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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
HUGO LEONARDO FONSECA DA SILVA
AS TRABALHADORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE
UMA IDENTIDADE POLÍTICA
Goiânia
2006
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HUGO LEONARDO FONSECA DA SILVA
AS TRABALHADORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE
UMA IDENTIDADE POLÍTICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás
para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Linha de pesquisa: Educação, Trabalho e
Movimentos Sociais.
Orientadora: Profª Drª Angela Cristina Belém
Mascarenhas.
Goiânia
2006
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4
HUGO LEONARDO FONSECA DA SILVA
AS TRABALHADORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE POLÍTICA
Dissertação defendida no Curso de Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás, para obtenção do grau de Mestre, aprovada em 30 de agosto
de 2006, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Angela Cristina Belém Mascarenhas – UFG
Presidente da Banca
Prof. Dr. Ivone Garcia Barbosa
Prof. Dr. Lenita Maria Junqueira Schultz
5
À três pessoas que têm sido fundamentais na
minha vida: Minha mãe, pela força, vontade de
viver, otimismo e perseverança mesmo diante das
dificuldades que a vida tem nos imposto; meu pai,
dedicado, amoroso, terno, pacificador, cheio de
força e fé, que tem segurado todas as nossas
grandes dificuldades materiais e espirituais
sempre olhando para um futuro pleno e nos
impulsionando para ele; e Lílian, meu presente e
meu futuro, luz que ilumina meu caminho e
ternura que me preenche de afeto, esperança e
força para seguir em frente, amor do nosso amor,
amores do meu amor...
6
AGRADECIMENTOS
A expressão dos meus sentimentos de agradecimento nesse momento é espinhosa e difícil,
pois provavelmente incorrerei no risco de não mencionar pessoas que foram demasiadamente
importantes em diferentes momentos e setores do trabalho acadêmico no mestrado, da vida
profissional e nas relações pessoais. Entretanto, não posso deixar de mencionar algumas
pessoas sem as quais não conseguiria êxito neste trabalho, mas, desde já, externo meus
sinceros agradecimentos a todas as pessoas envolvidas direta e indiretamente neste trabalho.
Em primeiro lugar, devo os meus sinceros agradecimentos às trabalhadoras em Educação
Infantil da Rede Municipal de Goiânia que me atenderam prontamente durante toda a
pesquisa. Suas muitas dúvidas, seus medos e anseios e as difíceis condições de trabalho e de
vida são, muitas vezes, preenchidas por um afeto sincero e dedicado com as crianças das
classes populares o que muitas vezes me deixou esperançoso. Certamente este trabalho não
responderá as suas questões e indagações, trará, talvez, mais dúvidas. Entretanto, é um pouco
da contribuição que espero dar no sentido de, não só, construir uma Educação Infantil de
qualidade para as maiorias, mas, sobretudo, de contribuir para a organização de uma nova
sociabilidade cheia de sentido.
Agradeço também à professora Angela Cristina Belém Mascarenhas pela orientação segura e
objetiva. Talvez, a identidade entre nossas idéias e projetos político-pedagógicos não tenha
nos propiciado grandes embates e conflitos, mas, por isso mesmo, encontrei na sua pessoa
segurança, solidariedade e firmeza nos princípios, coisas pouco presentes na atual
configuração do mundo acadêmico e da vida social. Acredito piamente que posso me referir à
sua pessoa como CAMARADA.
Agradeço às professoras Lenita e Ivone pelas valiosas contribuições que deram no processo
de qualificação para o enriquecimento deste trabalho.
Aos mestres do programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFG não poderia
deixar de expressar meus agradecimentos, em especial àqueles/as com os quais tive a
oportunidade de manter um contato extremamente rico e producente. É indescritível o
crescimento que os momentos de catarse que as aulas da professora Anita Resende sobre o
“Método em Marx” nos proporcionou; a leveza e a radicalidade (de ir à raiz) que o mestre
Ildeu, em sua “Filosofia”, nos agraciou também foram lições que serão guardadas
permanentemente; as contribuições das discussões propiciadas pelo professor João foram
também fundamentais; as diferenças teórico-metodológicas dos professores Adão e Ivone nos
fizeram perceber o quanto é possível e necessário o diálogo fecundo na produção do
conhecimento.
Agradeço também a presteza e dedicação das funcionárias da Pós-Graduação da FE-UFG,
Ana Paula, Rosa e Rosângela.
À toda a turma da 17ª, em especial as amigas e aos amigos Fernanda, Laís, Elza, Oneide, Jô,
Cristiano, Cecília, Luiz César, Camila, Raquel, Simone, Leiliane e Joel. Aos colegas Manuel,
Aroldo, Aline, Debrey, Mona, Cátia, Nancy, Telma entre outros de outras turmas do mestrado
e do doutorado cujos momentos de reflexões foram experiências extremamente gratificantes.
7
Aos camaradas de trabalho do Colégio Estadual Dom Fernando I, especialmente nas pessoas
dos professores Gildete, Sirlene, Cristiano, Christian, Rosângela, Carlinho.
Heloísa e aos funcionários Cláudio, João, Dona Vera, Lourdes, Vânia, Lucimar, Nilza e
Marci. Sem o suporte que vocês me forneceram não seria possível a realização desse trabalho.
Aos meus alunos que, conscientemente ou não, me provocam a ir sempre em frente com
eles...
Aos colegas e amigos da FEF/UFG pela força, companheirismo e incentivo, em especial à
Mara, Renato, Anegleyce, Guina, Hudson, Márcio e Dênis. Velhos e novos camaradas.
Aos funcionários da FEF/UFG “Edsons”, Henri, Eunice, Danielle. Agradeço também ao
Paulão e ao Carlão pela força e incentivo e pelas conversas jogadas fora.
Aos alunos e alunas da Didática e Prática de Ensino da FEF/UFG desses últimos dois anos.
Suas questões, dúvidas, indagações e provocações foram para mim um verdadeiro
“reencontro” com a Educação Física.
Aos camaradas da luta sindical travada com o (e no interior do) Sintego por uma educação
pública, gratuita, estatal e de qualidade para todos, por uma vida e um trabalho dignos para os
trabalhadores em educação e por uma alternativa socialista que supere a (des)sociabilidade
capitalista: Max, Humberto, Ailma, Jorge, João, Adelton, Lucas, Sebastião, Marta Jane e
demais.
Agradeço aos Brandão Bandeira, especialmente à dona Varlene por uma série de questões: em
primeiro lugar, por colocar essa jóia rara que é a Lílian no mundo; em segundo, por me
receber entre os seus como um deles; e em terceiro, por corrigir constantemente meus textos
perdendo suas raras horas de “ócio”.
Ao meu irmão Luciano e sua esposa Rose que, mesmo morando “beira-mar”, são amigos e
referências para se seguir em frente, mesmo diante das dificuldades impostas por nossas
origens humildes.
Aos amigos fora da academia Wesley, Júnior, Daniel e Ernesto, figuras importantes na minha
vida que sempre insistem em me lembrar que sou humano e não um “apêndice” do
computador, me chamando para um futebol, uma cerveja, ou mesmo uma conversa jogada
fora...
8
RESUMO
Esta pesquisa está vinculada à linha de pesquisa Educação, Trabalho e
Movimentos Sociais do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Goiás. O objetivo deste estudo foi investigar, analisar e compreender se as trabalhadoras da
educação infantil elaboram uma identidade política, sob que condições e o que reflete suas
ações e posições. A questão da elaboração de uma identidade política passa pela articulação
entre a particularidade do trabalho imediato dessas trabalhadoras e o projeto histórico da
classe trabalhadora, podendo ter como elemento de mediação a organização político-sindical
dos trabalhadores em educação. Procurando compreender qual identidade política as
trabalhadoras da educação infantil constroem, investigou-se profissionais que trabalham
diretamente com a docência nos Centros Municipais de Educação Infantil da Secretaria
Municipal de Educação de Goiânia. A investigação articulou o levantamento de dados
empíricos por meio de técnicas de questionários, entrevista semi-estruturada, observações no
cotidiano das instituições e análise de documentos. Esses dados foram analisados à luz do
referencial da dialética materialista fundamentados principalmente em Marx, Lúkacs,
Gramsci, Mészáros, Antunes, Mascarenhas e Frigotto, buscando apreender o objeto de
investigação em seu movimento concreto e contraditório no interior da totalidade sócio-
histórica. Dialogou-se também com autores que se aproximam dessa referência no campo da
educação e da educação infantil como Gentili, Arroyo, Ribeiro, Rosemberg, Khulmann Jr.,
Arce, Barbosa e Kramer. Partiu-se do trabalho como categoria ontológica e histórica para
compreender se a particularidade social do trabalho em instituições de educação infantil limita
ou possibilita a elaboração de uma identidade política articulada ao projeto histórico do
trabalho frente à crise estrutural do capital, às políticas neoliberais e aos ataques sobre a
classe-que-vive-do-trabalho. Verificou-se que mediações da identidade política das
trabalhadoras da educação infantil são produzidas pelas seguintes questões: a) as instituições
de educação infantil são constituídas sob as determinações ideológicas e históricas do conflito
entre capital e trabalho; b) o trabalho na educação infantil é mediado por aspectos ideológicos
e práticos de natureza assistencialista; c) a feminização/sexualização do trabalho docente na
educação infantil reitera a divisão entre produção e reprodução; d) não existe um diálogo
entre sindicato docente e trabalhadoras da educação infantil. Analisando esses dados sob a
consideração da contradição, entende-se que a superação de limites existentes para que as
trabalhadoras da educação infantil elaborem uma identidade política articulada aos interesses
do conjunto da classe trabalhadora pode contar com o sindicato docente como elemento de
mediação entre as necessidades imediatas e a universalidade do projeto de emancipação do
gênero humano. Para isso, no entanto, é necessário o estabelecimento de novos laços entre o
sindicato e a categoria por ele representada.
Palavras-chaves: trabalho; trabalhadoras; identidade política; educação infantil.
9
ABSTRACT
This research is linked to the line of research Education, Work and Social
Movements of the Program of Masters degree in Education of the Federal University of
Goiás. The objective of this study was to investigate, to analyze and to understand if the
workers of the childhood education elaborates a political identity, under that conditions and
what reflects their actions and positions. The subject of the elaboration of a political identity
goes by the articulation between the particularity of those workers' immediate work and the
historical project of the working class, could have as mediation element the workers' political
syndical organization in education. Trying to understand which political identity the workers
of the childhood education build, it was investigated professionals that work directly with the
teaching in the Municipal Centers of Childhood Education of the Municipal General Office of
Education of Goiânia. The investigation articulated the rising of empiric data through
techniques of questionnaires, semi-structured interview, observations in the daily of the
institutions and analysis of documents. Those data were analyzed by the light of the
referencial of the materialistic dialectics based mainly in Marx, Lúkacs, Gramsci, Mészáros,
Antunes, Mascarenhas and Frigotto, looking for to apprehend the investigation object in its
concrete and contradictory movement inside the partner-historical totality. One also dialogued
with authors that approach that reference in the field of the education and of the childhood
education like Gentili, Arroyo, Ribeiro, Rosemberg, Khulmann Jr., Arce, Barbosa and
Kramer. Set off the work as ontological category and historical to understand if the social
particularity of the work in institutions of childhood education it limits or it makes possible
the elaboration of an articulate political identity to the historical project of the work front to
the structural crisis of the capital, to the neoliberal politics and the attacks on to the class that
live of the work. It was verified that mediations of the workers' of the childhood education
political identity are produced by the following subjects: a) the institutions of childhood
education are constituted under the ideological and historical determinations of the conflict
between capital and work; b) the work in the childhood education is mediated by ideological
and practical aspects of nature assistancialism; c) the feminization/sexualization of the
educational work in the childhood education reiterates the division between production and
reproduction; d) a dialogue doesn't exist between educational trade union and workers of the
childhood education. Analyzing those data under the consideration of the contradiction, it
understands each other that the overcoming of limits existent so that the workers of the
childhood education elaborate an political identity articulated to the interests of the group of
the working class can count with the educational trade union as mediation element between
the immediate needs and the universality of the project of emancipation of the mankind. For
that, however, it´s necessary the establishment of new bows between the trade union and the
category for its represented.
Key-words: work; worker; political identity; childhood education
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1
– Estabelecimento de creche e pré-escola, por dependência
administrativa, segundo o número de alunos – Brasil e Regiões –
2000.............................................................................................................
92
Tabela 2
– Evolução quantitativa do número de instituições de educação infantil
administrada pela Secretaria Municipal de Educação de Goiânia entre os
anos de 1999-2005.......................................................................................
110
Tabela 3
– Creches com voluntários da área pedagógica, por função exercida,
segundo o número de alunos – Brasil e Regiões – 2000.............................
170
Tabela 4
– Pré-escolas com voluntários da área pedagógica, por função exercida,
segundo o número de alunos – Brasil e Regiões – 2000.............................
171
Tabela 5
– Regime de trabalho de professoras e agentes educativas nos Cmei’s
investigados – 2005.....................................................................................
228
11
LISTA DE SIGLAS
AE - Agente Educativa
BM - Banco Mundial
CMEI - Centro Municipal de Educação Infantil
COEDI - Coordenação de Educação Infantil do MEC
CME - Conselho Municipal de Educação
COMURG - Companhia de Urbanização de Goiânia
CPG - Centro de Professores de Goiás
CUT - Central Única dos Trabalhadores
DCNEI - Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil
DEI - Departamento de Educação Infantil
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
FE - Faculdade de Educação
FMI - Fundo Monetário Internacional
FUMDEC - Fundação de Desenvolvimento Comunitário
FUNABEM - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
FUNDEF
- Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC - Ministério da Educação e Cultura
MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização
OMC - Organização Mundial do Comércio
OMEP - Organização Mundial de Educação Pré-Escolar
ONG - Organização não-governamental
ONU - Organização das Nações Unidas
PI - Professor/a formado/a em ensino médio habilitação do magistério
P II - Professor/a formado/a em curso superior
PPP - Projeto Político Pedagógico
RCNEI - Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil
RMEG - Rede Municipal de Ensino de Goiânia
SINTEGO - Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás
SME - Secretaria Municipal de Educação
UFG - Universidade Federal de Goiás
UNESCO - Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
URE - Unidade Regional de Educação
USAID - United States Aid Internacional Development
12
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................................... 10
ABSTRACT................................................................................................................ 11
LISTA DE TABELAS............................................................................................... 12
LISTA DE SIGLAS................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 14
I - O ponto de partida: motivações teóricas e empíricas sobre a identidade
política das trabalhadoras da educação infantil.................................................
17
II - Em busca da “voz” ativa das trabalhadoras da educação infantil: caminhos
metodológicos....................................................................................................
26
CAPÍTULO 1............................................................................................................. 35
AS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO INFANTIL: TRABALHO E
HISTÓRIA.................................................................................................................
35
1.1. Trabalho e Educação: a natureza das relações educativas................................. 36
1.2. A educação infantil na sociedade de classes..................................................... 47
1.3. Condicionantes neoliberais sobre a educação infantil e as perspectivas de
resistência..........................................................................................................
61
CAPÍTULO 2............................................................................................................. 74
OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO
INFANTIL..........................................................................................
74
2.1. Características historicamente constituídas da educação infantil na
modernidade.......................................................................................................
76
2.2. As instituições de educação infantil como parte do sistema básico de
ensino.................................................................................................................
87
2.3. Cuidar e educar como dimensão estruturante do trabalho nas instituições de
educação infantil: caracterização do trabalho educativo em Goiânia................
104
CAPÍTULO 3............................................................................................................. 120
TRABALHO, EDUCAÇÃO INFANTIL E IDENTIDADE POLÍTICA............. 120
3.1. As contradições do trabalho docente: “vocação”, feminização/sexualização,
proletarização e ação político-sindical..............................................................
122
3.1.1. Determinantes históricos do trabalho docente...................................... 126
3.1.2. “Vocação”, feminização/sexualização e proletarização: categorias
fundantes do trabalho docente...............................................................
140
3.1.3. Assalariamento, proletarização e organização política dos
trabalhadores docentes..........................................................................
161
3.2. A identidade política dos trabalhadores da educação: sindicalização,
educação política e crise....................................................................................
180
3.2.1. A sindicalização dos trabalhadores em educação e o esforço de
13
elaboração de uma identidade política.................................................. 185
3.2.2. Crise no sindicalismo docente: a reafirmação da heterogeneidade e
fragmentação dos trabalhadores em educação......................................
196
CAPÍTULO 4............................................................................................................. 207
AS TRABALHADORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL: LIMITES E
PERSPECTIVAS NA CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE POLÍTICA..
207
4.1 A “natureza” assistencialista e a precariedade do trabalho na educação
infantil................................................................................................................
208
4.2 Feminização/sexualização do trabalho na educação infantil: a contradição
entre produção e reprodução na elaboração de uma identidade
política...............................................................................................................
235
4.3 As trabalhadoras da educação infantil e o sindicato docente............................ 247
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 264
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 273
ANEXOS.................................................................................................................... 286
14
Introdução
No atual contexto histórico questionar sobre a identidade política dos indivíduos
parece um contra-senso diante do fato de que percorre no interior das relações concretas e no
seu imaginário social a apologia cínica do pensamento único (neo) liberal fundado no
individualismo exarcebado e nas ideologias do fim das utopias e da impossibilidade de um
modelo de sociabilidade que não a do sistema do capital. Empreender esforços então sobre se
uma determinada categoria de trabalhadoras, que atuam diretamente com os extratos sociais
mais oprimidos pelo atual estágio de relações sociais do sistema do capital (crianças, mulheres
e famílias trabalhadoras), elaboram ações, representações e uma auto-representação diante dos
conflitos e das relações de poder na sociedade – isto é, uma identidade política
(MASCARENHAS, 2002) – parece também estar fora do roteiro em tempos tão contra-
revolucionários como os dessa etapa histórica do capital. Entretanto, este trabalho tem como
intenção orientar as reflexões na contra-corrente do pensamento único, investigando as
trabalhadoras da educação infantil e a construção de uma identidade política.
Entende-se aqui por identidade política, o
[...] processo de configuração da auto-consciência de um grupo, em que ele elabora
sua posição e ação diante dos conflitos sociais e relações de poder. A identidade é
um modo específico de articulação do grupo. É um fato de consciência significando
uma auto-representação ou auto-definição manifestada tanto no comportamento
quanto no discurso (MASCARENHAS, 2002, p. 15).
Ao buscar apreender como o trabalho de uma categoria específica de
trabalhadoras (as trabalhadoras da educação infantil) possibilita e/ou dificulta a construção de
uma identidade política, foi necessário percorrer as múltiplas determinações que envolvem o
objeto em questão. O movimento histórico de gênese e desenvolvimento da educação infantil e
do trabalho desenvolvido nessas instituições e os determinantes sócio-econômicos, políticos e
culturais que envolvem a educação infantil e suas trabalhadoras só se tornaram compreensíveis
na medida em que partimos do concreto imediato – ou seja, de mulheres determinadas que
exercem, durante cinco dias da semana, jornadas de trabalho com o papel de educar e cuidar de
crianças pequenas em instituições especialmente constituídas para isso, inseridas em um,
também, determinado contexto histórico-social – e apreendemos os nexos e mediações do
objeto em estudo com a totalidade histórica em que ele se insere.
15
Portanto, a configuração da identidade política das trabalhadoras da educação
infantil só pode ser compreendida em contextos históricos concretos, que exigem uma postura
política diante das alternativas contraditórias que o movimento da história impõe ao gênero
humano nas atuais circunstâncias históricas.
O atual momento histórico aponta uma encruzilhada para a humanidade, cujos
caminhos direcionam possibilidades distintas para o projeto histórico que visa superar a ordem
social do capital. Por um lado, a manutenção da lógica e das estruturas do sistema do capital
em crise estrutural tem materializado formas de sociabilidade mais violentas e degradantes,
fato esse sem precedentes na história
1
. Os desdobramentos desse processo se concretizam na
degradação, em níveis intoleráveis, do metabolismo homem e natureza e na destruição sem
precedentes da força humana de trabalho. De acordo com Mészaros (2002), essa tendência
aponta inclusive para o perecimento do gênero humano, dado o profundo esgotamento da
frágil capacidade civilizatória do sistema do capital.
Por outro lado, as mutações que o atual estágio das forças produtivas e das
relações de produção capitalistas têm provocado no interior do mundo do trabalho, bem como
as contradições desse processo, vêm ampliando consideravelmente o conjunto da classe
trabalhadora. O número de indivíduos que, por não possuir os meios de produção da vida
material, necessita vender suas forças psíquicas e físicas no mundo do trabalho em troca de sua
subsistência cresce na mesma medida em que a riqueza produzida pelas mãos do Trabalho é
acumulada e monopolizada pelo Capital. Tais processos, estruturas e relações acabam por se
conformar em possibilidades concretas para que os trabalhadores se organizem, lutem e
elaborem uma identidade política de classe.
1
- Antunes (2002), Coggiola (1996) e Therborn (2001) caracterizam o quadro da crise do capital da seguinte
forma: 1) a queda das taxas de lucro do capital, impulsionadas, dentre outras coisas, pelo tensionamento do
mundo do trabalho por conquistas por melhores condições de vida e trabalho; 2) hipertrofia do capital financeiro
em detrimento dos padrões de produtividade centrados nos parques industriais; 3) esgotamento do padrão de
acumulação do modelo taylorista/fordista; 4) maior concentração de capitais centrados numa nova divisão
internacional do capital engendrado pelos blocos econômicos, então em formação; 5) crise do Estado de bem-
estar, crise fiscal e necessidade de abrir novos nichos para o capital, cujo Estado era importante empreendedor;
6) incremento das privatizações, desregulamentação das leis trabalhistas, individualização das relações de
negociação entre empregador e empregado, ataque e desmonte das entidades trabalhistas e movimentos sociais.
Como resposta à sua crise, o capital iniciou um processo de reorganização de seus sistemas ideológicos, políticos
e culturais, cujas políticas neoliberais se consolidaram como suas estratégias mais evidentes. Como observam
Antunes (2002) e Anderson (2001) as políticas neoliberais – implantadas com ênfase, no início, na Inglaterra e
Estados Unidos pelos governos Thacher e Reagan respectivamente – enfatizaram os processos de enxugamento
do Estado no que tange as políticas sociais e seu crescimento no controle dos sindicatos e movimentos sociais e
na abertura ao mercado, desmontaram o setor produtivo estatal, implementaram reformas legislativas buscando
desregulamentar e flexibilizar as leis trabalhistas, seguindo a isso, um processo intenso de reestruturação da
produção. Mais do que uma reforma política, uma estratégia de retomada do crescimento das taxas de lucro do
capital e reestruturação da produção e do trabalho, os postulados do neoliberalismo têm significado uma ofensiva
violenta do capital ao mundo do trabalho, e às perspectivas de constituição de uma outra sociedade.
16
A ampliação da classe trabalhadora, bem como da noção que temos desta
2
, incide
na possibilidade de constituição de uma sociabilidade que vá para além do capital como
condição necessária à constituição de uma experiência autêntica e de uma vida cheia de
sentido no e pelo trabalho. Essa possibilidade tem se materializado na resistência e na luta dos
setores oprimidos da sociedade, mesmo diante das ofensivas neoliberais sobre suas formas de
organização política de classe.
É nesse contexto que a educação infantil, especificamente, e a educação, no geral,
se materializam. Os processos institucionalizados de socialização das novas gerações não estão
alheios aos conflitos sociais e, portanto, são condicionados pelas contradições constituintes da
relação entre Trabalho e Capital. Ao serem concretizadas sob os determinantes do sistema do
capital, a educação em geral e a educação infantil assumem um caráter de classe e não podem
se eximir de cumprir um papel político, nem tampouco seus agentes (educadores, funcionários,
gestores). A educação subsumida ao capital serve assim como processo de interiorização dos
preceitos, valores e das condições de legitimidade do sistema do capital como observa
Mészáros (2005). Entretanto, para esse mesmo autor, uma educação para além do capital erige
das contradições desenvolvidas no interior da educação presente nas atuais circunstâncias
históricas, exigindo para sua materialização a instauração de processos educativos que
compreendam a auto-educação de iguais e colabore na produção de insubordinação e da
transformação progressiva da consciência dos sujeitos aliada à luta pela libertação do trabalho
do jugo dos determinantes do sistema do capital. Para tanto, é preciso superar as amarras que
prendem a educação à lógica do capital (tanto a da infância como também a educação da
juventude e dos adultos) e, portanto, superar a própria lógica societal do capital.
A superação da lógica do capital na educação não pode ser efetivada somente por
meio de reformas pedagógicas, metodológicas ou legais orientadas por um ideário progressista.
Essa empreitada exige a concomitante superação da sociabilidade capitalista que, por sua vez,
demanda o envolvimento efetivo dos agentes que atuam nessas instituições na luta orientada
pelo projeto histórico da classe que vive do trabalho. O envolvimento dos/as trabalhadores/as
da educação/educação infantil nas lutas pela materialização da alternativa socialista junto ao
restante da classe trabalhadora necessita do estreitamento dos laços entre o conjunto, hoje
heterogêneo, complexo e fragmentado, daqueles/as que vivem do seu trabalho e,
conseqüentemente, da produção de uma identidade política. A questão da identidade política
2
- Partimos da noção ampliada da classe trabalhadora que Ricardo Antunes cunha, ao designar o conjunto de
homens e mulheres que necessitam vender sua força de trabalho para a manutenção de sua existência (seja no
campo, na produção fabril, nos serviços e mesmo na informalidade, nas condições precárias de emprego) de
classe que vive do trabalho (ANTUNES, 2003; 2002).
17
perpassa pelas relações experimentadas cotidianamente pelo indivíduo na particularidade da
atividade exercida no mundo do trabalho, articulada à universalidade do envolvimento de
classe presente na organização coletiva e política dos/as trabalhadores/as.
Nesta introdução procurarei evidenciar as motivações e os pontos de partida
empíricos e teóricos que caracterizam a problemática acerca da identidade política das
trabalhadoras da educação infantil, a partir do recorte específico das profissionais que atuam
nos Centros Municipais de Educação Infantil (Cmei) da Rede Municipal de Ensino de Goiânia
(RMEG). Apresento, ainda, os caminhos teórico-metodológicos percorridos na pesquisa, bem
como o método de exposição utilizado.
O ponto de partida: motivações empíricas e teóricas sobre a identidade política das
trabalhadoras da educação infantil
O presente estudo tem como objeto de investigação a questão da identidade
política das trabalhadoras da educação infantil, mais especificamente daquelas que estão na
“linha de frente” do trabalho educativo materializado nas instituições de atendimento
educativo para crianças de 0 a 06 anos
3
, ou seja, das professoras e agentes educativas. Seu
objetivo é apreender e compreender os processos de composição da identidade política das
trabalhadoras da educação infantil dos Centros Municipais de Educação Infantil de Goiânia,
considerando os fatores internos relativos às especificidades do trabalho nessas instituições, e
externos, referentes à mediação dos sindicatos e ao conjunto das relações, estruturas e
processos do atual estágio do modo de produção capitalista e seus impactos sobre a classe
trabalhadora.
O objeto e o problema de investigação foram sendo construídos ao longo da
investigação, tendo como aspectos iniciais a mediação da especificidade do trabalho nas
instituições de educação infantil e do sindicato na construção da identidade política, situada
num complexo contexto de crise do sistema do capital.
No início, o ponto de partida dessa investigação foi a necessidade de
compreender se e como as características particulares do trabalho de educar e cuidar de
3
- Ao longo deste trabalho utilizo-me da referência de atendimento às crianças em instituições de Educação
Infantil com idade entre 0 e 06 anos tal como está contido nos artigos 29 e 30 da Lei de Diretrizes e Bases
9394/1996, muito embora saibamos da recente modificação que a Lei nº 11.274, aprovada em fevereiro de 2006,
provoca em todo o ensino básico ao estender o ensino fundamental para nove (9) anos. Tal legislação adianta a
entrada da criança no ensino fundamental que passa a acontecer aos seis (6) anos de idade, reduzindo a
população a ser atendida nas instituições de Educação Infantil para até os 5 anos de idade. A manutenção da
referência anterior à legislação atual no presente trabalho deve-se ao fato de que todo o processo de investigação
ocorreu na vigência dos parâmetros da LDB n° 9394/96.
18
crianças pequenas, e todas as ideologias subjacentes a essa atividade, dificultam, ou não, a
elaboração de uma identidade política articulada ao projeto histórico do trabalho, isto é, à
crítica e busca da superação da ordem social do capital. Paralelamente a isso, estava vinculado
o interesse de “descobrir” que tipo de identidade o trabalho docente na educação infantil
produz, e em que medida essa identidade reflete um projeto político.
Essas questões foram surgindo na medida em que, ao participarmos das
mobilizações sindicais dos trabalhadores em educação da rede municipal de ensino no ano de
2003, sentíamos a ausência das trabalhadoras da educação infantil nos processos de luta e de
organização política durante os movimentos grevistas. As diversas justificativas sobre a
ausência das trabalhadoras da educação infantil no interior da mobilização grevista dos
trabalhadores em educação da RMEG se pautavam pela natureza do seu trabalho identificada
mais pela assistência aos pais trabalhadores do que efetivamente pela educação da infância –
argumento esse que reproduz a histórica e ideológica problemática da divisão entre assistência
e educação na educação infantil. Tais justificativas, proferidas pelas próprias trabalhadoras ou
por dirigentes sindicais, nos inquietavam, pois, além de dividir a categoria, esses argumentos
reproduziam a histórica vinculação exclusiva da educação infantil ao assistencialismo,
divergindo dos recentes avanços da área que compreendem o atendimento educativo para as
crianças entre 0 e 06 anos de idade como parte integrante do sistema básico de ensino
brasileiro, desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases n° 9394/1996, e integra as
trabalhadoras da educação infantil ao restante da categoria de trabalhadores da educação.
Nesse sentido, as seguintes questões de apoio foram sendo elaboradas como
forma de interrogar o objeto de investigação: Qual a identidade política construída no contexto
das relações de trabalho nas instituições de educação infantil? Quais são as especificidades do
trabalho nessas instituições? Como suas trabalhadoras lidam com a contradição ideológica
entre assistencialismo e educação? As atividades desempenhadas nessas instituições fazem
parte das vocações femininas ou são profissões?
Em seus discursos, durante as mobilizações e assembléias, dirigentes sindicais
4
argumentavam as concepções assistencialistas supracitadas como forma de justificar a
4
- Em relação ao sindicato, é importante destacar que nos referimos ao Sindicato dos Trabalhadores em
Educação de Goiás, em virtude dele se constituir como a organização de classe aonde os trabalhadores em
educação de Goiás historicamente vem se mobilizando para as lutas corporativo-econômicas e políticas. Este
sindicato é o resultado de embates e contradições presentes no seio da categoria dos trabalhadores em educação
de Goiás que rompe, no final da década de 1970, com a postura associativista e assistencialista e assume a forma
de organização sindical combativo, de massa e classista, ainda na forma de Centro de Professores de Goiás em
virtude das restrições legais que proibiam a sindicalização ao funcionalismo público. Após a regulamentação da
sindicalização para o funcionalismo público pela Constituição Federal de 1988 o antigo CPG e as associações de
19
ausência das trabalhadoras da educação infantil nas mobilizações grevistas da categoria,
mantendo uma compreensão que dividia e mantinha esta parcela da categoria separada do
conjunto dos trabalhadores em educação em seus movimentos econômico-corporativos e
políticos. Nesse sentido, a relação sindicato da categoria dos trabalhadores em educação e as
trabalhadoras da educação infantil também nos provocavam inquietações, tendo em vista a
potencialidade do sindicato como espaço de construção de uma identidade política
(ANTUNES, 2003; MASCARENHAS, 2002). Desse modo, mais algumas questões
complementares foram sendo elaboradas como forma de interrogar o objeto de investigação,
dentre as quais destacam-se as seguintes: as trabalhadoras da educação infantil se identificam
ou não com a categoria dos trabalhadores em educação e com os trabalhadores em geral? e se
essas trabalhadoras vinculam ações e posturas políticas junto aos interesses e lutas de sua
categoria organizada pelos sindicatos.
Entretanto, não bastava compreender apenas os problemas afetos ao trabalho
docente nas instituições de educação infantil e a relação das trabalhadoras que atuam nessas
instituições com o sindicato docente sem apontar os seus nexos com a totalidade sócio-
histórica. Tornou-se necessário, então, entender a elaboração da identidade política das
trabalhadoras da educação infantil frente ao processo de reestruturação do sistema capitalista e
às conseqüentes transformações ocorridas no mundo do trabalho, visto que é no interior dessas
relações contraditórias entre capital (Estado capitalista) e trabalho nas atuais circunstâncias
históricas que os indivíduos constituem identidades coletivas e se posicionam frente aos
conflitos sociais e às relações de poder presentes nesse embate.
Situar esse debate no atual estágio do modo de produção capitalista tem uma
dupla importância: a primeira se refere à necessidade de refletir sobre um determinado
fenômeno a partir de sua concretude, que não pode ser compreendida apenas pelas relações
imediatas e aparentes, senão pela articulação entre o objeto estudado e suas múltiplas
determinações de ordem histórica, política, social, cultural, econômica e ideológica; a segunda,
parte das motivações elevadas pela ordem do dia sobre a necessidade de retomada de uma
ofensiva socialista crítica e renovada, baseada na concepção ampliada de classe que vive do
trabalho (ANTUNES, 2003) face ao caráter destrutivo que a sociabilidade capitalista impõe ao
gênero humano.
Localizando o problema em questão no interior da totalidade histórica, busquei
compreender as profissionais que atuam na educação infantil como parte constituinte da classe
professores então existentes se unificam e criam o Sintego. Cf. Canesin (1999);
www.sintego.org.br/historico.htm
20
trabalhadora. Nesse sentido, essa investigação objetivou entender até que ponto as
trabalhadoras da educação infantil encontram dificuldades para construir uma identidade
política articulada aos interesses das classes populares, face às condições estranhadas do
trabalho social subordinado às metas do capital e também das particularidades históricas do
seu lócus de trabalho, as instituições de educação infantil.
É preciso afirmar, dado o caráter complexo, heterogêneo e multifacetado do
mundo do trabalho envidado pelas atuais circunstâncias históricas de capital mundializado que
as trabalhadoras
5
da educação infantil constituem-se como uma parte da classe trabalhadora
inserida profissionalmente no setor de serviços
6
, o qual tem se ampliado devido às
metamorfoses sofridas pelo trabalho nos recentes processos de reestruturação das forças
produtivas e das relações sociais de produção capitalistas
7
.
Em relação à concepção aqui adotada acerca da categoria classe trabalhadora,
nos valemos do que observa Antunes (2002, p. 103) quando diz que é necessário expandir esta
noção para além dos trabalhadores da esfera produtiva industrial, incluindo aí “todos aqueles e
aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário, incorporando, além do
proletariado industrial, os assalariados do setor de serviços e também o proletariado rural que
vendem sua força de trabalho para o capital”.
Assim, as trabalhadoras da educação infantil podem ser situadas no interior do
que Marx (2001) identifica como classe em-si, isto é, os indivíduos vivenciam determinadas
condições de vida e de trabalho sob semelhantes determinações de subjugação, domínio e
exploração condicionados pelo sistema do capital.
As trabalhadoras da educação infantil situam-se dentre aquelas ditas
improdutivas
8
que realizam uma atividade não-material (SAVIANI, 2000), cujas formas de
5
- Uso o termo trabalhadoras no gênero feminino porque esta tem sido uma atividade profissional em que
predomina o trabalho feminino, como afirmam Silva (2000), Cerisara (2001) e Ongari e Molina (2003), Barbosa
(1999), Alves (2002) e Arce (2001b).
6
- Silva Júnior (1993) caracteriza as instituições de Educação pública (dentre estas instituições inserem-se as de
educação infantil) como local de trabalho, onde os sujeitos ali envolvidos contribui na reprodução da força de
trabalho necessária aos objetivos capitalistas.
7
- De acordo com as análises de Antunes (2002; 2003), Mascarenhas (2002) e Coggiola e Katz (1996), dentre as
estratégias de reestruturação capitalista, recomposição das taxas de lucro e de sua capacidade de reprodução, o
capital tem lançado mão de uma série de mecanismos sobre as estruturas produtivas e seus padrões de
acumulação, acarretando intensos impactos ao mundo do trabalho. O incremento do paradigma toyotista de
acumulação flexível como modelo de gestão do trabalho e mecanismo de recomposição das taxas de lucro,
viabilizados pelo desenvolvimento tecnológico e científico dos meios de produção caracterizados pela robótica e
pela microeletrônica bem como pelo ideário fragmentário e heterônomo a que os trabalhadores são submetidos,
têm representado para o capital uma saída viável para a sua crise, sem, no entanto, envolver mudanças estruturais
na sua forma de organização e dominação social.
8
- Ao caracterizar os trabalhadores da educação como improdutivos, é importante esclarecer duas questões: 1)
esse estudo está voltado para a análise do trabalho docente em instituições públicas, portanto, em relações de
trabalho não fundadas imediatamente na esfera do valor; 2) as análises e considerações da materialização do
21
trabalho são utilizadas como serviços, seja para o uso público ou privado, e que formam, junto
ao restante dos trabalhadores da esfera produtiva, a classe-que-vive-do-trabalho. É diante
dessa caracterização das trabalhadoras da educação infantil, como integrantes da classe-que-
vive-do-trabalho, que buscamos compreender os processos históricos, sociais, políticos,
ideológicos e culturais que determinam os limites e as possibilidades que essa categoria
específica de trabalhadoras possui para elaborar uma identidade política.
Historicamente, as instituições de educação infantil
9
estiveram atreladas a
políticas pautadas pela ideologia da caridade cristã e pelo assistencialismo estatal e privado
que, voltadas principalmente para as populações pobres, serviram (e ainda vêm servindo) de
aparelhos ideológicos a serviço do capital, que educava para a submissão, docilização, controle
e dependência das maiorias frente à desumanização histórica daqueles que produzem a riqueza
humana (KHULMANN JR., 2001a).
Durante a década de 1970, as instituições de educação infantil (especialmente as
creches) começam a se expandir na sociedade brasileira. Entretanto, essas instituições
permaneceram ligadas exclusivamente aos órgãos de assistência social do Estado até a
promulgação da Constituição Federal de 1988
10
, do Estatuto da Criança e Adolescente (1990)
e, principalmente, da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB 1996), que alocam
a intervenção educativa junto às crianças de 0 a 06 anos de idade para a primeira fase do
sistema básico de ensino do país. Com a inclusão da educação infantil no sistema básico de
ensino, vinculado aos órgãos do Estado responsáveis pela Educação (MEC, Secretarias
estaduais e municipais de educação), as trabalhadoras inseridas nessas instituições passam, em
tese, a pertencer à categoria profissional dos trabalhadores em educação.
Com essas mudanças legais, possibilitadas também pelo contexto histórico da
redemocratização do país da década de 1980, inicia-se um movimento político-acadêmico em
torno da formação das educadoras em educação infantil. Esse movimento visava o
estabelecimento de alternativas de formação inicial e continuada para as profissionais dessas
instituições com o objetivo de profissionalizá-las a fim de viabilizar uma educação infantil de
trabalho de educador/a são realizadas permeando a sua objetivação no interior das determinações do capital, em
que o trabalho é considerado como produtivo na medida em que as suas formas de objetivação produzem,
imediatamente, valor (MARX, 2005).
9
- Marcílio (1998) resgata em um belo trabalho que, ao longo da história do Brasil vários foram os modelos de
instituições de atendimento à infância pobre, que hegemonicamente tinham como pressuposto o assistencialismo,
a educação para a submissão e o controle das maiorias. Foram várias as instituições perpassando pelas Rodas dos
Expostos, hospitais, asilos, internatos, Febem’s até as creches, pré-escolas e jardins de infância.
10
- Embora as novas legislações observem a educação infantil como parte do sistema básico de educação, os
órgãos reguladores da assistência do Estado ainda atuam na área. Tal situação provoca, inclusive, o embate entre
as pastas da educação e da assistência pelos recursos destinados ao atendimento educacional da pequena infância
(ROSEMBERG, 2002a).
22
qualidade para todas as crianças, respeitando as especificidades e necessidades da educação da
infância, que se distingue qualitativamente do ensino fundamental e de práticas puramente
vinculadas aos cuidados higiênicos e alimentares.
Desde então, uma série de investigações no campo da educação infantil tem se
preocupado com questões relativas à identidade profissional das trabalhadoras da educação
infantil e uma das principais questões levantadas – por autoras como Cerisara (2002), Ongari e
Molina (2003), Silva, I (2001), Alves (2002), Barbosa (1999) e Arce (2001b) – diz respeito às
características do trabalho realizado junto às crianças pequenas, que interpenetram o trabalho
doméstico e da maternagem ao trabalho docente. As relações intrínsecas entre as tarefas
realizadas na esfera doméstica e o magistério no interior da educação infantil compõem a
chamada dupla presença (ONGARI; MOLINA, 2003) ou o trabalho invisível (CERISARA,
2002). As análises que seguem essa linha interpretam estas caracterizações como uma
identificação ideológica do trabalho doméstico e, portanto, das atividades femininas com as
tarefas profissionais das creches e pré-escolas.
Nesta perspectiva, o trabalho nas instituições de educação infantil é remetido aos
papéis sociais historicamente desempenhados pelas mulheres no âmbito privado familiar, o
que resulta numa profissão feminizada/sexualizada, de pouco valor social e econômico,
definida pela “vocação natural” que as mulheres possuem de educar e cuidar das crianças, e
que, portanto, não requer valorização, tampouco organização política.
Diversos são os estudos
11
que, analisando o trabalho docente, atribuem ao
processo de feminização do magistério um importante fator para a desvalorização social e
econômica, bem como para a desmobilização dos/as trabalhadores/as em educação. Codo
et.ali. (1999) afirmam que a atividade de trabalho vinculada ao cuidar dos outros, como é o
caso da atividade docente, no marco da expansão capitalista, era tida como atributos femininos
construídos em torno do conceito de mãe-educadora. Educar neste sentido, mesmo que
profissionalmente, é sinônimo de profissão feminina e que, portanto, “as atividades na escola
foram consideradas em parte como um prolongamento de algumas realizadas no espaço
doméstico: o cuidado e a educação das crianças” (ibidem., p. 66). Esta situação demonstra
como o capital explora duplamente o trabalho feminino (ANTUNES, 2002).
Se na escola o problema da feminização é entendido como uma das formas
históricas de desprofissionalização e precarização do magistério e, conseqüentemente, de
desmobilização da categoria, na educação infantil a questão deve ser compreendida com certo
11
- Sobre isto ver: Ezequiel T. Silva (1995), Paula (2002), Novaes (1992), Hypólito (2001), Louro (1997, 1988),
Aplle (1995, 1988, 1987), Freire (1993), Enguita (1989), Costa (1995) e Bruschini e Amado (1988).
23
cuidado, visto que o trabalho com crianças de 0 a 06 anos não se torna uma atividade feminina.
Ela, já em sua gênese, é uma atividade realizada exclusivamente por mulheres, isto é,
feminizada/sexualizada. A educação e o cuidado de crianças pequenas, fora do âmbito
doméstico, vêm sendo historicamente construídos sob o mito da mulher como “educadora
nata” (ARCE, 2001b). A vinculação, ideologicamente produzida, entre papel a ser
desempenhado pelas mulheres na sociedade e o trabalho docente na educação infantil é um dos
elementos que descaracterizam essa atividade como trabalho, condicionando o processo de
elaboração da identidade política das trabalhadoras da educação infantil.
Entretanto, é necessário compreender que a desvalorização do trabalho no
magistério não se vincula exclusivamente na sua feminização. O processo de proletarização do
magistério foi intensificado durante a década de 1970, cuja ampliação quantitativa da rede
pública de ensino e a massificação da escolarização implicaram na desvalorização sócio-
econômica e no empobrecimento da categoria dos profissionais da educação, bem como no
aprofundamento de um sistema educacional dual. Na educação infantil, esse processo se
caracterizou pela massificação do atendimento precarizado, baseado na ação comunitária e no
voluntariado.
O sistema educacional dual tem como uma de suas premissas a identificação do
público com a falta de qualidade a favor da apologia ao crescente mercado educacional. Todos
estes fatores geraram uma crise da Educação pública que, destinada às camadas populares,
vem sendo historicamente alijada de qualidade.
É neste contexto de crise (nos campos social e educacional), engendrados durante
a década de 1970, que insurgiram movimentos político-sindicais da categoria profissional da
educação. De acordo com investigações que procuraram compreender os processos de
organização docente por meio da participação político-sindical – dentre os quais destacamos os
trabalhos de Ribeiro (1987), Souza (1996, 1997), Canesin (1999), Arroyo (1980) e Vianna
(1999) – as relações históricas de opressão política social e de profunda crise econômica
durante o período da ditadura militar, mais especificamente no final da década de 1970,
afetaram drasticamente a educação pública. A expansão caótica, desordenada e precária do
sistema público de educação no país, às custas do enxugamento salarial dos trabalhadores em
educação, se conformaram em condições objetivas que tornaram possíveis o início da
elaboração de uma identidade política dos/as professores/as por meio de mobilizações
grevistas, atos públicos e militância sindical. Uniu-se a estas condições, o surgimento de
diversos movimentos sociais no cenário brasileiro, em especial o sindicalismo operário do
24
ABC paulista como expressão das forças da classe trabalhadora
12
antagônicas ao capital e ao
Estado capitalista.
Nesse processo, os/as professores/as iniciaram a construção de seu oficio como
trabalho, passando a vincular suas lutas aos interesses das classes trabalhadoras (RIBEIRO,
1995; ARROYO, 1980). As difíceis condições de vida e trabalho a que a categoria profissional
da educação foi submetida (proletarização do trabalho docente), juntamente com o
reconhecimento de que a “educação é direito necessário à maioria dominada da população
brasileira” (RIBEIRO, 1995, p. 131), constituíram-se como fatores imprescindíveis na
construção da identidade política dos trabalhadores da educação.
As transformações do mundo do trabalho, envidadas pela reestruturação
produtiva, a conseqüente implementação do projeto neoliberal no país, intensificado na década
de 1990, e suas implicações nas políticas de emprego e no mercado de trabalho têm causado
impactos nas organizações coletivas dos trabalhadores buscando despojar estes de qualquer
perspectiva de sociedade que não seja a do livre mercado. Apesar de ter fracassado
economicamente, criando sociedades marcadamente mais desiguais, aumentando a
concentração de renda e da miséria, como observa Anderson (2000, p.23), ideologicamente o
neoliberalismo vem alcançando uma hegemonia contraditória
13
, cujas idéias de que não há
alternativa para seus princípios e de que todos devem se adaptar às suas normas têm sido
massificadas em detrimento das possibilidades da alternativa socialista e do projeto histórico
da classe trabalhadora.
Frigotto (2001) observa que, visando administrar a crise real do capitalismo, o
projeto neoliberal impõe uma série de transformações nos âmbitos teóricos, ético-políticos,
ideológicos, econômicos e educacionais objetivando a renovação de um capitalismo decadente.
12
- O sindicalismo operário do ABC na década de 1970 vem sendo caracterizado como novo sindicalismo
(RAMALHO, 2000; ANTUNES, 2003). O movimento que caracterizou o novo sindicalismo buscou superar as
amarras institucionais da legislação corporativa, que subordinava as organizações de classe junto ao Estado,
fazendo dos sindicatos uma extensão das forças patronais e do Estado conservador. O novo sindicalismo se
caracterizou pela postura combativa e classista – cujo desenvolvimento foi responsável pela construção posterior
do Partido dos Trabalhador e da Central Única dos Trabalhadores – e se se constituiu como modelo de
organização de trabalhadores em diversos âmbitos do mundo do trabalho, dentre eles os da educação.
13
- O movimento contraditório de construção de uma hegemonia neoliberal, embora venha atacando os
movimentos e organizações políticas contra-hegemônicas da classe trabalhadora não consegue findar com as
expressões de luta dos setores oprimidos, dada as suas contradições insolúveis no marco de suas relações. O
aprofundamento da desigualdade social, da concentração de riquezas e da miséria para amplas maiorias tem
explodido movimentos contestatórios nos diversos cantos do mundo. Nesse sentido, à medida que o capital se
mundializa suas contradições também tomam o mundo, exemplo disso são os movimentos antiglobalização que
explodem na Europa e Estados Unidos, o movimento sem-terras no Brasil e o movimento zapatista no México
(ANTUNES, 2005) e o próprio movimento sindical docente na América Latina (GENTILI et.al., 2004).
25
A ideologia neoliberal e neoconservadora, envidada pelos apologetas da nova
direita
14
, articula a liberação do mercado e dos indivíduos para seu usufruto e,
concomitantemente, controla os organismos de classe e fragmenta a classe trabalhadora,
lançando esta à lógica da concorrência, deslocando os problemas da sociedade de classes para
os indivíduos e isentando o modo de produção capitalista. Tal perspectiva busca desconstruir
argumentos e categorias do pensamento pautadas por princípios ético-políticos que desvelem a
realidade com o objetivo de transformá-la ao mesmo tempo em que dificulta as formas de
organização política coletiva dos trabalhadores.
A política de sucateamento e desvalorização da categoria dos profissionais da
educação, capitaneadas pelas políticas neoconservadoras e neoliberais, busca extirpar do
imaginário social a memória coletiva e luta de classes, bem como a possibilidade de
organização coletiva desses trabalhadores.
Entretanto, a crise nas ações políticas dos trabalhadores em educação, durante a
década de 1990, contribuiu de certa maneira para a formação de “novos” espaços que
favorecem a agregação em torno de projetos coletivos, construídos pelos diferentes sujeitos
envolvidos com a escola pública: professores, funcionários administrativos, pais, alunos e
comunidades. O próprio local de trabalho (as instituições de educação), é forjado como lócus
de construção de uma identidade coletiva politicamente engajada (VIANNA, 1999, p. 195).
Nesse sentido, a construção de uma identidade política é materializada no contexto do trabalho
docente, contexto esse que se configura em um espaço de ser e estar na profissão.
Seguindo essa direção, compreendemos que a organização e a luta política das
trabalhadoras da educação infantil no seu lócus de trabalho e no sindicato da categoria podem
se constituir como processos fundamentais de resistência aos condicionantes da sociedade
capitalista, de elaboração de laços solidários de classe e de construção de uma identidade
política – não sem contradições e limites. Estas possibilidades estão contidas no aspecto
contraditório do trabalho educativo que, independentemente da fase de ensino, é uma atividade
essencialmente política. Política não somente na sua especificidade educativa, mas também na
sua exigência ética, a qual demanda mobilização, organização e luta.
14
- Nova Direita é uma expressão que caracteriza a coalizão entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, que
assinala uma vasta reação de setores políticos, econômicos e culturais contra as idéias, valores, teorias e
movimentos socialistas (GRANT, 1996, 526-527).
26
Em busca da “voz” ativa das trabalhadoras da educação infantil: caminhos metodológicos
Nesta pesquisa, ao tentarmos aproximar-nos da realidade que constitui a questão
da identidade política das trabalhadoras da educação infantil, partimos do pressuposto que: 1)
o objeto a ser investigado não é passível de apreensão imediata, sendo necessário para isso a
mediação de estruturas conceituais, ou seja, a aparência exterior, fenomênica das coisas não
coincidem diretamente. Portanto, a atitude investigativa exige a postura da desconfiança diante
das aparências; 2) os dados empíricos levantados pelo processo de pesquisa são pontos de
partida, isto é, se constituem como fatos, relações, idéias e representações imediatas
necessárias à produção do conhecimento e à aproximação da realidade, que só podem ser
compreendidas pela mediação de conceitos elaborados, isto é, pela mediação de reflexões
lógico-metodológicas capazes de captar as relações e os nexos constitutivos do objeto
investigado; 3) um determinado fenômeno social problematizado pelas ciências deve ser
investigado, analisado e compreendido nas suas contradições internas e nas inter-relações com
a totalidade histórica em movimento.
Desse modo, a investigação, análise e exposição que resultam neste trabalho têm
como método o materialismo histórico dialético. Este se constitui (além de uma postura e de
uma concepção de mundo) como um método que permite a apreensão radical da realidade e,
também, como práxis que une teoria e prática na busca de transformação e de novas sínteses
no plano do conhecimento e da realidade histórica (FRIGOTTO, 2004).
Marx e Engels (1999, p. 12) observam que o processo de apreensão do real se
constitui como atividade humana sensível, como práxis revolucionário prático-crítica, em que
o homem busca “[...]demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de
seu pensamento.”. Esse processo se materializa na construção de totalidades-de-pensamento
necessário à compreensão do concreto que se esconde sob o véu da ideologia produzida no
processo mesmo de produção e reprodução da realidade:
[...] a totalidade concreta enquanto totalidade-de-pensamento, é de fato um produto
do pensamento, da atividade de conceber; ele não é, pois, de forma alguma o
produto do conceito que engendra a si próprio, que pensa exterior e superiormente à
observação, mas um produto da elaboração de conceitos a partir da observação
imediata e da percepção. O todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-
pensamento, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único
modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse pela arte, pela
religião, pelo espírito prático. (MARX, 2003a, p. 249) .
Portanto, a aproximação da realidade de um determinado fenômeno constitui-se
como um processo de apropriação teórica do mesmo, em que o sujeito constrói e reconstrói a
27
apreensão da realidade como concreto pensado. Esta perspectiva parte da apreensão dos
fenômenos na sua concretude, cujos dados são extraídos da realidade empírica construindo-se
a partir da práxis dos sujeitos da pesquisa, conhecimentos teóricos sobre a realidade, buscando
constituir categorias de análise que expressem sínteses de múltiplas determinações sobre o
objeto (MARX, 2003a, p. 248).
O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da
diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um
resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e
portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação.
Como o próprio Marx (2003a) observa, as relações imediatas e concretas, as
representações são aspectos que se configuram como ponto de partida no processo de produção
de novas sínteses, no plano do pensamento, que expressam o real, isto é, a síntese de múltiplas
determinações que envolvem um determinado objeto. No caso dessa investigação, além das
relações de trabalho no cotidiano dos Cmei’s, as representações (o real transposto para o
pensamento de forma imediata) das trabalhadoras que atuam nessas instituições sobre o seu
trabalho, o papel político de sua atividade, a organização coletiva e o sindicato da categoria se
constituíram como dados primários obtidos no processo de investigação.
Nesse sentido, é importante ressaltar que as representações
15
dessas trabalhadoras
e a rotina de trabalho observada são, para nós, apenas pontos de partida e representam os
aspectos fenomênicos dessas atividades. Parto aqui do conceito de representação construído
por Marx e Engels (1999, p. 36) como produto das atividades materiais de homens reais e
ativos.
As representações que os indivíduos elaboram são representações a respeito de sua
relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou à respeito de sua própria
natureza (...)estas representações são a expressão consciente de suas verdadeiras
relações e atividades de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização
política e social.
As representações são consideradas como constructos humanos produzidos nas
relações sociais e de produção nas quais concepções e vivências expressam um determinado
nível de conhecimento individual e coletivo. Nas representações, apresentam-se as
15
- Neste trabalho, não há intenção de debater a questão das representações sociais como referência teórico-
metodológica e suas variadas e distintas vinculações epistemológicas. Para os objetivos deste trabalho – que
possui um caráter teórico-empírico – valho-me do conceito de Marx e Engels sobre as formas de consciência
constituídas por intermédio da atividade humana, isto é, do trabalho.
28
contradições sociais e a relação dialética entre indivíduo e sociedade, entre objetivo e
subjetivo, construindo e sendo construída num processo de forças contraditórias e criativas,
pela práxis humana.
Entretanto, as representações se constituem apenas como ponto de partida, dado
os limites que a realidade social, mediada pelas determinações ideológicas do
sóciometabolismo do capital, impõe sobre a consciência dos indivíduos; estes representam a
realidade de forma invertida, por ser esta última produzida de maneira ilusória pelos
condicionantes do fetichismo da mercadoria. “Se a expressão consciente das relações reais
destes indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo,
isto é em conseqüência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais
limitadas que daí resultaram.” (MARX e ENGELS. 1999, p. 36).
É importante destacar que, para os intentos deste trabalho, as representações que
as trabalhadoras da educação infantil elaboram sobre seu trabalho, sobre as contradições
sociais e as relações de poder produzidas em seu interior, sobre si mesmas na relação com sua
categoria e com as demais classes e grupos sociais são elementos que compõem o processo de
elaboração de uma identidade política. De acordo com Mascarenhas (2002, pp. 15-16):
A identidade se constitui como uma categoria de atribuição de significados
específicos estabelecidos nas relações entre grupos e pessoas. A identidade de uma
pessoa ou grupo é relativa à identidade de outras pessoas e grupos. Em cada
identidade reside a relação “com”, portanto, uma mediação, uma ligação-relação do
mesmo consigo mesmo tendo o outro como parâmetro. As identidades são
representações pautadas pelo confronto com o outro. A representação como
elemento básico de composição da identidade pode ser denominada como uma
expressão do sujeito, constituída por símbolos construídos coletivamente e também
individualmente. As representações sociais se articulam como processo de
constituição simbólica, nos quais sujeitos sociais lutam para dar sentido ao mundo,
entende-lo e nele encontrar o seu lugar. Isto significa que as mesmas estão radicadas
no espaço público e nos processos através dos quais o ser humano desenvolve uma
identidade. A construção simbólica da realidade social é um momento privilegiado
da configuração da identidade. A constituição de uma identidade política lida
necessariamente com a esfera da representação, a auto-representação, a
representação do mundo e do outro no seio das relações de conflito e de poder,
elementos essenciais na construção de uma prática política.
Buscando compreender a construção da identidade política das trabalhadoras da
educação infantil dos Centros Municipais de Educação Infantil gestados pela Secretaria
Municipal de Educação de Goiânia
16
, foi necessário então levantar dados empíricos por meio
16
- A escolha dos Cmeis’s administrados pela Secretaria Municipal de Educação vai ao encontro da perspectiva
de afirmar o compromisso político com a educação infantil pública, gratuita, estatal e de qualidade para as
maiorias, visto que, em tempos neoliberais, reafirmar a necessidade da educação pública como direito social
29
de observações, entrevistas, questionários e análise de documentos no sentido de perceber as
representações, identificar relações e analisar o objeto em seu movimento concreto
17
. Nesse
sentido, busquei estabelecer um diálogo com as trabalhadoras da educação infantil traçando
um caminho teórico-metodológico que apresentasse os nexos constitutivos dessa identidade
política, não vinculando essa somente aos depoimentos das trabalhadoras, mas também aos
determinantes sócio-econômicos que determinam a materialidade das suas relações,
representações e concepções.
Para apreender os nexos constitutivos que envolvem a questão da identidade
política das trabalhadoras da educação infantil, foi necessário articular os dados empíricos
obtidos por meio da pesquisa com as reflexões lógico-metodológicas. Assim, busquei
estabelecer um diálogo com a teoria marxiana, procurando compreender e expor o trabalho
como atividade constituinte do ser genérico, do ser humano, que na sua forma alienada torna-
se estranha àquele que a realiza, mas ainda assim constituem-se como ações pelas quais os
homens agem socialmente, criam a realidade histórico-mundial e constituem identidades.
Entretanto, foi necessário compreender as formas concretas em que esse trabalho tem-se
materializado. Nesse sentido, foi imprescindível a revisão da literatura que tem analisado as
profundas contradições engendradas pelo sistema capitalista que tem-se atualizado mediante
estratégias para contornar a crise estrutural do capital, materializadas pela reestruturação
produtiva e pelas políticas neoliberais que afetam profundamente o mundo do trabalho e a
própria perspectiva de organização política da classe trabalhadora.
O trabalho de revisão bibliográfica contemplou a apreciação de literatura no
campo das Ciências Sociais, da História e da Educação que analisam de forma crítica: 1) as
relações entre trabalho e educação; 2) as instituições de educação como local de trabalho
complexo e ambíguo nos marcos da sociedade capitalista; 3) os aspectos históricos,
ideológicos, políticos, culturais e sócio-econômicos que condicionam o trabalho docente em
geral e na educação infantil; 4) e a organização político-sindical dos trabalhadores da
educação.
A investigação de campo foi realizada em dois momentos: a) o primeiro momento
iniciou-se no ano de 2003, cujo caminho percorrido foi a proposição de questionários para
professoras e agentes educativas que atuavam em Cmei’s que entraram em greve e das
instituições que não paralisaram suas atividades; b) o segundo momento foi o retorno aos
significa resistir às pretensões privatizantes e de destruição dos direitos que vêm sendo conquistados, às duras
penas, pelos trabalhadores e trabalhadoras.
17
- Ver em anexos os modelos de questionários propostos e roteiro de entrevistas.
30
Cmei’s no ano de 2005 no sentido de entrevistar as trabalhadoras, observar o cotidiano do seu
trabalho e analisar documentos das instituições. Para isso, foi necessário um recorte maior no
número de instituições a serem investigadas.
Foram utilizados dois tipos de questionários: para as professoras pedagogas e de
magistério e para as agentes educativas. Um questionário objetivando apreender dados sobre o
perfil sócio-econômico e profissional das trabalhadoras e o outro com questões abertas sobre o
tema. A escolha do questionário deu-se mediante o número extenso de trabalhadoras que
deveriam ser investigadas. Foram propostos 120 questionários, sendo 40 para agentes
educativos, 40 para professora I (magistério) e 40 para professoras II (pedagogas). Sabemos
que as trabalhadoras da educação não se compõem somente das educadoras, mas, a opção por
esse recorte se deu em virtude das seguintes questões: 1) a necessidade de ampliar os estudos
sobre o trabalho docente na educação infantil sob diferentes pontos de vista; 2) abordar a
dimensão da ação, das idéias e do posicionamento político das trabalhadoras da educação
infantil, assunto esse ainda pouco debatido quando se refere à docência nessa etapa do sistema
de ensino; 3) a necessidade de (re)afirmar o papel político presente no trabalho educativo das
trabalhadoras da educação infantil.
No sentido de construir uma análise que contemplasse um número significativo
de instituições de Educação Infantil da Rede Municipal de Educação de Goiânia, propomos
questionários em 20 instituições (a secretaria coordenava, até o fim da investigação, 54
Cmei’s). Os critérios de escolha foram determinados pela participação na última greve em
2003. Das 40 instituições que havia na época da greve somente 12 participaram. Dessas doze,
selecionamos dez instituições que participaram durante um maior período da mobilização e
outras dez, escolhidas aleatoriamente, que não participaram das mobilizações. Dos 120
questionários propostos, 91 foram entregues preenchidos.
Os dados obtidos na primeira etapa são provenientes da investigação que originou
a monografia de final de curso de especialização em educação infantil intitulada “A identidade
política das trabalhadoras da educação infantil da rede municipal de ensino de Goiânia”,
defendida na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás no ano de 2004. A
riqueza dos dados e o tempo e instrumentos teórico-metodológicos insuficientes para analisá-
los quando da especialização me conduziram a retomar esses dados no atual trabalho.
A segunda etapa da pesquisa buscou analisar novamente os dados e retornar ao
campo de investigação no ano de 2005 para aprofundar em questões que o questionário não
permitiu, tais como: as representações sobre o sindicato; as relações de trabalho; a dinâmica
31
do trabalho na educação infantil e sua articulação com determinadas concepções,
pensamentos e ideologias; a presença da feminilidade no trabalho da educação infantil.
Essa parte da pesquisa foi desenvolvida em quatro Cmei’s, articulando os
seguintes passos metodológicos: observação livre do trabalho docente e da organização e
atividades na instituição; entrevista semi-estruturada proposta a um número de 24
informantes, sendo 12 agentes educativos e 12 professoras em um total de 4 instituições.
Os critérios de escolha das instituições foram o sorteio a partir das 20
instituições onde estive no ano de 2003, sendo dois Cmei’s que paralisaram suas atividades
durante as recentes greves e outros dois que não paralisaram suas atividades. Quanto aos
critérios definidores das trabalhadoras a serem entrevistadas, seguiu a perspectiva de atender a
uma média diante dos agrupamentos presentes nos Cmei’s. Nesse sentido, procurei entrevistar
professoras e respectivas agentes educativas que trabalham no agrupamento das crianças mais
novas que são atendidas no Cmei (em dois Cmei’s o primeiro agrupamento era de crianças de
dois anos, nos outros dois eram de 0 a 11 meses), as intermediárias e as que trabalham nos
agrupamentos finais da instituição.
Importante destacar que, ao entrar no campo de investigação, muitas
trabalhadoras receberam com desconfiança a pesquisa (uma instituição não entregou nenhum
questionário), expressando um fechamento comum que tem se materializado nas instituições
de educação provocado, principalmente, por uma intervenção investigativa que tece críticas,
mas não dialoga com os sujeitos investigados que se negam a participar de pesquisas apenas
como “objetos” e não como sujeitos históricos, que carecem de diálogo com a produção para
refletir criticamente sobre suas práticas.
No sentido de manter o compromisso ético com as trabalhadoras investigadas,
todos os seus nomes serão preservados, bem como o nome das instituições onde trabalham.
Portanto, ao utilizar seus depoimentos para ilustrar alguma questão lanço mão de dois
artifícios: o primeiro é a utilização das siglas PII, PI e AE para as respostas da primeira etapa
da pesquisa; o segundo é a utilização de nomes fictícios tanto para as trabalhadoras que foram
entrevistadas, como para os Cmei’s onde trabalham.
Além do levantamento dos dados no local de trabalho das trabalhadoras da
educação infantil, também analisamos documentos e dados estatísticos fornecidos pela
Secretaria Municipal de Educação por intermédio do Departamento de Educação Infantil, dos
Cmei’s e do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás. Juntamente com esses
aspectos, a pesquisa reuniu observações em manifestações e mobilizações dos trabalhadores
em educação da rede municipal de Goiânia durante as greves nos anos de 2003 e 2005 e
32
também diálogos informais com dirigentes sindicais e dirigentes das instituições de educação
infantil.
A partir da contribuição dos dados da pesquisa, analisamos os elementos
determinantes que compõem a identidade política das trabalhadoras da educação infantil dos
Cmei’s de Goiânia à luz das contribuições teóricas. Essa articulação, entre dados empíricos e
elementos teóricos, se configurou como um processo permanente. Durante todo o processo de
pesquisa buscávamos organizar as reflexões teóricas a partir do movimento concreto do objeto
investigado, dos dados levantados, das falas e discursos das entrevistadas, dos documentos
analisados e das relações observadas no cotidiano do trabalho nas instituições investigadas.
O método de exposição deste trabalho difere-se do processo de investigação que,
como acabo de apresentar, buscou captar o material de maneira pormenorizada, analisar suas
formas de desenvolvimento e descobrir as ligações internas que constituem o objeto
pesquisado. Nesse sentido, na exposição busco explicitar o movimento geral de composição da
identidade política das trabalhadoras da educação infantil.
O trabalho está exposto da seguinte forma: no primeiro capítulo analiso a questão
da educação infantil no interior do conflito histórico entre trabalho e capital. Dessa forma,
busco articular o debate sobre trabalho e educação com os aspectos históricos e sociais da
educação infantil, apontando para um modelo de interpretação que considere a educação
infantil como processo de trabalho. Ao categorizar a educação infantil como trabalho
educativo, busco expressar as contradições e as possibilidades que incidem sobre o trabalho
em suas múltiplas formas sociais no sistema do capital.
No segundo capítulo, discuto a constituição das instituições de educação infantil
no seio da sociedade capitalista, procurando evidenciar o papel político-pedagógico dessas
instituições, apontando a ideologia do assistencialismo, da caridade e da filantropia como eixo
estruturador dos seus projetos pedagógicos e políticos. Baseado nas discussões de Khulmann Jr
(2001a), Arce (2002a,b,c) e Barbosa (1999), entre outros, reflito sobre os aspectos ideológicos
que compõem essa instituição de educação popular voltada para a domesticação e
subordinação da classe trabalhadora. Discuto ainda os novos ordenamentos legais da educação
infantil no Brasil e em Goiânia, seus avanços e permanências.
No capitulo três, estabeleço um debate com a literatura sobre o trabalho docente
nas perspectivas de classe e gênero, no sentido de estabelecer os nexos necessários à
compreensão da natureza do trabalho docente na educação infantil. As mediações de classe e
de gênero se configuram como elementos constitutivos da identidade docente e se apresentam
como aspectos fundamentais para a interpretação das trabalhadoras da educação infantil, tendo
33
em vista o seu enraizamento histórico nas classes populares e a predominância de mulheres
exercendo essa atividade. Essa discussão é remetida à questão da organização político-sindical
docente, que vem se constituindo como elemento de mediação na construção de uma
identidade política dos trabalhadores em educação com o restante da classe trabalhadora, desde
o final da década de 1970.
No quarto e último capítulo, desenvolvo reflexões a partir de categorias que
conformam os nexos constitutivos da identidade política das trabalhadoras da educação
infantil. Tais categorias se constituem como estruturas lógicas e históricas que expressam o
real como concreto de pensamento, ou seja, como conceitos que buscam explicitar as múltiplas
determinações que constituem a construção da identidade política das trabalhadoras da
educação infantil. As contradições históricas entre assistência e educação são consideradas
como elementos constitutivos da construção das instituições de educação infantil como local
de trabalho. Nesse sentido, as atividades desenvolvidas nos Cmei’s são por mim categorizadas
como “natureza” assistencialista do trabalho educativo na educação infantil. Esse trabalho,
além de marcado pela ideologia assistencialista, também se caracteriza pela precariedade das
condições de exercício da profissão e das relações trabalhistas. Outra categoria fundamental
nessa discussão é a questão da feminização/sexualização do trabalho docente na educação
infantil que expressa as contradições que envolvem a divisão sexual do trabalho e a dicotomia
instaurada pelo sistema do capital entre produção e reprodução no interior do trabalho na
educação infantil. Por fim, busca-se retratar a relação entre trabalhadoras da educação infantil
e o sindicato docente, especificamente o Sintego. Para tanto, busco apresentar a articulação
entre organização político-sindical como possibilidade de construção de uma identidade
política de todos/as trabalhadores/as em educação e as dificuldades, entraves e contradições
encontradas na relação entre trabalhadoras da educação infantil e o sindicato da categoria.
Esta pesquisa, longe de ter uma pretensão de determinar verdades absolutas,
apresenta alguns apontamentos que expõem mais questões para se pensar um campo ainda em
construção que é a docência na educação infantil como trabalho, e suas trabalhadoras como
agentes históricos. A investigação contribuiu para apontar alguns elementos que revelam as
dificuldades dessas trabalhadoras constituírem uma identidade política que desvele a sua
condição de oprimidas e aponte para a luta coletiva da classe que vive do trabalho. Desse
modo, a construção da relevância deste trabalho não se vincula apenas ao acúmulo de
discussões no âmbito acadêmico, mas, também, e, sobretudo, na intenção de construir
fundamentação que se configure como uma “arma da crítica” capaz de colaborar na práxis
revolucionária.
34
35
Capítulo 1
As instituições de educação infantil: trabalho e história
As instituições de educação para a primeira infância foram criadas a partir da
necessidade de atender a demanda por um local responsável pelo cuidado e guarda dos filhos
de mães trabalhadoras no período da Revolução Industrial. Essas instituições assumiram,
então, um aspecto preconceituoso caracterizado por uma educação assistencialista que
subjuga e subordina as famílias e crianças pobres. Essas instituições conviveram com outras,
ricas em estímulos, materiais e profissionais preparados para educar de maneira qualificada
quem podia pagar.
Essas características das instituições de educação infantil permanecem até hoje,
pelo menos no que existe de central. A educação pública desqualificada e sucateada e também
como a reedição das perspectivas assistencialistas e compensatórias que marcam a construção
da educação da infância pobre são aspectos fundamentais que caracterizam as atuais políticas
de subordinação de todos os bens sociais ao imperativo da mercadoria.
Desse modo, as instituições de educação infantil se apresentam como um dos
lócus principais onde trabalhadores e trabalhadoras em educação se constituem e elaboram
representações acerca de si mesmos, da vida social, dos conflitos e contradições e das formas
de intervenção, consciente ou não, na realidade social. Ou seja, a atividade profissional
realizada é um elemento constituinte da construção da identidade das instituições e da própria
identidade profissional. Identidade essa que, sob determinadas condições de contradição e de
percepção dos desafios históricos colocados, assume um caráter politicamente consciente, se
constituindo como identidade política.
Marcadas pelo preconceito de classe e pela reprodução das condições subjetivas,
em cada indivíduo, dos princípios, valores e representações hegemônicos, as instituições de
educação infantil são também o espaço contraditório onde esses trabalhadores e essas
trabalhadoras elaboram uma identidade política diante dos conflitos sociais e das relações de
poder.
36
1.1 Trabalho e Educação: a natureza das relações educativas
Este capítulo tem como objetivo central discutir e expor a natureza da educação
como parte inerente aos processos de objetivação humana, que não é redutível apenas à suas
formas escolarizadas, muito embora essas sejam, como afirma Saviani (2000), a forma
generalizada e dominante de Educação na moderna sociedade capitalista.
Compreender a educação como objetivação humana resulta no seu entendimento
como constituída e constituinte no plano das determinações e relações sociais (FRIGOTTO,
1995), permeadas pelos conflitos sociais. Nesse sentido, os processos educativos estão
intrinsecamente articulados às formas de produção da vida material e aos contornos que
conformam a atividade humana produtiva nos diferentes períodos históricos, forjados em
distintos modos de produção e de suas contradições movidas pelo paradoxo que as forças
produtivas assumem frente às relações sociais de produção e pela luta de classes. O debate
aqui aludido está vinculado ao campo de reflexões que se insere no interior da relação entre
trabalho e educação.
A perspectiva aqui assumida entende o trabalho como atividade humana
consciente de produção e reprodução da vida material, isto é, como atividade que, por meio da
objetivação constituída na relação do homem com a natureza e com os outros homens,
constitui o gênero humano e que, sob determinadas circunstâncias históricas (sistema do
capital), assume um caráter estranhado diante do seu agente. Assim a educação só possui
sentido na medida em que as estruturas, processos e relações nas quais ela se efetiva
explicitam os limites da alienação humana e, potencialmente, a humanização do indivíduo.
Essa concepção parte da relação contraditória entre trabalho e educação,
criticando e buscando superar as raízes alienantes e alienadas da atividade humanizadora
presentes na percepção fetichizada que o trabalho assume para a economia política capitalista
(MARX, 2003b). As teorias/ideologias da economia política capitalista reduzem o trabalho a
mero fator econômico da produção (força humana de trabalho) e, conseqüentemente, reduz a
o papel da educação aos processos de qualificação necessários à reprodução desse fator de
produção.
Contrariamente a essa lógica, entendemos a educação como prática sócio-
histórica (práxis), produto do trabalho entendido como categoria ontológica e econômica
fundamental que apresenta sua concretude na medida em que nega, dialeticamente, o seu pólo
contrário (o trabalho estranhado e as formas alienadas e alienantes de Educação) como aponta
Frigotto (1995, p. 31).
37
A educação também não é reduzida a fator, mas é concebida como uma prática
social, uma atividade humana e histórica que se define no conjunto das relações
sociais, no embate dos grupos ou classes sociais, sendo ela mesma forma específica
de relação social. O sujeito dos processos educativos aqui é o homem e suas
múltiplas e históricas necessidades (materiais, biológicas, psíquicas, afetivas,
estéticas, lúdicas).
Assim, por um lado é necessário enfatizar que os processos educativos,
institucionais ou não, se efetivam sobre o caráter contraditório da produção das relações
sociais. Podemos então inferir que a educação pode se instituir como prática social total, ou
seja, como o conjunto de relações sociais e históricas em que o sujeito se insere herdando
determinadas condições históricas de socialização das atividades humanas constituindo
Formas de educação que produzem e praticam, para que elas [as sociedades]
reproduzam, entre todos que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras
da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou
da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para
reinventar, todos os dias, a vida do grupo de cada um de seus sujeitos, através de
trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do
mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar – às
vezes a ocultar, às vezes a inculcar – de geração em geração, a necessidade da
existência da sua ordem. (BRANDÃO, 1995, p. 11).
Por outro lado, a educação também é objetivada como trabalho educativo, isto é,
como “[..] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.”
(SAVIANI, 2000, p. 17).
Neste sentido, a educação é compreendida também como trabalho. Obviamente,
a educação não pode ser identificada com a produção de uma determinada coisa que emerge
do intercâmbio entre homem e natureza, mas sim como trabalho não-material cujo produto
não se separa do ato da produção. Ao fazer objeto seu o próprio gênero humano, o ser humano
o faz no sentido de reproduzir sua condição universal, educando e educando-se.
É um equívoco atribuir à educação um caráter abstrato, deslocado do conjunto
das relações, estruturas e processos que configuram a sociedade. Produto e produtora das
relações sociais, a educação é um fenômeno que ocorre em um determinado tempo e espaço,
de maneira intencional ou não, sendo, portanto, histórica e socialmente produzida e
reproduzida; ela é uma prática social particular que se configura como síntese de múltiplas
determinações.
38
Desse modo, a educação (em geral) e o trabalho educativo (em particular)
expressam também as contradições do duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria
de que Marx (2003a) faz alusão. A educação está inserida no bojo das relações sociais de
produção capitalista que materializa o trabalho, em sua forma concreta – pela necessidade de
produção da vida material – e na sua forma abstrata na qual o conjunto da atividade produtiva
dos indivíduos é naturalizado como a forma mesma de produção do valor, isto é, uma força
exterior ao trabalho que apaga a individualidade dos trabalhadores.
O processo produtivo no interior da sociedade produtora de mercadorias, ao
apagar a individualidade do sujeito, subsume suas possibilidades criativas e criadoras de
produzir a história por intermédio de sua atividade consciente e, portanto, da potencialidade
de se apropriar de sua condição de gênero humano autodeterminado aos interesses e
necessidades expansivas e de acumulação do capital. No interior dessas relações, o indivíduo
só tem significância na medida em que produz valor, ou seja, quando se conforma em fator de
produção objetivado como trabalho igual e geral produtor de valor, enquanto mercadoria força
de trabalho. Essas relações constituem-se como estruturas e processos históricos sobre os
quais eleva-se a teoria valor-trabalho, sem a qual não se compreende “não só como se produz
dentro da relação capitalista o conjunto das relações sociais [dentre elas a educação e a
formação humana], mas como se produz historicamente a própria relação capitalista.”
(FRIGOTTO, 1989, p. 20-21).
O esgotamento das propriedades do trabalho como atividade ontológica é
condição fundamental à produção do valor no interior das relações sociais capitalistas,
significando, no limite, a subordinação do trabalhador aos desígnios alheios às suas reais
necessidades. Do trabalho e do seu produto somem todas as qualidades; a utilidade (valor de
uso) das coisas produzidas é subordinada pela mediação da troca em que o produto do
trabalho se insere, relação essa que se efetiva como uma “forma fantasmagórica de relação
entre coisas” (MARX, 2003b, p. 94). Esse processo, que Marx (ibid.) categoriza como
fetichismo da mercadoria, encobre as características sociais do trabalho humano,
coisificando-o e atribuindo aos produtos do trabalho propriedades sociais.
A atividade humana torna-se categoria abstrata produtora de valor na medida em
que cada força de trabalho individual entra em ação, se equiparando às demais e adquirindo
caráter quantitativo mensurado como tempo de trabalho socialmente necessário à produção
da mercadoria (MARX, 2003b, p. 57ss). Essa é uma condição histórica que emerge na
sociedade burguesa com o avanço da capacidade social produtiva e, conseqüentemente, da
divisão social do trabalho. No interior dessas relações, o trabalhador é apenas apêndice da
39
máquina e componente da engrenagem produtiva e a sua atividade vital é convertida em
atividade simples, não importando muito se educado ou não.
O valor da mercadoria, porém, representa trabalho humano simplesmente,
dispêndio de trabalho humano em geral.[...] Trabalho humano mede-se pelo
dispêndio da força de trabalho simples, a qual, em média, todo homem comum, sem
educação especial, possui em seu organismo. O trabalho simples médio muda de
caráter com os países em estágio de civilização, mas é dado em uma determinada
sociedade. Trabalho complexo ou qualificado vale como trabalho simples
potenciado ou, antes, multiplicado, de modo que uma quantidade dada de trabalho
qualificado é igual a uma quantidade maior de trabalho simples. (MARX, 2003b, p.
66, grifos do autor).
Ao revelar as mediações por meio das quais o trabalho produz valor, Marx
(2003a; 2003b; 1978) expõe os mecanismos de exploração da força humana de trabalho pelos
quais o capital lança mão no sentido de otimizar a sua razão de ser – acumulação e auto-
expansão. É a extração do sobretrabalho, de trabalho excedente, que gera a riqueza do
capitalista e a servidão e pobreza do trabalhador. O trabalhador, ao produzir, não o faz
somente para realizar suas necessidades de subsistência. Na verdade, ele conforma sua
atividade como uma mercadoria que, ao ser consumida pelo capitalista que compra o direito
de usar e abusar de sua força de trabalho, é expropriada ao máximo.
É somente na particularidade histórica do modo de produção capitalista que as
forças produtivas e as relações sociais de produção exigem um trabalhador livre para poder
vender sua força de trabalho (única mercadoria que lhe sobrou). A forma histórica do
capitalismo permitiu uma condição fundamental para a produção e reprodução do capital que,
como Marx (1989) afirmara, nada mais é do que trabalho acumulado e apropriado
privadamente, despojando os trabalhadores da terra, do domínio feudal, para escravizá-lo no
trabalho assalariado. Nessa condição, o trabalhador não produz somente sua vida material,
mas, sobretudo, a ganância alheia. Ao vender sua força de trabalho, recebe uma quantia de
mercadorias (dinheiro, salário) por parte do tempo em que se submete à produção, mas
também boa parte da sua atividade é-lhe roubada, é trabalho que excede ao seu salário e,
portanto, é trabalho não pago.
O trabalho excedente é denominado de mais-valia, cujo caráter essencial é a
relação em que o trabalhador vende sua força de trabalho por meio contratual ao capitalista
por uma quantidade de horas superior ao tempo necessário para garantir o salário que lhe é
pago.
A questão essencial nessa relação é que o capitalista compra no mercado uma
mercadoria especial, única, que produz valor, qual seja, a força de trabalho. Essa força de
40
trabalho, ao ser posta em ação, produz valores na forma de mercadoria em troca de outras
mercadorias que lhes proporcionam apenas a sobrevivência e a própria reprodução como
trabalhadores.
O fato de o empregador comprar a força de trabalho de um indivíduo por oito,
dez ou doze horas garante-lhe o usufruto e o direito de consumí-la ao máximo, independente
dos limites humanos
18
dos sujeitos empregados (circunscritos nessas horas compradas) na
produção.
Ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagá-la pelo seu valor, o capitalista
adquire, como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a
mercadoria comprada. A força de trabalho de um homem é consumida, ou usada,
fazendo-o trabalhar, assim como se consome ou se usa uma maquina fazendo-a
funcionar. Portanto, o capitalista, ao comprar o valor diário, ou semanal da força de
trabalho do operário, adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar
durante todo o dia ou toda semana (MARX, 1978, p. 82)
Ao comprar a força de trabalho de um determinado número de trabalhadores por
uma determinada quantidade de horas no dia, o empregador exige-lhe produtividade e
eficiência na produção de um maior número de mercadorias numa menor quantidade de
tempo e por isso paga-lhe uma quantia mínima necessária para a sua subsistência. Essa
quantia mínima é denominada de salário. Entretanto, nessa quantidade de horas empregadas
em que o trabalhador usa sua força de trabalho para produzir mercadorias existe uma
quantidade de trabalho pago e outra de trabalho não remunerado. É exatamente desse trabalho
não remunerado que o capitalista extrai mais-valia.
A extração de mais-valia se materializa basicamente de duas formas: a sua forma
absoluta cujo prolongamento da jornada de trabalho significa uma maior quantidade de
trabalho alheio apropriada; e a sua forma relativa, cujo desenvolvimento das forças
produtivas, avanço tecno-científico, o incremento da maquinaria e o aperfeiçoamento da
divisão técnica do trabalho intensificam os processos de produção para, num curto espaço de
tempo, produzir cada vez mais, sob os mesmos salários ou até menores.
Portanto, as relações sociais de produção erigidas pela sociedade produtora de
mercadorias constituem o trabalho como uma mercadoria materializada sob um duplo
aspecto: uma mercadoria especial com um alto valor de uso, pois é capaz de produzir riqueza;
18
- Marx (2003b) observa que no processo de produção capitalista o lucro desenfreado não considera os
indivíduos como seres humanos, mas sim como coisas, não importando as condições desumanas a que os
sujeitos são submetidos. Não importa a saúde dos trabalhadores. Os capitalistas são, na verdade, grandes
vampiros que sugam a humanidade dos sujeitos inscrita nas suas capacidades de produzir a realidade por meio
do trabalho (ver capítulo da Jornada de Trabalho em O Capital livro I vol. I).
41
mas também uma mercadoria de miserabilíssimo valor de troca para os seus proprietários (os
trabalhadores), visto que a riqueza é produzida pela exploração do trabalho assalariado.
Ao ser objetivado como mercadoria força humana de trabalho, ou seja, ao se
tornar trabalho assalariado no processo de produção capitalista, o indivíduo se desumaniza; o
trabalho passa a significar “perda de si mesmo”. É perda de si mesmo – alienação,
estranhamento – não como algo abstrato descolado da totalidade social, mas sim como
propriedade de outrem, porque é auto-alienação produzida, produto e produtor da propriedade
privada.
No mundo real prático, a auto-alienação só pode revelar-se através da relação
prática, real, a outros homens. O meio pelo qual a alienação ocorre, também é
prático. Por conseguinte, o homem, através do trabalho alienado, não só produz a
sua relação ao objecto e ao acto de produção como a homens estranhos e hostis,
mas produz ainda a relação dos outros homens à sua produção e ao seu produto e a
relação entre ele mesmo e os outros homens. Assim como ele cria a sua produção
como desrealização, como a sua punição, e o seu produto como perda, como
produto que não lhe pertence, da mesma maneira cria o domínio daquele que não
produz sobre a produção e o respectivo produto. Assim como aliena a própria
actividade, da mesma maneira outorga a um estranho a actividade que não lhe
pertence. (MARX, 1989, p. 168, grifo do autor).
O trabalho como categoria abstrata, produtora de valor, é materializada no
interior das relações de compra e venda entre trabalhadores e proprietários dos meios de
produção legitimada pela liberdade e igualdade formais – estas são as regras jurídicas do jogo
capitalista. Marx (1980, 1989, 2003b) apreende as determinações do capital sobre a atividade
vital humana e a expõe como processo de degradação, artificialização, unilaterização da
espécie humana.
