
condicionantes do regionalismo e da estratégia brasileira de inserção internacional no pós
Guerra Fria (LESSA, 1998; MELLO, 2000 SENNES, 2002; VAZ, 2002; OLIVEIRA, 2005-b;
VIGEVANI e OLIVEIRA, 2004; VIGEVANI e MARIANO, 2005; MARIANO, 2005),
quanto o discurso diplomático estão repletos de menções a respeito da subordinação do bloco
aos objetivos brasileiros em busca de uma adaptação em melhores condições aos desafios do
processo de globalização.
Abaixo um trecho que demonstra a idéia de plataforma para a inserção brasileira:
A decisão de formar o Mercosul é, antes de mais nada, uma
configuração prática de que o Cone Sul latino-americano representa, de
fato, o tema singular de maior importância nas relações externas do
Brasil contemporâneo, a área efetivamente prioritária no imenso leque
de nossas prioridades externas. É no Cone Sul que estão concentrados
nossos principais interesses econômicos e políticos e onde devem
confluir nossos esforços de modernização e de inserção internacional,
com vistas a uma adaptação bem-sucedida às atuais condições da nova
ordem econômica mundial (BARBOSA, 1992:132 )
82
.
Conforme o tempo passa, verificamos que o discurso também acompanha a ampliação desta
plataforma para além do acordo sub-regional:
Outro elemento importante nas relações comerciais é o regionalismo.
Trata-se de tendência de comércio e política econômica cada vez mais
acentuada pelos Estados; dentro de um sistema multilateral de
comércio, a integração regional é vista como proteção contra decisões
unilaterais e disputas comerciais entre economias fortes. Na América do
Sul, o Mercosul foi o primeiro passo para a criação de um bloco
econômico regional. Num prazo mais longo, o Brasil deseja ir em frente
com a Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA). (BARBOSA,
1994: 103)
A partir do início da formação da união aduaneira em 1995 vimos que o discurso e a
prática diplomática buscaram gradativamente ligar a expansão às necessidades brasileiras.
82 Este texto foi escrito no mo mento que Rubens Barbosa era Chefe do Departamento de Integração Latino-
Americana do MRE, e representante brasileiro no Grupo Mercado Comum.
202
Com respeito à relação entre a diplomacia ministerial e a diplomacia presidencial, a expansão
parece ser o ponto em que existe maior correspondência. Já buscamos traçar essa coincidência
com relação ao governo Lula da Silva, mas essa percepção também foi respaldada no governo
anterior, de Fernando Henrique Cardoso.
O Mercosul por enquanto é o Cone Sul, mas acho que pode ser o pivô
da organização de toda a América do Sul. Acho que devemos fazer de
tudo para ter a Venezuela ao nosso lado, por exemplo (...) Não podemos
perder de vista esse olhar, porque, na minha cabeça, e isso eu digo
desde que assumi o Ministério das Relações Exteriores, o Mercosul é o
lo com base no qual vamos organizar o espaço da América do Sul.
Fernando Henrique Cardoso (1998 apud TOLEDO, 1998: 127)
Para finalizar as considerações sobre a primeira hipótese é importante atentarmos
para uma fala do Ministro Celso Amorim no final de 2006 que reforça nosso entendimento:
A integração da América do Sul é a prioridade principal. E não é a
prioridade deste governo nem a minha, mas do Itamaraty como um
todo, com base na realidade global. Temos que priorizar a América do
Sul, porque o mundo está se unindo em blocos, e as Américas não
formam um bloco. Há uma superpotência, outros países em
desenvolvimento e ainda nações muito pequenas e pobres. Mas a
América do Sul pode ser um bloco, que não homogêneo, que tem suas
turbulências, mas que tem condição de formar uma grande unidade com
capacidade de negociar. Por isso a entrada da Venezuela no Mercosul
foi tão importante. O Mercosul não é formado apenas pelo Cone Sul e
pode ser um bloco de países do Caribe até a Patagônia.
