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JULIANE DE OLIVEIRA ALVES
DESAFIOS, POSSIBILIDADES E DESASSOSSEGOS NO PROCESSO
DE CONSTITUIÇÃO DA EDUCADORA AMBIENTAL E
ALFABETIZADORA:
RECOMPONDO TRAJETÓRIAS - TECENDO DIÁLOGOS
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
do Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental, da Fundação Universidade Federal
do Rio Grande, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Educação
Ambiental.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Susana Inês Molon
RIO GRANDE
2007
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JULIANE DE OLIVEIRA ALVES
“DESAFIOS, POSSIBILIDADES E DESASSOSSEGOS NO
PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA EDUCADORA
AMBIENTAL E ALFABETIZADORA: RECOMPONDO
TRAJETÓRIAS – TECENDO DIÁLOGOS”
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Educação Ambiental no Programa de Pós – Graduação em Educação
Ambiental da Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Comissão de
avaliação formada pelos professores:
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Susana Inês Molon
(Orientadora – FURG)
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cleuza Maria Sobral Dias
(FURG)
__________________________________________________
Prof. Dr. Valdo de Lima Barcelos
(UFSM)
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Dedico este trabalho a Eni e Manoel Adalberto, meus pais. Vocês,
que venceram tantas batalhas, com fibra, com emoção, dedicação,
com força em suas caminhadas, ensinando-me sempre a acreditar que
é possível. Incansáveis... Apaixonantes... Todo meu amor e
admiração!
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AGRADECIMENTOS
“Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz
humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala
pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque
todos, todos temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma
palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais”.
Eduardo Galeano
Com certeza tenho muito a dizer a muitas pessoas que contribuíram para a árdua e
intrigante tarefa de escrever este trabalho. Algumas mais de perto, outras mais distantes, mas
não menos importantes. Pessoas a quem tenho muito a dizer e que de uma forma ou outra
embarcaram comigo neste desafio.
Agradeço a Deus, minha fonte de força e espiritualidade, em todos os momentos.
A minha família, meus irmãos, cunhadas, cunhado e sobrinhas, pelo amor e
companheirismo que se fazem sempre presentes em minhas caminhadas. Em especial a meus
pais, pelo apoio e dedicação incondicional, por serem presença tão marcante em minha vida
acompanhando-me em todos meus trajetos e vivenciando-os como se fossem os seus.
O Paulo, Dadá, Ziza e Ricardo, meus queridos e amados irmãos, pela grande amizade
e união, por todos nossos momentos compartilhados e pelos cuidados comigo.
A Isabel e Cristina, pessoas especiais em minha vida, tia e prima que tanto amo e que
me acompanham desde muito cedo, sempre se fazendo presença em minha vida apesar da
distância. Ensinaram-me, junto com dindo Zé, a batalhar com fé e força.
A Catiúscia, Mariana, Nathaly e Fernanda, minhas sobrinhas/afilhadas, por poder
compartilhar com vocês intensamente o gosto da infância, por seus abraços, carinhos, afagos.
A Camila, minha sobrinha, pelos nossos bons encontros, conversas e principalmente a
torcida de minhas conquistas!
O Nei, que mais do que cunhado, é meu grande amigo, um verdadeiro irmão e
companheiro de todas as horas, pela sua generosidade e carinho.
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O Gabriel, por todos os momentos que partilhamos, pelo amor, cuidado e apoio que
marcaram nossa história ao longo de nossas caminhadas.
O Cristiano e a Carla, queridos amigos, agradeço pelos nossos agradáveis encontros,
sempre recheados de ternura e bom-humor.
A Cris, Kellen e Dani, educadoras e grandes amigas, pela linda e forte amizade
duradoura que nos une, por todas as incontáveis rodas de conversas, recheadas de histórias
coloridas, divertidas, sofridas e sempre compartilhadas. Adoro vocês!
A Josiane Cunha, minha querida amiga, pela leveza, alegria e surpresas em nossos
encontros, por se fazer sempre presente em minha vida.
Ao NUPEPSO/FURG, núcleo pelo qual tenho grande carinho, pois nele descobri
pessoas maravilhosas, que me proporcionaram, em muitos momentos, desabafos, sorrisos,
lágrimas e aprendizagens. Em especial a Carol, Raquel, Samuel, Lísia, Tinai e Samanta, que
vivenciaram de perto comigo o início e o exercício desta caminhada, pela amizade, pelo
carinho, por ouvirem minhas histórias sempre com vivacidade e compartilharem comigo este
desafio, dando-me colo e revigorando meus olhares.
A Dayse e o Jorge, queridos amigos, por nossos coletivos, conversas compartilhadas,
carinho, apoio e bom-humor.
A Nelda, colega que me auxiliou e foi certamente imprescindível para a coleta de
dados, obrigada!
Ao grupo Maria Auxiliadora que acompanhou-me no início desta jornada, e de forma
especial acolheu-me com afetividade e apoio, obrigada pelas trocas e pela escuta em
momentos tão necessários.
A Letícia, por se fazer tão presente solidarizando-se com minhas batalhas e travando
as suas com garra e força de vontade! Valeu amiga!
A Ana Amélia e Jêssie, por nossas reuniões apaixonantes e por compartilharem
comigo sorrisos, lágrimas, aventuras, incertezas e sonhos. Vocês são especiais!
Aos meus colegas educadores e educadoras da escola onde atuo, pela afetividade,
acolhimento e apoio sempre presentes. Por poder partilhar com vocês o espaço educativo e o
desafio de ser professor e professora. Por ensinarem-me a desvelar a escola sempre com um
novo olhar. Levarei-os sempre comigo!
Aos meus alunos e alunas, que foram e são fundamentais em meu processo de
constituição. Obrigada pelo seu ser criança, pela sua espontaneidade, suas descobertas, seus
abraços, seus carinhos... Com vocês aprendi um pouco a dimensão de ser educadora. E quero
aprender ainda mais!
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A todos e todas colegas do mestrado, pelas construções, trocas e aprendizagens.
Ao Prof. Dr. Valdo Barcelos, por sua atenta leitura, desde a qualificação, e por todas
as contribuições ao meu trabalho.
À Prof.ª Dr.ª Cleuza Maria Sobral Dias, por quem tenho enorme carinho, que
acompanhou meu processo de formação de maneira muito próxima e que sempre disposta,
acolhe-me nas discussões da produção do conhecimento com ética e comprometimento.
A minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Susana Inês Molon. Querida Susi, obrigada por
chegar comigo até aqui. Por acreditar em meus sonhos e fazer dos meus objetivos e desejos os
teus também. Por teu comprometimento como orientadora, pelo teu envolvimento e por dar
relevância e diferentes significados às minhas vivências, mostrando-me o quanto elas são
importantes.
Obrigada pela escuta fiel, atenta, entusiasmada, emocionada, pelo teu respeito aos
meus passos, silêncios e falas, pela tua observação e compreensão, com palavras sábias nos
momentos certos.
Tua presença é marcante em minha constituição como educadora ambiental.
Certamente as mediações qualificadas que nos unem me fazem perceber as relações com
outros olhares, de diferentes pensares e aprofunda meu pensamento dialético!
ENTÃO... Obrigada por ajudar-me a olhar! Obrigada por tua amizade, cuidado e carinho ao
longo de nossas caminhadas!
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RESUMO
O presente estudo tem como objetivo refletir e problematizar algumas vivências no processo
de constituição de uma professora alfabetizadora, educadora ambiental e pesquisadora de sua
própria prática. Para tanto, busca elucidar os diálogos, os questionamentos, os desafios e a
construção de saberes no processo de desvelamento dessas distintas e complexas relações que
acontecem de forma paralela e entrelaçada. Os caminhos metodológicos que orientam este
estudo estão baseados na abordagem qualitativa de pesquisa de cunho sócio-histórico,
embasada por Vygotsky (1991, 1993) e Freitas (2003), e na abordagem autobiográfica, por
meio da narrativa, em autores como Souza (2006), Josso (2006, 2007) e Pérez (2003). Esta
dissertação fundamenta-se nessas abordagens porque busca compreender os fatos em seu
contexto, valorizando as interações, as vivências e os desafios de narrar as experiências de
uma professora alfabetizadora que, sendo aluna e pesquisadora do Programa de Pós-
graduação, nível Mestrado, em Educação Ambiental, faz do seu processo de constituição
como educadora ambiental e professora alfabetizadora o foco de sua investigação. O material
analisado é fruto de fotos, observações e narrativas das experiências vividas, que foram
registradas de forma mais enfática com uma turma de 19 alunos do primeiro ano do ensino
fundamental de nove anos, de uma escola da rede pública municipal de ensino da cidade do
Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Ao longo da escrita da dissertação são narradas e
interpretadas, de forma crítica e reflexiva, as situações experimentadas, sentimentos e
dificuldades da atuação docente e as implicações de uma pesquisa dessa natureza, que suscita
um processo de autoconhecimento, possibilitando o exercício aprofundado da criticidade, da
reflexividade e da autonomia. As trajetórias explanadas demonstram os limites e
possibilidades de uma pesquisa com enfoque narrativo, abordando a importância das relações
sociais para a constituição dos sujeitos e de sua subjetividade, bem como desvelando os
processos de constituição da educadora ambiental na sua prática educativa e as distintas
possibilidades de sua atuação como professora alfabetizadora. Assim, os resultados deste
estudo constatam a importância de se dar vez e voz a essas relações complexas entre
pesquisadora, educadora ambiental e professora alfabetizadora, recompondo os percursos
vividos e os diálogos realizados, revelando a dinamicidade da constituição da educadora
ambiental, que se faz no coletivo, e a sua importância no desenvolvimento de sujeitos mais
éticos, criativos e comprometidos.
Palavras-chave: constituição do sujeito, educadora ambiental; professora alfabetizadora;
pesquisadora; abordagem sócio-histórica.
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RESUMEN
Esta investigación tiene como objetivo reflexionar y discutir algunas vivencias en el proceso
de constitución de una profesora alfabetizadora, educadora ambiental e investigadora de su
propia práctica. Para ello, busca elucidar los diálogos, los cuestionamientos, los desafíos y la
construcción del saber en el proceso de desvelamento de esas distintas y complejas relaciones
que ocurren de forma paralela y entrelazada. El estudio se apoya metodológicamente en los
principios de la investigación cualitativa, de carácter socio-histórico, basada en Vygotsky
(1991, 1993) y Freitas (2003), y también en el carácter autobiográfico, a través de la narrativa,
en autores como Souza (2006), Josso (2006, 2007) y Pérez (2003). Este estudio se
fundamenta en esos abordajes porque busca comprender los hechos en su contexto,
valorizando las interacciones, las vivencias y los desafíos de narrar las experiencias de una
profesora alfabetizadora que, siendo alumna e investigadora del Programa de Post-grado en
Educación Ambiental, hizo del su proceso de constitución como educadora ambiental y
profesora alfabetizadora el objeto de su investigación. Los datos analizados tienen su origen
en fotos, observaciones y narrativas de las experiencias vividas, que fueron registradas con
más énfasis en un grupo de 19 alumnos del primero ano de la educación primaria de nueve
años, de una escuela de la rede pública municipal de educación de la ciudad de Río Grande,
en Río Grande del Sur. A lo largo de la escrita del estudio, son narradas e interpretadas, de
forma crítica y reflexiva, las situaciones experimentadas, sentimientos y dificultades de la
actuación docente y las implicaciones de una investigación de esa naturaleza, que suscita un
proceso de auto-conocimiento, posibilitando un ejercicio profundizado de criticidad, reflexión
y autonomía. Las trayectorias relatadas muestran los límites y posibilidades de una
investigación con enfoque narrativo, considerando la importancia de las relaciones sociales
para la constitución de los sujetos y de su subjetividad, sobretodo desvelando los procesos de
constitución de la educadora ambiental en su propia práctica educativa y las distintas
posibilidades de su actuación como profesora alfabetizadora. El estudio de los datos obtenidos
ha hecho posible constatar la importancia de se dar vez y voz a esas relaciones complejas
entre investigadora, educadora ambiental y profesora alfabetizadora, recomponiendo los
trayectos vividos y los diálogos realizados, revelando el dinamismo de la constitución de la
educadora ambiental, que se hace en el colectivo, y su importancia en el desarrollo de sujetos
más éticos, creativos y críticos.
Palabras clave: constitución del sujeto, educadora ambiental; profesora alfabetizadora;
investigadora; abordaje socio-histórico.
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SUMÁRIO
1 ...SE FOSSE FÁCIL ACHAR O CAMINHO DAS PEDRAS
TANTAS PEDRAS NO CAMINHO NÃO SERIA RUIM... ..............................................10
2 DANDO VEZ E VOZ À MINHA HISTÓRIA: RECOMPONDO CAMINHOS E
EXPERIÊNCIAS VIVIDAS ..................................................................................................17
3... DE ONDE VEM MINHA INSPIRAÇÃO, MINHAS ASPIRAÇÕES E MEUS
DESEJOS... : DESASSOSSEGOS NA TENTATIVA DE ME REVELAR ......................31
3.1 Olhando mais de perto minhas vivências na tentativa de organizá-las ......................35
4 POR ONDE ANDEI... DIFERENTES CAMINHOS QUE ENCONTREI... .................38
5 INTERAÇÕES, ENCONTROS E DIÁLOGOS QUE COMPÕEM
E ENTRECRUZAM A CONSTITUIÇÃO DA EDUCADORA ........................................43
6 VIVENCIANDO A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO EDUCATIVO:
DESAFIOS, LIMITES E POSSIBILIDADES ....................................................................55
6.1 Início do caminhar na docência, relações constitutivas nos trajetos com meus
primeiros alunos .....................................................................................................................57
6.2 Primeiro ano do Ensino Fundamental de Nove anos: abertura ao novo e a diferentes
possibilidades? ........................................................................................................................64
7 AINDA HÁ TANTO A DIZER... FICAM MUITAS PERGUNTAS E
INQUEITAÇÕES... ................................................................................................................90
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................96
ANEXOS ...............................................................................................................................100
10
1 ...SE FOSSE FÁCIL ACHAR O CAMINHO DAS PEDRAS TANTAS PEDRAS NO
CAMINHO NÃO SERIA RUIM.
Seria mais fácil fazer como todo mundo faz
o caminho mais curto, produto que rende mais
seria mais fácil fazer como todo mundo faz
um tiro certeiro, modelo que vende mais
Mas nós dançamos no silêncio
choramos no carnaval
não vemos graça nas gracinhas da TV
morremos de rir no horário eleitoral
Seria mais fácil fazer como todo mundo faz
sem sair do sofá, deixar a Ferrari pra trás
seria mais fácil, como todo mundo faz
o milésimo gol sentado na mesa de um bar
Mas nós vibramos em outra freqüência
sabemos que não é bem assim
se fosse fácil achar o caminho das pedras
tantas pedras no caminho não seria ruim
Engenheiros do Hawaii - Outras Freqüências
11
Este trabalho de dissertação de mestrado tem como objetivo dar voz a algumas
experiências da minha constituição enquanto educadora ambiental, professora alfabetizadora e
pesquisadora. Entendo esta escrita como um exercício de aprofundamento de reflexões,
desafios e indagações que, por muitas vezes, ficam adormecidos e esquecidos na solidão da
sala de aula, pois ainda não são vistos como relevantes para serem tema de uma investigação,
sobretudo, quando se pensa na pesquisa em Educação Ambiental. Em diferentes ocasiões,
compartilhei do sentimento de que não se julga importante dizer o que aparentemente “todo
mundo já faz” ou o que “todo mundo já sabe”. Também encontrei, inicialmente, barreiras que
me fizeram duvidar da importância dessa escrita, que trata dos rituais de iniciação, dos
desafios, das possibilidades, dos desassossegos e vivências de tornar-se uma educadora
ambiental e alfabetizadora, ousando ser pesquisadora do seu próprio processo de constituição.
Porém, ao longo desta dissertação fui revendo e ressignificando modos de entender e ver o
que compreendo como produção do conhecimento no diálogo com a prática pedagógica; e
fico esperançosa e entusiasmada ao poder realizar um trabalho desta natureza no mestrado, o
que demonstra o que entende o Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental, da
Fundação Universidade Federal do Rio Grande, por produção do conhecimento.
É oportuno lembrar que senti em diferentes rodas de conversas informais, o espanto, a
surpresa e o não entendimento da proposta de se fazer uma pesquisa desse tipo ao estar
freqüentando o mestrado em Educação Ambiental, visto que o tema da investigação não é
comumente percebido como campo de atuação da Educação Ambiental. A surpresa das
pessoas com a temática que escolhi para investigar reflete o pensamento que é fruto de nossas
raízes de cunho racionalista e naturalista, heranças de nossa cultura que separa a natureza da
sociedade, corpo e mente, e assim forma convicções e relações dualistas acerca do ambiente.
Compreendo, fundamentada na abordagem sócio-histórica de Vygotsky, que o meio
ambiente diz respeito a um determinado espaço-tempo histórico, um lugar definido onde
ocorrem as relações dinâmicas e as interações resultantes das atividades humanas e da
natureza. Assim, de acordo com Molon (2006), todas as transformações produzidas nas
relações dos sujeitos com o meio natural e construído constituem o meio ambiente.
