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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
A EDUCAÇÃO COMO CRIAÇÃO DE NOVOS DIREITOS:
FORMAÇÃO PARA A AUTONOMIA
Gilma Guimarães
Orientador: Prof. Dr. Adão José Peixoto
Goiânia
2006
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GILMA GUIMARÃES
A EDUCAÇÃO COMO CRIAÇÃO DE NOVOS DIREITOS:
FORMAÇÃO PARA A AUTONOMIA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Educação pela Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Goiás, para a obtenção
do título de Mestre em Educação.
Área de concentração: Educação e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Adão José Peixoto.
Goiânia
2006
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AGRADECIMENTOS
Ao prof. Dr. Adão José Peixoto, pela orientação rigorosa e pelo incentivo.
Ao prof. Dr. Ildeu Moreira Coelho, pelas rigorosas e detalhadas observações críticas feitas no
exame de qualificação.
À prof. Dra. Maria Teresa Canezin, pelas críticas pertinentes e desafiadoras feitas no exame
de qualificação.
Ao prof. Dr. Ged Guimarães, pela leitura rigorosa e importante contribuição.
À professora Darcy Costa, pela revisão criteriosa e sugestões relevantes.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás, pelo apoio durante o curso de mestrado.
3
RESUMO
Esta dissertação constitui-se de uma interrogação do sentido da educação instituída pela
sociedade capitalista moderna e busca explicitar novas formas de conceber a formação
humana. Apresenta a formação para a autonomia como possibilidade para autocriação e auto-
alteração do social-histórico, de forma refletida e deliberada, que se constituem nas condições
para a criação de novos direitos. Considera-se a criação de novos direitos como obra da práxis
política dos sujeitos sociais formados para a autonomia e por instituições sociais autônomas.
Assim, a criação da autonomia social e individual, como uma exigência para a criação de
novos direitos, implicou, de um lado, interrogar o sentido das instituições e da formação
constitutivas e instituintes das formas heterônomas das relações sociais existentes, e de outro,
afirmar a imaginação criadora, a justiça e a liberdade como questões nucleares da formação
humana. A construção dessa perspectiva fez-se com a elucidação do pensamento sobre o
imaginário, a autonomia e a democracia. O imaginário social é fonte da criação incessante e
indeterminada do ser e da sociedade, que se autocriam e auto-alteram em razão tanto dos
significados sociais disponíveis como da criação de novos significados. A autonomia e a
democracia são as condições para que a autocriação e auto-alteração dos sujeitos sociais
sejam explícitas, refletidas e lúcidas, o que pressupõe serem realizadas por meio do debate e
da deliberação coletiva. Se o social-histórico é criação dos homens, para que seja uma criação
feita com consciência e lucidez supõe-se que eles assumam a responsabilidade política de
criá-lo com dignidade e justiça, obra, portanto, de sujeitos sociais autônomos e de instituições
sociais democráticas, nas quais a igualdade e a justiça sejam uma exigência da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Educação; Autonomia; Criação de novos direitos; Democracia;
Imaginação criadora.
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SUMMARY
This dissertation is built upon a questioning of the sense of education instituted by the modern
capitalist society, and it tries to explain new ways of conceiving human education. It presents
the formation for autonomy as a possibility for self-creation and self-alteration of the social-
historic aspect, in a reflective and deliberate way, that happen in the conditions for the
creation of new rights. The creation of new rights is considered to be work of the political
praxis of the social subjects formed for the autonomy and by autonomic social
institutions.Therefore, the creation of the social and individual autonimies, as a demand for
the development of new rights implied, in one side, interrogating the sense of institutions and
the constitutive and institutive creation of heterogenic forms of social relations. And, on the
other side, affirming the creative imagination, justice and freedom as nuclear matters of the
human formation. The construction of this perspective was done with the elucidation of
thought over the imaginay, autonomy end democracy. The social imaginary is the source of
the unstoppable and undetermined creations of the social subjects, who create and alter
themselves due to the available social meanings and the creation of new meanings. The
autonomy and democracy are the conditions for the self-creation and self-alteration of the
social subjects to be explicit, reflected and lucid, which presupposes that they are made
through debate and collective deliberation. If the social-historic is a creation of men, for it to
be a creation made with conscience and lucidity, it is supposed that they assume a political
responsibility of creating it with dignity and justice. Moreover, a work of autonomic social
subjets and of democratic social institutions in which equality and justice are a demand from
society.
KEYWORDS: Education; Autonomy; Creation of new rights; Democracy; Creative
imagination.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08
CAPÍTULO I
Democracia: o sentido público e coletivo da atividade política..........................................17
1 Desvios, adesões e recusas do sentido originário de democracia..........................................18
2 Democracia ateniense: embrião do projeto de autonomia.....................................................29
3 Paidéia: a formação do homem autônomo.............................................................................41
CAPÍTULO II
A criação das instituições e a relação entre direito, autonomia e educação......................57
1 A política como campo do questionamento, do conflito e da criação de novos direitos.......59
2 A ocultação do poder da criação humana: recusa da autonomia e do direito........................73
CAPÍTULO III
A educação como criação de novos direitos..........................................................................88
1 O sentido da educação como criação de novos direitos.........................................................90
2 A educação na sua dimensão pública e política.....................................................................96
3 Educação e responsabilidade...............................................................................................105
4 Relações pedagógicas: Eros e beleza...................................................................................116
Considerações finais..............................................................................................................125
Referências bibliográficas....................................................................................................130
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INTRODUÇÃO
A sociedade, ao afastar-se da heteronímia religiosa, tradicional ou outra, a
sociedade autônoma, poderá viver neste e por este afastamento indelével,
que se abre à sua própria questão, a questão da justiça. Uma sociedade justa
não é uma sociedade que adotou leis justas para sempre. Uma sociedade
justa é uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente
aberta, ou seja, onde existe sempre a possibilidade socialmente efetiva de
interrogação sobre a lei e sobre o fundamento da lei. Eis uma outra maneira
de dizer que ela está constantemente no movimento de sua auto-instituição
explícita.
Cornelius Castoriadis
A epígrafe é fragmento do texto de introdução ao livro Socialismo ou barbárie em que
Castoriadis (1983) apresenta a distinção entre lei e justiça, a exigência da igualdade social e
política e a liberdade como questões imprescindíveis para a existência da democracia. A
democracia é constitutiva da lei e da justiça, como questões indissociáveis, mas que não se
identificam, e toda tentativa de identifica-las, de suprimir ou submeter uma a outra
culminaram com a emergência de concepções totalitárias de sociedade. A democracia
pressupõe a existência de uma coletividade que se reconheça nas instituições que cria, em
outras palavras, de uma coletividade autônoma que se autocria e se auto-altera de forma
refletida e deliberada.
As possibilidades para a educação como criação de novos direitos implicam a
instituição de novas relações sociais nas quais o conflito, a diversidade de opiniões, a
discordância e a contestação sejam formas de existência humana. A existência humana nesta
perspectiva realiza-se especialmente como práxis política e diz respeito às decisões e
escolhas, o que pressupõe sujeitos sociais autônomos, capazes de questionar suas instituições,
interrogar sobre seu sentido e a validade de suas leis. Assim, a educação como criação de
novos direitos pressupõe a formação de indivíduos autônomos e que se sintam responsáveis
pela sociedade, o que nos remete à democracia como modo de vida coletiva. Pensar a
educação como criação de novos direitos, portanto, é pensar a própria democracia como
possibilidade.
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A criação de novos direitos
1
é inseparável da democracia, pois numa democracia a
liberdade, a igualdade e a justiça são questões sempre abertas. Os novos direitos são a
materialização sempre provisória da justiça efetiva e compreendem a exigência da igualdade
social e política entre os homens como validade de direito. A exigência da igualdade como
validade de direito remete à liberdade de pensamento e à idéia de verdade como questão
política, o que significa dizer que remete ao coletivo anônimo a criação e a deliberação do
sentido e da verdade das instituições sociais, instituinte e constitutivo da e pela interrogação
interminável, que é precisamente o conteúdo da verdadeira política e da ética como parte da
questão política. Assim, os novos direitos são criados por meio do poder político e com a
afirmação da liberdade humana, pois o objeto da política, diz Castoriadis (1991) é a liberdade
e nessa liberdade cada um cria e pode transformar as instituições sociais presentes. A
liberdade só pode realizar-se em uma democracia direta e não por representantes, o que
significa alienação do poder dos representantes aos representados e, nesse caso, trata-se de
uma divisão do trabalho entre dirigentes e dirigidos que significa dominação de um grupo
sobre os demais indivíduos da sociedade
2
.
Como questão do poder e da autonomia para a criação das instituições sociais, os
novos direitos compreendem a exigência da igualdade e da liberdade econômica e política, o
que pressupõe a autogestão e auto-organização da sociedade, do governo, da produção e da
cultura; a liberdade de expressão e criação em todos os domínios da cultura; o acesso a todas
as informações para a tomada de decisão e deliberação disponíveis para todos; o direito de
questionar o presente e as instituições existentes e propor novas modalidades de instituições;
as possibilidades de continuidade dos movimentos emacipatórios operários, mulheres,
jovens, minorias e da emergência de outros; garantia a todos os indivíduos à formação plena,
moral, política e cognitiva, como as condições para uma conduta autônoma. Também
1
Embora não tenha sido encontrado nenhum trabalho que apresente a perspectiva da educação como criação de
novos direitos, abordada nesta dissertação, importantes produções com enfoque na relação entre educação,
direitos e autonomia como questão política e da esfera pública, dentre eles: Cultura e democracia: o discurso
competente e outras falas, da Marilena Chauí, (1990); Privatização do público, destituição da fala e anulação da
política: o totalitarismo neoliberal, de Francisco de Oliveira (2000); Globalização, neoliberalismo e direitos dos
trabalhadores no Reino Unido, de Huw Beynon, (2000); Tecnologia, perda do humano e sujeito do direito, de
Laymert Garcia dos Santos, (2000); Os direitos invisíveis, de Carlos Frederico M de S. Filho, (2000); Reinventar
a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo, de Boaventura de Souza Santos (2000);
Modelos de cidadania e discursos sobre educação, de Lílian do Valle, (2001) Os enigmas da educação: a
paidéia democrática entre Platão e Castoriadis, de Lílian do Valle, (2002); A recusa da sociedade do espetáculo
no processo de formação do homem autônomo: um estudo da abordagem de Rousseau, de Ged Guimarães, tese
de Doutorado (2004); Industria cultural e imaginação estética,
de Olgária Chaim Feres Matos, (2006);
Universidade e formação de professore de Ildeu M. Coêlho, (2006).
2
A referência ao pensamento político de Castoriadis (1991) corresponde a parte do conteúdo da palestra
realizada em Porto Alegre em 1991, disponível virtualmente em: <http:caosmose.net/castoriadis>, acesso em
07/07/2006.
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constituem-se como novos direitos o inaudito, o que nunca foi pensado ou imaginado e que
pode ser reivindicado e, submetido ao debate, ao julgamento e à deliberação coletiva, para
constituir-se em um novo direito.
Ora, se a criação de novos direitos e a instituição da autonomia implicam a
transformação das instituições sociais e a capacidade dos indivíduos de instituir outras formas
de relações sociais, é importante explicitar o sentido da criação do social-histórico. A
investigação sobre a criação do social-histórico será feita com base na abordagem de
Castoriadis
3
, sobre o imaginário social como fonte das significações sociais e criação
indeterminada e instituinte da realidade.
A esse respeito, Castoriadis (2000) esclarece:
O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das
quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos
“realidade” e “racionalidade” são seus produtos (p. 13).
3
Cornelius Castoriadis (1922-1997) foi filósofo, compositor e pianista, pensador e militante político, crítico
social e psicanalista. Nasceu em Atenas em 1922 onde cursou Direito, Economia e Filosofia, aos 15 anos aderiu
ao comunismo para, rapidamente, opor-se a ele e incorporar-se ao trotskismo ao qual posteriormente, também
passou a se opor. Perseguido tanto pelos fascistas como pelos comunistas, foi para a França em 1945 e fundou
com Claude Lefort, a revista e grupo revolucionários Socialismo ou Barbárie (1948-1967) que dirigiu até sua
dissolução. Para escapar da deportação, pois viveu ilegalmente em Paris até o ano de 1970, escreveu sob
pseudônimos diversos, como Pierre Chalieu e Paul Cardan. Na revista Socialismo ou Barbárie, desenvolveu uma
critica radical ao stalinismo, ao dogmatismo e a todo pensamento totalitário, baseado na idéia da autogestão
operária ou autogoverno dos trabalhadores e exerceu grande influencia sobre movimento estudantil de Paris que
culminou com a rebelião estudantil de maio de 1968. Apesar da formação marxista, foi um crítico implacável das
teorias de Karl Marx e do stalinismo burocrático da antiga União Soviética. Distanciou-se do marxismo e se
voltou, em meados dos anos 1960, para o estudo da filosofia tradicional e para a psicanálise, interessando-se pela
obra de Freud, que resultou na publicação de A instituição imaginária da sociedade (2000) em que expõe o
essencial de seu pensamento sobre a sociedade, a psique e as análises da impossibilidade da continuidade do
marxismo como uma teoria revolucionária. Para dar consistência ao projeto de transformação das relações de
dominação e exploração econômica e social Castoriadis retomou o pensamento político e filosófico clássico e
incorporou ao seu pensamento a psicanálise e a imaginação. “É antes a anulação de toda distância que a ruptura
com o discurso da obra supõe” afirma Lefort (apud Vidal-Naquet, 2002, p. 55), e se a continuidade da
perspectiva revolucionária resultou na ruptura com o marxismo, pressupõe, por isso mesmo, a aproximação do
projeto de Marx de superação das formas opressoras de instituição da sociedade. Até sua morte que ocorreu
recente (1997), aos 75 anos, Castoriadis escreveu sobre sociedade, política e psicanálise, e a imaginação foi sua
perspectiva que inspirou seu projeto de autonomia. Seus livros foram traduzidos para diversas línguas e dentre os
de maior destaque traduzidos para o português estão: A instituição imaginária da sociedade, Os destinos do
totalitarismo, As encruzilhadas do labirinto, dividida em seis volumes: As encruzilhadas do labirinto v. 1, Os
domínios do homem v. 2, O mundo fragmentado v. 3, A ascensão da insignificância v. 4, Feito e a ser feito v. 5 e
Figuras do pensável v. 6, Sobre o político de Platão, Diante da Guerra, e A criação histórica, e Experiência do
movimento operário. obras em espanhol, em que Castoriadis utiliza o pseudônimo de Paul Cardan:
Capitalismo moderno e revolución, Los consejos obreros y la economiía en una sociedad autogestionaria. Como
Cornelius Castoriadis as traduções: La soiedad burocrática vol. I e II, La experiência del movimento obrero
vol. I e II, Reflexiones sobre el desarrollo y la racionalidad, De la ecología, La exigência revolucionária, La
insignificancia y la imaginção. ainda um livro sobre Cornelius Castoriadis, Castoriadis (1922-1997), escrito
por Juan Manuel Vera. Castoriadis foi economista da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
econômico (OCDE de 1948-1970) e psicanalista (1973-1997). (AGORA Internacional Websit, MAGMA).
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No imaginário reside o poder de criação humana, que é origem ao mesmo tempo da
identidade e da alteridade de cada pessoa. O imaginário faz existir a mudança e a
permanência, ao instituir o tempo como alteridade histórico-social, criação, emergência de
outros seres, de novas formas, mas que não elimina o tempo identitário que faz seres
determinados, sem o que não poderia haver qualquer transformação. A imaginação é
constitutiva da liberdade humana e é uma consciência que possibilita desejar algo novo,
diferente do existente e, por isso, faz ocorrer a mudança. Todavia, se o mundo é criação
humana incessante e indeterminada, podem ser criadas igualdade, liberdade e justiça, mas
também fantasmas, escravidão e monstruosidade. A manifestação da imaginação criadora
como expressão da liberdade e da justiça exige a instituição da autonomia individual e social e
a criação de um espaço e de um tempo público
4
de reflexão. No espaço comum, na dimensão
política, surge a exigência da elucidação do fazer humano como forma da criação lúcida e
explícita. “O que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que
fazem e saber o que pensam”, assinala Castoriadis (2000, p. 14). A elucidação do fazer
humano diz respeito, portanto à autonomia do ser para conduzir-se segundo as normas que ele
cria para si mesmo.
Castoriadis (1991; 2000) demonstra a existência simultânea e permanente do ser e do
não-ser, da determinidade e da indeterminação, do instituído e do instituinte, presentes em
toda realidade social. São pólos contrários que afirmam a existência indubitável da
contradição e do conflito como inerente ao social-histórico e possibilita concebê-lo, ao mesmo
tempo, como realidade e como possibilidade, ou seja, como ser e como vir-a-ser. A criação
pressupõe a indeterminação do ser, que ele não seja fechado, mas a criação não significa
indeterminação, uma vez que criação é sempre posição de outras determinações. A criação
como posição de novas determinações é produzida com base no instituído e utiliza os
elementos dados, mas faz surgir o que não existia ao estabelecer uma nova forma. A
criação de uma nova forma e constitutiva da alteridade do ser que altera ele mesmo e as
instituições sociais e pressupõe a ruptura com as significações instituída e a instituições de
novas significações. A condição para a criação é a existência de tensão entre esses pólos
determinação e indeterminação, sociedade instituída e sociedade instituinte. Para atingir esse
fim, pressupõe-se dar expressão ao poder instituinte, por meio da liberdade de criticar e
contestar o instituído, pois toda criação faz-se com a ruptura com o que já existe. A sociedade
instituída sempre oferece resistência ao exame de seus valores e de concepções de mundo,
4
“Entendo por tempo público [...] a emegência de uma dimensão na qual a coletividade possa inspecionar seu
próprio passado enquanto resultado de suas próprias ações, e onde se abre um futuro indeterminado como campo
de suas atividades” (CASTORIADIS, 2002, p. 312).
11
imputando-lhes uma origem extra-social ou uma necessidade funcional. Em decorrência,
exigência de relações sociais democráticas como condições que possibilitam a manifestação
da sociedade instituinte, pois se o poder instituído trabalha para impedir a manifestação do
poder instuinte, ocultando o caráter de criação do social-histórico e, portanto negando a
liberdade e a autonomia do homem ante as suas instituições, evidenciar essa ocultação, seus
mecanismos e formas assumidas em cada contexto específico, constitui o ponto de partida
para a criação autônoma.
O mundo é obra unicamente dos homens, mas, para que seja uma criação
verdadeiramente humana, ela deve ser realizada por sujeitos sociais autônomos. A
irredutibilidade dos vínculos entre criação humana e autonomia remete à formação humana, e
se trata de formação com o sentido de criar indivíduos autônomos. Instituir a autonomia social
e individual é o projeto de Castoriadis, que segundo ele, se encontra em parte realizado e que
tem sua origem na criação da democracia e da filosofia pelos gregos.
Castoriadis (2000) define:
Projeto é o elemento da práxis (e de toda atividade). É uma práxis determinada,
considerada em suas ligações com o real, na definição concretizada de seus objetivos,
na especificação de suas mediações. É a intenção de uma transformação do real,
guiada por uma representação do sentido desta transformação, levando em
consideração as condições reais e animando uma atividade (p. 97).
Afirmar a criação da democracia e da filosofia gregas como raiz do projeto de
autonomia implica considerar como foram concebidas essas instituições, com a explicitação
das formas de relações estabelecidas e o ideal de homem e de sociedade que foram visados
pela política e pela filosofia, pois “como escrevera Benjamim, só perde o sentido aquilo que
no presente não é percebido como visado pelo passado” (CHAUÍ, 2003, p. 18). A autonomia
foi visada pelos gregos, ao criarem a democracia e a filosofia como interrogação do sentido da
lei, da justiça e da pólis, pois o exame do sentido dos valores e das formas de pensamento
instituído significou o reconhecimento da coletividade de que o nómos (leis), a díke (justiça) e
o télos (finalidade) são criações suas e que devem ser submetidas ao debate e à deliberação
pública. Assim, o sentido da autonomia vincula-se simultaneamente à possibilidade de pensar
livremente e à exigência da elaboração de novas significações para a recriação da vida
coletiva. A autonomia é característica da forma de pensar e de se relacionar com o outro e
com as instituições sociais com liberdade e capacidade para questionar o presente e as
instituições existentes. Dizendo de outra forma, a autonomia cria as possibilidades para
12
emergência do conflito, da crítica e do exame da lei, condições indeléveis para a criação de
novos direitos.
A relação entre a educação como criação de novos direitos e a autonomia tem na
democracia sua forma mais acabada. Foi a criação da democracia pelos gregos que
possibilitou a emergência da autonomia social e individual e a efetivação dos direitos sociais,
que significavam o predomínio da participação e da lei no processo decisório, como base das
relações sociais e políticas.
A democracia como regime da liberdade é o domínio do risco, da alteridade social, da
igualdade continuamente criada e do poder como algo que está sempre por ser conquistado,
por meio do diálogo e do debate público. Essas condições fazem da democracia a instituição
social e política da permanente criação de direitos. Nesse sentido, a educação como campo
para a criação de novos direitos deve constituir-se de ações que impliquem a afirmação da
democracia. Trata-se da democracia como modo de vida social, com instituições que criem
indivíduos autônomos capazes de transformarem seus pensamentos em reflexão e de agirem
com liberdade e responsabilidade.
Todavia, a criação da democracia pressupõe a possibilidade aos indivíduos da
interrogação ilimitada do sentido das instituições, das significações sociais instituídas, da lei,
de seu próprio ser, das formas de pensamento, da formação humana. É, portanto em razão da
construção da autonomia dos indivíduos ante as instituições sociais que se situam as
possibilidades da educação vir a se constituir em criação de novos direitos. Nessa perspectiva,
o problema que orienta esta pesquisa as possibilidades da educação vir a se constituir em
criação de novos direitos – refere-se à elucidação de uma formação que afirma a autonomia, a
liberdade e a igualdade entre os homens e a imaginação criadora para que os indivíduos criem
sua existência de forma verdadeiramente humana. Pretende-se interrogar as rupturas no
imaginário social que as instituições sociais encarnam, em especial as instituições de
formação, e, com isso, possibilitar a emergência de novas formas de pensamento, sobretudo
no âmbito da educação. A interrogação é entendida neste contexto como o pensamento que
questiona e contesta o instituído e quer se fazer instituinte de novas formas e outros sentidos
para a educação, a política, as relações entre os homens, para a vida enfim. Trata-se de
interrogação feita de maneira reflexiva e deliberada por indivíduos livres e autônomos,
capazes de reconhecer as formas das instituições e do ser como criação humana. Como diz
Castoriadis (1999), “se a reflexão não quer algo, ela não é reflexão” (p.55). A reflexão
implica ação, decisão e escolhas. A reflexão deve ser entendida também como auto-reflexão
crítica para que o “artifício humano” (Arendt, 1987) seja constituído e instituinte do sentido
13
de humanidade, que não banaliza a existência humana. A auto-reflexão crítica pressupõe que
na cultura, a grande obra da humanidade, não se criem monstruosidades nem a
degenerescência humana, mas grandes ações, pensamentos e monumentos feitos por homens
livres e que se sintam dignos e responsáveis por sua permanência e continuidade. Além do
querer, explícito e lúcido, a reflexão exige a ação de julgar e de escolher, condições para a
criação da autonomia e da alteridade social.
Para esse fim, foram examinadas obras de Castoriadis (1983; 1991; 1992; 1999; 2000;
2002; 2004), sobretudo textos que abordam as questões da criação das instituições sociais, da
autonomia e da democracia e obras de outros autores que buscam a transformação das
instituições presentes e do poder instituído e propõem novas formas de pensar a sociedade e a
formação humana. São autores que divergem na forma de abordagem, mas que analisam a
mesma questão, a possibilidade de o homem criar uma sociedade democrática.
No capítulo I investiga-se a política, a democracia e a paidéia criadas pelos gregos.
Examina-se como as questões da democracia, da autonomia e da formação foram vividas e
enfrentadas pelos gregos na Antigüidade. A democracia grega, diz Castoriadis (2004)
constitui-se o embrião do projeto de autonomia, pois ao criar a política como assunto de
todos, os gregos criaram ao mesmo tempo a paidéia com o sentido de formação para a
autonomia, como uma exigência da democracia, autonomia que é negada na Modernidade na
forma representativa do poder político. Castoriadis com sua crítica às instituições sociais e
políticas modernas, por seus conteúdos autoritários, burocráticos e privatizantes, expõe um
poder e um pensamento social instituídos impotentes e perigosos, pois são incapazes de criar
uma dimensão pública da vida social, que exige debate e decisão coletiva, e restringem o
poder às oligarquias econômicas que definem os rumos da sociedade segundo seus interesses
de expansão econômica.
Inicialmente discute-se a democracia, evidenciando seu sentido originário como
experiência única dos atenienses e os desvios, adesões e recusas desse sentido pelos regimes
políticos modernos e pelas diferentes interpretações produzidas pela tradição de pensamento
do ocidente. O encontro com a obra de dois grandes historiadores, Finley (1988) e Vidal-
Naquet (2002) contribuiu para evidenciar a riqueza da democracia ateniense e o esforço que
os homens daquele tempo imprimiram a suas ações para instituir uma nova forma de
organização social e política. Finley, ao apresentar com riqueza de detalhes a democracia
ateniense, transporta o leitor para a agorá e o convida a participar dos debates e das decisões
políticas, o que deve ser desejado e é também imprescindível para uma boa condução da vida
social. Vidal-Naquet com seu primoroso diálogo com a tradição de pensamento, obra sempre
14
inacabada, ensina que não deve haver limites para novas interpretações e criações da história.
Em seguida, examina-se a autonomia como uma questão primeiramente grega e um projeto
político democrático que se contrapõe radicalmente aos regimes políticos modernos
burocráticos e hierarquizados. Ao final, investiga-se a paidéia grega, interrogando sobretudo
os filósofos da Grécia clássica sobre direitos, liberdade, dignidade, virtude, ética, cultura e
humanidade, conceitos que na modernidade perderam seu significado originário. A intenção
é, por meio da contribuição dos textos gregos e do diálogo que vários autores estabelecem
com eles, pensar o sentido que atualmente se atribui à formação humana.
No capítulo II, busca-se elucidar a origem e o significado do direito e da autonomia e
as suas interfaces, entre si e com as instituições sociais, como foram criadas as instituições
constitutivas e instituintes da autonomia, instituições nas quais os direitos foram realizados e
as leis questionadas. A abordagem é feita inicialmente com base em obras de Vernant (2005)
e Lefort (1984), que analisam dois momentos distintos da nossa história a criação da
democracia na Grécia e a Revolução Francesa em que as instituições sociais foram
radicalmente questionadas e novos direitos foram criados. E em seguida, com base na obra de
Castoriadis (1983; 2000) examinam-se as possibilidades de criar as instituições com abertura
para acolher as novas significações sociais instituintes da liberdade, da igualdade, da justiça
social e dos novos direito, o que pressupõe a ruptura com o pensamento herdado que nega o
poder de criação ao homem, a imaginação e a autonomia.
No capítulo III interrogam-se as condições que tornariam possível a educação como
criação de novos direitos, o que pressupõe a crítica às formas instituídas de conceber o saber,
a técnica, a formação humana, a cultura e a afirmação de outras perspectivas de pensamento
sobre essas questões. Trata-se de um lado, de evidenciar que uma educação que se centra
nos aspectos cognitivos limita a capacidade de pensar, pois é a cultura que faz as pessoas
humanas, mas pode também fazê-las prepotentes, bárbaras. um jogo mediático sustentado
no imaginário social instituído o discurso da ciência e da técnica atual que desqualifica
qualquer outra realidade. De outro lado, afirma-se a imaginação criadora como fonte da
singularidade humana que surge ante a liberdade, a autonomia e a atividade coletiva dos
homens e é característico das possibilidades para novas significações sociais. A elucidação
dessa interrogação será feita por meio de quatro questões. A primeira questão aborda o
sentido da educação como criação de novos direitos, o que significa considerar os indivíduos
portadores, ao mesmo tempo, de autonomia e de imaginação criadora. Na segunda e na
terceira questões situa-se a dimensão política da educação e se mostra a importância da crítica
e do debate permanentes e a formação da virtude como exigência para a criação de indivíduos
15
éticos e responsáveis. Na quarta questão, discute-se a relação pedagógica constitutivas de
Eros e de beleza como possibilidade para proporcionar a criação livre e autônoma, inseparável
da exigência da distinção entre o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, o belo e o
degradante.
16
CAPÍTULO I
Democracia: o sentido público e coletivo da atividade política
A democracia é o regime da autolimitação ou, em outras palavras, o
regime da autonomia ou da auto-instituição. Considerados na
plenitude de seu sentido, esses três termos são efetivamente
sinônimos.
Cornelius Castoriadis
Neste capítulo, pretende-se investigar o sentido da democracia para a transformação
radical da sociedade na direção da instituição de relações de igualdade e de liberdade entre os
homens. Por que e como democracia pode se constituir de atividades políticas que instituam
sujeitos sociais autônomos e responsáveis? Quais as possibilidades para a criação de
instituições sociais democráticas?
Democracia constitui o modo de existência humana como movimento de instituição da
sociedade, como obra da práxis social-histórica, que promova simultaneamente a política. Nos
termos de Finley (1988), política significa “arte de decidir através da discussão e, então de
obedecer às decisões como condição necessária da existência social civilizada” (p. 26) e,
segundo Vidal-Naquet (2002), é uma atividade que “consiste em objetivar os conflitos, em
expô-los sem esperar anulá-los” (p. 197), e ainda, para Castoriadis (2004), “uma atividade
coletiva refletida e lúcida visando à instituição global da sociedade” (p.177).
Para discutir a democracia, é importante buscar a origem de seu significado histórico,
o que se constitui como tradição de pensamento, o que implica investigar a criação da política
pelos gregos, a criação da democracia pelos atenienses, por meio da instituição de um projeto
de autonomia e, portanto, de autolimitação social e individual. A autolimitação diz respeito à
capacidade que os indivíduos possuem de se imporem a si mesmos limites às suas ações e
condutas, o que exige a sua formação ética, a existência de valores sociais positivos, por meio
dos quais eles possam se guiar, e o exercício da liberdade como possibilidade de deliberação e
criação nas esferas individual e pública da existência. A autolimitação é um pressuposto da
liberdade, pois indivíduos livres são aqueles que se recusam a serem regulados por outrem e
assumem a responsabilidade de criar eles próprios sua forma e os meio de regulação da vida
17
em sociedade. A autolimitação é uma exigência das relações sociais entre iguais no sentido
político, que se caracteriza pela ausência de hierarquia para participar e deliberar sobre as leis
que regem a vida coletiva. Ao pensar a sociedade na dimensão da sua organização política
algumas questões se impõem, como a relação entre público e privado, o conflito e o consenso,
a liberdade e a justiça, as leis e os novos direitos sociais. São questões que surgiram com a
criação da política pelos gregos e tiveram sua expressão maior na democracia ateniense, mas
que ainda permeiam o debate político em todas sociedades modernas.
A investigação sobre a democracia será feita em dois momentos. Inicialmente, busca-
se elucidar o sentido da democracia por meio da apresentação da Atenas democrática como
tradição de pensamento do Ocidente, que se faz no diálogo sempre presente com os textos que
recriam continuamente a Antigüidade, a democracia e a filosofia. A intenção é demonstrar as
possibilidades da democracia como modo de existência humana e ao mesmo tempo mostrar
que esse é um projeto que se encontra em parte realizado. As questões que orientaram a
investigação sobre a democracia são: Os regimes políticos existentes na atualidade podem ser
chamados de democracia? Que relações podem ser estabelecidas entre a democracia criada na
Grécia antiga e os regimes políticos modernos? Em que medida a concepção clássica de
democracia pode ajudar a pensar a sociedade atual?
Em seguida, investiga-se a paidéia grega como a condição e a possibilidade para a
efetivação da democracia antiga. Se o debate sobre a democracia ateniense se deu no campo
da ação política, o debate sobre a formação do homem grego se fez, sobretudo no campo
filosófico. A investigação sobre a paidéia grega será feita por meio da explicitação do
pensamento de Platão e Aristóteles.
1 Desvios, adesões e
recusas do sentido
originário de
democracia
Caso se pudesse expressar em poucas palavras o sentido originário da democracia, poder-
se-ia dizer que é a interrogação ilimitada que o povo grego, e especialmente os atenienses
criaram sobre o sentido e validade das formas de pensamento e das instituições existentes. No
campo político, emergiu como questionamento da lei. Na acepção de Castoriadis (1983;
18
2000), a lei é a instituição da sociedade, a totalidade que a faz ser ela mesma, seus valores,
formas de organização e significações sociais instituídas. O questionamento exclui a lei como
imutável e o pensamento imposto, constituindo-se, por isso, no pressuposto da autonomia e da
liberdade.E, se a Grécia inaugura a liberdade num sentido profundo, apesar da escravidão e
da condição das mulheres, é que todos podem pensar de maneira diferente”, afirma
Castoriadis (1983, p. 22). Liberdade para pensar diferente é a condição primeira para haver
qualquer mudança, para a criação e a transformação do que é.
Investigar a democracia ateniense, verificar seu significado e os desvios, adesões e
recusas presentes nos diferentes discursos que foram produzidos sobre ela podem contribuir
para explicitar como a democracia pode tornar possível a criação de instituições e indivíduos
autônomos.
Finley (1988) apresenta as distinções entre a democracia antiga e a democracia
moderna por meio da relação que cada uma estabelece entre líderes e liderados, liberdade,
participação e conflito, e as implicações decorrentes. Segundo o autor, diferenças
significativas entre as concepções teóricas e práticas antigas e modernas de democracia
situam o povo (démos) em um dos pólos como apatia/participação, ignorância/compromisso,
alienação/educação, consenso/conflito, governo forte
5
/igualdade e liberdade,
especialistas/povo. Para os antigos, a participação política era a condição da cidadania,
pressupunha compromisso com a pólis, relação de igualdade (isótes kaì omoiótes) e de
amizade (philía) entre os cidadãos, liberdade de expressão igual para todos (isegoría) e
autocontrole. Na atualidade, um grande número de regimes políticos que trazem o nome de
democracia não podem ser considerados como tal, pois suas práticas reforçam a apatia, a
ignorância e a alienação do povo que deve estar sob a liderança de um governo forte cujo
sentido pode ser traduzido por governo autoritário ou populista, capaz de controlar o poder e
conduzir a política por meio da negação dos conflitos. A questão que se coloca portanto é em
que medida a política, como assunto que deve ser deixado para os políticos, pode ser
denominada democracia. Por meio da apresentação do sentido da democracia antiga, Finley
evidencia o vazio dos discursos modernos sobre a democracia que defendem que a política
deve se restringir a alguns representantes.
Para evidenciar os desvios do sentido da democracia, presentes em algumas teorias
modernas, Finley analisa as idéias de Lipset, o qual defende uma democracia em que as
5
O sentido da expressão governo forte é o de um governo capaz de conter as manifestações de contestação e
resistência ao pensamento e ao poder instituídos, garantindo a legitimidade das instituições e das decisões dos
representantes políticos. Governo forte é entendido, portanto, como aquele que se efetiva por meio da apatia
política e se constitui o pólo oposto à liberdade e à igualdade.
19
decisões políticas cabem aos líderes políticos e, por isso, considera a apatia do povo como
uma das condições favoráveis ao seu funcionamento, para evitar os extremismos e a perda de
controle do governo. Os movimentos extremistas, segundo Lipset, “atraem as pessoas
descontentes, desenraizadas, aqueles com fracassos pessoais, as socialmente isoladas, as
economicamente inseguras, aquelas sem instrução, as intelectualmente simples e as
autoritárias de todos os níveis” (apud FINLEY, 1988, p. 18). A ênfase dada à instrução como
condição para o bom desempenho na atividade política, e à sua falta como situação favorável
ao surgimento dos movimentos extremistas podem ter ressonâncias nas idéias de Platão, que
se opunha à participação dos sapateiros e comerciantes no poder decisório, afirma Flnley.
Platão defendia o governo pelos aristoi
6
e se opunha à democracia ateniense que estabelecia a
igualdade dos cidadãos na participação política. A democracia ateniense concebia os cidadãos
como iguais porque todos eram considerados igualmente capazes de decidir sobre as questões
políticas e a participação nas deliberações e condução a política da pólis eram não um
direito, mas um dever de todo cidadão. Assim, a participação política era compreendida como
uma exigência para o equilíbrio da pólis.
Lipset contraria o sentido clássico de democracia e a reveste com idéias elitistas
7
, ao
propor a necessidade de um grupo de líderes com capacidade para constituir um governo
forte, ao elogiar a apatia política e ao imputar perigo à participação política das pessoas
descontentes, desenraizadas, com fracassos pessoais, economicamente inseguras e sem
6
Para Platão, os aristoi, os melhores, a elite, são aqueles que ascenderam ao mundo inelegível, ao mundo das
idéias. Da demonstração de que a verdade do que é a justiça e a virtude derivam do conhecimento da idéia do
bem, e de que só os filosóficos, os amigos da sabedoria, poderiam alcançar esse conhecimento, Platão conclui
pela necessidade da união entre o poder político e a filosofia. Segundo ele filósofo-rei, é o legislador capaz de
pôr fim aos males da cidade, porque, na condição de filósofo pode ascender ao mundo inteligível e contemplar o
Bem, e, retornar ao mundo sensível e participar aos demais cidadãos o conhecimento da verdade, instando-os a
sair do mundo sensível e caminharem rumo ao inteligível, ao mundo das idéias.
Na descrição da atividade do filósofo na condição de governante da cidade, com a alegoria da caverna, sua
função é, a de formador da alma humana, orientando-a para agir com justiça e virtude. Deve auxiliar os homens
a não tomar a verdade pela sombra, a romper com as formas de perceber que estão presas ao mundo sensível e
ascender ao inteligível, à luz que permite ver com clareza a essência dos fenômenos. Deve possibilitar que os
homens possam se elevar da mera opinião que faz conjecturas ao pensamento que conhece. Os homens aspiram à
verdade e se aprazem em possuí-la mais do que a qualquer outro bem. A posse da verdade, no entanto, não se faz
sem muito esforço, e o processo para o conhecimento da verdade não é simples. A paidéia platônica está voltada
para a constituição do homem essencialmente humano, que busca na racionalidade das suas ações o que é mais
justo e virtuoso com a excelência no agir. Os interesses universais são mais dignos do que os particulares, pois é
na universalidade que os homens participam do que é mais característico da natureza humana (Rep., VII, 514
-527).
7
O termo elitismo utilizado por Lipset exprime o sentido exclusivista de poder político defendido por ele.
Elitismo corresponde à negação do direito de participação nas decisões políticas a todos os indivíduos,
eliminando aqueles que não têm estudos, que não possuem condições econômicas estáveis e aqueles que
contestam as formas de pensamento instituídas. O elitismo político pode ser traduzido como visão política
reativa a qualquer mudança ou contestação do instituído. (FINLEY, 1988).
20
instrução. São idéias que produzem, de um lado, a desqualificação do povo e, de outro, a
instituição de uma espécie de aristocracia política.
A perspectiva de Lipset, contudo, não se sustenta em face da experiência de
democracia de Atenas:
A democracia foi estabelecida em 508 a.C, depois de uma breve guerra civil.
Posteriormente, em sua história de quase dois séculos, o terror armado, a chacina sem
processo ou lei, foi empregado somente em duas ocasiões: em 411 e 404, nas duas
vezes por facções oligárquicas que se apoderaram do controle do Estado por períodos
curtos. E na segunda vez, em particular, a facção democrática, quando retomou o
poder, foi generosa e cumpridora das leis no tratamento que dispensou aos oligarcas,
tanto assim que teria sido elogiada até por Platão (FINLEY, 1988, p. 84).
Os acontecimentos históricos contrariam a perspectiva de Lipset e confirmam a
importância da participação coletiva nas decisões políticas para garantir maior justiça e
manter as relações entre os homens dentro de limites civilizados. O risco dos extremismos é
justamente o de deixar o poder político nas mãos de uma facção da sociedade, como
evidenciam os exemplos históricos.
