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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA DE ENFERMAGEM
CURSO DE MESTRADO EM ENFERMAGEM
DILEMAS ÉTICOS NO MUNDO DO CUIDAR DE UM
SERVIÇO DE EMERGÊNCIA
NINON GIRARDON DA ROSA
2001
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2
NINON GIRARDON DA ROSA
DILEMAS ÉTICOS NO MUNDO DO CUIDAR DE UM
SERVIÇO DE EMERGÊNCIA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Enfermagem da Escola de Enfermagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito à obtenção do título de Mestre em
Enfermagem.
Orientadora: Prof ª. Dr ª. Maria da Graça Oliveira
Crossetti
Porto Alegre, abril de 2001
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof ª. Dr ª. Maria da Graça Oliveira Crossetti (orientadora)
_________________________
Prof . Dr. José Roberto Goldim
___________________________
Prof ª. Dr ª. Valéria Lerch Lunardi
___________________________________
Prof ª. Dr ª. Ana Lúcia de Lourenzi Bonilha
_____________________________
Prof ª. Dr ª. Liana Lautert (suplente)
4
AGRADECIMENTOS
À Professora Maria da Graça Oliveira Crossetti, orientadora desta pesquisa,
por apoiar as minhas idéias e compartilhar comigo o seu conhecimento e a sua amizade.
Aos Professores José Roberto Goldim, Valéria Lerch Lunardi, Ana Lúcia
de Lourenzi Bonilha e Liana Lautert, pelas valiosas sugestões para o
desenvolvimento desta pesquisa.
À Coordenação, professoras e funcionários do Programa de Pós-Graduação
da Escola de Enfermagem da UFRGS, por sua dedicação ao Curso de Mestrado em
Enfermagem.
Às colegas do Curso de Mestrado em Enfermagem, pelos momentos
conjuntos de descobertas e desafios.
Às chefias e aos profissionais do Serviço de Emergência do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, em especial às enfermeiras, pela acolhida e disponibilidade,
propiciando a realização desta pesquisa.
Às acadêmicas de enfermagem da Escola de Enfermagem da UFRGS
Carolina Giordani Silva e Thaís Tonetto Pacheco, pelo auxílio na transcrição das
entrevistas.
Às colegas do NECE (Núcleo de Estudos do Cuidado em Enfermagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul), por compartilhar o interesse de
pesquisar o cuidado na enfermagem.
À chefe de serviço, Professora Beatriz Regina Lara dos Santos e às
enfermeiras do Serviço de Enfermagem em Saúde Pública do Hospital de Clínicas
de Porto Alegre, pelo estímulo e coleguismo.
5
Aos colegas da Unidade de Marcação e Coleta de Exames do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, pelo apoio constante.
À diretora, Professora Beatriz Sebben Ojeda, professores, alunos e
funcionárias da Faculdade de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, pela compreensão e incentivo.
À bibliotecária Rosaria Geremia, da Biblioteca da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, por sua disponibilidade em me auxiliar.
Aos meus amigos, por compreenderem os momentos de minha ausência.
6
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À minha família, em especial aos meus pais Jorge e Orolinda da Rosa, que,
com o seu exemplo, me ensinaram a importância de estudar para crescer e me
mostraram o valor do respeito às pessoas.
Ao meu querido Antonio Carlos Grüber, que viveu comigo o dia-a-dia de ser
mestranda, me ajudando e me incentivando e que tem compartilhado comigo a arte de
viver a vida, com companheirismo e muito amor.
7
SUMÁRIO
RESUMO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................11
2 TRAJETÓRIA EM DIREÇÃO AO TEMA....................................................14
3 JUSTIFICATIVA DO ESTUDO......................................................................21
4 CONTEXTO TEÓRICO...................................................................................26
4.1 A ética no mundo do cuidado de enfermagem................................................26
5 REFERENCIAL METODOLÓGICO.............................................................41
5.1 Tipo de estudo...................................................................................................41
5.2 Descrição do campo..........................................................................................43
5.3 Seleção dos informantes...................................................................................45
5.4 Coleta das informações.....................................................................................46
5.4.1 Observação.........................................................................................................47
5.4.2 Entrevista............................................................................................................51
5.5 Aspectos éticos....................................................................................................52
5.6 Análise das informações....................................................................................53
6 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES...................................................................55
6.1 Acesso aos cuidados...........................................................................................55
6.2 Superlotação do ambiente do cuidado.............................................................68
6.2.1 Conforto..............................................................................................................71
6.2.2 Segurança.......................................................................................................... 80
6.2.3 Personalização dos cuidados........................................................................... 85
6.2.4 Privacidade........................................................................................................ 93
6.3 Conflitos nas relações interpessoais.................................................................99
8
6.3.1 Enfermeiras: encontros e desencontros...........................................................99
6.3.2 Enfermeiras e equipe médica compartilhando o cuidado........................... 104
6.3.3 Enfermeiras, pacientes e familiares vivenciando o cuidado........................108
6.4 Enfrentando a morte.......................................................................................115
7 REFLEXÕES SOBRE OS DILEMAS ÉTICOS NO SERVIÇO DE
EMERGÊNCIA E AS DECISÕES DAS ENFERMEIRAS.....................................123
ABSTRACT.................................................................................................................132
RESUMEN...................................................................................................................133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................134
ANEXOS.......................................................................................................................139
9
"Sendo enfermeira da emergência, eu me sinto
constantemente em confronto com dilemas. um
conflito entre o que eu aprendi durante o meu curso de
formação, as coisas que eu tenho como valores pessoais e
a realidade. Às vezes, nós não conseguimos realizar os
cuidados e dar a atenção que a gente acha importante.
Mas nós temos a gratificação de conseguir, dentro de um
contexto muito difícil, fazer pequenas coisas que ajudam e
minimizam os problemas das pessoas. Então é sempre um
conflito entre a frustração e a satisfação. O complicado é
suportar e elaborar esse sentimento." (Enfermeira 16)
10
RESUMO
Este estudo busca compreender como as enfermeiras tomam decisões em relação
aos dilemas éticos vivenciados no mundo do cuidar de um serviço de emergência. Trata-
se de uma pesquisa qualitativa, com abordagem do tipo etnoenfermagem (Leininger,
1985). A coleta de informações foi realizada através do modelo observação-
participação, que inclui quatro fases de observação, cada uma com um foco dominante,
e entrevistas semi-estruturadas. As informantes do estudo foram 13 enfermeiras do
serviço, sendo que 5 informantes gerais e 8 informantes-chave. A análise das
informações ocorreu ao longo do processo de coleta e dela emergiram quatro categorias,
que representam as tomadas de decisão frente aos dilemas vividos nesse ambiente de
cuidado. O acesso aos cuidados envolve dilemas relacionados à atividade da enfermeira
na área de triagem, ao decidir quem será atendido no serviço, em que ordem de
prioridade e quem será encaminhado para outros locais. A superlotação do ambiente do
cuidado refere-se aos dilemas decorrentes do excesso de pacientes no Serviço de
Emergência, revelados nas dificuldades em manter o conforto, a segurança, a
personalização dos cuidados e a privacidade dos pacientes. Os conflitos nas relações
interpessoais, referem-se aos dilemas no relacionamento das pessoas que convivem
nesse ambiente de cuidado: enfermeiras, equipe médica, pacientes e familiares. A última
categoria, enfrentando a morte, por si traduz dilema no contexto desse Serviço de
Emergência. A análise das informações obtidas nesta pesquisa permitiu compreender, à
luz do olhar da pesquisadora e da fundamentação teórica, o processo de tomada de
decisão das enfermeiras em relação aos dilemas éticos vivenciados nesse mundo do
cuidar.
Palavras-chave: tomada de decisão, dilemas éticos, cuidado de enfermagem, serviço de
emergência, etnoenfermagem.
11
1 INTRODUÇÃO
Partindo do princípio que o ato de cuidar envolve arte e ciência percebo que a
prática de enfermagem está bastante vinculada às questões éticas.
A natureza do trabalho de enfermagem envolve aspectos científicos e aspectos
de interação e relacionamento humano e as enfermeiras
1
tomam decisões que têm
impacto sobre o bem-estar dos pacientes. Essa tomada de decisão pode ser tranqüila ou
gerar inquietações em quem decide, causando um conflito moral, caracterizando, dessa
forma, um dilema ético.
Urdang (1995) define dilema como a situação em que uma escolha difícil tem
que ser feita. O dilema ético carrega consigo um problema de justificação da escolha,
gera reflexões sobre o que deve ser feito, o que é bom e correto, o que é responsável.
Tomar decisões envolve confrontar valores, normas, interesses ou princípios, o que não
necessariamente resulta em uma resposta satisfatória ou perfeita para um dilema ético
(Carper, 1978).
O mundo do cuidar de um serviço de emergência é um cenário extremamente
complexo, no que tange à tomada de decisões, tanto pelas circunstâncias inerentes ao
atendimento de emergência, quanto pelas situações originadas pela crise do sistema de
saúde, que tem provocado a superlotação, descaracterizando o objetivo original dos
serviços de emergência e influenciando as maneiras de cuidar. As circunstâncias
decorrentes das dificuldades enfrentadas pelas enfermeiras que desenvolvem suas
atividades nessa área, constituem fatores que desencadeiam dilemas éticos, visto que a
tomada de decisão influenciará diretamente na qualidade dos cuidados prestados.
1
Enfermeiras: termo utilizado no feminino pela predominância desse sexo na profissão.
12
No Serviço de Emergência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA),
local onde foi desenvolvido este estudo, o envolvimento dos profissionais com o
paciente inicia no momento da sua chegada, ocasião em que as enfermeiras fazem a
triagem
2
, a qual definirá a prioridade do atendimento. Essa relação continua durante
todo o tempo em que esses pacientes permanecem no serviço, período em que as
enfermeiras realizam o cuidado de enfermagem e decidem sobre o melhor uso dos
recursos humanos, físicos e materiais disponíveis.
O excesso de demanda faz com que as enfermeiras, constantemente, tomem
decisões, tais como, definir a prioridade do atendimento aos pacientes, decidir sobre a
ocupação dos leitos, sobre a privacidade ou sobre a instalação de um monitor cardíaco,
entre outros. Essa tomada de decisão é realizada dentro de uma realidade complexa,
com múltiplas relações. O ato de decidir é influenciado por inúmeras variáveis do
contexto social, onde as enfermeiras desenvolvem a sua prática. Assim, as decisões
estão sujeitas ao dinamismo dos eventos que ocorrem no ambiente de cuidado de um
serviço de emergência e determinam o comportamento dos profissionais diante de
situações de difícil solução.
A convivência com os dilemas éticos enfrentados no dia-a-dia da prestação de
cuidados, a partir de minhas experiências na função de enfermeira num serviço de
emergência, me motivou a aprofundar conhecimentos sobre esse tema. Participei,
durante vários anos de minha vida profissional, desse ambiente de incertezas e
imprevistos, onde a conjugação da competência técnica com a humanização é um
constante desafio. Nesse contexto, compreender o fenômeno dilemas éticos vivenciados
2
A triagem realizada pelos enfermeiros constitui-se de avaliação das condições de saúde do cliente e posterior
eleição das prioridades de atendimento, segundo os conceitos de emergência técnica e emergência do paciente
(Magalhães et al., 1989).
13
por enfermeiras de um serviço de emergência pode ser um meio de aproximação com a
perspectiva humanista do cuidar.
Para conduzir as etapas deste estudo, escolhi uma abordagem qualitativa, pois o
objetivo era conhecer a realidade das enfermeiras que experienciam a tomada de decisão
diante de dilemas éticos, no mundo do cuidar de um serviço de emergência. Desenvolvi
uma pesquisa do tipo etnoenfermagem, para entender a visão de mundo de um grupo de
profissionais dentro do seu ambiente. Esse método foi desenvolvido nos anos 60 e desde
então tem sido usado para estudar fenômenos de enfermagem sob uma perspectiva
cultural (Leininger, 1985).
Através da observação-participação e de entrevistas, participei do mundo dos
informantes enfermeiras de um serviço de emergência no intuito de apreender a
visão de mundo, compreender os significados que emergiam do contexto e as atitudes
do cotidiano profissional que influenciavam as decisões (Leininger, 1985).
Para compreender esse processo, utilizei a análise qualitativa proposta na
etnoenfermagem, que se desenvolveu ao longo de toda a coleta de informações,
procurando desvendar os comportamentos que podiam responder a questão de pesquisa:
De que modo as enfermeiras tomam decisões acerca dos dilemas éticos vivenciados no
mundo do cuidar de um de serviço de emergência?
14
2 TRAJETÓRIA EM DIREÇÃO AO TEMA
Em agosto de 1987, comecei a trabalhar no Serviço de Emergência do HCPA.
Fiquei muito feliz em poder trabalhar num hospital universitário, que possuía infra-
estrutura e recursos, no qual havia realizado a maioria dos estágios curriculares e
alguns voluntários, no período da graduação.
O Serviço de Emergência do HCPA estava iniciando suas atividades e toda a
equipe de profissionais estava envolvida na montagem da estrutura, das rotinas e na
construção de uma identidade de grupo. Aprendíamos uns com os outros, a partir da
relação cotidiana entre os profissionais e destes com os pacientes.
O cuidado de enfermagem era norteado por uma metodologia científica, o
processo de enfermagem, baseado na Teoria das Necessidades Básicas (Horta, 1979),
que preconiza que estar com saúde é estar em equilíbrio dinâmico no tempo e no
espaço. Portanto, o cuidado era prestado seguindo uma dinâmica sistematizada de
assistência, com o objetivo de recuperar os desequilíbrios e atender as necessidades
básicas dos pacientes. Essa forma de trabalho foi importante para a minha prática
profissional à medida em que organizava o meu pensamento, as minhas decisões e os
registros dessas ações.
Neste contexto, havia um grande interesse de minha parte em dominar técnicas,
equipamentos e conhecer patologias. E, num primeiro momento, foi assim que as coisas
transcorreram. Eu mantinha uma postura de reprodução do modelo biomédico
3
,
fomentado durante a minha formação em enfermagem. Essa formação foi importante
3
O modelo biomédico surgiu a partir da influência do paradigma cartesiano no pensamento médico e constitui o
alicerce conceitual da medicina científica. Neste enfoque, o corpo humano é considerado uma máquina e analisado
em termos de suas peças. A doença é vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos. O papel dos
médicos seria uma intervenção física ou química, para consertar o mecanismo enguiçado (Capra, 1982).
15
para que eu pudesse prestar assistência aos pacientes, ao longo desses anos, pois creio
que a enfermeira necessita de um aporte de conhecimentos que permita a sua integração
ao mercado de trabalho. Provavelmente, é por esse caminho que se inicia a vida
profissional, especialmente o de uma enfermeira de emergência, principalmente porque
é necessário desenvolver rapidamente a capacidade de avaliação clínica e de tomada de
decisão.
A dinâmica inicial do trabalho nesse serviço, apesar de voltada para um modelo
clínico de assistência, com ações girando em torno do diagnóstico e da terapêutica
médica, não impedia que houvesse uma relação mais próxima com os pacientes,
incluindo informações constantes, orientações específicas, atendimento de necessidades
individuais, enfim, um cuidado personalizado. Porém, alguns fatores desencadearam o
aumento progressivo da procura ao serviço, e a superlotação constante gerou uma série
de dificuldades a serem enfrentadas pelos profissionais.
Assim, trabalhando num serviço de emergência nesta última década, senti o
impacto da crise do Sistema Único de Saúde (SUS), pois estes serviços tornaram-se a
porta de entrada do sistema, gerando aumento desenfreado da demanda e,
conseqüentemente, a massificação do atendimento.
Essa situação relaciona-se com a evolução da universalização do acesso aos
cuidados de saúde, na década de 70, a partir dos resultados da Conferência de Alma Ata,
os quais desencadearam o Programa de Ações Integradas de Saúde, o Sistema Único e
Descentralizado de Saúde, precursor do SUS e que pretendia a universalidade das
ações de saúde (Castelar, 1995).
No início dos anos 80, dentro dessa nova perspectiva, o HCPA sofreu
modificações na sua forma de atendimento, passando a oferecer assistência para todos.
16
Nesse período, algumas transformações políticas e legais ocorreram no cenário
nacional, entre as quais o Movimento da Reforma Sanitária que incluiu na Constituição
Federal de 1988 e consolidou, no âmbito legal, o direito universal à saúde. Entretanto, a
rede básica de assistência à saúde pública não conseguia absorver as necessidades da
demanda e as emergências dos hospitais públicos transformaram-se na principal
possibilidade de acesso aos serviços de saúde. O Serviço de Emergência do HCPA,
além de acolher os pacientes graves, seu objetivo primeiro, também começou a arcar
com o atendimento àqueles que não conseguiam consulta médica na rede ambulatorial,
com procedimentos ambulatoriais em pacientes com doença crônica, com a assistência
aos pacientes que aguardavam a liberação de leitos de internação, ocupando as vagas de
suas salas de observação, entre outros. Essa população provinha de Porto Alegre,
municípios da região metropolitana e de cidades distantes que optaram pela
"ambulancioterapia"
4
, forma adotada para resolver ou repassar para os grandes centros,
os problemas de saúde da sua população.
Na tentativa de sobreviver a modificações tão profundas, alguns arranjos
internos começaram a ser realizados no Serviço de Emergência do HCPA: reformas da
área física, aumento de recursos humanos e materiais, aumento do número de leitos de
observação e o aperfeiçoamento do suporte tecnológico e da rede de apoio.
Todas essas iniciativas, apesar de movimentarem apenas uma micro-estrutura,
foram importantes para tentar manter a qualidade dos cuidados prestados e preconizados
por uma instituição universitária de referência nacional. Mas, ao meu ver, uma era
bastante complexa e exigia constantes ajustes em sua dinâmica: a triagem dos pacientes.
4
Ambulancioterapia é um termo utilizado para denominar a prática de algumas cidades de utilizar ambulâncias para
remover, para grandes centros, as pessoas que necessitam de atendimento ou de internação hospitalar.
17
Ao longo do tempo, a equipe de médicos e de enfermeiras do Serviço de
Emergência do HCPA foi desenvolvendo formas de triagem, com sistemáticas de
classificação que dividiam os pacientes em grupos: o paciente grave (com acesso rápido
garantido), o paciente que precisava de uma consulta naquele dia ou consulta de pronto-
atendimento (a enfermeira avaliava e estabelecia a ordem de atendimento segundo
alguns critérios técnicos) e o paciente que necessitava de uma consulta ambulatorial, o
qual era encaminhado para marcar consulta ou aguardava atendimento por ordem de
chegada.
A criação dessa dinâmica possibilitou melhor organização da triagem, mas,
passado algum tempo, a demanda excessiva de pacientes desafiava qualquer forma de
organização. Foi criado, então, um pronto-atendimento, junto ao ambulatório do
hospital, para onde os casos que necessitavam de atendimento ambulatorial passaram a
ser encaminhados, desafogando o serviço das 8 às 20h, nos dias úteis. Além disso, na
tentativa de dar conta do aumento progressivo de pacientes, foi implantada uma
sistemática de agendamento no próprio serviço de emergência, que, para os
profissionais, significava oferecer mais uma alternativa de atendimento, mas para os
pacientes, muitas vezes era inadmissível aguardar para ser atendido num serviço de
emergência.
Através de uma pesquisa intitulada Emergência: fatores que levam a população
infantil a recorrer a este serviço (Paskulin; Rosa, 1992), realizada junto aos usuários do
Serviço de Emergência do HCPA, constatou-se que somente 8% de uma amostra de 347
crianças necessitava dos recursos de um serviço de emergência para resolver seus
problemas de saúde. Entre os motivos de procura ao serviço, estavam o hábito de
consultar na emergência e algumas dificuldades de atendimento nos diferentes postos de
18
saúde: a ausência de fichas em determinados horários, a ausência de pediatra e a falta de
materiais (otoscópio).
A partir de então, por muitos anos, realizou-se um trabalho de conscientização
junto aos usuários do serviço, esclarecendo as situações em que um serviço de
emergência deveria ser procurado. Porém, trabalhar com a falta de conhecimento da
população não era suficiente, enquanto existissem os problemas que limitavam o acesso
à rede básica de assistência.
O problema da demanda excessiva mobilizou a equipe de profissionais do
Serviço de Emergência do HCPA por muito tempo e várias tentativas foram feitas para
reduzir o fluxo de pacientes. Porém, a situação tornou-se cada vez mais complexa. O
número de pessoas em situação crítica de saúde também começou a crescer, impedindo
qualquer tipo de encaminhamento dos pacientes para outras instituições, extrapolando a
capacidade física das salas de observação, cujos pacientes, com freqüência, eram
acomodados em macas e cadeiras pelos corredores, à espera da liberação de leito nas
unidades de internação. Inúmeras vezes permaneciam 30 pessoas na sala de observação
de adultos, que possui 13 leitos, ou 25 crianças na sala de observação pediátrica, que
comporta 8 pacientes.
Diante desse cenário, os profissionais que trabalhavam na emergência
começaram a enfrentar um contínuo estado de crise, pois as iniciativas nunca eram
suficientes para resolver o problema da superlotação, gerando um estresse permanente e
um sentimento de impotência. Além disso, as características do atendimento mudaram,
pois havia necessidade de equacionar o tempo disponível dos profissionais e os recursos
materiais existentes, entre muitos pacientes.
19
Os pacientes, por sua vez, exceto em alguns casos isolados, ficavam muito
satisfeitos por conseguir atendimento, realizar exames, ter a sua doença diagnosticada,
receber medicação e alimentação, mesmo que tivessem esperado rias horas, pois não
era incomum o fato de vários deles terem percorrido outros serviços antes de chegar
nessa emergência. Além disso, presenciavam as dificuldades desse ambiente e
constatavam que não havia alternativa para os profissionais que não fosse a de trabalhar
com as prioridades. Porém, sempre me chamou a atenção a passividade das pessoas que,
dependentes de um sistema de saúde que lhes permitia poucas opções, permaneciam
aguardando a sua vez de receber alguma coisa que, muitas vezes, não sabiam bem o que
era.
Essa situação me inquietava, pois a fragilização dos pacientes reforçava a
responsabilidade dos profissionais em tomar decisões, principalmente num contexto
onde existiam demandas próprias de atendimento que exigiam rapidez, determinação
eficiência e eficácia. Se, por um lado, esse poder de decisão dos profissionais agilizava
a dinâmica do atendimento, por outro gerava muitos conflitos, pois havia dificuldade em
estabelecer critérios de justiça, durante a prestação de cuidados, num ambiente de
carências e superlotação. Eram muitas variáveis a considerar, pois a decisão passava
pelos princípios e valores de quem estava decidindo e pelas circunstâncias do momento.
Diante disso, observava-se que a incerteza presente na tomada de decisão causava
dúvidas sobre a adequação daquela escolha.
Como cuidar adequadamente numa situação dessas? É possível agir em
desacordo com nossos valores pessoais ou profissionais? Enquanto enfermeira
assistencial, que decidia e gerenciava o cuidado prestado, esses eram dilemas éticos que
carregava comigo diariamente. Trabalhava num hospital de referência, com tecnologia
20
de ponta e especialistas extremamente qualificados, o que nos faz pensar, num primeiro
momento, que é o suficiente para o atendimento de emergência. Porém, além da
competência técnica e de recursos tecnológicos de última geração, o cuidado
compreende respeito à vida humana e princípios de cidadania expressos nas relações
humanas e sociais. Nesse sentido, que se reconhecer o valor da tecnologia e da
competência técnica, associadas a um cuidado que valoriza a interação humana, as
diferenças individuais, a solidariedade, o conforto, a privacidade. E é essa combinação
que está cada vez mais difícil de ser mantida no contexto das unidades de emergência,
desencadeando um desconforto moral nas enfermeiras que ali atuam e precisam, de
alguma forma, resolver os dilemas éticos presentes no cotidiano de sua prática.
21
3 JUSTIFICATIVA DO ESTUDO
A convivência diária com dilemas éticos, durante o período em que trabalhei
num serviço de emergência, despertou o meu interesse em aprofundar conhecimentos
relacionados a este tema.
Nesta área, as tomadas de decisões ocorrem a todo momento. Nesse sentido, a
dimensão ética do cuidado adquire fundamental importância, pois decidir em
circunstâncias difíceis torna-se uma prática comum.
Existem diversas situações que fazem parte do cotidiano das enfermeiras de um
serviço de emergência, que provocam reflexões sobre a adequação de suas ações. Tomar
decisões sempre é uma questão complexa, à medida em que envolve o paciente, a sua
família, as normas e os recursos da instituição, a competência técnica e os valores dos
envolvidos no cuidado. As enfermeiras, constantemente, necessitam administrar
conflitos, pois, com freqüência, mais de uma abordagem é possível, existindo dúvidas
em relação a cada escolha.
Um aspecto que gera dificuldades na assistência de emergência é o
estabelecimento de acesso aos cuidados. Quando existem critérios tecnicamente
definidos para a realização do atendimento, a tomada de decisão é mais tranqüila, por
exemplo, o não-atendimento das especialidades oftalmologia, otorrinolaringologia,
traumatologia e neurocirurgia pelo Serviço de Emergência do HCPA. Nesses casos, os
pacientes são encaminhados para serviços de referência na cidade ou se direcionam
para os locais que fazem este tipo de atendimento, visto que a informação sobre esses
não-atendimentos já circula bastante tempo entre a população. O problema surge nos
casos em que a especialidade médica, contemplada nos critérios de atendimento
22
(pediatria, clínica médica, cirurgia, ginecologia), não configuram situações graves, de
emergência. Nessas circunstâncias, o fator subjetividade está sempre presente na
avaliação de enfermagem. Muitas vezes, o paciente tem uma condição social precária,
não conseguiu ser atendido em outros locais, pode não correr risco de vida, mas se não
iniciar logo um tratamento tem chance de vir a ter uma complicação importante no seu
estado de saúde. Esse exemplo é uma das tantas situações que poderiam ilustrar o
cenário das triagens. As enfermeiras, nesse contexto, estão diretamente envolvidas nesse
ato de decidir quem será atendido em primeiro lugar, ação que se associa a outros
critérios: a solidariedade e o respeito à vida, pois, no cotidiano do atendimento nos
serviços de emergência, conjuga-se a gravidade dos eventos com uma complexa rede de
fenômenos sociais que convergem para esse setor. Percebe-se um desvio dos reais
objetivos da área de triagem de uma unidade de emergência e seus propósitos assumem
dimensões imprevistas.
Alguns membros da equipe de profissionais do serviço entendem que aqueles
pacientes que passam pela primeira triagem, realizada pelo pessoal administrativo, e
chegam até a enfermeira ou até o médico, devem ter, pelo menos, uma consulta médica,
visto que o primeiro contato que se estabelece significa uma forma de atendimento.
Isso significa que existe uma resistência entre as enfermeiras em "mandar o paciente
embora", e que, além da preocupação com a sua saúde, há, também, um critério de
preservação profissional, visto que, ao longo dos 13 anos de funcionamento do serviço
ocorreram inúmeros atritos entre profissionais e pacientes ou familiares, os quais,
muitas vezes, eram incentivados pela imprensa a fazer ocorrências policiais, gerando,
até, processos judiciais. Esse é outro aspecto delicado a se destacar, pois estas situações
levam a um esvaziamento no relacionamento interpessoal tão importante no processo
23
terapêutico. Skaba (1997) constata algumas contradições na dinâmica de um serviço de
emergência, onde os mesmos profissionais vítimas da violência social
reproduzem, de alguma forma, essa violência. Essa é a forma de sobrevivência
encontrada pelos profissionais e pelos clientes de um sistema de saúde que tem os
serviços de emergência como o principal acesso aos serviços de saúde e responsável por
organizar o fluxo da demanda.
O excesso de pacientes é um fator que tem gerado uma desestruturação do
cuidado de enfermagem na emergência. Além de reforçar a impessoalidade no
atendimento, em função do tempo reduzido dedicado a cada paciente e do trabalho
centrado sobre atividades rotineiras, dificulta a administração de recursos humanos,
físicos e materiais.
O quadro de pessoal do Serviço de Emergência do HCPA aumentou ao longo
dos anos, no intuito de adaptar-se às novas exigências impostas pela forma em que o
sistema de atenção à saúde está organizado. Apesar disso, a instituição nunca conseguiu
contemplar as necessidades reais. Pelo fato de ser um hospital público, vinculado ao
Ministério de Educação e Cultura, existe a necessidade de adequar-se às políticas de
recursos humanos determinadas pelo gestor. A alternativa encontrada foi a de cobrir as
deficiências com a realização de horas extras por funcionários que, freqüentemente, ao
dobrarem sua jornada de trabalho, trabalham cansados, o que, certamente, influencia a
forma de cuidar. Além disso, num serviço de emergência, habitualmente o contato
anterior com o paciente inexiste, a história prévia é desconhecida e o nível de ansiedade
associado à própria situação dificulta uma relação mais próxima.