7.2.2. Hipótese 2
A segunda hipótese dependia da comprovação da primeira, sendo derivada desta, e
também partia do pressuposto de que os processos de integração regional, em geral, têm como
premissa o aprofundamento enquanto possibilidade. Se essas duas afirmações são verdadeiras,
então poderíamos concluir que o aprofundamento, no modelo brasileiro de Mercosul, estaria
limitado ao que o princípio da intergovernamentalidade permitiria realizar e à capacidade de
gestão da coesão de um processo em constante expansão.
A respeito disso, estabelecemos no início deste capítulo a inconsistência entre o
modelo brasileiro e os desafios reais conseqüentes dos processos de integração regional.
203
Vimos na análise histórica das posições brasileiras no Mercosul que este modelo acaba se
confundindo, em grande parte, com a própria arquitetura institucional desenvolvida ao longo
do tempo.
Verificou-se a incapacidade das instituições criadas em superar os efeitos resultantes
da existência de importantes assimetrias, sendo que sua conseqüência mais imediata foi a
transformação de conflitos comerciais em crise institucional e de expectativa, sem mencionar
que muitas vezes estas acabam produzindo crises diplomáticas. Vale ainda ressaltar que, em
diversos casos, conflitos localizados se generalizam, contribuindo com a criação de uma
percepção negativa quanto ao futuro do bloco, mesmo quando este apresenta altas taxas de
crescimento no comércio intra-regional.
Nesse sentido percebemos a insuficiência da estratégia de gestão diplomática da
integração e a limitação da vontade presidencial para manter a integração em funcionamento.
Muitas vezes atribui-se como causa dessa situação a própria existência dos conflitos
comerciais e de uma visão unilateral das autoridades envolvidas, sem avaliar e ponderar sobre
a real responsabilidade de uma prática negociadora que privilegiou a criação de instituições
limitadas pela centralidade do caráter intergovernamental, que em muitos aspectos se reduziu
ao fato de que o limite do aprofundamento seria o estabelecimento de uma união aduaneira.
A centralidade dos governos neste arcabouço institucional fez com que a inclusão de
novos atores domésticos e de outras agências da estrutura do próprio Estado nacional fosse
prejudicada, lembrando que esta característica é considerada como muito importante para a
promoção do aprofundamento do bloco.
Se por um lado, toda essa situação demonstrou a possibilidade real de utilizar a
plataforma regional como ponto a partir do qual o Brasil se projeta nas grandes negociações
comerciais internacionais, por outro evidenciou uma forte inconsistência entre as
possibilidades de manter a integração se aprofundando ao mesmo tempo em que se promove
sua expansão para toda a América do Sul.
O estudo da história do Mercosul e a bibliografia especializada no assunto apontaram
para a existência de um potencial importante de integração que não é realizado, e nossa
conclusão principal segue no sentido de atribuir como principal causa desse fracasso à rigidez
no trato institucional, que tem na intergovernamentalidade sua coluna vertebral.
Muito se falou sobre as virtudes da flexibilidade das instituições no Mercosul, mas
nossa pesquisa apontou que essa, em geral, foi utilizada como forma de descumprimento dos
acordos, gerando desconfiança entre os diferentes atores. A criação de instituições tem mais
204
relação com o estabelecimento de disciplinas do que com flexibilidade, sendo esta última um
instrumento importante para manter o baixo comprometimento governamental brasileiro em
pagar os custos inerentes ao papel esperado do principal membro do bloco.
7.2.3. Hipótese 3
Diante da comprovação das duas hipóteses anteriores buscamos formular uma
terceira que parte do pressuposto de que para haver o aprofundamento no Mercosul deveria
haver a superação do modelo atual de integração construído ao longo dos anos e, para isso,
também seria necessária a superação do que chamamos de modelo de Mercosul contido na
política externa brasileira.
Uma integração mais profunda, com instituições dotadas de elementos de
supranacionalidade e caminhando para a formação de um futuro mercado comum,
representaria necessariamente uma ruptura na linha de continuidade que caracteriza a atuação
externa do Brasil, o que ainda não aconteceu.