O trabalho, ao se tornar assalariado, perde seu valor ontológico e torna-se parte
dos meios de produção, ou seja, propriedade privada do capitalista. Assim, a atividade vital do
ser que o torna ser genérico pertencente, constituinte e constituído da/na/pela hominidade,
torna-se meio de subsistência, é estranhada àqueles que o produzem, é sacrifício.
[...] o operário, que, durante doze horas tece, fia, perfura, torneia, constrói, cava,
talha a pedra e transporta, etc., considerará essas doze horas de tecelagem, de
fiação, de trabalho de torno, de pedreiro, cavador ou entalhador, como uma
manifestação de sua vida, como sua vida? Muito pelo contrário. Para ele quando
terminam essas atividades é que começa a sua vida, à mesa do boteco, na cama
(MARX, 1980, p. 18).
O trabalho, como intercâmbio do homem com a natureza e com os outros
homens que media a constituição humana como ser genérico, é subsumido aos caprichos do
42
capital pelo sistema do salariado. O salário, caracterizado pela quantidade mínima que garante
a subsistência do trabalhador e de sua família, é também o valor mínimo necessário à
reprodução da força de trabalho, garantindo a dependência do trabalhador ao capital (MARX,
1989).
O trabalho assalariado revela o caráter social da alienação do trabalho,
explicitando que o trabalhador não se identifica com seu produto e com o processo de
produção, estranhando a si mesmo e aos outros homens porque nas relações de produção
capitalistas sua atividade vital se materializa como uma mercadoria que não lhe pertence. Sua
vida é propriedade de outro, representante da classe que detém em seu poder os meios de
produção e de existência, a burguesia ou o capitalista.
Em síntese, a forma como o sistema do capital subsume a produção da vida
material limita a atividade humana e humanizadora à condição de técnicas simples, de ação
unilateral que se efetiva por objetivos alheios, de rotinas massificantes, ou – como ironizam
Marx e Engels (1999) –, para ser compreensível aos filósofos, alienação. A questão central
nessa discussão é que, ao subordinar a produção da vida material aos objetivos e necessidades
do sistema societal capitalista, a produção e reprodução da realidade – a totalidade social –
passam a ser orientadas pela objetivação estranhada em que o trabalho se materializa, ou seja,
não é somente o processo produtivo que se subordina a essas relações, mas toda a vida social.
Assim, a questão da subordinação do homem aos desígnios do capital não se
circunscreve somente à esfera produtiva, mas atinge os mais distintos campos da atividade
humana. Para Mészáros (2002), o sistema do capital está situado para além do capitalismo –
considerado apenas uma das formas de realização do sistema do capital, assim como as
experiências pós-capitalistas do chamado “socialismo real” – como uma estrutura
incontrolável e totalizante de controle do metabolismo social
19
:
[...] o capital não é simplesmente uma “entidade material” [...] também não é [...]
um “mecanismo” racionalmente controlável [...], mas é, em última análise, uma
forma incontrolável de controle sóciometabólico. A razão principal por que esse
sistema forçosamente escapa a um significativo controle humano é precisamente o
fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na
verdade, até o presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de
controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim
provar sua “viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar. Não se
19
- Metabolismo social é compreendido como as relações sociais de intercâmbio entre homem e natureza, e entre
homem e o gênero humano no sentido de produzir a vida material e, portanto, a própria história. Esse
metabolismo social se configura pela mediação de duas ordens: a mediação de primeira ordem, diz respeito ao
trabalho em seu caráter ontológico de produção e reprodução da vida material; as mediações de segunda ordem
são caracterizadas pela subordinação das mediações de primeira ordem a divisão social hierárquica do trabalho e,
conseqüentemente, ao controle do sistema do capital. (MÉSZÁROS, 2002; ANTUNES, 2002).
43
pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste
importante sentido, “totalitário” – do que o sistema do capital globalmente
dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a
do comércio, a educação e agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que
implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade desde as
menores unidades de seu “microcosmo” até as mais gigantescas empresas
transnacionais, desde as mais íntimas relações pessoais aos mais complexos
processos de tomada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a favor
dos fortes e contra os fracos. (MÉSZÁROS, 2002, p. 96, grifos do autor).
Antunes (2002), ao discutir a questão do trabalho na sociedade contemporânea,
tendo como suporte teórico a produção intelectual de Mészáros, afirma que o capital funda
uma relação estrutural de domínio e subordinação das chamadas mediações de primeira
ordem – o trabalho em sua forma ontológica de produção da história – às mediações de
segunda ordem que se objetiva na orientação do capital para a expansão e acumulação.
A subordinação do trabalho ao capital é mediada pelo que Mészáros (2002, p.98-
99) categoriza de estrutura hierárquica de comando do capital, cuja materialização dar-se-á
pela inserção do indivíduo num determinado grupo social classificado pela sua posição num
“complicado sistema de divisão social hierárquica do trabalho [que se configura como] força
cimentadora pouco segura – já que representa, no fundo, uma tendência centrífuga destruidora
– de todo complexo.”. Daí as contradições e fraturas (ir)reformáveis do capital e,
conseqüentemente, a luta encarniçada travada pelas classes sociais visando a hegemonia ou a
contra-hegemonia.
No limite, pode-se afirmar que o conjunto das relações sociais (dentre as quais
situamos a educação e os vários modos de qualificação e formação humanas) está
subordinado a essa estrutura totalizante de controle do capital, mesmo dadas as
particularidades de cada fenômeno.
Dessa forma, a educação, compreendida como um conjunto de relações sociais,
está determinada pelas condições históricas de materialização do trabalho, visto que ela
mesma se configura como produção histórica mediada pela atividade vital humana. E,
enquanto trabalho, a educação está situada nos processos alienados e alienantes que a
atividade dos homens assume sob as determinações do modo de produção do capital, mas
também nas possibilidades de libertação do trabalho.
Na atual conjuntura de crise estrutural do capital, afirmar a educação como
trabalho significa, sobretudo, negar as representações unilaterais, parciais e limitadas do
debate contemporâneo da teoria social que advoga o pretenso “fim do trabalho”, jogando na
mesma “vala” a possibilidade histórica como produto da ação humana, as classes sociais e a
44
luta de classes e a possibilidade da alternativa socialista como horizonte de emancipação da
sociabilidade humana
20
.
A crítica acadêmica e política sobre as inventivas ideológicas contemporâneas
sobre o trabalho – produzidas como substrato político-cultural do processo de reestruturação
produtiva e das metamorfoses sofridas pelo mundo do trabalho como apanágio da crise
estrutural que atinge o sistema do capital (sem precedentes na sua história) – aponta o caráter
ideo-político dessas teses, visto que: primeiro, compreende o trabalho apenas em sua forma
abstrata, como emprego da força de trabalho humana necessária à produção da mercadoria,
não apreendendo o seu caráter ontológico de produção da vida material e, portanto, condição
de produção e reprodução do próprio gênero humano, fato esse que não pode ser extinto; em
segundo lugar, o metabolismo social do capital não pode prescindir da exploração da força de
trabalho, sem o qual sua unidade contraditória do duplo caráter do trabalho (produção de valor
de uso e de valor) e de extração de mais-valia não se efetiva. Muda-se o conteúdo, as formas,
a organização e a estrutura de emprego do trabalho, mas não o suprime. (ANTUNES, 2003).
As teses de sociedade pós-industrial, pós-capitalista, sociedade global sem
classes e do “fim das ideologias” constituem-se como representações – ideologia no sentido
marxiano de apreensão da realidade invertida – do estágio atual da crise estrutural do sistema
do capital e apontam para a reedição “pós-moderna” da visão global do “fim da história”
materializada pela concepção do Espírito Absoluto de Hegel, que reputa as instituições
burguesas como instrumentos perfeitos e racionais da ordem social, advogando a disposição
do capital permanente universal (MÉSZÁROS, 2002). Sob esta ordenação social “inconteste”
– apologia apresentada, sobretudo, pelo efeito do colapso da experiência soviética no Leste
Europeu – “não há alternativa” que não seja adaptar-se à sociedade “livremente” dirigida
pelas “mãos invisíveis” do mercado.
A educação, nesse contexto, precisa responder as demandas da “sociedade do
conhecimento” e de um novo mercado de trabalho flexibilizado e determinado pela economia
global e de um mundo produtivo marcado pelos avanços técnico-científicos. É necessário
então formar trabalhadores polivalentes, flexíveis, empreendedores, cooperativos, enfim, uma
educação geral e abstrata que forme cada indivíduo nas competências de “aprender a
aprender” e de ser “déspotas de si mesmos”. (DUARTE, 2001, FRIGOTTO, 1995; 1998;
20
- A negação da razão histórica e das metanarrativas, em especial do projeto, das idéias e teorias socialistas,
vem sendo alvo de ofensivas teórico-ideológicas nos diversos campos da chamada teoria social (sociologia,
filosofia, história, pedagogia). Como analisa Frigotto (1999), essas teorias são conflitantes e se conformam como
lógica cultural do capitalismo tardio (neoliberalismo e globalização econômica) que se materializam na chamada
pós-modernidade, na sociedade do conhecimento e na decretação dos diversos “fins” (do trabalho, da história, da
ideologia, da razão).
45
2001; GENTILI, 1998; OLIVEIRA, 2001). Mas, para isso, afirmam os neoliberais e
neoconservadores, é preciso romper com a lógica caduca, totalitária e centralizadora da
educação pública, gratuita e estatal. O espaço privilegiado para que os processos de formação
se adaptem ao mercado global é o próprio mercado.
Enfim, os condicionantes do modelo societal do capital sobre a educação das
classes populares se fundam no conflito histórico entre trabalho e capital e mantém estruturas
unilaterais de formação e instrução dos trabalhadores desde a mais tenra infância, ao longo da
história. A categoria trabalho, considerado o seu duplo caráter, é fundamental para
compreender essas relações, visto que é, fundamentalmente, sobre a questão da instrução para
o trabalho e da formação de indivíduos heterônomos, resignados e dóceis que a educação tem
sido materializada para as maiorias, ou seja, a educação para os trabalhadores e trabalhadoras
vem sendo historicamente constituída pela articulação entre instrumentação, ideologia e
caridade.
Mas ainda é possível e necessário refletir sobre os limites que a sociabilidade
capitalista impõe sobre a atividade humana e, portanto, sobre a educação, sem perder do
horizonte o caráter fundante da vida humana que o trabalho tem e das possibilidades de
construção de uma vida cheia de sentido no e pelo trabalho (ANTUNES, 2002).
Os processos de socialização e de aculturação dos indivíduos são forjados no
seio dessas relações sociais reproduzindo-as, mas também provocando mudanças, ainda que
tímidas e limitadas, visto que qualquer mudança em políticas educativas ou em modelos e
métodos pedagógicos significam, no plano das determinações sociais, apenas uma reforma
educacional não atingindo o núcleo da incorrigível lógica do capital. Nesse sentido, Meszáros
(2005) observa que uma educação que supere os condicionantes do capital sobre os
indivíduos, necessariamente, só pode ser colocada como uma alternativa ao sistema societal
vigente, uma educação para além do capital, e afirma que
O impacto da incorrigível lógica do capital sobre a educação tem sido grande ao
longo do desenvolvimento do sistema. [...] é por isso que hoje o sentido da
mudança educacional não pode ser senão o rasgar camisa-de-força da lógica
incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia
de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos os meios disponíveis,
bem como com todos os meios ainda a ser inventados, e que tenham o mesmo
espírito. (MÉSZÁROS, 2005, p. 35).
46
Os meios de socialização do sujeito nos habitus
21
da sociedade são processos
que se efetivam desde as relações sociais mais imediatas até as formas sistematizadas de
educação por meio das instituições que expressam a chamada superestrutura
22
da sociedade.
Tais instituições, pela natureza de vinculação/determinação que tem com as formas de
produção e reprodução da realidade, exprimem o conteúdo e os condicionantes classistas que
a sociedade capitalista possui.
Desse modo, resulta necessário analisar e compreender o papel da educação
infantil no interior das relações sociais de produção capitalistas, especialmente na atual
conjuntura de crise estrutural do capital e dos seus conseqüentes mecanismos de
recomposição de hegemonia iniciados no final do século passado com os processos de
reestruturação econômica, política, cultural e educacional.
É preciso considerar que as distintas instituições sociais (igreja, partido, escolas,
creches, sindicatos etc.) que conformam a superestrutura da sociedade se configuram como
importantes espaços educativos em que o indivíduo (crianças, jovens, homens e mulheres)
apreende uma série de habilidades, comportamentos e valores necessários à reprodução da
sociedade. Entretanto, o presente trabalho busca destacar os sentidos e significados das
instituições educativas
23
e o seu papel na formação das novas gerações e na educação do
educador sob as determinações do contexto econômico, social, político e cultural em que estas
se inserem.
É necessário, ainda, sublinhar que as instituições educacionais são produzidas
histórica e cotidianamente por seus agentes numa complexa trama de relações que envolvem a
administração do sistema escolar e as políticas educacionais, os profissionais de diversos
campos de atuação (professores, pessoal administrativo, pessoal de higiene e alimentação,
vigias), crianças, pais e comunidade. Destaco, entre estes, o trabalho dos professores e
professoras, entendendo o desempenho dessa atividade como trabalho, não só por ser a forma
em que esses sujeitos produzem seus meios de subsistência, desempenhando uma atividade
21
- Com base nos pressupostos observados por Saviani (2000), habitus pode ser aqui definido como a segunda
natureza humana, isto é, o conjunto de idéias, conceitos, valores, símbolos, atitudes e habilidades produzidas por
meio do intercâmbio consciente que o homem estabelece com a natureza e com os outros homens, ou seja, o
trabalho.
22
- Tomo por superestrutura o conceito de Gramsci (1982, p. 11), cujo vínculo orgânico com a estrutura por
meio dos aparelhos de Estado (sociedade política) e da sociedade civil (conjunto de organismos privados)
“correspondem à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda sociedade e àquela de ‘domínio
direto’ ou de comando que se expressa no Estado ou no governo ‘jurídico’.”.
23
- Compreendo por instituições educativas determinados espaços organizados – geralmente administrados pelo
Estado ou pela iniciativa privada de caráter filantrópico ou mercantil – e caracterizados pelo papel de reunir
coletivos de uma determinada faixa etária e/ou com um interesse específico para prestar um determinado tipo de
educação. Nesse sentido, as instituições escolares podem abarcar tanto o ensino fundamental como também
como é o caso dessa investigação – as instituições de educação infantil.
47
assalariada, mas também por ser o meio pelo qual produzem determinadas relações sociais
que se configuram como processos educativos, atribuindo identidade à instituição e a si
próprios.
1.2 A educação infantil na sociedade de classes
A educação infantil, como processo de socialização do indivíduo acerca das
circunstâncias históricas, culturais, políticas, éticas e estéticas de seu tempo, tem sido
caracterizada por suas formas institucionalizadas na moderna sociedade capitalista;
enfaticamente, os modos escolarizados e institucionais de educação. A particularização dos
processos de formação e qualificação humana restrita às instituições educativas descaracteriza
e, de certa forma, vela as formas globais de formação dos indivíduos, pois as instituições de
educação “estão estritamente integradas na totalidade dos processos sociais. Elas não podem
funcionar adequadamente exceto se estiverem em sintonia com as determinações
educacionais gerais da sociedade como um todo.”. (MÉSZÁROS, 2005, p. 43, grifos do
autor).
Os modelos institucionalizados de educação infantil têm raízes profundas no
interior das relações sociais de produção da vida material que se constituem como
metabolismo necessário entre homem e natureza que corresponde à instituição do processo de
hominização e, portanto, das próprias formas de constituir a espécie humana e,
conseqüentemente, a sociedade.
De acordo com Marx (2003a, p. 05), o conjunto das relações de produção por
meio das quais os homens produzem a realidade sócio-histórica é a base econômica sobre a
qual se edifica a superestrutura jurídica, política e cultural, correspondendo a determinadas
formas de consciência social, de forma que o “modo de produção da vida material condiciona
o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”.
Partindo de uma concepção que entenda o trabalho de maneira ampliada, ou seja,
como ontologia do ser social, como atividade consciente de transformação da natureza e,
portanto, da (trans)formação de si mesmo enquanto gênero humano, compreende-se que os
processos educativos não se esgotam nas suas formas institucionalizadas de ensino e instrução
– que, por sinal, fetichizam a educação descaracterizando o processo global de formação
humana. Ao contrário, a formação humana compreende as maneiras, formas e meios em que
48
as relações sociais de produção da vida material engendram a “fabricação” de um tipo de
homem
24
.
A produção da vida material é o fundamento primeiro da constituição do gênero
humano como ser social (MARX e ENGELS, 1999) produzido no interior de uma totalidade
de relações econômicas e sociais que se conformam como a base sobre a qual erguem-se as
estruturas e condições da vida social em seu conjunto. É o desenvolvimento histórico das
forças produtivas e das relações sociais de produção
25
, desencadeado pelo trabalho, que
constituirá a chamada sociedade civil, formando a base do Estado e de toda a superestrutura
ideológica, jurídica e política e, portanto, a educação institucionalizada ou não.
A educação infantil demanda uma forma específica de trabalho (trabalho
educativo) que, embora não concorra diretamente para a produção de mais-valia, contribui
com o processo de reprodução das relações sociais de reprodução do sóciometabolismo do
capital por meio da colaboração na reprodução da mercadoria força de trabalho, pela liberação
da mão-de-obra feminina para o trabalho produtivo e pela inculcação ideológica dos valores,
princípios e relações das classes dominantes na família e na criança da classe trabalhadora.
Nesse sentido, a educação infantil envolve “uma relação historicamente criada com a natureza
e entre os indivíduos, que cada geração transmite a geração seguinte” (MARX e ENGELS,
1999, p. 56).
Para Duarte (2001), o trabalho educativo é a atividade mediadora entre o
indivíduo e a prática social global que se institui num processo dialético entre apropriação e
objetivação. Esse conceito de trabalho educativo tem como fundamento o trabalho como
protoforma do gênero humano que, sob a particularidade histórica da sociabilidade capitalista,
se aliena. E o trabalho, ao se tornar alienado no interior das relações de produção capitalistas,
torna-se reprodução do indivíduo atomizado, fragmentado e mutilado, em suas muitas
relações sociais. Desse modo, o trabalho educativo se configura como um processo de
internalização de um conjunto de relações sociais que, no caso concreto do capitalismo,
significa a interiorização da divisão hierárquica do trabalho e do lugar subordinado em que a
classe trabalhadora se insere na estrutura social (MÉSZÁROS, 2005).
24
- Um exemplo bastante claro de como as estruturas e relações socioeconômicas engendram a formação de um
tipo de homem e de relações sociais está presente na síntese que Gramsci (1974, p. 135ss) faz, em Americanismo
e Fordismo, sobre as formas de como o modelo fordista e taylorista de acumulação forja um tipo de homem,
família, Estado, cultura e educação.
25
- Forças produtivas refere-se aos instrumentos e habilidades que possibilitam o controle das condições naturais,
e seu desenvolvimento é cumulativo; e as relações sociais de produção implicam em diferentes formas de
organização da produção e distribuição, de posse e propriedade dos meios de produção, bem como em suas
garantias legais, constituindo-se, dessa forma, no substrato para a estruturação das classes sociais.
49
Nesse sentido, na particularidade histórica do sistema do capital, a educação
infantil assume as formas contraditórias do trabalho alienado; ela é, à sua maneira, tanto
reprodução do estado de coisas como também reprodução, em cada indivíduo, da produção
humana (ciência, arte, linguagem, tecnologia, cultura, filosofia, moral, política)
historicamente construída.
Duarte (2001, p. 49-50) faz referência ao duplo caráter da reprodução (das
relações sociais e da humanização) presente no trabalho educativo ao afirmar que seu produto
[...] está relacionado à reprodução da humanidade. Ela é produzida primeiramente
no processo histórico-social, pelo conjunto dos homens. Mas ela precisa ser
reproduzida constantemente em cada individuo singular. Sem isso não há
continuidade do próprio processo histórico [...] O produto do trabalho educativo
refere-se, portanto, duplamente à reprodução do indíviduo-educando e à reprodução
da sociedade. O conjunto da atividade social não pode se reproduzir se não é
reproduzida nos indivíduos a humanidade produzida historicamente. Essa
necessidade fundamental para qualquer tipo de sociedade humana, desde as mais
primitivas, passou por um longo processo de desenvolvimento histórico até chegar,
aos nossos dias, a um estágio de complexidade no qual não é possível a plena
reprodução em cada indivíduo singular da humanidade produzida historicamente,
sem a realização de um tipo de atividade voltada direta e intencionalmente para
esse fim.
Desse modo, a educação infantil serve para assegurar tanto a reprodução das
condições materiais da vida e de todo o seu pensamento subjacente – que, no caso do sistema
do capital, significa a reprodução da alienação, da ideologia, da propriedade privada e da
divisão hierárquica do trabalho –, quanto a possibilidade de apropriação da objetivação do
gênero humano em sua totalidade (dos saberes produzidos histórica e socialmente pela
humanidade). Segundo Duarte (ibid., p. 22), a relação entre objetivação e apropriação
“expressa a dinâmica essencial da autoprodução do homem pela sua atividade.”. Entendendo
o trabalho como atividade consciente pela qual o homem se autoproduz ao modificar
intencionalmente a natureza inorgânica (objetivação) no sentido de atender suas necessidades
históricas (apropriação) que, por sua vez, cria novas ordens, mais complexas, de necessidades
e assim se conforma como ser genérico, Duarte (ibid., p. 23) expõe a questão da seguinte
forma:
[...] o homem ao produzir as condições de sua existência, ao transformar a
natureza, se apropria dela e se objetiva nela. Essa apropriação e essa objetivação
geram no homem novas necessidades e conduzem a novas formas de ação, num
constante movimento de superação por incorporação. Cada indivíduo nasce situado
espacial e temporalmente nesse processo e, para dele participar, isto é, para se
objetivar no interior dele, precisa se apropriar das objetivações (neste caso
entendidas como produtos da atividade objetivadora humana, resultado do processo
histórico de objetivação). (grifos meus).
50
Portanto, no campo educativo a relação entre apropriação e objetivação significa
a condução intencional dos indivíduos no processo de apropriação das objetivações
produzidas historicamente pelo gênero humano (cultura, filosofia, arte, ciência, política, moral
etc.). Sob esta perspectiva, a educação infantil se torna reivindicação histórica das classes
trabalhadoras à medida que a apropriação do conhecimento historicamente produzido e
acumulado por parte das crianças pequenas é vinculada às bandeiras de luta em sindicatos,
associações, movimentos populares e partidos de esquerda.
O movimento contraditório da realidade, representado no interior dos conflitos
entre as classes sociais, materializa a educação infantil como campo de disputa hegemônica,
do qual surgem os projetos educativos construídos historicamente no interior do projeto
histórico da classe trabalhadora. A luta dos trabalhadores pela superação da sociedade
produtora de mercadorias tem sido palco para que atores coletivos construam um determinado
ponto de vista de classe, uma concepção de mundo conforme Löwy (2000), diante das mais
variadas matérias humanas, entre as quais destaca-se a questão da educação e da formação do
homem socialista. Nesse sentido, a classe trabalhadora opera a produção de um projeto
pedagógico pautado por seu projeto histórico.
No âmbito da educação escolar, esse projeto é expresso pela perspectiva da
formação onilateral
26
da escola tecnológica, apontada por Marx (1983), que une educação
mental, a ginástica e a instrução politécnica, educação essa sintetizada na escola única
apresentada por Gramsci (1982) em contraposição à escola dual e à formação unilateral
burguesa.
Na educação infantil, também são construídos projetos que envolvem
organicamente as necessidades de cuidado e a formação ampliada para todas as crianças e que
buscam romper com o sistema dual em que às crianças pobres cabe somente um processo
educativo restrito e subjugador e o cuidado/guarda enquanto sua família trabalha, enquanto
que para os filhos das classes dominantes há um processo educativo institucionalizado de
qualidade e pedagogicamente organizado. Como observam Campos (1989) e Faria (2002),
num primeiro momento os movimentos sindicais, feministas e de luta por creches
reivindicavam, desde os anos 1970, o acesso à educação infantil (creches e pré-escolas), mas
ainda sem muita clareza do direito das crianças serem educadas em ambientes distintos da
26
- A formação onilateral significa o pleno desenvolvimento do homem sobre as forças da natureza e a
exteriorização de suas faculdades criativas. Como assevera Manacorda (1991, p. 81), “a onilateralidade é,
portanto, a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, uma
totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar, sobretudo, o gozo daqueles bens
espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência da divisão do
trabalho”.
51
família. A organização desses movimentos, o engendramento de concepções que entendam as
crianças como sujeito de direitos e a contribuição de estudos e pesquisas sobre a educação da
infância desenvolvem novas formas de compreender essas instituições articulando as
necessidades imediatas de cuidados básicos às necessidades históricas de atualização do
gênero humano por meio de intervenções pedagógicas.
No Brasil, as concepções que buscam instituir uma educação infantil entendida
também como espaço de transmissão-assimilação dos saberes histórico e socialmente
produzido só vão ser mais bem elaboradas nos anos 1980 (FARIA, 2002; ALVES, 2002;
FARIA; PALHARES, 2000) com a incorporação, na legislação, dos debates promovidos
pelas ações e lutas dos movimentos sociais pelos direitos da infância, pelos movimentos da
educação, bem como pelos movimentos sindicais, feministas e de luta por creches, cujos
desdobramentos são as legislações mais recentes que incorporam a educação infantil ao
sistema básico de ensino.
Os projetos de educação infantil e educação escolar construídos no interior do
conflito entre trabalho e capital, com bases políticas e pedagógicas pautadas pelo projeto
histórico que tem buscado superar a ordem social capitalista, se fazem presentes no âmbito
das lutas e reivindicações das classes oprimidas por políticas sociais que atendam direitos
fundamentais das famílias trabalhadoras e de seus filhos. Tais concepções são antagônicas às
formas capitalistas de educação infantil e educação escolar e aos processos educativos que as
relações sociais capitalistas conformam sobre os indivíduos.
A educação presente no conjunto das relações sociais em que os indivíduos estão
inseridos é determinante nos processos de formação da consciência. O véu “nebuloso e
místico” imposto ao processo de produção material pela sociedade produtora de mercadorias e
o conseqüente estranhamento do trabalhador em relação à sua condição humana resulta na
formação alienada e alienante que a produção e reprodução do modo de produção capitalista
incide sobre os indivíduos (MARX, 2003b). Os processos educativos institucionais são
apenas parte da formação que a sociedade e suas instituições imputam às crianças “[...] de
modo que seria ridículo acreditar que, mesmo no melhor dos casos, essas horas conseguissem
combater o ensino, infinitamente mais tenaz e organizado, ministrado pela rua, pelo cinema,
pelo rádio, pelo teatro, pela imprensa.” (PONCE, 2003, p. 179).
Contraditoriamente, essas relações promovem uma educação de classe para os
trabalhadores, na medida em que esses identificam a exploração, o sofrimento, as
necessidades e os interesses recíprocos e passam a lutar em torno de um projeto coletivo de
sociedade e de humanização. Arroyo (2003), ao relacionar as relações intrínsecas existentes
52
entre educação, escola, cidadania e democracia, criticando e apontando os limites políticos e
ideológicos que as concepções burguesas e liberais dessas questões promovem, afirma que a
própria luta pela educação pública, gratuita, estatal e de qualidade tem se constituído como
um importante elemento mediador da auto-educação das classes trabalhadoras engajadas num
processo histórico de conquista da cidadania e da democracia substantivas.
A vida e sua produção material são o palco concreto de materialização do
processo educativo e os movimentos sociais se conformam como instâncias educativas para
além da escola. A educação nos diferentes espaços da realidade social “desenclausura” os
processos formativos, inserindo-os no interior das relações entre seres humanos concretos que
gozam de experiências, condições de vida e trabalho diferentes, sofrem determinações
distintas de acordo com o seu pertencimento de classe e de sua inserção na divisão social do
trabalho (MASCARENHAS, 2004).
Desse modo, os processos educativos concretos, isto é, os modos de
formação/qualificação humana, inseridos na totalidade social, só podem ser compreendidos
desde que apreendido o seu caráter de “campo social de disputa hegemônica”. Frigotto (1995,
p. 25) esclarece isso ao afirmar que:
A educação, quando apreendida no plano das determinações e relações sociais e,
portanto, ela mesma constituída e constituinte destas relações, apresenta-se
historicamente como um campo da disputa hegemônica. esta disputa dá-se na
perspectiva de articular as concepções, a organização dos processos e dos
conteúdos educativos na escola e, mais amplamente, nas diferentes esferas da vida
social, aos interesses de classe.
Os diferentes modos de produção que caracterizaram a história humana têm
produzido modelos distintos de educação e formação, muito embora existam pontos centrais
que reúnem os diferentes modos de formação humana sob uma característica semelhante, qual
seja, a divisão social do trabalho e o conflito das classes sociais
27
antagônicas em torno de um
projeto de formação e, portanto, o condicionamento da educação a mais uma forma de
distinção e domínio das classes dominantes sobre a sociedade.
Os apontamentos históricos dessas relações aqui apresentadas propõem indagar a
lógica dual das instituições educacionais presente a partir do capitalismo histórico; lógica essa
27
- Muito embora seja patente a esse trabalho, a concepção marxiana de classes sociais e de luta de classes
compreendida como motor da história (MARX e ENGELS, 2001), é importante ressaltar que não se pode
atribuir à formação social das formas históricas anteriores as características modernas de divisão da sociedade
em classes antagônicas sintetizadas em burguesia e proletariado. Ainda nesse sentido, é de fundamental
importância destacar que as classes sociais e a luta de classes vêm sofrendo metamorfoses significativas, que tem
alterado a natureza conflitiva das relações opostas entre as classes sociais e também nas formas de ser e agir de
cada classe.
53
materializada no conteúdo instrumental e moralizante que caracteriza essas instituições,
quando voltadas para a formação dos filhos das classes trabalhadoras.
Para entender a educação infantil como parte da produção e reprodução da vida
material e, portanto, das relações sociais que os homens estabelecem entre si no sentido de,
também, reproduzir o estado de coisas que conformam tais relações, é preciso situá-la
historicamente em conexão com os avanços das forças produtivas e das relações sociais de
produção.
Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, especialmente entre
os séculos XVIII e XIX, alteram-se profunda e contraditoriamente as concepções que
fundamentam a vida social, dentre as quais estão: a) o sentimento de infância como uma etapa
particular da vida distinta do adulto e como ser não produtivo, apesar de que a infância dos
filhos dos trabalhadores seja marcada pela exploração e pobreza; b) a família como unidade
econômica fundamental e espaço privado de reprodução da força de trabalho; c) a privação do
espaço público para a mulher que passa a ser socializada sob os signos do “mito da
maternidade” e de “guardiã do lar”, muito embora as mulheres das classes trabalhadoras
sejam cada vez mais impelidas a colaborar com o orçamento exíguo da família vendendo sua
força de trabalho; e, d) a educação institucionalizada laica, pública, estatal e “para todos”,
mesmo que tenha uma diretriz extremamente reducionista, unilateral e instrumental para os
trabalhadores.
As concepções de infância, família, mulher e de educação que surgem como
substrato das relações sociais de produção do sistema do capital são formas abstratas de
idealização da sociedade assinaladas por fortes traços do ideário burguês marcado pelo
individualismo liberal e pelo pragmatismo da economia política.
O ideal de uma infância pura, graciosa, singela e “naturalmente” boa, cuja moral
e ingenuidade deve ser preservada da corrupção presente na sociedade e nos adultos se
constitui como referência das teorias pedagógicas modernas – concepção essa ilustrada no
romance de Rousseau Emílio ou da Educação – e dos objetivos a serem perseguidos pela
educação infantil (GHIRALDELLI Jr., 2002). Entretanto, tal concepção é um engodo diante
das condições materiais de vida da maioria das crianças desse período, cujo alto número de
mortalidade, a excessiva jornada de trabalho nas indústrias e a precariedade das escolas
(quando havia a condição de freqüentá-las)
28
, em nada se parecia com os campos líricos e
com as experiências lúdicas de Emílio.
28
- Marx (2003b), através dos relatórios elaborados pelos inspetores de fábrica das comissões de inquérito sobre
as condições econômicas inglesa, mostra como a moderna indústria e a maquinaria degradam a vida da classe
54
A questão da socialização feminina, representada pelos papéis sociais de mãe,
dona de casa e esposa dedicada, também é forjada nessas circunstâncias históricas. Arce
(2002a), apresentando uma análise histórica da pedagogia presente no pensamento de Froebel
e Pestalozzi entre o final do século XVIII e meados do século XIX, período esse cuja
denominação de “Era das Revoluções” a autora toma emprestado de Hobsbawm, observa que,
desde a idade média, as mulheres são reclusas ao espaço privado do lar, sendo
responsabilizada pela “humanização” do espaço doméstico com seus “dons”, sua meiguice e
ternura “naturais”. Para isso, a burguesia articula as necessidades de reprodução do sistema
societal ao ideário cristão e a família é instituída como lócus diferenciado do mundo público;
esse último caracterizado pela rapina, pelos maus costumes e pela corrupção do mundo dos
negócios. Para velar pela família foi necessário que a mulher se imiscuísse do mundo público
e fizesse de sua “missão de vida” a manutenção moral do lar, de acordo com os preceitos da
igreja e da autoridade do marido e a educação dos filhos baseadas nesses princípios.
As concepções de família e do papel social da mulher são também parte do
escopo ideológico burguês que não expressam as reais condições degradadas da família
proletária. Seguindo as idéias contidas no trabalho de Arce (2002a), a mulher proletária não
podia, pelas próprias condições de vida, se dedicar ao lar e à família do mesmo modo que a
família não poderia se constituir como núcleo da “boa moral” e da “boa religião”, pois tal
ideal ia de encontro aos processos de trabalho desumanizante imposto pela produção
capitalista.
Articula-se às novas concepções da infância, da família e do papel social
feminino construído no período entre os séculos XVIII e XIX, a moderna sistematização da
educação institucionalizada. A defesa de uma educação institucionalizada, laica, gratuita e
para todos foi uma das questões fundamentais colocadas pela burguesia revolucionária sob a
influência de uma multiplicidade de fatores dentre os quais destacam-se: o Iluminismo e a
necessidade de romper com uma concepção religiosa de mundo, cuja racionalidade justificava
o poder clerical e aristocrático; o desenvolvimento rápido das forças produtivas e das
tecnologias empregadas no processo produtivo; e a necessidade de formar o cidadão capaz de
decidir os rumos políticos da sociedade. Mas, tão logo a burguesia se instituiu no poder e
passa a assumir uma postura de negação da história, de manutenção do status quo, a
contradição do ideário de uma educação para todos se desfaz, ou melhor, a sua face ideológica
se torna explícita.
trabalhadora, reduzindo salários, fazendo com que toda a família se lançasse ao trabalho produtivo. Tal condição
afetara, de forma mais perniciosa, as mulheres e as crianças.
55
A educação é, então, afirmada de forma dual, subordinada à estrutura social
dividida hierarquicamente em classes antagônicas. Para os trabalhadores e seus filhos, não
haveria necessidade de uma educação substantiva, mas sim uma formação precária,
fragmentada e parcial. Nesse contexto, educação e vida sofrem uma cisão. Ao
institucionalizar os processos de educação das novas gerações, estas se separam das relações
de produção da vida material, tornando-se a forma pela qual as crianças são preparadas para o
“ingresso” na vida.
A educação das novas gerações torna-se sinônimo de formação
institucionalizada sob controle do Estado (considerando que controle não tem significado,
desde então, assegurar a educação como direito), o que não significou a supressão das
intervenções filantrópicas e caritativas da Igreja e das classes dominantes. A educação ficou
conformada como espaço de reprodução, tanto das elites dirigentes e de sua ideologia, como
da força de trabalho e de suas privações. É nesse período que se consolida, em boa medida, o
que hoje conhecemos por instituições de educação infantil e também por escolas.
A educação para a classe trabalhadora é organizada sob três perspectivas
fundamentais para a produção e reprodução do capital: a) a instrução técnico-profissional,
com o objetivo de capacitar a mão-de-obra a ser empregada nas modernas fábricas e, portanto,
agregar valor à mercadoria força de trabalho; b) educação de caráter compensatório, sintoma
da má consciência da burguesia, cuja função seria compensar os efeitos perniciosos do
despotismo da produção capitalista; e, c) educação política-ideológica, que tem como funções
a transmissão de modelos sociais, a colaboração para a formação da personalidade do
indivíduo e a difusão de idéias políticas. Essas funções não são objetivadas de forma neutra,
mas sim articuladas a determinados interesses de grupos e classes sociais.
A criação das instituições de educação infantil
29
para atender crianças menores
de 07 anos de idade (KUHLMANN JR., 2001a, 2001b, 2002; OLIVEIRA, 1996; FARIA,
2002; SPODEK e SARACHO, 1998) é própria desse período denominado de “Era das
Revoluções”. Nessas iniciativas, predominou o caráter caritativo, religioso, filantrópico,
29
- O termo generalizado instituições de educação infantil nos auxilia a traduzir as muitas experiências de
instituições coletivas de cuidado e educação para as crianças entre 0 e 06 anos de idade, visto que nesse período
distintos estabelecimentos foram criados em locais, datas e com objetivos diferentes. Entre os séculos XVIII e
XIX, são criados os Jardins de Infância de Froebel na Alemanha, na França as creches e as Salles de asile, no
Reino Unido as Infant Schools, bem como a experiência da escola infantil do industriário, socialista utópico,
Robert Owen. (KUHLMANN JR., 2001b).
56
compensatório e político-ideológico
30
, cujo principal elemento foi a educação como dádiva,
que humilha e produz resignação.
As instituições de educação infantil também têm sido, desde então, objetos das
intenções de filantropos, utopistas e dos industriais – geralmente suas esposas –, com
objetivos, muitas vezes, semelhantes aos das escolas primárias, tais como a formação em um
ofício já desde a pequena infância, a educação religiosa, moralista e ideológica.
A história das instituições de educação infantil inicia-se em meados do século
XVIII na Europa, propagando-se por meio da circulação de idéias e pessoas. Essas
instituições foram criadas, primordialmente, para atender a infância pobre e as mães
trabalhadoras. O projeto pedagógico das instituições de educação infantil – que já existia, ao
contrário das interpretações que apontam uma dicotomia entre assistência e educação – foi
pautado pela disciplinarização dos indivíduos, formação para a submissão e a ordem e para o
trabalho.
Seguindo o movimento imperialista de expansão da economia capitalista, o
modelo social da Europa burguesa se espalhou pelo mundo, muito baseado no ideário do
progresso, da ciência e dos avanços da civilização ocidental capitalista. Nesse ínterim, as
instituições de educação infantil também foram propagadas pelo mundo a partir da década de
1870, sob forte inspiração desse “impulso civilizatório” na perspectiva de controlar a classe
trabalhadora e abrandar a luta de classes, em eminente convulsão. Nesse contexto, “o quadro
das instituições educacionais se reconfigura durante a segunda metade do século XIX,
compondo-se da creche e do Jardim-de-infância, ao lado da escola primária, do ensino
profissional, da educação especial e de outras modalidades.” (KHULMANN JR., 2001b, 13).
Entretanto, o caráter marcante da expansão dessas instituições educativas é a sua
configuração dualista, conformada pelas diferenças qualitativas atribuída às instituições que
se destinavam às diferentes classes sociais. No âmbito escolar, é forjada uma educação
desinteressada e propedêutica para as classes dominantes e uma escola instrumental e
minimizada para as classes subalternas. Na educação infantil, do mesmo modo, um Jardim-
de-infância rico em experiência, estímulos e cultura geral, e as instituições de atendimento à
infância pobre com um projeto pedagógico assistencialista.
O desenvolvimento da sociedade capitalista configura-se como marco histórico
de separação entre vida e educação, entre produção histórica e formação/qualificação humana.
30
- Muito embora a instrução técnico-instrumental e a preparação para o trabalho também estejam presentes nas
práticas pedagógicas das instituições de educação infantil durante o início do século XIX. Os trabalho de
Khulmann Jr. (2001b), Faria (2002) e Marcílio (1998) apresentam dados importantes sobre a instrumentalização
para o trabalho alienado das crianças pequenas em instituições de atendimento à infância.
57
Assim as relações sociais engendradas pelas forças do capital provocaram uma série de cisões
como, por exemplo, a divisão entre o campo e a cidade, saber e fazer, educação e trabalho,
produção e reprodução, concepção e execução sintetizadas na forma mais avançada da divisão
social do trabalho, qual seja, a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Essas
divisões refletem-se, de forma cabal, na compreensão da educação como instituição
“separada” da vida.
Ao realizar uma síntese histórica da educação, situando-a no interior da luta de
classes, Ponce (2003) evidencia dois fatos importantes. O primeiro aponta que as mudanças
sociais promovidas pelo desenvolvimento das forças produtivas e das alterações das relações
sociais de produção vêm promovendo significativas transformações na estrutura da sociedade,
criando uma constante divisão entre uma parte responsável pela produção dos bens
necessários à manutenção da vida social e outra classe de indivíduos que dirigem e
administram a produção e as relações sociais. O segundo fato, que se constitui como
expressão do primeiro, resulta na materialização de uma cisão entre produção da vida material
e formação humana, ou o que, em termos mais contemporâneos, podemos situar como divisão
entre trabalho manual e trabalho intelectual.
Por meio dessa dicotomia podemos destacar que coexistem duas formas distintas
de educação na sociedade: um modelo de formação e socialização que se caracteriza pela
ampliação do acervo cultural e aquisição de hábitos, habilidades e valores necessários à
direção da sociedade e domínio das camadas dominadas; e outro paradigma pautado pela
restrição do indivíduo ao emprego de suas forças físicas e intelectuais na produção material, a
subserviência e a resignação.
As considerações supracitadas buscam esclarecer que a educação infantil,
compreendida como processo de socialização das novas gerações nas tradições, na cultura,
nos valores e hábitos, enfim, no saber historicamente constituído e socialmente elaborado, não
se esgota na sua aparência fenomênica institucionalizada, mas é constituinte e constituída nas
próprias formas de produção da realidade histórica e social. É no interior dessas relações que
os seres humanos se forjam como tais, porém condicionados pelas circunstâncias históricas,
pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, pelas relações sociais de produção e,
concomitantemente, pela luta de classes, como expõe Marx (1997, p. 21) em O 18 Brumário.
Desse modo, a educação infantil não pode ser entendida fora da sua íntima
relação com a produção da vida social e de suas contradições. Portanto, a educação,
institucionalizada ou não, é permeada pelos conflitos entre as classes sociais antagônicas que
58
expressam, no interior de sua luta, diferentes projetos de formação humana emanados de
distintos projetos históricos.
Tais projetos de formação humana se caracterizam por diferentes tons ao longo
da história, embora premidos de uma lógica que permanece pouco alterada, a da divisão social
e técnica do trabalho. Enquanto a maioria de homens e mulheres deve ser formada, desde a
sua infância, para o trabalho assalariado, uma parte restrita teria um acesso amplo à cultura
elaborada, às habilidades administrativas e ao governo sobre o povo.
Essas relações, constituintes da estrutura econômica da sociedade, são
reproduzidas no interior das demais relações sociais, como já foi ressaltado, e condicionam
sobremaneira os processos de formação de homens, mulheres e crianças. Tais processos são,
também, expressos de maneira formal pelas perspectivas duais dos sistemas educativos que
oferecem uma formação geral, abstrata e propedêutica para os filhos das classes dominantes e
um processo (de)formativo, estrito, técnico e limitado às crianças e aos jovens das classes
subalternas (FRIGOTTO, 1995, p. 34).
A forma dual imposta aos processos educativos tem como pressuposto, além da
divisão da sociedade em classes sociais, a subordinação da educação aos interesses do capital
em suas diferentes fases de desenvolvimento e crises.
O caráter subordinado das práticas educativas aos interesses do capital
historicamente toma formas e conteúdos diversos, no capitalismo nascente, no
capitalismo monopolista e no capitalismo transnacional ou na economia
globalizada. [...] o caráter explícito desta subordinação é de uma clara diferenciação
da educação ou formação humana para as classes dirigentes e a classe trabalhadora.
(FRIGOTTO, 1995, p. 32-33).
No Brasil, a subsunção da educação aos ditames do capital aprofunda-se na
década de 1930 juntamente com o processo de urbanização e industrialização da economia
nacional (ROMANELLI, 1999). Nesse trabalho, a autora expõe, com uma série de dados
documentais e estatísticos, como ocorreu a criação e expansão do sistema nacional de
educação articulado, em uma primeira instância aos interesses do capital nacional e, num
segundo momento, com a abertura da economia nacional para a entrada do capital
internacional.
É também no período da década de 1930 que a infância se torna um assunto de
Estado no Brasil, ante as políticas centralizadoras do Estado Novo. Exemplo disso foi a
criação do Departamento Nacional da Criança em 1940, cujas iniciativas se restringiam à
assistência e ao atendimento médico-higienista, amparado pelas políticas eugenistas do
59
período (formação de uma raça pura e forte para a nação). Mas, segundo Kramer (2001),
ainda que o Estado propagasse a importância da infância, este não se propunha à manutenção
do atendimento à infância ao dividir sua responsabilidade com a iniciativa privada e com a
própria sociedade civil – muito embora o centralizasse a direção e o controle do atendimento,
tal qual acontece ainda hoje.
É também sob a orientação da organização capitalista da sociedade brasileira que
a infância vai ser pensada pelas políticas públicas: “Como novo personagem surgia a criança
trabalhadora que passava a ser reconhecida como importante.” (ibid. p. 60).
Mas é durante a ditadura de 1964 que o Estado impulsiona a massificação do
sistema educacional nacional estreitamente vinculado aos interesses do capital forâneo. Nesse
momento, a educação passa a ser compreendida pelas políticas oficiais como fator de
desenvolvimento econômico impulsionado pelas teses do capital humano
31
. A visão
produtivista da educação busca alçá-la como elemento central para o desenvolvimento
econômico do país.
Essas idéias são assimiladas no Brasil durante o contexto do chamado milagre
econômico – largamente difundidas pelas agências internacionais como o Banco Mundial-
BM, Fundo Monetário Internacional – FMI, a Organização das Nações Unidas para Educação,
Ciência e Cultura – UNESCO e a United States Aid Internacional Development – USAID.
Sob essas determinações, o sistema educacional brasileiro inicia um processo
caótico de expansão da rede pública de ensino e de outras iniciativas educacionais para suprir
as carências de capital social presentes na força de trabalho nacional – de origem rural e,
geralmente, não escolarizados – como, por exemplo, o MOBRAL e as instituições pré-
escolares.
As instituições de educação infantil, em especial a pré-escola, passa a cumprir
um papel importante no processo de formação da força de trabalho humana sob os auspícios
da teoria do capital humano. O ideário de que a formação de uma mão-de-obra qualificada é
condição para o desenvolvimento econômico das nações em desenvolvimento tem como uma
de suas propostas a ampliação da escolarização dos trabalhadores. Entretanto, os
trabalhadores não têm se “adaptado” à escola capitalista, cujo resultado é o fracasso escolar e
a evasão de um número elevado de crianças da escola. Dessa feita, as políticas de educação
31
- Foi a escola de Theodoro Schultz, economista americano premiado com o Nobel de Economia no ano de
1968, que desenvolve a teoria explicativa das variações de desenvolvimento entre os países, caracterizando os
processos de formação e qualificação como fatores decisivos nas assimetrias econômicas entre as nações
(FRIGOTTO, 1995; SAVIANI, 2002a).
60
pré-escolar foram produzidas (e ainda vem sendo) como medidas compensatórias ao fracasso
escolar, visando adaptar e preparar o trabalhador para a escola, desde a mais tenra infância.
No entanto, a implementação das políticas educacionais com base nas teses
economicistas e produtivistas do capital humano em um país subdesenvolvido e já
economicamente dependente seria caracterizada por uma ampla contradição, visto que a
ampliação do atendimento educacional, estendendo-o a uma ampla parte das classes
populares, teve um caráter de massificação, aumentando o número de escolas e de instituições
de educação infantil e de matrículas, porém, sem nenhuma qualidade assegurada, sustentada
por um financiamento suficiente, como apontam os estudos de Romanelli (1999), Germano
(2005) e Sonia Kramer (2001).
Na educação infantil, o movimento de expansão de instituições de atendimento à
infância é congruente ao processo de expansão do sistema educacional, não obstante com
especificidades ainda mais precárias. Como observou Kramer (2001), embora tenha havido
uma expansão significativa do atendimento à infância em instituições educativas, as políticas
para o setor durante as décadas de 1960 e 1970 se caracterizaram pelo que essa autora
denomina de arte do disfarce, devido à materialização da ampliação da educação infantil
organizada em três eixos: o aumento da iniciativa privada no setor; a criação de projetos e
instituições de atendimento à infância não-formais (filantrópicas, organizadas pela própria
comunidade); e o caráter compensatório de preparação para o ensino fundamental.
Os resultados das políticas educacionais orientadas pela teoria do capital humano
e materializadas pela lei n° 5692/71 foram: a adequação dos processos educativos às formas
de gestão e organização do trabalho baseadas no padrão fordista/taylorista de acumulação
através da ênfase nos aspectos técnicos da pedagogia tecnicista (SAVIANI, 2002a, p. 23); a
ênfase em programas assistencialistas e compensatórios de educação como o MOBRAL na
educação de jovens e adultos e o Projeto casulo na educação pré-escolar (KRAMER, 2001); e
a expansão sucateada das redes de ensino, juntamente com o arrocho salarial dos professores e
com a desqualificação do seu trabalho (GERMANO, 2005).
Desse modo,
Em que pese a expansão da matrícula, os problemas crônicos da educação
fundamental permaneceram, alguns até se agravaram, ao longo do período em
estudo [1964-1985]. A ampliação de oferta de vagas nas escolas públicas, portanto,
se revestiu de um caráter meramente quantitativo, através da diminuição da jornada
escolar e do aumento de turnos que comprometeram a qualidade do ensino.
(GERMANO, 2005, p. 169)
61
A massificação do sistema educacional durante o período militar teve como
principal “bode expiatório” os próprios professores, como observa Novaes (1992), pois a
expansão das oportunidades educacionais (aumento de número de instituições escolares e de
matrículas) foi financiada, em parte, pelo arrocho salarial de professores e professoras.
Essas contradições vão assumindo novas formas com o avanço das forças
produtivas capitalistas e com suas sucessivas crises. O próprio desenvolvimento do capital e
do capitalismo tem derrubado a tese de Adam Smith de que as classes populares devem ser
educadas a doses homeopáticas, obedecendo as necessidades da divisão social e técnica do
trabalho (ARROYO, 2003, p. 54-55; BUFFA, 2003, p. 27-28).
A crise estrutural pela qual passa o sistema do capital, a partir da década de
1970, aponta para novos condicionantes sobre a formação humana e, conseqüentemente, para
a educação infantil. As proposições do Estado Mínimo e da mercantilização das políticas
sociais (dentre as quais, as políticas educativas se situam) por parte do governo mundial de
fato/novos senhores do mundo (FRIGOTTO, 1995) – Banco Mundial, FMI, OMC –
caracterizam o receituário neoliberal e instauram a reedição das teorias do capital humano,
sob uma materialidade histórica mais perversa e ideologicamente velada.
1.3 Condicionantes neoliberais sobre a educação infantil e as perspectivas de resistência
O desenvolvimento das forças produtivas, a maquinaria e os avanços
tecnológicos produziram a necessidade de trabalhadores instruídos para operar tais máquinas.
E ainda que o avanço da engenharia de produção fordista e da gerência científica do trabalho
taylorista, próprios do estágio monopolista do capital, venha degradando, desqualificando e
proletarizando os trabalhadores, além de estar alijando sua ciência, tornando a questão da
qualificação um engodo ideológico (BRAVERMAN, 1987), fica cada vez mais claro que, sob
as determinações do atual processo de reestruturação produtiva e do decorrente padrão de
acumulação flexível, há uma crescente exigência de elevação da escolaridade feita aos
trabalhadores para que se mantenham, no mínimo, empregados nos parcos postos de trabalho
regulamentados que ainda existem num contexto de (re)afirmação
32
da necessidade do
desemprego estrutural (ANTUNES, 2005).
32
- Digo (re)afirmação porque Marx (1980) já havia apresentado a necessidade orgânica de manutenção de um
exército de reserva de força de trabalho por parte da produção capitalista, no sentido de manter taxas elevadas de
mais-valia às expensas do rebaixamento dos salários e da estimulação da concorrência entre os trabalhadores.
Esse caráter estrutural da produção capitalista sofreu mudanças, em larga medida, pelas políticas de emprego
pleno do Estado de Bem-estar, especialmente em países centrais do capital, durante o apogeu dos 30 anos
62
Tais exigências elevaram a demanda por uma educação sistematizada das classes
trabalhadoras, desde a mais tenra infância. Essa exigência tem se caracterizado pela
desintegração da promessa integradora da escola – que faz parte do ideário liberal desde o
século XVIII – como panacéia para as mazelas do capital e como possibilidade de mobilidade
social para as classes populares (GENTILI, 1999), coexistindo com uma reedição da teoria do
capital humano, desta vez com um componente cínico assentado na categoria da
empregabilidade
33
.
Na esteira do contexto de crise estrutural que o sistema do capital vem
enfrentando desde meados da década de 1970, cujas características centrais são a estagnação
e/ou redução crônica das taxas de acumulação e de lucro e da capacidade de expansão de
capitais, as forças hegemônicas vêm estruturando um conjunto de estratégias políticas,
econômicas, sociais, culturais e educacionais no sentido de superar o colapso do sistema. As
características centrais dessas estratégias estão vinculadas aos processos de metamorfoses
envidadas sobre o mundo do trabalho compostas pelas bases tecnológicas, científicas,
gerenciais e ideológicas que condicionam a chamada reestruturação produtiva (ANTUNES,
2003; 2002) juntamente com a ideologia e política neoliberais, responsáveis pela destruição
de direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores (ainda que sob os limites do
capital), do pensamento, da ética e da concepção de mundo da alternativa socialista, bem
como das forças materiais de organização social e política da classe que vive do trabalho.
Uma das principais formas das políticas neoliberais é o conjunto de
determinações impostas, principalmente sobre as nações periféricas e dependentes da
economia-mundo capitalista, pelos novos senhores do mundo ou o governo mundial de fato
os organismos financeiros “multilaterais” e o cartel das economias centrais do capital
articuladas pelo G-8 – objetivando desregulamentar mercados, leis trabalhistas, destruir ou
cooptar sindicatos e, sobretudo, reformar o Estado, baseados na tese de sua minimalização.
Essa minimalização possui um caráter contraditório pois apresenta um Estado Mínimo, em
termos de políticas sociais, e máximo na regulação dos conflitos sociais e produção de
condições para reprodução de capital (GENTILI; SILVA, 1996; FRIGOTTO, 2001, 1995).
As políticas e o ideário neoliberais têm apresentado um recorte muito preciso
que afeta objetiva e subjetivamente aqueles que vivem do trabalho. O desmonte do parque
gloriosos da Era de Ouro, como aponta Hobsbawm (1995), mas retoma fôlego a partir da crise iniciada nos anos
de 1970.
33
- Para uma análise aprofundada sobre a questão da reedição da teoria do capital humano, ver Frigotto (1999,
1995) e Gentili (1999). Gentili (ibid.) e Oliveira (2001) realizam uma análise crítica interessante sobre o “novo”
conteúdo presente nas teorias que buscam interpretar a inter-relação entre educação e relações sociais de
produção capitalistas com base na categoria da empregabilidade.
63
produtivo nacional, os ajustes fiscais do Estado, a destruição das conquistas sociais dos
trabalhadores e de seus direitos, a minimização do Estado e maximização dos setores privados
em áreas essenciais (previdência, saúde, educação), bem como as crescentes taxas de
desemprego estrutural e emprego precarizado são componentes concretos da atual conjuntura
que evidenciam o esgotamento da capacidade civilizatória do modo de produção capitalista,
como analisam Wallerstein (2001) e Meszáros (2002).
No Brasil, esses elementos começam a ser articulados de modo mais sistemático
a partir do final da década de 1980. O processo de redemocratização do país começa a se
dissolver diante da realidade pragmática e excludente que caracterizam a rota neoliberal
iniciada pelo bonapartismo tupiniquim
34
de Collor, aprofundada pela retórica e política
modernizantes de FHC e seguindo a passos firmes pelo atual governo do Partido dos
Trabalhadores (ANTUNES, 2004).
A desertificação social (op.cit.), provocada pelo atual estágio destrutivo do
capitalismo, tem no seu escopo um profundo processo de reforma do Estado e, portanto, das
políticas sociais desenvolvidas por esse. A finalidade de integrar-se à economia mundialmente
globalizada de forma autônoma e competitiva tem servido de argumento legitimador de tais
reformas. Desse modo, as reformas do aparelho do Estado significam a incorporação da lógica
de gestão dos setores privados e a privatização dos setores da economia e sociais em que o
aparelho estatal intervém.
A reestruturação dos Estados nacionais das diversas nações teve como marco
fundamental os acordos decididos durante o Consenso de Washington. Tais acordos
apresentaram a seguinte programática a ser executada pelos países:
[...] ajuste fiscal; redução do tamanho do Estado; fim das restrições ao capital
externo (eliminar todo e qualquer empecilho ao capital especulativo ou vindo do
exterior); abertura do sistema financeiro (fim das restrições para que as instituições
financeiras internacionais possam atuar em igualdade de condições com as do país);
desregulamentação (redução das regras governamentais para o funcionamento da
economia); reestruturação do sistema previdenciário. (COGGIOLA e KATZ, 1996,
p. 1996).
Conforme observa Ricardo Antunes (2004, p. 44), a execução do programa de
enxugamento e modernização do Estado busca materializar o projeto de integração
34
- O bonapartismo é uma categoria marxista que expressa “uma forma de regime político da sociedade
capitalista na qual a parte executiva do Estado, sob o domínio de um indivíduo, alcança poder ditatorial sobre
todas as outras partes do Estado e sobre a sociedade”. Tal regime “é produto de uma situação em que a classe
dominante da sociedade capitalista já não é capaz de manter seu domínio por meios constitucionais e
parlamentares, mas na qual a classe operária também não é capaz de afirmar sua própria hegemonia.”
(BOTTOMORE, 2001, p. 35). Antunes (2004) analisa o Governo Collor a partir dos traços inerentes às
condições do fenômeno social e político do bonapartismo.
64
subordinada à ordem, destruindo boa parte do que foi criado durante a era Vargas. A
privatização das empresas estatais, a redução do parque produtivo nacional e a flexibilização e
desconstrução dos direitos trabalhistas são a tônica do processo de Reforma do Estado.
A consolidação da tese de que o Estado interventor é prejudicial ao livre
desenvolvimento das forças econômicas, uma expressão de totalitarismo político e
econômico, é parte do receituário neoliberal, afirmado categoricamente pelo paladino do
neoliberalismo, Hayek (1990), como mecanismo de servidão e determinação sobre o processo
de livre desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, da expansão das taxas de lucro do
capital. Desse modo, seria necessário instituir um Estado mínimo que dê suporte, legal e
estrutural, ao “livre desenvolvimento das forças sociais”. Sob esses condicionantes, um
sistema de serviços sociais podem até ser exercido pelo Estado, “desde que a organização de
tais serviços não torne ineficaz a concorrência em vastos setores da economia.”. (HAYEK,
1990, p. 59).
O conjunto de ações que compõem a reforma do Estado se efetiva mediante
reformas focalizadas na legislação do país referente à economia e às relações entre trabalho e
capital, na previdência e nas políticas sociais (saúde, educação, moradia, reforma agrária). O
denominado processo de modernização do aparelho estatal tem como principal meta realizar
um conjunto de reformas nos diversos campos de intervenção do Estado, de maneira que estes
sejam integralmente privatizados – exemplo disso foram os leilões responsáveis pela
privatização das telefônicas e de outras empresas estatais durante o governo FHC – ou então
que sejam adequados aos princípios do mercado, tendo como lógica central a produtividade,
eficiência, eficácia, relação equilibrada entre custo-benefício, pouco investimento e maior
retorno.
O processo de mercadorização de setores importantes como a saúde e a
educação, por exemplo, não ocorre, no Brasil, pelo repasse imediato à iniciativa privada, mas
sim pela desqualificação ideológica e material do serviço público, pelo desmantelamento das
escolas, hospitais e universidades, terceirização de serviços, redução do financiamento e
transferência de responsabilidade para a “sociedade civil” (descentralização/desconcentração)
e aplicação do dinheiro público em setores privados ligados a estas áreas (editoras, fundações,
empresas farmacêuticas etc.).
A “entrada” dos países na economia globalizada é condicionada pelos
organismos internacionais, especialmente o Banco Mundial – BM e o Fundo Monetário
Internacional – FMI, que impõem duros mecanismos aos países que solicitam cooperação,
gestados, quase sempre, sem buscar compreender a realidade dos países que buscam os
65
empréstimos, por consultores e financistas do grande cassino do mercado financeiro,
capitaneados pelo Tesouro Nacional dos Estados Unidos. (STIGLITIZ, 2002).
Dentre as condicionalidades
35
que os organismos financeiros internacionais
estabelecem às nações dependentes estão as reformas educativas. A educação conforma-se aí
sob dois princípios: 1) como ponto estratégico na formação de um novo trabalhador e,
portanto, de um novo homem; 2) como um dos meios de disseminação de um novo senso
comum, que se caracteriza pela inação/resignação, pelo individualismo e pela concorrência
exarcebada entre os sujeitos.
O processo de reestruturação do mundo do trabalho (reengenharia, novas
tecnologias, novas formas de gestão do trabalho, just in time, kanban, flexibilidade etc.) cria
uma série de novas exigências para a formação da força humana de trabalho, incidindo na
intensificação do processo de extração de mais-valia e na construção da necessidade de
educação permanente.
Diante de um processo de reestruturação do mundo do trabalho e, portanto, das
exigências da inovação tecnológica, dos processos de reengenharia e das formas flexíveis de
gestão do trabalho exercidas sobre os trabalhadores – no sentido de produzir maiores níveis de
exploração mediados, principalmente, pela substituição do trabalho vivo por trabalho morto
36
– propõe-se a formação de uma força de trabalho mais flexível, adaptável e polivalente. Estas
mudanças promovem profundas alterações nas formas de ser do trabalhador, qualificando
alguns ramos produtivos e desqualificando ou mesmo fazendo desaparecer outros
(ANTUNES, 2003). À produção de novos padrões de exploração da força humana de trabalho
e de extração de mais-valia, une-se a ampliação, sem precedentes na história, do desemprego
estrutural, do emprego precário ou terceirizado.
Nesse contexto, a educação assume um papel central: a formação para o
trabalho, em que a educação básica seja responsável pela conformação de indivíduos que se
adaptem mais rapidamente às mudanças no processo de trabalho, produzindo habilidades de
aprender a aprender; e de integração social, responsável por retirar da marginalidade os
35
- Segundo Stiglitz (2002), condicionalidade é o conjunto de imposições que o BM e o FMI determinam sobre
as nações que solicitam sua “cooperação”. São medidas de ordem político-econômicas que atingem não só o
sistema financeiro e produtivo, mas também áreas como a previdência, saúde e educação.
36
- Uma das tendências do funcionamento da produção capitalista é a constante substituição de força humana de
trabalho (trabalho vivo) por máquinas, novas tecnologias e formas de gerenciamento e organização do trabalho
(trabalho morto), cujo objetivo central é reduzir os custos de produção e aumentar a extração de mais-valia por
meio da intensificação da exploração do trabalhador, que passa a produzir mais e em menor tempo em razão da
utilização da tecnologia. Para Antunes (2002), um dos principais elementos constituintes do processo de
reestruturação produtiva é a redução ao máximo da força de trabalho humana envolvida diretamente na
produção, que o autor denomina de liofilização do trabalho.
66
setores economicamente em risco e prevenindo os riscos de convulsões sociais (OLIVEIRA,
2001, p. 112).
Desse modo, as políticas educacionais apresentam a necessidade de reformar os
sistemas de educação, no sentido de que estes dêem conta de suprir as necessidades do
mercado de trabalho globalizado, formando uma mão-de-obra capaz de elevar sua nação,
competitivamente, à globalização. Como observam Barreto e Leher (2003, p. 39):
A partir dessa premissa, os organismos internacionais e os governos fazem ecoar
uma mesma proposição: é preciso reformar de alto a baixo a educação, tornando-a
mais flexível e capaz de aumentar a competitividade das nações, únicos meios de
obter o passaporte para o seleto grupo de paises capazes de uma integração
competitiva no mundo globalizado.
Os eixos centrais das reformas educacionais nos países dependentes têm como
linhas gerais de ação: a descentralização/desconcentração; autonomia; aproximação da
sociedade civil; reformulação dos currículos adequando-os à lógica das competências
(aprender-aprender, aprender-ser, aprender-fazer); reorientação da formação de professores; a
avaliação estandartizada com publicização de resultados
37
; focalização das políticas; e
destruição e/ou cooptação dos movimentos sindicais docentes.
A adesão aos acordos internacionais, promovidos pelas agências financeiras,
especialmente o Banco Mundial, deu a tônica das reformas educacionais executadas no Brasil.
A Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jontiem – Tailândia no ano de
1990, constitui-se como marco referencial da adequação do Brasil à agenda internacional para
a educação. Ao se integrar ao grupo de países em desenvolvimento com problemas referentes
à universalização da educação e alfabetização, grupo esse denominado de EFA-9 (Education
for All)
38
, o Brasil assina a “Declaração Mundial sobre Educação para Todos” que tem como
principal objetivo atingir as necessidades básicas de aprendizagem sob as seguintes metas:
[...] satisfação das necessidades básicas de aprendizagem; expansão do enfoque
sobre educação; universalização do acesso à educação e promoção da equidade;
concentração da atenção na aprendizagem e em ambiente propício para sua
concretização; ampliação dos meios e do raio de ação da educação básica;
fortalecimento de alianças; desenvolvimento de políticas contextualizadas de apoio;
mobilização de recursos; e fortalecimento da solidariedade internacional.
(UNICEF, 1990 apud VIEIRA, 2001, p. 64).
37
- Segundo Afonso (2000), a avaliação estandartizada criterial com publicitação de resultados são mecanismos
de controle sobre a materialização das políticas neoliberais em educação. Seus dados são publicados como
critério de comparação entre sistemas, escolas ou mesmo professores, no sentido de instalar a lógica da
concorrência em educação.
38
- Ainda fazem parte desse grupo Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão além
do Brasil.
67
Segundo Penn (2002), a educação da primeira infância também é uma das
temáticas centrais das conferências, fóruns e acordos internacionais promovidos pelo Banco
Mundial na década de 1990. As proposições das agências financeiras para as reformas
educacionais, no que se refere à educação de crianças de até 6 anos, também seguem as
diretrizes de re-configuração do capital e da sua necessidade por uma “nova” força de
trabalho adaptada e flexível. Para isso, a intervenção precoce, no sentido de estimular a
apreensão de certas competências necessárias ao novo contexto, é uma das metas a serem
perseguidas pelas diferentes nações, especialmente as periféricas.
A competência exigida ao novo trabalhador é um dos fatores que – juntamente
com a redução dos conflitos sociais por meio de cooptação e destruição dos movimentos
sociais, bem como das políticas compensatórias e populistas de “alívio da pobreza” – compõe
o chamado capital social, fundamental para o conceito positivo da economia globalizada
acerca da inserção das nações dependentes no circuito internacional do capital. Essas são
premissas fundamentais para a intervenção dos organismos multilaterais na educação infantil,
especialmente do Banco Mundial, ou seja, as perspectivas abstratas de desenvolvimento
econômico que, ao fim e ao cabo, significam a retomada da lucratividade do capital.
De acordo com Penn (2002, p. 12),
A teoria do capital social sustenta grande parte da atenção recente do Banco
Mundial ao tema do bem-estar social: aumentar o capital social de uma pessoa, sua
capacidade de vincular-se a redes sociais e compartilhar riscos levaria a maior
competitividade e produtividade (IDS, 2000). As metáforas econômicas e
tecnocráticas da teoria do capital social são usadas para explicar e justificar o
interesse do Banco Mundial pelas crianças e pela infância. Para o Banco Mundial, o
objetivo da infância é tornar-se um adulto plenamente produtivo, o “capital
humano” do futuro. (grifos meus).
Essas metas são consolidadas por meio de uma série de medidas jurídico-
administrativas, muitas delas aprovadas de maneira autoritária por meio de decretos e medidas
provisórias ou por golpes aos projetos que a sociedade brasileira, de forma organizada e
democrática, construiu nos diversos fóruns em Defesa da Educação Pública, como foi o caso
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (DEL PINO, 2002).
Os condicionantes das reformas atingem a proposição de uma educação pública,
gratuita e de qualidade para todos, que atenda as demandas das classes subalternas por uma
educação única, sem dualismos e fragmentações. As reformas educacionais que vêm sendo
realizadas no Brasil desde a década de 1990 têm significado uma inflexão sobre as conquistas
obtidas na luta pelo conjunto das classes populares e pelos trabalhadores da educação, ao
68
manter o caráter dual, fragmentado e sem qualidade da educação das maiorias. A manutenção
desse caráter sucateado da educação pública, em suas diversas etapas, vem sendo
materializada por intermédio de diversos subterfúgios dentre os quais destacam-se: as
escassas políticas de financiamento; a privatização dos recursos públicos; e a focalização e
instrumentalização das políticas educacionais, ao serem pensadas e implementadas tendo
como horizonte o financiamento restrito ao ensino fundamental e a formação de mão-de-obra
qualificada para o mercado de trabalho globalizado.
Ao analisar a trajetória contemporânea da educação infantil brasileira e as
intervenções dos organismos multilaterais nas políticas do setor, Fúlvia Rosemberg (2002b;
2003) diagnostica o processo de inflexão provocado pela orientação neoliberal nas políticas
de educação infantil a partir de meados da década de 1990. Tais políticas, segundo a autora,
têm como principais características: a retomada das iniciativas focalizadas; as formas
precárias e informais de atendimento à infância; e a desresponsabilização do Estado com
relação ao financiamento e manutenção da educação infantil. Essas políticas vêm contrariando
todos os avanços que vinham sendo conquistados desde a década de 1980 na formulação de
políticas e de projetos pedagógicos para a educação infantil no país.
Os impactos da intervenção dos organismos multilaterais na definição das
políticas de educação infantil, sob orientação das concepções mercadológicas e minimalistas
do neoliberalismo, vão de encontro com as recentes conquistas que vem sendo realizadas na
educação infantil brasileira (no âmbito legal, nas concepções e em algumas experiências) por
intermédio da luta e do debate democrático de amplos setores da sociedade civil envolvidos
com a infância e com a educação. Os retrocessos no interior da educação infantil,
diagnosticados por Rosemberg (2002b; 2003), Barbosa et.al. (2005) e Arce (2001a), se
conformam como um duro golpe das reformas neoliberais sobre as conquistas que a sociedade
brasileira vem produzindo neste campo, ainda em construção. As lutas por uma educação
infantil democratizada, pública, estatal e de qualidade, têm sofrido reveses com as ofensivas
neoliberais que orientam as políticas para o campo a partir da focalização na pobreza, do
assistencialismo e, conseqüentemente, da desqualificação do atendimento educacional para a
infância pobre.
Essas diretrizes coadunam com as observações de Del Pino (2002) e Leher
(2002), para quem as reformas têm como parâmetros o estabelecimento de uma educação
minimalista e desqualificada. O maior exemplo disso é a focalização das políticas
educacionais e, portanto, do financiamento da educação aplicado exclusivamente no ensino
fundamental, alijando as demais fases do ensino básico e do ensino superior. Segundo Barreto
69
e Leher (2003, p. 47), as “reformas instauram um sistema educacional ‘periférico’, afastando
a grande maioria do País do acesso ao conhecimento científico, tecnológico, artístico mais
avançado.”.
A focalização das políticas educacionais no ensino fundamental tem
conseqüências importantes na questão da organização da educação infantil no país. A falta de
recursos específicos para o desenvolvimento das políticas de educação infantil já vem sendo
amplamente discutida, muito embora não resolvida. Com a emenda constitucional n° 14 de
1996 que implementa o FUNDEF – parte das políticas neoliberais de desresponsabilização do
Estado na educação – “a questão do financiamento fica em aberto: não há nenhuma
vinculação ou fundo específico para a educação infantil e, na prática, apenas os municípios é
que têm-se responsabilizado pela sua oferta.” (CORRÊA, 2002, p. 23). E, de acordo com
Rosemberg (2002b), além de a educação infantil não contar com recursos específicos,
reafirma-se nesse momento um movimento de apologia às políticas precárias e
compensatórias (creche volante, mãe-creche, envolvimento comunitário) para o campo por
parte do Estado, orientadas pelos organismos multilaterais (em especial o Banco Mundial).
Tais políticas, para essa autora, se conformam num retrocesso em relação aos avanços
recentemente conquistados na área
39
.
Assim, é importante destacar que materialização dos condicionantes neoliberais
na educação, em geral, e na educação infantil, especificamente, tem como eixo central a
retirada do Estado no que tange às políticas sociais. O Estado mínimo constitui-se, então,
como parte da pragmática neoliberal que se materializa como mecanismos voltados para a
recomposição das taxas de lucro e de legitimação do status quo. Entretanto, as realizações de
seus objetivos são entravadas pelas contradições explicitadas pelas profundas mazelas sociais
e, conseqüentemente, pela resistência dos setores excluídos e oprimidos, ou seja, a imensa
maioria que compõe a classe que vive de seu trabalho.
Desse modo, resiste e permanece a concepção de educação como direito público
universal, muito embora o fundamentalismo de mercado proporcionado pelo credo neoliberal
tenha avançado paulatinamente sobre a educação e demais bens sociais (como saúde,
previdência, moradia) no intento de privatizá-los. Nesse sentido, a educação infantil
permanece como bandeira de luta das classes subalternas pela apropriação dos bens culturais e
39
- Encontra-se em processo de tramitação no congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que cria o
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação
Básica (Fundeb) que amplia os recursos para a educação e estende estes para as demais etapas do ensino básico,
dentre eles a educação infantil. Entretanto, até o final dessa investigação não houve alterações no âmbito das
políticas de financiamento da educação infantil.
70
materiais. Exemplo disso são as permanentes filas no início e durante todo o ano letivo nas
instituições públicas de educação infantil, as várias manifestações da população reivindicando
construção de escolas e creches, os agrupamentos de crianças constantemente lotados e as
greves dos trabalhadores da educação por melhores condições de vida e trabalho e por mais
financiamento para a educação pública.
A educação infantil tornou-se, juntamente com outras questões fundamentais
(saúde, moradia), mote de luta dos trabalhadores pela democratização da sociedade e pela
distribuição dos bens socialmente produzidos, mas privadamente apropriados. Tais lutas e
reivindicações vêm sendo geradas no interior de um projeto de sociedade e, portanto, de
homem e de educação, diferentes e antagônicos à hegemonia das minorias dominantes. Na
luta concreta e cotidiana pela sobrevivência, os trabalhadores se encontram de diferentes
modos, articulam identidades, se organizam e resistem e se educam. Organizam-se como
mulheres por creches e escolas para seus filhos, como sem-terra pelo legítimo direito de uma
educação do campo e pelo campo, como negros pela derrubada das estruturas racistas que
permanecem nas instituições sociais e educacionais e como trabalhadores que, expropriados
desde a meninice de uma vida digna, vão à luta para unir sua leitura do mundo à leitura da
palavra (FREIRE, 2005).
Esse embate pela educação infantil assume o caráter de luta de classes e não
pode ser apartado da perspectiva de socialização dos meios de produção dos bens materiais. A
projeção de uma educação infantil qualitativamente diferenciada, unitária, envolve a
perspectiva e a inserção num quadro de luta concreta por uma alternativa social também
qualitativamente diferente da lógica do capital.
Sob a expressão mais avançada, até aqui
40
, das formas de produção da vida
material, qual seja, a da sociabilidade capitalista, constituíram-se as formas mais expressivas
da luta de classes e da conformação das classes sociais. A moderna sociedade de classes
tornou clara a co-dependência das classes sociais na produção e reprodução do
sóciometabolismo capitalista, por meio da subsunção estrutural do trabalho ao capital
(ANTUNES, 2002, p. 19). Precisamente, a partir do momento em que os homens são
“libertados” dos meios de produção e da terra, quando se tornam “homens livres” para poder
40
- Ao afirmar que as relações sociais capitalistas são as mais avançadas, parto do pressuposto marxiano de que
são as condições concretas do modo de produção capitalista que engendraram a possibilidade de libertação da
espécie humana do mundo das necessidades, muito embora, seja preciso reiterar que as relações sociais de
produção capitalistas atuais apresentam um caráter profundamente destrutivo ameaçando até mesmo a
sobrevivência da espécie humana. (MESZÁROS, 2002).
71
vender sua única mercadoria – a força de trabalho para que possam sobreviver – as relações
de domínio e exploração passam para um novo estágio.
As condições de trabalho estranhado, experimentadas pelos indivíduos a partir
de sua inserção no mundo do trabalho, o sofrimento, as necessidades e a elaboração de formas
de resistência conformam a classe trabalhadora, justamente por expressar uma relação de
antagonismo com “o outro”, que também se constitui como classe, a dos proprietários. A
partir do momento em que as condições objetivas são subjetivadas (OLIVEIRA, 2003), ou
seja, elas assumem formas e referências simbólicas e culturais, torna-se possível a
constituição de projetos distintos de sociedade e de formação humana.
No interior desse conflito, entra em embate, na disputa pela hegemonia, o projeto
de formação unilateral, restrito aos conhecimentos instrumentais necessários à produção da
mercadoria e à reprodução das relações sociais capitalistas contra um projeto forjado pelas
classes trabalhadoras de formação onilateral, do homem total, capaz de desenvolver suas
possibilidades e potencialidades humanas em sua plenitude. Tais projetos de educação são
expressões antagônicas de modelos alternativos de sociedade forjados sobre as contradições
da materialidade histórica do modo de produção capitalista e, portanto, só podem ser
materializados a partir da manutenção do estado de coisas ou da superação pró-ativa da
sociedade de classes.
A disputa pela hegemonia pressuposta pelos dois projetos antagônicos, por sua
vez, não pode ser materializada apenas no plano das idéias, mas ressente da participação
fundamental dos sujeitos envolvidos em processos educativos.
A compreensão da educação no interior da luta de classes exige a identificação
dos sujeitos envolvidos em processos de formação e de luta de uma maneira geral, ou seja,
compreendendo-se a totalidade social do trabalho e do capital, e de forma particular nos
processos institucionais, em especial nas instituições escolares ou nos equipamentos coletivos
de educação. É nestas instituições que se estabelecem vínculos entre adultos (professores) e
crianças no afã de desenvolver atividades de socialização das gerações mais novas no
universo cultural, simbólico e material de uma determinada época.
Sujeitos que são das modernas formas de educação, professores e crianças
encontram-se numa emaranhada e complexa teia de relações em que são condicionados pela
estrutura da sociedade. Ambos, ao agir no cotidiano das instituições de educação, produzem
as práticas educacionais, reproduzindo a lógica societal, mas também resistindo e projetando
alternativas contrárias e antagônicas a essa lógica. A particularidade das relações que dão
72
contorno à prática social educativa em instituições próprias a esse fim envolve uma totalidade
de relações inseridas em determinações múltiplas.
Nesse sentido, professores e crianças constituem-se em objetos e sujeitos da
educação. Objetos, no sentido de que estes reproduzem no cotidiano das instituições os
condicionantes que a forma de produção da realidade sob a batuta do modo de produção
capitalista cria; sujeitos, porque um elemento fundante da realidade social é a atividade
histórica produzida pelos homens no movimento da contradição que pressupõe a superação do
estado de coisas movido pelo conflito entre as classes sociais.
Saviani (2000) reitera o caráter classista da educação ao observar que o saber
elaborado – objeto clássico da educação – conforma-se, para o capital, como um meio de
produção, e que a própria forma de produção do trabalho escolar é um meio de produção.
Identificando o projeto histórico da classe trabalhadora com a socialização dos meios de
produção e, portanto, com a instauração de uma ordem socialista, o autor observa que a luta
pela educação se insere neste embate:
Ora, considerando-se que o saber, que é o objeto específico do trabalho escolar, é
um meio de produção, ele também é atravessado por essa contradição [da luta de
classes]. Conseqüentemente , a expansão da oferta de escolas consistentes de modo
a atender a toda a população significa que o saber deixa de ser propriedade privada
para ser socializado. Tal fenômeno entra em contradição com os interesses
atualmente dominantes. (SAVIANI, 2000, p. 115)
Embora as considerações de Saviani se referem à escola, podemos pensar tal
perspectiva para as instituições de educação infantil, cujo papel de socialização do saber
historicamente produzido e socialmente acumulado vem sendo negado ou relegado a um
segundo plano, quando se trata do atendimento às crianças das classes trabalhadoras.
Concordamos com Kramer (1989) que, ao discutir o papel social da pré-escola, afirma a
exigência de se assumir uma função pedagógica nessas instituições, sem negar o atendimento
assistencial e de cuidado da criança.
Quando digo que a pré-escola tem um papel social, uma função pedagógica, estou
me referindo, então, a um trabalho que leva em consideração a realidade, a
linguagem, os conhecimentos infantis e os ampliam, assegurando a aquisição de
novos conhecimentos, ou seja, estou me referindo a um trabalho que toma como
ponto de partida o que a criança sabe e faz, e que, além disso, transmite o que ela
não conhece e não sabe fazer (ibid., p. 24).
A luta dos trabalhadores pela efetivação de suas demandas e necessidades,
dentre elas a educação infantil, tem se constituído como uma forma de elaboração de uma
73
identidade de classe, da construção de uma cidadania ativa e da participação na definição
política dos rumos da sociedade. Como afirma Mascarenhas (2001, p. 35),
A relação entre a constituição das classes sociais e a luta pela extensão dos direitos
de cidadania tem-se dado por meio de uma ligação muito íntima. [...] E aqui é
preciso novamente que tenhamos muita cautela, pois a pressão para a extensão dos
direitos de cidadania teve e tem como pano de fundo os conflitos de classes. Sem
querer reduzir todo tipo de conflito à caracterização de conflito de classe, o que é
preciso salientar é a abrangência desse fenômeno e a pertinência de destacá-lo na
caracterização dos conflitos nas sociedades contemporâneas.
Um projeto alternativo de educação infantil, articulado a um projeto societal para
além do capital, precisa envolver, necessariamente, um dos principais sujeitos dessa relação,
quais sejam, os professores e professoras. Vistos, ora como correia de transmissão do
Aparelho Ideológico do Estado (ALTHUSSER, s/d) e da classe social que lhe dá suporte, ora
como redentor da vida moral e intelectual das futuras gerações – ideologia propugnada pelas
concepções liberais de educação –, professores e professoras são constantemente mistificados,
dificultando a compreensão sobre as reais mediações políticas de sua ação e a sua inserção de
classe.
74
Capítulo 2
Os elementos constitutivos das instituições de educação
infantil
Criadas para atender as crianças pobres e as mães trabalhadoras,
desde o início se apresentaram como primordialmente
educacionais. A “escola de principiantes” ou “escola de tricotar”,
criada por Oberlin em 1769, na paróquia rural francesa de Ban-
de-la-Roche, tem sido reconhecida como a primeira delas. De
acordo com seus objetivos, ali a criança deveria perder os maus
hábitos; adquirir hábitos de obediência, sinceridade, bondade,
ordem, etc.; conhecer as letras maiúsculas; soletrar; pronunciar
bem as palavras e sílabas difíceis; conhecer a denominação
francesa correta das coisas que lhe mostram (o uso do patois,
dialeto regional, era proibido); e adquirir as primeiras noções de
moral e religião (Buisson, 1887; Mira Lopez, Aller, 1970; Léon,
1977). (KUHLMANN JR., 2001b, p. 5).
A epígrafe acima ilustra bem a gênese e a característica das instituições de
educação da infância pobre. A preparação para o trabalho, a inculcação moral e religiosa, a
instrução minimalista e os aspectos de caridade/filantropia/assistência sãos elementos
marcantes da educação infantil voltada para os filhos das classes trabalhadoras, criadas
durante a ascensão da sociedade burguesa.
A compreensão das relações, estruturas e processos que concorrem para a
elaboração da identidade política das trabalhadoras da educação infantil exige o entendimento
dos elementos sócio-históricos que constituem a instituição de trabalho onde elas atuam.
Desse modo, é imprescindível que se articulem as estruturas que conformam essas instituições
em seus aspectos históricos, sociais, políticos e ideológicos, no sentido de nos aproximar das
identidades institucionais atribuídas (pelas políticas e teorias pedagógicas e sociais) e
construídas cotidianamente pelas próprias trabalhadoras.
As instituições de educação infantil, como a conhecemos hoje, é um produto da
moderna sociedade capitalista. Criadas sob os estigmas e preceitos da caridade religiosa e
filantrópica, essas instituições têm, desde sua gênese, um duplo papel educativo: primeiro, o
papel de educar, desde a mais tenra infância, os filhos das classes trabalhadoras para o
trabalho e para a subordinação “voluntária”; e o segundo, e não menos importante, o de
educar as famílias populares de acordo com a moral e os costumes das classes dominantes.
A construção histórica da educação infantil atende aos anseios da hegemonia do
capital, uma vez que libera a força de trabalho feminina para ser explorada na fábrica ou nos
lares burgueses (como domésticas) e também reproduz a futura força de trabalho,
75
apresentando precocemente às crianças pobres o seu lugar no interior da divisão social e
hierárquica do trabalho.
Embora colocada dessa forma, a materialização das instituições e de seus
processos educativos duais e excludentes se escondem por trás do véu da caridade e da
filantropia. Os cidadãos e, principalmente, as cidadãs de bom coração “acolhem” as pobres
criancinhas durante o período em que suas mães vão laborar, e lhes proporcionam momentos
“felizes” e uma educação que, provavelmente, sua família não poderia lhe dar, pois é
“incompetente” para isso. Travestida de caridade e de boa ação, a educação infantil vem se
constituindo a partir da precaridade e de um caráter extraordinário. O assistencialismo é,
nessas instituições, uma pedagogia preconceituosa e subordinadora (KHULMANN JR.,
2001a) que orienta a intervenção e as políticas desse campo.