Em relação à área física, pode-se dizer que, dentro das condições atuais de
atendimento, o espaço tornou-se muito reduzido. Um box planejado para ter um
24
paciente abriga dois ou três. Esta é uma forma improvisada de se atender mais
pacientes, porém, a falta de limites gera dificuldades para manter-se a privacidade do
paciente e de seu familiar.
No tocante aos recursos materiais, os equipamentos têm que ser revezados,
dando-se prioridade sempre aos pacientes mais graves. Freqüentemente, existe a
necessidade de adaptar conexões da rede de oxigênio para estendê-la a mais pessoas ou
a de se eleger os pacientes que terão acesso a um monitor cardíaco. Diversas vezes
precisei escolher qual dos pacientes deitaria em uma maca, em detrimento de tantos
outros que permaneciam por vários dias sentados, aguardando um leito. Nessas
situações, também eram utilizados critérios técnicos na definição, incluindo gravidade
do caso, tempo de espera por um leito e estado geral do paciente. Porém, a escolha se
modificava conforme o profissional que realizava a avaliação das condições de saúde do
paciente, certamente em função da mobilização de valores pessoais que sensibilizam as
pessoas de modo diferente.
Diante desse cenário apresentado, pode-se observar que as enfermeiras de um
serviço de emergência enfrentam inúmeros dilemas no seu cotidiano. São situações de
conflito inerentes ao atendimento de emergência, associadas a um amplo universo de
dificuldades do sistema de saúde brasileiro que colocam esse serviço como o principal
ponto de referência para a população.
Na realidade em que estão inseridas, as enfermeiras de um serviço de
emergência constantemente tomam decisões. Existe um momento histórico, político e
social que justifica as suas ações e uma rede de inter-relações que faz com que o
serviço de emergência tenha peculiaridades, formando um grupo profissional, com
cultura, crenças e valores próprios que influenciam a forma de perceber e resolver os
25
seus dilemas éticos. Por isso, a importância da contextualização das decisões,
considerando-se as características locais e as vivências do grupo envolvido.
Na função de enfermeira do Serviço de Emergência do HCPA, vivi e presenciei
diversas situações de dilema ético, as quais me motivaram a retornar a esse ambiente.
Esse retorno propiciou-me momentos de reflexão junto às enfermeiras desse serviço,
possibilitando pensar sobre novas idéias para solucionar antigos problemas de
enfermagem e, talvez, influenciar a dinâmica existente para encontrar outras formas de
cuidar, onde o ser humano seja o centro das ações de cuidado. Acredito que, mesmo
num ambiente onde a ação clínica é fundamental e predominante, certamente existe
espaço para um cuidado humanizado.
Portanto, o objetivo de minha investigação foi o de compreender de que modo as
enfermeiras tomam decisões acerca dos dilemas éticos no mundo do cuidar de um
serviço de emergência.
26
4 CONTEXTO TEÓRICO
4.1 A ética no mundo do cuidado de enfermagem
Atualmente, vive-se um momento histórico em que o ser humano tenta construir
sua cidadania, visando uma sociedade mais humana e mais justa.
Na área da saúde, muito se tem feito para alcançar melhores condições de bem
viver. Podemos citar o desenvolvimento de conhecimentos e a rápida expansão
tecnológica que têm aumentado as alternativas de intervenções, gerando novas
oportunidades e constantes desafios na prestação de cuidados. Além disso, o
desenvolvimento de uma abordagem humanista junto aos pacientes, valorizando os
aspectos relacionais no processo terapêutico, principalmente na enfermagem.
Essas evoluções, ocorridas nas últimas cadas, constituem uma tendência ética,
se entendidas na concepção de Clotet (1993), que refere-se à ética como a realização ou
crescimento das pessoas em sociedade por meio da aquisição, integração e partilha de
valores.
O conceito de ética tem sido discutido ao longo do tempo, existindo vários
entendimentos sobre o seu significado.
Ética é uma palavra de origem grega, com duas raízes possíveis. A primeira
trata-se da palavra grega éthos, com e curto, que pode ser traduzida por costume e que
serviu de base para a tradução latina de moral. A segunda também se escreve éthos,
porém com e longo, que significa propriedade do caráter e que orienta a significação
atual que damos à palavra ética (Moore, 1975).
27
Segundo Vásquez (1992), no aspecto semântico, os termos ética e moral se
equivalem. Moral vem do latim mos ou mores, significando o conjunto de normas ou
regras de comportamento humano adquiridas por hábito. Ética vem do grego ethos, que
se refere ao modo de ser ou ao caráter conquistado pelo homem. Os dois termos
traduzem um modo de comportamento adquirido ou conquistado. E é esta disposição
não natural da maneira de ser do homem que lhe confere sua dimensão moral. Sendo
assim, seus atos são morais se forem considerados nas suas relações com os outros,
embora existam aspectos internos subjetivos, que motivam o comportamento do
indivíduo.
Vásquez (1992) refere, também, que apesar da identidade etimológica entre
esses dois termos, a ética e a moral podem adquirir sentidos diferentes. A ética, numa
perspectiva científica, é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em
sociedade. A moral, constituída por atos humanos que afetam outros indivíduos, grupos
sociais ou a sociedade em seu conjunto, é o objeto de estudo e investigação da ética.
Neves (1996) distingue ética e moral, respectivamente, como ciência dos
fundamentos ou dos princípios da ação e conjunto de normas que regulam a ação
humana.
A ética é a ciência da moral, de uma esfera do comportamento humano. Por isso,
adquire uma variação histórica nas diferentes sociedades. O caráter histórico da ética é
concebido como um aspecto mutável da realidade humana. É característica do
comportamento humano o estar-se fazendo ou autoproduzindo constantemente, tanto no
plano de sua existência material, quanto no de sua vida espiritual, incluída nesta, a
moral (Vásquez, 1992).
28
Valls (1994) ressalta que comportamentos eticamente adequados relacionam-se
com os costumes vigentes em cada época, ou seja, os costumes permanecem enquanto
puderem coagir moralmente ou socialmente. E não são apenas os costumes que variam,
mas os valores que os acompanham, as normas concretas e os ideais de uma sociedade
para outra.
Sendo assim, a ética vai adquirindo novos posicionamentos através da história e,
através das experiências humanas, vão sendo desenvolvidos novos critérios de
ajuizamento
5
ético (Fortes, 1998). O autor também refere que a ética contemporânea
possui vários enfoques, posturas e valores. Assim, a abordagem deve ser
interdisciplinar, com a colaboração e a interação da diversidade das ciências biológicas
e humanas. Não há fundamentação ética comum, mas existe respeito às diferenças
morais e uma tendência em ver o homem em sua globalidade, numa perspectiva
autonômica e humanista.
Toda a ciência do comportamento humano tem relação com a ética, pois o
comportamento moral do homem se manifesta em diferentes planos, e várias ciências
contribuem com a ética, estudando as relações e o comportamento dos homens em
sociedade. Algumas buscam esclarecer as condições internas, subjetivas do ato moral,
relacionadas às motivações e à estrutura do caráter e da personalidade do indivíduo.
Outras preocupam-se com o comportamento do homem como um ser social, com as
estruturas nas quais se integram as suas relações e com as formas de organização dos
indivíduos dentro delas. O comportamento assume um caráter social, à medida que os
indivíduos vivem em determinada sociedade, com uma moral efetiva que corresponde a
necessidades e exigências da vida social. Daí a importância de conhecer a relação entre
5
Ato ou efeito de formar juízo ou conceito, julgar, avaliar, ponderar (Ferreira, 1986).
29
a moral e as condições sociais concretas, evitando elevar ao plano do absoluto certos
princípios e certas normas (Vásquez, 1992).
As ciências biológicas também estão diretamente relacionadas com a ética. O
incremento das discussões éticas, nessa área, iniciou a partir do progresso
biotecnológico, na década de 50, e do movimento dos direitos humanos, nas décadas de
60 e 70 (Neves, 1996; Callahan, 1995).
Esses autores citados acima referem que a descoberta do DNA
6
(ácido
desoxirribonucléico) criou condições para um movimento de inovações tecnológicas
(transplantes, diagnóstico pré-natal e técnicas de reprodução, engenharia genética).
Porém, a utilização de meios exclusivamente técnicos criou situações inéditas para
pacientes, famílias e profissionais da área da saúde, os quais começaram a questionar o
alcance humanitário de alguns novos processos terapêuticos.
É nesse ambiente de grandes evoluções e sentimentos contraditórios que emerge
a bioética, um novo domínio da reflexão e da prática, que assume como objeto
específico as questões humanas, na sua dimensão ética. o despertar de uma nova
consciência de se ser, de um apurado sentido do humano, que se interroga pelo 'que
devo fazer?' face ao 'que posso fazer?' " (Neves, 1996, p. 8).
Segundo Callahan (1995), a bioética surgiu a partir de dilemas éticos decorrentes
do avanço científico-tecnológico. Atualmente, com uma visão mais ampla, a bioética
abrange todas as perspectivas que procuram entender o comportamento humano e seus
problemas morais na área das ciências da vida, à luz de valores humanos individuais e
coletivos.
6
O DNA é uma estrutura molecular capaz de armazenar informações genéticas e transmiti-las para as novas gerações
(Thompson; Mcinnes; Willard, 1991).
30
A fundamentação da bioética vem se desenvolvendo ao longo do tempo,
baseando-se em teorias éticas que contemplam uma variedade de abordagens para
orientar a ação frente ao confronto com problemas ou dilemas éticos. discussões
teóricas sobre a escolha entre ética de virtudes ou ética de deveres para a realização de
uma decisão moral. Seria mais importante ter um caráter virtuoso, disposto a fazer o
bem ou utilizar princípios morais que facilitassem a realização de uma escolha
prudente? (Callahan, op. cit.).
Vários autores têm estudado os diferentes modelos explicativos utilizados em
bioética, os quais foram desenvolvidos a partir de diferentes referenciais teóricos e suas
características são, aqui, descritas segundo Neves (1996) e Goldim (1999).
Um dos modelos de análise bioética mais divulgados é o principialista,
apresentado por Beauchamp e Childress (1994). O modelo de princípios pretende
fornecer uma referência prático-conceitual, a fim de orientar os profissionais da área da
saúde em algumas situações concretas, através de quatro princípios norteadores.
a) A autonomia refere-se ao respeito pela capacidade de escolha do ser humano,
segundo as suas crenças e os seus valores morais. A pessoa autônoma é aquela que tem
liberdade de pensamento, é livre de coações internas ou externas para escolher entre as
alternativas que lhe são apresentadas. b) A beneficência significa fazer o bem. Esse
princípio faz parte do núcleo central de várias modelos bioéticos, pois é concebido
como um aspecto da natureza humana que motiva o interesse em ajudar o outro. c) A
não-maleficência significa não fazer o mal intencionalmente, ou seja, há a obrigação
moral de não causar dano às pessoas. d) A justiça corresponde à adequada distribuição
de bens e serviços, o direito das pessoas a um tratamento justo, eqüitativo e apropriado
às suas necessidades.
31
Os princípios beneficência e não-maleficência são a base filosófica da ética em
saúde e têm sido bastante usados na prática clínica. Proporcionaram aos profissionais
um vocabulário, categorias lógicas de percepções e sentimentos morais não
verbalizados anteriormente, e meios para resolver dilemas éticos, através do processo de
compreensão das razões para a tomada de decisão (Pessini; Barchifontaine, 1998). No
entanto, o principialismo tem sido criticado por aplicar os princípios de modo objetivo e
racional, com uma preocupação em julgar se a ação está certa ou errada. Existe uma
tendência à universalidade, que faz com que uma ação seja considerada certa, se outra
pessoa, em situação semelhante, também agir daquela forma. A imparcialidade também
é um critério considerado, ou seja, as decisões não devem ser influenciadas por
sentimentos ou relações interpessoais.
O principialismo teve grande destaque na década de 70 e até hoje é adotado.
Entretanto, na década de 90, nasceram várias perspectivas de abordagem bioética, as
quais consideram outras características do contexto na tomada de decisão moral.
O modelo libertário ou autonomista baseia-se na tradição político-filosófica do
liberalismo norte-americano e aposta no valor central da autonomia do indivíduo, tendo
como proposta sica a defesa dos direitos do indivíduo sobre o seu corpo. Justifica as
ações decorrentes da vontade livre do paciente, sendo este ponto vulnerável a críticas,
pela possibilidade de permitir a comercialização de órgãos e o estabelecimento de
contratos, em vida, para utilização pós-morte do corpo do indivíduo.
O modelo contemporâneo do direito natural também aborda a questão dos
direitos humanos, apoiado na existência de bens fundamentais, como o conhecimento, a
vida estética, a vida lúdica, a razão prática, a religiosidade e a amizade. Uma postura
32
ética é aquela que contribui para o desenvolvimento desses valores, que consideram o
homem na sua integralidade e na sua relação com a sociedade.
O modelo contratualista propõe uma nova perspectiva nas relações entre médico,
paciente e sociedade, rompendo com a tradição ocidental paternalista. O médico
mantém a responsabilidade pelas decisões técnicas, e o paciente decide de acordo com o
seu estilo de vida, seus valores morais e pessoais. O processo de tomada de decisão
deve ocorrer a partir da troca de informações e da negociação. Os críticos desse modelo
afirmam que ele revela desconhecimento da prática clínica.
O modelo personalista está enraizado na filosofia européia fenomenológica e
existencialista. Contribuiu com a discussão do papel das pessoas envolvidas no processo
de tomada de decisão, calcada na singularidade humana e no estabelecimento de um
processo de troca de informações para integrar o homem na sociedade.
O modelo contemporâneo do direito natural, assim como os modelos
contratualista e personalista, apesar de suas contribuições, têm como crítica principal a
inexistência de uma sustentação teórica para constituírem-se em um modelo explicativo
propriamente dito.
O modelo de casuística preconiza uma análise de caso a caso, examina as suas
características paradigmáticas e estabelece comparações e analogias com outros casos.
A casuística trouxe à discussão a importância da analogia e o julgamento prático. Os
princípios são considerados, mas não de modo absoluto. Esse modelo tem sido criticado
pela dificuldade em adequar os casos às diferentes culturas e aos diferentes períodos
históricos.
Reagindo à tendência individualista de alguns modelos, surge o modelo da
virtude, que propõe a virtude como um valor moral, uma disposição para fazer o bem.
33
Entre as principais virtudes humanas estão o amor, a prudência, a polidez, a coragem, a
justiça, a compaixão e a humildade. A maior crítica a esse modelo é o fato de ser muito
difícil desenvolver virtudes em pessoas com desenvolvimento psicológico-moral
avançado, como é o caso dos profissionais de saúde.
Seguindo essa tendência, evidencia-se o modelo do cuidado, chamado por
Gilligan (1982) de ética do cuidado, que preconiza a abordagem de dilemas éticos,
procurando soluções particulares para os problemas. Em contraste à ética orientada por
princípios, a ética do cuidado tem sido descrita como um processo situacional e
intuitivo, onde a questão central é examinada a partir de uma rede de inter-relações. O
cuidado implica mutualidade e reciprocidade nas relações, portanto não é unidirecional
e pretende atender aos valores dos indivíduos envolvidos. A autora contrapõe o valor do
cuidado, de expressão acentuadamente feminina, ao da justiça, de expressão mais
masculina, para caracterizar a existência das duas perspectivas. Entretanto, refere a
importância dos dois enfoques, que convergem para o mesmo fim. A ética do cuidado
tem sido criticada por direcionar o cuidado para o universo feminino e para a
enfermagem e também por não atender os problemas de responsabilidade social, por
causa de sua abordagem individualista, relativista e relacional.
Existem muitas formas de abordar as questões éticas, relacionadas às diferentes
visões de mundo e à evolução dos conhecimentos através dos tempos. Mas, por mais
que variem os enfoques filosóficos ou mesmo as condições históricas, Valls (1994)
refere que algumas noções, mesmo abstratas, permanecem firmes e consistentes na
ética. Uma delas é a distinção entre o bem e o mal. Agir eticamente é agir de acordo
com o bem, ainda que a definição de bem seja relativa.
34
Esse também é o entendimento de Sgreccia (1996), quando define vida ética
como tendência primária da pessoa humana para realizar o bem. Nessa perspectiva, a
ética não corresponde a uma qualificação externa das ações humanas, mas significa uma
exigência necessária da vida, presente em todas as ações do ser humano. Atos éticos
fazem parte de uma vida ética e partem de uma pessoa dotada de vontade, inteligência,
liberdade e responsabilidade.
Conforme Sgreccia (op. cit.), a vontade expressa a tendência do ato,
estabelecendo fins e itinerários para a ação, em cujo vértice está o conteúdo do bem. A
vontade, mesmo reprimida, aspira a um bem e permanece aberta à ação. A vontade
nasce das profundezas da vida humana, de um modo diferente da inteligência.
A inteligência, segundo o mesmo autor, segue um movimento intelectual e
incessante de conhecimento, numa ordem interpretativa da realidade, percebendo as
verdades e descobrindo o bem em seus momentos de intuição ou em seus momentos de
raciocínio. Por isso, o bem verdadeiro jamais pode estar separado da verdade. Uma ação
é qualificada moral a partir da coincidência entre verdade e bem. Uma ação é
moralmente válida e construtiva para o ser humano quando a vontade realiza com a
ação o que é realmente bom. Mas a vontade permanece livre, mesmo nessa
complexa relação com a inteligência ou capacidade mental de avaliação.
Sgreccia (1996) refere-se à liberdade como autodeterminação e representa a
dignidade humana. Mas não ato livre que não comporte responsabilidade moral.
Diante de uma escolha livre, a responsabilidade responde à consciência. Refere, ainda,
que a consciência é atitude de conhecimento e discernimento e tem por fim a avaliação
das ações morais. Portanto, o seu objeto de juízo é a ação humana, a qual é avaliada em
relação aos valores, aos princípios e às normas morais. A consciência representa o valor
35
ético de uma ação. É o lugar e o momento em que sobressai a conveniência ou não
conveniência de um ato, em relação ao quadro de referência moral próprio do sujeito.
Trata-se de um juízo da razão em relação à idéia de bem e de mal.
Não há, pois, como separar o ato humano livre do juízo ético e da
responsabilidade. A ação sobre alguma coisa ou em relação a alguém pode ser conforme
ou disforme, mas jamais será indiferente ou nula, seja em relação à pessoa que age ou
aos destinatários desse agir. Conscientes ou não, somos responsáveis por aquilo que
fazemos (Sgreccia, 1996).
Valls (1994) refere que a ética é uma ciência que se relaciona intimamente com
as questões da prática, da ação e não apenas com as do discurso. A ética se preocupa
com as formas humanas de resolver as contradições entre necessidade e possibilidade,
entre tempo e eternidade, entre o individual e o social, entre o econômico e o moral,
entre o corporal e o psíquico, entre o natural e o cultural, e entre a inteligência e a
vontade.
Vive-se numa sociedade pluralista, culturalmente diversa, o que resulta em
diferentes compreensões e interpretações dos princípios e valores éticos. Essa
diversidade possibilita diferentes posicionamentos morais, mesmo diante de situações
semelhantes, ou seja, não existe uma ética universal que contemple as inúmeras
perspectivas que guiam as decisões das pessoas. A ética tem recebido especial atenção
na sociedade contemporânea, sendo um campo de interesse para os filósofos, para os
profissionais da área da saúde e para os cidadãos em geral (Starzonski, 1998).
Na área da enfermagem, a noção de cuidado vem se expandindo desde a década
de 70. Neste período, enfermeiras americanas desencadearam um processo de
humanização do cuidado, contrapondo-se a despersonalização dos cuidados à saúde e ao
36
enfoque biológico que norteava as ações de enfermagem. Na realidade brasileira, este
movimento de aderência aos ideais do cuidado humano ganhou força na década de 80,
também influenciado pelos estudos de rias teoristas, que apontam o cuidar/cuidado
como a essência da enfermagem, incentivando uma abordagem qualitativa de cuidar
(Reich,1995; Waldow, 1998).
Leininger (1984) introduz a importância de identificar as diferenças e
similaridades nas diversas culturas para prover cuidados congruentes com as variadas
visões de mundo. Watson (1996), por sua vez, defende a idéia de que o cuidar/cuidado
deve ser praticado de modo transpessoal, numa perspectiva humanista, combinando
conhecimentos científicos com uma visão ampliada do mundo e habilidades de
pensamento crítico.
A expansão da perspectiva do cuidar implica promoção do desenvolvimento
moral, indispensável ao desempenho dos diferentes papéis das enfermeiras, visando
uma prática humanista, preconizada pelas teoristas de enfermagem, embora nem sempre
se refiram à ética de forma explícita.
Gastmans, Casterle e Schotsmans (1998) consideram a enfermagem uma prática
moral, pois ocorre a partir de uma relação de cuidado, envolvendo habilidades e
atitudes, com uma intenção moral de promover o que é bom para cada paciente. A
relação de cuidado caracteriza-se por uma relação ética.
As enfermeiras, muitas vezes, tomam decisões éticas que nem sempre são
percebidas como tal. Também não percebem os dilemas envolvidos nas situações que as
impedem de decidir de acordo com a sua convicção moral.
No ambiente das unidades de emergência esta situação é freqüente. Os
profissionais, diariamente, se deparam com alternativas de tratamento ou condução de
37
um caso que têm justificativa técnica, mas com algum questionamento moral ou social,
ocasionando, segundo Renner, Prati e Goldim (1999), um dilema ético.
Cuidar, em enfermagem, pressupõe uma perspectiva ética de ação, por isso
conflitos estarão presentes nos ambientes que desafiam a enfermagem como uma prática
moral, com um comportamento de cuidado que envolve uma relação afetiva e virtuosa,
além de um conhecimento específico e habilidades técnicas (Gastmans; Casterle;
Schotsmans, 1998).
A noção de cuidado contempla a interação, pois as enfermeiras desempenham
suas atividades num contexto de valores, constituído não pelas suas próprias visões,
mas pela perspectiva dos pacientes e seus familiares, da equipe de enfermagem, dos
médicos e dos administradores. Diante disso, observa-se que uma decisão ética também
assume um caráter coletivo, visto que conflitos e dilemas éticos são compartilhados no
cotidiano de um ambiente de cuidado. Pode-se dizer que a cultura desse ambiente é
resultante da inter-relação entre esses indivíduos.
O conceito de cultura tem sido estudado e abordado de diferentes formas ao
longo dos tempos, o qual expressa múltiplas faces e adquire diferentes enfoques nas
diversas áreas do conhecimento.
Monticelli (1994), ao discutir a importância do conceito de cultura na prática de
enfermagem, destaca o caráter plural desse conceito, trazendo a essência de alguns
enfoques existentes. Refere que na psicologia existe uma preocupação recente dos
profissionais em compreender as relações entre a cultura e o comportamento humano. A
filosofia aborda a cultura como algo inerente à inteligência humana, baseada na
acumulação histórica de experiências, que torna o homem capaz de transformar o
mundo e a si mesmo, num processo dinâmico de crescimento. Na educação, a cultura
38
envolve o papel ativo do homem como um ser da transformação e não da adaptação de
sua realidade. Para a antropologia, a cultura é aprendida e compartilhada, por isso
diferencia os agrupamentos humanos.
Nesse contexto, o conceito de cultura é abrangente e complexo, podendo
adquirir diferentes interpretações nas diversas disciplinas. Na enfermagem, os
pressupostos da antropologia têm sido os mais utilizados, desde que a enfermeira
americana Madeleine Leininger passou a usar, na década de 60, métodos antropológicos
de investigação para conhecer o modo de vida das pessoas em seu contexto
7
e, a partir
daí, ter subsídios para personalizar o cuidado ou prestar um cuidado cultural coerente.
Para Leininger (1995), a cultura refere-se aos valores, às crenças, às normas e
aos modos de vida de um grupo particular, os quais são aprendidos, compartilhados e
transmitidos, por isso guiam os pensamentos, as decisões e as ações, de modo
padronizado. As condutas e os objetivos variam de um grupo cultural para outro, em
função das diferentes formas de ver o mundo.
Partindo-se do conceito introduzido por Leininger (op. cit.), acredita-se, aqui,
que investigar o fenômeno dilemas éticos no mundo do cuidar de um serviço de
emergência, através de uma abordagem cultural, seja uma forma de participar do mundo
das informantes, para compreender de que modo esses profissionais desenvolvem suas
atividades em equipe e os cuidados em nível de emergência, sabendo-se que são ações
interdisciplinares, por isso a importância de considerar os fatores culturais envolvidos.
Para reforçar este pensamento, ressalta-se as idéias de Helman (1994), que
conceitua a cultura como um conjunto de princípios (implícitos e explícitos) herdados
7
O contexto refere-se à totalidade de um evento, situação ou experiência, que ocorre num ambiente físico, ecológico,
sócio-político e cultural e que dá significado às expressões humanas, às interpretações e às interações sociais
(Leininger, 1995).
39
pelos indivíduos enquanto membro de um grupo particular. O mesmo autor aponta,
ainda, a existência de subculturas profissionais tais como médicos, enfermeiros e outros,
formando um grupo à parte, com seus próprios conceitos e organização social,
adquirindo uma perspectiva de vida diferente daquela de quem está de fora deste
contexto. Todas as culturas possuem subgrupos, com uma experiência cultural que
exerce influência em muitos aspectos da vida das pessoas, incluindo percepções,
emoções, comportamentos, crenças e atitudes.
Uden et al
, citados por Barnitt (1998), em seus estudos sobre dilemas éticos,
encontrou algumas diferenças entre enfermeiras e médicos, quanto ao foco de suas
dificuldades no cuidado aos pacientes, as quais relacionou com o tipo de atividade
realizada e com a filosofia da profissão. Para as enfermeiras, os temas incluíam saúde,
qualidade de vida, experiências prévias, proximidade com o paciente e apoio entre os
colegas. Enquanto que para os médicos, o foco estava na doença, na preservação da
vida, no conhecimento científico, na distância do paciente e no existir sozinho.
Diante dessa ilustração, pode-se observar que existem especificidades entre as
subculturas profissionais, o que pode evidenciar diferenças na percepção e interpretação
dos dilemas éticos. Segundo Helman (1994), deve-se considerar que as culturas não são
homogêneas, e urge evitar generalizações acerca do comportamento das pessoas, pois
diferenças entre os membros de qualquer grupo humano podem ser tão marcantes
quanto aquelas existentes entre membros de diferentes grupos culturais. Por outro lado,
sem a percepção compartilhada do mundo, a coesão ou a continuidade de qualquer
grupo humano seria impossível (Helman, 1994; Warnock, 1985).
UDEN, G.; NORBERG, A.; LINDSETT, A.; MARHAUG, V. Ethical reasoning in nurses' and physicians'
stories about care episodes. Journal of Advanced Nursing, v. 17, p. 1028-1034, 1992.
40
Dentro do ambiente de cuidado, Leininger (1995) traduz esta situação através de
seus conceitos de universalidade e diversidade cultural, referindo que, dentro de um
mesmo contexto, os significados, os valores e os símbolos podem ser semelhantes ou
variáveis entre os membros de um mesmo grupo cultural.
A partir dessa visão, acredita-se que, no mundo do cuidar de um serviço de
emergência, a forma como as enfermeiras tomam as decisões em relação aos dilemas
éticos estão relacionadas com a forma como esse grupo se organiza, compartilha as
vivências e transmite as experiências. Existem fatores estruturais e organizacionais
inter-relacionados de uma subcultura (históricos, sociais, educacionais, tecnológicos,
político-legais, religiosos, econômicos), os quais influenciam o comportamento
humano, nos diferentes contextos ambientais (Leininger, 1995). Essa rede de inter-
relações justifica a existência de certas peculiaridades no serviço de emergência, que
possui um grupo cultural com crenças e valores próprios, tornando-se apropriada uma
abordagem cultural ao propósito de investigar a visão dos enfermeiros que vivenciam o
fenômeno dos dilemas éticos, em seu cotidiano profissional.
41
5 REFERENCIAL METODOLÓGICO
5.1 Tipo de estudo
Este estudo foi desenvolvido sob a perspectiva qualitativa de pesquisa, com uma
abordagem do tipo etnoenfermagem, segundo Leininger (1985).
A pesquisa qualitativa preocupa-se com o universo dos significados, motivos,
aspirações, atitudes, crenças e valores, correspondendo a um espaço profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos (Minayo; Deslandes; Cruz Neto,1994).
Segundo Polit e Hungler (1995), esse tipo de pesquisa considera que o
conhecimento sobre os indivíduos só é possível com a descrição da experiência humana,
tal como ela é vivida e definida pelos próprios atores sociais. Assim, a abordagem
qualitativa foi uma alternativa valiosa para entender a complexa dimensão do fenômeno
de enfermagem que busquei compreender: os dilemas éticos no contexto de um serviço
de emergência.
A etnoenfermagem é uma metodologia de pesquisa proposta por Leininger
(1985), baseada nos pressupostos da pesquisa etnográfica e adaptada para explicar os
fenômenos de enfermagem.