Com uma descrição detalhada da forma como os atenienses instituíram a democracia,
Finley ressalta a participação do povo, que decide coletivamente em assembléia sobre todos
os assuntos de interesse da pólis. O autor demonstra que Atenas proporciona valioso material
de estudos de como a liderança política e a participação popular podem coexistir com sucesso
sem o risco do extremismo. Propõe a reinvenção de novas formas de participação popular
como o mesmo espírito dos atenienses.
A esse respeito Finley (1988) afirma:
A concentração de autoridade na Assembléia, a fragmentação e o rodízio dos cargos
administrativos, a escolha por sorteio, a ausência de uma burocracia remunerada, as
cortes como júri popular, tudo isso servia para evitar a criação da máquina partidária e,
portanto, de uma elite política institucionalizada. (p. 37)
A decisão coletiva por meio da discussão pública na Assembléia foi o traço decisivo
para que Atenas emergisse como uma nova sociedade, instituindo novos valores, novas
relações sociais e políticas, e possibilitando sua emergência como uma grande potência
cultural, política e militar. Ainda que o démos (povo) se reduzisse a uma minoria do sexo
masculino (que não ultrapassaram 35 a 40 mil), com exclusão das mulheres e de uma grande
população de escravos, essa verdade não deve transformar a experiência grega irrelevante.
“Atenas por quase duzentos anos conseguiu ser o Estado mais próspero, mais poderoso, mais
estável, com maior paz interna e culturalmente, de longe, o mais rico de todo o mundo grego”,
21
ressalta Finley (1998, p. 35). Em Atenas, era o povo que decidia: “Nem mesmo Péricles
detinha tal poder [...] A decisão era dos membros da Assembléia, não dele, ou de qualquer
outro líder; o reconhecimento da necessidade de liderança não era acompanhado por uma
renúncia ao poder decisório” (FINLEY, 1988, p. 37).
O traço definidor da distinção entre a perspectiva antiga e moderna de democracia está
na forma de democracia direta dos antigos em contraposição à forma representativa
8
da
democracia moderna, que cria uma relação de distanciamento entre lideranças e liderados e a
exclusão dos últimos do poder de decisão política. As democracias representativas anulam,
portanto, o próprio sentido de democracia, que é a participação do povo na direção política da
sociedade. Do conceito original de democracia, os modernos mantiveram o nome,
subtraindo toda concreticidade e sentido do termo, observa Finley (1988): "Naturalmente,
‘democracia’ é uma palavra grega. A segunda metade da palavra significa ‘poder’, ou
‘governo’, daí autocracia é o governo de um só homem; aristocracia, governo pelos aristoi, os
melhores, a elite; democracia, governo pelo demos, o povo" (p. 25).
Ao situar a história da democracia, Finley (1988) lembra que o governo popular era
desaprovado pela esmagadora maioria dos intelectuais da Grécia antiga e que a palavra
democracia desapareceu do vocabulário até o século XVIII, quando ressurgiu como termo
pejorativo. Com o grande debate no século XIX, com o advento da Revolução Americana e da
Revolução Francesa, a democracia alcançou aprovação entre os dirigentes políticos e os
intelectuais. O consenso em relação ao termo implicou a perda do conceito, mas também
indica uma complexidade maior envolvendo a questão da democracia:
De certo ponto de vista, esse consenso significa uma desvalorização do conceito ao
ponto em que chega à inutilidade analítica, como vimos. Não obstante, seria um
erro reduzir o assunto a isso. (...) Devemos considerar não apenas a razão pela qual a
teoria clássica de democracia parece estar em contradição com o que é observado na
prática, mas também por que as muitas reações diferentes a essa observação, embora
mutuamente incompatíveis, compartilham todas da crença de que a democracia é a
melhor forma de organização política (FINLEY, 1988, p. 23-24).
A crença de que a democracia é a melhor forma de organização política e que, após
dois séculos, a democracia continua reivindicada como a melhor forma de os homens
viverem, faz sentido investigá-la. Se os teóricos que se encontram em um campo ou em outro
das perspectivas de democracia acreditam estar defendendo a genuína democracia, analisar os
8
No sentido político, sistema representativo é o que se baseia no princípio de delegação de certos poderes
políticos a alguns cidadãos, feita por uma parte dos cidadãos (ABBAGNANO, 2000, p. 854).
22
princípios que tradicionalmente justificaram a democracia pode ajudar a esclarecer a questão,
por isso, os processos da criação da democracia ateniense são uma experiência que deve ser
recuperada.
Na tradição, a democracia sempre se orientou pelos ideais de justiça, de liberdade e de
igualdade nas relações entre os homens. A democracia ateniense foi criada com base no ideal
de vida humana organizada por meio de relações de igualdade e de cooperação entre os
cidadãos. Havia a compreensão de que a capacidade para decidir sobre a condução da vida
pessoal e coletiva é inerente a todos os homens livres, e que a pólis (cidade-estado) devia ficar
afastada dos interesses das classes (em Atenas dizia respeito aos ricos e aos pobres) e das
facções (representadas pelas oligarquias). Para os antigos, os fins e objetivos da pólis são
morais, atemporais e universais e podem ser atingidos pela educação, e pela atividade política,
e, na relação com a pólis, o cidadão era o responsável pela criação e pelo cumprimento das
leis. “A liberdade significava o predomínio da lei e a participação no processo decisório, não a
posse de direitos inalienáveis”, afirma Finley (1988, p. 33).
A democracia ateniense criou a idéia de que o poder está sempre vazio e a expressa na
seguinte forma: a relação entre lideres e liderados é direta com a condição de a assembléia
poder rever a cada momento as decisões tomadas e os dispositivos institucionais, como o
sorteio para a ocupação dos cargos, o graphé paranomon (dispositivo pelo qual um homem
poderia ser denunciado ou julgado por fazer uma proposta considerada ilegal na assembléia).
De par com a participação do povo no poder, a criação da autolimitação, uma das
condições que asseguraram a realização da democracia. A responsabilidade pela pólis
estende-se às formas de atuação na assembléia, à responsabilidade pelas propostas
apresentadas à assembléia.
A respeito de duas controvertidas questões da democracia ateniense o império e a
escravidão Finley as explica por meio das descobertas da psicologia, da antropologia e da
observação política, que ensinam “que devemos reconhecer que outras sociedades podem
agir, e agiram, de boa segundo princípios morais diferentes dos nossos, até mesmo
execráveis para nós” (FINLEY, 1988, p. 110). Não se está aprovando a escravidão quando se
constata que ela e o melhor da cultura grega estavam inseparavelmente interligados e também
não se está defendendo o império ao compreender que o sistema plenamente democrático da
segunda metade do século V a.C não teria sido criado se não fora o império, pois explicação
histórica e julgamento moral não são idênticos.
A experiência ateniense de democracia apresenta certas distinções que merecem
atenção para uma reflexão sobre a democracia como modo de existência dos homens vivendo
23
com igualdade e liberdade. Se os atenienses não encontraram a solução perfeita, não erraram
no fundamental. Durante a democracia em Atenas não ocorreu guerra civil, mas uma ampla
distribuição dos fundos públicos. Havia liberdade de expressão, e os cidadãos não temiam a
critica política porque confiavam em si mesmos, em sua capacidade de julgamento e
disciplina. Os atenienses participavam ativamente do poder político, da condução política da
cidade, dos seus negócios e da sua cultura. Não criaram o especialista em política porque
acreditavam que todos possuem capacidade de julgamento e decisão política.
Quanto à necessidade da coesão social, “uma sociedade verdadeiramente política, na
qual a discussão e o debate são técnica fundamental, é uma sociedade cheia de riscos. [...] De
tempos em tempos é inevitável que haja uma contestação radical. Isso não é inevitável, é
também desejável” (FINLEY, 1988, p. 155-156). Uma democracia é uma organização social e
política e a validade de suas leis e instituições deve estar sempre aberta ao questionamento,
sendo a defesa da liberdade desse questionamento o traço definidor dos argumentos que a
favorecem ou a denegam.
Os argumentos de Finley em defesa da participação do povo no poder político são
importantes, pois questionam os pilares do poder do capitalismo contemporâneo: o controle e
a manipulação do povo por meio do discurso da necessidade da especialização para o
exercício da atividade política cada vez mais presente, e a negação do conflito como inerente
à sociedade, atribuindo-lhe um caráter de perigo que deve ser evitado.
A possibilidade de pensar livremente e questionar a instituição da sociedade
possibilitou aos gregos autocriarem-se com a consciência de que a sociedade é obra dos
homens que agem coletivamente e que eles devem cria-las da melhor forma possível. O
domínio da autonomia é sempre também o domínio da responsabilidade, por isso, na
democracia ateniense, o direito do cidadão referia-se a capacidade de participação e de
deliberação política, que eram também um dever e sempre diziam respeito à construção da
pólis.
Pensar a democracia ateniense pode contribuir para romper com as visões modernas de
democracia que concorrem mais para obliterar do que para promover relações sociais
democráticas. O especialista político, proposto na Modernidade forma representativa do
poder – representa a defesa dos interesses da classe dominante sob o disfarce da democracia.
Para Vidal-Naquet (2002), é importante e significativo o estudo sobre a Grécia antiga
porque ela é o passado do ocidente. Em Atenas, surgiu pela primeira vez o projeto de
democracia, em que a igualdade e a liberdade social representavam ideal de vida coletiva.
Esse projeto foi retomado em vários momentos da história do Ocidente, sobretudo nos Século
24
das Luzes e da Revolução Francesa. O diálogo sempre presente com a Grécia antiga e com a
Atenas democrática é a história do Ocidente e não se pode eliminá-lo. Trata-se de uma
história feita de contínuas e diferentes interpretações. A Grécia clássica de Tucídides dos
séculos V e IV não é a mesma do Século das Luzes e da Revolução Francesa e menos ainda a
dos Séculos XIX e XX que fizeram renascer a Atenas democrática de Clístenes.
A Antigüidade é tradição
9
de pensamento do ocidente, que o leva dialogar com ela. O
discurso democrático dos gregos e o fato de a democracia ter sido objeto de interpretações
sucessivas na história, e a partir do Renascimento fazem da democracia uma herança política.
Verificar em diferentes períodos da história as interpretações dos conceitos, idéias e valores
da Antigüidade é importante para entender em que sentido ela influenciou, foi aceita e se
tornou a tradição do pensamento do Ocidente.
Vidal-Naquet (2002) esclarece:
A Grécia não está na nossa história, e para compreender esta última não temos
nenhuma necessidade de saber como funcionava a assembléia ateniense, o que era o
boulé (o conselho) e como era aplicado o ostracismo. O que está na nossa história, ou
pelo menos numa parte da nossa história, e que não podemos extirpar, porque ela é o
passado, é o diálogo com a Grécia e, antes de tudo, com os textos gregos. A
reelaboração da herança grega, ora sob forma mítica ou ideológica, ora sob o trabalho
crítico e científico, é um dos dados da nossa história intelectual, que se exprime na
criação, incessantemente renovada, de novos modos de discurso, de novos conceitos,
de novos campos epistemológicos (p. 254-255).
Com a advertência de que o olhar que se lança sobre o passado é um olhar de homens
do tempo atual, Vidal-Naquet situa a discussão da democracia grega por meio da descrição
das diferentes interpretações históricas, situando o Século das Luzes e a Revolução Francesa,
os grandes marcos dos quais saíram as mais diversas versões e questionamentos sobre a
Antigüidade. Segundo ele, o grande debate no Século das Luzes entre os partidários de Atenas
e os admiradores de Esparta, que envolvia toda a Europa, não polemizou, contudo, acerca da
democracia como sistema de poder. As discussões detinham-se entre a austeridade virtuosa de
Esparta e o luxo de Atenas. A Atenas contemplada era a liberdade de comércio, de
pensamento e o poder do imperialismo marítimo, e Esparta significava a austeridade e o
civismo. Os partidários de Esparta, como Rousseau e Robespierre, imprimiram um caráter de
luzes ao modelo de organização espartano, hierarquizado, igualitário e harmônico. O debate
no Século das Luzes fez renascer não a democracia participativa de Atena, mas o grande líder
e sua capacidade de condução do povo. Os intelectuais apontavam Esparta como referência de
organização política.
9
Por tradição Vidal-Naquet (2002, p. 254-255), entende o que está presente na história, aquilo que constitui o
passado, que é o diálogo com a Grécia e, sobretudo, com os textos gregos.
25
Na herança das Luzes, a democracia ateniense foi violentamente criticada pelos
intelectuais que viam Esparta como o ideal de cidade e não Atenas. “Entre Esparta e Atenas, a
tradição escolheu Esparta”, afirma Vidal-Naquet (2002, p. 244). Atenas, nesse período,
significava “menos a democracia como sistema de poder do que a liberdade de empreender,
de consumir, de comerciar, ideal propagado na França” (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 220),
pela maioria de seus intelectuais. A tradição das Luzes imprimiu um conteúdo bastante
particular à democracia, substituindo a ação do povo pelo papel do líder, a participação e o
diálogo pela hierarquia e controle políticos com a interpretação que fez da democracia antiga.
Com as Luzes a tradição deixou de ser uma democracia instituinte e transformou-se em uma
democracia instituída. A tradição com a qual se nutriram os homens das Luzes foram os
escritos dos filósofos do século IV, que eram inimigos da democracia, sobretudo os
fundamentos da filosofia de Platão, que foio mais violento crítico da democracia” (VIDAL-
NAQUET, 2002, p. 181).
A tradição das Luzes foi escolhida pela Revolução Francesa. “Esparta é o símbolo por
meio do qual os revolucionários concebem a sua própria sociedade como ‘transparente’, isto
é, como imaginariamente unificada, conhecendo traidores e velhacos, mas não conflitos,
facções, partidos nem classes sociais”, afirma Vidal-Naquet (2002, p. 247). A visão adotada
pela Revolução pelo intermédio da produção teórica dos pensadores iluministas foi a da
virtude centrado no indivíduo, no herói, como princípio da democracia.
A tradição ocidental criou diferentes formas de aproximação e de recusa dos princípios
originários da democracia. A tradição das Luzes e da Revolução Francesa marcou
profundamente o modo de pensar e de fazer política da atualidade, mas ela não correspondeu
com o sentido originário da democracia. O sentido da democracia como participação de todos
no processo decisório, por meio do debate público e do voto direto, compôs também a
tradição de pensamento do ocidente.
A relação de Vidal-Naquet (2002) com a Antigüidade e com a tradição do pensamento
insere-se na compreensão de que “a democracia é possível, e a política é por definição assunto
de todos” (p. 182). Contrapõe-se, portanto, às diversas concepções sobre a democracia desde
o Século das Luzes, com as variantes contemporâneas que buscaram circunscrevê-la nos
limites da ação de alguns líderes políticos, negando a participação do povo. Por meio da
apresentação da obra de Finley, Democracia antiga e moderna (1988), que retoma o ativismo
político ateniense e a idéia de que a apatia não favorece a democracia, mas corrói suas bases,
Vidal-Naquet ressalta a importância da democracia ateniense e situa algumas de suas
realizações que atestam que, em Atenas, a liberdade e a igualdade ganharam, pela primeira
26
vez na história, realidade concreta. O ativismo político possibilitou ao ateniense romper com o
instituído e criar novas formas de organização social. A reforma de Clístenes
10
, o evento
criador da democracia, foi uma delas, pois promoveu-se ampliação da participação no poder
político que se constitui no princípio da democracia. Outra grande realização dos atenienses
foi a de criar as condições de igual participação no poder com a integração dos camponeses e
dos artesãos, com a criação de artifícios, como a gratificação de função e os sorteios para
ocupação dos cargos legislativos. Atenas soube dar sentido à liberdade e à igualdade
estabelecendo a isegoría, o direito legal à palavra, esse par da isonomía, o direito legal à
elaboração e à recepção da lei, que foram os primeiros nomes da democracia” (VIDAL-
NAQUET, 2002, p. 179).
A democracia ativista recoloca a discussão da participação do povo no poder político,
questiona as chamadas democracias modernas que prestam culto à apatia política e rompe
com o instituído ao desvelar o caráter ideológico dos discursos modernos sobre a participação
do povo no poder. E ainda retoma o sentido da democracia na criação ateniense, que são a
liberdade e a igualdade expressas por meio do diálogo e do compromisso político.
Sobre o sentido exclusivista da democracia ateniense, expresso na existência de
escravos e na exclusão da participação nas decisões políticas dos estrangeiros e das mulheres,
Vidal-Naquet chama a atenção para as condições possíveis aos homens daquele tempo que
instituíram uma nova forma de organização social. A democracia possibilitou a emergência de
duas novas classes de homens livres: o artesão e o camponês. “Numa oração fúnebre citada
por Tucídides (II, 40, 1), Péricles presta ao trabalho, isto é, ao artesanato, uma homenagem
discreta” e “a presença na ekklesía [assembléia] de sapateiros, de carpinteiros e pisoeiros
advoga contra toda exclusão, mesmo de fato” declara Vidal-Naquet (2002, p. 177). Ainda
que sejam inegáveis as conseqüências dessas restrições da democracia, deve-se recusar o
atributo de totalitarismo à Atenas:
Se quiserem, a qualquer preço, encontrar, na Antigüidade grega, um modelo das
sociedades totalitárias modernas, ele não será achado na democracia ateniense e nem
mesmo na oligarquia espartana. Poder-se-á encontrá-lo nos projetos que o mais
encarniçado dos inimigos da democracia concebeu para remediar os males da
sociedade grega, e estou falando mesmo de Platão (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 210).
10
Segundo Vidal-Naquet (2002), a reforma de Clístenes em 508 a. C, foi considerada, a partir do século XIX, o
episódio fundador da democracia ateniense. A reforma de Clístenes em 508 consistiu na criação das dez novas
tribos, substituindo as quatro tribos gentílicas, e um espaço cívico inteiramente reconstituído, misturando gente
da cidade, do interior e da costa. Vidal-Naquet a confirma a importância da reforma por meio dos argumentos de
um crítico da democracia: “Barthélemy, por uma espécie de intuição genial, diz que a conseqüência da reforma,
diz ele, consistiu em ‘levar todos os cidadãos, sem qualquer distinção, a participar dos negócios públicos’.
Publicar isso em 1788, mesmo com espírito de hostilidade, era dar provas de uma bela lucidez” (p. 244).
27
A contradição da realidade dos gregos fez surgir um tipo de antinomia da filosofia da
Grécia antiga que se manifestam entre a crítica à democracia e a inevitável marca democrática
na expressão filosófica. Para Platão, o mais ferrenho crítico da democracia, que travou intensa
luta contra os sofistas, o valor da oralidade
11
era infinitamente superior à escrita, pois aquela
pertence ao campo do debate e do diálogo das idéias enquanto a escrita pertence à arte e ao
mito. Aristóteles define a política como a ciência mais elevada:
Se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que desejamos por si
mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se não escolhemos tudo por causa
de algo mais (se fosse assim, o processo perseguiria até o infinito, de tal forma que
nosso desejo seria vazio e vão), evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o
melhor dos bens. [...] Aparentemente ele é o objeto da ciência mais imperativa e
predominante sobre tudo. Parece que ela é a ciência política, pois esta determina quais
são as demais ciências que devem ser estudadas em uma cidade, e quais são os
cidadãos que devem aprendê-las, e até que ponto; e vemos que mesmo as atividades
tidas na mais alta estima se incluem entre tais ciências, como por exemplo a estratégia,
a economia e a retórica” (Ét., Nic., I, 2, 1094 a - b, 2).
Com a história da democracia, Vidal-Naquet evidencia que esta é o resultado de
relações de forças, nas quais estão imbricadas escolhas, que envolvem diálogo, poder e
decisão. Sua análise apresenta a história como um diálogo entre o presente e o passado e
mostra que o pensamento crítico forma uma sucessão de interpretações que ao mesmo tempo
elucida o conhecimento da realidade e mostra a fragilidade das análises.
Sua análise mostra ainda que o ato de pensar, assim como a atividade política, não
cabe em sistemas fechados, pois pensar uma realidade social contraditória pressupõe decisões
e escolhas, do que resulta um pensamento que também não pode eximir-se de contradições. A
concepção dos filósofos antigos da divisão dos homens, entre os que decidem e os que fazem,
foi retomada no Século das Luzes, pela Revolução Francesa e ainda prevalece no imaginário
social, pois se não mais escravos (ao menos oficialmente), a divisão entre os homens, e
sobretudo entre seus interesses, permanece. Rousseau (2003) já criticava os modernos por
11
Sobre a dimensão da oralidade em Platão, Reale (2002) evidencia o choque entre duas culturas vivido por
Platão – uma fundada sobre a oralidade, da qual seu mestre Sócrates foi o maior representante, e a emergência da
escrita que se tornava predominante. Essas duas culturas marcaram profundamente a filosofia de Platão. A
importância da oralidade em Platão pertence aos estudos mais recentes da filosofia: “a passagem do Fedro
afirma sem rodeios que o filósofo é verdadeiramente tal tão-somente e na medida em que não confia aos
escritos, e sim ao discurso oral as coisas de maior valor’” (REALE, 2002, p. 15) O sentido do escrito para
Platão, segundo Reale (2002) era apenas um recurso à memória. Na relação entre o escrito e a oralidade, Platão
considerava esta bem superior: “A escritura implica uma parte notávél de ‘jogo’, (...) e mais poderoso que o
discurso confiado à escritura é o discurso vivo e animado” (p. 15).
Sobre as doutrinas não-escritas de Platão um estudo fundamental do Giovanni Reale. Para uma nova
interpretação de Platão: releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das “doutrinas não-escritas” (Reale,
2004).
28
viverem uma servidão voluntária, para usar a expressão de La Boétie, ao se alienarem do
poder político, deixando as decisões sobre a vida social nas mãos de alguns poucos homens
denominados de representantes do povo. Trata-se de servidão voluntária porque, não sendo
mantidos como escravos, os homens poderiam escolher não submeter à vontade de outrem e
decidir seu destino, mas preferem, ou por covardia ou por preguiça, abrir mão da liberdade.
Se a representação política foi questionada por Rousseau, a questão da validade da forma
representativa do poder político, atualmente, constitui o ponto de partida para a reinvenção
democrática.
Os desvios, adesões e recusas do sentido originário da democracia correspondem às
diferentes formas como foram estabelecidos os diálogos com os textos gregos, e as idéias
contrapostas de democracia são a história do ocidente, a sua herança política. Contudo, os
desvios e recusas do significado originário da democracia com a eliminação do povo na
participação política com a usurpação do seu direito de deliberação sobre a vida comum
resultaram na supressão da própria política, que é a efetivação da democracia e que
dimensão pública e coletiva à existência humana.
2 Democracia ateniense:
embrião do projeto de
autonomia
A democracia ateniense, ao criar a política como atividade pública e coletiva cujo
exercício era por direito, competência de todos os cidadãos, recusou a concepção heterônoma
dos indivíduos a idéia de que homens que precisam ser dominados ou tutelados por
outrem. A democracia direta é recusa de toda hierarquia política e pressupõe a autonomia
social e individual. Assim, a democracia, como dimensão pública e coletiva da política
realizada em Atenas, é expressão da autonomia dos cidadãos e, ao mesmo tempo, criação da
sociedade autônoma. Nesse sentido, afirmar a autonomia dos homens e da sociedade significa
retomar a democracia, a política como atividade de criação do social-histórico. A política em
seu sentido genuíno, como atividade pública e coletiva, é um pressuposto da autonomia e visa
a autonomia de todos.
Para Castoriadis (1992; 1999; 2002; 2004), os homens são responsáveis pelo que se
passa na história. As sociedades são formas ontológicas criadas pelos homens sem a
29
participação de nenhuma instância extra-humana, leis ou deuses, por isso, são os homens os
únicos responsáveis pelo instituído e pela possibilidade de instituição de novas formas de
existência. Esse modo de conceber a sociedade surgiu pela primeira vez na Grécia antiga, com
a criação da política e da filosofia. Em Atenas, entre o século VIII e o século IV a.C., criou-se
o projeto de autonomia social com a instituição da democracia como forma de vida coletiva.
O processo de criação humana e de alteridade histórica é obra do imaginário radical instituinte
como expressão de um projeto de autonomia individual e social.
Castoriadis busca elucidar as significações do fazer social-histórico humano, que são
produto da relação entre o imaginário
12
social intituinte e o instituído, para imprimir um
sentido, e dar consistência ao projeto de transformação radical da sociedade. Na constituição
do imaginário social participam: a tradição, o consciente e o inconsciente, a autonomia
(possibilidade de a autocriação e a auto-alteração individual e social constituírem como
práxis) e a heteronomia (negação do caráter histórico-social da sociedade). Na relação com
essas questões, na forma como cada um, homem e sociedade se constituem como seres social-
históricos e, em face delas, a possibilidade para a práxis, atividade criadora, ou para a
alienação, atividade circunscrita à repetição (reflexo), um fazer que não é fazer humano
porque é reduzido à técnica. Em relação a essas questões, situam-se as análises do autor sobre
a emergência histórica do fazer humano como práxis, portanto, como projeto de instituição
autônoma da sociedade.
A relação entre a tradição e o presente diz respeito ao processo de criação social, um
projeto de autonomia que envolve julgamento e escolhas e é, simultaneamente,
questionamento e reinterpretação. O presente deve interrogar e deixar-se interrogar pela
tradição e construir sobre ela novas interpretações. Segundo Castoriadis (2004),
a relação que os atenienses do século v mantinham com o passado se apresenta não
como modelo, mas como um germe, um índice de possibilidades realizadas. A
tragédia não “repete” os mitos; ela os reelabora e os transforma para que saídos de um
passado imemorial, eles possam investir a linguagem e as formas do mais vivo
presente e, desse modo, atingir os seres humanos de todos os futuros possíveis (p.
195).
12
O imaginário segundo Castoriadis (2000) está na raiz tanto da criação como da alienação, pois ambas dizem
respeito à capacidade de fazer ser o que não é. A alienação é a autonomização e a dominância do momento do
imaginário que não reconhece no significado das instituições seu próprio produto. A criação pressupõe o
questionamento, a decantação desse imaginário e a instituição de uma outra realidade que se faz por meio do
imaginário radical imaginário como projeto de transformação social. O imaginário não é imagem refletida ou
reflexo. A história só é possível e concebível com o imaginário radical ou imaginação criadora, que se manifesta
no fazer histórico e na constituição de um universo de significações.
30
A questão que se impõe na relação com o passado é que ele é constitutivo das
possibilidades humanas, dos outros possíveis do homem e da sociedade que se encontram
sempre em parte realizados. O presente, ao reelaborar o passado, reveste essas possibilidades
de novas formas e outras significações e, ao realizá-las, ele se transforma, criando-se como
outro e um novo tempo. Na Grécia antiga, que é tradição de pensamento ocidental, surgiu pela
primeira vez o projeto de autonomia com a democracia ateniense, em cujo sentido, a tradição
deve ser visada.
A tradição é a história humana que é sempre e, ao mesmo tempo, criação, recriação e
destruição e se refere tanto ao sublime quanto ao monstruoso, e o que deve ser visado na
história são “os outros possíveis do homem” (CASTORIADIS, 2000, p. 196). O monstruoso é
tudo que denega a condição histórica do ser humano o sentido da autocriação, as
possibilidades do homem de criação de si próprio e da sociedade. O monstruoso refere-se aos
totalitarismos sob qualquer modalidade. Assim, na relação com a tradição deve-se visar a
reelaboração da autonomia efetivada na história, pois a tradição ocidental não criou a
democracia e forjou o totalitarismo, mas, especialmente, criou a liberdade no sentido da
possibilidade e da responsabilidade de escolher. “Quando se Tucídides, não aparecem
atenienses atribuindo suas desgraças à cólera de Deus; eles reconhecem os resultados de suas
próprias decisões e ações”, afirma Castoriadis (2004, p. 194). Por essa dimensão de liberdade
e responsabilidade, Atenas surge como possibilidade humana.
Ao retomar a questão freudiana da relação consciente/inconsciente, Castoriadis (2000)
afirma que o mundo histórico é o mundo do fazer humano em que também está presente o
homem que permanece sempre como incógnita para si mesmo. A ação humana dá-se com a
presença constante e simultânea do racional e do irracional, o que exclui a possibilidade de
um controle total sobre ela. O cruzamento entre o racional e o irracional como condição da
ação assinala, portanto, que “o fazer implica que o real não é totalmente racional”
(CASTORIADIS, 2000, p. 99). Nesse sentido, são indefensáveis os pressupostos modernos de
ciências, consubstanciados na afirmação da possibilidade de um conhecimento completo e
transparente. Um conhecimento completo e transparente não é possível nem no tocante a
natureza, posto que é sempre uma criação humana, e é menos possível ainda se se trata do
homem e da sociedade. A idéia moderna de que é possível um conhecimento completo e
transparente do homem e da natureza edifica-se sob a fantasia das possibilidades de um saber
e de um controle absolutos sobre a realidade social, a natureza e os homens. Na expressão de
Castoriadis (2000), “nenhum saber humano é não consciente; mas nenhum poderá continuar
nem por um segundo, se estabelecêssemos a exigência de um saber exaustivo prévio, de uma
31
total elucidação de seu objeto e de seu modo de operar” (p. 91). A possibilidade para a práxis
social-histórica pressupõe o reconhecimento da abertura do seu objeto e da aceitação de que
dela participa um inconsciente que não pode e nem deve ser controlado. “Com minha
imaginação, meus afetos, meus desejos posso me entender, mas não posso, nem devo dominá-
los. Devo dominar os meus atos e as minhas palavras, o que é outra coisa”, afirma Castoriadis
(1992, p. 146). A imaginação e os afetos não podem ser controlados, pois impedir-se-ia a
criação, mas devem ser compreendidos para a superação da dominância do momento
imaginário e o império dos desejos sobre a consciência do indivíduo. Compreender a
imaginação, os desejos e os afetos possibilita ao indivíduo dominar os seus atos e suas
palavras, que é o sentido da autolimitação.
Castoriadis (2000) situa a autonomia em dois planos individual e coletivo
indissociáveis, pois nenhuma autonomia individual pode superar a alienação social instituída.
Considera ainda o autor que “a autonomia está no âmago dos objetivos e dos caminhos do
projeto revolucionário” (p. 122) e sua realização plena só é possível coletivamente. A
autonomia é a regulação por si mesmo e opõe-se à heteronomia, que consiste em deixar-se
regular por outrem.
A autonomia individual consiste na instauração de uma outra relação com o discurso
do outro, não é negá-lo totalmente, tampouco apenas afirmá-lo, e, como diz Castoriadis
(2000),
um discurso que é meu é um discurso que negou o discurso do outro; que o negou, não
necessariamente em seu conteúdo, mas enquanto discurso do Outro; em outras
palavras que, explicitando ao mesmo tempo a origem e o sentido desse discurso,
negou-o ou afirmou-o com conhecimento de causa, relacionando seu sentido com o
que se constitui como a verdade própria do sujeito como minha própria verdade (p.
125).
A dimensão social da autonomia impõe ao indivíduo a necessidade de romper com a
heteronomia instituída. Uma sociedade instituída por meio da heteronomia exclui as
possibilidades do discurso com a ocultação do significado das instituições como criação dos
homens. A heteronímia instituída se apresenta nas relações de dominação e exploração entre
os homens, com a burocratização das instituições sociais, com a hierarquia política, com a
eliminação da dimensão pública da existência, com a recusa das possibilidades de criação
humana. Nessas instituições heterônomas, os mecanismos sociais que mantêm a alienação
adquirem cada vez maior neutralidade e invisibilidade, ao mesmo tempo que o outro
desaparece como outro, e ressurge como lei, na racionalização do plano, ou como força,
32
diante das metralhadoras. As leis, as decisões políticas, o uso e o abuso da força, que devem
ser tratados como criação dos homens, passam a ser interpretados como uma exigência do
funcionamento das instituições. A alienação produzida pelas instituições gera uma situação
invertida, o que poderia ser visto como “um conjunto de instituições a serviço da sociedade,
transforma-se numa sociedade a serviço das instituições” declara Castoriadis (2000, p. 133).
Em uma sociedade heterônoma, não liberdade, escolhas ou atividade política, e nela
prevalecem o determinismo e a violência e reina a heteronomia instituída. “As únicas vias de
manifestação identificável da psique singular são a transgressão e a patologia”, diz Castoriadis
(1992, p. 123). O indivíduo, em uma sociedade heterônoma, fica reduzido às determinações
sociais, sem o poder de instituir-se por meio da individuação, da manifestação do imaginário
radical da psique singular. “A ocultação da auto-instituição (da autocriação da sociedade) e a
ocultação da auto-alteração (da historicidade da sociedade) são as duas faces da heteronomia
social”, elucida Castoriadis (2004, p. 183). A heteronomia é a condição infantil de que a vida
é dada, que a Lei é dada e sobre elas, o homem não dispõe de nenhum poder e, portanto,
também, nenhuma responsabilidade, bem como que o indivíduo é incapaz de mover-se, em
virtude da autolimitação, que é condição de existência da autonomia.
Política é a expressão do projeto de autonomia, sem o qual ela é substituída pelas
articulações de interesses, intrigas, conspirações e tráfico de influência. A autonomia abre
caminho à manifestação do instituinte, reflexibilidade na atividade instituinte explícita e no
exercício do poder instituinte. Por meio da práxis política, atividade política autônoma, os
homens rompem com o imaginário instituído e criam novas formas de vida social. O
imaginário instituinte promove a autocriação e a auto-alteração da sociedade, ao colocar em
questão o instituído. “Os dois pólos irredutíveis são o imaginário radical instituinte – o campo
da criação socio-histórico e a psique singular” informa Castoriadis (1992, p. 123). O sujeito
não é redutível a sua instituição social histórica, posto que não é apenas sua expressão o que
significaria reduzi-lo a um robô, pois ele é constituído de um inconsciente e de imaginário
radical. “O sujeito não é redutível a sua instituição social-histórica, é sempre outra coisa e
mais do que sua definição social de indivíduo, sem o que ele seria apenas robô ou zumbi”,
afirma Castoriadis (2000, p. 380). A instituição social histórica também não pode ser reduzida
ao indivíduo, se ela não o é. O indivíduo privado produz apenas fantasmas e não instituições.
A instituição da sociedade é obra do imaginário social instituinte, manifestação do fazer
histórico e das significações sociais constituídas por e nesse fazer.
O projeto de autonomia manifesta-se como contestação e ruptura com o imaginário
social instituído e na criação de novas formas de pensamento com o questionamento das
33
instituições presentes. Por isso, o projeto de autonomia enfrenta resistência da sociedade que
investe para impedir sua emergência. O imaginário social instituinte, como manifestação do
projeto de autonomia social, ao colocar em questão as instituições, surge como um perigo
para o poder instituído que passa a criar diversos mecanismos para impedir sua manifestação.
Na expressão de Castoriadis (1992), “o ponto onde as defesas da sociedade instituída são mais
fracas é sem dúvida o seu imaginário instituinte” (p. 130), e, por isso, é o ponto em que as
sociedades, suas instituições, mais investem para impedir a manifestação de projetos de
autonomia.
Característicos dessa situação de investimento do poder instituído contra o poder
instituinte são os fenômenos da indústria cultural e da indústria política. Ambos funcionam
como meios de efetivação do poder autoritário na sociedade, pois servem para conter a
participação das classes populares no poder político, com o controle das suas atividades,
pensamentos e desejos.
A indústria cultural, termo cunhado por Adorno e Horkheimer (1985) para descrever
os instrumentos ideológicos das sociedades capitalistas e dos regimes políticos totalitários,
investe contra todas as formas de manifestação que promovam rupturas nos valores, relações
e significados sociais instituídos.
A indústria cultural produz a alienação social com a destruição da cultura popular,
sobretudo com a negação da imaginação e da criatividade e, portanto, das possibilidades da
emergência do novo.
De acordo com Adorno e Horkheimer (1985),
essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da
cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do
novo. (...) A seu serviço estão o ritmo e a dinâmica. Nada deve ficar como era, tudo
deve estar em constante movimento. Pois só a vitória universal do ritmo da produção e
reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada surgirá que não se
adapte. O menor acréscimo ao inventário cultual comprovado é um risco excessivo (p.
126).
A indústria cultural reduz a cultura à diversão e ao consumo, e impõe ao indivíduo
renúncia e adaptação, pois sua ação deve ficar limitada ao ritmo e à dinâmica do capital. A
base para sua efetivação é, de um lado, a instituição do sentimento de impotência do indivíduo
em face da sociedade, e de outro, uma oferta da fuga dessa condição por meio do consumo e
da diversão. Para Adorno e Horkheimer (1985), “a diversão favorece a resignação que nela
quer se esquecer” (p. 133), porque ela é negação da emergência de toda resistência à
organização social instituída.
34
A indústria política, termo apresentado por Chauí (1990), e consubstancial à industria
cultural, viabiliza a suposta participação popular nas decisões políticas, mas que não passa de
manipulação de seus interesses e de controle político da sua ação pela ideologia dominante.
Por meio da informação controlada e manipulada “a indústria política surge para responder ao
alargamento das bases sociais do poder, graças aos partidos e ao sufrágio universal, mas
justamente para impedir que tal alargamento tenha efeitos reais (...) sobre a sociedade”
(CHAUÍ, 1990, p. 191). A indústria política associada aos meios de comunicação é um
instrumento da burguesia para assegurar a viabilização de seus interesses sob uma aparente
participação popular no poder político. Com o monopólio dos meios de informação, a
burguesia cria a indústria política transformando a política em uma atividade de propaganda
de convencimento e de manipulação das classes dominadas, esvaziando o debate e o conflito
inerentes à política.
Castoriadis (2002; 1992; 1999; 2004) retoma o sentido etimológico da palavra
democracia, poder do povo, para negar a sua existência nos regimes políticos atuais. Existem
atualmente, nos países europeus ocidentais com o nome de democracia, oligarquias liberais
que, por meio da privatização do público, da apatia e da desinformação do povo, mantêm o
poder político com o controle do Estado. O poder das oligarquias liberais pressupõe, de um
lado, manter o povo afastado dos interesses públicos, criando instituições sociais fortemente
hierárquicas e burocratizadas que formam os aparelhos de Estado, os partidos políticos, os
sindicatos, e, de outro, a criação de um indivíduo ávido de consumo.
Conforme Castoriadis (1999),
o capitalismo parece ter enfim conseguido fabricar o tipo de indivíduo que lhe
“corresponde”: perfeitamente distraído, zappando de uma “fruição” para outra, sem
memória e sem projeto, pronto a responder a todas as solicitações de uma máquina
econômica que, cada vez mais, destrói a biosfera do planeta para produzir ilusões
denominadas mercadorias (p. 82).
As características da sociedade, que faz dela uma instituição destruidora das
possibilidades da existência da vida, são os valores capitalistas. Destituído de todo sentido de
justiça, de liberdade e de igualdade, que são os valores que sustentaram a democracia antiga,
o capitalismo orienta-se pelo econômico, pela defesa e afirmação de interesses individuais e
particulares, e seus valores reduzem-se ao consumo. Como diz Castoriadis (2004), “esses
valores não apresentam ambigüidade alguma: vive-se e morre-se para aumentar o consumo”
(p. 235). E, para que o regime oligárquico liberal se torne possível, é necessário que as
“pessoas passem efetivamente seu tempo nos supermercados e diante de suas televisões” (p.
35
239), que não se percebam como responsáveis pelo que a sociedade instituída é e pelo poder
instituinte do qual são portadores e que implica, portanto, que as pessoas se auto-instituam por
meio da heteronomia social e individual.