Hoje, a cada linha, a cada imersão nesta elaboração vejo-me imbuída e encharcada da
Educação Ambiental , pois entendo-a como
[...] elemento de transformação social inspirada no diálogo, no exercício da
cidadania, no fortalecimento dos sujeitos, na criação de espaço coletivos de
estabelecimento das regras de convívio social, na superação das formas de
dominação capitalista, na compreensão do mundo em sua complexidade e da
vida em sua totalidade. (LAYRARGUES, 2004, p. 15)
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No Tratado de educação ambiental para sociedades sustentáveis e responsabilidade
global encontro alguns princípios com os quais compartilho e que irão fundamentar este
trabalho. Esses princípios norteadores apontam que a Educação Ambiental:
[...] 2 - deve ter como base o pensamento crítico e inovador, em qualquer
tempo ou lugar, em seus modos formal, não-formal, promovendo a
transformação e a construção da sociedade; [...]
6 - deve estimular a solidariedade, a igualdade e o respeito aos direitos
humanos, valendo-se de estratégias democráticas e interação entre as
culturas; [...]
13 - deve promover a cooperação e o diálogo entre indivíduos e instituições,
com a finalidade de criar novos modos de vida, baseados em atender às
necessidades básicas de todos, sem distinções étnicas, físicas, de gênero,
idade religião ou classe; [...]
15 - deve integrar conhecimentos, aptidões, valores, atitudes e ações. Deve
converter cada oportunidade em experiências educativas de sociedades
sustentáveis; [...] (PRONEA, 2005, p. 58)
Tendo presente esses princípios e compreendendo a Educação Ambiental, segundo
Guimarães (2004), como “uma prática pedagógica que não se realiza sozinha, mas nas
relações do ambiente escolar, na interação entre diferentes atores, conduzida por um sujeito:
os professores.” (p.123-124), busco compreender e problematizar as vivências na minha
constituição como professora alfabetizadora, educadora ambiental e pesquisadora. Trazendo
nesta escrita as trajetórias e os diálogos que fui tecendo nas experiências dessa complexa teia
de relações.
Esta dissertação apresenta uma experiência individual e singular, mas que traz consigo
a dimensão social e histórica que se faz presente em cada acontecimento, como síntese de
múltiplas determinações culturais.
Penso ser de vital importância que os sujeitos que atuam na escola sejam os
protagonistas de suas falas e de seus saberes. Esse exercício precisa transformar-se em uma
necessidade de todos que, de alguma forma, fazem a educação acontecer neste país.
Utilizo-me das palavras de Josso, quando afirma que os relatos de histórias de vida são
a possibilidade de “uma legitimidade para a subjetividade explicitada, fora de seus territórios
reconhecidos na literatura, nas artes e nas psicologias analíticas...” (2006, p. 21).
Nesse sentido, pretendo contar e interpretar as experiências e as vivências enquanto
educadora ambiental, professora alfabetizadora e pesquisadora, procurando descobrir como
fui me constituindo nas diferentes esferas de minhas relações sociais, perante os obstáculos,
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facilidades e desafios que permeiam o processo de iniciação na profissão docente e também
como pesquisadora de pós-graduação em Educação Ambiental.
Na busca de interlocutores(as) para as minhas indagações, consultei as dissertações de
mestrado de sujeitos que trabalham com a Educação Ambiental no contexto escolar e fazem
desse universo seu projeto de pesquisa. Cito alguns desses trabalhos, como o de uma
professora, o de uma diretora e o de uma coordenadora pedagógica. Ana do Carmo
Gonçalves, em 2004, e Joice Araújo Esperança, em 2006, apresentaram ao Programa de Pós-
Graduação em Educação Ambiental, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande,
trabalhos desenvolvidos nas escolas em que atuaram. Em sua dissertação, intitulada, “Práticas
educativas no contexto escolar e as manifestações de alguns princípios da educação
ambiental”, Gonçalves (2004) investigou a prática pedagógica de uma professora de 3ª série
dos anos iniciais do ensino fundamental de uma escola particular do Rio Grande. Através de
uma pesquisa de cunho etnográfico, a autora teve como objetivo compreender como se
expressam os princípios de Educação Ambiental na prática dessa professora.
O trabalho de Esperança (2006), intitulado “Na interação com as produções
televisivas, as crianças aprendem sobre gênero, violência e consumo...”, investigou as
relações da TV e a escola, sendo a autora a professora e sua turma de primeira série os
sujeitos da pesquisa, que foi realizada em uma escola pública da cidade do Rio Grande. A
autora analisou “as interações entre as crianças e as produções televisivas, buscando
identificar as aprendizagens construídas pelos telespectadores infantis a partir desses espaços
educativos”. (ESPERANÇA, 2006, p. 50)
Por meio desses estudos, foi possível perceber o quanto a escola é um espaço rico e
repleto de possibilidades de investigação, de conhecimento e de transformação. É
extremamente importante adentrar nesse espaço e a cada dia desvelar novas possibilidades de
ação e mudança.
Apresento, ainda, o trabalho de Alice Montardo (2005) cujo título é “Os alunos não
são mais os mesmos. A escola também... pode não ser! Do pátio à calçada: construindo uma
escola sem violência”, que se constitui em uma dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pelotas, sendo a
autora a diretora que se propõe a narrar as experiências de sua escola com relações
diferenciadas sobre a violência, abordando a escola como um lugar de potencialidades e de
criatividade.
Assim, é possível perceber que alguns passos estão sendo dados no sentido de
propiciar a reflexão e problematização do contexto escolar de pessoas que nele estão atuando.
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Essa necessidade torna-se imprescindível, pois, segundo Goodson, “ ‘Histórias de vida’ ” das
escolas, das disciplinas e da profissão docente proporcionariam um contexto fundamental. A
incidência inicial sobre as vidas dos professores reconceptualizaria, por assim dizer, os nossos
estudos sobre escolaridade e currículo”. (2000, p. 75)
Dois trabalhos importantes a que tive acesso no processo de qualificação do projeto de
pesquisa foram os estudos de mestrado e doutorado da professora Cleuza Maria Sobral Dias.
Sua dissertação de mestrado, intitulada “Professor Alfabetizador: reflexos da formação no seu
cotidiano escolar, defendida em 1996, foi realizada com professoras alfabetizadoras de
classes populares, não estando a autora atuando naquele momento como professora da escola,
mas tendo ela sido professora alfabetizadora da mesma realidade que apresento nesta
investigação. Quando ela perfaz suas trajetórias, percebo situações e reflexões muito próximas
às minhas vivências. No seu relato, encontro sentimentos comuns aos meus, que se unem pela
mesma percepção e vivência. Em sua dissertação, a autora questiona
... o que acontecia com aqueles alunos vindos de um meio onde a leitura e a
escrita não fazem parte do cotidiano das famílias, de alunos que chegavam
pela primeira vez na escola, de trabalhadores, de repetentes tidos como
incapazes de aprender a ler e a escrever. (DIAS, 1996, p. 15-16)
Tudo era muito diferente. Como eu iria trabalhar com alunos com fome [...]
Eu me sentia impotente diante daquela realidade. Já não bastavam meios
eficientes de ensino, era preciso saber mais de como se processava a
aprendizagem naquelas crianças, para que pudesse reestruturar meu fazer
pedagógico. (DIAS, 1996, p. 14)
Esses sentimentos enunciados pela autora tomam corpo, forma, cor e movimentos,
pois me fazem vivenciar o agora, como se tal escrita tivesse origem nos dias de hoje.
Percebo que essa realidade é fruto de um sistema capitalista em que as classes
populares cada dia tornam-se mais excluídas e alienadas.
Por isso, só é possível pensar em uma mudança de paradigma por meio e com a
educação, pois seu papel na problematização dos modos de vida, na criticidade nas relações
sociais, na transformação da sociedade é indiscutível.
Nenhuma ação educativa é neutra, todas nossas escolhas pedagógicas dizem sobre
nossa atuação no mundo, afinal, para quem estamos educando? Para quê? Em que tempo?
Como o fazemos? Onde? É preciso problematizar: Para quem se educa? Como? Por quê?
Perguntas que não são novas, mas que objetivam uma tentativa de que a educação não se
torne transmissão de conhecimentos engavetados, mas, ao contrário, que possa ser
infinitamente repleta de possibilidades, construções, de ressignificações, de novos pensares.
15
É necessário que se busque, constantemente, respostas a essas questões, pois a própria
tentativa, apaixonada e comprometida, de se encontrar soluções possibilita grandes avanços
na prática do professor, no seu saber-fazer, na sua busca por uma educação mais crítica, que
proporcione uma mudança nesse quadro excludente que, há muito, as esferas de ação social
vêm contribuindo para a reprodução e as políticas públicas educacionais não estão
conseguindo mudar essa realidade.
Penso que a educação não pode acontecer de forma mecanizada, decodificadora, que
continua a reproduzir padrões de desigualdades sociais, mas percebo-a como uma ferramenta
de mudança social, que oportuniza diferentes relações com o mundo que nos cerca.
É com esse compromisso com a Educação e com a Educação Ambiental que apresento
este estudo.
Neste capítulo, apresentei os objetivos do estudo, uma breve revisão de dissertações e
teses desenvolvidas em escolas, a importância de desenvolver trabalhos dessa natureza e a
relevância do estudo a ser apresentado.
No segundo capítulo, Dando vez e voz a minha história: recompondo caminhos e
experiências vividas, compartilho minhas experiências e os caminhos que percorri elucidando
minha escolha pela profissão, algumas vivências como professora e como aconteceu a
delimitação de minha temática de investigação.
No terceiro capítulo,...De onde vem minha inspiração, minhas aspirações e meus
desejos... : desassossegos na tentativa de me revelar, abordo as idas e vindas na tentativa de
encontrar caminhos metodológicos que possibilitassem lidar, contar e interpretar os diálogos
entre minhas trajetórias como professora alfabetizadora, educadora ambiental e professora.
No quarto capítulo, Por onde andei... diferentes caminhos que encontrei, faço a
contextualização do bairro, seus moradores, da escola e das crianças, discutindo brevemente
acerca das infâncias.
A seguir, no quinto capítulo, que chamo de Interações, encontros e diálogos que
compõem e entrecruzam a constituição da educadora, apresentarei as diferentes situações que
vivenciei com os outros olhares e diálogos que fui tecendo ao longo de minhas trajetórias,
elucidando a importância desses para minha constituição.
Logo após, apresento o sexto capítulo, intitulado Vivenciando a Educação Ambiental
no contexto escolar: desafios, limites e possibilidades, em que abordo minha prática
pedagógica e compartilho minhas conquistas, dilemas e possibilidades no cenário educativo e
algumas possibilidades de vivências com a Educação Ambiental.
16
E no último capítulo fica a vontade de que Ainda há tanto a dizer... Ficam muitas
perguntas e inquietações...., aqui aponto as necessidades de continuidade desta escrita e os
caminhos a que fui levada nesta dissertação, abordando os sentimentos e os significados dessa
escrita em meu processo de conhecimento.
17
2 DANDO VEZ E VOZ À MINHA HISTÓRIA: RECOMPONDO CAMINHOS E
EXPERIÊNCIAS VIVIDAS
Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate....
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de marte
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Arnaldo Antunes/MarisaMonte/ Carlinhos Brow)
“Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas,
um léxico só não é suficiente.”
Guimarães Rosa
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Quando penso nas palavras para compor esta escrita, minhas idéias voam e tomam
dimensões variadas, é uma multiplicidade de pensamentos que se descortina com inúmeros
significados e sinto-me com a sensação de quem revive o já vivido. É como se vários
episódios começassem a querer ocupar lugar nesta escrita.
Complementando o pensamento de Guimarães Rosa, diria que o conteúdo nunca é
repetido objetivamente, ou em sua totalidade, mas reinventado, redescoberto, multiplicado, e,
por isso, um léxico só não é suficiente...
Borbulham situações, falas, atitudes, pessoas, cenários, tempos... São as memórias dos
diferentes passos que fui dando ao longo de minha caminhada que “querem” ser ditos, o
mundo é portátil, pra quem não tem nada a esconder...
Por onde começar? Bem, quem caminha, caminha por/para algum lugar, faz escolhas
nessa caminhada, trilhas mais curtas, atalhos, em outros períodos segue um trajeto maior, há
momentos de cansaço, quando é necessário parar e pensar por alguns instantes, encontrar
outros e outras em seu caminhar; são destes e tantos outros pensares que meu caminhar se fez
e refez até este momento....
Comecei os primeiros passos na docência, no Magistério, na escola Santa Joana
D´Arc, em Rio Grande/RS. Escola nova, bem maior do que aquela onde eu estudava, que
despertou um sentimento de estranhamento que durou até a adaptação a esse novo espaço.
Uma experiência riquíssima, por todas as aprendizagens que vivi, pelas parcerias de
caminhada que estão presentes ainda hoje e que conheci no curso. Porém, também foi no
magistério que, surpreendentemente, resolvi não seguir o caminho da docência. Fiz o estágio
em uma turma de alunos com sérias dificuldades de aprendizagem, não me sentia preparada
para lidar com as situações que se apresentavam, como a violência, os questionamentos e
dúvidas dos alunos, etc. Hoje percebo que não tinha uma concepção de educação sustentada
para embasar a prática, e por isso essa era frágil.
A formação que recebi no ensino médio era orientada para técnicas e confecção de
materiais, mas pouco se discutia alfabetização e construção do conhecimento. Assim, naquele
momento, tal experiência ratificou minha desistência ao exercício da docência, pois a sala de
aula era sinônimo de desconforto. Ao término do curso, saí acreditando que ser professora não
era a profissão que desejava, não queria enfrentar uma turma novamente.
Nesse sentido, a minha escolha pela profissão não está ligada a um dom, vocação ou
ainda a um somatório de experiências que me legitimou professora, mas foi sendo constituída
pela superação de vivências e suas decorrentes aprendizagens. É uma opção pautada na
19
redescoberta, no pensamento dialético de lidar com as contradições e superações de sentidos e
significados do viver cotidiano.
Em muitos momentos, flagro-me pensando no meu processo de escolarização, quando
estudei em duas escolas diferentes, uma onde cursei o ensino fundamental e outra o ensino
médio.
O Instituto Cristo Rei, onde cursei o ensino fundamental desde a pré-escola até a 8ª
série, era, aos meus olhos, praticamente uma extensão da minha casa, por ser uma escola
pequena, perto de casa, por estar cercado de muitos amigos do mesmo bairro, pelo cuidado e
segurança que a comunidade escolar transmitia a mim.
Pelas recordações que tenho, percebo que o ensino era orientado, naquele momento,
em 1988, com bases em uma metodologia tradicional. Lembro-me de decorar muito, de copiar
bastante; até hoje recordo-me do meu caderno da 3ª ou 4ª série, com o “ponto” sobre as
missões, que eu decorava na hora do recreio, na capela da escola.
Não me recordo de como fui alfabetizada, métodos ou cartilhas, o que lembro são as
brincadeiras, o espaço físico da sala de aula, da professora escrevendo no quadro, de sua
amizade e amorosidade, muito sorridente, muito expansiva. Depois de dois anos, a professora
saiu da escola. O tempo passou e poucas vezes a vi depois de sua saída, uma ou duas, na
verdade; mas o vínculo de carinho e afeto permaneceu ao longo do tempo.
No ano de 2005, já como professora da rede municipal, fui convidada pela Assessoria
Pedagógica dos Anos Iniciais, da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC), para
dar uma palestra às professoras acerca dos métodos de alfabetização. A palestra foi realizada
em dois turnos, pela manhã e pela tarde. Foi um encontro agradável e transcorreu
tranquilamente, até o turno da tarde, quando eu estava sendo apresentada às demais
professoras e chegou a professora Marisa, minha professora alfabetizadora. Quando vi que era
ela, meu coração bateu forte e as pernas tremeram, fiquei praticamente hipnotizada com a sua
presença que já não ouvia o que era dito. Quando estavam esperando que eu falasse. Era tanto
nervosismo, não conseguia dizer nada. As únicas palavras foram:
- Desculpem-me, eu não consigo dizer nada porque acabei de reencontrar a professora
que me alfabetizou, e preciso lhe dar um abraço!
Foi um momento muito emocionante, todos aplaudindo e eu não acreditando. Ela,
tentando me deixar à vontade, disse algumas palavras, mas não consigo recordar quais foram.
Olhava para ela sentada ouvindo-me, quanta responsabilidade! Sentia-me tão pequena. Após o
termino da minha fala conversamos um pouco, e ela com o mesmo sorriso dizia:
20
-Viu, quando a gente pergunta se dá certo, se vale a pena... Eu posso responder que
sim!
Percebi, nessa situação, o quanto representava em minha história a figura da “tia”
Marisa, não tinha idéia do quanto foi importante na minha constituição. Não me recordo da
cartilha, do método, ou de atividades, porque o que mais me marcou foi a relação que
estabeleci com ela. Sem dúvida nenhuma, ela foi a professora que mais marcou minha
trajetória escolar e também de vida, quando a encontro, até hoje, a vontade que tenho é de lhe
abraçar, um afeto que construímos na minha infância, porque nunca mais convivi com ela
depois da primeira série, no ano de 1989.
Essa experiência com a “Tia” Marisa foi tão significativa que priorizo até hoje, na
minha prática, a relação com os alunos, o acolhimento, a afetividade, amizade...