O termo ethno tem origem grega e refere-se à nação ou características de um
grupo, sendo o prefixo de alguns métodos de pesquisa utilizados por antropólogos, que
estudam as pessoas em diferentes lugares do mundo (Leininger, 1990).
Leininger (1985) define etnografia como um processo sistemático de
observação, registro, descrição e análise dos padrões específicos de uma cultura ou
subcultura, para entender o modo de vida das pessoas, em seu ambiente.
42
A etnoenfermagem tem sido conceituada, desenvolvida e usada como um
método de pesquisa que focaliza a documentação, a descrição e a explicação de
cuidados de enfermagem, a partir dos clientes, dos enfermeiros, das situações de
enfermagem e de saúde (Leininger, 1985).
O método etnográfico pretende obter, de forma ampla, os significados do
contexto, enquanto a etnoenfermagem enfoca o contexto de cuidado humano.
A escolha, pois, dessa metodologia possibilitou-me entrar no mundo das
enfermeiras de um serviço de emergência e obter a visão de mundo e os significados
que essas profissionais têm acerca dos dilemas éticos nesse mundo do cuidar.
Por se tratar de um foco específico de investigação, esta pesquisa caracterizou-se
como uma mini-etnoenfermagem, pois não era intenção da pesquisadora investigar
todas as dimensões do cuidado humano, o que caracterizaria uma maxi-etnoenfermagem
(Leininger, 1985; Wenger, 1985).
Leininger (1990) refere que os etnométodos são essenciais para entrar no mundo
de culturas específicas e descobrir fenômenos de enfermagem e de cuidados à saúde,
porque utilizam uma abordagem humanista para conhecer e entender as pessoas. Além
disso, é uma experiência de co-participação, onde pesquisador e informantes têm um
contato bastante próximo, desenvolvendo uma relação de confiança.
Na etnoenfermagem, o pesquisador deseja compreender a visão emic e a visão
etic do fenômeno em estudo. A dimensão emic corresponde ao conhecimento, cognições
e percepções internas sobre um fenômeno específico, ou seja, o conhecimento dos
informantes, o que eles dizem, como explicam os eventos ou interpretam o seu
significado e as modalidades de suas ações. A dimensão etic é a visão externa e
universal que explica o fenômeno, revelada a partir de observações ou outras fontes que
43
permitem a interpretação na dimensão teórica e na linguagem do pesquisador. O que o
pesquisador observa e experiencia é considerado nesse método (Leininger, 1985).
5.2 Descrição do campo
O presente estudo foi realizado no Serviço de Emergência do HCPA, local
escolhido em função de seu significado na vivência profissional da pesquisadora, que
foi enfermeira de 1987 (época em que foi inaugurado) a 1997. Outra questão
determinante foi a característica do atendimento, que proporciona uma riqueza de
situações relacionadas com dilemas éticos, aos quais estão submetidos os profissionais
que ali trabalham.
O HCPA é um hospital universitário, vinculado à Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Em função desse vínculo serve de campo de estágio para
médicos residentes, acadêmicos dos cursos de enfermagem e de medicina. É uma
instituição de nível terciário, cuja missão é a assistência, o ensino e a pesquisa,
possuindo toda a infra-estrutura necessária à prestação de cuidados numa instituição
desse porte.
O Serviço de Emergência situa-se no andar térreo, numa área de
aproximadamente 1.000 m². É constituído por duas unidades: a Unidade de Emergência
Adultos e a Unidade de Emergência Pediátrica. Ambas funcionam no mesmo espaço
físico, sendo que as salas de atendimento aos pacientes adultos e pediátricos são
independentes, mas as áreas de apoio são comuns às duas unidades (recepção,
administração, almoxarifado, apoio diagnóstico - eletrocardiograma, radiologia e sala de
coleta de exames , rouparia, salas de lanche e sala de estar).
44
A Unidade de Emergência Adultos divide-se em sala de triagem, 3 consultórios
de clínica médica, 1 de clínica cirúrgica e 1 de ginecologia, sala de procedimentos/SP
(12 cadeiras), sala de observação/SO (13 leitos) e posto de enfermagem. A Unidade de
Emergência Pediátrica possui sala de triagem, 4 consultórios, sala de procedimentos (7
cadeiras), sala de observação (8 leitos) e posto de enfermagem.
Conforme relatório do Serviço de Emergência (Hospital de Clínicas de Porto
Alegre, 1998), a média mensal de consultas é de, aproximadamente, 3.000 pacientes
adultos e 1.700 pacientes pediátricos, incluindo o atendimento às especialidades
médicas básicas, além de ser referência para o atendimento de pacientes em
acompanhamento em todas as outras especialidades médicas existentes no HCPA. O
enfoque do atendimento são situações de emergência
8
e urgência
9
,mas também são
realizados atendimentos não urgentes
10
.
Os cargos de chefia do Serviço de Emergência são ocupados por um professor
da Faculdade de Medicina da UFRGS, um professor da Escola de Enfermagem da
UFRGS e uma chefia de serviço da área administrativa. Também uma enfermeira-
chefe na Unidade de Emergência Adultos e uma enfermeira-chefe da Unidade de
Emergência Pediátrica.
O corpo funcional contratado é composto por enfermeiros assistenciais, cnicos
de enfermagem, auxiliares de enfermagem, médicos, assistente social, pessoal
administrativo, vigilantes e auxiliares de limpeza.
A equipe de enfermagem é vinculada ao Serviço de Enfermagem em
Emergência do Grupo de Enfermagem do HCPA. Tradicionalmente, vinha
8
Necessidade de atendimento imediato (Rogers; Osborn; Pousada, 1992).
9
Necessidade de avaliação/intervenção em vinte minutos até duas horas (Rogers; Osborn; Pousada, 1992).
10
Condições não agudas que podem ser encaminhadas para um pronto-atendimento ou ambulatório (Rogers; Osborn;
Pousada, 1992).
45
desenvolvendo sua jornada de trabalho distribuída nos turnos: manhã, tarde, noite um,
noite dois e noite três.
O grupo de enfermeiras, atualmente, é composto por 23 profissionais: 5
enfermeiras pela manhã, o mesmo quadro à tarde e 3 enfermeiras em cada noite. A
partir do segundo semestre de 1999, houve aumento no quadro de enfermeiras, e o
serviço passou a contar com uma equipe fixa de 3 enfermeiras nos finais de semana e 1
enfermeira no horário das 18h30 às 00h15min.
5.3 Seleção dos informantes
O termo informante é utilizado para caracterizar um atributo pessoal e para
destacar a importância do papel dessa pessoa (Leininger, 1985).
Os informantes deste estudo foram as enfermeiras do Serviço de Emergência do
HCPA, por serem as profissionais da equipe de enfermagem que tomam decisões em
relação ao cuidado direto e em situações de gerenciamento da prestação de cuidados.
Segundo Leininger (op. cit.), numa pesquisa do tipo etnoenfermagem, existe a
preocupação em escolher informantes com potencial para revelar dados substantivos,
com pontos de vista similares e diferentes.
A autora refere, também, que existem dois tipos de informantes: o informante-
chave e o informante geral. O informante chave é aquele que mais conhece sobre o
fenômeno ou o domínio a ser investigado. O informante geral proporcionará a coleta de
dados adicionais.
Neste estudo, fez-se a escolha das informantes após a entrada no campo, na fase
de observação, momento em que se observou e ouviu-se atentamente as enfermeiras do
46
serviço, a fim de identificar aquelas que, através de seu conhecimento e sua experiência
sobre o fenômeno em estudo, poderiam contribuir significativamente para o estudo.
Nessa etapa, constatou-se que todas as enfermeiras do serviço potencialmente
poderiam ser informantes, por estarem expostas a circunstâncias de dilema ético, porém,
a interação ocorreu com 13 enfermeiras que exerciam suas atividades no período em
que se realizavam as etapas de observação. Portanto, essas enfermeiras passaram a ser
informantes, sendo que 5 foram consideradas informantes gerais e 8 constituíram o
grupo das informantes-chave, as quais foram entrevistadas.
O critério para a escolha das informantes-chave foi o de trabalharem na
assistência direta aos pacientes, e a escolha aconteceu após a primeira análise das
observações, em função de situações vividas durante a jornada de trabalho dessas
enfermeiras, consideradas significativas para a compreensão do fenômeno em
investigação. Foram escolhidas 2 enfermeiras do turno da manhã, 2 do turno da tarde e
4 do turno da noite, para contemplar todos os turnos de trabalho. O interesse das
enfermeiras em participar da pesquisa também foi considerado. Quanto às
características das enfermeiras entrevistadas, eram todas do sexo feminino e com um
tempo de experiência no Serviço de Emergência de 2 a 12 anos.
5.4 Coleta das informações
Após a autorização do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação (GPPG) do HCPA,
estabeleceu-se contato com a Chefia do Serviço de Enfermagem em Emergência do
Grupo de Enfermagem e, posteriormente, com as Chefias de Unidade, a fim de informar
o objetivo geral da pesquisa, prestar esclarecimentos e fazer as combinações
47
necessárias. Como não havia previsão de reunião com as enfermeiras nesse período,
combinou-se reuniões informais com pequenos grupos, nos turnos de trabalho. A partir
daí, iniciou-se a coleta de informações.
As informações foram coletadas seguindo-se a técnica de investigação da
etnoenfermagem, método de observação-participação, que inclui observação e
entrevistas (Leininger, 1985). De acordo com a autora, ao desenvolver-se um estudo do
tipo etnoenfermagem, é recomendável que se tenha conhecimento das características
gerais da cultura em estudo. No entanto, o pesquisador não sabe tudo a respeito das
pessoas e o deve ter visões predeterminadas sobre as informações. Pesquisadores que
têm algum conhecimento sobre a cultura do grupo tornam-se melhores investigadores
das situações, sendo melhores ouvintes e observadores do que aqueles que não têm
nenhum conhecimento sobre o campo.
Sob essa perspectiva, percebeu-se, no desenvolvimento deste estudo, que o
conhecimento prévio do contexto facilitou o entendimento da dinâmica de
funcionamento do serviço e a interação da pesquisadora com os informantes, que
ocorreu de modo bastante espontâneo e informal.
5.4.1 Observação
A observação é essencial na etnoenfermagem, pois permite entrar no mundo real
dos informantes. No desenvolvimento desta pesquisa utilizou-se a proposta de
Leininger (1985), que preconiza quatro fases de observação, sendo que cada fase reflete
um foco dominante e orienta o processo de forma sistemática.
48
Na primeira fase, a da observação, o observador conhece o contexto de modo
amplo, tem uma visão mais próxima da cultura, estabelece contato com os informantes.
A observação e a escuta são os momentos principais dessa fase e os informantes
também observam o pesquisador, que é um estranho naquele contexto (Leininger,
1985).
Esse foi o momento da entrada no campo. Inicialmente, houve uma aproximação
com os informantes e com toda a equipe do Serviço de Emergência, pois as pessoas
conheciam a pesquisadora e estavam curiosas em relação à pesquisa. As profissionais
foram receptivas e acolhedoras, demonstraram interesse em relação ao tema da
pesquisa, algumas elogiaram a iniciativa e verbalizaram que a realização deste estudo
poderia, de alguma forma, ajudar a equipe.
As primeiras observações foram realizadas nas diferentes áreas do serviço,
durante os turnos de trabalho da enfermagem e também nos horários de passagem de
plantão. Procurou-se observar e ouvir, com o intuito de compreender a dinâmica geral
do atendimento aos pacientes e perceber aspectos da forma de ser desse grupo de
enfermeiras nesse ambiente. O foco dessa etapa de observação foi o contexto cultural.
Na segunda fase, a observação com alguma participação, já ocorre alguma
forma de participação, pois o pesquisador desenvolve uma interação com os informantes
e observa as reações que surgem (Leininger, 1985).
Nessa etapa, a observação continuou, focalizando-se nas situações de cuidado
que envolviam dilemas éticos. Algumas enfermeiras foram acompanhados em suas
atividades, de modo que se pudesse permanecer mais tempo com cada profissional,
possibilitando uma aproximação maior e uma observação detalhada. Além disso,
participou-se de algumas das atividades das enfermeiras: o atendimento às solicitações
49
de pacientes, o fornecimento de informações e orientações aos familiares. Também
começaram a ocorrer conversas informais com as enfermeiras, as quais falavam de suas
experiências no serviço e sobre os dilemas que enfrentavam no dia-a-dia. O foco dessa
etapa de observação foram as enfermeiras no contexto cultural.
Na terceira fase, caracterizada pela participação com alguma observação, o
pesquisador torna-se um participante das atividades dos informantes e a observação
diminui. Esse envolvimento permite apreender os sentimentos e as experiências dos
informantes, inseridos nos acontecimentos do cotidiano. Um bom relacionamento com
os informantes ajuda o pesquisador a entender melhor o fenômeno sob a perspectiva
daquela cultura (Leininger, 1985).
A partir de então, a participação da pesquisadora nas situações de cuidado
aumentou, por sentir-se parte daquela equipe. Em diversas circunstâncias estabeleceu-se
uma parceria para a realização de procedimentos, discussão de casos e encaminhamento
de situações, tanto na triagem e nas salas de procedimentos, quanto nas salas de
observação. As conversas informais sobre os problemas cotidianos tornaram-se
freqüentes. O horário do cafezinho era um momento de encontro muito rico, ocasião em
que enfermeiras do serviço e profissionais da área médica trocavam idéias sobre as
situações vividas. Além disso, era um momento de descontração, em que as pessoas
compartilhavam os lanches, contavam sua histórias, parecendo que essa integração
recarregava as energias dos profissionais que precisavam continuar o trabalho. A
participação direta, associada à continuidade da observação, favoreceu a aproximação
com os sentimentos e com as experiências vividas com as enfermeiras, além de
fortalecer os vínculos e a relação de confiança. Sendo assim, nessa fase foram realizadas
as entrevistas, com o foco nos dilemas éticos dos enfermeiros no contexto cultural.
50
A quarta fase, denominada observação reflexiva, é o momento de reflexão sobre
o impacto das situações e dos acontecimentos sobre as pessoas, através da recapitulação
de como se desenvolveu todo o processo, a partir das informações encontradas nas
etapas anteriores (Leininger, 1985).
Neste estudo, essa etapa caracterizou-se pela saída do campo e pela reflexão
sobre as vivências da pesquisadora com as enfermeiras do Serviço de Emergência,
considerando a complexidade e a inter-relação dos resultados encontrados na análise das
etapas anteriores. O foco da observação reflexiva foi a análise de todo o processo.
O período de permanência em campo foi de sete meses, realizando-se vinte e
duas observações, em diferentes horários e dias da semana, combinados previamente
com as enfermeiras. O tempo de duração das observações variou de 30 minutos a 3
horas.
O cronograma seguido para a realização das observações transcorreu de modo a
permitir o registro de uma observação antes da realização da observação posterior, o que
proporcionava a exploração das situações que iam surgindo ao longo do período.
Cabe salientar que o desenvolvimento do método observação-participação, neste
estudo, ocorreu em fases, conforme preconizado na etnoenfermagem, porém as etapas
se inter-relacionaram, ou seja, não ocorreram de forma estanque.
As observações foram registradas sob a forma de relatórios específicos, diário
de campo e relatório expandido, seguindo o referencial metodológico escolhido. No
diário de campo foram registradas as experiências, as idéias e as dúvidas, as palavras-
chave e as citações que facilitariam a descrição das vivências. No relatório expandido
foi feita a descrição das vivências no campo e os registros das percepções iniciais. As
51
descrições foram realizadas até 24h após a observação, para permitir a lembrança dos
detalhes com exatidão.
5.4.2 Entrevista
A entrevista é um método importante na etnoenfermagem, à medida que enfatiza
a documentação e o entendimento de tudo o que é escutado, visto e observado em
relação às pessoas e ao ambiente. A entrevista individual semi-estruturada, proposta por
Leininger (1985), foi escolhida por privilegiar o significado do fenômeno investigado a
partir da vivência dos informantes.
Durante a entrevista, partiu-se de certos questionamentos básicos, oferecendo
caminhos para as informantes expressarem seus sentimentos e percepções, permitindo
que contassem suas histórias no seu estilo próprio. As situações de interesse que
surgiam, iam sendo discutidas e exploradas, com o intuito de compreender os
significados conhecidos pelas informantes.
Uma questão destacada por Leininger (1985), no processo de obtenção das
informações em etnoenfermagem, é a utilidade de conhecer aspectos do contexto antes
de serem iniciadas as entrevistas, pois existe uma facilidade maior em compreender os
significados explícitos e implícitos do mundo dos informantes.
Utilizou-se, então, uma questão inicial na entrevista e as outras questões foram
construídas a partir de um roteiro que emergiu da análise das observações (Anexo A).
Após a realização da questão inicial, as enfermeiras relatavam suas experiências e
opiniões, as quais sempre tinham relação com algum dos itens do roteiro. Os outros
52
aspectos iam sendo explorados a medida que a fala da informante permitia uma
aproximação com o tema em questão.
A entrevista foi uma oportunidade de retomar e aprofundar as discussões que
surgiram no período das observações. Por isso, antes da realização da entrevista,
realizava-se a leitura do relatório das observações sobre aquela informante.
Para garantir a fidedignidade das informações coletadas, as entrevistas foram
registradas num microgravador e depois transcritas.
A duração da entrevista variou de 25 minutos a 1h30min.
O esquema que representa a utilização das fases do modelo de observação-
participação neste estudo, pode ser visualizado no Anexo B.
5.5 Aspectos éticos
A ética em pesquisa vem sendo uma constante preocupação na atualidade e o
respeito ao indivíduo deve ser preservado em todos os passos de um estudo.
Sendo assim, solicitou-se às informantes da pesquisa que assinassem um Termo
de Consentimento Informado (Anexo C), com autorização para gravação da entrevista,
realização de anotações durante as observações, publicação das informações,
garantindo-se, a cada uma delas o anonimato.
As informações foram utilizadas exclusivamente para este estudo, portanto as
entrevistas gravadas foram apagadas após a elaboração do relatório final.
53
5.6 Análise das informações
A análise foi realizada utilizando-se a metodologia da etnoenfermagem proposta
por Leininger (1990). O processo de análise das informações ocorreu ao longo da
pesquisa, simultaneamente à etapa de coleta, num movimento crescente de
complexidade. No transcorrer das diversas fases, emergiam novas dimensões do
conhecimento, dando origem a questionamentos que viabilizaram a expansão das
informações encontradas. Esse método incluiu quatro fases inter-relacionadas.
A primeira fase constituiu-se da coleta, do registro e da organização das
informações.
A coleta de informações foi iniciada a partir das observações. As anotações do
diário de campo subsidiaram a realização do relatório expandido, onde foi descrito tudo
o que ocorreu durante a permanência no campo. O relatório expandido, todos os
registros e a análise foram digitados e arquivados em computador.
Depois de várias leituras desses relatórios, as informações foram organizadas de
acordo com as situações vividas com cada informante. Após, identificou-se os dilemas
éticos presentes em cada circunstância. Em seguida, atribuiu-se significados aos dilemas
que emergiram e, a partir disso, foram escolhidas as informantes-chave, ou seja, as
enfermeiras que viveram situações de dilemas éticos enquanto eram realizadas as
observações (Anexo D).
A segunda fase foi marcada pela identificação de categorias e de componentes.
Nessa etapa da análise, as informações destacadas na fase anterior foram
agrupadas em subcategorias, em função das semelhanças e das diferenças entre os
comportamentos das informantes que correspondiam à questão de pesquisa. As
54
subcategorias evidenciadas passaram a caracterizar os componentes das categorias de
análise (Anexo E) e a partir delas também se elaborou o roteiro de entrevista.
A terceira fase caracterizou-se pela análise do contexto e dos padrões.
As informações obtidas nas entrevistas foram organizadas de acordo com as
categorias esboçadas anteriormente e examinadas minuciosamente para o desvelamento
dos padrões de comportamento e dos significados do contexto.
A validação das informações foi realizada mediante a apresentação das
informações para 5 enfermeiras entrevistadas, momento em que as categorias e seus
componentes foram discutidos, de modo a compor as categorias finais.
Na quarta fase foi realizada a abstração das categorias, dos resultados
encontrados e as formulações teóricas.
Essa foi a fase mais complexa da análise das informações, pois exigiu uma
síntese do pensamento e uma análise criativa das informações trabalhadas nas etapas
anteriores. Refletiu-se sobre as informações encontradas e sobre os achados da
literatura, realizando-se formulações teóricas e algumas recomendações, sem a intenção
de esgotar o tema.
55
6 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES
As informações aqui apresentadas expressam como as enfermeiras de um
serviço de emergência tomam decisões acerca dos dilemas éticos vivenciados.
Essas informações emergiram da vivência da pesquisadora com as informantes,
seguindo a proposta metodológica uma abordagem do tipo etnoenfermagem
(Leininger, 1995), que aspirou obter a visão de mundo daqueles que experienciam o
fenômeno dilemas éticos e compreender os seus significados em determinado contexto.
A análise das informações gerou quatro categorias: acesso aos cuidados,
superlotação do ambiente do cuidado, conflitos nas relações interpessoais e
enfrentando a morte, que representam os dilemas vividos nesse ambiente de cuidado.
Cada uma das categorias constitui-se de componentes, os quais dão-lhe significado, na
busca da compreensão do fenômeno investigado.
A análise das categorias e seus componentes, desvelados nos relatos das
enfermeiras, pretendeu interpretar os significados à luz do olhar da pesquisadora e da
fundamentação teórica, visando o objetivo deste estudo.
6.1 Acesso aos cuidados
Ao acessar o Serviço de Emergência do Hospital de Clínicas, os pacientes
passam pela área de triagem, implantada para identificar as prioridades de atendimento
e assegurar assistência imediata àqueles que apresentam um quadro grave de saúde, em
função da crescente utilização dos serviços de emergência pela população em geral
(Magalhães et al., 1989).
56
Com o aumento progressivo de pacientes que procuram atendimento e da
complexidade dos casos que convergem para esta área, a sistemática de triagem adotada
no Serviço de Emergência sofreu várias adaptações.
Atualmente, o processo de triagem é realizado em duas etapas. A primeira
triagem é feita na recepção, quando os auxiliares administrativos identificam a queixa
principal e agendam o paciente para atendimento no próprio serviço ou o encaminham
para a agenda do Serviço de Pronto Atendimento (junto ao ambulatório). O Serviço de
Pronto Atendimento dispõe de 60 consultas médicas diárias disponíveis para crianças e
32 para adultos, distribuídas em agendas no turno da manhã e da tarde, exceto sábados,
domingos e feriados.
A segunda triagem é realizada pela equipe de enfermagem. Duas técnicas de
enfermagem verificam os sinais vitais nas salas de pediatria e de adultos e uma
enfermeira avalia os pacientes, a partir de uma anamnese direcionada para a queixa
principal e de um exame físico sumário. Em alguns casos, a medida da glicose capilar e
a realização de eletrocardiograma também são feitas. Com base nesta avaliação, a
enfermeira decide a permanência e a prioridade do atendimento aos pacientes.
Os pacientes que não têm condições de entrar neste fluxo de rotina da triagem,
por gravidade da situação ou porque surgiu alguma dúvida na recepção, são recebidos
diretamente pela equipe de enfermagem, que os encaminha para a área interna do
serviço ou os inclui no agendamento de consultas. Este também é o caso dos pacientes
que chegam de ambulância.
Na dinâmica de atendimento do serviço, são agendados 5 pacientes/hora para
consultas médicas, triados pela enfermeira, seguindo critérios de gravidade. Além
desses pacientes, são atendidos e priorizados aqueles que chegam em situação de
57
emergência, um número sempre imprevisível. O fluxo, em geral, é contínuo, tanto de
pacientes adultos, quanto pediátricos. A média diária de consultas no Serviço de
Emergência em setembro de 2000 foi de 48 crianças e de 95 adultos (Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, 2000b).
Em função do número de pacientes, a triagem adquire especial importância e a
sua dinâmica tem implicações no funcionamento de todo o serviço, pois, quando os
recursos físicos, materiais e humanos são limitados, prestar cuidados imediatos para
todos os pacientes torna-se inviável. Assim, os pacientes são classificados, de modo que
os recursos sejam usados da melhor forma possível.
As enfermeiras do Serviço de Emergência envolvem-se diretamente na triagem
dos pacientes e enfrentam dilemas durante a realização desta atividade, que podem ter
implicações técnicas, legais e morais.
As implicações técnicas relacionam-se com o objetivo primário da triagem, de
garantir acesso rápido aos pacientes graves, e as enfermeiras entendem que a agilização
dos cuidados, nessas circunstâncias, é o ponto de partida para o desenvolvimento do
processo de cuidado.
Sendo assim, os pacientes que estão em situação de emergência, correndo risco
de vida, têm prioridade. Porém, mesmo sabendo que essa decisão é a mais acertada, as
enfermeiras vivem o dilema de, muitas vezes, não ter condições ideais de acomodação:
"...tem pacientes que estão graves, que tu precisas passar para atendimento,
mas tu sabes que não tem aonde acomodar esse paciente, e realmente tu
não sabes o que fazer." (Enfermeira 18)
"...existem 8 ou 10 lugares para ficar, para ser atendido rapidamente e tu
tens 50 pessoas lá dentro, mais as que estão chegando..." (Enfermeira 14)
58
Quando o número de pacientes excede a capacidade de atendimento do Serviço
de Emergência, a chegada de pacientes graves é motivo de conflito para as enfermeiras,
pois não possibilidade de qualquer tipo de encaminhamento
11
, visto que a
necessidade determina o acesso aos cuidados.
Segundo Kilner (1995), a noção de necessidade inclui a idéia de que a vida de
uma pessoa pode ser alterada ao sofrer uma doença, e não critério mais justo do que
destinar os recursos disponíveis àquele que mais precisa.
Portanto, a prioridade de atendimento e a permanência do paciente grave no
Serviço de Emergência é inquestionável, mas o conflito moral das enfermeiras surge
quando percebem que a qualidade dos cuidados prestados pode não estar garantida, pela
sobrecarga da infra-estrutura local. Esse fato é percebido quando superlotação do
serviço, o que gera, ainda, outra inquietação, pois, para o paciente em risco de vida, o
atendimento imediato torna-se compulsório, mas existem pacientes em situação de
menor gravidade, e que as enfermeiras sentem-se pressionadas a encaminhá-los para
consultar em outro lugar.
"Mais dose ainda é quando essuperlotado, porque tu tens toda a carga
de alguns colegas dizendo que não é para tu deixares entrar, ou deixares
entrar o mínimo possível, e tu, na tua visão, não está bem, e algumas vezes,
não está bem (...) 'ah enfermeira, eu tenho uma dor na minha barriga,
começou ontem, eu acho tão engraçada essa dor, eu olhei a minha mão,
tá engraçada a minha mão', mas aí pode não ser nada, pode ser uma
bobagem, mas pode ser um infarto também, uma dor de barriga com a mão
engraçada, pode ser um AVC
12
, eu não sei..." (Enfermeira 14)
"A triagem é o ponto mais complicado aqui na emergência, eu abomino a
triagem, eu fico quando precisa, eu tenho muito medo de mandar paciente
embora, de ter avaliado mal, vai que esse cara chega na esquina e infarta.
Isso são mil dilemas (...) Adulto até eles não encrencam muito, eles
reclamam, mas atendem. Agora na pediatria, eu não mando embora, daí
vem certas pessoas e me perguntam porque que eu não mediquei e mandei
11
O vocábulo encaminhamento se refere ao ato de encaminhar o paciente para outros serviços ou instituições.
12
Acidente vascular cerebral - doença neurológica.
59
embora. E quem me garante que com 4,5 gotinhas de tylenol
13
a criança não
vai convulsionar na esquina, então eu não mando embora. Uma criança
que tem história de crise convulsiva e a mãe traz porque a guria está meio
estranha, quem melhor do que a mãe pra saber?" (Enfermeira 11)
Essas declarações refletem dilemas relatados pela maioria das entrevistadas. Ao
falarem sobre as situações de encaminhamento de pacientes, as enfermeiras referem-se à
triagem como o pior lugar, o ponto mais complicado, é dose, é muito ruim. Existe a
expectativa no grupo de profissionais do serviço de que a enfermeira coordenadora da
área de triagem, evite a entrada de mais pacientes, visto que as condições de
atendimento estão prejudicadas pela superlotação. Cabe ressaltar que essa não é uma
expectativa somente da equipe médica, mas também das próprias enfermeiras, que
sentem-se sobrecarregadas com o número excessivo de pacientes nas diferentes áreas.
Entretanto, no momento da avaliação do paciente emerge o conflito, pois não como
cumprir tal expectativa diante da percepção de que a realização de um encaminhamento
pode oferecer algum risco. Diante disso, surge um confronto entre a obrigação moral de
mandar o paciente embora e a responsabilidade técnica de deixá-lo ficar, situação
agravada pelas condições desfavoráveis para proceder a avaliação clínica dos pacientes,
conforme demonstram os relatos a seguir:
"Como o atendimento geralmente está restrito pela superlotação, tu acabas
tendo que encaminhar...mas a quantidade destes pacientes mais graves é
grande, vai acumulando...e isso é uma coisa que requer tempo e
disponibilidade de ouvir (...) O dilema que tu enfrentas na hora de mandar
embora é a incerteza de uma decisão baseada numa avaliação geral do
paciente." (Enfermeira 19).