A sociedade capitalista produz-se e se reproduz por meio da heteronomia instituída. A
sociedade, contudo, é criação social-histórica que se faz na relação entre instituinte e
instituído, entre criação e tradição, pois o imaginário social instituído está sempre em conflito
com o imaginário social instituinte, produzindo transformações e rupturas, fazendo surgir o
novo sobre as ruínas do antigo. As sociedades capitalistas instituíram-se, no seu
surgimento, como sociedades que romperam com as representações extra-humanas,
determinando a constituição da sociedade. Ao instituírem-se como poder temporal, elas
promoveram as rupturas com os vínculos entre o poder do Estado e o poder da Igreja e com o
poder absolutista, questão que será retomada no segundo capítulo deste trabalho. Como,
então, é possível a heteronomia? Dois processos concorrem para permitir a heteronomia, a
ocultação da auto-instituição e a ocultação da auto-alteração que correspondem
simultaneamente à ocultação da autocriação e da historicidade social e individual que, sob o
capitalismo, refere-se à forma singular atribuída à razão possibilidades de o homem exercer
o controle total de suas ações e de dominar a natureza. A idéia de que o homem pode ter o
domínio total sobre o resultado de suas ações retira-lhe o sentido de práxis, atividade criadora
e transformadora, para retê-la no determinável circunscrita ao previsto. “Das duas
significações imaginárias nucleares cuja luta definiu o Ocidente moderno, a expansão
ilimitada do pseudodomínio pseudo-racional e o projeto de autonomia, a primeira parece
triunfar inteiramente; a segunda, sofrer um eclipse prolongado”, diz Castoriadis (1999, p. 82).
As qualidades comumente atribuídas ao capitalismo, a racionalidade do processo
produtivo e a capacidade reguladora da economia atribuída ao mercado, são contestadas por
Castoriadis (2004) de modo radical. Seus argumentos explicitam a irracionalidade do
processo produtivo presente nos produtos e nas relações de produção. A produção orientada
para a fabricação sintética de novas necessidades expressa o caráter perverso e irracional do
capitalismo em que as necessidades básicas da maioria do povo não foram sanadas. Outro
aspecto da irracionalidade da produção capitalista consiste nas relações de produção que, por
serem relações de dominação e de exploração, bloqueiam o desenvolvimento e uma maior
produtividade da produção.
E por fim, à idéia do mercado como regulador da economia capitalista tão cara para
alguns teóricos, Castoriadis (2004) desfere uma crítica inelutável, com a afirmação de que
“não existe mercado sob o capitalismo, pois, lá onde há capitalismo, não pode haver mercado;
36
e onde mercado, não pode haver capitalismo. Existe apenas um pseudomercado,
oligopólico, mais que imperfeito e irracional” (p. 227). Mercado pressupõe a possibilidade do
livre comércio de todos, e a sociedade capitalista, sobretudo em sua fase moderna, em que
grandes corporações atuam em escala mundial, eliminam toda possibilidade de concorrência.
uma revolução nos sistemas econômicos por meio da gestão operária poderia imprimir
grande racionalidade à produção, pois, se a gestão operária é válida, é porque elimina um
conflito realizando um modo determinado de socialização, que permitiria a participação”
(CASTORIADIS, 2000, p. 107). Com a gestão operária, a produção seria transformada em
uma atividade compreensível e seu produto dedicado aos fins explicitamente desejados pela
coletividade.
Com a análise da sociedade capitalista apresentada por Castoriadis algumas questões
impõem-se à reflexão sobre a formação humana. uma dominância do imaginário na visão
de formação como apropriação de conteúdos, como interiorização dos significados sociais, da
ética e da técnica como condições necessárias à perpetuação da vida; dominância do
imaginário na crença nos sistemas de controle criados para assegurar a eficácia da formação e
na irracionalidade da idéia de formação para o mercado. As sociedades capitalistas perpetuam
a dominância do imaginário instituído para denegar o sentido da criação do social histórico, o
questionamento e a critica. É possível a formação para a autonomia nessa sociedade? Qual
deve ser o sentido da formação humana para a superação de um imaginário instituído por
meio da heteronomia? É possível uma educação orientada por um imaginário social
instituinte, que trabalhe para a superação da irracionalidade da economia, da técnica e dos
valores da sociedade capitalista?
A superação do imaginário instituído das sociedades modernas, como a crença na
funcionalidade da produção e na fantasia do saber absoluto e de uma sociedade transparente,
pressupõe a instituição da autonomia social e individual, por meio de um projeto de
transformação social explícito e lúcido. Trata-se de um projeto de autonomia que se
encontra em parte realizado e que deve sua criação à Grécia antiga do século VIII ao século V
a.C, e foi retomado durante o Século das Luzes na Europa Ocidental. “São as únicas
sociedades que criaram a política no sentido de uma atividade coletiva visando explicitamente
à instituição global da sociedade” (CASTORIADIS, 1992 p. 179). Nesse sentido, é importante
retomar os processos da criação da democracia ateniense, uma experiência de instituição
autônoma, lúcida e explícita da sociedade.
A Atenas analisada por Castoriadis (2002; 2004) será apresentada por meio de duas
criações da cidade antiga que parecem expressar com propriedade sua interpretação da
37
democracia ateniense: a ekklesía
13
(assembléia) e a tragédia. A ekklesía era o momento de
realização efetiva da democracia, que compreendia toda a ação política da cidade, dos atos
sobre o comércio e sobre as guerras aos atos jurídicos, decididos na ekklesía. A tragédia era o
momento que possibilitava aos atenienses contemplar as suas ações, revivê-las como
atividade de reflexão. A tragédia proporcionava a autolimitação.
Castoriadis (1999) distingue três esferas das relações do indivíduo com a coletividade
e com sua instituição política: a esfera privada oíkos; a esfera pública/privada agorá; e a
esfera pública/pública, que, em uma sociedade democrática, é denominada de ekklesía. A
distinção dessas três esferas é um traço essencial da democracia que os atenienses garantiram
efetivamente.
Em Atenas, surgiu pela primeira vez uma esfera pública/púbica a assembléia que
decidia sobre todos os assuntos de interesse coletivo, ou seja, sobre a vida na pólis, e da qual
participavam todos os cidadãos livres. Dois aspectos da democracia ateniense que
caracterizam a efetividade do público/público em seu mais alto grau são: de um lado, a
participação de todos os cidadãos livres na assembléia, com igual direito à fala e ao voto; e de
outro, o sentido de universalidade que os cidadãos imprimiam aos assuntos tratados na
assembléia, visando sempre os interesses coletivos. A atuação da assembléia expressava
sempre o profundo compromisso do cidadão com a pólis. Com a criação da esfera
pública/pública, o cidadão passou a ser educado na e pela pólis, participando dos debates e
das decisões políticas. Como diz Castoriadis (1999), “o devir verdadeiramente público da
esfera pública/pública é, sem dúvida, o âmago da democracia” (p. 70). Essa distinção e
articulação entre o individual e o coletivo permitiu aos atenienses a instituição da democracia.
O profundo sentimento político do ateniense pode ser observado na filosofia. Apesar
de os filósofos oporem-se à democracia, o espírito de que as decisões políticas pertencem a
todos os cidadãos predomina na filosofia clássica, como atesta o texto de Aristóteles:
na maioria das vezes um grupo julga melhor que uma única pessoa. A maioria também
é mais difícil de corromper tal como acontece com a água em maior quantidade, um
número maior de pessoas é mais difícil de corromper que um número menor, e a
faculdade de julgar de um indivíduo está sujeita a corromper-se quando ele é
13
Ekklesía, as – “s.f. – assembléia, assembléia geral de todos os cidadãos de Atenas que escolhia os magistrados,
discutia e decidia as questões mais importantes da pólis, em especial as relativas à guerra e à paz, igreja. A
ekklesía se reunia no pnýx, anfiteatro construído por Clístenes, em forma de semicírculo e com capacidade para
cerca de 20.000 cidadãos”. (COÊLHO, 2004, p. 7).
O termo grego referente a assembléia aparece na tradução de As encruzilhadas do labirinto v. 6 de Castoriadisl,
da Civilização Brasileira, (2004), como ekklèsia. Já na tradução de As encruzilhadas de labirinto v. 2 da Paz e
Terra (2002), o termo referente a assembléia é ecclèsia e ainda em As encruzilhadas do labirinto v. 5 da DP&A
Editora (1999) o termo é ecclesia mas sem o acento. Adoto, quando não se tratar de citação textual, o termo
ekklesía do dicionário de termos gregos. (COÊLHO, 2004).
38
dominado pela cólera ou qualquer outra emoção; contrariamente, é uma tarefa difícil
encolerizar um grande mero de pessoas e levá-las a errar coletivamente (Pol., IV,
10, 1286 b).
Na Modernidade, a esfera pública/pública descaracteriza-se, pois a decisão política é
deixada para alguns poucos indivíduos, que passam a legislar em razão de seus interesses. “A
população mergulha na privatização (...) abandonando o domínio público às oligarquias
burocráticas, empresariais e financeiras” declara Castoriadis (1999, p. 82). Com isso, as
chamadas democracias modernas não passam de oligarquias liberais com forte conteúdo
totalitário, pois “a primeira condição de existência de uma sociedade autônoma de uma
sociedade democrática é que a esfera pública /pública torne-se uma ecclesia e não objeto de
apropriação privada de grandes grupos particulares”. (CASTORIADIS, 1999, p. 71). Ao
mesmo tempo que os regimes políticos contemporâneos eliminam a distinção da relação entre
o individual e o coletivo, entre o universal e o particular, as disputas políticas ficam reduzidas
à disputas de interesses particulares pelo exercício do poder. Ao eliminar a esfera
pública/púbica, “as oligarquias liberais contemporâneas compartilham com os regimes
totalitários, com o despotismo asiático e com as monarquias absolutas esse traço decisivo: a
esfera pública/pública tornou-se, em sua maior parte privada” (CASTORIADIS, 1999, p.
71). Atualmente, a presença de um único partido político controlando os poderes legislativo e
executivo, aliada a intensa burocratização dos partidos e das instâncias do governo, contribui
para a degenerescência da política que fica reduzida a adentrar o aparelho de Estado para a
afirmação dos interesses de grupos.
Em Atenas, a assembléia garantia a soberania do povo por meio do voto da maioria e,
ao mesmo tempo, assegurava a separação dos poderes, pois os jures sorteados não deviam
obediência à assembléia e mantinham os interesses oligárquicos afastados do Estado. Não
havia partidos políticos e burocracia, nem Estado como os atuais. Atenas era a cidade em que
os cidadãos homens livres reunidos na ekklesía decidiam sobre a efetivação de um ideal
de vida na e da pólis. A expressão desse ideal é expressa na oração fúnebre de Péricles: “nós
existimos no e pelo amor da beleza e da sabedoria, e na e pela atividade suscitada por esse
amor; nós vivemos por elas, com elas e através delas mas fugimos das extravagâncias e da
lassidão” (CASTORIADIS, 2002, p. 322).
Castoriadis (2002; 2004) faz uma interpretação bastante singular da tragédia grega
associando-a à existência e como exigência da democracia. Se a democracia não aceita
normas transcendentes ou herdadas para fixar os limites, é necessário criar outra forma para
instituí-los. A tragédia foi uma criação dos gregos que possibilitou a instituição da limitação
39
de seus atos como autolimitação. Conforme a democracia ateniense instituiu-se como um
poder que não aceitava limites do exterior, era necessário criar um meio pelo qual os homens
pudessem impor, eles próprios, limites às suas ações. O sentido da tragédia foi criar limites às
ações dos homens para que não se deixassem dominar pela hýbris (excesso). Portanto, a
contemplação de seus atos por meio da tragédia possibilitava ao démos criar limites a hýbris.
O sentido da tragédia, ao representar a realidade como caos, é lembrar ao démos que
ele não tem garantias sobre os resultados das suas ações, nem, portanto domínio sobre a
história. “Mais que isso, a tragédia mostra não apenas que não somos senhores das
conseqüências de nossos atos, mas também que não dominamos nem mesmo a sua
significação. O Caos também se apresenta como Caos no homem, isto é, como sua hubris
14
lembra Castoriadis (2002, p. 316).
A democracia, diz Castoriadis (2002), por ser um regime da liberdade efetiva, é “um
regime trágico” (p. 312). Querer a liberdade, a democracia e a autonomia é aceitar o lado
trágico da existência humana, e implica assumir os riscos das decisões e a responsabilidade
pelas escolhas. “A hubris surge quando a autolimitação é a única ‘norma’ quando se
transgridem limites que não estavam definidos em parte alguma”, afirma Castoriadis (2002, p.
313).
Democracia, autolimitação e auto-instituição podem ser efetivamente sinônimos,
considerados em seus sentidos plenos, e são termos que remetem ao sentido da liberdade e do
compromisso social:
Devemos, nós mesmos, encontrar as leis que devemos adotar; os limites não estão
traçados anteriormente, o hubris é sempre possível. É disso que fala a tragédia
ateniense, instituição democrática por excelência, instituição lembrando
constantemente ao dèmos a necessidade de autolimitação. Quando Eurípides, depois
do massacre atroz dos milenses pelos atenienses, faz representar As troianas (que os
modernos, muitas vezes, tomam estupidamente como um manifesto contra a guerra
quando não é absolutamente disso que se trata), ele encena para os atenienses os
próprios atenienses, isto é, os gregos depois da queda de Tróia, como monstros
pavorosos arrastados pelo hubris e incapazes de impor quaisquer limites a seus atos
(CASTORIADIS, 2004, p. 206).
14
O termo hubris aparece, no dicionário Abbagnano (2000), como hybris “Com este termo, intraduzível para
as línguas modernas, os gregos entenderam qualquer violação da norma da medida, ou seja, dos limites que o
homem deve encontrar em suas relações com os outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas. A
injustiça nada mais é que uma forma de hybris, porque é a transgressão dos justos limites em relação aos outros
homens”. (p. 520)
Hýbris –s.f.excesso, orgulho, insolência, presunção, impetuosidade, descomedimento, insulto. Na existência
social somente a observação da lei (nómos) e a justiça (díke) podem conter a hýbris nos limites do racional”.
(COÊLHO, 2004, p. 11).
40
A tragédia representava para o grego junto com a ekklesía, o movimento de
autocriação e auto-alteração da pólis instituída e instituinte da e pela democracia e do que ela
significava: a liberdade, a autonomia e a igualdade dos cidadãos. Tragédia e ekklesía
constituem as formas da paidéia dos cidadãos, entendidas pelos gregos como os meios
possíveis para a pólis alcançar certo equilíbrio. Na expressão de Castoriadis (1992),
não nenhuma “garantia” para a democracia, senão relativa e contingente. A menos
contingente de todas se encontra na paidéia dos cidadãos, na formação (sempre social)
de indivíduos que interiorizaram a necessidade da lei e ao mesmo tempo a
possibilidade de questioná-la. Indivíduos que interiorizaram também a interrogação, a
reflexividade e a capacidade de deliberar, a liberdade e a responsabilidade (p. 148).
A instituição da democracia ateniense era consubstancial à formação do cidadão, pois
“um jovem se educava comparecendo à Assembléia; ele aprendia (...) as questões políticas
que Atenas enfrentava, as escolhas, os debates e aprendia a avaliar os homens que se
apresentava como políticos atuantes, como lideres” (FINLEY, 1988, p. 42). Por outro lado,
além desse aprendizado propiciado pela participação na vida política da pólis, havia um
grande debate em Atenas sobre a constituição da paidéia, da formação do homem grego, que
envolveu todos os cidadãos, especialmente os filósofos. Com a democracia surgiu também,
pela primeira vez na história, a questão da formação do homem como uma necessidade para a
vida social civilizada.
3 Paidéia: a formação
do homem autônomo
O surgimento da pólis assinala, no plano intelectual, a mudança de direção do
pensamento orientado para a natureza, a phisis
15
, para centrar-se no homem. O ideal de
homem passa a orientar o pensamento grego construído na e pela pólis. Ao voltar-se para o
homem, a filosofia pergunta pela essência humana. Na profunda intuição de Heráclito, o
universal, o lógos, é o comum na essência do espírito, como a lei é o comum na cidade”,
15
Phýsis “s. f. - natureza, força que faz nascer e crescer todas as coisas, essa realidade primeira e última,
permanente, força que desvela a arkhé de todas as coisas e inclui os corpos celestes, a terra, as plantas, os
animais, a alma, o pensamento, a linguagem, os deuses, a natureza humana, a existência dos indivíduos e da
pólis, enfim, a totalidade daquilo que é como totalidade ordenada, perfeita e bela. Na phýsis o homem e as
divindades convivem no mesmo plano, pois os gregos não conheceram a noção de sobrenatural phýo”
(COÊLHO, 2004).
41
esclarece Jaeger (1989, p. 9). É a idéia do homem portador do lógos. A idéia do homem como
ser racional passa a direcionar a construção do modo de existência dos gregos na
correspondência entre a ordem do cosmo, da phisis, e a ordem da cidade, da pólis, regida por
leis justas: “A sua descoberta do Homem não é a do eu subjetivo, mas a consciência gradual
das leis gerais que determinam a essência humana. [...] Não brota do individual, mas da idéia”
(JAEGER, 1989, p. 10).
A correspondência entre cosmos natural e cosmos social estabelecida pelo pensamento
filosófico clássico possibilitou uma visão dinâmica e alargada da vida na pólis. A idéia de
harmonia e equilíbrio, que não nega e nem exclui o conflito, pois ele é constitutivo da
realidade, está na base do pensamento grego e da organização da vida na pólis. O conflito não
inviabiliza, mas é assumido como constitutivo da vida coletiva.
Reale (2002) chama a atenção para a forma polar do modo de pensar do grego. No
pensamento grego os contrários são inerentes à existência. Essa polaridade manifesta-se no
pensamento moral dos gregos na filosofia, pois todos os filósofos põem como princípios os
contrários.
Reale recorre à análise de Philippson para explicitar essa polaridade:
a forma polar do pensamento vê, concebe, modela e organiza o mundo, como unidade
em pares contrários. São esses a forma com a qual o mundo se apresenta ao espírito
grego e com a qual ele transforma e concebe em ordenamentos e com ordenamentos a
multiplicidade do mundo. Esses pares de contrários da forma polar de pensamento são
fundamentalmente diferentes dos pares de contrários da forma de pensamento
monística ou da dualista, no âmbito das quais os pares se excluem ou então,
combatendo-se reciprocamente, se destroem ou, finalmente, reconciliando-se, cessam
de existir como contrários [...]. Ao contrário, na forma polar de pensamento, os
contrários de um par não somente estão entre si indissoluvelmente unidos, como os
pólos do eixo de uma esfera, mas são, na sua mais íntima existência lógica, isto é,
exatamente polar, condicionados pela sua oposição: perdendo o pólo oposto eles
perderiam seu próprio sentido. Esse sentido consiste exatamente no fato de eles, como
contrários do mesmo modo que o eixo que os separa e, no entanto, os une serem
parte de uma unidade maior que não pode ser definida exclusivamente a partir deles;
para exprimir-se em termos geométricos, eles são pontos de uma esfera perfeita em si
mesma. Essa forma polar do pensamento informa necessariamente toda objetivação do
pensamento grego. Por isso, foi no seu seio que se formou a visão grega do divino.
(apud REALE, 2002, p. 89-90).
A polaridade do universo está presente nas questões de Heráclito sobre o dia e a noite,
o quente e frio; na busca do Uno no múltiplo em Platão e no meio-termo característico da
virtude, na ética aristotélica. A polaridade é assumida como própria da realidade, pois todas as
substâncias são constituídas por contrários, como o frio e o quente, o bem e o mal, a justiça e
a injustiça, a amizade e a discórdia. No pensamento moral e político (para o grego eles não
42
são distintos), a proeminência de um dos pólos deve-se a uma inclinação ao que é mais
verdadeiro e pode ser alcançada com a formação e a prática da virtude, como demonstra a
doutrina das virtudes de Aristóteles. São soluções sobre a diversidade do mundo que buscam
harmonizar a realidade pela via da conquista da areté
16
, ou seja, alcançar o equilíbrio com a
ascese à verdade, ao Bem mais elevado.
Os contrários para o grego, não se excluem, por isso, o conflito assumido como
constitutivo da realidade, e cabe ao homem resolvê-lo pelo dialogo, pela disputa e pela
demonstração do que melhor corresponde à razão, buscando a realização da natureza humana
no agir segundo a máxima racionalidade. A abrangência do sentido da vida coletiva e da
importância da palavra marca profundamente os traços da cultura grega. “Sem dúvida, os
verdadeiros representantes da paidéia grega não são os artistas mudos escultores, pintores,
arquitetos – mas os poetas e os músicos, os filósofos, os retóricos e os oradores, quer dizer, os
homens de Estado” assinala Jaeger (1989, p. 13).
Para Vaz (1991) a concepção clássica do homem coloca em relevo dois traços
fundamentais: o homem como animal que fala e discorre (zóon logikón) e o homem como
animal político (zóon politikón). Esses traços marcam a construção do pensamento filosófico
clássico. O homem distingue-se dos outros seres da natureza em virtude do predicado da
racionalidade, mas essa racionalidade se realiza no exercício da sua outra dimensão, a de
animal político. Por isso, o homem “na sua expressão acabada, isto é, o homem helênico, é
essencialmente destinado à vida em comum na pólis e somente se realiza como ser
racional” (VAZ, 1991, p. 42). O homem, portanto, é um animal racional uma vez que é
político. A razão efetiva-se na pólis com a criação da política. O homem político liberta-se do
destino e tem a liberdade e a responsabilidade pela construção da sua própria existência
individual e coletiva. Homem e cidade não mais se separam. A razão é a marca da essência
humana, assim como a necessidade da vida coletiva.
16
Areté “s. f. excelência corporal, intelectual, psíquica, ética, moral, política e artística, virtude, capacidade,
aptidão, qualidade, mérito, perfeição, valor que faz do individuo um excelente cidadão, colocando-o num
patamar de excelência corporal, intelectual, psíquica, ética moral política, artística. O termo refere-se, pois, aos
traços de caráter que destacam positivamente um indivíduo diante dos demais, a uma certa qualidade presente no
homem, àquilo que diante dos demais, constitui o ideal de excelência para os membros da pólis e, portanto, para
todos os humanos, ideal a ser observado e perseguido na formação, na educação (paideía) de todos os melhores,
os excelentes, áristos. Graças à areté o objeto realiza a finalidade para a qual foi concebido e produzido. A
tradução usual por virtude, termo que em português é bastante vago e ambíguo, é sugerida pela tradução latina
de areté por virtus que significa força, vigor, coragem virtude, mérito, perfeição moral” (COÊLHO, 2004).
43
No contexto da vida na pólis, em que a razão deve orientar a ação do homem
individual e coletivamente, a educação ganha total relevância, assumindo a dimensão de toda
a cultura. Segundo Jaeger (1989) a educação visa a vida na pólis, pois a essência da
educação consiste na modelagem dos indivíduos pela norma da comunidade” (p. 10).
Consiste em possibilitar aos cidadãos o pleno exercício da cidadania, que é a atividade
política, orientada pelas virtudes, pois as virtudes, tanto as recebidas dos costumes da cidade
como as adquiridas pelo ensinamento, encontram o campo do seu pleno exercício na vida
política. Duas questões impunham-se ao grego ao pensar a educação na pólis: a democracia
que aspira a igualdade em sentido político e jurídico e o domínio de si próprio, firmeza e
moderação, afirma Jaeger (1989).
A afirmação da dimensão da interioridade do homem, denominada por Sócrates de
“alma” (psykhé), fortalece ainda mais a investigação filosófica da racionalidade humana. A
busca da compreensão do agir humano, do significado de suas ações e da possibilidade de
elevá-las pelo conhecimento da verdade, adquirido pela educação e pela prática da virtude,
passa a direcionar o pensamento filosófico e a orientar a construção da paidéia grega. O
sentido de educação como cuidado da alma em Sócrates ganha nas filosofias de Platão e de
Aristóteles rigor e profundidade na investigação da verdade, na busca da medida da justiça e
no significado da liberdade.
Platão
17
, na polêmica com os sofistas que trilhavam o caminho do relativismo e da
opinião (dóksa), buscou o conhecimento da verdade desenvolvendo as ciências (epistéme) e
procurou demonstrar o sentido da verdadeira educação como orientação para a construção de
uma vida melhor na pólis, educando os cidadãos para serem capazes de distinguir o que é
justo do que é injusto, ou seja, encontrar a justa medida da conduta virtuosa.
Em A República, Platão vale-se da investigação sobre a natureza da justiça e da
injustiça para chegar ao ideal de homem e de cidade. Na investigação sobre a natureza da
justiça, ele busca chegar à essência, à verdade do ser. Para ele a verdade do fenômeno, do ser
encontra-se na sua essência. Apreender a essência é ver além da multiplicidade dos objetos,
da simples aparência, do particular, da opinião. É ascender do sensível ao inteligível e chegar
ao todo, ao uno, à idéia do objeto, do fenômeno do ser em si. A essência é a idéia do ser em
si. A idéia de árvore é a arvore como idéia na esfera do Uno e que não corresponde a
17
Reale (2002) apresenta as contribuições das doutrinas não escritas de Platão para a compreensão de seu
pensamento. “Quando Platão compunha os diálogos, movia-se num horizonte de pensamento mais amplo do que
aquele que ia fixando por escrito. A reavaliação da tradição indireta permite reconstituir em boa medida, esse
horizonte de pensamento” (p. 39).
44
nenhuma árvore em particular, mas ao conceito, à essência de árvore presente em todas as
árvores e que as faz ser.
Platão afirma:
De todas as pessoas, portanto, que vêem muitas coisas belas, porém não contemplam a
beleza em si mesma nem são capazes de acompanhar os que as concitam a contemplá-
la, e muitas coisas justas, porém não a justiça em si, e tudo o mais pela mesma forma,
diremos que apenas têm opinião mas que desconhecem de todo o objeto de suas
conjecturas. (Rep., V, 479 e)
A verdade está no todo e não nas partes. No todo, a justiça deve ser procurada. As
aparências pertencem às partes, visão de quem não chega à essência, à idéia, ao ser
verdadeiro, ao ser em si. Além do objeto sensível, que é apenas a aparência do objeto existe a
idéia do objeto, ou o objeto em si, e a idéia de árvore, de beleza, de justiça, de bem.
Segundo Reale (2002),
Platão entendia por “Idéia”, em certo sentido, algo que constitui o objeto específico do
pensamento, para o qual o pensamento está voltado de maneira pura, aquilo sem o
qual o pensamento não seria pensamento: em suma, a Idéia platônica não é de modo
algum um puro ser de razão e sim um ser e mesmo aquele ser que é absolutamente, o
ser verdadeiro (p. 61).
Para Platão, o conhecimento mais elevado a que se pode chegar é o conhecimento da
idéia do bem. Saber o que são a justiça e a virtude pressupõe conhecer a idéia do bem, da qual
deriva o conhecimento de todas as coisas. “A Idéia do Bem confere às coisas conhecidas a
verdade, e a quem a conhece confere a faculdade de conhecer a verdade das coisas; enquanto
tal, a Idéia do Bem é ela mesma, cognoscível” (REALE, 2002, p. 105). E conhecer o bem é
chegar ao que causa o ser, ou seja, é conhecer o Uno, pois a essência do bem é o uno que é
causa do ser.
O que vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do cognoscível está
a idéia do bem, dificilmente perceptível, mas que uma vez apreendida, impõe-nos de
pronto a conclusão de que é a causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz, no
mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora,
fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisará ser contemplada por quem
quiser agir como sabedoria, tanto na vida pública como na particular (Rep. , VII, 517
c).
Da demonstração de que a verdade do que sejam a justiça e a virtude deriva do
conhecimento da idéia do bem, e de que os filósofos, os amigos da sabedoria, poderiam
45
alcançá-lo, Platão conclui pela necessidade da união entre o poder político e a filosofia, do
que surge o filósofo-rei, o legislador capaz de por fim aos males da cidade, porque, na
condição de filósofo, pode ascender ao mundo inteligível e contemplar o bem, retornar ao
mundo sensível e partilhar com os demais cidadãos o conhecimento da verdade, instando-os a
saírem do mundo sensível e a caminharem rumo ao inteligível, ao mundo das idéias: “Uma
vez que o filósofo é o indivíduo capaz de apreender o ser eternamente imutável, e os demais
não, por se perderem os não filósofos na esfera do múltiplo e variável, a qual deles compete
dirigir a cidade?” (Rep., VI, 484 b).
Platão demonstra que os filósofos devem dirigir a cidade, que eles se tornem reis ou os
reis filósofos:
No caso, por conseguinte, de haverem sido obrigados os grandes cultores da
Filosofia a governar cidades, quer tenha verificado essa hipótese na infinitude do
tempo transcorrido, quer esteja isso mesmo acontecendo nos nossos dias longe de
nossas vistas, nalguma região bárbara, quer ainda venha a realizar-se no futuro,
declaramos-nos dispostos a lutar pela veracidade de nossa tese, que a constituição
proposta existe, existiu e existirá onde quer que a musa da Filosofia disponha do
governo das cidades. Impossível não é, nem estamos expondo uma idéia inexeqüível,
conquanto sejamos os primeiros a reconhecer as dificuldades inerentes a esse plano
(Rep., VI, 499 d).
Na alegoria da caverna, Platão descreve a atividade do filósofo como formador da
alma humana, orientando-a para agir com justiça e virtude. Educar, para ele, é auxiliar os
homens a não tomar a verdade pela sombra, a romper com formas de ver que estão presas ao
mundo sensível e ascender ao inteligível, a elevar-se da mera opinião que faz conjecturas, ao
pensamento que conhece, à luz que permite ver com clareza a essência dos fenômenos. Se os
homens aspiram à verdade e se aprazem em possuí-la mais do que a qualquer outro bem, sua
posse, no entanto, não se faz sem esforço e o processo para se chegar ao conhecimento da
verdade não é simples. A paidéia platônica está voltada para a constituição desse homem
essencialmente humano, que busca, na racionalidade e na excelência das suas ações, o que é
justo e virtuoso. Os direitos universais são mais dignos do que os interesses particulares, pois,
na universalidade, os homens participam do que é constitutivo da natureza humana.
Platão combate a concepção de educação dos sofistas por defenderem o relativismo e
substituírem o conhecimento da verdade pelo domínio da retórica e dos processos de
persuasão. Critica-os por reduzirem a educação ao domínio da retórica, das técnicas de
persuasão, sem preocupação com o saber, transformando-a em mero instrumento de
manipulação e adequação dos e aos interesses particulares. A educação na perspectiva dos
46
sofistas não busca o conhecimento da verdade em sentido universal, que pressupõe conhecer a
essência da justiça e do bem como única forma de agir com justiça e virtude, expressões
máximas do agir com plena liberdade, ou seja, segundo a razão. Os sofistas dão à educação o
sentido de mero domínio da retórica. A educação é reduzida a controlar as ações do outro pelo
conhecimento do seu modo de agir.
Platão é contundente na sua crítica à atuação dos sofistas:
Que todos esses mercenários particulares que o povo denomina sofistas e considera
seus concorrentes, outra coisa não ensinam senão a doutrina defendida pela maioria
em suas assembléias e que dão o nome de sabedoria. Seria o caso do indivíduo que
tivesse de alimentar algum animal grande e forte, e se pusesse a estudar suas
manifestações de cólera, seus apetites, como ficar perto dele, de que jeito apalpá-lo,
como e por que se mostra dócil ou rebelde, conforme as circunstâncias, o não ter um
rosnar certo, e que vozes revelam a propriedade de irritá-lo ou de acalmá-lo, e que,
depois de aprender tudo isso no trato diuturno e com observação prolongada, desse a
tal conhecimento o nome de sabedoria e fizesse dele um sistema de arte, para poder
ensiná-la, porém, ignorasse de todo, nos seus pronunciamentos acerca desses apetites
o que seja belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto, por empregar todas essas
expressões de acordo apenas com noções peculiares àquele mostro: bom é tudo o que
lhe proporciona prazer; mau, o que o irrita, sem conseguir, porém, justificá-las de
nenhum jeito, se o for considerando justas e honestas as necessidades da natureza.
Mas quanto à grande diferença existente entre necessidade e o bem, isso nunca ele viu
nem nunca será capaz de mostrar a ninguém (Rep., VI, 493 b - c).
A crítica de Platão sem dúvida pode ser estendida à educação moderna voltada para a
profissionalização, para o fazer, para o mercado em detrimento da formação universal do
homem, daquilo que constitui a verdadeira formação. A educação voltada para o mercado ou
para a profissionalização encontra-se no plano instrumental, particular e funcional. Uma
educação que não está voltada para a busca do saber, mas para o controle e a obtenção de uma
resposta desejada é, do ponto de vista da tradição grega, uma farsa. A verdadeira educação, na
perspectiva clássica, deve realizar o seu fim, que é o de promover a humanização do homem,
pois nascer humano não assegura, por si só, a humanização.
Ensinar, então, não é inserir na alma o conhecimento, mas realizar a conversão,
promover a mudança de sentido do olhar, possibilitar a realização da ascese do sensível ao
inteligível, ao mundo das idéias. Trata-se de promover a conversão do olhar preso ao mundo
sensível, que permite apenas uma visão das aparências, da multiplicidade, e dos fenômenos,
em direção ao mundo inteligível. Com o olhar voltado para o supra-sensível permite-se a
visão da totalidade da realidade, ir à essência, conhecer a verdade contemplar o Uno-Bem,
como mostra Platão:
47
A educação não é o que muitos indevidamente proclamam, quando se dizem capazes
de enfiar na alma o conhecimento que nela não existe, como poderiam dotar de vista a
olhos privados da visão. [...] e assim como o olho não pode virar-se da escuridão para
a luz sem que todo o corpo o acompanhe, do mesmo modo esse órgão, juntamente
com toda a alma, terá de virar-se das coisas perecíveis, até que se torne capaz de
suportar a vista do ser e da parte mais brilhante do ser. [...] Assim prossegui, a
educação não será mais do que a arte de fazer essa conversão, de encontrar a maneira
mais fácil e eficiente de consegui-la; não é a arte de conferir vista à alma, pois vista
ela possui; mas, por estar mal dirigida e olhar para o que não deve, a educação
promove aquela mudança de direção (Rep., VII, 518 c - d).
Vaz (2000) lembra a relação entre a educação e a liberdade em Platão, e como ele situa
a importância da paidéia para que sejam suprimidas as causas da ignorância, e a práxis
oriente-se espontaneamente para o bem: “Assim o Bem é a fonte da liberdade como fonte do
ser, não sendo a liberdade senão o modo de ser do Bem na alma” (p. 92). Essa relação entre a
teoria e a práxis foi retomada por Aristóteles, com nova forma.
Movendo-se entre o mundo sensível e o mundo supra-sensível, o corruptível e o ser
incorruptível, o móvel e o imóvel, o relativo e o absoluto, a aparência e a essência, o múltiplo
e o Uno, Platão construiu um sistema filosófico que fez dele um dos maiores filósofos da
tradição clássica, comparável apenas a Aristóteles.
Segundo Reale (2002) Aristóteles é um continuador da filosofia platônica. Ainda que
negue alguns dos pressupostos do mestre, Aristóteles mantém, no essencial, o pensamento
platônico dando-lhe maior profundidade. Sem negar o caráter transcendente, mas com uma
nova interpretação do supra-sensível, Aristóteles antes fertiliza o platonismo dando novas
formas à sua metafísica.
Para Vaz (1991; 2002) a sistematização aristotélica do saber, sob o predicado da
racionalidade e integrado à sua idéia de homem, insere-se no finalismo da razão. São três
grupos de ciências. A contemplação (theoría) buscada em si mesma tem como fim o
conhecimento da verdade das coisas; a ação (práxis) buscada em razão do bem (agathón) ou
da excelência (areté) do indivíduo e da comunidade e tem como objeto a ética e a política; a
fabricação (poíesis) refere-se a objetos artificiais cuja finalidade é a utilidade e o prazer.
Vaz (2002) esclarece:
Nas ciências teoréticas e poiéticas, o fim é a perfeição do objeto: ou a ser
contemplado em sua verdade na teoria, ou a ser fabricado em sua utilidade na poiésis.
Na ciência da práxis ou ciência da prática, o fim é a perfeição do agente pelo
conhecimento da natureza e das condições que tornam melhor ou excelente o seu agir
(práxis) (p. 116 –117).
48
As contribuições de Aristóteles à paidéia grega estão voltadas para a constituição da
excelência moral e intelectual do cidadão grego na vida da pólis. A afirmação do homem
como animal político dotado de razão e cuja atividade visa o bem, consubstancia a filosofia da
prática (ética e política)
18
de Aristóteles para quem o homem é o princípio motor de suas
ações.
A ética é uma dimensão da política, define o fim das ações da pólis e como atingi-las.
Não sem razão, todo o problema da areté está contido na justiça, isto é encontrar a justa
medida para a conduta virtuosa, “sendo a vida ética e a vida política a arte de viver segundo a
razão” (VAZ, 1991, p. 42).
A concepção de educação de Aristóteles segue a trilha deixada por Sócrates e Platão,
como fazer com que os homens façam da vida na pólis uma vida melhor. Segundo Reale
(1994), “a pólis permaneceu, para o Estagirita fundamentalmente, o horizonte que encerra os
valores do homem” (p. 406). Aristóteles investiga os meios que podem tornar o homem
virtuoso, isto é, levá-lo a praticar o bem e todos os atos nobilitantes. Na busca pelo bem,
Aristóteles procura o fim visado em cada ação e propósito e conclui que esse bem é a
felicidade
19
entendida como o mais final dos bens, o bem supremo, o mais digno de ser
perseguido. Com a definição de que “a felicidade é a atividade da alma conforme a
excelência” (Ét. Nic., I, 8, 1099 a), ele inicia a construção da sua filosofia da práxis.
Aristóteles estabelece os princípios para a vida do homem em sociedade. A ética e a
política, ciências práticas (práxis), referem-se a uma regra de conduta. Em seu sistema, a
ciência prática suprema é a política, pois abrange a atividade moral do indivíduo em suas
vinculações com a comunidade. A ética
20
visa a prática e está sob o comando das virtudes,
sobretudo da justiça. Por meio da práxis, do hábito, da educação que adquirimos virtude.
O bem humano supremo é a felicidade. Com base nesse princípio, Aristóteles constrói
sua ciência prática. Desenvolvendo os conceitos de virtude, hábito, e com a distinção entre
fins e atividades, excesso e meio termo, indivíduo e cidade-estado, ele determina os princípios
éticos da educação do homem.
Toda construção da ética aristotélica refere-se à busca dos meios para alcançar a
felicidade individual e coletiva, intrinsecamente imbricadas. A conquista da felicidade, como
18
Aristóteles foi o sistematizador da ética e da política, campos por excelência em que se manifesta a finalidade
do homem coroada pelo exercício da razão ou definida pela primazia do logos (VAZ, 1991).
19
Felicidade é a tradução da palavra grega (eudaimonía) e significa “felicidade no sentido de modo racional,
desejável e satisfatório de viver, abundância de bens, prosperidade” (COÊLHO, 2004, p. 9).
20
Em geral, ciência da conduta. Ciência que estuda a práxis do homem orientada para seu fim propriamente
humano (eudaimonía). (VAZ, 2000, p. 64).
49
atividade da alma segunda a excelência, é uma atividade da razão, envolve escolha, práticas,
hábitos e conhecimento. São duas as formas de excelência. A excelência intelectual é
adquirida por meio da instrução e da experiência, e a excelência moral é produto do hábito.
Excelência moral pode ser destruída pela falta ou pelo excesso e relaciona-se como o prazer e
com o sofrimento. “Daí a importância, assinalada por Platão, de termos sido habituados
adequadamente, desde a infância, a gostar e desgostar das coisas certas; esta é a verdadeira
educação”, afirma Aristóteles (Ét. Nic., II, 3, 1104 b). Para definir o que é a felicidade, o
filósofo apóia-se também na definição do que seja próprio do homem, e pode ser definido
diante do que é mais completamente humano, a atividade da alma, o que implica um princípio
racional.
Para não incorrer nem em excesso nem em falta, Aristóteles desenvolve o conceito do
meio termo que é a mediania entre dois pólos opostos:
De tudo que é contínuo e divisível é possível tirar uma parte maior, menor ou igual, e
isto tanto em termos da coisa em si quanto em relação a nós; e o igual é um meio
termo entre o excesso e a falta. Por “meio termo” quero significar aquilo que é
eqüidistante em relação a cada um dos extremos, e que é único e o mesmo em relação
a todos os homens; por “meio termo em relação a nós” quero significar aquilo que não
é nem demais nem muito pouco, isto não é único nem o mesmo para todos (Ét. Nic.,
II, 6, 1106 b).