Demonstramos, principalmente através da revisão bibliográfica, que a singularidade
da política externa brasileira se fundamenta na existência de uma margem de variação
reduzida e significativamente contínua ao longo de várias décadas, o que resultou em um
importante grau de previsibilidade não só para os atores internacionais, como para o analista
de política de externa.
Um dos princípios básicos deste comportamento brasileiro é a manutenção ou
ampliação das margens de manobra do Estado no sistema internacional, a chamada
autonomia, e a procura por melhores condições internacionais para o crescimento econômico
nacional, compreendido na noção de desenvolvimento. Acrescentamos como um outro fator
importante desta singularidade, a existência de um corpo diplomático profissionalizado e com
uma histórica capacidade de formulação e de implementação da política externa.
Em vista dessa realidade, verificamos como esses fatores se apresentaram no caso da
gestão brasileira da integração no Mercosul. Resumidamente, vimos que tanto a autonomia se
fundamentava no princípio da intergovernamentalidade, quanto o desenvolvimento se
traduzia, em grande medida, na manutenção da posição expansionista brasileira.
Concluímos a partir disso que o modelo brasileiro de integração pressupunha uma
continuidade nos elementos essenciais da política externa, e as posições brasileiras verificadas
no processo negociador corroboraram essa conclusão. No entanto, conforme o governo
brasileiro conseguiu transformar a sua visão particular de Mercosul na arquitetura
205
institucional real do bloco, limitou a sua possibilidade de aprofundamento, como já foi
amplamente discutido.
Sendo assim, só uma ruptura no padrão brasileiro poderia abrir uma janela de
possibilidades para a integração se aprofundar, e até o momento não foi possível verificar
isso, apesar dos indícios de que as pressões neste sentido se acirrarão, como apontam as
próprias mudanças nas posturas presidenciais, principalmente a partir de 2005, que empurram
o corpo diplomático a se ajustar a essa nova realidade.
No entanto, até o momento, não podemos dizer que esse modelo foi rompido, pois
verificamos que muitas das novas medidas ainda não foram realizadas, como a incisiva
tentativa do Presidente Lula da Silva, a partir do final de 2006, em afirmar a necessidade de
rever a intergovernamentalidade do processo. A diplomacia ministerial mostrou-se reticente e
desconfiada com relação a esse tema, e não foi possível verificar medidas concretas, nem
discursivas, no sentido de implementá-la. Na primeira parte deste capítulo procurarmos
demonstrar que este e outros fatores, ligados direta e indiretamente ao aprofundamento da
integração, não se concretizaram.
Demonstramos que a política externa, em geral, e a gestão dos assuntos do Mercosul
pelos negociadores governamentais brasileiros, em particular, sofrem uma crescente
intensificação nas pressões advindas da ampliação do debate público sobre os temas externos,
do número de atores domésticos participantes, enfim, do aumento das forças que pressionam
no sentido contrário à manutenção da continuidade na formulação e na implementação da
agenda externa brasileira, conforme exposto no capítulo 3.
Se foi percebido um aumento da tensão sobre os elementos formadores da política
exterior, também se notou uma reação do corpo diplomático em gerenciar essa nova situação
procurando formas de amenizar os impactos, pelo menos no curto prazo. Parece-nos que essa
capacidade apresenta-se limitada na atualidade e, possivelmente, presenciaremos um maior
debate público sobre essas questões, expondo feridas internas e desconexões entre o discurso
e a prática diplomática.
Entretanto, só os acontecimentos futuros poderão nos dizer em que medida essa
tensão diminuirá ou se será a causa de uma ruptura nas linhas gerais da atuação brasileira,
sendo necessário dar atenção especial ao princípio de busca da autonomia. A idéia de
autonomia em um mundo cada vez mais interdependente se torna cada vez mais relativa,
principalmente quando se pensa na própria dinâmica da integração regional, que é um dos
fatores de grande amplificação dessa tendência.
206
207
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