"...cada pessoa é uma pessoa, cada paciente se manifesta de uma maneira,
uns falam muito, outros falam pouco, uns falam as coisas importantes..."
(Enfermeira 9)
13
Tylenol - medicação usada para febre ou dor.
60
Os relatos das enfermeiras demonstram a preocupação em causar algum prejuízo
aos pacientes, em função de uma avaliação superficial durante o processo de triagem. O
tempo dedicado a cada paciente parece não proporcionar condições para a enfermeira
perceber a real condição de saúde de todos aqueles que procuram atendimento, o que
pode gerar dúvidas, principalmente quando consideram a singularidade de cada
paciente. Essas situações revelam o quanto é complexo decidir, pois as enfermeiras
precisam mediar as condições do local, as peculiaridades do estado de saúde dos
pacientes e o tempo disponível para realizar as avaliações.
Geralmente, as enfermeiras do Serviço de Emergência sentem-se competentes
tecnicamente para realizar uma triagem de prioridades, em função do conhecimento e da
experiência adquiridos. No entanto, a superlotação enfrentada no dia-a-dia provoca um
esgotamento dos recursos, fazendo com que, além de uma triagem de prioridades, as
enfermeiras recorram a encaminhamentos como uma alternativa de preservação da
equipe e dos pacientes que estão em atendimento, numa tentativa de manter a
qualidade dos serviços oferecidos. Mas, a competência técnica, na percepção das
enfermeiras, não significa competência legal, surgindo um outro ponto de conflito.
Quanto à competência legal, as enfermeiras dizem que a lei não as ampara nas
situações de encaminhamento dos pacientes, portanto elas sentem-se fazendo algo que
não deveriam fazer.
"Eles querem que tu mandes embora, mas não tem ninguém que me proteja
em relação a isso. O próprio COREN
14
diz que eu não tenho autoridade...na
minha opinião a triagem é médica, tu não podes mandar embora...e quando
tu mandas embora, e o medo que tu ficas, porque a responsabilidade é tua,
se morrer no meio do caminho é problema teu, tu que vais ter que
responder, é o teu nome que está ali. Ali sim, se tem um local, na minha
opinião, que é conflitante, que é desesperador dentro da emergência é a tal
da triagem." (Enfermeira 14)
14
COREN: Conselho Regional de Enfermagem
61
"Quer mandar, então tu vais lá e manda embora. E tu achas que ela manda
embora? Ela vai lá, troca duas palavras e muda a decisão, porque é o
CRM
15
dela que está em jogo e não o meu COREN. Então, agora eu estou
ficando esperta na triagem, eu faço isso, e eles não mandam. Então, isso me
angustia muito. Estou para te dizer que daqui da emergência é o pior lugar,
eu admiro as colegas que gostam de lá, porque lá tem que ter cacife."
(Enfermeira 11)
Essas manifestações reforçam a expectativa existente entre os profissionais do
serviço de que a enfermeira da triagem consiga restringir o atendimento. Cria-se um
clima de constrangimento no momento em que as enfermeiras, ao considerarem que não
é sua atribuição proceder encaminhamentos, estão desrespeitando o código de conduta
profissional, expondo-se a penalidades. No Código de Ética dos Profissionais de
Enfermagem, consta que cabe às enfermeiras "avaliar criteriosamente sua competência
técnica e legal e somente aceitar encargos ou atribuições, quando capaz de desempenho
seguro para si e para a clientela" (Conselho Regional de Enfermagem - RS, 1999, p. 35).
Considerando-se as preocupações das enfermeiras, fundamentadas no código de
ética, percebe-se a importância do aspecto legal nas relações de cuidado, pois as normas
que regem a conduta profissional refletem a moralidade presente na enfermagem e na
sociedade em geral. As enfermeiras desejam preservar o seu nome e afastar esse
sentimento de inquietação diante de uma situação ameaçadora que oferece risco tanto
para elas, quanto para os pacientes. Ao citarem o COREN e o CRM, conselhos
regionais que fiscalizam o exercício da enfermagem e da medicina, respectivamente,
demonstram ter consciência das implicações legais que envolvem o seu comportamento.
No entanto, parece que a preocupação primária não é estar em conformidade com a lei,
mas respeitar o princípio ético e moral da enfermagem que é o de cuidar de quem
precisa de cuidados.
62
"... o ideal seria atender todos os pacientes e, na verdade, nós acabamos
encaminhando o paciente ou simplesmente dizendo não, tu não vais ser
atendido, porque a tua situação não é de emergência, e acaba sendo contra
nossos princípios de enfermagem, e com certeza isso nos dá um dilema
horrível." (Enfermeira 18)
"...essa coisa de ter que encaminhar as pessoas para outro serviço é muito
ruim, me causa muito constrangimento, eu acho isso bem desagradável, na
pediatria principalmente, porque eu me coloco na situação das mães, de sair
de casa, pegar um ou dois ônibus, com uma criança com febre no colo, e
chegar no local e tu dizeres que tu não pode ser atendida, que está fechado,
que tu vais ter que ir ao posto de saúde, que é há 5 quilômetros daqui, então
é isso, na triagem é onde a gente tem os dilemas mais sérios (...) por mais
simples que seja a queixa do paciente, a pessoa que procurou o serviço, que
saiu da sua casa e que veio, por alguma razão ela acabou chegando aqui.
Que ela tivesse uma consulta, por mais rápida que fosse." (Enfermeira 16)
As falas das enfermeiras revelam o quanto é penoso enfrentar a situação de
encaminhar os pacientes, sem oferecer alguma alternativa ali mesmo. Por um lado,
existe o receio de deixar a porta aberta e colaborar com o surgimento de conflitos
decorrentes da superlotação do ambiente de cuidado. De outro, a certeza de que agir
eticamente é respeitar a vontade de ser solidário, atendendo o direito e as necessidades
das pessoas, ou seja, exercendo os princípios de cidadania.
Kilner (1995) refere que a saúde é tão importante que a falta de cuidado pode ser
considerada tanto um erro, quanto uma injustiça, à medida que pode privar as pessoas
de informações, de oportunidades, do alívio do sofrimento, da recuperação de funções,
da prevenção de morte prematura e do fortalecimento da relação de cuidado.
Outro aspecto que chama a atenção é a sensibilização das informantes para o
atendimento das crianças. Esse é um valor moral evidenciado principalmente entre as
enfermeiras que têm filhos pequenos, as quais, com facilidade, conseguem colocar-se no
lugar das mães e compartilhar com elas as suas dificuldades.
15
CRM: Conselho Regional de Medicina
63
Observa-se que este conflito em relação ao encaminhamento dos pacientes
ocorre de modo diferente nos turnos de trabalho, pois os pacientes que chegam pela
manhã são agendados no Serviço de Pronto Atendimento (SPA), ocupando, muitas
vezes, a agenda da manhã e a agenda da tarde, de modo que as dificuldades se acentuam
à tarde e principalmente à noite, porque diminuem os recursos:
"...uma coisa tranqüila de manhã é que eu não mando embora ao acaso, eu
tenho o SPA. Se o paciente está ruim eles mandam de volta..." (Enfermeira
11)
"Durante o dia a gente tem esse recurso, que é o SPA, daí essas coisas
simples tu consegues drenar...de noite tu acabas tendo que restringir."
(Enfermeira 16)
Essas manifestações demonstram que no momento em que as enfermeiras têm
uma alternativa para oferecer aos pacientes, a inquietação presente na tomada de
decisão transforma-se em tranqüilidade, segurança e estabilidade, amenizando os
conflitos morais de estar agindo contra os seus próprios princípios. Além disso, o
encaminhamento para o Serviço de Pronto Atendimento significa a escolha de um
caminho previsível, porque garante uma consulta médica e dá a possibilidade de retorno
ao Serviço de Emergência. A situação inversa, de encaminhamento ao acaso, elimina
essa condição de segurança, fundamental na relação de cuidado, pois não certeza de
que o paciente será atendido em outros serviços.
Essa sensação de insegurança pode ser reforçada pelo fato de as enfermeiras
decidirem sobre o atendimento dos pacientes, sabendo que a ajuda não faz parte do
cotidiano da triagem.
"...em geral a enfermeira acaba decidindo sozinha. A posição dos médicos,
até porque eles se sentem mais frágeis em relação a isso, é sempre assim: 'o
que tu achas que é importante eu vou atender, eu o vou nem discutir'. É
uma situação até confortável, porque a gente fica na frente de batalha,
64
resolvendo o que é prioridade, o que é grave, então é muito difícil eu vir
pedir auxílio, discutir alguma coisa. Geralmente eu vou triando, o que eu
acho mais grave eu vou passando na frente. Eu acho que numa triagem a
enfermeira fica muito sozinha, até poderia ter uma interação melhor, porque
tem alguns contratados, tanto na pediatria, quanto no adulto, que nos
auxiliam. A gente sabe mais ou menos quais as pessoas que a gente pode
pedir um socorro, até na hora do encaminhamento, tem alguns que se
dispõem a ir na frente, conversar com a família, e tem outros que não,
que a gente sabe que não..." (Enfermeira 16)
De acordo com esse depoimento, a triagem configura um espaço de decisão da
enfermeira. Essa situação pode fortalecer a autonomia dessas profissionais, ao se
sentirem competentes para avaliar as condições clínicas dos pacientes e definir o seu
destino, mas, também, pode significar uma sobrecarga, por enfrentarem circunstâncias
difíceis, freqüentemente sem parceria.
Nessa dinâmica de funcionamento, a enfermeira assume a responsabilidade pela
triagem, estabelecendo um contato com a maioria dos pacientes que procura
atendimento. Diante desse envolvimento contínuo, surgem situações de conflito,
agravadas nos momentos em que as enfermeiras percebem que não têm com quem
compartilhar a tomada de decisão.
Observa-se, aqui, que o apoio da equipe médica ocorre eventualmente e que a
fragilidade mencionada quer dizer que o momento de interação com o paciente modifica
completamente a situação, e surge a obrigação moral de prestar cuidados. Em relação a
isso, Benner, Tanner e Chesla (1996) referem que considerar as narrativas dos pacientes
durante o julgamento clínico é dirigir a atenção para um mundo de preocupações,
valores e significados humanos e não apenas para o mundo biológico das doenças.
Assim, a distância da triagem passa a ser uma situação cômoda, que preserva a relação
médico-paciente, pois os critérios se estabelecem fora desse contexto. Para as
enfermeiras, essa situação tem outro significado, porque, diante do paciente, assumem a
65
condição de dizer sim ou não e, a partir disso, precisam lidar com os conflitos dela
decorrentes.
A tomada de decisão é a essência da atividade da enfermeira na área de triagem.
Nesse sentido, critérios que determinam o acesso aos cuidados têm sido desenvolvidos a
partir das características deste cenário.
As enfermeiras, cotidianamente, deparam-se com situações complexas e, a partir
dessas vivências, definem os modos de pensar e agir. Observa-se a existência de um
raciocínio clínico inerente à profissão e à atividade da enfermeira na triagem, que
justifica a definição das prioridades de atendimento:
"Eu vejo a história clínica e aí cruzo com os sinais vitais...agora que a gente
pode fazer eletro é bem mais tranqüilo. É mais um recurso, para não ficar
com dúvida, não ficar com esse dilema." (Enfermeira 11)
"Tu tens que ter o conhecimento técnico na cabeça, para saber o que é...Às
vezes tu fazes um diagnóstico rápido, porque tu tens esse conhecimento."
(Enfermeira 2)
Através dessas declarações, as enfermeiras descrevem a maneira como
procedem a avaliação dos pacientes: consideram as informações obtidas e os dados
objetivos para estabelecer parâmetros que subsidiam a tomada de decisão. Revelam
ainda, a importância de um conhecimento específico que possibilita sintetizar o
conjunto de informações e identificar, com segurança e agilidade, a situação de saúde
dos pacientes.
Nesse sentido, Benner, Tanner e Chesla (1996) referem que o conhecimento
teórico é fundamental para avaliar situações clínicas específicas, mas o julgamento
clínico da prática diária das enfermeiras ocorre a partir de um conhecimento clínico
avançado, adquirido na experiência com muitas pessoas em circunstâncias similares. É
66
um conhecimento especializado, oriundo de um contexto particular, do envolvimento
das enfermeiras em diversas situações.
Diante disso, observa-se a importância do contato com os pacientes no momento
da triagem, evitando uma tomada de decisão baseada num modelo estritamente racional,
que considera as generalizações e as possibilidade excludentes (Benner; Tanner; Chesla,
1996). Essa idéia pode ficar mais clara na seguinte fala:
"Eu tenho muito claro na minha mente o que é um paciente grave. Então, se
o paciente está grave, ele vai ficar aqui dentro. Se o paciente está mais ou
menos e eu tenho para onde encaminhar, eu vou encaminhar, eu sei que
aqui dentro está superlotado, que está difícil de trabalhar. Agora, muitas
vezes é um problema social, aí fico com pena, daí já foi em dois, três
lugares, ninguém resolve, quem sabe a gente resolve o problema da
criatura." (Enfermeira 2)
O discurso demonstra que, apesar de, muitas vezes, as enfermeiras considerarem
o encaminhamento dos pacientes como única alternativa para enfrentarem a
descaracterização e a superlotação do Serviço de Emergência, existe a possibilidade
desses critérios serem modificados, com a mobilização de outros valores que surgem do
encontro da enfermeira com o paciente, no momento da triagem. Critérios técnicos bem
definidos são fundamentais para o alcance dos objetivos de uma triagem de um serviço
de emergência, mas a flexibilização desses critérios também corresponde a uma forma
de aliviar os conflitos das enfermeiras, diante das situações difíceis do cotidiano. Pela
experiência adquirida, as enfermeiras desenvolveram a habilidade de conjugar a sua
percepção com aquilo que é manifestado e mensurado:
"...depois de passado um tempo, tu vês que existe muita coisa por trás
daquilo que o paciente diz." (Enfermeira 2)
'feeling'
16
, não tem jeito, tu vais ter que sentir isso com o paciente. É
no dia-a-dia. (Enfermeira 14)
16
Feeling - palavra da língua inglesa que significa sensação, sentimento, impressão.
67
"...tem aquele complicado que não precisa nem falar contigo..." (Enfermeira
11)
"... muitas vezes eu tomo a decisão baseada na intuição..." (Enfermeira 19)
As falas das informantes sugerem que, além de um conhecimento específico,
outros elementos são essenciais para a compreensão da situação de cada paciente, visto
que as manifestações se revestem de sentidos diferentes para cada pessoa.
Segundo Benner, Tanner e Chesla (1996), respostas emocionais ocorrem no
contexto de uma situação particular e ajudam a enfermeira a entender o paciente não
apenas como um caso médico, mas como uma pessoa com uma vida cheia de
significados. Quanto à intuição, mencionada pela enfermeira, as autoras dizem que ela
nasce da experiência e capta as representações mentais, as nuanças e os significados das
pessoas. É desse envolvimento que emerge a sensibilidade nas respostas, apesar de que
a influência de uma perspectiva racional dominante tende a desenvolver formas
habituais de ação numa cultura profissional.
Conforme o depoimento das informantes, existem, ainda, outras formas de
responder às necessidades dos pacientes que procuram o Serviço de Emergência:
"...eles não têm para onde se virar, querer que tu tomes essa atitude, não
tem como ter, não mando embora." (Enfermeira 14)
"...até coisas que para nós não seriam tão importantes eu acabo agendando
para mais tarde, deixo uma brecha no horário para algum paciente mais
grave que vá chegar." (Enfermeira 16)
"...se ele persiste, eu não consigo negar o atendimento." (Enfermeira 10)
"...se não tiver muitos pacientes, se eu conseguir, eu passo antes, eu tento
agilizar." (Enfermeira 9)
Observa-se, nessas informações, que as enfermeiras têm diferentes formas de
abordar os pacientes no momento da triagem. Entre as várias facetas que se apresentam,
68
surge uma dimensão social, em que a oferta de cuidados à saúde pode significar um
esforço conjunto para ampliar as possibilidades de um cuidado limitado. Sob essa visão,
mesmo que as enfermeiras não tenham contato mais próximo com os pacientes, a
relação de cuidado é expressa no contexto institucional, pois o acesso aos cuidados
proporcionaria redução das diferenças sociais (Gastmans; Casterle; Schotsmans, 1998).
Percebe-se, então, que são muitos os fatores envolvidos, cada um acrescentando
um ângulo de visão a essa complexa atividade de triar. Existe uma responsabilidade
explícita com os pacientes graves e também a preocupação em dar alguma alternativa
àqueles que procuram atendimento no Serviço de Emergência. Essa interface entre o
domínio técnico e o ético se faz presente nas manifestações das enfermeiras, quando
declaram os conflitos enfrentados para articular a diversidade de situações do cotidiano.
A superlotação do ambiente de cuidado parece ser o fato que desencadeia os
maiores dilemas, à medida que as enfermeiras têm que realizar escolhas que vão
determinar o acesso aos cuidados. Nos casos em que o paciente é encaminhado para
outros serviços, muitas vezes fica o sentimento de injustiça, insegurança e de falta de
solidariedade. E quando o paciente permanece nesse ambiente superlotado, é preciso
lidar com outros dilemas decorrentes do esgotamento da infra-estrutura local.
6.2 Superlotação do ambiente do cuidado
A superlotação aqui enfocada refere-se ao número de pacientes que permanece
no Serviço de Emergência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, extrapolando,
muitas vezes, em até 100% a capacidade de atendimento (40 pacientes acomodados nos
69
leitos das salas de observação e nas cadeiras das salas de procedimentos), situação que
expressa o cotidiano desse ambiente de cuidado.
Segundo Relatório do Serviço de Emergência do mês de setembro de 2000, dos
143 pacientes atendidos, diariamente, em consulta médica, a média de 24 adultos e 9
crianças ingressaram nas salas de observação. Destes, 20 adultos e 3 crianças foram
internados nas diversas unidades do hospital (Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
2000b). Os pacientes que não passam para a sala de observação, em geral são aqueles
que permanecem nas salas de procedimentos, realizando exames, medicações,
soroterapia, nebulização, entre outros.
O Relatório uma noção do quantitativo de pacientes que circula no serviço
diariamente, situação presenciada durante o período das observações:
A sala de procedimentos de adultos estava com todas as cadeiras da área interna
preenchidas. Havia, também, aproximadamente, 25 pacientes sentados nos
corredores. A passagem das pessoas nos corredores de circulação estava
prejudicada pelo excesso de pacientes, familiares, cadeiras de rodas e suportes de
soro. (Observação 21)
Na sala de observação de adultos, os pacientes ocupavam os 12 leitos existentes e
mais 17 macas excedentes. (Observação 6)
Havia 16 pacientes na sala, distribuídos em berços, camas e macas, dispostos de
forma muito próxima, sem respeitar os limites físicos de cada box. (Observação7)
Diante dessa realidade, percebe-se que o excesso de pacientes ocorre em todas as
áreas. Os limites vão sendo flexibilizados a tal ponto que os parâmetros ficam
completamente descaracterizados, pois todos os espaços vão sendo ocupados e a
superlotação se incorpora ao cotidiano do serviço de emergência, gerando dificuldades
na realização de cuidados.
Derlet e Richards (2000) agregam outra perspectiva ao conceito, definindo
superlotação em um serviço de emergência como uma situação em que a demanda de
70
serviço excede a capacidade de prover cuidados num período de tempo razoável, em
função da rapidez com que médicos e enfermeiras realizam suas atividades. Os autores
também referem-se à demora para deitar o paciente, ao atraso para que os cuidados
sejam iniciados e à demora para transferir o paciente, aspectos a serem observados nessa
definição.
A superlotação, portanto, num serviço de emergência, é resultado de múltiplos
aspectos interligados, entre os quais, o aumento da complexidade das doenças dos
pacientes que procuram atendimento. Isso pode ser justificado pelo desenvolvimento de
tecnologias médicas e farmacêuticas, que proporcionam aumento da expectativa de vida
da população com doença crônica, que, freqüentemente apresenta complicações no
curso da evolução da doença. Além disso, os pacientes podem apresentar outras
patologias associadas, o que torna difícil e demorada a realização de um diagnóstico,
frustrando a expectativa de um atendimento rápido (Derlet; Richards, 2000).
Outra questão é a falta de leitos de internação em relação à demanda,
principalmente nos hospitais que concentram o atendimento pelo Sistema Único de
Saúde, os quais absorvem o atendimento da maior parte da população, fazendo com que
os pacientes permaneçam por vários dias e realizem, muitas vezes, todo o tratamento no
serviço de emergência.
"Para mim, numa emergência, o paciente deveria ser atendido em 24 horas
ou no máximo em 48 horas e já poder ir para a unidade de internação. Além
disso, na nossa emergência a gente não consegue limitar, eu vejo que são
feitas muitas coisas, medicamentos, exames...não que não sejam
importantes, mas não é o local mais adequado para fazer investigação,
porque daí foge um pouco do objetivo da emergência....o paciente acaba
ficando mais tempo." (Enfermeira 10)
Para as informantes deste estudo, a superlotação é cotidiana e os dilemas
decorrentes se apresentam em diferentes perspectivas. Sendo assim, a categoria
71
superlotação do ambiente do cuidado compreende os seguintes componentes: conforto,
segurança, personalização dos cuidados e privacidade.
6.2.1 Conforto
Segundo Ferreira (1986), conforto significa bem-estar material, comodidade, ou
ainda, consolo, alívio.
Conforme Arruda e Nunes (1996), o conforto é uma experiência subjetiva que
transcende a dimensão física, porque inclui componentes físicos, psicológicos, sociais,
espirituais e ambientais, simultaneamente.
A partir desse entendimento, manter os pacientes em condições confortáveis tem
sido um desafio para as enfermeiras do serviço de emergência, pois o número
extrapolado de pacientes provoca esgotamento do espaço e das possibilidades de
acomodação.
Uma preocupação sempre presente, é a acomodação dos pacientes graves, por
serem o principal objetivo do atendimento de emergência:
"A superlotação traz este tipo de dilema: se recebe paciente grave e não se
tem onde acomodar. E tem que tomar uma decisão rápida: quem tu vais
levantar daquela maca para atender o paciente?" (Enfermeira 2)
A manifestação dessa enfermeira evidencia a situação típica de dilema ético:
realizar uma escolha entre duas situações difíceis. Embora esteja claro que, diante de
uma situação de emergência, o atendimento deste paciente é prioridade, a pessoa que
decide vive um conflito moral, pois, o poder de decisão desta profissional pode ser tão
grande quanto o seu sentimento de impotência. Outro aspecto agravante é a
72
circunstância em que isto ocorre, ou seja, frente a uma necessidade de assistência
imediata parece não haver lugar para palavras ou reflexões, o que se espera é agilidade e
eficácia.
No serviço de emergência também são atendidos, além de pacientes graves, os
que consultam, realizam exames, recebem medicações (pacientes asmáticos, com cólica
renal), os quais geralmente ficam sentados ou deitados numa maca de transporte, até
terem condições de serem liberados.
Há, também, aqueles pacientes mais independentes, que ficam investigando uma
febre, aguardando resultados de exames ou a realização de algum procedimento. São a
população flutuante que circula entre as salas de procedimentos, o saguão de espera e as
áreas de apoio diagnóstico (sala de coleta de exames laboratoriais, radiologia e sala de
eletrocardiograma).
Os pacientes que ficam durante algumas horas, com poucas perspectivas de
passar para a sala de observação, não representam a maior preocupação, em termos de
conforto. Mas, o conflito mais enfático, citado pelas enfermeiras, relaciona-se àqueles
pacientes que ficam um longo tempo no serviço, período que pode se estender por três
ou quatro dias:
"Quando nós temos que ficar com o paciente por mais de 24 horas, começa
a surgir o problema do conforto. Isso preocupa muito a gente...."
(Enfermeira 10)
Essa situação se agrava na sala de procedimentos de adultos, onde pacientes
permanecem sentados em cadeiras plásticas, durante vários dias. Esse é um ponto
crítico, que merece especial atenção das enfermeiras, para criar alternativas que
minimizem esse desconforto.
73
Ao ingressar na sala de observação, o paciente usufrui de melhores condições de
conforto. Apesar da falta de ventilação e de iluminação natural, e da presença constante
de luzes acesas, do barulho e da superlotação, ele passa a fazer parte dos procedimentos
hospitalares de rotina: banho, roupas limpas, cama, comida. Além disso, existe um
contato mais freqüente com toda a equipe de profissionais.
Quando não possibilidade de passar o paciente para a sala de observação, as
dificuldades se acentuam, visto que acomodações alternativas começam a surgir
(cadeiras de rodas, macas de consultório) e o atendimento de algumas necessidades
essenciais já não seguem uma sistematização.
"...além do acomodar para ele descansar, porque todo o paciente que está
doente quer deitar, existem cuidados que o paciente dependente precisa. Tu
tens que trocar fralda do paciente incontinente, dar um banho, puncionar,
passar sonda e tudo é mais difícil com a superlotação, com o paciente
sentado." (Enfermeira 18)
"Quando a pediatria está muito cheia, as gurias me perguntam: onde é que
nós vamos botar a criança? E eu digo: no colinho da mãezinha. É uma
barbárie isso...Imagina passar a noite inteira com uma criança
disfuncionada no teu colo, sem poder dormir, sem alimentação...É muito
doloroso..." (Enfermeira 14)
"... o básico deles está mal: deitar, dormir, comer, tomar banho...então eu
acho difícil...estas coisas que fogem do teu alcance e tu sabes que a pessoa
está precisando...porque, às vezes, para o paciente ou para o familiar que
está chegando, aquilo é o mais importante, eles não sabem talvez a parte
técnica da coisa..." (Enfermeira 2)
Os relatos acima evidenciam a impossibilidade das enfermeiras de atender
algumas necessidades consideradas básicas para qualquer ser humano: sono, repouso,
alimentação, higiene corporal. Essa situação submete os pacientes a um
constrangimento físico e moral, pois a satisfação de necessidades fisiológicas é o
mínimo que se espera no ambiente hospitalar, considerando-se, principalmente que
essas pessoas estão doentes e dependentes.
74
Segundo Arruda e Neves (1996), o conforto é um elemento do cuidado que
provém do ambiente externo e pode, em parte, ser controlado pela enfermeira, através
da promoção de um ambiente favorável. Diante disso, as enfermeiras vivem um
sofrimento constante, pois a tensão criada pela continuidade da falta de satisfação de
necessidades essenciais tem gerado circunstâncias de um cuidado desumano, rude e
cruel, que as informantes nem sempre fazem questão de resolver:
"...às vezes tu não ajudas a paciente a se alimentar porque tu vais achar um
monte de coisas que teriam que ser mudadas...Como é que tu vais dar a
comida se tem um 'papagaio'
17
do lado? Então a gente procura fugir de
determinadas situações." (Enfermeira 11)
Arruda e Neves (1996) também referem que o conforto pode ser alcançado por
uma condição relacionada ao ambiente interno da pessoa, a partir da sua relação com os
profissionais, em determinado contexto. O conforto, então, pode ser considerado uma
experiência humana única, à medida que varia entre as pessoas, em diferentes
momentos. Sendo assim, as pessoas podem ter a sensação de conforto mesmo sem
estarem saudáveis e mesmo que o ambiente seja desfavorável.
Essas idéias podem ser demonstradas através dos resultados de três pesquisas de
opinião do Serviço de Emergência, realizadas durante o período de desenvolvimento
deste estudo, que pretenderam avaliar a satisfação dos pacientes em relação ao
atendimento das diferentes equipes de profissionais, e a infra-estrutura local
proporcionada. Os dados revelam que 90% dos pacientes classificou o atendimento
recebido como ótimo/bom, incluídos, nesse item, os exames realizados, as informações,
as orientações, o tratamento e os cuidados recebidos. No que se refere à alimentação e à
limpeza, 80% dos pacientes mantiveram essa classificação. Mas, em relação ao
17
Papagaio - termo usado para denominar recipiente coletor de urina.
75
conforto, observa-se um aumento nítido da insatisfação, pois a classificação ótimo/bom
se reduz para 50% das respostas dos pacientes (Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
2000a).
Os resultados dessas pesquisas, de forma geral, refletem a realidade do Serviço
de Emergência; é um local com profissionais qualificados, com uma infra-estrutura de
uma instituição terciária, mas que tem a superlotação como fator contrário à qualidade
do atendimento. Por outro lado, pode ser surpreendente que a metade dos pacientes que
respondeu a pesquisa ainda esteja satisfeita com o conforto oferecido, o que poderia ser
compreendido partindo-se da visão de que as experiências humanas são subjetivas e que
o conforto pode ser percebido de forma ampliada. As pessoas, mesmo diante das
dificuldades enfrentadas, sentem-se confortáveis por terem conseguido acesso a um
serviço que lhes garante um diagnóstico e um tratamento confiável.