Só recentemente houve um processo de reordenação das instituições de educação
infantil que passam a ser pensadas e articuladas sob a perspectiva educacional, vinculada à
educação escolar e aos sistemas de ensino. Desse modo, novas necessidades são instituídas
como a exigência de professoras e demais profissionais qualificadas para instituir projetos
político-pedagógicos de qualidade. O conceito de infância é alterado e as crianças passam, em
tese, da condição de objeto de tutela para a de sujeito de direitos, dentre estes a educação
desde a primeira infância.
Entretanto, o campo incorpora algumas dessas novidades, mas mantém uma
série de elementos políticos e ideológicos subjacentes às concepções assistencialistas da
educação infantil.
Tais questões são fundamentais para se compreender a identidade que as
trabalhadoras da educação infantil elaboram no seu local de trabalho. Os elementos
ideológicos, políticos, históricos, sociais e culturais que permeiam a identidade dessa
instituição e o seu fazer diário são mediadores concretos da construção de identidades
profissionais e políticas de quem ali atua. Na medida em que age de uma determinada forma,
no interior de um grupo social, o indivíduo constrói sua identidade. E o local de trabalho é um
espaço privilegiado nessa elaboração, visto que os indivíduos se reúnem coletivamente para
agir numa determinada direção e, ao fazê-lo, elaboram uma identidade de si mesmos como
agentes de uma determinada prática social. Como afirma Ciampa (1992, p. 64), “é pelo agir,
pelo fazer, que alguém se torna algo: ao pecar, pecador; ao desobedecer, desobediente; ao
trabalhar, trabalhador.”.
76
2.1 Características historicamente constituídas da educação infantil na modernidade
O atendimento educativo da pequena infância (crianças com idade inferior aos 7
anos) é produto da moderna sociedade capitalista. O rompante das revoluções burguesas na
Europa, entre os séculos XVIII e XIX, e o universo de metamorfoses que estas provocam
sobre a vida social, modifica consideravelmente, entre outras questões, os papéis sociais da
família, da mulher e das crianças. Essas modificações acabam por se constituir como
elementos fundamentais para se compreender a produção das instituições de educação
infantil.
A família é constituída como unidade celular da sociedade, responsável pela
reprodução das condições de manutenção da ordem, seja renovando a própria vida humana
por meio da procriação ou colaborando com os preceitos de uma sociedade ordeira, baseada
em modelos de hierarquia e subordinação, mediada pelas relações de gênero (marido-esposa;
homem-mulher) e de geração (criança-adulto; filhos-pais). Contraditoriamente, a família,
celebrada como o espaço de humanização, como esfera privada em que é possível se afastar
de toda a “corrupção” e “imundície” presentes nas relações sociais, configura-se, para as
classes trabalhadoras, como um espaço primário para a reprodução de sua condição de
exploradas, muitas vezes, contribuindo para que o trabalhador nem se torne um proletário em
sua inteireza (e todas as conseqüências políticas e ideológicas que isso provoca).
Wallerstein (2001) analisa o papel social da família no moderno capitalismo
industrial, observando sua função de aplainar os conflitos sociais decorrentes da exploração da
força de trabalho. O autor nota que o processo de proletarização plena da força de trabalho é
indesejável ao capital, pois cria a necessidade de maiores salários e dá condições ao
surgimento de movimentos de pressão política. Desse modo, a produção capitalista incentiva a
manutenção de unidades domiciliares
41
como espaço constituinte de um processo de semi-
proletarização da força de trabalho humana.
Um outro elemento central das modificações sobre as relações sociais que a
sociedade capitalista institui é a dicotomia entre trabalho produtivo e improdutivo, ideologia
essa reproduzida eficazmente pelo modelo de relações familiares constituído pela sociabilidade
capitalista. Essa dicotomia vai estabelecer um novo patamar para as relações de gênero,
institucionalizando o sexismo por meio de um aparato legal e paralegal de diferenciação e
41
- A contribuição das unidades domiciliares na produção e reprodução da semi-proletarização da classe
trabalhadora se efetiva na sua capacidade de produzir subsistência mesmo fora da esfera produtiva capitalista,
colaborando com a redução dos custos do emprego da força de trabalho.
77
discriminação entre homens e mulheres, amparadas pela lógica diferencial de inserção e
valorização do trabalho (produtivo x improdutivo).
Foi no contexto dessa estrutura domiciliar que a distinção entre trabalho produtivo e
improdutivo começou a ser imposto às classes trabalhadoras. O trabalho produtivo
passou a ser definido como aquele que recebe remuneração em dinheiro
(principalmente, trabalho assalariado) e o não produtivo como aquele que, embora
necessário, constitui uma atividade de mera “subsistência”, sem produzir um
“excedente” que possa ser apropriado por alguém. [...] A diferenciação entre tipos de
trabalho se ancorou na criação de papéis específicos a eles vinculados. O trabalho
produtivo (assalariado) se tornou tarefa principalmente do homem/pai adulto e
secundariamente de outros homens adultos mais jovens. O trabalho não produtivo
(de subsistência) se tornou tarefa principalmente de mulher/mãe adulta e
secundariamente de outras mulheres, além das crianças e dos idosos. O trabalho
produtivo era feito fora da unidade domiciliar, no “local de trabalho”. O trabalho não
produtivo era feito dentro da unidade familiar. (WALLERSTEIN, 2001, p. 23).
As conseqüências da falsa dicotomia entre produção e reprodução têm sido
muito mais nocivas para as mulheres, visto que as constantes alterações nas relações de
produção e avanços das forças produtivas capitalistas, no sentido de manter sua “homeostase”
e superar as crises estruturais de superprodução, destroem as relações comunitárias e solidárias
– muito presentes na perspectiva da família como unidade econômica – subordinando toda a
vida social aos intentos de auto-expansão e acumulação do sistema do capital (BRAVERMAN,
1987). Essa subordinação impacta profundamente sobre a força de trabalho feminina, pois o
mercado de trabalho a incorpora, especialmente no setor de serviços, mas, permanecem as
relações sociais “naturalizadas” de divisão sexual do trabalho. Desta feita, além de ser
conformada como uma mercadoria de segunda ordem co-responsável pelo sustento da família,
a mulher continua solitária nas tarefas de educação dos filhos e de reprodução da família e do
lar.
A infância, compreendida como um tempo e espaço particular do indivíduo,
diferenciada da vida adulta, também é produto dos tempos modernos e tem na separação entre
tempo de trabalho e tempo de não trabalho a sua razão de ser. Ghiraldelli Jr. (2002) e Charlot
(1986) apresentam, sob diferentes enfoques, que o surgimento do sentimento de infância é
produto da modernidade, sendo germinado entre os séculos XIII e XVI, que se efetiva como
representação hegemônica da infância a partir do século XVII, se estendendo aos nossos dias.
Charlot (1986) afirma que a construção social de uma determinada concepção de
infância vem sendo construída e consolidada, desde então, baseada nas seguintes perspectivas:
uma que “naturaliza” o indivíduo sob o fundamento de um conceito genérico e abstrato de
cultura; e outra que também busca abstrair a criança do interior das relações sociais baseando-
78
se para isto no conceito de “natureza humana” e “natureza da criança”. Essas concepções de
infância fetichizam a existência da criança, isolando-a do contexto social, econômico e político
da sociedade de classes, reservando esse momento da existência como a essência humana não
corrompida, o lúdico, a pureza e a graciosidade. Tal fetiche despreza a exploração do trabalho
infantil presente ainda hoje, mas muito mais bárbaro no período de ascensão da sociedade
capitalista.
O fetichismo da infância (ARCE, 2004) reproduz um constructo ideológico que
elabora um determinado imaginário sobre a criança, situando-a como ser “naturalmente” bom,
portador de todas as virtudes desejáveis tais como: a inocência, confiança, liberdade,
criatividade e perfeição. Essas características atribuídas velam o aspecto histórico e social da
representação da infância e influenciam decisivamente na “centralidade” que as crianças têm
na modernidade. Para essas, são destinadas locais específicos de transmissão cultural
(instituições educativas) e, também, não precisam se submeter ao “castigo de prometeus”, isto
é, ao trabalho.
O papel social atribuído à mulher e à família, girando em torno da criança, é
expressão do modo capitalista de produção, pois as representações sociais sobre esses sujeitos
e de suas formas de organização social foram cada vez mais distanciadas da esfera da produção
capitalista, especialmente, por causa do caráter de não produzir imediatamente valor – ou seja,
a fábrica e o lar não se misturam. Mulheres, crianças e famílias são “naturalizadas” em seus
papéis sociais, que acabam por interferir nas concepções que sustentam as formas posteriores
de institucionalização da educação das crianças menores de 07 anos.
Baseado nesses pressupostos ideológicos, o trabalho produtivo também não é
lugar de crianças e mulheres, muito embora a exploração da mão-de-obra infantil e feminina
como trabalho assalariado venha sendo utilizada de maneira danosa para o conjunto da classe
trabalhadora, reduzindo salários por meio da sua divisão com toda a família e instigando a
concorrência e a desmobilização.
Esse contexto, juntamente com todo o ideário permitido pelas condições objetivas
de existência, foi responsável pela produção da pedagogia, da escola moderna
(GHIRALDELLI JR., 2002, p. 13-19) e das instituições de educação infantil. Esse se constitui
como momento fundante da institucionalização da educação como parte do aparelho
burocrático do Estado laico, substituindo em parte as velhas formas de educação administradas
e orientadas pelos cânones da igreja romana.
É sobejamente reconhecida na literatura sobre a história da educação a
constituição dos sistemas escolares estatais, baseados no ideário liberal de liberdade e
79
igualdade, durante as revoluções burguesas, orientados por projetos político-pedagógicos
intencionais, bem como das contradições inerentes à sua produção
42
. Entretanto, quando se
refere à educação infantil, o reconhecimento do caráter histórico da intencionalidade educativa
dessas instituições vem sendo discutido pela produção acadêmica na área.
O caráter pedagógico intencional das instituições de educação infantil,
inauguradas nos séculos XVIII e XIX na Europa, tem sido freqüentemente questionado,
especialmente, porque o atendimento institucional à infância no mundo ocidental esteve,
historicamente, associado à assistência voltada para as crianças pobres e desvalidas. O avanço
significativo das recentes produções acadêmicas sobre a educação infantil tem apresentado
uma visão diferente acerca dessa questão. Kuhlmann Jr. (2001a; 2001b), Faria (2002) e
Spodek e Saracho (1998), por exemplo, expõem que as instituições de educação infantil foram
criadas durante o período da Revolução Industrial e tinham um caráter educativo e pedagógico
intencional e, muitas vezes, explícito.
As instituições de educação infantil tiveram êxito como perspectiva de educar e
controlar os trabalhadores e sua família a partir de meados do século XIX e início do século
XX com a emergência da assistência científica articulada às tradicionais formas de
subordinação e preconceito contra as classes oprimidas como, por exemplo, a caridade e a
filantropia. Esse marco histórico é significativo e representa um movimento quase que
mundializado de expansão desse modelo de intervenção social.
A expansão internacional do modo de produção capitalista se constituiu como
marco central da expansão das instituições de educação infantil por todo o mundo.
O final do século XIX, a partir da década de 1860 vive uma crescente expansão das
relações internacionais, que leva as instituições de educação infantil a vários países
[incluindo o Brasil]. Este fenômeno acompanha a difusão de uma série de iniciativas
reguladoras da vida social que envolve a crescente industrialização e urbanização.
(KUHLMANN JR., 2001b, p. 13).
Esse momento é caracterizado por uma re-configuração das instituições
educacionais, instituindo as divisões entre etapas e modalidades – creches, pré-escola,
instrução primária, ensino profissional, ensino superior – que permanecem até o momento,
com alguma modificação superficial, porque essas alterações não vão à raiz do problema
fundado no caráter de classe das instituições de educação infantil. Para Kuhlmann Jr. (op.cit.),
essa re-configuração é impulsionada pelo processo civilizatório presente na fase imperialista
do capital.
42
- Ver, por exemplo, Saviani (2000; 2002b) e Ponce (2003).
80
As nações ocidentais foram incentivadas a incorporar modelos sociais,
econômicos, culturais, políticos e educacionais produzidos, principalmente, na Europa,
objetivando universalizar o modelo capitalista de sociedade e sociabilidade. Em decorrência
disso, uma série de exposições e eventos internacionais
43
, responsáveis pela apresentação das
“novas maravilhas” produzidas pelo progresso da ciência e da tecnologia ao mundo, foram os
principais meios de divulgar e criar a demanda pela implantação das instituições de educação
da infância.
Essas instituições foram disseminadas pelos vários cantos do mundo quase que
simultaneamente. O Brasil também seguiu as experiências advindas dos centros da Europa,
implantando, ainda em finais do século XIX, suas primeiras instituições (privadas).
A novidade fez com que o Estado brasileiro enviasse autoridades vinculadas à
educação para obter informações das instituições de educação infantil, especialmente os
Jardins de infância. Em 1883, o Inspetor Geral da Instrução Pública, Souza Bandeira Filho,
publicou um relatório sobre a viagem que fez à Europa para obter informações sobre os jardins
de infância e outras instituições de atendimento às crianças pequenas. Em visita à França,
Alemanha, Suíça e Áustria, o Inspetor teve acesso às experiências de atendimento educativo
para a infância e relatou sobre seu caráter dual:
[...] eram raros, nesses países, os Kindergarten abertos gratuitamente a freqüência
pública. Em geral, eram mantidos por associações que exigiam uma contribuição
mensal mais ou menos elevada, preferindo, na admissão, os filhos dos associados
pertencentes a famílias abastadas. Considerada uma instituição fora do alcance das
classes populares, estas podiam levar seus filhos aos asilos, que mais se
preocupavam com a propaganda religiosa. (KUHLMANN JR., 2001b, p. 04).
Esse relato revela o fato de que a educação infantil para as crianças pobres
também foi produzida no âmbito do movimento histórico de constituição das instituições de
educação infantil, realizando uma determinada organização educativa e pedagógica. Tal
constatação contraria as teses que afirmam que o atendimento educativo em instituições de
educação infantil voltadas para as crianças das classes trabalhadoras se pautou apenas pela
assistência e caridade e que só recentemente assumem um caráter educativo.
43
- Segundo Khulmann Jr. (2001a, p. 75), em finais do século XIX e início do século XX diversos eventos,
exposições e congressos internacionais foram realizados em todo o mundo ocidental (Europa, Estados Unidos,
América Latina) como forma de “representação de espetáculos de crença acrítica no progresso, na técnica e na
ciência.”. Essas exposições internacionais, também chamadas de universais, foram, segundo o autor,
responsáveis pela difusão das instituições de educação infantil para todo o mundo, sob a caracterização de
formas modernas, científicas e civilizadas de educação da infância.
81
Nesse sentido, as investigações sobre a história da educação infantil que
interpretam as creches e asilos como exclusivamente assistencialistas e os jardins de infância
como prioritariamente educativo-pedagógico carecem de uma contextualização histórica e
social mais exata, pois, ambos modelos são produtos de um determinado período histórico, de
determinadas condições socioeconômicas, políticas e culturais possuindo, os dois, identidades
pedagógicas. Essa constatação expõe que não é a instituição em si que se define como
assistencialista, mas sim a classe social para qual esta é destinada.
A questão fundamental, então, nunca esteve atrelada à intencionalidade educativa
ou à sua inexistência nessas instituições, mas sim na destinação social desta e nos diferentes
modelos de formação propostos para os filhos das distintas classes sociais. Dois modelos de
atendimento são estabelecidos: um primeiro modelo com professores, brinquedos e bibliotecas
para a infância burguesa; e outro, precário, assistencialista, instrumental e religioso, para os
filhos da classe trabalhadora se habituarem ao trabalho e à sua condição subordinada de classe
desde a pequenice, pois tão logo se sustentassem sobre as próprias pernas teriam que trabalhar.
O atendimento à infância pobre se caracterizou historicamente por políticas
pautadas pela ideologia da caridade cristã e pelo assistencialismo filantrópico estatal e
privado. Esse tipo de atendimento serviu de aparelho ideológico a serviço do poder em voga
(clero, aristocracia, burguesia), dando ênfase a intervenções higiênicas e morais, educando
crianças para o trabalho submetido a condições desumanas e as mantendo sob essas mesmas,
materializadas pelos altos índices de mortalidade infantil (MARCÍLIO, 1998). As políticas
educativas para a infância pobre têm estado, desde então, articuladas a uma perspectiva de
atendimento às mães trabalhadoras do regime industrial e à infância pobre, não só como
caridade, mas também como forma de inculcar na classe trabalhadora os hábitos e costumes
indispensáveis à nova ordem social.
Faria (2002) afirma que a história das instituições de educação infantil se
confunde com a própria história da mulher operária e da infância pobre, no sentido de
socializá-los de acordo com as necessidades da sociedade dividida em classes.
A produção das instituições de educação infantil dar-se-á no sentido de
institucionalizar a própria infância, especialmente a pobre, separando as crianças do seu
contexto social e de classe para “[...] transformá-las e fazer o suporte integrado de um novo
sistema político e econômico, constituindo-se em uma verdadeira obra de engenharia social.”.
Dessa forma, as políticas assistencialistas são impostas sob “[...] o pretexto de proteger a sua
inocência, a criança é controlada, disciplinada e educada dentro dos novos valores sociais
dominantes.” (FARIA, 2002, p. 60).
82
Todo esse mecanismo de ajustamento e controle da infância pobre fora
organizado a partir da crença no progresso da ciência e numa concepção racional de
assistência. A ciência, elevada à condição de intervenção racional sobre o mundo de maneira
“neutra” e “desapaixonada”, visando o bem comum, foi utilizada pelas classes dominantes
como mecanismo de controle e domínio sobre as classes trabalhadoras, buscando atingir a
totalidade do trabalho pelas políticas preconceituosas do assistencialismo e da caridade para
as mães e crianças das famílias proletárias, visto que entendia-se que os homens adultos já
estavam sendo amplamente educados, de acordo com os interesses do capital, no processo
produtivo.
Exerce um papel fundamental nesse processo uma série de intelectuais
compromissados com os interesses dominantes (juristas, médicos, religiosos, pedagogos,
políticos e empresários) que buscam organizar a sociedade em função da ordem vigente,
utilizando-se, para isso, do aparelho estatal. Kuhlmann Jr. (2001a) destaca o papel de
pedagogos, médicos e pensadores burgueses
44
na disseminação das propostas e idéias de
atendimento educacional para a infância no mundo ocidental. Esses intelectuais cumpriam a
função de comissionários do grupo dominante, dos quais fala Gramsci (1982), ao imprimir
sobre as classes subalternas o consenso espontâneo, juntamente com a coerção estatal.
Para Kuhlmann Jr. (2001a) é o conceito de civilização, aportado na crença do
progresso e da ciência revolucionadas pelo avanço das forças produtivas, que se constituiu
como critério para a construção das instituições sociais, especialmente as de educação
popular
45
. Essas instituições serviriam para regular, de forma autoritária, a infância e a família
pobres, sob as ideologias da assistência, filantropia e caridade.
Na organização racional dos serviços de assistência, adotou-se uma
intencionalidade educativa, presente no interior das instituições jurídicas sanitárias
e de educação popular que substituíram a tradição hospitalar e carcerária do Antigo
Regime. Após a década de 1870, o desenvolvimento científico e tecnológico
consolida as tendências de valorização da infância que vinham sendo desenvolvidas
no período anterior, privilegiando as instituições como a escola primária, o jardim
de infância, a creche, os internatos reorganizados, os ambulatórios e as consultas às
gestantes e lactantes, as Gotas de Leite. Essas instituições, inicialmente com uma
postura paternalista mais bondosa, assumem uma dimensão cada vez mais
44
- Na Europa figuram-se entre esses, os nomes de Froebel, Montessori, Decroly, Pestalozzi e Owen. No Brasil a
presença da alta sociedade expressa por médicos, juristas e políticos foram os precursores dessas instituições,
movidos pela ideologia do progresso e da modernização do país, às custas, é claro, da subordinação dos
trabalhadores, que precisavam ser educados para um novo momento histórico do país. (KUHLMANN JR.,
2001a).
45
- O sentido de educação popular que Khulmann Jr. (2001a) se refere não está relacionado à organização
autônoma das classes populares para se auto-educar, ao contrário, essas iniciativas referem-se aos modelos
institucionais criados de maneira vertical, para inculcar nos trabalhadores os hábitos, costumes e pensamentos
das classes dominantes. Ou seja, não era uma educação do/pelo povo, mas para o povo.
83
autoritária diante da população pobre e trabalhadora: os homens de ciência seriam
os detentores da verdade, capazes de efetuar a distribuição social do controle, na
perspectiva da melhoria da raça e do cultivo do nacionalismo (KUHLMANN JR.,
2001a, p. 28, grifos do autor).
Ainda de acordo com esse mesmo autor, as instituições de educação infantil
foram histórica e socialmente materializadas pela emergência do processo de constituição da
sociedade capitalista, da incorporação da força de trabalho feminina e das novas concepções
de maternidade e infância, e das seguintes influências institucionais e ideológicas: a jurídico-
policial, a médico-higienista e a religiosa.
As influências médico-higienistas, pautadas também pela ideologia da eugenia,
tinham como principal foco de intervenção as formas de educação e cuidado das mães para
com seus filhos. A puericultura foi considerada a forma de divulgar as normas racionais de
cuidado e controle da infância pobre.
A puericultura era considerada como a ciência da família, feita com a colaboração
confiante da mãe e do médico, do amor materno esclarecido pela ciência. Além
disso, também era entendida como ciência que tem por fim pesquisar os
conhecimentos relativos à reprodução e à conservação da espécie humana. Assim, a
puericultura desdobrava-se numa perspectiva de controle racial, adotando
princípios da eugenia, concepção racista que ganhava espaço nesse período.
(KUHLMANN JR. 2001a, p. 92).
As influências médico-higienistas também se circunscreveram na explicitação da
categoria médica como força social e política no Brasil, responsável, em grande parte, pela
implantação dos modelos de atendimento institucional da infância baseada no ideário da
privação e da carência “inerente” às famílias pobres.
Tais concepções eram responsáveis pela “naturalização” das relações sociais de
exploração e jugo sobre as classes trabalhadoras, culpabilizando os indivíduos por sua
situação. Uma das vítimas centrais desse modelo de intervenção política e ideológica são as
mães trabalhadoras, culpadas pela incapacidade de reproduzir as condições nutricionais e
culturais necessárias ao desenvolvimento de seus filhos. Desse modo, a maternidade é
institucionalizada mediante os cursos de puericultura para “ensinar as mães a serem mães” e
as instituições de educação infantil assumem um caráter compensatório, buscando “suprir” a
ausência dessas, consideradas incompetentes para reproduzir os homens do futuro.
As medidas judiciárias e policiais se efetivaram no sentido de fragmentar os
trabalhadores, dividindo-os entre os beneficiários e assistidos pelas leis trabalhistas e
criminais. Assim, a educação, saúde e moradia são suprimidas, enquanto direitos dos
84
trabalhadores, passando a ser instituídos a partir da noção de mérito para aqueles que se
mostrarem mais resignados e subservientes (KUHLMANN JR., 2001a).
As famílias operárias passam a ser reguladas pelo Estado e as instituições de
educação objetivam atender os preceitos preconceituosos e estigmatizantes de infância pobre
e delinqüente. Para isso, retirar as crianças das ruas e incutir-lhes um espírito servil, no
sentido de prevenir a delinqüência e os maus costumes, seriam uma das funções dessas
instituições.
O componente religioso foi também um elemento constituinte na consolidação e
desenvolvimento das instituições de educação infantil. Servindo dos preceitos místicos da
religião para justificar toda a desordem social provocada pelo capital, os setores dominantes
da sociedade faziam questão de manter as instituições de educação popular sob a influência da
Igreja Católica, tida como “[...] única instituição capaz de salvar a ordem social e fazer a
felicidade dos povos”, por meio do controle das classes trabalhadoras (KUHLMANN JR.
2001a, p. 95).
Embora o projeto histórico da burguesia tivesse se confrontado com o poder
clerical, quando dos processos revolucionários de transição da sociedade feudal para a
sociedade capitalista, a manutenção da religião como parte da educação para as classes
trabalhadoras continuou necessária, uma vez que, sob a concepção dominante, a “canalha [é]
indigna de ser esclarecida e para qual todos os jugos são bons”
46
. Os processos formativos
para as crianças, especialmente as provenientes das classes trabalhadoras, não poderiam
deixar de lado o pensamento místico-religioso, considerado ultrapassado pela própria
burguesia, mas necessário à formação de uma mão-de-obra dócil, servil e resignada.
Desse modo, às crianças não caberia a preocupação com as coisas mundanas e
materiais como, por exemplo, as desigualdades sociais e a luta de classes. Na esteira dos
pensadores e pedagogos burgueses (Rousseau, Pestallozzi, Montessori
47
), a criança era um ser
naturalmente bom e caberia à educação mantê-la distante da corrupção do mundo.
A constituição histórica das instituições de educação infantil no Brasil e no
mundo segue essa mesma concepção de caridade e filantropia das elites dominantes, do
Estado e da Igreja para com as crianças filhas das classes perigosas (os trabalhadores) no
46
- Trecho de carta de Voltaire – intelectual tradicional da burguesia do século XVIII – para o Rei da Prússia,
citado por Ponce (2003, p. 133).
47
- São esses pensadores que, ainda hoje, influenciam em boa parte os projetos político-pedagógicos para a
Educação Infantil, baseando-se no que Saviani (2000) denomina de Pedagogia Burguesa, ou dos métodos ativos
como Manacorda (2001) observa, ou mesmo da Pedagogia “anti-escolar” (ARCE, 2004) que se aproxima das
propostas pós-modernas para a Educação veiculadas, principalmente, pelos organismos multilaterais como o
Banco Mundial e a Unesco.
85
sentido de controlá-las e de estigmatizar a pobreza e a exploração como condições naturais e
não sociais. Essas instituições e as políticas subjacentes desses modelos de intervenção visam
controlar e conformar não somente as crianças, mas também suas mães e toda a família
proletária em um conjunto de concepções, técnicas, costumes, hábitos e conhecimentos
necessários à reprodução da ordem social que se instalava em finais do século XIX e início do
século XX no país.
Essas instituições têm sido, desde então, marcadas por um modelo de políticas
sociais que visam “garantir a acumulação e a legitimidade dos meios de reprodução, através
da regulação do acesso e/ou exclusão à riqueza socialmente produzida.” (NUNES, 2005, p.
79), criando determinadas representações sobre os sujeitos a que se destinam essas políticas.
Kramer (2001) aponta, por meio de uma pesquisa sobre as políticas brasileiras
para esse setor, a permanência de um modelo desqualificado e precarizado de atendimento
educativo para as crianças de 0 a 06 anos até o final da década de 1970. O que essa autora
caracteriza como “arte do disfarce” é justamente a proeminente “importância” que as
legislações oficiais e as iniciativas de diferentes organizações civis (UNICEF, UNESCO,
OMEP) passam a dar a essa modalidade de educação, sem, no entanto, alterar as condições
objetivas de sua materialização. Dessa forma, a educação infantil no Brasil é caracterizada por
um conjunto heterogêneo e complexo de instituições (filantrópicas, comunitárias,
confessionais, privadas, pública-assistencialistas, caritativas) baseadas no voluntariado e nos
sintomas de “desencargo de consciência” das classes hegemônicas
48
.
À criança pobre vinculam-se duas imagens por meio dessas políticas: uma de
abandono, a qual precisa ser amparada; e outra de delinqüência, cuja intervenção dar-se-á no
plano moralizante, por meio de uma pedagogia ideológica, do trabalho, e de medidas
jurídico/policial através da reclusão. Essas características marcam o atendimento educativo
para as crianças pobres no Brasil até meados da década de 1970 quando se inicia,
particularmente, a organização política das mulheres na luta pelas creches e pré-escolas, não
mais como “mal necessário”, mas como direito das mães trabalhadoras e das próprias
crianças.
No Brasil, até o início dos anos de 1980, a configuração das instituições de
educação infantil como local de trabalho (no sentido restrito mesmo de assalariamento)
48
- Marx (2001) critica duramente as iniciativas educativas filantrópicas e caritativas da burguesia para a classe
trabalhadora, denominando essas de “desencargo de consciência” de algumas parcelas da burguesia buscando
atenuar a exploração desumana imposta aos trabalhadores no processo de produção capitalista. Sua crítica se
refere ao fato de a educação filantrópica negar as contradições e os antagonismos de classe, buscando a
transformação de todos os homens em burgueses.
86
precisa ser relativizada, porque essas se caracterizam – com preocupantes permanências e
poucas alterações, ainda nos dias de hoje – pelas intervenções emergenciais, pela
improvisação, pela precariedade de instalações e de condições de trabalho e pelo
voluntariado.
Não há um detalhamento das formas de organização e estrutura cotidianas dessas
instituições nas diferentes produções percorridas que retratam os períodos até aqui citados,
mas, os trabalhos de Kuhlmann Jr. (2001a, 2001b), Spodek e Saracho (1998), Barbosa (1999)
e Kramer (2001) apontam indícios de uma organização marcada pela iniciativa privada,
muitas vezes de caráter filantrópico, caritativo, assistencialista, médico-higienista, jurídico-
policial e religiosa, com pouca intervenção estatal. Essas instituições são caracterizadas
também por um tipo de educação popular que estigmatiza, controla e inculca valores.
Criadas especialmente para atender as necessidades das mães trabalhadoras que
precisam deixar seus filhos em um local onde pudessem ser cuidados e alimentados enquanto
estivessem no local de trabalho, essas instituições se caracterizaram pela assunção do papel de
“substituição” da família e/ou extensão do lar, o que não requerera uma forma mais
estruturada e organizada de atendimento, nem tampouco alocação dos recursos necessários.
Para tanto, bastavam apenas mulheres de boa vontade, que destinassem parte do seu dia para
cumprir a sagrada missão de educar as gerações mais novas.
Ivone G. Barbosa (1999, p. 2-3) ao fazer um balanço da história das creches –
instituição de educação infantil historicamente vinculada ao atendimento da infância pobre –
afirma que essas instituições,
Por ser considerada lugar de custódia e assistência utilizou-se de modo claro um
apelo à biologização da competência educativa feminina, defendendo-se a
existência de um “instinto maternal”. Conseqüentemente, admitiu-se que os seus
deficitários quadros profissionais se compusessem quase eu exclusivamente de
mulheres voluntárias, sem necessitar de qualquer formação específica, a não ser em
alguns casos um curso de puericultura, que preparava-as para os cuidados físicos
básicos com crianças pequenas. Portanto, assim concebida, sem garantir
investimentos de qualquer natureza, não se desenvolveu uma preocupação com a
promoção da qualidade do atendimento e, da mesma forma, sequer chegava-se a
cogitar uma legislação específica e normas básicas de funcionamento para
instituições de atendimento de crianças menores de 7 anos.
Com base nessas considerações, pode-se inferir o caráter emergencial e de
improvisação que marcaram essas instituições até o período pós-guerras, com o advento do
Estado de Bem-estar na Europa e no final da década de 1970
no Brasil com o processo de
reabertura do regime político no país. Esses períodos marcaram uma nova forma de
compreender a infância e as instituições de atendimento a essa população.
87
A criança surge como sujeito de direitos e as instituições de educação infantil
como espaço responsável pela materialização de um dos direitos fundamentais das crianças, o
de acesso à educação e cultura. Nesse sentido, há todo um movimento político-acadêmico que
se envolve na construção de novas formas institucionais de atendimento educacional público
para as crianças menores de 7 anos. Essas instituições passam a ser reivindicadas não mais
como um mal necessário, mas sim como direito das crianças e das famílias.
Esse movimento não acontece sem contradições, permanecendo concepções,
políticas e modelos de atendimento precários, emergênciais e compensatórios. Esses modelos
são, inclusive, incentivados pelos organismos multilaterais que influenciam diretamente na
constituição da educação infantil nos países periféricos, dentre eles o Brasil.
2.2 As instituições de educação infantil como parte do sistema básico de ensino
No sentido de compreender as instituições de educação infantil como local de
trabalho e, portanto, como lócus da construção da identidade política de suas trabalhadoras, é
de fundamental importância remeter a uma análise da recente história dessas instituições. É no
contexto da recente configuração das instituições de educação infantil como parte dos
sistemas básicos de ensino que se pode fazer considerações a respeito da organização
burocrática e das múltiplas formas de envolvimento de trabalhadores docentes nessa etapa da
educação de uma maneira mais sistemática e organizada. Até então, como foi exposto
anteriormente, essas instituições têm-se pautado pelo atendimento emergencial e descontínuo
e pelo voluntariado de mulheres.
Fruto de um contexto social afetado por profundas transformações de ordem
política, cultural, ideológica, econômica, social e do mundo do trabalho, a educação infantil,
que em determinado momento fora identificada como atendimento educacional aos filhos das
classes privilegiadas e amparo aos filhos de trabalhadores (KUHLMANN JR., 2001), torna-se
não só um direito das crianças como também uma necessidade dos pais trabalhadores
(ROSEMBERG, 2002a; OLIVEIRA, 2002; HADDAD, 2002) que, diante do crescimento do
desemprego, miséria e exclusão, lançam quase que a família inteira ao mercado de trabalho e,
dentre esses, a mulher que, para além das suas lutas pela igualdade de direitos, é duplamente
explorada no processo de produção e reprodução do capital.
O debate nos âmbitos internacional e nacional, desencadeado em meados da
década de 1950, em torno da criança e dos seus direitos que culminaram em declarações
internacionais (a Declaração Universal dos Direitos da Criança foi estabelecido em 1959) e
88
ações políticas importantes deram suporte à busca de uma reorientação do atendimento
educacional da infância vinculado aos preceitos do Estado de Bem-estar.
Com a profissionalização da assistência pública e das políticas sociais
desenvolvidas durante o século XX, constrói-se uma determinada “consciência” da criança
como ser, portadora de potencialidades criadoras e de necessidades objetivas. Dessa forma,
passos importantes foram dados na esfera das intenções em relação à infância, inclusive
instalando um processo de reelaboração da declaração dos direitos da criança “adotada pelas
Nações Unidas, em 1959 – e, depois, a Convenção da ONU pelos Direitos da Criança, de
1989.” (MARCÍLIO, 1998, p. 86).
Essa perspectiva partiu de uma concepção de infância, em processo de
construção, como um momento específico da vida, rico em interações e aprendizagens, na
qual a criança em seus diversos aspectos (físico, psicológico, social, político e cultural),
constitui-se como sujeito de direito.
Sob esse ponto de vista,
As crianças participam das relações sociais, e este não é exclusivamente um
processo psicológico, mas social, cultural, histórico. As crianças buscam essa
participação, apropriam-se de valores e comportamentos próprios de seu tempo e
lugar, porque as relações sociais são parte integrante de suas vidas, de seu
desenvolvimento (KUHLMANN JR, 2001a, p. 31).
Mesmo diante desse contexto, o atendimento à infância pobre vinculou-se quase
que exclusivamente a uma ideologia assistencialista, abordada como favor e como políticas de
assepsia social mediante uma proposta pedagógica clara de educar para a submissão, o
conformismo e a exclusão. O processo histórico de constituição das instituições de educação
infantil é marcado pela destinação social dessas vinculadas às classes populares, com um
projeto educativo claro de educar para a submissão as famílias e crianças pobres.
Para Kuhlmann Jr. (2001a), essas instituições educativas foram estruturadas a
partir de uma “[...] concepção preconceituosa da pobreza e que, por meio de um atendimento
de baixa qualidade pretende preparar os atendidos para permanecer no lugar social a que
estariam destinados.” (idem. p. 183). O projeto educativo dessas instituições é então
assinalado por “[...] uma educação assistencialista marcada pela arrogância que humilha para
depois oferecer o atendimento como dádiva, como favor aos poucos selecionados para o
receber. (idem. p. 182, grifos meus).
A criação dessas instituições se estabeleceu então como um mal necessário que
serviria de resposta às problemáticas sociais evidenciadas pelo modo de produção capitalista.
89
Assim, as instituições de educação infantil são criadas sob um forte caráter assistencialista,
que têm como projeto pedagógico a educação para a submissão e reprodução da situação a
que a classe trabalhadora está submetida.
Segundo Faria (2002), Kuhlmann Jr. (2001a), Kramer (2001) e Barbosa (1999),
essa vinculação das instituições de educação infantil ao atendimento das necessidades de
guarda e cuidado das crianças, permeadas por concepções ideológicas (preconceituosamente
convenientes para as classes dominantes) de incapacidade e incompetência das mães e
famílias pobres prover sua prole, marcam decisivamente as políticas para esse campo e,
conseqüentemente, a sua prioridade ou não.
Nesse sentido, Barbosa (1999, p. 2) observa que:
[...] a proposta de atendimento aos filhos de mulheres trabalhadoras, de viúvas e
mulheres abandonadas por seus maridos, foi conjugada historicamente à idéia de
“incompetência” feminina para a maternidade. Dessa forma, paradoxalmente, a
mesma instituição que deveria servir para auxiliar na liberação da mulher para o
trabalho, condenou-a a sentir-se culpada, assumindo para si a responsabilidade de
“fracasso”. Concomitantemente, justificou-se a necessidade de entregar seus filhos
à creche, para que ali fossem guardados, protegidos das mazelas da pobreza. [...] A
tarefa moralizadora da Creche esteve, dessa forma, atrelada a uma falsa idéia de
“prestação de favor”, de “doação”, distanciando-a da esfera dos direitos. Tal versão
sobre a sua função acarretou, sem dúvida, o descomprometimento de alocação de
recursos oficiais para esse tipo de lócus educativo, tomando-o como uma proposta
assistemática e puramente emergencial, de caráter educacional paliativo.
Além dos objetivos de instruir as famílias sobre como educar e cuidar de seus
filhos
49
, a partir da perspectiva de universalização de valores sociais a respeito de família,
mãe-mulher e criança particulares de uma classe social (a classe dominante), essas instituições
também, e principalmente, buscam adaptar a infância pobre nesses mesmos comportamentos e
valores. Nesse sentido, as instituições de atendimento à infância pobre caracterizaram-se por
uma política de adequação das crianças das camadas populares aos ditames da ordem que se
impunha, ou seja, preparando-as para o mundo do trabalho e para a submissão.
As instituições pré-escolares nasceram no século XVIII em resposta à situação de
pobreza, abandono e maus tratos de crianças pequenas cujos pais trabalhavam em
fábricas, fundições e minas criadas pela Revolução Industrial que se implantava na
Europa Ocidental. Todavia, os objetivos e formas de tratar as crianças dos extratos
49
- Essa perspectiva de instruir as famílias pobres (especialmente as mães, pois os pais quase não são
envolvidos) sobre as formas “corretas” de cuidar e educar de seus filhos é um caráter permanente nas
instituições, mesmo após as recentes mudanças de concepção e legislação. Como poderemos ver mais adiante, os
projetos educativos das quatro instituições de educação infantil pesquisadas tem como uma de suas metas,
desenvolver palestras para as mães com vários especialistas, especialmente da área de saúde (pediatras,
enfermeiras, odontólogos).
90
sociais mais pobres das sociedades não eram consensuais. Opondo-se à ideologia
criada naquele período histórico dentro de alguns setores da elite e que defendia a
idéia de que não seria bom para a sociedade como um todo que se educasse as
crianças pobres, alguns reformadores protestantes defendiam a educação como um
direito universal. Todavia, aos mais pobres era proposta a educação da ocupação e
da piedade. (OLIVEIRA, 1996, p. 15-16).
Durante grande parte da história brasileira, as políticas de atendimento à infância
seguem essa orientação. O trato público da educação infantil, histórica e constitucionalmente,
tem estado alocado aos órgãos do governo responsáveis pelas políticas de assistência e
amparo, que possuem uma perspectiva de que as classes trabalhadoras e suas crianças são
sujeitos da intervenção, ou seja, que são carentes e heterônomos, e necessitam da intervenção
estatal para que sejam resolvidas as suas carências, escamoteando assim o cerne de seus
problemas.
É necessário identificar as políticas educativas para a infância como um subsetor
do conjunto de políticas sociais que busca atender as demandas de assistência aos
trabalhadores/as e de educação e cuidado das crianças. Essas políticas sociais podem ser
definidas como “[...] intervenção do poder público no sentido de ordenamento hierárquico de
opções entre necessidades e interesses explicitados pelos diferentes segmentos que compõem
a sociedade.” (ROSEMBERG, 2002b, p. 29).
Essas políticas se dão em um quadro em que a intervenção social é objetivada no
sentido de garantir a acumulação e legitimar os meios de reprodução social, regulando o
acesso e/ou exclusão aos bens, social e historicamente produzidos, seja no campo dos
produtos imateriais (bens simbólicos e culturais) sejam os produtos necessários à própria
subsistência. Tais políticas, ao reproduzir os processos de apropriação ou socialização dos
meios de produção e de seus produtos, também refletem as práticas sociais e as representações
sobre os sujeitos dessa intervenção.
Sendo assim, entendemos que as praticas sociais desenvolvidas no campo das
políticas sociais públicas correspondem, no plano ídeopolítico, a representações
acerca de seus destinatários, num complexo processo de constituição do
reconhecimento social desses sujeitos. Isto significa que a institucionalidade da
vida em sociedade, ao definir as práticas sociais que a orientam, definem também o
lugar dos sujeitos que vão, ao longo de sua existência social, integrá-las. E esta
integração começa nos primeiros anos da primeira infância. (NUNES, 2005, p. 73).
Ainda segundo o raciocínio dessa autora, as políticas sociais brasileiras para a
infância têm se constituído como um processo de estranhamento da infância pobre e de suas
possibilidades. As crianças, nesse sentido, são percebidas não como sujeitos históricos que
91
produzem a realidade mediante as relações estabelecidas com os outros e com o mundo, mas
sim como coisas, objetos da ação de adultos.
Tais posições, aliás mostram-se coerentemente articuladas à concepção de infância
heterônoma, construída no desenvolvimento da pedagogia moderna que concebe a
criança como um ser frágil, dependente da ação dos adultos e da educação para
transformar-se rumo à autonomia, à liberdade e independência. Ou seja, as crianças
passam a ser tratadas apenas como receptoras de cuidado e proteção, como um vir-
a-ser, reduzindo suas possibilidades de realização ao futuro, quando tornar-se-ão
cidadãos, pessoas capazes de pensar e de produzir sua própria história. (ALVES,
2002, p. 28).
As orientações assistencialistas, que têm marcado as políticas educacionais
voltadas para as crianças menores de 07 anos, seguem uma perspectiva dualista sob a qual a
Educação brasileira tem se materializado. Tal dualização reflete-se no apoio aos setores
privatistas da área e à elitização da educação, bem como a exclusão das maiorias do direito à
educação. Esta exclusão não diz respeito somente ao acesso, mas também ao modelo precário
e sucateado que tem caracterizado a educação pública no país, ou seja, uma educação “pobre
para pobres”.
A política educacional no país é, historicamente, caracterizada pelo descaso para
com a educação das maiorias e um amplo favorecimento da constituição de instituições
educativas privadas que, ao longo da história, tem tido um apoio significativo do Estado
brasileiro (VIEIRA e FREITAS, 2003). Dessa forma, a promessa de democratização e
publicização da educação no país tem se conformado em um engodo das políticas oficiais que,
quando tensionado pelas forças populares, colocam na ordem do dia alguns pontos, cedendo,
com limites claros, às reivindicações e necessidades da população.
A promoção e incentivo ao atendimento educacional privado para a pequena
infância são uma das suas características centrais desde a gênese dessas instituições. Esse
caráter permanece até o momento, mesmo diante das mudanças provocadas pelas novas
legislações pós-redemocratização do país. Em pesquisas que vêm sendo realizadas sobre
políticas públicas de educação infantil em Goiás, Barbosa et.al. (2005) observam essa
permanência como um dos grandes desafios políticos postos ao processo de democratização
da educação infantil, sintetizando com a seguinte reflexão:
A pesquisa sobre as políticas públicas para a Educação Infantil em Goiás e em
Goiânia tem indicado que as discussões políticas acerca dessa etapa educativa ainda
a contemplam como um “problema” e um grande desafio político para as
prefeituras em geral e, especificamente, para as secretarias municipais de educação.
No caso específico das instituições de Educação Infantil, observa-se que os serviços
passam a ser terceirizados. Muitas vezes a iniciativa privada assume o atendimento,
92
mas o dinheiro público é repassado às empresas. Essa é uma das formas de
materizalização da privatização do público, que se apresenta como diretriz para as
políticas públicas sob a orientação dos organismos multilaterais. Além disso, essa
diretriz se acentua quando se delineiam intervenções com base em Programas
Emergenciais, que passam a caracterizar a forma principal de atuação do poder
público municipal no campo da educação infantil. Esse tem sido segundo dados de
2004, o caso de Goiânia, porém não é uma característica apenas dela ou do Estado
de Goiás.
As recentes pesquisas divulgadas pelo INEP explicitam o caráter ainda
eminentemente privado das instituições de educação infantil no país.
Tabela 1
Estabelecimentos de Creche e Pré-Escola, por Dependência Administrativa,
segundo o Número de Alunos
Brasil\ e Regiões – 2000
Estabelecimentos por Dependência Administrativa
Creche Pré-Escola
Público Municipal Privado Público Municipal Privado
Brasil e Regiões
Total
(%) (%) (%)
Total
(%) (%) (%)
Brasil 24.014 57,1 55,0 42,9 85.786 73,3 67,2 26,7
Até 10 Alunos 3.388 34,7 34,1 65,3 15.993 90,8 88,8 9,2
De 11 a 30 Alunos 7.228 52,5 50,9 47,5 26.588 76,1 69,7 23,9
De 31 a 50 Alunos 4.847 64,7 61,8 35,3 14.634 60,3 51,3 39,7
De 51 a 100 Alunos 5.853 67,4 65,0 32,6 16.461 61,5 54,5 38,5
Mais de 100 Alunos 2.698 61,4 58,5 38,6 12.110 76,0 69,5 24,0
N
orte 955 72,9 68,1 27,1 6.234 84,9 72,1 15,1
N
ordeste 7.131 74,8 72,0 25,2 39.141 80,9 77,4 19,1
Sudeste 9.410 43,8 42,7 56,2 22.502 58,2 56,0 41,8
Sul 5.055 55,3 54,6 44,7 13.146 74,6 58,8 25,4
Centro-Oeste 1.463 51,9 44,2 48,1 4.763 64,2 52,4 35,8
Fonte:MEC/INEP/SEEC, Censo da Educação Especial 2000 (resultados preliminares).
N
ota: o mesmo estabelecimento pode oferecer mais de um nível de ensino.
Fonte: MEC/INEP/SEEC, Educação infantil no Brasil: 1994-2001.
Este quadro se reproduz nas diversas unidades da federação como é o caso de
Goiás onde, dentre as 2.560 instituições de educação infantil existentes
50
, 912 são privadas,
1.440 municipais, 3 federais e 205 estaduais (BRASIL/MEC/INEP, 2001).
Na cidade de Goiânia, esse grande contingente de instituições privadas também é
uma tendência que permanece. Um estudo organizado para a construção do Plano Municipal
de Educação de Goiânia aponta para um baixo número de crianças atendidas por instituições
de educação infantil frente à população dessa faixa etária (sobretudo na faixa de 0 a 3 anos), e
apresenta um número muito grande de creches e pré-escolas privadas.
Segundo o documento Situação da Infância Brasileira – 2001 divulgado pelo
UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), em Goiânia existem 123.035
50
- Esse número se refere ao total de instituições de atendimento à infância sem distinção entre creches e pré-
escolas. Esses dados são aproximados do atual quadro por se referir ao censo realizado pelo Inep no ano de 2001.
93
crianças de 0 1 6 anos, sendo que 57% delas são de 0 a 3 anos, 28%, de 4 e 5 anos e
15%, de 6 anos. Desse total, apenas 30% das crianças são atendidas em instituição
de educação infantil. Desses 30%, 17, 3% correspondem àquelas que se encontram
na faixa de 0 a 3 anos, 57, 4%, a 4 e 5 anos e 25, 3%, a 6 anos. [...] Em relação ao
universo de crianças de 0 a 3 anos, o atendimento encontra-se assim distribuído:
1,5% na rede municipal, 0,4% na rede estadual, 0,06% na rede federal, 4,2% na
rede filantrópica e 2,9% na rede particular. Quanto ao universo de crianças de 4 e
5 anos, o atendimento se encontra distribuído da seguinte forma: 13,5% na rede
municipal, 2,4% na rede estadual, 0,04% na rede federal, 11,6% na rede
filantrópica e 33,6% na rede particular. Em relação ao universo de crianças de 6
anos, o atendimento na educação infantil encontra-se assim distribuído: 1% na rede
municipal, 7,2% na rede estadual, 0,2% na rede federal, 1,6% na rede filantrópica e
40,4% na rede particular. (GOIÂNIA, 2004, p. 14-15, grifos meus).
Estudos mais recentes, baseados em critérios mais qualitativos, demonstram que,
apesar do avanço do debate acerca da educação infantil na promoção da educação e ampliação
do universo cultural das crianças de 0 a 6 anos, o cenário das instituições marcadas pelo
atendimento privado e filantrópico ainda é uma realidade e que as iniciativas do setor público
tem ido muito mais no sentido de reafirmar um tipo de atendimento assistemático e não-
formal do que efetivar modelos qualificados, formais e duradouros de educação infantil
(ROSEMBERG, 2002b; 2003). São elementos caracterizadores dessa situação as seguintes
questões: a indefinição do financiamento da educação infantil; as taxas de cobertura
insuficientes e anacrônicas dessas instituições, especialmente, junto às famílias mais pobres; o
incentivo às políticas de focalização na pobreza por meio de atendimentos não-formais e de
baixo investimento público; e a baixa qualidade da oferta.
Nesse sentido, a perspectiva de democratização da educação infantil foi algo
efêmero que privilegiou programas emergenciais de caráter assistencial e médico-higienista,
objetivando mais controlar e subjugar as crianças das classes trabalhadoras do que
efetivamente implantar um projeto educacional, no mínimo, de qualidade. Assim, até meados
da década de 1960,
[...] as poucas creches públicas foram criadas juntamente por órgãos voltados
exclusivamente para o assistencialismo, com medidas de promoção de saúde, de
combate à desnutrição, de prevenção à marginalidade e à criminalidade entre
crianças e jovens da população mais pobre. (ALVES, 2002, p. 28).
A permanência de elementos de precariedade e baixo investimento público na
educação infantil brasileira são produtos da sua constituição como campo de conhecimento e
de política social em processo de construção e sua história contemporânea é marcada por
conflitos de interesses, que envolve os setores populares que buscam uma alternativa
educacional de qualidade para as crianças menores de 7 anos, diferentes governos e projetos
políticos e também o envolvimento dos organismos internacionais na definição das políticas
94
públicas para esse setor. Esses diferentes interesses e objetivos marcam profundamente o tipo
de educação infantil que vem sendo delineado desde o final dos anos de 1970, ora avançando,
principalmente com o atendimento das pressões advindas das organizações populares, ora
retrocedendo, mediante a capitulação frente aos novos senhores do mundo.
Fúlvia Rosemberg (2002b; 2003) afirma que a história recente da educação
infantil pode ser dividida em três períodos, cujos resquícios e influências são elementos
constituintes das políticas que vêm sendo desenvolvidas para o setor. A autora divide os
períodos e as características do atendimento à infância da seguinte forma: a) primeiro período,
situa-se entre o final dos anos de 1970 e final dos anos 1980, que corresponde à implantação
de um modelo massificado de educação infantil alinhado às diretrizes pensadas pela UNICEF
e UNESCO, baseado nas teorias da privação cultural e na perspectiva compensatória; b) o
segundo período também inicia-se paralelamente ao anterior, no processo de
redemocratização do país, e se caracteriza pela entrada dos movimentos sociais no cenário
político nacional e das intervenções e contribuições desses no campo da infância. Esses
movimentos são fundamentais na definição dos novos parâmetros legais na educação infantil
que alocam-na nas legislações referentes à educação, buscando superar os limites impostos
pela influência administrativa e ideológica do assistencialismo; c) o terceiro período dar-se-á
a partir de 1996, momento em que o advento das políticas neoliberal toma conta do Estado
brasileiro, provocando um retrocesso sobre os rumos adotados na construção de uma
educação infantil de qualidade no país, especialmente por causa das determinações dos
organismos financeiros (especialmente o Banco Mundial) sobre as políticas para o campo que
tem como eixo de ação as políticas focalizadas nas populações pobres.
O período que envolve o final da década de 1970 e meados da década de 1980 é
marcado pela ditadura militar e suas políticas econômicas de transferência do fundo público
para o capital internacional para pagamento da dívida externa contraída em função do modelo
de desenvolvimento adotado
51
. Há nesse momento uma redução estatal nas políticas públicas
e ao mesmo tempo uma ampliação dos seus aparelhos no controle político e ideológico sobre
a sociedade civil. A expansão caótica do ensino público, o arrocho salarial da massa
trabalhadora brasileira, em especial do funcionalismo público, a ofensiva violenta e cooptativa
sobre os movimentos sociais, são exemplos concretos do caráter ditatorial do Estado Militar
(GERMANO, 2005, passim) nesse período.
51
- Uma versão interessante sobre o modelo econômico adotado pelo Estado brasileiro e seus impactos na
educação pública durante a década de 1970 e início da década de 1980 podem ser conferidos em Romanelli
(1997) e em Germano (2005).
95
Durante os anos de ditadura, a modernização do Estado e o incremento do
crescimento da economia pautado pelas políticas de investimento exterior buscaram um
alargamento do Estado nacional e de sua intervenção na sociedade civil. Sob a pretensa
intenção de implementação do Estado de bem-estar (que escamoteava o horror provocado
pela ditadura), o Estado brasileiro buscou intervir numa série de setores com políticas sociais,
caracterizadas pela compensação das mazelas do sistema, que velavam as contradições
econômicas e políticas do modelo adotado.
No período supracitado, nota-se uma diversidade de influências no campo
educativo e no atendimento à infância, pautada pelas políticas imperialistas estadunidenses
materializadas pelo acordo MEC-USAID. A infância pobre fora marginalizada e criou-se as
instituições policialescas (Funabem – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) de
vigilância e punição da infância pobre. A infância passa então a ser denominada por um termo
comum à linguagem policial, a saber, os menores.
52
Entre as décadas de 1960 e início da década de 1980, houve a disseminação de
duas diretrizes no atendimento educativo voltado à infância: 1) a continuidade e extensão do
lar e da família: 2) a assistência aos trabalhadores pautada pela ideologia da privação
cultural
53
. Assim, as trabalhadoras que ali atuavam assumiam como função o papel de mãe,
guardiã do cuidado e educação das crianças.
Juntamente com a força do Estado repressivo, o bloco histórico brasileiro do
período da ditadura militar
54
articulou medidas políticas de envolvimento da sociedade em
políticas sociais focalizadas. Essas políticas se caracterizavam pelo baixo custo e pela
responsabilização da sociedade e dos movimentos populares para o atendimento de demandas
que estavam se configurando como bandeiras de luta e organização política dos trabalhadores
brasileiros, tais como, o analfabetismo, a moradia, a reforma agrária e as creches.
As políticas sociais utilizadas como forma de responder e controlar os conflitos
sociais, bem como de velar o caráter extremamente violento do regime, são marcadas pela
intervenção internacional principalmente sobre os aparelhos do Estado. Os tratados de
cooperação entre MEC e USAID na formulação das políticas para o ensino básico e superior e
do Banco Mundial e da Unesco e Unicef na educação pré-escolar são exemplos disso.
52
- Ver Marcílio (1998, p. 224-229).
53
- A teoria de privação cultural estabelece uma relação mecanicista de causalidade entre pobreza material e
pobreza de estímulos na infância, que decorreria em uma formação cultural deficiente, e conseqüentemente
geraria o fracasso escolar das crianças oriundas das classes populares (KRAMER, 2001).
54
- Baseado no conceito gramsciano de bloco histórico, o trabalho de Germano (2005) aponta para o fato de que
o Estado Militar resultou numa síntese que expressou os interesses do capital internacional, das grandes
empresas nacionais e das estatais formando um bloco dirigido pelos militares e apoiado por setores
tecnocráticos.
96
Diante da crise política e econômica que ameaçava a hegemonia do Estado
Militar no final da década de 1970, esse passa a desenvolver uma série de políticas sociais de
caráter compensatório, baseada na chamada “participação comunitária”. Tais políticas foram
muito influenciadas pelos organismos multilateriais, sob a estratégia “reformista
conservadora”. Segundo Germano (2005, p. 231), “Tal estratégia visa, no essencial, promover
mudanças sociais sem ruptura, através da obtenção do consenso, motivo que levou o Banco
Mundial a aumentar os seus financiamentos para os chamados programas sociais.”.
Dentre essas estratégias, a política do pré-escolar foi sendo caracterizada pelo
atendimento focalizado na pobreza, marcada pelas teses da teoria da privação cultural e pelo
envolvimento comunitário. Fortemente influenciadas pela Unicef e pela Unesco, as políticas
de educação infantil no período entre 1970 e 1980 são parte de um ideário que propugna uma
“naturalização” da subordinação cultural dos países subdesenvolvidos em relação às nações
centrais do capital e são ironicamente caracterizadas por Rosemberg (2002b, p. 35 ) da
seguinte forma:
A educação infantil para os países subdesenvolvidos tornou-se a rainha da sucata. O
modelo redundou numa sinergia perversa entre espaço inadequado, precariedade de
material pedagógico e ausência de qualificação profissional da educadora,
resultando em ambientes educacionais pouco favoráveis ao enriquecimento das
experiências infantis.
Continuando a análise, a autora aponta como essa perspectiva foi assumida nos
planos de educação do período como diretriz oficial.
O novo modelo de EI foi incorporado pelo segundo Plano Setorial de Educação e
Cultura. Esse Plano concebeu a EI na perspectiva de compensação de carências de
populações pobres, especialmente residentes em periferias urbanas, visando o
combate à desnutrição e a sua preparação para o ensino fundamental
(ROSEMBERG, 1998). Porém, os programas foram implantados apenas no final
dos anos de 1970 e início de 1980, quando apresentávamos, segundo o modelo de
Cochran (1993), condições demográficas e políticas para expansão da EI:
urbanização acentuada, redução das taxas de natalidade, despertar do ideário
feminista contemporâneo, crises econômicas e políticas em nosso contexto, do
regime militar. (ibidem).
Embora as políticas de educação infantil nesse período sejam identificadas por
suas limitadas e limitantes concepções e práticas, houve também uma série de estruturas que
colaboraram posteriormente para o avanço de concepções, idéias e formas de intervenção no
campo. Dentre os legados positivos desse período podemos, apontar os seguintes: a
organização de uma estrutura administrativa específica no interior do Ministério da Educação
97
(a Coordenação de Educação Infantil/COEDI); a expansão surpreendente do número de
matrículas entre 1970 e 1988; a gênese de um debate mais elaborado e sistematizado
nacionalmente; e o envolvimento dos novos movimentos sociais no campo da educação
infantil. (ROSEMBERG, 2003).
O envolvimento dos movimentos sociais no campo da educação infantil é o
principal aspecto que marca o segundo período que se inicia paralelamente ao anterior. Esse
foi um período de intensa mobilização política pelo reconhecimento dos direitos da criança no
âmbito internacional, que encontra ressonâncias no cenário nacional, articulando a luta pela
superação do Estado autoritário com a reivindicação por direitos sociais fundamentais como a
saúde, moradia e educação. O movimento de luta pela creche e as organizações feministas se
tornam referências importantes na reivindicação por instituições de educação infantil que
garantisse o direito das crianças de 0 a 6 anos a um atendimento educacional de qualidade e o
direito da mulher ao trabalho. (ROSEMBERG, 1989).
A organização política da sociedade civil acaba influenciando decisivamente na
formulação do novo marco institucional para a educação infantil, cujas concepções de
infância como sujeito histórico e de educação infantil como instituição que se constitui como
parte da educação escolar com o papel de ampliar o universo cultural da criança se tornam
referências para as considerações feitas na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da
Criança e do Adolescente de 1990 e da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
de 1996.
Dessa forma, a Constituição Federal do Brasil no ano de 1988 constituiu-se
como um marco significativo no campo do atendimento à infância brasileira, que passou a
observar, nas políticas oficiais, a criança como cidadã portadora de direitos tais como
educação, saúde, lazer, alimentação, cultura entre outros, efetivados pela família em regime
de colaboração com a sociedade e com o poder público.
Posteriormente à publicação da Constituição Federal, foi instituído o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) no ano de 1990, resultado de um amplo processo público e
democrático de discussão e debate acerca da situação das crianças e adolescentes do país e
dos rumos das políticas voltadas para o atendimento dessa população, constituindo-se num
salto qualitativo no que se refere à implementação de políticas de direitos garantidos na
constituição e, dentre eles, o atendimento educacional para a infância que se materializa na lei
nº 9694/96 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), instituindo a educação
infantil como primeira fase da Educação Básica, garantida pelo poder público.
98
O amplo processo de debate sobre políticas para a infância foi sustentado por
uma importante contribuição da academia que produziu, desde meados da década de 1970, um
amplo material sobre a infância e os processos educativos nessa etapa da vida humana. As
pesquisas organizadas por núcleos de estudos e programas de pós-graduação afetos à temática
têm investido seus olhares pelos mais diversos fatores que compõem a educação infantil no
contexto atual. As produções têm se caracterizado por investigações no campo da psicologia
do desenvolvimento e da aprendizagem; nas políticas voltadas para a infância e para a
educação infantil; nas relações infância x sociedade e infância x cultura; em propostas
pedagógicas nas diversas áreas científicas, artísticas, da linguagem e culturais; formação de
profissionais; e na constituição das instituições de educação infantil e construção da
identidade dessas e de suas profissionais.
Nesse sentido, as políticas e produções para e sobre a infância, recentemente
construídas, refletem um estágio interessante no campo constituindo um amplo espaço de
discussão e debate sobre a infância e sua educação em instituições coletivas
55
, o que
efetivamente não tem significado a concretização de uma educação infantil de qualidade em
todo o território nacional e que atenda a toda a demanda, composta, essencialmente, por
famílias das classes trabalhadoras. Pelo contrário, ainda há muitos percalços e contradições
inerentes a esse processo, ligados à própria implementação e democratização da escola
pública numa sociedade de classes.
A educação pública brasileira, que desde os idos da década de 1970, vem
sofrendo um processo de desvalorização, escamoteado pelas idéias e pelas políticas de
democratização, tem se caracterizado como uma “educação pobre para pobres”, materializada
pelo sucateamento das instituições, pela falta de políticas de formação inicial e continuada de
professores, desvalorização social e econômica dos trabalhadores da educação e cortes
drásticos do financiamento da educação. Nesse processo, surge ainda de maneira tímida a luta
pela construção e instituição de uma educação infantil organizada a partir de Projetos Político-
Pedagógicos estabelecidos coletivamente por profissionais qualificados e que atenda a
especificidade dessa etapa da vida.
Ainda que o Estado tenha se constituído como um agente significativo no que se
refere à consolidação de um sistema de educação infantil, pelo menos no que tange às
políticas públicas garantidas pelas letras das leis oficiais (Constituição 1988, ECA, LDB)
55
- A literatura sobre educação infantil tem usado diferentes termos para denominar as instituições de educação
infantil. As seguintes denominações têm sido correntemente utilizadas: equipamentos de atendimento à infância;
instituições coletivas; centros de educação infantil; e creches e pré-escolas.
99
promovendo debates sobre a área e construindo documentos para a consolidação da educação
infantil
56
, são os movimentos sociais vinculados à classe trabalhadora que vão dar um maior
impulso à implantação real desse atendimento. O processo de industrialização no país e a
organização sindical pressionaram, quando da criação da Consolidação das Leis Trabalhistas
– CLT, a criação de leis que garantissem a criação de creches nos locais de trabalho, no
sentido de que atendessem as mães trabalhadoras (ALVES, 2002, p. 30).
Além das reivindicações e conquistas sindicais, a organização de movimentos
populares pró-creches na década de 1970, juntamente a outros setores da sociedade civil,
organizados em partidos, associações docentes, associações científicas etc lutaram e
pressionaram o poder público no sentido de garantir a implantação e expansão das instituições
de educação infantil.
Merisse (1997) destaca como fatores centrais no processo de expansão das
instituições de educação infantil no país o surgimento de novos atores sociais na luta contra o
Estado opressor, buscando garantir uma sociedade democraticamente justa para todos.
Destacam-se nesse processo: a) a declaração dos Direitos Universais das Crianças; b) a
mobilização dos movimentos feministas, movimentos de luta por creches, organizações
partidárias de esquerda, fóruns de discussão em prol da garantia de atendimento aos pais
trabalhadores e às crianças; e c) a crescente inserção da mulher no mercado de trabalho.
Nesse sentido, as instituições de educação infantil, especialmente as creches,
tornaram-se uma alternativa de cuidado e educação dos filhos dos trabalhadores, aparecendo
então “como um direito da criança e da mulher que oferece a possibilidade de opção por um
atendimento complementar ao oferecido pela família, necessário e também desejável.
(MERISSE, 1997, p. 49)”.
O processo de transformação por que passou a educação infantil no país, tanto na
legislação como na materialização (ou na tentativa de) de um sistema de atendimento
educacional para as crianças menores de 07 anos, transferiu a responsabilidade desta pasta
para os órgãos governamentais responsáveis pela educação (Ministério da Educação,
Secretarias Estaduais e Municipais de Educação), afastando-a, em tese, das políticas
56
- Durante a década de 1990, o MEC promoveu importantes debates objetivando a implantação da educação
infantil sob uma concepção educacional, respeitando as diretrizes da Constituição de 1988 e da LDB, ainda em
processo de construção. Destaca-se o I Simpósio Nacional de Educação Infantil no ano de 1994 que resultou na
construção de documentos referentes a esses debates que foram publicados no formato de cadernos abordando as
políticas para a educação infantil; políticas de formação dos profissionais da educação infantil; bibliografia
anotada; critérios para o atendimento em creches que respeitem os direitos fundamentais das crianças; e
propostas pedagógicas e currículo para a educação infantil.
100
assistencialistas e inaugurando novas direções quanto à intervenção estatal no atendimento
educacional da infância.
Lutas pela democratização da escola pública, que desde a década de 70 envolveram
um número cada vez maior de educadores, junto com pressões feministas e de
movimentos sociais de lutas por creches, possibilitaram a conquista do
reconhecimento da educação em creches e pré-escolas com um direito da criança e
um dever do Estado na Constituição de 1988. Mais do que isso, o exame político do
atendimento que até então vinha sendo feito em creches formulou a demanda de
que tal atendimento deveria integrar-se nos sistemas de ensino. (OLIVEIRA, 2002,
p. 78).
Nesse sentido, as profissionais que atuavam e atuam no campo da educação
infantil são inseridas junto ao restante da categoria dos trabalhadores da Educação, pelo
menos no âmbito legal. Isso tem implicado uma série de dificuldades, pois a maioria das
trabalhadoras que atuavam na educação infantil à época, antes das mudanças legais, mal
possuía o Ensino Fundamental completo (ROSEMBERG, 1994), e teriam que se adequar ao
Artigo 63 da LDB que regula assim os profissionais da Educação:
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior,
em cursos de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos
superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do
magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino
fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade Normal. (BRASIL, 1999,
p. 52).
As instituições de educação infantil, após o seu novo marco regulatório, passam
a se subordinar, oficialmente, à estrutura burocrática do Estado e ao papel ideológico e
político que essas instituições têm. Organizado pelos marcos jurídicos e institucionais do
sistema educacional brasileiro, o trabalho realizado nas instituições de educação infantil passa
por alterações significativas, pelo menos no plano conceitual, muito embora há uma série de
elementos que permanecem presentes nessas instituições, tanto no âmbito das políticas como
nas práticas cotidianas.
A permanência da indefinição do quadro de profissionais nas instituições de
educação infantil é um dos problemas que podem ser elencados, por exemplo. É fato
reconhecido o caráter voluntário do trabalho realizado nas instituições de educação infantil até
as recentes modificações na legislação, e a falta de qualificação específica das trabalhadoras
que atuavam nessas.
Com a legislação em vigor, o Estado passa a assumir a responsabilidade pelo
quadro de profissionais alocados na educação infantil e estes passam a ser organizados pela
carreira do magistério que prevê a formação emvel superior para o exercício da profissão,
101
ou, no mínimo, a formação em nível de ensino médio na modalidade Normal (conforme o
artigo n° 62 da LDB/1996). No entanto, há uma indefinição sobre o que fazer com o quadro
de pessoal que não tem formação adequada, mas possui direito adquirido, especialmente nas
instituições que são transferidas dos estados para os municípios.
Essas mudanças também provocam conflitos de interesses corporativos
referentes ao grupo de profissionais que atuavam nessas instituições, especialmente aqueles
vinculados à assistência social. Rosemberg (2002a, p. 76) observa, nesse sentido, que a
mudança do atendimento educacional da infância – da assistência para a educação – tem sido
um processo tenso implicando, inclusive, no acirramento nas relações dos dois campos em
questão. Tal acirramento vem provocando cisão e concorrência entre os trabalhadores e as
políticas para a infância, o que não significa, em absoluto, um caminhar para sua
democratização e universalização.
Esse conflito, além de dificultar as ações e políticas de universalização e
democratização da educação infantil, incide na constituição de barreiras entre trabalhadores,
colocando-os em conflito no interior da própria classe e velando o verdadeiro cerne das
contradições, bem como seus verdadeiros opositores. A concorrência entre os trabalhadores
dificulta a organização de ações e representações de classe que venham constituir a identidade
política da classe trabalhadora.
Por outro lado, a inclusão da educação infantil como a primeira etapa da
educação básica no país não significou grandes avanços nas políticas de suporte
(financiamento) destinadas a esse nível de ensino e ignorou as profissionais que ali já
atuavam. As chamadas crecheiras, pagens, auxiliares e agente educativo não possuem a
atividade regulamentada pela lei orgânica da educação, colaborando com a constituição de um
elemento de cisão na composição da identidade coletiva das trabalhadoras. Essas profissionais
não possuem planos de carreira, seus salários são bem menores do que as demais
trabalhadoras (professoras) apesar de desempenharem atividades semelhantes e de possuírem
ou estarem em formação.
Como ressalta Kuhlmann Jr. (2001a), o argumento de que a transição da
educação infantil para os sistemas de educação e sua vinculação administrativa nas secretarias
de educação resolve os problemas históricos dessas instituições, que permanecem na sombra
de um modelo estigmatizado pela sua destinação social, resultam num equívoco
estabelecendo um falso conflito entre educar e cuidar e escamoteando as mazelas não
superadas do sistema escolar brasileiro.
102
A passagem para o sistema educacional não representa de modo algum a superação
dos preconceitos sociais envolvidos na educação da criança pequena. Esses
preconceitos se reforçam até mesmo por opções políticas necessárias, como a de
que é preciso manter prioridade de atendimento às crianças de famílias mais
necessitadas nessas instituições. Não porque as famílias seriam incapazes, [...] mas
porque há uma dívida social a ser paga, exigindo essa priorização. Além disso, com
a desvalorização que penetrou a escola pública em nosso país, desmantelada pelo
descaso de sucessivos governos, fazer parte de um sistema que se tornou exclusivo
para a educação dos pobres, o que facilita a passagem de creches e pré-escolas
assistencialistas a esse sistema sem alterar as concepções educacionais: a pedagogia
da submissão também se faz presente no interior do sistema educacional e não
apenas na educação infantil. (KHULMANN JR. 2001a p. 204-205).
A condição de organização complexa que materializa processos de reprodução
das relações sociais de produção (TRAGTENBERG, 2004) faz tanto da escola fundamental e
média como das instituições de educação infantil espaços que reafirmam a inserção de classe
dos indivíduos, isto é, no lugar de origem do sujeito no interior da divisão social hierárquica
do trabalho. Essas instituições cumprem uma determinada função política e ideológica de
inculcação dos valores, da cultura, do gosto hegemônicos sobre as classes populares. E essas
funções, em um contexto contra-revolucionário e conservador, como na atual conjuntura, se
aprofundam pela negação de direitos que nem recém-conquistados foram.
Num sentido contrário aos avanços que vinham ocorrendo na área com o debate
que se iniciou num contexto de reabertura democrática e que buscava assentar o Estado de
bem-estar como políticas de hiper-compensação sobre os efeitos funestos do capital, é
estabelecido um profundo recrudescimento diante das ofensivas neoliberais enfatizadas pela
tríade governamental Collor-Itamar-FHC, que se instalou no país durante doze anos. Essas
questões caracterizam o terceiro período que configura a história contemporânea da educação
infantil, cujo marco é a LDB/1996 e o aprofundamento das políticas neoliberais no Brasil.
Como já foi ressaltada anteriormente, a desertificação social promovida pelas
políticas neoliberais, que se iniciaram na década de 1990, tem como principal impacto social a
destruição dos serviços públicos e a vinculação das políticas sociais a uma perspectiva de
focalização na pobreza. As teses do Estado Mínimo provocam o recuo do poder público em
relação ao atendimento das demandas sociais, alocando-as na iniciativa privada (financiada
pelo Estado) e nas chamadas organizações sociais. Essa situação tem efeitos ainda mais
drásticos sobre as áreas embrionárias – como é o caso da educação infantil – de políticas
sociais que começam a adquirir respaldo social após a reabertura do regime democrático.
Rosemberg (2002a) observa que o debate popular que buscava garantir a
educação infantil como direito inalienável da criança e de pais e mães trabalhadores/as,
gestada na Constituição de 1988, emergiu de um contexto político em que se visava a
103
implantação do Estado de bem-estar. Com o advento do processo de inserção do Brasil no
movimento de globalização econômica, capitaneado pelo aprofundamento das políticas
neoliberais, as políticas sociais, e dentre elas as de educação infantil, sofreram impactos
materializados pela tese do Estado Mínimo e pelas perspectivas economicistas da educação
envidadas pelos organismos multilaterais, especialmente o Banco Mundial.
Esse movimento ocasiona uma série de conseqüências no campo educacional,
retraindo os gastos (que já eram parcos e insuficientes), alocando um direito constitucional
dos indivíduos como um promissor nicho de mercado e resgatando as políticas de controle das
massas denominadas de assistencialistas. No campo da educação infantil, há uma retomada do
assistencialismo como campo interventor, mesmo porque a falta de recursos específicos na
pasta da Educação remete a educação de crianças menores de sete anos para outros
departamentos da administração pública (ROSEMBERG, 2002a; 2002b; 2003).
As políticas de ajuste econômico propõem, por meio do Ministério da
Assistência Social, atender as crianças que não foram atendidas pelos sistemas de ensino,
pelos serviços “alternativos” (creches volantes, brinquedoteca, creche família). Esse
movimento é carregado dos intentos das políticas neoliberais que, isentando o Estado de
assumir políticas de suporte para o setor – setor esse que tem buscado a universalização de um
atendimento sócio-educativo de qualidade por meio de instituições estruturadas para isso,
conduzidas por profissionais qualificados – garante, pela retomada das atividades
assistencialistas e buscando a “parceria” da iniciativa privada (Ong’s, amigos da escola,
voluntariado), o atendimento com baixos recursos e qualidade.
O retrocesso imposto à educação infantil proveniente do aprofundamento das
políticas neoliberais pode ser percebido nos documentos oficiais (Diretrizes Curriculares
Nacionais e os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil), que
desconsiderou boa parte do debate que vinha sendo feito desde a década de 1980, ignorando,
inclusive, boa parte das diretrizes retiradas do simpósio que o MEC promoveu para discutir a
implantação de uma política de educação infantil. Dessa forma, como observam Martinez e
Palhares (2000), estes documentos representam um ponto de inflexão das políticas que até
então vinham sendo constituídas para a área.
As diretrizes das políticas neoliberais na educação infantil é parte do receituário
empregado pelos governos das nações em desenvolvimento de acordo com as convenções
internacionais, promovidas pelo Banco Mundial, realizadas na década de 1990 em Jontiem e
Dakar. Para Rosemberg (2003, p36),
104
O Banco Mundial entra no Brasil no campo da EI recuperando o antigo modelo de
massa, com nova terminologia: a de “desenvolvimento infantil”, que pode
significar alteração de concepção, pois programas para desenvolvimento infantil
podem ser implantados por mães, visitadoras domiciliares, no contexto da casa, da
rua, da brinquedoteca, sob a responsabilidade de outras instancias administrativas
além das educacionais. Além disso, programas “focalizados”, de emergência, ou
para combate à pobreza podem ser substitutos, e não complementares, a programas
setoriais universais.
As instituições de educação infantil, no Brasil, se encontram na seguinte
encruzilhada: instituir e regularizar um modelo democrático e de qualidade de atendimento
educacional para as crianças entre 0 e 6 anos; ou reafirmar e manter um conjunto de práticas e
concepções de educação infantil restrita, baseada no assistencialismo como proposta
pedagógica para as crianças e famílias das classes populares. Os caminhos que a educação
infantil vai percorrer nos próximos anos dependem, sobretudo, do envolvimento ativo e
consciente de quem produz e reproduz essas instituições cotidianamente. As trabalhadoras da
educação infantil embora hoje sejam professoras com formação em nível superior ou médio
57
,
ainda não têm clareza da função das instituições de educação infantil, permanecendo a
reprodução do conflito mistificado entre cuidar e educar, assistência e educação no seu
trabalho.
2.3 Cuidar e educar como dimensão estruturante do trabalho nas instituições de educação
infantil: caracterização do trabalho educativo em Goiânia
O embate entre assistencialismo e educação, cuidar e educar são elementos
definidores do trabalho educativo nas instituições de educação infantil e se constituem como
dados fundantes das práticas e representações produzidas pelos sujeitos que estão no cotidiano
dessas instituições e da própria sociedade.
As especificidades da educação infantil não negam o caráter de assistência
materializado pelo cuidado da criança, pelo contrário, amplia o conceito de cuidado reunindo-
o ao de educação e a um projeto político-pedagógico de formação cultural da criança menor
de sete anos. Como observam Rosemberg (2002b) e Haddad (2002), é necessário travar um
debate entre a assistência e a educação quando se discute a educação infantil e não um embate
antagônico e excludente um do outro.
57
- É preciso relativizar essa questão da formação das professoras que atuam na educação infantil, pois o
advento da lei ainda não significou uma alteração do precário quadro funcional dessas instituições. Segundo
Rosemberg (2003), no Brasil, apenas 19,4% das funções docentes em educação infantil são cumpridas por
pessoas com formação em nível superior; e com uma categoria profissional do ensino com a maior porcentagem
de mulheres (94,8%), cuja renda salarial é inferior à dos demais níveis de ensino.
105
O fato de que a educação infantil como instituição educacional e, portanto, como
local de trabalho se situa no âmbito do debate assistência x educação, estabelecendo, então,
duas linhas distintas de organização do trabalho e de caracterização dessas instituições.
O assistencialismo, como observado anteriormente, envida um modelo de
intervenção junto à classe trabalhadora, pautado por uma política educativa direcionada para
uma formação ideologicamente paternalista, subjugadora, que humilha, controla e contribui
para a reprodução das formas de constituição dessa sociedade. O trabalho nas instituições de
caráter assistencialista nesses moldes tem sido caracterizado somente pelas práticas de
cuidado e guarda das crianças e pela baixa qualificação dos trabalhadores, por um trabalho
desregulamentado e muitas vezes sem nenhuma remuneração (voluntariado) (CAMPOS,
1994). Descaracterizando-se, daí, a possibilidade de uma formação cultural das crianças de 0
a 06 anos vinculada ao projeto histórico da classe trabalhadora e dificultando, ou até mesmo
impossibilitando, a constituição das trabalhadoras da área como uma categoria organizada e
combativa.
Por outro lado, a instituição da educação infantil, como parte integrante do
sistema básico da educação, incide na possibilidade da construção de projetos político-
pedagógicos articulados aos interesses da classe trabalhadora, que não somente guarde seus
filhos enquanto trabalham, mas que contribua efetivamente para uma formação que colabore
para a emancipação humana. Nesse sentido, o trabalho nas instituições de educação infantil,
institucionalmente atribuída às políticas educacionais, pressupõe profissionais qualificados
trabalhando de forma regulamentada por direitos trabalhistas, remunerados de acordo com as
exigências, qualificações e funções atribuídas às suas atividades e com planos de carreira
estruturados, enfim, com delimitações claras do trabalhador docente.
As características atribuídas ao trabalho docente indicam a constituição de uma
categoria de trabalhadores que, junto aos demais profissionais da educação (administrativos,
direção, pessoal de apoio etc.), constituem-se como profissionais do terceiro setor, que
prestam serviços altamente complexos à sociedade, vendendo sua força de trabalho ao setor
privado ou público. Dessa forma, a questão do embate assistência x educação possui papel
importante na construção da identidade política das trabalhadoras da educação infantil.
Ao assumir um caráter assistencialista, as instituições e seus trabalhadores e
trabalhadoras, em boa parte, reafirmam um modelo ideológico e reprodutor do status quo, o
que não quer dizer que a educação não faça o mesmo. No entanto, enxergamos na
consolidação das instituições de educação infantil como local de trabalho articulado a um
sistema de ensino que reúne um grande contingente de trabalhadores numa só categoria e que,
106
portanto, estabelece uma possibilidade de construção de uma identidade política vinculada aos
interesses, necessidades e lutas dos demais trabalhadores
58
.
Tais possibilidades não estão pautadas pela ingenuidade e equívoco de leitura da
realidade que aloca todos os problemas da educação infantil no embate ideológico entre
educação e assistência (KHULMANN JR. 2001a, 204-205), evidenciando a primeira como
redenção dessa etapa educacional. Tomando como ponto essencial dessa discussão as
possibilidades de as trabalhadoras da educação infantil elaborarem uma identidade política
articulada ao projeto histórico do Trabalho, compreende-se a necessidade de reunir o trabalho
educativo junto às crianças da classe trabalhadora com um projeto de emancipação humana e,
portanto, vincular ação educativa à luta de classes.
Nesse sentido, já estão acenadas tais articulações no âmbito teórico e prático da
educação. No âmbito da produção acadêmica e das propostas pedagógicas, já existe um
arsenal de constructos teórico-metodológicos que apontam para um projeto de formação
humana orientado pelas perspectivas e projetos de liberdade e emancipação humanas.
Acrescenta-se à produção acadêmica a práxis educativa que vem sendo desenvolvida pelos
trabalhadores e trabalhadoras em educação, buscando materializar uma vida cheia de sentido
no trabalho e pelo trabalho, como se refere Antunes (2002). Para isso, trabalhadores e
trabalhadoras em educação não só buscam efetivar projetos pedagógicos de qualidade para as
maiorias nas instituições escolares, mas também realizam militância sindical e partidária,
mobilizam moradores de periferias e movimentos sociais, enfim, se articulam aos que estão
inseridos no processo de produção e que lutam por uma alternativa contrária à sociedade de
classes.
Ao contrário dessas perspectivas apontadas, as intervenções assistencialistas na
educação infantil – além de reproduzir a ideologia da caridade burguesa e clerical – tem-se
constituído como um campo de atuação do voluntarismo, da heterogeneidade de ação e de
sujeitos envolvidos, da fragmentação e, conseqüentemente, do consenso entre as classes,
materializadas pela “generosidade” dos setores das elites diante da miséria e pobreza de
58
- Segundo Marx (2001), o capital torna homens e mulheres em uma massa de trabalhadores que experimentam
e vivenciam uma situação comum e interesses comuns. Esse fato torna os trabalhadores em classe em-si, mas
ainda não classe para-si. Tal passagem se materializa por intermédio da luta e dos embates de classe, em que os
trabalhadores passam a defender e reivindicar seus interesses de classe. É nesse sentido que parto da perspectiva
que, ao se definirem como trabalhadoras em educação, e se inserirem no interior das lutas e organização político-
sindical historicamente construídas pela categoria, ampliam-se as possibilidades das trabalhadoras da educação
infantil construírem uma identidade política vinculada aos interesses e necessidades da classe trabalhadora. Tal
identidade política tem sido historicamente construída pelos trabalhadores em educação no interior do seu
trabalho (e das suas contradições) e na sua organização político-sindical como observam Canezin (1999), Ribeiro
(1987) e Souza (1996;1997).
107
adultos e crianças oriundos das classes populares (KHULMANN JR. 2001a e 2001b; FARIA,
2002; ROSEMBERG, 2002a; OLIVEIRA, 1996; KRAMER, 2001).
A materialização de uma educação infantil pública, gratuita e de qualidade,
socialmente referenciada, passa pela consolidação dessas instituições como lócus de trabalho,
onde uma equipe multiprofissional se organiza coletivamente para cuidar e educar crianças de
0 a 06 anos de idade, além de lutar e militar pela sua valorização e realização. A
compreensão de que a educação infantil seja um direito necessário e indispensável de pais e
mães trabalhadores e, sobretudo, direito das crianças pertencentes à maioria da população
brasileira significa a constituição desse espaço como um importante determinante na
constituição da identidade política das trabalhadoras que ali atuam.
As instituições formais de educação (centros de educação infantil, escolas,
universidades), no modo de produção capitalista, funcionam como uma instituição complexa e
contraditória que, ora reproduz as características da organização do trabalho próprio às
empresas capitalistas (CODO et.al., 1999; NOVAES, 1992) e da organização burocrática dos
aparelhos estatais (TRAGTENBERG, 2004), ora resiste às determinações da organização
capitalista do trabalho ao se conformar como espaço de produção e socialização da cultura e
do saber.
Evidentemente ali não se produz uma mercadoria imediata à percepção do
consumo, entretanto, o processo educativo tem uma função essencial, a de colaborar na
produção da principal mercadoria inerente ao capital, qual seja, a força de trabalho.
Como Silva Júnior (1993, p. 43) observa:
Embora as diferentes capacidades de trabalho que concorrem para a formação da
máquina produtiva no seu conjunto participem de maneira muito diferenciada do
processo de formação de mercadorias, todas essas capacidades de trabalho,
fundadas na utilização da mão ou da cabeça, subordinam-se por igual ao capital na
medida em que trocam seu trabalho pelo capital e reproduzem o dinheiro dos
capitalistas como capital.
É nesse sentido que o trabalho no setor de serviços, do qual a educação infantil
faz parte, não se constitui como atividade produtiva, mas dá suporte para que essa se realize.
O trabalho em serviços não dispõe de critério de economicidade tão claro quanto o
chamado “trabalho produtivo”. Ele é em grande parte descontínuo, atemporal e
difícil de normatizar como função técnica. O setor de serviços é responsável pela
produção das condições e os pressupostos institucionais e culturais específicos para
as atividades “produtivas” (segurança, conservação, defesa, vigilância,
certificação). (MASCARENHAS, 2002, p. 35-36).