Foi interessante poder voltar a essa escola no estágio do curso de Pedagogia
1
, e o mais
emocionante foi voltar à sala de aula da pré-escola e ainda sentir o mesmo cheiro da infância;
olhar novamente a pintura da Branca de Neve na parede e em alguns instantes transportar-me
no tempo e relembrar com muita precisão a leitura que fazia do livro A Bela Adormecida, que
me seduzia tanto com suas lindas gravuras a ponto de não ouvir os colegas e a professora me
chamar.
Olhar a pracinha, as classes pequenas, os banheiros, e ainda sentir o sabor do café com
leite na térmica vermelha preparado por minha mãe para hora da merenda. Um filme passava
em meus pensamentos. Um pouco de saudade, com certeza. Voltar à infância é sempre
gostoso.
Pude, também, reencontrar a direção e alguns dos meus professores, ainda atuantes, e
experimentar um “outro lado” dessa instituição. Em nossas conversas, que trazem a
lembrança do meu tempo de aluna, sou sempre apontada como a falante em potencial,
tagarela; fazia tudo rápido para poder conversar mais. Realmente, era sempre a principal
problemática, na minha casa, na entrega dos boletins: a conversa. Minha fala sempre foi o
motivo das reclamações, desde a primeira série! Mesmo fazendo todas as atividades era
preciso manter-me calada.
Hoje, refletindo sobre a não aceitação da famosa “conversa” no contexto escolar,
penso que é uma forma de o professor, mesmo inconscientemente, conservar o aparente
controle sobre os alunos, mantendo estes calados, pois ainda, em alguns momentos, sentem-se
incomodados pela “desordem” e “bagunça” que a linguagem oral transparece.
1
Para a conclusão do curso de Pedagogia é necessário realizar o estágio curricular.
21
Nossas posturas estão fortemente ligadas às concepções de aprendizagem, de escola,
de professor e de aluno que temos. Porém, percebo, ao mesmo tempo, que lidar com as falas e
silêncios é uma aprendizagem, pois facilmente pode-se confundir a autoridade com o
autoritarismo, que se mostra presente em diferentes situações, principalmente no controle da
tão famosa conversa.
É uma aprendizagem tanto para os professores quanto para os alunos, pois, como
professores, geralmente a presença das raízes da educação tradicional se faz presente em
muitas práticas que ainda não conseguem imaginar uma aprendizagem que não seja em uma
postura diferenciada; os alunos, por sua vez, em algumas situações, não percebem essa
propostas diferenciadas, baseadas na dialogicidade, coletividade, como aprendizagens, mas
como posturas de professores que não tem “domínio de classe”; já vivi algumas situações
assim.
Em muitos momentos, via-me também buscando silêncio com os alunos, e naquele
instante retornava ao tempo em que fui aluna, identificando-me muito mais com a postura dos
alunos do que com a minha própria como professora. Por isso, imagino que é uma prática para
novas ações e pensares. Se acredito em uma educação emancipatória e problematizadora, não
posso, em sala de aula, adotar práticas que vão de encontro ao que acredito. Por isso vejo, que
é um processo de aprendizagem, com uma postura crítica e de questionamentos permanentes
dos nossos atos, atitudes e concepções. A turma do 1º ano do ensino fundamental de nove
anos, com quem fiz a coleta de dados, ensinou-me a vivenciar o processo de ensino -
aprendizagem de uma forma diferenciada e apaixonante, com muita “conversa”.
Essa experiência será retomada no capítulo “Vivenciando a Educação Ambiental no
contexto educativo: desafios, limites e possibilidades”, por enquanto, continuarei contando
minha trajetória escolar.
Estudei em escolas particulares, com bolsa de estudos, sempre com muito esforço dos
meus pais, que colocavam a escola como uma prioridade, abrindo mão de outros desejos seus.
Estudar para ser alguém na vida, diziam eles! Tentando, em seu entendimento, fazer o melhor
para minha formação. Sempre exigentes, meu pai tomava a tabuada, a mãe olhava o capricho
nos cadernos e temas, recomendações sempre, não responder para professora, não conversar,
etc...
Certamente uma parte dessas exigências era fruto das vivências familiares anteriores,
em que meus irmãos não deram continuidade aos seus estudos. Assim, as expectativas
estavam canalizadas no meu sucesso ou fracasso, na minha permanência ou evasão.
22
Posso dizer que minha trajetória escolar foi embalada por sonhos, expectativas,
dedicação e conquistas a serem alcançadas.
Busquei encontrar na Fundação Universidade Federal do Rio Grande um curso com o
qual me identificasse, e de todos os oferecidos pela universidade, a pedagogia voltava a me
chamar, pois não me sentia atraída por nenhum outro curso. Assim, fiz o vestibular e, em
2001, ingressei no curso de Pedagogia - Habilitação Anos Iniciais, mas tendo presente que o
curso seria um trampolim para fazer outras coisas, esse era meu pensamento. Mas eu nem
sabia quais eram essas outras coisas, poderia ser tudo, menos dar aulas. A minha visão de
professora remetia à experiência que tive no estágio do magistério e por isso não me sentia à
vontade para estar à frente de uma nova turma de alunos. Era um grande medo!
Gostava das discussões, leituras e reflexões na sala de aula na faculdade, mas quando
tinha de ir para a escola, era o problema.
Entre o final do segundo ano e o início do terceiro, comecei a ressignificar minhas
vivências e sinto que (re)descobri o sabor e o saber de ser professora. Um mundo tão
próximo, mas desconhecido para mim se abriu, mergulhei no estudo da alfabetização e aí foi
paixão de verdade! Encontrei-me! O que devo, em grande parte, à professora Cleuza Maria
Sobral Dias, que com tanta motivação em suas aulas, fazia-me buscar querer sempre saber
mais.
A universidade me possibilitou novas experiências, novos pensares, em que pude
ressignificar minhas vivências e assim compreender o processo de formação por que passei no
curso de Magistério.
Durante o curso de Pedagogia, trabalhei como bolsista na Secretaria Municipal de
Educação e Cultura, durante um ano e meio. Inicialmente, comecei no setor de bibliotecas,
logo após fui para a Unidade Pedagógica, onde passei a trabalhar com o recém-lançado
Programa do Governo, o Bolsa-Escola. Foi uma experiência que me possibilitou conhecer
melhor a organização escolar municipal, o funcionamento de recursos, livros, materiais;
conheci as diretoras, convivi com educadores organizando propostas para o planejamento do
ensino na rede.
Percebi que o trabalho burocrático que desenvolvia na SMEC podia ser algo mais
discutido, problematizado, pois muitas questões do assistencialismo me inquietavam. Tinha o
desejo de aprofundar discussões, de realizar um projeto de pesquisa tão falado pelos
professores na universidade. Procurei a professora Susana Molon, que estava dando início a
um projeto de pesquisa interinstitucional vinculado a Universidades de Santa Catarina (UFSC
23
e UNIVALI
2
); projeto este de formação de professores, que tinha como sujeitos da pesquisa
professores da rede municipal de ensino. Saí da SMEC e passei a trabalhar como voluntária e
a dividir uma bolsa com outra colega, no projeto citado acima.
Nessa pesquisa que iniciávamos, era necessário coletar, junto à SMEC, o nome e a
escola de todos os professores atuantes em sala de aula de 1ª a 4ª séries, tarefa que foi
demorada, devido à dificuldade de acesso aos dados e demora para a aquisição da
identificação de todos os docentes. Nosso objetivo era traçar um perfil socioeconômico e
cultural dos professores das redes municipais do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, de
Florianópolis e de Itajaí, em Santa Catarina. Para isso, foi necessário aplicar um questionário
com perguntas abertas e fechadas a 98 professores que foram escolhidos para participar da
coleta de dados, através de sorteio aleatório.
Os principais resultados da pesquisa demonstraram que os professores municipais do
Rio Grande são em maioria do sexo feminino, trabalham 40 horas semanais, cumprem jornada
de trabalho em duas escolas; há muitos professores com formação superior em outros cursos
de licenciatura atuando nos anos iniciais, escolheram a profissão por aptidão ou vocação e
acreditam que a ascensão profissional depende de cursos de aperfeiçoamento. (MOLON, et
al., 2004)
Após esse primeiro passo, participei do planejamento do curso de formação
continuada aos professores intitulado Oficinas estéticas, Atividades Criadora e Prática
Pedagógica, um espaço rico em ressignificações da formação e da prática pedagógica. O
curso tinha como objetivo trabalhar com diversificadas linguagens artísticas, possibilitando
aos professores experienciar um espaço de atividade criadora, educação estética e educação
ambiental. Esse curso foi oferecido pelo Núcleo de Pesquisa e Estudos em Psicologia
Social/NUPEPSO, Núcleo em que fui bolsista, começando em 2002, quando ainda não tinha
essa denominação, o qual me trouxe incontáveis aprendizagens, oportunidades, crescimentos,
e que depois de minha formação me acolhia na vivência dos dilemas da minha formação
continuada.
Como bolsista, fui contemplada na mostra de Produção Universitária/2003 com o
prêmio de Jovem Pesquisador das Ciências Humanas. Motivo de orgulho e muitas
comemorações, principalmente pelo reconhecimento do curso de Pedagogia como formação
de alunos também pesquisadores, realidade ainda pouco habitual em nossa universidade
naquele momento.
2
UFSC- Universidade Federal de Santa Catarina e UNIVALI- Universidade do Vale do Itajaí
24
Como requisito para conclusão do curso de Pedagogia, era necessário cumprir o
estágio curricular, que realizei em uma primeira série, desenvolvendo um projeto de
brinquedos e brincadeiras em uma turma de alfabetização. Uma experiência maravilhosa, em
que pude lançar novos olhares acerca da prática educativa e tive a certeza de que meu desejo
era trabalhar com a aquisição da leitura e da escrita. Mais uma vez, com a orientação da
professora Cleuza Maria Sobral Dias, tive a oportunidade de me afirmar como educadora, e
com as suas sempre pertinentes colaborações, fui aprendendo ainda mais a desvelar esse
mundo novo para mim.
Durante a graduação, sempre alimentei o desejo de dar continuidade aos meus estudos e
trilhar um caminho de pesquisa, encontrei então, no Programa de Pós-Graduação em
Educação Ambiental, a possibilidade de aprofundar as discussões em Educação.
Foi durante minha experiência no trabalho das oficinas que tive contato com leituras
de Educação Ambiental, através da minha orientadora, professora Dr.ª Susana Molon, e,
assim, comecei a conhecer e desmistificar o meu olhar naturalizado do ambiente.
Como aluna da universidade, tive contanto com o livro O que é Educação Ambiental
(REIGOTA, 2001) somente no final do 6º semestre do curso, em que fizemos um fichamento,
solicitado por um professor substituto, aluno especial do mestrado em Educação Ambiental.
A participação como bolsista de pesquisa no curso de formação continuada com as
professoras me instigava, tinha a curiosidade e o desejo de investigar suas práticas, para
acompanhar se, ao retornarem às suas salas de aula, estabeleciam relação com as vivências no
curso, pois parecia que o vivido por elas ficava guardado e esquecido em algum lugar distante
das suas salas de aula.
Não poderia deixar de pesquisar, de procurar entender e aprofundar meu olhar para
este universo tão rico, tão profícuo... tão interessante. Propus-me, então, a investigar de que
forma, em suas práticas pedagógicas, as professoras alfabetizadoras que participaram do curso
trabalhavam com diferentes linguagens (como a música, a dança, a pintura, o desenho, a
escrita, entre outras) no ambiente escolar, pressupondo que essas professoras participantes do
curso de formação continuada em Oficinas estéticas tiveram uma oportunidade diferenciada
para refletir e experienciar as questões ambientais, pois realizaram um exercício de
criticidade, de diálogo, de atividade criadora.
Naquele momento a centralidade das minhas idéias estava pautada na figura do
professor, colocando nele toda a responsabilidade de um trabalho diferenciado na escola e
esquecendo de avaliar outras dimensões no contexto educativo. Percebo o quanto esta
25
multiplicidade de relações também não eram (re)conhecidas por mim. Assim, na época, falava
de um lugar que pensava conhecer, mas que não imaginava como era pouco conhecedora.
Logo após um mês de aula no mestrado, saiu o edital do concurso que eu havia feito
na Prefeitura Municipal do Rio Grande, e fui chamada então para ser professora da rede,
passando a atuar como professora alfabetizadora na escola onde realizaria a pesquisa.
Comecei, então, a vivenciar na prática todas as facetas da profissão docente, e nesse
movimento meu objeto de pesquisa começou a ser modificado, pois como investigar a prática
de uma outra professora enquanto vivia os dilemas de minha própria prática? Como investigar
outro espaço educativo senão aquele em que agora me vejo atuando diariamente?
Não foi nada simples ou sossegado viver essa situação nova e chegar à idéia de fazer
uma pesquisa envolvendo a minha própria prática pedagógica. Lembro-me que durante as
aulas de Metodologia Qualitativa da Pesquisa em Educação Ambiental, com a professora
Maria do Carmo Galiazzi, era um momento em que todos passávamos por muitas
“desconstruções”, as minhas eram detectadas no olhar, no agir, no andar. Passei um tempo
calada, em que tudo era relativo, a idéia de escola se modificava, meu pensar sobre o ser
professora já se ressignificava. Passei a questionar minhas certezas, minha formação enquanto
professora, enquanto educadora ambiental, enquanto pessoa. Foram momentos só meus, tão
pesados, tão solitários.
Em uma conversa com a professora Maria do Carmo, ela me sugeriu que pesquisasse
minha prática; fiquei confusa com sua fala, pois não tinha idéia de como seria. Mas ao mesmo
tempo tive corporificado o meu sentimento, de não conseguir pesquisar outros enquanto tinha
tanta vivência “passando” por mim. Fui um pouco resistente, o medo e a insegurança de uma
pesquisa dessa natureza faziam-me evitá-la.
Mas a partir de toda a discussão no mestrado, percebi que não poderia investigar e
problematizar outra realidade a não ser a minha, aquela que estou em constante contradição e
superação.
Minha relação, como aluna, no mestrado em Educação Ambiental foi de aproximações
e distanciamentos contínuos, a tríade pesquisadora-professora-aluna em muitos momentos se
tornava tão extensa, tão imensa que nem eu mesma conseguia dar conta de comportá-la e
entendê-la... e nessa relação de lidar com esse papéis ora conjugados, ora isolados,
encontram-se os motivos pelos quais faziam minha relação com meus colegas e professores
ser diferente de todas as relações que estabeleci em todos os outros espaços que convivi.
Lembro de entrar calada nas aulas e sair sem dizer uma palavra. Observava, ouvia, mas não
verbalizava. Movimento muito mais individual, singular.
26
Passo agora a olhar os primeiros registros do diário de campo e percebo que por algum
tempo, minhas relações foram centradas com os alunos e suas aprendizagens.
Muitas coisas vem se modificando desde o início do meu trabalho até hoje, a
forma como me vejo como professora, minhas pontuações, meus horizontes,
minhas opiniões... [...] meus elos de interpretação estavam totalmente
voltados a relação professor-aluno, acredito por justamente estar iniciando,
ter minha primeira turma e vivenciarmos juntos os saberes, sabores e
dessabores do processo de alfabetização. Meus olhos enxergaram muitos
pelos seus, não que este ano isso não seja feito, mas sinto que agora consigo
avaliar as situações com uma postura mais crítica, redimensionando meu
olhar para todos os aspectos que envolvem o processo de formação
pedagógica... (Diário de Campo- 17/12/2006).
O olhar da escola, e aqui incluo principalmente as outras professoras em relação a
mim, era de uma pessoa quieta, tímida, corajosa, envergonhada; poucas vezes me anunciei em
reuniões ou debates. E o interessante é que as próprias colegas professoras fazem comigo essa
análise quando me dizem que hoje elas já me vêem como uma falante, desassossegada,
“botando as manguinhas de fora”, não mais calada, mas sim falada, inventando moda.
No segundo ano de trabalho, contínuo a olhar o processo ensino-aprendizagem, porém
não só a ele, mas agora trocando as lentes (CARVALHO, 2004) para ver as mesmas
paisagens com outros olhos.
Esse olhar de estranhamento, característico da percepção estética, é,
portanto, uma das formas de o sujeito conhecer e ampliar suas
possibilidades, seu poder reflexivo e criativo, pois permite que se retire a
marca da familiaridade da realidade, que não se tome a máscara que lhe dá
um sentido único, mas que essa possa ser vista como polissêmica e
mutltifacetada. (REIS Et Al., 2004, p. 54)
Ao mesmo tempo em que me percebiam tímida, também a escola me reconhecia
quando, em diferentes momentos, me abriu oportunidades de trabalho, oportunizando espaço
para o desenvolvimento de outras potencialidades. Quando me dizem: Eu havia pensado na
Ju!; Ah, eu também, já ia te falar!!, Claro, a Ju!! Sinto uma sensação gratificante e
desafiadora ao mesmo tempo, de responsabilidade e confiança em meu trabalho e no que
acredito. Nossas escolhas nunca são neutras (FREIRE, 1996) e transparecem em nossas
atitudes, nossas falas e na forma como encaramos nossa profissão, nosso saber-fazer.