Essas vivências relatadas pelos pacientes parecem ter relação com os
sentimentos das enfermeiras do Serviço de Emergência, quando expressam compaixão e
por não estarem indiferentes ao sofrimento humano.
"... quando tu estás com um resfriado, um picozinho de febre, a única coisa
que a gente quer é ficar ajeitado na caminha da gente, acomodado no
silêncio, com um mínimo de conforto. E aqui, para as pessoas com doenças
graves, tu não tens nem condições de oferecer uma cama para deitar, eles
ficam sentados, muito mal acomodados." (Enfermeira 16)
Por outro lado, manifestam uma sensação de alívio em saber que, apesar das
dificuldades do ambiente do cuidado, o tratamento está sendo realizado:
"...mãe, o teu nenê está recebendo tudo o que ele tem que receber aqui
dentro, todo o medicamento, ele não tem a melhor hotelaria."
(Enfermeira 2)
76
"...eu achava um horror, meu Deus do céu, aquele vovô de 100 anos na
cadeira de rodas! E as gurias me diziam: mas graças à Deus que ele
conseguiu uma cadeirinha. " (Enfermeira11)
Arruda e Neves (1996), a partir de suas pesquisas sobre o tema, constataram a
ocorrência de conforto em diferentes níveis. Os pacientes podem experienciar um alto
grau de conforto, manifestando sentimentos de melhora, de proteção, de integração, de
liberdade e de comodidade. O conforto, sob essa perspectiva, promove, além do bem-
estar físico, a possibilidade de melhor adaptação do paciente ao seu estado de saúde
atual e a recuperação de forças para a recuperação da qualidade de vida. Já os pacientes
que vivenciam um baixo grau de conforto manifestam a sensação de insegurança,
desânimo, inadaptação, incômodo.
Ao se discutir a tomada de decisão das informantes acerca dos dilemas éticos
mencionados, evidenciaram-se situações conflitantes e difíceis de serem resolvidas:
" ... a vontade que eu tenho é de passar todos os pacientes, internar todos os
pacientes. É muito ruim tu veres pacientes sentados e não poder internar
todos." (Enfermeira19)
"Às vezes libera uma maca e a colega da sala de procedimentos tem 60
pacientes, não chega a tanto...50 eu acho, que é o nosso limite. E é a
escolha de Sofia: tem um vô de 90 anos, mas tem um infartado e isso a gente
convive diariamente." (Enfermeira11)
Além disso, existem outros aspectos a serem considerados no momento da
decisão:
"...tu ficas entre a família, o médico, a situação, a necessidade do paciente,
a lotação da sala de observação. Então é aquele conflito, tu tens que
administrar uma coisa que depende de vários fatores, que não é a tua
vontade, nem a tua avaliação que basta. E com pressão para todos os
lados, dos familiares, do paciente queixoso, muitas vezes da colega da sala
de observação, que acha que não tem que passar o paciente, pois dentro
já está muito lotado." (Enfermeira16)
77
"...tu decidires quem deita, quem levanta, de quem é a vez de deitar, quem
passa para a sala de observação, quem fica na sala de procedimentos, quem
sobe para o andar... temos tantos leitos femininos, tantos masculinos, quem
tem direito àquele leito? É uma coisa difícil tu decidires entre a patologia do
paciente, o tempo que o paciente está aguardando, a idade do paciente, são
tantas coisas que realmente causa angústia no momento de tu decidires
quem vai, quem não vai." (Enfermeira19)
Percebe-se pelas falas, que, diante das constantes tomadas de decisão, num
ambiente tão peculiar, as enfermeiras foram encontrando formas de enfrentar os
desafios. É a partir da prática diária dos cuidados de enfermagem que vão sendo
definidos os critérios que subsidiam a tomada de decisão sobre o conforto dos
pacientes, os quais se apresentam com muita semelhança nas informações.
Emergem dos relatos, critérios técnicos utilizados prioritariamente, os quais
garantem que necessidades imediatas sejam atendidas:
" O critério que eu tenho primeiro é a gravidade...um paciente infartado,
uma hemorragia intracraniana, enfim, uma coisa grave mesmo... "
(Enfermeira 9)
"Geralmente o critério é técnico, o paciente que está pior...tem uma doença
mais grave, tem que entrar; tem que heparinizar
18
, tem que passar para a
sala de observação, não para heparinizar sentado; tem que fazer
anfotericina
19
, tem que ficar na sala de observação...é o paciente mais
grave, é esse que eu vou passar." (Enfermeira 2)
Após, são empregados critérios de merecimento, sugerindo um caráter mais
subjetivo na avaliação dos pacientes que terão prioridade na acomodação:
"...se não tem um bem mais grave eu vou pela parte emocional, quem está há
mais tempo sentado, quem eu acho que está com mais cara de cansado..."
(Enfermeira 2)
"É uma decisão bem difícil, eu tento priorizar a idade, a dor, o estado geral
... eu acho que um pouco de conforto alivia bastante a dor...os pacientes
com falta de ar melhoram se acomodar um pouquinho na cama, porque é o
cansaço ... é uma coisa meio empírica, de sensibilidade, de olhar e achar,
18
Heparinizar - administrar heparina, que é uma medicação anticoagulante.
19
Anfotericina - medicação antifúngica.
78
não é muito lógico não, vai meio no feeling que a gente desenvolve com o
passar do tempo." (Enfermeira 16)
Em relação a essa subjetividade, inerente a qualquer ser humano, pode-se
observar que valores morais também podem influenciar a tomada de decisão, invertendo
a ordem dos critérios ou determinando escolhas diferentes daquelas geralmente
esperadas. É o que se constata no seguinte depoimento:
"...de repente até tem outro paciente que tivesse mais indicação... às vezes
até por gravidade da doença tem outro paciente que necessitasse mais, que
acaba ficando sentado em detrimento de outro que está com um estado geral
pior ou há mais dias sentado ." (Enfermeira 16)
Percebe-se, aqui, que a tomada de decisão quanto à acomodação dos pacientes
ocorre a partir de um conhecimento teórico específico, das experiências prévias e de
respostas emocionais e intuitivas estabelecidas no momento daquele encontro de
cuidado. No entanto, uma perspectiva moral que orienta a decisão, podendo
modificar o critério a partir da percepção de que aquela é a escolha mais correta
(Benner; Tanner; Chesla, 1996). O fato de as enfermeiras desenvolverem critérios de
escolha voltados para prioridades, não afasta a possibilidade de enfrentarem dilemas
éticos.
A dimensão moral presente no processo de tomada de decisão é considerada por
Benner, Tanner e Chesla (1996) uma disposição fundamental da enfermeira para
escolher para o seu paciente aquilo que é bom e correto, aquilo que ela acredita que seja
o melhor naquela situação.
Segundo Callahan (1995), uma tomada de decisão sempre envolve fatos e
valores. Os fatos científicos são sólidos, imperativos, verdades impessoais, enquanto
79
que os valores morais dependem da maneira de ver, sentir e reagir muito próprios de
cada pessoa.
O mesmo autor refere que uma boa decisão técnica corresponderá sempre a uma
boa decisão moral. Diante disso, acomodar um paciente grave, em primeiro lugar, se
torna incontestável. O difícil é cuidar de muitos pacientes que, mesmo não estando em
situação de extrema gravidade, necessitam de conforto e atenção. É nesse momento que
o cuidado torna-se fracionado, ou seja, a parte científica, o tratamento é contemplado,
mas as enfermeiras vivem situações de dilema por não conseguirem oferecer conforto a
todos os pacientes.
Callahan (1995) refere, também, que seria tarefa da bioética, como uma
disciplina que procura entender a dimensão ética do comportamento humano, apagar a
linha existente entre fatos científicos e valores morais, desafiando a crença de que
profissionais com bom treinamento técnico são capazes de realizar decisões morais tão
boas quanto as decisões técnicas. Dentro disso, podem surgir questionamentos sobre a
habilidade necessária para tomar uma decisão ou outra, pois pode não ser justo
considerar apenas a sensibilidade e a individualidade, assim como não é justo aplicar
somente o rigor e a objetividade.
Pela complexidade do tema, o autor sugere, ainda, que os problemas morais
sejam abordados de forma interdisciplinar, considerando as implicações sociais,
políticas e legais e também as tradições morais históricas e as práticas num determinado
contexto. Sendo assim, a perspectiva bioética torna-se ampliada, no sentido de abolir a
exclusividade da obrigação moral nas tomadas de decisão.
Dentro desta visão, as enfermeiras destacam a tomada de decisão compartilhada
como um aspecto relevante no processo de escolha sobre o conforto dos pacientes:
80
"... tu tens que falar com o médico, porque a gente tem que decidir juntos
isso, eu não tenho autonomia para isso e aqui a gente conversa muito as
coisas, eles chamam a gente para conversar...." (Enfermeira 11)
"...geralmente eu discuto com o médico: 'ah, tem duas vagas na sala de
observação, quem tu achas que eu devo passar?'...Não são todos os
profissionais que têm essa abertura, mas a maioria...ou eles mesmos dizem:
'tem leito no andar, quem tu achas que deve ir, quem está há mais tempo?'...
porque quando tem muita gente eles também perdem o controle...a gente
resolve juntos." (Enfermeira 16)
Num ambiente onde os recursos são escassos, os aspectos éticos tendem a
tornar-se mais evidentes. Percebe-se, nas falas, que a troca de opiniões favorece a
tomada de decisão. Esse momento de discussão de casos, mesmo que rápido e informal,
funciona como um espaço de apoio mútuo, onde necessidades individuais e coletivas
são avaliadas, e as responsabilidades divididas.
A falta de autonomia expressa por uma das informantes pode ser entendida
como se a capacidade de escolha não lhe pertencesse isoladamente, mas, sim, ao grupo
do qual faz parte. Essa referência também pode ser compreendida, considerando-se que
as enfermeiras percebem-se participantes ativas na tomada de decisão sobre a
acomodação dos pacientes. No entanto, existe o reconhecimento de que há
circunstâncias em que essa decisão é de competência da equipe médica.
De qualquer forma, fica evidente, nos depoimentos, que existe um envolvimento
direto das enfermeiras nessa questão e, apesar dos dilemas cotidianos enfrentados no
serviço de emergência, no que tange ao conforto dos pacientes, as informantes
demonstram beneficiar-se do amparo moral existente no trabalho em equipe. Essa
aproximação dos profissionais pode ser uma fonte geradora de tranqüilidade no grupo, à
medida que favorece o diálogo, amplia as visões e possibilita a melhor tomada de
decisão possível. Essa forma de interpretar tal situação pode ser reforçada pelas palavras
81
de Lunardi (1998), quando refere que a comunicação alivia as inquietações morais das
enfermeiras e garante o melhor cuidado possível aos clientes.
6.2.2 Segurança
A segurança também foi um aspecto que surgiu dentre os dilemas éticos vividos
pelas enfermeiras no ambiente do cuidado. Segurança é a condição de estar seguro, livre
de perigo, livre de riscos (Ferreira, 1986).
A queda dos pacientes das macas ou das cadeiras foi a situação mais salientada,
em função das enfermeiras terem que optar, muitas vezes, entre a segurança e o conforto
dos pacientes.
"Essa situação de tu levares um paciente para um consultório, sabendo do
risco que tu tens de colocar esse paciente num consultório, do risco do
paciente cair de uma mesa de exames, que não é o local adequado de deixar
este paciente, daí tu ficas naquele dilema (...) Conflito, porque tu colocares
um paciente no consultório é inadequado, mas tu também ficas numa
situação ruim, porque deixar um paciente de 82 anos sentado dois dias,
quatro dias. O que é pior? O que é menos pior para o paciente? É ruim,
muitas vezes tu ficas numa apreensão no momento dessa decisão, não saber
qual o caminho tomar." (Enfermeira 19)
Os relatos expressam as inquietações das enfermeiras frente a possibilidade de
expor os pacientes a algum tipo de risco, pois, na tentativa de melhor acomodá-los, cria-
se uma situação propícia a acidentes. Da percepção de um ambiente de cuidado inseguro
surge o dilema e a dúvida na tomada de decisão, pois o dano pode resultar do ato
realizado ou da sua omissão.
A preocupação com a segurança dos pacientes surge, então, como uma forma de
cuidado, justificada em valores morais do senso comum, ou seja, fazer o bem ou não
causar o mal é um comportamento esperado nas relações entre as pessoas.
82
Essa perspectiva é reforçada por Gastmans, Casterle e Schotsmans (1998), que
consideram o cuidado de enfermagem uma prática moral, envolvendo não o
desenvolvimento de uma atividade especializada, mas o cultivo de uma atitude de
cuidado, que demonstra a eterna preocupação com a proteção e o bem-estar do paciente.
Do ponto de vista da ética dos princípios, essa preocupação tem procedência
moral relacionada à beneficência e à não maleficência, em função do compromisso dos
profissionais de saúde em prevenir ou não causar danos físicos ou psicológicos aos seus
pacientes (Beauchamp; Childress, 1994).
Percebe-se, então, que a promoção de um ambiente seguro é um aspecto
fundamental na relação de cuidado, e a decisão entre o conforto e a segurança do
paciente surge como um conflito a ser resolvido.
Segundo Goldim (1998), o processo de tomada de decisão, quando carência
de recursos, nunca é tarefa fácil, podendo gerar inúmeros posicionamentos frontalmente
contrários, o que, no âmbito da ética, torna o conflito inevitável.
As enfermeiras do serviço de emergência enfrentam um eterno conflito moral,
porque um ambiente superlotado, com recursos finitos, não oferece condições de
acomodar os pacientes com segurança:
"...tu levas para o hospital para a pessoa, em princípio, melhorar. Tu não
vais criar outros problemas para este paciente. Então cai, se machuca,
então eu acho que é uma irresponsabilidade nossa." (Enfermeira 9)
"...como é que tu vais explicar para a família que dentro de um hospital que
é para ter estrutura, que é um hospital escola, que prega que é um exemplo,
é referência para muitas coisas, que não tem pessoal suficiente para cuidar,
que o paciente caiu. É muito ruim ter que explicar isso depois, porque tu
queres que todos os pacientes sejam bem cuidados...Tem pacientes
internados sentados e isso é muito ruim. (Enfermeira 18)
83
No depoimento das informantes, percebe-se que a instituição hospitalar tem o
papel de promover o alívio do sofrimento humano. Então, a possibilidade de causar
prejuízos aos pacientes parece incompatível com a proposta do hospital: ser um
ambiente de cuidado.
Outro aspecto evidenciado nessas informações é a exigência de uma
responsabilidade profissional na atuação das enfermeiras, como representantes desta
instituição hospitalar, a qual pode ser vista numa perspectiva ética, mas também
segundo alguns preceitos legais. Essa questão pode ser exemplificada tomando-se por
base o Artigo 16 do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, que preconiza
uma assistência livre de danos decorrentes de imperícia, negligência ou imprudência
(Conselho Regional de Enfermagem-RS, 1999). Essa regulamentação reflete a prática
do bem como moralidade profissional de enfermagem.
Diante disso, fica mais fácil entender os dilemas enfrentados pelas enfermeiras
do Serviço de Emergência e a forma encontrada para lidar com essas implicações ético-
legais.
Como alternativa para enfrentar estas situações, as enfermeiras dividem a
responsabilidade com os familiares e com os próprios pacientes:
"...a gente sempre ressalva: eu posso colocar o seu familiar no consultório,
se alguém ficar o tempo todo com ele, a condição é essa." (Enfermeira 16)
"Se pega até familiar de outro paciente e se coloca junto. Colocamos no
mesmo consultório outro paciente em melhores condições, numa situação de
um cuidar do outro." (Enfermeira 19)
Nesse contexto, onde as informantes não têm ingerência sobre o número de
pacientes, e onde os recursos humanos e materiais são limitados, contar com a ajuda dos
familiares passou a ser uma condição para a efetivação do cuidado. Partindo-se dessa
84
premissa, o familiar fica com uma única alternativa, pois dessa negociação vai depender
o atendimento das necessidades conforto e segurança do paciente. Essa circunstância
pode levar a uma redução da autonomia do paciente ou da família, pois as enfermeiras
preferem interferir nessa capacidade de escolha, ao invés de assumir o risco de causar
um dano ao paciente. Essa situação pode ser caracterizada, segundo Beauchamp e
Childress (1994), como uma regra de duplo efeito, ou seja, existe um princípio que
justifica moralmente uma ação que pode produzir efeitos tanto benéficos, quanto
maléficos. Essa regra se aplica quando: a ação é moralmente boa, o agente visa o efeito
benéfico e o o maléfico, o efeito benéfico não é obtido por meio do efeito maléfico e
quando existe um equilíbrio proporcional ou favorável do bem em relação ao mal.
Outra forma de ver essa questão relaciona-se ao fato de que, a partir da presença
constante dos familiares, as enfermeiras encontraram uma maneira de amenizar o
dilema de ter que escolher entre duas necessidades imprescindíveis, o que pode ser
considerada uma atitude prudente, visto que elas tentam cercar-se de medidas que
reduzam a chance de causar algum prejuízo e, com isso, muitas vezes, conseguem dar
segurança e conforto ao paciente.
Considerando-se a preocupação em relação à segurança dos pacientes, existem,
ainda, duas outras situações, cada uma relatada por apenas uma informante.
A primeira diz respeito à chance de haver troca das medicações dos pacientes ou
de confundir um paciente com outro:
"...a identificação existe para a gente dar os cuidados adequados à pessoa
certa...no passado isso até me preocupava mais, mas agora, com todos os
cuidados que se tem com a identificação de pacientes, eu fico mais
tranqüila, porque eu sei que as chances de erro são bem menores, mas eu
não posso dizer que não vai acontecer..." (Enfermeira 18)
85
Essa "troca" de pacientes parece ser uma preocupação antiga. O grupo
desenvolveu estratégias no intuito de minimizá-la, talvez por isso não represente
atualmente um dilema para a maioria das enfermeiras. De qualquer forma, esta situação
adquire especial importância na superlotação, quando, muitas vezes, a relação
profissional/paciente acontece através de contatos breves e superficiais. Além disso, a
incerteza subjacente no discurso dessa informante demonstra a existência de um
ambiente favorável à ocorrência de situações como essa.
A segunda situação refere-se a inquietações com a possibilidade de acontecer
algum tipo de contaminação entre as pessoas que permanecem no serviço de
emergência.
"A superlotação me incomoda profundamente quando eu vejo que tem uma
asma junto com uma meningite viral, junto com uma tuberculose, com HIV,
tudo misturado (...) não sei até que ponto não tem uma doença cruzada
ali...até que ponto eu não estou sendo um vetor, carregando bicho para lá e
para cá (...) O ar fica quase irrespirável, a sensação que eu tenho é que o ar
liga todo mundo, nós, as crianças, os acompanhantes e os vírus."
(Enfermeira 14)
A fala dessa enfermeira traduz a preocupação com a contaminação entre as
pessoas que circulam no serviço de emergência: pacientes e profissionais. Apesar dessa
questão não ter sido referida pela maioria das informantes, esse aspecto torna-se
relevante num ambiente onde não ventilação natural e onde as pessoas permanecem
um longo tempo muito próximas umas das outras. Além disso, a sobrecarga de trabalho
e o atendimento freqüente de pacientes em situação de emergência exigem uma
agilidade que não favorece a manutenção de algumas normas básicas de controle de
infecção, por exemplo, a lavagem das mãos.
86
6.2.3 Personalização do cuidado
Conforme Ferreira (1986), personalizar é tornar pessoal. Assim, a
personalização dos cuidados de enfermagem pode ser considerada como uma forma de
humanização do atendimento, buscando alcançar a satisfação de necessidades humanas
individuais.
Nesse sentido, a personalização dos cuidados de enfermagem também pode ser
compreendida numa perspectiva ética, ao considerar-se a enfermagem uma prática
moral, baseada em necessidades morais de promover o bem-estar dos pacientes
(Gastmans; Casterle; Schotsmans, 1998).
Cuidar, em enfermagem, pressupõe uma perspectiva ética de ação. Os autores
citados referem que o comportamento de cuidado inicia a partir de uma relação pessoal
enfermeira/paciente e se constitui de dois componentes: uma atividade especializada,
que envolve um saber específico e habilidades técnicas, e uma atitude de virtude, com
uma disposição constante para a prática do bem.
No Serviço de Emergência, os pacientes chegam geralmente em busca de um
atendimento especializado, na tentativa de melhorar a sua condição de saúde. Muitas
pessoas investigam sinais e sintomas semelhantes ou têm determinada patologia em
comum, compartilham dos mesmos exames, freqüentemente têm o mesmo diagnóstico e
necessitam do mesmo tratamento.
Apesar de apresentarem um quadro clínico com características similares, os
pacientes também podem ter experiências diferentes em relação ao processo saúde-
doença, devido a sua singularidade, experiências culturais, valores morais, práticas de
cuidado, entre outros.
87
A partir dessas semelhanças clínicas e diferenças individuais, observa-se que o
papel das enfermeiras envolve uma prática moral, responsável por responder pela
convergência de diversas necessidades, através de um cuidado instrumental,
mobilizando habilidades e conhecimentos científicos e de um cuidado expressivo, de
interação e conhecimento da natureza humana (Waldow, 1998). Assim, esses dois
enfoques de cuidado, que não devem ser dicotomizados, mas entendidos como duas
faces indispensáveis do cuidado humano, têm adquirido diferentes ênfases no contexto
do Serviço de Emergência.
O cuidado instrumental, segundo Reich (1995), é visto sob a perspectiva da
competência profissional e da excelência técnica em busca da cura ou do alívio do
sofrimento humano.
As enfermeiras do Serviço de Emergência aparentemente não enfrentam maiores
conflitos no desenvolvimento do cuidado, pois a dinâmica de atendimento dos pacientes
segue a lógica do modelo biomédico, com as ações girando em torno do diagnóstico
médico, do tratamento e dos procedimentos. As atividades cotidianas ocorrem a partir
de ações rotineiras, muitas vezes decorrentes do processo de enfermagem, instrumento
racional de trabalho denominado por Benner, Tanner e Chesla (1996) de julgamento
clínico baseado num conhecimento avançado, adquirido através da avaliação de muitas
pessoas em similar situação. Também faz parte dessa dinâmica de atendimento a
assistência de emergência, que exige o domínio de um conhecimento específico e que
garanta agilidade nas ações.
Diante dessa atuação previsível das enfermeiras de um serviço de emergência, a
competência técnica torna-se um valor moral necessário e incorporado ao cotidiano.
88
"...eu acho que o atendimento é muito bom...o paciente veio procurar um
tratamento e esse tratamento ele está recebendo, de alguma forma ele está
recebendo...o que ele tem, porque ele está doente, como é que está tratando,
o remédio que ele veio buscar aqui dentro...isso a gente faz (..) E eu não
dou outras coisas porque eu tenho que ser mais rápida, eu tenho que ser
mais objetiva com o que eu quero, que é o tratamento do cliente aqui dentro.
Ele vem para se tratar de uma doença, é isso que ele está procurando aqui
dentro." (Enfermeira 2)
As falas da informante demonstram o lugar destacado do enfoque técnico nesse
ambiente de cuidado, porém, apesar da manifestação de um desempenho competente, a
afirmação "isso a gente faz" sugere um parcelamento do cuidado, a existência de uma
parte que não se faz. Essa idéia fica mais clara na seguinte declaração:
"...tu sabes que aquele fulaninho está saturando 90
20
, que está com
Venturi
21
, tu sabes que a hiperglicemia
22
está baixando, a cetonúria
23
, mas
às vezes tu nem olhastes pra ele. Eu acho isso horrível, isso para mim não é
qualidade, estar sendo extremamente automática, mecânica (...) Tem dias
que eu saio daqui com a sensação de que não fiz nada...Não consegui ver o
meu paciente direitinho...conversar aquilo que eles esperam da gente...saber
se ela está bem, se ela está com saudade de casa. Eu acho que tem que ter
isso, esse nosso papel de humanizar...tu acabas sendo muito superficial com
o teu paciente." (Enfermeira 11)
A partir desses relatos, percebe-se que as enfermeiras, mesmo tendo um domínio
da situação clínica do paciente, apresentam algumas inquietações. Parecem reconhecer
que, para dar conta de inúmeras tarefas, exercem atividades em série, habitualmente
invariáveis e incompatíveis com um cuidado humanizado.
Observa-se que um ambiente hospitalar tem uma tradição de impessoalidade
no atendimento, em função de rotinas estabelecidas. Numa área que atende pacientes
críticos parece que esta situação se acentua, pela exigência de rapidez e eficiência. Que
20
Saturação de oxigênio - % de oxigênio sangüíneo.
21
Venturi - tipo de máscara usada para administrar oxigênio.
22
Hiperglicemia - nível elevado de glicose no sangue.
23
Cetonúria - eliminação de corpos cetônicos através da urina.
89
alternativas teriam, então, as enfermeiras do Serviço de Emergência, que enfrentam
diariamente um ambiente superlotado?
Diante do número de pacientes que permanece no local, as enfermeiras relatam
dificuldades em conhecer os pacientes que estão sob sua responsabilidade. Muitas
vezes, elas não sabem o nome, nem a situação de saúde em que eles se encontram.
Existe uma percepção de que as salas de observação, tanto de adultos, quanto a
pediátrica, oferecem melhores condições de identificação dos pacientes, pois a área
física estabelece alguma forma de limite, além disso os pacientes ficam mais tempo e
restritos aos leitos existentes:
"Nas salas de observação a gente conhece todos, eu não consigo conhecer
na sala de procedimentos, quando a gente tem 30, 40 pacientes..."
(Enfermeira 16).
Isso não significa que esse ambiente tenha condições ideais para um cuidado
personalizado, visto que o número de pacientes geralmente é superior à capacidade de
atendimento, o que diferencia é o fato de os pacientes estarem melhor acomodados.
A sala de procedimentos de adultos tem outras características, pois existe uma
heterogeneidade entre os pacientes. Aqueles que deambulam afastam-se da sala com
freqüência, por iniciativa própria ou por solicitação da enfermagem, que, na falta de
espaço, os orienta a permanecer no saguão. Ali também ficam pacientes instáveis, com
soro, oxigênio, medicação endovenosa, sentados, esperando vaga na sala de observação.
Observa-se que esses pacientes têm preferência para ficar dentro da sala, mas a
definição destas prioridades, muitas vezes, torna-se complexa, especialmente nos casos
em que os pacientes não têm uma aparência típica de doentes graves, situação
demonstrada na seguinte observação:
90
A enfermeira da sala de observação de adultos veio buscar um paciente que estava
infartado e a enfermeira da sala de procedimentos não sabia quem era.
(Observação 16)
A partir dessa constatação, percebe-se que a sala de procedimentos representa
um local crítico, onde não raras vezes as enfermeiras experienciam a total falta de
domínio da situação.
"Te angustias essa questão de tu não saberes quem é. Muitas vezes os
pacientes te chamam: ' O que eu tenho que fazer? Quanto tempo vai
demorar?' Essa coisa de te por na frente do paciente:' eu vou ver os teus
papéis', parece que tu não estás a par da situação, isso causa
constrangimento..." (Enfermeira 19)
"...são situações que tu ficas te culpando, porque as pessoas vêm aqui
procurando atendimento e tu nem sabes quem é o paciente, tu nem vistes
direito a situação dele, ele ficou no saguão, fora, é uma coisa que
preocupa, por isso a gente procura identificar todo mundo, procura tentar
saber de todos..." (Enfermeira 9)
"A gente fica frustrada na hora da passagem de plantão, porque a
impressão que tu tens é de que tu não vistes nada, tamanha a quantidade de
informações novas e de coisas que tu não sabes passar para o teu colega,
porque a gente chega a ter 50 pacientes na sala de procedimentos à tarde,
não tem como tu teres o controle de todos." (Enfermeira 16)
A distância existente entre enfermeiras e pacientes, reveladas nessas
informações, caracteriza a despersonalização do ambiente do cuidado, gerando um
conflito manifestado através de angústia, constrangimento, culpa, preocupação e
frustração. Esses sentimentos podem ser compreendidos, à medida que o cuidado requer
o conhecimento do outro ser, ou seja, aquele que cuida deve ser capaz de entender as
necessidades do outro para responder a elas de modo adequado (Mayeroff
, citado por
Waldow, 1998).
MAYROFF, M. On caring. New York: Harper Perennial, 1971.
91
A relação de cuidado envolve um comportamento interativo, onde se faz
necessário que o paciente também consiga identificar a enfermeira. Nesse aspecto, as
informantes também revelam alguns conflitos:
"Tem pacientes que passam por mim e não ficam ...a dona fulana teve alta,
mas eu nem conversei com ela, nem sei nada da vida dela, sei que ela
chegou por isso, por isso e por aquilo, mas não consegui interagir, sabe."