108
Então, no sentido de reprodução das relações sociais do sistema do capital, as
instituições de educação infantil têm cumprido uma dupla função: 1) colaborar ou até mesmo
substituir a família no processo de educação das crianças menores de 07 anos, intensificando e
ampliando a formação do trabalhador desde cedo, ou seja, reproduzindo a força de trabalho;
2) cuidar dos filhos dos trabalhadores enquanto esses se lançam no mundo do trabalho
dedicadamente e integralmente. Esse processo de reprodução do capital, por meio das
instituições educativas, não ocorre sem contradições, que se materializam nos processos
educativos baseados em projetos qualitativamente referendados e na resistência dos sujeitos
que ali atuam. No entanto, a sua caracterização assistencialista reduz as possibilidades de
construção de um projeto pedagógico e, portanto, político, de uma formação que contribua
para a emancipação dos sujeitos desde sua infância.
Ainda que as leis tenham se modificado e as instituições de educação infantil
tenham alterado suas estruturas, se convertendo em estabelecimentos educacionais vinculados
aos sistemas de ensino, as trabalhadoras que ali atuam reproduzem, na prática e no discurso, a
função assistencial como primordial no atendimento das crianças
59
.
As contradições presentes no âmbito das práticas e do discurso das trabalhadoras
que atuam nas instituições de educação infantil manifestam o estágio de construção por que
passa esse campo de conhecimento e intervenção que, apesar de vir estabelecendo diretrizes
educacionais (oficiais e acadêmicas), institucionalizando as instituições a partir das normas e
estrutura dos sistemas de ensino no país, ainda não superou a herança da intervenção
assistencialista.
Tal herança incide num prejuízo na composição da identidade política de suas
trabalhadoras, visto que as relações decorrentes de uma intervenção assistencialista propõem
uma pedagogia do silêncio, da humilhação e da submissão das maiorias diante dos conflitos
sociais e das relações de poder decorrentes. Nesse sentido, o trabalho nessas instituições
direcionado a partir desse viés de assistência atinge os problemas imediatos das classes
subordinadas, mas, no entanto, servem como formas de reprodução do consenso e do
59
- Os trabalhos de Ongari e Molina (2003), Cerisara (2002) e Silva, I. (2001), apresentam as representações e
identidades que as profissionais atribuem as instituições e ao próprio trabalho, ainda muito arraigadas nas
concepções de assistência e guarda da criança, enquanto os pais trabalham. Alves (2002) aponta como as
referências do papel social atribuído às mulheres de mãe-esposa-dona-de-casa fazem parte do conjunto de
elementos identificadores do trabalho docente em educação infantil em Goiânia. Em uma primeira etapa dessa
pesquisa, que resultou em um trabalho monográfico de final de curso da pós-graduação em Educação Infantil
(latu sensu) FE/UFG, apresento algumas representações das trabalhadoras em educação infantil de Goiânia sobre
seu trabalho e os elementos centrais da construção da identidade profissional e política das mesmas, cuja
reprodução da lógica de guarda da criança e do assistencialismo compensatório são partes constituintes (SILVA,
2004).
109
escamoteamento dos conflitos entre classes. E mais: o trabalho nos termos da assistência
possui um vínculo claro com as diretrizes do trabalho precarizado, materializado pelo
voluntarismo, que isenta o Estado das políticas sociais e lança a responsabilidade para os
sujeitos.
Assim, a indefinição das funções que caracterizam as instituições de educação
infantil e, portanto, a identidade de suas profissionais conforma-se numa heterogeneização e
fragmentação do labor e das trabalhadoras que atuam nessas instituições. A dicotomia entre
assistência e educação na definição da função educativa das instituições é um dos elementos
que dificultam a construção de uma identidade política das trabalhadoras da educação infantil.
Identidade essa que passa pela compreensão de que a natureza de seus trabalhos evidencia
uma necessidade, e mais, um direito da maioria da população brasileira.
A questão da identidade política das trabalhadoras da educação infantil perpassa,
então, pela delimitação e conformação de uma determinada identidade das instituições de
atendimento educacional para crianças menores de 07 anos. Em traços gerais, já existem
apontamentos sobre os processos de constituição da identidade dessas instituições marcadas
pelo assistencialismo e pela precarização convivendo com exigências cada vez mais
elaboradas por parte das novas diretrizes políticas e da própria sociedade civil. Entretanto, é
necessário situar esses processos em uma determinada realidade sócio-histórica delimitada,
para não correr o risco de determinar generalizações distanciadas da prática social de
determinados sujeitos, instituições e conflitos.
Nesse sentido, é importante contextualizar as instituições investigadas durante a
pesquisa, objetivando apresentar a caracterização do atendimento educativo para as crianças
de 0 a 6 anos na cidade de Goiânia – ainda que de maneira preliminar –, especialmente
àquelas atendidas pela Secretaria Municipal de Educação-SME desta cidade.
A história das instituições de educação infantil em Goiânia segue a mesma
tendência da gênese dessa modalidade educativa no país. Caracterizadas inicialmente pelo
atendimento assistencialista e emergencial, as instituições de educação infantil se
configuraram numa complexa rede de instituições que envolvem diferentes objetivos e
natureza. O conjunto dessas instituições envolveu, e ainda envolve, uma grande rede privada
de caráter particular e/ou filantrópica, algumas poucas iniciativas do Estado (que já estão em
processo de transferência para o município) materializadas pelas políticas compensatórias de
finais da década de 1970, as instituições municipais e as conveniadas que envolvem os setores
privados, religiosos e o poder público. (BARBOSA et.al., 2005).
110
Ainda caracteriza essas instituições uma complexa divisão definida pela faixa
etária de atendimento, tais como os Centros de Educação Infantil e os Centros Municipais de
Educação Infantil que atendem toda a faixa etária de 0 a 6 anos, as creches que atendem as
crianças de 0
a 3 anos, as pré-escolas que atendem as crianças de 4 a 6 anos de idade e as
classes de alfabetização em escolas de ensino fundamental, que matriculam um número
considerável de crianças com 6 anos de idade. No caso de nossa investigação, foram
consideradas os Centros Municipais de Educação Infantil – Cmei’s, administrados pelo poder
público municipal.
A trajetória do processo de construção de uma rede de instituições de educação
infantil pela SME tem início somente na década de 1990, iniciando-se efetivamente no ano de
1998 com a incorporação de um número inicial de 13 instituições vinculadas à Fundação de
Desenvolvimento Comunitário – Fumdec, que seriam incorporadas pela SME no ano
posterior. Essa incorporação é resultante do novo ordenamento das políticas educacionais no
país que municipaliza o atendimento educacional da pequena infância.
Em 1998 a SME iniciou a preparação para a absorção das 13 unidades de Educação
Infantil sob a responsabilidade da Fumdec. Foi estruturada a Divisão de Educação
Infantil (DEI), no Departamento de Ensino, iniciando um conjunto de estudos e
discussões, sob assessoria da Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Goiás. Elaborou-se de uma proposta de Política de Atendimento para a Educação
Infantil – escrita em 1999, mas que não foi homologada – e realizou-se a formação
e qualificação da equipe responsável por ações de formação dos professores, de
acompanhamento e articulação da educação infantil na Rede Municipal de Ensino.
A equipe que compôs a Divisão era formada de professores da rede municipal que
se empenharam para atender às creches, chamadas então de Centros Municipais de
Educação Infantil (Cmeis), advindos da Fundação de Desenvolvimento
Comunitário (Fumdec), assim como os Centros de Educação Infantil (CEIs),
conveniados com a Secretaria de Educação. (BARBOSA et.al., 2005).
Iniciado o processo de municipalização das instituições de educação infantil, a
SME lida com um aumento significativo de Cmei’s sob sua administração, o que não ocorre
sem problemas. A tabela 2 apresenta um parâmetro da expansão do atendimento educativo
para crianças menores de 7 anos pela rede municipal de ensino de Goiânia.
Tabela 2
Ano 1999 2001 2003 2004 2005
Instituições de
Educação
Infantil na Rede
Municipal de
Ensino de
Goiânia
13
16
40
54
69
Fontes: Barbosa et.al. (2005); SME (2004).
111
No período entre 1999 e 2005, houve um acréscimo de aproximadamente 430%
no número de instituições de educação infantil diretamente administrada pela SME
60
,
geralmente com instituições de caráter religioso cedendo o espaço físico. Esse número não
vem sendo acompanhado da necessária qualificação de uma modalidade educativa
historicamente relegada à marginalidade (no sentido de estar à margem), à caridade e à
filantropia. Ao contrário, as diretrizes de expansão têm sido verticalizadas pelo discurso
neotecnicista das Organizações Multilaterais via consolidação política, econômica e cultural da
chamada comunidade epistêmica
61
(ROSEMBERG, 2002b), desconsiderando os avanços do
debate acadêmico e político (FARIA e PALHARES, 2000) e as reais necessidades e demanda
das crianças e de seus pais, muitas vezes escamoteadas pelo léxico neoliberal que assimila
parte do discurso progressista, velando o verdadeiro sentido dessas políticas, definidas por
Rosemberg (2002b) como educação para subalternidade.
Esse modelo de política educacional, que reproduz a subalternidade das nações
periféricas e dependentes e, principalmente, da classe que vive do trabalho nessas nações, tem
como fundamento a reprodução de modelos sem qualidade materializados pelo voluntariado e
pela precariedade, sendo
[...] fortemente influenciadas por modelos “não formais” a baixo investimento
público, propugnados por organismos multilaterais. No Brasil, essas propostas já
foram incorporadas em passado recente e estão ameaçando o presente atual. A partir
dos anos de 1970, essa influência proveio, especialmente da Unesco e do Unicef; a
partir dos anos de 1990, a maior influência provém do Banco Mundial
(ROSEMBERG, 2002, pp. 28-29).
Em Goiânia, é no contexto de plena vigência das políticas neoliberais (década de
1990) que se inicia a municipalização das instituições de educação infantil. Seguindo as
determinações legais da Carta Magna de 1988, do ECA de 1990 e da LDB de 1996, o poder
público do município de Goiânia inicia um processo de debate, elaboração de propostas
político-pedagógicas, formação e capacitação docente e de expansão da rede de atendimento às
60
- Esses números se referem apenas às instituições de educação infantil diretamente administrada pelo poder
público municipal como parte do seu sistema de ensino, desprezando, desse modo, o total de instituições em
regime de convênios (que em 2003 era em número maior do que as instituições mantidas pela SME) e as salas de
pré-escola em escolas municipais e conveniadas. Para maiores informações ver Barbosa et.al. (2005)
61
- Fúlvia Rosemberg (2001; 2002) apoiada no trabalho de Goussault (1993) chama por comunidade epistêmica
o conjunto de pesquisadores especialistas e experts do Banco Mundial e da UNESCO que definem e impõem
políticas para o campo educacional baseada em estatísticas, análises micro e macroeconômicas privilegiando o
empírico e estabelecendo prospectivas de avanços no campo econômico por meio de reformas educacionais, no
sentido de integrar, competitivamente, no mercado globalizado. No geral, esses agentes gozam de prestígio nos
governos nacionais e também negociam as condicionalidades (STIGLITZ, 2002) dos “agiotas globalizados”
para os Estados periféricos, atacando as políticas sociais, dentre elas as educacionais.
112
crianças menores de 7 anos assumindo as instituições em poder do Estado, num processo lento
e complicado, e construindo outras unidades. A municipalização da educação infantil em nossa
realidade iniciou um processo contraditório de “substituição” do tradicional modelo
assistencialista, conveniado, privado e filantrópico. Contraditório porque ainda permanece a
perversa lógica de transferências dos fundos públicos para a iniciativa privada por meio de
convênios e parcerias.
Durante a primeira fase da investigação, dentre as instituições investigadas, três
(3) estavam alocadas no interior de um prédio de igreja, mantendo estreitas relações de
colaboração a partir da perspectiva da “doação” e da “caridade”. Inclusive, todas as diretoras
das quatro instituições pesquisadas durante a segunda fase de investigação afirmaram,
informalmente, que os Cmei’s só conseguem administrar uma alimentação de qualidade
nutricional para as crianças por causa das constantes doações de igrejas, pequenos empresários
dos bairros, comunidade e, até, de pessoas que cumprem penas alternativas com prestação de
serviços para a comunidade. Essa realidade revela, em parte, o quanto as instituições de
educação infantil ainda estão vinculadas à ideologia e às práticas vinculadas ao campo do
assistencialismo, da caridade e da filantropia. Esse tipo de relação com a comunidade vai ao
encontro das perspectivas das políticas neoliberais e da terceira via reformista de minimização
do Estado na esfera das políticas sociais, lançando para a “sociedade civil”, para as
“organizações sociais” ou o chamado “terceiro setor” a responsabilidade de arcar com direitos
dos trabalhadores e de seus filhos. Dessa feita, enquanto o apelo à caridade e solidariedade tem
sido o mote da publicidade oficial, o fundo público é orientado para o capital internacional e
nacional
62
.
Pari passu essa expansão da rede de instituições de educação infantil vem sendo
realizada às custas da precarização do trabalho das professoras e agentes educativos. A
explosão do número de instituições de educação infantil na rede municipal de ensino em
Goiânia vem atendendo uma série de questões, muitas vezes, em detrimento de uma
perspectiva de qualificação do trabalho e do atendimento ali realizado. As formas de expansão
dessas instituições, via municipalização determinada pela legislação educacional, ainda vem
atendendo mais a interesses “clientelistas de caráter puramente político-partidário, de
interesses ‘bairristas’, religiosos, e porque não dizer teórico-ideológicos” (BARBOSA et.al.,
62
- Segundo Gentili (1996) uma das principais características das políticas neoliberais é a retirada do Estado de
setores estratégicos das políticas sociais (educação, saúde, moradia, previdência) e o alocamento dos recursos do
fundo público para os setores privados. Ridenti (1995) observa o caráter de classe da disputa sobre o fundo
público, cuja orientação é definida pela correlação de forças das classes sociais e de suas capacidades de colocar
seus interesses e necessidades na ordem do dia da intervenção estatal.
113
2005) do que propriamente da efetivação dos direitos das crianças e das famílias,
especialmente das classes populares.
Um outro condicionante da expansão quantitativa das instituições de educação
infantil (não só em nossa realidade local, mas em todo o país) é a implantação dos pacotes de
políticas educacionais imputadas pelos Organismos Multilaterais, especialmente o Banco
Mundial e a UNESCO. Essas políticas são baseadas no modelo massificado de instituição,
precarizada e emergencial.
Esse modelo de políticas para a educação infantil que retoma as concepções
assistencialistas e compensatórias de atendimento educacional para a pequena infância,
caracterizado pelo baixo custo e pela precariedade decorrente dessas condições, vem sendo
capitaneado pelos organismos internacionais, especialmente o Banco Mundial, configurando-
se como base de sustentação da expansão quantitativa dessas instituições recentemente. Esse
modelo de política para o setor reproduz o seu caráter excludente e perverso, repetindo a
perspectiva de uma educação “pobre para pobre” porque “[...]a expansão da EI vem sendo
custeada principalmente pelas famílias, pelas educadoras (por causa de seu baixo salário) e
pelo governo municipal, com conseqüências sobre a qualidade da oferta. Em decorrência, a EI
brasileira vem sendo custeada pela própria criança.” (ROSEMBERG, 2003, p. 57). Desse
modo, a ampla parcela da população que não vem tendo acesso à instituições de educação
infantil com um projeto pedagógico de qualidade continua excluída desses direitos.
Ao vento dos tempos e dos governos, as instituições assumem um determinado
papel, muitas vezes contradizendo discursos e práticas, outras vezes reafirmando velhas
práticas clientelistas e político-partidárias. Ao longo das três gestões do município desde a
promulgação da LDB/1996, as políticas para a educação da infância na rede municipal se
caracterizaram por mudanças constantes, de acordo com as diretrizes do poder em vigência.
No trabalho de Alves (2002), realizado no ano de 2001, é demonstrado que as
projeções de um projeto de qualidade para as instituições de educação infantil em Goiânia têm
sido, sucessivamente, abortadas a cada novo governo que toma posse no Paço Municipal. O
início da implantação da municipalização das instituições de educação infantil no ano de 1998
foi balizado por um processo de relativa abertura da SME para o debate e elaboração de
projetos, leis e formação para professores, muito embora, muito pouco tenha sido
implementado como afirmam Barbosa et.al. (2005).
Com a entrada de um novo governo em 2001, houve um recuo das propostas e
das conquistas até então conseguidas mediante o conflito de grupos políticos e de concepções
114
de infância e de suas necessidades educativas. Barbosa et.al. (2005) observam e analisam o
problema do seguinte modo:
Ainda durante o ano de 2001, as ações da Secretaria direcionaram-se para uma
avaliação, visando uma re-elaboração de toda a Proposta Político-Pedagógica da
SME para a gestão 2001-2004. Com isso, outras ações também foram
interrompidas além da proposta de currículo, inclusive a formação continuada.
Houve substituição de toda equipe da DEI, sem que houvesse diálogo e
reconhecimento dos esforços empreendidos anteriormente na constituição da
educação infantil como um campo específico. (grifos meus).
Esses fatos apontam os indícios históricos de como o Estado brasileiro e suas
unidades de federações caracterizam as políticas para a educação infantil de maneira
secundária e emergencial. Estas formas atendem muito mais as conveniências e negociatas de
gabinete e também a promoção do pacto social em momentos de convulsão e mobilização dos
setores oprimidos da sociedade, do que efetivamente aos direitos das maiorias a políticas
sociais de educação e assistência. Sob o forte aspecto de inconstância e atendimento
emergencial de uma parte da população mais sujeita à degradação da pobreza material, a
implantação das instituições de educação infantil tem sido materializada (KRAMER, 2001).
Essa característica tem sido um dos fatores que ainda mantém a educação infantil como um
“problema” e/ou um “mal necessário”, o que perspectiva a manutenção de sua marginalização
no interior do, não menos problemático, sistema educacional brasileiro
63
.
A feição assistencialista e emergencial das instituições de educação infantil
expressa o lado perverso das políticas educacionais que, historicamente, no Brasil, ainda não
se efetivou como direito social para as amplas maiorias – muito embora as legislações a
coloquem dessa forma. Estas têm sido extraordinariamente flexíveis, atendendo aos mais
variados interesses de projetos políticos partidários, cuja única centralidade é a permanência
do caráter classista e dual da educação escolar brasileira, seja em que nível for. Não há
política de Estado que garanta a permanência de um eixo de financiamento e gestão
democrática da educação pública no país; e a educação infantil é, por sua vez, uma das
modalidades mais afetadas por essas formas de se conceber a coisa pública em nosso país.
63
- Uma série de investigações sobre políticas educacionais e sobre a história da educação brasileira abordam as
limitações de organização tardia do sistema educacional brasileiro e a disputa histórica dos blocos históricos pela
manutenção ou superação dos limites da educação pública no país. O conflito entre interesses oligárquicos, da
burguesia nacional, de setores da igreja, das classes médias, especialmente os militares, do capital mundializado
e a classe trabalhadora juntamente com alguns setores médios pela educação no país permanece em vigência e
têm determinado, em boa medida, os rumos da educação nacional. (ver: GERMANO, 2005; ROMANELLI,
1997; RIBEIRO, 2003; GENTILI (org), 2001; PARO e DOURADO (orgs), 2001; VIEIRA e FREITAS, 2003).
115
Essa inconstância e flexibilidade do atendimento educativo da infância de 0 a 06
anos de idade se constitui como elemento marcante em Goiânia. Exemplo disso são as
medidas tomadas pela gestão municipal de Íris Rezende, que tomou posse recentemente (no
ano de 2005). O impacto das políticas de redução de gastos com a educação infantil pôde ser
percebido no interior das instituições que foram investigadas.
A redução do quadro de funcionários, já deficitário e insuficiente, veio junto com
a exclusão de uma função nos Cmei’s que era o trabalho executado na lavanderia. Por se tratar
de uma instituição que lida com crianças pequenas que permanecem praticamente o dia todo
no Cmei e demandam também uma série de cuidados higiênicos – pois se sujam em
atividades, ao fazer suas necessidades fisiológicas, ao utilizar os lençóis nos horários de
descanso etc. – havia nas instituições uma trabalhadora responsável pela higiene das roupas
das crianças e da instituição
64
por turno. Essa mudança provocou uma série de contratempos
no interior das instituições, gerando custos para elas e para os pais. Para as instituições
porque, segundo a diretora do Cmei “Flores do Campo”, as máquinas de lavar foram
adquiridas com, os já parcos, recursos destinados para o custeio e também porque perdeu
funcionárias do seu já precário quadro de pessoal; para os pais porque, além de,
posteriormente, haver a necessidade de adquirir uniformes para seus filhos, já que as
instituições não vão poder arcar com isso, passaram a ter que levar roupa de cama limpa para
a instituição.
Além dos custos materiais e operacionais, tal iniciativa provocou uma
intensificação do trabalho nas instituições de educação infantil, visto que o decréscimo de
trabalhadoras no quadro de pessoal das instituições acarreta na acumulação de funções por
parte de quem fica. Essa situação tem semelhanças com a precarização do trabalho envidada
pela reestruturação e flexibilização do mundo do trabalho (ANTUNES, 2002; 2003; 2005),
cujo principal elemento é a objetivação vertical da subsunção real do trabalho ao capital por
meio da intensificação do trabalho e da extração da mais-valia, caracterizada pelo incremento
dos processos de reengenharia da produção e de novas formas de gerenciamento do trabalho
baseado no padrão toyotista.
As formas flexibilizadas e precarizadas do trabalho não se circunscrevem apenas
ao mundo produtivo. Segundo Braverman (1987), a crescente necessidade de prestação de
serviços ocorrida em decorrência dos efeitos das transformações envidadas pelo capital
64
- Antes da demissão ou remoção das funcionárias da lavanderia, os Cmei’s investigados mantinham os
uniformes das crianças na instituição. As crianças trocavam de roupa ao chegar pela manhã vestindo o uniforme
e se trocavam novamente ao ir para casa no final da jornada, deixando os uniformes na instituição, que
permaneciam limpos, pois eram lavados pelas funcionárias.
116
monopolista ocasionou um crescimento considerável desse setor, que passa a empregar o
excedente de força de trabalho gerado pelas mesmas transformações.
Para Braverman (1987), o capital monopolista do século XX se apropria dos
serviços – antes tarefas não produtoras de mais valia, ao contrário, responsável pelo dispêndio
de parte do excedente extraído – como trabalho gerador de valor. Esse autor observa que, para
o capital, a forma tangível do resultado do trabalho não importa, mas sim a sua forma social,
ou seja, o modo em que a força de trabalho humano é utilizada para expropriação do
excedente por meio de trabalho não pago. Os trabalhadores que atuam na chamada economia
de serviço são, geralmente, caracterizados pela feminização e todas as implicações
decorrentes dessa condição, baixa qualificação e taxas de desemprego elevadas que desnudam
a ideologia que aponta esse setor como uma “ordem superior de serviço” (BRAVERMAN,
1987, p.315).
Embora o trabalho no serviço público não esteja diretamente vinculado à
produção da mercadoria, possuindo esferas próprias de relações de trabalho, a lógica mercantil
propugnada primeiramente pelo padrão fordista/taylorista de administração pública e
educacional, assumido durante a década de 1960, e, mais tarde, pelas políticas neoliberais para
a educação tem, como um dos seus pressupostos, a inserção dos modelos estandartizados da
gestão da empresa privada no serviço público, principalmente no que diz respeito ao controle
do trabalho e redução eficiente dos custos da máquina pública. Essa perspectiva tem resquícios
extremamente perniciosos no campo educacional, mediados pela implantação da avaliação e
concorrência entre os trabalhadores da educação, pela intensificação e precarização do trabalho
nas instituições educacionais, bem como pela redução da qualidade do trabalho educativo para
as classes populares, perspectivando esse sob uma concepção restrita e instrumental
(OLIVEIRA, 2003, 2001; SILVA, M. 2001; GENTILI e FRIGOTTO, 2002).
Por ser instituições de tempo integral, os Cmei’s sofrem os impactos das
políticas de contenção de gastos com mais intensidade do que as escolas de ensino
fundamental. Nas escolas, o aumento de atribuições de professores e funcionários é causado
pelo contemporâneo fenômeno do abandono do magistério (CODO et.al., 2003), da redução
do quadro de pessoal nas administrações públicas e da aposentadoria dos trabalhadores e
trabalhadoras, entre outras questões. Enquanto que nas instituições de educação infantil a
relação intrínseca entre cuidar e educar e toda a matriz ideológica do assistencialismo
vinculada a essa questão, além do problema da falta de regulamento específico do trabalho
das agentes educativos e da caracterização desse espaço como lócus, exclusivo, de trabalho
de/para mulheres – a quem é atribuído, ideologicamente, o papel de mãe-dona-de-casa-
117
esposa, naturalizando as relações sociais de gênero e do poder patriarcal – têm servido de
artifícios que justificam o excessivo trabalho ali realizado. Nessas instituições, quem educa
também limpa, lava, banha crianças, serve alimentação, faz trabalhos na comunidade, estuda,
organiza trabalhos para amostras, administra remédios, indica serviços sociais para os
pais...
65
mas, questiona muito pouco suas condições objetivas de trabalho.
Além da precarização e flexibilização do trabalho nas instituições de educação
infantil como característica historicamente marcante (CAMPOS, 1994; KRAMER, 2001;
SILVA, I. 2001; BARBOSA, 1999; ALVES, 2002) e permanente dessa modalidade educativa,
da qual as políticas de minimização do Estado e mercantilização dos direitos conquistados
pelas maiorias estrategicamente lançam mão, a terceirização dos serviços e o deslocamento dos
recursos públicos para fins privados têm sido, não só, uma prática comum, mas também
incentivada.
Com base na pesquisa documental sobre as políticas para a educação infantil em
Goiânia, Barbosa et.al. (2005) observam que permanecem nessas
[...] uma tendência em estabelecer convênios/parcerias entre a SME e instituições
privadas. Essa prática, antiga no processo de constituição do campo de atendimento
da infância no Brasil, é assumida no Regimento dos Cmeis da Rede Municipal de
Educação de Goiânia/2004. nota-se que os projetos dos Centros não serão
necessariamente assegurados com o apoio dos recursos do próprio município, posto
que o Orçamento Anual, votado nos órgãos competentes não prevê verba específica
para ser alocada na Educação Infantil, apesar da LDB deixar claro a
responsabilidade de cada município para essa etapa educacional. O poder público,
neste caso, não pode deixar se assumir a responsabilidade e garantir o direito
necessário ao exercício da cidadania, à educação.
E concluem afirmando que
[...] as discussões políticas acerca dessa etapa educativa ainda contemplam como
um “problema” e um grande desafio político para as prefeituras em geral e,
especificamente, para as secretarias municipais de educação. No caso específico das
instituições de Educação Infantil, observa-se que os serviços passam a ser
terceirizados. Muitas vezes, a iniciativa privada assume o atendimento, mas o
dinheiro público é repassado às empresas. (ibid.).
Essa perspectiva efetiva o processo de mercantilização e privatização do espaço,
das políticas e da própria cultura pública na medida em que, ao atender as determinações
ideológicas e políticas das organizações “unilaterais” do capital globalizado, toma o público
65
- As atividades que apresento foram observadas no cotidiano das instituições investigadas e foram explicitadas
pelos depoimentos das professoras e agentes educativos durante as entrevistas.
118
da forma generalizada e abstrata em detrimento do estatal sob a fórmula do público não-
estatal, atingindo, especialmente, as camadas mais afetadas pela produção destrutiva do
capital
66
que dependem das políticas sociais para atender suas necessidades mais imediatas de
reprodução da vida.
Juntamente à política socioeconômica de destruição do Estado e de suas parcas
políticas públicas
67
, as forças hegemônicas lançam mão também de políticas culturais,
educacionais e ideológicas, disseminadas pelos canais de comunicação, informação e
formação (mass media, educação formal, instituições...) visando atribuir ao Estado (sinônimo
da esfera pública) as mazelas da crise estrutural que o capital vem enfrentando desde meados
de 1970 (SADER e GENTILI, 2000), e superestimando a capacidade de ação da esfera
privada. Esse ideário configura as teses do Estado Mínimo e do misticismo das “livres” e
“invisíveis” mãos do mercado;
A idéia-força balizadora do ideário neoliberal é a de que o setor público (o Estado)
é responsável pela crise, pela ineficiência, pelo privilégio, e que o mercado e o
privado são sinônimo de eficiência, qualidade e equidade. Desta idéia-chave advém
a tese do Estado Mínimo e da necessidade de zerar todas as conquistas sociais,
como o direito a estabilidade de emprego, o direito à saúde, educação, transportes
públicos, etc. Tudo isso passa a ser comprado e regido pela férrea lógica das lei do
mercado. Na realidade, a idéias de Estado Mínimo significa o Estado suficiente e
necessário unicamente para os interesses da reprodução do capital. (FRIGOTTO,
2001, pp. 83-84, grifos do autor).
A ofensiva sobre o Estado e as políticas culturais são forjadas no horizonte de
substituir uma ética coletiva baseada na solidariedade, na memória coletiva, na organização
das classes populares, na conquista da cidadania objetivando o projeto de consolidar a
emancipação humana pelo credo do mercado, da competição, eficiência e do darwinismo
social. Segundo Suárez (2001, p. 256), essas ações se constituem em um projeto ideo-político,
por ele denominado de modernização conservadora, cujo papel central é a formação de um
novo senso comum baseado na ética do mercado e na irracionalidade pós-moderna que
reafirma o individualismo narcísico, a vontade, o efêmero, o presentismo e a negação da
condução racional do destino da vida social (CHAUÍ, 2001).
66
Lógica estrutural do capitalismo do final do século XX que reproduz a ordem sóciometabólica do sistema do
capital estabelecendo uma destruição dos meios naturais que aponta para a própria destruição extinção da espécie
humana; e também, aprofunda as condições de pobreza e desumanização daqueles que vivem da venda de sua
força de trabalho, principalmente pela “naturalização” do trabalho precário e do desemprego estrutural.
(ANTUNES , 2002).
67
- É preciso considerar o contexto brasileiro quando se coloca a questão das políticas neoliberais, visto que, um
dos principais focos de ataque destas é o Estado de Bem estar que, sequer, foi implementado em sua inteireza no
país, como afirma Buffa (2003). Paolo Nosella (1999) chega mesmo a relativizar a questão do neoliberalismo no
Brasil, pondo em dúvida a sua materialização, pois, de acordo com sua exposição, nem mesmo a República
liberal conseguiu se efetivar no contexto brasileiro.
119
Esse é o contexto de afirmação e negação da nova forma de conceber a educação
infantil e a própria infância que se materializa, pelo menos nas letras das leis, em objetivos
historicamente construídos pelos setores comprometidos com a infância e com os
trabalhadores. Afirmação porque há todo um discurso positivo – baseado nas ciências,
especialmente as psicológicas, neurocomportamentais, pedagógicas e sociológicas, bem como
nas políticas oficiais e nos documentos dos organismos multilaterais – sobre a educação da
infância em espaços coletivos distintos da família; e negação porque o discurso é
“humildemente” materializado pelas políticas focalizadas do Estado Mínimo, que atende
“pobremente a pobreza” relegando direitos sociais ao mercado de serviços.
A educação infantil mal se constitui como direito garantido e assegurado pelo
Estado tem que lidar com uma situação adversa de deserção deste intermediada pela
desertificação neoliberal (ANTUNES, 2004), cuja maior expressão é a falta de recursos
exclusivamente alocados para estas, como diagnostica uma série de estudos sobre o
financiamento para a área.
É nesse contexto que se constitui o atendimento da infância em instituições
coletivas de educação para as crianças menores de 7 anos, distintas das famílias, de maneira
sistematizada e organizada a partir dos preceitos da legislação educacional na cidade de
Goiânia.
120
Capítulo 3
Trabalho, educação infantil e identidade política
A questão da elaboração de uma identidade política das trabalhadoras da
educação infantil – e por parte de trabalhadores e trabalhadoras em educação, de maneira
geral – nos remete ao esforço de compreensão das relações sociais em que esses sujeitos
elaboram representações sobre si mesmos, sobre os grupos em que estão inseridos e sobre o
“outro”. Desse modo, resulta necessário analisar os processos, estruturas e relações que são
constituídos e constituintes do trabalho docente no atual contexto, tais como: a feminização
e/ou sexualização do trabalho docente; a proletarização e a aproximação dessa categoria
profissional em relação às classes operárias, tanto em termos objetivos como subjetivos; bem
como os elementos ideológicos de identificação dessa atividade em relação a vários modelos
“vocacionais” (religiosos, de gênero, de índole e moral caritativa).
O trabalho docente aqui é compreendido como uma das facetas do trabalho, que
se objetiva pelas mediações das circunstâncias determinadas de diferentes particularidades
históricas. Assim, o trabalho docente representa o papel em que determinados indivíduos
exercem, de forma profissional (professoras e professores), o ato de produzir conscientemente
a humanidade construída social e historicamente em cada indivíduo singular.
Essa definição do trabalho docente vai ao encontro da concepção de trabalho
educativo, elaborado por Saviani (2000), que compreende essa prática social como ação
intencional que se materializa não só como exigência do e para o trabalho, mas ela própria (a
prática educativa) se constitui como um processo de trabalho.
Entretanto, é necessário explicitar a que tipo de trabalho esse autor se refere, no
sentido de não deixar margem, nem para as interpretações mecanicistas que buscam
interpretar o trabalho docente a partir da transposição dos conceitos de trabalho marxistas
(trabalho: produtivo X improdutivo, abstrato X concreto) sem as mediações necessárias
referentes às especificidades dessa prática social, ou mesmo para as críticas a respeito da
identificação do ato educativo e do magistério como trabalho que entende o trabalho apenas
pelas chamadas mediações sóciometabólicas de segunda ordem, isto é, pelas determinações
alienantes e alienadas do capital sobre o trabalho, ignorando o trabalho enquanto categoria
ontológica.
Saviani (2000, p. 16) identifica o trabalho educativo e, portanto, a intervenção do
trabalho docente como “trabalho não-material” em que o ato de produção e o produto não se
121
separam; a produção e o consumo dos processos educativos ocorrem simultaneamente. Para o
autor, o “trabalho não-material” se refere à “[…] produção de idéias, conceitos, valores,
símbolos, hábitos, atitudes e habilidades. Numa palavra, trata-se da produção do saber, seja do
saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana.”.
Entretanto, essa atividade, como as demais ações humanas, é realizada de acordo
com determinadas circunstâncias históricas e todos os condicionantes que essas
determinações incidem sobre o trabalho. Desta forma, os elementos objetivos e subjetivos que
estão presentes na materialização do trabalho docente são marcados pelas relações sociais de
classe e de gênero. Essa é, então, uma profissão extremamente degradada, marcada por
processos alienantes e pela divisão técnica e social do trabalho, exercida mediante péssimas
condições de trabalho – falta insumos pedagógicos, prédios mal-estruturados, salas insalubres
e hiper-lotadas, formação insuficiente e precária, emprego temporário – e salários aviltantes
diante das crescentes exigências e da quantidade de investimento necessário à sua reprodução
como força de trabalho (formação superior inicial e permanente, cursos, livros...). Junta-se a
isso o fato de que essa é uma profissão que tem se constituído pela presença maciça de
mulheres, que carrega em si todas as limitações provocadas pela divisão sexual do trabalho e
pelas relações sociais de domínio de gênero.
Essas importantes questões, expressas pelas representações e análises sobre o
magistério, compõem, assim, uma conformação complexa de imagens, idéias, pensamentos e
valorações atribuídas e auto-construídas, no sentido de arquitetar uma identidade docente que,
ao fim e ao cabo, é também uma identidade politicamente situada. Portanto, a configuração de
uma identidade política é sempre um processo coletivo que envolve subjetivação das
condições objetivas de vida e trabalho e também a objetivação de projetos e metas construídos
pela e na coletividade. Como observa Mascarenhas (2002, p. 62):
O trabalho representa para o indivíduo a consciência de pertencer a determinado
grupo social e a carga afetiva que isso implica. Um indivíduo se identifica como
professor, carpinteiro ou operário e isso significa pertencer a determinado grupo,
valorizar-se, ser valorizado, situar-se no mundo de alguma forma, estabelecendo
relações consigo e com o outro. Não se pode menosprezar o papel que o trabalho
exerce na identidade do trabalhador. Não é só a questão da garantia da sobrevivência
que está em jogo quando se trata de trabalho. Está também em jogo um sentimento
de pertença social e de valorização, inclusive auto-valorização.
Nesse sentido, as mediações do trabalho docente são elementos fundamentais na
elaboração da identidade política das trabalhadoras em educação infantil. Tais mediações são
aqui compreendidas da seguinte forma: o caráter histórico do trabalho docente; as condições
122
objetivas e subjetivas das trabalhadoras da educação infantil; o processo de assalariamento e
proletarização das professoras e professores e a conseqüente aproximação dessa categoria do
restante da classe trabalhadora, em termos de condições de vida e trabalho (os baixos salários e
a precariedade do emprego); e as formas de organização e luta políticas (sindicalização).
3.1 As contradições do trabalho docente: “vocação”, feminização/sexualização, proletarização
e ação político-sindical
A produção de conhecimentos no âmbito da educação tem destacado os diversos
modos em que as relações sociais e a educação, escolarizada ou não, mantém contraditórias
relações mediadas pelos conflitos essenciais que caracterizam as sociedades modernas, qual
sejam, as lutas de classes
68
. Nesse sentido, destacam-se os estudos que buscam compreender o
papel dos modernos sistemas de ensino e das suas instituições na reprodução das relações
sociais, dos valores, dos hábitos, das formas de pensamento, enfim, da ideologia e práticas
inerentes e necessárias ao modo de produção capitalista.
Desse modo, muitos estudos no campo educacional têm se caracterizado pela
abordagem dos fenômenos históricos, sociais e filosóficos e suas relações com a educação de
uma maneira ampliada e na sua forma particular de educação escolar. A investigação,
produção de conhecimento e socialização do debate educacional passam a perceber as
múltiplas determinações que constituem o fenômeno educacional para além dos muros das
instituições escolares.
No Brasil esse movimento é impulsionado, especialmente, em finais da década de
1970, quando da crise de hegemonia do bloco histórico dirigido pelas forças militares do país.
O contexto de extrema repressão aos movimentos contestatórios e reivindicatórios, de
agravamento das condições socioeconômicas das maiorias, da demasiada influência dos
interesses econômicos sobre o sistema educacional brasileiro, bem como da resistência dos
setores oprimidos, foi o caldo cultural que gerou uma série de investigações, publicações,
eventos e debates sobre a função social da educação e das instituições educativas. Esse é
também o período em que os próprios trabalhadores em educação começam a se organizar
politicamente, transformando as pacíficas e corporativas associações de professores em
sindicatos combativos.
68
- Embora seja reconhecível o fato de que as sociedades modernas engendram uma série de conflitos sociais,
em geral marcados por elementos culturais, as reflexões contidas nesse trabalho são norteadas pela centralidade
categórica e social do trabalho e das contradições subjacentes ao conflito capital x trabalho, dado o papel
estrutural que essas categorias e práticas exercem na conformação e confrontação diante da sociabilidade do
sistema do capital.
123
Ainda no âmbito da produção de conhecimento, joga um papel fundamental na
perspectiva de compreender as relações entre condicionantes socialmente determinados,
educação e instituição escolar, a influência de determinadas teorias do conhecimento,
especialmente aquelas de cariz fenomenológico e marxista que buscam superar o paradigma
hegemônico positivista na produção do conhecimento em educação (TRIVIÑOS, 1987;
GATTI, 2002). As teorias da educação, baseadas nessas referências, partem da contribuição de
matrizes do pensamento antropológico, histórico, sociológico e filosófico, no sentido de
desvelar as determinações existentes entre sociedade, educação e instituições escolares. O que
marca esse debate (especialmente entre meados da década de 1970 e final da década de 1980)
é a denúncia das formas ideológicas e conservadoras das estruturas sociais que a educação
escolarizada materializa em suas práticas. O economicismo presente nas políticas
educacionais, as metodologias reducionistas e unilaterais, a reprodução da ideologia e cultura
dominantes e dos comportamentos necessários à produção e reprodução capitalistas são alguns
dos temas que a pesquisa em educação busca compreender nesse momento.
Com o amadurecimento do debate e re-instauração das “liberdades
democráticas”
69
no país, já na década de 1990, aponta-se uma tendência de produção de
conhecimento que tem como diretriz o anúncio de propostas políticas e pedagógicas tanto no
interior do debate acadêmico como nos próprios movimentos sociais. Tais proposições podem
ser classificadas sumariamente sob duas vertentes: a primeira, vinculada à perspectiva social-
democrática, que busca apontar “caminhos possíveis” de “melhoria na qualidade da educação”
sob os marcos do capital. Aliás, os interesses do capital transnacionalizado passam a ser a
referência central das propostas articuladas a essa perspectiva, produzidas tanto pelos
intelectuais em retirada
70
como pelos sindicatos debilitados e cooptados em virtude da
ofensiva neoliberal; a segunda vertente, e cada vez mais escassa, se caracteriza pela
perspectiva de aliar conhecimento e intervenção nos diversos espaços do conflito social aliada
à perspectiva da classe trabalhadora, isto é, articulando a educação à luta pela emancipação
humana. Nesse sentido, constituem essa perspectiva, a crítica aberta, sistemática e rigorosa
contra as políticas, ideologias e relações sociais do capitalismo contemporâneo, a articulação
69
- O termo “liberdades democráticas” está entre aspas em virtude dos limites do processo de redemocratização
do país configurado na perspectiva de uma revolução passiva nos termos gramscianos, ou seja, uma transição
pelo alto (GERMANO, 2005) que visou atenuar a crise de hegemonia do estado de recessão sem, no entanto,
atingir as estruturas da organização societal.
70
- Termo cunhado por James Petras (1996) para designar o movimento de cooptação sofrido por uma parte
significativa de intelectuais que, outrora, se autoproclamavam marxistas e revolucionários e agora vacilam e
capitulam diante dos interesses e teses “pós-modernas” do capital. Muitos, inclusive, tornando-se agentes das
instituições capitalistas, consultores técnicos e governantes neoliberais.
124
da educação junto aos partidos e movimentos sociais contra-hegemônicos e a produção de
conhecimento e intervenção social orientada por uma atitude explicitamente anticapitalista.
Embora o debate pedagógico brasileiro venha assumindo, desde então, teorias
mais complexas para compreender a educação e a realidade social, alguns dos sujeitos centrais
dos processos educativos nas instituições educacionais só recentemente têm merecido uma
atenção mais aprofundada. Falo aqui dos trabalhadores da educação e, mais especificamente,
os trabalhadores docentes. A própria categoria “trabalhadores docentes” é um termo
recentemente elaborado em função das determinações do capital sobre a totalidade do trabalho
social e de seus impactos sobre o trabalho assalariado no setor de serviços, dentre os quais
aquele exercido nas instituições de educação infantil, nas escolas de ensino fundamental e
médio e nas universidades.
As muitas determinações sobre o trabalho de professores e professoras, além dos
condicionantes históricos que vêm conformando esse ofício, têm caracterizado esses
indivíduos sob as mais diferentes conceituações: de homens de fé responsáveis por professar
os desígnios divinos à correia de transmissão do Estado capitalista; de professores com status e
reconhecimento social mediados pelo poder do saber e do exercício de um trabalho vinculado
ao lado intelectual do trabalho à professora “naturalmente” vocacionada pelos “dons maternos”
para a socialização das novas gerações; de professorinhas dóceis, respeitosas e amáveis às
trabalhadoras assalariadas organizadas politicamente em sindicatos...
Essa transformação contínua da identidade de professores e professoras, ao longo
da modernidade, tem características semelhantes nas diferentes nações ocidentais, sejam elas
economicamente hegemônicas ou periféricas. Essas semelhanças podem ser percebidas em
estudos históricos e sociológicos sobre o trabalho docente, realizados na Inglaterra e Estados
Unidos (APPLE, 1987; 1988), em Portugal (NÓVOA, 1991), na Espanha (ENGUITA, 1989) e
no Brasil (HYPÓLITO, 2001; COSTA, 1995; NOVAES, 1992; LOURO, 1989; 1997;
BRUSCHINI e AMADO, 1988; ARROYO, 1980; OLIVEIRA, D. 2003).
A constituição das instituições educacionais (escolares e não-escolares),
juntamente às determinações da igreja, num primeiro momento, e do Estado moderno,
posteriormente – que se consolida com o desenvolvimento da sociedade moderna e do modo
de produção capitalista –, conformam-se como aspectos estruturantes da atividade docente,
forjada como profissão no interior das relações sociais nas sociedades modernas.
As instituições da igreja e do Estado se configuraram, e ainda se constituem,
como elementos mediadores da constituição do trabalho docente. Entretanto, estes se
configuram como agentes externos que atuam sobre os professores e professoras de acordo
125
com seus interesses e necessidades de manutenção e ampliação da hegemonia de determinados
grupos e classes sociais sobre as outras. Essas mediações externas conflitam e convergem, num
movimento contraditório, com os aspectos internos definidos pelos próprios professores, em
suas formas associativas.
O movimento contraditório de gênese e desenvolvimento do trabalho docente
imbrica uma série de fatores políticos, econômicos, sociais, culturais e ideológicos que
conformam as práticas sociais e pedagógicas nas instituições educacionais, das quais emergem
as categorias explicativas que buscam interpretar o trabalho educativo e a profissão de ensinar.
Essas categorias só podem se configurar como instrumental teórico-metodológico de leitura da
realidade concreta sobre o exercício do magistério, na medida em que representam as ações de
sujeitos concretos que, ao exercer a atividade de ensinar no interior das instituições escolares,
elaboram, constroem, reconstroem, atribuem significados e re-significam o trabalho docente.
As produções teóricas acerca do trabalho educativo e trabalhadores docentes
apontam uma série de conceitos que buscam explicar o “ser” professor e professora e também
o “dever ser”. Embora o debate sobre as características e saberes necessários à atividade de
ensinar seja fundamental – especialmente nas análises e discussões afetas à questão da
formação acadêmica de professores – para a compreensão do ofício docente, o presente
trabalho busca destacar aquelas categorias que identificam a constituição sócio-histórica do
trabalho docente no âmbito da sociedade capitalista; são elas: vocação,
feminização/sexualização da profissão, o processo de proletarização e a ação político-sindical.
O fato de elencar essas categorias não significa que se busca interpretar o trabalho
docente e os sujeitos que desenvolvem essa atividade de acordo com tipos ideais pré-
estabelecidos, ou que sejam conceitos a priori em que se busca “encaixar” o material empírico
obtido por meio da investigação de campo. Ao contrário, essas categorias foram se tornando
ferramentas analíticas do objeto em estudo na medida em que o aporte teórico foi sendo
confrontado com depoimentos e práticas das trabalhadoras da educação infantil.
Essas categorias articulam ações, representações e auto-representações sobre a
atividade docente e suas relações com a sociedade, seus conflitos e contradições, que
impactam decisivamente sobre a elaboração de uma identidade política das trabalhadoras em
educação infantil conjugada ao projeto histórico do trabalho.
126
3.1.1 Determinantes históricos do trabalho docente
Muito embora a evolução do trabalho docente se desenvolva sob diferentes
cronologias de acordo com as particularidades sócio-históricas diante do desenvolvimento
econômico, social, cultural, político e educacional diferenciado que cada nação apresenta, o
processo de constituição desse trabalho possui algumas condicionantes passíveis de
generalização que conformam e caracterizam essa atividade, uma vez que sua gênese e
desenvolvimento se situam no interior do processo de gênese, desenvolvimento e
universalização do modo de produção capitalista.
Os condicionantes e determinantes sociais e históricos do trabalho docente podem
ser assim esquematizados: a organização das instituições educacionais sob a orientação da
igreja e a construção da imagem do magistério como “sacerdócio” e “vocação”; a estatização
da educação escolar pelo regime burguês e a funcionarização do magistério de acordo com as
normatizações burocráticas do Estado moderno; o processo de feminização do trabalho
docente paralelamente ao de massificação dos sistemas educacionais; a organização do
trabalho docente de acordo com as características da organização produtiva fordista/taylorista,
próprias ao movimento do tecnicismo pedagógico; e a luta dos trabalhadores e trabalhadoras
em educação por profissionalização e condições dignas de vida e trabalho.
Tais determinações não podem ser vistas como aspectos estanques de
desenvolvimento do trabalho docente, mas sim como processos contraditórios e conflituosos
que se articulam de acordo com as conjunturas sociais e históricas e com as correlações de
forças existentes entre as forças envolvidas no conflito entre democratização da educação
pública e manutenção do seu caráter restrito e alienado. Exemplo disso é que, embora os
sistemas públicos de ensino sejam materializados por políticas seculares e laicas, mantém-se
presentes nos currículos (explícitos e ocultos) das instituições e nas práticas sociais e
pedagógicas
71
de professores, a influência do pensamento religioso. Essa influência é de tal
ordem que as representações sobre o trabalho docente ainda são pautadas pelas idéias de
“vocação” e de “sacerdócio” (professor tem que ter “dom”, não adianta formação; eu sou
professora por “vocação”, ser professora é uma missão), mesmo diante do movimento
histórico pela profissionalização do magistério.
71
- A divisão das atividades de trabalhadores em educação em prática social e pedagógica é feita apenas para
efeito didático, pois o próprio fazer pedagógico se configura como uma dimensão da prática social, realizada por
determinados indivíduos na forma profissional. A prática social, em sua totalidade, também se constitui como
atividade educativa, na qual os indivíduos, ao estabelecerem determinadas relações sob determinadas
circunstâncias históricas, se educam.
127
Nóvoa (1995) afirma que o trabalho docente se desenvolveu como uma ocupação
secundária de religiosos ou leigos sob a tutela da igreja. É precisamente no interior de algumas
congregações religiosas, tais como os jesuítas e oratorianos, que se localiza a gênese da
profissão de professor.
Esses grupos configuram um corpo de saberes e técnicas e de normas e valores
que caracterizam a atividade do trabalho de professor
72
, pautada pela divisão técnica do
trabalho (concepção X execução) e pela influência ideo-política da religião e da igreja. Mesmo
após o processo de laicização e estatização do ofício de professor, observa-se a permanência de
um determinado ethos baseado nos cânones da religião. Como observa Nóvoa (1995. p. 16),
A elaboração de um conjunto de normas e de valores é largamente influenciada por
crenças e atitudes morais e religiosas. A principio, os professores aderem a uma
ética e a um sistema normativo essencialmente religiosos; mas, mesmo quando a
missão de educar é substituída pela prática de um oficio e a vocação cede o lugar à
profissão, as motivações originais não desaparecem. (grifos do autor).
A origem religiosa da profissão docente estabelece um conjunto de hábitos,
comportamentos e valores que se conformam como uma espécie de ética do “ser professor”;
sujeito de moral ilibada, prestador de serviços à igreja e à comunidade, celibatário e com
algum prestígio social diante da comunidade em que atua, o trabalhador docente constitui-se a
partir das representações presentes nos discursos e políticas oficiais do “sacerdócio” e da
“vocação”. Nessa perspectiva, o trabalho de ensinar se confunde com a “missão” de
catequizar, mediada pela “vocação” revelada pelos desígnios divinos.
As determinações religiosas do trabalho docente estão presentes não apenas nas
práticas, idéias e valores dos professores (clérigos ou leigos), ainda porque essas são
condicionadas pela caracterização das instituições de trabalho que, até meados do século
XVIII, estão situadas hegemonicamente no interior da própria igreja. Segundo Álvaro Hypólito
(1997, p. 18-19), as instituições escolares funcionaram nas igrejas, catedrais e conventos, tendo
como professores os membros do clero até o surgimento da necessidade de ampliação do
acesso às escolas, determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações
sociais capitalistas em desenvolvimento. Mas tal ampliação foi efetivada com a manutenção do
controle da educação por parte da igreja.
72
- É necessário destacar que a atividade do magistério tem em sua origem a presença hegemônica de homens no
exercício da profissão, especialmente religiosos, por isso a utilização do termo professor no gênero masculino. O
processo de feminização do magistério só ocorre após o século XIX, tornando-se um fenômeno hegemônico
durante o século XX. (LOURO, 1997).
128
O recrutamento de leigos para exercer a profissão de ensinar foi realizado de
acordo com a manutenção dos princípios da religião como eixo orientador do trabalho docente.
A doação sacerdotal ao trabalho e à igreja, independente das suas condições e da remuneração,
e a “vocação inata” e/ou “revelada” se instituíram como elementos constitutivos do trabalho
docente. Nem mesmo a secularização dessa atividade profissional, propiciada pelo
desenvolvimento e modernização da sociedade e do Estado, afastou o trabalho docente da
imagem de sacerdócio e vocação, como apontam os trabalhos de Nóvoa (1991; 1995),
Hypólito (1997) Silva, E. (1995) e Souza (1996).
Além da caracterização ideológica do trabalho docente como “sacerdócio” e
“vocação”, que descaracterizam essa atividade como profissão valorizada, o processo de
constituição do magistério é marcado pela secundarização da docência, justificando uma marca
permanente nessa atividade até os dias atuais, qual seja, a desvalorização econômica. Os
professores tinham o trabalho de ensinar como uma atividade temporária ou extraordinária,
realizada em concomitância com outras ocupações, consideradas primordiais. Nesse sentido, as
escolas eram
[...] habitualmente conduzidas por um mestre leigo, dependente do pároco. Não há
procedimentos uniformes com respeito à escola e ao pagamento do mestre: os
notáveis locais, os homens de igreja e as assembléias de habitantes ou os conselhos
de aldeias aí intervém com uma capacidade de decisão que muda de acordo com a
região e mesmo com o lugar. Em contraste, ninguém pode ser nomeado mestre sem
a aprovação das autoridades eclesiásticas. Nesta época, o contrato assinado pelo
mestre (de duração muito variável) compreende quase sempre obrigações religiosas
(ajudar o pároco, cantar a missa, fazer soar os sinos, etc.), comunitárias (exercer as
funções de secretário de administração municipal, dar corda ao relógio, etc.) e
docentes: é quase desnecessário dizer que essas últimas não são as mais importantes.
De resto, uma grande parte desses mestres exerce ainda atividades agrícolas ou
artesanais. (NÓVOA, 1991, p. 114).
Essas formas de organização do trabalho escolar
73
e de caracterização das
instituições escolares produzem uma determinada identidade docente, marcada pelos
princípios, rituais, ideologia e práticas religiosas, constituindo a docência não como profissão,
mas sim como “benesse” e “dádiva” da instituição religiosa e exercício da missão de religiosos
e “bem-aventurados” cristãos. Como observa Louro (1997, p. 93):
73
- Segundo Oliveira et.al. (s/d, p. 2-3, grifos meus), “A organização do trabalho escolar é um conceito
econômico, refere-se à divisão do trabalho na escola. Podemos considerá-la a forma como o trabalho do professor
e demais trabalhadores é organizada na instituição escolar visando atingir os objetivos da escola ou do sistema.
Refere-se à forma como as atividades estão discriminadas, como os tempos estão divididos, a distribuição das
tarefas e competências, as relações de hierarquia que refletem relações de poder, entre outras características
inerentes à forma como o trabalho é organizado.” .
129
Sejam eles pastores, padres ou irmãos, esses religiosos acabam por constituir uma
das primeiras e fundamentais representações do magistério. Modelos de virtudes,
disciplinados disciplinadores, guias espirituais, conhecedores das matérias e das
técnicas de ensino, esses primeiros mestres devem viver a docência como um
sacerdócio, como uma missão que exige doação. Afeição e autoridade, bom senso,
firmeza e bondade, piedade e saber profissional são algumas das qualidades que
lhes são exigidas. Seu papel de educador combina o exercício de uma “paternidade,
uma magistratura, um apostolado e uma luta” (assim determina, por exemplo, o
Guide des Écoles, texto de orientação dos antigos mestres maristas, ainda hoje em
uso). (grifos meus).
Essas representações do magistério e a conseqüente identidade docente que elas
produzem perdura, de maneira hegemônica, até meados do século XVIII, quando a educação
passa a ser objeto de intervenção estatal, como analisa Nóvoa (1991, p. 114). As mudanças do
magistério seguem as contradições entre as condições determinadas pelo desenvolvimento da
sociedade de classes e a crescente complexificação e especialização do trabalho docente que as
determinações sociais passam a exigir.
Internamente à profissão, o processo de complexificação e especialização do
magistério vai sendo desenvolvido pelas congregações religiosas (especialmente os jesuítas,
braço pedagógico da igreja romana) que se caracterizaram como congregações docentes
(NÓVOA; 1991; 1995). Juntamente à construção de um corpo de saberes e de normas, os
professores iniciaram um processo de ocupação ativa do terreno educacional, fazendo desse
um espaço de intervenção profissional.
Simultaneamente com este duplo trabalho de produção de um corpo de saberes e de
um sistema normativo, os professores têm uma presença cada vez mais activa (e
intensa) no terreno educacional: o aperfeiçoamento dos instrumentos e das técnicas
pedagógicas, a introdução de novos métodos de ensino e o alargamento dos
currículos escolares dificultam o exercício do ensino como actividade secundária ou
acessória. O trabalho docente diferencia-se como “conjunto de práticas”, tornando-
se assunto de especialistas, que são chamados a consagrar-lhe mais tempo.
(NÓVOA, 1995, p. 16, grifos do autor).
Outro fator determinante na construção da profissão docente como atividade
especializada, que exige dedicação integral ao trabalho e a organização, sistematização e
socialização dos conhecimentos inerentes a essa profissão é a criação das primeiras Escolas
Normais e cursos de formação de professores (NÓVOA, 1991; LOURO, 1997; NOVAES,
1992).
Externamente à particularidade da atividade docente, têm importância
significativa na constituição do magistério as novas necessidades e demandas de força de
trabalho, presentes nos processos produtivos realizados nas modernas fábricas e a organização
do Estado como instituição mediadora dos conflitos entre as classes sociais.
130
Com o desenvolvimento pleno do modo de produção e da ordem social capitalista
– caracterizado, entre outros fatores, pela industrialização da produção, pela divisão entre
campo e cidade e a crescente subordinação do primeiro à última, pelo desenvolvimento do
Estado moderno como estrutura necessária à reprodução do status quo por meio de
mecanismos de coerção e persuasão, pela ascensão e consolidação da burguesia como classe
dominante e do proletariado como classe explorada e força política contra-hegemônica – a
partir de finais do século XVIII, a educação institucionalizada se torna a forma hegemônica de
socialização das novas gerações (SAVIANI, 2000; KHULMANN JR., 2001b), e o Estado se
encarrega dessa função social.
O avanço das forças produtivas e o incremento de maquinarias nos processos
produtivos, bem como o desenvolvimento das relações sociais de produção e a agudização da
divisão social hierárquica do trabalho exigiram uma nova força de trabalho, com alguma
instrução (mínima) para colocar as máquinas em funcionamento e uma educação polida e
ordeira para aceitar a ordem despótica das fábricas.
Nesse sentido, a educação institucionalizada necessitaria de formar o homem do
seu tempo, cujas reminiscências dos princípios religiosos não seriam de utilidade. A razão
como forma de domínio e intercâmbio com a natureza e os ideais liberais de igualdade e
liberdade para todos são as marcas culturais e ideológicas da sociedade capitalista que entram
em conflito com as normas, valores e práticas da igreja, passando a conformar o ideário
pedagógico e as políticas educacionais. Seguindo essa ordem de questões, ninguém melhor que
o Estado para promover e regular a educação escolar.
Ao substituir a igreja no controle da educação institucionalizada, o Estado passa a
regular, organizar, determinar as formas de captação de recursos humanos e de licenciar os
trabalhadores que vão atuar nas instituições de educação. O Estado torna-se então o agente
mediador principal da configuração dos trabalhadores docentes como um corpo profissional.
Costa (1995) e Hypólito (1997) expressam suas concordâncias com Nóvoa (1991)
quanto ao papel decisivo da estatização da educação escolarizada na conformação dos
trabalhadores docentes em profissionais pertencentes ao corpo de funcionários que compõem o
aparelho do Estado. Mas por que o Estado passa a gerir os processos educativos e a constituir a
profissão do magistério?
Em primeiro lugar, é preciso situar o processo de configuração da fase
monopolista do capital, responsável pelo inflacionamento do Estado e pela ampliação dos
setores de serviços para atender as demandas e necessidades do capital. Nesse sentido, as
análises de Braverman (1987) sobre o desenvolvimento das forças produtivas e das relações
131
sociais de controle e subordinação da força de trabalho, presentes na fase monopolista do
sistema do capital, são úteis aqui.
Esse autor afirma que existe uma concordância entre os teóricos marxistas de que
a gênese da fase monopolista do capital tem início nas últimas duas ou três décadas do século
XIX, sendo caracterizada sob diversas conceituações, tais como capitalismo financeiro,
neocapitalismo, capitalismo recente e imperialismo. É nesse momento que a tendência à
centralização e concentração de capital nas mãos de grupos, cartéis e outras combinações
começam a conformar-se como “processo inevitável” e desejável do sistema capitalista,
estruturando as modernas indústrias e finanças capitalistas. Outras questões também se
constituem como elementos compositores desse estágio do capital, tais como “[...] a rápida
consumação da colonização do mundo, as rivalidades internacionais e os conflitos armados
pela divisão do globo em esferas de influência econômica ou hegemonia inauguram a moderna
era imperialista.” (BRAVERMAN, 1987, p. 215).
O desenvolvimento da fase monopolista do modo de produção capitalista tem
como aspectos fundamentais a gerência científica e a revolução técnico-científica
responsáveis pelo controle, organização, automação e otimização do processo produtivo e,
conseqüentemente, da extração de mais-valia. Nesse sentido, as transformações ocorridas no
processo produtivo capitalista, em sua fase monopolista, potencializam a acumulação
produzindo não só uma massa de riqueza social excedente, mas também uma massa de
trabalho, ou melhor, de força de trabalho excedente, expulsa dos antigos postos de trabalho
pelas mudanças tecnológicas e gerenciais envidadas pelo investimento nas transformações
técnico-científicas. O capital excedente produzido é, então, investido em novos nichos de
mercados, para os quais o capital necessita de força de trabalho, gerando assim novas
ocupações e funções e alterando significativamente, não só a estrutura da classe trabalhadora,
mas também toda vida social.
Esses determinantes geram uma degradação das relações sociais sem precedentes
na história humana, produzindo, assim, uma massa de miseráveis e excluídos que passam a
necessitar de uma rede institucional de assistência, geralmente de caráter público, que garante
o “funcionamento harmônico” da sociedade e os lucros das empresas. Essa rede institucional
de assistência é uma das características do que Braverman (1987) denomina de terceira força
social, o Estado.
A presença do poder estatal na manutenção e reprodução das relações sócio-
econômicas capitalistas é inerente ao próprio modo de produção e os poderes
institucionalizados no Estado – a cobrança de impostos, controle das forças armadas,
132
regulação do comércio internacional, terras públicas, promulgação de leis etc. – são fatores
imprescindíveis à manutenção da propriedade privada por grupos privilegiados específicos.
Entretanto, o capital monopolista criou condições em que a intervenção estatal na economia
se tornou inevitável.
Algumas das razões desse fato são enumeradas assim por Braverman (1987): a) a
capacidade adicional de produção de excedente econômico do capital monopolista é maior do
que sua capacidade de absorção gerando estagnação, crises e depressão caracterizadas pelo
desemprego e capacidade ociosa das fábricas, criando a necessidade de gastos governamentais
no atendimento da demanda produzida; b) a concorrência econômica intercapitalista no
cenário internacional que gerou conflitos belicosos entre nações, bem como o surgimento e
disseminação dos movimentos insurrecionais surgidos em decorrência dos efeitos nefastos do
capital geraram a necessidade de mobilização militar por parte do Estado, absorvendo boa
parte do excedente econômico; c) o aumento da miséria, insegurança e instabilidade social
gerada pelos efeitos da exploração capitalista produziu a necessidade da criação de uma rede
de bem-estar, em que o Estado intervém no sentido de prevenir uma convulsão social; e d)
com o rápido processo de urbanização e aceleramento da vida social e econômica, aumentou-
se a necessidade de mais serviços oferecidos pelo Estado, destacando-se a educação,
responsável pela socialização dos indivíduos sob as necessidades e o ethos do capital. É este
último ponto que nos interessa mais diretamente, no sentido de analisar a estatização e
funcionarização do trabalho docente.
A crescente necessidade de prestação de serviços ocorrida em decorrência dos
efeitos das transformações envidadas pelo capital monopolista ocasionou um crescimento
considerável desse setor, que passa a empregar o excedente de força de trabalho gerado pelas
mesmas transformações. Nesse sentido, o Estado passa a se configurar como um dos principais
setores da economia, empregando boa parte da força de trabalho excedente da produção.
Dentre esses setores, os serviços inerentes ao processo de reprodução da força de trabalho,
dentre os quais a educação, adquirem uma significativa centralidade na intervenção estatal.
A educação institucionalizada passa então ao encargo do Estado. Esse não só
oferece, com prioridade, as oportunidades educacionais (por meio das instituições escolares
mantidas pelo fundo público), mas também passa a regular, normatizar, estabelecer planos
nacionais e regionais de políticas para a educação, que se tornam alvo de disputa pelos
diferentes atores sociais presentes na sociedade.
As instituições educacionais, que antes eram conformadas fundamentalmente de
acordo com os preceitos da igreja, passam a ser determinadas pela burocracia do Estado. O
133
modelo burocrático do Estado é aqui compreendido como produto do capitalismo moderno,
que busca na alternativa de um novo tipo de poder público – baseados na impessoalidade,
hierarquia e racionalidade – a resolução dos problemas inerentes à questão da administração
pública e privada.
Segundo Mascarenhas (2000, p. 15),
As características da burocracia consistem, segundo o sempre citado quadro teórico
weberiano, no predomínio do formalismo, existência de normas escritas, estrutura
hierárquica, divisão horizontal e vertical do trabalho e impessoalidade no
recrutamento dos quadros. A burocracia é um sistema em que a divisão de trabalho
se processa racionalmente, com vista a fins.
Sob a perspectiva do Estado burocrático, suas estruturas e instituições são
compostas por funcionários que atuam, também, baseados nos princípios de impessoalidade,
hierarquia e racionalidade. O exercício de um trabalho baseado nesses princípios pretende-se
ser mais um ato técnico e especializado do que efetivamente uma atividade com efeitos
político-ideológicos, ainda que saibamos dos limites ideológicos presentes na concepção do
trabalho estritamente técnico. É sob essas novas diretrizes que o trabalho docente vai se
estruturar, assumindo o caráter funcional (funcionários) ao corpo da burocracia estatal
74
.
Por outro lado, são novas condições de realização do magistério que vai dar o
impulso ao processo de profissionalização e organização coletiva dos trabalhadores em
educação. Ao assumirem a condição de corpo funcional do estado, que se baseia na lógica
racional de organização do trabalho, os professores passam a se instituir como um corpo
profissional que detém determinados saberes especializados e normas de condutas, são
licenciados e passam por exames de seleção para exercerem suas funções, além do fato de que
seu trabalho passa a ser encarado, em tese
75
, como uma carreira para a vida toda.
A separação instituída entre professores e comunidade em que atua é produzida
pelo reforço da idéia de autonomia e independência desses em relação à igreja e à população.
Entretanto, a perspectiva de autonomia e independência do trabalho docente é apenas um dos
aspectos ideológicos que constituem o magistério, pois vela as novas formas de controle e
74
- Vemos aqui o caráter histórico das afirmações contraditórias sobre uma pretensa neutralidade acerca do
trabalho docente (bem como de todo o trabalho exercido no interior do Estado). E hoje, embora o pensamento
neoliberal tenha impostado a defesa intransigente de que todas as definições no âmbito do Estado tenham o
caráter estritamente técnico, já é lugar comum no meio educacional a afirmativa que todo trabalho educativo tem
um caráter eminentemente político, presente tanto no seu fazer pedagógico quanto na exigência ética de quem
exerce essa profissão.
75
- Em tese devido ao fato de que, ainda hoje, o magistério é encarado como um trabalho provisório (“bico”) por
professores e professoras que atuam no ensino básico, fato esse cada vez mais agudo diante da persistente
desvalorização social e econômica do trabalho docente.
134
heterogenia que os professores se submetem, uma vez que passam a se constituir como “[...]
um corpo de profissionais isolados, submetidos à disciplina do Estado.” (NÓVOA, 1995, p.
17).
Ainda nesse sentido, Costa (1995, p. 78) afirma que:
A influência do Estado na configuração dos docentes como um corpo profissional
foi decisiva pois no processo de estatização da educação está presente a idéia de
subtrair os docentes à influencia de indivíduos ou grupos notáveis, considerando-os
como um corpo do Estado. O processo de funcionarização dos docentes é resultante
de um acordo de interesses ao qual os professores aderiram em troca de um estatuto
de autonomia e independência que os constitui como corpo administrativo autônomo
e hierarquizado; em contrapartida o Estado garante o controle sobre a escola. Nesse
sentido, passa a ser exigida uma licença para ensinar que se torna obrigatória e é
concedida após exame ou concurso ao qual podem submeter-se todos os que
apresentem alguns requisitos como conhecimentos literários, idade, bom
comportamento moral, etc. (grifos da autora).
Interessante notar que o processo de profissionalização dos professores não
acontece exclusivamente como uma determinação exterior, provocada por sua assunção por
parte do Estado. Esse processo articula tanto as determinações do aparelho burocrático do
Estado, como também os interesses dos professores organizados em associações corporativas.
O desejo de superar o controle da igreja e da população, associado aos interesses de
profissionalização e valorização do trabalho docente – muito baseado nos princípios e
características liberais de profissão, tais como: licença, competência, vocação, independência e
auto-regulação (ENGUITA, 1989) – integrou-se à perspectiva de o Estado tornar-se o principal
agente promotor e regulador da educação escolar e do próprio magistério.
Nesse sentido, a educação institucionalizada não vem sendo produzida somente
pelos interesses das instituições sociais como a igreja e o Estado, mas também pelos
trabalhadores que atuam nessas instituições que ora assumem a ideologia e projeto da
instituição a qual está vinculada, ora se rebela contra essa.
Como observa Nóvoa (1991; 1995), as instituições educacionais (no caso do
autor, principalmente a escola) assumem, a partir do século XIX, uma centralidade política
nunca antes experimentada, atribuindo a seus agentes (professores) um papel fundamental
diante dos interesses de reprodução da ordem social. Essas instituições são privilegiadas como
instrumento que colabora na estratificação social e o professor é instituído de poder –
provisório e contido – e, portanto, de uma importante função política, conscientemente
exercida ou não.
135
Os professores são funcionários, mas de um tipo particular, pois a sua acção está
impregnada de uma forte intencionalidade política, devido aos projectos e às
finalidades sociais de que são portadores. No momento em que a escola se impõe
como um instrumento privilegiado de estratificação social, os professores passam a
ocupar um lugar-charneira nos percursos de ascensão social, personificando as
esperanças de mobilidade de diversas camadas da população: agentes culturais, os
professores são também, inevitavelmente, agentes políticos. (NÓVOA, 1995, p. 17,
grifos do autor).
Esse fato é fundamental à questão da constituição de uma identidade política por
parte dos trabalhadores em educação. A questão do assalariamento e profissionalização do
trabalho de docentes, aliada ao papel político que as instituições educacionais passam a exercer
após o século XIX
76
, são elementos de importância fulcral na ação, representação e auto-
representação dos professores e das professoras diante das contradições sociais e das relações
de poder, na medida em que sua atividade profissional reúne um número significativo de
indivíduos que vende sua força de trabalho para o Estado em troca de salário e, ao fazê-lo,
compartilha os conflitos, as formas de exploração e de domínio, o sofrimento e as condições de
trabalho e vida. O compartilhamento das condições de trabalho e vida é um ponto fundamental
para a elaboração de uma identidade, de uma representação de um “nós”.
Junta-se a isso a questão do papel político da educação que, agora menos velado,
constitui-se como um ponto de partida para a desmistificação da pretensa neutralidade
universal da educação, escamoteada pela perspectiva culturalista e individualista, presente nas
teorias da educação como observa Bernard Charlot (1986). Ao apontar que o papel político da
educação se articula com a manutenção e o reforço da divisão social do trabalho, explicitou-se
as condições históricas para o esclarecimento do caráter do projeto histórico em que a
educação está ancorada (o projeto de expansão e acumulação do capital), tornando possível
também projetar uma função política para a escola de acordo com um projeto alternativo de
sociabilidade articulada à perspectiva da emancipação humana do e pelo trabalho, ou, como
nos dizeres de Mészáros (2005), uma educação para além do capital.
Entretanto, o que vem caracterizando o trabalho docente desde então são os
condicionantes alienantes do capital sobre a totalidade do trabalho social. Nesse sentido, ao
longo do século XX e em inícios do XXI, os professores e as professoras – professoras que, a
partir do final do século XIX, se tornam força de trabalho hegemônica empregada nesse setor –
76
- Não que as instituições escolares não exercessem uma função política anteriormente ao século XIX, mas esse
papel assume uma nova face diante da particularidade histórica do capitalismo industrial e posteriores
desdobramentos desse sistema. Ao assumir o papel de formação e qualificação da força de trabalho, bem como
as expectativas de mobilidade social no interior da divisão social hierárquica do trabalho, a escola passa a
cumprir o papel, não só ideológico, mas também econômico de reprodução dos lugares e dos agentes no interior
da divisão social do trabalho como afirmam Tragtenberg (2004) e Arroyo (1980).
136
sofrem um agudo processo de desvalorização profissional (desprofissionalização),
desqualificação do trabalho e feminização da ocupação, aproximando, cada vez mais, o ofício
do magistério ao trabalho alienado de amplas parcelas do proletariado. Esse processo é o que
autores como Enguita (1989), Novaes (1992), Hypólito (2001), entre outros, classificam como
proletarização do trabalho docente.
O processo de proletarização do trabalho docente ocorre de maneira concomitante
ao de feminização do magistério, ou seja, o trabalho docente vai se tornando um trabalho
desqualificado, precarizado, fragmentado e desvalorizado economicamente ao mesmo passo
em que vai se tornando um lócus de trabalho quase que exclusivamente feminino. A
caracterização do magistério, a partir da divisão sexual e social do trabalho, torna-se a forma
hegemônica dessa atividade, apontando para uma série de limites para o encaminhamento das
lutas políticas e sindicais desses e dessas trabalhadoras.
Eliane Novaes (1992), ao analisar as determinações de classe e de gênero sobre as
trabalhadoras em educação do primeiro grau, identificadas ideologicamente como “parentes
postiços”, aponta que o agrupamento institucional escolar, organizado pelo Estado, aproxima
as características do trabalho docente às formas de gestão e controle do trabalho fabril. Nesse
sentido, a autora identifica os trabalhadores e trabalhadoras em educação em uma imagem,
presente à época (finais da década de 1970 e início da década de 1980), que ilustrava o caráter
mais degradante do trabalho explorado, a de “bóia-fria”.
Por algumas vezes, o professor convocado [professores contratados pelo poder
público] foi chamado de “bóia-fria da educação”. As condições de trabalho do
convocado, realmente colocaram-no como um bóia-fria. Talvez a diferenciação que
se possa estabelecer é que, enquanto os “bóias-frias” dedicam-se a ocupações
manuais, o convocado tem uma pretensa atividade intelectual. O que os iguala é a
colocação no sopé da escala ocupacional e a total incerteza, quanto às suas
condições de trabalho, enfim, a sua proletarização. (NOVAES, 1992, p. 64).
Enguita (1989) também se refere ao processo de proletarização do trabalho
docente ao exprimir o fato de que os professores e professoras têm perdido, de maneira
crescente, os meios de produção de seu trabalho, o controle sobre os objetivos e organização
da sua atividade. Essa desqualificação é causada, especialmente, pelas determinações
curriculares das políticas educacionais, juntamente com seus mecanismos de controle e
avaliação. Aplle (1987; 1988) faz análises semelhantes sobre esse processo.
Esses mesmos autores analisam o fato de que a divisão sexual do trabalho e a
conseqüente alocação da força de trabalho feminina em ofícios identificados com os papéis
sociais de “mãe” e “dona-de-casa”, historicamente atribuídos às mulheres, contribuem para a
137
proletarização do trabalho docente na medida em que o magistério sofre um processo de
feminização. E, mesmo no interior da categoria, muito diversificada e heterogênea, o fato de
ser mulher amplia a possibilidade de proletarização do seu trabalho (APLLE, 1987; 1988).
Alia-se a desqualificação, fragmentação e desvalorização do trabalho profissional das
mulheres-professoras a dupla, às vezes tripla jornada de trabalho, visto que o papel de
reprodução do lar ainda é considerado tarefa “inata” do gênero feminino.
Na esteira desse embate, resulta fundamental a compreensão do papel que o
trabalhador docente exerce no seio da luta de classes. Historicamente marginalizados, os
trabalhadores em educação, diferentemente de análises que os identificam com as “classes
médias” (PESSANHA, 1994), têm estado muito mais próximos das condições de vida e
trabalho das classes trabalhadoras do que das classes dominantes.
Em que pese o caráter imaterial do seu trabalho, ou seja, o fato de que esteja do
lado intelectual do trabalho, a real condição do trabalhador e trabalhadora docente os
distinguem em muito da parcela privilegiada da sociedade, dada sua condição de força de
trabalho que não detém os meio de produção de sua atividade sob seu controle, necessitando,
assim, de vender sua capacidade de trabalho para produzir a própria subsistência e, também, as
condições degradadas de vida e trabalho que permeiam o magistério, especialmente em nações
dependentes e periféricas como é o caso do Brasil.
Entretanto, os professores e professoras convivem com uma determinada
ambigüidade que Enguita (1989) identifica como aproximação do ideário burguês, busca da
conquista de privilégios e distinção das demais classes populares e, ao mesmo tempo, uma
profunda aproximação da classe trabalhadora, uma vez que sua atividade tem se caracterizado
paulatinamente com o trabalho estranhado e as condições de trabalho e vida estão muito mais
próximas das classes trabalhadoras.
Os trabalhadores e trabalhadoras em educação, ao se aproximarem
concretamente das condições de trabalho e vida do restante da classe trabalhadora, por meio
de constantes arrochos salariais, do estabelecimento dos modelos de organização de trabalho
baseados nos moldes empresariais de gestão e divisão técnica do trabalho, do permanente
processo de expropriação dos seus saberes e de sua ciência, lidando com um profundo
processo de alienação de sua atividade, se organizam e lutam politicamente, também nos
moldes da classe-que-vive-do-trabalho.
No Brasil, é especialmente durante o contexto de crise do Estado de recessão que
os professores de todo o país iniciam um movimento amplo de organização político-sindical,
articulando lutas e bandeiras econômicas e particulares às questões gerais da política interna
138
do país, da necessidade de sua democratização e, principalmente, do estabelecimento de um
projeto popular de educação pública, estatal, gratuita e de qualidade para todos.
O movimento sindical docente se constitui, então, como um momento
fundamental de aproximação dos trabalhadores em educação do restante da classe
trabalhadora, como propôs Arroyo (1980), iniciando um profícuo debate de (re) construção de
um projeto educacional para o país, pautado pelas demandas, necessidades e projetos das
classes populares.
Como observam Souza (1997), Ribeiro (1987), Canesin (1999), em diferentes
contextos, e Vianna (1999) que faz um estado da arte sobre a produção acadêmica que trata da
organização político-sindical de professores no Brasil, as antigas associações e centros de
professores se tornaram, durante o final da década de 1970, palcos de disputa de projetos
distintos e, até mesmo, antagônico de associação desses profissionais. Houve, nessa época,
um tensionamento entre os setores que propunham a manutenção das associações e centros de
professores sob o caráter corporativo, isto é, atrelados ao Estado – setores esses que
percebiam privilégios diante da administração central por conta de sua capitulação ante o
poder – e os grupos que pautavam a necessidade de organizar essas instituições de acordo
com as características dos sindicatos, especialmente dos sindicatos combativos presentes no
chamado “novo sindicalismo”.
A constante degradação do magistério, articulada à perda de legitimidade do
Estado ditatorial, foi o “estopim” para que os setores do professorado alinhados às idéias de
sindicalização das instituições associativas dos trabalhadores e trabalhadoras em educação se
legitimassem como lideranças, organizassem a categoria e mobilizassem as lutas econômicas
e políticas em finais da década de 1970 e durante quase toda a década de 1980. Desse modo,
os professores, juntamente com outros setores dos servidores públicos, se tornam importantes
sujeitos coletivos durante a década de 1980, sendo considerados como importantes atores
políticos durante a explosão de greves da década perdida, como diagnosticam Mascarenhas
(2000) e Noronha (1991).
No entanto, a ofensiva neoliberal sobre a organização e mobilização política das
classes que vivem do trabalho (ANTUNES, 2003; 2002), em particular as formas sindicais,
atinge também o movimento sindical docente durante a década de 1990. Mas, a crise do
movimento sindical docente ressente não somente dos impactos macroestruturais da atual
conjuntura contra-revolucionária, como também de uma crise de legitimidade interna, diante
do próprio professorado, como aponta Vianna (1999).
139
Embora essa autora perceba um movimento positivo no interior dessa crise, pois,
segundo suas reflexões, aponta para formas alternativas de elaboração de identidades
coletivas baseadas nas relações mais imediatas no interior da escola, é necessário ressaltar
que, nesse contexto, há também uma tendência de (re)aproximação do ideário de
profissionalismo técnico e academicista, baseada nos projetos de profissões liberais contrária
àquela, presente no processo de sindicalização do magistério, de aproximação das classes
populares.
A des-sindicalização dos professores e professoras é, inclusive, uma das
diretrizes das atuais reformas educacionais neoliberais impulsionadas pelos organismos
unilaterais (BM, FMI, UNESCO) porque,
Afinal, “todos sabem” que as escolas não são reformadas facilmente porque os
professores são avessos às mudanças, não querem assumir responsabilidades e
compromissos com os pais e os alunos pobres. Ademais, os planos de cargos e
salários engessam a administração. Os custos da folha de pagamento aumentam
ano a ano, mesmo quando não há reajuste, em função de critérios de progressão que
não premiam o mérito e porque os professores podem-se aposentar com o salário
integral, um privilégio descabido. Professores da carreira tendem a se acomodar e
seus sindicatos, em geral oposicionistas, articulam-se com partidos de esquerda
para proteger seus privilégios. Um grande desafio da reforma, portanto, é
flexibilizar o trabalho docente. (BARRETO e LEHER, 2003, p. 40, grifos meus).
A culpabilização dos trabalhadores em educação pelos descalabros da
educação pública, a intensificação e precarização dessa atividade, o aprofundamento de
mecanismos alienantes por meio de imposição de currículos e avaliação externas, juntamente
com a crescente ofensiva sobre a organização político-sindical dos professores, têm
provocado limites na construção de uma identidade política vinculada ao projeto do trabalho.
A “ética” do “salve-se quem puder”, provocada pela precarização sem precedentes do
trabalho e pela consolidação do desemprego estrutural, atinge também o funcionalismo
público e os professores, dificultando a sua organização e luta políticas. Esse é mais um dos
desafios desses trabalhadores no sentido de elaborar uma identidade de classe baseada no
projeto de superação da sociedade de classes.
Essa pode ser considerada uma síntese da breve história da profissão docente na
sociedade moderna ocidental e no Brasil. A compreensão sobre as determinações históricas e
sociais do trabalho docente torna-se imprescindível para compreender o trabalho docente na
educação infantil, na medida em que os novos marcos legais vão tornar, não só possível, mas
também desejável a exigência de professoras nas instituições de educação infantil, com
formação e qualificação que caracterizam o trabalho docente. Nesse sentido, são as
140
professoras que atuam nas redes de ensino que vão assumir o trabalho educativo nessas
instituições.
Outra questão é a inexistência de uma formação específica para a atuação na
educação infantil que dê conta de suas necessidades e demandas particulares, em termos de
qualificação profissional e de compreensão do objeto de conhecimento e intervenção na
educação infantil; fato esse que também concorre para a não consolidação da construção de
uma identidade profissional própria às trabalhadoras das instituições de educação infantil
(FORMOSINHO, 2002; KISHIMOTO, 1999; 2002)
77
.
Nesse sentido, o trabalho docente na educação infantil percebe as mediações do
trabalho docente como categoria abstrata que envolve aspectos estruturais e ideológicos da
profissão. Mas é preciso levar em consideração a heterogeneidade existente na constituição do
trabalho docente hoje e os condicionantes que isso provoca, em termos econômicos, políticos
e sociais (ENGUITA, 1989). As particularidades da educação infantil e do trabalho exercido
nessas instituições serão tratadas adiante, articulando as informações empíricas com o debate
teórico-metodológico que venho traçando.
3.1.2 “Vocação”, feminização/sexualização e proletarização: categorias fundantes do trabalho
docente
A questão da elaboração de uma identidade política por parte de trabalhadores e
trabalhadoras em educação, de maneira geral, e da particularidade das trabalhadoras da
educação infantil nos remete ao esforço de compreensão das relações sociais em que esses
sujeitos elaboram representações sobre si mesmos, sobre os grupos em que estão inseridos e
sobre o “outro”. Desse modo, resulta necessário analisar alguns dos modelos explicativos que
são constituídos e constituintes do trabalho docente no atual contexto, tais como: a
feminização e/ou sexualização do trabalho docente; a proletarização e a aproximação dessa
categoria profissional em relação às classes operárias, tanto em termos objetivos como
77
- Não se trata aqui de entrar nos meandros do debate acerca da necessidade de um isolamento da formação
profissional na educação infantil em relação à formação “escolarizante” e demasiadamente “abstrata” presente
hoje nas faculdades de educação, da qual falam os autores acima citados – perspectiva essa que autoras como
Campos (2002; 2003), Arce (2001a), entre outros/as, já debateram e apontaram como uma projeção limitada e
limitante de formação profissional para a educação infantil –, mas sim de apontar a formação como espaço de
construção de identidades profissionais e políticas. A questão da formação no processo de construção da
identidade das trabalhadoras da educação infantil me parece merecer uma investigação melhor detalhada por
outros trabalhos de fôlego.
141
subjetivos; bem como os elementos ideológicos de identificação dessa atividade a vários
modelos “vocacionais” (religiosos, de gênero, de índole e moral caritativa).