A definição de meio termo condensa o pensamento de Aristóteles, não apenas sobre o
agir ético, mas o sentido ontológico do ser. Ao definir o meio termo em relação ao objeto, ele
o apresenta como único, e ao defini-lo em relação ao individuo, o meio termo é
pluridiferenciado. O meio termo, portanto, pode ser definido por cada indivíduo específico
em que reside a grande dificuldade para o indivíduo encontrar o meio termo e, ao mesmo
tempo, o sentido profundo da liberdade que é a busca da excelência moral. Conforme a pessoa
é inclinada a buscar antes o prazer que o mais justo, deve agir sempre em sentido oposto aos
desejos. Aristóteles afirma: “Chamamos portanto contrárias ao meio termo as coisas para as
quais nos sentimos mais inclinados; [...]” (Ét. Nic., II, 9, 1109 a). Depende das escolhas do
individuo o desenvolvimento da excelência moral, pois são as escolhas que definem a práxis:
“Ora: o exercício da excelência moral se relaciona com os meios; logo, a excelência moral
está ao nosso alcance, da mesma forma que a deficiência moral” (Ét. Nic., III, 5, 1113 b).
O alcance da excelência moral está em saber encontrar o meio termo da conduta
moral, que além do discernimento e da escolha requer a formação do hábito. Educar, para
50
Aristóteles é aperfeiçoar, criar hábitos que possibilitem atualizar as potências. Os hábitos, que
se adquirem pela práxis, são a condição e a possibilidade da formação da virtude, pois ela está
relacionada com a política com vista à justiça na vida comum.
A excelência moral corresponde ao agir com justiça e depende tanto da participação
política na construção da pólis o que exige decisões, julgamentos e escolhas, como da paidéia
para a formação de hábitos. Pelo hábito de praticar atos bons, o homem torna-se bom, ou ao
contrário, o hábito de praticar atos maus torna o homem mau. As pessoas tornam-se justas
praticando atos justos, moderadas, agindo moderadamente. O mesmo ocorre com a coragem.
Pelo hábito de sentir medo ou de sentir confiança o homem torna-se corajoso ou covarde. Os
hábitos são adquiridos pela práxis, e o pressuposto para o discernimento da virtude, da justiça,
da prudência, da coragem é a dimensão da vida pública a formação do cidadão pela pólis.
As atividades do homem, ou práxis, buscam sempre a realização de um fim. Toda
práxis deve estar orientada pelo agir ético. A práxis ou atividade do homem será tanto mais
virtuosa quanto mais o homem tenha apreendido o éthos
21
social do meio em que ele vive. Por
isso, a pólis, a cidade-estado, constitui-se na forma de organização suprema para a realização
do homem, bem como do encontro e da amizade. A pólis possibilita aos homens estar com
outros homens, fazer amigos, realizar suas possibilidades.
Dentre as atividades práticas do homem, a política é a mais elevada, pois torna
possível vivenciar a natureza social do seu ser em sua plenitude. Como cidadão da pólis, ser
político, o homem atinge a realização de sua natureza. A política trata da relação do cidadão
com a pólis, a qual é definida, de um lado, pelos costumes (éthos), de outro lado, pela
liberdade (ética, leis e direitos) do indivíduo. Na práxis política o homem realiza a razão como
dimensão essencial do ser.
De acordo com Aristóteles,
se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que desejamos por si
mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se não escolhemos tudo por causa
de algo mais (se fosse assim, o processo perseguiria até o infinito, de tal forma que
nosso desejo seria vazio e vão), evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o
melhor dos bens. [...] Aparentemente ele é o objeto da ciência mais imperativa e
predominante sobre tudo. Parece que ela é a ciência política, pois esta determina quais
21
“O ethos é a casa (oikos) do ser humano. Casa simbólica que o acolhe espiritualmente e da qual erradia para a
própria casa material uma significação propriamente humana”. (VAZ, 1991, p. 39).
51
são as demais ciências que devem ser estudadas em uma cidade, e quais são os
cidadão que devem aprendê-las, e até que ponto; e vemos que mesmo as atividades
tidas na mais alta estima se incluem entre tais ciências, como por exemplo a estratégia,
a economia e a retórica” (Ét. Nic., I, 2, 1094 a).
O homem é um animal político, o que define e expressa a natureza de sua atividade.
Ao agir como cidadão, a serviço da pólis, da vida coletiva, da afirmação da igualdade e da
autonomia, o homem realiza sua natureza, por isso a finalidade da vida política é definida
como o melhor dos fins, o bem humano. A busca da felicidade, portanto, leva os homens à
atividade que será tanto mais virtuosa quanto mais se direcionar para o seu ser social, ou seja,
na medida em que contempla uma atividade política, que é exercida para o bem da
comunidade. O grau de gravidade de uma deficiência moral do homem manifesta-se nas
relações com os outros.
Aristóteles declara:
O exercício do poder revela o homem, pois os governantes exercem necessariamente
seu poder em relação aos outros homens e ao mesmo tempo o membros da
comunidade [...] O pior dos homens é aquele que põe em prática sua deficiência moral
tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos seus amigos, e o melhor dos
homens não é aquele que põe em prática sua excelência moral em relação a si mesmo,
e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil (Ét. Nic., V, 2, 1130 a).
Realizar a excelência moral em relação aos outros diz respeito à justiça, virtude que
relaciona o indivíduo com os outros, que insere o indivíduo na comunidade e pode ser
exercida em relação à comunidade, em benefício da cidade. A medida da justiça é o outro,
ninguém é justo somente para si mesmo, mas em relação ao outro, sendo considerado justo
aquele que cumpre e respeita a lei. O contrário de justo é o injusto definido também como
ganancioso. O grau de gravidade de uma deficiência moral do homem manifesta-se nas
relações com os outros. “Somente o critério de justiça a que depreende das análises
concernentes à essência do político é o critério do interesse geral: todo regime, e somente o
regime que visa o interesse geral é justo” assinala Wolff (2001, p.109).
A relação com a justiça define o tipo de governo, afirma Aristóteles, pois um
governo no interesse do governante e outro no interesse dos governados: o primeiro é o que
chamamos de despótico, e o outro é o de homens livres” (pol., VII, 13 1333 a). E todo
cidadão deve igualmente saber mandar e saber obedecer para conduzir os negócios da pólis
com justiça, pois quem sabe obedecer é capaz de mandar. O sentido da obediência diz
respeito às leis.
A esse respeito, Aristóteles assevera:
52
costumamos elogiar os homens que tanto sabem mandar quanto obedecer, e parece
que a excelência do cidadão consiste em ser capaz de mandar e obedecer igualmente
bem. [...] o bom cidadão deve ter os conhecimentos e a capacidade indispensáveis
tanto para ser governado quanto para governar, e o mérito de um bom cidadão está em
conhecer o governo de homens livres sob os dois aspectos (Pol., III, 2, 1277 a – b).
A democracia assume uma amplitude na obra de Aristóteles que orienta todos os
aspectos da vida coletiva. A democracia é buscada como condição para assegurar o equilíbrio
da cidade. As decisões coletivas são melhores porque tendem a ser mais racionais e, portanto,
menos passíveis às paixões e aos erros.
A forma da democracia perfeita, contudo, não é o reino do consenso. Para o estagirista
a democracia pressupõe a presença da diversidade e deve admitir o conflito sob o risco de
deixar de ser uma democracia. Uma cidade deve alcançar a igualdade dos cidadãos por meio
da justiça e das leis, possibilitando uma vida com harmonia, mas uma harmonia que se realiza
porque pressupõe a divergência, o conflito.
Certamente deve haver alguma unidade tanto na família quanto na cidade, mas não de
maneira absoluta, pois de um lado a cidade deixaria de existir como tal se sua
unificação não tivesse limites, e de outro, mesmo que continue a ser uma cidade, por
estar próxima do ponto em que deixaria de existir como tal ela seria uma cidade pior,
como se a harmonia fosse reduzida a uma nota ou o ritmo no verso a um único
(Pol., II, 2, 1264 a).
A atividade política como característica imanente ao homem, a importância do diálogo
e do debate público e o dever do homem com a construção de si mesmo e da realidade em que
ele vive, são eixos comuns do ideal de formação do homem em Platão e em Aristóteles,
distinguindo-os a idéia a respeito da condução da pólis. Platão concebe a construção de um
Estado ideal para cuja condução deveriam ser designados os aristoi, os melhores. os
melhores, os que podiam contemplar o verdadeiro e o bem, seriam capazes de conduzir a vida
da pólis com justiça. Assim Platão propõe o Rei-filósofo, que os reis se tornem filósofos ou
estes se tornem governantes. Aristóteles pode ser considerado um democrata, pois concebe
a práxis política como dimensão da vida social e a superioridade da decisão coletiva sobre a
individual, ou seja, afirma a democracia como ideal de organização da sociedade.
Os gregos viveram a democracia como uma experiência concreta, em uma sociedade
na qual todos os homens livres possuíam direitos e deveres iguais perante o Estado. A
participação política significava mais do que um direito, era um compromisso de todo homem
que pertence à pólis, em razão do que as premissas aristotélicas da educação estão centradas
53
na formação do indivíduo virtuoso, na aquisição dos hábitos para elevar-se à autoconsciência
de si no interior da comunidade, pois as dificuldades surgidas no campo da ética dizem
respeito ao próprio indivíduo, à sua práxis.
A democracia no pensamento grego é primeiramente uma questão ética, afirma Valle
(2002), por isso, a associação entre a reflexão ética e a educação. Isto porque “a virtude é uma
significação imaginária central do mundo grego, que fornece sentido a toda a construção
política (e logo, educacional) realizada” (p. 56). Dessa forma a grande polêmica sobre a
formação do homem entre os sofistas e os filósofos centra-se na questão da virtude, o que ela
é, e se ela pode ser ensinada, e como proceder para esse fim.
Com o advento da democracia, a conquista da areté, deixou de ser identificada com os
atos de heroísmo e passou a exprimir a díke, a justiça. A democracia, ao definir a igualdade
dos cidadãos para a deliberação política e estabelecer a justiça como parâmetro para a
excelência no agir, estabeleceu um ideal de formação do cidadão como uma exigência para
edificação da pólis. Essa característica eminentemente política da educação é afirmada por
Aristóteles ao definir a virtude como uma conquista da práxis política e estabelecer o ideal de
formação orientado para a formação do cidadão ético-político. Nas palavras de Valle (2002, p.
261), “tal como Protágoras, o filósofo admite que, desempenhando uma função
eminentemente política, a educação deve buscar o aperfeiçoamento dos cidadãos”.
Pensar a paidéia grega no horizonte de sua contribuição para elaborar uma perspectiva
de educação atual consiste em apreender o sentido da formação do homem, da vida política,
da justiça, da liberdade e da democracia, se eles ainda são valores que devem ser cultivados,
ou se os homens já podem prescindir deles.
O sentido do equilíbrio como base da idéia dos antigos pressupunha a existência
simultânea do conflito e da unidade constitutivos da realidade, do ser. A capacidade de ver
ordem na aparente desordem e de conjugar a harmonia com o conflito foi possível porque
os homens buscaram o que era próprio de cada ser e chegaram ao conceito de universalidade.
Na aparente diferença entre os homens existe algo que os constitui e faz deles iguais entre si e
diferentes dos demais seres. A razão e a capacidade de expressar pensamento e palavra
que se realizam na política, constituem o ser do homem, a sua essência e universalidade.
“A deliberação coletiva realiza de alguma maneira a essência da condição humana, que é
política”, declara Wolff (2001, p. 40).
Dotado de razão e da capacidade de expressar essa racionalidade pela palavra o
homem não é apenas mais um na natureza, mas constitui com a vida na pólis, uma segunda
natureza. Pertence ao cidadão a construção da sua existência como animal político e de
54
práxis. A justiça, a liberdade, a igualdade e os direitos são questões sobre as quais os cidadãos
devem discutir e deliberar, pois eles constituem o equilíbrio da cidade, a manutenção da
ordem, da unidade e da amizade (philía) entre os homens.
A desordem da vida na pólis era conseqüência da violação da lei (nómos) e da justiça
(díke). Sólon, ao desenvolver as idéias de Hesíodo sobre a justiça e o direito, substituiu a idéia
de castigo divino que consistia em pestes e más colheitas e intuiu que este se realiza de modo
imanente pela desordem que toda a violação do direito gera no organismo social (JAEGER,
1989, p. 123). Sólon entendeu que a desordem no organismo social é resultado da própria
ação do homem ao violar o direito.
A paidéia grega está voltada para a formação do homem visando o equilíbrio da vida
social, da pólis. A educação visa essencialmente desenvolver a excelência no agir que não se
refere a nenhum produto como resultado da ação, mas à ação em si. Como diz Vaz (2002), na
práxis, a perfeição refere-se ao ato e não a um produto do ato como no fazer. A excelência
buscada no ideal de formação do homem é a formação do cidadão ético-político. A educação
orienta-se para o desenvolvimento de uma práxis humana que assegure uma vida melhor na
cidade, o que pressupõe saber agir com justiça e moderação, participando da vida política da
cidade e contribuindo para seu aperfeiçoamento.
A democracia possibilitou aos antigos construir a idéia de humanização do homem por
meio do aperfeiçoamento de sua práxis na vida comum. Portanto, a ética e a práxis política
são inseparáveis e se constituem nas condições de existência da democracia. A ética como
condição de realização da política contempla os direitos humanos como uma dimensão da
moral. Nesse sentido, os fundamentos do direito asseguram a ação ética e também a virtude
moral.
Os fundamentos do direito como foram concebidos na democracia ateniense
significavam a capacidade de deliberação política igualmente distribuída a todos os cidadãos,
o exercício da liberdade de expressão, o uso da palavra na assembléia e a deliberação sobre as
leis por todos os cidadãos e a igualdade social como uma questão de justiça e de garantia do
equilíbrio da pólis, o que pressupunha o compromisso do cidadão com a pólis posto que a
participação política era ao mesmo tempo um direito e um dever democrático. Fundamentava
o direito na democracia ateniense o ideal de humanização do homem, como sujeito de cultura
capaz de criar e recriar sua existência. A concepção do homem como ser de possibilidades,
cuja virtude, adquirida pela práxis política e pela educação buscava torná-lo humano, um ser
elevado espiritualmente com autonomia para julgar, deliberar e capacidade de autolimitação.
55
A paidéia consistia na criação de sujeitos livres e responsáveis, com firmeza, coragem
e moderação, o que garantia a autonomia e os direitos individual e social dos gregos. A
criação da paidéia democrática no seu sentido radical, que se fez como questionamento
interminável a todas as coisas, possibilitou ao povo grego elevar-se espiritualmente e romper
com as formas instituídas de pensamento e ver a instituição da sociedade como obra dos
homens. Quando os gregos intuíram que os próprios homens criavam as instituições sociais, o
questionamento do sentido e da validade delas passou a ser um critério para concebê-las, com
o que os gregos estabeleceram uma outra relação entre o instituinte e o instituído, o que lhes
possibilitou criarem simultaneamente a política e a filosofia.
56
CAPÍTULO II
A criação das instituições e a relação entre direito, autonomia e
educação
É inútil querer uma sociedade democrática se a possibilidade de igual
participação no poder político não for tratada pela coletividade como uma
tarefa que ela cumpre realizar. E isso nos faz passar da igualdade de direitos à
igualdade de condições de exercer efetivamente e mesmo de assumir esses
direitos. O que, por sua vez, nos remete diretamente ao problema da
instituição total da sociedade.
Cornelius Castoriadis
A discussão realizada no primeiro capítulo sobre a democracia evidenciou que direito,
autonomia e educação como formação consubstancial à autonomia são constitutivos da
democracia. A criação da democracia em Atenas realizou simultaneamente a ampliação dos
direitos políticos e sociais e a instituição da autonomia individual e social. Na democracia
ateniense pensar e fazer como atividade política eram atribuições de todos os cidadãos, e
dessa forma, atribuía-se importância à construção da paidéia, elevada à dimensão de toda
cultura.
Este capítulo pretende investigar a origem e o significado do direito e da autonomia
com seu pólo indissociável que é a formação humana e as suas interfaces, entre si e com as
instituições sociais, além de elucidar como se criaram as instituições constitutivas e
instituintes da autonomia, instituições nas quais as leis foram questionadas e os direitos
realizados. A criação de direitos possibilita a instituição de indivíduos autônomos ou seria a
instituição da autonomia um proto-direito? Como é possível a criação de instituições
autônomas, e o que significa formar os indivíduos para a autonomia?
Autonomia e direito são formas de relações entre os homens que permitem a
realização da sua existência na pluralidade, com compromisso e responsabilidade social e com
as possibilidades de se autocriar e auto-alterar lúcida e explicitamente. A autonomia e o
direito são criações social-históricas que se encontram em parte realizadas, por isso se
57
constituem simultaneamente no imaginário social efetivo e como possibilidades, no
imaginário social instituinte. A conquista ou perdas de direitos sociais e políticos é sempre
uma relação das possibilidades da organização, da consciência e da mobilização dos homens
em face de um projeto de transformação social. Assim como não existem garantias para a
efetivação do poder democrático na sociedade, a não ser a capacidade e responsabilidade
permanentes dos homens para promovê-lo e assegurá-lo, a efetivação dos direitos sociais e a
conquista de novos direitos pressupõem a atividade política da sociedade civil. Nenhuma lei,
por si só, assegura a liberdade e a justiça, assim como a ausência da lei não impede que
direitos sejam assegurados. Segundo Castoriadis (1992), a questão do direito é importante
tendo em vista que se refere à discussão das leis. O autor indaga: Que leis devemos fazer?”
(p. 140). Essa interrogação cria uma reflexividade no sentido pleno, e com isso, as
possibilidades para a instituição de uma nova representação da realidade, ou de um novo
imaginário social.
Para elucidar as conexões entre direito, autonomia e educação, esta pesquisa busca
suas interfaces na história, na tradição do Ocidente em que foi estabelecido um
questionamento profundo sobre a forma de organização da sociedade e culminou com a
instituição de novas relações entre os homens e de novos direitos sociais, para entender em
que sentido houve efetivamente conquistas políticas e instituição da autonomia individual e
social, como projeto de sociedade. A intenção é demonstrar que essas sociedades se
instituíram por meio da autonomia e, por isso, foi possível a elas imprimir transformações
sociais e políticas que culminaram na emergência de novos sujeitos sociais e na efetivação de
novos direitos. Procura-se identificar, nos vínculos entre direito e autonomia, como a
modernidade enfrentou as questões: Quais as possibilidades para a instituição de uma
sociedade autônoma? Qual o sentido da formação para a instituição de uma sociedade
autônoma? Inicialmente, investiga-se a política como dimensão da práxis social-histórica que
visa a instituição global da sociedade, a política como expressão do projeto de criação da
liberdade, da igualdade e da justiça social, e que se efetiva por meio da instituição da
autonomia social e individual e da criação de novos direitos. Em seguida, busca-se elucidar o
significado da criação do social-histórico como obra dos homens, cuja origem se encontra no
imaginário radical instituinte.
58
1 A política como campo do questionamento, do conflito e da criação de novos direitos
A política como campo do questionamento, do conflito e da criação de novos direitos
remete à instituição das sociedades autônomas. As sociedades que interrogaram o sentido de
suas leis e o significado das suas instituições, portanto, que se instituíram de forma autônoma,
organizaram o poder como campo em que os conflitos eram submetidos ao debate e à
deliberação coletiva.
Castoriadis (1983) esclarece:
As sociedades que fabricam indivíduos servos isto é, quase todas as sociedades
conhecidas, com exceção da cidade democrática grega e seus legados modernos não
os submetem à coletividade, o que, mais uma vez, não teria nenhum sentido. Elas os
submetem à instituição dada da sociedade, o que é outra coisa bem diferente. O
selvagem não está submetido à tribo como coletividade efetiva; a coletividade e ele
mesmo estão submetidos às regras estabelecidas pelos ‘ancestrais’. O judeu, o cristão
ou muçulmano, não estão submetidos à coletividade judaica, cristã ou muçulmana; são
escravos da instituição dada de sua sociedade, de uma lei imutável e intocável, pois
sua origem é atribuída a uma causa transcendente, Deus. (p. 13).
O sentido que se busca imprimir à investigação da relação entre a política e a criação
de novos direitos, é de evidenciar a autonomia do homem em relação às suas instituições
sociais e, ao mesmo tempo, a necessidade de estar submetido a elas, mas como lei instituída
pela coletividade. A autonomia existe na medida em que o homem tem consciência que ele
cria suas instituições uma vez que participou da elaboração de suas leis e se sente responsável
por elas ao mesmo tempo como uma norma instituída que deve ser obedecida por todos, e
como uma questão que está sempre em aberto para ser questionada e modificada pela decisão
e deliberação política de todos.
Segundo Vernant (2005), o espírito da pólis, esforço de renovação que envolveu o
religioso, o jurídico e o social, remonta ao período aristocrático-guerreiro, que foi o embrião
das novas formas de relações sociais que tiveram seu apogeu na democracia ateniense. “Poder
de conflito poder de união, Eris-Philia: essas duas entidades divinas complementares,
marcam como que os dois pólos da vida social no mundo aristocrático que sucede as antigas
realezas,” afirma Vernant (2005, p. 49) Com a aristocracia, a arché (comando) para o
grego o que está no início, o princípio comanda o que vem depois decisão do soberano
cedeu lugar à palavra, à discussão e ao debate contraditório realizado entre um grupo de
iguais em uma sociedade hierarquizada. A aristocracia deu início a idéia da decisão coletiva
como ideal de construção da pólis. Contudo, a pólis aristocrática foi uma sociedade
hierarquizada e só participavam das discussões e deliberações os que se encontravam em uma
59
relação de igualdade, a nobreza militar, definida pela fortuna: “Como Hesíodo o observará,
toda rivalidade, toda eris supõe relações de igualdade: a concorrência jamais pode existir
senão entre iguais” (VERNANT, 2005, p. 50). A rivalidade e a concorrência no seio da
nobreza militar a função militar era um privilégio aristocrático passaram a ser decididas
no debate e na discussão pública voltados para o ideal do guerreiro.
Vernant (2005) afirma que:
Todo o domínio do “pré-jurídico” enfim, que governa as relações entre famílias,
constitui em si uma espécie de agón um combate codificado e sujeito a regras, em que
se defrontam grupos, uma prova de força ente gene comparável à que põe em combate
os atletas no curso dos Jogos. E a política toma por sua vez a forma de agón: uma
disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a agorá, praça pública, lugar
de reunião antes de ser um mercado (p. 49).
A história da pólis constitui-se na transformação das relações sociais e políticas entre
os homens que estabelecem um novo contrato social com a criação da democracia e do
direito. Na pólis democrática, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos de participação
no Estado e busca-se o ideal de igualdade visto como fator de equilíbrio e de unidade. Na
afirmação de Vernant (2005), a aspiração à vida comunitária ganha expressão rigorosa no
conceito de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder. A areté
aristocrática arcaica definida pelo ideal do guerreiro cedeu lugar a areté democrática, definida
pelo ideal de justiça, igualdade e liberdade. Com a democracia, a areté definida pelo ideal de
justiça, igualdade e liberdade deu origem a preocupação com a formação do homem para
corresponder com esses ideais. A formação visava que os homens fossem capazes de julgar e
deliberar livremente e com justiça sobre todas as questões da vida pública buscando a
igualdade entre si, pressuposto do equilíbrio da pólis e no qual consistia o sentido da paidéia
formar o homem autônomo e virtuoso.
Da instituição do direito na pólis ateniense dois nomes destacam-se: Sólon e Clístenes.
Com as reformas de Sólon, a lei foi fixada e era a mesma para todos os cidadãos, com os
mesmos direitos de participação nos tribunais e na assembléia. Dentre as inovações da
constituição de Sólon, “o princípio segundo o qual o dano causado a um indivíduo particular é
na realidade um atentado contra todos” (VERNANT, 2005, p. 84), imprime um sentido
universal à questão do crime que deixa de ser uma questão privada. Com Sólon a díke passa a
fixar a ordem e “são leis escritas que substituem a prova de força em que sempre os fortes
triunfavam e que impõem sua norma de eqüidade, sua exigência de equilíbrio” afirma Vernant
(2005, p. 98). Nem todos, contudo, têm direito igual a todas as magistraturas. O poder é
distribuído segundo a virtude e a fortuna de cada um, o que corresponde aos ideais da
60
aristocracia. “A medida justa deve conciliar forças naturalmente desiguais assegurando uma
preponderância sem excesso de uma sobre a outra”, assinala Vernant (2005, p.101). As
magistraturas mais altas eram reservadas aos melhores, definidos pela hierarquia da fortuna e
da qualificação guerreira.
Com a reforma de Clístenes, inaugura-se a democracia. De acordo com Vernant
(2005), “a corrente democrática vai mais longe; define todos os cidadãos, como tais, sem
consideração de fortuna nem de virtude, como ‘iguais’ que têm os mesmos direitos de
participar de todos os aspectos da vida pública” (p.103). A igualdade atingiu sua forma plena
e total. A organização tribal foi abolida e a pólis instituiu-se com uma nova base social, com a
unificação dos habitantes definida por critérios unicamente geográficos. Em lugar das quatro
tribos existentes, Clístenes criou dez tribos que se organizaram politicamente com a fusão de
habitantes da região costeira, do interior do país e da região urbana e o seu território
circundante. Os vínculos de consangüinidade foram substituídos por um critério puramente
geográfico, alterando com isso toda a relação de poder precedente.
Conforme Vernant (2005),
a cidade situa-se num outro plano distinto do das relações de gene e de vínculos de
consangüinidade: tribos e demos são estabelecidos numa base puramente geográfica;
reúnem habitantes de um mesmo território, não parentes de mesmo sangue como os
genes e as frátrias, que subsistem sob sua forma antiga, mas que agora fica fora da
organização propriamente política (p. 105-106).
A divisão do território fez transbordar o sentido da igualdade formal estabelecida por
Sólon, em direção à igualdade concreta, proposta pela reforma de Clístenes. Como diz
Vernant (2005), “com Clístenes o ideal igualitário, ao mesmo tempo que se exprime no
conceito abstrato de isonomia, liga-se diretamente à realidade política; inspira uma
transformação completa das instituições” (p.106-107). Com a reforma de Clístenes, a
liberdade passou a ser expressão da igualdade e o poder foi investido de um caráter simbólico,
não pertencendo a ninguém porque era de todos. As mudanças na organização da cidade de
Atenas produzidas por Clístenes, com a intenção de fazê-la corresponder com as exigências
da democracia liberdade e igualdade de todos na participação do poder político
pressupunham a necessidade, também da igualdade econômica. A reforma de Clístenes, ato
fundador da democracia, significou um ato de auto-instituição e auto-alteração da sociedade
com uma intenção explícita e lúcida – um projeto de autonomia.
61
Sobre a reinvenção da democracia na Modernidade, Lefort (1984) situa o caráter
revolucionário das transformações sociais, políticas e culturais ocorridas na Europa ocidental
que fizeram surgir essa nova forma de organização social. As diferenças entre o antigo
regime, a monarquia, e o novo, a democracia, centram-se no caráter substancial da realidade,
representado pelas monarquias, e os múltiplos discursos e o debate ideológico como forma de
representação da realidade, representados pela democracia. São diferenças que se inserem,
sobretudo, na dimensão simbólica, da relação entre o saber, o poder e o conhecimento, o
sentido e as possibilidades dos direitos sociais.
Na expressão de Lefort (1984, p. 138), na monarquia européia o poder era
incorporado à pessoa do príncipe”. Por isso, o príncipe era a garantia da unidade e da
substancia da sociedade, seu corpo como expressão do poder dava corpo à sociedade, e era
dele “o princípio da geração e da ordem do reino”.
Contra esse modelo de sociedade surgiu a democracia instituindo uma nova
representação do poder. O nascimento da democracia imprimiu uma revolução na relação com
o poder. Em substituição à idéia de um poder incorporado, emergiu a idéia de um poder
inocupável.
Para Lefort (1984), é
inútil insistir sobre o detalhe do dispositivo institucional. O essencial é que ele proíbe
aos governantes de apropriar-se do poder, de incorporá-lo ou de nele incorporar-se.
Seu exercício está submetido a um procedimento de retomada periódico. Ele se faz ao
fim de uma competição regulamentada, cujas condições são preservadas de um modo
permanente. Este fenômeno implica uma institucionalização do conflito. Vazio,
inocupável de modo que nenhum indivíduo nem nenhum grupo pode lhe ser
consubstancial – o lugar do poder mostra-se irrepresentável (p. 139).
Ao instituir-se como um poder que não pertence a ninguém, a democracia criou a
política simultaneamente como o campo do indeterminável e do conflito, pois, na democracia,
o poder, sujeito sempre às regras do jogo democrático, da discussão e do debate no plural, em
que ninguém detém o poder da verdade, não pode incorporar nenhum fundamento
incondicionado. Por isso, na democracia institui-se a separação entre a esfera do poder, a
esfera da lei e a esfera do conhecimento, e a questão do direito surge como possibilidade de
seu exercício.
A esse respeito, Lefort (1984) assinala:
62
E assim como a figura do poder em sua materialidade, em sua substancialidade se
apaga, assim como seu exercício revela-se preso na temporalidade de sua reprodução e
subordinado ao conflito das vontades coletivas, assim como a autonomia do direito
está ligada à impossibilidade de fixar sua essência, vê-se abrir plenamente a dimensão
de um devir do direito, sempre na dependência de um debate sobre seu fundamento e
sobre a legitimidade do que está estabelecido e do que deve ser; também a autonomia
reconhecida do saber caminha junto com um remanejo contínuo do processo dos
conhecimentos e uma interrogação sobre os fundamentos da verdade (p. 139-140).
Lefort (1984) aponta os traços revolucionários da experiência democrática moderna,
mas adverte que não ignora os problemas das sociedades instituídas sobre princípios da
democracia. Pois, sabe “que as instituições democráticas foram constantemente utilizadas
para limitar a uma minoria dos meios de acesso ao poder, ao conhecimento e ao gozo dos
direitos”, (p. 141) e que a expansão do poder estatal e das burocracias foi favorecida pela
posição do poder autônomo. Contudo, “O essencial, a meu ver, é que a democracia se institui
e se mantém na dissolução dos sinais fundamentais da certeza” pondera Lefort (1984, p.
141).
Esses dois movimentos revolucionários trouxeram uma marca que os aproximou e os
identificou: a democracia e a criação de novos direitos. Por meio da ampliação da participação
política com a efetivação de novos direitos, a democracia foi instituída e instituiu-se como
criação histórica. Da Grécia Antiga, a reforma de Clístenes é reconhecida atualmente como o
ato fundador da democracia, porque foi instituinte de uma nova forma de organização da
sociedade estabelecendo a igualdade política, jurídica e econômica entre homens. Na
Modernidade, a revolução democrática, obra dos revolucionários, colocou em questão a
ordem estabelecida, investiu o poder de um profundo sentido político que passou a depender
de soluções de conflitos em substituição à vontade divina representada no corpo do príncipe.
Para Castoriadis (1992) nesses dois movimentos foi criado o projeto de autonomia
social e individual. No curso desses dois movimentos, houve uma autocriação e uma auto-
alteração da sociedade por meio de um projeto de transformação explícito. E a emergência da
liberdade de se auto-instituir fez dessas sociedades, desses dois movimentos, um embrião do
projeto de autonomia, para que se possa atualmente pensar a história humana visando outros
possíveis para a sociedade:
A criação pelos gregos da política e da filosofia é a primeira emergência histórica do
projeto de autonomia coletiva e individual. Se quisermos ser livres devemos fazer
nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém deve poder dizer-nos o que devemos
pensar. (CASTORIADIS,1992, p.138)
63
A grande criação da Revolução Francesa foi “colocar claramente a idéia de uma auto-
instituição explícita da sociedade” [...] e “questionar, em direito, a totalidade da instituição
existente da sociedade” (CASTORIADIS, 1992, p. 165-167), o que possibilitou a
transformação do poder político com a criação de uma nova relação da sociedade com suas
instituições.
Por outro lado, no transcurso desses movimentos da criação da democracia pelos
gregos e da Revolução Francesa, houve recuos e desvios do sentido democrático de
instituição da igualdade e da liberdade como base das relações sociais. Se as reformas de
Clístenes aprofundaram as de Sólon, estabelecendo a igualdade como critério da liberdade
distribuindo o poder por meio da divisão do território, a Modernidade limitou a democracia ao
sentido atribuído por Sólon. Os modernos pensaram a liberdade, mas entenderam a
propriedade privada como seu princípio, e não a participação do povo nas decisões políticas e
na exigência da igualdade econômica para garantir o equilíbrio social e político. Ulhôa (1996)
relaciona os aspectos da visão de mundo da burguesia que precede a Revolução Francesa
individualismo, liberdade e igualdade jurídica, e o racionalismo
22
como o ponto de vista
filosófico que deu expressão a esses conceitos. A liberdade associada ao individualismo e à
igualdade jurídica condiciona o pensamento revolucionário que submete a conquista da
liberdade à questão do direito. Como afirma Goldmann (apud ULHÔA, 1996), liberdade foi
a primeira palavra do discurso inflamado com que a burguesia francesa anunciou ao mundo a
Declaração dos direitos do homem” (p. 22-23).
A experiência histórica de criação da democracia ateniense demonstrou que a
efetivação de novos diretos resultou da igualdade entre os homens. Para que novos direitos
fossem criados, foi necessário que novos sujeitos sociais emergissem como iguais para a
deliberação política, o que pressupunha também a igualdade econômica. A relação entre a
liberdade e o direito, para os antigos era primeiramente uma questão da igualdade dos
homens, igualdade política e econômica, e referia-se à dimensão pública da vida na pólis. A
liberdade e a igualdade são expressão do direito dos cidadãos de debater e decidir
22
A filosofia racionalista “se oferece antecipadamente a solução de todos os problemas que coloca”
(CASTORIADIS, 2000, p. 55). Caracteriza-se portanto como um conhecimento que denega a práxis social-
histórica. Descartes lançou as bases da filosofia e da ciência modernas, e uma das implicações do sistema
cartesiano é a visão idealista da relação sujeito/objeto. Sujeito e objeto são componentes autônomos, não é a
relação que os constitui. O sujeito é sempre independente do objeto, isto porque para o autor existe uma
separação entre a consciência e o mundo da materialidade, considerados substâncias independentes e autônomas,
ou seja, a consciência é um substância, uma res cogitans, independente do mundo dos objetos, da res extensa.
Outra implicação da concepção cartesiana que se apresenta problemática é a idéia de que o método deve se
impor ao processo de investigação, cuja idéia estabelece uma exterioridade entre o sujeito e o objeto e entre o
método e a verdade. E o saber não é algo a ser produzido, mas um conjunto de regras a ser seguidas, e é produto
do controle, da razão metódica (COÊLHO, 2003, P. 85).
64
publicamente as questões de interesse comum. A Modernidade perde a dimensão pública da
existência ao erigir o individualismo e a liberdade e igualdade jurídica como princípios para a
organização da sociedade. Sem a esfera pública/pública da vida política, não democracia,
nem possibilidade para a emergência de novos sujeitos sociais e a criação de novos
direitos. Nesse sentido, o problema que se apresenta é como entender a questão do direito
visando a transformação das instituições sociais presentes, ou seja, como criação de novos
direitos. Como a questão do direito pode se constituir em uma forma instituinte de uma outra
realidade social e histórica?
Ao discutir os direitos humanos, Lefort (1987) situa a democracia como poder político
em que criam e são criadas as possibilidades para realizá-los. O autor no estreitamento da
relação entre a política e os direitos do homem, as possibilidades da ampliação do poder da
sociedade civil, da liberdade de expressão e organização, para colocar em questão a ordem
estabelecida, pois “o direito é constitutivo da política” (p. 41) e, “ali onde o direito está em
questão, a sociedade, entenda-se a ordem estabelecida, está em questão” (p. 55). Reconhecer a
necessidade do estreitamento entre a política e os direitos do homem pressupõe conceber que
a sociedade civil possui poder político. A sociedade possui poder político uma vez que não se
identifica com o poder, mas sabe que é instituinte e constituída como poder político, visto que
interroga, nega, contesta o poder constituído. Sob o impulso dos direitos, a trama da sociedade
política tende a modificar-se. No estreitamento da relação entre a política e os direitos do
homem, encontram-se as possibilidades para colocar em questão a ordem estabelecida, pois,
“face à exigência ou à defesa de um direito, e-lhe necessário dar uma resposta que dê razão de
seus princípios, que produza os critérios do justo e do injusto e não mais somente do
permitido e do proibido” (LEFORT, 1987, p. 62).
O Estado democrático possibilita o questionamento dos direitos estabelecidos e que
novos direitos sejam incorporados. A formulação dos direitos humanos “contém a exigência
de sua reformulação ou que os direitos adquiridos são necessariamente chamados a sustentar
direitos novos” (LEFORT, 1987, p. 55). A conquista de novos direitos amplia o poder
político da sociedade civil, pois se no confronto com as leis estabelecidas e os “novos
direitos que fazem fracassar o ponto de vista formal da lei” (LEFORT, 1984, p. 137), a
questão do direito constitui-se em uma política de transformação do poder instituído. Nessa
mesma perspectiva afirma Chauí (2001): “Graças aos direitos, os desiguais conquistam a
igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e
sobretudo para criar novos direitos” (p. 11).
65
Para Castoriadis
23
(1983; 1992; 1999; 2000; 2004), contudo, os discursos
contemporâneos sobre os direitos humanos se constituem em uma forma de esvaziamento da
verdadeira política. A defesa dos direitos sem a interrogação do sentido das leis e das
instituições sociais não se constitui em uma política, pois “o que visa a política no sentido
autêntico do termo é a instituição da sociedade” (CASTORIADIS, 1983, p. 15). Não é a
efetivação de direitos, mas o questionamento da lei, a manifestação do poder instituinte que
produzem rupturas nas significações sociais instituídas e possibilitam a transformação das
instituições presentes com a emergência de novas significações. Esse questionamento é
colateral à existência de uma política explicita e coerente, visando a transformação da
totalidade da sociedade em um determinado sentido, pois “uma política que não considera a
totalidade da sociedade verá suas ações anuladas por essa totalidade ou produzirá um
resultado diverso do que planejou” (CASTORIADIS, 2000, p. 109). Política, portanto, diz
respeito à elucidação de um projeto de instituição da sociedade. Trata-se de um projeto
autônomo e que visa a instiuição da autonomia de todos. “Autonomia: auto-nomos (dar-se a si
mesmo suas leis)”. (CASTORIADIS, 1992, p. 140) “Autonomia social e individual: fazemos
as leis, a coletividade é efetivamente soberana, os indivíduos são efetivamente livres e iguais
quanto à participação no poder”, esclarece Castoriadis (1999, p. 114) acerca do significado do
termo. A questão da autonomia precede a do direito, pois só há efetivamente direitos humanos
com a existência da esfera pública/pública, que cria as possibilidades para que os sujeitos e a
sociedade se auto-instituam de forma autônoma. A verdadeira política realiza-se com a
participação de todos, com igualdade de condições efetivas e não apenas jurídicas, do poder
instituinte, o que constitui o sentido originário da democracia criada pelos gregos, o poder
explícito a posição do nomos, a díke e o télos pertence a todo o corpo dos cidadãos”
(CASTORIADIS, 1992, p. 133).
A democracia surge com a discussão da lei, e não com a efetivação de direitos, como
afirma Castoriadis (1992):
O momento do nascimento da democracia, e da política, não é o reinado da lei ou do
direito, nem o dos “direitos do homem”, nem mesmo a igualdade dos cidadãos como
tal: mas o surgimento, no fazer efetivo da coletividade, da discussão da lei. Que leis
devemos fazer? Neste momento nasce a política; em outras palavras, nasce a liberdade
como social-histórica efetiva (p. 139-140).