(Enfermeira 11)
As enfermeiras demonstram que freqüentemente conhecem a história clínica dos
pacientes, mas dificilmente conseguem estabelecer alguma forma de ligação ou de
reciprocidade. Não é incomum as enfermeiras passarem o plantão, relatando para a
equipe de enfermagem do turno seguinte uma riqueza de detalhes sobre a patologia do
paciente, as alterações dos sinais vitais, os exames e consultorias realizados. Isso se
deve, em grande parte, às informações registradas nos formulários e planilhas e aos
relatórios informatizados disponíveis. Mas raros são os momentos em que as
enfermeiras têm condições de dedicar parte de um precioso tempo para demonstrar
afeição:
"...esses dias a pediatria tinha poucos pacientes, até jogar carta com um
gurizinho eu joguei... ontem ele esteve aqui e veio lá da frente me abraçar,
me beijar...ele criou vínculo comigo justamente porque eu fiquei muito
tempo brincando, sabendo o que ele gosta, que tipo de jogo ele brinca...essa
coisa que eu acho que falta mais e talvez tenha mais um pouco nos andares,
porque as coisas estão certinhas nos lugares." (Enfermeira 2)
Essa abordagem certamente não configura prioridade num serviço de
emergência e não deve ser supervalorizada em detrimento da competência técnica, mas,
no momento em que abriu espaço para o brinquedo, a enfermeira conseguiu contemplar
uma necessidade infantil e personalizar o cuidado, minimizando as adversidades do
ambiente.
92
Em relação a essa situação, Waldow (1998) refere que os pacientes querem
sentir-se seguros e confiantes de que, além de serem considerados seres humanos, terão
a equipe de saúde desempenhando suas funções com conhecimento e habilidade. Uma
cuidadora eficiente, que demonstra indiferença, pode transmitir ao paciente sentimentos
de solidão e de carência, agravando sua vulnerabilidade. Porém, uma enfermeira
delicada, interessada e afetiva, mas incompetente tecnicamente, pode gerar um
sentimento de insegurança e ameaça.
Dentro desse contexto, percebe-se que, no serviço de emergência, o
conhecimento cnico adquire fundamental importância e assegura o atendimento de
necessidades essenciais. No entanto, o cuidado instrumental pode ser oferecido sob uma
perspectiva ética, incluindo uma atitude de virtude, onde o tratamento não precisa
necessariamente ser o mesmo para este ou aquele paciente, ou seja, o cuidado ocorrerá
dentro de uma relação que envolve habilidade cnica e afetividade, e, assim, a prática
da enfermeira refletirá uma postura ética frente ao cuidado, mesmo que a realidade
enfrentada suscite dilemas.
Frente a isso, salienta-se a idéia de Morein (1986), quando ele afirma que o
objetivo de solucionar problemas morais não é identificar um ideal moral, mas buscar
achar a melhor solução disponível nas circunstâncias reais. Algumas vezes, as
circunstâncias podem ser alteradas, e, em outras não.
Conversando com as enfermeiras sobre a forma de enfrentar o dilema da
personalização dos cuidados, surgem poucas alternativas diante da superlotação, uma
realidade há muito tempo inalterada no serviço de emergência:
" ...os técnicos de enfermagem colocam o nome da criança na cama, se o
fosse assim a gente enlouquecia...depois eu faço o histórico de enfermagem
e nesse fazer o histórico tu conversas com eles." (Enfermeira 14)
93
"...a identificação é importante, na maca, no braço, na etiqueta do
soro...senão a gente começa a usar estereótipos, o paciente sem perna, o
paciente com neoplasia de pâncreas...se nós pecássemos ainda na
identificação seria pior...é muito chato ter que perguntar duas, três vezes o
nome do paciente..." (Enfermeira 10)
As enfermeiras, através das suas falas, demonstram que a personalização do
cuidado representa uma lacuna a ser preenchida dentro do ambiente do cuidado. De
qualquer forma, valorizam o exercício da criatividade na resolução dos problemas:
etiquetando a cama ou o próprio paciente, valorizando o histórico de enfermagem como
um momento de aproximação ou proporcionando momentos de descontração. As
alternativas existentes vêm sendo construídas a partir de uma dura realidade enfrentada
por esta equipe e alcançará novos patamares à medida que houver o entendimento de
que um bom cuidado de enfermagem consiste de, além de uma competente performance
para realizar atividades, uma intenção moral de fazer o bem. Esse tem sido um árduo e
constante desafio.
6.2.4 Privacidade
A privacidade relaciona-se com o direito que uma pessoa tem de controlar o
acesso sobre si mesma (Beauchamp; Childress, 1994). É a restrição do acesso às
pessoas ou as suas informações (Allen, 1995). É a liberdade que o paciente tem de não
ser observado sem autorização (Goldim; Francisconi, 1998). Mas, a privacidade dos
pacientes do Serviço de Emergência tem sido constantemente violada. É o que se
observa nas seguintes informações:
94
"Eu acho que muito pouca privacidade...isso me incomoda...mexe
comigo...me machuca muito ver aquelas pessoas, umas ao lado das
outras..." (Enfermeira 2)
"Eu acho que o pessoal tem aquela coisa que se tu trabalhas numa
emergência, tu tens que esquecer alguns aspectos...e por trabalharem
muito...acabam deixando isso de lado. Se preocupam em dar um banho,
fazer medicação...isso sempre me traz conflito." (Enfermeira 10)
Segundo o relato das enfermeiras, a falta de privacidade ocorre em função das
condições existentes no ambiente e dos valores que permeiam a equipe de trabalho. A
superlotação faz com que os pacientes fiquem dispostos de forma muito próxima,
fazendo com que as abordagens feitas a um paciente seja presenciada por outros
pacientes e também por vários membros da equipe de profissionais. Freqüentemente, os
pacientes são examinados ou questionados aos olhos de todos aqueles que dividem um
espaço restrito, situação que demonstra as limitações do ambiente e a postura adotada
por alguns profissionais.
A privacidade pode ser considerada, conforme Allen (1995), sob a perspectiva
da privacidade física e também da privacidade de informações.
As informantes declaram que a falta de privacidade física ocorre principalmente
nas salas de observação:
"...mais no adulto, as vovozinhas, porque os homens até não se importam
muito, mas as mulheres...eu fico com pena das vovós, que a vida toda foram
bitoladas e de repente escancaram. Aquilo é uma agressão..." (Enfermeira
2)
"...a gente até nem sente tanto em função de ser uma pediatria, mas muitas
vezes tu tens meninas pré-adolescentes ali...pobre da criança que tem que ir
numa comadre, por exemplo...tu teres que expor... é uma maneira de tu
agredires mais ainda a criança e isso me incomoda.." (Enfermeira 14)
"Eu tenho preocupação com a agressividade que são os procedimentos em
relação a outros pacientes. Eles ficam observando que tu estás passando
uma sonda ou puncionando...ou ter que estar vendo um paciente todo
95
urinado, todo evacuado, sentado ao lado dele, isso é muito agressivo e a
medida do possível, tínhamos que evitar isso." (Enfermeira 18)
Allen (1995) refere que, em se tratando de cuidados à saúde, não
possibilidade de privacidade física completa. Diante disso, a nudez, o toque e a
observação são inevitáveis, pressupondo-se, inclusive, que haja uma aceitação mútua
entre profissionais e pacientes. Dentro de um serviço de emergência essa característica
se acentua, principalmente em função da agilidade esperada nos casos de atendimento a
pacientes graves.
A mesma autora refere que muitos pacientes podem abrir mão de sua
privacidade para ter a chance de uma saúde melhor, ainda que esperem dos profissionais
de saúde uma posição contrária ao estabelecimento de contato físico e de exposição
desnecessários. Essa expectativa de proteção dos pacientes muitas vezes é frustrada,
pois a falta de privacidade parece estar incorporada à dinâmica de atendimento do
Serviço de Emergência.
Nas informações evidencia-se a existência de uma hostilidade inerente ao
ambiente e que a exposição do corpo dos pacientes é uma forma de reforçar essa
situação, tanto para os pacientes expostos quanto para aqueles pacientes que estão no
papel de observadores. A falta de privacidade é expressa em vários discursos como uma
agressão, o que poderia significar que as enfermeiras não se sentem isentas de colaborar
com possíveis danos psicológicos aos pacientes.
A fala das informantes evidencia, também, uma preocupação com o corpo das
mulheres, caracterizando um valor cultural dessa equipe de trabalho, até porque as
enfermeiras entrevistadas são todas do sexo feminino.
A manutenção da privacidade dos pacientes não ocorre somente através da
condição de inacessibilidade física, conforme citado anteriormente, mas através do
96
resguardo das informações. Na sala de procedimentos existe uma preservação maior do
corpo dos pacientes, o que não acontece em relação às informações que se tem sobre
cada um deles. É o que se pode concluir da seguinte manifestação:
"...na sala de procedimentos, em relação ao corpo, como as pessoas ficam
vestidas com suas roupas...cada um vai no banheiro, dá para fechar a porta,
eu acho a que tem um pouco mais de condições em relação a isso. A
pessoa fica exposta na passagem de plantão ou a algum comentário
médico...porque tu falas, fulano tem tal e tal coisa...os outros acabam
ouvindo, porque ali é todo mundo junto mesmo..." (Enfermeira 9)
O rompimento da preservação das informações pode ser abordado pela ótica da
quebra da confidencialidade, ou seja, neste ambiente não garantia de resguardo das
informações sobre o paciente (Goldim; Francisconi, 1998). Essa situação ocorre
também em outras áreas do serviço, constatada a partir da seguinte observação:
Permanecendo durante alguns minutos no posto administrativo pude observar que
por ali transitam inúmeras informações...é um local onde estão a maioria dos
telefones, então se escuta as informações fornecidas aos familiares...os auxiliares
administrativos comunicam os médicos sobre a existência de leitos, arrumam os
papéis dos pacientes que vão internar e avisam para as enfermeiras. Também dali
as enfermeiras telefonam para as unidades para "passar" os pacientes. Enfim, é um
lugar de grande circulação de informações e a sua localização estratégica favorece
um contato permanente com a sala de observação de adultos, com o corredor que
acesso a sala de procedimentos, com a área de prescrição médica e com o posto
de enfermagem. (Observação 21)
Outra preocupação em relação à falta de privacidade foi a dificuldade em
proporcionar espaço privativo e confortável aos pacientes:
"..se tu conseguires proporcionar pelo menos um lugar mais tranqüilo,
menos agitado para o vovozinho, para a vovozinha..." (Enfermeira 10)
"..quando eu estou doente, com febre, eu me sinto dengosa,
melindrada...todo mundo se sente assim...então eu não quero que fiquem me
incomodando, que fiquem gritando, que fiquem conversando. Eu gosto que
alguém venha me oferecer alguma coisa, que me tratem bem." (Enfermeira
2)
"... às vezes tu vês pacientes terminais em uma cadeira de rodas e tu sabes
que não vão durar mais que um dia...é oferecer um pouco de dignidade...o
97
mínimo que tu podes oferecer é um lugar mais reservado, um pouco mais
acomodado, com o familiar junto..." (Enfermeira 11)
Essas declarações refletem outra dimensão da questão: as enfermeiras percebem
que o desconforto leva à falta de privacidade, principalmente porque os pacientes estão
debilitados e fragilizados. Proporcionar um espaço tranqüilo, silencioso e confortável
passa a ser um compromisso moral, à medida que representa uma forma de
solidariedade humana.
Diante da realidade de superlotação do Serviço de Emergência, oferecer
privacidade é uma possibilidade remota, visto que, além de camas insuficientes, as luzes
permanecem continuamente acesas e ruídos oriundos dos monitores cardíacos, da
conversa entre os profissionais e dos próprios pacientes.
Segundo Allen (1995) as solicitações de silêncio, que geralmente existem nos
hospitais, são para atender necessidades físicas e psicológicas de sossego e paz de
espírito dos pacientes. Mas, além disso, há outras formas de promover a manutenção da
privacidade no Serviço de Emergência, com ênfase na privacidade física:
" Eu dou camisola para eles vestirem ou dou calça...porque é chato, às vezes
tu vais passar uma sonda, está de perna aberta, de frente para a porta..."
(Enfermeira 9)
"...eu tento botar biombo ou levar para atrás da cortina...Eu tenho essa
preocupação, já é alguma coisa..." (Enfermeira 2)
"A gente até procura, na medida do possível, colocar os pacientes por
sexo...a não ser que seja um paciente urgente..." (Enfermeira 10)
"...muitas vezes a gente tem dois, três neutropênicos, porque o tempo de vida
destas crianças está aumentando, em função das medicações, essas coisas
todas...então eles têm sido isolados nos consultórios da frente...fica um
verdadeiro caos quando isso acontece, mas pelo menos eles estão
resguardados, têm o canto deles..." (Enfermeira 14)
98
As falas das enfermeiras do Serviço de Emergência expressam preocupação com
a privacidade, pois cada uma, a seu modo, organiza estratégias para minimizar a
exposição dos pacientes. Observa-se que um simples ato de puxar a cortina pode
significar uma consideração a valores humanos essenciais. Essa tentativa de proteger os
pacientes, caracteriza-se num gesto humano no cuidado que corresponde ao respeito e à
preservação da dignidade (Selli, 1998; Allen, 1995).
De qualquer forma, na opinião das informantes, parece que essas ações
geralmente são isoladas, não havendo, no grupo de enfermeiras, uma mobilização mais
efetiva para manter a privacidade:
"...é a tal situação, da superlotação, por uma série de coisas, as pessoas
acabam ficando indiferente a isso...se esquecem que poderia ser tu no lugar
do paciente..." (Enfermeira 9)
"...acho que as pessoas são pouco comprometidas com esse aspecto humano,
talvez precise mais leitura ou mais treinamento nessa área humana (...) às
vezes tu te preocupas, tu organizas as coisas de um jeito e tu chegas no
outro dia e tu vês que essa questão não foi avaliada ou que a privacidade
não era prioridade para a minha colega e isso me cria um pouco de
conflito." (Enfermeira 10)
Diante das informações das enfermeiras, fica claro que existem muitas
dificuldades para manter a privacidade dos pacientes no Serviço de Emergência.
Segundo Helman (1994), é impossível isolar crenças culturais e comportamentos do
contexto onde ocorrem. Nesse sentido, o comportamento das enfermeiras reflete as
dificuldades de manejar as situações decorrentes de um ambiente superlotado, que
oferece poucas condições de privacidade. Em função disso, parece haver uma
naturalização de um evento que causa sofrimento. As palavras indiferença,
esquecimento, falta de compromisso, manifestadas pelas informantes expressam essa
situação. Portanto, pode-se fazer o seguinte questionamento: como seria o
99
comportamento do mesmo grupo de enfermeiras se as condições de manutenção da
privacidade fossem mais favoráveis? Essa reflexão remete à idéia de que num mesmo
grupo os comportamentos podem ocorrer a partir de uma condição ambiental ou de um
valor moral.
Sendo assim, dentro da realidade atual, é importante que as enfermeiras estejam
sensíveis ao desenvolvimento de estratégias, ao lidar com as dificuldades de manter a
privacidade num ambiente superlotado. Os obstáculos existem e são reais, porém
haverá possibilidade de superá-los se houver uma predisposição daqueles que vivem
esses dilemas.
6.3 Conflitos nas relações interpessoais
As relações interpessoais que se estabelecem no mundo do cuidar do Serviço de
Emergência decorrem da convivência entre as pessoas ali presentes: pacientes,
familiares e profissionais. As pessoas coabitam permanentemente o mundo do cuidar
como fios que completam uma complexa teia de relações (Crossetti,1997). Essas
interações humanas dão vida e forma aos acontecimentos do mundo do cuidado.
A percepção compartilhada no mundo dos indivíduos de um grupo cultural
influencia a forma de ver o mundo, de vivenciá-lo emocionalmente e de comportar-se
dentro dele, em relação ao ambiente e às pessoas (Helman, 1994). Nesse sentido, a
história e as experiências vividas pelo grupo do Serviço de Emergência justificam a sua
visão de mundo e expressam a sua maneira de viver. A partir desse mundo de relações
interpessoais emergiram algumas inquietações na relação entre as enfermeiras, entre as
100
enfermeiras e a equipe médica e também entre as enfermeiras e os pacientes e seus
familiares.
6.3.1 Enfermeiras: encontros e desencontros
As enfermeiras do Serviço de Emergência manifestaram a existência de conflitos
entre as colegas, principalmente em função da carência de recursos físicos e materiais
necessários à realização de um cuidado de enfermagem que vai ao encontro das
necessidades dos pacientes.
O número excessivo de pacientes faz com que todas as possibilidades de
acomodação sejam usadas, e as enfermeiras enfrentam inquietações e se colocam numa
posição de encontrar alternativas, as quais, muitas vezes, são motivo de conflito no
grupo, visto que são percebidas de variadas formas, como manifesta a fala a seguir:
que depende do lugar onde tu estás Se tu estás na SP, tu pensas de uma
forma, se tu estás na SO, tu pensas de outra, a mesma pessoa. Se tu estás na
SO, tu queres trabalhar com folga, tu queres deixar uma ou duas macas,
porque sempre chega alguma coisa. Se tu estás na SP, tu pensas que os
pacientes estão mal acomodados, que eles estão precisando deitar, que eles
têm que passar para a SO e, na verdade, é menos um problema para ti
pensares, então tu queres passar o paciente para a SO ou tu queres internar
o paciente. Então a mesma pessoa pensa diferente, em locais diferentes.."
(Enfermeira 2)
De acordo com esse relato, observa-se que as enfermeiras vivem dificuldades
(dilemas) diferentes, dependendo da área do serviço em que estão desenvolvendo suas
atividades.
A enfermeira, quando está na sala de observação de adultos, tem sob os seus
cuidados pacientes acomodados em leitos ou macas, e a preocupação maior é reservar
uma maca para acomodar aquele paciente que tem possibilidade de chegar, geralmente
101
em situação de emergência. Esta é uma situação imprevisível, mas freqüente, portanto
parece ser uma atitude prudente deixar uma infra-estrutura mínima para esses
atendimentos.
A enfermeira, quando está na sala de procedimentos de adultos, enfrenta um
ambiente de total desconforto, pois pessoas doentes permanecem sentadas por muitas
horas, situação incompatível com um cuidado humanizado. Torna-se evidente, então, o
motivo pelo qual as enfermeiras desejam passar os pacientes para a sala de observação,
porque na sala de procedimentos existe grande número de pacientes em condições
inadequadas de acomodação. Passar para a sala de observação significa oferecer um
cuidado de melhor qualidade para aquele paciente que vai para o leito e, de certa forma,
também para aqueles que ficam, pois, com a transferência de um paciente que necessita
de muitos cuidados, a enfermeira e os outros profissionais podem dedicar mais tempo
para cuidar dos outros pacientes.
Diante do exposto, percebe-se que as enfermeiras, quando respondem pela sala
de procedimentos, têm dificuldades em aceitar as restrições impostas pelas colegas da
sala de observação.
"...os argumentos que ela usou para que eu não passasse o paciente não
eram fortes, tipo assim: 'eu não consegui ver todo mundo, eu não consegui
me organizar'. Isso para mim não é critério para não passar paciente grave
que está piorando. Agora, se tu estás atendendo uma urgência, tu estás
atendendo um paciente grave, eu não posso sobrecarregar com mais um, a
não ser que eu me disponibilize a vir te auxiliar e dar o primeiro
atendimento, o que a gente normalmente faz. Mas argumentos como: 'ah, eu
agora não posso ver' ou 'eu agora tenho que passar uma sonda', isso eu não
aceito, eu acabo impondo. Eu tive situações bem desagradáveis em
relação a isso, mas eu acho que tem que priorizar, tem que ter bom senso
nessas situações." (Enfermeira 16)
Se a condição de gravidade de um paciente que necessita passar para a sala de
observação for considerada, a argumentação dessa enfermeira torna-se inquestionável,
102
diante da necessidade de atendimento imediato. Além disso, partindo-se da idéia de que
a avaliação, além de seguir critérios técnicos, também tem um caráter subjetivo, pode-se
entender a diferença de visão das enfermeiras envolvidas nessa tomada de decisão,
principalmente porque cada uma vive o problema de uma forma.
Nesse contexto, a resistência da enfermeira da sala de observação gera uma
situação de impotência na colega da sala de procedimentos, que tem eliminada a
alternativa de solução para o problema. Por outro lado, a pressão realizada pela
enfermeira da sala de procedimentos remete à idéia de que a enfermeira da sala de
observação tenta impor alguma forma de limite, na perspectiva de trabalhar num
ambiente ideal de cuidado. Mas, em função de outras prioridades, essa perspectiva
nunca chega a se concretizar. Ao paciente mais grave e, enquanto ele assim permanecer,
lhe é garantida a primazia do atendimento. Esse comportamento certamente influencia a
qualidade dos cuidados prestados aos demais pacientes, à medida que o acúmulo de
atividades não favorece a personalização dos cuidados.
As enfermeiras relataram conflitos entre as colegas, relacionados com a
transferência dos pacientes da sala de observação para a sala de procedimentos. No
entanto, durante as observações, presenciou-se muitos momentos em que as enfermeiras
da sala de observação se preocupavam em organizar o ambiente para admitir novos
pacientes, através do remanejo interno dos pacientes, da agilização da limpeza das
macas e de modificações na escala dos técnicos de enfermagem. Essa situação pode ser
ilustrada a partir deste registro:
Fiquei impressionada com a disposição das enfermeiras em agilizar a entrada dos
pacientes que aguardavam leito sentados ao longo do corredor, diante do número e
da gravidade dos pacientes que estavam na sala de observação. (Observação 9)
103
O conteúdo desse registro provocou, na pesquisadora, a sensação de estranheza
em relação ao comportamento das enfermeiras, porque, frente às circunstâncias, poder-
se-ia esperar uma resistência na recepção de novos pacientes. Mas, em diversas
ocasiões, percebeu-se espontaneidade na comunicação entre as enfermeiras, que
combinavam formas de acomodação dos pacientes, parecendo que tanto o problema
quanto as soluções já estão incorporados ao cotidiano.
O principal conflito que emergiu na relação das enfermeiras do Serviço de
Emergência parece concentrar-se no desejo de acomodação dos pacientes e no
enfrentamento de alguns impedimentos. Esse dilema faz parte do cotidiano das
enfermeiras, as quais apresentam duas formas de resolver a situação:
"Eu tento conversar, mas às vezes eu imponho...eu tive situações que as
colegas não queriam receber o paciente e eu falei: 'eu vou mandar o
paciente, o paciente precisa passar e depois nós vamos discutir e vamos ver
como é que vai ser.' " (Enfermeira 16)
"Olha, geralmente eu tento explicar que o paciente pode cair, pode se
machucar. E quem vai responder por isso? Tento colocar: 'se fosse teu
familiar, tenta te colocar no lugar', tento mostrar a realidade do paciente
também e não a nossa, porque as pessoas tendem a ter uma atitude
egoísta." (Enfermeira 9)
Conforme o relato das enfermeiras, observa-se que a transferência dos pacientes
da sala de procedimentos para a sala de observação ocorre pela imposição ou pela
negociação. Na primeira circunstância, a enfermeira decide sozinha, porque o paciente é
grave ou porque a situação extrapola o limite do suportável. Na segunda circunstância, a
enfermeira tenta sensibilizar a colega, para que haja um entendimento e uma decisão
conjunta.
Ambos os comportamentos fazem parte da relação das enfermeiras do Serviço
de Emergência e dão conformação ao modo de ser desse grupo. Tanto a resistência
104
quanto a imposição podem ser consideradas uma atitude egoísta se analisadas sob o
ponto de vista de que cada uma defende o seu interesse. Por outro lado, também pode
ser entendida como altruísta, caso se vislumbre a intenção de defender os interesse dos
pacientes. Nessa segunda perspectiva, as enfermeiras são desafiadas a sair de seu
sistema de referência pessoal, assumindo uma atitude de virtude de cuidado, inerente à
prática moral de enfermagem e que envolve a apreciação da situação do outro para
promover o seu bem-estar (Gastmans; Casterle; Schotsmans, 1998).
6.3.2 Enfermeiras e equipe médica compartilhando o cuidado
As enfermeiras referem a existência de alguns conflitos com a equipe médica, os
quais também se relacionam às dificuldades de distribuição dos recursos existentes no
ambiente. Um deles, é a discordância dos médicos em relação a iniciativa de transferir
algum paciente da sala de procedimentos para a sala de observação.
"...já aconteceu de eu conseguir argumentar e a minha opinião prevalecer,
mas não são todas as pessoas que têm essa abertura, de tu opinares e tu
resolveres. Têm contratados que não querem que a gente opine, então eu
respeito. Mas já aconteceu de eu achar que um paciente está piorando muito
na SP, eu achei que ele devia passar para SO, o médico não concordou, eu
passei e depois nós vamos brigar em outro lugar." (Enfermeira 16)
"O que pode acontecer é eu achar que eu deveria passar um paciente e ele
me convencer que tem que passar outro, ou eu o convenço que tem que
passar o meu, mas sempre tem um diálogo. O ideal seria acomodar os dois,
acomodar todos que a gente decidisse que tem que passar, mas não é bem
assim." (Enfermeira18)
Observa-se, aqui, que as enfermeiras assumem diferentes posturas no
relacionamento com a equipe médica.
105
Existem situações em que ocorre uma discussão a respeito das condições dos
pacientes, onde os profissionais trocam informações, sustentam um ponto de vista, até
que um convence o outro de que aquela é a melhor escolha. Nessas circunstâncias,
ocorre uma interação entre os profissionais e mesmo que a opinião de um prevaleça
sobre a de outro, a tomada de decisão é construída através do diálogo e do
entendimento.
Essa dinâmica pode ser compreendida, segundo Benner, Tanner e Chesla (1996),
como uma habilidade de negociação, adquirida pelas enfermeiras através da experiência
profissional. A fala da enfermeira 18 evidencia essa situação, quando percebe a
necessidade de estabelecer prioridades, diante das dificuldades do ambiente, mas a
tomada de decisão ocorre num clima de tranqüilidade. Esse tipo de relacionamento
acontece, conforme as autoras, entre médicos e enfermeiras com experiência clínica,
porque a preocupação desses profissionais não se restringe ao cumprimento de regras ou
à disputa pelo poder, mas à união de conhecimentos que objetivam atender as
necessidades dos pacientes. No contexto do Serviço de Emergência, constatou-se
inúmeras circunstâncias semelhantes a essa, em que médicos e enfermeiras
selecionavam os pacientes, definindo as prioridades, conjuntamente.
Mas a informação da enfermeira 16 deixa claro, também, que situações em
que os profissionais decidem sozinhos. Num primeiro momento, a enfermeira reconhece
o espaço de decisão médica, não interfere no processo e fica aguardando as
determinações. Num segundo momento, ao constatar um agravamento das condições de
saúde do paciente, a enfermeira decide transferi-lo de área e depois vai conversar com o
médico.
106
Nessas circunstâncias de tomada de decisão, presenciou-se situações em que as
escolhas não eram realizadas em conjunto entre médicos e enfermeiras, mas a
autonomia de cada profissional e a relação de confiança que se estabelece no cotidiano
não comprometia a forma de se relacionar. Por outro lado, o conflito nas relações,
manifestado pelas enfermeiras, parece ocorrer quando surge uma cisão do trabalho em
equipe, situação em que cada um decide as prioridades do atendimento a seu modo, sem
considerar as diversidades daquele mundo do cuidado, onde a visão de cada profissional
deveria representar uma parte desse contexto. Em relação a isso, Benner, Tanner e
Chesla (1996) referem que essas circunstâncias de conflito geralmente são enfrentadas
com competição ou com acomodação, sendo que ambas as posturas não promovem
interação, nem colaboração. A falta de integração gera um distanciamento entre os
profissionais, situação que não favorece a complementaridade das ações, mesmo diante
de objetivos comuns. Isso, no contexto do Serviço de Emergência, poderia estimular a
falta de agilidade e a despersonalização dos cuidados.
Outra situação desvelada, foi o descontentamento das enfermeiras em função de
a equipe médica atribuir uma qualificação simplista à enfermeira da triagem, quando
dificuldades em mandar os pacientes embora.
"...muitas vezes eu ouvi eles dizendo: 'bom, hoje vai entrar mesmo, porque
quem está na frente deixa passar tudo'. Como deixa passar! Não deixa
passar, as pessoas vêm, procuram, evidente que vai ter que entrar. Não quer
que fique, manda embora, mas daí eles não mandam". (Enfermeira 14)
Essa manifestação demonstra que esta enfermeira, quando está na triagem,
sente-se estigmatizada e pressionada pela equipe médica a conter o fluxo de pacientes.
Essa circunstância pode ser entendida em função do diferente significado que aqueles
profissionais atribuem ao momento da chegada dos pacientes ao serviço, visto que as
107
enfermeiras mantém um contato direto com os pacientes e seus familiares e os médicos
praticamente não participam da triagem.
Porém, também ocorre situação inversa, quando a mesma enfermeira questiona a
conduta de um pediatra.