Desenvolvi diferentes atividades, tanto na secretaria da escola, como nos anos finais e
não realizei outras atividades por problemas de horários. Assim, percebo que a escola valoriza
meu ser profissional à medida que me possibilita desempenhar outras tarefas.
A cada dia que ia desvelando as vivências como professora, percebi o quanto a
docência é um trabalho profissional exaustivo, exigente; parece que nunca deixava de ser
27
professora, era mais tempo e em maior intensidade professora do que Juliane, como se ser
professora transpassasse a minha identidade. Digo isso, pois ao final do primeiro ano de
trabalho percebi que desempenhei meu papel de professora alfabetizadora de forma tão
intensa e integral que deixei em segundo plano meus papéis sociais, como aluna e estudante
de pós-graduação, como mulher, como filha, como amiga, como eu mesma, para mim
mesma... Via-me tendo que dar conta de tantos universos que se apresentavam para mim e
que me acompanhavam por todos os lados.
Toda a semana saía da escola correndo e caminhava até a universidade, chegava para
assistir a aula atrasada e quando estava em aula na universidade saía mais cedo para não me
atrasar para chegar na escola.
Quando comecei a dar aulas na escola também assistia a aulas no mestrado, o que me
fazia percorrer um caminho árduo, porém encantador, andando da escola para a universidade,
e da universidade para escola. Esse trajeto era feito três vezes na semana e, em alguns
momentos, duas vezes ao dia.
Torna-se interessante, neste momento, anunciar brevemente a relação que estabeleci
como mestranda e como professora alfabetizadora, ambas atividades novas para mim e sendo
vivenciadas de forma tão intensa. Minha relação com a universidade possibilitou (e ainda
possibilita) uma profunda reflexão sobre a prática, e minha relação com a escola me fazia
questionar a academia, no sentido da propriedade do seu falar e teorizar uma realidade, que eu
percebia que era ainda pouca distante da realidade que vivenciava.
Talvez tenha escolhido iniciar a falar de uma relação ainda tensa, ainda repleta de
uma trajetória historicamente dicotomizada pela teoria e prática como se estas pudessem ser
separadas. Penso que a prática está impregnada da teoria, isto é, as escolhas, o pensar, a ação,
o fazer pedagógico. Assim, não posso pensar uma prática desconexa, à parte de uma teoria; ou
o contrário, uma teoria à parte da prática.
Essa relação da universidade, como produtora de saberes, e a escola, como a aplicação
de outros, ainda está muito presente no pensamento de muitos educadores.
Através do mestrado, tive a oportunidade de estar cotidianamente refletindo de forma
muito crítica minhas vivências, ora de forma mais angustiada, ora de forma mais
apaixonada...
“Estar em contato com a universidade me impulsiona, me anima, me embala, me faz
sentir vontade e ter o prazer de escrever aquilo que faço.”(Diário de Campo-30/05/2006)
O saber constituído na academia possibilita-me ferramentas e conhecimentos para
fundamentar minha atuação, ideologias, utopias e objetivos construídos em meu processo de
28
formação enquanto educadora, unindo ainda minhas vivências como pessoa, alegrias,
tristezas, expectativas que perpassam minha atuação enquanto educadora. Decorre daí a
afirmação de Tardif (2002), que os saberes docentes não se configuram em saberes já
constituídos, mas formados de um saber plural, oriundos de saberes da formação profissional,
curriculares e experienciais.
É buscando um diálogo entre esses saberes que vamos constituindo redes e tecendo
ligações entre estes. A universidade proporciona (ou deveria proporcionar) o espírito
investigativo, no sentido de estarmos sempre incomodados com o dado aparentemente
objetivo apresentado no dia-a-dia do exercício da profissão; pois é somente buscando
entender o contexto em que estamos inseridos que poderemos estar promovendo e repensando
ações para este.
Em meio a essas relações, posso afirmar que diversos momentos foram de tensão, pois
a sensação que senti nas aulas do mestrado era de que o chão parecia abrir-se e a base teórica
e os saberes até então aprendidos já não faziam tanto sentido… Os saberes estavam a todo o
momento sendo questionados; enquanto muitos colegas sentiam a diferença por não ter
formação em educação, eu tendo essa formação, me sentia perdida frente àquela imensidão de
pensares acerca de um determinado tema, por exemplo. Em alguns momentos ouvia falas com
tanta propriedade da escola e percebia que o lugar ocupado e de onde falavam, era realmente
pouco conhecedor dos limites e possibilidades do fazer pedagógico. E assim, durante minhas
intensas travessias entre a escola e a universidade meus pensamentos borbulhavam, buscando
um diálogo entre uma atuação como educadora e pesquisadora.
Durante algum tempo foi difícil desempenhar esses papéis, pois muitas vezes buscava
distinguir minhas atuações como se fosse possível separar a pesquisa da ação pedagógica. Fui
descobrindo e construindo esses saberes ao longo dessa caminhada na escrita da dissertação,
fui aprendendo a lidar com essa pluralidade de papéis, que mesmo diferenciados se
completam.
Hoje, quando me reporto a essas situações que foram tão comuns no meu dia-a-dia,
vejo o quanto exige esforço e dedicação. São situações difíceis, tanto aos professores que
buscam formação continuada, quanto aos alunos de pós-graduação, pela dificuldade em
desenvolver funções paralelas, como trabalhar, por exemplo. Poucas são as bolsas de estudos,
o que impede que o aluno se dedique de forma exclusiva à investigação, condição esta
essencial para um bom desempenho.
Conviver com esses embates é vivenciar o processo dialético de contradição,
superação, síntese e novamente contradição...
29
Chegar a finalizar esta escrita é o resultado de muitos passos dados, contradições, e
superações de trajetos percorridos.
Quando escrevi o texto para o exame de qualificação (Março/2006), o título falava
sobre essa travessia entre a escola e a universidade, “Na travessia escola-universidade:
(des)encontros de saberes e fazeres de uma professora alfabetizadora, educadora ambiental e
pesquisadora.” No momento da qualificação do trabalho, essa vivência era muito presente e
estava carregada de significados na minha constituição enquanto professora e pesquisadora.
Hoje, a travessia compõem a escrita como mais um dos trajetos necessários na composição
desse caminhar.
Em meu segundo ano como professora e ainda assistindo aulas no PPGEA
3
, senti a
necessidade de fazer da atividade de ser professora um dos distintos papéis desempenhados
em meu cotidiano.
Assim, fui convidada por uma amiga a fazer aulas de dança, uma ótima oportunidade
de realizar outras atividades prazerosas, inclusive para preservar minha saúde mental e física,
trazendo-me novas experiências e me possibilitando assumir outras identidades, fora dos
territórios da escola. Foi uma experiência maravilhosa, participei durante oito meses, o que
me revigorou e me ensinou a delimitar os espaços das minhas atividades.
Como é bom viver e sentir que as vivências nos possibilitam aprendizagens, estar
aberto para experiênciá-las é o primeiro passo! Busquei essa abertura pela necessidade de
distanciar-me das atribuições de ser professora, que ocorria em tempo integral. O
desenvolvimento de outras atividades revigorou também o pensar e agir, possibilitando que eu
não me sentisse tão impregnada da prática pedagógica, mas com certa distância para refletir
sobre ela.
Em 2006, no meu segundo ano na escola, durante mais ou menos dois meses, trabalhei
com os alunos das séries finais do ensino fundamental, em uma situação inusitada, mas muito
interessante e que me trouxe inúmeras aprendizagens e reflexões.
O convívio com os adolescentes e com os professores atuantes nesse turno de
trabalho, possibilitou-me mais uma vez, vivenciar a escola em novas e diferentes facetas,
mostrando as pluralidades de um mesmo espaço, que por momentos se apresenta tão
conhecido. É um novo mundo a se olhar, contextualizar, entender.
Experienciar o trabalho docente com adolescentes exige novas posturas, visto que eles estão
vivendo um momento cheio de dilemas e marcado de descobertas e questionamentos.
3
Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Fundação Universidade Federal do Rio Grande.
30
Remetendo à minha experiência, percebi que os alunos se mostram em diferentes dimensões;
a cada olhar, um universo de expectativas, que não podem ser resumidas na homogeneidade.
Por exemplo, alunos agressivos, que testam os limites dos professores e da escola, deixam
suas marcas pelas salas de aula, buscam intimidar, mas que, ao mesmo tempo, estão buscando
esconder sua fragilidade. Com olhar atento e desarmado, percebe-se suas dificuldades em
lidar com a repetência, com a auto-estima, com sua relação familiar... Sentia-me em meio a
relações tensas e frágeis!
Eu não podia continuar, pois não tinha o tempo de dedicação que era preciso, não
tinha a formação, e descobri que o universo infantil é onde exerço minha profissão com mais
identificação e liberdade.
Abdicando dessas 20 horas de trabalho, passei a atuar somente com a turma do
primeiro ano do ensino fundamental de nove anos, uma experiência repleta de significados tão
relevantes, como, por exemplo, a alegria, a leveza, identificação, dedicação...
Com certeza, não são novidades para mim saber que o conhecimento só tem validade
se acontecer na troca, na construção, na relação eu - outro, bases essas já firmadas em minhas
escolhas pedagógicas; porém, sinto necessidade de dizer que (re)aprendi, pois, hoje, quando
falo sobre coletivo, dialogicidade, autonomia, tenho o sentimento do vivido, do
experienciado, e por isso o significado dessas palavras saem do papel e das idéias e passam ao
plano da subjetividade. Mais do que ensinar, aprendi, sem nenhuma dúvida, o que me moveu
a querer continuar a vivenciar o espaço educativo com esses alunos no seu 2º ano do ensino
fundamental.
É nessa intricada trama de relações e descobertas que “coloco o pé na profissão”
(DIAS, 2002, p. 160) e compartilho os desafios, desassossegos e possibilidades da
constituição da educadora ambiental e alfabetizadora, lançando-me a recompor trajetórias e
tecer diálogos a partir de uma prática pedagógica.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado
de pensar.
Clarice Lispector
31
3 ... DE ONDE VEM MINHA INSPIRAÇÃO, MINHAS ASPIRAÇÕES E MEUS
DESEJOS... : DESASSOSSEGOS NA TENTATIVA DE ME REVELAR
“Sobre o que me apoio para pensar ser aquele
ou aquela que penso ser e quero tornar-me?
Como eu me configurei como sou? E como me
transformei? Sobre o que me baseio para
pensar o que penso? De onde vêm as idéias
que acredito serem minhas? Sobre o que me
apoio para fazer o que faço e/ou pretendo
fazer? Com quem e como aprendi meu
“saber-fazer” em suas dimensões técnicas,
pragmáticas e relacionais? [...] De onde vem
minha inspiração, minhas aspirações e meus
desejos?” (JOSSO, 2006, p.25-26) (grifo meu)
32
Nesta escrita, muito mais que encontrar respostas, busco entender e valorizar a riqueza
das perguntas, o quanto elas são um convite às reflexões, às dúvidas, aos questionamentos.
Busco dar-lhes vez e voz, fazendo-as presentes neste trabalho, pois acredito que somente
problematizando a mim mesma e as minhas vivências é possível tentar desvelar de onde vem
minha inspiração, minhas aspirações e meus desejos...
Este estudo se caracteriza por apresentar uma abordagem qualitativa, entendendo que
esta permite valorizar as interações e busca compreender os fatos em seu contexto,
valorizando o que é produzido por um grupo de sujeitos e que não pode ser quantificado, mas
problematizado e levado em consideração.
De acordo com Brandão (2003), a pesquisa qualitativa não surge na educação como
moda ou ao acaso, mas quando educadores e pesquisadores buscam enfrentar a realidade de
algo novo. Quando se dá voz à história, aos acontecimentos da experiência interativa do
cotidiano, “[...] a minha interpretação, qualquer que ela seja e de onde venha, não pode mais
ser levada através de um discurso axiomático-dedutivo e inevitavelmente redutivo, mas em
uma compreensão fundada na aventura assumida da intersubjetividade”. (BRANDÃO, 2003,
p. 91)
O enfoque teórico e metodológico que subsidia essa pesquisa qualitativa está
embasado na perspectiva sócio-histórica, ancorada nos estudos de Vygotsky (1991, 1993), e
dentro da abordagem autobiográfica, principalmente nos estudos de Josso (2006), Souza
(2006) e Pérez (2003), pois compreendo que a forma como estas duas correntes de
pensamento caracterizam o sujeito e a produção do conhecimento convergem e possibilitam
maiores compreensões acerca do fenômeno de minha constituição enquanto professora
alfabetizadora, educadora ambiental e pesquisadora. De acordo com Freitas, a pesquisa com
bases na orientação sócio-histórica compreende que.
A fonte dos dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge,
focalizando o particular enquanto instância de uma totalidade social. [...] não
se cria artificialmente uma situação para ser pesquisada, mas vai-se ao
encontro da situação no seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento.
O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase na compreensão.
[...] (FREITAS, 2003, p. 27)
Assim, como enfatiza Molon (2005) o sujeito constitui-se através das relações sociais
e da linguagem, ao mesmo tempo em que constitui outros sujeitos, e é esse emaranhado de
complexas teias de relações que estão presentes neste estudo. No processo de investigação,
busco ir ao encontro das situações vivenciadas para compreendê-las em seu acontecer,
fazendo da investigação uma descoberta com estratégias e caminhos reinventados a todo
33
instante, pois são as interações e o processo de constituição que objetivo estudar, e estes não
são pensados a priori e não podem ser previstos ou limitados, mas se dão no seu acontecer
diário, em que busco contextualizar e problematizar as vivências, à medida que estas vão
acontecendo, com seus embates, desafios, dúvidas, dificuldades, emoções, afetividades...
Encontrar um caminho metodológico que me possibilitasse lidar e organizar todas
essas vivências me fez refazer trajetos diversas vezes, procurando reinventá-los e muitas
vezes, nessas tentativas, acabei por encontrar e criar novos caminhos a percorrer.
Incansavelmente ir e vir, sofridamente ir e vir.
A pesquisa qualitativa de abordagem autobiográfica entende a produção do
conhecimento como um processo de transformação, em que o sujeito não produz apenas
conhecimento para os demais, mas principalmente de si para si. Um trabalho dessa natureza
possibilita um processo de formação, não se configurando somente em informação, mas
oportunizando novos modos de pensar, ver e agir comigo mesma e na minha relação como
professora e produtora de conhecimento.
Através da escrita em forma de narrativa, encontro oportunidade de dar voz e vez às
minhas interpretações do vivido e do sentido, da tentativa de coerentemente me tornar
educadora, de intensamente trazer as dúvidas mais do que certezas, fazendo da minha
experiência singular uma escrita social.
A construção da escrita do texto narrativo surge da dialética paradoxal entre
o vivido – passado-, as projeções do futuro, mas potencializa-se nos
questionamentos do presente em função da “aprendizagem experiencial”,
através da junção do saber-fazer e dos conhecimentos como possibilidade de
transformação e auto-transformação do próprio sujeito. (SOUZA, 2006, p.
29).
A escrita de uma pesquisa de quem se propõe a estudar sua própria prática passa por
dificuldades peculiares, visto que a experiência do sujeito enquanto pesquisador e pesquisado
são paralelas e se entrelaçam cotidianamente. Em muitos momentos, por mais que se tenha o
que dizer, as mãos paralisam e o pensamento emudece como se não encontrasse as palavras
para o que se tem a dizer.
Agora compreendo o que Vygotsky (1993) argumenta sobre a relação entre o
pensamento e a linguagem, considerando que o pensamento não é expresso diretamente na
fala, ele passa pelo significado da palavra. Assim, não se fala diretamente o que se pensa e
muitos pensamentos permanecem na sombra quando não são realizados nas palavras. E as
palavras também necessitam do pensamento para dar significado ao que se diz.
34
A relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo: o pensamento
nasce através das palavras. Uma palavra desprovida de pensamento é uma
coisa morta, e um pensamento não expresso por palavras permanece na
sombra. A relação entre eles, não é, no entanto, algo já formado e constante;
surge ao longo do desenvolvimento e também se modifica. (VYGOTSKY,
1993, p. 131)
Parece que na folha em branco não cabem as tantas vozes que não se calam, tantos
sentimentos que brotam e que não são possíveis de serem relatados naquele momento, tanta
emoção (re)lembrar o fato para escrevê-lo e ainda assim perceber que faltaram palavras.
A base afetivo-volitiva, isto é, as emoções, os desejos, as vontades e as necessidades
movem os pensamentos. Para conhecer o pensamento de alguém é necessário compreender
sua base afetivo-volitiva.
O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto é, por nossos
desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por trás de cada
pensamento há uma tendência afetivo-volitiva, que traz em si a resposta ao
último “por que” de nossa análise do pensamento. Uma compreensão plena e
verdadeira do pensamento de outrem só é possível quando entendemos sua
base afetivo-volitiva. (VYGOTSKY, 1993, p. 129)
Além da base afetivo-volitiva, estão presentes as memórias e os lapsos de lembranças.
São as memórias que me acompanham por todos os lados, mas que insistiriam por um tempo
em ficar em relatos orais. Sentar à frente da folha branca é mais uma vez silenciar mesmo sem
querer. “As inconsistências, que perpassam rapidamente o discurso falado, permanecem no
papel, olhando inexpressivamente e esperando pacientemente a sua interpretação...” (HOLLY,
2000, p. 104)
São momentos vividos com tanta intensidade que parecem ser duradouros e
inesgotáveis, porém, eles fazem parte de um processo de interpretações dessa teia de relações.