Tais modelos se configuram como importantes categorias de análise sobre o
magistério, compondo, assim, uma conformação complexa de imagens, idéias, pensamentos e
valorações atribuídas e auto-construídas, no sentido de arquitetar uma identidade docente que,
ao fim e ao cabo, é também uma identidade politicamente situada. Portanto, a configuração de
uma identidade política é sempre um processo coletivo que envolve subjetivação das
condições objetivas de vida e trabalho e também a objetivação de projetos e metas construídos
pela e na coletividade. A elaboração de uma identidade configura-se como um esforço
permanente de elaboração de um “nós” confrontado com a perspectiva do “outro” divergente
e/ou antagônico. Como afirma Ângela Mascarenhas (2000, p. 43),
A identidade é um modo específico de articulação de um grupo. É um fato de
consciência significando uma auto-representação, ou autodefinição do grupo,
manifesta tanto no comportamento quanto no discurso. [...] A identidade não tem
um caráter evolutivo e contínuo, ela se articula em momentos decisórios de luta e
pode desfazer-se em momentos posteriores. O conflito e a heterogeneidade
constituem terrenos propícios à construção da identidade, à formulação da
autoconsciência. Podemos, então, observar que a identidade política existe através
das relações sociais em que os grupos se vêem envolvidos. É o processo de
configuração da autoconsciência do grupo, onde ele elabora sua posição e ação
diante dos conflitos sociais e relações de poder.
Nesse sentido, faz-se necessário questionar quais são os nexos políticos e
ideológicos que constituem a identidade docente hoje, em especial àquelas que são mais
determinantes sobre a maioria das trabalhadoras em educação infantil, e se tais elementos
limitam ou colaboram na constituição de uma necessária identidade docente “rebelde”, como
aponta Ezequiel T. Silva (1995).
Essas questões são de fundamental importância para compreendermos o
processo de construção de uma identidade política por parte das professoras e agentes
educativas que atuam na educação infantil, tendo em vista que a recente incorporação dessa
instituição nos sistemas educacionais implica em mudanças significativas no quadro de
trabalhadoras, muito embora tais alterações necessitem ser questionadas diante do quadro
ainda precário das instituições de educação infantil, especialmente as públicas, como observa
Rosemberg (2003) ao analisar dados oficiais sobre o atendimento à infância no Brasil.
O trabalho em instituições de educação infantil ainda mantém o seu aspecto
ideo-político de pedagogia assistencialista, exercida em modelos precários de atendimento
142
por trabalhadoras atuando também de maneira precária, por meio de contratos temporários,
com baixos e diferentes salários e em condições precárias de exercício da profissão.
Ao ser assumida pelos sistemas educacionais, a educação infantil pouco
incorpora os modestos, mas importantes avanços conseguidos por meio das lutas político-
sindicais da categoria de trabalhadores em educação (planos de carreira; planejamento em
horário de trabalho; emprego por meio de concursos públicos; exigência de formação
universitária). Ao contrário, herda elementos conservadores e ideológicos do magistério, tais
como a manutenção da perspectiva de gueto feminino no mundo do trabalho, o aspecto
precarizado e desqualificado da profissão, as péssimas condições de trabalho e a imagem
atribuída (e assumida) de atividade mediada pela “vocação materna” das mulheres.
A compreensão da identidade política dos trabalhadores em geral e das
trabalhadoras da educação infantil, como parte dessa categoria, perpassa, necessariamente,
pelas representações elaboradas por essas trabalhadoras no seu local de trabalho, pois,
As representações que os professores fazem de si mesmos em funções da auto-
imagem e da autovalorização que constroem de sua profissão – com base nas
experiências vivenciadas na escola, como local de trabalho – vão tecendo uma
identidade. Essa identidade também se estabelece nas e pelas relações de
dominação e resistência construídas na experiência cotidiana. (SOUZA, 1996, p.
19).
Baseado nestas questões, analisar e explicar os elementos ideológicos, políticos,
econômicos e culturais que conformam essas representações se tornam necessários para que
se estabeleçam os nexos constitutivos presentes na construção da identidade por parte das
trabalhadoras em educação infantil.
Como observado anteriormente, a profissão docente tem sua gênese orientada
pelos pressupostos da religião e uma de suas determinações é a ideologia da “vocação”. Nesse
sentido, a “vocação” foi compreendida como a missão, realizada por um religioso ou leigo, de
educar as novas gerações de acordo com os princípios e valores do cristianismo. Desse modo,
os professores eram impelidos a trabalhar porque detinham a vocação garantida pelo mistério
da fé e não por profissionalismo, por motivos econômicos ou mesmo sociais. O magistério é
encarado, então, como sacerdócio e o indivíduo que se aventurava a exercê-lo o fazia por
“dom” e “vocação” “divinos”, fato esse que serviria de justificativa para a desvalorização
econômica dessa atividade e pela sua secundarização.
Nesse sentido, Assunção (1996, p. 15) afirma que:
143
A “vocação” encontra-se associada a algo pertencente à ordem do místico,
relacionada a “dom”, a qualidades especiais para a “missão” de ensinar, a doação,
enfim, o magistério como sacerdócio. Existe, sem dúvida, no discurso da “vocação”
a marca provocada pelos mais estreitos entrelaçamentos, entre eles, a estreita
relação, historicamente constituída entre religião e educação.
A identificação do magistério com a ideologia da vocação tem como resultado a
mistificação do seu caráter de trabalho, que envolve uma formação que abarca as
particularidades do conhecimento técnico-pedagógico aliado a uma ampla cultura geral, ação
intencional em processos de ensino-aprendizagem e a necessidade de valorização. Entendido
e assumido como vocação, o trabalho docente assume um caráter místico que independe das
relações humanas para se objetivar. Assim, o professor não necessita de questionar condições
de trabalho, nem tampouco reivindicar salários dignos e formação adequada, visto que sua
atividade significa apenas a ação de uma força exterior à sua própria vontade. Desta feita,
estabelece-se uma espécie de fetichismo, o “fetichismo do magistério vocacional”. Assunção
(1996, p. 14) esclarece isso ao fazer uma análise sobre o discurso da vocação presente no
processo de feminização do magistério afirmando que:
Quando o “discurso da vocação” se apresenta, os outros se calam: ele é conclusivo.
É como se, frente a ele, nada mais restasse a investigar. Ele traz a idéia de que
existe “algo” da ordem do sobrenatural, do inato, de uma força interna que orienta e
encaminha as pessoas para determinadas profissões. O magistério, nesse discurso,
passa a ser visto como uma verdadeira “escolha” que não sofreu influências
externas e se deu, portanto, de forma pessoal, inspirada, independente dos diversos
fatores que, em conjunto, condicionaram efetivamente os rumos da vida
profissional das professoras.
As representações do magistério como “vocação” permanecem em voga, mesmo
após a laicização dos sistemas de ensino, em virtude do seu processo de estatização provocado
pelas profundas transformações pelas quais passavam a sociedade em finais do século XVIII e
meados do século XIX. No entanto, a ideologia da vocação sofre mudanças de acordo com as
características que a educação escolar assume e que os trabalhadores em educação vão
construindo novas representações de seu grupo profissional.
Duas são as características marcantes acerca do novo “estatuto” da vocação
como elemento ideológico que compõe o trabalho docente. São elas: o ideal de profissão-
liberal e a “vocação” feminina mediada pela maternagem e pelo trabalho doméstico.
É importante ressaltar que a mediação da ideologia da vocação não significa
apenas a influência de determinantes exteriores à docência condicionando as identidades dos
profissionais do magistério. Tanto é assim que a ideologia da vocação se mantém como
144
elemento mediador da identidade docente até os dias atuais, especialmente nas primeiras fases
do ensino fundamental (ASSUNÇÃO, 1996; SOUZA, 1996; SILVA, 1995; NOVAES, 1992 e
LOURO, 1997) e na educação infantil (ALVES, 2002; ARCE, 2001b; BARBOSA, 1999;
SILVA, I, 2001 e CERISARA, 2002).
A concepção de “vocação”, que se baseia nas concepções liberais da profissão
docente, tem como pressuposto a negação e o rechaço do rebaixamento econômico e social
pelo qual passam os trabalhadores em educação, buscando se aproximar do ideário da
profissão liberal. A saída da profissão liberal é atribuir a um determinado corpo de
trabalhadores plena autonomia diante da sociedade, sem, no entanto, equacionar os
dividendos sociais que tal perspectiva aponta. Como aponta Enguita (1989, p. 1), além da
conquista de autonomia e controle sobre o exercício da profissão, as profissões liberais têm,
em seu projeto ético, a manutenção ou consecução de “[...] privilégios relativos em termos de
rendimentos, poder e prestígio.”.
A competência técnica, a licença obtida por diplomas, a independência e a
autonomia frente às organizações e aos clientes e a autorregulação são elementos constituintes
da concepção do magistério como profissão liberal. Esses elementos se configuram como
aspectos que aqueles trabalhadores em educação, alinhados a essa perspectiva, almejam e
também conformam uma das mediações da ideologia da “vocação”, justificada nos seguintes
termos:
O profissional não exerce sua atividade de maneira venal, mas sim como um
serviço a seus semelhantes; esta é a justificativa teórica de proibição de
concorrência entre os membros da profissão. Por isso seu trabalho não pode ser
pago, porque não tem preço, seu exercício é “liberal” e sua retribuição toma a
forma de “honorários” (certamente elevados!). A profissão se caracteriza por sua
vocação de serviço a humanidade. (ENGUITA, 1989, p. 2, tradução livre).
Mas, embora o discurso sobre a profissão liberal esteja marcado por uma espécie
de humanismo filantrópico, em que especialistas colocam seus conhecimentos e virtudes à
disposição da humanidade (quem sabe, os mais carentes!), o que move os trabalhadores da
educação para o estabelecimento dos princípios liberais de profissão como meta são seus
dividendos econômicos, sociais e políticos. De acordo com Enguita (1989, 2-3):
Na realidade, sabe-se que os principais atrativos de uma profissão liberal são seus
rendimentos e outras vantagens materiais e simbólicas e que a verdadeira razão da
proibição da concorrência é evitar a queda das retribuições e que os profissionais só
estão disponíveis para o público quando este possui condições financeiras, dentro
de um horário e um calendário decidido por eles mesmos. (tradução livre)
145
Assim, a questão da “vocação” torna-se uma justificativa corporativa e
ideológica de afastamento dos profissionais das demandas e necessidades daqueles que são
demandatários de seus serviços. O discurso da “vocação”, entretanto, tem servido também
como resistência subjetiva (individual) às condições de trabalho nas instituições educativas,
classificada por Souza (1996, p. 80) de estratégias defensivas.
Segundo Souza (1996), a estratégia defensiva do discurso da “vocação” no
magistério age como ideologia que oculta as contradições presentes nas condições de trabalho
dos professores. Tal discurso sustenta as precárias condições de realização do trabalho nas
instituições de educação, pois dificulta a organização coletiva, uma vez que pressupõe a
apreensão das condições de trabalho “na perspectiva individual, no gosto pela profissão, no
dever, na vocação.” (ibid., p. 103).
A “vocação” e o “dom” tornam-se uma forma subjetiva de suportar as difíceis
condições presentes no trabalho docente ao mesmo tempo em que buscam dar um tom de
qualidade e dignidade a uma atividade que tem sido historicamente degradada.
Há um movimento ambíguo nessa discussão que o professor faz acerca, ora do
dom, ora da vocação. Ao mesmo tempo que eles o qualificam para o exercício da
ação, há outra dimensão expressa nas estratégias defensivas. O trabalho docente
desenvolve-se no interior da ação política, propiciando o seu desenvolvimento, não
em relação aos alunos, mas no interior de uma sociedade e por meio desses alunos.
Ao mesmo tempo, para realizar essa ação, é necessário qualificação. Entretanto,
quando as condições estruturais lhes são retiradas, sobram-lhe o dom e a vocação,
como se garantissem a ação. (SOUZA, 1996, 80)
Em síntese, o discurso ideológico da “vocação”, como elemento mediador da
identidade docente, se baseia em ideais místicos e na religião, servindo tanto para justificar
uma prática como para controlá-la. Esse discurso mantém a compreensão da atividade docente
como algo que independe de quem executa e, posteriormente, como ação humanitária. A
ideologia da “vocação” do magistério serve ainda para resistir, de forma individualizada, as
precárias condições de realização do trabalho pedagógico, especialmente nas instituições
públicas de educação.
Em decorrência desses fatores, a construção de uma identidade coletiva,
politicamente engajada no projeto do trabalho, sofre reveses, dadas as formas identitárias que
essa ideologia ajuda a construir. O discurso da “vocação” enfatiza os seguintes fatores na
elaboração de uma identidade docente: a ordem mística e o sacerdócio como mediações
necessárias ao magistério; o individualismo liberal e o distanciamento dos demandatários do
serviço prestado; além da alienação e ocultação das reais condições de objetivação do trabalho
146
educativo. Uma identidade docente constituída, a partir desses critérios, tende mais para o que
Silva (1995, p. 33) denomina de identidade fragmentada ou desagregada. Para esse autor,
essas são identidades:
Próprias das conjunturas sociais conservadoras, historicamente mantidas e
reproduzidas por meio de instrumentos ideológicos. [...] Como, devido ao controle
social e/ou às estereotipias, o indivíduo não tem condições de questionar-se e
discernir, por si mesmo, os traços da sua identidade, as situações de vida e de
trabalho tornam-se postiças e vazias de significação. Reinam aqui o conformismo e
o sentimento de inutilidade.
Um outro aspecto constituinte do trabalho docente é o processo histórico em que
o magistério se torna uma ocupação predominantemente feminina. Os desdobramentos
históricos do trabalho docente têm no processo de feminização do magistério, especialmente
nas séries iniciais, um fenômeno universal, presente em toda a sociedade ocidental capitalista
(APLLE, 1987; NÓVOA, 1991; HYPÓLITO, 2001; LOURO; 1997). Tal processo ainda está
intimamente articulado à ideologia da “vocação”, agora não mais pensada a partir da religião,
do liberalismo ou do individualismo alienado, mas pelos papéis de reprodução do lar e da
família, historicamente atribuídos às mulheres.
Há um certo consenso na produção acadêmica que discute o trabalho docente no
interior das sociedades capitalistas sobre o fato de que o magistério sofre, em finais do século
XIX, um profundo processo de feminização. As abordagens históricas e sociológicas sobre o
trabalho docente nas escolas realizadas, tanto no Brasil (LOURO, 1989; 1997; HYPÓLITO,
2001; BRUSCHINI e AMADO, 1988; NOVAES, 1992; COSTA, 1995; CARVALHO, 1999;
CODO et.al., 1999), como na Europa e Estados Unidos (APLLE, 1987; 1988; ENGUITA,
1989; NÓVOA, 1991) demonstram como o magistério foi se tornando uma ocupação
feminina, e quais os aspectos econômicos, políticos e ideológicos que estão ocultados nesse
processo.
O fato de se tornar uma atividade exercida hegemonicamente por mulheres, de
acordo com Hypólito (2001), ocorre concomitantemente ao processo de proletarização do
trabalho docente, ou seja, na medida em que o magistério se torna um “gueto” feminino no
mundo do trabalho acompanha esse processo o aprofundamento de políticas de
desqualificação e desvalorização econômica e profissional das professoras. Aplle (1988),
analisando as realidades dos Estados Unidos e da Inglaterra, também observa que, ao se tornar
uma ocupação feminina, o magistério sofre um profundo processo de proletarização, na
contramão das perspectivas de profissionalização presentes em meados do século XIX.
147
Assim, a perda do controle sobre o trabalho, a sua intensificação, a crescente implementação
da divisão técnica da docência (entrada dos especialistas responsáveis por “pensar” os
processos educativos) e o rebaixamento salarial a níveis esdrúxulos são processos que
ocorrem paralelamente à inserção da mulher nessa ocupação.
É preciso destacar que a desqualificação, precarização, alienação e
desvalorização do magistério não são causadas pelas mulheres, em si; mas, pelas formas em
que o trabalho é, estruturalmente, dicotomizado na sociedade capitalista, não só em termos
sociais e técnicos (divisão entre trabalho intelectual e manual), mas também entre produção e
reprodução.
Na medida em que o trabalho apresenta-se como atividade fundamental quando
entra em ação e produz valor, isto é, realiza-se sob as determinações dos interesses de
acumulação e auto-expansão do capital objetivando as relações de extração de trabalho não
pago (mais-valia), quaisquer outras relações se constituem de forma secundária para essa
ordem societal. E, ainda que as atividades de reprodução da força de trabalho exercidas no
interior da família, principalmente por mulheres, sejam fundamentais até mesmo para o
capital (relação essa que só pode ser compreendida pelas mediações entre produção e
reprodução do indivíduo e da sociedade), resulta que somente a produção imediata de valor
tem significância para a sociedade produtora de mercadorias.
Desse modo, as demais atividades sociais que não concorrem para a produção
imediata de valor (como a educação formal e informal) são, ideologicamente, percebidas
como relações e processos secundários e obsoletos para a sociedade. Daí a explicação de que
o sistema do capital tem como um de seus impulsos mais destrutivos a mercantilização de
todas as coisas e dimensões da vida natural e social (WALLERSTEIN, 2001). Até mesmo
questões fundamentais ao processo de humanização, como a educação e a cultura, e de
manutenção e promoção da vida material, como a questão da saúde e da alimentação, são
veiculadas e materializadas pela sociedade como uma mercadoria; e, se não se conformam
como tal, é preciso que se torne um objeto mercantil, visto que o mercado se constitui como
“deus” regulador de tudo e de todos, pois porta em si a “natureza democrática”, como
apostam os apologetas neoliberais e os fundamentalistas do mercado.
Portanto, a dicotomia entre produção e reprodução se configura como uma das
justificativas de expansão da força de trabalho feminina não só no magistério, mas também na
ampla rede de serviços que foi criada com as políticas intervencionistas do Estado de Bem-
estar após os conflitos da segunda grande guerra. A necessidade de salvar o capital de si
mesmo e da ofensiva socialista desencadeada pela Revolução de 1917 se constituiu como o
148
estopim para que as políticas keynesianas de intervenção econômica estatal e de regulação
internacional do sistema econômico se configurassem como alternativas à manutenção da
ordem do capital. Para isso foi necessário dar uma face mais humana para a exploração
capitalista, via políticas públicas.
A expansão dos serviços de educação, saúde, habitação e transporte foi
acompanhada do emprego de um grande contingente da força de trabalho feminina, formando
uma economia de serviço, necessária à reprodução do capital de maneira indireta. Desse
modo, os trabalhadores que atuam na chamada economia de serviço são, geralmente,
caracterizados pela feminização e todas as implicações decorrentes dessa condição, como a
baixa qualificação e as taxas de desemprego elevadas (BRAVERMAN, 1987).
A necessidade de massificação das políticas sociais, no sentido de desonerar o
capital do papel de reprodução da força de trabalho e de atuar sobre os focos de tensão e
rebeldia, obviamente, recairia sobre as costas de alguém. E são os próprios trabalhadores que
atuam nessas áreas que vão “pagar” a conta. Nesse sentido, nada melhor do que lançar mão de
uma mercadoria historicamente marginalizada e desvalorizada, a força de trabalho feminina.
Assim, são nas áreas que passam por políticas de massificação, como a saúde e a educação,
que o emprego do trabalho de mulheres se torna hegemônico.
Constituída como o “elo” mais frágil presente na divisão sexual do trabalho, a
força de trabalho feminina passa a ser empregada, tanto pelo Estado como pelo capital, em
processos produtivos e atividades de serviços, com baixos salários, qualificação insuficiente e
também com o controle externo sobre seu trabalho (APLLE, 1988; NOGUEIRA, 2004;
BRUSCHINI, 1979). A reprodução dessas condições precária de trabalho é mantida pelas
relações de poder presentes no patriarcalismo e na opressão de gênero, cuja marca histórica e
deplorável é a naturalização do lugar e do papel social atribuídos às mulheres: o lugar é o lar e
o espaço do privado; e os papéis são os de mãe, dona-de-casa, rainha do lar e de esposa
solícita, meiga e cuidadosa.
O “nó” que cinge as trabalhadoras está situado no fato de que o modo de produção
capitalista explora as mulheres duplamente, tanto no processo de trabalho produtivo como na
reprodução da força de trabalho em casa. E é na exploração das pretensas características
“naturalmente” femininas que vai tornar o magistério um local atrativo para a força de
trabalho feminina, constituindo as instituições educativas como espaço possível e desejável
para o trabalho feminino. Dessa forma, reproduz-se novamente o discurso da “vocação”,
agora mediada pelas relações de gênero.
149
Nesse sentido, concordamos com Hypólito (2001), Aplle (1988) e Costa (1995)
que, se objetivarmos compreender o papel que as trabalhadoras e trabalhadores docentes
desempenham nas instituições educativas e no interior dos conflitos sociais, é preciso realizar
sínteses reflexivas com base em análises econômicas e de classe associadas às análises de
gênero, pois, associado ao fato de que o trabalho docente passe por um processo de
assalariamento e proletarização crescente não se pode ignorar que essa é uma profissão
exercida, hegemonicamente, por mulheres.
O contexto histórico de urbanização e de industrialização da sociedade
complexifica e amplia a necessidade de escolarização de amplas camadas da população e,
como foi anteriormente observado, a educação escolar, bem como outros serviços, sofrem um
processo de massificação. A caracterização do Estado como agente econômico e, portanto, a
sua constituição como empregador, altera significativamente a composição da classe
trabalhadora que passa a englobar não só o operariado tradicional, mas também trabalhadores
de escritório, do comércio e um sem número de funcionários públicos.
Nesse contexto, a incorporação da força de trabalho feminina não poderia ser
realizada sem a manutenção dos esquemas patriarcais de domínio e opressão, base ideológica
do conflito promovido pela divisão sexual do trabalho:
Às mulheres estava tradicionalmente reservado o mundo doméstico e sua
participação no trabalho fora de casa precisaria ser justificada sem a negação do seu
destino primordial. Com raízes muito antigas, construiu-se uma divisão entre
mundo público (masculino) e o privado (feminino) que, se nunca foi rígida e
definida, se oscilou e até mesmo inexistiu em algumas sociedades, ainda hoje não
foi totalmente destruídas. Esta divisão empurra as mulheres para dentro de casa e
incita os homens às atividades externas. Como decorrência, atribui-se à “natureza”
de cada um dos gêneros características que são adequadas às suas diferentes
funções e atividades: as mulheres seriam “naturalmente” dóceis, submissas,
sensíveis, dependentes, minuciosas, intuitivas, pacientes; os homens, mais lógicos,
organizadores, fortes, agressivos, independentes, decididos. (LOURO, 1989. p. 33-
34).
Os preconceitos, os conflitos e o exercício de poder existentes no interior das
relações sociais de gênero são utilizados, tanto pelo capital como pelo Estado-patrão, como
formas ideológicas de subutilizar a força de trabalho feminina de forma precarizada e
altamente exploradora. A inserção da mulher no mundo do trabalho é permeada pela
utilização das concepções que “naturalizam” os papéis sociais de gênero reservando o lugar
próprio (privado ou público) a que se “destinam” as mulheres e os homens. Dessa forma, a
idéia de macho provedor da família que se lança ao mundo da produção para sustentar seu lar,
e de mulher como reprodutora da família e educadora nata das novas gerações de acordo
150
com a moral e os preceitos da sociedade e da religião, como observa Arce (2002a) –
concepção essa que tem sua gênese em meados do século XVII – se conformam como
configurações ideológicas da secundarização e hiperexploração do trabalho feminino.
No magistério, especialmente na educação infantil e nas séries iniciais, a questão
da utilização da força de trabalho feminina é mediada pelos preceitos ideológicos de
“vocação” e “inatismo” que as mulheres possuem para realizar a educação das crianças. Tais
preceitos baseiam-se nas práticas de “maternagem” e do trabalho doméstico, que vem sendo
exercidos desde longas datas pelas mulheres, constituindo-se como eixos fundamentais da
socialização feminina (FARIA, 2002).
O trabalho doméstico se caracteriza pela acumulação de várias funções,
improvisação e troca temporária de funções com vizinhas e familiares. Segundo Piza (1992)
apud Faria (2002), o trabalho doméstico possui ainda os seguintes aspectos: a) ausência de
uma divisão nítida entre o público e o privado nas atividades domésticas; b) a rotina na
realização das tarefas diárias; 3) o fato de estar naturalmente vinculado à mulher e, portanto, a
não exigência do preparo prévio para se tornar dona-de-casa, visto que tal função é uma saber
natural que inclui o cuidado de crianças; e, 4) ser um trabalho que pode ser eventualmente
desempenhado profissionalmente, principalmente por mulheres pobres, sem necessitar
qualquer qualificação. De acordo com Faria (2002), os aspectos do trabalho doméstico se
encontram presentes no trabalho das instituições de educação infantil e nas séries iniciais
pautados pela “naturalização” dessas atividades e na negação da necessidade de aprendizados
que vão além da socialização feminina.
Já o conceito de maternagem é utilizado para explicar as relações sociais de
cuidado e educação de crianças pequenas realizadas no interior da interação entre mãe-filho.
Segundo Spodek e Saracho (1998, p. 32), as tarefas de maternagem “[...] englobam os
cuidados envolvidos na criação de uma criança, visando a satisfação de suas necessidades
físicas e emocionais, e podem ser desempenhados pela mãe verdadeira ou por um substituto.”.
Para Badinter (1985 apud SCHULTZ, 2004, p. 17), o termo maternagem é compreendido
como:
[...] “cuidados maternais”, ou seja, aquelas atenções de que uma criança necessita
desde o nascimento, sem os quais ela não poderia sobreviver. Embora a expressão
derive do vocábulo “mãe”, “maternidade” a autora citada considera que a ação de
“maternagem” pode ser exercida por “qualquer pessoa que não a mãe”: “o pai, a
ama” podem “maternar uma criança”.
151
Segundo essa perspectiva, a maternagem se refere a um conjunto de práticas,
produzidas social e historicamente, que se caracteriza pelas relações de cuidado, afeto,
acolhimento e de estímulo entre adultos e crianças, necessários ao “desenvolvimento de uma
personalidade autêntica” dessas últimas, como assevera (SCHULTZ, 2004, p. 18).
Carvalho (1999), em sua pesquisa sobre trabalho docente nas séries iniciais,
afirma que essa atividade se caracteriza por uma espécie de “cultura do cuidado” que abrange
aspectos do modo de ser e se relacionar feminino, também construídos social e
historicamente. Para essa autora, a prática pedagógica nessas instituições acaba se
caracterizando como uma atividade marcada por “pressupostos que subsidiam também as
práticas de maternidade, uma matriz cultural comum tanto aos ideais de boa professora como
de boa mãe”, constituída, mas também constituinte de “uma concepção de infância, um
conceito de ‘cuidado’ infantil e as normas sobre a adequação das mulheres a essas tarefas”.
(ibid., p. 232).
As concepções supracitadas apontam para o caráter fundamental do
envolvimento emocional e afetivo do adulto com a criança numa perspectiva que busque o
desenvolvimento pleno da criança no interior dos processos educativos. Tal concepção se
configura como um aspecto imprescindível e inerente aos processos educativos nas
instituições de educação infantil, especialmente no trato com os bebês (SCHULTZ, op.cit.),
mas não só.
Não negamos a positividade e a exigência das práticas de maternagem no interior
do trabalho educativo. Questionamos sim o caráter ideológico que a maternagem assume no
trabalho docente ao colocar a questão dos cuidados higiênicos, corporais, afetivos e da
educação primária na pequena infância como papéis exclusivamente femininos. Tendo em
vista a sociedade atual, marcada pela divisão sexual do trabalho e, portanto, por papéis
hierárquicos entre os gêneros, é problemática uma matriz cultural que articule “cuidado
infantil” e feminilidade (CARVALHO, op.cit.) amarrada a esses condicionantes, pois esta
matriz acaba por “naturalizar” os lugares e os papéis sociais da mulher e do homem na esfera
privada e na pública (especialmente no mundo do trabalho), subordinando a primeira em
relação aos últimos. Nesse sentido, a materialização do trabalho docente na educação infantil
tem sido caracterizada pela exclusividade da atuação feminina, diferentemente das
concepções que vêem as possibilidades de que a maternagem seja exercida por mulheres e
homens, mães e trabalhadoras da educação.
É possível identificar em Bruschini e Amado (1988) quatro fatores
determinantes para o processo de feminização do magistério: 1) o ensino é ainda considerado
152
como uma extensão do cuidado com crianças que se caracteriza como uma função feminina
dentro da família; 2) o magistério se configura como uma ocupação que permite conciliar a
vida profissional com as tarefas domésticas e familiares; 3) as vantagens do emprego no
serviço público, tais como a estabilidade e a possibilidade de fazer carreira; e, 4) a ideologia
que alega que os salários femininos podem ser inferiores aos masculinos, devido ao seu
caráter secundário ou complementar.
Nesse sentido, o processo de feminização do magistério torna-se não só
aceitável, mas desejável e promovido por políticas oficiais e pelos próprios pensadores da
educação. Em suas investigações, Arce (2001; 2002a; 2002b) expõe que, tanto os pensadores
da educação – em especial, os filósofos e educadores que formularam as bases teóricas do
escolanovismo, como Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Montessori –, bem como as políticas
oficiais promoveram (e ainda promovem) a identificação entre mulher, mãe e professora
como síntese “perfeita” para as trabalhadoras em educação, especialmente na educação
infantil.
Diversos são as investigações e análises sistemáticas que aproximam suas
reflexões sobre a feminização do trabalho docente ao processo de precarização,
desqualificação, alienação e proletarização, com base no conceito de divisão sexual do
trabalho e articulando os determinantes de classe e de gênero (HYPÓLITO, 2001; APLLE,
1987; 1988; BRUSCHINI, 1979; BRUSCHINI e AMADO, 1988; LOURO, 1989; FREIRE,
1993; COSTA, 1995).
Por outro lado, outros estudos sobre gênero e docência, mais próximos dos
estudos de gênero, identificam nos trabalhos que aproximam a questão da proletarização do
trabalho docente com o seu processo de feminização, uma postura preconceituosa acerca das
especificidades culturais presentes nos processos de socialização feminina que são marcados
pela afetividade e por uma ética do cuidado com o outro (CARVALHO, 1999). Essa autora
afirma que o debate pedagógico brasileiro tem abordado as relações de gênero e trabalho
docente sob duas formas, muito embora ambas
[...] partam da constatação de que se trata de uma maioria de docentes do sexo
feminino e tendem a atribuir essa marca a características da feminilidade, sem
distinguir teoricamente o plano das prescrições do plano das identidades individuais
de gênero e assim, confundindo características do trabalho docente com o sexo do
professor. (CARVALHO, 1999, p. 218).
Para Carvalho (idem), um dos modelos interpretativos sobre o trabalho docente
é marcado pela acusação feita sobre as mulheres de transferirem para a escola (espaço público
153
e profissional) as referências e práticas relativas à família (espaço privado e doméstico), tanto
por meio do exercício da socialização primária, quanto através da continuidade do trabalho
doméstico e da maternagem. O resultado disso seria a “contaminação das práticas”
profissionais, pedagógicas e trabalhistas causada pela confusão por parte das mulheres
professoras “que só traria[m] prejuízos à prática pedagógica, à profissionalização dos
docentes ou a sua mobilização sindical, conforma a ênfase de cada autor.” (op.cit.).
A outra abordagem que Carvalho (idem) explicita, e com a qual se identifica,
fala de uma determinada combinação entre casa e escola e da materialização de uma ética
feminina alternativa no cotidiano da escola. Segundo essa autora, “ […] ao contrário da
primeira abordagem, nesses casos tende-se a tomar como vantagem essa presença de
elementos associados às mulheres no interior das relações pedagógicas.”.
Com uma abordagem semelhante a respeito da positividade da objetivação das
características morais e éticas presentes na socialização feminina no interior das instituições
escolares, Cerisara (2005; 2002), Ávila (2002), Tristão (2004), Ongari e Molina (2003)
observam, em suas investigações, a necessidade de se valorizar os aspectos presentes na
feminilidade das professoras e auxiliares que trabalham na educação infantil como aspectos
constituintes de sua formação marcados pelo afeto, cuidado e aproximação em relação ao
outro e por práticas mais solidárias e menos racionalistas.
Não há dúvidas de que as contradições de gênero presentes nas relações sociais
e, conseqüentemente, no interior das práticas pedagógicas se constituem como problemas, não
só de ordem acadêmica, mas, sobretudo, sociais, no âmbito das desigualdades estabelecidas
social e culturalmente entre homens e mulheres; desigualdades essas, fundadas em relações de
opressão entre os gêneros. Mas é de fundamental importância não perder de vista o caráter
contraditório estabelecido nessas relações, visto que outras mediações estão presentes, como,
por exemplo, a questão das classes sociais. Ou seja, nem todas as mulheres são oprimidas e
nem todos os homens são opressores do gênero feminino; outras determinações de classe,
etnia, raça têm relevância no tocante às questões presentes nos conflitos sociais.
Nesse sentido, concordamos com Ricardo Antunes (2003, pp. 94-95) quando
este afirma que,
Embora heterogeneizado, complexificado e fragmentado, as possibilidades de uma
efetiva emancipação humana ainda podem encontrar concretude e viabilidade social
a partir das revoltas e rebeliões que se originam centralmente no mundo do
trabalho; um processo de emancipação simultaneamente do trabalho e pelo
trabalho. Esta não exclui nem suprime outras formas de rebeldia e contestação.
Mas, vivendo numa sociedade que produz mercadorias, valores de troca, as revoltas
154
do trabalho têm estatuto de centralidade. Todo o amplo leque de assalariados que
compreendem o setor de serviços, os trabalhadores “terceirizados”, os trabalhadores
do mercado informal, os “trabalhadores domésticos”, os desempregados, os
subempregados etc., que padecem enormemente da desmontagem social operada
pelo capitalismo em sua lógica destrutiva, podem (e devem) somar-se aos
trabalhadores diretamente produtivos e por isso, atuando enquanto classe,
constituem-se no segmento social dotado de maior potencial anticapitalista.
E continua afirmando que
[…] a luta da classe-que-vive-do-trabalho é central quando se trata de
transformações que caminham em sentido contrário à lógica da acumulação de
capital e do sistema produtor de mercadorias. Outras modalidades de luta social
(como a ecológica, a feminista, a dos negros, dos homossexuais, dos jovens, etc.)
são, como o mundo contemporâneo tem mostrado em abundancia, de grande
significado, na busca de uma individualidade e de uma sociabilidade dotada de
sentido. Mas, quando o eixo é a resistência e o confronto à lógica do capital e à
sociedade produtora de mercadorias, o centro desta ação encontra maior
radicalidade quando se desenvolve e se amplia no interior das classes
trabalhadoras, ainda que reconhecendo que esta empreitada é muito mais complexa
e difícil que no passado, quando a sua fragmentação e heterogeneidade não tinham
a intensidade encontrada no período recente. (grifos do autor).
Desse modo, é preciso considerar as formas de exploração do trabalho feminino
a partir das mediações presentes no interior da divisão sexual do trabalho e compreender qual
forma essas relações assumem no interior da educação, em geral, e da educação infantil.
Nesse sentido, compreendo a divisão sexual do trabalho a partir da definição de Lorena H.
Silva (1997, p. 61):
A divisão sexual do trabalho é a separação e distribuição das atividades de
produção e reprodução social de acordo com o sexo dos indivíduos. É uma das
formas mais simples e, também mais recorrentes de divisão social do trabalho.
Qualquer sociedade tem definidas, com mais ou menos rigidez e exclusividade,
esferas de atividades que comportam os trabalhos e tarefas consideradas
apropriados para um ou outro sexo. De modo geral, a esfera feminina situa-se no
mundo doméstico privado, da produção de valores de uso para o consumo do
grupo familiar, da reprodução da espécie e do cuidado das crianças, dos velhos e
dos incapazes, enquanto que as atividades de produção social e de direção da
sociedade, desempenhadas no espaço público, são atribuições masculinas. Essa
divisão do trabalho diferencia-se em decorrência da posição dos indivíduos na
estrutura social e política da sociedade. (grifos meus).
Nesse sentido, preliminarmente, cabe afirmar que a feminização da docência é
expressão da divisão sexual do trabalho no magistério e ocorre concomitantemente ao
processo de proletarização do magistério. As causas do processo de feminização e
proletarização paralelos podem ser identificadas, entre outros fatores, na utilização ideológica
da “naturalização” dos papéis sociais atribuídos e exercidos historicamente pelas mulheres de
mãe-dona-de-casa e esposa, que resguarda a representação de “educadora nata”,
especialmente, em se tratando de crianças pequenas; “naturalização” essa que também é uma
155
das características do processo de divisão sexual do trabalho, como observa Lorena H. Silva
(1997, 61-62).
Cabe ressaltar que as investigações históricas sobre a educação infantil e sobre
suas trabalhadoras apontam que essa é uma instituição criada para a classe trabalhadora – no
sentido de otimizar a exploração da força de trabalho feminina e aculturar a família proletária
a partir da cultura e da moral burguesas –, e que a força de trabalho empregada nessas
instituições são formadas hegemonicamente por mulheres, desde o início. Portanto, talvez seja
mais pertinente entender a docência na educação infantil como uma profissão sexualizada e
não femininizada. Sexualizada porque esse é um trabalho que vem sendo construído no
feminino, como observa Cerisara (2002, p. 20), diferentemente do magistério do restante dos
sistemas de ensino (ensino fundamental, médio e superior), que passam por um processo de
feminização na medida em que a profissão, que tem uma gênese masculina, vai se tornando,
ao longo da história, em um gueto feminino no mundo do trabalho.
Outro fator é que essas investigações também indicam que o trabalho docente
nas instituições de educação infantil não passa por um processo de proletarização; as
trabalhadoras que ali atuam vivenciam uma atividade já, desde o início, alienada,
desqualificada, precária e desvalorizada e, portanto, proletarizada, condição essa
materializada, principalmente, pelos grupos sociais a que se destinam as atividades dessa
instituição, crianças e mulheres das classes trabalhadoras. Esse trabalho é marcado, ainda
hoje, pela presença de um sem número de pessoal com baixa qualificação e formação, pelo
voluntarismo, pelas precárias condições dos prédios, pelo emprego de trabalhadoras em
regime de trabalho temporário, por baixos salários, pela divisão hierárquica do trabalho, por
uma complexa heterogeneidade entre as trabalhadoras – em termos de vinculação
administrativa, salários, jornadas de trabalho, funções atribuídas etc. – (BRASIL/MEC/INEP,
2001; CAMPOS, 1994; CAMPOS et.al., 1991; ROSEMBERG, 2003) e, também, pela quase
inexistência de organização político-sindical dessas trabalhadoras, particularmente na
realidade da RMEG (SILVA, 2004).
E um dos fatores que tem “justificado” a precariedade do trabalho docente na
educação infantil, além da destinação social da instituição, é a identidade fabricada
78
de
“educadoras natas”. Essa identidade, segundo Arce (2001b), se constitui a partir de uma
78
- Martin Lawn (2001, p. 119) analisa e aponta a ação do Estado e demais instituições da sociedade civil
(agências formadoras, associações, sindicatos, meios de comunicação etc.) como agentes que fabricam
identidades docentes “[…] enquanto uma forma de moldar e gerir professores.”. Segundo esse autor, a
fabricação de uma identidade docente remete sempre a um projeto político e social, e quase nunca é definida de
forma autônoma pelo indivíduo professor; tais identidades envolvem as mediações das instituições e do quadro
histórico e social em que estão inseridos.
156
mitificação dos papéis sociais de mulher-mãe-educadora como sinônimos de uma atividade
“natural” do gênero feminino; atividade essa, efetivada por relações fetichizadas em que as
diferenças biológicas existentes entre os gêneros servem para dar suporte ideológico às
relações sociais de discriminação, preconceito e de exploração. Como as instituições de
educação infantil, voltadas para o atendimento à infância da classe trabalhadora, vêm sendo
caracterizadas como espaço de
[...] custódia de assistência, utilizou-se de modo claro um apelo à biologização da
competência educativa feminina, defendendo-se a existência de um “instinto
maternal”. Conseqüentemente, admitiu-se que os seus deficitários quadros
profissionais se compusessem quase que exclusivamente de mulheres voluntárias,
sem necessitar de qualquer formação específica, a não ser em alguns casos um
curso de puericultura, que preparava-as para os cuidados físicos das crianças
pequenas. (BARBOSA, 1999, p. 2).
Para Souza (1996, p. 54), essa sexualização do magistério – que oculta, tanto as
relações de gênero presentes na docência, quanto a divisão sexualmente hierarquizada do
trabalho – tem como resultado a “naturalização” dos processos de degradação desse trabalho.
Com freqüência a justificativa para a sexualização do magistério, como ocupação
feminina – decorrente de condições socioeconômicas –, aparece como fenômeno
natural, por causa de exigências de qualificação para o exercício da docência
caracterizadas como femininas. Trata-se de estereótipos do que é natural ao homem
e à mulher. Assim, ao identificar o magistério, no nível da representação simbólica,
como dom natural, este aparece como estratégia de barateamento da força de
trabalho, de esvaziamento do conteúdo e conseqüentemente de desqualificação do
trabalho docente.
Dessa forma, ao afirmar que o trabalho docente na educação infantil se
caracteriza pela sexualização dessa ocupação, estou submetendo à análise o fato de que essa
atividade teve sua gênese e se desenvolveu como espaço exclusivamente feminino,
caracterizado por práticas de maternagem, muito semelhantes às que acontecem na relação
mãe-filho, pelo trabalho doméstico e, também, pela privatização das relações, quase que
confundindo a relação casa-escola. Outra questão é o fato de que as mediações e os
significados da docência, exercida na educação infantil (tanto nos aspectos atribuídos por
teorias pedagógicas e pelas políticas oficiais como na própria auto-representação de
professoras e agentes educativos), são associados às funções exercidas pelas mulheres na
esfera doméstica.
Alves (2002), ao realizar uma investigação teórico-empírica sobre os elementos
que mediam a docência na educação infantil e os significados que as próprias trabalhadoras da
educação infantil atribuem ao seu trabalho nos Cmei’s de Goiânia, indaga a questão da
157
identificação imediata entre profissão e socialização feminina como um processo de alienação
presente nessa atividade, fundando um sentido de profissionalidade baseada na esfera
subjetiva. Essa autora sintetiza essa reflexão da seguinte forma:
Ao definir o papel do educador da infância, professoras e coordenadoras
pedagógicas recorrem freqüentemente à sobreposição da afetividade como
elemento central nas relações educativas e de trabalho. Elas afirmam que sua
atuação na educação infantil é determinada por “gostarem da profissão e das
crianças” e porque encontram “realização e gratificação pessoal” no trabalho. O
amor e o prazer no trabalho são identificados, ainda, como a principal e
indispensável motivação para a busca de aprimoramento profissional. A
profissionalização, no sentido de fundamentar e ampliar as práticas cotidianas,
estaria portanto, vinculada a elementos de ordem pessoal. (ALVES, 2002, p. 179,
grifos da autora).
Essa autora continua sua análise discutindo que a afirmação dessas concepções
por parte das trabalhadoras da educação infantil corrobora com a cristalização do caráter não-
profissional de seu trabalho e de práticas pedagógicas qualitativamente insuficientes nessas
instituições.
Desse prisma, as professoras alinham-se com as concepções de mulher mãe
educadora nata, antagônicas à defesa de qualificação e profissionalização da
educação infantil, pois privilegiam atributos pessoais – carinho, paciência, amor,
dedicação – como características suficientes para ser educadora de crianças
pequenas. Tais concepções, historicamente, naturalizam a docência como vocação,
dom, tornando imperceptíveis o seu caráter de atividade social e ideologicamente
condicionada, bem como suas possibilidades de transformação. (ALVES, 2002, p.
179, grifos da autora).
Infelizmente, podemos afirmar que do ano de 2002 ao de 2005 esse quadro não
sofreu alterações significativas. Durante o processo de investigação, ao lançar mão de
entrevistas, procurei perceber as representações que as professoras e agentes educativos
elaboram sobre seu trabalho nas instituições de educação infantil. Em momentos distintos das
entrevistas, questionei, direta e indiretamente, as professoras e agentes educativas quanto às
motivações que levaram-nas a trabalhar na educação infantil. E, em diversos momentos das
entrevistas, busquei identificar em seus depoimentos os elementos mediadores do trabalho
realizado na educação infantil. Somente no sentido de ilustrar, vejamos as seguintes questões.
Dentre o total de 12 (doze) professoras entrevistadas, foi possível identificar
como motivações e elementos mediadores do trabalho na educação infantil, em 83% das
falas, a afirmação de questões subjetivas como subsídios fundantes do seu trabalho. Esses
elementos giraram em torno da questão das “relações de afetividade com as crianças”, do
“gostar do trabalho com crianças”, da questão do “instinto maternal”, do envolvimento
158
pessoal, do “jeitinho e delicadeza feminina”, do carinho e apego com as crianças, do “amor à
profissão” e da influência da maternagem. Somente em uma entrevista de uma professora não
foi possível identificar essa questão e a outra resposta aponta a docência na infância como
oportunidade de entrada no mundo do trabalho diante da sua necessidade de emprego.
Entre as trabalhadoras que realizam a função de agente educativa, é possível
identificar as mesmas representações, presentes nas falas das professoras, sobre o trabalho
realizado nos Cmei’s, em 58% dos depoimentos das 12 (doze) pessoas entrevistadas.
Entretanto, 2 (duas) agentes educativas apresentaram o trabalho na educação infantil como
oportunidade de emprego, uma como ascensão no serviço público e outra como possibilidade
de voltar a trabalhar na educação. Em uma das entrevistas também não foi possível identificar
a questão das motivações e dos elementos que medeiam o trabalho no Cmei.
Somente no sentido de afirmar com dados estatísticos o que já é de domínio
público, num diagnóstico sobre as funcionárias dos Cmei’s levantado pela SME em Goiânia
entre fevereiro e março de 2005, das 551 funções de agente educativa espalhadas em 69
instituições, todas são exercidas por mulheres. No caso de professores, as 585 funções eram
realizadas somente por mulheres.
No ano de 2003 em que percorri 20 instituições e propus questionários para
professoras e agentes educativos, só encontrei homens exercendo funções administrativas e de
vigias. E, ao retornar ao campo (em maio de 2005) para realizar entrevistas, levantar
documentos e observar o cotidiano das instituições, mas em um recorte menor (4 Cmei’s), foi
possível notar a mesma realidade. Dentre esses quatros Cmei’s, apenas dois tinham homens
trabalhando. No Cmei “Alegria Infantil” havia um servidor na função de secretário, e na
instituição “Tia Amélia” havia dois servidores, um na função de secretário, outro na de vigia.
Nos outros dois Cmei’s (“Santo Expedito” e “Flores do Campo”), não havia nenhum servidor
homem exercendo qualquer função; somente um bolsista universitário cumpria algumas
horas-atividades no Cmei “Santo Expedito”, auxiliando no que fosse necessário.
Mesmo diante das novas diretrizes legais e das novas concepções de educação
infantil, produzidas pelo debate acadêmico e pelas políticas oficiais, que propõem que essa
instituição incorpore em seus quadros profissionais não só mulheres, mas, também, homens e
professores/as com distintas formações pedagógicas, a educação infantil ainda permanece
local de trabalho estritamente feminino – não só no Brasil, mas no mundo todo como
podemos perceber nos trabalhos de Spodek e Saracho (1998), Jensen (2004), Ongari e Molina
(2003) e Penn (2002). Dessa forma, o trabalho docente nessas instituições se caracteriza como
ocupações que compõem o que Bruschini (1979) caracteriza como uma concentração
159
feminina em determinados ramos de trabalho, especialmente no setor de serviços e nas
chamadas ocupações sociais (assistência, cuidado e educação das crianças, saúde).
Nota-se, por meio da análise desses dados, que os elementos que realizam a
mediação e dão significados ao trabalho docente na educação infantil estão intimamente
ligados às questões de ordem pessoal e subjetiva, presentes, também, nos processos de
socialização do gênero feminino, principalmente no que tange as práticas de maternagem.
Ao analisar a questão da sexualização da força de trabalho, Bruschini (1979, p.
8), citando Schmink (1977), afirma que “[…] a concentração de mulheres no setor de serviços
provoca a falta de integração do sexo feminino no movimento trabalhista, agravada ainda por
divisões internas entre as mulheres, por estarem empregadas em um setor que se caracteriza
pela heterogeneidade.”. Nesse sentido, nos interessa nessa discussão, sobretudo, as
contradições e os limites que a feminização/sexualização do trabalho docente envida sobre a
organização política e sindical dos trabalhadores e das trabalhadoras em educação. Novaes
(1992) e Freire (1993) tecem uma reflexão crítica sobre como o estereótipo do magistério
como profissão feminina mediada pelo “dom” e “vocação” feminina de educadora “nata”
corrobora com a identificação dessas trabalhadoras como um quase parente, as “tias” (parente
postiço para Novaes (1992)), que não luta e reivindica seus direitos.
Segundo Paulo Freire (1993, p.25), essa imagem de “tias” se configura como
uma “sombra ideológica” que corrobora com a manutenção da não profissionalização do
magistério, amortecendo essas contradições e subtraindo a capacidade de indignar-se. Nas
suas palavras, “A tentativa de reduzir a professora à condição de tia é uma ‘inocente’
armadilha ideológica em que, tentando-se dar a ilusão de adocicar a vida da professora, o que
se tenta é amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefas
fundamentais.” (grifos do autor).
Entretanto, é necessário considerar que o processo de desqualificação do
trabalho, de separação entre quem planeja (especialistas) e quem executa os processos de
ensino-aprendizagem, de intensificação do trabalho no magistério por meio de sua
burocratização (ARROYO, 1980; APLLE, 1987; 1988; NOVAES, 1992; LOURO, 1989) e a
aproximação das classes populares na medida em que os sistemas de ensino são massificados
(COSTA, 1995) determinaram condições históricas para que as professoras se mobilizassem e
se articulassem politicamente em sindicatos.
Ao assumir uma função pública, as trabalhadoras em educação tomam de assalto
o espaço público, explicitando não só as contradições de suas precárias condições de trabalho,
mas também os conflitos de gênero. Nesse processo, ocorre uma mudança na imagem do
160
magistério e “A ‘professorinha normalista’ foi substituída pelo termo amplo de ‘educadora’,
depois (nos anos 70) pelos ‘profissionais do ensino’, e mais recentemente (anos 80) pelos
‘trabalhadores da educação’.”. E, nesse sentido, essa nova imagem assume um caráter político
e de classe ao passar pelo seguinte movimento: “A doação e o sacerdócio cederam lugar à
reivindicação por melhores condições de trabalho e salários. A imagem de mãe substituta (ou
tia?) está sendo substituída pela de trabalhadora assalariada e sindicalizada.”. (LOURO, 1989,
p. 38).
Souza (1996) destaca a existência no trabalho docente de uma tensão permanente
entre conformismo e resistência que ora acumula elementos de passividade e resignação
diante das condições de vida e de trabalho e do papel de reprodução social, ora essa tendência
é tencionada por processos de resistência no local de trabalho e em sindicatos. Essa
contradição entre a passividade e a combatividade, especialmente em função das mediações
das questões de gênero, são também analisadas por Costa (1995, p. 184) que afirma que
[…] apesar de submetida a constrangimentos e coerções, a força de trabalho
feminina no magistério não tem revelado passividade e submissão. A docência tem
sido um palco onde acontece o brilho e o eclipsar de ingredientes da tradição. Em
muitas situações emerge o maternal e o afetivo, em outras, se projetam e avolumam
posturas de “novas” mulheres, ou seja, as professoras conquistando sua
profissionalização. […] As lutas são por seus alunos, pela dimensão social do seu
trabalho, mas são também por elas, pela melhoria de suas condições laborais, por
remuneração justa, por dignidade profissional.
Ao apresentar o fato de que as trabalhadoras da educação começam a se
organizar e mobilizar em sindicatos e a lutar politicamente, principalmente a partir de meados
da década de 1970, questiona-se as teses de passividade e subordinação feminina; concepções
essas que também “naturalizam” essas condições, como se essas características não fossem
produzidas em determinadas relações de poder. Ademais, é importante ressaltar que, ainda no
processo de industrialização do século XIX, as mulheres trabalhadoras buscaram se
organizarem politicamente em sindicatos, mesmo diante dos limites impostos pelo poder do
patriarcado presente nas associações proletárias (NOGUEIRA, 2004).
Nesse sentido, a questão da proletarização se conforma como uma mediação
fundamental, pois, na medida em que as trabalhadoras da educação infantil se aproximam das
classes populares objetivamente – por meio das condições degradantes de trabalho e de vida –
e subjetivamente – por intermédio da convivência com os anseios dos trabalhadores no
cotidiano de seu trabalho, das suas lutas e quando se organizam em sindicatos – estão dadas as
161
possibilidades de elaboração de uma identidade politicamente engajada em um projeto
contrário ao sistema do capital.
Assim, é de fundamental importância verificarmos o estatuto assalariado do
trabalho docente e como a consciência desse fato concorre para a construção de uma
identidade docente auto-representada na condição de trabalhadores em educação, mediada
pela sindicalização das professoras e professores e por suas lutas por condições dignas de vida
e trabalho.
3.1.3 Assalariamento, proletarização e organização política dos trabalhadores docentes
O assalariamento do trabalho docente é resultado dos processos de
funcionarização dos professores e estatização da educação escolar. Como foi aventado
anteriormente, na medida em que o Estado assume o papel de provedor central da educação
escolarizada, os trabalhadores docentes passam a fazer parte da massa assalariada dos
funcionários da burocracia estatal. Os proventos individuais percebidos pelos professores em
virtude dos serviços educacionais prestados para a comunidade ou para a igreja são
substituídos pela remuneração salarial. De trabalhador individual, quase artesanal, os
professores e professoras se tornam trabalhadores coletivos sem o controle pleno dos meios de
produção de sua atividade.
A questão do assalariamento do trabalho docente pode se configurar como um
fator importante na elaboração de uma identidade política dos trabalhadores em educação e,
conseqüentemente, das trabalhadoras da educação infantil, na medida em que o exercício do
ofício de professor/a passa da esfera mística da “vocação” (nas suas diversas configurações)
para o campo das relações de produção da vida material. Nesse sentido, esses trabalhadores e
trabalhadoras se aproximam das condições de vida e de trabalho daqueles que vivem do seu
próprio trabalho e inicia um processo de construção de representações e de uma auto-
representação com os setores oprimidos da sociedade na luta por dignidade e liberdade.
De acordo com Hypólito (2001), o processo de proletarização do trabalho docente
ocorre na medida em que essa atividade passa a ser caracterizada pelo regime assalariado, pela
perda do controle sobre o processo do trabalho. A funcionarização do trabalho docente foi
somente o primeiro passo na direção de organização do trabalho escolar nessas instituições a
partir das formas de gestão e controle de trabalho presente nas empresas capitalistas
(NOVAES, 1992; ARROYO; SAVIANI, 2002a). A partir daí decorreram os processos de
desqualificação, degradação e fragmentação do trabalho, promovidos pela divisão técnica do
trabalho que se caracteriza pela inserção da figura do especialista na educação.
162
Outra questão importante resulta na crescente intensificação do trabalho docente
objetivada: a) pela burocratização da atividade do magistério (preenchimento de fichas,
relatórios, diários); b) pelos baixos salários que passam a exigir desses trabalhadores e dessas
trabalhadoras uma longa jornada de trabalho a fim de complementar seus salários; e, c) pelas
atuais exigências de formação do “novo trabalhador” que determinam aos professores a
permanente qualificação – feitos geralmente às custas dos próprios trabalhadores, em cursos de
finais de semana, prolongando, mais ainda, sua jornada de trabalho.
A questão do assalariamento do trabalho docente implica num processo de
adequação dessa atividade às determinações do capital sobre a totalidade do trabalho social,
cujo resultado é a alienação do trabalhador por meio da expropriação dos meios de produção
de sua atividade, de seu produto, de seu saber e dos processos de objetivação dessa atividade.
Com o advento da estatização da educação e da massificação das instituições escolares, os
professores passam à condição de dependência desses espaços para a efetivação do ofício, ou
seja, a docência sai da esfera de atendimento particularizado e da condição de espaço
extraordinário (na própria casa do mestre ou em locais improvisados para a realização de
atividades de ensino) para a centralização das instituições sobre o controle do Estado ou de
empresários licenciados pela administração estatal a comercializar educação. Dessa forma,
[…] as formas de desenvolvimento da organização escolar assumem cada vez mais
um modelo racional de organização análogo às formas de organização do trabalho
em outros setores da produção, particularmente o fabril. Vão absorvendo, assim,
com o tempo, a lógica gerencial-capitalista do trabalho, buscando atender ao duplo
objetivo de, ao mesmo tempo, controlar o sistema escolar e o trabalho docente e
formar trabalhadores dentro de uma lógica de disciplinamento que atendesse às
demandas do mundo do trabalho que vinham se desenhando. (HYPÓLITO, 2001, p.
34).
As novas formas de organização da educação escolar, inauguradas pela sua
estatização, tornam a atividade do magistério e o trabalho dos indivíduos que o exerce uma
mercadoria objetivada em força de trabalho a ser trocada por salário no mercado de trabalho.
É importante ressaltar que a organização societal capitalista institui todos os
indivíduos como vendedores de mercadoria. De acordo com Marx (1975), o desenvolvimento
da produção em geral em produção de mercadorias torna todos, inevitavelmente, em
vendedores de mercadoria, sejam elas objetos ou serviços. No modo de produção capitalista,
fazer dinheiro é finalidade última de toda atividade. A contradição está posta no fato de a
única mercadoria que os trabalhadores possuem para vender é sua própria vida, pois os meios
de sua produção não lhe pertencem.
163
Aos trabalhadores não há possibilidade real de escolha de suas ações no mercado
de trabalho. Esses, inevitavelmente, vendem suas forças de trabalho em troca de salários. Essa
relação de troca é condição inerente à própria produção do capital em sua forma societária,
sendo, portanto, necessária à constituição e reprodução das formas metabólicas do capitalismo
e em sua constituição mesma como classe trabalhadora (MARX, 1980).
Mas, nessa relação, o que caracteriza o salário? O salário se configura como o
valor, o preço pago pela mercadoria força de trabalho, caracterizando-se pela quantidade de
dinheiro que os donos dos meios de produção pagam ao trabalhador por um determinado
tempo de seu trabalho ou pela execução de uma determinada tarefa (MARX, 1980).
No interior das relações sociais de produção capitalistas, o trabalho é
simplificado, reduzido, desqualificado, generalizado e abstraído, configurando a atividade
consciente do homem como uma mercadoria qualquer. Por essa mercadoria é pago uma
quantidade condizente aos custos de sua produção (reprodução, qualificação etc.). Nesse
sentido, ao moldar o trabalho na forma de mercadoria, como uma coisa, o reduz a um
conjunto ínfimo de atividades simples (força de trabalho) que custa, exatamente, o mínimo
para a reprodução da força de trabalho como tal.
O salário caracterizado pela quantidade mínima que garanta a subsistência do
trabalhador e de sua família é também o valor mínimo necessário à reprodução da força de
trabalho, garantindo a dependência do trabalhador as relações sociais de produção capitalistas
(MARX, 1989).
O preço da mercadoria força de trabalho (salário) segue, invariavelmente, as leis
de mercado, sendo sua elevação ou redução composta pelas relações entre oferta e procura do
mercado de trabalho e, principalmente, pelo custo de produção da força de trabalho. Os custos
da produção da força de trabalho são determinados pelo tempo de trabalho necessário para
produzir e conservar essa mercadoria. Estes custos são consideravelmente reduzidos mediante
a simplificação e desqualificação que o trabalho sofre ante a divisão técnica do trabalho,
tornando mínima a quantia necessária à produção e reprodução do trabalhador.
Os custos de produção da força de trabalho simples compõem-se, portanto, de
custo de vida e de custo de reprodução do trabalhador. São estes custos de vida e de
reprodução que constituem o salário. O salário assim determinado chama-se salário mínimo.
Esta norma do salário mínimo, exatamente como a determinação do preço das mercadorias
pelo custo da produção em geral, é correta não para um só individuo, mas para toda a classe
trabalhadora.
164
Esse pressuposto teórico marxista acerca do salário não baliza as diferentes
especificidades presentes no diversificado, heterogêneo e multifacetado mundo do trabalho
contemporâneo; analisa sim os determinantes presentes na contradição entre trabalho
assalariado e capital existente no interior do processo de produção de mercadoria do mundo
produtivo. Nesse sentido, é importante acrescentarmos os nexos existentes no processo de
assalariamento do trabalho docente e suas semelhanças e diferenças em relação ao trabalho
assalariado do mundo produtivo.
Para Codo et.al. (1999), existe uma série de contradições quando se busca
caracterizar o magistério de acordo com o regime de trabalho assalariado presente nas leis do
mercado capitalista, mas pode-se partir da perspectiva de que se trata de trabalhadores que, ao
não possuir os meios de produção do seu trabalho (prédios escolares, livros, material didático,
cadeiras e mesas suficientes, poder administrativo para diplomar seus alunos etc.) necessitam
de vender sua força de trabalho em troca de alguma remuneração.
Os educadores são trabalhadores inseridos em uma sociedade capitalista, vendem
sua força de trabalho e o preço que custa o seu trabalho (salário e remuneração) deve
ser igual ao preço que custa para a manutenção e reprodução desta mesma força de
trabalho. No caso dos professores, isto implica em sobrevivência do trabalhador e
sua família, transporte adequado para se chegar ao trabalho, mais compra de livros,
vídeo, TV a cabo, computadores, o custo dos cursos que têm a fazer e quanto mais
for necessário para manter sua mercadoria (conhecimento) passível de ser utilizada
no mercado. (CODO, et.al., 1999, p. 193).
No entanto, os trabalhadores da educação que atuam no setor público têm como
patrão o Estado e não um capitalista. Portanto, variáveis importantes na configuração do
salário como a questão dos lucros, dos processos inflacionários, da concorrência
intercapitalistas e até mesmo da luta sindical, não se constituem como aspectos fundamentais
na definição da quantidade de salário que deve ser pago aos professores.
O Estado é o patrão que paga àqueles trabalhadores (no caso deste nosso estudo).
Não visa lucro, não tem em sua agenda cobrar pelos serviços que presta à população
mais do que paga aos seus funcionários. Tem outras obrigações além da educação e
portanto deve minimizar as despesas com cada um de seus compromissos para que
possa administrar seus recursos sem que falte dinheiro para qualquer uma de suas
missões. Deve definir qual é o padrão de qualidade mínimo aceitável para um
determinado serviço e pagar salário do trabalhador condizentes com aquelas
definições que citamos acima. (ibid.)
O que essa categoria profissional recebe, então, não é parte dos custos de
produção de uma determinada mercadoria ou serviço no seio da produção imediata de valor,
165
mas sim parte da riqueza concentrada nas mãos do Estado que formam o chamado fundo
público (RIDENTI, 1995, p. 20).
Até aqui podemos inferir, a partir dessas considerações, o estatuto assalariado do
trabalho docente, mas com algumas ressalvas que o diferenciam do operariado tradicional, tais
como o emprego público estatal, a não produção de valor e, portanto, o exercício de uma
atividade que não gera exploração de mais-valia. Mas, Codo et.al. (1999) vão além e afirmam
que as formas de remuneração dos trabalhadores docentes são contrárias às características do
regime do assalariado. Entretanto, é necessário destacar que essa diferença não significa
aproximação do ideário liberal e elitista de profissionalização que percebem seus rendimentos
a partir do argumento ideológico dos honorários atribuídos à sua “presteza” pelo bom “espírito
humanitário” (ENGUITA, 1989; COSTA, 1995).
A partir de análises estatísticas e comparativas realizadas sobre o poder de
compra e das disparidades salariais dos trabalhadores em educação da rede pública no Brasil,
Codo et.al. (1999, p. 217) explicitam, inclusive, as dificuldades de caracterizar o trabalho
docente como atividade profissional assalariada, ante as condições precárias de trabalho e da
própria remuneração desses trabalhadores.
[O] salário é o valor pago pela força de trabalho, o salário correto é o salário que
remunera a força de trabalho injetada pelo trabalhador na mercadoria em que atua. O
professor enquanto vendedor da sua força de trabalho traz para o seu produto (a
educação, o aluno) a sua formação, a sua experiência, a sua habilidade, sua
competência.
A remuneração do professor independe totalmente da formação, da experiência e
sequer há preocupação ou alternativas para pagar diferencialmente o professor a
partir de sua competência. Gente melhor formada ganhando menos do que pessoas
no início de sua formação e vice-versa. Gente inexperiente ganhando mais do que
professores com anos e anos de exercício profissional. Gente dedicada e generosa
ganhando tanto quanto professores que ainda não aprenderam ou já desistiram de
ensinar bem.
Em termos objetivos, o que ocorre é que o que o professor ganha não pode ser
chamado tecnicamente de salário na medida em que não é valor pago pela força de
trabalho injetada em seu trabalho, ou, o que é pior, é rigorosamente independente de
seu trabalho. (grifo dos autores).
Em termos gerais, pode-se inferir que o trabalho exercido pelos/as
trabalhadores/as em educação está muito mais relacionado às políticas públicas educacionais e,
conseqüentemente, à prioridade ou à sua inexistência em termos de financiamento do Estado e
de valorização profissional desses/as profissionais do que, efetivamente, dos custos – para ser
compreensível aos economistas – de reprodução dessa força de trabalho.
Aliás, a reprodução da força de trabalho docente vem sendo hipertrofiada diante
das “novas” exigências educacionais (im)postas pelas reformas neoliberais, que identificam na
166
falta de qualificação dos professores a culpa da baixa qualidade da educação, tornando algozes
esses trabalhadores que são vítimas históricas de políticas educacionais privatistas e elitistas.
Para Gentili (1996), o diagnóstico neoliberal sobre a crise educacional é
condicionado pelo fato de que este é um serviço marcado pela ação estatal (pública) e
penetrado por interesses e contradições políticas. Nesse sentido, as reformas neoliberais visam
implantar mecanismos de mercado no interior das escolas públicas, inclusive para determinar
salário
79
por meio de avaliações classificatórias, comparativas e hierarquizantes, incentivos à
concorrência entre os trabalhadores, à produtividade de resultados e o fim da estabilidade no
emprego.
Essa corrida rumo a mercantilização da educação tem aproximado ainda mais os
trabalhadores da educação em relação aos demais trabalhadores em termos de condições de
trabalho, relações trabalhistas e remuneração salarial; nesse processo, ainda se percebe outras
mediações no estatuto de trabalho assalariado do magistério como, por exemplo: a) as
remunerações percebidas pelos professores não mantém nenhum tipo de relação com o
trabalho que desenvolvem e nem com os requisitos necessários para a realização do trabalho;
b) também existe uma disparidade enorme entre o salário dos/as professores/as e o de outras
profissões e trabalhos com exigências similares; c) há diferenças consideráveis entre o salário
dos próprios professores diante das diferenças geográficas, de vinculação administrativa, de
carreira e formação; d) o poder de compra dos professores está em constante decréscimo,
acarretando impactos, inclusive, sobre sua formação e qualificação; e) a disparidade de
remuneração, poder de compra e consumo no interior desse grupo profissional demonstra a sua
heterogeneidade, o que dificulta a construção de uma identidade social. (CODO et.al., 1999,
pp. 222-223).
Silva Júnior (2002, 1993) observa também que as formas de organização, gestão e
controle da força de trabalho docente não podem sequer ser caracterizadas pelo trabalho
assalariado, tendo em vista as condições de produção de sua atividade e da observância
contínua do tempo e do local de trabalho. Segundo Silva Júnior (2002, pp. 81-82), o
trabalhador docente necessita ainda
[…] ser promovido à condição de trabalhador comum, quero me referir ao fato de
que esse trabalhador, na absoluta maioria dos casos, não pode ser considerado como
um trabalhador assalariado, já que a este, o trabalhador comum, são asseguradas
condições de trabalho em geral que o professor da escola pública estadual não
dispõe. Condições mínimas, mas ainda ausentes das rotinas de nossa organização
79
- Cf: Gentili (1996), Gentili (2001), Gentili e Frigotto (2002) e Paro e Dourado (2001).
167
escolar, como, por exemplo, a delimitação e a observância contínua do tempo e do
local do trabalho.
Essas contradições presentes no estatuto assalariado do trabalho docente
implicam na reflexão e discussão coletiva, organizada pelos próprios trabalhadores da
educação pública, a respeito das suas condições de trabalho, visto que, antes mesmo da plena
implementação da desertificação neoliberal no cenário nacional (e, conseqüentemente de seus
impactos sobre o mundo do trabalho no país), o magistério já convivia com as premissas do
emprego precarizado, da subproletarização, da ocupação temporária sem direitos trabalhistas.
Diante dessas condições, há muito tempo uma das grandes bandeiras de luta dos sindicatos
docentes não é a questão da redução da jornada de trabalho – presente já em meados do século
XIX nas lutas do proletariado (MARX, 2003b) – mas sim a de manutenção do emprego e
permanência no local de trabalho.
Luta-se hoje no mundo do trabalho assalariado pela redução progressiva da jornada
de trabalho e pela supressão da figura das horas extras. Luta-se, conseqüentemente,
pelo acesso ao lazer e ao usufruto dos bens da cultura. Luta-se também,
conseqüentemente, pelo acesso de novos trabalhadores aos locais de trabalho
existentes, no tempo liberado pela redução da jornada, e luta-se também pela criação
de novos locais de trabalho. Comparada à luta dos trabalhadores da produção
material e de serviços por sua afirmação enquanto categoria profissional, a luta dos
trabalhadores da escola pública, aí sim, parece se constituir um anacronismo. Na
escola pública brasileira luta-se ainda pela simples permanência no trabalho, mesmo
que essa permanência não assegure a sobrevivência pelo trabalho. Na vigência do
capitalismo monopolista de Estado no Brasil, as relações de trabalho impostas aos
trabalhadores de suas escolas públicas ainda se conservam próximas das etapas
pré-capitalistas dos modos de produção. (SILVA JÚNIOR., 1993, pp 113-114,
grifos meus).
Essa afirmação torna relativa a questão da proletarização do trabalho docente, não
com base nas colocações de que essa atividade é um ramo profissional das “classes médias”
(PESSANHA, 1994) ou marcada pela ideologia liberal do profissionalismo (COSTA, 1995),
mas sim na perspectiva de que as atuais formas de organização do trabalho docente ainda não
atingiram sequer as condições do trabalhador assalariado dos setores produtivos em termos de
alocação da força de trabalho, de jornada de trabalho e de formas de remuneração. De certo
modo, podemos concordar que amplos setores do professorado podem ser caracterizados como
“operários da cultura”, conforme Ezequiel T. Silva (1991). Mas, para isso, é necessário
considerar as diferenças internas que existem no interior do que chamamos de trabalho
docente.
Como observa Enguita (1989), “referir-se ao ‘professorado’ sem maior
especificação significa ocultar as notáveis diferenças que separam os distintos grupos de
168
professores, diferenças essas que dizem respeito a seus salários, suas condições de trabalho,
seu prestígio, suas oportunidades de promoção e outros bens e vantagens sociais desejáveis.”.
Nesse sentido, existem diferenças consideráveis entre esses condicionantes do trabalho docente
(salários, formação, autonomia no trabalho, alienação, carreira etc.) se compararmos as
trabalhadoras da educação infantil e os professores e professoras que atuam nas Universidades,
muito embora seja concreto o encaminhamento de um processo de burocratização e
degradação do trabalho docente destes últimos, que se orienta por um projeto que Chauí (2001)
denomina de Universidade Operacional.
Evidentemente que podemos falar de “classes médias” quando situamos os
docentes universitários, não só em virtude da origem de classe, do caráter intelectual de seu
trabalho e da escolaridade que possuem, mas, sobretudo, pelo posicionamento ambíguo e
contraditório no interior dos conflitos existentes entre as classes fundamentais. Esse
posicionamento ambíguo se relaciona a uma série de fatores entre os quais podemos destacar:
o caráter social e classista da instituição Universidade na sociedade capitalista; a ligação
orgânica com as classes dominantes via produção tecno-científica, visando intensificar os
processos produtivos; e o caráter ilusório da “neutralidade” presente no trabalho intelectual.
Ridenti (1995), por exemplo, identifica os professores universitários a partir da
categoria “novas classes médias”, que se configuram como um grupo social gestado no interior
do capitalismo monopolista de Estado. Esse autor afirma ainda que as chamadas novas classes
médias têm a função de
[...] traduzir e articular demandas particulares pelo fundo público na interpretação de
Oliveira (1988a). Nesse sentido, são responsáveis pela “construção e administração
da medida”, ou seja, pelo emprego de recursos públicos para financiar a acumulação
privada, objetivando o lucro e a valorização do capital (por exemplo, os gastos
armamentistas, a sustentação da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico, o uso
da dívida interna como sustentação da rentabilidade das empresas), e também para
subsidiar a produção de bens de consumo coletivo que não visam lucro, caso dos
gastos estatais com saúde, educação, transportes públicos, políticas de bem-estar, de
seguro-desemprego, de lazer etc., segundo Francisco de Oliveira (1988a: 284 e 294).
(RIDENTI, 1995, p. 18).
É na tradução e articulação do fundo público com os interesses das classes
dominadas, isto é, na colaboração com os movimentos populares no sentido de atender a
demanda por direitos sociais e identificação com os mesmos que esses setores elaboram uma
identidade política de esquerda.
No que se refere às trabalhadoras da educação infantil, temos um quadro adverso
em relação aos docentes do ensino superior. Essas trabalhadoras historicamente tem sido as
169
moradoras do próprio bairro onde se situam as instituições de educação infantil, muitas não
possuem formação profissional alguma, às vezes não possuem nem mesmo o ensino básico
completo, trabalham em condições precárias, atuam de forma voluntária ou são empregadas de
maneira precária (contratos temporários) e, embora também lidem com a questão da destinação
do fundo público, trata-se de parcelas ínfimas do financiamento público, dado o caráter
historicamente marcado pelo assistencialismo, pela provisoriedade, por propostas emergenciais
e pelo descaso do Estado para com esse tipo de lócus educativo.
Desde o início da década de 1980, diversos balanços sobre as instituições de
educação infantil e de suas profissionais vêm sendo realizados por grupos de pesquisadores da
área, pelas agências multilaterais e pelo próprio Estado, objetivando apresentar diagnósticos
sobre o atendimento educativo da infância brasileira. Os diferentes estudos e pesquisas
apresentados nos simpósios, encontros e em periódicos da área que trataram especificamente
da educação infantil – ver, por exemplo, Rosemberg (1989), BRASIL/MEC/SEF/DPE/COEDI
(1994), Kramer e Abramoway (1991), SIMPÓSIO EDUCAÇÂO INFANTIL (2003) e
Machado (2002) – tratam, direta ou indiretamente, da condição precária de trabalho das
profissionais da educação infantil, destacando como problemas principais a falta de formação e
qualificação, as condições desumanas de funcionamento das instituições e os baixos salários
dessas trabalhadoras.
O que tem historicamente caracterizado o trabalho nesse campo, até então, foram
as ações marcadas pela caridade, filantropia e assistencialismo que indicam,
conseqüentemente, a utilização do voluntariado como forma de incorporação de força de
trabalho (CAMPOS et.al., 1991). Essa prática é ainda mais evidente durante o processo de
“transição democrática” entre as décadas de 1970 e 1980. Segundo Arce (2001b, p. 176), o
“Trabalho voluntário será a tônica dos discursos direcionados ao profissional que deverá atuar
com crianças menores de seis anos, terminando, desse modo, por caracterizar a sua não-
profissionalização.”. Nesse sentido, só a partir dos recentes marcos legais que atingem o
campo da educação infantil (Constituição de 1988, ECA e LDB/1996) podemos observar o
início de um processo de profissionalização das trabalhadoras que atuam nessa área, bem como
da instituição do regime de trabalho assalariado para essas profissionais.
O censo da educação infantil realizado e divulgado pelo INEP no ano de 2001
apresenta a manutenção de um número significativo de instituições de educação infantil em
caráter filantrópico e comunitárias, cuja principal característica é a presença do trabalho
voluntário.
170
A tabela 3 apresenta um número significativo de trabalhadoras voluntárias que
atuam nas creches filantrópicas e comunitárias espalhadas pelo território nacional. Segundo
esse relatório, “Considerando que existem mais de 6 mil creches filantrópicas ou comunitárias
no país, verifica-se que cerca de 1,7 mil estabelecimentos integram voluntários trabalhando na
área pedagógica, seja na coordenação, na orientação e/ou no ensino”. (BRASIL/MEC/INEP,
2001, p. 13).
Tabela 3
Creches com Voluntários da Área Pedagógica, por Função Exercida,
segundo o Número de Alunos
Brasil e Regiões – 2000
Coordenação ou Orientação
Pedagógica
Professores Educadores
Brasil e Regiões
Total de
Creches
(1)
Quant. % Quant. % Quant. %
Brasil 24.014 1.782 7,4 1.746 7,3 1.457 6,1
Até 10 Alunos 3.388 160 4,7 211 6,2 125 3,7
De 11 a 30 Alunos 7.228 505 7,0 563 7,8 396 5,5
De 31 a 50 Alunos 4.847 357 7,4 371 7,7 305 6,3
De 51 a 100 Alunos 5.853 517 8,8 385 6,6 409 7,0
Mais de 100 Alunos 2.698 243 9,0 216 8,0 222 8,2
N
orte 955 71 7,4 98 10,3 60 6,3
N
ordeste 7.131 556 7,8 690 9,7 293 4,1
Sudeste 9.410 780 8,3 601 6,4 727 7,7
Sul 5.055 269 5,3 276 5,5 286 5,7
Centro-Oeste 1.463 106 7,2 81 5,5 91 6,2
Fonte:MEC/INEP/SEEC, Censo da Educação Infantil 2000 (resultados
p
reliminares)
N
ota: (1) O mesmo estabelecimento pode contar com mais de uma categoria de
voluntários.
Fonte: MEC/INEP/SEEC, Educação infantil no Brasil: 1994-2001.
Nas pré-escolas, é representativo também o número de função docente exercendo
o trabalho nessas instituições em regime de voluntariado. Segundo BRASIL/MEC/INEP
(2001, p. 14):
Entre as pré-escolas, é maior o número de estabelecimentos que apresentam
voluntários trabalhando na área pedagógica. Considerando que existem 8 mil pré-
escolas filantrópicas ou comunitárias no país, observa-se que cerca de 3,5 mil pré-
escolas apresentaram voluntários na Coordenação ou Orientação Pedagógica. Nas
atividades de ensino, 5,7 mil pré-escolas abrigam voluntários professores.
A tabela 4 demonstra uma parcela dessa realidade tanto nacionalmente, quanto
nas diferentes regiões do país.
171
Tabela 4
Pré-Escolas com Voluntários da Área Pedagógica, por Função Exercida,
segundo o Número de Alunos
Brasil e Regiões – 2000
Coordenação ou Orientação
Pedagógica
Professores Educadores
Brasil e Regiões Total
Quant. % Quant. % Quant. %
Brasil 85.786 3.492 4,1 5.689 6,6 1.997 2,3
Até 10 Alunos 15.993 331 2,1 643 4,0 135 0,8
De 11 a 30 Alunos 26.588 987 3,7 1.801 6,8 558 2,1
De 31 a 50 Alunos 14.634 781 5,3 1.171 8,0 448 3,1
De 51 a 100 Alunos 16.461 905 5,5 1.318 8,0 526 3,2
Mais de 100 Alunos 12.110 488 4,0 756 6,2 330 2,7
N
orte 6.234 235 3,8 524 8,4 170 2,7
N
ordeste 39.141 1.488 3,8 2.692 6,9 690 1,8
Sudeste 22.502 975 4,3 1.251 5,6 642 2,9
Sul 13.146 538 4,1 906 6,9 356 2,7
Centro-Oeste 4.763 256 5,4 316 6,6 139 2,9
Fonte:MEC/INEP/SEEC, Censo da Educação Infantil 2000 (resultados preliminares)
Fonte: MEC/INEP/SEEC, Educação infantil no Brasil: 1994-2001.
Além disso, é importante ressaltar que no interior das instituições de educação
infantil convivem diferentes profissionais com salários heterogêneos e hierarquicamente
estruturados, mas que desempenham funções e atividades muito semelhantes, como é o caso
das professoras e auxiliares de sala (agente educativa, aqui em Goiânia) (CERISARA, 2002).
Segundo essa mesma autora, o trabalho de cuidado e educação das crianças nas instituições de
educação infantil possui uma marcante identificação com os saberes advindos da socialização
feminina (maternagem e trabalho doméstico), o que provoca uma diferenciação apenas
fenomênica no que diz respeito às atividades realizadas no cotidiano dessas instituições. Essa
é, por exemplo, uma realidade encontrada nos Cmeis de Goiânia.
Ao analisar os dados levantados durante a proposição do questionário, uma das
questões se referia à relação entre professoras e agentes educativos. E, dentre as 31 agentes, e
60 professoras (divididas em 33 PII e 27 PI), a grande maioria respondeu que essas relações
giram em torno do “companheirismo”, da “solidariedade”, do “respeito”, da “colaboração”, da
“amizade”, da “harmonia”, do “diálogo” e da “troca de experiências”. Apenas duas professoras
(PII) e uma agente educativo admitiram a presença de relações de conflito, baseadas nas
diferenças e hierarquias presentes em função das diferenças de formação e da
“desconsideração” do trabalho das agentes educativas.
Em um dos depoimentos, uma professora destaca o bom relacionamento, mas
indaga a diferença salarial como um problema diante de atividades tão parecidas. Segundo essa
professora,
172
Na maioria dos casos há uma simbiose entre professor/agente, o que facilita o nosso
dia-a-dia na instituição. O problema desse relacionamento é prejudicado pelo
descompasso salarial entre um profissional e outro. Não há tarefa específica para os
professores que faz o mesmo que os agentes e vice-versa. (PII-20)
Quando retornei, no ano de 2005, em algumas das instituições pesquisadas em
2003, e entrevistei professoras (desta feita sem a divisão entre PI e PII) e agentes educativas,
foi possível apreender algumas novas questões
80
, mas, podemos dizer que não houve
alterações essenciais nessa realidade; nem mesmo as concepções e significados atribuídos
pelas trabalhadoras da educação infantil em relação às atividades exercidas por elas nas
instituições de educação infantil (tampouco as diferenças salariais). No entanto, novos
elementos adquirem materialidade em seus depoimentos, indicando aspectos da divisão técnica
do trabalho.
Quatro das doze professoras entrevistadas afirmaram a existência da divisão
técnica do trabalho como eixo estruturador das relações estabelecidas entre elas e as agentes
educativas. Esses depoimentos revelam a idéia que compõe a forma clássica da divisão entre
concepção e execução do trabalho, ao definirem a função das agentes como auxiliares do
trabalho planejado pelas professoras. A seguinte declaração expressa bem essa concepção:
Olha, a diferença do trabalho é que eu organizo o trabalho da turma, eu é que
planejo, eu é que faço os projetos, eu coordeno as turmas e ela vai me auxiliando,
mas eu, por exemplo, não gosto de ter um trabalho assim, excluindo ela do trabalho,
ela faz parte do trabalho. Todo projeto que é feito, é passado pra ela, todo trabalho
que é levantado é passado pra ela, o relatório que é feito da turma, é feito junto com
ela, então ela participa do trabalho também, eu é que levanto que projeto com o
grupo todo de professores, não só eu, mas o grupo todo de professores. (Andréa)
Embora essa professora admita o esforço de planejamento coletivo, sua própria
fala expressa a contradição de que o trabalho realmente apresenta aspectos de divisão do
trabalho. Outras representações semelhantes aparecem, tanto em depoimentos de professoras,
como de agentes educativos, isto é, esses sujeitos explicitam o caráter fragmentado do seu
trabalho, baseado na divisão técnica entre quem concebe e quem executa.
80
- Entre essas questões pudemos perceber no cotidiano dos Cmei’s, destacam-se as seguintes: a precariedade do
regime de trabalho nas instituições de educação infantil (os contratos temporários) que envolve uma rotatividade
significativa de trabalhadoras, dificultando a construção de projetos pedagógicos e de laços identitários; a
manutenção dos aspectos de caridade e filantropia das instituições de educação infantil, presentes nas doações
recebidas de diferentes setores da sociedade (igreja, comunidade, judiciário); as estruturas hierárquicas entre
SME e Cmei’s, direção das instituições, coordenação e demais trabalhadoras; as dificuldades de instituir
atividades pedagógicas nesses espaços, mediante percalços de todos os tipos (formação, tradição assistencialista
das instituições, condições de trabalho).
173
Entretanto, é preciso considerar outras contradições que também se apresentam
nas suas falas e nas observações que pude fazer das relações de trabalho nessas instituições. A
divisão entre concepção e execução não ocorre somente nas relações imediatas entre agentes e
professoras. A presença diretiva e centralizadora das coordenadoras e das diretoras das
instituições no planejamento das atividades estabelece outros níveis de hierarquia; e também,
as relações entre SME, via URE, e Cmei’s definem os contornos mais estruturais da divisão do
trabalho presente nessas instituições e a alienação dessas trabalhadoras em relação aos
objetivos e finalidades de seu trabalho.
Das quatro instituições onde estive, presenciei alguns planejamentos e foi
perceptível a centralização que a direção da instituição exerce sobre o planejamento do
trabalho pedagógico e da definição dos seus objetivos. Numa delas (“São Expedito”),
inclusive, a diretora acumula a função de coordenadora pedagógica e no início de cada semana
ela repassa às professoras quais atividades serão desempenhadas junto às crianças. Já no Cmei
“Alegria Infantil”, embora exista ingerência da diretora nas práticas pedagógicas, o que causa
descontentamento e conflitos, há, muito mais, um processo de alheamento do que
propriamente de elaboração centralizada dos objetivos e finalidades da instituição por parte da
direção.
No plano das relações entre administração central e unidades institucionais,
percebe-se também a falta de autonomia pedagógica e administrativa das instituições, por
exemplo, ao alterar toda a rotina do trabalho em função dos eventos promovidos pelo poder
público municipal (amostra pedagógica, desfile de 7 de setembro, entre outros) e da retirada de
funcionários devido à política de contenção de gastos, independente das necessidades dos
Cmei’s. Em um sem número de vezes, as diretoras das instituições reclamaram para mim a
falta de funcionários e da morosidade e inoperância da administração central em substituir
trabalhadoras que entram de licença. Exemplo disso é que as agentes educativas não podem ser
substituídas porque as diretrizes das políticas de pessoal só permitem essa possibilidade para as
professoras.
Retornando às trabalhadoras, é necessário ressaltar a questão de que, embora a
divisão do trabalho apareça nas falas e ações das professoras e agentes, das 24 entrevistadas,
dezoito confirmaram que executam atividades semelhantes no cotidiano da instituição, muito
embora as chamadas “atividades burocráticas” (planejamento e avaliação) estejam a cargo das
professoras. Esta questão é significativa na medida em que se percebe que os elementos que
compõem a reprodução da força de trabalho que atua nas instituições de educação infantil são
174
atribuídos aos saberes tácitos inerentes à feminilidade dessas trabalhadoras, se configurando
como atividades “invisíveis” (CERISARA, 2002).