"...conflito direto é no julgamento dos pacientes, quando me parece que não
existe maior indicação...Porquê tem que trazer todos para sala de
observação? Controlar a febre, tu podes controlar aqui dentro, tu podes
controlar lá na sala de procedimentos. Me parece que ele tinha que ser mais
coeso, mais direto no atendimento, ele não pode querer ter as atitudes que
tem, num local onde nós não temos sequer espaço para todas essas
crianças." (Enfermeira 14)
A declaração dessa enfermeira reforça a idéia de que a mesma pessoa,
dependendo das circunstâncias, a questão de uma forma diferente. Quando ela está
na triagem, existe a convicção de que o paciente tem que entrar, tem que ficar. E a
reação dos médicos a incomoda, porque não uma valorização da sua avaliação. Mas,
quando está na sala de observação pediátrica, questiona a avaliação médica, criticando a
decisão de deixar o paciente, que desta vez é ela que está isenta da interação que se
estabeleceu no momento de chegada do paciente.
A partir dos comportamentos evidenciados, fica claro que o modo de se
relacionar dos profissionais envolve circunstâncias dinâmicas, com diferentes graus de
interação e comunicação.
É importante salientar que, mesmo manifestando algumas divergências, as
enfermeiras consideram que o relacionamento com os médicos é bom e que o trabalho é
desenvolvido de modo integrado:
"...a equipe trabalha bem, trabalha tranqüila." (Enfermeira 14)
"Até acontece, mas não é nada que extrapole." (Enfermeira 18)
108
"...a enfermeira escolheu quem vai passar, mas mesmo assim ela vai e
fala para o médico." (Enfermeira 11)
Essas falas revelam que os conflitos entre médicos e enfermeiras existem, mas
num ambiente onde a exposição a dilemas é freqüente, esses problemas não adquirem
grandes proporções, pois o grupo desenvolveu habilidades para resolver as dificuldades
em conjunto. Sendo assim, essa postura tem implicação ética, à medida que a disposição
para o diálogo entre os profissionais pode repercutir em melhor atendimento aos
pacientes.
Outra questão que, talvez, facilite o entrosamento no grupo é o fato de as
pessoas alternarem-se constantemente nos papéis, permitindo que um entenda as
dificuldades do outro. um clima de confiança, tolerância e boa vontade para dividir
as responsabilidades no exercício cotidiano de admitir diferentes modos de pensar, de
agir e de sentir entre os indivíduos.
Nesse sentido, Nolan (1995) enfatiza a interdisciplinaridade no cuidado,
abordagem que não nega a importância das habilidades específicas, mas que visa
reduzir as fronteiras profissionais. Esta aproximação torna-se necessária no contexto do
Serviço de Emergência, pela multiplicidade e complexidade das situações deste
ambiente de cuidado.
A relação interpessoal é um aspecto positivo nessa equipe de profissionais,
ajudando-a a enfrentar os dilemas éticos vivenciados e, conseqüentemente, a promover
a qualificação dos cuidados.
109
6.3.3 Enfermeiras, pacientes e familiares vivenciando o cuidado
O relacionamento das enfermeiras com os pacientes do Serviço de Emergência
envolve sempre a família, pois eles vêm acompanhados por alguém que compartilha
com eles um momento de fragilidade física e emocional.
A família, segundo Crossetti (1997), é uma instituição que tem como centro o
Ser-com-o-outro, portanto ela entra no mundo do cuidado com um papel fundamental, o
de suporte. A rede de apoio torna-se importante, pois, de certa maneira, a doença
também é da família e os eventos que dela decorrem repercutem na sua dinâmica de
funcionamento.
A presença da família é uma constante no Serviço de Emergência e, de acordo
com as circunstâncias, vai assumindo diferentes características.
Quando os pacientes chegam para o atendimento, são os acompanhantes que
auxiliam no transporte, providenciam os trâmites administrativos e fornecem as
informações relativas ao motivo de procura ao serviço. É também para a família que,
freqüentemente, os profissionais repassam as informações sobre as condições do
paciente e sobre as rotinas locais.
Durante a permanência dos pacientes no serviço, as crianças ficam com um
familiar durante todo o tempo, o qual participa ativamente dos cuidados. Na sala de
observação de adultos, existem horários de visita, flexibilizados de acordo com a
situação, pois é um ambiente superlotado, sem área física para acomodar familiares.
Além disso, é nesta área que são atendidas a maioria das situações de emergência. Na
sala de procedimentos de adultos, os familiares permanem junto aos pacientes mais
debilitados, que ficam sentados ou deitados nos consultórios. O espaço é restrito e a
110
infra-estrutura não comporta o atendimento de pacientes dependentes, por isso a
presença do familiar torna-se necessária, porque esses pacientes precisam
constantemente de atenção e auxílio. Nesse cenário, observa-se que a família adquire
lugar de destaque, serve de amparo e proteção, no período de vulnerabilidade dos
pacientes.
"Antigamente eu não gostava, os familiares me atrapalhavam, porque eles
passavam o tempo todo perguntando, perguntando. O familiar tem essa
ansiedade. O paciente também tem, mas a maioria das vezes eles estão
doentes, eles precisam, então eles aceitam pacientemente o que está
acontecendo com eles, mas o familiar não. Então, se tu trabalhares com o
familiar, no sentido de orientar, de dizer o que o paciente tem, ele se acalma
e ele te ajuda." (Enfermeira 2)
A informação trazida por essa enfermeira ratifica que os pacientes, frente a uma
situação de doença, ficam com a autonomia reduzida. Essa circunstância se agrava no
contexto do Serviço de Emergência, pois a exaustão dos recursos existentes
freqüentemente reduz as possibilidades de escolha. Assim, os familiares assumem a
responsabilidade de defender os interesses daqueles que lhes são próximos e tentam
criar um contexto de suporte interpessoal, que amenize esta condição de incapacidade
(Nuñez; Cajal, 1996).
A ansiedade dos familiares se justifica pelo sentimento de insegurança que
permeia o período de espera pelo diagnóstico, pelo leito e por todas as necessidades que
não estejam sendo contempladas. Além destas questões que se relacionam com a
condição do paciente, também existe o desconhecimento das peculiaridades do contexto
hospitalar, outro fator que dificulta uma ação com autonomia.
Conforme o relato da enfermeira 2, enquanto o familiar estiver vivenciando a
sensação de incerteza, indaga repetidamente, causando desconforto na equipe de
profissionais e gerando um clima de dúvida e desconfiança. No momento em que os
111
profissionais se dispõem a informá-lo e a integ-lo no processo de cuidado, a ansiedade
se transforma em tranqüilidade e colaboração, num movimento de aproximação, em
busca de um objetivo comum: melhorar as condições de saúde do paciente.
Essa interação demonstra um aperfeiçoamento das relações e essa atitude de
cuidado influencia a percepção de bem-estar dos pacientes. Bruce, Bowman e Brown
(1998), em pesquisa sobre os fatores que influenciam a satisfação dos pacientes num
serviço de emergência, verificaram que os pacientes valorizam, além da competência
técnica, aspectos psicossociais: a demonstração de preocupação e de compaixão por
parte das enfermeiras, a paciência, o estímulo da participação da família e um
comportamento afetivo. Williams (1998) complementa que o significado do cuidado de
enfermagem para os pacientes envolve as características interpessoais das enfermeiras e
a interação delas com eles.
No Serviço de Emergência, as enfermeiras reconhecem a importância da
presença dos familiares. Ao mesmo tempo em que pacientes e familiares têm algumas
de suas necessidades atendidas, as enfermeiras, com o passar do tempo, observaram que
esse contato era uma alternativa para enfrentar os dilemas decorrentes da superlotação
do ambiente do cuidado.
"...eu dou cartãozinho para a vovozinha, eu digo para ela: 'a senhora entre,
não fique do lado dela o tempo todo, porque não tem espaço aqui dentro,
fica tumultuado, mas a senhora entre de 10, de 15, de 20 em 20 minutos,
venha ver se ela precisa ir no banheiro, se ela quer uma aguinha, auxilie na
alimentação, carinho, conforto para o seu familiar', porque a gente
não tem condições de dar isso aqui. (...) se o paciente é confuso nem se fala,
deixo grudado, quase algemado, um do lado do outro, que é para não
acontecer nada " (Enfermeira 2)
Esse depoimento demonstra que a participação do familiar nos cuidados ao
paciente possibilita um ambiente mais seguro, confortável e afetivo. O apoio da família
112
pode significar uma forma de amenizar as dificuldades enfrentadas na complexa
dinâmica do Serviço de Emergência, por exemplo o pouco tempo disponível das
enfermeiras para cada paciente.
Com essa atitude das enfermeiras, os familiares passam a fazer parte do mundo
do cuidado, como mais um personagem desse ambiente de relações. Mas, mesmo com
uma convivência tão próxima, existem alguns constrangimentos que, na percepção das
enfermeiras, ocorrem em função de uma visão parcial que pacientes e familiares têm
dos eventos que se sucedem neste ambiente.
"Normalmente esses pacientes crônicos que chegam na emergência já
sabem como é que funciona a coisa. No momento que começa a demorar o
leito, eles começam a se exaltar para conseguir de alguma maneira deitar,
seja subir para o andar, passar para SO, eles já têm as táticas próprias para
saber burlar esse lado. E isso te angustia, porque tu conheces a situação,
tem outros pacientes iguais, outros pacientes piores (...) para cada familiar,
para cada paciente, o seu problema é o pior, ele vai sempre achar que ele
tem que passar antes do outro (...) isto incomoda, porque tu vês que não é
uma maneira correta de agir. Claro, é paciente, tem que ter paciência,
que a gente é que sabe, a gente tenta explicar, o paciente não entende, o
familiar não entende e chega um momento de estresse..." (Enfermeira 19)
Na declaração dessa enfermeira, pode-se observar que há uma diferença na
maneira como os problemas se apresentam para as pessoas envolvidas. Os pacientes e
seus familiares vêem a questão sob um prisma individual, ou seja, existe a necessidade
de acomodar e de dar atenção para uma pessoa que está doente. Para atingir este
objetivo, muitas vezes são utilizadas estratégias, as quais podem ser motivo de dilema
para as enfermeiras, que têm a responsabilidade pelo cuidado de todos aqueles que estão
no serviço. Esse comportamento de pacientes e familiares cria uma atmosfera de
animosidade nas relações, pois as enfermeiras sentem-se coagidas a agir contra a
própria vontade, ficando uma sensação de injustiça de ambos os lados.
113
A partir dessas reflexões, observa-se que a família, o paciente e a equipe de
profissionais constituem a essência das relações interpessoais no Serviço de
Emergência. Os pacientes sofrem pela própria doença, pela falta de autonomia e pela
desinformação. Os familiares enfrentam situações de estresse, ansiedade e incredulidade
(Nuñez; Cajal, 1996). Diante disso, é tarefa das enfermeiras entender como ocorre esse
processo para ajudá-los. Além disso, também torna-se um desafio, o ato de sensibilizar
o paciente e a família para que entendam as circunstâncias do atendimento, pois é
também com sofrimento que as enfermeiras enfrentam algumas situações.
"...quando está muito cheio, tem muito familiar, muito paciente dependente,
o familiar te pressiona. Às vezes ficam na tua frente: 'enfermeira, tu não vais
conseguir?, enfermeira quando é que vocês vão dar um jeito?, isso não pode
ficar assim!'. Então, as pessoas vem te culpando por aquela situação, vem te
agredindo, isso também é uma coisa que eu não tolero." (Enfermeira 9)
"É uma situação bem conflitante. A gente tem que ter um equilíbrio, como se
te vestissem uma carapaça. Tu tens que te despir de tudo o que o familiar
está te dizendo, do que o paciente está te dizendo. Mexe com os teus
sentimentos, está agredindo, está usando palavras grosseiras. Não tem
como manter o equilíbrio, muitas vezes. Como o paciente, tu és humana,
como o familiar, tu és humana." (Enfermeira 19)
As falas revelam que, em função da desproporção do número de leitos em
relação ao número de pacientes, nem todos os pacientes ficam bem-acomodados, por
isso as enfermeiras são hostilizadas e sofrem influências constrangedoras e coercitivas.
As reações dos pacientes e seus familiares provocam um desconforto nas enfermeiras,
as quais precisam manejar situações de conflito. A primeira tentativa de proteção é criar
uma condição interna de inatingibilidade, como um escudo invisível, porém reconhecem
que isso é impossível, pois não como manter-se estável emocionalmente, diante de
um comportamento ofensivo. Com relação a essas questões, Nuñez e Cajal (1996)
referem que, nos serviços de emergência, a espera prolongada, as dúvidas sobre o que
114
está ocorrendo e a falta de comunicação entre pacientes e profissionais podem gerar
atitudes agressivas. Sendo assim, pacientes e familiares elegem alguém da equipe de
saúde para fazer exigências, criando-se uma dificuldade de um diálogo compreensivo
entre ambos. No âmbito do Serviço de Emergência, pode-se dizer que essas
circunstâncias comprometem o relacionamento interpessoal, na medida em que a
relação de cuidado envolve reciprocidade e confiança.
Tendo em vista as manifestações das enfermeiras, constata-se que o conflito faz
parte das relações interpessoais. Diante disso, o grupo tem adotado alguns
comportamentos frente aos pacientes e familiares.
"...de uma forma geral, eu não tenho muitos problemas com eles. Eu busco
sei lá que força, eu não sei, deve ser uma coisa minha, interna, de transmitir
segurança para os pacientes. Tu dizes: 'não tem vaga, mas daqui há pouco a
gente vai ver', então tu dás uma satisfação, tu dizes alguma coisa, me
proponho a explicar com toda a paciência, até me sento do lado. Acho que
isso ajuda as pessoas. Agora, se tu és grosseira com as pessoas, elas vêm
de uma maneira agressiva para ti, então eu fico muito irritada, porque eu
tenho a impressão que eu me dispus a fazer o melhor e a pessoa deveria ter
sido diferente. Mas depois eu fico pensando: 'porque a pessoa reagiu
assim?' E tento fazer melhor."
(Enfermeira 9)
"...às vezes tu viras as costas e faz que não ouve, para ver se passa a
agitação do familiar e do paciente, também para evitar outras coisas piores:
bateção de boca e agressão verbal. Tu acabas saindo de cena, mandando
outro colega..." (Enfermeira 19)
As declarações das enfermeiras sugerem que, sempre que possível, a situação de
conflito deve ser evitada, e entendem que a melhor alternativa é uma relação próxima
dos pacientes e seus familiares, que permita o diálogo franco. Assim, existe a
possibilidade de esclarecer as dificuldades, mas sobretudo demonstrar preocupação com
a situação do outro, de modo que ele perceba que, à medida que os problemas de infra-
estrutura vão sendo resolvidos, as condições de atendimento também vão melhorando.
115
Essa forma de proceder envolve a disposição para orientar e para escutar,
estabelecendo-se uma relação de confiança, esperança e respeito. Sendo assim, os
pacientes e os familiares sentem-se amparados e as enfermeiras conseguem resgatar um
comportamento de cuidado, mesmo que o ambiente possa ser desfavorável.
As falas das enfermeiras também revelam que circunstâncias em que o
conflito torna-se inevitável, situação geralmente enfrentada de duas formas. Existem
momentos em que emerge um sentimento de frustração, em função dos pacientes e
familiares não compreenderem os esforços das enfermeiras. Esse sentimento, muitas
vezes, é transformado em reflexão, possibilitando um aprendizado que subsidia o
manejo de situações futuras semelhantes. Mas existem, também, situações em que o
diálogo torna-se impraticável, e a enfermeira prefere retirar-se, a tratar diretamente do
assunto, prevendo que a sua presença pode desencadear um rompimento definitivo.
Pede, então, socorro à colega que, provavelmente, encontrará dificuldades em
encaminhar a situação, devido a tensão que se criou no ambiente.
Diante da diversidade das relações interpessoais no Serviço de Emergência,
observa-se que o comportamento das enfermeiras não é padronizado, mas adaptado a
cada circunstância que se apresenta. Existe uma tentativa de amenizar os conflitos e,
conseqüentemente, o sofrimento das partes envolvidas. Nesse contexto, cuidar em
serviço de emergência significa cuidar dos pacientes e também da família, com a
perseverança de quem enfrenta essa complexa relação todos os dias. No entanto, o êxito
das ações nem sempre alcançam sucesso, pois as características do atendimento neste
ambiente propiciam situações tensas, de difícil manejo e que envolvem todos aqueles
que convivem nesse ambiente.
116
6.4 Enfrentando a morte
A morte é um evento que faz parte do mundo do cuidado do Serviço de
Emergência e tem sido motivo de inquietações para as enfermeiras, expressas nos
discursos das informantes ao manifestarem-se sobre suas dificuldades diante da morte,
em diferentes situações de seu cotidiano.
Uma circunstância de sofrimento para as enfermeiras é a morte de pacientes que
sistematicamente procuram atendimento no serviço.
"Tu tens muito vínculo com alguns pacientes, porque eles são crônicos,
então tu sofres." (Enfermeira 2)
"...são pacientes que vêm várias vezes e tu acabas conhecendo e te
envolvendo com o problema deles. Nessa situação é mais difícil para eu
aceitar o óbito do paciente e lidar com a questão da família." (Enfermeira
19)
As falas das enfermeiras demonstram que, mesmo num ambiente em que a
prioridade são os atendimentos de emergência, existem laços que unem pacientes e
profissionais. Essa aproximação ocorre em função do retorno freqüente dos pacientes
com doença crônica ao serviço, o que possibilita maior convivência e,
conseqüentemente, o desenvolvimento de uma relação de cuidado com participação de
um na vida do outro. A quebra desse vínculo gera circunstâncias de angústia e aflição
para as enfermeiras, que necessitam desenvolver formas de admitir ou conformar-se
com a morte e, além disso, estabelecer uma relação de ajuda com a família.
Outra situação conflitante para as enfermeiras é a morte de jovens e crianças,
quando, então, o grupo enfrenta momentos difíceis, em que afloram sentimentos
penosos de serem encarados. É o que se percebe nas seguintes falas:
117
"...em uma hora tu estás perdendo a criança e não consegues fazer nada."
(Enfermeira 14)
"...isso traz bastante angústia e frustração, porque o investimento sempre é
muito grande e às vezes não se tem resultados." (Enfermeira 16)
"Choca quando chega um paciente novo, de 40 anos, de 20 anos e a gente
perde; essa morte que chega rápido, que a gente não consegue entender."
(Enfermeira 11).
A manifestação das enfermeiras carrega consigo uma sensação de impotência
frente a perda de pacientes. É uma situação que foge ao domínio dessas profissionais,
porque acontece em pouco tempo, dificultando a compreensão e a aceitação do fato. A
perda gera um sentimento de fracasso, à medida que a expectativa ao atender um
paciente jovem é a de resgatar a sua condição saudável de vida e não a morte. No
entanto, é necessário que os profissionais que desenvolvem suas atividades em serviços
de emergência reflitam sobre as questões de vida e morte, visto que ambas integram o
mundo do paciente que vive um momento crítico de sua existência.
Sob essa perspectiva, percebe-se que algumas enfermeiras remetem estas
vivências a sua condição humana de enfrentar a sua finitude e daqueles que lhes são
próximos, assumindo uma atitude ora de negação, ora de reflexão:
"A gente tem uma coisa super, de Deus, não podes deixar morrer."
(Enfermeira 2)
"...a gente evita falar (...) A preocupação da gente terminar cria conflitos e
tu começas a questionar as tuas atitudes." (Enfermeira 10)
"A gente se reporta como mãe" (Enfermeira 16).
Diante das manifestações das enfermeiras, a negação da morte é algo
compreensível, pois faz parte da essência humana evitar a dor e o sofrimento. Contudo,
segundo Crossetti (1997), a morte pertence à estrutura existencial do homem, por isso
esse tema não deve ser pensado somente nas situações de crise, quando toma dimensões
118
por vezes incontroláveis. É preciso ser refletido como uma presença contínua, portanto a
autêntica aceitação da morte haverá de ser um sentir constante da presença dela.
A aceitação da morte parece ganhar mais espaço quando significa a
possibilidade de redução da dor física e emocional daqueles pacientes que têm pouca ou
nenhuma possibilidade terapêutica, não podendo ser desviados do curso da morte. Essa
postura pode ser entendida a partir das seguintes declarações:
"Em relação a esses pacientes crônicos, eu vejo a morte como um alívio do
sofrimento. Muitas vezes eu até discordo de condutas muito invasivas, de
coisas muito heróicas que são feitas com esses pacientes seqüelados, que
praticamente não têm vida de relação. Eu acho importante a gente dar para
o paciente condições de vida e de morte também dignas." (Enfermeira 16)
"...a tecnologia é, muitas vezes, ruim para o paciente, porque às vezes um
paciente não tem mais chance de ter uma vida normal e ele fica ali numa
cama, então é um transtorno para família, para essa pessoa, e que, no meu
entendimento, não traz benefício para ninguém. Então, eu acho que quando
é um paciente terminal, eu me sinto aliviada porque terminou, porque a
gente acaba causando um sofrimento para esse paciente, ao invés de
ajudar." (Enfermeira 9)
As manifestações das enfermeiras provocam uma reflexão sobre o sofrimento
humano, que pode ser aliviado ou acentuado, dependendo da atitude que os
profissionais mantêm frente ao paciente que está no processo de morrer.
Existem formas de proceder que levam ao prolongamento da vida, mas também
dão continuidade ao sofrimento do paciente, da família e dos profissionais. Esse tipo de
postura demonstra a dificuldade em aceitar os limites humanos, com a utilização da
tecnologia voltada para o tratamento e não para o cuidado humano.
Em relação a isso, Pessini (1999) enfatiza que podemos ser curados de uma
doença mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando se esquece esse fato, cai-se no
uso excessivo da tecnologia e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente.
119
Essa situação caracteriza uma obstinação terapêutica ou distanásia, que adia o inevitável
e insensatamente procura a cura da morte, sem saber o que fazer com os pacientes que
estão morrendo sem cura. A distanásia corresponde a um tipo de morte lenta, ansiosa e
com muito sofrimento, pois, visando manter o paciente vivo, utiliza-se terapêuticas
extraordinárias, desproporcionadas ou fúteis.
O mesmo autor refere que, no outro extremo, a eutanásia, que significa a
abreviação da vida de um paciente reconhecidamente incurável, na tentativa de evitar o
seu sofrimento.
Contrapondo-se a essas duas situações, Pessini (1999) destaca o direito que todo
o ser humano tem de morrer em paz e com dignidade. Aí, surge o conceito de
ortotanásia, ou seja, a arte de morrer bem, no tempo e lugar certo, sem ser vítima da
distanásia ou da eutanásia. O grande desafio, então, é uma posição de equilíbrio,
proporcionando um morrer humano, resgatando a dignidade do ser humano na última
fase de sua vida, principalmente na presença de dor e sofrimento. Sendo assim, o
princípio da não-maleficência passa a ter prioridade sobre a da beneficência
(Beauchamp; Childress, 1994).
Essa perspectiva direciona-se à dimensão ética do cuidado, à medida que aliviar
o sofrimento, manter a dignidade e facilitar meios para administrar as crises e as
experiências do viver e do morrer fazem parte da finalidade do cuidar em enfermagem
(Waldow, 1998). Diante disso, as enfermeiras do Serviço de Emergência demonstram
preocupação com o conforto, neste momento tão especial para os pacientes e seus
familiares, visto que a superlotação do ambiente do cuidado não proporciona condições
ideais de acomodação e privacidade. Esta afirmação se apóia no discurso da informante
9:
120
"...as pessoas fica na emergência vários dias, sem uma condição de conforto
mais adequada, ficam o tempo inteiro numa maca, não tem técnicos
suficientes, eles dependem de muitos cuidados, não te viram de lado, muitas
vezes ficam sujos (...) eu acho que a morte alivia a gente, alivia de ter uma
emergência te tratando mal. Então eu acho que a morte, nestas situações, é
um alívio tanto para os pacientes quanto para nós. (Enfermeira 9)
A fala dessa enfermeira revela o dilema enfrentado por uma equipe que
apresenta dificuldades em proporcionar um ambiente favorável, que atenda as
necessidades mínimas de conforto dos pacientes. Também se refere à impossibilidade
dos profissionais oferecerem todos os cuidados que esses pacientes, fragilizados e
dependentes, precisam, gerando inquietações que introduzem outro significado para a
morte: um alívio para as enfermeiras. Nesse contexto, a morte elimina a sensação de
fazer mal ao paciente, de não assegurar a dignidade e o respeito que eles merecem.
Dessa forma, surge a possibilidade de contemplar os pacientes com alternativas
viáveis:
"...muitas vezes um paciente terminal está sofrendo, está com dor, coloca um
coquetel
24
para a criatura, pelo menos, morrer confortável, sem dor."
(Enfermeira 2)
"Eu costumo preservar o lado dos pacientes terminais, não tem como tu não
te colocares no lugar deles. Imagina se é a minha mãe, morrendo sozinha.
Eu sei que a filha está ali no saguão, sentada, esperando a mãe morrer.
Porque ela não pode ficar junto? Eu acho desumano isso. Então eu vou
na frente e chamo o familiar, sempre tem. Eu dou o cartão e ele vaie fica
junto." (Enfermeira 11)
Essas alternativas apresentadas pelas enfermeiras resgatam esforços para
proporcionar qualidade de vida ante o morrer, e reforça o paradigma do cuidado, que
permite enfrentar os limites de nossa mortalidade com uma atitude de serenidade. É a
ação que se centra mais na pessoa doente do que na doença da pessoa: cuidar
dignamente do paciente em estado terminal significa respeitar a sua integridade,
24
Coquetel - combinação de medicações para analgesia e sedação.
121
garantindo que suas necessidades básicas sejam honradas. Isso quer dizer que a equipe
de profissionais deve estar sensibilizada para manter o paciente livre de dor, oferecer
cuidados contínuos, possibilitar ao paciente que decida sobre o seu tratamento, que seja
ouvido e acolhido como pessoa, em seus medos e sentimentos, valores de fé e esperança
(Pessini, 1999).
Kübler-Ross (1997) refere que, no atendimento de emergência, quem dispensa
atenção à pessoa em primeiro lugar pode perder um tempo precioso para salvar-lhe a
vida. No entanto, é necessário dar mais atenção ao paciente sob os lençóis e cobertores,
segurar a sua mão, sorrir ou prestar atenção numa pergunta. Essa é uma atitude solidária
e uma abordagem mais humana, menos mecânica e despersonalizada.
Essa atitude solidária percebe-se, também, na equipe de profissionais,
evidenciada quando as enfermeiras manifestam a sua preocupação com os médicos, pois
reconhecem que existem situações em que eles ficam sobrecarregados em decidir o
tratamento mais adequado para cada paciente em iminência de morte:
"...é uma decisão médica muito difícil, que vai da vivência de cada um em
relação a isso, da frustração. Então eu acho que a gente tem que respeitar
esse sentimento, porque para eles é um dilema muito maior, porque são eles
que tomam a decisão de investir ou parar de investir. Têm médicos que
dividem conosco essa decisão. Eu acho isso bom, porque divide o ônus de
decidir. Tem outros que não, que decidem sozinhos, mas eu acho que a gente
tem que respeitar, porque é uma coisa que é deles e que deve trazer muito
conflito, claro que traz." (Enfermeira 16)
A fala dessa enfermeira demonstra que o tema morte é bastante complexo, pois
não envolve somente aspectos técnicos. Decidir sobre questões de vida e morte torna-se
difícil, pois remete o sujeito aos valores e aos sentimentos mais profundos da existência
humana. É neste momento que se revela a forma como cada um percebe o mundo e lida
com a sua finitude.
122
O desenvolvimento tecnológico criou a expectativa de se atingir a imortalidade,
por isso tem-se que resgatar a humanidade de cada um e compreender quando a morte é
inevitável. Só assim haverá condições de aceitá-la e desenvolver um cuidado que atenda
as necessidades dos pacientes em seus últimos momentos de vida.
123
7 REFLEXÕES SOBRE OS DILEMAS ÉTICOS NO SERVIÇO DE
EMERGÊNCIA E AS DECISÕES DAS ENFERMEIRAS
A vivência com as enfermeiras, durante esta pesquisa, possibilitou-me
rememorar inquietações experienciadas previamente e refletir sobre o processo de
tomada de decisão, frente aos dilemas éticos revelados no Serviço de Emergência.
A afinidade com o tema abordado e a interação estabelecida com as enfermeiras,
fortalecida ao longo da pesquisa, favoreceu a realização deste estudo e facilitou-me
perceber os dilemas, conhecer e entender as nuanças do ambiente, mesmo que, na
condição de pesquisadora, o olhar lançado sobre o mundo do cuidar fosse diferente.
Esse cenário, caracterizado por diferentes tipos de ocorrências, exige decisões
diversas, que são influenciadas pelos valores profissionais e pela singularidade dos seus
personagens. Portanto, as decisões da equipe expressam maneiras de cuidar, baseadas na
visão de mundo predominante neste contexto, ao qual as enfermeiras pertencem.