A folha em branco e o pensamento cheio fazem parte de um caminhar da pesquisa, em
especial dos que se aventuram a recompor suas trajetórias, visto que a escrita corporifica a
prática, dando forma às vivências. Uma escrita que não é pragmática, mas que tem vida e que
vai sendo (re)contada a cada palavra, mas que às vezes algumas palavras parecem faltar no
momento de expressar o significado de uma experiência.
Assim, nem todos os momentos desta escrita foram constituídos de uma relação
tranqüila, mas num processo de aprendizagem e crescimento.
Escrever um diário pode ser uma proposta confusa, a vida parece não ser tão
límpida, pelo menos no papel; não se rearranja automaticamente de modo a
ser compreendida facilmente. Assim, enquanto os professores, muitas vezes
começam a escrever para atingirem a compreensão e a clareza, o reverso
35
acontece, geralmente primeiro. Tanto o prazer como as inconsistências
perturbadoras e as contradições aparecem. (HOLLY, 2000, p. 108)
Quando olho para um papel em branco, minha escrita tem outro significado, do vivido,
do experienciado e, assim, surge a dificuldade desse registro, dessa prática; não é um, olhar de
fora, mas alguém de dentro que vive o que escreve e que tem a responsabilidade de dar a essa
experiência legitimidade acadêmica, visto que o processo da escrita é diferente da linguagem,
pois na escrita o interlocutor está ausente.
Ao mesmo tempo em que narrar minhas experiências, inicialmente, gerou um
desconforto, possibilitou-me revivê-las e reinterpretá-las no momento em que passei a
compartilhá-las. Mas do que falar? O que contar? É possível dizer tudo?
A cada instante que a vivência é dita ela já se configura tomando formas, proporções e
interpretações diferenciadas, tanto para mim, que as conto, quanto para quem as lê.
Na escrita da narrativa a arte de evocar e de lembrar remete o sujeito a eleger
e avaliar a importância das representações sobre sua identidade, sobre as
práticas formativas que viveu, de domínio exercidos por outros sobre si, de
situações fortes que marcaram escolhas e questionamentos sobre suas
aprendizagens, da função do outro e do contexto sobre suas escolhas, dos
padrões construídos em sua história e de barreiras que precisam ser
superadas para viver de forma mais intensa e comprometida consigo próprio.
(SOUZA, 2006, p. 61)
3.1 Olhando mais de perto minhas vivências na tentativa de organizá-las
Em função dos prazos para a realização da pesquisa, foi preciso delimitar um tempo
para a coleta de dados. Passei a atuar como professora a três anos, em 2005 tive minha
primeira turma, quando delimitei minha temática de investigação, mas enfatizei este estudo na
relação com minha segunda turma de alunos, no ano de 2006, quando estruturei a coleta de
dados e fiz os registros, trazendo as contribuições dos meus alunos, com seus desenhos, sua
escrita, suas falas e fotos.
Para organizar a coleta de dados, decidi utilizar recursos como o diário de campo,
fotografias e observações. Nos registros do diário de campo, anotei os sentimentos, emoções,
vivências, falas; as experiências do dia-a-dia. E, nas fotos, busquei registrar os
acontecimentos no contexto escolar.
Passei então a relatar os desafios, alegrias, dificuldades, dilemas no diário de campo,
porém, senti a necessidade de também registrar a fala dos alunos e minhas exposições junto a
eles durante o período de aula. Porém, como as anotações não podiam ser imediatas, muitas
falas se perdiam, pois não conseguia registrar. Então, conversando com minha orientadora,
36
pensamos em uma pessoa para acompanhar minhas aulas e fazer as anotações dessas falas.
Assim, contei então com a colaboração da colega Nelda Alonso dos Santos, que sistematizou
os registros durante as aulas. Ela fazia as observações, em média, duas vezes por semana, o
que permitiu que os registros passassem a ser mais completos, tanto as anotações quanto as
fotos.
Após o término das aulas, reuni o material coletado por ela, minhas falas e as dos
alunos, tarjando tudo que, a meu ver, pensei ser relevante. Conclui o material escrito por
mim, selecionei fotos e as organizei por atividades. E comecei, com a ajuda da professora
Susana Molon, a me lançar na leitura atenta de todo o material produzido que compõe o
corpus do trabalho. Paralelamente a essas atividades, fui realizando leituras acerca da
constituição do professor e de narrativas, buscando fundamentar minhas escolhas.
Decidi separar as fotos, primeiro, por atividades desenvolvidas e, em seguida, atribuí
expressões-chave a essas, que não necessariamente foram as mesmas dos registros escritos.
Com todo o material reunido, passei a buscar tentativas de organizá-lo, procurando enxergar a
forma mais clara de contar minha história e os trajetos que percorri.
Após organizar o material, depois de várias leituras, elaborei uma planilha contendo
expressões-chave de onde emergiram as categorias de análise, que irei caracterizar como as
trajetórias que emergiram nessa experiência.
Esse processo, contudo, não foi fácil, uma vez que ao determinar essas trajetórias tinha
a idéia que estava fragmentando minhas experiências, como, por exemplo, aconteceu com a
organização das fotos, em que a imagem captada expressa uma pluralidade de significados, da
mesma forma com os diários, as falas e os acontecimentos; todos pareciam estar em todos os
temas.
Compartilho de seus pensamentos presentes na tese de doutorado de Dias (2002),
quando a autora, ao olhar para as histórias das professoras alfabetizadoras que investigou e
fazendo o exercício de nomear percursos, relata: “Embora tenha aqui, construído uma certa
linearidade para a descrição das narrativas dos percursos de vida das professoras-
alfabetizadoras, estes se constituem em uma rede de relações na qual ‘tudo é contado em
tudo’.” (DIAS, 2002, p. 105)
A necessidade de estabelecer categorias ou temáticas, a fim de organizar a análise e a
escrita da dissertação, também trouxe muitos questionamentos, visto que as vivências
acontecem de forma única e inseparavelemente uma da outra.
37
Uma pesquisa com essas características é mais do que tudo a soma de idas e vindas,
em um processo de acertos, erros, tentativas, buscas... e de encontros. É um movimento de
descoberta contínuo, onde não há espaço para ser estático, são muitas idas e vindas.
Após a primeira etapa de análise dos registros e das experiências, surgiram
inicialmente, vários pontos relevantes, como as interações sociais no contexto educativo, a
solidariedade, o diálogo, o cansaço físico e mental, o valor social da aquisição da escrita, as
emoções, a amorosidade, os saberes dos alunos, o lúdico, a infância, a coletividade, a proposta
de trabalho, entre outras.
A partir daí, fui reorganizando temáticas e estabelecendo duas grandes trajetórias.
Ressalto que esse processo de análise foi muito complexo, principalmente por se tratar de
minhas vivências enquanto professora e pesquisadora; não faria sentido trabalhar de maneira
isolada, visto que todas as vivências estão nesse emaranhado e umas só existiam em função de
outras.
Dessa forma, partindo das diferentes expressões-chave e após o processo de análise e
interpretação, surgiram duas grandes trajetórias, intituladas: “Interações, encontros e diálogos
que compõem e entrecruzam a constituição da educadora”, que fala da Prática Pedagógica, à
medida que refaço um pouco os diferentes olhares presentes neste caminhar, e “Vivenciando a
educação ambiental no contexto escolar: desafios, limites e possibilidades”, trazendo a
discussão das interações sociais, da imersão na escola, nos desafios da prática cotidiana e
como foi ocorrendo o desvelamento de minha constituição.
Antes de apresentar minhas trajetórias, irei contextualizar a comunidade escolar, os
alunos e o bairro no capítulo a seguir.
38
4 POR ONDE ANDEI... DIFERENTES CAMINHOS QUE ENCONTREI
Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem
Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu e também você e eu
Saiba: todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar
Saiba: todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano
Saiba: todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao-Tsé, Moisés, Ramsés, Pelé
Gandhi, Mike Tyson, Salomé
Saiba: todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
e também eu e você.
Adriana Calcanhoto, Saiba
Fotos feitas no bairro onde localiza-se a escola.
Fonte: NUPEPSO/ NEEJA
39
Verbo Ser
Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa,
e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.
Carlos Drummond de Andrade
Através da música, das fotos e da poesia de Drummond, inicio este capítulo no
exercício de caracterizar o bairro e a escola onde a pesquisa foi realizada.
Os moradores da comunidade, em geral, trabalham como catadores de lixo ou em
serviços distintos, como pedreiros e carroceiros, alguns exercendo atividades como
autônomos, como serralheiros, auxiliar de pintor, em oficinas, em loja de antiguidades, outros
são trabalhadores em indústrias, em lojas, como fornecedores, pescadores, varredores de rua,
entre outros, sendo que há um número bem significativo de desempregados. As mulheres
geralmente não trabalham e as que trabalham exercem funções em indústrias de peixe,
cuidando de outras crianças, de idosos ou, ainda, como empregadas domésticas. Quase
sempre são serviços esporádicos, que fazem para ajudar na renda da casa.
O bairro é bem jovem, tem aproximadamente 25 anos, e surgiu devido à
desapropriação de terras pela prefeitura, que cedeu aos moradores casas para habitação.
Inicialmente era um bairro pequeno, com pouca infra-estrutura e que foi sendo habitado
40
também por invasões, crescendo rapidamente. Possui uma escola, um posto de saúde, vários
minimercados, um campo de futebol, uma pracinha; ainda não possui pavimentação e o
sistema de saneamento básico não se encontra totalmente adequado. O bairro é bastante
movimentado, com muitos moradores caminhando pelas ruas, bem como animais (cavalo,
cachorro). Um outro fator importante é a constatação da quantidade de lixo nas ruas.
Os alunos atendidos pela escola são crianças e adolescentes que, em sua maioria, não
têm acesso a uma alimentação de qualidade, a uma boa vestimenta, a um saneamento básico
adequado, e cujas moradias encontram-se em precárias condições.
Ao mesmo tempo, são crianças que possuem uma vivência social diferenciada, visto
que em nossa realidade cotidiana pouco presenciamos crianças brincando na rua, jogando
bola, andando de bicicleta, correndo com os amigos, brincando de esconde-esconde, pega-
pega, amarelinha... Essas cenas, hoje pouco comuns, devido a inúmeros fatores sociais,
tecnológicos, políticos, culturais... estão presentes nesta infinidade de relações que essas
crianças estabelecem no seu meio. Conhecem seu bairro, onde moram os colegas, brincam na
rua, no pátio, andam sozinhas, interagem com um mundo vivendo não uma infância, mas
infâncias.... Segundo Nascimento “No Brasil, as grandes desigualdades na distribuição da
renda e de poder foram responsáveis por infâncias distintas para classes sociais também
distintas. As condições de vida das crianças fizeram com que o significado dado a infância
não fosse homogêneo”. (2006, p. 27)
Na diversidade de situações que caracterizam essas infâncias, através dos relatos feitos
pelos alunos, fui partilhando de suas experiências, como a briga familiar, a separação dos
pais, a prisão do irmão, o relato de um roubo, a descrição de um crime presenciando por eles,
a violência do pai, a bebida na família, o HIV... O professor estabelece relações que exigem
uma resposta rápida, pois são os diferentes sentimentos do outro, bem como as nossas
próprias emoções (frente a tais situações), com que lidamos a cada momento.
É impossível não ser afetado, não ser invadido por essas situações. Questiono meu
papel enquanto educadora ambiental, buscando a melhor forma de lidar como esses dilemas.
Cagliari ressalta e alerta que
... essa criança que passa fome viveu assim por 7 anos e, apesar disso,
aprendeu a falar, a entender o que lhe dizem,a agir em diferentes situações, a
realizar alguns trabalhos, a encontrar um caminho para si nessa miséria e a
sobreviver. A escola não pode tratá-la como um ser falido - se sobreviveu
até agora é porque tem condições de aprender e se desenvolver, talvez até
mais conscientemente do que uma criança que sempre tenha vivido na
redoma do lar. (2002, p. 17)
41
Nessa perspectiva, não acredito em fracasso diagnosticado e justificado por suas
condições de vida, as características de vida que encontramos fazem-nos criar ações para
viver em meio a elas. Dessa forma, acredito que é preciso agir com bom senso, e nesse
diálogo entre os prós e contras das medidas a serem tomadas, pensar no coletivo da escola
como a rede de apoio para resolver problemas comuns e pensar nas possibilidades e caminhos
de ações que podem ser encontrados em cada caso que se apresenta.
Educar nesse sentido, é partilhar desse conhecimento e assim possibilitar às crianças,
através da educação, uma relação e um olhar mais críticos e com grandes expectativas frente
ao contexto vivido por eles. Segundo Barcelos,
O que a escola, o processo educativo em geral e educação ambiental em
particular devem incentivar é que as crianças cresçam integradas à sociedade
e não submetidas a ela. Essa simples mudança de pensamento - e de
compreensão sobre o papel da escola - é capaz de inverter a lógica utilitarista
e competitiva da qual nosso processo educativo escolar é refém. (2004, p.
40)
Então, que escola
4
é essa afinal a que me refiro?
A escola foi fundada em 1985, primeiramente como extensão de uma escola maior.
Inicialmente, a escola funcionava de 1ª a 4ª série, tendo um espaço físico bem menor e
funcionando em salas de madeira. Ao longo desses 22 anos de história, a escola foi crescendo,
ampliando seu espaço físico e o número de alunos, hoje atende em média 800 alunos no
ensino do 1º ano a 8ª série do Ensino Fundamental. Conta com um ginásio e uma quadra de
esportes. A estrutura da escola é, em sua maior parte, de alvenaria, mas ainda há construções
de madeira como as salas de aula e o refeitório.
A escola cresceu, mas ainda necessita de maiores obras, pois a procura por vagas é
muito grande, visto o crescimento do bairro e da comunidade dos arredores que buscam vagas
na escola. As salas de aula tem em média, 30 alunos número este que, às vezes é ultrapassado;
em 2006, a escola encerrou o ano letivo com 796 alunos.
A diretora é a mesma desde a fundação da escola. Há uma vice-diretora para os
períodos da manhã e tarde e outra para o turno vespertino (ou intermediário). Há três
supervisoras, uma a cada turno, e uma orientadora pedagógica. Atuaram, no ano de 2006, 43
professores, divididos entre os anos iniciais e finais do ensino fundamental, duas merendeiras,
um funcionário e a equipe de limpeza é terceirizada pela prefeitura. Na escola não há pracinha
4
Deixarei a identidade da escola em sigilo, entendo a necessidade de resguardar as vivências e os sujeitos que
aparecem mencionados nesta escrita, pois meu objetivo não é o de me referir a uma escola em particular, mas
sim à instituição escolar como um todo.
42
ou brinquedos no pátio, nem bancos para os alunos sentarem nos 10 minutos do recreio; a
escola disponibiliza algumas cordas e bolas de futebol, basquete e vôlei.
Quase a totalidade dos professores da escola exercem atividades semanais de 40 horas
de trabalho, alguns na mesma escola outros em escolas distintas; há professores que exercem
também 60 horas de trabalho, divididos entre os serviços do Estado e do Município.
A escola trabalha com projetos de aprendizagem, os quais são subsidiados pelo Projeto
Escuna (Escola/Comunidade/Universidade)
5
. Nesta proposta, o trabalho desenvolvido parte
de projetos de aprendizagem, ou seja, do interesse e da curiosidade de pesquisa dos alunos,
partindo o desenvolvimento de conteúdos das temáticas das pesquisas que surgem na sala de
aula. Neste ano foi inaugurado, na escola, a sala de computação, que conta com 16
computadores, com acesso à internet, para uso nas pesquisas dos alunos. Antes da construção
e inauguração dessa sala, os alunos faziam suas pesquisas somente na biblioteca da escola e
nos materiais que traziam de casa.
Embora esteja presente a escola pública na minha formação de educadora, a vivência
mais próxima aos desafios e obstáculos enfrentados pelas crianças e as famílias das classes
populares se configuram em uma realidade não apenas conhecida, ou cercada por
pensamentos e idéias proferidos, mas como experiências que passam a ter identidade, nome e
sobrenome, onde a dificuldade passa a ter sorriso e lágrimas, passa a ter rosto e sentimentos.
Que desafios trazem para o saber e a atuação docente?
5
O projeto Escola-Comunidade-Universidade: buscando metodologias educativas, interativas e interconectivas
em uma visão sistêmica (ESCUNA) é uma parceria entre a Fundação Universidade Federal do Rio Grande
(FURG) e a Prefeitura Municipal do Rio Grande e tem como proposta a inserção da metodologia de Projetos de
Aprendizagem no currículo escolar da rede municipal de ensino de Rio Grande potencializados pelas tecnologias
digitais. Pode-se acessar informações sobre o projeto no site http://serv2.ceamecim.furg.br/
43
5 INTERAÇÕES, ENCONTROS E DIÁLOGOS QUE COMPÕEM E
ENTRECRUZAM A CONSTITUIÇÃO DA EDUCADORA AMBIENTAL E
ALFABETIZADORA
44
Inicio este capítulo com as mensagens de dois pais de alunos, de turmas diferentes em
que atuei, e de uma aluna dos anos finais do ensino fundamental. Trago esses registros para
ilustrar os diferentes olhares lançados a mim e por mim, múltiplos olhares presentes na minha
constituição enquanto educadora ambiental e alfabetizadora. A trajetória percorrida até hoje é
encharcada de olhares. Distintos, coletivos, e ao mesmo tempo singulares, únicos e tomados
de significados..., diferentes lugares do olhar. O olhar dos educandos, o olhar de colegas
professores e professoras, o olhar da sociedade, da família, da escola, das diferentes turmas.