23
A perspectiva de Castoriadis sobre o direito está presente em várias passagens de suas obras. Segue o ano e
páginas em que são discutidas mais especificamente as questões do direito: (1983, p.11-34; 1992, p.121-148;
1999, p. 69,71,77, 112, 113, 114; 2000, p. 99-137; 2004, p. 208-214, 242-245)
66
O nascimento da democracia significou a criação da liberdade de pensar livremente a
instituição da sociedade. Pensar livremente a instituição da sociedade significa reconhecê-la
como obra unicamente dos homens podendo por isso ser re-instituída de um outro modo
diferente, pois houve e sempre outros possíveis ao homem, outras formas de organização e
criação de suas instituições sociais. Contudo, para que os indivíduos possam reconhecer que
as significações sociais instituídas não são nem absolutamente contingentes nem
absolutamente necessárias, mas produtos das escolhas e deliberações humanas situadas em
um dado contexto histórico, é necessário que tenham sido instituídos com a liberdade de
pensar. A liberdade de pensar livremente surgiu com criação de uma nova relação entre o
instituinte e o instituído e permitiu aos gregos a criação simultânea da política e da filosofia.
Uma política coerente que visa a transformação da sociedade é abertura à liberdade de pensar
e questionar as instituições presentes e à participação efetiva de todos no poder explícito da
sociedade instâncias que podem emitir injunções sancionáveis”, relacionadas aos litígios
e às decisões” (CASTORIADIS, 1992, 132- 133).
Desse modo, a democracia, ao instituir-se por meio da liberdade de pensar, surge
como uma instituição que permite “seu questionamento pela coletividade, que a faz ser, e
pelos indivíduos que a ela pertencem” (CASTORIADIS, 1992, p. 142). E ainda, ao investir o
poder explícito de uma dimensão coletiva, criando os homens como iguais, a democracia
surgiu como um projeto de autonomia social e individual. Indivíduos e coletividade vêem-se
diante de suas instituições com o direito e a responsabilidade de questioná-las e de imprimir-
lhes novos significados visando à igualdade de condições para o exercício do poder de
deliberação política entendida como meio de efetivação da justiça. Assim, em uma sociedade
que busca efetivar-se na e com autonomia, o cerne da reflexão política é a questão da justiça,
a decisão sobre que leis devem ser criadas e que formas devem assumir as instituições sociais
para realizar a justiça efetiva, o que significa dizer que a questão da justiça é uma questão que
deve estar sempre aberta, porque “no que se refere à justiça, a democracia sustenta que esse
conhecimento é impossível ao menos como um saber acabado e positivo”. (VALLE, 2002,
p. 159) E, em uma sociedade autônoma, participar do poder significa deliberar sobre o futuro
das instituições, dos indivíduos e da sociedade. Como diz Castoriadis (1983), “participar do
poder é participar do poder instituinte”, (p. 21), o que pressupõe a eliminação da desigualdade
social que sempre se manifesta como desigualdade da participação no poder.
Trata-se, portanto, de uma democracia direta, de recusa a todas as formas de alienação
presente nas relações sociais, no poder político e na cultura instituídos por meio da idéia de
representação: “A ‘representação’ é, inevitavelmente, no conceito como nos fatos, alienação
67
(no sentido jurídico do termo: transferência de propriedade) da soberania dos ‘representados’
para os ‘representante’” (CASTORIADIS, 1999, p.72). Trata-se de democracia direta, para
que o poder não seja apropriado por uma minoria; porque a democracia não é compatível com
a existência de uma extrema pobreza e de uma extrema riqueza; e porque a democracia é
incompatível sem a soberania do povo.
A esse respeito, Castoriadis (1992) assevera:
Se a “democracia representativa” evolui fatalmente para a oligarquia (como Rousseau
sabia), a questão da democracia direta não se coloca com vigor renovado? E o que
significa e como pode ser realizada uma verdadeira democracia direta, a nível das
coletividades modernas? (p. 188).
São questões que não podem ser evitadas por uma política que pretenda a
transformação da ordem instituída, pois elas questionam o fundamento do poder político
estabelecido, que impede a participação efetiva de todos no poder instituinte. A participação
no poder instituinte pressupõe a igualdade de participação no poder instituído com autonomia
e liberdade para deliberar e não apenas para executar, o que implica a superação da hierarquia
entre dominantes e dominados, governantes e governados. “A liberdade exige primeiramente
a eliminação da dominação instituída de todo grupo particular da sociedade”
(CASTORIADIS, 1983, p. 18), que faz existir o trabalho escravo, a heteronomia, a
desigualdade de salários, a acomodação do pensamento, o controle, ou seja, exige que seja
instituída a autonomia e a igualdade efetiva dos indivíduos.
A participação de todos no poder instituinte implica a gestão coletiva em sentido
amplo, exige que ela se efetive também no plano econômico, como por exemplo, com a
gestão operária da produção mencionada no primeiro capítulo, que permitiria ao mesmo
tempo a transformação da forma e do conteúdo da produção. Com a autogestão da produção,
os trabalhadores participariam das decisões sobre como e o que produzir, permitindo maior
racionalidade da produção relativa tanto à produtividade como aos fins da produção. A
autogestão alteraria simultaneamente as relações de trabalho pondo fim à hierarquia e à
heteronomia instituída e à relação com a tecnologia, que atualmente é o campo em que o
imaginário instituído encontra sua forma mais acabada de reprodução.
Segundo Castoriadis (1983),
a autogestão não poderia afirmar-se e desenvolver-se se não provocasse, de imediato,
uma transformação consciente da tecnologia existente – da tecnologia instituída – para
68
adaptá-las às necessidades, às aspirações, as vontades dos homens, tanto como
produtores quanto como consumidores (p. 20-21).
A autogestão da produção é constitutiva da mais autêntica expressão da autonomia
social e individual e da política com o sentido instituinte da sociedade, pois provoca rupturas
no domínio puramente jurídico das questões da liberdade e da igualdade para considerá-las
dependentes da instituição da sociedade como um todo e com a participação de todos como
um direito e uma responsabilidade.
Castoriadis (1999) recusa as críticas que comumente são feitas aos direitos na
sociedade capitalista a de que os direitos existem apenas formalmente, pois, ou os direitos
existem instituintes e instituídos na e pela democracia, e podem existir buscando reduzir
seu caráter parcial, visto que a sua alteração deve sempre estar em aberto, ou não existem, e
prevalecem sociedades autoritárias nas quais predominam relações sociais heterônimas. Não
acrescenta nada criticar o caráter formal dos direitos, pois eles podem existir
independentemente da promulgação de leis. A formalização em leis dos direitos sociais não
assegura a sua efetivação, assim como os direitos sociais podem não estar formalizados e
serem garantidos pela sociedade. O fato dos direitos sociais estarem formalizados em leis não
assegura a sua efetivação, assim como podem não estar formalizados e serem garantidos pela
sociedade.
As críticas ao direito devem visar seu caráter parcial, sejam constituídos em leis ou
não, posto que sua efetivação se faz na e pela práxis dos sujeitos autônomos. Também, os
direitos permanecem parciais enquanto existirem as condições que impossibilitam a liberdade
e a igualdades efetiva de todos.
Para Castoriadis (1999),
as medidas necessárias para que esses direitos superem seu caráter parcial, implicam
transformações no plano econômico, no plano da organização da produção, no plano
da orientação da vida etc. Tudo isso concerne à discussão sobre os objetivos políticos
e das instituições (p. 114).
Nesse sentido, a discussão sobre os direitos deve orientar-se pela elucidação de um
projeto político de transformação da sociedade com o intuito da instituição da autonomia
social e individual. A efetivação dos direitos ou a conquista de novos direitos pressupõem
simultaneamente uma crítica às políticas voltadas para as particularidades dos grupos ou
classes sociais e às instituições sociais burocráticas, e um investimento em sua transformação.
As possibilidades de instituição de novas relações sociais surgem com a ruptura com as
69
instituições burocráticas que promovem a auto-instituição da sociedade heterônoma e com o
imaginário social instituído que denega o caráter histórico e o fazer social instituinte da
realidade social.
Os conflitos políticos submetidos à questão do direito são expressão dos paradoxos da
democracia criada pelos modernos e ela só se efetivou nas instituições com a eliminação
política da maioria, ou seja, como não-democracia.
Nesse sentido, Castoriadis (2002) afirma que “a ‘luta pelos direitos do homem’ por
mais importante que seja, não apenas não é uma política, mas arrisca-se, se ficarmos apenas
nisso, a tornar-se um trabalho de Sísifo, um tonel das Danaides, um tecido de Penélope” (p.
270). Caso não se busque a transformação dos demais fenômenos da sociedade, a luta pelos
direitos do homem pode não tornar-se um faz- de-conta como ainda mascarar as relações
de dominação tanto ao referir-se apenas à legitimidade do poder ou do direito de governar
como ao situar a política no domínio puramente jurídico. O fundamental da questão do direito
é a possibilidade de questionamento da validade das regras sociais instituídas. Com a criação
da democracia, “introduzimos (aceitamos) a meta-categoria de validade de direito”
(CASTORIADIS, 1999, p. 49), que as sociedades heterônomas como a judaica não admitem.
A meta-categoria da validade do direito expressa a profunda liberdade de pensamento do
homem e da sociedade para interrogar as suas instituições e talvez lhes atribuir um a-sentido.
Assim, novas significações são criadas para dar um novo sentido à realidade recriando a
sociedade no tempo, como dimensão da história. Com o questionamento da validade do
direito, surge a possibilidade da autocriação e auto-alteração da sociedade que são os
pressupostos para a criação de novos direitos. O surgimento da discussão da lei assinala a
criação das instituições sociais pela coletividade e, ao mesmo tempo, a emergência de sujeitos
autônomos, que se sentem livres e responsáveis pelas instituições que criaram. A discussão da
lei remete à questão da justiça, que é a dimensão da liberdade, da igualdade e do direito de
deliberar que se cria e se recriam na esfera pública da existência humana. Falar em conquista
de novos direitos pressupõe a existência de sujeitos autônomos e que desejam a transformação
da sociedade para a instituição da autonomia de todos, pois os direitos prevalecem em
sociedades que se auto-instituam cada vez mais por meio da autonomia social e individual.
Com base nessas reflexões, esta investigação busca o sentido da criação de novos direitos.
A política pela ampliação dos direitos sociais apresenta-se como possibilidade para a
instituição da democracia, visto que contesta as formas das organizações sociais instituídas,
nos seus valores e princípios, no entanto, pode constituir-se, também, em formas de
legitimação do poder instituído e se centrar exclusivamente na defesa de interesses de classe
70
sem um questionamento profundo da forma das instituições. Se o direito for compreendido
como uma relação de disputa de interesses de grupos ou classes sociais, cuja política está
preocupada apenas em definir contra ou em favor de quem determinado direito foi
estabelecido
24
, segundo Castoriadis (2004), prevalece uma visão maniqueísta da sociedade.
Não se trata da conspiração de alguns contra uma maioria, o que se resolveria com a extensão
dos direitos, que são usufruídos por uma minoria, a todos os cidadãos e a todas as sociedades,
o que, porém, seria inviável, até mesmo do ponto de vista ecológico. “A ‘riqueza’ capitalista
teve de fato como preço a destruição irreversível e que continua num ritmo acelerado
das reservas da biosfera acumuladas durante três milhos de anos” afirma Castoriadis (1999, p.
83). A questão da democracia, do direito e da liberdade não consiste em democratizar o
consumo, assegurar a industrialização a todos os países, por exemplo, o que poderia significar
a destruição do planeta, mas em exercer coletivamente o controle radical da tecnologia e da
produção para barrar a destruição do planeta e, ao mesmo tempo, assegurar a igualdade de
condições de consumo com a igualdade de salários
25
, o que exige a instituição de uma nova
modalidade de relações sociais e de poder e pressupõe a transformação das instituições sociais
presentes.
A política, uma vez que diz respeito ao questionamento da lei, da instituição da
sociedade, é inseparável da formação autônoma do homem com essa finalidade. A
participação na vida política deve contribuir para criar instituições com abertura para a
participação política efetiva dos indivíduos na sua gestão e nas tomadas de decisões, o que
remete à questão da educação do homem. Assim, Castoriadis retoma dos antigos o sentido da
formação humana que as instituições devem realizar, e a dimensão central da paidéia em sua
24
Algumas análises sobre o direito instituído ressaltam as conseqüências do direito assentado em uma
perspectiva contratual do interesse privado, e indicam um declínio dele para responder aos problemas sociais. A
realidade contemporânea impôs uma dimensão coletiva às relações entre os homens gerando problemas que
exigem soluções coletivas que o direito atual não comporta. O sentido coletivo exigido ao direito pela dinâmica
da realidade social, associado à ampliação do seu alcance com a contemplação da natureza impõe uma ruptura
com visão de direitos centrada no indivíduo, e sugere uma mudança de paradigma jurídico fundado no direito
individual ou da propriedade individual. Novas necessidades motivadas pelos movimentos de defesa ecológicos
em defesa da natureza e a emergência cada vez maior de novos sujeitos sociais que buscam no coletivo a
expressão de seus interesses são um desafio ao direito instituído. Por isso, muitas análises sobre o direito
passaram a afirmar que ocorreu um deslocamento dos direitos da esfera individual para a esfera coletiva e a
necessidade de criação de um Estado que julgue os direitos coletivos. Para Laymert dos Santos (2000), um
conflito entre o direito e o direito subjetivo. Se a atividade do direito consiste em “traçar limites que regulem os
impulsos do sujeito, que o impeçam de tornar-se todo-poderoso, que refreiam a sua vontade” (p. 305), o direito
subjetivo efetiva-se justamente com o rompimento desses limites. Portanto, para que o direito recupere sua
função de normalização é preciso que se contraponha ao direito subjetivo.
Souza Filho (2000, p. 291-306) situa as reivindicações sociais de direitos coletivas como movimentos instituintes
de uma nova idéia de direito, que coloca em xeque o direito instituído fundamentado no indivíduo privado.
25
Sobre a igualdade de salários, Castoriadis (1999, p. 84) esclarece:Independentemente de uma série de outras
considerações (1974
a
, 1976b), é nessa perspectiva, e como momento dessa reviravolta de valores que a igualdade
de salários e de renda aparece como essencial (1975b, p. 315-316)”.
71
filosofia política o vincula à tradição filosófica, que sempre se empenhou em demonstrar a
raiz comum entre a política e a educação do homem.
Castoriadis (1992) afirma:
E de forma alguma, não é por acaso que, contrariamente à indigência a esse respeito
da “filosófica política” contemporânea, a grande filosofia política, desde Platão até
Rousseau, colocou a paidéia no centro. Essa grande tradição ainda que na prática a
questão da educação sempre tenha preocupado os modernos morre praticamente
com a Revolução Francesa (p. 138).
Interpretando essa afirmação, pode-se dizer que a perda da tradição, de buscar na
indissolúvel conexão entre política e educação a compreensão da sociedade, implica
dificuldades e perdas para a filosofia política, pois os domínios do homem são os domínios da
história em que se cruzam a natureza, a produção, a política, e a educação. Trata-se de política
no sentido genuíno, inseparável de um projeto de formação integral do homem que visa a sua
adesão às instituições sociais, contudo com a consciência de que as significações e o sentido
delas é uma criação social-histórica, o que significa dizer que podem ser outras, transformadas
pela atividade coletiva dos homens. Se na Modernidade a paidéia foi deslocada do centro da
reflexão filosófica é porque a política assumiu um outro sentido, ou em outras palavras, é
resultante do esvaziamento da própria política como afirma Valle (2002):
No mundo grego a participação política dos cidadãos envolvia as deliberações sobre as
leis sobre os destinos da cidade. Na revolução francesa como se sabe, cedo essa
participação foi restringida pela instituição de “representantes” que em nome do povo,
passaram a deliberar. Assim, deve-se compreender que, também em nome do povo,
esses representantes percebiam sua autoridade na realização da função educativa que
acompanhava a criação das novas leis (p. 289).
A restrição da participação política aos representantes e a conformação da função
educativa a essa nova forma de poder produziram de um lado, o especialista na política, e, de
outro, a alienação da maioria das questões públicas com ressonâncias na totalidade das
instituições da sociedade. Com a eliminação da dimensão pública da existência, o indivíduo
privatizado não se vê mais com o dever de prestar contas sobre o que faz e nem com o direito
de decidir, deliberar sobre a vida comum. Em decorrência, no campo da ética prevalece a falta
de responsabilidade individual e coletiva, posto que a existência da dimensão pública se
constitui na condição para a realização da justiça e do exercício da virtude, e, no campo do
direito, uma política que denega a participação e a deliberação ao coletivo social, o que
impossibilita a emergência de novos sujeitos sociais e a criação de novos direitos.
72
Nesse sentido, a questão do direito pode contribuir para a transformação das relações
sociais instituídas se o direito estiver inserido em uma política que visa à instituição global da
sociedade, ao vincular-se à criação das instituições sociais autônomas e à afirmação da
liberdade e igualdade política e social de todos para a participação na construção da vida
coletiva, que são as condições para realização da justiça.
2 A ocultação do poder da criação humana: recusa da autonomia e do direito
A reprodução heterônoma das sociedades é, segundo Castoriadis (2000), produto da
ocultação da criação das instituições sociais pela práxis social-histórica dos homens. A
ocultação atribui à criação do social-histórico uma origem externa ao homem, um Deus, uma
racionalidade que funciona nas coisas, sem a participação efetiva dos homens. Neste trabalho,
investiga-se em que sentido a denegação do caráter de criação das instituições sociais pelos
homens significaram, ao mesmo tempo, uma recusa da autonomia e do direito individual e
coletivo dos homens.
O pressuposto irredutível da instituição é seu caráter de criação social e histórico. No
âmbito social-histórico, tudo que é pensado e pensável, realizado e realizável diz respeito à
criação humana. Todavia, um imaginário social instituído que denega o caráter histórico e
social do fazer humano e das instituições sociais, por meio da neutralização dos conflitos
entre os homens e da recusa de toda crítica às suas instituições, pois o imaginário social
instituído perpetua-se com a instituição heterônoma dos indivíduos que não vêem as
instituições como criação sua, como resultante de sua práxis social-histórica.
As origens da denegação do caráter de criação social-histórico encontram-se no
pensamento herdado, na filosofia do ser, do indivíduo-substância, porque ele possui em
potência todas as suas possibilidades, o que exclui que sejam criadas no e pelo social-
histórico. O ser tem sua origem em um ser primeiro que é o verdadeiro criador. A filosofia do
ser, ao situar a origem do ser em um ser primeiro, criador do universo, investe todo poder da
criação em Deus, um ser infinito.
A esse respeito, Castoriadis (2000) esclarece:
a criação continuada significa e pode significar neste referencial, o suporte
indispensável que o único ser-sendo verdadeiro, Deus, concede constantemente aos
entes criados para mantê-los neste mundo de ser menor que é o seu e que lhes devem;
73
o mundo criado não pode manter-se no ser, ele não é ontologicamnete autárquico, ele
se apóia no único ser ao qual ‘nada falta para existir’ (p. 233).
Segundo Castoriadis ocorre então a categorização do homem pela filosofia, de um ser
finito, para imputar-lhe um não-poder de criação, para reduzir sua atividade à imitação ou à
reprodução, para dizer que ele não faz surgir o eidos
26
, as novas formas. A denegação da
criação do social-histórico exprime a atribuição de uma origem transcendente do homem e da
sociedade que se manifesta também por meio da filosofia como razãocom a idéia de que há
uma racionalidade presente no universo que o homem pode vir a conhecer. Essa racionalidade
imprime uma concepção da ciência moderna que produz mais enigmas do que os resolve. A
relação da ciência com a natureza, sustentada pela idéia da presença de uma racionalidade no
universo, de leis que determinam o curso da sua transformação e do seu desenvolvimento,
origem à concepção de que o homem pode dominar a natureza. O cientista ocidental, afirma
Castoriadis (2000), sustenta duas fantasias significações imaginárias: a de que existe uma
organização racional do mundo, que ele desconhece, e a de que sua ciência está prestes a
descobri-la.
No entanto, toda atividade humana é criação, que pode ser tanto expressão da
alienação individual ou coletiva como da práxis, uma atividade consciente que visa a
transformação do seu objeto presente. O indivíduo se auto-institui por meio da criação, que
pode ser tanto autônoma como heterônoma. Na ocultação da auto-instituição do indivíduo
como criação sua e da sociedade a qual ele pertence, consiste sua heteronomia. Superar a
heteronomia instituída pressupõe o rompimento com as formas mítico-religiosas e com as
formas mítico-racionais da instituição da sociedade e, ainda, aceitar o sentido de
indeterminação sempre presente na criação do social-histórico. Afirmar a indeterminação da
criação das instituições sociais significa aceitar a impossibilidade de estabelecer a função e o
fim a que elas se destinam, posto que são produtos da práxis social-histórica, o que significa
afirmar a indeterminação, que, ao mesmo tempo, é recusa de toda clausura do sentido do ser e
das instituições e o reconhecimento da importância da autonomia social e individual. A
autonomia social e individual possibilita aos indivíduos e à coletividade autocriarem-se com
consciência e liberdade, e o primeiro pressuposto para a autonomia é o questionamento, a
interrogação sobre seu ser e sobre as instituições da sociedade, sem buscar nenhuma resposta
em uma instância extra-humana. “Para que os indivíduos visando a autonomia possam surgir,
26
Eidos “Este, que é um dos termos com que Platão indicava a idéia e Aristóteles a forma, é usado na filosofia
contemporânea especialmente por Husserl para indicar a essência que se torna evidente mediante a redução
fenomenológica” (ABBAGNANO, 2000, p. 308).
74
é preciso que se tenha auto-instituído de maneira a abrir um espaço de interrogação sem
limites (sem Reveleação instituída, por exemplo)”, afirma Castoriadis (1992, p. 142).
Com essa intenção deve ser elucidado o projeto de instituição da autonomia social e
individual como forma de efetivação da liberdade e da igualdade de todos para a participação
no poder explícito da sociedade. A autonomia deve ser entendida como a condição sem a qual
é impossível a questão da justiça. Trata-se, conforme Castoriadis (1992), de criar as
instituições que, interiorizadas pelos indivíduos, facilitem ao máximo seu acesso à autonomia
individual e à sua possibilidade de participação efetiva em todo poder explícito existente na
sociedade” (p. 148).
Para que as instituições promovam a autonomia dos homens, é preciso criá-las como
instâncias que garantam a crítica, o debate e a efetivação dos direitos sociais e políticos.
Instituições autônomas são instituições abertas ao questionamento e à critica até mesmo sobre
sua validade seu sentido e sua legitimidade –, o que pressupõe elucidar o fazer social e
explicitar suas significações. Como diz Castoriadis (2002), “uma sociedade autônoma é
origem das significações que ela cria de sua instituição e ela sabe que o é” (p. 405). Uma
sociedade autônoma institui-se por meio da abertura ao questionamento e à reflexão
ilimitados, possibilitando a manifestação da subjetividade do indivíduo no seu sentido mais
profundo – como instância reflexiva e deliberante. “É preciso que a instituição se torne tal que
permita seu questionamento pela coletividade, que a faz ser, e pelos indivíduos que a ela
pertencem”, assevera Castoriadis (1992, p. 142), o que implica possibilitar a participação
efetiva dos indivíduos em todas as formas de poder existente, com acesso às informações,
direito à decisão e não apenas à execução, o que pressupõe a superação da divisão entre poder
e não-poder, que se expressa na relação entre dominantes e dominados.
Castoriadis (2000) contesta a denegação de criação do social-histórico pelo
pensamento herdado: “(que a instituição da pólis não imita nem repete nada, mas é criação de
eidos), sofre um encobrimento total, é excluída de toda consideração no pensamento herdado,
desde Platão e Aristóteles, e depois deles por toda a filosofia ocidental” (p. 234). A pólis é
criação social-histórica, assim como tudo que se refere às “coisas” sociais, tendo em vista que
expressam sempre significações sociais.
Para Castoriadis (2000),
75
as coisas sociais o são “coisas”; elas são coisas sociais e essas coisas na medida
em que “encarnam”, ou melhor, figuram e presentificam, significações sociais. As
coisas sociais são o que são mediante as significações que elas figuram imediatamente
ou mediatamente, diretamente ou indiretamente (p. 401).
As coisas sociais são produtos das significações criadas pelo homem, seja a
linguagem, os valores, as necessidades, a técnica, a arte, as instituições. As coisas sociais
existem como criação humana, não podem ser encontradas ou descobertas na natureza. Se o
artesão, o artista, cria uma nova forma, ele não está imitando ou reproduzindo, pois, “se
fabricamos um outro eidos, fazemos mais do que produzir, criamos” (CASTORIADIS, 2000,
p. 234). A sociedade é criação social-histórica que leva em conta a natureza e a história, o que
já existe no dado natural e histórico e o possível, o que pode vir a ser. Sobre o social-histórico
tudo que se diz e se pode dizer refere-se à instituição, e não ao natural. A linguagem é
instituída, bem como a forma de organização e as necessidades humanas o são igualmente.
Nesse sentido, linguagem, instituições e necessidades são sempre características específicas
de uma sociedade específica, e o que cria as características de cada sociedade específica são
as significações social-históricas cuja fonte é o imaginário radical instituinte.
Por isso, para a elucidação da questão do social-histórico, a contribuição que pode
trazer o pensamento herdado é fragmentária” (CASTORIADIS, 2000, p. 201). Nele o
imaginário e a imaginação sempre são reduzidos e encobertos, porque a imaginação rompe
com as fronteiras da lógica-ontologia herdadas que exclui tudo que escapa à determinidade
27
.
A determinadade do ser corresponde à sua lógica, ou seja, sua dimensão conjuntista identitária
ou conídica. A determinidade contrapõe-se à indeterminação presente tanto no indivíduo
singular como na sociedade. A indeterminação do ser torna possível a transformação e a
mudança, a emergência de seres outros, condição de sua historicidade. A imaginação e o
imaginário social ultrapassam a lógica-ontologia herdada, pois não são dados determinados,
mas apresentam a multiplicidade dos sentidos do ser, e a imaginação rebela-se contra a
determinidade. A ontologia do ser nega as possibilidades da emergência de formas e figuras
outras, ou seja, a auto-alteração histórica. Na ontologia do ser, o para além do ser, sempre
significou o acidente.
Castoriadis (2000) esclarece:
27
Para Castoriadis (1999, p. 105), “a filosofia permaneceu vítima da metacategoria da determinidade, ao afirmar
que tudo que é deve ser determinando, e inteiramente determinando, o que não é verdade”. Todo ser só é se for
determinado, mas o ser não pode ser reduzido à sua determinidade, à sua lógica, que Castoriadis denomina de
conjuntista identitária ou conídica. A lógica conjuntista identitária está sempre presente, tanto na psique quanto
na sociedade, as quais não podem ser reduzidas à sua dimensão conídica.
76
A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do
que nos chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e
indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer
racionalidade explícita, de um universo de significações (p. 176).
A explicitação da instituição da sociedade como obra do imaginário social será feita
por meio da crítica que Castoriadis (2000) faz das explicações funcionalistas sobre a
sociedade, do sentido atribuído à técnica e da visão instituída do tempo. Sua crítica às
interpretações correntes sobre essas questões é dirigida ao pensamento herdado que, ao negar
o sentido de criação às instituições sociais, reduz seu significado aos aspectos funcionais,
atribui à técnica um caráter de neutralidade, e o tempo é compreendido unicamente como o
tempo de calendário. A maneira de conceber as instituições sociais dissociadas de suas
significações históricas encerra-as em um eterno dado, impossibilitando simultaneamente que
sejam submetidas à crítica e à reflexividade sobre seu sentido e que sejam compreendidas na
dimensão do tempo significativo.
As respostas à pergunta sobre o que é o social-histórico para os antigos tinham como
núcleo uma origem divina das instituições, ao passo que, para os modernos, giram em torno
da visão econômico-funcional das instituições. Ambas têm sua fonte no imaginário social, que
é criação de significações em que participam o real e o simbólico. Quais as conexões entre a
instituição e: o imaginário, o real e o simbólico e a visão moderna visão econômico-
funcional das instituições?
A visão econômico-funcional quer explicar tanto a existência da instituição como
suas características (idealmente até os mínimos detalhes) pela função que preenche na
sociedade e as circunstâncias dadas, por seu papel na economia de conjunto da vida social”
(CASTORIADIS, 2000, p. 140). A visão econômico-funcional reduz todo sentido da
instituição ao que é funcional e pretende que as instituições respondam à necessidade da
sociedade. A ênfase à funcionalidade e à correspondência entre os traços da instituição e as
necessidades reais da sociedade pressupõe que as necessidades da sociedade sejam fixas e que
podem ser conhecidas, o que faz o funcionalismo mover-se por meio da negação simultânea
do sentido das significações sociais como criação e da história, como “questão da emergência
da alteridade radical ou da emergência do novo absoluto” (CASTORIAIS, 2000, p. 207).
As instituições são criações sociais e, por isso, seu referente não é a natureza, mas a
cultura, que é um mundo de significações. Não significações dadas pela natureza, nem por
indivíduos singulares. Elas são criadas socialmente na e pela história, em razão do que não é
possível definir qual é a necessidade de uma sociedade que a instituição tem por função
77
atender. Ela nasce historicamente e é decidida cada vez de um modo específico em
determinada sociedade específica, o que não exclui, contudo, o sentido funcional presente em
toda instituição, sem o qual ela não sobreviveria. A instituição possui sempre uma dimensão
econômico-funcional, do contrário, a sociedade não pode sobreviver, mas encontra sua fonte
no imaginário que se exprime por meio do simbólico. Na expressão de Castoriadis (2000), “a
instituição é uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e
em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário” (p. 159). O
componente funcional do simbólico constitui-se do que é racional-real, o que possibilita o
pensar é o agir, mas “este componente é tecido inextricavelmente com o componente do
imaginário efetivo
28
(CASTORIADIS, 2000, p. 155). A raiz comum entre o simbólico e o
imaginário efetivo é o imaginário radical, o que permite afirmar que ambos podem sofrer e
sofrem transformações profundas nas formas de manifestação social-histórica. Pode-se
afirmar ainda que as instituições simbolizam as escolhas do sistema de significações
imaginárias que não são nem necessárias nem contingentes, aleatórias. Não são necessárias,
posto que outras escolhas podem ser feitas pela sociedade dentre as inúmeras possibilidades
existentes em cada momento, porque podem surgir e surgem outras necessidades, novas
escolhas, que podem se opor às primeiras. Também não são totalmente contingentes, pois
escolhas são feitas sempre de acordo com as possibilidades históricas, e se valem sempre do
que já se encontra realizado pela historia.
Para Castoriadis (2000),
a funcionalidade toma de empréstimo seu sentido fora de si mesma; o simbolismo
refere-se necessariamente a alguma coisa que o é simbólico, e que também o é
somente real-racional. Este elemento, que à funcionalidade de cada sistema
institucional sua orientação específica, que sobredetermina a escolha e as conexões
das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver,
de ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele, esse
estruturante originário, esse significado-significante central, fonte do que se cada
vez como sentido indiscutível e indiscutido, suporte das articulações e das distinções
do que importa e do que não importa, origem do aumento da existência dos objetos de
investimento prático, afetivo e intelectual, individuais ou coletivos este elemento
nada mais é do que o imaginário da sociedade ou da época considerada (p. 175).
Ao pensar a sociedade capitalista moderna com base nessa afirmação, algumas
questões se impõem: Qual o sentido da sua funcionalidade, de que ou de quem ela o toma? A
funcionalidade das instituições está a serviço do que ou de quem? Que necessidades do
funcionamento do capitalismo elas servem?
28
Imaginário efetivo ou o imaginado, o imaginário instituído, contraposto ao imaginário instituinte.
78
Se o imaginário social é o suporte das significações sociais, e a funcionalidade da
instituição corresponde a essas significações, há incoerência na afirmação de que a função das
instituições consiste em servir às necessidades da sociedade, posto que “o funcional está
suspenso no imaginário” (CASTORIADIS, 2000, p. 189). O imaginário oferece os fins aos
quais a instituição subordina a sua funcionalidade. Esta investigação, portanto, deve
demonstrar, antes de tudo, qual é a significação central da sociedade capitalista moderna e o
que ela produz.
Segundo Castoriadis (2000), a primazia do econômico sobre os demais aspectos da
vida social é uma situação específica das sociedades capitalistas, sobretudo do capitalismo
moderno, e se constitui no significante central das suas instituições. O econômico produz,
condiciona e opera a efetivação e ou a alteração das significações sociais, e incide sobre as
formas de pensamento, valores e afetos, enfim, determina a totalidade das significações e das
relações sociais capitalistas. A economia exibe a supremacia do imaginário em todos os
níveis. Compreender esse significante central o econômico das sociedades capitalistas
permite situar o sentido do consumismo, da técnica, do controle da atividade humana, da
exploração, da identificação do homem com a máquina.
O sentido da funcionalidade da sociedade capitalista é, em consonância com a
centralidade do econômico, fazer que ele possa se efetivar incessantemente, do que decorrem
a criação contínua de novas necessidades, a supremacia da técnica sobre o homem, a
soberania dos valores materiais e a desvalorização de tudo que não contribua para o
econômico. O sentido da funcionalidade das instituições capitalistas está no imaginário
segundo o qual, se a economia não se expandir, a sociedade entra em crise
29
. O fetichismo da
mercadoria
30
, a reificação
31
e a identificação do homem com a máquina são alguns dos modos
de encarnação do imaginário na vida material da sociedade. São modos de consciência
29
Crise significa o questionamento do modo de organização e de vida, dos valores, das normas e dos objetivos
da sociedade, portanto, crise se conflito, luta, contestação interna. A crise é constitutiva da política e,
como tal, não pode ser eliminada sem que se elimine o debate, o diálogo político. Chauí (1978) faz uma análise
da relação entre crise e ideologia e o discurso da crise para afastar o questionamento e a crítica.
30
Segundo Castoriadis (2000), a importância do fetichismo da mercadoria demonstrada por Marx, com a
afirmação de que o capitalismo pode funcional por meio da ilusão dos indivíduos, evidencia que ele
ultrapassava a visão econômica e reconhecia o papel do imaginário para o funcionamento efetivo da economia
capitalista.
31
Para Castoriadis (2000) a reificação não é uma falsa percepção do real nem um erro lógico, mas uma
significação imaginária. A tendência a reificação do homem tem nas sociedades capitalistas uma presença mais
marcante, mas a condição para o funcionamento do capitalismo é que a reificação jamais pode se realizar.
Caracteriza as sociedades capitalistas a constante tentativa de reificação e de resistência a essa reificação.
Castoriadis denomina reificação das determinações na metafísica da substancia-essência a significação de que as
determinações persistentes ou subsistentes na sociedade são sempre necessariamente determinações principais.
A reificação das determinações exclui as possibilidades de alteridade do social-histórico, ao negar a subsistência
de determinações não-principais.
79
adequados ao funcionamento do capitalismo que se auto-institui, sobretudo por meio
consciência mistificada, que não possibilita aos sujeitos sociais o “reconhecimento no
imaginário das instituições seu próprio produto” (CASTORIADIS, 2000, p. 160). A
explicação funcional das instituições, portanto, responde à necessidade do sistema para
continuar auto-reproduzindo-se de acordo com a lógica da centralidade do econômico e o seu
correlato imaginário instituído dá-lhe o suporte e a sustentação dessa significação.
A identificação do sujeito com objeto ocorreu em vários momentos da história, mas a
metáfora do homem autômato é uma forma particular do imaginário das sociedades
capitalistas modernas e representa um grau de aprofundamento do imaginário:
Tratar um homem como coisa ou como puro sistema mecânico não é menos, mas mais
imaginário, do que pretender ver nele uma coruja, isso representa um outro grau de
aprofundamento no imaginário; (...) Não existe nenhuma diferença essencial, quanto
ao tipo de operações mentais e mesmo de atitude psíquica profundas, entre um
engenheiro tayloriano ou um psicólogo industrial, que isolam gestos, medem os
coeficientes, decompõe a pessoa em “fatores” totalmente inventados e a recompõem
em um objeto secundário; e um fetichista, que goza com a visão de um sapato de salto
alto ou pede a uma mulher que imite por gestos um lampadário. Nos dois casos,
vemos em ação esta forma particular do imaginário que é a identificação do sujeito
como objeto (CASTORIADIS, 2000, p. 190).
A metáfora do homem autônomo mostra muito do que é atribuído à formação dos
indivíduos, orientada para o desenvolvimento de competências, da capacidade de maior
eficácia e produtividade assim como à adequação para atender às exigências do mercado.
Uma formação orientada para a eficácia e a maior produtividade, sem colocar a questão da
sua finalidade, ou os objetivos sociais a que ela corresponde, significa reduzir a pedagogia aos
meios, a instrumentos para a modelagem, à adequação dos indivíduos às instituições da
sociedade. A pedagogia que se ocupa unicamente do como no processo de educação, situa-se
no plano do imaginário, ao submeter o sujeito à condição de objeto e ao conceber o saber
como algo pronto e acabado. Pode-se encontrar uma outra perspectiva, uma nova forma de
pensar a sociedade e a formação dos indivíduos? Qual o sentido da pedagogia e da docência
na formação plena dos educandos? Essa questão será retomada em outro momento, em
especial no último capítulo.
De acordo com a visão econômico-funcional, a técnica refere-se apenas aos meios
disponíveis para a produção e aumento da produtividade. Para Castoriadis (2000), contudo, a
técnica não é apenas meio, ou um instrumento de produção, ela é consubstancial ao sistema
capitalista que a faz ser e que simultaneamente é feito por ela. Não há neutralidade na técnica,
80
seu sentido é histórico, ela é produto da sociedade capitalista e constitui e é constituída nas e
pelas formas de suas instituições, e formas de consciência social-histórica.
Conforme Castoriadis (2000),
as máquinas que conhecemoso são objetos “neutros” que o capitalismo utiliza com
fins capitalistas, desviando-os (como pensam ingenuamente com freqüência, técnicos
e cientistas) de sua pura tecnicidade, e que poderiam também ser utilizados como
outros fins” sociais. Elas são, sob uma infinidade de aspectos, a maioria delas
tomadas em si mesmas, mas de toda maneira porque são logicamente e realmente
impossíveis fora do sistema tecnológico que formam, “encarnação”, “inscrição”,
apresentação e figuração das significações essenciais do capitalismo (p. 402).
O sistema tecnológico não compreende apenas a técnica e seu grau de
desenvolvimento, mas dele participa o trabalho do homem como expressão das significações
sócio-históricas que faz ser a tecnologia uma tecnologia específica, a tecnologia capitalista. A
tecnologia capitalista é o meio pelo qual a sociedade capitalista se reproduz, produzindo em
um jato contínuo, novas técnicas, novos produtos e novas relações sociais, sem que seja
modificada a sua forma, que é a divisão dos homens entre aqueles que mandam, porque detêm
o poder, e aqueles que executam e estão desprovidos de poder. A tecnologia capitalista,
portanto, funciona para a manutenção das relações de dominação, e se sustenta sobre o
imaginário do valor substancial da técnica para a continuidade da vida social, ao imprimir um
aumento do poder do homem. Para Castoriadis (2002), “é a idéia de dominação total que
constitui o motor oculto do desenvolvimento tecnológico moderno” (p. 158). Sua perspectiva
é que o capitalismo se sustenta no imaginário de que o desenvolvimento tecnológico pode
proporcionar aumento de poder, o que é condição imprescindível para existência humana. O
autor critica a busca ilimitada por aumento de poder, observando o vazio que ele expressa,
pois toda ampliação de poder institui simultaneamente o aumento de impotência em face do
que o poder produz. O aumento ilimitado do poder institui, ao mesmo tempo, efeitos laterais
ilimitados, constituindo riscos para a continuidade da vida. As catástrofes ecológicas são
evidências da impossibilidade do aumento ilimitado do poder, e que não se resolvem com
mais tecnologia, mas antes por meio do questionamento sobre seu sentido.