Essas profissionais convivem com os mesmos dilemas e exercem as práticas de
cuidado de maneira compartilhada. Essa prática, num mundo cujos eventos tendem a se
repetir, desvela padrões comuns de conduta entre os profissionais que nela atuam,
definindo modos de pensar, que se tornam princípios orientadores de ações. Nesse
sentido, percebe-se que o Serviço de Emergência constitui um mundo culturalmente
definido pelos seres que o habitam e pelos eventos que nele acontecem. Esse modo de
ser e viver tão peculiar determina as formas de lidar com as incertezas presentes nessa
realidade.
As enfermeiras manifestaram os dilemas sob diferentes dimensões,
demonstrando sua forma de ver, de pensar e de agir. Estes dilemas ficaram
124
caracterizados nas categorias de análise: o acesso aos cuidados, a superlotação do
ambiente do cuidado, os conflitos nas relações interpessoais e enfrentando a morte.
Os dilemas referentes ao acesso aos cuidados têm relação com a atividade
desenvolvida pela enfermeira na área de triagem. Ao realizar essa atividade, as
enfermeiras vivem inquietações ao decidir quem será atendido no serviço e quem será
encaminhado para outras instituições.
Quando a enfermeira decide manter o paciente no próprio serviço, consegue
proporcionar-lhe a satisfação de uma necessidade e garantir-lhe um direito, além de
estar prestando um ato de solidariedade. Mesmo assim, o desconforto moral permanece,
porque, em função do excesso de pacientes no ambiente, não condições de realizar
cuidados com qualidade.
A opção de encaminhar o paciente para outras instituições, pode ser uma forma
de limite, numa tentativa de preservar a qualidade dos cuidados àqueles que estão em
sala de observação, mas também pode significar a exposição dos pacientes a riscos e a
ausência de alternativa para as pessoas que necessitam de atenção. Essa situação
mobiliza valores pessoais e profissionais, provocando dilema ético, principalmente pela
possibilidade de causar prejuízos ao paciente.
Percebe-se, então, que a decisão sobre o acesso dos pacientes aos cuidados, no
serviço, gera conflito, porque envolve escolhas opostas e, além disso, nenhum dos
caminhos leva a uma situação ideal. Diante disso, observa-se que o processo de tomada
de decisão na triagem de pacientes é complexo e acompanhado de sofrimento, porque as
enfermeiras experienciam, contraditoriamente, sentimentos de poder e impotência,
impostos por circunstâncias de difícil solução.
125
Os dilemas enfrentados pelas enfermeiras, na realização da triagem dos
pacientes, são agravados por uma sensação de desamparo, em função de uma tomada de
decisão solitária. Compartilhar a tomada de decisão, neste momento, pode aliviar o
conflito moral existente entre o que se deve e o que se pode fazer. Descobrir qual a
opção adequada para cada circunstância tem sido um exercício cotidiano realizado pelas
enfermeiras no ato de triar.
Por ser um dos maiores hospitais que presta serviço ao Sistema Único de Saúde,
e considerando-se a forma como está organizada a rede de atenção primária e
secundária de atendimento à saúde, na qual se observam dificuldades de toda ordem
para o cuidado da população, o cotidiano do Serviço de Emergência do HCPA atesta
uma realidade que transcende as condições físicas, de recursos humanos e materiais
para a assistência das pessoas. Esse fato desvela-se, nesta investigação, através da
superlotação do ambiente do cuidado, situação em que o número de pacientes extrapola
a capacidade de atendimento, impossibilitando os profissionais de oferecerem um
cuidado humanizado.
O excesso de pessoas no ambiente provoca um esgotamento da infra-estrutura e
dos recursos humanos e surge a preocupação com o conforto, com a segurança e com a
privacidade dos pacientes, necessidades básicas de qualquer ser humano doente e que,
nesse contexto, nem sempre podem ser atendidas.
A superlotação também dificulta a interação das enfermeiras com os pacientes,
as quais, sobrecarregadas de tarefas, mantêm cuidados padronizados e
despersonalizados. Esse cotidiano torna a ação uma prioridade em relação à refleo,
principalmente num ambiente onde a gravidade do paciente determina as decisões. Esse
pode ser um dos fatores que imobiliza as enfermeiras a desenvolver alternativas de
126
solução frente aos dilemas vividos. Diante disso, o grupo têm que enfrentar o desafio
de manter a dignidade humana num ambiente desumano, pois, mesmo pressupondo-se
que uma justificativa técnica de ação, as enfermeiras não estão isentas de viverem
conflitos morais, pelo simples fato de que a relação de cuidado carrega consigo uma
dimensão ética, envolvendo habilidades e atitudes. Isso justifica a presença de
objetividade e de sensibilidade nas tomadas de decisão das enfermeiras, mesmo que
determinadas atitudes nem sempre sejam refletidas.
Em se tratando de um ambiente superlotado, em que coabitam inúmeras pessoas
diferentes, desvelam-se, também, conflitos nas relações interpessoais.
No relacionamento entre as enfermeiras observaram-se situações de conflito,
principalmente no que tange à acomodação dos pacientes, pois necessidade de
administrar as circunstâncias que dificultam proporcionar conforto aos pacientes e
qualidade aos cuidados de enfermagem, num ambiente em que as peculiaridades de
cada área e os valores dos profissionais possibilitam várias formas de compreender a
mesma situação. Percebe-se, então, que, apesar de as enfermeiras manifestarem
interesse comum no bem-estar dos pacientes, as divergências ocorrem em função de
significados próprios atribuídos a cada circunstância, ou seja, diferentes percepções
levam a diferentes modos de agir.
As dificuldades entre enfermeiras e equipe médica relacionam-se com a escolha
do paciente que tem prioridade em ser acomodado na sala de observação de adultos e
com a expectativa da equipe médica de que a enfermeira da triagem vai conseguir evitar
a entrada de um número excessivo de pacientes.
Na primeira situação, o conflito acontece quando os profissionais não discutem
os casos dos pacientes e decidem isoladamente, embasados em diferentes pontos de
127
vista. A aproximação entre as equipes e a tomada de decisão compartilhada revelaram-
se como maneiras de amenizar os conflitos, proporcionar situações de crescimento entre
os profissionais, bem como benefícios no cuidado aos pacientes.
Na segunda situação, as enfermeiras sentem-se expostas porque têm um contato
próximo com os pacientes e seus familiares, enquanto que a equipe médica fica
resguardada por não participar diretamente da triagem, cabendo a elas a tomada de
decisão.
Essas divergências entre enfermeiras e equipe médica também podem ser
compreendidas a partir das diferenças profissionais, em que cada grupo carrega consigo
uma experiência cultural específica. Os médicos têm uma formação voltada para o
conhecimento científico, que suporte à realização de diagnóstico e à escolha do
tratamento mais adequado. As enfermeiras, por sua vez, realizam cuidados contínuos ao
paciente, em que a interação e a afetividade podem ser tão importantes quanto os
conhecimentos específicos e as habilidades técnicas. Observa-se, porém, que a
complexidade de inter-relações poderia propiciar maiores problemas nessa equipe de
trabalho, mas o fato de viverem tantas dificuldades em comum, provavelmente,
desencadeia uma aproximação entre as pessoas.
Os problemas que emergiram da relação das enfermeiras com pacientes e
familiares giraram em torno da ansiedade vivida principalmente pelos familiares, diante
das características do atendimento no Serviço de Emergência, que mescla circunstâncias
de gravidade com o esgotamento da infra-estrutura. Neste contexto, a família assume o
papel de exigir e pressionar, no intuito de proteger o paciente das adversidades do
ambiente. Essa situação é enfrentada pelas enfermeiras com sofrimento, entretanto o
manejo se tornou possível a partir do momento em que elas envolveram os familiares no
128
processo de cuidado, passando a interagir, a escutar e a orientar. Essa postura facilita a
abordagem do paciente e de seus familiares, tornando a relação mais próxima, o que
favorece a compreensão entre as pessoas que convivem nesse ambiente cultural.
Dessa aproximação surgem elos entre profissionais e pacientes, que fortalecem a
relação de cuidado. No entanto, esses laços podem ser causadores de sofrimento, ao
enfrentar a morte dos pacientes, outro dilema que se faz presente no contexto desse
Serviço de Emergência.
Durante a realização deste estudo observou-se que convergem para essa área
muitos pacientes em condições inevitáveis de morte, por uma alteração aguda de sua
saúde ou por estarem com uma doença terminal. Diante disso, as enfermeiras relataram
dificuldades em lidar com a morte dos pacientes com doença crônica, que
freqüentemente são atendidos no serviço e com os quais mantêm vínculos. Referiram,
também, desconforto com a morte de pacientes jovens, que gera um sentimento de
impotência na equipe.
Essas percepções revelam a não-aceitação da morte como um evento natural da
vida do homem. Existe um eterno investimento em proporcionar o desenvolvimento das
potencialidades humanas, mas muitas vezes esquecemos que estas não são infinitas. As
enfermeiras confirmam essa tendência no cuidado aos seus pacientes e manifestam
tristeza diante da possibilidade de romper os vínculos dessa relação de cuidado.
Essas vivências demonstram a necessidade de se pensar sobre um tema que tanto
mobiliza as emoções das pessoas. A reflexão traz consigo um suporte para a aceitação
da finitude humana e a possibilidade de assumir uma atitude solidária, proporcionando
um cuidado digno, que considera o ser integral, em qualquer etapa de sua vida.
129
Diante das situações evidenciadas no contexto do Serviço de Emergência,
percebe-se que as enfermeiras estão continuamente envolvidas com situações de
dilemas éticos, por isso utilizam a experiência clínica adquirida e a sensibilidade
desenvolvida para uma decisão criativa e competente. Entretanto, as condições do
atendimento aos pacientes propicia conflitos e incertezas. A superlotação, por exemplo,
é uma realidade difícil de ser modificada, por isso, as enfermeiras, por viverem as
dificuldades deste ambiente, devem avaliar as suas próprias atividades, refletindo sobre
os comportamentos adotados frente aos dilemas do cotidiano, buscando uma adequação
ética para as suas escolhas. Esta postura, na verdade, deveria ser seguida por toda a
equipe de profissionais, pois percebe-se que este mundo do cuidar exige tomadas de
decisões compartilhadas.
Dentro dessa perspectiva, a promoção de encontros sistemáticos para os
profissionais discutirem as situações de dilemas poderia ser de grande valia para o
grupo, complementando as trocas informais já existentes no dia-a-dia. Esses encontros
seriam um estímulo à reflexão de sua prática, numa busca interdisciplinar de novas
formas de cuidar.
Outra alternativa seria um assessoramento especializado, através de contatos
freqüentes com a Comissão de Bioética do hospital, em busca de um suporte para esta
equipe, que enfrenta uma diversidade de dilemas éticos.
Estas iniciativas caracterizariam maneiras de cuidar destes profissionais, à
medida que torna-se evidente o desconforto moral vivido no cotidiano e a necessidade
deste grupo refletir sobre o cuidado à vida, em sua dimensão ética.
A tomada de decisão frente aos dilemas éticos é parte do processo de cuidar no
Serviço de Emergência. Compreender como ela ocorre é entender um pouco mais deste
130
mundo do cuidar, ampliando as visões que despertam o desejo e a esperança de
construir um cuidado mais humano.
131
"Tem todos esses dilemas, mas eu acho que isso te
mantém em contato com a realidade, te faz crescer, te faz
questionar, te faz renovar. Trabalhar aqui te faz procurar
alternativas, o que é uma coisa positiva." (Enfermeira 9)
132
ABSTRACT
This study aimed at understanding how nurses make decisions concerning
ethical dilemmas faced in an Emergency Service. This is a qualitative research, with an
ethnonursing approach (Leininger, 1985). Data collection was carried out using the
observation-participation model, which includes four phases of observation, each one
with a dominant focus, and semistructured interviews. Thirteen nurses belonging to the
service were considered in this study. Five of them were general informants and eight
constituted the group of key informants. Information analysis occurred during data
collection. Four categories were identified in this analysis, according to the decisions
taken towards dilemmas faced in this care setting. The firs one is related to Access to
care which involved dilemmas related to the nurses’ activity while receiving and
selecting patients to be assisted, and for having to decide who would be assisted in the
service, who would have priority, and who would be sent to other places. The second
categorie was based on Overcrowding in the care setting,which brought out dilemmas
related to the excess of patients in the Emergency Service. This situation involved
comfort, security, customization of care, and privacy. The third one - Conflicts in
interpersonal relations, were referred to dilemmas in the relationship of the people who
live together in this setting such as nurses, medical team, patients, and relatives. And
finally, the last categorie - Facing death which by itself represented dilemma in the
context of the Emergency Service. The analysis of these data, in the light of the
researcher’s theoretical basis, enabled us to understand the process of decision-making
developed by nurses when facing ethical dilemmas in the care setting.
Key-words: decision-making, ethical dilemmas, nursing care, emergency service,
ethnonursing.
133
RESUMEN
Este estudio busca comprender cómo las enfermeras toman decisiones acerca de
los dilemas éticos vividos durante su experiencia al cuidar un Servicio de Emergencia.
Se trata de una investigación cualitativa, com abordaje de tipo etnoenfermería
(Leininger, 1985). La recolección de informaciones fue realizada a través del modelo
observación - participación, el cual incluye cuatro fases de observación, cada una de
ellas con un foco dominante y entrevistas semiestructuradas. Las informantes fueron
trece enfermeras de servicio: cinco informantes generales y ocho informantes clave. El
análisis de las informaciones ocurrió a lo largo del proceso de recolección. Del análisis
emergieron cuatro categorías de tomas de decisión frente a los dilemas vividos en este
ambiente de cuidado. El acceso a los cuidados envuelve dilemas relacionados con la
actividad de la enfermera en el área de selección al decidir quién será atendido en el
servicio, en qué orden de prioridad y quién será encaminado a otros locales. La
saturación del ambiente de cuidado se refiere a los dilemas resultantes del exceso de
pacientes en el Servicio de Emergencia, revelados en las dificultades para mantener el
confort, la seguridad, la personalización de los cuidados y la privacidad de los dos
pacientes. Los conflictos en las relaciones interpersonales se refieren a los dilemas de
relación entre personas que conviven en este ambiente: enfermeras, equipo médico,
pacientes y familiares. Enfrentando la muerte, la última categoría, por sola traduce
dilema en este Servicio de Emergencia. El análisis de estas informaciones permitió
comprender, en la manera de ver de la investigadora y a través de la justificación
teórica, el proceso de tomas de decisión de las enfermeras en función de los dilemas
éticos vividos en este ámbito de cuidados.
Palabras clave: tomas de decisión, dilemas éticos, cuidados de enfermería, servicio de
emergencia, etnoenfermería.
134
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8, n. 1, p. 43-69, 1998.
18 GILLIGAN, C. In a different voice. Cambridge: Harvard University Press, 1982.
19 GOLDIM, J.R. Ética aplicada à alocação de recursos escassos. Núcleo Interinstitucional de Bioética.
Disponível em <http://www.ufrgs.br/hcpa/gppg/bioética.htm, 1998. Acesso em 2000.
20 _____________ Modelos explicativos utilizados em bioética. Núcleo Interinstitucional de Bioética.
Disponível em <http://www.ufrgs.br/hcpa/gppg/bioética.htm, 1999. Acesso em 2000.
21 GOLDIM, J.R; FRANCISCONI, C.F. Bioética e informação. Núcleo Interinstitucional de Bioética.
Disponível em <http://www.ufrgs.br/hcpa/gppg/bioética.htm, 1998. Acesso em 2000.
22 HELMAN, C.G. Cultura, saúde e doença. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
23 HORTA, W.A. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU/EDUSP, 1979.
24 HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE. Pesquisa de opinião dos pacientes do serviço de
emergência. Porto Alegre, 2000a.
25 HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE. Relatório do serviço de emergência. Porto Alegre,
1998.
26 HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE. Relatório do Serviço de Emergência. Porto
Alegre, 2000b.
27 KILNER, J. F. Allocation of health care resourses. In: REICH, W.T. (Ed.). Encyclopedia of bioethics.
New York: Simon & Schuster Macmillan, 1995. v. 2, p. 1067-1084.
28 KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
29 LEININGER, M.M. Care: the essence of nursing and health. New Jersey: Slack Incorporated, 1984.
136
30 ___________. Etnography and etnonursing: models and modes of qualitative data analysis. In: _____.
Qualitative research methods in nursing. Orlando: Grune & Stratton, 1985. p. 33-160.
31 ___________. Etnomethods: the philosophic and epistemic bases to explicate transcultural nursing
knowledge. Journal of Transcultural Nursing, San Francisco, CA., v. 1, n. 2, p. 40-51, 1990.
32 ___________. Transcultural nursing: concepts, theories, research and practices. New York:
McGrawHill, 1995.
33 LUNARDI, V. L. Bioética aplicada à assistência de enfermagem. Conferência apresentada no IX
Congresso Brasileiro de Enfermagem em Nefrologia, Porto Alegre, 1998.
34 MAGALHÃES, A.M.; PASKULIN, L.M.G.; ROSA, N.G.; SILVA, S.C. Implantação de um sistema
de triagem em unidade de emergência. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, v.
9, n. 3, p. 182-187, dez 1989.
35 MINAYO, M.C.S.; DESLANDES, S.F.; CRUZ NETO, O. et al. Pesquisa social: teoria, método e
criatividade. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
36 MONTICELLI, M. O conceito de cultura e a prática de enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem,
Porto Alegre ,v. 15, n. 1/2, p. 20-26, jan./dez. 1994.
37 MOORE, G.E. Princípios éticos. 4 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
38 MOREIN, E.H. Philosophy lessons from the clinical setting. Seven saying that used to annoy me.
Theoretical Medicine, Dordrecht, v. 7, p. 47-48, 1986.
39 NEVES, M.C.P. A fundamentação antropológica da bioética. Bioética, Brasília, v. 4, n. 1, p. 7-16,
1996.
40 NOLAN, M. Towards an ethos of interdisciplinary practice. British Medical Journal, London, v. 311,
p. 303-308, july, 1995.
41 NUÑEZ, C.G.; CAJAL, J.G. La familia en situación de emergencia. Aspectos éticos. Cuadernos de
Bioética, Santiago de Compostela, v. 7, n. 28, p. 494-503, oct. /dic. 1996.
42 PASKULIN, L.M.G.; ROSA, N.G. Emergência: fatores que levam a população infantil a recorrer a
este serviço. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 45, n.1, p. 21-27, jan./mar. 1992.
43 PESSINI, L. Bioética: horizonte de esperança para um novo tempo. O Mundo da Saúde, São Paulo, v.
23, n. 5, p. 259-262, set./out. 1999.
44 PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. Bioética: do principialismo à busca de uma perspectiva latino-
americana. In: COSTA, S. I. F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. (Org.). Iniciação à bioética. Brasília:
Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 81-98.
137
45 POLIT, D.F. ; HUNGLER, B.P. Fundamentos de pesquisa em enfermagem. 3. ed. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995.
46 REICH, W.T. (Ed.). Care. In: ______. Encyclopedia of bioethics. New York: Simon & Schuster
Macmillan, 1995. vol. 1, p. 319-344.
47 ______________. Historical dimensions of an ethic of care in health care. In: ______. Encyclopedia of
Bioethics. New York: Simon & Schuster Macmillan, 1995. v. 1, p. 247-255.
48 RENNER, A.F.; PRATI, F.; GOLDIM, J.R. Dilemas éticos presentes na prática profissional de uma
amostra de fisioterapeutas. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, v. 19, p. 58-
59, ago. 1999. Suplemento.
49 ROGERS, J. H.; OSBORN, H. H; POUSADA, L. Enfermagem de emergência: um manual prático.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
50 SELLI, L. Bioética na enfermagem. São Leopoldo: Unisinos, 1998.
51 SGRECCIA, E. Manual de bioética. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
52 SKABA, M.M.V.F. O vício da adrenalina: etnografia da violência num hospital de emergência. Rio
de Janeiro, 1997. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública,
Departamento de Ciências Sociais, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1997.
53 STARZONSKI, R. Ethical issues in nephrology nursing. In: AMERICAN NEPHROLOGY NURSES'
ASSOCIATION. Contemporary nephrology nursing. New Jersey: Janel Parker, 1998. Cap. 5, p. 85-109.
54 THOMPSON, M. W.; MCINNES, R. R.; WILLARD, H. F. Genetics in medicine. 5th. ed.
Philadelphia: W. B. Saunders, 1991.
55 URDANG, L. (Ed.). In: Oxford dictionary. New York: Oxford University, 1995.
56 VALLS, A.L.M. O que é ética. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
57 VÁSQUEZ, A.S. Ética. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
58 WALDOW, V.R. Cuidado humano. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998.
59 WARNOCK, M. A question of life. 11th ed. Oxford: Blackwell, 1985.
60 WATSON, J.M. Theory of human caring in action. In: WALKER, P.H.; NEWMAN, B. Blueprint for
use of nursing models: education, research, practice & administration. New York: NLN Press, 1996.
61 WENGER, A.F.Z. Learning to do a mini etnonursing research study: a doctoral student’s experience.
In: LEININGER, M. M. Qualitative research methods in nursing. Orlando: Grune & Stratton, 1985.
138
62 WILLIAMS, S. A. Quality and care: patients' perception. Journal of Nursing Care Quality. Frederick,
MD., v. 12 , n. 6, p. 18-25, Aug. 1998.
139
ANEXOS
140
ANEXO A - Entrevista
Objetivo: Compreender de que modo as enfermeiras tomam decisões acerca dos dilemas
éticos vivenciados no mundo do cuidar de um serviço de emergência.
Estou realizando uma pesquisa sobre os dilemas éticos vividos pelas enfermeiras
no cuidado em enfermagem do serviço de emergência.
Quando falo em dilema ético, refiro-me ao conflito que surge diante de uma
tomada de decisão.
Tenho observado que no dia-a-dia das enfermeiras que atuam no serviço de
emergência existem várias situações que envolvem a tomada de decisão e penso que
nestas situações possam surgir dilemas éticos.
Para tornar mais claro, vou citar exemplos de situações em que um conflito pode surgir:
- quando existem dúvidas sobre a forma mais adequada para abordar uma situação
- quando uma decisão é tomada, mas existe dúvida se aquela era a melhor opção
- enfim, em todas aquelas situações que te faz pensar se o que foi feito era o
melhor, o mais adequado.
Diante desse contexto, gostaria que tu me falasses como é ser enfermeira de um
serviço de emergência.
141
Roteiro de Entrevista
Triagem:
Angústia motivada pelo número de pacientes graves (superlotação)
Insegurança, incerteza, pressão para mandar o paciente embora
Ambivalência (esclarece dificuldades, mas esperança; manifesta desconforto, mas
aparenta tranqüilidade; esclarecer a realidade ou criar uma situação para o paciente
decidir ir embora)
Compartilhar a tomada de decisão
Utilização de critérios técnicos na tomada de decisão:
Emergência em primeiro lugar
Avaliação inicia pelos mais graves
Critério técnico se sobrepõe ao conforto
Tomada de decisão sob pressão
Superlotação:
Exposição à infecções e acidentes
Falta de conforto e de privacidade
Preocupação com a identificação dos pacientes
Família assume cuidados
Aumento do número de enfermeiras
Adaptação da rotina:
Improviso
Reorganização constante do ambiente de trabalho (recursos humanos e materiais)
Descaracterização do serviço
Relacionamento com a equipe médica:
Bom relacionamento
Conflito (passagem do paciente da SP para a SO)
142
Domínio da técnica/equipamentos:
Manusear equipamentos desconhecidos
Importância da habilidade técnica
Familiaridade com as rotinas do serviço
Cuidar e ensinar
Problemas sociais:
Drogadito que precisa de abrigo, filho da paciente que precisa de comida, criança sem
acompanhante, criança dependente de oxigênio, acompanhante de criança que precisa
de banho.
Transferência de pacientes para a internação:
Enfermeira da internação ocupada, pacientes da emergência aguardando para deitar.
Morte:
Convivência com a morte
Ansiedade e impotência diante da morte
Dúvidas sobre o prolongamento a vida
Sentimentos dos enfermeiros:
Eterno estado de prontidão
Sensação de cuidado inacabado
Sentimento de que a situação pode piorar
Convivência com mau cheiro
Cansaço físico
Valorização do reconhecimento
143
ANEXO B - Fases do Método Observação-Participação * no estudo
Dilemas Éticos no Mundo do Cuidar de um Serviço de Emergência
1
a
reunião - 14/12/99 - M
2
a
reunião - 16/12/99 - T
3
a
reunião - 21/12/99 - M
1
a
observação - 4/1/00 - T - 2h
Triagem
2
a
observação - 6/1/00 - T - 1h
Sala de procedimentos ad - enfa 9
3
a
observação - 11/1/00 - M - 2h
Sala de observação ad - enfas 5 e 10
4
a
observação - 14/1/00 - T - 1h
Sala de observação ped - enfa 16
5
a
observação - 17/1/00 - 45min. (19h)
Passagem plantão sala de proc. ad -
enfas 10 e 16
6
a
observação - 19/1/00 - 45min. (13h)
Passagem plantão sala obs. ad -
enfas 3, 5 e 10
7
a
observação - 24/1/00 - 45min. (13h)
Passagem plantão sala obs. ped. -
enfa 1
8
a
observação - 26/1/00 - 30min. (13h)
Passagem plantão triagem - enfa 1
Análise das observações
9
a
observação - 14/2/00 - T - 2h
Enfa 2 - SO ad
10
a
observação - 15/2/00 - T - 2h30min.
Enfa 2 - SO ad
11
a
observação - 16/2/00 - M - 1h30min.
Enfa 2 - SO ad
12
a
observação - 17/2/00 - T- 2h30min.
Enfa 11 - SO ad
13
a
observação -18/2/00 - M - 2h
Enfa 11 - SO ad
14
a
observação - 21/2/00 - T- 2h30min.
Enfa 9 - triagem
15
a
observação - 23/2/00 - T- 2h30min.
Enfa 9 - sala proc. ad
16
a
observação - 25/2/00 - T- 2h
Enfa 12 - sala proc. ad
17
a
observação - 29/2/00 - T - 3h
Enfa 12 -SO ped
Análise das observações
18
a
observação - 29/3/00 - N- 2h
Enfa 18 - triagem e sala proc. ad
19
a
observação - 30/3/00- N- 2h
Enfa 16 - SO ad
20
a
observação - 3/4/00 - N - 2h20min.
Enfa 14 - SO ped
21
a
observação - 10/4/00 - N - 2h45min.
Enfa 21 - SO ad
22
a
observação - 11/4/00 - N - 2h30min.
Enfa 19 - triagem
Análise das observações
1
a
entrevista - 6/6/00 - 1h30min.
Enfa 2
2
a
entrevista - 8/7/00 - 55 min.
Enfa 14
3
a
entrevista - 9/7/00 - 1h15min.
Enfa 11
4
a
entrevista - 10/7/00 - 50 min.
Enfa 16
5
a
entrevista - 10/7/00 - 25 min.
Enfa 19
6
a
entrevista - 11/7/00 - 1h
Enfa 10
7
a
entrevista - 12/7/00 - 30 min.
Enfa 18
8
a
entrevista - 13/7/00 - 55 min.
Enfa 9
Julho/ Agosto 2000 - Transcrição e Análise das Entrevistas
Validação das Informações
Análise e descrição do processo
Setembro a dezembro 2000
* cada fase reflete um foco dominante da pesquisa de campo e guia o processo de forma sistemática, mas na prática
as fases se inter-relacionam, havendo sobreposições entre si. As atividades principais do pesquisador são a
observação, a escuta e a reflexão. (Leininger, 1985)
144
ANEXO C - Termo de Consentimento Informado
Pesquisa: Dilemas Éticos no Mundo do Cuidar de um Serviço de Emergência
Curso de Mestrado em Enfermagem - UFRGS
Ao assinar este documento, estou consentindo em participar de uma pesquisa de
autoria da enf ª. Ninon Girardon da Rosa, que tem por objetivo estudar os dilemas éticos
no cuidado de enfermagem em emergência.
A pesquisadora esclareceu sobre o caráter voluntário de minha participação e
sobre a possibilidade de desistência em qualquer momento.
Estou ciente de que as informações coletadas não têm nenhuma relação com
avaliação de desempenho profissional, sendo preservada a minha privacidade e
garantido o anonimato na divulgação.
Concordo em participar de entrevista gravada e com a observação de minhas
atividades no Serviço de Emergência do HCPA, podendo as informações fazerem parte
desta pesquisa e serem publicadas.
As informações serão utilizadas exclusivamente para este estudo, portanto as
entrevistas serão destruídas após a elaboração do relatório final de pesquisa.
........................................... ...............................................................
Informante Ninon Girardon da Rosa - Fone:
Pesquisadora
.............................................................
Dra. Maria da Graça Oliveira Crossetti
Profª. Orientadora
Data:
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