O que está presente na infinidade desses olhares? Penso em todas essas possibilidades
da dinâmica dos olhares e seus diferentes significados. Por onde começar? Talvez pelo meu
próprio olhar, ou melhor, pelo meu não olhar. Meu próprio não me olhar, não me ver, não me
sentir enquanto professora. Um olhar que todos a minha volta, escola, família, colegas,
educandos, pais de educandos, lançam em relação a mim e que eu mesma não o tenho
inicialmente. Deveria eu ter recebido esse olhar junto com meu diploma de formatura, em 29
de janeiro de 2005? A realidade/verdade é que ele não estava em mim, não me pertencia
ainda, mas já estava presente no ideário social a qual faço parte.
Havia prestado um concurso público, sem ainda estar formada. A insegurança com o
desemprego e a possibilidade de trabalhar impulsionaram-me a realizá-lo; um olhar cauteloso,
olhar de quem vive em uma sociedade marcada por desigualdades sociais, marcada por falta
de oportunidades... Assim, no meio do ano de 2004, fiz o concurso e fui aprovada em sétimo
lugar.
A preparação dos documentos exigidos para a contratação é um misto de euforia e
ansiedade. São exames de saúde, como o de sangue, de urina, eletrocardiograma (acima de 40
anos), raio-x de tórax, audiometria, oftalmologia; bem como documentos atestando bens ou
imóveis, folha corrida policial e judicial, além de papéis rotineiros como números da carteira
de identidade, CPF, PIS, comprovante de residência, fotos, etc. Reunida a documentação
necessária, levei-a até a Prefeitura e fui encaminhada ao médico do próprio órgão para atestar
os exames, retornando logo após para assinar o termo de posse. Assim, tudo pronto para
exercer o cargo! O próximo passo foi procurar a Secretaria Municipal de Educação e Cultura
e descobrir qual seria a escola onde passaria a atuar.
Quando estive na Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC), tive a
possibilidade de escolher de algumas escolas, e, como critério de escolha, optei pela que se
localizasse mais próxima da universidade, devido às aulas no mestrado. A série que havia
disponível, sem direito à escolha era a 1ª série. Para minha alegria, tudo se encaixando
perfeitamente: escola perto da universidade e a turma que adoraria trabalhar. E assim, fui
45
cheia de expectativas apresentar-me na escola e desvelar esse espaço tão conhecido e ao
mesmo tempo tão novo para mim. Sentimentos diversos estavam presentes naquele momento,
tinha muitos desejos e sonhos, principalmente de poder fazer o que havia estudado na
universidade, como alfabetizar partindo do mundo da escrita do aluno, trabalhando com
portadores de texto, diferentes linguagens, com práticas de letramento, enfim... Entendo esse
momento como o de fazer a diferença na alfabetização, de ter sucesso profissional. O medo e
a coragem se misturavam e já não é possível defini-los separadamente, mas como um “frio na
barriga”, uma vontade de “colocar a mão na massa”. Prazer não me faltava, tinha tanta certeza
do que fazer, mas tanta insegurança de onde partir. Quanta responsabilidade! Que sensação
indescritível!
Fui até a escola, conheci algumas professoras, a diretora, vice-diretora, a nova
professora era muito esperada, para que os alunos não ficassem sem aula. Conversando com a
professora da turma ela explicou-me um pouco sobre o funcionamento da escola, trocamos
alguns materiais, e conversamos acerca da turma, momento em que ela sinalizou algumas
informações e características dos alunos. Era tudo comigo agora.
Pensar a primeira aula não foi nada fácil, modifiquei várias vezes o planejamento, não
conhecia os alunos, mas em meu imaginário não faltavam idéias. Foram tantas pesquisas em
minhas anotações, em livros, um tempo de dedicação para a escolha das melhores atividades.
Tempo este que não disponho hoje com tanta freqüência.. Preparei a primeira aula e retornei à
escola, foi uma junção de ansiedades; a minha, a dos alunos, a dos pais, a da escola. Fui
levada até a sala de aula pela vice-diretora e apresentada aos pais e alunos. Chegou a
professora nova! Ouvia enquanto aproximava-me da sala, o coração batia forte e as mãos
trêmulas anunciavam/denunciavam todo meu nervosismo, principalmente porque, quando
ouvia Chegou à professora nova!, pensava o quanto ainda estava longe de mim, o quanto eu
não me sentia a professora nova, mas muito mais a nova professora.
Segundo Tardif para entender a trajetória de identidade do professor é necessário
(...) inseri-la imediatamente na história dos próprios autores, nas suas ações,
projetos e desenvolvimento profissional. (...) sua trajetória social e
profissional ocasiona-lhes custos existenciais (formação profissional,
inserção na profissão, choque com a realidade, aprendizagem na prática,
descoberta de seus limites, negociação com os outros, etc.), e é graças a seus
recursos pessoais que podem encarar esses custos e assumi-los. Ora, é claro
que esse processo modela a identidade pessoal e profissional deles, e é
vivendo-o por dentro, por assim dizer, que podem tornar-se professores e
considerar-se como tais aos seus próprios olhos. (2002, p. 107)
46
Eram tantos olhares inesquecíveis em minha direção, olhares esperançosos, cheios de
expectativas, repletos de ansiedade e confiança frente ao novo que agora se apresentava a
eles. Depositavam na professora nova, ou, eu diria melhor, na nova professora, sua chance de
sucesso, de vencer, de conseguir. A cada passo meu, sentia o peso da responsabilidade. Foram
tantas lembranças das minhas professoras da universidade, do que acredito; pensava em fazer
a diferença para aqueles alunos, a insegurança versava com o desejo de acertar.
Era professora formada, o diploma e o estudo me conferiam isto, mas eu não me via
como eles me viam, não sei dizer quanto tempo demorou para que me sentisse professora.
Acredito que meu olhar acerca da docência foi desencadeado em grande parte da travessia
entre a escola e a universidade, que fiz caminhando pelas ruas do bairro. Sempre em minhas
caminhadas ouvia de diferentes pessoas, alunos, pessoas conhecidas e desconhecidas que
freqüentavam a escola ou que me conheciam através de familiares: Oi professora! Oi, tu é
professora do Rafael, né! Tu dá aula para minha prima! Oi tia, eu estudo do lado da tua sala!
Oi professora, para onde a senhora vai?
Dentro da escola, vários alunos me chamavam de professora, não sabiam meu nome,
não me conheciam, mas se referiam a mim como a professora da escola. Eu, como não os
conhecia e não sabia quais eram alunos da escola, deixava-os muitas vezes me chamando sem
atender, atravessava o pátio e ouvia o chamado por uma professora, mas nunca achava que
era comigo, pois não imaginava que eles já me viam já como a professora da escola, visto que
eu não me via assim. Então, as crianças corriam em minha direção, me abraçavam, beijavam.
Como é bom receber o carinho da criança, seu acolhimento verdadeiro. Esses sorrisos, que
temos a oportunidade de presenciar, e o abraço apertado e sincero, com certeza, são uma das
preciosidades presentes nessa profissão!
Fui me constituindo muito através de seus olhares, de suas falas, de suas referências a
mim! Tanto que toda a vez que uma voz ecoa chamando uma professora eu atendo
imediatamente!!!
Tal processo de significação, de produção, socialização e apropriação de
sentidos, enfim, de constituição de uma realidade especificamente humana,
aconteceu e ainda acontece sempre marcada por aquilo que caracteriza as
relações sociais. São sentidos originalmente enraizados em uma realidade
partilhada por seres humanos, portanto sentidos que são ao mesmo tempo
singulares e compartilhados. (REIS, et al, 2004, p. 53)
Pude me ver por meio de seus olhares, de seus cumprimentos, com suas maneiras de
ver e entender as relações, também pude me olhar, me abalar, me alegrar... Seus olhares me
constituem como educadora, como alfabetizadora, como gente, como aprendiz! Convidam-me
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todos os dias para por meio de seus olhos, revisitar o bairro, a escola, o sofrimento, a alegria,
as relações sociais, os demais professores... Em um dia de aula na 6ª série um aluno me diz:
- O que está encarando professora?
Respondo que era apenas somente um olhar, ele respondeu dizendo:
- Professor quando olha não é boa coisa!
Em sua fala, é possível perceber o significado do olhar do professor ao aluno. O que
acontece para que esse aluno entenda nosso olhar dessa maneira?
Que olhar lançamos aos nossos alunos? O que projetamos? O que transparecemos? O
que desejamos? Como os olhamos? E como os alunos nos olham?
Por quê? Porque a escola e seus currículos, os ciclos, a didática, a prática
pedagógica e docente adquirem seus significados da centralidade que damos
ou não damos aos educandos. Do olhar com que enxergamos. Toda inovação
educativa tem de começar por rever nosso olhar sobre os alunos. Inclusive o
repensar de nossa auto-imagem docente tem tudo a ver com o repensar da
imagem que deles nos fazemos. Em grande parte nos imaginamos ser o que
imaginamos que nossos alunos são. (ARROYO, 2004, p. 56)
Quando assumi as turmas dos anos finais, trazia uma grande expectativa em meu olhar
e quando encontrei alunos com um olhar distante, vazio, com dificuldades em olhar para sua
própria vida... Senti-me desanimada. O que seria esse olhar?
Identifiquei-me e apeguei-me muito aos alunos da 5ª série, pois nosso convívio foi
mais intenso devido ao número maior de aulas em relação a outras turmas. Essa turma
apresenta grandes e sérias dificuldades de aprendizagem. Apenas dois ou três não eram
repentes de vários anos.
Na situação de avaliação era necessário fazer um trabalho com os alunos, então levei
um texto intitulado “O elefante e a estaca”, que fala sobre a importância da persistência para
alcançar o que se quer e de não se conformar com a situação que se coloca como única,
sempre é importante lutar. O texto pontua questões como as que descrevi e, partindo dessa
idéia, fiz questionamentos em torno dessa temática para que os alunos colocassem sua opinião
e o entendimento do texto. Para minha surpresa, a idéia assimilada pela grande maioria da
turma foi totalmente ao contrário.
As posições apresentadas foram totalmente pessimistas e descrentes, a maioria
menciona que não devemos botar o nariz no que não vamos conseguir arcar. Num trabalho
de interpretação que é baseado no texto, pergunto o contrário de Não posso e nunca poderei
(uma fala dita pelo personagem da história), em que os alunos escrevem nunca poderei e não
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posso e um aluno escreve de cabeça para baixo na folha a mesma frase, escrevendo assim ao
contrário e não o contrário.
Comuniquei à supervisora e conversei com ela sobre a turma, também conversei com
alguns professores e percebi que a reprovação era em massa.
Depois desses acontecimentos, decidi conversar com os alunos, dar uma sacudida
nessas pessoas, convivendo conformadas com a existência de um esteriótipo de reprovação e
ainda reafirmando-o. Sentindo-se na naturalidade e obrigação de um fracasso sem voltas. Não
vendo a situação da repetência como algo que possa ser revertido.
Chegando à aula, comecei a falar sobre o texto trabalhado, perguntando sobre o que
falava, indagando suas opiniões, era um grande silêncio, poucos respondiam. Falei que estava
preocupada com eles e disse que todos passamos por dificuldades, enfatizei que eu acreditava
neles, mas que era preciso que eles acreditassem, e não me deixassem acreditar sozinha.
Se não acreditasse em vocês, não sairia da minha casa todos os dias para dar
aula. Acredito no que faço e na força de cada um. Muitos professores
também já foram reprovados até chegar a dar aulas, mas o que faz uma
grande diferença na vida das pessoas não é o que elas não conseguem fazer,
mas o fato de não desistirem do que almejam, lutam por seus objetivos,
porque querem uma vida melhor, querem um trabalho melhor, querem
estudar, chegar à faculdade, querem ser felizes, mas é preciso acreditar em
nós mesmos. (Diário de Campo - 25/04/06)
Meu objetivo era suscitar nos alunos a importância dos sonhos, de ter objetivos, metas
a serem conquistadas, percebendo que vivemos as regras ditadas por um regime social
capitalista, e assim vivemos em situações desiguais e em modos de produção excludentes e
injustos. Ninguém falava, emudecidos, olhos estalados, assustados, surpreendidos...
A educação ambiental que incorpora a perspectiva dos sujeitos sociais
permite estabelecer uma prática pedagógica contextualizada e crítica, que
explicita os problemas estruturais de nossa sociedade, as causas do baixo
padrão qualitativo da vida que levamos e da utilização do patrimônio natural
como uma mercadoria e uma externalidade em relação a nós. (LOUREIRO,
2004, p. 16)
Senti que nesse momento desabafei, e ao mesmo tempo que os questionava,
questionava a mim também. Afinal, o que estava fazendo ali? De que forma poderia fazer
algo diferente? Sentia-me de mãos atadas, como se não conseguisse fazer nada, impotente
frente àquela situação! Se pudesse, daria um grande grito! Chorava! Alguma coisa é preciso
fazer, culpá-los não adianta, é mais fácil, mas não leva a lugar algum. Muitos professores
acabam justificando tamanho e triste fracasso pela falta de dedicação, pela pouca importância
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que os alunos dão aos estudos; pode ser, em parte, isso, mas certamente essa é uma das peças
de uma problemática muito maior.
Com certeza, vejo que minha fala, solta, desconexa, solitária, não faria com que eles
conseguissem ter a noção dos fatos ou leituras críticas; na verdade, eu falava mais pela minha
necessidade, indignação, susto... Era preciso dizer! Libertar meu pensamento!
Não conseguia admitir, não conseguia conviver com este conformismo! Ao mesmo
tempo, refletia e questionava-me sobre a minha fala.
Mas será que não exigi demais daqueles alunos? Será que falei sobre a
minha ótica e não respeitei seu contexto de vida? Não, mas que contexto é
este em que as pessoas parecem perder a vivacidade, contexto de tristeza e
fracasso é preciso reverter e não aceitar!! Pode ser o que for, mas não posso
admitir que convivam comigo no exercício de minha profissão pessoas que
eu admita e comungue com a idéia de não terem potencialidade, de ser assim
mesmo, fazer o que... jamais! (Diário de Campo- 25/04/06)
Foi um grande desabafo, um intenso repensar da minha profissão. Afinal, estava
conseguindo cumprir com minha função e com o que acredito ser educadora? Estava satisfeita
com meu trabalho? Não tinha formação para atuar com adolescentes, minhas experiências
eram com crianças e adultos, no contexto de educação formal. Como lidar com essa situação?
Foi uma junção de diferentes e importantes fatores, como os que explicitei, que fui
repensando meus limites, o que acredito e até onde conseguiria fazer algo. Com certeza, a
profissão docente foi repensada por mim!
Não é possível dormir à noite sabendo que vidas que passam pela minha vida e pela
responsabilidade de minha profissão podem ter a oportunidade de uma mudança de vida... “O
que terá acontecido a essas criaturas? O que terá acontecido aos professores? A escola? É
hora de acordar, é preciso fazer alguma coisa....” (Diário de Campo-25/04/06)
Quando olho para essa situação percebo o quanto, em muitos momentos, é difícil ao
educador exercer a “coerência entre o pensar, o falar, o sentir e o fazer.” (PRONEA, 2005, p.
37) um dos princípios previstos para a Educação Ambiental, que, nas palavras de Freire, seria
o pensar certo,“uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante
dos outros e com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos.(1996, p. 54)
Esse sentimento de impotência, de vivenciar uma realidade conhecida por tantos, mas
experienciada nessa intensidade por poucos, mexe com meu olhar, com tudo o que vejo, o que
penso, o que sinto. Passa pela minha vivência humana, por minhas crenças, pelo que sou!
O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos
homens não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A
libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que
se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É
50
práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para
transformá-lo. (FREIRE, 1987, p. 67)
Não pude continuar a trabalhar com os anos finais do ensino fundamental devido ao
pouco tempo para o mestrado, ao cansaço físico, ao espaçamento do horário das aulas e, com
certeza, pelo forte impacto emocional que vivenciei nesta situação.
Porém, minha maior preocupação foi com os alunos da 5ª série. Minha saída poderia
significar que não acreditava mais neles, fiquei com medo de que pensassem assim. Então, fiz
uma mensagem com o nome de cada um e distribui no final de minha última aula.
Eles estavam bem agitados na aula, no final disse a eles que não poderia dar mais
aulas devido ao horário e aos meus estudos, expliquei meus motivos pessoais reforçando que
continuava a acreditar neles. Muitos vinham e agradeciam, outros riam, outros debochavam
dizendo que queriam chorar, poucos demonstravam atitudes afetivas. Terminou a aula, saí da
sala para o outro professor entrar, quando, de repente, vi os alunos na rua, fora da sala de aula,
vieram abraçar-me, agradecer-me, pedindo para voltar e visitá-los, numa demonstração de
carinho presa, guardada, escondida, que só pôde ser demonstrada fora da sala de aula. Por
quê? Pela vergonha? Talvez uma fragilidade que não pode ser demonstrada? Na sala não é
lugar da afetividade? Professor é intocável?