O valor da técnica nas sociedades capitalistas modernas tem por correlato o desvalor
do indivíduo. A técnica impõe aos indivíduos um tempo de trabalho, determina o ritmo de
trabalho, impõe o modo de fazer, define o como produzir, e estabelece o momento de parar e
81
de começar
32
. A tecnologia capitalista, ao priorizar a técnica sobre o indivíduo, retira dele a
dimensão humana da experiência, ao reduzir seu trabalho à atividade mecânica.
O rompimento com o pensamento herdado é uma exigência para a compreensão do
sentido do social-histórico, da existência do tempo como alteridade e não apenas repetição ou
atualização. A concepção do ser e da sociedade como indeterminação
33
possibilita a
compreensão deles na história, como instituídos no e pelo tempo, bem como do tempo como
emergência de figuras outras, do tempo como origem das diferenças. Na expressão de
Castoriadis, (2002), “o tempo é o excesso do ser diante de si mesmo, é aquilo que faz com
que sua essência o ser esteja sempre por-ser” (p. 397). Nessa definição de tempo, o ser é não-
determinação
34
, pois traz as possibilidades da transformação do ser em outro, portanto, nas
possibilidades da emergência do ser como outro, reside o tempo como alteridade radical. A
não-determinação do ser não significa déficit de ser, mas possibilidades da existência do ser
no tempo, do ser social-histórico, do ser como vir-a-ser ou ser outro. Existe o tempo
identitário, ou seja, o tempo de calendário, que permite à sociedade se organizar, se dizer e se
fazer de um modo específico, mas existe também o tempo imaginário, o tempo das
significações, o tempo que permite a alteridade da sociedade. O tempo identitário é a
manifestação da ordem do mundo, mas só é tempo porque é referido ao tempo imaginário que
lhe confere sua significação de tempo. O tempo imaginário é o tempo do fazer social, o tempo
que deve ser instituído, e se apóia no tempo identitário, mas o ultrapassa, pois o tempo do
fazer “deve, em sua instituição, preservar ou controlar a emergência da alteridade como
possível” (CASTORIADIS, 2000, p. 249).
Superar a visão funcionalista da sociedade implica romper com as explicações
oferecidas pelo pensamento herdado, que ocultam a indeterminação como constitutiva da
sociedade e dos indivíduos. Pressupõe que os indivíduos e a sociedade aceitem a presença do
32
Laymert dos Santos (2000), ao analisar a relação entre a técnica, a ciência e o homem, chama a atenção para a
presença de uma profunda irracionalidade. Ele afirma que o progresso tecno-científico é irracional tendo em
vista que se realiza por meio da não-racionalidade do homem, pois ele se encontra alienado do poder de decisão
sobre em que e como algo deve ser investido e produzido, e os produtos desse progresso não são solidários às
necessidades e interesses da maioria dos homens. A fusão do desenvolvimento da racionalidade econômica com
a racionalidade científica tem conduzido a uma irracionalidade cada vez maior do progresso tecno-cnocientífico,
pois seus produtos passam a regular automaticamente os novos rumos de investimento submetendo homem e
natureza ao seu controle. Laymert dos Santos (2000) observa que “o princípio da competitividade obriga a
racionalidade econômica a atrelar-se à racionalidade tecnocientifica, ao subordinar as decisões de investimento
não às taxas de retorno mas à dinâmica da inovação” (p. 293).
33
Chauí (1990) situa a negação da indeterminação como uma das formas de existência da ideologia política, e “a
ideologia torna-se dominante e adquire feição própria na medida que consiga conjurar ou exorcizar o perigo da
indeterminação social e política” (p. 5), pois a indeterminação faz que a interrogação sobre o presente seja
possível e, por isso, a ideologia opera para que a indeterminação “seja inutilizada graças a representações e
mornas prévias que fixem definitivamente a ordem instituída” (p. 5).
34
“A não-determinação não é simples “indeterminação”. Ela é criação, a saber emergência de determinações
diferentes, de novas leis e de novos domínios que se submeterão a elas”, assinala Castoriadis (2002, p. 430).
82
caos, do poço sem fundo que é a existência para o sujeito e para o social-histórico, sem
exigência da determinidade para pensá-los
35
. Castoriadis (2000) propõe: “A sociedade não é
um conjunto, nem hierarquia de conjuntos (ou de estruturas), ela é magma e magma de
magmas” (p. 226). Pensar a sociedade como um magma é entendê-la como instituída por um
mundo de significações que, ao retornar ao primeiro estrato natural
36
, produz nele uma
alteração ontológica, o ser transubstanciado. Para Castoriadis (2000), existe sempre o modo
de organização conjuntista do primeiro estrato natural sobre o qual se apóiam as significações
sociais que instituem a sociedade, mas ele “não comporta ou suporta o mundo das
significações” (p. 275), em que tudo deve significar. O instituinte sempre se apóia no que
se encontra realizado, porém, ao introduzir novas significações que se chocam com o
instituído, cria as possibilidades para a mudança, a emergência do novo.
Dizer que a sociedade é magma não significa que ela seja apenas o caos, que o ser não
possa ser determinado, pois se ele existe é porque pode ser determinado, mas significa que
não existe determinação plena que a exigência de determinação deve permanecer sempre
insatisfeita.
A esse respeito, Castoriadis (1992) declara:
A organização conjuntista-identitária “em si” do mundo é não estável e
“sistemática” na sua primeira camada para permitir a vida humana em sociedade, mas
também suficientemete lacunar e incompleta para ter um mero indefinido de
criações social históricas de significações (p. 128).
O tempo identitário tomado como exclusivo, a neutralidade da técnica e a
funcionalidade são formas de respostas sociais (explicações sobre o que é a sociedade),
instituídas pelo imaginário social, que se cristalizaram, condicionadas pela ocultação da
sociedade como criação histórica. Contrapor-se ao imaginário social instituído que condiciona
as formas do dizer e do fazer social constitui as possibilidades para a emergência de uma
sociedade autônoma.
A denegação da criação do social-histórico como obra exclusivamente humana
significa a recusa da autonomia e do direito ao homem de se reconhecer em suas obras, de
elevar-se espiritualmente com autoconsciência sobre os seus atos, do poder de julgar e
escolher sobre a melhor forma de viver neste mundo, da possibilidade de recusa do instituído
35
O caos “é o que está atrás e abaixo de todo existente concreto, e é ao mesmo tempo a potência criadora que faz
surgirem formas, seres organizados” (CASTORIADIS, 1992, p. 279). O caos significa também o sentido trágico
da existência humana, pois os homens devem fazer escolhas e são os únicos responsáveis por elas.
36
Em relação ao primeiro estrato natural, Castoriadis (2000) afirma: “Esta organização fixa e estável de uma
parte do mundo homóloga à organização do homem enquanto ser vivo [...] é o que denomino o primeiro estrato
natural sobre o qual se apóia a instituição da sociedade, e que ela não pode pura e simplesmente ignorar, nem
forçar”. (p. 273).
83
e da criação de um novo eidos. A denegação da criação do social-histórico é recusa da
autonomia e do direito à liberdade que se manifesta sempre como desejo e imaginação
criadora para transformar-se e transformar a sociedade em outros.
Por meio da autonomia social e individual, a sociedade escapa à determinidade do
imaginário instituído que nega o sentido de criação do social, ou seja, seu caráter histórico. A
autonomia torna possível a emergência do imaginário radical instituinte, visto que cria uma
outra relação dos indivíduos com as instituições. Segundo Castoriadis (1983), “para que o
indivíduo possa pensar ‘livremente’, mesmo em seu foro íntimo, é preciso que a sociedade o
instrua e o eduque, fabrique-o como indivíduo que possa pensar livremente, o que muito
poucas sociedades fizeram na história” (p. 22). A formação de indivíduos autônomos implica
educá-los na e pela sociedade com capacidade reflexiva e crítica para dar a si próprios a sua
forma, a sua lei. Como uma sociedade heterônoma pode instituir indivíduos autônomos? Ou
como a autonomia pode irromper de dentro da heteronomia?
Do caminho percorrido até então, pode-se afirmar que, por meio do questionamento
radical e ilimitado das instituições presentes e das formas instituídas de pensamento, se abre o
campo para a emergência da autonomia. Exige-se para esse fim a abertura das instituições ao
questionamento e à crítica, e à participação ativa dos indivíduos deliberando sobre os
objetivos e finalidades delas, e ainda, a formação de indivíduos livres para agir e pensar o
mundo e sua existência sem recorrer a um Deus protetor e benevolente, reconhecendo-se na
grande obra social-histórica, um feito humano, mas que se realiza de muitos modos como
feito desumano. A formação dos indivíduos, portanto, com consciência e lucidez de que são
eles os responsáveis pela instituição da sociedade e por seus atos, o que remete à dimensão da
autolimitação como norma para suas ações e pensamentos. A autolimitação é constitutiva, ao
mesmo tempo, da autonomia e do direto; da autonomia, porque os sujeitos sociais
autônomos podem estabelecer limites aos seus atos e pensamentos sem necessidade de
controle externo, e do direito, porque cria os indivíduos com possibilidades para dizer e fazer
o que quer que seja, mas com a responsabilidade para a decisão de não fazer. A autolimitação
institui-se com a participação ativa dos indivíduos nos negócios públicos com liberdade e
igualdade efetivas, portanto com a democracia.
Assim, a participação na vida política deve contribuir para criar instituições com
abertura para a participação política efetiva dos indivíduos na sua gestão e nas tomadas de
decisões. A crítica às instituições formadoras dos indivíduos, como as instituições políticas e
as instituições educacionais, deve visar a burocratização e a hierarquia no exercício das
funções que divide os sujeitos entre dominantes e dominados, os que sabem e os que não
84
sabem. A burocratização das instituições sociais erige-se com a hierarquia entre os indivíduos
e corresponde, na Modernidade, à forma mais acabada de resistência a qualquer
transformação do instituído. Romper com o imaginário instituído da divisão dos homens entre
competentes e não-competentes, capazes e sem capacidade para a gestão da sociedade, é a
primeira condição para criar novas relações entre os homens imprimir rupturas nas formas
burocráticas das instituições presentes. Como diz Castoriadis (2000), “para os homens que
vivem hoje, a questão é compreender a contingência, a pobreza, a insignificância deste
‘significante’ das sociedades históricas que é a divisão em senhores e escravos, em
dominantes e dominados” (Castoriadis, 2000, p. 187). Possibilitar aos homens compreender
que a criação e a adesão dos indivíduos às suas instituições são possíveis sem as relações de
dominação e escravização se constitui o centro da questão da formação para a autonomia. A
formação plena dos indivíduos implica compreender que as formas das relações sociais
instituídas não são inevitáveis, mas acima de tudo reconhecer que elas são deploráveis porque
degradantes e perversas.
Pensar como insignificantes, contingentes e pobres os significados sociais instituídos e
sustentados em uma tradição secular exige que os indivíduos queiram algo diferente e
possam, em direito, imaginar outras formas de relações entre si e com suas instituições.
Assim, a formação do indivíduo deve investir em sua individuação e na imaginação criadora,
para criar nele o desejo de mudar e o suporte para essa mudança, o que no campo da
educação, implica uma reflexão crítica profunda sobre o sentido do que se faz hoje e o que
poderia ser pensado para a abertura à imaginação criadora na formação dos indivíduos e em
seu processo de individuação.
A educação deve investir na imaginação criadora, pois “a raiz da universalidade não é
a racionalidade, mas a imaginação criadora” (CASTORIADIS, 2000, p. 281). A imaginação
criadora faz o ser constituir-se como outro, ao acolher o tempo como alteridade, e a querer
outra coisa como possibilidade. A racionalidade tomada como raiz da universalidade não
produz movimento, para possibilitar a emergência de seres outros, pois é preciso imaginar
para querer, e querer outra coisa para poder imaginar. Ainda, a busca pela racionalidade das
coisas cria a idéia da necessidade do especialista, pois “se existe uma teoria verdadeira da
história, se uma racionalidade funcionando nas coisas, é claro que a direção do
desenvolvimento deve ser confiada aos especialistas desta teoria, aos técnicos desta
racionalidade” (CASTORIADIS, 2000, p.74).
A individuação dos indivíduos é possível em sociedades que se instituíram por
meio da autonomia. “A verdadeira individuação começa quando as sociedades iniciam um
85
movimento em direção à autonomia”, afirma Castoriadis (1999, p. 110). Nas sociedades
heterônomas, os indivíduos são uniformizados e coletivizados, não possuem poder de decisão
e não são respeitados em sua individualidade. As sociedades capitalistas modernas, ainda que
se apresentem como defensoras dos interesses dos indivíduos, são na verdade
uniformizadoras, pois os indivíduos são tratados como sujeitos heterônomos. “O respeito
pelos outros é exigível porque eles são sempre, portadores de uma virtualidade de autonomia”
(CASTORIADIS, 1999, p. 66), pois a autonomia dos indivíduos lhes possibilita a construção
de sua subjetividade, como instância reflexiva e deliberante.
Da relação entre autonomia e direito, pode-se afirmar que a criação de instituições
autônomas e a formação de indivíduos autônomos possibilitam a efetivação dos direitos
sociais e a criação de novos direitos. A investigação da questão inicial – se criação de direitos
possibilita a instituição de indivíduos autônomos ou seria a instituição da autonomia um
proto-direito mostra que a existência de indivíduos autônomos possibilita que se criem
novos direitos sociais. Contudo esses indivíduos autônomosexistirão se forem criados pela
sociedade, por meio da educação. Se a autonomia social e individual possibilita que a ação
dos homens seja a mais lúcida possível, ela pode ser uma forma de assegurar que os homens
não criem monstruosidades, mas promovam a liberdade e a igualdade humanas. A
possibilidade de que a ação humana esteja presa o menos possível ao imaginário pode garantir
maior racionalidade para a economia com a reflexão sobre o que é o fazer, por que fazer, e
proporcionar que o funcional e o simbólico respondam mais às possibilidades de auto-
alteração individual e coletiva e menos à repetição do mesmo. Com instituições sociais
autônomas, pode-se superar a falsa idéia da tragédia da existência humana, causada por um
baixo desenvolvimento da técnica ou por uma incapacidade política, pois foram instituídas e
são reproduzidas, simbolizadas e sustentadas por um imaginário social que resiste em face de
qualquer alteração, e criar novas relações sociais que promovam novos direitos.
A raiz comum entre a educação como criação de novos direitos e a instituição da
autonomia pode ser demonstrada por meio da oposição que ambas fazem a todas as formas de
heteronomia instituídas. A instituição da autonomia é, em certo sentido, a criação da reflexão,
do questionamento e da crítica e, em outro, as possibilidades para a criação de novos direitos.
Castoriadis (1999) assevera:
Porque queremos a autonomia para todos porque submetemos tudo, inclusive as
instituições dos outros, à questão do direito (...) Não afirmamos a superioridade da
cultura ocidental, mas de uma dimensão da cultura ocidental, que afirmamos também,
como já foi dito, contra uma outra dimensão, oposta, dessa mesma cultura (p. 60).
86
Essa afirmação demonstra a defesa da autonomia que se instituiu nos dois momentos
distintos na história do ocidente, em Atenas, na Grécia antiga e com a Revolução Francesa, na
Modernidade, e que se constitui como parte do projeto de autonomia já realizado, e como uma
dimensão da cultura do ocidente defensável em si por sua universalidade. O projeto de
autonomia consubstancial à instituição do direito cria as possibilidades históricas para as
formas de relações humanas sem a dominação e a exploração de uns sobre os outros. A
instituição da autonomia, ao colocar para a sociedade e para o indivíduo as possibilidades da
escolha, cria simultaneamente as formas de existência humana como responsabilidade e como
direito. “Essa possibilidade de escolha, nós a valorizamos incondicionalmente, e dela
lançamos mão ao optar pela autonomia, e contra a heteronomia presente tanto em nossa
tradição quanto em nossa atualidade, tanto timidamente quanto monstruosamente”, afirma
Castoriadis (1999, p. 56).
A afirmação da educação como criação de novos direitos está, portanto, na defesa da
autonomia social e individual como modo de existência humana que se constitui como
autocriação da lei, da justiça e da finalidade das instituições social-histórica. Ao instituir-se
como criação autônoma dos homens, a sociedade abre-se para a criação de novos diretos, pois
em uma sociedade autônoma, ou seja, democrática, as questões da lei, da justiça e do seu
sentido estão sempre abertas ao diálogo, julgamento e deliberação coletiva.
87
III CAPÍTULO
A educação como criação de novos direitos
O caminho da indeterminação parece ser o único que concede à educação
mais do que o status de simples terreno de aplicação de teorias acabadas: e,
assim, parece ser o único que se abre para aqueles que buscam os lugares
onde se pode exercer uma reflexão efetivamente democrática Castoriadis
diria, efetivamente filosófica sobre a educação. Nesses lugares, a certezas
foram substituídas pelo questionamento: a impossibilidade de um
conhecimento acabado sobre o homem e sobre a educação não deriva de
um ‘déficit’ ontológico da ação e da razão humanas, tanto quanto o objeto
desta ação e desta razão já não é mais a busca de adequação ao que é, mas a
criação do que ainda o é. A autoridade negada à natureza é, assim,
reinvestida na capacidade de deliberação individual e coletiva que caracteriza
os seres para os quais existe a educação. Liberdade e criação: fundamentos
da necessidade de educação, eles serão também o que a torna,
insoluvelmente, um enigma.
Lílian do Valle
A educação como criação de novos direitos pretende contribuir para a transformação
da sociedade organizada na base das relações de exploração, de injustiça e de dominação, que
reduz os indivíduos à dimensão utilitária com perda da pluralidade, da convivência comum,
dos laços de solidariedade e responsabilidade. Educação, portanto, para formar indivíduos que
se reconhecem nas instituições que criam, por isso mesmo, se sentem com direito e
responsabilidade tanto de defendê-las como de questioná-las e recriá-las. Para formar
indivíduos autônomos que se sentem responsáveis pelas instituições que criam e que sejam ao
mesmo tempo livres para questioná-las e imprimir-lhes novas formas, a educação deve
contribuir para garantir o direito de todos à participação política em seu sentido radical, o
direito de julgar e deliberar sobre todas as questões da vida pública. Na afirmação da
liberdade e da igualdade dos homens, contrapondo-se à dominação e ao controle, é possível
uma educação voltada para a criação de novos direitos que se caracteriza pela autonomia da
ação, do questionamento e da crítica. Trata-se, portanto, de uma educação democrática, o que
pressupõe, ao mesmo tempo, interrogar o sentido da educação, da pedagogia e da docência
88
instituídas e elucidar a educação como formação plena dos educandos que se faz possível em
razão da indeterminação do social-histórico e da manifestação do imaginário radical
instituinte, condições inelutáveis para a criação de instituições autônomas.
A educação como criação de novos direitos, ao visar a instituição da autonomia,
retoma o sentido da paidéia democrática da formação plena dos indivíduos nas dimensões
individual e coletiva por meio da associação entre política, ética e educação.
De acordo com Valle (2002),
a lei justa, o nómos democrático é, assim, aquela que, mais do que injunção e
interdição, é abertura para a deliberação comum, a partir de uma disposição pessoal
que Aristóteles denomina prudência (phrónesis). Na democracia, a associação entre
ética, política e educação esboça mais legítima vocação educacional: a instituição da
autonomia (p. 263).
A formação de indivíduos autônomos para a participação na vida públicas com
capacidade de julgar e deliberar corresponde ao mesmo tempo às possibilidades para a ética e
para a política, pois só há efetivamente ética na dimensão pública e coletiva da existência, se a
coletividade se autocria com liberdade e com o sentido de justiça e de responsabilidade, ou
seja, cria as suas instituições visando a igualdade entre os homens. A possibilidade de criação
define o homem como um ser humano e não apenas como um vivente. O ser vivo vai além
do simples mecanismo porque pode dar novas repostas a novas situações. Mas o ser histórico
ultrapassa o ser simplesmente vivo porque ele pode dar novas respostas às ‘mesmas’ situações
ou então criar novas situações”, afirma Castoriadis (2000, p. 58). Todavia, o universal do
homem, que é sua capacidade de criação, se constitui em uma criação humana conforme
contempla o outro, pois em relação ao outro pode-se ser justo ou cometer injustiça, como
afirmou Aristóteles. Pode-se ainda dizer que o ser humano em sua essência verdadeiramente
humana, é definido por sua capacidade de criação consciente como práxis reflexiva e
deliberante, portanto, autônoma. Daí a necessidade da paidéia, da formação humana no seu
sentido pleno, por meio do ensino da virtude, da práxis política e da autolimitação para que a
criação do homem seja verdadeiramente humana. Assim, a associação entre ética, política e
educação constitui-se na condição irredutível para a efetivação da autonomia social e
individual.
A criação de novos direitos na sociedade implica rupturas com as instituições
presentes, por isso, encontra sempre resistência das significações sociais instituídas que
constituem o imaginário individual e social. Para a instituição de novos direitos sociais,
89
portanto, é importante de um lado, identificar no imaginário social aqueles significantes que
apresentam maiores resistências à autocriação e à auto-alteração da sociedade, e, de outro,
explicitar o imaginário instituinte sempre presente em cada contexto específico, que apresenta
novas significações com coerência e lucidez para a recriação ou auto-alteração do instituído.
A investigação orientar-se-á, de um lado, pela explicitação desse imaginário que
sustentação às formas heterônomas da sociedade, e, de outro, pela elucidação dos meios
possíveis para instituir novas formas de pensamento e ação, para o que se busca explicitar o
sentido de uma educação na perspectiva de uma formação plena, questionando as instituições
de formação, interrogando alguns conceitos, relações e práticas pedagógicas. Antes responde-
se à pergunta: Que é educação como criação de novos direitos? A intenção é buscar o alcance
e as possibilidades da educação como criação de novos direitos e explicitar as situações em
que a criação de novos diretos é negada pelas instituições presentes.
1 O sentido da educação como criação de novos direitos
Que é educação como criação de novos direitos? A paidéia democrática, praticada em
Atenas, buscava a formação do homem virtuoso, que se caracterizava pela excelência no agir
em relação a si mesmo, ao outro e à pólis. A conquista da perfeição moral referia-se à
participação do homem na dimensão da universalidade humana que era a razão definida como
a capacidade de argumentar e deliberar com consciência sobre as questões da vida coletiva. A
criação do sentido da universalidade humana possibilitou ao grego perguntar o que é a justiça
e criar as instituições para realizá-la.
Para Castoriadis, a raiz da universalidade, como foi dito, é a imaginação criadora,
ela faz existir os homem como seres que criam e se criam no e pelo social-histórico. A
imaginação criadora faz surgir nos indivíduos a liberdade para pensar livremente, um desejo e
querer próprios e as possibilidades de estabelecer novas relações com o outro e com as
instituições sociais. Contudo, para que a imaginação criadora possa manifestar-se é preciso
que haja abertura das instituições ao questionamento e à crítica de seu sentido e validade, o
que significa dizer que a imaginação criadora se realiza em razão da indeterminação do
social-histórico, ou seja, da aceitação de seu caráter de criação humana pela práxis política.
Em outras palavras, a imaginação criadora, raiz da universalidade humana, manifesta-se como
capacidade de julgar, argumentar e deliberar com liberdade e consciência. Ao situar as
90
possibilidades para a efetivação da imaginação criadora no campo da criação do social-
histórico, Castoriadis retoma dos gregos o sentido da universalidade como práxis política,
como projeto de criação e transformação das instituições sociais. Com a abordagem da
imaginação criadora como “componente nuclear do pensamento não trivial”
(CASTORIADIS, 2002, p. 281) uma vez que tudo que foi pensado e imaginado pelas
sociedades precedentes apresenta-se sempre como possibilidades e que podem ser recriadas, o
que por sua vez remete à indeterminação do ser e da sociedade que situa o sentido da
educação como criação de novos direitos. O sentido validado diz respeito à formação para a
autonomia tornar os indivíduos capazes de dar a si próprio a sua forma e de se conduzirem
segundo as leis criadas pela coletividade à qual eles pertencem. Essa formação deve visar a
liberdade efetiva dos indivíduos para imaginar, querer, julgar e escolher como as condições
para que eles possam se autocriar como indivíduos que questionam, contestam e transformam
a realidade social.
Uma educação como criação de novos direitos é aquela que visa o indivíduo não é
redutível à sociedade e suas possibilidades de criar e de se recriar no e pelo social-histórico,
o que pressupõe o direito à manifestação de seu inconsciente, de sua imaginação criadora e de
sua existência, não apenas no tempo identitário, mas também no tempo imaginário e considera
a autolimitação como a única limitação à qual ele deve submeter os seus atos. A educação,
portanto, deve visar a formação humana em seu sentido mais profundo, criar no indivíduo o
desejo e o prazer pelo saber, o desejo e a liberdade de busca da verdade e a responsabilidade
com o que ele faz ser, em relação a si mesmo e ao outro. A busca da verdade é entendida
como a liberdade dos indivíduos para interrogar e deixar-se interrogar, elucidar seu
pensamento e submetê-lo ao exame da coletividade. Pressupõe a instituição da educação
visando a formação plena dos indivíduos com a criação de hábitos e valores pelos quais eles
possam se conduzir de forma autônoma, pensar livremente e agir sem necessidade de
interdições externas, mas por meio da autolimitação.
As formas de educação que apresentam uma intencionalidade externa ao indivíduo e à
construção do saber, como o sentido da formação reduzido à educação para a
profissionalização, para atender a um suposto mercado, para o domínio da técnica, negam as
possibilidades de criação de novos direitos, pois deslocam-se dos domínios do universal
(constituir o ser humano) para situarem-se nos domínios do particular (assegurar a reprodução
da economia que se assenta sob as relações de dominação e exploração e que se sustenta na
desigualdade social). O sentido da formação plena é o de possibilitar aos indivíduos
aprofundar nos domínios do saber e da cultura, por isso, o acesso a todos ao saber, à pesquisa
91
e à produção da cultura em todos níveis constitui o ponto de partida para a educação nessa
perspectiva, o que significa dizer que a educação, na perspectiva da criação de novos direitos,
deve ser concebida como um direito. A formação deve situa-se na dimensão do universal,
como instituição do pensamento e, portanto, do dissenso e das possibilidades para entender,
contestar e reconstruir a realidade.
Questões como redução do tempo para conclusão de cursos de mestrado e de
doutorado e a redução do sentido da formação à profissionalização expressam uma visão
funcional de formação e se constituem em uma visão negadora da educação como criação de
novos direitos. A identificação da formação humana com a profissionalização caracteriza-se
pelo reducionismo, simplificação, banalização e reificação do saber, dos indivíduos, das
relações interpessoais, dos valores e da cultura e se afirma ao atribuir uma suposta
incompetência àqueles que não se ajustam ao mercado. A redução do tempo para a pesquisa
nega a educação como criação de novos direitos visto que, ao restringir o tempo da pesquisa,
diminui a dimensão de profundidade e rigor da produção acadêmica. São formas de conceber
a educação que negam a educação como criação de novos direitos tendo em vista que recusa a
autonomia dos sujeitos da produção do conhecimento, a possibilidade de autocriarem-se por
meio da reflexão crítica e com responsabilidade. Ao limitar o sentido da formação à
preparação profissional perde-se sua dimensão de constituição do saber que implica a
constituição da reflexão e da crítica, para orientar-se por uma determinada necessidade da
sociedade. Com base na concepção de Castoriadis (2000) retoma-se a questão: Qual é a
necessidade da sociedade? A resposta é impossível porque conduz tanto ao imaginário efetivo
da sociedade como ao imaginário instituinte que se lhe opõe e o contesta no dizer e no fazer,
pois a necessidade da sociedade se apresenta sempre também como possibilidade.
A perspectiva funcional de formação humana expressa uma crença na possibilidade de
um conhecimento prévio e exaustivo sobre a necessidade da sociedade e contribui para a
manutenção das relações de exploração e dominação social, política e econômica, ao
instrumentalizar o saber. Instrumentalizar o saber significa negá-lo, pois ele deixa de ser
criação, questionamento, interrogação para constituir-se em instrumento de afirmação do
instituído.
Todavia, se o sentido da formação humana não pode ser definido em razão de um
conhecimento acabado sobre a necessidade da sociedade, ele pode ser elucidado por um
projeto de sociedade. Propõe-se que a formação deve visar a transformação da sociedade e
orientar-se por um projeto de instituição autônoma da sociedade. Orientar-se para a criação de
novas instituições sociais compreende a ação política e coletiva dos homens, pois, como
92
afirma Castoriadis (2000), o indivíduo sozinho produz apenas fantasmas privados, não
instituições.
Elucidar um projeto de transformação da sociedade, “exige primeiro que se
compreenda o que se deseja transformar, e que se identifique àquilo que, na sociedade,
realmente contesta esta sociedade e está em luta com sua forma presente” (CASTORIADIS,
2000, p. 25). As discussões feitas nos capítulos anteriores autorizam a afirmação de que a
contestação às formas heterônomas das instituições sociais, que se manifestam na
burocratização, na hierarquia e na apatia social e política, se constitui no aspecto central do
projeto de transformação das sociedades capitalistas modernas. Está em luta com a forma
presente da sociedade, instituída por meio da alienação, do autoritarismo e da desigualdade
social, a instituição da democracia social e política democracia como modo de existência
social. Trata-se da democracia no seu sentido original de participação de todos nas decisões
políticas, o que implica a criação de igualdade de condições sociais, políticas e culturais para
garantir essa participação, pois, para haver disputa política, é preciso que a sociedade institua
os indivíduos como iguais, como o faz a sociedade ateniense clássica.
As formas de relações humanas instituídas por meio do debate e da discussão criam as
possibilidades para a auto-instituição dos indivíduos e para a auto-alteração da sociedade, o
que faz da construção da democracia um projeto radical. Trata-se da democracia que, ao
efetivar-se por meio do dialogo e da discussão públicas para a solução (sempre provisória)
dos conflitos, se constitui na abertura da sociedade para acolher as novas significações sociais,
ou seja, o imaginário radical instituinte.
Além da elucidação do projeto de transformação da sociedade, é importante explicitar
as condições de sua efetivação e sua transformação em práxis. Castoriadis (1999; 2000)
assinala que a práxis não se identifica com o fazer, mas é uma modalidade específica do fazer,
que há uma distinção entre a práxis e a atividade técnica ou as atividades mecânicas, e, que
uma íntima relação entre práxis e teoria
37
.
A práxis não se identifica com o fazer humano, “é uma das modalidades do fazer
humano” (CASTORIADIS, 1999, p. 62), pois ela não se refere às atividades dos seres
humanos em geral, mas especificamente às atividades da subjetividade reflexiva e deliberante.
A práxis visa uma certa transformação de seu objeto (humano), objeto que pode ser o outro
concreto, como na psicanálise e na pedagogia, ou indefinido como na política. A práxis é “a
37
“A teoria como tal é um fazer, a tentativa sempre incerta de realizar o projeto de uma elucidação do mundo. O
fazer humano constitui o universo humano do qual a teoria é um segmento. A teoria como tal é um fazer
específico, ela emerge quando o momento de elucidação torna-se por si mesmo projeto”, declara Castoriadis
(2000, p. 93-94).
93
atividade que considera o outro como ser podendo ser autônomo, e tenta ajudá-lo a chegar à
sua autonomia. O outro é entendido aqui no seu sentido lato, me inclui a mim mesmo como
‘objeto’ de minha atividade”, afirma Castoriadis (1999, p. 62). Na práxis, não meios
separados dos fins, nem relação de causa e efeito, “pois a práxis pode existir se seu objeto,
por sua própria natureza, ultrapassa todo o acabamento e a relação perpetuamente
transformada com esse objeto” (CASTORIADIS, 2000, p. 110).
O fazer humano que visa a um fim definido não é práxis, pode ser a atividade técnica
ou outras atividades que implicam a relação de causa e efeito. Na expressão de Castoriadis
(2000),
a práxis não pode ser reduzida a um esquema de fins e meios. O esquema do fim e dos
meios pertence precisamente à atividade técnica, pois esta tem relação com um
verdadeiro fim, um fim que é um fim, um fim finito e definido que pode ser
estabelecido como um resultado necessário ou provável, em vista do qual a escolha
dos meios se reduz a uma questão de cálculo mais ou menos exato; com este fim, os
meio não têm nenhuma relação interna, simplesmente uma relação de causa e efeito
(p. 94-95).
A práxis não se identifica com a atividade técnica. A técnica é a atividade que visa
alcançar um determinado resultado e estabelece para isso os meios que podem propiciar a
obtenção desse resultado. Na técnica, a relação com os meios é externa, o fim visado é sempre
um produto acabado e determina os meios necessários para realizá-la. A atividade técnica
pressupõe um saber exaustivo sobre o objeto, o fim está totalmente determinado na cabeça
do seu agente, por isso não exige consciência e lucidez para a sua realização, pois se apóia em
um saber acabado.
A práxis é atividade consciente e pode existir na lucidez, daí sua íntima e profunda
relação com a teoria, que consiste na exigência simultânea, para a práxis, de elucidação e de
transformação do dado. A práxis, sendo uma atividade lúcida, não pode invocar um saber
absoluto, posto que ilusório, nem um saber puramente racional, o que seria um saber
exaustivo meios e fins, causas e resultados e esse saber é a técnica. A práxis apóia-se em
um saber efetivo, portanto fragmentário e provisório, como todo saber efetivo. É
fragmentário, porque não pode haver teoria exaustiva do homem e da história; ele é
provisório, porque a própria práxis faz surgir constantemente um novo saber, porque ela faz o
mundo falar numa linguagem ao mesmo tempo singular e universal(CASTORIADIS, 2000,
p. 95; grifo do autor).
A política e a pedagogia pertencem ao domínio da práxis e devem ser elucidadas por
uma teoria, mas sem perder o sentido inacabado de toda questão prático-teórica. Política e
94
pedagogia tomadas em seu sentido radical de crítica, de questionamento e de criação, são
formas de compreender o mundo, de esclarecer as consciências e de instituir novos
pensamentos e valores, e podem constituir-se em projetos instituintes de uma nova realidade
social-histórica.
Conceber a educação como criação de novos direitos possibilita considerá-la como
projeto político de transformação da sociedade e como práxis realizada por sujeitos sociais
autônomos. É mover-se no plano da realidade não apenas para entendê-la ou afirmá-la, mas,
buscando recriá-la. Assim, a educação passa a ser o campo em que o desconhecido, o
imprevisível, o indeterminável devem figurar como o desejável, pois nela se encontram as
possibilidades de criação de algo novo, do que nunca foi pensado ou desejado antes. A idéia
de uma educação como possibilidade de criação de novos direitos busca transcender os limites
de um futuro sabido, de uma realidade em princípio dominada. Segundo Coêlho (2001)
só ensina quem se encontra em uma relação de busca:
Na relação de busca não lugar para a obra acabada, mas para o trabalho sempre
retomado de pensar a realidade, as questões. As conclusões a que cada um chega não
encerram o debate, não tornam a discussão dispensável e desnecessária, mas se
inserem no processo de interrogação, de busca da essência, do sentido da realidade (p.
28-29).
A educação como criação de novos direitos não é apenas a criação e a efetivação de
novas leis, mas a transformação dos sujeitos sociais e das instituições; é a educação que forma
pessoas autônomas, capazes de compreender e de transformar a si mesmas e o mundo; é a
educação que busca criar nos indivíduos o inconformismo com o estado de coisas presentes e
a capacidade criadora de transformá-las por meio da abertura da educação à reflexividade e à
constituição do saber autônomos, à imaginação criadora ou ao imaginário instituinte; é a
educação que investe na superação da centralidade do econômico sobre os demais aspectos da
vida; é a criação de uma ambiência de debate, de crítica, de liberdade, com a democratização
das estruturas de poder das instituições de formação; é a criação de novas significações
sociais, ou seja, a posição de novas determinações. A educação como criação implica a
ruptura com o modelo de educação orientado pela concepção de um saber pleno e acabado,
que não se constitui em uma via de construção dos sujeitos constituídos na e pela práxis.
Propõe a abertura da pedagogia ao projeto revolucionário de instituição da autonomia, pois
“toda elucidação que empreendemos é finalmente interessada, e para nós em sentido efetivo,
porque não existimos para dizer o que é, mas para fazer ser o que não é (ao qual o dizer
daquilo que é pertence como momento)” (CASTORIADIS, 2000, p. 197; grifo do autor).
95
A educação como criação de novos direitos visa outros possíveis do homem e da
sociedade e, por isso, deve fazer-se instituinte de novas formas de pensamento social, sempre
inseparável da idéia de justiça e de liberdade. Ela proporciona uma formação humana que
contemple e eleve todos os aspectos da cultura, e que seja instituite de relações sociais
humanizadas. Interessa, portanto, a todos que constituem a sociedade presente e enfrentam o
desafio de criá-la como um mundo melhor. Interessa às gerações presentes, porque têm a
responsabilidade de educar as novas gerações, dar sentido à sociedade e preservá-la da
destruição, o que pode ser feito, recriando-a; interessa às novas gerações, pois elas ao
chegarem em um mundo sempre velho, desejam continuar a tarefa de criá-lo e recriá-lo
indefinida e infinitamente. A educação como criação de novos direitos interessa aos jovens e
aos que ainda virão, também porque ela é uma busca pela preservação desse mundo da
ameaçado de destruição, provocada pelo irracionalismo das ações dos homens da atualidade.
A criação de novos direitos possibilita que os recém-chegados ao mundo possam ser
acolhidos tanto por uma natureza saudável como por relações sociais humanizadoras.
2 A educação na sua dimensão pública e política
A insignificância da dimensão pública e coletiva da existência humana instituída pela
Modernidade gerou simultaneamente a futilidade da política e a falta de responsabilidade dos
indivíduos em relação à sociedade. Essa situação expressa-se na evanescência dos conflitos e
na perda dos valores sociais que tradicionalmente orientaram as relações e o modo de agir dos
homens reduzidos à concorrência entre indivíduos e/ou corporações. O indivíduo privatizado
volta-se exclusivamente para a defesa de seus interesses que se resumem em assegurar as
possibilidades de consumo, como se esse objetivo pudesse ser satisfeito a despeito da
irresponsabilidade em relação à sociedade, com a natureza e com os outros. Ocorre que, sem a
dimensão da vida pública a violência social, as catástrofes ecológicas e a degenerescência da
política não encontram limites nem sanções, por isso a questão da dimensão pública e política
da educação surge como exigência. É possível à educação constituir-se em contestação à
forma instituída de pensamento? Qual o sentido da educação para a instituição da dimensão
pública da vida social?
Ao abordar essas questões procura-se explicitar o sentido dos termos: diversidade,
controle, saber e ética. O sentido que lhes são atribuídos no âmbito da cultura e da formação
humana pode traduzir a expressão de um projeto de autonomia ou se constituir na afirmação
96
da heteronomia, com a negação da crítica e do questionamento. O sentido exprime sempre
uma visão de mundo, de sociedade e de formação humana, podendo ser tanto tributário do
imaginário social instituído como manifestação do imaginário social instituinte, o que
significa dizer que sobre o social-histórico não sentido, mas sentidos, posto que ele é
criação que se constitui e é constitutivo da indeterminação. Assim, a investigação dos
significados dos termos, diversidade, controle, saber e ética busca situá-los na dimensão
política e na esfera do debate público como campo em que a pluralidade humana emerge
como possibilidade
38
. A escolha dos termos deve-se ao uso abusivo que a mídia faz deles com
a intenção de educar a sociedade e orientá-la sobre a necessidade do respeito à diversidade
para a instituição de relações sociais éticas e da importância do controle que os pais e os
professores devem exercer sobre a formação das crianças e dos jovens e, ainda, a importância
que o controle assume para a eficácia do processo educativo, para a aquisição do saber.
A questão das diferenças, do respeito à diversidade tem assumido centralidade nas
políticas internacionais para a educação. A Organização das Nações para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco)
39
, que passou a ser um fórum internacional de recomendação
para a educação, vincula o respeito à diversidade, às diferenças entre os povos como um dos
principais meios de defesa da paz mundial. Os discursos sobre a necessidade da educação para
a tolerância como condição para a paz em um mundo globalizado estão presentes nas
instituições que se ocupam da educação e da cultura nos planos global, nacional e local, e, de
modo incisivo, na mídia. Mesmo aqueles discursos que buscam romper com as formas
instituídas de pensamento, ficam presos às malhas da ideologia das diferenças, do respeito às
diversidades, sem questionar seu significado e em que implica sua defesa.