Essa caracterização desvaloriza consideravelmente os salários percebidos nessas
funções. E, embora não existam diferenças entre as atividades exercidas por professoras e
agentes, seus salários são diferentes com as primeiras recebendo ordenados maiores do que as
últimas, mesmo se a formação for idêntica. Isso é perceptível quando se compara a faixa
salarial das agentes que gira em torno de 1 a 2 salários mínimos e das professoras PI que, na
sua maioria recebem na faixa de 2 e 6 salários mínimos, mesmo diante da semelhança com as
agentes em relação à condição precária de trabalho, à formação e às atividades exercidas. Já as
professoras PII (geralmente efetivas) possuem uma média salarial que oscila entre 4 e 10
salários mínimos.
Toda essa heterogeneidade quanto à questão salarial impacta sobre a organização
política e sindical dessas trabalhadoras, uma vez que institui a concorrência entre os pares e a
ação defensiva em torno da questão da manutenção do emprego. Desse modo, é evidente que a
questão da elaboração de uma determinada identidade política que perpassa, inequivocamente,
pela construção de uma identidade coletiva, se enfraquece diante de toda essa fragmentação e
complexidade que compõem esse grupo de trabalhadoras, que acabam de adentrar em uma não
tão menos complexa, heterogênea e fragmentada categoria profissional, a dos trabalhadores em
educação.
É preciso destacar ainda o fato de que as profissões caracterizadas como guetos
femininos são não só socialmente, mas também economicamente degradadas. Essas profissões
geralmente se caracterizam pelos baixos ordenados, justificados pelo massageamento
ideológico
81
da “vocação” e do “dom” feminino, como é o caso da docência na educação
infantil. Nesse sentido, o salário para essas trabalhadoras assume um papel secundário ou
complementar para o provimento da família, muito embora esse tipo de consideração não leve
em conta as alterações profundas que a instituição familiar vem sofrendo ao longo dos anos,
especialmente em momentos como este, de crise do sóciometabolismo do capital. São nesses
momentos de crise que as mulheres assumem um papel central na manutenção da família,
lançando-se ao mercado de trabalho – mesmo e apesar das condições precárias premidas pela
divisão sexual do trabalho – para produzir sua vida material e de sua prole.
81
- Segundo Silva (1995), o massagear ideológico da “vocação” e do “dom” velam as contradições das
condições de trabalho dos/as trabalhadores/as da educação, dificultando a percepção dessas por intermédio de
idéias inatistas e idealistas sobre a atividade educativa e produzem identidades submissas, heterônomas e de uma
postura acomodada.
175
A questão do salário é fundamental para que os sujeitos elaborem identidades
coletivas, pois, eles são amplamente aviltados nas diversas formas sociais de exploração do
trabalho, tornando-se uma questão de organização e luta coletiva no sentido de defendê-lo,
uma vez que a remuneração salarial dos trabalhadores significa, de forma imediata, a própria
sobrevivência. O momento corporativo de organização coletiva para a defesa de interesses de
categorias de trabalhadores é fundamental ao processo de transição para a mediação entre
economia e política da luta dos trabalhadores. É fundamental, pois, que entendamos qual é o
significado do salário para as trabalhadoras da educação infantil.
Concordo assim com as reflexões de Assunção (1996, p. 76) que coloca a questão
do salário das professoras primárias (que podemos estender às trabalhadoras da educação
infantil dadas as várias semelhanças) como um problema a ser interpretado de forma
sistemática pelas organizações sindicais. A autora afirma que “[…] qualquer iniciativa que vise
mobilizar a categoria na luta por melhores salários será infrutífera se não levar em
consideração a representação que a professora tem de seu salário, e essa dimensão simbólica,
que se traduz nas ambigüidades expressas no discurso e atitude da mulher-professora.”.
Esses significados podem se configurar desde o caráter de condição necessária à
sobrevivência até a complementação da renda da família, ou mesmo algo de “menor
importância” diante da “missão” de educar e cuidar das pequenas crianças pobres e carentes,
ou do amor pela profissão e pelas crianças. É o que podemos constatar na fala de uma
professora entrevistada que, ao ser questionada sobre porque as trabalhadoras da educação
infantil não entraram em greve com o restante da categoria, se expressa da seguinte forma: “Eu
não entro de greve, mas também não faço parte de nenhum movimento. Não trabalho só por
causa do dinheiro, por amor.”. (Sílvia).
O trabalho docente na educação infantil – e também no magistério na primeira
fase do ensino fundamental, como pudemos perceber até aqui – tem sido conformado por
princípios afetivos e ideais mistificadores, encobrindo o caráter concreto da atividade
educativa histórica e socialmente situada. Sob esses condicionantes, os aspectos alienantes e
alienados do magistério são “substituídos” idealmente pelas relações imediatas, personalizadas
e afetivas que as trabalhadoras mantêm com as crianças, dificultando a elaboração de uma
percepção politizada de suas condições de trabalho e de vida e, conseqüentemente, da sua
inserção de classe.
Assim, vale ressaltar que o resultado da alienação do trabalho docente afeta não
só os agentes que produzem a atividade educativa (os/as trabalhadores/as docentes), mas
também os destinatários de sua ação (crianças), como explicita Duarte (2001). Desse modo, o
176
recurso à “pedagogia do amor” se pauta por uma visão “romântica” e “ingênua” do trabalho
educativo, cujos efeitos são, além da despolitização e inação dos/as trabalhadores/as da
educação infantil, o rebaixamento da qualidade da educação para as classes subordinadas. Isso
se reflete até mesmo na luta por melhores condições de vida, ou melhor, na ausência da
mobilização e das lutas por melhores salários.
Faz-se necessário considerar ainda uma série de fatores que determinam as
diferenciações salariais das trabalhadoras da educação infantil, dentre as quais se destacam: a
vinculação administrativa diferenciada entre agentes e professoras; a não regulamentação da
função de agente educativo no quadro de funcionários da pasta da educação e,
conseqüentemente, a falta do plano de carreira; a exigência de uma menor formação; e, talvez
a mais importante, o predomínio do trabalho precário, objetivado pelos contratos temporários
de trabalho.
Quanto à falta de regulamentação do trabalho na educação infantil, é inequívoco
o avanço permitido pela incorporação dessas instituições pela legislação e sistema nacional de
educação que exige a presença de professores com formação mínima de ensino médio na
modalidade do magistério para atuar nessa área. Mas, também, é fundamental não esquecer de
que essa mesma legislação desconsidera as demais trabalhadoras, especialmente, as agentes
educativas, auxiliares ou pagens. De acordo com Rodrigues (2003, p. 98):
Com a inclusão da Educação Infantil na Educação Básica, tornando-se um nível de
ensino, é primordial refletir sobre as conseqüências que esta mudança trouxe para o
perfil do profissional que atua neste campo. Regulamentada pela LDB, a formação
dos profissionais suscita diversas discussões, visto que a lei se limita a tratar do
professor, não tocando nos demais agentes educativos hoje incorporados ao
cotidiano das instituições de atendimento à infância, tais como os monitores,
crecheiros, recreacionistas etc. (grifos meus).
Essa é uma problemática na realidade da RMEG, e as trabalhadoras que atuam na
função de agente educativo são contratadas pela secretaria de educação, pela Companhia de
Urbanização de Goiânia – COMURG ou por outros órgãos do poder público municipal. Em
recente concurso, foram disponibilizadas vagas para agentes educativos e a sua vinculação
administrativa é articulada à COMURG e não à SME. Além disso, essas trabalhadoras não
possuem um plano de carreira estruturado, até porque essa é uma função que não consta em
nenhuma das pastas do poder público municipal e geralmente são contratadas como auxiliares
177
de serviço de higiene e alimentação, como funcionária administrativa ou como funcionárias da
Fundação de Desenvolvimento Comunitário – FUMDEC e da Sociedade Cidadão 2000
82
.
A questão da precarização do trabalho docente, como já foi levantado
anteriormente, se configura como um problema histórico dessa categoria profissional.
Entretanto, após a promulgação da constituinte de 1988 e da LDB de 1996, a regulamentação
dos concursos públicos, como exigência de ingresso na carreira, houve uma redução da
problemática dos contratos temporários, muito embora esse ainda seja uma das grandes
bandeiras de luta dessa categoria.
A precarização é uma das faces do trabalho assalariado que tem aproximado, ao
longo da história, os trabalhadores e trabalhadoras em educação das classes dominadas. E
como vem sendo apontado desde o início, quando se fala em termos de educação infantil, o
problema se torna mais agudo. É preciso, pois, compreender a manutenção da precarização do
magistério na educação infantil articulado à questão da proletarização do trabalho docente que
já vem sendo analisado ao longo deste capítulo.
Dados estatísticos da SME de Goiânia, levantados entre fevereiro e março de
2005, apontam para uma problemática alarmante na educação infantil. A maioria das
trabalhadoras da educação infantil trabalha em regime de contrato temporário, isto é, em
formas precarizadas de emprego. Dentre as 551 funções de agentes educativos trabalhando
nessa época, 413 estão empregadas em regime de contrato temporário. E, das 585 professoras
295 atuam em regime precarizado de contrato trabalhista.
Esses contratos são formas de emprego temporário – sujeito a toda forma de
utilização clientelista – que podem ser rompidos a qualquer momento, sem prejuízo para o
contratante (município), que não necessita de manter encargos trabalhistas a não ser férias e
décimo terceiro salário. Desse modo, ao encerrar seus contratos, as trabalhadoras não têm
direito a nenhum tipo de indenização. A sombra do “fantasma do desemprego” é um outro
fator que imobiliza essa parcela da categoria dos trabalhadores em educação, como veremos no
capitulo seguinte.
Diante disso, é possível caracterizar as condições objetivas das trabalhadoras em
educação infantil da categoria do proletariado; muito mais por causa da alienação do seu
trabalho, da expropriação dos objetivos e finalidades de sua atividade, das precárias condições
de emprego, dos baixos salários e da exploração, do que das mobilizações e lutas sindicais e
políticas.
82
- Dados obtidos por documento que apresenta um diagnostico dos Cmeis na rede municipal de ensino de
Goiânia feito pela própria SME por meio do Departamento de Educação Infantil.
178
Uma série de pesquisadores tem procurado investigar a questão da proletarização
docente no sentido de apontar nexos que aproximem esses profissionais do restante da classe
trabalhadora. Dessa forma, esses trabalhos têm um enfoque que busca apontar as perspectivas
e os limites da organização do trabalho docente a partir de categorias explicativas oriundas do
marxismo, tais como: trabalho, luta de classes, proletariado, sindicalismo, degradação do
trabalho, divisão social e técnica do trabalho e alienação. Dentre esses trabalhos, destaco aqui
os de Aplle (1987;1988), Arroyo (1980), Enguita (1989), Hypólito (2001) e Costa (1995). Os
trabalhos desses autores foram muito influenciados pelo que Vianna (1999) classifica de
otimismo em torno da organização docente na forma de sindicatos, cujas características são as
ênfases adotadas no que diz respeito à formação política do professorado e da configuração de
uma determinada consciência de classe, que possibilitariam mudanças nas estruturas desiguais
e antidemocráticas da educação e da própria sociedade. Desse modo, esses autores têm, como
uma de suas preocupações, a identificação da posição de classe que ocupam os trabalhadores
da educação.
Para Hypólito (2001), os estudos sobre trabalho docente no Brasil apontam para
um consenso de que essa atividade tem passado por processos de assalariamento, de
funcionarização em relação ao Estado, de desprofissionalização e de perda de prestígio social.
Entretanto, há divergências quanto à caracterização da posição de classe ocupada pelos
docentes. Para o autor, três posicionamentos teóricos sobre a condição de classe do trabalho
docente podem ser identificados na literatura sobre esse assunto: o primeiro posicionamento
identifica os professores como integrantes das classes médias em virtude do lado intelectual
que ocupam na divisão do trabalho, dos níveis de renda, da formação em nível superior e da
origem de classe; o segundo aponta para o processo de proletarização do trabalho docente,
caracterizado pela aproximação social e política dos professores do restante da classe
trabalhadora; e o terceiro considera que os docentes estão numa situação contraditória de
classe, numa situação ambivalente entre proletariado e classes médias.
Como foi abordado anteriormente, é fato de que existem setores do professorado
que se aproximam dos grupos sociais que caracterizam as “classes médias”. Mas, é preciso
considerar também que as condições de trabalho e de vida dos chamados “educadores de base”
(ARROYO, 1980), isto é, os trabalhadores e trabalhadoras em educação que atuam nas
primeiras fases do ensino fundamental como regentes de classe – e estendo essa caracterização
às trabalhadoras da educação infantil, professoras e agentes educativas – e lidam diretamente
com as classes populares, propiciam aproximações com os demais setores da classe-que-vive-
do-trabalho e passam a compartilhar problemas, contradições, sentimentos e projetos.
179
O assalariamento e a proletarização do trabalho docente aproximam os
professores e as professoras das classes que vivem do trabalho. Isso acontece, primeiramente,
em termos de condições de vida material e de trabalho alienado e, em conseqüência disso, das
formas de organização e mobilização política e corporativa das classes trabalhadoras e de suas
lutas por conquistas estratégicas de determinados direitos sociais. O magistério inicia então um
processo de organização sindical que impulsiona um gradual, vigoroso e dialético processo de
elaboração de uma identidade política. Na medida em que identificam necessidades e
interesses comuns os/as trabalhadores/as em educação estruturam suas associações sob
princípios e bandeiras da luta sindical que, por sua vez, e concomitantemente, se tornam um
importante espaço de educação política para a categoria de assalariados da educação. Para
Miguel Arroyo (1980, p. 17), “A organização do trabalho educativo em bases empresariais
levou os ordeiros professores públicos a se sentirem não servidores do público, mas força de
trabalho vendida a um patrão chamado Estado.”.
Nessa perspectiva, as contradições se elevaram de tal modo que os conflitos
educativos que emergiram durante a ditadura militar estabeleceram condições históricas para
que os trabalhadores em educação se constituíssem como tal, isto é, como classe trabalhadora.
As lutas dos movimentos de professores não se limitaram aos aspectos reivindicatórios, mas se
politizaram e articularam com os demais setores da classe trabalhadora.
A nova consciência e a nova prática dos trabalhadores da educação é se sentirem
como trabalhadores e sentirem a necessidade de se associarem como tais, e
organizarem sua luta nos mesmos moldes dos trabalhadores da produção, do
comércio... e sobretudo se sentirem solidários nos mesmos objetivos de questionar o
modelo sócio-político e econômico, o Estado, a organização do trabalho... que os
gera e explora como trabalhadores (ARROYO, 1980, pp. 17-18).
Desse modo, ao articular as lutas corporativas da categoria do professorado às
demais bandeiras históricas de liberdade e emancipação humana, os professores iniciaram um
processo de elaboração de uma identidade política articulada ao projeto histórico das classes
trabalhadoras incorporando, inclusive, seus modelos de organização político-sindical e suas
formas de mobilização e luta (greves).
É importante destacar que o conceito de classe que subjaz dessas práticas e
pensamentos elaborados pelos professores é contrário aos que definem a condição de classe
dessa categoria a partir das origens de classe, da natureza intelectual do trabalho que realiza ou
da “ascensão” social que adquire por meio do seu trabalho. A definição de classe, e da
180
construção de uma identidade de classe, é caudatária da conceituação de Ridenti (2001, p.
112-113) que assim define:
As classes constroem-se na luta, vale dizer, elas vêm a ser classes no processo de
auto-identificação e de identificação do seu outro. Isso remete à questão da
representação. [...] Representação é o canal de mediação no relacionamento de
alguém com outrem. [A mediação de uma identidade política da classe trabalhadora]
implica a organização e a luta dos trabalhadores, que criam associações para mediar
sua relação com e contra o Estado e os capitalistas, construindo a trajetória de sua
constituição como classe.
Desse modo, consideramos a organização sindical um canal mediador da
elaboração de um posicionamento, de uma prática e de representações diante dos conflitos e
das contradições sociais, em que se torna possível uma mobilização coletiva que se
encaminhe no sentido de (re)elaborar a solidariedade de classe e renovar as formas de
resistência e de superação do sistema do capital.
Esse tem sido o caminho que os trabalhadores em educação têm percorrido e nas
lutas e mobilizações vêm elaborando uma determinada consciência de classe vinculada a uma
alternativa contrária aos ditames da sociedade produtora de mercadorias. Obviamente, não
sem contradições e limitações. Mas, é importante destacar os avanços e limites da organização
sindical dos/as trabalhadores/as em educação para que tenhamos um parâmetro concreto das
possibilidades de as trabalhadoras da educação infantil elaborarem tal identidade.
3.2 A identidade política dos trabalhadores da educação: sindicalização, educação política e
crise
As discussões anteriores procuram delimitar e caracterizar o trabalho e as
trabalhadoras da educação infantil no interior das determinações sociais do modo de produção
capitalista, bem como explicitar as suas recentes transformações, configurando-se como
aspectos essenciais na investigação sobre a identidade política dessas trabalhadoras. A
questão da identidade política se caracteriza pelas formas de ação e de auto-representação dos
trabalhadores diante dos conflitos sociais e das relações de poder, mediadas pelas formas de
organização coletiva de um determinado grupo social; no caso dessa investigação, destaco o
papel do sindicato docente como esse instrumento de mediação entre as aspirações imediatas
e corporativas e as questões de cunho mais amplo, que se refere ao projeto histórico de luta
pela superação do sistema do capital.
Nesse sentido, partimos do princípio, já exposto, de que os/as trabalhadores/as
em educação (no geral) e as trabalhadoras da educação infantil (como parte da categoria dos
181
trabalhadores em educação, que mantém suas particularidades) compõem o que Ricardo
Antunes (2003) categoriza de classe-que-vive-do-trabalho, ampliando o conceito de classe
trabalhadora para todos aqueles e aquelas que, não possuindo os meios de produção da vida
material, são levados a venderem sua força de trabalho para isso.
Como vimos até então, o trabalho docente pode ser considerado uma atividade
complexa em que determinados sujeitos qualificados por um determinado tipo de formação ou
não atuam numa profissão em que se lidam com relações humanamente constituídas e
constituintes objetivando o processo de formação de crianças, jovens e adultos, o que envolve,
além da competência técnico-científica necessária aos processos de ensino e aprendizagem,
um compromisso ético-político vinculado a um determinado projeto histórico. Nesse sentido,
a natureza do trabalho docente exige a construção de uma identidade política e, ainda que os
sujeitos se acreditem neutros no processo, esses estarão representando um projeto hegemônico
de manutenção do status quo.
A atividade laboral em instituições educativas pouco se difere das relações de
trabalho em outras esferas do mundo do trabalho, no que se refere aos processos de
organização do trabalho, divisão hierárquica de funções, concorrência entre trabalhadores,
divisão técnica do trabalho, alienação do trabalho e sofrimento provocado pelo estranhamento
com o processo e produto de seu trabalho. As formas de produção e reprodução da sociedade
capitalista não são atributos apenas das esferas produtivas, pelo contrário, o modo de
produção capitalista é uma forma histórica de se produzir a vida, de se organizar a sociedade,
atingindo, portanto, todas as esferas das relações humanas.
A atual conjuntura caracterizada pela reestruturação produtiva envolvendo
importantes mutações organizacionais e tecnológicas no mundo do trabalho, produzindo
também transformações nas formas de gestão do trabalho, tem submetido, cada vez mais, o
setor de serviços (no qual se inclui a educação) à racionalidade do capital.
Como observa Antunes (2002, p. 111):
Se acrescentarmos a imbricação crescente entre mundo produtivo e setor de
serviços, bem como a crescente subordinação desse último ao primeiro, o
assalariamento dos trabalhadores do setor de serviços aproxima-se cada vez mais da
lógica e da racionalidade do mundo produtivo, gerando uma interpenetração
recíproca entre eles, entre trabalho produtivo e improdutivo.
182
Nesse sentido, as instituições de educação são estabelecimentos prestadores de
serviços compostos por um espaço complexo de organização do trabalho, por uma burocracia
altamente estruturada que compõe o terceiro setor da economia (CODO et.al., 1999
, p. 90).
Claro que existem as particularidades em função de ser uma empresa pública ligada
ao estado e não uma empresa particular. O fato de não ser uma empresa com fins
lucrativos e o não gerenciamento dos próprios recursos marcam diferenças
importantes, mas não tiram a característica de organização do trabalho, com
trabalhadores, produto, relações de trabalho e todas as demais categorias através
das quais tentamos entender a dinâmica de uma empresa. (grifos meus).
O trabalho docente possui uma capacidade de extrapolar os efeitos da divisão
técnica do trabalho. Os professores, ao atuarem nos processos educativos, têm a possibilidade
de planejar e de definir os rumos e objetivos de seu trabalho construindo planejamentos e
projetos individuais e coletivos. Como afirmam Codo et.al. (1999), diferentemente da divisão
e fragmentação do trabalho na esfera produtiva, o trabalho docente, dentro de certos limites,
ainda resguarda um processo completo de concepção, emprego das finalidades e estratégias
planejadas, avaliação e a retomada do processo. Esse processo dialético que caracteriza o
trabalho docente foge das limitações dos pequenos ciclos de trabalho – caracterizados pela
parcelarização, especialização e desqualificação do trabalho – defendidos por Adam Smith e
operacionalizados e sistematizados por Taylor e Ford, e se caracteriza por um longo ciclo de
trabalho em que o trabalhador tem a possibilidade de ter o controle de todo o processo.
O trabalho do professor é composto por processos variados, em sua grande maioria
envolvendo ciclos longos e flexíveis; possibilita ao trabalhador a expressão da sua
criatividade, estimulando também seu crescimento pessoal e profissional; a
possibilidade de exercício de controle sobre os processos que compõem esta
atividade profissional permite que o seu executor sinta-se dono do processo,
responsável pelos resultados e importante para aqueles que atende no seu exercício
profissional. (CODO et.al., 1999, pp. 120-121).
O trabalho exercido por professores e professoras resguarda a característica da
contribuição nos processos de humanização dos indivíduos, apresentando, assim, os laços
contraditórios entre reprodução e emancipação do gênero humano que configuram a educação
institucionalizada. Segundo Souza (1996), ao realizar o papel de organização e transmissão da
cultura, os professores identificam uma função social, um papel político em seu trabalho, que
pode se configurar como uma possibilidade de transformação da realidade. Essa interpretação
positiva do trabalho docente indica que os professores detêm sob seu controle uma parcela
183
significativa sobre seu trabalho, que se objetiva ao completar um ciclo entre planejamento,
execução e avaliação do seu trabalho. Esse ciclo se constitui, para a autora, como uma forma
de extrapolar a alienação do trabalho, pois se configura como um espaço de criatividade,
iniciativa e responsabilidade.
Partindo dessas considerações, Souza (1996, p. 137) assevera que: “O professor
é mais que força de trabalho, qualificada pela escolaridade que se coloca no mercado como
mercadoria e entra no ciclo da produção de mais-valia; é também construtor da cultura, forma
alunos, sobrevive à própria atividade docente”. (grifos meus).
É importante destacar que o trabalho educativo, considerado como componente
do trabalho social, possui o que Marx (2003b) denominou de duplo caráter do trabalho ao
analisar a forma mercadoria. Ou seja, o trabalho docente se configura como componente
necessário à constituição do indivíduo como ser social e, na particularidade histórica do
capitalismo, contribui para a reprodução das desigualdades sociais e da alienação do homem.
Duarte (2001, pp. 56-57) esclarece isso ao considerar o “valor de uso” produzido pelo
trabalho docente, na medida em que “[…] a atividade do educador não é um mero meio para
satisfazer a necessidade de sobrevivência física, mas sim a satisfação de uma necessidade
vital para ele como indivíduo, a necessidade de formar outros indivíduos de maneira
humanizadora.”.
Entretanto, ao destacar que a atividade educativa é materializada em um contexto
histórico e social concreto, Duarte (2001, p. 56) observa o caráter alienado dessa atividade na
particularidade histórica do capital e afirma que tal alienação é perniciosa não só para o
indivíduo que trabalha (professor/a), mas também para os demais sujeitos que são “objetos”
de sua atividade (alunos). Para esse autor,
A alienação no caso do trabalho educativo possui uma diferença em relação a
outros tipos de trabalho. Em outros tipos de trabalho o produto pode não ser
prejudicado pela alienação do processo. O trabalhador pode se alienar, se esvaziar
no processo de produção, mas o produto vir a enriquecer a sociedade. O trabalhador
pode se unilateralizar no processo e o produto contribuir para a universalização do
gênero humano. Mas, isso não ocorre no caso do trabalho educativo. Nesse caso, a
alienação do trabalhador perante o processo gerará também a alienação no que se
refere ao produto, no caso, à formação do indivíduo educando. Assim, se o trabalho
educativo se reduzir para o educador a um simples meio para a reprodução de sua
existência, para a reprodução de sua cotidianidade alienada, esse trabalho não
poderá se efetivar enquanto mediação consciente entre o cotidiano do aluno e a
atuação desse aluno nas esferas não-cotidianas da atividade social. A atividade
educativa se transformará, também ela, numa cotidianidade alienada, que se
relacionará alienadamente com a reprodução da prática social.
184
Nesse sentido, é necessário destacar que a formação humanizadora nas
instituições de educação possui um caráter concreto, isto é, ela significa que o educador
precisa se posicionar ética e politicamente perante a sociedade na qual vivem ele e o
educando. E, mesmo diante desse posicionamento, não se pode desconsiderar as condições
objetivas de realização dessa atividade que, como já destacamos, vem sendo paulatinamente
degradada.
Assim, as possibilidades de contribuir no processo de humanização por meio da
escolarização vêm diminuindo paulatinamente desde as reformas impostas pelos governos
militares
83
que implantaram de forma hierárquica o modelo tecnicista de educação,
caracterizado principalmente pela divisão técnica do trabalho pedagógico, em que
especialistas definem currículos e orientações de ensino e os professores somente executavam
o que já vinha previamente definido.
Paula (2002) e Ribeiro (1987) analisam ainda que, juntamente à alienação do
professores do seu trabalho, o processo denominado de proletarização do trabalho docente
toma força durante a potencialização das políticas econômicas e sociais dos governos
militares, dificultando as possibilidades do trabalho docente se constituir como uma atividade
intelectual de organização e sistematização da cultura, ciência, filosofia, enfim, dos saberes
elaborados sócio-historicamente, a fim de contribuir decisivamente na formação de crianças,
jovens e adultos pertencentes à classe trabalhadora.
Desse modo, o trabalho docente tem-se constituído pelo achatamento salarial,
pelas difíceis condições de vida e de trabalho, instituições sem estrutura, falta de formação,
jornadas duplas e às vezes tripla de trabalho em locais diferentes, as salas de aulas abarrotadas
de alunos, relações hierárquicas de trabalho entre trabalhadores docentes e a tecnocracia das
secretarias de educação, relações conflituosas entre as direções de escolas e os professores,
aparelhamento político-eleitoral das instituições educativas, falta de concursos públicos e o
aumento do emprego precarizado, enfim, toda uma (des)ordem de mazelas e sucateamento
endereçadas às instituições públicas. Nesse sentido, é difícil perceber as possibilidades de, no
interior das escolas, os trabalhadores exercerem um trabalho pleno de sentido.
No entanto, concordo com Ridenti (1996, 2001) quando afirma que os aspectos
objetivos das classes sociais (salários, ocupação no processo produtivo, participação na
divisão social do trabalho, a formação do indivíduo) se configuram apenas como o ponto de
partida na compreensão da formação da consciência de classe na sua ação como tal. Para esse
83
- Sobre a ditadura militar e as reformas educacionais estabelecidas pelo acordo MEC-USAID, cf. (ARANHA,
1996; SEVERINO, 1986; ROMANELLI, 1997; e GERMANO, 2005).
185
autor, a classe – e, portanto, a identidade política de classe como momento da configuração da
consciência de classe – se faz no movimento concreto de luta com o outro. No caso da classe
trabalhadora, esse movimento está refletido na ação e nas representações atribuídas ao
conflito estabelecido entre trabalho, capital e Estado capitalista.
Importa aqui nesse momento partir da noção de que “[...]o destino de uma classe
depende da sua capacidade de esclarecer e resolver em todas suas decisões práticas, os
problemas que lhe impõe a evolução histórica.”. Nesse sentido, quando categorizamos os/as
trabalhadores/as em educação como classe trabalhadora, nos importa “[...] saber até que ponto
a classe em questão realiza [...] as tarefas que lhe são impostas pela história [...] (LÚKACS,
2003, p. 146).
Nesse sentido, a luta pela produção da vida material e a violência presente no
interior das relações sociais de exploração e desumanização imposta pelo sistema do capital
são momentos decisivos na constituição da ação e das idéias e representações de classe. De
acordo com Lúkacs (2003, p. 145),
[...] em primeiro lugar, as próprias condições para que os interesses de uma classe
possam se afirmar são muito freqüentemente criados por intermédio da violência
mais brutal (por exemplo, a acumulação primitiva do capital). Em segundo, é
justamente nas questões da violência, nas situações em que as classes se enfrentam
na luta pela existência, que os problemas da consciência de classe constituem os
momentos finalmente decisivos.
Desse modo, a construção da identidade política é um processo necessário à
elaboração da consciência de classe, que só pode se efetivar no interior dos conflitos e das
lutas estabelecidas entre as classes sociais. Tal identidade significa a elaboração, no plano da
consciência, das relações entre condições econômicas e poder político da sociedade. No caso
dos/as trabalhadores em educação, essa identidade se configura na medida em que esses se
organizam em sindicatos e passam a lutar e dar significados às suas lutas a partir de um
projeto contrário à lógica do capital, isto é, pautado pela tarefa histórica da classe trabalhadora
de superação da sociabilidade destrutiva do capital.
3.2.1 A sindicalização dos trabalhadores em educação e o esforço de elaboração de uma
identidade política
Marx e Engels (2001, p. 67), ao desenvolver a compreensão de que a história de
toda a sociedade até hoje é a história da luta de classes, observam que o desenvolvimento das
186
forças produtivas e das relações de produção burguesas funda “novas classes, novas condições
de opressão, novas formas de luta no lugar das antigas”.
As relações estabelecidas entre as duas classes fundamentais expressam
profundas contradições materializadas pelo domínio de uma classe (burguesia) sobre outra
(proletariado). Essas relações são baseadas na lógica da propriedade privada dos meios de
produção e da instrumentalização das forças produtivas para fins acumulativos do capital.
Entretanto, as complexas relações sociais produzidas na sociedade burguesa não
reduzem as classes sociais a “simples” dicotomia existente entre burguesia e proletariado. As
sociedades estruturam formas de apropriação e de estabelecimento de privilégios que geram
ou mantém outras divisões e classes além das fundamentais. Os setores tecnocráticos, o alto
escalão do Estado, uma parte dos intelectuais, os agentes financeiros, enfim, uma gama de
empregados que recebem altos salários e uma parte do pequeno e médio empresariado
conformam a chamada classe média que, no interior dos conflitos e interesses de classe,
também se posicionam, se organizam e defendem determinados interesses, ora de maneira
corporativa buscando manter seus privilégios econômicos e políticos, ora se aproximando dos
projetos históricos de uma das classes fundamentais (MASCARENHAS, 2000; RIDENTI,
1995; 2001).
A lógica acumulativa e expansionista da sociedade burguesa constituída sobre as
“ruínas da sociedade feudal” desenvolveu de forma espantosa as forças produtivas,
inaugurando uma configuração econômica que exigiu novas relações de produção e circulação
de mercadorias. O desenvolvimento das grandes indústrias e dos mercados internacionais
tornou-se fundamental na estruturação do modo de produção capitalista, incorrendo na
conquista do domínio do poder político centrado na figura do Estado.
No bojo da produção capitalista, todo o trabalho social é subsumido aos
interesses e necessidades acumulativas e expansionistas do capital. Como asseveram Marx e
Engels (2001, p. 69), a burguesia “transformou em seus trabalhadores assalariados o médico,
o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência”.
O próprio processo de constituição da sociedade capitalista engendra
contradições insolúveis no seio de seu molde societal, tecendo as condições de sua superação
e forjando, no seu processo de constituição, os sujeitos (classes trabalhadoras) que possuem
essa potencialidade e possibilidade e as suas armas.
As situações limites de exploração que o capital imprime sobre os trabalhadores,
no intento de extrair uma maior quantidade de sobretrabalho e, portanto, de expandir o capital
e se reproduzir como sistema social, estabelecem contradições que se expressam,
187
imediatamente, nas condições concretas de vida e trabalho da classe trabalhadora. Dessas
contradições, emergem formas de organização insurretas em relação aos ditames do capital
sobre o mundo do trabalho, organizadas sob a forma de sindicatos e/ou de outras formas de
resistência.
Marx (2001) afirma o potencial político da classe trabalhadora diante da
realização de uma sociedade humanamente emancipada, cuja constituição de formas de
percepção e ação do sujeito (que é sempre coletivo) diante das contradições do capital é
inerente ao processo de superação desse modo de produção e de passagem da pré-história para
a história. A grande indústria do século XIX e de boa parte do século XX aglomeraram um
grande contingente de pessoas que – apesar da concorrência envidada pela divisão do trabalho
dividir seus interesses – indignando-se e lutando pela manutenção dos salários, reúnem-se
num mesmo pensamento de resistência, o que Marx denomina de coligação.
As coligações de trabalhadores se materializam diante de dois objetivos: a
extinção da concorrência entre os trabalhadores; o engendramento e aprofundamento da
concorrência contra os capitalistas.
Se o primeiro objetivo de resistência se limitou à manutenção dos salários, à
medida que os capitalistas se reúnem por sua vez num pensamento de repressão, as
coligações, a princípio isoladas, constituem-se em grupos e diante do capital
sempre unido, a manutenção da associação torna-se mais necessária para os
operários do que o salário. (...) Nessa lutas – uma verdadeira guerra civil – reúnem-
se e desenvolvem-se todos os elementos necessários para uma batalha futura. Uma
vez que atingido esse ponto, a associação adquire um caráter político. (MARX,
2001, p. 150-151).
O trecho acima mencionado explicita uma passagem importante de um estágio
da luta do trabalho contra o capital, cujas limitações das primeiras investidas do proletariado
no conflito explícito ante o capital é concretizado na luta pela permanência dos seus salários
(que é necessária ao desenvolvimento da luta de classes), decorrendo da necessidade de
constituição da organização coletiva. Tal organização coletiva (as coligações, os sindicatos)
desenvolve o caráter político da luta de classes, que passa a não ser mais uma investida
conjuntural do mundo do trabalho contra o capital, mas sim estrutural, visando a superação
desse modo de produção.
O modo de produção capitalista determina condições adversas de vida às
maiorias, transformando a massa da população em trabalhadores. A transformação da massa
da população em trabalhadores cria para esses uma situação comum e interesses comuns,
constituindo essa massa em classe diante do capital. A construção da classe diante do capital
188
não garante a sua constituição como classe para si, organizada no conflito diante do capital;
mas na luta essa classe reúne-se, constituindo-se como classe para si. “Os interesses que
defendem tornam-se interesse de classe, explicitando o caráter político da luta de classes.
(MARX, 2001, p. 150)”.
Evidencia-se, a partir dessa discussão, o quanto a inserção dos sujeitos no mundo
do trabalho, nas relações estabelecidas entre indivíduos que se situam em condições comuns e
que passam a aspirar interesses convergentes, estabelecendo a diferenciação imediata e
mediada diante do outro, o capitalista, contribui na formação de uma identidade politicamente
engajada na resistência e busca de superação do status vigente.
Ocorre que o modo de produção capitalista tem sofrido intensas mutações, que
tem impactado diretamente na organização dos trabalhadores e mesmo nos trabalhadores que
não têm se organizado coletivamente.
Os impactos da reestruturação do modo de produção capitalista no mundo do
trabalho provocaram mudanças significativas na classe trabalhadora e em suas formas de
organização, até mesmo atacando diretamente e colocando em crise a instituição mais
tradicional de organização política dos trabalhadores, o sindicato. Tais impactos têm
intensificado o processo de heterogeneização e fragmentação da classe trabalhadora, exigindo
“uma reinvenção de sua prática e ação estratégica. (MASCARENHAS, 2002, p. 15)”.
A centralidade do operariado industrial, como sujeito das transformações
históricas, já não se efetiva no atual estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista. A
classe trabalhadora já não se circunscreve efetivamente naqueles sujeitos que atuam na esfera
produtiva, mas sim em todos que vendem sua força de trabalho ao capital mediante o
recebimento de salários, seja na produção fabril, no setor de serviços ou na produção
agropecuária, formando assim a categoria classe que vive do trabalho (ANTUNES, 2002).
A nova configuração da classe trabalhadora exige novas formas de construção de
práticas e ações dos trabalhadores diante da sua tarefa histórica e das atuais condições de vida
e trabalho a que estão submetidos. Dessa forma, um aspecto fundamental na organização dos
trabalhadores diante dos conflitos e das relações de poder – e nesse trabalho o aspecto central
– é o processo de construção da identidade política dos trabalhadores.
Identidade política é aqui entendida como “processo de configuração da auto-
consciência de um grupo em que ele elabora sua posição e ação diante dos conflitos e das
relações de poder.” (MASCARENHAS, 2002, p. 15). Assim, a identidade política dos
trabalhadores configura-se como um processo de construção permanente de um pertencimento
auto-representado e auto-definido que se manifesta tanto nas ações como nos discursos dos
189
sujeitos articulados em um determinado grupo. Tal perspectiva de identidade política dos
trabalhadores rompe com a idéia de fragmentação em movimentos isolados e fragmentários
próprios desta quarta da história, retomando o trabalho como categoria central e fundante da
constituição do homem como ser genérico.
De acordo com Ciampa (1992), o processo de constituição da identidade ocorre
no interior das relações socialmente estabelecidas, cuja negação do outro e afirmação de si
mesmo como indivíduo é, ao mesmo tempo, negação de si mesmo e auto-afirmação como ser
social. Dessa forma, a construção de uma determinada identidade perpassa pela inserção em
um grupo social. No entanto, esse processo não significa o alocamento do indivíduo a um
substantivo (eu sou “professor”, eu sou “engenheiro”, eu sou “revolucionário”), mas, ao
contrário, a constituição da identidade se materializa pela intervenção do indivíduo no mundo
e nas relações com outros sujeitos. O trabalho é o elemento constituinte da subjetividade dos
sujeitos e possibilita a construção de grupos.
Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos diversos
grupos de que fazemos parte, faz-se necessário refletirmos como um grupo existe
objetivamente: através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o
meio onde vivem, isto é pela sua prática, pelo seu agir (num sentido amplo,
podemos dizer pelo seu trabalho); agir, trabalhar, fazer, pensar, sentir, etc., já não é
mais substantivo, mas verbo. (CIAMPA, 1992, p. 64).
A constituição da identidade é um processo de permanente construção inserido
nas contradições do modo de produção vigente. Construção de identidade não é algo
posto/dado como aquilo que o sujeito tem que ascender, mas sim um contínuo processo
situado nas relações que o indivíduo estabelece com outros e que se remete necessariamente a
um determinado projeto político.
Nesse sentido, a constituição de uma identidade política dos trabalhadores da
educação significa a afirmação desses como agentes históricos ligados a um projeto de classes
que é antagônico ao atual modelo de sociedade. A luta, a resistência, as formas de se
posicionar, de pensar e de expressar os conflitos e contradições da sociedade de classes
constituem elementos que compõem a identidade política dos trabalhadores.
O movimento sindical docente se configura como um ator social importante no
cenário político brasileiro, juntamente com outros servidores públicos, na medida em que
esses se organizam e lutam não só pelos interesses corporativos, mas também pelo controle
das políticas públicas das respectivas áreas e da apropriação e redistribuição coletiva do fundo
público. Nesse conflito, os/as trabalhadores/as se fazem classe e elaboram representações de
190
um “nós” categoria/trabalhadores e do outro pólo do conflito, o Estado capitalista,
desvelando, assim, o fetichismo da representação jurídica do Estado
84
.
Marx (1978) observa que as lutas diárias do trabalhador contra as formas de
usurpação de seus salários são conflitos cotidianos que dão suporte a uma luta de maior
envergadura. Ou seja, a luta conjuntural e muitas vezes defensiva dos sindicatos são os
primeiros níveis de conflito entre trabalho e capital, necessários à organização e
potencialização da luta de classes como forma de superar o estado de coisas inerentes ao
metabolismo social do capitalismo.
No caso da educação, as difíceis condições de vida e trabalho imprimidas aos
trabalhadores que atuam nessa área estabeleceram um processo em que sujeitos diversos
passaram a vivenciar coletivamente contradições e conflitos semelhantes, criando situações e
interesses comuns para uma grande quantidade de trabalhadores. Esses desenvolvimentos
desenrolaram numa identificação do trabalho docente ao dos demais trabalhadores,
contribuindo para que os trabalhadores da educação começassem a constituir a compreensão
de que seu trabalho se caracteriza como um serviço essencial à maioria da população
brasileira, e que suas reivindicações extrapolavam as reclamações corporativo-salariais,
integrando-se na luta pelo direito das maiorias a educação pública, gratuita e de qualidade
(RIBEIRO, 1987).
Desse modo, a mobilização sindical e política dos trabalhadores da educação,
iniciada nos anos de 1970, possibilitaram a esses/as trabalhadores/as a constituição de uma
identidade política de esquerda, vinculada aos anseios e necessidades das classes trabalhadoras
por democratização da educação com qualidade. Essa identidade é elaborada, segundo Ridenti
(1995), na medida em que os professores se constituem como atores coletivos e passam a lutar
pela apropriação coletiva do fundo público, por meio da democratização de políticas públicas
de saúde, educação, moradia, transporte, previdência social etc., e, também, pela publicização
de idéias, valores, representações e práticas contrárias à ordem social do capital, visando a sua
superação.
Nesse sentido, as insatisfações com as políticas econômicas restritivas e
destruidoras da noção do espaço público como lócus democrático de exposição dos conflitos
sociais, pautadas pelo regime militar, se configuraram como o estopim para a explosão dos
84
- Segundo Marcelo Ridenti (2001), o Estado se apresenta na sociedade capitalista sob um caráter fetichista e
jurídico, que se objetiva na sua pretensa neutralidade de classe, na configuração como representante do conjunto
dos cidadãos e na sua constituição como entidade responsável pela arbitragem das contradições e conflitos
sociais que tendem a romper o contrato social estabelecido pela ordem do capital. Ao caracterizar dessa forma o
Estado, vela-se a sua configuração histórica de produto da sociedade de classes, responsável pela manutenção da
ordem capitalista, seja pelo consenso ou pela força.
191
movimentos de resistência já no final da década de 1970. Nesse contexto, as mobilizações dos
trabalhadores da educação iniciaram um processo de politização do trabalho docente,
identificando-se com os demais trabalhadores na luta por uma sociedade mais justa e
democrática. Nesse momento, as associações dos trabalhadores da educação, que até então
possuíam uma perspectiva associativista
85
, passam a ser disputadas por setores do
professorado de orientação à esquerda que, influenciados pelos sindicatos combativos dos
trabalhadores do setor produtivo, passam a projetar uma organização sindical nesses moldes.
Nesse sentido, o movimento sindical dos trabalhadores da educação começou a
se constituir a partir do confronto entre as formas de se conceber a organização e ação
coletiva dentro das associações de professores. Parte dos trabalhadores da educação começou
a disputar o espaço de organização coletiva docente orientada por um projeto histórico
vinculado à classe trabalhadora, buscando organizar o espaço associativo como uma entidade
sindical de postura combativa
86
.
Assim, o modelo de ação adotada percebia a greve como principal instrumento
de organização e mobilização da categoria em torno de suas reivindicações. Como observa
Vianna (1999, p. 92),
O tipo de sindicalismo adotado por uma parcela do setor público, como é o caso as
Andes (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, hoje sindicato), dos
Sindseps (Sindicatos dos Servidores Públicos), no âmbito nacional [...], se
assemelha à atuação dos sindicatos do ABCD: sindicalismo combativo ou
sindicalismo de confronto. É também similar a ênfase na questão salarial e na perda
do poder aquisitivo. A greve foi adotada como principal instrumento de atuação [...]
As greves dos trabalhadores da educação constituíram-se como um espaço
privilegiado de exercício de uma práxis política, cuja expressão maior foi a constituição de
formas de ação e da elaboração de representações contra-hegemônicas. As mobilizações
grevistas e as lutas político-sindicais dos/as professores/as se conformaram como
possibilidade concreta de publicizar as reais condições da escola pública no país e,
conseqüentemente, dos trabalhadores em educação. Além da publicização de um espaço e de
relações historicamente caracterizadas como privadas, essas ações e representações
85
- As associações funcionavam como espaço de encontro, lazer, construía-se clubes, organizavam-se viagens,
enfim constituíam-se como uma entidade representativa dos interesses hegemônicos, pois não organizava
politicamente os trabalhadores, pelo contrario seguiam as regras ditadas pelo Estado, até mesmo por que não era
permitido ao funcionalismo público a organização sindical. (VIANNA, 1999, p. 73-74).
86
- Como observa Souza (1997), as associações de professores vinham assumindo uma postura sindical diante
dos conflitos e contradições sociais, agindo diante do Estado (que além de repressivo se configurava como seu
“patrão”) de forma combativa e oposicionista desde meados da década de 1970. Entretanto, somente após a
promulgação da Constituição de 1988 o setor público (entre eles os trabalhadores da educação) pôde se organizar
em sindicatos, passando a regular as entidades sindicais de professores.
192
condicionaram a constituição de uma consciência coletiva, de uma identidade de um “nós”
professores (“sou professor, sim senhor”) baseada na perspectiva do trabalho.
Para Souza (1996, p. 142),
Tais greves são compreendidas como resultados de esforços políticos coletivos, de
aprendizado de cada professor, de mudança na sua maneira de sentir, ver e agir, de
construção de identidades, permitindo ao docente não só reconhecer-se e ser
reconhecido pelos seus pares, como também exigindo o reconhecimento por parte
da sociedade e do estado.
O movimento de crescimento do sindicalismo dos trabalhadores da educação
constituiu-se como uma busca da construção de uma identidade política desses trabalhadores
que, acompanhando uma organização mais ampla da esfera do trabalho, passou a vincular
seus interesses aos do restante da classe trabalhadora. Como observa Ribeiro (1987, p. 258),
as difíceis condições de vida e trabalho impostas pelo empobrecimento e desvalorização
social dos trabalhadores da educação criaram circunstâncias para que esses se organizassem
coletivamente, lutassem pelas suas reivindicações e, compreendendo que “seus interesses
integram os interesses da maioria dominada da população brasileira”, se formassem
politicamente.
Deste modo, foi
[...] a necessidade do enfrentamento das contradições, que se vão impondo à
consciência de determinados setores da categoria (e desses para os demais), que
levou muitos professores a uma ação efetiva que, por sua vez, lhes possibilitou
avançar no grau de compreensão de sua condição de assalariado e de sua
especificidade de educador-escolar, numa sociedade do tipo capitalista
(dependente). (op.cit.).
Seguindo o aumento da mobilização popular, engendrada pelo movimento de
reabertura democrática do país, que possibilitou uma maior participação dos setores
oprimidos da sociedade no cenário político nacional, houve um significativo crescimento da
ação sindical dos trabalhadores da educação. No processo de transição do Estado ditatorial
para o democrático, o movimento sindical ressurge sob uma forte capacidade combativa e
mobilizante no embate contra as injustiças sociais e as formas autoritárias de poder.
Leite (1997, p. 16) faz as seguintes observações sobre a importância e o
crescimento do movimento sindical na década de 1980:
O movimento sindical experimentou, ao contrário da experiência internacional, um
vigoroso processo de fortalecimento nos anos 80, tendo se configurado desde o
193
final da década anterior como um ator social de crucial importância nos processos
de reorganização da sociedade civil e transição democrática.
Desse modo, o movimento sindical constituído pelos trabalhadores da educação
se caracterizou pela construção de um “sindicalismo classista e de massa” compreendendo os
professores como parte integrante do proletariado, apoiado na construção de uma
“consciência como assalariado em processo de proletarização” (SOUZA, 1997, p. 115). Esse
processo é mediador da constituição do professor enquanto sujeito coletivo, envolvido numa
postura política classista diante das contradições da sociedade de classes.
O fato de os professores se organizarem coletivamente como uma categoria
profissional, lutar por seus interesses imediatos (corporativo-salariais) e, conseqüentemente,
estabelecerem uma ação política de classe, constitui-se num movimento de construção de uma
auto-representação, de posturas e ações diante dos conflitos e contradições sociais,
configurando-se como um importante espaço de construção da identidade política desses
trabalhadores.
No entanto, a constituição da identidade política dos trabalhadores docentes não
se limita apenas à referência das entidades sindicais, mas trata-se também da construção da
compreensão de que o magistério como profissão caracteriza os seus profissionais como
trabalhadores que vivenciam e compartilham atividades, necessidades, anseios e lutas
semelhantes, ou seja, o trabalho docente cria a possibilidade da composição de um
pertencimento; um “nós” professores que se configura como um “nós” trabalhadores.
Desse modo, as ações coletivas dos trabalhadores da educação conformam-se
como espaços possíveis de construção de uma identidade que expressa a condição que os
sujeitos ocupam no mundo do trabalho como professores. Como observa Vianna (1999, p.
71),
[...] o conceito de organização coletiva supõe, também para o caso da categoria
docente, uma relação de pertencimento que não se restringe a sua entidade ou
sindicato. Trata-se de um processo muito mais amplo, relacionado, sobretudo, à
idéia de um “nós” professorado, um “nós” magistério, o qual pode indicar,
eventualmente, uma aliança com os demais atores da escola pública e um
pertencimento ao sindicato se este espelhar o “nós” magistério.
Caracterizado pelo sindicalismo combativo e organizado pela perspectiva de
enfrentamento a partir de mobilizações, greves e luta de massas, os professores do setor
público (tal como boa parte do funcionalismo público na década de 1980) engendraram um
esforço em estabelecer ações políticas e constituir identidades coletivas.
194
É importante destacar a capacidade organizativa e a visibilidade política que o
sindicalismo do setor público alcançou na década de 1980 no país. O funcionalismo do
Estado, denominados pela literatura de assalariados de “classe média”, ocupou significativo
espaço no cenário político brasileiro por meio da luta sindical. As mobilizações dos servidores
públicos (médicos, funcionários da administração, professores) durante o final da década de
1970 e durante toda a década de 1980, constituiu-se como um “fenômeno relativamente novo
e repleto de significados na vida política brasileira.” (MASCARENHAS, 2000, p. 05).
Por meio da organização e luta sindical, o funcionalismo público se aproximou
das reivindicações do restante da classe trabalhadora, questionando, além das difíceis
condições de trabalho e do achatamento salarial, as determinações autoritárias do Estado
brasileiro e as profundas mazelas sociais do modelo econômico e político em vigência. A
militância sindical no setor público significou o explicitar da tensão existente com a
concepção corporativa do funcionalismo em relação aos governos e o desnudamento do papel
do Estado na sociedade burguesa, contribuindo na constituição da identidade política desses
trabalhadores.
Como observa Mascarenhas (2000, p. 125),
[...] os funcionários públicos organizados procuram se assenhorear de seu destino
social e político e esse é um fator de distinção no esboço de um novo perfil de
agrupamento. Certamente, esse processo não se dá de maneira homogênea. De fato,
ele se apresenta de forma mais clara em alguns setores do funcionalismo do que em
outros. Mas é visível um esforço de constituição e reconstituição de uma prática
política e de uma identidade política.
Em Goiás, o setor do funcionalismo público que mais conseguiu visibilidade no
cenário político mediante a organização político-sindical foram os professores. Organizados
no antigo CPG (Centro de Professores de Goiás), que, após a promulgação da Constituição de
1988, passou a se configurar “cartorialmente”
87
como sindicato dos professores (Sintego), os
professores impulsionados pelas difíceis condições de vida e trabalho, que vinham assolando
a educação pública no país durante o período totalitário, se articularam e organizaram
coletivamente suas reivindicações, entrando em conflito com o Estado. Canesin (1999)
observa que a experiência sindical dos professores teve significativa importância sobre as
relações conflituosas entre trabalho e capital (ou Estado) em Goiás, pois publicizou tais
87
- Canesin (1999), em sua pesquisa, analisa que os trabalhadores da Educação em Goiás já vinham se
organizando politicamente nos moldes sindicais desde a segunda metade da década de 1970. Nesse sentido, a
conquista materializada pela Constituição Federal de 1988 da possibilidade legal do funcionalismo público
organizar-se em sindicatos configurou-se como a legalização de uma ação que já estava consolidada.
195
contradições e apresentou ao cenário político regional as “armas” dos trabalhadores contra a
opressão e exploração, qual seja, a crítica e a greve. Por meio da organização sindical, de
contínuas greves e manifestações públicas, os professores constituíram-se como sujeito
coletivo (protagonistas nos dizeres de Canesin) com importante inserção na política e na vida
social em Goiás, constituindo, assim, uma prática e identidade política.
O sindicato dos professores, vinculados ao sistema público da Educação Básica,
objetivou suas ações, desde então, sobre três eixos básicos da política: política geral; política
sindical; e política educacional.
A política geral refere-se à inserção no debate e na luta quanto às questões
político-legais (constituição, legislações, eleições); políticas sociais de enfrentamento
(reforma agrária, emprego); políticas salariais para os trabalhadores em geral; liberdades
políticas; e solidariedade a outros povos. Na política sindical, os sindicatos dos trabalhadores
da educação têm tratado, de forma geral, das reivindicações salariais e funcionais (plano de
carreira, concurso, jornada de trabalho, aposentadoria); e da própria organização sindical dos
trabalhadores da educação vinculando-se às lutas dos trabalhadores em geral, unindo as
entidades às centrais sindicais, especialmente à CUT (Central Única dos Trabalhadores).
Quanto à política educacional, as ações das entidades sindicais inseriram-se nos debates e
reivindicações em torno da política educacional em questões referentes ao financiamento,
democratização das relações de poder e outros temas específicos como currículo, formação de
professores e planos de educação (SOUZA, 1997).
É no engajamento e encaminhamento dessas lutas que os trabalhadores da
educação têm criado uma prática política objetivando a libertação de determinismos sociais,
constituindo leis, realidades, utopias e solidariedade. Esse esforço constitui-se nos dizeres de
Mascarenhas (2002, p. 47) um esforço simbólico de libertação constituinte de uma identidade
de classe, expressa por um conjunto de auto-representações e de práticas concretas mediadas
pelas instituições organizadas pela classe trabalhadora (sindicato, partido, movimentos
sociais).
Desse modo, a mobilização dos trabalhadores da educação nos sindicatos tem-se
conformado como lócus de construção dos professores como sujeito coletivo.
Foi no processo de construção de sujeitos coletivos, no desenvolvimento de práticas
próprias de reivindicações, que os professores colocaram em xeque a separação
entre a esfera do particular, individual, privado (caracterizada como não-política) e
a esfera pública comum (caracterizada como política). Foi nesse fazer-se que se
constituiu a identidade de “professores” como sujeito coletivo. (SOUZA, 1997, p.
142).
196
Identificar as questões educacionais e suas relações como espaço de expressão
dos conflitos e contradições das sociedades de classes, e tornar público isso, tem sido um
movimento de publicização de uma esfera da vida social que vem se configurando
historicamente como responsabilidade privada e individual. Tornar público a essencialidade
humana que envolve o trabalho educativo, as apropriações que o capital faz disso e a
desvalorização dos sujeitos envolvidos com a educação pública significa, antes de tudo, uma
ação política que envolve a afirmação de um projeto histórico antagônico ao que está em
vigência. Significa a constituição dos trabalhadores da educação como atores coletivos que,
vinculados à classe trabalhadora, lutam pela realização de uma educação pública, gratuita,
democrática e de qualidade para as maiorias.
3.2.2 Crise no sindicalismo docente: a reafirmação da heterogeneidade e fragmentação dos
trabalhadores em educação
As décadas neoliberais têm significado um arrefecimento dos conflitos e a
cooptação dos organismos sindicais por uma perspectiva de negociação e consenso,
constituindo um retrocesso na organização política dos trabalhadores na luta não só por
melhores condições de vida e trabalho, mas também por um novo modelo de sociabilidade.
Antunes (2002), Mascarenhas (2002) e Katz e Coggiola (1996) observam que o
processo de reestruturação produtiva e as decorrentes políticas neoliberais têm afetado
drasticamente o mundo do trabalho e, conseqüentemente, as organizações sindicais,
impactando sobre suas formas de ação diante dos conflitos e contradições dessa sociedade. O
aumento substancial do desemprego e das formas precarizadas de emprego, o desmonte dos
parques industriais e a redução do operariado industrial (referências maiores do movimento
sindical brasileiro) têm provocado retrocessos na ação política dos sindicatos.
A própria redução da massa de empregados tem enxugado os sindicatos que,
diante das perdas provocadas pela atual conjuntura do capital, assumem formas defensivas de
ação, colaborando com a construção de um consenso entre capital e trabalho.
O sindicalismo de classe, marcado pela postura combativa e pelo projeto de uma
sociedade socialista, tem sido substituído por um sindicalismo de negócio, o chamado
sindicalismo de participação. O sindicalismo de participação é expressão dos processos de
cooptação que os “novos” processos produtivos envidam sobre a organização política dos
trabalhadores. Como observa Ramalho (2000, p. 131), essas formas de sindicalismo se
197
definem “pela participação em tudo... desde que não se questione o mercado, a legitimidade
do lucro, o que e para quem se produz, a lógica da produtividade, a sacra propriedade privada,
enfim, os elementos básicos do complexo movente do capital”.
A crise do movimento sindical materializa-se como um elemento que dificulta as
possibilidades da construção da identidade política dos trabalhadores, pois os sindicatos
passam a não diferenciar suas ações dos interesses dos setores patronais, divergindo assim dos
interesses e necessidades da classe trabalhadora.
A atual conjuntura do modo de produção capitalista impõe uma série de limites à
organização política dos trabalhadores e lançando essa parcela da sociedade a uma empreitada
numa espécie de individualismo e atomização exarcebados, expressos pela lógica do “salve-se
quem puder” para sobreviver no mercado de trabalho.
A heterogenização e fragmentação dos trabalhadores impõem-lhes limites que,
por sua vez, geram possibilidades de ampliação dos horizontes da classe que vive do trabalho
no interior da luta de classes. A formação da identidade política, mais que uma estratégia de
fôlego para os trabalhadores, significa a possibilidade concreta de recomposição da
potencialidade do mundo do trabalho no conflito diante do capital.
O atual contexto das sociedades capitalistas impõe às classes que vivem do
trabalho a tarefa de reconstituir sua postura, seu modo de pensar e de agir diante das
contradições inerentes ao atual sistema societal. Mascarenhas (2002), ao discutir sobre a
heterogeneidade e fragmentação que caracterizam os trabalhadores na atual conjuntura,
explicita importantes elementos para a recomposição de uma identidade política que não
somente resista ao capitalismo tardio, mas que também organize novas alternativas de
sociabilidade.
As dicotomias pressupostas pela forma mesma em que a sociedade se produz –
sociedade marcadamente dividida em classes, cuja divisão do trabalho é um importante
referencial nessa questão – se arranja, nos diversos campos da vida social e, portanto, do
mundo do trabalho. A superação de tais dicotomias é necessária ao processo de constituição
da identidade política dos trabalhadores, ampliando a noção de classe trabalhadora e de sua
potencialidade transformadora.
Ela (classe trabalhadora) abriga em seu seio além do tradicional operariado
industrial e trabalhadores rurais, um grande contingente de assalariados do setor de
serviços (bancos, comércio, transporte, comunicação), funcionários do Estado
(civis e militares) e funcionários técnicos e da administração das indústrias. [...]
[Nesta] está presente uma capacidade transformadora face a sua abrangência, sua
situação desfavorável na distribuição do poder e da riqueza e a potencialidade de
ação política. (MASCARENHAS, 2002, p. 45).
198
A recusa da dicotomia entre produção e reprodução se constitui como fator
necessário à constituição da identidade política dos trabalhadores. A divisão entre reprodução
e produção como questões eqüidistantes tem servido, historicamente, para a subjugação do
gênero feminino não somente pelas relações despóticas entre capital e trabalho, mas também
pelas relações do patriarcalismo. Desta forma, trabalho doméstico e trabalho fabril
representam esferas diferenciadas entre público e privado.
É necessário salientar que a esfera da reprodução é inerente aos processos de
produção material (MARX e ENGELS, 1999). No sistema do capital a divisão entre produção
e reprodução colabora para a exploração das trabalhadoras de forma mais intensificada, pois,
além de extrair mais-valia delas na produção de mercadorias, explora-as no processo de
reprodução da força de trabalho no âmbito familiar. Uma nova composição da identidade
política dos trabalhadores perpassa pela recusa dessa dicotomia e pelo estabelecimento de
relações fraternas e solidárias entre mulheres e homens.
No âmbito do movimento dos trabalhadores e na própria produção, existe uma
dicotomia clara que distingue o mundo do emprego e do desemprego. Os processos de
reestruturação da produção capitalista têm lançado grande parte da população ativa ao
trabalho precarizado, em situações contratuais esporádicas e ao flagelo do desemprego
estrutural. Nesse sentido, a dicotomia entre emprego e desemprego significa a fragmentação e
perda de potencialidade transformadora das classes que vivem do trabalho.
Dessa forma, a luta pelo emprego pleno e a negação de que a organização dos
trabalhadores se limita àqueles que tenham condições trabalhistas regulares (trabalho com
carteira assinada ou concursados) são ações estratégicas no processo da consolidação da
identidade política das classes que vivem do trabalho.
Uma outra dicotomia danosa à organização dos trabalhadores é a referente ao
trabalho e não-trabalho. Quanto a essa questão, é necessário observar que a luta dos
trabalhadores pela realização no trabalho incorre numa vida com sentido no mundo do não-
trabalho e que, pensados de formas dicotômicas, torna-se um engodo as reivindicações
universalistas que acreditam num mundo que sociabilize as riquezas sociais para todos que a
produzem.
A luta da classe trabalhadora deve-se desenvolver simultaneamente dentro e fora do
trabalho, visando a reapropriação da totalidade das condições sociais de existência,
estabelecendo o elo imprescindível entre o movimento dos trabalhadores e os
outros movimentos sociais. [...] É esta a alternativa, interagir com os diversos atores
sociais somando forças, rompendo com as dicotomias e extraindo do seio da
199
diversidade e da fragmentação, a potencialidade da união e solidariedade
(MASCARENHAS, 2002, p. 35).
Outras duas questões importantes de serem apontadas são: 1) o reconhecimento
da proletarização do setor de serviços e organização dos trabalhadores desse setor da
economia; e 2) a luta pela educação pública e gratuita garantida pelo Estado.
O enfrentamento entre trabalho e capital traz a figura do Estado, com seu caráter
classista e conservador tensionado pela garantia das políticas sociais necessárias ao
trabalhador. A figura reduzida do Estado, imposta pela reestruturação produtiva estabelecida
pela crise do capitalismo, atingiu diretamente os trabalhadores e a exposição das contradições
da sociedade de classes no seu atual estágio impele a pressão junto ao Estado pela garantia de
direitos já conquistados e pela implementação de novas políticas sociais.
A equalização dessas questões, no seio da organização política dos
trabalhadores, significa a articulação de amplos setores envolvidos no trabalho social em
torno de uma identidade e prática política engajada num projeto histórico de classe. Nesse
sentido, o sindicato, como instituição organizativa dos trabalhadores, é expressão de
capacitação e de práticas e ações concretas dos trabalhadores diante dos conflitos e
contradições dessa sociedade.
Os sindicatos articulam as dimensões da economia e da política, tornando
público o conflito entre trabalho e capital que se esconde sob o véu de relações
ideologicamente caracterizadas por relações privatizadas. Ao tornar pública relações que têm,
paulatinamente, sofrido um processo de privatização, a esfera produtiva e as determinações
envidadas de poder são explicitadas saindo da imediaticidade dos lócus de trabalho,
proporcionando condições para o estabelecimento de laços políticos entre a classe que vive do
trabalho.
Como observa Mascarenhas (2002, p. 87),
A publicização do lócus do trabalho imprime a marca da coletividade. Fazer-se
visto e ouvido por outros exige a sedimentação do caráter coletivo das relações. Ao
tornar pública a situação de trabalho, o trabalhador ou o grupo de trabalhadores
estabelece laços no interior do espaço de trabalho e relaciona-se alem do mesmo.
A ação político-sindical politiza o lócus do trabalho explicitando as contradições
do capital no conflito aberto que estabelece diante do patronato em torno das relações
econômicas. Ao tornar política, essas relações extrapolam a imediaticidade da luta econômico
corporativista e toma o caráter de classes. Nesse sentido, tal como o lócus de trabalho, o
200
sindicato se conforma como um importante espaço de construção da identidade política dos
trabalhadores.
Nesse sentido, a aproximação das classes populares, a partir da massificação da
educação pública (COSTA, 1995) e a organização político sindical dos professores, tornaram-
se importantes vetores da construção de uma identidade política na luta por melhores
condições de vida e trabalho, que significa, no limite, a realização de uma educação pública,
gratuita e com qualidade para todos. Essa perspectiva de aproximação, objetiva e subjetiva, do
restante da classe trabalhadora desmistifica a imagem de corporativismo tão propagada por
governos e meios de comunicação e apresenta os professores como sujeitos coletivos que se
organizam e lutam pela realização plena dos direitos.
Vale salientar o quanto é importante para a educação da classe trabalhadora a
reivindicação da garantia do ensino público, gratuito e de boa qualidade. Essa é
uma bandeira que não interessa apenas aos profissionais da educação, que são
aqueles que mais intensamente a têm difundido, mas interessa a todos que se
comprometam com uma sociedade mais justa e democrática. Muitas vezes a
abrangência desta bandeira não é percebida, parecendo ser um aspecto específico da
luta dos trabalhadores organizados da área da educação. No entanto, essa tem um
caráter bastante amplo e um poder de aglutinação que em muitos momentos tem
sido pouco potencializado. Garantir a todos o acesso à educação e garantir à classe
trabalhadora uma formação ampliada (formação geral, formação profissional e
educação política) significa contribuir para a construção de uma vida social mais
digna. (MASCARENHAS, 2004, p. 27).
Os processos de luta pela educação e pela democratização do saber se
configuram como um dos campos avançados das lutas populares. Desse modo, as lutas pela
realização de uma escola digna, com professores valorizados econômica e socialmente, são
constituintes da história da construção da cidadania.
A resistência dos sindicatos docentes da América Latina, em relação às reformas
educacionais de cunho liberal, apresenta o movimento sindical docente como a organização
política de trabalhadores que mais tem tornado explícito os conflitos entre capital e trabalho,
superando, por vez, a ação dos sindicatos metalúrgicos.
Conforme observam Gentili et.al. (2004), as reformas educacionais
desenvolvidas na América Latina durante as últimas décadas têm provocado um cenário de
conflitividade, apresentando os trabalhadores docentes, organizados em seus sindicatos, como
os principais sujeitos políticos na resistência à imposição da visão neoliberal de educação.
Esses conflitos se evidenciaram, principalmente, por meio de paralisações e
greves. Entre o período de 1998 e 2003 foi computado um total de 4.802 dias de paralisação
201
em toda a América Latina. O Brasil é o terceiro país em número de conflitos, paralisações e
duração das greves.
Os movimentos sindicais docentes vêm, desde o final da década de 1970, se
tornando um dos principais sujeitos políticos da sociedade brasileira. A capacidade de
mobilização, a organização das escolas como local de trabalho que articulam milhares de
trabalhadores em cada estado do país e a perda da centralidade do operariado podem indicar a
conformação de um novo lócus de organização política dos trabalhadores.
Desse modo, a luta pela educação tem se tornado um aspecto fundamental na
construção da cidadania. A democratização da educação pública, gratuita, de qualidade
socialmente referendada é uma bandeira da organização político-sindical dos trabalhadores
em educação e de todos os trabalhadores em geral. Nesse processo, a necessária participação,
ativa dos agentes centrais do processo educativo – os professores e professoras – na luta pela
instituição da cidadania da classe trabalhadora, significa a construção de suas próprias
cidadanias.
E, mesmo diante dos limites, os sindicatos conformam-se como importante
espaço de constituição da identidade política dos trabalhadores, e a sua potencialização e
retomada do seu caráter classista é compreendida como a retomada das perspectivas
combativas e de diretrizes de classe que passam pela luta por melhores salários, pela formação
dos trabalhadores e por uma maior compreensão dos processos de produção por parte
daqueles que são responsáveis por esse; a luta sindical extrapola os aspectos econômicos e
corporativos e evidencia as alternativas de produção e divisão dos bens construídos pelos
próprios trabalhadores associados. Nesse sentido, trabalhadores organizados nos sindicatos
devem aliar suas lutas imediatas, econômico-corporativas, às lutas gerais pela emancipação
humana.
Foi nesse sentido que os trabalhadores da educação começaram a se organizarem
em sindicatos durante os anos de ditadura, aliando a luta por melhores condições de vida e
trabalho dos “operários das escolas” a ações políticas que buscassem uma real democratização
de uma escola pública de qualidade para as maiorias (RIBEIRO, 1995).
No entanto, os sindicatos dos trabalhadores da educação também vêm sofrendo
impactos das ofensivas neoliberais e da reestruturação produtiva que têm como um de seus
focos de ação a desestruturação da organização política dos trabalhadores, afetando
drasticamente as entidades sindicais. Como observa Vianna (1999), os sindicatos dos
trabalhadores da educação têm sofrido “baixas” quanto à sua organização e capacidade de
mobilização da categoria, tal como os sindicatos de outros setores. A redução do número de
202
sindicalizados, da quantidade de mobilizações grevistas e, também, as perspectivas de
negociação que os sindicatos têm tomado, expressam a crise da ação coletiva da categoria.
A crise estrutural por que passa o modo de produção capitalista e o processo de
reestruturação produtiva que busca gerenciar tal crise envolve uma série de ofensivas ao
mundo do trabalho e à própria condição do ser trabalhador. O desemprego estrutural e o
aumento de empregos precarizados, bem como o enxugamento do Estado e a conseqüente
redução do funcionalismo público, têm causado impactos significativos na organização
sindical dos setores públicos (dentre eles os da educação) que passam a assumir uma postura
defensiva e de negociação buscando mais garantir a manutenção dos direitos já conquistados
do que lutar por novas conquistas e por uma outra sociedade.
Pode-se caracterizar como exemplo maior dos impactos do processo de
reestruturação do capital sobre o trabalho educativo e suas formas de organização e luta
sindicais as propostas mercantilistas presentes nas reformas educacionais neoliberais da
década de 1990. As reformas educacionais da década de 1990 e o conjunto das reformas de
Estado têm destruído o oficio docente, aproximando-o de tarefas rotineiras de execução das
determinações curriculares definidas por especialistas. Os processos de formação inicial e
continuada são aligeirados, privatizados e esvaziados de reflexões sistemáticas, cabendo aos
professores aprender o necessário para fazer e para “aprender a aprender”. Seus salários são
aviltados e seus reajustes nunca superam os déficits em relação às perdas. Os professores são
acusados de preguiçosos, incompetentes, articuladores de um “pacto corrupto” (BARRETO e
LEHER, 2003, p. 48) e corporativistas, buscando opor pais e comunidade em relação aos
professores.
Para as reformas educacionais realizadas pelos países da América Latina, dentre
eles o Brasil, os professores e professoras são figuras centrais da intervenção política. Se
forem dóceis e passíveis de cooptação, ótimo, se são resistentes é preciso flexibilizar.
Afinal, “todos sabem” que as escolas não são reformadas facilmente porque os
professores são avessos às mudanças, não querem assumir responsabilidades e
compromissos com os pais e os alunos pobres. Ademais, os planos de cargos e
salários engessam a administração. Os custos da folha de pagamento aumentam ano
a ano, mesmo quando não há reajuste, em função de critérios de progressão que não
premiam o mérito e porque os professores podem-se aposentar com o salário
integral, um privilégio descabido. Professores da carreira tendem a se acomodar e
seus sindicatos, em geral oposicionistas, articulam-se com partidos de esquerda
para proteger seus privilégios. Um grande desafio da reforma, portanto, é
flexibilizar o trabalho docente. (BARRETO e LEHER, 2003, p. 40).
Todas essas ofensivas são formas de negar a cidadania para aqueles que sãos
socialmente provocados a corroborar no processo de formação humana e de promoção de
203
cidadania. Desse modo, se “esquece que as circunstâncias são alteradas pelos homens e que o
próprio educador dever ser educado.” (MARX e ENGELS, 1999, p. 12).
Entretanto, coexistem com as questões estruturais outros elementos que
caracterizam uma crise na ação coletiva dos trabalhadores da educação, atingindo as
possibilidades de construção de suas identidades políticas como sujeitos organizados
coletivamente.
Vianna (1999) enumera alguns elementos que compõem a crise do engajamento
docente. Sob o ponto de vista da análise teórica, a crise tem os seguintes indicadores: 1)
esgotamento das greves; 2) ausência de diálogo com a população usuária das escolas públicas;
3) divergências político-ideológicas nas entidades; distância entre as lideranças das
associações/sindicatos e o professorado (p. 36). Os relatos de sua pesquisa indicam sete
temas: 1)as sucessivas decepções e derrotas em relação ao governo e às reivindicações
docentes; 2) o medo difuso da repressão; 3) a ausência de prática de participação; 4) os
mecanismos de controle exercidos pelas diferentes instâncias da educação pública, com
destaque para as direções de escolas; 5) disputas internas no sindicato; 6) o isolamento do
professorado e 7) o desgaste do modelo de dedicação integral à militância (p. 181-182).
Todos esses elementos, segundo a autora, têm significado uma retração do
engajamento político dos professores no âmbito da luta sindical, constituindo o local de
trabalho como espaço de construção de uma identidade coletiva. Vianna (1999, p. 201)
caracteriza essa perspectiva de organização nas escolas como uma terceira tendência e “[...]
evidencia que o trabalho realizado na escola pode ser fator de recomposição da solidariedade
e do reconhecimento coletivo, capaz de aglutinar militantes e não militantes em torno dos
problemas e dos projetos relativos ao cotidiano escolar.”.
Tal organização efetiva-se na construção, execução e avaliação de projetos
político-pedagógicos constituídos coletivamente, expressando novas concepções de homem,
educação e sociedade no interior das escolas e representando novos laços éticos baseados na
solidariedade e em práticas pedagógicas alternativas. As perspectivas de mudanças efetivadas
no bojo do processo pedagógico alimentam as utopias de se construir uma outra educação e
uma nova sociedade estabelecendo novas teias de relações que engendram processos
identitários.
A crise do movimento sindical dos professores, segundo Vianna (1999), incide
na construção do trabalho docente e na constituição de projetos coletivos como fator de
recomposição da identidade coletiva dos trabalhadores da educação. “O importante para eles
[professores] é reunir-se, afirmar-se e obter respeito nos espaços de discussão coletiva, contar
204
com grupos solidários que auxiliem a viabilização de suas idéias e elaborem alternativas
práticas para a ação docente no cotidiano da escola.” (ibid., p. 196).
Nesse mesmo sentido, Souza (1996) identifica em sua pesquisa, realizada em
uma escola pública de São Paulo, que o estabelecimento de laços solidários entre professores
e comunidade escolar, centrados na construção de um projeto político-pedagógico de
qualidade, se constituiu como um elemento preponderante na construção de uma identidade
política dos trabalhadores dessa unidade escolar. No entanto, em sua investigação, tal ação
interna propunha não só a solidificação de mudança de sentido no trabalho, mas também
alterações estruturais pela organização político-sindical, traçando como metas, transformações
fundamentais na educação e na sociedade pelo trabalho.
No interior dessas relações estabelecidas pelo coletivo de professores que foram
investigados pela autora supracitada, a articulação do espaço público e privado dar-se-á tanto
nas mobilizações e greves da categoria como na própria instituição escolar.
Os professores ao se constituir como sujeitos coletivos e, portanto, políticos, estão
recuperando as dimensões da condição humana [...]. Não estão presos somente às
questões de sobrevivência (mais imediatas), nem só a produção da relação ensino-
aprendizagem, formando alunos que enfrentarão o mundo do trabalho. Mas,
também, recuperam a relação entre espaço privado (do labor e do trabalho) e o
público, espaço este como aquele em que o professor expõe-se, é visto, ouve, é
ouvido, enfim, é o espaço da participação política. A organização coletiva do
trabalho é o substrato para que a ação desenvolva-se; é por intermédio dela que o
professor recompõe o acesso à fala, à práxis, à participação. (SOUZA, 1996, p.
132).
Cabe destacar, então, que é pertinente e necessária a organização dos
trabalhadores da educação no interior das escolas, buscando construir projetos político-
pedagógicos que evidenciem e coloquem em prática uma educação de qualidade, que objetive
uma formação para a autonomia. No entanto, particularizar e cotidianizar a organização
coletiva desses trabalhadores significa retomar as relações privadas e individualistas nesse
processo; é também caracterizar as lutas dos professores como eminentemente pedagógicas
(ainda que as ações sejam politicamente engajadas), afastando dos conflitos de classe e
descaracterizando o sindicato como espaço de organização política dos trabalhadores da
educação.
É nessa complexa teia de relações que questionamos como as trabalhadoras da
educação infantil têm construído (ou se tem) uma identidade política vinculada, em primeiro
lugar à sua categoria (trabalhadores da educação), e em segundo, à classe trabalhadora em
geral.
205
Tendo a educação infantil se vinculado ao Sistema Básico de Ensino desde a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, suas trabalhadoras
passam, legalmente, a fazer parte da categoria dos trabalhadores da educação, o que não
significa que esse processo ocorra legitimamente.
O fato de ainda não se ter claro as especificidades dessa etapa da Educação,
permanecendo, de forma intensa, as concepções assistencialistas e filantrópicas que a
caracterizaram historicamente, a educação infantil ainda passa pelo processo de inserção no
sistema de ensino e o quadro de suas trabalhadoras é um emaranhado complexo e heterogêneo
composto por leigas, pedagogas, professoras com magistério, professores de outras áreas
(educação física, artes, letras etc.), profissionais de outras áreas etc.. Nem todas as
trabalhadoras compõem o quadro de carreira da educação e muitas trabalham de forma
precarizada na forma de contratos temporários.
Essas incertezas e indefinições sobre o campo de trabalho e sobre suas
trabalhadoras interferem nas formas de ser e estar dessas, criando dificuldades na construção
de suas identidades. Nesse sentido, a inserção das trabalhadoras da educação infantil junto à
categoria profissional da educação ainda é uma relação conflituosa, cujos elementos
mediadores, como a feminização, o imbricamento explícito entre o cuidar e educar e a
confusão entre atividade doméstica e profissão, constituem-se como questões contraditórias às
perspectivas de profissionalização e valorização da categoria.
Esse contexto evidencia também uma dificuldade de as trabalhadoras da
educação infantil elaborarem uma ação e postura de classe diante dos conflitos e contradições
dessa sociedade e da própria constituição da área. Como observado, o engajamento dos
trabalhadores da educação em sindicatos não foi responsável somente pela luta corporativo-
salarial, mas também vem sendo construído como espaço importante – e também
contraditório
88
– de lutas e conquistas no campo das políticas educacionais e gerais.
Para a educação infantil, que ainda está num processo embrionário de construção
de uma concepção pedagógico-educativa constituída por projetos político-pedagógicos
produzidos coletivamente pelos educadores, considerando as crianças como sujeitos histórico-
88
- Os sindicatos em geral e os dos trabalhadores em educação têm se constituído como lócus fundamental das
forças do trabalho contra as determinações do sistema do capital. Entretanto, é necessário considerar as
contradições desse espaço, especialmente quando suas lideranças assumem uma postura de negociação ou de
consenso com o capital (ou o Estado capitalista). No âmbito da educação, a organização e mobilização sindical
permanecem sendo, segundo Gentili et.al. (2004), um dos espaços mais combativos das forças do trabalho na
América Latina. No entanto, outras investigações (VIANNA, 1999) relatam o recuo das ações do sindicalismo
docente que vem assumindo uma postura de negociação diante do poder executivo, como acontece com o
Sintego desde o final da década de 1980 (Canesin, 1999). Acreditamos que essas contradições são importantes e
merecem maiores aprofundamentos em outros trabalhos de fôlego.
206
culturais, ainda há um longo caminho na definição de políticas de financiamento,
universalização, publicização, formação e de valorização para a área, que depende também da
ação de suas trabalhadoras na luta por essas conquistas.
É necessário incluir nas lutas gerais dos trabalhadores da educação questões
inerentes à especificidade da educação infantil, o que só é possível pelo engajamento de suas
trabalhadoras nos espaços organizativos da categoria. E isso não vem acontecendo
organicamente.
207
Capítulo 4
As trabalhadoras da educação infantil: limites e perspectivas na
construção de uma identidade política
A crise dos movimentos sindicais nas últimas décadas atingiu, como não poderia
deixar de ser, os sindicatos ligados aos setores da educação, crise essa materializada pela
diminuição de trabalhadores sindicalizados, pela redução do número de greves e de
participantes nas greves quando essas ocorrem, bem como no descrédito que esses
movimentos passam a ter por uma série de questões
89
. Os impactos da ofensiva neoliberal e
as recentes transformações do mundo do trabalho afetam também a possibilidade de
construção da identidade política dos trabalhadores da educação. Concorre nesse sentido
ainda (como elementos que dificultam a formação da identidade e da prática política dos
trabalhadores da educação) o caráter hegemônico de trabalhadoras mulheres, o processo de
proletarização do trabalho docente, a intensificação decorrente desse processo, a extensa
jornada de trabalho dos professores entre outros fatores.
Se a questão da atual dificuldade de construção de uma identidade e de uma
prática política é aguda no magistério do ensino fundamental e médio, é necessário questionar
esse processo no interior da educação infantil, que tem seus contornos próprios e se
caracteriza por uma intensa feminização/sexualização do trabalho, pela divisão hierárquica do
trabalho, por diferenças gritantes de salários e enfim toda uma ordem de dificuldades
estruturais, como também as intervenções de aspectos ideológicos como o caráter
assistencialista e a identificação com o trabalho doméstico.
É nesse sentido que questionamos se as trabalhadoras da educação infantil têm
constituído uma identidade política de classe e se não, quais as dificuldades dessas
trabalhadoras em construir uma identidade política que atenda não só aos interesses da
89
- Segundo Vianna (1999): 1) esgotamento das greves; 2) ausência de diálogo com a população usuária das
escolas públicas; 3) divergências político-ideológicas nas entidades; distância entre as lideranças das
associações/sindicatos e o professorado; 4) as sucessivas decepções e derrotas em relação ao governo e às
reivindicações docentes; 5) o medo difuso da repressão; 6) a ausência de prática de participação; 7) os
mecanismos de controle exercidos pelas diferentes instancias da educação pública, com destaque para as
direções de escolas; 8) disputas internas no sindicato; 9) o isolamento do professorado; e 10) o desgaste do
modelo de dedicação integral à militância.
208
categoria, mas também que intente na luta por uma real democratização da educação infantil,
e por um outro modelo de sociedade.
Para isso, é necessário analisar a natureza do trabalho educativo nas instituições
de educação infantil articulando as representações das trabalhadoras sobre seu trabalho e suas
práticas. É preciso considerar o caráter assistencialista que tem constituído essas instituições
ao longo da história e que permanece até hoje. Esse caráter reproduz os aspectos ideológicos
que identificam o trabalho docente com o “sacerdócio” e a abnegação, não cabendo a atitude
rebelde de suas trabalhadoras na luta por melhores condições de vida e trabalho. Sobre as
instituições de educação infantil como local de trabalho, destaco ainda a precariedade dessas
instituições e das relações de trabalho existentes em seu interior.
A feminização/sexualização do trabalho docente na educação infantil também se
configura como uma categoria fundamental para, a partir dos depoimentos das trabalhadoras e
da realidade de um trabalho que se faz no feminino (CERISARA, 2002), compreender os
caminhos e descaminhos dessas trabalhadoras na construção de uma identidade política.
Nesse sentido, o eixo desse debate gira em torno da articulação dos nexos presentes na
dicotomia entre produção e reprodução e a questão da identidade política das trabalhadoras da
educação infantil.
Por fim, é preciso destacar as difíceis e complexas relações (não) existentes entre
o sindicato docente (o Sintego) e as trabalhadoras da educação infantil da Rede Municipal de
Ensino de Goiânia, apontando os limites presentes aí e as possibilidades que o sindicato tem
de articular interesses particulares com uma meta histórica de superação do sistema do capital,
criando mediações para a construção de uma identidade política alternativa à ordem social do
capital.
4.1 A “natureza” assistencialista e a precariedade do trabalho na educação infantil
Nas considerações apresentadas até agora, o mundo do trabalho, e o próprio
trabalho entendido como categoria ontológica, se constitui como um lócus fundamental nos
processos identitários. Mesmo diante do desemprego estrutural, da organização do mundo do
trabalho a partir da precarização dos postos de trabalho, da terceirização da produção e,
conseqüentemente, da subproletarização de amplas camadas da força humana de trabalho, a
atividade vital do homem se configura como a forma primeira em que os homens alteram a
natureza e a si mesmos e, ao fazê-lo, atribuem significado à sua obra, a si mesmo como
produto de sua ação e à própria sociedade, entendida como produto da atividade dos
indivíduos.
209
Mas, não é só o trabalho em sua forma ontológica que é capaz de produzir
significados, representações e auto-representações. O mundo do trabalho se apresenta como
local onde os indivíduos se reúnem e constroem uma representação sobre si mesmos como
participantes de uma coletividade, mesmo sob a égide do trabalho abstrato. Ao realizar uma
atividade profissional, o indivíduo se identifica, primeiramente, como sapateiro/a, costureiro/a,
advogado/a, empregado/a doméstico/a, professor/a; posteriormente e, sob outras mediações
(das greves, das mobilizações, do sindicato, do partido, de movimentos sociais) esses/as
trabalhadores/as elaboram a identidade de trabalhador/a. A identidade de trabalhador/a não se
refere mais apenas ao local de trabalho e aos pares que circunscrevem uma categoria
profissional, abrange sim a perspectiva de classe, especialmente quando essa se mostra em
ações, idéias e pensamentos diante dos conflitos sociais e das contradições presentes nas
relações de poder.
Vimos no capítulo anterior que a percepção da exploração e das relações de
opressão sobre o trabalho e sobre os/as trabalhadores/as é o ponto de partida para a
organização coletiva desses no sentido de resistir aos processos de subtração das já penosas
condições de vida e trabalho daqueles que vivem apenas da venda de sua força de trabalho.