Fiquei feliz com suas cartas, feitas às pressas. Algumas lágrimas rolavam como se
uma amizade tivesse partido. Nossa! Que turbilhão de emoções!
Diferentes e importantes aspectos conjugaram a minha escolha pela saída dessa
atividade desafiadora e riquíssima para meu processo de constituição enquanto educadora.
Ser professor é conviver diariamente com a emoção, com o pensar rápido. Nossa
profissão lida com gente e por isso lida com o imprevisto e o improviso, com o planejamento
e o encorajamento, com o afeto e o feito, em meio ao prazer, a alegria, com sorrisos,
descobertas e construções; mas também lida em meio à dor, com o desamor, com a raiva, com
a agressividade, com a fome e com frio. É vivenciando todos esses sentimentos que vamos
ressignificando-nos, constituindo-nos, questionando-nos e buscando novamente, em uma
nova situação, fazer a diferença!
Nessa emaranhada teia de relações, é preciso lidar com as “parcerias” e também com
as discordâncias existentes em todos os espaços, principalmente e alegremente no educativo.
Em minha prática, percebi o quanto é necessário discutir as práticas pedagógicas e construir
no coletivo, pois é nesse espaço de discussão e reflexão que torna-se possível a construção de
saberes... Parece que instaura-se na escola uma prática que te leva “inconscientemente” a
51
fazer coisas numa rotina, será que poderia dizer: em numa “inércia em movimento?” Na
verdade, é difícil expressar a complexidade que é a escola, suas relações e funcionamento. É
um exercício exigente de criticidade e problematização, mas que oportuniza a busca por novas
indagações.
As coisas da educação têm sempre dois lados. Pelo menos dois lados. E os
educadores têm de estar atentos e vigilantes, cultivando o cepticismo, com
uma mão, e a utopia, com a outra. O cepticismo que vem da consciência de
sabermos que a educação é sempre um dos espaços sociais no qual se produz
a desigualdade e a discriminação em relação a outros [...]Temos que estar
atentos e vigilantes. A utopia que nos vem da consciência de sabermos que
tudo é ainda possível, que há uma ciência a reiventar, que há uma escola a
transformar. Temos que ser ousados e corajosos. (NÓVOA, 2003, p. 14-15)
É preciso estarmos atentos e vigilantes, é preciso coragem, enfrentamento, buscando
algumas respostas a esse grande emaranhado de ligações, compreendo que as relações e
percepções do que é a escola foram construídas historicamente e na prática diária elas estão
imbuídas de forma mascarada. É nesse sentido que o estudo, as reflexões, o olhar as nossas
práticas são imprescindíveis no contexto escolar. Assim, é preciso tempo para planejar aulas,
é preciso o momento da confraternização para a troca de tantas emoções, sentimentos com
que lidamos no dia-a-dia, como também é preciso tempo para expor os cepticismos e as
utopias, como nos diz Nóvoa. É imprescindível, questionar nossas próprias falas e posturas,
visto que somos todos seres humanos, errantes, aprendentes, constituidores do nosso saber-
fazer; e dessa forma a prática só se torna problematizadora se nós abrirmos espaço para tal,
pois a problematização e a criticidade são uma prática que hoje buscamos construir com o
aluno, mas que pouco ainda nós próprios conseguimos ter.
Frases como: E se não der certo? E se eu não conseguir? Mas eu aprendi assim e assim
sempre deu certo!, são comuns, mas precisam ser revisitadas. A escola não está feita ou
pronta, como assim foi aprendido, mas ela é feita e refeita todos os dias, em nossas práticas.
Não podemos educar da mesma forma se nossa sociedade já não é mais a mesma, se
nós convivemos em um mundo diferente, então, por que idealizar uma forma de educar
sempre igual? A educação deve acontecer em seu espaço-tempo, é preciso pensar em
educações e não em educação, é preciso pensar em estudantes, e não em um estudante,
idealizado e impregnado no ideário de muitos professores. Essas práticas, lembranças, desejos
precisam ser ditos, ecoados, precisam sair do imaginário, dos corredores e tomar corpo,
forma, para serem libertados pela palavra e posteriormente incorporados para a ação. Um
trabalho sozinho, escondido entre as quatro paredes de uma sala de aula, torna-se vazio, triste
e solitário. O professor sente-se sozinho para enfrentar os grandes dilemas e desafios que uma
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turma de alunos apresenta a todo instante, sente-se sozinho e culpa-se por não fazer um
trabalho como gostaria, ou como vivenciou no curso que participou, mas sente-se inseguro
para dar o primeiro passo. E assim práticas pedagógicas, muitas vezes ricas em construção e
aprendizagem, ficam esquecidas e apagadas frente a uma educação decodificadora, não
pensante.
O professor, em algumas situações, não é valorizado socialmente, mas reafirma essa
desvalorização e banaliza o seu saber sem dar-se conta. Não é valorizado socialmente, e
precisa aprender primeiro a valorizar o que faz, e valorizando o que faz buscar novas formas
de o fazer. Não é possível continuar docilmente reafirmando um padrão de educação
alienadora, e bancária, sem ao menos termos a consciência disso. Escrever, se ver como um
estudioso, como um produtor de saber é fundamental para uma prática diferenciada, para o
prazer da profissão, para a abertura a novos horizontes.
Certo dia fui até a rodoviária comprar uma passagem para viajar, chegando ao guichê,
uma agradável surpresa, reencontro um colega que estudou comigo nos anos finais do ensino
fundamental, atendendo no guichê. Alegremente conversávamos quando ele me perguntou
que profissão havia escolhido seguir:
- “Sou professora, fiz Pedagogia e atuo como alfabetizadora em uma escola pública,
faço mestrado em Educação Ambiental....”
Ele me olha com certo repúdio e surpresa, ousaria até dizer, tristeza, decepção...
- Eu não acredito que tu és professora!! Por favor!! Como podes... mas por quê?? Tu é
doida!!
Respondi a ele, mas meus argumentos e tentativas de demonstração da importância da
minha profissão foram ineficientes frente a sua repulsa à docência. Esse olhar em relação aos
educadores é muito freqüente, cuja profissão, que se encontra extremamente desvalorizada
perante diferentes segmentos sociais, acaba sendo menosprezada pelos cidadãos. É como se
não valesse a pena ser professor, causando nas pessoas um sentimento de não entendimento e
não aceitação da escolha de outros para tal exercício, como foi a minha escolha.
No universo distante e pouco conhecedor da realidade escolar, tecem-se comentários e
ideários acerca do trabalho educativo como algo sempre igual, e por isso sem ser visto como
profissional, porém, nas práticas pedagógicas, o exercício de ação profissional é
extremamente múltiplo, repleto de dinamismo e responsabilidades éticas e compromissadas.
Trabalhar com mais 20 horas, ou seja, com carga horária total de 40h semanais, é uma
prática muito comum aos professores, podendo ser na mesma escola ou em escolas distintas,
ou, em terceira hipótese, dividida entre escolas estaduais, municipais ou particulares. Apesar
53
de o concurso prever 20 horas de trabalho semanais, são poucos os professores que não
passam a atuar com convocações, como são chamadas, nas escolas municipais.
Certamente, muitos fatores distintos provocam a escolha por mais 20 horas, sendo o
principal os baixos salários, pois são diferentes sonhos e conquistas a serem realizados por
uma classe de trabalhadores e trabalhadoras que há muito vem sendo desvalorizada e que
encontram em outros turnos de trabalho a possibilidade de garantir melhores condições de
vida.
Eu não poderia passar por essa imersão na escola sem ter vivido ou ganhado as 40
horas! Relutei, inicialmente, entendendo que minha prioridade como mestranda e
pesquisadora não me possibilitavam outras atividades.
A primeira vez que recebi o convite da escola foi para assumir uma turma pela manhã,
pois havia uma professora doente estava tirando licença de saúde. A diretora me fez o convite,
mas minhas aulas no mestrado ocorriam duas vezes por semana pela manhã, então, não pude
aceitar. Depois de um mês, a diretora me convidou para assumir turmas de história, que ao
final do ano ficariam sem professor devido a um problema de saúde, seria um mês, mais ou
menos, de aula, encerrando a matéria deixada pela professora. A professora, não tirou licença
e retomou suas atividades normalmente. Logo após, a diretora refez seu convite, agora para
que eu trabalhasse como auxiliar de secretaria, pois faltavam quase dois meses para o
encerramento do ano e o volume de trabalho aumentava nessa época. O horário de trabalho
não prejudicava as aulas no mestrado e não comprometia minha atuação com a turma da
tarde, entã,o decidi aceitar. Foi muito satisfatório realmente, aprendi ainda mais o
funcionamento da escola. Em seguida vieram as férias, transcorreu tudo tranquilamente.
No ano seguinte, fui convidada a assumir o ensino de religião de 5ª a 8ª séries, e de
História e Geografia de uma 5ª série. Levei um grande susto e expliquei minha formação.
Disse que era complicado, pois não tinha conhecimentos específicos. A diretora voltou a me
explicar que é uma turma nova, do turno intermediário, e por isso se encontravam sem
professores, disse que confiava em mim e no meu trabalho, sabia que eu desempenharia essas
atividades de forma dedicada e intensa.
Fiqui de mãos atadas, sem saber o que responder, mas diante da situação pensei na
responsabilidade e pedi todo o auxílio da escola. Ela me deu total apoio e se dispôs a ajudar-
me no que fosse necessário. Pensei rapidamente, várias coisas passaram nesse momento,
primeiro a confiança depositada em mim, segundo a possibilidade de aumentar a renda,
devido aos baixos salários, e a possibilidade de ter uma nova experiência. Aceitei o desafio!
54
Comecei a buscar material, a programar as aulas e iniciei antes mesmo de começar
com minha turma do primeiro ano.
Depois de dois meses, inicie o trabalho com os alunos do 1º ano e passei a exercer
essas duas atividade ao mesmo tempo. O horário começou a ficar extremamente puxado,
meus horários ficaram repletos de “gavetas”, horas livres por muito tempo; às vezes não é
meu horário, nem o dia da disciplina e preciso antecipar as aulas e isso dificultava minha
organização. Já estava rouca, perdi a voz, ficava o dia em pé e falando. Chego a noite em casa
sem forças para o dia seguinte. A escola fica do outro lado da cidade, em relação à minha
casa. É muito cansativo!
Não tenho mais tempo para o mestrado!!! Meu objetivo é estudar, é
aprofundar meus estudos, juntando vários aspectos, depois que conversei
com a diretora percebi objetivamente que irei deixar essa minha desafiante e
exaustiva loucura. É a escolha mais sensata e inteligente, foi válido pela
experiência! (Diário de Campo – 03/05/06)
Quando me remeto a esse momento que vivi, penso o quanto realmente mergulhei na
profissão docente e como vivi intensamente seus dilemas e desafios, inclusive assumindo
papéis nunca antes imaginados por mim e logicamente criticados também. Mas, hoje, meu
pensamento se retifica, pois tenho ciente a vivência que me faz ter ainda mais presente os prós
e contras de assumir a responsabilidade de produzir conhecimentos quando as bases teóricas
destes são frágeis.
O saber e o sabor de ir se fazendo professor(a) têm um tempero de mel e fel,
em que nossas dúvidas e incertezas deverão ser suficientes para nos colocar
num lugar do suposto saber provisório. E, desse modo, vamos nos tornando
operantes e aprendentes do caminho a ser trilhado, juntamente com muitos
outros. [...] Os caminhos e os descaminhos objetivados nas imagens e nos
dilemas desta trajetória vão tecendo uma complexidade de significações e
representações. Como uma espécie de tessitura simbólica, vamos tramando
conceitos a partir de diferentes ordens de saberes que convergem na nossa
construção como professores (as). (PERES, 2006, p. 56)
55
6 VIVENCIANDO A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NOCONTEXTO EDUCATIVO:
DESAFIOS, LIMITES E POSSIBILIDADES
“O ensino é a actividade mais apaixonante, e
a mais necessária, nos dias que correm. Com
as suas dificuldades e com as suas imensas
possibilidades. Os professores não são anjos,
nem demônios. São apenas pessoas. E já não é
pouco. Não são super-homens, nem super-
mulheres. São profissionais que se dedicam a
uma missão para qual têm que se preparar
devidamente...”.
Antonio Nóvoa
56
Trago, neste capítulo, as idéias norteadoras das minhas escolhas práticas e
pedagógicas, relatando minha práxis e buscando assim tecer redes de ligação de uma
educadora ambiental, alfabetizadora e pesquisadora de sua prática, com os ritos e mitos desse
processo, buscando lidar, questionar e compreender entre anjos, demônios e super-heróis as
diferentes facetas de um processo educativo na alfabetização.
Como educadora ambiental, passo a atuar no cenário em que acredito que mudanças
podem acontecer, então, o grande desafio é fazer, na prática, com que os alunos possam
vivenciar um processo de autonomia e criticidade. Já não é possível apenas falar de uma
realidade que existe, agora tenho a responsabilidade de, pelo menos em minha prática, buscar
a educação problematizadora em que acredito.
Deixo claro que nesta narrativa meu objetivo não é apresentar essas ações como um
modelo de educação ambiental na escola, mas, sim, trazer as experiências que foram me
constituindo como educadora ambiental, com seus desafios, obstáculos e conquistas, como
uma prática educativa. É esse conteúdo, aparentemente “igual”, que precisa ser discutido,
teorizado, interpretado, avaliado pelo professor. É a atuação diária do professor no seu campo
de investigação, não em atividades mirabolantes, diferentes ou únicas que são categorizadas
como Educação Ambiental, mas na construção diária e comprometida do processo ensino-
aprendizagem, que vise à construção de uma postura crítica e transformadora da realidade
social, pautada no diálogo, no respeito, na solidariedade, na cooperação e na ressignificação
das relações sociais e das práticas educativas.
Ser educadora ambiental, nesse sentido é uma construção permanente e dinâmica que
se configura a cada novo grupo de trabalho. Segundo Carvalho, ser educador ambiental é uma
identidade que se configura em um espectro de variações e sempre construída e reconstruída
na relação educativa.
[...] fazer EA não garante uma identidade pacifica de educador ambiental ou
pelo menos construída com certa homogeneidade, como se poderia supor em
outros campos mais consolidados. Ser educador ambiental é algo definido
sempre provisoriamente, com base em parâmetros que variam segundo o
informante, suas filiações, moldando-se de acordo com a percepção e a
história de cada sujeito ou grupo envolvido com essa ação
educativa.(CARVALHO, 2005, p.58-59)
O sabor de saber que a cada ano, no exercício dessa profissão, irei assumir uma turma
de alunos e vivenciar e produzir aprendizagens encanta, seduz, apaixona ainda mais. É minha
estréia na profissão, é a minha vez de começar a escrever e protagonizar a minha história
como educadora.
57
Segundo Tardif, os saberes docentes não se configuram em saberes já constituídos,
mas formados de um saber plural, oriundos de saberes da formação profissional, curriculares e
experienciais.
Tenho muito presente a lembrança dos meus professores, recordo suas falas e ações.
Essas lembranças ficam ainda mais fortificadas, pois agora preocupo-me com as lembranças
que os alunos irão guardar de mim. O que ficará marcado em suas memórias?
Acredito que a constituição do sujeito acontece sempre na relação eu-outro. Concordo
com Vygotsky (1996) e Molon (2003), quando dizem que “O eu não é sujeito, é constituído
sujeito em uma relação constitutiva eu-outro no próprio sujeito, essa relação é imprescindível
para a constituição do sujeito, já que para se constituir precisa ser o outro de si mesmo.”
(MOLON, 2003, p. 112)
Assim, percebo o quanto a relação com o outro suscitou novos olhares, significados,
afetividades, escolhas e subjetividades; ao constituir outros nas relações eu fui me
constituindo em meio a elas. Entendo que
... a subjetividade manifesta-se, revela-se, converte-se, materializa-se e
objetiva-se no sujeito. Ela é processo, que não se cristaliza, não se torna
condição nem estado estático e nem existe como algo em si., abstrato e
imutável. É permanentemente constituinte e constituída. Está na interface do
psicológico e das relações sociais. (MOLON, 2003, p. 119)
6.1 Início do caminhar na docência, relações constitutivas nos trajetos com meus
primeiros alunos
Neste momento, penso ser necessário relatar e problematizar a minha prática
pedagógica, narrando inicialmente as vivências com os primeiros alunos com quem trabalhei
e, logo em seguida com os alunos que realizei a coleta de dados para este estudo.
A primeira prioridade na relação com os alunos foram a preocupações em fazer com
que o espaço da sala de aula não fosse punitivo, mas sim um ambiente onde as crianças
sentissem liberdade para aprender. Para tanto, busquei mostrar para os alunos que o erro faz
parte do processo de todos que se predispõem a aprender alguma coisa. Conquistar a
confiança deles, no entanto, levou um tempo. Eu tentava me aproximar, conhecê-los, e eles
fechados. Não faziam nada que não soubessem para não errar; se não sabiam, nem tentavam.