O relativismo do discurso sobre o respeito às diferenças que não considera o que
constituem essas diferenças é contestado por Castoriadis (1999): “Nada do que disse ou
escrevi me engaja a ‘respeitar as diferenças’ por respeitar as diferenças. E não respeito a
heteronomia” (p. 60). Sua perspectiva é que, em nome das diferenças, podem-se apoiar
formas monstruosas de relações humanas, pois, se todas as formas de existência são
defensáveis, perde-se a dimensão dos direitos humanos como forma das relações sociais. Em
face da defesa das formas democráticas das relações entre os homens, o que os outros fazem é
38
Na investigação deste capítulo foram feitas citações de autores com posições conflitantes o que não é um
problema. São autores que se distinguem na forma de abordagem das questões sociais, mas que se aproximam na
criação de novas interpretações e significados para a sociedade visando a criação da autonomia social e
individual.
39
A alusão à concepção de diversidade da Unesco refere-se à análise do Relatório para a Unesco da Comissão
Internacional sobre educação para o século XXI, apresentada no livro, Educação: um tesouro a descobrir
(2000), conhecido como Relatório Jacques Dellors, que foi distribuídos às escolas de ensino médio e
fundamental e serviu de instrumento de formação dos professores para a política de inclusão escolar.
97
passível de ser julgado se ferem os direitos humanos e o respeito aos indivíduos como sujeitos
portadores de uma dimensão reflexiva. Castoriadis (1999) diz que não respeita a heteronomia
porque ela conduz o homem a agir de forma irracional, pois “para conduzir um ser humano à
razão, é preciso outra coisa: que cesse sua adesão a uma instituição heterônoma da sociedade,
e a interiorização das representações onde essa instituição se encarna” (p. 51). Defender que o
ser humano deve conduzir-se por meio da razão implica contestar a heteronomia que é
conduzir-se de forma irracional. Por que as diferenças não podem ser questionadas? A defesa
incondicional das diversidades não é a eliminação do conflito? Questionar as diferenças não
significa abrir para o debate público o sentido do fazer humano?
Para elucidar essas questões pode-se retomar a experiência ateniense de criação da
pólis, pois, como afirma Castoriadis, (2000, p. 127): “Um olhar no qual não existe já o olhado
nada pode ver; um pensamento no qual não existe o já pensado nada pode pensar” (p. 127). A
instituição da dimensão pública/pública (ekklesía) na vida da pólis, ao fazer do diálogo, do
debate público a condição para a legitimidade das condutas, institui o questionamento como
meta validade para todas as questões. Assim, tornou a legitimidade das ações sempre
provisória, tendo em vista que o questionamento está sempre em aberto, e considerou o
conflito como próprio da vida pública, o que a torna possível. Para os atenienses, diferenças e
conflitos são constitutivos da vida pública e, portanto, da política, são aquilo que possibilita a
emergência das questões e do debate sobre elas. As diferenças e os conflitos criam a reflexão
e a deliberação pública, por isso, soaria estranho para os antigos expressões como em respeito
às diversidades e superação dos conflitos, pois não se trata de os respeitar nem de os eliminar,
mas de submetê-los à reflexão e à deliberação política. Cabe lembrar também o pensamento
aristotélico de que muitos sempre julgam melhor, são sempre mais capazes para o julgamento
correto, do que alguns. Não se trata de abolir as diferenças, mas de questioná-las e submetê-
las ao debate público.
Segundo Chauí (1990),
saber quando a reflexão aceita o risco da indeterminação que faz nascer, quando
aceita o risco de não contar com garantias prévias e exteriores à própria experiência e
à própria reflexão que a trabalha (...) para que a ideologia seja eficaz é preciso que
realize um movimento que lhe é peculiar, qual seja, recusar o não-saber que habita a
experiência, ter a habilidade para assegurar uma posição graças à qual possa
neutralizar a história abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda a
tentativa de interrogação (p. 5).
98
A reflexão sobre o texto de Chauí (1990) indica duas questões: o saber e o não-
saber. O saber é possível com o não-saber, caso se admita o saber como experiência e
como indeterminação. O saber é histórico e constitui-se na e com as diferenças e as
contradições. Pode-se estabelecer um paralelo entre o sentido do saber de Chauí e a
diversidade. A diversidade é possível com a não-diversidade, com o que faz dos seres
humanos seres da mesma espécie, que pensam, que possuem uma linguagem, um consciente e
um inconsciente, uma imaginação criadora, que desejam, dizem e fazem coisas de diferentes
formas e criam outras formas. Conceber a diversidade como possibilidade para a existência do
outro implica considerar esse outro antes em sua universalidade, o que constitui sua
humanidade. A universalidade é manifestação da práxis dos sujeitos sociais e políticos e
pressupõe a contestação a todas as formas de relações de manipulação e exploração, pois
nega-se o outro quando não se compartilha algo com ele, quando ele é manipulado, usado e
explorado. A diversidade é histórica e constitui-se no e pelo conflito, e tal como o conflito, a
diversidade não pode ser eliminada, mas deve ser sempre objeto de interrogação. Assim como
o saber, a diversidade encontra-se no campo do interminado, da experiência e da reflexão
humana, para a qual, sobre sua verdade, não existe nenhuma resposta prévia.
A relação que Arendt (2001) estabelece entre política, liberdade e mundo público
também se constitui em uma grande contribuição para a elucidação da questão da diversidade.
Segundo a autora, política e liberdade são coincidentes, porém, se articulam quando existe
o mundo público. No mundo público, a política constitui-se como campo do diálogo no
plural, que surge com a palavra e a ação e, por isso, o mundo público surge como
possibilidade para a liberdade, pois, na interação com os outros, ocorre a consciência da
presença ou da ausência da liberdade. Se a consciência da presença ou da ausência da
liberdade do outro es condicionada à práxis política instituída pelo mundo público, a
reflexão sobre a diversidade, que é o respeito à liberdade do outro, deve também ser visada
por meio dessa articulação. Portanto, pode-se afirmar que as possibilidades para a diversidade
estão na existência do mundo público, pois nele constituem-se e se articulam a política e a
liberdade.
Outro aspecto sobre a formação humana que se apóia em uma concepção autoritária de
sociedade é a idéia de controle. A imaginação de que se não houver um controle dos adultos
sobre os jovens dos pais sobre os filhos e dos professores sobre os alunos não
educação, é uma extensão das relações de dominação existentes na sociedade, na divisão dos
homens entre governantes e governados, dirigentes e executantes, entre quem pensa e quem
faz. Essas relações imprimem as formas burocráticas e hierárquicas a todas as instituições da
99
sociedade que dividem os indivíduos entre os que têm competência para tomar decisões e
aqueles que não o têm. A idéia de que ante a ausência de conhecimento é necessário o
controle afirma a heteronomia instituída e o autoritarismo nas relações sociais. Nas relações
sociais democráticas, não faz sentido falar em controle, uma vez que ele se constitui em uma
questão interna ao indivíduo, ou seja, como autocontrole, pois a democracia é o regime da
autolimitação.
A idéia de controle é consubstancial à da incompetência. Aqueles que não possuem
competência precisam de guia para que suas ações sejam eficazes, o que anula a dimensão da
práxis na constituição dos sujeitos. Se a incompetência exige o controle, o conhecimento
legitima a competência que passa a ser, também, sinônimo de capacidade de decisão e de
deliberação sobre outros. A vinculação entre conhecimento e competência, ao imprimir um
critério de validação da ação e da decisão dos homens, desqualifica-os como sujeitos políticos
e sociais. Na expressão de Chauí (1990), “a condição para o prestígio e para a eficácia do
discurso da competência como discurso do conhecimento depende da afirmação tácita e da
aceitação tácita da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos” (p. 11).
Trata-se de um discurso que oculta o conhecimento como criação e que se opera por meio de
duas ilusões uma de que um conhecimento a ser apreendido e a outra de que alguns
têm competência para tal.
A idéia de que os indivíduos podem ser formados por meio do controle das suas ações
se sustenta no imaginário instituído de que há um saber pleno e absoluto a ser apreendido. Em
decorrência, nas sociedades heterônomas, uma grande preocupação com a instituição de
sanções, regras e interdições, ao contrário das sociedades democráticas que se ocupam em
especial com a fundação dos valores que regem a vida comum, pois as formas do poder
instituído não são separáveis das relações que os sujeitos sociais mantêm entre si e com as
significações sociais instituídas. Nas sociedades heterônomas, a educação é reduzida à técnica
de manipulação dos indivíduos, pois não visa a “transformação das atividades e dos valores da
sociedade considerada, bem como transformações efetivas dos indivíduos e dos objetos
sociais” (CASTORIADIS, 2000, p. 408). Não há, contudo, conhecimento a ser apreendido,
porque o saber é criação social-histórica que se nas relações entre os homens, em seu fazer
específico em cada sociedade.
Segundo Castoriadis (2000), romper com a idéia de saber absoluto compreende
superar o racionalismo na condução da ciência, da política, da pedagogia, ou seja,
compreende a superação do racionalismo como forma de instituição da sociedade. O
racionalismo manifesta-se na crença de que é possível um saber exaustivo sobre a realidade
100
social e sobre a natureza. Na ciência, essa forma de compreensão origem à idéia de
progresso e de desenvolvimento. Por meio da máxima racionalização científica, o homem
surge com capacidade não apenas de usar a natureza como meio, para desenvolver
tecnologias, mas também, com o poder de recriá-la com a tecnologia desenvolvida.
Chauí (1978) vincula a ciência no sentido de racionalidade e objetividade com a
ideologia, cujo exercício busca ocultar as contradições sociais e históricas, o que a ciência faz
com base no sentido de racionalidade e objetividade.
A esse respeito, Chauí (1978) afirma:
O que faz dela o lugar por excelência da ideologia, é a crença (que partilhamos com
ela e graças a ela) de que o real é racional e transparente, faltando apenas aprimorar os
procedimentos científicos, melhorar as metodologias, melhorar o aparelhamento
tecnológico, para que se cheque a essa racionalidade total que é a própria realidade (p.
28).
A ciência oculta o caráter de criação do social-histórico ao indicar a presença de uma
racionalidade a ser alcançada com métodos adequados. Na política, a racionalidade e a
objetividade do saber geram a ideologia do especialista. Se um saber que pode ser
apreendido pela ciência, pressupõe-se que aqueles têm mais estudos estão mais capacitados
para o exercício da política. A idéia do especialista político, ou a presença dos líderes
populistas, sustenta-se na ausência da democracia efetiva como expressão da decisão política
pelo povo. Alguns eleitos passam a deter o poder de encontrar as respostas mais adequadas
aos problemas sociais. Segundo Castoriadis a idéia da necessidade de um especialista para
cuidar da administração do Estado não passa de uma farsa, pois o critério nunca é o
conhecimento técnico, mas as habilidades políticas que, para a oligarquia liberal, são a
capacidade de articulação e de promover intrigas.
A visão de que o real é racional e transparente nega a instituição da sociedade como
processo de criação dos homens por meio da práxis social-histórica. Observa Castoriadis
(2000; 2004), que, na concepção racionalista, as leis sociais são interpretadas como dadas por
uma instância extra-humana, lei econômica, razão ou necessidade histórica e não como
criação humana. Dessa forma, institui-se uma inversão na relação do homem com as
instituições sociais e a natureza por meio de uma dupla negação. Em um sentido o homem
nega as leis da natureza porque não se submete a elas e estabelece com a natureza uma relação
de exterioridade, como se ele, não fizesse parte da natureza. A relação de exterioridade que o
homem mantém com a natureza sustenta-se na visão de que ele pode dominá-la, e, apesar dos
desastres ecológicos, ainda prevalece no imaginário social, como possível. Em outro sentido,
101
o homem nega as leis sociais como criação humana, interpondo entre o homem e as leis uma
razão, um mercado ou uma condição em si, determinando a emergência das leis. Esse
movimento oculta a realidade social como criação do homem, que envolve a atividade política
de todos e implica decisões e escolhas, pois, se as leis sociais são dadas, eliminam-se os
conflitos sobre as leis que devem ser elaboradas e quem as deve elaborar, não
responsabilidades nem compromisso com o seu cumprimento, visto que as leis sociais são
determinadas. Por outro lado, o homem mostra-se na aparência como aquele que faz, por meio
do fazer técnico, e o fazer passa a ser identificado como a atividade técnica por excelência, do
que ocorre o desprestígio de todo saber que não se ocupa com a produção de tecnologia,
porque ela passa a ser o único campo possível para a criação.
A negação da criação do social-histórico manifesta-se também no sentido pleno do
conceito. Para superar a visão do saber sólido e plenamente determinado Castoriadis (2000)
propõe a ruptura com o sentido pleno do conceito, pois a exigência do conceito no sentido
pleno pertence à antologia identitária.
Se queremos o conceito no sentido pleno, é preciso, também, querer esta metafísica,
esta ontologia, sem a qual ele nada é. Querer também suas conseqüências; por
exemplo: essencialmente, no que se refere a sua essência, tudo é determinado desde
sempre; aquilo que não o é, por definição é apenas acidente (CASTORIADIS, 2000, p.
372).
O conceito descreve sempre o ser, implica a existência do ser como determinidade ou
como essência, e cria ilusão da possibilidade de um discurso ao mesmo tempo identitário e
pleno. O conceito quer representar a essência do ser, por isso exclui a atividade pensante, o
pensamento como movimento que escapa a qualquer determinidade.
Por meio da distinção entre o noûs e o lógos, a atividade pensante e o conceito,
Castoriadis (2000) indica que os homens devem se orientar por meio da atividade pensante e
não dos conceitos, pois, “dos termos primeiros e dos últimos, há nous e não logos o uso lógico
da lógica exige algo que não a lógica: o nous, a captação pensante” (p. 371). A atividade
pensante cria o saber e pensar não é guiar-se por meio de um conceito, “não é sair da caverna
nem substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas... é entrar
no labirinto, aceitar perder-se nas galerias que cavamos, andando em círculos,... até que essa
rotação inexplicavelmente abra fendas por onde se possa passar diz Castoriadis (apud
VALLE, 1999, p. 7).
Ainda, a idéia de controle como condição para a formação humana corresponde à
dimensão central da economia na vida social e é o imaginário produzido por este significante
102
tudo depende do desenvolvimento econômico. Em decorrência, o imaginário social de que
tem relevância o saber técnico reduz toda dimensão do fazer social a esse momento
específico do fazer, que é a técnica.
Segundo Castoriadis (2000), o mais complicado atualmente não “é o enfraquecimento
das sanções envolvendo as regras-interdições: é o desaparecimento quase total de regras e
valores positivos” (p. 119). Não é ausência de controle da sociedade sobre os indivíduos que
tem provocado seus excessos presentes na destruição da natureza, no consumismo desmedido,
na exploração do outro, no uso da violência, na limitação do sentido da vida à busca do prazer
imediato e da diversão, e, nem mesmo suas faltas manifestas no descaso com as questões
públicas, no abandono da política, e na desobrigação com as instituições sociais, mas a
inexistência de valores positivos com os quais os indivíduos possam se orientar. Como diz
Castoriadis (2000),
a vida de uma sociedade não pode basear-se somente em uma rede de interdições, de
injunções negativas. Os indivíduos sempre receberam da sociedade na qual viviam,
injunções positivas, orientações, a representação de fins valorizados simultaneamente
formulados universalmente e “encanados” no que eram para cada época seu ‘Ideal
coletivo do Eu’ (p. 119).
Os valores na sociedade moderna, reduzidos ao aumento do poder de consumo,
transformam os indivíduos em reféns do imaginário social instituído, e se constituem nos mais
fortes significantes que dão sustentação à privatização da vida. São valores que respondem
aos objetivos de garantir maiores lucros às corporações econômicas, de assegurar o controle
das decisões política, de arrefecer os conflitos sociais e que imprimem um a-sentido a
dimensão pública da existência humana. As possibilidades para a criação dos valores
positivos estão na instituição do mundo público, ou da esfera pública/pública, pois nela os
homens podem constituir-se como sujeitos políticos com a consciência de que eles criam a
sociedade e devem responder tanto pelo que ela é como pelo que ela pode vir a ser. A
instituição da esfera pública/pública constitui-se na abertura para a criatividade do homem
com as possibilidades de expressar-se no âmbito de toda cultura, pois, como afirma
Castoriadis (1983), “não se trata para o homem de pura e simplesmente ingerir, mas de se
exprimir e criar, não somente no domínio econômico, mas na totalidade dos domínios” (p.
70). Na abertura da sociedade para a criação no âmbito da cultura e da política estão as
possibilidades para a instituição de novos valores pelos quais os homens possam se orientar,
pois, “o que unifica a sociedade é a unidade de seu mundo de significações”, diz Castoriadis
(2000, p. 404), e a política é a práxis humana de dar sentido e atribuir significado à existência.
103
Com a democratização das instituições sociais produzindo sua abertura ao questionamento e à
crítica, poderão surgir novos valores novas normas e formas de pensamentos e de juízos
que, fundados nas relações de igualdade, produzirão justiça e liberdade, e, por meio da
educação poderão constituir-se em ideais a serem alcançados. A paidéia grega ocupou-se com
a formação do indivíduo virtuoso, com a instituição dos hábitos que correspondessem ao
domínio de si próprio – a firmeza e a moderação – para que ele pudesse viver segundo a lei da
pólis.
A eliminação da dimensão pública da vida social que implica o esvaziamento do
sentido da política e da educação manifesta-se também no uso abusivo que se faz da questão
ética. A ética dissociada da práxis política não tem como responder aos imensos problemas da
vida social que pressupõem decisões, escolhas e compromissos individuais e coletivos, que
são, no conteúdo e na forma, questões políticas.
A ética fundamenta-se na responsabilidade individual e coletiva, que se exprime nas
relações dos indivíduos entre si e dos indivíduos com as instituições sociais, instituídas pela
práxis política. Se a práxis política se encontra efetivamente desvalorizada, a ética torna-se
impossível e a responsabilidade desaparece. Assim, se a responsabilidade individual é o
fundamento de uma sociedade democrática e se na privatização da vida localiza-se o
desaparecimento dos valores, a recriação da dimensão pública da vida humana deve ser o
sentido da ética.
As escolhas e as decisões que a sociedade faz e os significados que ela atribui à
existência são obras do imaginário social, que criam e são criadas nas e pelas instituições, e
pertencem, portanto à dimensão da política. A dimensão política da instituição da sociedade é
evidenciada por Castoriadis (1999):
Ora, temos que enfrentar nossa condição trágica que as éticas pós-helênicas, desde
Platão, tentam ocultar: a vida humana deve ser colocada como absoluto e nem
sempre pode sê-lo. Visivelmente, as pessoas não gostam disso. (...) Mas o fato é que
muitas vidas, que elas podem se opor, e que se pode ser obrigado a escolher (p.
62-63).
Os discursos sobre a ética esquecem-se que ela é apenas um dos momentos
particulares do fazer humano, e querem reduzir a dimensão política da realidade à questão
ética. Todavia, a ética só se efetiva na dimensão pública e política, como questão que deve ser
submetida ao exame da coletividade. Não se faz política sem a ética, mas o sentido ético da
política é assegurado se as decisões resultam do dialogo e do debate públicos com a
participação dos sujeitos sociais.
104
A elucidação dessas questões é importante para a construção da educação como
criação de novos direitos porque interrogar as instituições sociais e questionar as formas do
pensamento instituído contribuem para romper com o imaginário social que se nutre das
verdades prontas e acabadas. “Educar é passar da perspectiva individual à coletiva: é ter que
tomar partido, e ter que lidar contra as falácias da ‘bela unidade’ não apenas interiormente,
mas publicamente” (VALLE, 2002, p. 12), o que implica retomar a questão política como
questão primeira na abordagem do social-histórico. Interrogar as instituições sociais constitui
o ponto de partida para recusar seu sentido e a abertura para a imaginação criar sobre elas
novas significações. A educação é inseparável da práxis política e deve visar a formação plena
dos indivíduos para a criação de hábitos, de valores e da moral como uma exigência da vida
civilizada. Educar é inseparável de um projeto de sociedade, e, portanto seu sentido público,
e, ético-político de criação e recriação da sociedade e da história é inconteste.
3 Educação e responsabilidade
À abordagem do tema educação e responsabilidade impõem-se alguns
esclarecimentos: Responsabilidade de quem e com que objetivos? Qual deve ser o sentido da
responsabilidade dos sujeitos sociais no campo da educação?
A responsabilidade daqueles que se ocupam com a educação dos indivíduos, seja em
seu sentido mais amplo, como a que é transmitida pela mídia, ou a que se faz na relação pais e
filhos, ou a educação específica, a que se realiza nas instituições educacionais, expressa-se na
relação que os indivíduos estabelecem com a sociedade. Se os sujeitos sociais vêem a
sociedade como criação social-histórica e, portanto criação sua, também como sujeitos
históricos, a responsabilidade pela educação exprime-se na responsabilidade pela sociedade.
O esclarecimento sobre o vínculo entre as instituições educacionais e a
responsabilidade pela sociedade faz-se necessário porque comumente a responsabilidade é
associada ao imediato, como possibilidade de as instituições de formação responderem aos
problemas mais prementes vividos pela sociedade. Não é esse o sentido da responsabilidade
que é visado neste trabalho. Não se trata de as instituições de formação responderem às
demandas apresentadas pela sociedade, em uma relação de subserviência às solicitações de
um mercado, do Estado ou de grupos sociais, pois conduzir-se de acordo com as demandas
externas traduz, ao mesmo tempo, uma recusa da autonomia da instituição e uma
105
manifestação de impotência para pensar a sociedade, explicitar o sentido dessas demandas e
propor novas questões. A responsabilidade das instituições de formação refere-se à
capacidade de elas próprias, como instituições do pensamento e da reflexão criarem as vias
para o enfrentamento dos dilemas sociais e serem capazes de criar novos modos de pensar a
realidade. Do contrário, elas se reduziriam a meios ou instrumentos da sociedade para atender
a uma suposta funcionalidade da sociedade.
A responsabilidade pelo mundo surge conforme os indivíduos passem a vê-lo como
criação sua, o que, no campo da educação implica assumir a responsabilidade pelo saber
como uma das dimensões da existência humana, para a qual a educação foi instituída, com
contribuição para a reflexão e a crítica e, assim, possibilitar a sua continuidade. Esse saber
está presente na mídia, nas instituições escolares, nas práticas políticas e da ciência e nos
discursos sobre a técnica, enfim em todos os âmbitos da atividade humana, mas exige, para
alcançar profundidade, que seja debatido e questionado. A responsabilidade pelo saber traduz-
se por meio da sua criação e diz respeito à capacidade da reflexão e da crítica, que pode se
expressar como afirmação e como contestação ao instituído e, sobretudo, como saber
instituinte de novas relações, o que pressupõe que o saber se constitua como um trabalho
intelectual, visando a instituição de uma nova mentalidade social
40
. É preciso, portanto,
recuperar o que é constitutivo do trabalho do professor, a dimensão intelectual.
A construção da relação entre educação e responsabilidade será feita mediante diálogo
com Castoriadis (1999; 2000; 2004), Arendt (2005) e Adorno (1995; 2003), e pretende-se, nas
aproximações e nas distinções da concepção de cada um, o aprofundamento da questão.
É importante o diálogo com Arendt porque ela, assim como Castoriadis busca
compreender a sociedade moderna remetendo-a ao significado da tradição, seja para indicar
seu limite, seja para encontrar nela índices de possibilidades. Adorno, ao vincular a
40
Em sua origem, no século XII (Idade Média), a universidade conquistou a legitimidade e a autonomia, por
meio da contestação do poder e da ordem social estabelecida. O direto de greve, a liberdade de pensamento e de
expressão, e o direito a educação foram conquistas da universidade medieval. Le Goff (2003) analisa a história
da criação da universidade com enfoque sobre os seus protagonistas: os intelectuais. Ele situa o processo de
criação da universidade na Idade Média, nas condições sociais que motivaram sua criação, as características das
primeiras universidades, o sentido do conhecimento, e os interesses que determinaram seu posterior
desenvolvimento por meio da definição do intelectual. O termo intelectual, para o autor, designa os mestres das
escolas para os quais eram inseparáveis o trabalho de construção do conhecimento e o trabalho de ensinar. O
intelectual inseria-se no processo de divisão do trabalho, tendo como correlato o trabalho manual, que é o
trabalho dos artesãos, mas ambos constituem trabalho. O termo intelectual, “designa aqueles cujo ofício é pensar
e ensinar seu pensamento. Essa aliança da reflexão pessoal e de sua difusão num ensino caracterizava o
intelectual”. (LE GOFF, 2003, p. 23). Intelectual, portanto, é aquele que cria um modo de pensar a realidade,
desenvolvendo uma ciência, uma arte, uma moral, no exercício mesmo de seu ofício que é o de ensinar. Com
esse espírito, o trabalhador intelectual organizou-se nas corporações de ofício, instituindo as universidades, no
século XII, (Idade Média).
106
emancipação do indivíduo às possibilidades de auto-esclarecimento e de auto-reflexão, tem
proximidade com a abordagem de Castoriadis acerca da relação consciente/inconsciente e da
instituição da autonomia.
Arendt (2005) situa a perda da tradição que acarretou simultaneamente a perda da
autoridade e a perda da dimensão de profundidade da existência humana como a grande
dificuldade que a sociedade enfrenta para educar as novas gerações.
A autoridade, para Arendt vincula-se à tradição, ao sentido forte da tradição que
definia, no passado as formas das relações sociais. Ocorre que a marca da modernidade é o
abandono da tradição. Nas palavras de Arendt (2005), “com a perda da tradição perdemos o
fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado” (p. 130). O
sentimento moderno de insignificância, ou de recusa da tradição, e a conseqüente perda da
autoridade, geraram uma situação complexa e conflitante para a educação.
De acordo com Arendt (2005),
o problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, o
poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso,
a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco
mantido coeso pela tradição (p. 245-246).
A autoridade, na perspectiva de Arendt (2005), não pode ser obtida nem por meio da
força nem pela persuasão, pois “onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou.
(...) Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso” (p. 129). A
autoridade exige obediência e é expressão da responsabilidade que os adultos assumem pelo
mundo, que deve ser, ao mesmo tempo responsabilidade com o passado e o nosso presente,
com o feito e com aquilo a ser feito. A autoridade, portanto, traduz-se na responsabilidade
social, política e cultural que pais e professores têm em relação ao mundo, pois eles são os
seus representantes, ainda que possam discordar da forma como está instituído e querer que
seja diferente do que é. Recusar a responsabilidade pelo mundo é o mesmo que recusar seu
significado e valores instituídos, e, ao mesmo tempo, recusar a tarefa de transformá-los. “A
autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os
adultos se recusaram a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as
crianças”, afirma Arendt (2005, p. 240).
A autoridade é condição fundamental para a educação, pois a educação não se faz nem
por meio da força e da coação nem por meio da persuasão. A persuasão é um recurso do
diálogo político entre iguais, não podendo, por isso, pertencer ao âmbito da educação, em que
uma distância entre aluno/professor na relação com o saber, com a práxis e com a cultura
107
imanente às experiências vividas por eles. Ora, se a autoridade na educação não pode ser
obtida pela força, e tampouco por meio da persuasão, ela pode ser construída na afirmação
do sentido que a educação define para si mesma. A educação faz-se por meio da instituição do
sentido: sobre o que é o saber e o que o saber faz ser. O sentido da educação é que institui a
autoridade, sentido que pode ser construído em relação à sociedade, pois educar é preparar
a criança para o mundo adulto, possibilitar que adquira gradualmente o hábito de pensar,
trabalhar, refletir e questionar. Ao recusar a responsabilidade pelo mundo, os adultos
instituem-se em uma relação de insignificância com o mundo e recusam também as
possibilidades que existem para eles de instituírem um sentido para a educação.
Para Arendt (2005), a autoridade do professor se assenta na responsabilidade que ele
assume por este mundo:
Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A
autoridade do educador e as qualificações de professor não são a mesma coisa.
Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por
maior que seja, nunca engendra por si autoridade. A qualificação do professor
consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém
sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo (p. 239).
A distinção feita por Arendt, entre qualificação e autoridade contribui para a superação
das visões reducionistas do ensino identificado com transmissão de conteúdos, pois, sem a
dimensão política, que se traduz na responsabilidade com a sociedade, a educação não se
efetiva. A responsabilidade que o professor assume pelo mundo sentido à educação, que é
o de possibilitar a continuidade do mundo que implica, ao mesmo tempo, a sua preservação e
a sua transformação. A responsabilidade do professor, nessa perspectiva, pode ser considerada
como uma das possibilidades de criação de novos direitos. Para Arendt (2005), “a função da
escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver” (p. 246). A
criança não é só uma criatura viva ainda não concluída, mas, sobretudo, um recém-chegado ao
mundo. Reduzir o ensino à arte de viver seria negar a condição social-histórica das crianças, o
sentido de criação da existência humana. Os animais treinam a cria na prática de viver,
“preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que
todos animais assumem em relação a seus filhos” (ARENDT, 2005, p. 235). Na educação, os
pais e os educadores assumem ao mesmo tempo a responsabilidade pela vida e
desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo.
Sobre a perda da profundidade da existência humana, outra situação gerada pela perda
da tradição, assim se expressa Arendt (2005):
108
Não se pode negar que, sem uma tradição firmemente ancorada e a perda dessa
firmeza ocorreu muitos séculos atrás toda a dimensão do passado foi também posta
em perigo. Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido – pondo inteiramente
de parte os conteúdos que se poderiam perder significa que, humanamente falando,
nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profundidade na existência
humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não
pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação (p. 131).
Garantir a dimensão da profundidade da existência humana é outra razão indicada por
Arendt para que a educação se faça no diálogo com o passado e com a tradição de
pensamento. Tradição e passado não são a mesma coisa, mas com a tradição das formas de
pensar o passado, de pensar o sentido a ele atribuído, podem-se imaginar novas possibilidades
para o que foi e para o tempo presente. A negação da tradição priva os homens do
conhecimento sobre o sentido das significações sociais instituídas, como criação dos homens
em dadas condições, e em razão de dadas escolhas, ou seja, priva-os da consciência do caráter
histórico e social da instituição da sociedade. A visão da tradição, como a que vincula os
homens ao passado, é condição para alcançar a profundidade da existência humana que
pressupõe a reflexão sobre o passado para a imaginação e criação do futuro.
A educação como criação de novos direitos, com apoio na afirmação de Arendt de que
a tradição é condição para a instituição da responsabilidade pelo mundo e pela dimensão de
profundidade do conhecimento humano, deve constituir-se em uma crítica às formas
instituídas de pensamento que negam a tradição e, ao mesmo tempo, afirmar as dimensões da
individualidade e da universalidade da formação humana. A educação, na perspectiva da
criação de novos direitos, deve formar indivíduos responsáveis por assegurar sua existência,
mas como expressão das possibilidades da própria existência da sociedade. Assim, a educação
deve criar indivíduos que se sentem responsáveis pelo que é feito na política, na economia, na
educação, com a natureza, com a tecnologia. E ainda, o sentido da educação como criação de
novos direitos é o de garantir a profundidade da existência humana, criado o saber como
dimensão ao mesmo tempo do passado e da tradição e com a intenção de transformar o
presente, pois, se o mundo é criação social-histórica, como afirma Castoriadis, ensinar o que o
mundo é, remete ao sentido mesmo da criação: que mundo deve ser criado?
A relação com o discurso do outro no processo de instituição da autonomia individual
discutida no primeiro capítulo, Castoriadis (2000) afirma que autonomia deve fazer do
discurso do outro o meu discurso, mas sem eliminar o outro do meu discurso. Essa concepção
remete ao sentido da tradição, pois todo discurso é diálogo que se faz com o pensamento
constitutivo no e pelo social-histórico ao qual o sujeito do discurso pertence, e toda criação é
109
feita com os meios que a história precedente torna disponíveis. Assim como a autonomia
pressupõe ao mesmo tempo a ruptura e a permanência do outro, a criação, a alteridade social-
histórica pressupõem que elas existam como possibilidades, o que equivale dizer que em
toda criação algo sempre permanece. Esse caráter das transformações do social-histórico
reveste-se de uma importância incomensurável à memória histórica e o diálogo contínuo com
a tradição.
A análise de Chauí (1986) sobre universidade e cultura, também se constitui em uma
contribuição para a elucidação do sentido da tradição. Chauí (1986) situa o fascínio pela
modernização, “isto é, pela racionalidade administrativa e pela eficácia quantitativa” (p. 61),
como uma das dificuldades para a universidade instituir-se como criadora de cultura e
contrapor-se ao projeto cientificista e tecnológico que vem sendo imposto a universidade pelo
poder econômico:
Na área das humanidades, afirma-se que o sistema sócio-econômico é de tal modo
avesso à própria idéia de cultura, encontra-se a tal ponto imerso no puro tecnicismo,
que anula o sentido das humanidades, que ficam relegadas à condição de ornamento
ou de anacronismo tolerado (CHAUÍ, 1986, p. 61).
Ao denegar as humanidades, o sistema econômico busca eliminar os discursos que
possam se contrapor ao seu projeto. As humanidades constituem-se na dimensão do saber que
vincula os homens ao passado e, portanto, com a dimensão de profundidade da existência,
elas possibilitam a instituição do saber como questionamento, reflexão e julgamento sobre o
sentido do fazer e da existência.
Castoriadis (2004) relaciona a perda da tradição com a perda dos valores positivos
criados nas épocas precedentes e que guiaram as ações dos indivíduos até a instituição do
capitalismo.
O capitalismo se desenvolveu usando irreversivelmente uma herança histórica criada
pelas épocas precedentes, que ele é incapaz de reproduzir. Essa herança compreende,
por exemplo, a honestidade, a integridade, a responsabilidade, o cuidado do trabalho,
as atenções devidas aos outros etc. (p. 240).
O capitalismo é incapaz de reproduzir os valores positivos criados nas épocas
precedentes porque proclama nas palavras e nos atos o dinheiro como único valor. Para a
lógica do sistema capitalista, a sobrevivência de pessoas que ainda se orientam segundo a
herança recebida representa uma anomalia sistêmica, pois o capitalismo, orientado para a
110
expansão ilimitada do consumo, precisa fabricar indivíduos interessados unicamente em
consumir, do que surge a instituição da inércia política e do desinteresse com as questões da
vida pública. Em razão de os indivíduos dedicarem-se exclusivamente ao dinheiro adquire
centralidade no imaginário social o poder de consumir cada vez mais como a única forma de
realização pessoal. Contudo, uma sociedade não pode manter-se coesa desprovida de valores
positivos que guiem as ações dos indivíduos. A falta de ética, a agressão e a violência que
imperam nas relações sociais são expressão dos limites do caráter civilizador do capitalismo.
Com a perda dos valores positivos e com a dominância do econômico sobre os a
demais aspectos da vida humana, o capitalismo torna-se destrutivo também em relação à
natureza. “A ‘riqueza’ capitalista teve de fato como preço a destruição irreversível e que
continua num ritmo acelerado das reservas da biosfera acumulada durante três milhões de
anos” afirma Castoriadis (1999, p. 83).
Conter esse ímpeto autodestrutivo assumido pelas sociedades modernas deve ser,
segundo Castoriadis (1999), a tarefa mais urgente de todos os sujeitos sociais, e, em
particular, das instituições formadoras dos indivíduos, pois, para mudar essa situação, é
preciso haver uma reviravolta de valores e que as pessoas invistam em outras significações,
“abolindo o papel monstruoso da economia como fim, e remetendo o seu justo lugar de
simples meio da vida humana” (p. 84). É preciso romper com o conformismo generalizado, e
criar sujeitos que se sintam responsáveis pelas políticas que definem as instituições sociais e
as formas de relação com a natureza, com a técnica, com a cultura. Nesse sentido, a educação
deve ser instituinte de novas significações sociais e de um novo sujeito social, com
capacidade e desejo de criar um outro sentido para a vida.
Adorno (1995) afirma que as limitadas possibilidades de mudar pressupostos
objetivos, como os sociais e políticos, indicam a importância das mudanças dos aspectos
subjetivos, a necessidade de uma inflexão em direção ao sujeito” (p. 121). Segundo ele, a
educação contra a barbárie é uma exigência: “A exigência que Auschwitz
41
não se repita é a
primeira de todas para a educação” (p. 119). O autor identifica a barbárie com o atraso em
que se encontram a maioria das pessoas em relação à sua própria civilização, por não haver
“experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas
também por se encontrarem tomados por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou,
na terminologia culta, um impulso de destruição” (p. 155). As duas condições que levam à
barbárie se constituem em uma só, posto que desbabarizar diz respeito à formação do homem
41
Auschwitz – cidade da Polônia, na província de Bielsko-Biela, famosa por abrigar o maior campo de
concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
111
realizada, sobretudo pelas instituições escolares e visando, em especial, eliminar nele o
impulso de destruição.
A responsabilidade pela educação, para Adorno (1995), refere-se à sobrevivência da
humanidade, a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da
humanidade” (p. 156). Ele vincula os atos destrutivos do homem em sociedade com a
tendência à regressão ao ódio primitivo que foi reprimido, e propõe a educação como
esclarecimento, como possibilidade para que os homens possam refletir sobre si próprios. A
educação contra a barbárie consiste em criar as condições para que os indivíduos tenham
consciência sobre a existência do inconsciente e dos traços que mesmo inconsciente imprime
ou pode imprimir em seu comportamento, nas relações com os outros e nas formas de sentir e
pensar. A educação contra a barbárie deve proporcionar o auto-esclarecimento e a auto-
reflexão, para que os indivíduos não ajam como se suas ações não correspondessem nem com
um estado do inconsciente, nem com uma disposição ou tendência da sociedade. Na fala de
Adorno (1995), “é preciso contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que
as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias” (p. 121).
A educação contra a barbárie pressupõe contrapor-se a determinadas formas de
pensamentos instituídos que valorizam aquelas atitudes que contribuem antes para uma
regressão à barbárie do que para a humanização do homem. Algumas características
comumente e tradicionalmente valorizadas pela educação como a competição e a severidade
devem ser contestadas em uma educação contra a barbárie.
A competição é uma relação de disputa entre os participantes que cria, ao mesmo
tempo, o ódio ao outro e o desejo de eliminá-lo. Uma educação humana deve criar relações de
solidariedade e de amizade que são negadas com a competição. “Partilho inteiramente do
ponto de vista segundo o qual a competição é um princípio no fundo contrário a uma
educação humana”, afirma Adorno (1995, p.161). A competição é questionada por Adorno,
mesmo no esporte, que deveria ter uma função mais lúdica. Segundo ele, no esporte, a
competição apresenta uma dubiedade se naquele que pratica, cria a disciplina e o
autocontrole, e para quem a assiste e não está submetido à disciplina, pode promover a
regressão à barbárie.
A severidade é outra característica valorizada pela sociedade como condição para a
formação dos indivíduos, e a ela a educação contra a barbárie deve contrapor-se. Educar de
modo severo implica infligir dor física ou psicológica ao outro e impedir que esse outro possa
manifestar-se. Uma educação severa impede a expressão dos sujeitos portadores de um
consciente e de um inconsciente e as possibilidades de interagirem uns com os outros.
112
É importante fazer uma distinção entre severidade e rigor. A severidade, condenada
por Adorno, não se identifica com a exigência de rigor, que é inerente a toda atividade
intelectual. Não se trata de substituir a exigência do rigor que é constitutivo do trabalho
intelectual como disciplina, esforço e persistência, pela diversão e brincadeiras, com o
objetivo de facilitar a aprendizagem. O sentido atribuído por Adorno, remete aos estados
psicológicos provocados por uma atividade desprovida de todo prazer. Provavelmente o mais
importante em sua abordagem sobre a severidade seja o risco de torná-la um fim em si
mesma, destituída de toda valoração, ou ainda, o de chamar a atenção do educador para os
estados psicológicos envolvidos no ato de ser severo, que pode corresponder ao desejo tão
somente de causar dor, sofrimento, em um exercício de sadismo.