Dessa resistência emergem projetos contra-hegemônicos que buscam, por meio das “armas da
crítica” e da “crítica das armas”, a superação pró-ativa da sociedade de classes. E foi nesse
sentido que os/as trabalhadores/as em educação politizaram suas associações, tornando-as
sindicatos combativos e se associaram às demais lutas da classe trabalhadora.
Mas importa nesse momento apresentar reflexões sobre se e como as condições
objetivas de trabalho presente nas instituições de educação infantil limitam ou possibilitam a
elaboração de uma identidade política por parte dessas trabalhadoras. Parte dos determinantes
objetivos e ideológicos que estão presentes no trabalho exercido nessas instituições já foi
abordada nos capítulos anteriores. Cabe, então, explicitar dados da realidade das instituições
em que pude presenciar as relações de trabalho dessas profissionais e das representações
90
que
elas fazem da sua própria atividade.
Nesse sentido, é fundamental considerar os determinantes objetivos e ideológicos
que estão presentes nas ações objetivadas no cotidiano dos Cmei’s e nos depoimentos das
trabalhadoras da educação infantil da RMEG. Depoimentos esses que se constituem como
90
- Neste trabalho, não há intenção de debater a questão das representações sociais como referência teórico-
metodológica e suas variadas e distintas vinculações epistemológicas. Para os objetivos deste trabalho – que
possui um caráter teórico-empírico – valho-me do conceito de Marx e Engels sobre as formas de consciência
constituídas por intermédio da atividade humana, isto é, do trabalho. Ver introdução.
210
expressão subjetiva das condições materiais, vividas e produzidas pelas professoras e agentes
educativos no dia-a-dia do seu trabalho.
No sentido de caracterizar as instituições de educação infantil como local de
trabalho, buscar-se-á explicitar, na seqüência, os seguintes pontos: caracterização das
instituições; trabalho realizado; relações de trabalho; a educação infantil na rede municipal de
ensino de Goiânia; recursos humanos; e o regime de trabalho. Para isso, apresento alguns
dados obtidos por meio de análise de documentos da SME e dos Cmei’s, de observações livres
feitas nos momentos da pesquisa de campo e as entrevistas realizadas com professoras e
agentes educativos. Outros aspectos do cotidiano das instituições que interessavam à
interpretação do problema pesquisado também foram observados e anotados; dentre esses
aspectos estão presentes as conversas informais com diversos sujeitos presentes nas
instituições de educação infantil, no DEI e no Sintego e, também, a participação nas
mobilizações grevistas e nas assembléias convocadas pelo sindicato da categoria.
Pode-se afirmar de antemão, com base nos dados da pesquisa, que a educação
infantil mantém o seu aspecto político-ideológico de instituição assistencialista como eixo
estruturador e definidor das atividades ali exercidas, mesmo diante dos novos ordenamentos
legais que instituem novos objetivos, práticas e finalidades para tais instituições. Nesse
sentido, esse tópico aponta os elementos que definem essa identidade institucional da educação
infantil, pelo fato de que essa caracterização é determinante na limitação das formas de
organização coletiva e da luta político-sindical das trabalhadoras da educação infantil e,
conseqüentemente, das possibilidades de essas elaborarem uma identidade política.
Antes de iniciar qualquer consideração sobre a caracterização das instituições de
educação infantil como local de trabalho, é preciso ressaltar que não há a intenção de
encaminhar as análises e reflexões para o campo das práticas pedagógicas e das teorias (ou da
sua ausência) que dão sustentação às atividades pedagógicas exercidas no cotidiano da
instituição. No entanto, é fundamental explicitar que as atividades observadas nos Cmei’s,
confirmadas pelos depoimentos das entrevistadas e nos documentos analisados, apontam para
uma tendência pedagógica que Arce (2004) denomina de pedagogia antiescolar. A centralidade
da criança, o espontaneísmo, a improvisação, as aprendizagens lúdicas e prazerosas e a
incerteza, tendo como base de sustentação uma espécie de fetichismo da infância
(“naturalizando” essa etapa da vida social) conformam as atividades exercidas pelas
professoras e agentes junto às crianças.
As práticas e os depoimentos das professoras e agentes educativas nas instituições
pesquisadas expõem a ambigüidade e as contradições no que se refere ao papel dos Cmei’s.
211
Não há uma definição conceitual e, portanto, refletida de maneira detida e rigorosa sobre a
função da instituição educação infantil, o que colabora com a reprodução de velhas concepções
e práticas. Embora alguns depoimentos expressem a negação e a crítica, ao que as próprias
trabalhadoras classificam de “depósito de crianças”, podemos destacar, a partir das práticas
institucionais e dos depoimentos das trabalhadoras, três pilares que fundamentam seu trabalho:
a assistência à família e à criança carentes; a educação como socialização primária, muito
próxima da que ocorre na família; e a preparação para o ensino fundamental. Vários fatores
concorrem para isso, dentre os quais pode-se destacar a questão dos eixos ideo-políticos da
educação infantil assistencialista/caritativa e a reprodução cotidiana dessa perspectiva nas
instituições, a formação profissional insuficiente, as condições precarizadas e degradadas de
trabalho e as políticas oficiais para o setor.
A leitura e análise atenta dos projetos político-pedagógicos (PPP) das quatro
instituições pesquisadas no ano de 2005 (“Tia Amélia”, “Flores do Campo”, “São Expedito” e
“Alegria Infantil”)
91
remetem ao problema já abordado em uma série de investigações e
debates acadêmicos sobre a incorporação das diretrizes e currículos oficiais (RCNEI, DCNEI,
Resoluções do CME, e Diretrizes da SME), mesmo diante de toda a problemática teórica,
metodológica, política e ideológica contidas nesses documentos (ARCE, 2001a; FARIA e
PALHARES, 2000; RODRIGUES, 2003). Essas mesmas autoras identificam nessas
documentações o caráter fragmentado da educação infantil que dicotomiza cuidar-educar e
creches-pré-escolas, o viés psicologizante e contraditório (que articula concepções antagônicas
do desenvolvimento e aprendizagem da criança), a manutenção da divisão do conhecimento
por disciplinas do saber e um processo de apolitização e aistoricização da educação infantil por
meio de um receituário pragmático.
Arce (2001a) vai além na análise e caracteriza, ironicamente, os documentos e
diretrizes curriculares produzidas na década de 1990 pelo MEC como kit neoliberal para a
educação infantil. Esse kit configura-se pela preservação de uma formação minimizada para as
trabalhadoras da educação infantil, pela reedição do tecnicismo pedagógico em que as
professoras e agentes possuem o papel de executar idéias alheias e a alienação diante de um
conteúdo e uma prática alienada. Essas políticas, materializadas nos documentos referenciais
(que acabam se tornando normativos), se constituem no que Rosemberg (2002b) classifica de
educação para a subordinação.
91
- Lembrando que os nomes das instituições e das trabalhadoras são fictícios, no sentido de preservar suas
identidades. Os projetos político-pedagógicos também não serão identificados, visto que esses possuem um
importante aspecto de constituição de identidade da instituição, o que pode gerar o reconhecimento dos Cmei’s
pelo leitor.
212
Ao analisar os PPP’s dos Cmei’s, percebe-se em seus objetivos e em suas
referências a utilização desses documentos, muito embora seja perceptível que as práticas
existentes nessas instituições se orientam muito mais pelo espontaneísmo e pela intuição das
trabalhadoras do que pela orientação do PPP da instituição. Essa é uma questão importante
para ser investigada de maneira mais detalhada, visto que o Projeto Político-Pedagógico se
constitui como uma alternativa de organização do trabalho pedagógico, que parta de relações
democráticas e participativas, bem como do estabelecimento de uma identidade institucional
que atenda aos interesses da comunidade escolar de maneira autônoma.
Essas influências têm sido normatizadas pelas políticas educacionais recentes e
percebidas, muitas vezes, de maneira não crítica no cotidiano das instituições, o que acaba por
tornar esses documentos em receituários, dado a fragilidade da formação das trabalhadoras da
educação infantil, as suas condições adversas de trabalho e a dificuldade de construção da
identidade profissional dessas trabalhadoras que, como assevera Cerisara (2002), tencionam
esse trabalho entre as práticas de cuidado presentes nas relações familiares e o ensino
fundamental.
Desse modo, a questão da formação profissional insuficiente e precária contribui
para a manutenção das concepções assistencialistas de educação da infância. Muitas das
trabalhadoras (principalmente as agentes educativas e professoras I) estão em processo de
formação ou não têm formação específica, limitando a compreensão dessas quanto à
abrangência da função da educação infantil à concepção de guarda e cuidado das crianças
e/ou preparação para o ensino fundamental. Essas duas compreensões do que seja a função da
educação infantil dicotomiza, em essências distintas, cuidar e educar, dificultando a
construção de uma proposição pedagógica para a infância que a compreenda como sujeito
concreto e colabora na produção da sua humanização, sem desconsiderar as particularidades
dessa etapa histórica da vida humana, cujas duas ações são indissociáveis e interpenetradas no
processo educativo de crianças de 0 a 06 anos.
É conhecida a fragilidade histórica da formação profissional na educação infantil
ou, até mesmo, a sua inexistência (pelo menos no que tange às novas concepções de educação
infantil). O novo ordenamento, ao vincular a educação infantil ao sistema básico de educação
nacional, passa a exigir profissionais qualificados com formação pedagógica para atuar nessa
instituição (LDB 1996), o que se configura como um avanço importante na área
(RODRIGUES, 2003; BARBOSA e NOGUEIRA, 2001). Mas, contraditoriamente, o artigo
64 da LDB/1996 abre a possibilidade de formação em nível médio (magistério) para a atuação
pedagógica na primeira fase do ensino fundamental e na educação infantil, legitimando a
213
negação da exigência de uma formação universitária sólida baseada em reflexões críticas
sobre os fundamentos filosóficos, históricos, sociológicos, psicológicos da educação e da
infância articulados à práxis pedagógica na educação infantil.
Essa tendência de negar a possibilidade de uma formação de qualidade para as
trabalhadoras da educação infantil é escamoteada pelo discurso do “possível”, que tem
condicionado as políticas sociais no país desde a viragem neoliberal da década de 1990. As
políticas educacionais, que se constituem como parte do “pacote” da reforma de Estado
imposto aos países que devem aos cartéis internacionais da especulação financeira, têm como
meta a estruturação da formação profissional de professores de acordo com os interesses do
mercado. Nesse sentido, essas políticas negam a formação universitária que se constitui pelo
tripé articulado ensino-pesquisa-extensão e propõem uma espécie de neotecnicismo em que
os/as futuros/as professores/as serão qualificados sob a ótica das “competências”, fundadas no
consumo do conhecimento produzido em outras instâncias (e até mesmo em outros países,
rearticulando o colonialismo pedagógico por meio do consumo das teorias psicologizantes e
as discussões curriculares advindas da União Européia e dos EUA) e na incorporação de
instrumentos necessários para a resolução de problemas imediatos, sem, no entanto,
estabelecer as relações entre microrealidade institucional e a totalidade das determinações
sociais (DOURADO, 2001; ARCE, 2001a).
Assim, o horizonte para a educação infantil é a permanência desse quadro
complexo de formação insuficiente e degradada, trabalho precário e processos pedagógicos
empobrecidos. Essas determinações, além de estarem presentes nas diretrizes oficiais, são
também incorporadas pelo debate acadêmico sem o devido cuidado necessário. Exemplo
disso é a propagação no Brasil das propostas da cidade de Reggio Emilia do norte da Itália,
caracterizada em nosso país pela Pedagogia da Infância, sem contextualizar a particularidade
dessa experiência que ocorre em uma pequena cidade próspera no interior da Europa, ou
discutir a concepção de mundo, sociedade, educação infantil, infância e cultura subjacentes a
esse projeto pedagógico (ARCE, 2004). Essas questões nos impõem uma série de problemas,
como, por exemplo, qual a formação necessária às profissionais da educação infantil? Temos
um projeto de formação que atenda aos interesses das maiorias empobrecidas pela exploração
do capital? Qual tipo de identidade profissional perseguir? Que educação infantil
temos/queremos?
Percebe-se que a formação profissional tem um significado importante na
constituição da educação infantil como lugar de educação e formação das crianças ao cruzar as
respostas das agentes com os depoimentos das professoras. Nas palavras das professoras,
214
evidencia-se uma compreensão mais elaborada e sistematizada do que seja o papel da
educação infantil. As dimensões de uma formação “criativa”, “emancipatória”, “crítica” e que
“amplie o universo cultural” das crianças são correntes nas respostas das professoras que, em
sua grande maioria, já possuem pós-graduação.
92
Ainda nota-se nos depoimentos das trabalhadoras em questão, outras concepções
de educação infantil das quais três são marcantes. A primeira identifica-se às diretrizes da
secretaria de educação que as professoras e agentes educativas reproduzem, qual sejam, os
pilares “educar, cuidar e brincar”. Essas diretrizes são observadas em documentos da
Secretaria Municipal de Educação de Goiânia (2002) e do Conselho Municipal de Educação
de Goiânia (2003) e fazem parte da formação envidada pelo apoio pedagógico e pelas
políticas de formação em serviço garantidas pela secretaria.
A segunda concepção, também presente nas respostas das professoras e agentes,
é a de preparação para o ensino fundamental. Esse entendimento é construído,
equivocadamente, como um processo de escolarização da educação da infância, confundindo
a natureza educativa do trabalho pedagógico nos Cmei’s com a escolarização nos moldes do
ensino fundamental ou como base de preparação para o mesmo. Essa concepção coaduna com
a polêmica e criticada teoria da privação cultural, sob a qual são constituídas políticas
educacionais compensatórias para “superar” o problema do fracasso escolar nas primeiras
séries do ensino fundamental. (KRAMER, 2001). Essa concepção descaracteriza a educação
infantil, não por escolarizá-la, mas sim porque a articula a uma concepção utilitarista,
pragmática e tecnocrática da educação escolar e uma visão preconceituosa sobre as classes
populares.
A terceira concepção, presente com mais ênfase nas falas das professoras, é a de
que a educação infantil conforma-se como instituição educativa que tem como princípio a
formação cultural, ética e estética das crianças de 0 a 06 anos, respeitando os seus limites,
possibilidades e as características da infância, como um tempo e espaço de relações e
construções de aprendizados, de cultura e de saberes. O depoimento seguinte sintetiza essa
concepção, ao afirmar que o seu papel é o de:
Introduzir a criança em um novo universo – aprimorando, por meio de experiências
concretas, a capacidade de aprendizagem – e estimular seu desenvolvimento
intelectual, social, afetivo e emocional, trabalhando atividades necessárias ao
desenvolvimento da coordenação motora, discriminação visual e auditiva com
iniciação à leitura, escrita e matemática proporcionar experiências significativas,
92
- Das trinta e três professoras II que entregaram os questionários na época, vinte e quatro possuíam pós-
graduação em diversos campos.
215
trabalhadas de forma lúdica e prazerosa que possam contribuir para o
desenvolvimento integral da criança nos aspectos acima citados e físicos, cognitivo
e lingüísticos, possibilitando à criança o acesso e a vivencia de diferentes tipos de
manifestações culturais vividas em um espaço de convívio coletivo. (PII 13).
Estas falas expressam concepções de educação infantil vinculadas aos conceitos
e idéias disseminadas pelos documentos oficiais (Referenciais Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil – RCN’s, LDB, Constituição Federal, etc.) e pelas produções e debates no
âmbito da educação. Entretanto, a assunção do discurso não significa necessariamente a
materialização de uma formação de qualidade para a infância. A materialidade das condições
objetivas em que tem se constituído as instituições de educação infantil, sem políticas próprias
de financiamento, sem diretrizes claras sobre a formação dos profissionais, permeada por um
processo que ainda está em construção, tem limitado as falas das professoras a uma “riqueza
de discursos e pobreza de práticas”, como observa Nóvoa (1999). Esse autor faz importantes
observações sobre os rumos que a educação vem tomando nas últimas duas décadas,
principalmente no âmbito de uma dimensão idealizada da realidade, expressa pelas produções
acadêmicas e documentos oficiais que se contrastam com as relações concretas em que a
educação é composta na atual conjuntura.
Nóvoa (1999, p. 11) caracteriza a atual conjuntura por que passa a educação a
partir da
[...] lógica excesso-pobreza, aplicada ao exame da situação dos professores: do
excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas; do
excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de
formação de professores; do excesso do discurso científico-educacional à pobreza
das práticas pedagógicas e do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das
práticas associativas docentes. Não recusando um pensamento “utópico”, o autor
critica as análises “prospectivas” que revelam um “excesso de futuro” que é, ao
mesmo tempo, um “défice de presente”.
A crítica ao excesso de futuro e déficit de presente é apresentada por Nóvoa
(1999) como um fato da atual conjuntura de economia globalizada e das exigências envidadas
pelos novos rumos da estrutura produtiva. A cobrança acerca do trabalho dos professores é
mediada por discursos abstratos e genéricos que transferem as mazelas e contradições do
capitalismo tardio para a sociedade, da qual os trabalhadores da educação são,
desgraçadamente, “privilegiados”.
A retórica sobre o papel do professor na atual conjuntura e o “consenso” entre
políticos e intelectuais sobre a necessidade de atribuir dignidade, valorização, autonomia
profissional e melhor imagem social aos professores é subsumida pelas condições concretas
216
de realização do ofício docente hoje. Instituições sem estrutura, salas de aulas/agrupamentos
de crianças abarrotadas, jornada de trabalho dupla e às vezes tripla para completar seus pífios
salários, formação deficiente, falta de horário em serviço para planejar e construir projetos
coletivos, enfim uma ordem de contradições e mazelas que caracterizam o trabalho docente e
dificultam a materialização de uma educação de qualidade lançando os trabalhadores da
educação numa luta sem fim pela materialização de sua vida, dificultando, inclusive, a
constituição de relações solidárias e de luta junto aos demais trabalhadores da categoria no
sentido de construir uma identidade política.
Alves (2002, p. 105), em sua recente pesquisa sobre o trabalho docente na
educação infantil na RMEG, também percebe a assunção de termos técnicos por parte das
educadoras, significando, aparentemente, o domínio de um determinado nível teórico e a
busca da construção de conhecimento por parte das educadoras. Entretanto, a autora indaga se
“a semelhança entre as respostas com um discurso politicamente correto, que se generaliza
cada vez mais, estaria significando um certo distanciamento da realidade, expressando mais
um ideal, ou se está em curso a constituição de uma outra concepção de educação infantil”.
As falas das trabalhadoras da educação infantil, que lidam diretamente com as
atividades educativas, expressam confusões e indefinições sobre a função do seu trabalho e
das próprias instituições de educação infantil. A construção da identidade dessas
trabalhadoras se compõe num processo mútuo e interpenetrado da composição da identidade
das próprias instituições, como observam Cerisara (2002), Isabel Silva (2001) e Ongari e
Molina (2003).
Desse modo, é notória a confusão estabelecida na construção de uma concepção
sobre a identidade institucional dos Cmei’s por parte de suas trabalhadoras. Imbricam-se,
assim, as compreensões de preparação para o ensino fundamental e, portanto, de
fundamentalização da educação infantil com as idéias e práticas de assistência que
privilegiam o cuidado e a guarda das crianças e a visão de uma intervenção educativa junto às
crianças menores de 07 anos numa perspectiva de uma objetivação e apropriação da
produção humana histórica e socialmente produzida, cujos cuidados e objetivos pedagógicos
não se dissociam, interagindo num projeto pedagógico de formação cultural, ética e estética
das crianças, respeitando suas especificidades, características, necessidades e potencialidades.
Entre as instituições investigadas podemos perceber mais semelhanças do que
diferenças significativas no que se refere à: caracterização da estrutura dos prédios; a
vinculação histórica à tradição da assistência/filantropia; da busca do auto-financiamento; de
doações comunitárias para a manutenção da instituição; e do atendimento prioritário para as
217
comunidades carentes, filhos de mães solteiras ou de casais separados, filhos de trabalhadores.
Em todos os PPP’s essas diretrizes são apresentadas, ora como objetivos explícitos, ora como
ações realizadas na relação da instituição com a comunidade.
Algumas dessas questões merecem um destaque maior na medida em que se
configuram como elementos constitutivos da identidade institucional da educação infantil ao
longo da sua história e que ainda hoje se conserva. A questão do assistencialismo e da
vinculação com setores religiosos permanecem nessas instituições, como foi acima observado.
Duas instituições (“São Expedito” e “Flores do Campo”) foram criadas e mantidas, até
recentemente (2000 e 1999, respectivamente), por padres e setores da igreja católica, no intuito
de atender as crianças e famílias pobres a partir dos princípios e práticas caracterizadas pela
filantropia e caridade religiosas. Essa é uma característica que tem marcado a história das
instituições de educação infantil desde o século XIX, cujos principais resultados se
configuraram na atitude preconceituosa e tutelar da igreja, do Estado e das elites em relação às
classes populares, bem como da objetivação de uma pedagogia assistencialista, como já foi
tratado no segundo capítulo deste trabalho.
Essa atitude preconceituosa em relação às classes trabalhadoras diz respeito ao
ideal burguês de família e de criança que é veiculado nessas instituições onde a principal ação
se constitui na educação das mães para que elas possam criar e educar “corretamente” suas
crianças de acordo com as normas da moral e dos bons costumes da sociedade e da igreja. A
idéia de incompetência da família e da mãe para cuidar e educar seus filhos – especialmente, as
mulheres trabalhadoras que não podem ficar com sua prole devido a necessidade de se
empregar e gerar renda para a família – gera uma série de concepções subjugadoras e
discriminatórias (higienismo, eugenismo, carência cultural) que são expressas nos projetos
pedagógicos das instituições de educação infantil desde sua gênese (KUHLMANN JR.,
2001a), ainda no século XIX; entretanto, essas concepções não foram totalmente superadas e
se configuram, inclusive, como um dos objetivos dos quatro Cmei’s, pautados pela proposição
de cursos com psicólogos, pediatras e enfermeiras (percebe-se a manutenção da presença da
medicalização da infância e da educação infantil) para as mães.
Essas concepções aparecem nos objetivos explicitados nos PPP’s dos Cmei’s,
entre os quais destaco os seguintes: educação da família (incompetência); ações educativas
sem intencionalidade do ensino; hábitos de cuidado e higiene e atividades educativas;
despertar natureza da criança; envolvimento da comunidade; acompanhar a criança na
transição da família para escola; formação continuada das profissionais; parcerias com
organizações sociais para serviços e educação; reforma e aquisição de materiais.
218
O assistencialismo como marca estrutural dessa instituição também se expressa
na destinação social a que os Cmei’s se prestam. Das quatro instituições, três explicitam que as
instituições têm como principais sujeitos destinatários de seus serviços crianças pobres e
carentes, pais (particularmente, mães) que trabalham e necessitam de um local que acolha e
cuide de seu filho, filhos de casais separados e/ou mães solteiras. Essa definição, a priori,
retoma um problema que é a questão da estigmatização dessa instituição pelo papel de acolher
a infância pobre e atender as demandas das mães que precisam trabalhar. Essa concepção, de
acordo com Kuhlmann Jr. (2001a; 2001c), corrobora com a manutenção do caráter provisório,
improvisado e não-profissional dessa etapa da educação, pois vincula essas instituições, não ao
direito fundamental da criança ao acesso à produção histórica humana em termos de cultura,
ciência, ética e estética, mas sim à necessidade dos pais trabalhadores e do acolhimento da
criança pobre.
Reúne-se a essas questões o fato de que os Cmei’s investigados ainda mantém a
prática de angariar recursos por meio de doações e contribuições de igrejas, organizações civis,
pessoas jurídicas e, até mesmo, indivíduos que cumprem penas alternativas (caso esse que foi
presenciado em uma das instituições). O que isso significa em termos de organização do
trabalho e da identidade institucional? Podemos inferir que, mesmo diante da incorporação
dessas instituições no interior dos sistemas de ensino, as práticas e idéias que as vinculam à
questão da caridade, assistência, voluntarismo e “boa fé” são elementos constitutivos dessas
instituições. Mas também é fundamental ressaltar a insuficiência das verbas públicas na pasta
da educação para o atendimento educacional da infância, visto que essas instituições
demandam custos maiores do que o exigido no ensino fundamental, que fora determinado
pelas reformas neoliberais das políticas educacionais como prioridade do financiamento
público.
A focalização das políticas educacionais no ensino fundamental provocada pela
implementação do FUNDEF e a municipalização – que significa a retirada da União e dos
Estados da responsabilidade para com o financiamento da educação associado à manutenção
do seu controle –, mantiveram a histórica falta de investimentos na educação infantil. Nesse
sentido, Corrêa (2002, p. 23) analisa o fato de que as políticas de financiamento da educação
da década de 1990 constituem num dos pontos de estrangulamento da democratização e
ampliação do acesso à educação infantil com qualidade para as maiorias, tendo em vista que
“[...] não há nenhuma vinculação ou fundo específico para a educação infantil e, na prática,
apenas os municípios é que têm-se responsabilizado pela sua oferta.”. Essa situação tem
219
provocado, na avaliação de Rosemberg (2003), uma inflexão nos processos de ampliação da
educação infantil.
Desse modo, podemos entender porque as instituições de educação infantil ainda
clamam por contribuições e colaborações advindas da caridade leiga e/ou religiosa. A falta de
financiamento público, aliada aos aspectos históricos e ideológicos de articulação das
instituições de educação infantil às ações assistencialistas para com as classes trabalhadoras –
não como pena ou insights de consciência sobre a sua exploração, mas sim para subjugá-las
pela exploração de sua miséria – se configuram como aspectos que reproduzem o caráter
caritativo e assistencialista dessas instituições.
No mais, essas formas de “auto-financiamento” das instituições de educação
infantil são perniciosas para a perspectiva de ampliação e democratização do acesso das
crianças a uma educação de qualidade desde a pequena infância, mas é altamente positivo para
os intentos das políticas neoliberais em educação, pois “confirma” as perspectivas de retirada
da responsabilidade de o Estado publicizar o fundo público por meio de políticas sociais de
educação, saúde, moradia, assentamento rural, previdência pública... Nesse sentido, tais
iniciativas ajudam a manter o vácuo entre as novas exigências para a educação infantil
(advindas da comunidade acadêmica, das políticas oficiais e da própria sociedade) e a
realidade precária das instituições, sem financiamento suficiente para superar as dificuldades e
avançar sobre as possibilidades de instituir uma educação infantil pública, gratuita, estatal e de
qualidade para todos.
Mais do que “correr atrás” de contribuições e doações, é preciso se organizar
politicamente e lutar pela ampliação dos recursos do financiamento público para a educação
infantil, condição sine qua non para a efetivação de uma nova configuração dessas instituições.
Um outro problema, não menos importante, se refere à questão da estrutura física
dos Cmei’s. No ano de 2003, ao entrar em contato e visitar vinte instituições para que eu
pudesse propor os questionários, percebi a precariedade dos equipamentos coletivos de
atendimento à infância e das precárias condições de trabalho nesses locais. Muitas vezes,
poder-se-á considerar algumas das instituições como um local de trabalho insalubre, pois são
prédios precários, sem espaços abertos ou adequados às necessidades das crianças, com salas
pequenas e sem ventilação, banheiros insuficientes e sem a devida estrutura para atender os
pequeninos, sem parques e jardins, com falta de materiais pedagógicos etc. Obviamente que,
dentre as vinte instituições, algumas eram mais estruturadas, especialmente aquelas mais
centralizadas.
220
O que se nota é o fato de que, ao herdar as históricas formas de atendimento à
infância, pautadas pelo improviso e por políticas transitórias, assistencialistas e pragmáticas, a
grande maioria das instituições acabam por não atender o mínimo de condições exigidas para
que funcionem. Muitas dessas instituições não atendem sequer as normas técnicas para o
acesso de pessoas deficientes, seus espaços nem sempre são seguros, salubres, higiênicos,
arejados e iluminados como determina o Conselho Municipal de Educação (GOIANIA, 2003).
Nas quatro instituições que retornei para fazer entrevistas e observações, todas
apresentam estruturas insuficientes e inadequadas para a efetivação de um projeto de educação
infantil de qualidade. Como já foi destacado neste trabalho, as estruturas desses Cmei’s foram
construídas a partir de prédios que já existiam e atuavam ou com outras finalidades ou de
forma precária. O Cmei “São Expedito” é parte da estrutura de uma diocese na cidade e
compartilha o espaço com uma igreja (muito embora seja ela, dentre as quatro, a melhor
estrutura); o Cmei “Flores do Campo” é um prédio arquitetado no espaço da antiga Associação
de Moradores do bairro, que ainda é utilizado quando necessário
93
; o Cmei “Alegria Infantil”
situa-se em um dos prédios repassados pelo Estado, cuja estrutura é feita de placas de concreto,
com poucos espaços para a realização de atividades, muito embora o terreno seja muito
grande; e o Cmei “Tia Amélia” é um prédio recém reformado, do qual não foi possível
levantar a origem, mas também não atende às necessidades de espaço para a realização de
atividades com as crianças.
Nesses Cmeis não havia uma grande quantidade de materiais pedagógicos e de
brinquedos e os que existiam geralmente estavam bastante sucateados. É importante ressaltar
que essas condições atingem não só as crianças, mas também as trabalhadoras que atuam
nessas instituições. Essa realidade se apresenta como limites concretos para a efetivação de
trabalhos de qualidade, de uma atividade educativa intencionalizada, da ampliação do universo
cultural da criança por meio de práticas pedagógicas planejadas e sistematizadas.
Duas das instituições investigadas têm agrupamentos que atendem crianças de 0
a 6 anos de idade, as outras duas possuem agrupamentos de crianças com idades entre 2 e 6
anos de idade.
94
Nesses agrupamentos atuam, geralmente, uma professora e uma agente
educativo. Mas a presença da função de agente educativo depende do número de crianças no
agrupamento, sendo que essas trabalhadoras podem acumular funções em mais de um
agrupamento, dependendo da quantidade reduzida de crianças em um agrupamento ou até
93
- Durante uma entrevista que fazia nessa instituição, tive que interromper os trabalhos por causa de que
algumas pessoas da comunidade iriam organizar o salão do prédio para a realização de um velório.
94
- Os agrupamentos são turmas de crianças organizadas a partir das faixas etárias; cada faixa etária tem um
número limite de crianças que podem ser atendidas.
221
mesmo da ausência de uma das agentes. É importante lembrar que as licenças que,
porventura, as agentes educativas venham a assumir não podem ser substituídas por outra
trabalhadora, ficando a função descoberta ou então há uma intensificação do trabalho de uma
das agentes que estão nas instituições por meio de acúmulo de tarefas.
Dadas essas condições, o que é possível fazer tem sido realizado, isto é, acolher
as crianças com receptividade e com uma dose de afetividade. As demais e honrosas tentativas
de instituir trabalhos pedagógicos são esparsas e não têm continuidade. Na verdade, durante as
observações em campo, ficou evidenciado que os Cmei’s se caracterizam a partir da noção do
espaço doméstico. Sempre que eu chegava aos Cmei’s (por volta de 12 e 13 horas), encontrava
as trabalhadoras dormindo junto às crianças, varrendo ou limpando o refeitório, “fazendo” a
unha com alguma manicure da comunidade ou mesmo conversando coisas cotidianas de forma
despreocupada.
Um olhar menos atento e crítico sobre essa realidade vai associar os eventos ali
presentes com os acontecimentos próprios do espaço doméstico e privado da família, com
várias senhoras e senhoritas cuidando de suas crianças, de seus sobrinhos, de seus netos ou
irmãozinhos. Aliás, essa contaminação do trabalho doméstico e da maternagem no trabalho
realizado no interior das instituições de educação infantil se evidenciou como um dos traços
que identifica esse local de trabalho. Reúne-se às questões acima aludidas, a questão do banhar
a criança, dar mamadeira, colocar para dormir e de higienizá-la. Essas são práticas sociais
historicamente vinculadas ao universo doméstico e, portanto, ao papel socialmente atribuído ao
universo feminino. Nesse sentido, Cerisara (2002, p. 64) afirma que
[...] há uma domesticidade nas relações [de trabalho na educação infantil] com fortes
traços de emotividade, as práticas junto às crianças parecem não guardar traços de
racionalidade e objetividade, a não ser quando elaboram o planejamento ou
participam de reuniões de estudo. Não há como manter uma atitude de
impessoalidade e distanciamento nem com as crianças, nem com as colegas de
trabalho. A presença maciça de mulheres, o predomínio de formas femininas de
relacionamento entre elas, a organização do espaço físico (que lembra o de suas
casas), as práticas desenvolvidas, utilizando objetos vinculados ao universo
doméstico, tais como camas, colchões, banheiras, fraldas, chupetas, mamadeiras,
ajudam a confirmar a presença de um universo onde estão presentes práticas
femininas domésticas e ausentes as práticas femininas profissionais.
O predomínio da domesticidade e da maternagem presente nas relações de
trabalho nos Cmei’s se constitui como o aspecto principal que atribui a essa atividade um
caráter não-profissional, a noção de trabalho invisível. Isso incide, inclusive, sobre a questão
da divisão do trabalho entre as trabalhadoras e nas relações de poder decorrentes dessa
divisão. Segundo Cerisara (2002), as relações de poder e hierarquia entre as trabalhadoras da
222
educação infantil (professoras e agentes educativos) se circunscrevem mais em aspectos
simbólicos, na formação, nos salários e nas jornadas de trabalho diferentes, do que numa
efetiva distinção das atividades realizadas. Relações essas também presentes na realidade dos
Cmei’s da RMEG.
Como já observei no capítulo anterior ao falar da questão do salário, o fazer e o
saber das trabalhadoras da educação infantil são semelhantes no cotidiano da instituição –
algo que ficou claro, tanto nas observações como nas próprias falas das entrevistadas –, o que
não tem justificado a presença de profissionais valorizadas de maneira desigual e hierárquica,
como acontece nas instituições de educação infantil.
Há uma tentativa de diferenciação, na medida em que as trabalhadoras
representam uma divisão entre quem planeja (professoras) e quem executa (agentes
educativas). A divisão técnica do trabalho na educação infantil assume outros contornos,
próprios dos aspectos das atividades desenvolvidas nessas instituições, qual seja a divisão
entre cuidar e educar. Nessa perspectiva, o cuidar, compreendido como uma atividade menos
valorizada porque se identifica com a maternagem, acaba sendo atribuído às agentes
educativas; e o educar – “mais valorizado”, porque exige preparação profissional e domínio
de conhecimentos racionais e científicos – fica a cargo das professoras.
Mas é preciso destacar que as professoras planejam e também executam as
atividades e as agentes educativas também planejam as atividades, como as próprias
trabalhadoras ressaltam. Ademais, é incoerente com a realidade da atividade humana a divisão
entre trabalho manual e intelectual, pois, como afirma Gramsci (1982, p. 07):
Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual,
não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de
sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um
“filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo,
possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou
para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras
de pensar. (grifos meus).
Uma agente educativa se coloca da seguinte forma ao ser questionada sobre a
existência de algum tipo de hierarquia na relação entre essas trabalhadoras: “Num tem
nenhuma, porque aqui a gente entra em acordo e se relaciona muito bem, divide direitinho, se
vem seis criança a gente na hora de dá banho, a gente divide, três pra uma, três pra outra, num
tem nenhuma diferença.” (Kézia).
223
Alguns dos depoimentos das professoras também seguem o mesmo sentido.
Exemplo disso é a seguinte afirmação:
Do meu trabalho com a minha colega eu não vejo diferença, porque nós dividimos
tudo, ela me ajuda nas atividades, eu ajudo a dá banho, ela ajuda dá alimentação, eu
ajudo dá alimentação, essa divisão que elas falam que é pra tê comigo com a minha
colega, não tem essa divisão, nós fazemos todas atividades, todo trabalho em
conjunto. (Michele).
Quando admitem a divisão do trabalho, as trabalhadoras o fazem remetendo à
esfera da subjetividade, isto é, que as relações de hierarquia e a divisão do trabalho nos
Cmei’s dependem da forma como a dupla conduz essa relação. A professora Cecília se
expressa da seguinte forma sobre o assunto: “não há diferença de trabalho mesmo, comigo
não, na minha sala não.”. Outra representação que vela os conflitos e contradições produzidas
pela divisão do trabalho no interior dos Cmei’s é a atribuição dessa hieraquização nas
“outras” unidades e não na própria onde trabalham. Tanto professoras como as agentes
educativas reproduzem esse discurso de que em outras instituições essas relações existem,
mas no seu próprio trabalho não por causa do “profissionalismo”, da “ética” ou da forma
como cada uma conduz as relações de trabalho. Pode-se perceber essa representação na
seguinte fala:
Eu tenho assim, que aqui na nossa realidade, aqui acho que depende muito do
individual, depende muito da pessoa que você tá trabalhando, eu graças a Deus,
assim, num tenho esse tipo de problema não, sabe, eu me sinto até professora,
assim como a professora se sente agente, parece que a gente tá sempre assim, unida
uma com a outra, a gente veste a camisa, cada uma veste a camisa, então não tem
esse problema, porque eu acho que existe... vários cursos que eu fui, eu vejo esse
problema, assim, da agente educativa, não sei se você tá sabendo disso, que tem
esse problema da agente com o professor, que existe essa coisa, então tem professor
que num qué sabê de assumí, vamos supô, o banho , não quer ajudar, fala: isso não
é serviço meu ou as vezes vai fazer outra coisa e diz, isso aqui não vou fazer porque
isso aqui não é meu, as vezes arrumar o colchonete pra crianças deitarem, então
fala: eu não vou fazer, isso não me cabe a mim fazer, só que eu acho que isso aí é
problema que tem que ser sanado, superado, porque tanto o agente faz o serviço do
professor ou até mais, porque o agente fica... no meu caso que eu trabalho a tarde,
eu entro, meio dia e meia e a professora entra, uma e quinze, então quer dizer, nesse
período aí, eu é que fico com a criança, né? e então tem vários outros momentos
assim em que eu fico mais, tal, então eu acho que isso aí tem ser de consciência de
cada um, né? pensar que só porque eu sou professora fui formada pra isso, não sei
o quê,,, não sei o quê... eu não vou fazer isso? porque aqui a realidade é muito
diferente de uma escola, né? a pessoa tem que ter uma consciência disso, tem que
vê que eu tenho que trabalhar de um jeito e na escola de outro, né? aqui eu tenho
que assumi vários papeis, ao mesmo tempo eu não posso querer ser só... é o que as
vezes emperra um pouco é isso, porque isso não cabe a mim fazer, mas eu acho se o
agente tá ali, tá auxiliando, tá fazendo até o que o professor faz, então porque o
professor não pode tamém assumir as mesmas funções, não assumir, mas ajudar,
né? porque ali a gente tá junto, na sala todo mundo tem que fazê, tem que ajudá
224
um ao outro, pra mim fica uma coisa a mais pro outro fazê né? eu penso isso.
(Monique).
A fala de uma agente educativa elucida que a hierarquização do trabalho
depende do indivíduo e aponta para um outro fator importante que é a caracterização dessa
atividade profissional com a maternagem e o trabalho doméstico, o que acaba por não
diferenciar as trabalhadoras que executam a mesma tarefa de cuidar e educar as crianças: “não
tem nenhuma [diferença no trabalho], porque aqui a gente entra em acordo e se relaciona
muito bem, divide direitinho, se vem seis crianças a gente na hora do banho, a gente divide
três para uma, três para a outra, num tem nenhuma diferença.” (Kézia).
Mas, os mesmos depoimentos que afirmam a parceria e a solidariedade entre as
trabalhadoras no seu dia-a-dia também apontam elementos que buscam distinguir as
atividades das professoras e agentes, hierarquizando-as. É o que explicita o discurso
contraditório das professoras, principalmente, quando afirmam a semelhança das atividades,
mas destacam a existência da divisão entre quem pensa e quem executa, ou melhor, auxilia a
execução das atividades no Cmei. Essa divisão é caracterizada, geralmente, pela formação e
atividades burocráticas:
Entre o meu trabalho, por exemplo, eu acato muito a sugestão da agente também,
mas o meu trabalho a diferença, tem que ser diferenciado né, não tem como se a
mesma coisa, não porque nós, é uma tem o curso superior e a outra não, às vezes
até uma Agente Educativo tem curso superior também, mas eu sou professora,
então na verdade eu conduzo mais as atividades, você entendeu? E ela fica mais o
quê? Na observação, fica observando as crianças, ter mais um trato de levar ao
banheiro, acompanhar ao banheiro, você entendeu? Nesse sentido assim, de tá
olhando é...., ajudando, auxiliando mesmo o professor. Então é água no filtro, mais
essas questões mais que é administrativa mesmo, mas que auxilia também no
pedagógico, distribui atividade, ela põe o nome na atividade, mas o mesmo sobre o
conteúdo em si sou eu. Sou mais responsável nesse sentido, a pedagoga é a
professora, então a diferença é dessa forma. (Cláudia).
E ao questionar a essa mesma professora sobre a existência de relações
hierarquizadas entre ela e a agente educativa ela assim responde:
Num é hierarquia, mas é porque é assim, num deixa de existir uma certa hierarquia
né. Não deixa de existir porque, na verdade, na hora que gente pensa no
planejamento é discutido aqui no coletivo, mas na hora que você vai desenvolver, o
professor tem que trazer mais atividades, se envolver mais nas atividades do que o
Agente Educativo né. Não que tenha uma hierarquia. Você entendeu mais ou
menos? Tem e não tem ao mesmo tempo né, porque não deixa de ser uma
hierarquia e, entendeu? Mas não que a gente queira, pra mim nós somos iguais. Tá
sempre, tô sempre junto com ela e no fato de ser eu, eu na sala de aula a gente não
tem essa diferenciação, entendeu? Eu também limpo a mesa, ponho água no filtro,
não importo com o tipo da atividade. Não tem isso que é só ela que vai fazer não.
Sujou a sala, a mesa, limpa. Ela tá lavando e passando o pano e cê, não existe
225
diferença entre uma e outra, mas no trabalho em si o conteúdo, na hora de colocar,
o professor está acima um pouquinho. Nesse sentido, não que ela não tenha
conhecimento, é isso que vai acontecer. (Cláudia, grifos meus).
O que se pode observar é que o caráter realmente existente de divisão
hierárquica do trabalho – manifesta nos salários, na formação, nas diferentes jornadas de
trabalho – é escamoteado pelas práticas semelhantes, caracterizadas pelas tarefas de trabalho
doméstico e de maternagem. Embora a mediação da formação e até mesmo as diretrizes da
própria SME que atribui papéis diferentes
95
para as profissionais estabeleçam divisões e
hierarquias, o que marca as atividades exercidas por essas trabalhadoras é a ajuda,
colaboração e a semelhança. Os aspectos de cuidar da criança e a educação não sistematizada,
baseada em valores, intuição e afetividade, tornam essas diferenças inócuas no cotidiano dos
Cmei’s.
Enfim, o que se pode observar é que:
[...] a dificuldade para indicar uma divisão clara de tarefas, [é causado] muito mais
[por] uma falta dessa divisão. Várias podem ser as explicações em torno disso, mas
duas merecem destaque: uma delas pode estar relacionada ao que já foi indicado
anteriormente a respeito das formas femininas de relacionamento, em que
predomina a indefinição das tarefas, a simultaneidade de ações; a outra pode ser
atribuída a um estado real de indefinição das funções, quais devem ser das
auxiliares de sala [agentes educativas] e quais devem ser assumidas pelas
professoras, devido a uma ressignificação do papel educativo, tanto da instituição
de educação infantil quanto de suas profissionais. (CERISARA, 2002, p. 79).
A manutenção dos esquemas ideológicos, do assistencialismo e da caridade, se
associa ao caráter femininizado/sexualizado desse lócus de trabalho, produzindo uma
identidade institucional que é produzida e reproduzida pelas trabalhadoras que ali atuam. As
possíveis representações, advindas das condições objetivas de realização do trabalho nos
Cmei’s, apontam para uma identidade baseada nas relações privadas do mundo doméstico e
da ação tutelar, que compreende as classes populares como parte da sociedade na qual se
pertence, mas sim como objeto de intervenção da caridade e do bom senso de cada uma das
trabalhadoras. Essas questões vão impactar de forma considerável nas possibilidades de
construção da identidade política das trabalhadoras da educação infantil.
Mas ainda importa considerar o pólo positivo da contradição, dada a coexistência
da divisão hierárquica do trabalho com relações mais solidárias e menos concorrentes entre
95
- Essa distinção é explicitada, por exemplo, nos documentos das diretrizes para a educação infantil em
Goiânia. Esses documentos identificam as atividades das professoras (cuidar, educar e brincar), mas não define
qual o papel da agente educativa No entanto, algumas professoras e agentes afirmaram que há uma designação
de atividades distintas no contrato de trabalho.
226
essas trabalhadoras. A questão fundamental para nós é potencializar a solidariedade
particularizada no local de trabalho para novas formas de vínculo e consciência de classe. Ou
seja, é interessante, desde uma perspectiva e do projeto social anticapitalista, reatar a
solidariedade não só baseada no gênero, como relações sociais entre os sexos, mas, sobretudo,
reavivar os laços de solidariedade e de luta baseada na perspectiva de instaurar uma ordem
social em que o gênero humano se sobreponha sobre as mercadorias e não o seu contrário
(como o faz a sociabilidade do sistema do capital).
Outra questão que atinge as possibilidades de constituição da identidade política
das trabalhadoras da educação infantil é a precarização do seu trabalho por meio da instituição
do emprego temporário. Denomino de instituição do emprego precarizado porque as próprias
diretrizes de organização do ano letivo da SME afirmam isto ao estabelecer como política de
recursos humanos para os Cmei’s a divisão de 50% de trabalhadoras efetivas e 50% em
regime de contrato temporário, isto quando diz respeito às professoras; quanto às agentes
educativas, não há nem mesmo essa estranha “regulação”, sendo possível que todas sejam
empregadas temporariamente. Segundo o documento das diretrizes da RMEG de 2005:
Cada CMEI poderá ter até 50% do coletivo dos profissionais da educação,
considerando os professores e o professor-coordenador formado por PE II excluído
o diretor. Os outros 50% serão formados por PE I (efetivo ou especial). No decorrer
do ano, caso haja remoção de PE II nos CMEIs, se for necessário realizar contrato
por tempo determinadopara ocupar a vaga, será feito contrato por tempo
determinado somente para PE I. Caso seja lotado professor da rede, poderá ser PE
II para compor o percentual dos 50% previstos para o CMEI. (GOIANIA, 2005, p.
15).
Além de fazer essa divisão, essa política impõe a perspectiva de que para
trabalhar na educação infantil não precisa de formação de qualidade, normatizando a
quantidade de professoras com formação superior e em nível médio. É claro que essa política
de recursos humanos está sustentada também na redução dos gastos com a educação infantil,
mantida pela falta de recursos destinados e garantidos a essa etapa do ensino básico, entre
outras questões de concepção político-filosófica e educacional.
Essa instituição do emprego temporário tem sido uma característica histórica
dos/as trabalhadores/as em educação; entretanto, hoje essa forma de subutilização da força de
trabalho no setor de serviços compõe o que Antunes (2003) denomina de subproletarização.
Os/as trabalhadores/as que atuam no setor de serviços compõem atualmente uma parcela
considerável da classe trabalhadora, sobretudo por causa do processo de desproletarização que
a classe trabalhadora vem sofrendo com a reestruturação produtiva e as conseqüentes
227
transformações do mundo do trabalho. Mas o emprego nos setores de serviço é acompanhado
das relações precarizadas de emprego, tais como o trabalho temporário, subcontratado,
terceirizado, parcial e precário.
Para a parcela de trabalhadores que atuam na educação, esse movimento
significa o recrudescimento de um modelo de relações de trabalho que vinha sendo superado,
principalmente em função das conquistas adquiridas pela organização político-sindical dessa
categoria e de suas lutas. As lutas que vinham sendo travadas, desde o final da década de
1970, pelos trabalhadores em educação por regulamentação do trabalho por meio de
concursos e da estabilização do emprego no setor público através do regime jurídico único,
agora tomam novas formas. A regulamentação da contratação de professores somente por
meio de concursos públicos, garantida na constituição e na LDB, não vem sendo cumprida e
há um grande contingente de professores e professoras contratadas em regime de contrato
temporário por todo o país, seja nas esferas municipal, estadual ou federal.
Para as trabalhadoras da educação infantil, essa realidade é contrastada com a
“possibilidade” de novas conformações para o seu trabalho. Como já foi ressaltado, o trabalho
na educação infantil tem sido historicamente caracterizado pelo voluntariado e pela caridade.
Os novos ordenamentos legais apontam para novas possibilidades nessa realidade, pois
institui essas trabalhadoras como profissionais da educação o que significa o emprego de sua
força de trabalho de acordo com as legislações que regulamentam o trabalho docente hoje,
pelo menos em tese. O problema é que a heterogeneidade dessas trabalhadoras reproduz
formas de trabalho distintas, hierárquicas e não regulamentadas pela legislação educacional,
principalmente as agentes educativas que são contratadas em diversas esferas administrativas
e não se integram à carreira docente.
Nesse sentido, as professoras efetivas que já atuavam ou passam a atuar na
RMEG e vão trabalhar na educação infantil permanecem com seus direitos e sua carreira. Mas
a grande maioria das trabalhadoras que atuam nos Cmei’s é contratada temporariamente, de
forma precarizada, vivendo permanentemente sob a sombra do desemprego. Conforme
abordei no capítulo anterior, o contingente de trabalhadoras em regime de contrato temporário
atuando nas instituições de educação infantil está em um número bem maior do que as
efetivas. Portanto, essa é a realidade dos quatro Cmei’s investigados, como podemos constatar
no quadro abaixo.
228
Tabela 5
Regime de trabalho
CMEIS
Total
Professoras
Total Agente
Educativo
Professoras
efetivas
Professoras em
regime de
contrato
temporário
Agente
educativo
efetiva
Agente
educativo em
regime de
contrato
temporário
São Expedito 7 8 5 2 2 6
Tia Amélia 16 16 7 9 2 14
Flores do Campo 11 10 7 4 3 7
Alegria Infantil 8 8 5 3 0 8
Essa condição do regime de trabalho precarizado se constitui como um dos
principais aspectos que limita a organização coletiva das trabalhadoras da educação infantil e,
portanto, as possibilidades de elaboração de uma identidade política. Dentre as trabalhadoras
entrevistadas, há uma percepção (consciência) sobre o quanto o emprego precário se configura
como um limite objetivo e subjetivo sobre a participação política dessas profissionais
juntamente às organizações sindicais e às lutas do restante da categoria.
Do total de doze professoras entrevistadas, sete trabalhavam em regime de
contrato temporário; e das 12 agentes educativas que cederam entrevistas apenas uma era
concursada. Os depoimentos, tanto de professoras e agentes educativas efetivas, quanto das
contratadas em regime temporário, acusaram que o grande número de trabalhadoras sem
estabilidade de emprego é um fator preponderante na falta de mobilização política dessas
trabalhadoras junto ao restante da categoria.
Quando questionadas sobre a falta de participação das professoras nas recentes
mobilizações grevistas da categoria que atua na RMEG, as respostas se vinculam a duas
questões: a primeira se refere à “natureza” das instituições de educação infantil, de acolher as
crianças carentes e atender as necessidades de cuidar dos filhos de pais trabalhadores no
período em que laboram; a segunda está relacionada ao grande número de trabalhadoras
contratadas temporariamente.
Sobre a questão dos contratos, alguns depoimentos são ilustrativos, como o da
professora Aline que justifica sua não participação nas mobilizações da categoria por causa do
“... medo também, porque muita gente fica com medo, a maioria de quem trabalha no Cmei é
contrato especial, tem a questão do medo, que é a questão de perder o emprego, a gente sabe
que pe a realidade por aí.”.
A coexistência de um grande número de trabalhadoras empregadas em regime
precário trabalhando juntamente com profissionais que têm estabilidade no emprego tem
causado divisão entre essas profissionais até mesmo na luta. O poder público lança mão da
pressão e coerção sobre as trabalhadoras contratadas temporariamente para que não entrem em
229
greve, sob o risco de perder seus empregos, e as demais trabalhadoras que são efetivas querem
brigar e lutar. Mas o que acontece comumente é que algumas delas vão às mobilizações mas os
Cmei’s continuam funcionando, uma vez que a maioria de quem ali trabalha o faz sob a
sombra do desemprego.
Foi realmente, por isso que eu te falo agora que que tá acontecendo. Na época, na
primeira greve a maioria aqui dos funcionários era efetivos né, então houve de, acho
que 28 dias, 28 dias de greve nós ficamos 15 dias, porque nós voltamos atrás e
voltamos a 15 dias, foram 15 dias de paralisação geral porque a necessidade da
comida perder, de estragar, tem todo esse outro lado, entendeu? Então nós voltamos.
Mas essa última greve já não. Eu participei de alguns movimentos, eu como eu sou
efetiva, você vê que à tarde professores efetivos tem eu e a Antônia e a Das Dores
coordenadora, os outros todos contratos. O que acontece, certo, é sempre o receio,
esse medo de perder e na maioria dos CMEI’s estão assim hoje. De manhã tem dois
funcionários aqui efetivos das professoras. Então fica difícil, nesse sentido assim, de
unir mais, por isso que eu te falei, tem pessoa que sempre presa a algo que não pode,
tem esse medo, esse receio de enfrentar as paralisações, por isso a categoria, às
vezes, fica assim distante, cê entendeu? Esse é o motivo. (Cláudia).
A fala de uma das agentes educativas também é elucidativa no tocante à divisão
entre trabalhadoras efetivas e contratadas, bem como do uso dessa divisão para desmobilizar a
categoria:
Eu não participei [da greve] por ser contrato, né? então, de contrato nenhuma
participou, só as efetivas mesmo participa. Inclusive de manhã, algumas efetivas foi
e as de contrato vieram para ocupar o lugar delas de manhã, eu acho assim, que é
justo elas paralisarem, procurarem por uma salário melhor, eu acho que realmente
temos que paralisar. [...] a maioria não participa por insegurança, medo de ser
demitido, sente pressão de alguma parte, acho que pressão... por isso eles não
aderiram totalmente. (Bárbara).
O descalabro dessa situação chega a tal forma que, como essa trabalhadora
apontou, utiliza-se da pressão, da necessidade de produção da vida material por parte dessas
trabalhadoras para desmobilizar, dividir e criar conflitos e concorrência entre as próprias
trabalhadoras. Aliás, essa situação é corrente no mundo do trabalho subordinado aos interesses
do capital, ou seja, a instituição dos trabalhadores como mercadoria os fazem concorrer entre
si para se manterem “valorizados” (mas apenas como mercadoria) e empregados. Tal situação
limita a criação da identidade dos trabalhadores como classe que se opõe aos exploradores do
seu trabalho, deslocando o foco da tensão entre os próprios trabalhadores.
Como se percebe, as trabalhadoras são levadas a trabalharem em outros turnos,
sem honorários, para ocupar o lugar das demais profissionais que estão na luta. Isso provoca
desconfiança e concorrência, rompendo com os laços de solidariedade entre essas
230
trabalhadoras e entre as profissionais da educação infantil com o restante da categoria, pois
mesmo com a greve paralisando quase todas as escolas durante uma mobilização grevista,
acontecida no ano de 2005, apenas dezesseis dos 69 Cmei’s da RMEG paralisaram suas
atividades
96
. Assim mesmo por poucos dias ou então parcialmente mantendo trabalhadoras
atuando com as crianças, revezando a quantidade de crianças que freqüentariam a instituição
durante os dias de paralisação. É como se os Cmei’s e suas trabalhadoras fossem “imunes” às
greves e não possuíssem trabalhadoras exploradas, com baixos salários e sob precaríssimas
condições de trabalho. E essa desmobilização não pode ser considerada conjuntural (falta de
legitimidade do movimento ou das lideranças sindicais, momento político não estratégico,
etc.), visto que, como foi possível constatar em outro momento (SILVA, 2004), no ano de
2003 também houve uma grande mobilização grevista dos trabalhadores em educação que
atuam na RMEG e somente doze das então 54 instituições de educação infantil da rede
paralisaram suas atividades.
Não se pode considerar somente a questão do emprego precário como
componente definidor da falta de mobilização política e sindical das trabalhadoras da
educação infantil. É fundamental entender como a “natureza” assistencialista do trabalho
docente nessas instituições influencia na construção de uma identidade amorfa e despolitizada
das profissionais que ali atuam. A classificação de “natureza” assistencialista do trabalho na
educação infantil não tem a intenção de atribuir uma essência idealizada dessa instituição.
Antes, significa o caráter historicamente manifestado e atribuído a essas instituições, tanto
pela ação das políticas oficiais e não-oficiais (e pela falta destas), como pelo imaginário social
que atribui essa intencionalidade assistencial e filantrópica para essas instituições
(especialmente as creches) e também o próprio trabalho realizado no interior desse lócus
educativo.
Considerando, em linhas gerais, as estruturas e relações de trabalho contidas nos
Cmei’s, é importante compreender como as trabalhadoras da educação infantil se auto-
percebem e dão significados à sua atividade. É na especificidade da educação infantil que se
constroem as identidades de suas profissionais. Essa especificidade diferencia-se
qualitativamente do trabalho docente em outros níveis da educação básica, pelo menos no que
diz respeito às práticas pedagógicas.
Seus depoimentos apresentam influência da ideologia assistencialista que
identifica as instituições de educação infantil. Nesse sentido, os aspectos estruturantes dessas
96
- Dados levantados pela SME.
231
instituições (pedagogia assistencialista, caridade e filantropia) no plano do atendimento às
necessidades de acolhimento das crianças para que suas mães trabalhem são condicionantes
das práticas, representações e auto-representação das trabalhadoras da educação infantil. Isto
significa que, embora reconheçam as recentes mudanças institucionais sobre a educação
infantil, permanecem as práticas institucionais de substituição da família pobre que não pode
educar e cuidar de sua prole ante o fato de que precisam vender suas forças de trabalho para
produção da subsistência. As trabalhadoras desses Cmei’s, afetadas pelo cotidiano alienado e
alienante do trabalho dessas instituições, se identificam no discurso caritativo e subjugador da
ideologia assistencialista e se afastam da perspectiva de elaboração de uma identidade política
articulada ao projeto do trabalho.
Marx (2001) já criticava no século XIX o caráter pernicioso e subjugador que as
iniciativas educativas filantrópicas e assistencialistas tinham para o conjunto das classes
trabalhadoras, significando, para ele, desencargo de consciência da burguesia diante do
depotismo da exploração capitalista sobre os trabalhadores. Marx criticava assim os socialistas
utópicos que, aliás, vincula Robert Owen, um dos fundadores da educação infantil como a
conhecemos hoje (KUHLMANN JR. 2001b).
Marx (2001, p. 110-111) critica duramente essas iniciativas caritativas e utópicas
no campo da educação, que ele denomina de escolas humanitárias. Para esse pensador:
Essa escola procura, por descargo de consciência, atenuar ainda que pouco os
contrastes reais; lamenta sinceramente a desgraça do proletariado, a concorrência
desenfreada dos burgueses uns com os outros; aconselha os operários a serem
sóbrios, a trabalharem conscienciosamente e a fazerem poucos filhos; recomenda
aos burgueses que se entreguem a produção com um entusiasmo refletido. Toda a
teoria dessa escola assenta em distinções intermináveis entre teoria e prática, entre
os princípios e os resultados, entre a idéia e a aplicação, entre o conteúdo e a forma,
entre a essência e a realidade, entre o direito e o fato, entre o lado bom e o lado mau.
A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Nega a necessidade do
antagonismo; quer transformar todos os homens em burgueses; quer realizar a teoria
na medida em que esta se distingue da prática, e não encerra antagonismo. Não é
necessário dizer que, na teoria, é fácil abstrair das contradições que a cada instante
se encontram na realidade. Essa teoria transformar-se-ia então na realidade
idealizada. Os filantropos querem, portanto, conservar as categorias que exprimem
as relações burguesas, sem o antagonismo que as constitui e que não pode ser
separados delas. Pensam que combatem seriamente a prática burguesa e são mais
burgueses que os outros.
Nesse sentido, a educação infantil, que foi constituída como uma instituição
responsável pelo investimento das iniciativas filantrópicas e assistencialistas sobre as classes
trabalhadoras, tem mantido princípios e práticas pautadas por essas concepções, colaborando
para o amortecimento dos conflitos e contradições presentes na sociedade dividida em classes.
232
Ainda que as leis tenham se modificado e as instituições de educação infantil
tenham alterado suas estruturas e se convertendo em estabelecimentos educacionais,
vinculados aos sistemas de ensino, muitas de suas trabalhadoras recuperam a função
assistencial como primordial no atendimento das crianças. Desse modo, essas profissionais se
caracterizam muito mais pelo papel de filantropas do que de intelectuais orgânicas das classes
dominadas ou trabalhadoras que se organizam e lutam.
Nesse sentido, são coerentes os depoimentos que justificam a falta de organização
política e de luta com o restante da categoria em seus embates com o Estado-patrão por causa
do atendimento às crianças carentes e às famílias pobres. Assim, os depoimentos – 75% das
professoras e 58, 33% das agentes educativas entrevistadas – dessas trabalhadoras atribuem à
“natureza” assistencialista do trabalho na educação infantil como fator central na questão da
falta de participação política em mobilizações e lutas da categoria.
Tanto as professoras como as agentes educativas retomam o papel assistencialista
da instituição quando questionadas sobre a sua não participação nas últimas greves. O
depoimento a seguir de uma professora é um exemplo disso:
Mas, é a questão que, eu penso que, esse que parece foi esse ano se não me
engano, teve um movimento né, é a questão que eu já tinha te falado antes né, como
que fica as crianças? Eu acho que, penso que os centros municipais de Educação
Infantil foram criados justamente para estar acolhendo essas crianças, para dar um
apoio né, ta dando né. E se todos os profissionais aderem à greve, como fica o
funcionamento assim no caso das crianças, os pais que trabalham? [...] Então é mais
essa questão mesmo, não tem como fechar uma instituição de CMEI por 30 dias e
deixar, por que tem muito a questão do social também, tem muita criança que às
vezes a alimentação só tem aqui, então se pensa muito na criança na instituição, e
como que vai ficar essas crianças durante esses 30 dias, durante esses 15 dias? Esse
pai vai ter que sair pra trabalhar com a criança vai deixar com quem? Eu penso que
seja por isso, em termo de pensar mesmo nas crianças, nas famílias que são
carentes né, a maioria como que ficariam se fechasse o CMEI e deixasse. Às vezes
a gente pode pensar assim, ah é por quer não tem muito o que reivindicar. Não é
que não tem, às vezes nós... às vezes o salário, a forma assim né, o profissional que
está envolvido com a Educação Infantil tem que pensar muito, muito além dessas
questões assim. (Cláudia).
Para as agentes educativas essa questão também se configura como um
impedimento para que se mobilizem e lutem por melhores condições de vida e trabalho:
[...] eu acredito que seja pelo papel que a gente exerce dentro do Cmei, por que olha
as crianças que estão aqui, na maioria elas passam o dia inteiro aqui, porque os pais
trabalham o dia inteiro. Então a forma mais segura que eles acham de deixar seus
filhos pra podê trabalhar são os Cmeis, ou creches, então nós não temos nem como
parar porque se a gente para eu acredito que os pais também têm que parar ou então
arranjar uma outra forma de deixar seus filhos em casa (Sheila).
233
Em certos depoimentos, as trabalhadoras deixam entender que algumas diretoras
se utilizam da questão da assistência à infância e à família para pressioná-las a não aderir às
mobilizações. Ao insistir no problema do por que as trabalhadoras da educação infantil,
especificamente, não participam dos movimentos grevistas dos trabalhadores da rede, uma
professora assim responde:
Posso responder a verdade verdadeira? Porque a maioria de diretores fica com dó
dos pais, do filho que fica em casa, essa é a verdade verdadeira, porque eles coloca
assim, por mais que tirou aquela palavra, que não é depósito de criança, mas isso
depende da comunidade, do local e do próprio Cmei que faz: “Ah, onde que essa
criança vai ficar? O pai também trabalha o dia todo, a mãe doméstica sai as sete da
manhã e chega as sete da noite, com quem essa criança vai ficar? Vai ficar...” nós
não podemos parar, temos que ficar com as crianças (Michele).
Uma outra professora também destaca a pressão da direção do Cmei que se
escamoteia sobre a questão do “carinho” e da “consideração” para com os sujeitos que ali são
atendidos:
[...]o que é colocado pra gente assim, que é pedido assim com carinho pela nossa
direção é que eles olham também o lado dos pais, da necessidade de estar com esses
meninos o dia todo aqui e não tem com quem deixar, por que na escola o menino
que vai pra escola ele fica só um turno, o outro ou fica só ou tem com quem ficare
não é o caso da grande maioria aqui. Por exemplo, isso aqui ficar 30 dias sem
receber essas crianças vai ser 30 dias essa mãe perde o emprego, então assim, o que
é colocado assim tanto da outra vez que eu estive aqui quanto dessa é assim que a
gente olhe com mais carinho, entendeu? (Eunice)
Desse modo, percebemos que o assistencialismo na instituição de educação
infantil não se conforma apenas como uma pedagogia para a submissão, mas também se
configura como princípio que estrutura e atribui significados para o trabalho nessas instituições
e como instrumento ideológico de controle sobre as trabalhadoras que atuam nesses espaços.
Nesse sentido, fica difícil estabelecer possibilidades de produção de uma
identidade política articulada aos interesses históricos das classes oprimidas pelo capital, uma
vez que essas são compreendidas como objeto de tutela, como o “outro” e não como um “nós”.
Assim, a ideologia das concepções compensatória e assistencialista da educação infantil
dificulta a identificação entre as trabalhadoras dessa instituição e os demais trabalhadores,
mesmo lidando cotidianamente com esses setores da sociedade, com seus problemas e suas
necessidades.
Tais concepções corroboram com os preceitos de uma educação compensatória,
que contribua para a amenização dos males que a pobreza causa aos sujeitos. As “carências”
das crianças provenientes de sua condição de classe acabam por conduzir sua educação aos
preceitos da “caridade” limitados aos seus cuidados físicos e higiênicos enquanto suas mães
234
“trabalham fora”. Ao efetivar práticas assistencialistas nos Cmei’s, as trabalhadoras da
educação infantil confirmam a manutenção das atuais estruturas de poder e não, como
poderiam pensar, as negam. Ao diferenciar assistência – formas de se garantir diretos mínimos,
por meio de políticas sociais para aquelas parcelas mais depauperadas pela sociabilidade
capitalista – do assistencialismo, Pedro Demo (2001) observa como essas práticas ideológicas
servem à manutenção do status quo, desmobilizando as classes dominadas por meio de
políticas que aliviam a pobreza, mantendo sua estrutura. Segundo esse autor, o
assistencialismo sempre “[...] apenas recria miséria, já que está por definição desvinculado de
qualquer compromisso estrutural de solução. A única defesa que se pode fazer do
assistencialismo é como estratégia de legitimação do poder, do ponto de vista de quem está no
poder. Aí sua função é vital, mas não tem nada a ver com tratamento adequado da pobreza, a
não ser como assistência devida.”. (DEMO, 2001, p. 84).
Isso não quer dizer que as trabalhadoras concordem conscientemente com as
diretrizes subjugadoras que a assistência e caridade impõem aos sujeitos. Mas as formas como
essas instituições têm realizado suas atividades ainda contam com diversas dificuldades de
ordem estrutural, econômica e de recursos humanos, limitando a percepção das trabalhadoras
sobre o aspecto educativo de sua atividade. Também, a população que as instituições atendem
são, geralmente, as parcelas mais empobrecidas da sociedade, o que gera nas trabalhadoras
sentimentos de compaixão e compromisso mediados muito mais por elementos da caridade e
pena do que por uma leitura crítica acerca da natureza das condições de vida dessa população
e da realidade social. Essa dificuldade de compreensão dos nexos que constituem a realidade
socioeconômica das parcelas mais afetadas pela sociabilidade malthusiana do capital acarreta
em limites na composição de uma identidade política que articule os interesses e demandas
dos trabalhadores e de seus filhos aos das trabalhadoras em educação infantil, mantendo as
relações ainda no âmbito da tutela, da “boa ação”, do “espírito cristão” das professoras e no
mito da educadora “nata”.
Essas trabalhadoras não conseguem sequer identificar um papel político para a
instituição onde trabalham, nem tampouco para si mesmas, enquanto agentes sociais que
lidam com a socialização da produção, sistematização e socialização do saber e da cultura e
que, portanto, exercem um papel inevitavelmente político. As suas representações sobre o
papel político das instituições de educação infantil expressam um desconhecimento e aversão
ao tema da política, considerando como político na instituição: a adaptação da criança na
sociedade e/ou na escola; o atendimento da demanda por assistência social; a formação para a
cidadania; e as intervenções políticas partidárias em contratações de funcionários.
235
Em suas falas, não há uma compreensão da política como forma racional e
coletiva (pública) de interferir nos rumos da sociedade. Ao contrário, a política é entendida
pelas trabalhadoras da educação infantil como sinônimo de partidos, políticos profissionais e
eleições. Desse modo, não se representam como agentes políticos que atuam numa posição
estratégica da sociedade (educação), o que possibilitaria uma maior organicidade com os
demais setores das classes trabalhadoras, colaborando para sua elevação moral e intelectual.
Essa aversão à política se constitui como uma inflexão sobre as possibilidades de elaboração
da identidade política das trabalhadoras em educação infantil, o que nos aponta a questão de
que não basta apenas a condição objetiva de vida e trabalho semelhantes aos das classes
dominadas, é preciso de que se construa, no e pelo trabalho, uma cultura de classe que torne
consciente essas condições e elabore elementos para sua superação concreta.
4.2 Feminização/sexualização do trabalho na educação infantil: a contradição entre produção e
reprodução na elaboração de uma identidade política
Outras questões são fundamentais para entendermos os limites que atingem as
possibilidades de as trabalhadoras da educação infantil produzirem uma identidade política
aliada a um projeto de superação da sociedade de classes. Dentre elas, destaco as que dizem
respeito à condição feminina do trabalho nos Cmei’s, vinculadas à questão da divisão entre
reprodução e produção que a forma de sociabilidade do capital produz. Essa dicotomia (mais
ideológica do que real) atinge as possibilidades de articulação entre as esferas privadas e
públicas, cuja relação é fundamental para a construção de uma identidade política, pois, é ao
tornar público as contradições que se dão na esfera do privado – como, por exemplo, a
questão do trabalho, da feminilidade e da educação – que se institui possibilidades dos
sujeitos se posicionarem sobre determinados pontos de vista e projetos sociais, se
identificarem e passarem a se organizar e lutar.
Nesse sentido, retomo as reflexões sobre a feminização/sexualização do trabalho
docente na educação infantil, apontando os impactos dessa identificação sobre a construção de
uma identidade política dessas trabalhadoras. Para isso, busco estabelecer as relações entre
divisão sexual do trabalho e a conseqüente dicotomia entre produção e reprodução provocada
pelas relações sociais de produção capitalistas. Nesse sentido, busco estabelecer a relação
entre a particularidade do trabalho na educação infantil (gueto ocupacional de mulheres) e a
universalidade da divisão hierárquica do trabalho produzida pelas mediações de segunda
ordem do sistema do capital.
236
As atividades profissionais nas instituições de educação historicamente
estiveram vinculadas à inserção da mulher no mundo do trabalho. O trabalho de educar e
cuidar de crianças tem sido historicamente identificados como um prolongamento das
atividades “naturais” que as mulheres desempenham no âmbito doméstico. Nesse sentido, a
feminização/sexualização
97
do trabalho docente – em qualquer nível, mas com mais ênfase na
educação infantil e nas séries iniciais – configura-se como um importante elemento na
disseminação de uma ideologia que desmobiliza e busca engessar a organização coletiva dos
trabalhadores da educação.
Essa lógica segue as determinações da inserção da mulher no mundo do trabalho,
que reúne os conflitos e contradições das questões de classe e de gênero. Nogueira (2004)
observa que, com o advento do modo de produção capitalista, houve uma espécie de
“inclusão” e “exclusão” da mulher no mundo do trabalho, conservando os elementos que
configuravam as relações patriarcais, cuja dominação e opressão da mulher pelo homem é sua
expressão mais manifesta.
Fazendo observações de que a família se caracterizou e se caracteriza como uma
célula dessa sociedade, Nogueira (2004, p. 05) afirma que é reproduzido no interior das
relações “privadas” do lar os contornos dessa sociedade, cujo domínio patriarcal configurou-
se como a primeira forma de dominação entre seres humanos.
Podemos entender que quando a família monogâmica espelha fielmente as suas
raízes históricas, manifestando, claramente o seu conflito entre o homem e a mulher
em conseqüência da opressão masculina, temos uma amostra do antagonismo e das
contradições da própria sociedade de classe, já que no espaço doméstico há um
claro domínio patriarcal. (NOGUEIRA, 2004, p. 05).
Destrinçando os caminhos que as mulheres têm percorrido no mundo do trabalho
ao longo da história, Nogueira (2004, p. 08) observa que historicamente a mulher tem
desempenhado funções centrais na produção e reprodução da sociedade e da vida. Entretanto,
o trabalho da mulher somente se torna efetivamente público com o desenvolvimento das
forças produtivas impulsionado pela sociedade burguesa. Foi com a Revolução Industrial
“junto com o advento da maquinaria, [que] deu-se o ingresso definitivo da mulher no mundo
do trabalho”.
97
- Entende-se aqui por feminização/sexualização o processo de naturalização das atividades que as mulheres
desempenham socialmente (maternagem e trabalho doméstico), escamoteando o caráter de exploração de seu
trabalho no seio de uma sociedade de classes. A feminização/sexualização do trabalho docente é o fenômeno
pelo qual predomina-se o trabalho do gênero feminino na área, caracterizando-a como uma vocação “natural” da
mulher.
237
O incremento do capital fixo contribuiu no aumento da exploração da mão-de-
obra feminina no âmbito da produção fabril, colaborando excessivamente para o aumento da
concorrência entre os trabalhadores e para a subtração de seus salários. Com base na divisão
sexual do trabalho, os setores patronais dividem o valor da força de trabalho para toda a
família e o rebaixa a valores ainda menores do que os correntes. O trabalho produtivo, que
antes necessitava de valências físicas e de um contingente maior de força motriz (músculos
humanos), com o advento da maquinaria, precisaria somente de pessoas que se adaptassem às
máquinas, num número cada vez menor de trabalhadores.
Nogueira (2004, p. 10) afirma que dessa forma “O capitalismo usa dessa divisão
sexual do trabalho para incentivar a competição entre os trabalhadores, rebaixando os salários
em decorrência do ingresso da força de trabalho feminina, incorporada à classe trabalhadora e
percebendo salários ainda mais reduzidos.”.
A inserção da mulher no mundo do trabalho foi utilizada pelos donos dos meios
de produção que, explorando o sentimento patriarcal, aumentou a exploração de mais-valia
duas vezes: explorando a força de trabalho feminina, que custa bem menos no mercado; e
diminuindo os salários da força de trabalho masculina que passou a concorrer com uma
“mercadoria” mais barata.
Mas, além da maquinaria e das explicações biologicistas
98
sobre a pretensa
inferioridade da força de trabalho feminina, quais outras características concorriam para que
os salários das mulheres fossem bem menores no mercado de trabalho?
Nogueira (2004, p. 15) assevera que o fato de as mulheres possuírem a
incumbência do processo de reprodução no interior das relações domésticas limitaria sua
dedicação profissional; e os baixos salários seriam uma forma de mantê-las cumprindo essas
tarefas, não lhes dando oportunidade de se especializar em determinados ofícios.
No final século XIX e início do século XX, a forte indicação da força de trabalho
sexualmente segregada foi baseada na divisão sexual do trabalho, compreendida sob um ponto
de vista “naturalista”. A naturalização do trabalho da mulher significou também a definição
daqueles que seriam os espaços e profissões de mulheres. Nogueira (2004, p. 18), citando
Scott (1994), observa que esse período se caracterizou por um intenso crescimento dos setores
comerciais e de serviços públicos. O crescimento dos serviços públicos significou o emprego
maior da força de trabalho feminina “para desenvolver funções como as de vendedoras de
98
- Segundo Nogueira (2004, p. 22), dentre as explicações que caracterizaram a força de trabalho feminina como
uma mercadoria de menor valor está a ênfase nas diferenças biológicas (morfo-funcionais) entre homens e
mulheres, baseadas, sobretudo, na sua “inferioridade” física e na capacidade de reprodução.
238
selos nos correios, de operadora nos telégrafos e nas telefônicas, de enfermeiras nos hospitais
e de professoras nas escolas”. (grifos meus).
Nesse sentido, “[...] o mundo do trabalho acentuou profundamente a divisão sexual
do trabalho, reservando para as mulheres espaços específicos que, na maioria das vezes, se
caracterizavam pela inferioridade hierárquica, pelos salários menores e por atividades
adaptadas a suas capacidades inatas.” (NOGUEIRA, 2004, p. 18, grifos meus).
Esse é o caráter que o trabalho docente vai assumir no bojo da sociedade
capitalista, ou seja, uma atividade a ser desempenhada por mulheres, pois se identifica com
suas “capacidades inatas” de cuidar e educar crianças e jovens devendo caracterizar-se por um
baixo valor socioeconômico. Além de possuir um salário menor, por ser profissão feminina, o
trabalho docente passa a carregar um fardo de ser uma atividade de menor valor social
também.
Nessa perspectiva, o magistério é compreendido como atividade inerente aos
papéis sociais historicamente desempenhados pelas mulheres no âmbito privado familiar,
resultando numa profissão femininizada/sexualizada, de pouco valor social e econômico,
definida pela “vocação natural” que as mulheres possuem de educar e cuidar e que, portanto,
não requer valorização nem tampouco organização política de suas trabalhadoras.
Entretanto, é necessário ressaltar que o magistério também significou uma forma
de ascendência da mulher no mundo do trabalho. A possibilidade de sair de atividades
laborais estafantes, próprias das esferas produtivas ou dos trabalhos domésticos e a passagem
de um trabalho manual para um trabalho caracterizado pelo exercício intelectual, significou,
na história da mulher trabalhadora, uma forma de “libertação” das fábricas, das relações
patriarcais e uma pretensa elevação de status social.
Como aponta Apple (1995, p. 62):
As mulheres tinham muito pouca escolha ocupacional; e, comparada à maioria das
alternativas – lavanderia, costura, limpeza, ou trabalho na fábrica – o magistério
oferecia numerosos atrativos. Era ‘distinto’, pagava razoavelmente bem, e requeria
pouca qualificação ou equipamento especial. Da segunda metade do século [XX]
em diante, também permitia viajar, viver independentemente ou na companhia de
outras mulheres, atingir a estabilidade econômica e um status social modesto.
Na educação infantil, o caráter ascendente contrasta com o caráter descendente
na profissão. Como apontam Cerisara (2002), Silva, I. (2001) e Ongari e Molina (2003), com
o advento das novas legislações para a educação infantil, que a caracterizou como parte do
sistema básico de ensino, passou a existir a necessidade da formação do pessoal que já
239
trabalhava nas instituições. Para essas trabalhadoras, houve uma espécie de ascendência
profissional engendrada pelo processo de formação a que foram submetidas e,
conseqüentemente, pelas oportunidades de entrada no serviço por meio de concurso, melhores
salários, planos de carreira etc.. Já para as professoras que estavam inseridas na carreira
docente, significou um processo de descendência na profissão, principalmente pelo fato de
sair do ensino fundamental – espaço historicamente constituído com uma identidade
institucional que tem caracterizado o ensino docente a partir da concepção do ensino-
aprendizagem – para a educação infantil.
Por isso mesmo, a identificação ideológica dessa atividade com a domesticidade
e como “lugar natural” da força de trabalho feminina, no limite, reproduziram as relações
patriarcais no bojo da profissão no magistério, conduzindo o trabalho docente a uma profissão
inferior sócio-economicamente (APPLE, 1995).
O trabalho docente vem se caracterizando como uma atividade
femininizada/sexualizada, sobretudo nas séries iniciais e nas instituições de atendimento às
crianças de 0 a 06 anos. Assim, é importante compreender que o atendimento educacional seja
na educação infantil ou na primeira fase do ensino fundamental, que historicamente tem
identificado o trabalho nesses espaços como uma atividade exclusivamente feminina que, por
sua vez, materializa-se como uma extensão das atividades domésticas. A caracterização do
magistério, nessa visão, constitui o trabalho docente como uma vocação natural própria das
capacidades “inatas” de mãe que são atribuídas às mulheres pelas relações sociais.
Paula (2002, p. 04) observa que as concepções do magistério como vocação (ou
sacerdócio) apontam para a legitimação da resistência à profissionalização do magistério.
Assim sendo,
[...] o processo de feminização transformou a profissão docente especificamente a
das séries iniciais do ensino fundamental [também nas creches e pré-escolas], num
“trabalho de mulher” pertinente aos papéis por elas tradicionalmente
desempenhados, como o cuidado de crianças e não conflitante com seu papel de
esposa e mãe.
O trabalho docente, especialmente aquele que lida com crianças entre 0 e 06
anos de idade, tem sido vinculado a um processo ideológico de vinculação e identificação à
maternagem e ao trabalho doméstico
99
. Como observam Cerisara (2002), Ongari e Molina
99
- Segundo Cerisara (2002, p. 37-38), maternagem é um termo correntemente usado na literatura que aborda o
tema gênero que caracteriza os processos sociais de cuidado e educação das crianças em oposição à maternidade
que se refere à dimensão biológica da reprodução humana; trabalho doméstico é referente às atividades
desempenhadas no lar caracterizadas pela rotina, acúmulo e trocas de funções
240
(2003), Silva, I (2001) e Alves (2002), as relações de trabalho próprias do espaço doméstico
são elementos marcantes na composição da identidade profissional das trabalhadoras da
educação infantil, situando-se, inclusive, como um espaço onde se concilia trabalho e os
cuidados dos próprios filhos
100
.
O papel exclusivamente atribuído às mulheres de cuidar e educar das crianças
pequenas é expresso no depoimento de trabalhadoras que atuam na educação infantil na
RMEG. Quando as trabalhadoras foram questionadas se suas atividades são tributos
exclusivamente femininos, algumas respostas confirmam essa compreensão, aparecendo da
seguinte forma:
Sim, porque o trabalho na educação infantil envolve além da produção de
conhecimento cuidados íntimos que não seria agradável ser feitos por homens. Não
se trata de preconceito e sim de preocupação. O cuidado com crianças depende de
muita, sensibilidade, jeito, conhecimento, que muitos homens não possuem. Cuidar
de uma filha (principalmente na parte de higienização) pode ser permissível à um
pai. Porém, esses cuidados feitos por estranhos “(educador)” pode trazer
transtornos e/ou graves problemas. (PII 31)
Sim porque nessa faixa etária, além das atividades lúdicas também tem a parte de
higienização que se adequa mais a parte feminina; não querendo excluir o sexo
masculino, mas principalmente porque as crianças menores inclusive os bebês
exigem mais cuidados, e as mulheres tem mais habilidade nesse caso. (PI 26)
À questão de ser mulher é possível que se acrescente as habilidades e saberes
necessários à maternidade como elementos fundamentais para o trabalho educativo nos
Cmei’s, como observa Cerisara (2002). Uma professora, quando questionada se é
fundamental ser mulher e mãe para trabalhar na educação infantil, assim responde:
com certeza! Quando eu não tinha filho e ia pra sala pra mim eu não dava tanta
importância até nem não ouvia bem assim, eu não parava pra ouvir, prestar atenção
no que acontecia, que com a criança de fato ou até na sala de aula, assim, uma
coisa, e quando a gente tem filho a gente para mais pra ouvir, pra prestar atenção,
pra dar atenção, entendeu? Eu acho que, no meu caso vou falar, falo por mim,
assim, a gente vê com mais carinho, entendeu? Comigo foi assim, e assim, eu
comecei na é..., na sala de aula assim, muito cedo, entendeu? E até antes de
terminar o magistério, então é assim, uma coisa que pode se dizer crua, eu não sei
se com o tempo, o fato de ser mãe e aprendendo mais porque a gente nuca que sabe
tudo e então assim, eu me, o tempo assim me fez mais humana, entendeu?de parar,
de ouvir porque eu sou muito assim dessa linha assim, não os primeiros anos, mas
depois ficou muito assim, eu dava, dou muita importância de ta ouvindo meu aluno,
o que ele tem pra me dizer, prestar atenção, mesmo quando ele não fala, entendeu?
100
- Cerisara (2002), Ongari e Molina (2003), Silva (2001) e Alves (2002) observam em suas pesquisa que uma
das motivações do ingresso das trabalhadoras na educação infantil é a possibilidade de trabalhar e cuidar de seus
próprios filhos nas instituições. Durante minha investigação, pude notar que nos Cmei’s muitas trabalhadoras
que ainda tinham filhos pequenos os levavam para as instituições.
241
E isso me ajudou muito quando eu tive meus filhos também, entendeu? Eu tenho
um de treze e uma de seis, então, me ajudou muito. (Eunice).
Outros depoimentos trazem a perspectiva de que as instituições educacionais são
extensão do lar quando, dentre outras coisas, observam a necessidade do trabalho masculino
no sentido de que esses se efetivem como referência masculina (pai) para as crianças. “Não, a
criança precisa da presença masculina e feminina para formar sua personalidade. Através da
convivência diferenciar as diferenças entre os papéis/gêneros apesar de conflitos de identidade
sexual existente no meio.” (AE 16).
As respostas das diferentes trabalhadoras das instituições de Educação Infantil da
RMEG corroboram com a perspectiva de que o trabalho nesses locais se assemelha muito
com as atividades domésticas, inclusive reafirmando a hegemonia dos papéis que a mulher
desempenha como mãe e dona de casa e o homem, como referência do gênero masculino, no
processo de construção de identidade da criança. A concepção, e mais, a materialização do
trabalho vinculado às tarefas domésticas é um elemento constitutivo das instituições coletivas
de atendimento educativo da infância, que hegemonicamente possuem mulheres exercendo
suas atividades, ainda que as novas diretrizes políticas para a área apontem uma verticalização
no seu aspecto pedagógico-educativo e uma heterogeneização no seu quadro pessoal.
Junto da hegemonia do gênero feminino no trabalho docente na educação
infantil, coexistem e se determinam mutuamente um outro elemento importante nas relações
de trabalho nesses locais que é a concepção das instituições como extensão do lar. Essa
referência resguarda a idéia do senso comum de que o cuidado e educação da criança menor
de 07 anos é tarefa da família ou dos pais, “cabendo ao Estado assumir a responsabilidade
apenas quando as famílias não conseguem arcar com elas sozinhas”. (CERISARA, 2002, p.