A educação contra a barbárie visa em especial que as pessoas tomem consciência dos
mecanismos que podem levá-las à degradação humana e a cometer atos de crueldade contra
seus semelhantes. Alguns dos mecanismos indicados por Adorno são a tendência geral da
sociedade de destruir a individualidade e de negar o inconsciente que faz obscurecer a
consciência dos indivíduos, impedindo-os de reconhecer, por exemplo, a frieza presente nas
relações sociais e as razões pelas quais foi gerada, e de saber ver nos atos de agressão e
brutalidade como a manifestação do sadismo presente no inconsciente.
Adorno (1995) esclarece:
A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente
e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e o individual
juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial
de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a qual têm a
capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo seduz ao crime (p. 122).
Segundo Adorno (1995) são, portanto, os mecanismos de massificação social que
tornam as pessoas impotentes para contrapor-se à regressão à barbárie, pois ao mesmo tempo
que perdem sua individualidade, perdem também a capacidade de discernimento sobre o que é
justo e injusto, o que é digno ou indigno. A massificação do singular e do individual acarreta
a impossibilidade da humanização dos indivíduos.
A fetichização da técnica, que passa a ser considerada como um fim em si mesma, é
outro mecanismo que obscurece a consciência. “Os meios e a técnica é um conceito de
meios dirigidos à autoconservação da espécie humana são fetichizados, porque os fins
uma vida humana digna encontram-se encobertos e desconectados da consciência das
pessoas”, assinala Adorno (1995, p.132-133).
113
A repressão ao medo e a identificação da virilidade com a capacidade de resistência a
dor, são ainda algumas práticas valorizadas pela educação. Para Adorno (1995), o medo não
deve ser reprimido, “quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente
tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá
provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido” (p.
129). A capacidade de suportar a dor também não deve ser estimulada. A indiferença à dor
converte-se facilmente em indiferença à dor do outro, e o masoquismo identifica-se com o
sadismo e se transforma facilmente nele.
Adorno (2003) propõe a educação moral, política e estética dos indivíduos para que
eles alcancem a autonomia. À proporção que obtêm a autodeterminação por meio do
autocontrole sobre seus gestos e suas ações, os homens podem decidir não agredir porque à
agressão é um ato de fraqueza, e, portanto, indigno, e também porque conscientes sobre o que
os leva à agressão, ela passa a ser associada ao desumano. A educação estética também se
vincula à verdade, pois, para Adorno (2003), “a arte é conhecimento mediante a sua relação
com a verdade, a própria arte reconhece-a ao fazê-la emergir em si” (p. 43). Há, portanto, uma
convergência da arte no conteúdo da verdade, do que surgem as possibilidades de formação e
esclarecimento por meio da educação estética.
Para castoriadis (1999) não se trata de eliminar o inconsciente, pois se tudo tem
origem nele, haveria a morte do indivíduo, mas se trata de saber que as pulsões e desejos
existem e que se pode escolher não deixar se conduzir por eles:
Trata-se de não ser escravo do inconsciente, isto é, poder deter a passagem à expressão
ou a passagem ao ato, tendo-se ao mesmo tempo consciência das pulsões e dos desejos
que levariam a isso. É esta subjetividade que pode ser autônoma, e é esta relação que
é autonomia (p. 110).
A autonomia possibilita a instituição da subjetividade ou da individuação do sujeito,
por meio da relação que ele estabelece com o seu inconsciente, e que lhe permite agir de
modo mais consciente possível, pois entende que o inconsciente é constitutivo do ser, sendo
ainda sua fonte, mas que, nos indivíduos autônomos o inconsciente expressa como
sublimação social.
A competitividade, a massificação, a fetichização da técnica, a severidade exprimem
modos de ser de uma sociedade autoritária que impede a individuação ou a manifestação da
subjetividade dos sujeitos sociais. São modos de ser que não permitem a manifestação dos
afetos, dos desejos e da consciência dos sujeitos e, por isso, instituem relações sociais
114
permeadas pela violência e pela agressão, constituindo vias para a regressão à barbárie. Nas
instituições sociais autoritárias, os sujeitos não experimentam o sentimento de reciprocidade e
de solidariedade nas relações sociais, pois estão desprovidos de consciência, que se expressa
no comportamento heterônomo, que só conhece as relações de comando e obediência.
Platão (apud REALE, 2002) dizia que “o homem se torna inteiramente tirânico
quando, ou por natureza ou por hábito de vida ou em razão dos dois, entrega-se à embriaguez,
aos desejos furiosos do Eros e à melancolia profunda” (p. 270).
Os homens tirânicos vivem emEstado da servidão absoluta” (REALE, 2002, p. 270),
incapazes de autolimitação e, por isso também de estabelecer relações afetivas e de
solidariedade com outros homens. São homens que só experimentam o sentimento de mandar
e de obedecer e, portanto, não conhecem a liberdade. A esses tipos tirânicos apresentados por
Platão, pode-se acrescentar os fascinados pela modernização. O fascínio pela modernização
caracteriza o indivíduo que aceita tudo que é produzido pela Modernidade de forma acrítica, e
condena todo questionamento a sua legitimidade. Castoriadis (1999) diz que essa aceitação
acrítica é uma atitude herdada e corresponde ao imaginário instituído das formas sociais
heterônomas de pensamento. A aceitação acrítica de tudo que oferece a modernidade é
comparável a todas as formas de resistências às mudanças de pensamento das épocas
precedentes, no entanto, o que oferece a Modernidade é “potencialmente, infinitas vezes mais
catastrófica”, declara Castoriadis (1999, P. 43).
Assumir a responsabilidade pelo mundo é trabalho de reflexão e deve expressar a
busca para a instituição de relações sociais democráticas que estimulem sujeitos sociais
questionadores e críticos, que apreciem a liberdade e que não recusem a tarefa de criação da
sociedade, da política e da cultura. Pressupõe a formação cultural dos indivíduos, que envolve
o direito do sujeito não apenas de acesso à cultura, mas também à produção da cultura, o
direito às decisões políticas com a superação da divisão radical entre elaboração e execução.
E, ainda, pressupõe a instituição de sujeitos políticos, no sentido clássico do termo, com
espírito de coragem, responsabilidade e dignidade para assumir um projeto social comum, não
se deixar conduzir pela hýbris e recusar as práticas autoritárias e degeneradas na vida privada
e pública.
4 Relações pedagógicas: Eros e beleza
115
A educação como criação de novos direitos não se faz sem a dimensão da
profundidade da existência, que diz respeito também a consideração dos indivíduos em sua
dimensão ao mesmo tempo de singularidade e de universalidade. A educação que visa a
existência humana nas dimensões de singularidade e de universalidade deve ser,
simultaneamente, o investimento na criatividade e na verdade, compreendidas como
correspondentes à busca para a instituição de relações sociais humanizadas. Para a educação
criar indivíduos que valorizem outra dimensão que a materialidade da existência e que
invistam em significantes que transbordem o econômico e o técnico, é necessário que haja
sujeitos sociais instituintes de novos valores, que correspondam a outras dimensões da
existência humana, é preciso uma formação voltada para a criação da cultura no sentido
radical, de universalização do acesso e da criação do saber. As relações pedagógicas, em uma
educação com esse fim, devem proporcionar experiências de criação, nas dimensões moral,
política e estética, como expressões de formas das quais deve ser inseparável a busca pela
distinção entre o justo e o injusto, o falso e o verdadeiro, o belo e o degradante, pois todo ato
injusto exprime sempre, também, o sentido degradante e perverso de quem o pratica. A
violência que se comete contra outrem não é apenas um ato agressivo, se constitui também em
um ato bárbaro que revela no agressor a ausência de sensibilidade e de autocontrole. A
fraqueza de espírito expressa-se na ausência de beleza nos gestos, como ato agressivo.
Para uma educação instituinte de valores sociais positivos, ou como criação de novas
formas, em uma tentativa de ruptura com as formas instituídas, ressalta-se a importância do
amor na relação professor/aluno, a dimensão da arte nas relações pedagógicas e a educação
estética como aperfeiçoamento moral e conquista da liberdade.
Amor e beleza são assumidos como componentes fundamentais da relação pedagógica
para a criação de sujeitos sociais responsáveis e com capacidade criadora. Amor e beleza são
entendidos como as formas pelas quais os indivíduos podem realizar experiências, sem se
verem impelidos a ocultar seus sentimentos nem a denegar as vias para transformá-los. As
relações pedagógicas permeadas pelo amor e pela beleza constituem-se nas possibilidades de
a educação abrir-se para a criação, na dimensão da cultura, com a superação dos limites do
imaginário instituído e efetivar-se por meio da imaginação criadora, do imaginário social
instituinte.
Para a efetivação de relações pedagógicas constituídas e instituintes de amor e de
beleza, algumas concepções sobre a formação devem ser superadas, como a centralidade da
aprendizagem no fazer pedagógico, o imaginário de que o professor deve ter total domínio
116
sobre os meios e os fins na constituição do saber, a supremacia dos conteúdos sobre a criação
e a sensibilidade.
A supremacia da aprendizagem apóia-se em uma visão acabada do conhecimento, e
revela uma concepção não histórica do mundo, visto como algo existente desde sempre, tendo
o indivíduo o papel de compreendê-lo. A educação nessa perspectiva fica reduzida à criação
de condições para que o homem possa conhecer o mundo, por meio do acesso ao
conhecimento. Castoriadis (1999) critica a tendência a imputar à aprendizagem o papel de
categoria central: “Mas a aprendizagem – como sua prima, a adaptação –, por mais importante
e ineliminável que seja, é uma categoria biológica (p. 40). Segundo o autor, a capacidade de
criação faz o homem tanto inventar coisas novas como acolher o novo e é a imaginação
criadora e não a aprendizagem que o distingue como espécie. A educação centrada na
aprendizagem oculta que o saber é produzido, criado, na relação entre
professor/conhecimento/alunos. O império do aprender revela uma concepção de educação
voltada para o ajuste do indivíduo à realidade social, que deve ser assimilada e apropriada
pelas novas gerações, e oculta a historicidade da realidade social, a sua realização como obra
dos homens, pois, “o essencial da ‘aprendizagem’ humana não concerne a um mundo próprio
dado de uma vez por todas; remete a um mundo social-histórico outro, a sociedades outras”
(CASTORIADIS, 1999, p. 40). E estar disciplinado para adaptar-se a uma realidade em
desenvolvimento contínuo em face do desenvolvimento técnico-econômico pode significar
que houve aprendizagem, mas não traduz a constituição de um saber pelo sujeito.
A supremacia da aprendizagem denega a práxis do professor e esvazia a relação
pedagógica de materiais fundamentais como a sensibilidade e a beleza. O professor em um
contexto cuja práxis é confundida com o que pode ser previsto e manipulado, deve ocupar-se
com os resultados e fica destituído das principais dimensões constitutivas do trabalho
intelectual, que são a autonomia e a criação. O modelo, o esquema prévio são próprios do
autoritarismo, do senso comum, o contrário, portanto, do que deve ser a orientação ao
trabalho do professor informado pelo rigor intelectual, pela ética e responsabilidade social e
política, cuja dimensão e alcance se inserem na construção da humanidade dos homens,
naquilo que os faz seres humanos.
A pedagogia visa mudar os seres humanos. Contudo, é preciso elucidar o sentido dessa
mudança, pois nem toda transformação do ser humano é boa em si. A pedagogia pode criar
seres totalmente heterônomos, sem nenhum querer próprio, totalmente destituídos da
capacidade de autodeterminação sobre seu ser. A pedagogia visa mudar os seres humanos,
mas não é qualquer mudança, ou toda mudança, que representa um beneficio ao indivíduo e
117
que o conduza a uma maior autonomia para decisão e escolhas. A mudança pode significar
justamente o contrário – tornar o indivíduo inseguro e impotente para se conduzir a si próprio.
Se o professor utiliza determinados meios e supõe que os controla plenamente para a atingir
determinados fins, também, previamente definidos, a relação pedagógica em um sentido
unilateral; o trabalho do professor deixa de constituir-se em uma práxis para reduzir-se a uma
técnica para mudar comportamentos e transmitir conteúdos, deixando a relação de ser uma
busca do saber, e passando a ser uma busca pela eficácia. Em toda práxis, deve haver sempre
uma elucidação clara do fazer, o que não pode contudo significar que se compreende a
totalidade do seu fim, pois se isso fosse possível, deixaria de ser práxis. A pedagogia como
práxis pressupõe uma abertura sobre o que é o ser criança e o que é a relação pedagógica.
Como afirma Castoriadis (2000), “educar uma criança (...), pode ser feito com uma
consciência e uma lucidez mais ou menos grandes, mas é por definição impossível que isso
possa ser feito a partir de uma elucidação total do ser criança e da relação pedagógica” (p. 92).
Se o saber não é algo a ser produzido, mas um conjunto de regras a serem seguidas, e é
produto do controle, da razão metódica, então o trabalho do professor não se traduz em um
processo de criação e autocriação do ser humano, do conhecimento de si e do outro.
Constituem as relações pedagógicas as relações entre pessoas e, em especial, a relação
com o saber que deve visar a formação de hábitos, a conduta ética e a práxis política, pois a
relação pedagógica faz-se sempre mediada por concepções e valores presentes, implícita ou
explicitamente instituídos ou instituintes na e pela sociedade. Para que o professor possa
ensinar, é importante que ele possa elucidar para si e para seus alunos qual o sentido do saber,
porque é importante aprender determinadas coisas e não outras. Portanto, a práxis educativa
exige a constituição do professor como sujeito no exercício da sua profissão, pressupõe
admitir que esta se realiza como ato de pensar. Pensar implica o sujeito que duvida, que
afirma, que nega e sente, mas também que reivindica e contesta, e que pode imaginar e
fabular, pois são as novas metáforas e as novas significações que instituem uma outra
realidade.
O trabalho do professor consiste em despertar nos alunos o prazer pelo saber, o que ele
deve fazer sustentado no prazer que ele mesmo possui em conhecer, fazendo da sua profissão
uma especificidade que não deve ser dimensionada em igualdade com as demais profissões.
Para Castoriadis (2004), essa condição distingue substancialmente o trabalho do professor dos
demais profissionais, pois o professor “deve, em certo sentido, suscitar o amor de seus alunos,
amor sublimado” (p. 292), o que torna seu trabalho de uma complexidade infinitamente maior
que qualquer outro tipo de trabalho. O professor deve ao mesmo tempo suscitar o amor de
118
seus alunos e conduzi-los à autonomia das formas de pensamento, questões que não são
evidenciadas nas abordagens sobre educação. Lembra Castoriadis (2004): “Ninguém ousa
levantar a questão da capacidade dos professores de suscitar o Eros de seus alunos. O ofício
de professor não é um trabalho como os outros” (p. 289). O professor deve lidar ao mesmo
tempo com a dimensão lógica e com a sensibilidade, viabilizar para que o saber seja desejado
e buscado como esclarecimento que possibilita aos sujeitos a coerência nas formas de pensar e
entender o mundo, mas sem deixar que o saber se cristalize em verdades prontas e acabadas.
O trabalho do professor requer dele, além da responsabilidade social e política e o
conhecimento de conteúdos, a sensibilidade afetiva e estética. A sensibilidade constitui-se na
reciprocidade da relação pedagógica, se o educador sabe que também pode aprender. Diz
Castoriadis (2004), “os educadores devem ser sensibilizados (...) para a reciprocidade da
relação pedagógica. (...) Um educador deve saber que as crianças podem lhe ensinar muitas
coisas sobre o ser-criança, que não estão nos livros” (p. 294-295). A exigência da
reciprocidade da relação pedagógica pressupõe a abertura dos sujeitos para seu objeto
humano, permeados pela sensibilidade e pelo prazer investidos de um sentido de busca da
verdade. Essas características fazem da práxis pedagógica constitutiva de uma busca da
verdade e da impossibilidade de defini-la, pois: O essencial da educação, corresponde à
própria relação que se irá estabelecer entre a criança e o adulto, e à evolução desta relação,
que depende do que um e outro farão” (CASTORIADIS, 2000, p. 92).
A relação pedagógica constitui-se também da relação com o saber e com o ato de
pensar. Pensar é uma relação pedagógica, primeira e fundante de todas as outras. A atividade
de pensar institui o desejo e o prazer de saber. “O saber é um objeto social por excelência e
que são fonte de um prazer que não é nem prazer de órgão nem simples prazer de
representação (como em uma fantasia ou em um fantasma), mas o prazer de pensar”, afirma
Castoriadis (2004, p. 291). O prazer de pensar é instituinte das demais relações pedagógicas,
como a relação com o conhecimento, entre os sujeitos interessados na produção do saber, dos
adultos entre si e com o jovem e a criança, ou entre o professor e o aluno. O saber é uma
criação humana, histórica e social, e, como tal, não pode ser reduzido a ser apropriado ou
apreendido. O saber não é o que é verdadeiro, sólido e plenamente. Como uma dimensão do
social-histórico, o saber é também indeterminação e, o pretenso conhecimento completo
pode basear-se em um desconhecimento completo do que seja o histórico. Como não existe
saber absoluto, então a ão autônoma dos homens faz sentido, e a práxis é possível. A
aproximação entre o sujeito e o saber dá-se como criação em que participam o desejo de
conhecer e o prazer de pensar.
119
Pensar é sempre também necessariamente colocar em movimento, em certas direções
e segundo certas regras, representações: figuras, esquemas, imagens de palavras e
isso não é nem acidental, nem condição exterior, nem apoio, mas o próprio elemento
do pensamento (CASTORIADIS, 2000, p. 373).
Da relação constitutiva e constituinte do ensinar/aprender, dos sujeitos entre si e com o
saber e com o ato de pensar, dependerá o que será criado sujeitos sociais heterônomos ou
autônomos. Essa criação exprime sempre também um padrão estético. Formar indivíduos
apáticos, adestrados aos padrões estabelecidos, sem iniciativa, corresponde tanto a uma recusa
à mudança como a um valor estético, que valoriza a repetição, a competitividade, a
padronização, a não-contestação, a servidão, enfim, como marca das relações sociais. Se ao
contrário, a formação é instituinte de sujeitos sociais autônomos, ela deve afirmar a
autocriação dos indivíduos e a alteridade social-histórica, o que pressupõe a valoração estética
da liberdade, da criatividade, da crítica, da solidariedade, da autonomia e da autolimitação
permeando as relações sociais. Os padrões estéticos, portanto, não estão dissociados da
perspectiva que se mantém com a forma de existência e podem corresponder à contestação ou
à afirmação das significações sociais instituídas. Nesse sentido, o pensar, que significa
interrogar o saber, imprime rupturas no estabelecido, é demolidor por natureza, e pode
existir na dimensão estética intituinte da liberdade, da autonomia, da crítica e do saber
desinteressado que busca não o útil e o funcional, mas o prazer, a beleza e a coerência da ação
de dizer e de fazer. O pensar como dimensão estética refere-se à dimensão filosófica do
pensamento, que se recusa a dar o assentimento imediato às coisas sem reflexão.
Na perspectiva de Chauí (1986), todos os problemas implicados na relação pedagógica
que denegam o saber, o pensar, o prazer e a criatividade têm sua origem na mudança de
enfoque da pedagogia como arte de ensinar para a pedagogia como ciência. A arte é o campo
por excelência da criação, em que habitam o imprevisível, o indeterminável e as
possibilidades de expressão individual, e a ciência é o campo da manipulação e da recusa de
tudo que não possa ser verificado, previsto e determinado pelo cálculo e isolamento de
variáveis.
A ciência oculta a dimensão dos afetos, dos sentimentos presentes em toda ação e
interação humana, e denega o desejo e o prazer, os quais não se prestam à previsibilidade, e,
assim, diminui a disposição interna dos sujeitos de agir, conforme vêem reduzidas as suas
possibilidades de intervenção na realidade. Se as formas de ação estão previamente
definidas pela ciência, a dimensão do pensar e do querer é substituída por instrumentos
120
adequados para atingir os resultados, que na educação dizem respeito às técnicas, tecnologias
e planejamentos. A ciência institui a noção de competência e, ao fazê-lo, ela se torna um
“poderoso elemento de dominação porque é fonte de intimidação”, diz Chauí (1986, p. 58) A
pedagogia como ciência, destituída da exigência do pensar e do querer, institui um fazer que
não é práxis e, portanto, não se constitui em uma ação transformadora da realidade. A
pedagogia como ciência ao formar o especialista como aquele que sabe, institui
simultaneamente os outros como incompetentes.
A arte, ao contrário, é busca do aumento da capacidade dos sujeitos para agir e se
realiza como expressão dos sentimentos e da autonomia individual e política. A arte amplia a
capacidade dos indivíduos para agir posto que a realidade não é concebida como algo para ser
conhecido, mas como algo a ser criado. Para Chauí (1986), “toda arte é ofício de segredos e
de mistérios” (p. 55), e são essas dimensões da arte que constituem o sentido da pedagogia
como arte. A pedagogia como arte, como ofício de segredo e de mistério, é abertura
simultânea de seu fazer e do sentido da realidade, posto que nenhum deles cabe em
modelizações.
Chauí (1986) afirma:
A alegria é o que sentimos quando percebemos o aumento de nossa realidade, isto é de
nossa capacidade para agir. Aumento de pensamento de ação, a alegria é caminho da
autonomia individual e política. A tristeza é o que sentimos ao perceber a diminuição
de nossa realidade, de nossa impotência e a perda da autonomia (p. 56).
Os sentimentos de alegria e de tristeza correspondem às possibilidades de ação
autônomas dos sujeitos sociais. Nas relações pedagógicas, a alegria e a tristeza, a autonomia e
a sua ausência são formas de expressão do sentido do fazer pedagógico, se voltado para a
criação ou se reduzido às atividades de manipulação.
Ainda, conforme Chauí (1986), a distinção entre conhecimento e pensamento é
fundamental para a superação do saber como mera aprendizagem. A compreensão do saber
como conhecimento ou como pensamento corresponde respectivamente a concepção da
pedagogia como ciência e como arte. O conhecer refere-se à aprendizagem, ao domínio de um
conteúdo posto. Pensar é refletir, questionar e criar novas questões sobre um conhecimento
estabelecido. Como diz Chauí (1986), “o conhecimento se move na região do instituído, o
pensamento, no do instituinte” (p. 60).
Sobre a dimensão da arte na existência humana, Arendt (2000) situa a obra de arte,
expressão do pensamento e da memória, como condição da permanecia do mundo. O mundo
institui-se por meio da ação e do discurso, mas sobrevive com as obras de arte. Por meio
121
das obras de arte, o homem se imortaliza, como diz Arendt (2000): “Nada como a obra de arte
demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada
revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres
mortais” (p. 181).
Para Arendt todo objeto fabricado pelo homem possui uma dimensão estética, seu
valor não se encerra apenas em seu uso funcional, e essa transcendência da funcionalidade
corresponde à dimensão da arte presente em toda obra humana. O sentido da obra de arte
remete à vida coletiva, assim como a liberdade e a justiça, ou a ausência delas surge no
mundo público, o valor da obra de arte, sua grandeza e a possibilidade de ser perpetuada
pertencem ao julgamento público.
A esse respeito, Arendt (2000) assinala:
É verdade que um objeto de uso comum não é nem deve ser destinado a ser belo; no
entanto, tudo o que possui alguma forma e é visto não pode deixar de ser belo ou feio,
ou algo entre belo e feio. Tudo o que existe aparece necessariamente, e nada pode
aparecer sem ter forma própria; portanto, não existe de fato coisa alguma que, de certo
modo, não transcenda o seu uso funcional; e esta transcendência, sua beleza ou feiúra,
corresponde ao seu aparecimento público e ao fato de ser vista (p. 186).
A obra de arte institui e é constitutiva da cultura de uma dada sociedade e sua
permanência constitui sua memória:
Os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta
capacidade, isto é, a ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e
construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto de sua atividade, a
história que eles vivem e encerram não poderia sobreviver (ARENDT, 2000, p. 187).
A obra de arte, contudo, não possui nenhum valor de uso. Sua fonte de existência é o
pensamento e este encerra seu sentido ao tornar-se memória eterniza-se como fonte de
pensamento. Segundo Arendt (2000), “a fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana
de pensar, da mesma forma como a “propensão para a troca e o comercio” é a fonte dos
objetos de uso” (p. 181). A desvalorização da arte implica, portanto, a diminuição da nossa
capacidade de pensar.
O pensamento moderno, fixado no imaginário de que importante é produzir coisas
úteis que tenham valor de uso, desvaloriza toda ação que é pensamento e criação artística, o
que banaliza a cultura e o saber. Sobre a inovação capitalista é importante a observação de
Castoriadis (2004): “Nossa época a conhece sobretudo como inovação tecnológica, produtiva,
122
comercial, financeira e quase nunca como inovação política, artística, cultural, filosófica”
(p. 227).
O sentido da beleza na relação pedagógica diz respeito à dimensão estética da
existência humana, à arte, à criação de novas formas, como atividade que possibilita a
expressão do indivíduo. A arte é obra do pensamento, do qual é inseparável o querer e o
prazer, os afetos e as escolhas que pressupõem sempre também o julgamento. São relações
pedagógicas permeadas pelo amor, pela busca do saber, pela sensibilidade, expressão
constitutiva e instituinte da beleza. O pensamento de Schiller (1991) sobre a dimensão estética
da educação é um magnífico exemplo do sentido da beleza na formação humana.
Schiller (1991), em Cartas pedagógicas, defende a dimensão estética da existência
como as possibilidades para elevação do espírito humano. Sua concepção é que, pelo estético,
atinge-se a liberdade, a perfeição moral e a conquista da verdade, e o sentido da formação do
indivíduo deve ser o de submetê-lo à forma Na expressão de Schiller (1991), das tarefas
mais importantes da cultura, pois, submeter o homem à forma, ainda que em sua vida
meramente física; torna-lo estético onde quer que se estenda o reino da beleza, pois o estado
moral pode nascer apenas do estético, e nunca do físico" (p. 121). A centralidade da dimensão
estética na formação dos indivíduos orienta-se para a educação da sensibilidade, como forma
de criar indivíduos que cultivem o aperfeiçoamento o moral e o aperfeiçoamento do saber.
A formação estética, na perspectiva de Schiller (1991), possibilita ao indivíduo
experimentar a dimensão da criação por meio da arte que é constitutiva e instituinte da
liberdade, do prazer e da verdade, porque a arte corresponde à busca pela elevação do espírito,
"pois a Arte é filha da liberdade e quer ser legislada pela necessidade do espírito, não pela
carência da matéria" (p. 38). Sobre a dicotomia espírito e matéria Schiller (1991) chama a
atenção para a relação entre a ciência e a arte, pois “as fronteiras da Arte vão se estreitando na
medida em que a ciência amplia as suas" (1991, p. 38), e, a formação estética possibilita
caminhar para além da realidade, e conquistar a verdade, então ela não deve ser
negligenciada. A educação do sentimento, o aperfeiçoamento lógico e moral se faz de modo
mais fácil, por meio da arte.
A educação estética remete à criação de formas, que é o campo possível para a
criação humana. “A realidade das coisas é obra das coisas, a aparência das coisas é obra
humana, e um equilíbrio que aprecia a aparência não se compraz com o que recebe, mas
com o que é obra sua”, assinala Schiller (1991, p. 136). A realização humana, portanto, está
nas formas que são expressão ao mesmo tempo de beleza e de sentimentos e fonte de prazer e
de busca.
123
Para Schiller (1991), pela beleza o homem institui-se com autonomia, e "não existe
maneira de fazer racional o homem sensível sem torná-lo, antes, estético" (p. 119). A
educação pela arte, criação de formas, possibilita a instituição do sujeito crítico, posto que a
arte é expressão ao mesmo tempo do singular e do universal, como criação do indivíduo, mas
que é um sujeito social e histórico. A educação estética é educação da sensibilidade, de
formação de indivíduos que busquem o aperfeiçoamento do saber e evitem a violência e a
perversão nas relações interpessoais, cuja manipulação é sua forma mais sutil. Nesse sentido,
a educação estética forma o sujeito político, e, “para resolver na prática o problema político é
necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai a liberdade"
(SCHILLER, 1991, p. 39).
A educação estética, constitutiva e instituinte do Eros e da beleza, estabelece o vínculo
entre a formação humana e a criação de novos direitos. Formar para o amor e para o prazer da
excelência do pensar e do dizer remete ao amor à sabedoria e à reflexão, que são inseparáveis
da busca da verdade, da justiça e da igualdade entre os homens. O amor e a beleza como
instrumentos da elaboração do pensar criam seres de cultura na dimensão da universalidade da
existência com a abertura à expressão da imaginação e com a possibilidade da criação como
atividade autônoma, reflexiva e consciente.
A educação como criação de novos direitos realiza-se na dimensão pública da
existência humana, que corresponde ao mesmo tempo às dimensões estética, política e ética,
as quais, se estão indissoluvelmente implicadas, possibilitam a emergência dos significados
instituintes do sentido profundamente humano da existência. Esses significados compreendem
a autonomia, a beleza, o amor, o prazer na universalidade das relações sociais, inseparáveis da
criação da justiça e da igualdade social e política, e, portanto, da criação de novos direitos.
124
Considerações finais
Interrogar o sentido da sociedade, das instituições sociais e da formação dos
indivíduos é o ponto de partida para a criação de novas formas de pensamento e práticas
sociais e consiste na elucidação de um projeto político que visa a transformação da totalidade
da sociedade. Ao criar as instituições sociais, diz Castoriadis (1991), os homens criam sobre
elas ao mesmo tempo o sentido e o fechamento do sentido com explicações míticas ou
funcionais sobre a necessidade absoluta delas, que se cristalizam no imaginário social
instituído. O fechamento do sentido produz formas irracionais e incoerentes de conceber o
social-histórico, e ao negar a sua dimensão de indeterminação recusa a manifestação do poder
instituinte, a criação de novas determinações e a alteridade do social-histórico. Com o
fechamento do sentido qualquer criação é alienada, posto que é produzida com a dominância
do momento imaginário. As formas instituídas de pensar a realidade, como a centralização do
poder, a burocracia a visão de que necessidade da divisão do trabalho entre dirigentes e
dirigidos, lideres e liderados e que esta divisão se em razão da funcionalidade e da
distinção dos indivíduos entre competentes e não competentes, especialistas e não
especialistas, exibe a autonomização do imaginário que impede o exame de seus significados
e são modos de perpetuação da dominação e da alienação instituídas
42
. Conceber as
instituições sociais de modo coerente e com lucidez exige a abertura ao questionamento de
seus significados e as possibilidades de afirmação ou de recusa do seu sentido, pressupõe a
aceitação da indeterminação do social-histórico. Criar de maneira refletida significa romper
com o fechamento do sentido. Por essa razão este trabalho iniciou-se com a investigação da
democracia criada pelos atenienses que colocaram em questão o sentido de suas instituições
com o questionamento da validade das suas leis e formas de pensamento. É precisamente a
interrogação interminável o conteúdo da verdadeira política, campo efetivo para a criação e
recriação do humano.
Criar novos direitos significa criar novas leis, novas instituições, que resultem sempre
da ruptura com as leis e instituições precedentes e da instituição de novas formas de
pensamento e de ação dos homens. Romper com as formas instituídas de pensamento nas
sociedades capitalistas modernas refere-se à abolição da economia e da produção do lugar
42
Castoriadis (1991) faz uma distinção entre divisão do trabalho e divisão de tarefas. A divisão do trabalho não
deve existir, pois significa divisão do poder de decisão e deliberação que deve ser igualmente distribuído a todos.
A divisão de tarefas surge a partir do momento que o trabalho é concluído, após a discussão e a deliberação
coletiva e não implica a desigualdade entre os homens.
125
central na vida dos indivíduos e da sociedade e de reduzi-la a meros meios e não fins da vida.
A centralidade da economia e da produção é uma exigência da reprodução da sociedade
capitalista que se faz por meio da expansão ilimitada da produção e do consumo. Contudo, a
necessidade de reprodução do capitalismo apresenta-se como uma necessidade da sociedade,
criando uma relação heterônoma dos indivíduos com as instituições sociais, por meio de
mecanismos que impedem o questionamento e a crítica, com a eliminação da participação
coletiva na discussão e deliberação política, ou seja, com a eliminação da esfera pública. O
caráter central do econômico na vida é uma singularidade das sociedades capitalistas; no
mundo grego, como foi dito, a significação imaginária central era a virtude. O econômico
como significação imaginária central do capitalismo cria indivíduos privatizados, ávidos de
consumo e de controle que se expressam no consumismo, na competição, no individualismo,
no desinteresse pelos demais aspectos da vida e na renuncia à esfera pública da existência. As
formas heterônomas de relação dos indivíduos entre si e com as instituições sociais geram, o
apego ao insignificante que se manifesta, de um lado, no desejo de domínio e de consumo que
funcionam como distração e divertimento, e de outro, na irresponsabilidade e despreocupação
pela criação da vida comum, e corresponde ao imaginário social mantido com o intuito de
dominação de um grupo sobre os demais.
A preeminência da produção e do consumo na vida social é característica do
imaginário social capitalista e projeta em um segundo plano, o imaginário da formação
humana identificada como competência, preparação profissional, formação para atendimento
ao mercado. As concepções de educação e de formação humana, nessa perspectiva,
correspondem ao imaginário instituído de que alguns são capacitados para a direção e os
demais são incapazes e são balizadas pela idéia de saber absoluto, de ensino/aprendizagem
identificados com transmissão/aquisição de conteúdos, de uma ética formal e de uma
neutralidade política da ação educativa. O significado de uma ética formal corresponde à
tentativa de encobrir seu caráter político e reduzi-la ao ato de cumprimento da lei e a uma
questão privada. A ética diz respeito à autonomia dos indivíduos para agir com
responsabilidade, respeito e dignidade, controlar seus atos e ações por meio da autolimitação.
Para os gregos, a ética surge quando não está escrito em lugar algum como a pessoa deve
conduzir-se e corresponde à capacidade de controlar a manifestação da hýbris. Em uma
democracia, a ética é uma questão de justiça e deve ser submetida ao debate e à deliberação
coletiva. Segundo Valle (2002, p. 288) “a virtude [...] é uma disposição adquirida para
deliberar” sobre a justiça, os valores, a igualdade, a verdade, questões que devem estar sempre
abertas numa democracia.
126
Os desdobramentos dessa concepção de formação, produtos do imaginário das
sociedades capitalistas, são as formas de controle acerca dos procedimentos da educação,
como a avaliação das instituições de ensino e da aprendizagem dos alunos realizadas por
instituições externas, a prioridade da quantidade sobre a qualidade, a valorização da técnica
em detrimento da reflexão e da critica, com a valorização dos tecnológicos e o desprestígio
das humanidades. São formas de conceber a formação humana que contribuem para
conservação do fechamento do sentido das significações sociais e para impedir a abertura das
instituições às novas significações que possibilitaria sua transformação.
Entender o sentido dessa formação norteada pela dinâmica da produção, para uma
maior produtividade, o aprimoramento da técnica, o desenvolvimento da ciência e a
ampliação do mercado de trabalho e de consumo constitui-se no princípio para a ruptura com
essas significações e a criação do pensamento autônomo, que significa a possibilidade de
pensar livremente, interrogar e deixar-se interrogar, submeter ao exame os valores e
pensamentos instituídos.
Afirma Castoriadis (1992):
A liberdade não está apenas ameaçada pelos regimes totalitários. Mas sim, de maneira
mais escondida, porém não menos forte, pela atrofia do conflito e da crítica, pela
expansão da amnésia e da irrelevância, pela incapacidade crescente de questionar o
presente e as instituições existentes, quer sejam propriamente políticas ou contenham
concepções de mundo (p. 239).
A liberdade está ameaçada à medida que são produzidas formas heterônomas de
pensamento que negam a indeterminação do ser e da sociedade, o poder de criação do homem
e a política como campo dessa criação.
A presença da liberdade de interrogar o sentido e a validade do instituído faz surgir a
questão da justiça e a exigência da coletividade para julgar e deliberar, logo a concepção dos
homens como iguais. O sentido da relação entre liberdade, justiça e igualdade norteou a
investigação das possibilidades da educação como criação de novos direitos, como formação
para a autonomia. A criação que se faz com referência ao que é justo é sempre uma criação
coletiva, livre e autônoma, pois uma coletividade autônoma pode investir a sociedade de
um movimento de auto-instituição explícita, o que significa liberdade para julgar e deliberar.
Como questão que diz respeito à totalidade da sociedade e como expressão de um projeto
político a criação de novos direitos pode não ser uma quimera uma vez que visa a justiça
como uma questão sempre aberta.
127
A existência humana livre e autônoma é constitutiva e instituinte de novas relações
sociais, nas quais o conflito, a diversidade de opiniões, a discordância e a contestação são
sempre possíveis. Realiza-se especialmente como práxis política e diz respeito às decisões e
escolhas. A autonomia e a liberdade só existem ante a exigência da igualdade social,
econômica e política entre os homens para criar, julgar e deliberar, ou seja, participar tanto do
poder instituído como do poder instituinte. Assim, a educação como formação para a
autonomia encontra-se em uma relação circular, em um circulo virtuoso entre a tarefa de
formar para a autonomia e a exigência de sujeitos autônomos para realizá-la. A autonomia é,
ao mesmo tempo, o ponto de partida e o fim visado, o que remete às formas democráticas das
relações entre os homens e à virtude como questão da educação, e à interrogação ilimitada
como condições para a autocriação e a auto-alteração dos indivíduos e da sociedade.
mais meios possíveis para pensar a educação do que os que estão disponíveis no
imaginário social instituído, posto que ele não pode eliminar o imaginário radical instituinte,
uma vez que a indeterminação e a criação são constitutivas do social-histórico e não podem
ser abolidas. Em razão da indeterminação do social-histórico e das possibilidades de criação
humana foi apresentado neste trabalho um outro sentido para a formação, concebida com
novas perspectivas e relações, com afirmação da imaginação criadora, da dimensão coletiva
da existência, da virtude, da responsabilidade, do Eros e da beleza como componentes
nucleares da formação humana. Essas características contemplam a condição humana na sua
dimensão individual e coletiva, criando indivíduos individuados ou singulares capazes de
pensar livremente, com autonomia e com responsabilidade e capazes de promover a criação e
recriação das instituições sociais. Se a natureza humana exprime-se como criação,
proporcionar os meios para que ela se realize como dimensão verdadeiramente humana deve
constituir o sentido da formação. Assim, o sentido visado deve ser a transformação das
relações sociais que implica, de um lado, a ruptura com o caráter ignóbil da divisão dos
homens entre dominantes e dominados, com a apatia política e com o controle, e de outro, a
criação de novas formas de relações com a elevação do sentido da vida comum e da
responsabilidade em relação à preservação e à continuidade do mundo e a formação ética
como normas da vida civilizada.
A educação como criação de novos direitos, ao buscar um novo sentido para a
existência, concebe a transformação da sociedade como transformação dos homens, o que
pressupõe e implica a formação que visa a criação de indivíduos com autonomia para refletir,
julgar e deliberar com liberdade e justiça, além da capacidade para criar valores positivos que
dêem sentido à vida em comum. Isso significa investir na formação ética do indivíduo para
128
enfrentar o desafio da sua autocriação com honestidade, integridade, coragem e
responsabilidade. Desse modo, a formação para a autonomia constitui o sentido da educação
como criação de novos direitos, porque autonomia significa liberdade e abertura à
interrogação ilimitada do sentido das instituições, do saber, da verdade, da validade das leis e
das formas de pensar, do feito e do a ser feito. Trata-se de interrogação filosófica que suscita o
exame do instituído e pode contribuir para a criação de novas instituições para a afirmação da
humanidade do homem. Se a história testemunha o demasiado desumano, ela desconhece o
demasiado humano tendo em vista que a justiça, a igualdade, a criação, a autonomia, o amor e
a beleza são instituintes e constitutivos da humanidade do homem, como questões sempre
para serem construídas, o que faz delas objeto da educação como criação de novos direitos.
129
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