46).
Essa perspectiva denota o referencial do trabalho doméstico e da maternagem
(característicos da concepção assistencialista) para o trabalho docente na educação infantil.
Na atual conjuntura, as tensões entre casa-creche e creche-escola (CERISARA, 2002) não
foram resolvidas; esse conflito é parte constituinte da identidade institucional da educação
infantil que, por sua vez, significa um importante elemento na composição da identidade
profissional das suas trabalhadoras.
A identidade profissional, ou seja, a compreensão de que se exerce um trabalho
necessário à maioria da população brasileira e de que tal trabalho deve se caracterizar pelo
242
compromisso e competência técnica e política é um fator preponderante na composição da
identidade política das trabalhadoras da educação infantil.
A caracterização do trabalho docente na educação infantil como uma capacidade
“nata” advinda do fato de serem mulheres (possivelmente mães) e das instituições coletivas de
educação de crianças menores de 07 anos como extensão do lar, contaminadas pelas práticas e
ações inerentes aos papéis de mães, significa, entre outras coisas, a legitimação e perpetuação
da desprofissionalização dessas trabalhadoras.
A concepção das instituições de educação infantil como extensão do lar
corrobora ainda com a perspectiva da divisão sexual do trabalho e dos conseqüentes papéis de
gênero diferenciados e hierarquizados que homens e mulheres exercem na sociedade. Muitos
dos depoimentos de professoras e agentes educativas corroboram com a perpetuação da
divisão sexual do trabalho, em que os homens devem ocupar as chamadas atividades
gerenciais no âmbito da Educação e às mulheres cabe a intervenção direta junto às crianças.
Essa perspectiva marca justamente as características do trabalho docente junto às crianças
menores na primeira fase do ensino fundamental e na educação infantil.
Há depoimentos de trabalhadoras que defendem o trabalho de homens nas
instituições desde que não seja diretamente vinculado ao cuidado das crianças:
As instituições infantis não é destinada somente a ala feminina, pois existem
trabalhos na própria instituição que é própria do homem. Somente o que não pode
ser feito pelo homem são os cuidados de higiene pessoal. O homem hoje em nossa
sociedade já ocupa em seus lares o espaço reservado antes somente a mulheres, e
em nossas instituições não vejo tanta necessidade desta divisão, somente de tarefas
que deve haver. (PI 09)
Outra professora observa uma questão corrente nos Cmei’s em Goiânia que se
configura pela presença masculina de forma indireta, geralmente ocupando cargos de direção,
secretaria ou vigia, ao dizer que: “Os Cmei’s também têm funcionários homens que
indiretamente, num momento ou outro estão em contato com as crianças.”. (PII 07).
O que nos chama a atenção nas respostas é a forma como as trabalhadoras auto-
representam um laço doméstico e materno à sua profissão. Isso não é necessariamente um
elemento negativo das relações de trabalho na educação infantil, até mesmo por que tais
relações são compositoras das formas de socialização no trabalho docente junto às crianças
menores de 07 anos e até mesmo no ensino fundamental (CARVALHO, 1999). Entretanto,
quando confrontadas com o gênero masculino, as trabalhadoras tendem a perpetuar o
patriarcalismo expresso na divisão sexual do trabalho, em que aos homens cabem os altos
243
cargos e salários e as mulheres se “contentam” com cargos menos importantes com
gratificações menores.
A própria configuração da carreira docente expressa essa divisão sexual do
trabalho de forma hierarquizada, cujo número de mulheres é maior na educação infantil e nas
séries iniciais do ensino fundamental, que se caracterizam como etapas menos valorizadas na
carreira do magistério, enquanto tem aumentado significativamente o número de professores
do sexo masculino na segunda fase do ensino fundamental e no ensino médio, em que o
trabalho docente, além de exigir maior formação, tem sido historicamente mais valorizado
tanto social como economicamente (CODO et.al., 1999). Essa lógica segue a perspectiva da
desqualificação do trabalho feminino que o modo de produção capitalista aprofunda e
reproduz nos diversos campos que compõem o mundo do trabalho.
Em estudos realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais – INEP sobre os salários das diferentes ocupações na carreira do magistério no
país no ano de 2001, as diferenças salariais entre a primeira fase do ensino fundamental e
educação infantil em relação à segunda fase do fundamental e o ensino médio são claras: a)
educação infantil, média de R$ 422, 78 de salário; b) primeira fase do fundamental, R$ 461,
67 de média salarial; c) segunda fase do fundamental, R$ 599, 85 de média salarial; e d)
ensino médio, R$ 866, 23 de média salarial (MEC, 2003, p. 11).
Esses dados exemplificam a maior desvalorização do trabalho docente nas fases
que se agrupam um maior número de mulheres, que possuem baixa qualificação o que, no
limite, refletem as relações de contradições e conflitos existentes quanto à inserção da mulher
no mundo do trabalho como uma força de trabalho de menor valor.
Apple (1995, p. 33) chama a atenção para o fato de que na carreira do magistério
há uma maioria de mulheres atuando no ensino primário, e que uma parte considerável de
homens ocupa cargos de direção e coordenação nas instituições escolares. Codo et.al. (1999)
observam, em uma pesquisa sobre a saúde do trabalhador da educação, que da educação
infantil até o final do ensino fundamental as mulheres predominam na atuação pedagógica
com 97,4%. Esse predomínio é um importante fator da constituição da identidade dos
trabalhadores da educação enquanto categoria pela qual perpassa, inevitavelmente, a
construção de suas identidades políticas.
Os dados obtidos nas instituições de educação infantil da RMEG demonstram a
hegemonia do gênero feminino nas atividades docentes junto às crianças. Dos questionários
propostos na primeira etapa da investigação, 100% foram respondidos por mulheres. A
observação feita também aponta que as instituições constituem-se como um local
244
predominantemente organizado, dirigido e trabalhado por mulheres. Em apenas duas
instituições, das vinte visitadas, havia homens (um em cada) cumprindo funções
administrativas (secretários). A informação que obtive no Departamento de Educação Infantil
(DEI) da Secretaria Municipal de Educação, é de que há em toda a rede – que possui 54
instituições administradas pela secretaria - um homem trabalhando diretamente com a prática
pedagógica na educação infantil. Ao retornar ao campo em 2005 para realizar entrevistas e
fazer observações, foi perceptível a inalteração desse quadro.
Analisando os números do quadro de pessoal da Secretaria Municipal de Goiânia
que atua diretamente com a educação infantil, percebe-se o quanto que essa relação de
predomínio é evidente, o que significa dizer que num universo de 585 profissionais na função
de professor e 551 na de função de agentes educativos, que lidam diretamente com os
processos educativos das crianças, não há um só homem exercendo a função docente ou de
agente educativo
101
, reproduzindo a instituição de educação infantil como gueto feminino no
mundo do trabalho, ou seja, um trabalho sexualizado (BRUSCHINI, 1979).
A questão da organização coletiva dos trabalhadores da educação infantil e da
composição da identidade política desses trabalhadores sofre impacto perante a questão da
feminização do espaço. A correspondência do trabalho nas instituições educativas com o
trabalho doméstico e a contaminação das práticas educativas pelos processos materno-afetivos
disseminam uma ideologia que desqualifica o trabalho e as funções dessas instituições, visto
que o cuidar e educar de crianças de 0 a 06 (no caso da educação infantil, mas que pode ser
estendido aos 10 anos se agrupar as séries iniciais do ensino fundamental) são tarefas da
família e dos pais e mães, que, para essa sociedade, não se configura como trabalho.
A dicotomia entre produção e reprodução própria dessa organização societal
compreende o trabalho doméstico como uma atividade invisível, que não possui valor, pois
não produz mercadorias, o que conseqüentemente não contribui, de forma imediata, na
expansão do lucro. “Mesmo havendo grande ênfase na domesticidade da mulher, reforçando o
seu ‘estatuto social’, o trabalho doméstico não era considerado (e ainda nos dias de hoje esse
debate se mantém) como trabalho, pois tratava-se de atividade desvinculada de relação
econômica.” (NOGUEIRA, 2004, p. 24)
Como observa Nogueira (2004), a invisibilidade do trabalho feminino gera
dificuldades na busca de soluções para as difíceis condições de vida e trabalho da força de
101
- No processo de investigação questionei o pessoal do Departamento da Educação Infantil da SME sobre o
número de professores do gênero masculino que lidam diretamente com a criança, obtendo a resposta de que
hoje não há nenhum homem no trabalho docente em um Cmei da rede. Quando do ano de 2003, obtive a
informação sobre a presença de apenas um professor lidando diretamente com as crianças.
245
trabalho feminina, mantendo as mulheres materialmente e ideologicamente como empregadas
de segunda categoria. Essa invisibilidade influencia determinantemente o trabalho nas
instituições de educação infantil, criando obstáculos para a construção de uma identidade
profissional das trabalhadoras desse local de trabalho.
Cerisara (2002) ressalta que os saberes e práticas construídas ao longo da
experiência, formação e trabalho cotidiano pelas profissionais de educação infantil são
descaracterizados por estarem diretamente ligados ao trabalho familiar. O trabalho, nesse
sentido, é considerado como atividades “à toa”, “acessórias” e “complementares” às funções
da família, que acabam desvalorizando socialmente esse ofício, que não, necessariamente,
precisa de uma formação específica, aprofundada e acadêmica. Ou seja, apenas os
aprendizados das tarefas de mãe/esposa/dona-de-casa inerentes aos processos de socialização
da mulher na sociedade são suficientes para o trabalho nas instituições de Educação Infantil.
A série de indefinições do campo da educação infantil relativas à formação, a
quem são os profissionais que atuam na área, à identidade institucional (assistência x
educação) além de outras questões, como, por exemplo, a falta de financiamento definido para
a pasta, reflete nas relações concretas de composição do quadro de trabalhadores na RMEG.
Desde a implantação da educação infantil como um sistema de atendimento educativo à
infância constada nas políticas educacionais do município de Goiânia, houve avanços e
retrocessos na política de formação de quadros (recursos humanos) nas instituições de
educação infantil.
Alves (2002) relata que até o término de sua investigação havia equipes
multidisciplinares no interior das instituições de Educação Infantil onde trabalhavam além das
professoras pedagogas, professores de educação física e de artes, além dos agentes educativos.
No ano de 2003 (já durante minha investigação), a Secretaria Municipal de Educação de
Goiânia iniciou um processo de reestruturação do quadro de educadores nas instituições de
educação infantil retirando boa parte das professoras pedagogas e todas/os professoras/es de
artes e de educação física (em que boa parte possuía qualificação em nível de pós-graduação
latu e stricto sensu) da área, substituindo-as/os por professoras com formação em magistério
nível médio empregadas em regime de contratos (emprego precarizado), expressando dois
determinantes: 1) a retomada da perspectiva de que o trabalho na educação infantil não requer
muita qualificação; e 2) um enxugamento dos gastos (já escassos) com a educação infantil.
Essas observações sobre as mudanças do quadro de profissionais que atuam na
educação infantil apontam para a falta de definição sobre o que seja realmente o trabalho das
educadoras nesse espaço, quais as suas especificidades, quais as necessidades de formação, se
246
são atividades “naturalmente” desenvolvidas por mulheres ou se requer a profissionalização
de suas trabalhadoras que passa necessariamente pela qualificação inicial e em serviço, por
melhores condições de vida e trabalho, por planos de carreira estabelecidos, entrada em
serviço por concursos públicos, enfim pela materialização de uma política que democratize
realmente a educação infantil com uma qualidade socialmente referendada.
Tais conquistas têm sido historicamente garantidas pela organização política dos
trabalhadores e pela afirmação de sua identidade política diante dos conflitos e contradições
que o sistema capitalista impõe à vida das maiorias. As bandeiras de luta acima referidas são
levantadas desde meados da década de 1970 pelos trabalhadores da educação que têm se
organizado em sindicatos, unindo suas forças aos interesses de toda a classe trabalhadora
brasileira (RIBEIRO, 1987) e construindo uma identidade política engajada ao projeto
histórico de transformação dessa sociedade engendrado pela classe que vive do trabalho.
O processo de organização política dos trabalhadores da educação tem criticado
profundamente a caracterização do trabalho docente como uma vocação feminina, como uma
forma corrosiva do agir coletivo dessa categoria. Adjetivar o trabalho docente como uma
atividade “natural” da mulher e, portanto, uma atividade de menor valor social e econômico,
reproduz a divisão estabelecida entre produção e reprodução que tem se constituído como
elemento que heterogeneiza e fragmenta a classe que vive do trabalho.
Essa dicotomia que caracteriza a divisão sexual do trabalho é “uma construção
simbólica e social produzida na esfera da produção e reprodução” que na realidade atuam de
forma estreitamente articuladas, ainda que o atual sistema societal as apresente de forma
separada e distintas (MASCARENHAS, 2002, p. 22).
Desconstruir as concepções do trabalho feminino nos espaços educativos que
atendem a crianças menores de 07 anos como uma atividade “natural” significa também (re)
construir a compreensão do trabalho realizado na esfera doméstica por esses mesmos atores
sociais, que são as mulheres. A recusa da falsa dicotomia entre produção e reprodução
significa a negação das formas burguesas de relações, que são determinantes tanto na esfera
doméstica quanto nos diversos locais de trabalho.
A construção da identidade política das trabalhadoras da educação infantil lida
com essa negação e com a afirmação das instituições como local de trabalho onde suas
trabalhadoras prestam serviços complexos e importantes, que necessitam de qualificação e de
salários compatíveis. Afirmar, pela conquista e pela luta, o trabalho na educação infantil como
profissão significa negar os condicionantes ideológicos que desvalorizam a força de trabalho
247
feminino, articulando as contradições e conflitos de gênero às lutas contra as formas de
opressão universal imposta pela sociedade de classes.
4.3 As trabalhadoras da educação infantil e o sindicato docente
A necessidade do sindicato
Mas quem é o sindicato?
Ele fica sentado em sua casa com telefone?
Seus pensamentos são secretos, suas decisões desconhecidas?
Quem é ele?
Nós somos ele
Você, eu, vocês, nós todos
Ele veste a sua roupa, companheiro e pensa com sua cabeça
Onde moro é a casa dele e quando você é atacado, ele luta
Mostre-nos o caminho que devemos seguir e, nós seguiremos com você
Mas não siga sem nós o caminho correto
Ele é sem nós
O mais errado
Não se afaste de nós
Podemos errar e você ter razão, portanto não se afaste de nós!
Que o caminho curto é melhor que o longo
Ninguém nega, mas quando alguém o conhece
E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve sua sabedoria?
Seja sábio conosco
Não se afaste de nós!
Bertold Brecht
Os questionamentos e afirmações sobre o sindicato presentes no poema de
Bertold Brecht acima citado são representativos das concepções que as trabalhadoras da
educação infantil elaboram sobre a organização sindical da categoria dos profissionais da
educação. Em diversos momentos de seus depoimentos, transparecem diversas idéias e
representações sobre o sindicato (no caso, o Sintego
102
), não como elo mediador entre a
particularidade de cada trabalhador/a, de cada unidade dos Cmei’s ou escolas com a
universalidade da categoria, de uma rede de instituições articuladas por projetos e contradições
e da totalidade do trabalho, mas sim como uma instituição desagregada de sua base, aparelhada
por partidos políticos, que atende a interesses alheios aos dos trabalhadores e trabalhadoras em
educação, que serve de “palanque” eleitoral para as direções sindicais e que desconhece a
realidade das novas trabalhadoras e instituições que agora agregam a categoria docente.
Tais representações não deixam de ser uma avaliação extremamente crítica das
formas de atuação que o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego) vem
102
- Aqui levo em consideração o Sintego mediante o fato de que esse se constitui como a principal organização
político-sindical dos/as trabalhadores/as em educação de Goiás. Muito embora existam outros órgãos sindicais
que representam o funcionalismo público no município de Goiânia do qual fazem parte as trabalhadoras da
educação infantil, como é o caso do Sindgoiânia.
248
assumindo, muito mais próximo da perspectiva de um sindicalismo de participação ou
propositivo do que efetivamente a de um sindicato classista e combativo. Essa é uma avaliação
importante, em três sentidos: 1) porque explicita concretamente as formas em que a crise dos
movimentos sindicais provocadas pelo atual contexto de globalização econômica, de mudanças
estruturais no mundo do trabalho e de neoliberalismo impactam nas organizações políticas da
classe trabalhadora e no interior das relações entre direção sindical e a base de trabalhadores;
2) porque apresenta também os aspectos particulares do Sintego, que desde 1989 vem
declinando suas ações para uma postura mais propositiva do que combativa (CANESIN,
1999); e 3) da ausência desse instrumento de luta no interior das instituições de educação
infantil.
103
Entretanto, há também outros elementos que precisam ser considerados quando se
trata das trabalhadoras em educação infantil, tais como: o desconhecimento sobre o que seja
uma organização sindical e qual a sua função; a inação dessas trabalhadoras expressa pela falta
de participação política no espaço público, mesmo diante das suas difíceis condições de vida e
trabalho; a privatização e despolitização das suas relações de trabalho em virtude dos sujeitos
que atendem as crianças pequenas; e os aspectos assistencialistas do trabalho na educação
infantil.
Nos diferentes momentos da investigação, pôde-se perceber, tanto nas respostas
dos questionários quanto das entrevistas, a existência de processos de particularização das
trabalhadoras da educação infantil e de despolitização de seu trabalho, apontando para
contraditórias formas de distanciamento do trabalho e das próprias trabalhadoras em relação ao
restante da categoria. O fato de que, em tese, as instituições de educação infantil fariam parte
do conjunto do sistema básico de educação, a partir dos novos marcos legais da educação
infantil no Brasil, não alterou profundamente o que denomino de “natureza” assistencialista do
103
- Em sua investigação sobre o movimento sindical docente em Goiás, Canesin (1999) analisa a constituição
histórica do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás demonstrando as múltiplas determinações que
possibilitaram aos professores de 1° e 2° graus se tornarem a principal força política do campo do trabalho no
Estado por meio da organização político-sindical e das mobilizações e enfrentamentos dispostos por essa
categoria de trabalhadores entre os anos de 1979 e 1989. Nesse processo, a antiga associação corporativa (CPG)
foi sendo modificada e transformada em sindicato combativo, conformando-se então como um importante lócus
de educação política dos trabalhadores em educação de Goiás. Com a legalização da organização sindical do
funcionalismo público, permitida a partir da Constituição Federal de 1988, e também com a viragem neoliberal
do final da década de 1980, inicia-se a crise de organização, mobilização e legitimidade desse sindicato em
relação à população e entre seus representados. No entanto, o Sintego ainda permanece como a organização
sindical que mais mobiliza trabalhadores assalariados em Goiás tendo em vista suas constantes mobilizações
grevistas que anualmente toma de assalto as ruas de Goiânia, mesmo diante de uma “crise de direção” que
acompanha esse sindicato. Direção essa que permanece quase inalterada em sua composição política desde a
década de 1980. Essas questões merecem maiores aprofundamentos, os quais esse trabalho não tem a pretensão
de fazê-los, dada a centralidade do objeto circunscrito na construção da identidade política das trabalhadoras em
educação infantil.
249
trabalho na educação infantil, aproximando a identidade das trabalhadoras que atuam nesse
local de trabalho ao ideário da filantropia e da caridade e não do trabalho profissional e das
contradições que envolvem o mundo do trabalho.
Temos então que o sindicato dos trabalhadores em educação não tem se
configurado como uma forma de organização e educação política das trabalhadoras da
educação infantil no sentido de construir um sentido de coletivo para o seu trabalho. O sentido
coletivo de que falo não se refere apenas à ação coletiva no local de trabalho como forma de
ressignificação da ação coletiva como propõe Vianna (1999), mas, sobretudo, o de dar um
sentido de classe para o trabalho educativo nessas instituições, apreendendo seu trabalho como
uma possibilidade/necessidade de socialização dos produtos do gênero humano que a
sociabilidade capitalista expropria daqueles que vivem do seu trabalho.
Para dar esse sentido de classe não basta criar novas pedagogias, novas formas de
trabalho, modelos alternativos de organização do trabalho pedagógico centrados nas crianças.
É preciso encarar as lutas que definem o cerne constitutivo da organização social, presente na
forma de produção e apropriação da vida material, ou seja, na esfera da economia que tem na
categoria trabalho a mediação do metabolismo entre sociedade e natureza (LUKÁCS, 2003).
Nesse sentido, o posicionamento, a ação e a elaboração de representações e de
auto-representações de acordo com o projeto que tem como meta a libertação do trabalho e a
sua instituição como processo direcionado pelos trabalhadores livremente associados são
fundamentais.
A organização nos movimentos sindicais é um primeiro passo nessa direção, uma
vez que essas formas de auto-organização, mobilização e luta se constituem como elementos
mediadores entre o/a trabalhador/a indivíduo e o/a trabalhador/a categoria, entre uma categoria
profissional e a classe social a que ela busca se identificar. As lutas sindicais têm se
constituído, ao longo da histórica contradição entre trabalho e capital, como forma de
publicizar o privado, re-estabelecendo os nexos entre relações econômicas e poder político.
Desse modo, torna-se fundamental retomar a contribuição que a organização
político-sindical tem no processo de formação política dos trabalhadores, por meio da
articulação entre economia e política.
A capacitação da classe trabalhadora é o conjunto das práticas concretas expressas
por meio de instituições como o sindicato, partido, associações e outras formas de
organização e movimento. A organização político-sindical expressa em determinado
nível de capacitação para se inserir nos conflitos de classe e delimita um certo
terreno para a constituição de interesses. Esse nível de capacitação converte-se na
potencialidade da prática sindical. [...] Segundo nossa percepção, uma contribuição
250
fundamental [do sindicato no processo de transformação social é] a articulação entre
as esferas da economia e da política. Estabelecer em termos de uma prática concreta
o elo entre a inserção na esfera produtiva e as relações de poder. A luta por melhores
condições de trabalho e de vida contra interesses outros e de outros grupos explicita
a politização da economia, muitas vezes escondida sobre os mais variados mantos.
(MASCARENHAS, 2002, p. 83).
E como explicita Ribeiro (1987), a mobilização político-sindical se constituiu
como uma nova forma de “educar o educador”, politizando um lócus historicamente
identificado com o misticismo da “vocação”, do “sacerdócio” e da abnegação, conferindo-lhe
materialidade no conjunto das relações sociais. Foi esse mesmo movimento que criou
possibilidades para o estabelecimento de laços para além da corporação profissional que se
conformaram em solidariedade de classe junto aos demais trabalhadores. O movimento
sindical docente se consolidou, como assevera Ridenti (1995), como um espaço de
conformação de uma identidade de esquerda direcionada para a superação do sistema do
capital (não sem contradições e desafios).
Desse modo, é necessário considerar que a real democratização da educação
infantil, se limitada às reformas de concepções, projetos pedagógicos, teorias e formas de
organizar o trabalho pedagógico, não esgotará a face alienada e alienante que a educação de
maneira geral assume diante de sua subordinação à lógica do capital. É preciso então, como
aponta Mészáros (2005, p. 65), lutar pela “universalização da educação e da universalização
do trabalho como atividade humana auto-realizadora.”. É nesse sentido que situamos a
questão da necessidade de as trabalhadoras da educação infantil construírem uma ação e
identidade política, tendo o sindicato docente como elemento mediador para tal.
Poderíamos perguntar se as trabalhadoras da educação infantil já não se
organizam nos sindicatos dos trabalhadores em educação. Mas, já respondendo esse
questionamento, foi perceptível a falta de participação política dessas trabalhadoras, tanto nas
mobilizações e assembléias em que estive presente, como nos dados levantados junto ao DEI
no ano de 2003 e 2005 e nos seus depoimentos.
Durante as recentes greves
104
dos trabalhadores em educação da rede municipal
de ensino em Goiânia, foi perceptível a não participação das trabalhadoras da educação infantil
nas mobilizações e organizações da categoria. Os Cmei’s se mantiveram, em sua maioria, em
pleno funcionamento durante os dias de mobilizações, como foi explicitado anteriormente, sob
a alegação de que as atividades desempenhadas nessas instituições são, essencialmente,
104
- No ano de 2003 as categorias dos trabalhadores da educação vinculadas à SME paralisaram suas atividades
durante aproximadamente dois meses, na qual participei ativamente. No início do ano letivo de 2005, os
trabalhadores em educação da RMEG voltaram a paralisar suas atividades novamente por um tempo prolongado.
251
assistenciais e de primeira necessidade para a população, argumento esse que por si só
diferencia e separa essas instituições e seus trabalhadores do restante da categoria. Inclusive,
alguns componentes da direção do Sintego, em algumas falas durante as assembléias,
corroboram com essas argumentações. Estas concepções não só diferenciam as trabalhadoras
do restante da categoria, como também provocam uma cisão no quadro dos profissionais da
educação.
Essa situação explicitou a divisão ainda existente entre as trabalhadoras da
educação infantil e o restante da categoria docente. As lideranças sindicais, que nesse caso
deveriam atuar na articulação dos interesses, parecem não perceber o problema ou mesmo não
consideram a falta de vínculo dessas trabalhadoras com a categoria como uma questão a ser
compreendida e modificada.
A contradição permanece na tensão existente entre as trabalhadoras que não se
mobilizam coletiva e politicamente com a categoria a qual pertencem e o sindicato imerso no
imobilismo e nas perspectivas representativas, burocráticas e de participação.
Enfim, nos interessa saber como as trabalhadoras da educação infantil interpretam
essas contradições, ou seja, em que medida elas pensam e refletem sobre o sindicato, a
participação política, a identificação com as lutas e movimentos sociais. Para isso, parto das
perguntas e afirmações de Brecht supracitadas:
“Mas quem é o sindicato? Ele fica sentado em sua casa com telefone? Seus
pensamentos são secretos, suas decisões desconhecidas? Quem é ele?”.
Durante as entrevistas, questionei às professoras e agentes educativas sobre qual a
função do sindicato da categoria. Todas elas responderam a questão no sentido de projetar o
papel da organização político-sindical, explicitando a fragilidade das formas atuais de ação do
Sintego ao observarem o que não vem sendo realizado e apresentaram uma concepção marcada
pelo corporativismo. Para as trabalhadoras, o principal papel do sindicato da categoria seria o
de “defender os professores” (sem definir de quem os professores devem ser defendidos),
“lutar por melhores salários” e por “melhores condições de trabalho”.
Essas concepções são influenciadas pelo imaginário social sobre as práticas
sindicais que vêm sendo consolidadas historicamente, especialmente com o pacto estabelecido
entre trabalho e capital após a Segunda Guerra (ANTUNES, 2002). Essas representações sobre
o sindicato estão marcadas pelo corporativismo e pelo interesse imediato dos profissionais de
uma determinada categoria diante dos patrões. Isso é justificável na medida em que essas
252
trabalhadoras não têm uma história de militância política nos movimentos sindicais, nem
mesmo em outros movimentos sociais.
Porém, é preciso considerar o caráter contraditório que a questão do
corporativismo institui, pois, na medida em que os trabalhadores se organizam em torno dos
interesses imediatos “superam a atomização e agregam interesses comuns, [que] já contém um
germe de universalidade.” (FREDERICO,1994, p. 98). É nesse sentido que Mascarenhas
(2002) afirma a necessidade de o sindicato superar todo o reducionismo economicista-
corporativista, para se inserir numa perspectiva unitária da classe trabalhadora. Desse modo, o
sindicato pode se configurar como um instrumento de articulação entre o cotidiano e imediato
ao universal e mediado,
Pois o fator individual do processo, a situação concreta com suas exigências
concretas são, por sua própria essência, imanentes à sociedade capitalista presente,
encontram-se sob suas leis, estão submetidos à sua estrutura econômica. Somente
quando inseridos na visão geral do processo e relacionados à meta final, esses
fatores apontam de maneira concreta e consciente para além da sociedade capitalista
e se tornam revolucionários (LUKÁCS, 2003, p. 175).
Para Ridenti (1995, 41), o corporativismo é marcante no sindicalismo docente
sendo necessário, por isso, não exagerar nas análises que enquadram os professores em
posições políticas à esquerda. Segundo esse autor, “[...] apesar de [os sindicatos docentes]
propor teoricamente transformações estruturais na sociedade, sua prática político-sindical é
realizada sobretudo no nível mais restrito das reivindicações salariais, de “âmbito corporativo”,
como as lutas meramente salariais – cuja legitimidade, é inegável.”.
Essa interpretação não pode ser desvinculada da dialética entre os interesses
imediatos da classe trabalhadora por melhores condições de vida e trabalho e a meta final por
superação da sociedade de classes, processo esse que constitui o que Marx (2001) denominou
de passagem da classe em-si para classe para-si. Esse momento corporativo-econômico é
fundamental porque eleva à consciência os processos de exploração, expropriação e alienação
dos trabalhadores como conjunto social e não como indivíduo, traçando possibilidades de criar
laços de solidariedade, uma identidade política e a consciência de classe por meio da
organização e da luta político-sindical. Além disso, a luta por melhores condições de trabalho e
de vida para os/as trabalhadores/as em educação significa a possibilidade de instituir uma
educação de qualidade para as maiorias dominadas (RIDENTI, 1995; MASCARENHAS,
2004).
253
Dessa forma, as representações sobre o sindicato elaboradas pelas trabalhadoras
da educação infantil são um momento necessário para identificarem um lócus de articulação
dos seus interesses imediatos. O problema é que existem outros elementos que as afastam da
organização político-sindical da categoria e também da identificação com os demais
trabalhadores da educação, tais como a falta de habilidade política e de diálogo do sindicato, a
compreensão das necessidades específicas das trabalhadoras da educação infantil por parte do
sindicato, a imobilização do sindicato em relação a essas trabalhadoras e a sua
instrumentalização político-partidária.
Entre as vinte e quatro trabalhadoras entrevistadas (12 professoras e 12 agentes
educativas), nenhuma identificou práticas de mobilização, agitação e propaganda ou formação
política por parte do sindicato em seus locais de trabalho. Em suas respostas, foi possível
apreender que as práticas dos diretores sindicais em relação às instituições de educação infantil
e à suas trabalhadoras são de falta de diálogo, esclarecimento e envolvimento dessa parcela da
categoria. A maioria dessas trabalhadoras nunca percebeu a presença de dirigentes sindicais
em seu local de trabalho; ainda foi possível identificar, em seus depoimentos, a inexistência da
prática de organizar representação sindical por local de trabalho
105
, pelo menos no que se
refere aos Cmei´s. Em seus depoimentos, as trabalhadoras da educação infantil afirmam ainda
que a presença desses dirigentes nos Cmei´s só se dá em épocas de mobilização grevista ou
mesmo de eleição para a direção do sindicato
106
.
Na sua simplicidade, uma agente educativa revela o caráter pragmático, anti-
estratégico e apolítico da relação que o sindicato mantém com essas trabalhadoras: “De vez em
quando aparece. Assim, quando tem gre..., quando é data marcada para fazer alguma greve
elas aparecem aqui pra pedir pra gente entrar de greve também, mas aí é só quando tem mesmo
essas coisas que elas aparecem por aqui.” (Dalva).
Outra questão que podemos levantar foi o descaso e a ignorância do sindicato da
categoria com relação às trabalhadoras da educação infantil, especificamente. Ou seja, as
trabalhadoras expõem que o sindicato fomenta a diferenciação entre elas e o restante da
categoria em suas formas de ação.
Eu quando tive diálogo com o Sintego, eu tava lá na escola, ensino fundamental. Aí
eles iam na época da paralisação. Aqui durante o ano ninguém aparece, só sabe que
eles aparece porque no outro dia tem cartaz lá, sabe porque foi lá e pregou, então
105
- Contrariando o estatuto do sindicato que prevê como uma de suas formas de organização em seu artigo 23 o
conselho de representantes das unidades educacionais.
106
- A questão da eleição para a direção do sindicato apareceu com freqüência nas entrevistas, em função do
pleito que ocorrera no ano de 2005.
254
num tem esse negócio de informação, fizeram agora um jornalzinho, até eu recebi, e
é cobrado heim! Então falta essa comunicação, é a organização que eu falo, começa
daí, e não só na paralisação que eu tenho que ter informação. Tenho que ter
informação o ano inteiro se sou filiado naquilo ali, né? (Heloísa).
Uma professora denuncia a negligência do sindicato para com as trabalhadoras da
educação infantil ao afirmar que: “tem muita falha do sindicato com a gente, eu depois que eu
vim pra cá eu sinto isso, que na escola é muito mais comunicação do que aqui, e é muito mais
forte o movimento na escola do que no Cmei, aqui o Cmei é enfraquecido.” (Andréa).
Podemos inferir pelos depoimentos das trabalhadoras da educação infantil que o
sindicato da categoria não tem se constituído como uma organização que mobilize e articule os
interesses dessas profissionais, politizando suas ações e criando condições para a elaboração de
uma identidade política. A diretoria do Sintego parece não estar sensível às necessidades
dessas trabalhadoras, não se comunicam, não esclarecem os problemas imediatos, nem
tampouco os históricos, além de fomentar a marginalidade da educação infantil e de suas
profissionais no interior de um sistema básico de ensino já marginalizado pelas políticas
neoliberais de redução do Estado no que se refere às políticas sociais.
O mais agravante é que o sindicato nem mesmo reconhece as especificidades
dessa parcela de trabalhadores que se propõem representar. Os próprios diretores do sindicato
ainda representam a educação infantil a partir da sua “natureza” assistencialista. Em conversa
informal com a diretora de um dos Cmei’s, ela me revelou que, durante a greve de 2005, uma
dirigente sindical, ao visitar sua unidade para mobilizar as trabalhadoras que ali atuam, viu a
situação das crianças ali atendidas e se sensibilizou, deixando então de realizar seu papel de
organização e formação política das trabalhadoras. Nesse sentido, o aspecto assistencialismo
nessas instituições é uma das questões que tem gerado a distância entre sindicato e
trabalhadoras da educação infantil.
Esse desconhecimento é um dos motivos que mantém a cisão entre trabalhadores
da educação infantil em relação ao restante da categoria e é expresso pelas falas das
trabalhadoras que observam a distância entre as ações sindicais e as necessidades da área.
Uma das motivações da falta de mobilização do sindicato em relação às
trabalhadoras da educação infantil é a leitura
107
equivocada dos dirigentes sindicais – muito
baseada numa percepção assistencialista da educação infantil – de que essa etapa da educação
se trata de uma atividade de primeira necessidade (como ocorre, por exemplo, em hospitais e
pronto-socorros). Tal leitura pode ser considerada como equívocos de duas ordens: a primeira
107
- Leitura essa percebida nas ações e em diálogos informais com dirigentes sindicais durante as mobilizações
grevistas nos anos de 2003 e 2005.
255
se refere ao desconhecimento dos avanços recentes do campo da educação infantil e a
necessidade de o sindicato colaborar com a profissionalização de suas trabalhadoras; a
segunda ordem de equívocos diz respeito sobre o quê os dirigentes sindicais consideram como
primeira necessidade. Podemos questionar, então, se a educação, em outras etapas, não se
configura como uma necessidade de primeira ordem para as classes populares? Dependendo
da resposta, aponta-se a tendência de um caráter restrito, corporativo e apolítico da instituição
sindical dos trabalhadores em educação de Goiás.
Uma professora, consciente dessa leitura, se expressa da seguinte forma quando
questiono se o sindicato tem representado os interesses das trabalhadoras das instituições de
educação infantil: “Não, porque os profissionais da educação infantil não contam com o apoio
durante os movimentos grevistas, sendo impossibilitados de participar ao alegarem que somos
profissionais de primeira utilidade pública”. (PI 7).
Essas respostas indicam que o sindicato tem mantido uma postura de
afastamento em relação às trabalhadoras da educação infantil, recorrendo ao argumento do
atendimento de primeira necessidade como um elemento que engessaria a mobilização nas
greves da categoria, visto que tais serviços têm uma normatização diferenciada quanto às suas
paralisações, pois não poderiam parar suas atividades totalmente. Essa questão expressa a
confusão que se tem quanto ao caráter dessas instituições, se educacionais ou assistenciais,
mantendo essa dicotomia e servindo de desmobilização de suas trabalhadoras.
Na última greve, essas questões se mostraram evidente, pois as trabalhadoras da
educação infantil nem sequer eram mencionadas nas propostas de mobilização e reivindicação
do sindicato e da própria categoria. O desconhecimento da área e a caracterização histórica
dessas como entidades assistenciais têm dificultado a organização política dessas
trabalhadoras que têm sofrido constantes impasses nas políticas oficiais para a área, sem
respondê-los organizadamente.
Isso é preocupante por desvelar o desconhecimento das lideranças sindicais em
relação à educação infantil, suas especificidades, seus limites e avanços. Essa condição é
preocupante, inclusive por ser o sindicato um agente social fundamental para as conquistas
futuras e presentes dessa etapa do ensino básico
108
. Quando questionei uma professora sobre o
papel do sindicato para com as trabalhadoras da educação infantil, ela responde:
108
- Segundo Barbosa e Nogueira (2001) esse desconhecimento das especificidades da educação infantil por parte
dos setores politicamente organizados da educação dificulta, até mesmo, na elaboração de políticas para o setor.
256
Procurar compreender mais o papel da educação infantil, porque ainda não são todas
as pessoas que conhece, que sabe qual que é. Ainda tem muita gente que pensa que é
creche, vem aqui pra comer, tomar banho e ir embora. Ainda não vê qual que é a
verdadeira função de ta educando. E participar mais, interagir mais junto com os
professores, com a direção, com a coordenação. (Aline).
Embora as próprias trabalhadoras não consigam definir o papel pedagógico e
político da educação infantil distanciando das concepções da ideologia assistencialista, como
pudemos analisar anteriormente, elas vêem a necessidade de superar essa condição e percebem
no sindicato um agente importante. Aliás, vimos anteriormente o quanto as organizações
sindicais dos trabalhadores docentes têm desempenhado, desde finais do século XIX, um papel
fundamental na profissionalização do magistério (NÓVOA, 1991; COSTA, 1995,
HYPÓLITO, 2001). Aspecto esse que, na literatura sobre as profissionais da educação infantil
são secundarizados, por concepções que consideram a formação profissional-acadêmica como
necessidade primeira (ALVES, 2002; ONGARI e MOLINA, 2003; SILVA,I., 2001;
CERISARA, 2002).
Sem dúvida que o desenvolvimento da profissionalização da educação infantil
perpassa pela formação profissional qualificada em universidades, envolvendo ensino-
pesquisa-extensão, mas esse processo não pode se dar sem o envolvimento efetivo daquelas
que estão diretamente vinculadas às instituições, ou seja, as trabalhadoras da educação infantil.
É insuficiente a constituição do pensamento crítico, da mudança de concepções e do papel das
professoras e agentes educativas, sem a alteração da realidade precária do trabalho nessas
instituições. E a possibilidade de conquistar espaços coletivos de planejamento e estudo
perpassa pela organização política dessas trabalhadoras e por sua luta por melhores condições
de trabalho e por uma vida digna, articulada à novas concepções, ao pensamento crítico e à
constituição de um novo papel para as profissionais da educação infantil.
A organização política dessas trabalhadoras passa pelo seu sindicato e o
desconhecimento do sindicato em relação às profissionais da educação infantil é parte
constituinte do recíproco alheamento que existe entre esses agentes sociais individuais e
coletivo. Tanto o sindicato da categoria desconhece as necessidades e reivindicações das
trabalhadoras da educação infantil, quanto essas desconhecem o papel do sindicato.
Assim, para responder a questão que Brecht faz em seu poema ao perguntar quem
é o sindicato, este é visto e compreendido pelas trabalhadoras da educação infantil como uma
instituição “presente/ausente”. Presente porque elas sabem que existe, tem uma função de
defender seus interesses e lutar por melhores salários e condições de trabalho, mas ausente
porque elas não vêem suas ações e, principalmente, seus resultados.
257
A questão é que essa invisibilidade do sindicato também é provocada pela falta de
participação política dessas trabalhadoras. Nesse sentido, cabe retomar os versos engajados do
poeta Bertold Brecht ao declamar “Nós somos ele; você, eu, vocês, nós todos; Ele veste a sua
roupa, companheiro e pensa com sua cabeça; Onde moro é a casa dele e quando você é
atacado, ele luta”. O sindicato somente irá reconhecer as necessidades, problemas e a
realidade dos Cmei’s como local de trabalho e de suas trabalhadoras, a partir do momento em
que essas se fizerem ver e ouvir, ao lutar conjuntamente com a categoria e expor a exploração
e precariedade da educação infantil. As trabalhadoras da educação infantil precisam se fazer
protagonistas (CANESIN, 1999) e assenhorear-se do seu destino (MASCARENHAS, 2000),
lutando com os demais trabalhadores da educação, para se lançarem ao projeto histórico da
totalidade do trabalho.
Outra questão é que a constituição das instituições da educação infantil, como
parte do sistema básico de ensino, ocorreu durante os anos em que se deu o aprofundamento
das políticas neoliberais no país (década de 1990) que têm atingido profundamente as
organizações dos trabalhadores, especialmente os sindicatos do setor público. A minimização
do Estado e a deterioração das parcas e limitadas políticas sociais existentes no país,
associadas à concorrência voraz instituída no interior da classe trabalhadora por meio do
desemprego estrutural, fazem com que qualquer mobilização grevista de trabalhadores, que
atuem no setor público, se configure como uma afronta às parcelas mais exploradas e
excluídas do capitalismo tardio.
É também nesse período que há uma mutação dos sindicatos para uma postura
de negociação com os setores patronais, incorrendo numa descaracterização dos sindicatos (e
de outras organizações vinculadas às classes populares) como lócus de formação da
identidade política das classes trabalhadoras.
A inserção das trabalhadoras da educação infantil no interior da categoria dos
trabalhadores da educação aconteceu já num período em que o movimento sindical
experimenta uma crise de organização e diretrizes. Os depoimentos das trabalhadoras
expressam certo ceticismo quanto à ação sindical, que reflete a crise dessa forma de
organização de trabalhadores e, por outro lado, aponta para uma espécie de apolitização das
instituições de educação infantil e de suas profissionais.
Quando questionadas (tanto nos questionários, quanto nas entrevistas) se
participaram ou participam do movimento sindical, a grande maioria das trabalhadoras
respondeu negativamente, lançando mão de diferentes justificativas como: desconhecer a
questão; ter se desfiliado; contribui com o imposto sindical, mas não participa. Quando as
258
trabalhadoras participam, têm as assembléias como referência de “atuação”. Questiono ainda
sobre a participação em movimentos sociais e/ou partidos políticos e todas as profissionais
investigadas responderam que não participam. Os motivos são variados e podem ser
classificados da seguinte forma: instrumentalização político-partidária do sindicato; falta de
união dos professores; desconhecem o que seja um movimento social e sindical; não há
resultados nas mobilizações; greves prejudicam a população e as trabalhadoras que precisam
repor dias letivos; não têm tempo; separam a questão profissional das questões políticas; não
gostam de política.
Todas essas questões apontam para o imobilismo e para a inação dessas
trabalhadoras, o que configura uma identidade fragmentada, desagregada e heterônoma diante
das ideologias de conveniência, das condições alienadas e degradadas do exercício de um
trabalho fundamental de produção da humanidade em cada indivíduo e do poder em voga. Ao
negar a participação política em organizações político-sindicais, movimentos sociais e/ou
partidos políticos, e até mesmo a própria política, essas trabalhadoras se colocam a serviço da
ordem social e colaboram com a reprodução de suas próprias condições de exploração e jugo.
Segundo Dallari (1999, p. 34),
Há os que não procuram exercer plenamente seu direito de participação política e se
limitam a cuidar dos assuntos de seu interesse particular imediato dizendo que não
gostam de política ou não entendem disso. Acham que esse é um assunto para
“políticos”. Essa atitude revela inconsciência, demonstra grande alienação, pois
quem tem os olhos abertos e enxerga a realidade percebe que não existe a
possibilidade de fazer completa separação entre assuntos particulares e os de
interesse público. Assim sendo, a participação não depende de se desejar ou não,
pois mesmo aqueles que não tomam qualquer atitude são utilizados pelos grupos
mais ativos, visto que o silêncio e a passividade são interpretados como sinais de
concordância com as decisões do grupo dominante.
Mas, como destaca Demo (2001), não há o divórcio entre a política e a
economia, o que constitui a liberdade e emancipação humana como projeto de luta política e
econômica. E como já abordamos anteriormente, o sindicato tem como potencialidade central
na educação política dos trabalhadores a articulação entre a esfera econômica e a política,
relacionando produção da vida material e relações de poder.
Os depoimentos das trabalhadoras evidenciam ainda o distanciamento dos
trabalhadores para com o sindicato da categoria afirmando ser esse um representante político-
partidário, privilegiando os interesses das siglas partidárias em detrimento dos interesses da
categoria. Uma professora faz uma crítica ao sindicato, questionando o seu aparelhamento
259
político-partidário como elemento que se constitui como um fato que limita a organização
coletiva e mobilização da categoria:
O papel do sindicato seria tá lutando pelos nossos direitos, no entanto, o nosso
sindicato que temos aqui em Goiânia, ele não faz isso, ele trabalha visando,
objetivando é o melhor pro grupo que está lá, ele tem o objetivo de crescer
politicamente, tanto que nós temos Presidente que era presidente do nosso
sindicato, que é deputado, aquele moço que tá lá em cima, que é o Delúbio, que era
do nosso grupo, que também aconteceu tudo isso. Nosso presidente que era Osmar
Magalhães, que era o chefe do governo do outro prefeito, então assim, a gente tem
visto que o que o nosso sindicato fez de uns dez anos pra cá, ou mais do que isso,
foi só trabalhar na função da política e deles próprios, num trabalhou em função do
professor, até porque quando o Osmar tava na direção, na presidência do nosso
sindicato ele dizia uma coisa, quando ele subiu lá foi totalmente diferente, então
assim, eu vivi essa crise política de sindicato, toda, dos anos setenta até agora no
ano dois mil, então assim, nós não vimos nada que o sindicato fez pra nós, ele não
fez. (Almerinda).
O “descrédito” em relação ao sindicato não é só referente ao seu aparelhamento
partidário, mas também quanto às suas formas de ação e de negociação. Essa representação
vem sendo construída principalmente em virtude da estreita vinculação entre Sintego e o
Partido dos Trabalhadores, o que vem sendo identificado pelas vacilações das direções
quando o conflito tem como opositor uma gestão desse partido.
Essas falas evidenciam a fragmentação que os trabalhadores vêm sofrendo e as
dificuldades de se projetar ações coletivas vinculadas a grandes projetos utópicos, que
busquem não só modificar o cotidiano do trabalho e dos interesses imediatos, mas também
objetive transformações estruturais nas formas de produção e reprodução da vida material. A
dificuldade de abarcar projetos e ações coletivas – dos quais, os sindicatos têm sido (com suas
dificuldades e contradições) historicamente protagonista – expressam um individualismo
exarcebado e um pensamento pragmático e fragmentário. Essa perspectiva é emblemática na
fala de uma professora: “[...] estou desacreditada no nosso sistema político, procuro agir
sozinha sem espera pelos nossos dirigentes”.(sic) (PII 30).
Essa fragmentação entre direção e base é permeada também pela identificação
do sindicato como “trampolim” para uma carreira política dos seus dirigentes. Essa
concepção, articulada aos recentes escândalos envolvendo ex-dirigentes do sindicato docente
local, que permeia o imaginário das trabalhadoras da educação infantil cria a situação de
conceber o sindicato como “eles” e não como um “nós”:
Essa ultima né, uma funcionaria do Sintego, essa Neide Aparecida tava envolvida
com outras coisas, aí também surgiu o nome dela, então surgiu o nome dela, então
eu acho que certas coisas faz você pensar, não é pensar é você questionar, será que
esse sindicato ta mesmo reivindicando meus direitos, ou será que ele ta mais
260
pensando na questão dele. Por que eles, eles tem objetivo também, de ta ali, de ta
organizando o que eles organizam em si; então é a questão que às vezes deixa você
em duvida a respeito de que eles tão cumprindo ou não o papel deles como né,
representantes dos funcionários de educação in, de educação em si, não só de
educação infantil. (Nair).
As organizações sindicais têm sido compreendidas como instâncias
representativas e não como espaço orgânico de militância dos trabalhadores. A concepção de
que os sindicatos só agem durante os atos e greves (quando se colocam em maior visibilidade)
permeiam as falas das profissionais da educação infantil que vêem os dirigentes como
“aqueles” e não como um “nós”
109
, engessando as possibilidades políticas de ação da
categoria em torno de questões amplas da educação e da sociedade em geral e da própria
constituição de uma identidade de classe por parte dessas trabalhadoras.
Os depoimentos das profissionais da educação infantil corroboram com alguns
elementos que Vianna (1999) observa como fatores que compõem a crise da ação coletiva
docente. Questões como divergências político-ideológicas nas entidades, distância entre as
lideranças das associações/sindicatos e o professorado, a ausência de prática de participação,
disputas internas no sindicato e o isolamento do professorado são observados nas falas das
trabalhadoras da educação infantil da RMEG.
Esses elementos, vinculados às concepções e estruturas assistencialistas do
trabalho educativo nas instituições de educação infantil, a precariedade das condições e
relações de trabalho nessas instituições e a conseqüente dificuldade de construção da
identidade profissional das trabalhadoras da educação infantil articuladas à crise da
organização político-sindical produzida pela reestruturação produtiva e pela ofensiva
neoliberal decorrente da primeira, ao ataque às perspectivas e projetos de uma outra
sociabilidade têm dificultado a construção de uma identidade política por parte dessas
trabalhadoras.
A descaracterização do sindicato como espaço de organização, ação e construção
da identidade política dos trabalhadores, provocada pelos impactos das transformações no
mundo do trabalho e pelas ofensivas neoliberais, fragmenta e heterogeniza a classe
trabalhadora, que passa a reproduzir a expectativa de unicidade desse modelo societal.
109
- Interessante notar que não só as professoras da Educação Infantil compreendem os sindicatos a partir da
lógica da democracia representativa. Numa outra pesquisa (SILVA, 2002), observo que professores (de
Educação Física) creditam ao sindicato a tarefa representativa ou os papéis burocráticos de intermediação na
locução com o Estado quando há pendências jurídicas entre trabalhador e poder público, e não como espaço de
construção de uma identidade coletiva dos trabalhadores da educação, na luta por uma educação pública
realmente democrática para as maiorias e por uma outra sociabilidade.
261
Entretanto, como observa Ricardo Antunes (2003), é no complexo problemático
das classes sociais, do seu agir e do seu fazer-se, emergidos da materialidade histórica
contemporânea, que aflora a necessidade de elementos de mediação entre o indivíduo e a
classe (como é o caso do sindicato) e entre a classe e o gênero humano emancipado (papel do
partido de classe).
Nesse sentido, é importante reafirmar o papel fundamental que o sindicato
exerce na constituição de uma identidade política, com suas contradições, limites e,
sobretudo, possibilidades. É preciso, sem dúvida, estabelecer uma crítica franca e aberta com
as limitações que têm caracterizado as organizações político-sindicais das classes
trabalhadoras, tais como o economicismo, o corporativismo e o burocratismo. Mas é
necessário manter acesa a sua histórica tarefa de organizar os trabalhadores e mediar as
relações imediatas com o objetivo universal de emancipação do gênero humano por meio da
superação do sistema do capital. Retomando o poeta Brecht:
Não se afaste de nós; Podemos errar e você ter razão, portanto não se afaste de
nós!; Que o caminho curto é melhor que o longo; Ninguém nega, mas quando
alguém o conhece; E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve sua
sabedoria?; Seja sábio conosco; Não se afaste de nós!”.
Assim, é necessário afirmar o sindicato como instituição que organiza a luta dos
trabalhadores diante dos conflitos e contradições sociais educando-os politicamente. Como
observa Mascarenhas (2002), os sindicatos articulam as dimensões econômicas e políticas
publicizando o conflito existente entre capital e trabalho ou, no caso dos trabalhadores da
educação pública, as contradições entre trabalhadores e Estado capitalista. Ao tornar público
esses conflitos, os trabalhadores organizados em sindicatos ganham visibilidade,
possibilitando o estabelecimento de laços identitários entre os trabalhadores. Portanto, o
movimento sindical, ainda que esteja em crise na atual conjuntura, constitui-se como
elemento central na composição da identidade política dos trabalhadores.
Como assinala Mascarenhas (2004, p. 25),
O movimento sindical articula as esferas da economia e da política. Estabelece o
elo entre a esfera produtiva e as relações de poder. A luta por melhores condições
de trabalho e vida contra os interesses de outros grupos politiza a economia,
desnudando as relações de poder. É fundamental para a classe trabalhadora esta
capacidade do movimento sindical de articular a esfera produtiva com as relações
de poder. Destaca-se na capacidade de o movimento sindical articular economia e
política a formação política dos trabalhadores.
262
A violência estrutural, materializada pelo crescimento do desemprego e do
emprego precarizado, lança os trabalhadores numa concorrência entre a própria classe, que na
luta (muitas vezes individual) pela sobrevivência, são levados a estranhar os outros que
compõem sua própria classe. Nesse sentido, os trabalhadores da educação, ao buscar a
profissionalização e a valorização de seu trabalho, em muitos casos, têm objetivado a negação
da proletarização de seu trabalho, afastando sua luta dos enfrentamentos de classe como
observam (APPLE, 1995) e (SILVA JÚNIOR, 1993). Essa perspectiva vai de encontro com a
condução de uma práxis política constituinte de uma identidade de classe, por parte dos
trabalhadores da educação, elaborando um movimento distinto daquele em que os
trabalhadores da educação aproximaram-se do restante da classe que vive do trabalho,
buscando instituir um novo projeto de sociedade.
É com essa conjuntura que as trabalhadoras da educação infantil convivem,
dificultando suas possibilidades de construir ações, posturas e valorações vinculadas a uma
identidade política de classe. Entretanto, como observa Antunes (1995), a oposição irracional
e oportunista aos sindicatos e a empresa em constituir movimentos alternativos não resolvem
as dificuldades de organizar o movimento dos trabalhadores.
A inserção orgânica das trabalhadoras da educação infantil no sindicato da
categoria, levando o debate sobre a importância, a especificidade e as reivindicações da área,
juntando-as às outras questões que norteiam as ações dos sindicatos da educação são pontos
de partida para a construção de uma prática política junto à categoria, caminho esse necessário
para a construção de uma identidade política de classe.
Outra questão importante a ser articulada é quanto à caracterização do trabalho
docente no interior das instituições de educação infantil. A permanência das concepções de
extensão do lar, que caracterizam o trabalho docente na educação infantil como reprodução
das tarefas do lar, como atividades de mãe/tia, reproduz uma ideologia que escamoteia o
caráter assalariado e profissional que a atividade docente possui, constituindo-a como espaço
apolitizado e desvalorizado sócio-economicamente.
Como observa Freire (1993, p. 11),
Ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade
no seu cumprimento enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser
professora implica assumir uma profissão enquanto não se é tia por profissão. Se
pode ser tio ou tia geograficamente ou afetivamente distante dos sobrinhos mas não
se pode ser autenticamente professora, mesmo num trabalho a longa distância,
“longe” dos alunos. (grifos meus).
263
Como observa o pensador, a redução da professora à condição de tia significa
uma armadilha ideológica, cuja tentativa de “adocicar” a vida da professora significa o
“amaciamento” da sua capacidade de luta. Os argumentos que buscam caracterizar o trabalho
docente como uma tarefa desqualificada, como uma atividade de “tias” configuram-se como
uma “sombra ideológica” que escamoteia a realidade e domestica os sujeitos. Nesse sentido,
“quanto mais aceitarmos ser tias e tios, tanto mais a sociedade estranha que façamos greve e
exige que sejamos bem comportados”. (FREIRE, 1993, p. 49).
A construção da identidade política das trabalhadoras da educação infantil passa
necessariamente pela negação da (des)caracterização do seu trabalho, ou seja, pela luta por
sua profissionalização juntamente com o restante da categoria dos trabalhadores da educação.
No entanto, a luta pela profissionalização do trabalho docente não significa a recusa de se
“rebaixar” ao proletariado, mas sim pela compreensão de que o trabalho é condição de
humanização e que a alienação do trabalho se configura como um efeito do modo de produção
capitalista que atinge o mundo do trabalho nas suas diversas esferas composto por uma grande
massa de assalariados que experimentam condições semelhantes de exploração e pobreza. Tal
compreensão é condição sine qua non para que se construa uma identidade política vinculada
aos interesses da classe que vive do trabalho que, por sua vez, luta pela implantação de um
sistema de educação infantil universal, público gratuito e de qualidade para as maiorias.
264
Considerações Finais
Ao buscar analisar a identidade política das trabalhadoras da educação infantil,
procurei traçar os elementos essenciais da constituição das instituições de educação infantil
como local de trabalho e os diversos fatores, conflitos e contradições que concorrem para isso,
bem como compreender as características do trabalho docente das educadoras dessas
instituições que, após as promulgações da Constituição Federal de 1988, do ECA e da
LDB/1996, foram inseridas no conjunto da categoria dos trabalhadores da educação. Essas
questões revelaram, no decorrer da pesquisa, categorias que expressam contradições nos
caminhos de constituição da identidade política das trabalhadoras da educação infantil, tais
como: “natureza” assistencialista do trabalho educativo na educação infantil; trabalho
precarizado na educação infantil; a feminização/sexualização do trabalho docente na educação
infantil; sindicato docente como elemento mediador da construção de uma identidade política.
As mudanças estruturais no mundo do trabalho, envidadas pelo processo de
reestruturação produtiva, têm provocado uma maior fragmentação, heterogeneização e
complexificação da classe trabalhadora, causando impactos nas formas de organização e de
ação política dessas, frente aos desafios que a sociedade capitalista tem imposto àqueles que
vivem da venda de sua força de trabalho.
Essa conjuntura explicita como o capitalismo tem procurado gerenciar uma crise
que se arrasta desde meados da década de 1970, provocando mudanças significativas nas
forças produtivas e nas relações de produção, utilizando a classe trabalhadora como “bode
expiatório” do seu colapso.
Os efeitos da reestruturação produtiva, das mudanças no mundo do trabalho e da
(in) conseqüente política neoliberal sobre a classe trabalhadora são evidentes e crescentes. O
aprofundamento do desemprego estrutural e do emprego precário, o aumento significativo da
miséria e da exclusão e a ofensiva sobre as formas organizativas de luta e resistência dos
trabalhadores (seja cooptando ou reduzindo suas formas de ação) são expressões reais da atual
conjuntura de um capitalismo tardio que massacra e oprime as maiorias, que são os
responsáveis pela produção de toda a riqueza humana. Todos esses elementos têm dificultado
a articulação da classe trabalhadora em torno de uma identidade política.
Ao mesmo tempo, é concreto o movimento de ampliação da classe trabalhadora,
a qual poder-se-á categorizar como classe-que-vive-do-trabalho, dadas as condições atuais do
precarizado mundo do trabalho. A classe-que-vive-do-trabalho já não mais se circunscreve
265
apenas aos operários de fábrica, reúne sim todo o conjunto de indivíduos que necessita vender
sua força de trabalho em troca de salário, seja no campo ou na cidade, na fábrica ou na escola,
no comércio ou na creche...
Desse modo, essa ampliação da classe-que-vive-do-trabalho vem se constituindo,
principalmente, pelo aumento significativo do emprego da força de trabalho no setor de
serviços. Os próprios direitos sociais conquistados no Estado de bem-estar se configuram
nessa ordem sob os auspícios do mercado, tornando questões como saúde, moradia e
educação como nichos a serem explorados. E, ao se tornarem mercadorias, aqueles que
produzem esses serviços são reificados também.
Ao transformar os homens e mulheres em coisas, isto é, em personificações das
relações econômicas, o sistema do capital provoca uma série de contradições que instigam as
classes dominadas a se organizarem e lutar em busca de condições dignas de vida e trabalho.
Ao compartilhar o sofrimento, a exploração, as necessidades, os desejos e projetos, os
indivíduos passam a elaborar representações sobre si mesmos e sobre os outros, identificando
um “nós” naqueles que partilham a condição de explorados e o “outro” como aquele que
enriquece às custas de seu trabalho. Trabalhadores e trabalhadoras passam, por meio da luta, a
negar a condição de mercadoria que o fetichismo das relações de produção capitalistas
impõem à totalidade do trabalho e buscam a efetivação do gênero humano por meio da
libertação do trabalho.
Esses processos de exploração, degradação, expropriação não se dão apenas no
âmbito da esfera produtiva. Essas relações, processos e estruturas ocorrem também nas
demais esferas do mundo do trabalho, como o campo e o setor de serviços, dentre os quais a
educação e a educação infantil. Nesses mesmos espaços, as contradições se revelam e os
trabalhadores que vendem sua força de trabalho nesses locais também se organizam e lutam.
Nesse sentido, os trabalhadores da educação, juntamente com o funcionalismo
público, durante as décadas de 1980 (com mais intensidade) e de 1990 (já com sinais de
refluxo) tornaram-se importantes atores sociais na luta organizada dos trabalhadores diante
dos conflitos e contradições da sociedade. A luta pela democratização do país, por uma
sociedade mais justa e igualitária, pela valorização dos trabalhadores e pela democratização
da educação formou as bandeiras de lutas que constituíram os sindicatos dos professores
durante as décadas de 1980 e 1990 e que, desde meados da década de 1970, passou a viver e
experimentar as angústias, necessidades, conflitos, esperanças e enfrentamentos junto aos
trabalhadores em geral.
266
Esse momento evidenciou a aproximação dos professores à compreensão da
natureza assalariada e alienada de seu trabalho que os identificava com o restante da classe
trabalhadora, iniciando um afastamento a fórceps das ideologias que concebem o trabalho
docente como sacerdócio/vocação. A aproximação dos professores ao conjunto da classe
trabalhadora constitui-se como um momento histórico em que essa categoria intensificou um
processo de composição de uma identidade política de classe a partir, principalmente, da
mediação dos sindicatos.
A compreensão de que a categoria dos trabalhadores da educação tem buscado, a
duras penas, por meio de seus sindicatos, organizar suas ações políticas, norteadas pelo
projeto histórico da classe que vive do trabalho, constituiu-se como o ponto de partida para
entender se as trabalhadoras da educação infantil têm elaborado uma prática e uma identidade
políticas. Nesse sentido, a questão que moveu este trabalho foi se essas trabalhadoras, que só
recentemente passaram a integrar a categoria dos trabalhadores da educação, têm-se inserido
no movimento de composição de uma identidade política de classe iniciado pela
sindicalização dos/das trabalhadores/as docentes no final da década de 1970 no Brasil.
Para tanto, foi necessário penetrar nos meandros do trabalho educativo na
educação infantil, buscando revelar os aspectos históricos da constituição das instituições de
educação infantil a partir da modernidade. Essas mediações só foram possíveis, dada a
interpretação do fenômeno educativo como produto do trabalho – entendido como categoria
ontológica – e ele mesmo se configurando como trabalho. Nessa perspectiva, não é possível
compreender o papel das instituições de educação infantil deslocadas da materialidade
histórico-social em que elas se concretizam (sistema do capital), nem tampouco deixar de
considerar o projeto social a que elas têm se vinculado (capital social total). Entretanto, é
preciso considerar também o aspecto contraditório presente na vinculação dessas instituições
a projetos antagônicos à lógica do capital.
Foi possível observar que as instituições de educação infantil têm sido
caracterizadas, historicamente, pelo atendimento dos filhos e filhas de pais trabalhadores sob
duas determinações centrais: a) liberar a força de trabalho feminina para o seu emprego no
mundo do trabalho, seja na esfera da produção (fábricas) ou na da reprodução (trabalho
doméstico e demais atividades realizadas no setor de serviços); e b) a sociabilização da prole
das classes trabalhadoras, desde a mais tenra idade, para o exercício do trabalho alienado e da
submissão e subordinação em relação à ordem social.
Essas instituições, criadas no século XIX desenvolveram-se intrinsecamente
vinculadas à história da mulher trabalhadora e da infância pobre. Tais instituições tinham – e,
267
em certa medida, ainda têm – um caráter educativo assistencialista que se estendeu às
camadas populares, ora como “dádiva” e “benesses” da igreja e das elites, ora como tutela
estatal. A pedagogia assistencialista propugnada por essas instituições apresenta-se como um
atendimento “pobre para os pobres”, por intermédio de uma pedagogia da submissão e uma
educação assistencialista.
Desse modo, a instituição de educação infantil foi criada sob as marcas do
domínio de classe, reproduzindo essas relações ao se firmar, estruturalmente, de forma dual e,
ideologicamente, assistencialista, caritativa e filantrópica. Essas características não foram
superadas e se mantêm, atualmente, sob novas colorações políticas, ideológicas, econômicas,
entretanto, baseada na mesma raiz de subjugação e perpetuação do domínio do capital sobre o
conjunto do trabalho. Exemplo disso são as determinações do governo mundial de fato sobre
as diretrizes político-pedagógicas para a educação infantil no país.
Desde o final da década de 1970, tem-se intensificado no país um profícuo
debate sobre o atendimento educacional de crianças menores de 07 em instituições
devidamente equipadas e profissionais qualificados para isso. Esse debate segue uma
perspectiva que compreende a criança como sujeito de direito, como cidadã que produz
história e cultura, cujos direitos devem ser realizados de forma que compreenda a infância
como um estágio importante da vida do sujeito, rico de interações e de aprendizagens, na qual
deve-se respeitar o tempo e o espaço de ser criança.
A promulgação da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do
Adolescente em 1990 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9394 de 1996,
conformam-se como marcos legais que expressam importantes conquistas da sociedade civil
no que tange ao atendimento educativo de crianças de 0 a 06 anos de idade. A consideração
da criança como cidadã, possuidora de direitos (dentre eles a educação) reafirma as
responsabilidades do Estado quanto à materialização de políticas sociais de atendimento à
infância nas diversas áreas: saúde, assistência social, educação, lazer e esporte etc..
Seguindo essas orientações, a LDB/1996 contempla a educação infantil como
primeira fase do Sistema Básico de Ensino, garantida pelo Estado de forma pública e gratuita.
Essa premissa legal inaugura um novo patamar no atendimento educativo da infância, cuja
responsabilidade que antes era remetida aos órgãos do poder público responsáveis pela
assistência social passa a ser organizada e gestada pelas secretarias de educação.
Essa mudança altera significativamente o quadro de trabalhadores das
instituições de atendimento à infância (as então chamadas creches), que eram compostas
quase que exclusivamente de voluntárias e/ou trabalhando com um salário irrisório sem
268
regulamentação. Boa parte do quadro de trabalhadores dessas instituições (agora) de educação
infantil, pós LDB, passa a ser formada por professoras com formação mínima de magistério
ou Normal Superior, que compartilham os sabores e dissabores do trabalho docente no país.
Em termos legais, as trabalhadoras da educação infantil passam a compor a
categoria profissional dos trabalhadores da Educação, mas concretamente ainda permanecem
afastadas da organização da categoria.
O trabalho docente nas instituições de educação infantil é marcado por
contradições sobre a sua “natureza”, confundindo-se com atividade assistencial voltada para
crianças menores de 07 anos e afastando-se da perspectiva da profissionalização das
trabalhadoras. A “natureza” assistencialista do trabalho educativo nas instituições de educação
infantil se constitui como esquemas ideológicos cristalizados e responsáveis, em boa medida,
pela manutenção do caráter precário das trabalhadoras da educação infantil, expresso pelo
grande número de profissionais empregadas em regime de contrato temporário.
Essa subvinculação no emprego se configura como um limite concreto à
constituição da identidade política das trabalhadoras da educação infantil, pois estas vivem
sob a “sombra do medo do desemprego”. Nesse sentido, vale mais manter o emprego do que
lutar por concursos, melhores condições de trabalho e salários dignos.
A precariedade do trabalho na educação infantil é encontrada não só nas relações
de trabalho e nos contratos de emprego de suas trabalhadoras, mas também nos próprios
locais de trabalho que se constituem a partir da improvisação de prédios, da falta de materiais
e de estrutura e da ausência de recursos financeiros específicos para a área.
Outra contradição explícita é a feminização/sexualização do trabalho nas
instituições de educação infantil, que identifica as atividades ali desenvolvidas como
reprodução das tarefas de mãe (maternagem e trabalho doméstico) e extensão do lar. Essa
concepção aproxima-se da perspectiva produzida pela sociedade capitalista de que as
atividades referentes à reprodução não se constituem como trabalho. Dessa forma, não-
trabalhadoras que desempenham suas tarefas “naturais” de mulher não se rebelam, não se
mobilizam e nem tampouco fazem greve.
Os determinantes contidos na feminização/sexualização do trabalho nas
instituições de educação infantil revelam os dois pontos fundamentais e intrinsecamente
articulados que incidem sobre as possibilidades da construção da identidade política de tais
trabalhadoras, quais sejam: a questão de gênero presente nas relações de poder entre homens e
mulheres historicamente constituídas e socialmente reproduzidas; e os condicionantes dos
269
conflitos entre as classes sociais fundamentais (trabalho e capital), mediadas pelas estruturais
e hierárquicas divisões sexual e social do trabalho.
Os conflitos e relações de poder entre homens e mulheres são estabelecidos nas
relações existentes entre os gêneros, dadas determinadas circunstâncias históricas e
correlações de forças presentes no interior da sociedade; do contrário, corre-se o risco de
tornar a categoria gênero como uma abstração genérica, contrariando as próprias perspectivas
das autoras, que entendem o gênero como uma categoria fundada em relações sociais
historicamente constituídas. Outra questão é que a afirmação de que existe uma “ética
alternativa feminina” pode se configurar como uma interpretação maniqueísta que simboliza
as mulheres como “naturalmente” boas, solidárias e afetivas e os homens essencialmente
concorrentes e racionais.
Enfim, são legítimas as expectativas e metas que buscam estabelecer relações
mais simétricas e igualitárias entre homens e mulheres, ou seja, que almejam superar os
esquemas de poder baseados no patriarcalismo e no domínio de um gênero sobre outro.
Entretanto, é necessário ir além! É fundamental buscar instituir uma nova sociabilidade que
vá para além do capital e, portanto, de todas as formas de exploração e descaracterização do
gênero humano imputado pela subordinação do trabalho aos desígnios da acumulação do
capital. E, nesse sentido, a questão da superação da exploração do gênero feminino deve estar
articulada ao projeto de transformação das estruturas sociais que exploram e alienam o gênero
humano; questão essa que se constitui como fator determinante sobre as relações assimétricas
e hierárquicas entre os gêneros masculinos e femininos. É importante reafirmar a centralidade
da luta do trabalho, dada sua potencialidade anticapitalista.
Quanto à questão dos condicionantes de classe, é fundamental compreendermos
como a mulher é produzida como força de trabalho “naturalmente” impelida a atuar na
educação e cuidado de crianças pequenas. A agente central responsável pela materialização de
tal atendimento seria a professora, mulher “especialmente” educada pelas técnicas
pedagógicas e higiênicas provenientes dos avanços técnico-científicos de finais do século XIX
e pelo “dom” e/ou “vocação natural” de mãe-educadora. Conformadas de maneira mistificada,
as professoras (jardineiras, pagens, tia etc.) eram, e ainda são, identificadas como educadoras
natas portadoras de aptidões, tais como amor, carinho, compreensão, meiguice, calma,
paciência, autocontrole, praticidade e desprendimento.
Tais características são advogadas não só como pertinentes, mas como
necessárias por pensadores que influenciam o campo de conhecimento e intervenção da
educação infantil (dentre os quais destacam-se Rousseau, Froebel e Montessori) e pelas
270
Legislações referentes ao atendimento educacional e assistencial para crianças menores de 06
anos. No entanto, por detrás dessas diretrizes – políticas, teóricas e culturais – são
escamoteadas as relações de opressão de classe e de gênero a que essas trabalhadoras são
submetidas e também a desprofissionalização e, conseqüentemente, a manutenção de um
atendimento de baixa qualidade para as maiorias.
É importante destacar que o trabalho docente, especialmente na educação infantil
e nas séries iniciais do ensino fundamental, reproduz a inserção subordinada que as mulheres
têm, historicamente, sofrido no mundo do trabalho. Tal inserção se caracteriza pela divisão
sexual do trabalho que, somada à divisão social hierárquica do trabalho, explora duplamente a
força de trabalho feminina. Importa ainda afirmar que o processo de feminização/sexualização
do trabalho docente não se caracteriza apenas pelo amplo número de mulheres exercendo o
magistério (em especial, da educação infantil e das séries iniciais), mas também pela
caracterização do trabalho materializado nessas instituições por uma cultura feminilizada,
cujos aspectos centrais são: a afetividade, o cuidado com o outro e relações mais solidárias.
Assim, o exercício dessa atividade tem sido ideologicamente identificado com os processos de
reprodução próprios do espaço privado do lar, ocupando um espaço marginal no interior das
relações sociais, tanto economicamente como socialmente.
A identificação do trabalho docente na educação infantil como reprodução do
trabalho doméstico envolve uma série de questões que interferem e provocam limites para a
constituição de uma identidade política por parte dessas trabalhadoras com um projeto
histórico vinculado à tarefa histórica da classe trabalhadora de superação ativa do modo de
produção capitalista. Ao longo deste trabalho, destaco duas delas: a primeira diz respeito à
interpretação de que o processo de sexualização/feminização do trabalho docente tem como
eixo norteador a perspectiva de desprofissionalização dessas trabalhadoras, cujo caráter
principal está na internalização de aspectos ideológicos subjacentes à identificação da
atividade docente na educação infantil ao trabalho doméstico e a uma perspectiva reducionista
de maternagem; e, em segundo lugar, destaco que as divisões social e sexual do trabalho
constituem e perpetuam a dicotomia entre produção e reprodução instituída pelas relações
sociais constitutivas do modo de produção capitalista, provocando divisão e concorrência no
interior da classe trabalhadora, atingindo também as trabalhadoras da educação infantil.
Esses aspectos convivem, contraditoriamente, com as questões dos baixos
salários, da resignação diante das condições precárias de trabalho, da baixa qualificação das
profissionais justificadas pelo “jeitinho”, “carinho” e “caridade” para com as crianças, em
271
detrimento da necessária competência técnica baseada não só no “como fazer”, mas também
no “por que fazer” e, sobretudo, “para quem”.
Isso envolve mais que “vocação” e “instinto” de qualquer ordem; exige
formação sólida ancorada em conhecimentos históricos, filosóficos, sociológicos,
psicológicos e pedagógicos articulados a uma postura ético-política intencional,
conscientemente constituída e engajada nas lutas sociais. Para que tal exigência se
materialize, é necessário que as trabalhadoras da educação infantil elaborem uma identidade
política rebelde e contrária à ordem social constituída pelo metabolismo social de segunda
ordem do capital. Desse modo, é fundamental destacar que os processos ideológicos presentes
na feminização/sexualização do trabalho docente têm servido como um dos obstáculos para a
elaboração de tal identidade.
Reúne-se às questões acima aventadas a difícil relação entre as trabalhadoras da
educação infantil e o sindicato docente. O sindicato (suas direções) parece desconhecer as
especificidades da educação infantil e de suas trabalhadoras, não se comunica com essas
profissionais, negligencia a sua tarefa de direção, organização e politização do trabalho e das
trabalhadoras da educação infantil e, também, da própria categoria, se considerarmos os
depoimentos das professoras e agentes educativos. Por outro lado, as trabalhadoras da
educação infantil estão imersas no individualismo, não participam politicamente dos espaços
públicos de decisão dos interesses da categoria, negam a política como uma dimensão do seu
trabalho e se afastam da possibilidade de se articularem com os demais trabalhadores em
educação e com o restante da classe-que-vive-do-trabalho. A relação entre trabalhadoras da
educação infantil e sindicato é, portanto, confusa, marcada pelo desconhecimento, não
posicionamento, desvinculação, pré-conceitos e equívocos.
Assim, poder-se-á considerar que dois fatores são fundamentais para
entendermos as dificuldades que as trabalhadoras da educação infantil têm enfrentado para
construir uma identidade política: o primeiro se refere à crise dos sindicatos e da própria
organização política dos trabalhadores (em movimentos sociais, partidos classistas etc.)
engendradas pelo atual estágio do modo de produção capitalista que avança violentamente
sobre o mundo do trabalho e sobre o projeto histórico da classe trabalhadora, buscando
destruir qualquer perspectiva que não seja a da produção e reprodução da barbárie provocada
por essa organização societal; o segundo diz respeito às contradições relativas ao trabalho nas
instituições de educação infantil com elementos que dificultam às suas trabalhadoras
comporem uma identidade política engajada com as lutas da classe que vive do trabalho.
272
A consolidação de uma educação infantil democrática, pública, gratuita e de
qualidade socialmente referenciada, passa necessariamente pela constituição de suas
trabalhadoras como agentes políticos, que não só busquem realizar projetos pedagógicos
“progressistas”, “transformadores” que atendam as crianças nas suas especificidades e
necessidades, mas que também se insiram na luta por melhores condições de vida e trabalho,
pela materialização de políticas públicas de suporte para a área e por um outro modelo de
sociedade. Portanto, a superação das contradições gerais que caracterizam o trabalho sob a
ingerência do modo de produção capitalista e, especificamente, do trabalho na educação
infantil são condições necessárias para a composição da identidade política dessas
trabalhadoras.
Nesse sentido, a ocupação dos espaços de organização dos trabalhadores da
educação (sindicatos) é uma condição fulcral para que as trabalhadoras da educação infantil
tornem públicos os conflitos e contradições do seu trabalho. Importa então que essas
trabalhadoras se engajem, juntamente com o restante da categoria dos trabalhadores da
educação e dos trabalhadores em geral, na luta pela real democratização da educação infantil e
pela supressão da propriedade privada e do trabalho alienado, perspectivando uma nova
sociabilidade cujo trabalho seja sinônimo de realização, prazer e humanização.
Os limites impostos à organização sindical dos trabalhadores pelas recentes
transformações do mundo do trabalho e pelas políticas neoliberais impelem contradições que
apontam para a sua superação e explicitação das possibilidades de uma ação e identidade
política dos trabalhadores. Ainda que os sindicatos tenham assumido posturas defensivas e de
negociação, esses mantêm a capacidade de tornarem públicas as contradições entre trabalho e
capital, externando o caráter putrefato dessa relação e apontando a necessidade de
organização da classe trabalhadora na superação dessas.
Assim, a organização junto aos sindicatos dos trabalhadores da educação
(considerando seus limites e possibilidades) por parte das trabalhadoras da educação infantil
significa a possibilidade de constituição de ações e de uma identidade política voltada para os
interesses da classe trabalhadora, condição sine qua nom para a constituição de uma educação
infantil pública, gratuita, democrática de qualidade e de uma nova sociabilidade.
273
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286
Anexos
287
INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO I
QUESTIONÁRIO ABERTO
1- Qual a função da instituição de educação infantil?
2- Quais são as tarefas/atividades desempenhadas por você no cotidiano do trabalho nessa
instituição?
3- Existe um espaço de organização e trabalho coletivo nessa instituição? Como ocorre?
4- As/os profissionais dessa instituição mantêm relações de diálogo com a comunidade?
Como?
5- Como é a relação de trabalho com a/o agente educativa/o ou pedagoga/a?
6- Para você, como se dá a relação entre Educação infantil e o restante do sistema básico
de ensino?
7- Você participa/participou do movimento sindical da categoria?
8- Você participa/participou de movimentos sociais e/ou partido político? Qual/quais? Por
que?
9- Acredita que o sindicato dos trabalhadores da educação representam os interesses das
trabalhadoras das instituições de Educação Infantil? Por que?
10- Como você identifica seu trabalho? Como atividades de cuidados higiênicos e
alimentares, como educativo-pedagógico, ou como as duas coisas? Explique.
11- O trabalho em instituições de Educação Infantil é uma atividade, exclusivamente,
feminina? Por que?
288
INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO II
QUESTIONÁRIO FECHADO
PERFIL DAS/OS TRABALHADORAS/ES DOCENTES E AGENTES EDUCATIVOS DA
EDUCAÇÃO INFANTIL
1 - IDADE:_____________;
2 - SEXO:______________;
3 - ESTADO CIVIL:______________;
4 – FILHOS: SIM ( ) NÃO ( ) QUANTOS: _______________;
5 - FORMAÇÃO: ENSINO FUNDAMENTAL ( ) ENSINO MÉDIO ( ) GRADUAÇÃO
( ) EM QUE?_____________________; PÓS-GRADUAÇÃO ( ) EM
QUE?______________________________________________;
CONCLUÍDO ( ) EM ANDAMENTO ( )
6 - SITUAÇÃO FUNCIONAL: CONCURSADO ( ) CONTRATADO ( )
7 - TEMPO DE TRABALHO NA EDUCAÇÃO:_________________________________;
8 - TEMPO DE TRABALHO NA EDUCAÇÃO INFANTIL:_______________________;
9 - TRABALHA EM OUTRAS INSTIUIÇÕES: SIM ( ) NÃO ( )
QUAL?:_____________________
10 - SALÁRIO: menos de 1 salário mínimo ( ); de 1 à 2 salários mínimos ( ); de 2 à 4
salários mínimos ( ); de 4 à 7 salários mínimos ( ); de 7 à 10 salários mínimos ( ); mais
de 10 salários mínimos ( )
289
INSTRUMENTOS DE INVESTIGAÇÃO III
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMI-ESTRUTURADAS
1. Para você, que trabalha nessa instituição, qual é a função dos CMEIS?
2. Qual é a diferença entre seu trabalho e a da educadora? (qual a diferença entre seu
trabalho e da agente educativo?) Existe alguma hierarquia na divisão de tarefas?
3. Na sua opinião, o que é necessário para um ótimo funcionamento do CMEI (em
termos de materiais, recursos humanos, recursos financeiros, organização)? Esta é a
realidade dessa instituição? Você tem conhecimento sobre o restante da rede? Como é
a realidade das demais instituição nesses aspectos?
4. A Educação Infantil têm algum papel político? Qual? Como ocorre? Acontecesse
nessa instituição?
5. A educadora/agente educativo tem algum papel político? Como esse se caracteriza?
Como vê a questão da participação política?
6. Você participa/participou de movimentos sociais, sindicato e/ou partido político?
Qual/quais? Por que? Se identifica ou apóia algum? Por que?
7. Desde a implantação dos CMEIS pela Secretaria Municipal de Educação houve
algumas greves dos trabalhadores em Educação (só nos últimos dois anos houve duas
greves de longa duração e grande mobilização) e as trabalhadoras das instituições de
Educação Infantil pouco participaram. Na sua opinião, ao que se deve esse fato? Como
você julga essa situação?
8. Aqui na instituição tem alguma trabalhadora que representa o CMEI junto ao sindicato
da categoria? O sindicato da categoria tem dialogado com as trabalhadoras do CMEI?
Como?
9. Na sua opinião, qual o papel do sindicato dos trabalhadores em Educação? Na sua
avaliação ele tem realizado sua função? Como/porque?
290
ANEXO IV
PERFIL SÓCIO- ECONÔMICO DAS/OS TRABALHADORAS/ES DOCENTES E
AGENTES EDUCATIVOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL NA REDE MUNICIPAL DE
ENSINO DE GOIÂNIA
Dados Agentes
educativos
Professoras II
(pedagogas)
Professoras I
(magistério)
1 – idade
Média 31.7
Média 39.5
Média 37.1
2 – sexo
Predominantemente
feminino
Predominantemente
feminino
Predominantemente
feminino
3 – estado civil
C: 19;
S: 8;
D: 2
C: 20;
S: 7;
V: 3;
D: 3
C: 18;
S: 6;
D: 2
4 – filhos
S: 20;
N: 9
S: 27;
N: 6
S: 17;
N: 6
5 – situação
funcional
Cc: = 12
Ct: = 16
Cc: = 29
Ct: = 3
Cc: = 11
Ct: = 14
6 – tempo de
trabalho na
educação
Média: 6.1 Média: 14.7 Média: 12.7
7 – tempo de
trabalho na
Educação
Infantil
Média: 3.4 Média: 4.8 Média: 4.2
8 – trabalha
em outras
instituições
Sim: 05
Não: 26
Sim: 19
Não: 14
Sim: 09
Não: 17
9 – salário
< 1sm: = 8
1-2sm: = 23
2-4sm:
4-7sm:
7-10sm:
>10sm:
< 1sm:
1-2sm: = 5
2-4sm = 12
4-7sm: = 8
7-10sm: = 6
>10sm: = 1
Uma professora
não respondeu.
< 1sm:
1-2sm: = 9
2-4sm = 11
4-7sm: = 4
7-10sm: = 1
>10sm:
Duas professoras
não responderam.
291
ANEXO V
PERFIL DA FORMAÇÃO DAS/OS TRABALHADORAS/ES DOCENTES E AGENTES
EDUCATIVOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE
GOIÂNIA
10- Formação Ag. educativo PI PII
Magistério 15 5 1
Graduação
1 ec, = 1 1aem/ 1pd/ 1ss/ 1pd/
1pd/ 1pd, 1pd = 7
1pd/ 1pd/ 1lt/ 1pd/
1pd/1cim, 1pd = 7
Pós-Graduação
1 ae, 1mte = 2 1mte/ 1pe/ 1 ei/ 1
alfa/ 1psp/ 1 sp e ad/
1pe/ 1ei/ 1mte/ 1ae/
1ae/ 1 lp/ 1alfa e sp/
1lb* / 1 ed/ 1ei/ 1pe/
1edç/ 1ei/ 1pre/ 1ei/
1psp, 1psp e pe = 23
Graduação em
andamento
1ns/ 1 pd/ 1pd/ 1pd/
1pd/ 1lt/ 1pd/ 1ef/
1pd/ 1pd/ 1pd , 1pd,
1pd = 13
1pd/ 1pd/ 1 pd/ 1pd/
1hist/ 1pd/ 1pd/ 1pd/
1pd/ 1pd = 10
1lt/ 1pd/ 1pd/ 1pd = 4
Pós-graduação em
andamento
1ms/ 1psp, = 2
Pd: pedagogia
Ec: economia
Ef: Educação física
Aem: adim. de empresa
Cim: ciências imobiliárias
Ss: serviço social
Ns: normal superior
Hist: história
Lt: letras
Ms: mestrado
Psp: psicopedagogia
Lp: língua portuguesa
Ei: educação infantil
Mte: métodos e técnicas de ensino
Alfa: alfabetização
Pe: planejamento educacional
Ae: administração escolar
Ad: aprendizagem e diferenças
Sp: supervisão escolar
Lb: literatura brasileira
Ed: educação para a diversidade
Pre: projeto educacional
Edç: Educação
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