Lágrimas, todos os dias rolavam, e a ansiedade era enorme, tanto neles quanto em
mim, pois só poderiam perder o medo confiando em mim e eu só conseguiria essa confiança
58
mostrando-me a eles, dando oportunidade de me conhecerem. Lembro-me de chegar em casa
aflita, pois por algum tempo foi difícil estabelecer um relação tranqüila com as crianças. Eles
estavam muito resistentes a um trabalho construtivo e eu resistente a eles, a um trabalho
voltado ao modelo tradicional de ensino.
Aprendi na prática diária mesclar as atividades que fazem parte de minhas escolhas
como educadora em contraponto às atividades tão solicitadas pelos alunos, como a cópia, por
exemplo. Comecei a perceber que o significado de escola para os alunos é o trabalho
cansativo, como a cópia interminável. Imersos no mundo social das representações do que é a
escola, os alunos estão reproduzindo o que experienciam com os familiares, amigos, televisão,
etc. Fica presente essa visão na fala do aluno que questiona:
- Ô professora, quando é a gente vai começar a estudar?!!!
Afinal, ir para a escola e não “fazer nada” não pode estar certo, escola não é assim,
diria ele se expusesse todo seu pensamento. Como quase não usávamos o quadro, os alunos
muitas vezes deixavam de realizar atividades com jogos para copiar cartazes da sala de aula,
trechos da cartilha e avisos fixados no quadro por outras turmas. Os alunos demonstravam
suas resistências, que para mim se configuravam em grandes obstáculos como professora.
Mas, com respeito e tranqüilidade, aos poucos fomos negociando nossas expectativas e
desejos.
Todavia o processo educativo é permeado de complexas relações e as reflexões dessas
atitudes e posturas trouxe-me aprendizados. Precisei buscar formas, trilhar alguns caminhos
para então negociar as atividades, fazia um pouco do que eles me pediam e aos poucos
realizava as atividades a meu ver necessárias, buscando respeitar os alunos e minhas escolhas
metodológicas do processo ensino-aprendizagem.
Vivemos em um mundo rodeado de letras e mesmo não conseguindo ler é possível
identificá-las, porém, deparei-me com alunos que “pareciam” não viver em um mundo
letrado, que não tinham contato com livros de histórias, revistas, jornais, o que inicialmente
gerou muita preocupação em mim, muito desconforto, pois nunca tinha enfrentado a
possibilidade de trabalhar com crianças que não conseguiam ver a escrita como parte de suas
vivências cotidianas.
A matemática, por sua vez, dominavam com muita propriedade, faziam contas de
somar, dividir, subtrair, conheciam muitos números, tanto na sua contagem quanto na sua
representação. Imagino que essas situações ocorram devido a questões sociais, em que
determinadas classes vivem à margem da sociedade, e as necessidades de suas vivências e/ou
sobrevivências fazem com que os números apareçam com mais significados do que as letras.
59
Meu processo de alfabetização foi diferente, o estágio que realizei no curso de Pedagogia
também; como educadora precisei buscar novos horizontes e significados para trabalhar com
essas turmas de classes populares.
Desenvolvi meu trabalho com muita ansiedade, buscando parcerias, pesquisando, e
com o peso de uma “responsabilidade em alfabetizar”, sentimento que acredito ser das
professoras alfabetizadoras, e por isso o grande medo da primeira série e a grande recusa em
trabalhar com turmas de alfabetização. Felizmente pude contar com a ajuda amigável e
companheira da professora Cleuza Maria Sobral Dias, que me trazia sempre novos horizontes,
possibilidades, e por isso minha enorme admiração por sua paixão em alfabetizar, que brota
por seus sorrisos, seus olhos, pelo coração.
Nas minhas atividades, fui descobrindo a realidade dos alunos, seus modos de
compreender o mundo, as relações, os diferentes significados que atribuíam às coisas; e
também convivendo com surpresas, sustos, descobertas....
Na sala de aula já havia um alfabeto, porém ele era desconexo de nosso contexto.
Então, propus aos alunos que nós mesmos construíssemos um novo alfabeto, com os objetos
conhecidos e imersos em nossa realidade, buscando trazer o saber produzido pelos alunos fora
da escola. Distribuí a cada um uma letra e assim começamos a refazer e ressignificar nossa
relação com esses saberes, tão escondidos, tão aparentemente despercebidos, mas muito
próximos, desde que o espaço seja oportunizado. Nessa atividade de construção de um novo
alfabeto, um aluno, que ficou com a letra S desenhou um lago que Secou, perguntei o que
significava e ele me respondeu:
- Aqui tinha um lago que secô!
Outra menina que tirou a letra T desenhou um objeto como se fosse uma nuvem,
achando que ela tinha confundido as letras, perguntei qual era o seu desenho e ela me
respondeu: - Uma teia de aranha!
Em outro momento, pedi aos alunos que escrevessem uma frase com algumas gravuras
que receberam, um aluno então me procura para mostrar a frase que criou. Olhando sua
escrita e não entendendo o que escreveu peço a ele que releia o que escreveu. Minutos depois
ele volta a me procurar e lê para mim o que escreveu rapidamente:
- Camaum da dicume. (Cá mão da di cume/ Com a mão da de comer.)
De acordo com Russo e Vian,
.... o mais importante para a criança é primeiro, expressar-se. Ela constrói
um texto sem muito significado para nós, mas é capaz de “ler” exatamente a
mensagem que quis passar, e mesmo as palavras mal escritas, rabiscos e
60
desenhos iniciais deixam de ser tentativas de escrita para se tornarem
escritas reais. (2001, p.44) (grifo do autor)
A linha do pensamento, da criatividade e do raciocínio das crianças não pode ser
desconsiderada, elas expressam suas vivências e seus saberes. A partir daí comecei a achar
uma forma de me aproximar, de aos poucos fazer com que eles me mostrassem o que sabiam
sem medo do erro e da censura.
[...] as crianças pensam sobre a propósito da escrita, e que seu pensamento
tem interesse, coerência, validez e extraordinário potencial educativo. Temos
de escutá-las. Temos de ser capazes de escutá-las desde os primeiros
balbucios escritos (contemporâneos de seus primeiros desenhos).
(FERREIRO, 2002, p. 36)
Ao mesmo tempo, ensinavam-me que a língua é viva e só tem função se for para a
comunicação, além disso, que era preciso respeitar a diversidade de suas culturas, de seus
modos de vida.
Em um dia de aula, após contar uma história sobre a poluição das ruas, dos esgotos e a
importância de nossas ações para cuidar do ambiente, um menino me diz:
- Mas por que eu tenho que jogar no lixo se ninguém joga? Eu jogo no chão quando
ninguém vê(dá risadas).. Capaz que só porque joguei vai alagar a rua! Ah é! E eles não
fazem nada eu também não vou fazê! Sô coro eu então!
Como é difícil falar em cuidado com o meio ambiente, quando toda a vivência
fortemente consolidada fora da escola, mostra às crianças, pela experiência, que esta não se
configura como uma prática importante.
O que espera-se da escola é que contribua para que as crianças cresçam na
vivência de valores e não apenas na sua aceitação e/ou aprendizagem, até
porque não se ensinam valores. Há que vivê-los e de preferência em
comunidade. É esse viver em comunidade que faz da criança um ser
integrante e construtor de mundos. (BARCELOS, 2004, p.40)
Compreender que a falta de cuidado com o bairro afeta a nós próprios e aos demais
sujeitos planetários é uma tarefa que parece simples, mas que é de grande complexidade e
precisa estar presente na escola, visto que é de tentativas, acertos, buscando caminhos que
encontramos formas de problematizar, debater e mostrar a nossa importância enquanto
homens e mulheres com responsabilidade para uma sociedade sustentável. Barcelos ressalta
essa dificuldade de tratar com questões ambientais no cotidiano escolar, sendo um desafio a
todos e todas
...que acreditam que a educação tem um papel importante neste processo é:
como tratar destas QUESTÕES também no cotidiano da escola. É buscar
maneiras, metodologias, que nos possibilitem incorporar em nosso FAZER
61
PEDAGÓGICO COTIDIANO a discussão sobre as questões ambientais e
ecologia. (2003, p. 82) (Grifo do autor)
Uma oportunidade de trabalhar com as questões sócias, ambientais e ecológicas no
meu fazer pedagógico surgiu quando estava sendo implementada na escola a metodologia de
projetos de aprendizagem, o Escuna. Em minha turma, o interesse de pesquisa dos alunos
eram os meios de transporte, muitos instigados como os aviões voam, como o barco não
afunda, etc... Para alfabetizar, fui trabalhando com todas as palavras advindas desse universo,
desenvolvendo a escrita de acordo com que as letras apareciam nas palavras, ao mesmo tempo
que dialogávamos questões como a poluição do ambiente, as causas disso e as possíveis
soluções.
Entendo a aquisição da escrita e da leitura como uma construção, em que a criança vai
perfazendo um caminhar com diferentes hipóteses do que seja escrever, assim, torna-se
primordial que seus entendimentos sobre leitura e escrita estejam presentes no ambiente
alfabetizador como potencialidades do que se deseja representar e não como erros da criança
que ainda não está “pronta” para escrever. Segundo Ferreiro (2000), “Escrever não é
transformar o que se ouve em formas gráficas, assim como ler também não equivale a
reproduzir com a boca o que o olho reconhece visualmente.” (p.55)
Mas são através de tentativas reais de escrita que se constrói o conhecimento sobre a língua,
que não é fechada e sem movimento, mas é viva e precisa ser utilizada em sua função social,
“a língua escrita é muito mais que um conjunto de formas gráficas. É um modo de a língua
existir, é um objeto social, é parte de nosso patrimônio cultural.” (FERREIRO, 2000, p. 103)
Em uma reunião de professores, explicitei a forma como trabalhava, ressaltando que
buscava partir de temáticas de interesse e curiosidade dos alunos, surgindo assim palavras que
eram escritas na ordem em que se apresentavam, e daí surgiam as atividades como textos
coletivos, alfabeto móvel, caderno dicionário, etc.
Uma das colegas relatou que em seus 10 anos de alfabetização trabalha com o método
silábico, pois não se sentiu segura para trabalhar de outra forma. Mesmo certa de meus ideais,
mas com tantos medos frente a toda experiência de minhas colegas, comecei a questionar-me:
será que eles iriam ler? Conseguiriam aprender a escrever? Eu teria a segurança dessa
professora em meu trabalho?
Com todas essas situações ocorrendo – de forma muito nova para mim – dediquei-me
de forma muito intensa aos alunos, no intuito de atendê-los e entender todas essas situações
agora postas. Buscando fundamentar meu trabalho a cada dia e tendo a certeza de que não
conseguia fazer diferente, mesmo com a aparente “receita do sucesso”, tenho clareza da
62
responsabilidade e de toda a expectativa frente à escola e aos pais dos alunos. A escola
sempre me apoiou e respeitou minha forma de trabalho, sempre me deu liberdade, confiando
em meu trabalho e abrindo espaços nesse processo de formação de minha identidade
profissional. Ao mesmo tempo, as demais professoras trabalhavam com o método silábico,
com exceção de uma professora. Fui procurá-la para tentar uma aproximação, trocar algumas
idéias. No entanto, essa professora revelou um estilo de trabalho mais voltado para uma
prática individual, não se mostrando disposta, naquele momento, a eventuais planejamentos
em conjunto.
Dentro desse pouco tempo, fui descobrindo e construindo diferentes saberes, que
Tardif (2002) denomina como saberes experienciais, que “brotam da experiência e são por ela
validados. Eles incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e
habilidades de saber-fazer e de saber-ser” (p. 39), como a organização do tempo e a escolha
de atividades, os registros em cadernos de chamada, o sentimento de frustração quando
percebi o grande número de repetentes; diferentes movimentos próprios da ação educativa e
que são vividos e desvelados no dia-a-dia de convivência nesta.
Em uma turma de 27 alunos reprovaram oito, o que para mim era a continuidade de
um “funil social” da alfabetização. O sentimento de culpa e de fracasso enquanto profissional
foi inevitável; e essa realidade não era somente da minha turma, mas de todas as turmas, o que
me preocupou ainda mais. Partindo dessa vivência, passei a entender com mais propriedade o
que tanto lia sobre as condições sociais, políticas, econômicas, culturais e pedagógicas. Não
acredito que o meio social diga, ou dite, de antemão o sucesso ou o fracasso de uma pessoa,
porém, certamente a situação tem sua influência positiva ou negativa nas experiências dos
sujeitos, e nas expectativas dos professores e dos familiares.
Por isso, concordo com Vygotsky (1993) quando ele expõe a importância de
mediações qualificadas, que vão sendo constituídas no sujeito partindo da qualidade de suas
relações e das práticas pedagógicas, assim, a qualidade das relações estabelecidas podem
possibilitar sujeitos mais críticos, afetivos, autônomos, solidários... E quando me remeto à
qualidade das relações sociais, acredito que toda relação que nos possibilite novas formas de
pensar e problematizar o mundo são mediações qualificadas, que não acontecem somente em
contextos de educação formal, mas em todos os espaços vivenciados e de diferentes formas.
Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Todas
as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro no
nível social, e, depois no nível individual; primeiro entre pessoas
(interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). [...]
Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos
humanos. (VYGOTSKY, 1991, p. 64)
63
Entendo que a escola tem um papel social muito importante na vida de todo cidadão,
principalmente nos alunos proveniente de classes populares, visto que é dentro da instituição
escolar que o aluno tem a possibilidade de desenvolver relações qualificadas que oportunizem
novos modos de pensar e entender a realidade social, uma forma de pensar diferente sua vida,
compreendendo o contexto em que vive e buscando através da educação novas formas de
vivência e cuidado com esse meio, novos entendimentos, comportamentos a fim de ter
melhores condições de vida e de sucesso em um mundo tão competitivo e em um mercado de
trabalho tão globalizante, que deixa de fora aqueles que deveriam ter prioridade, mas que
ficam, em muitas ocasiões, à margem de uma vivência social realmente politizada. Assim, é
na prática pedagógica cotidiana que podemos elucidar, dar outros significados às vivências
rotineiras.
Quando falo em possibilidades de mudança incluo as mudanças que vão desde as
relações na sala de aula até as diferentes instâncias do poder público, com políticas públicas
que abram espaços para que ocorram efetivas mudanças no repensar a educação, com respeito
e comprometimento de todos que a fazem. Sei que é um processo longo e árduo, mas as
mudanças são necessárias.
Percebi, junto com a essas crianças, que um ano foi pouco, e fiquei esperançosa
quando rumores diziam que no próximo ano haveria a implementação do ensino fundamental
de nove anos e que assim as crianças teriam dois anos dedicados à alfabetização. Dentro do
contexto em que vivi, senti que essa forma de organização seria positiva, visto que é possível
trabalhar o universo da escrita de forma intensa e efetiva.
No meu primeiro ano de trabalho com alfabetização em turma de primeira série, senti
a grande necessidade de um tempo maior para desenvolver com os alunos um trabalho mais
intenso, em que realmente fosse possível mergulhar no mundo da escrita e não somente
banharmos superficialmente e ficarmos olhando o restante do mar sem poder ir além. Esse
sentimento cresceu à medida que percebi o quanto um ano era pouco para tantas prioridades
das crianças, sabia que os alunos ainda não entendiam o sistema da escrita, que precisariam de
experiências com diferentes linguagens como a música, o canto, a fala, a expressão corporal, a
pintura, e também a escrita, mas que se configura como mais uma das linguagens e assim
tratada como uma decorrência de uma construção coletiva e individual.
Dessa maneira, sentia-me violentando em alguns momentos os alunos, tentando, por
exemplo, que eles escrevessem palavras que até possuem sentido, mas que na escrita o que
não faz sentido são as letras, visto que as vêem como um sistema sem significado. Como
64
aponta Ferreiro (2000), para que a criança compreenda a natureza do sistema alfabético da
escrita há uma série de passos anteriores, e cada um se caracteriza por esquemas conceituais
específicos.
Antes do término do ano letivo, em uma conversa sobre rumores da implementação do
1º ano do ensino de nove anos, a diretora me perguntou se não gostaria de assumir essa turma,
como possibilidade de realizar um trabalho diferenciado dos modelos de educação tradicional,
pois, segundo ela, a proposta de trabalho era baseada no lúdico, na construção, principalmente
porque se tratava de alunos menores, ainda com idade para estar na escola de Educação
Infantil. Aceitei com muito entusiasmo, afinal era a oportunidade de trabalhar com
alfabetização de uma forma muito mais intensa, especialmente considerando que as crianças
não chegam à escola com a vivência do mundo letrado.
6.2 Primeiro ano do Ensino Fundamental de Nove anos: abertura ao novo e a diferentes
possibilidades?
De acordo com a lei nº 11.274/2006, o ensino obrigatório passa de sete para seis anos
de idade, sendo um dos objetivos do Ministério da Educação que crianças, mais cedo, passem
a ter acesso à escolarização.
...mais crianças serão incluídas no sistema educacional brasileiro,
especialmente aquelas pertencentes aos setores populares, uma vez que as
crianças de seis anos de idade das classes média já se encontram,
majoritariamente, incorporadas ao sistema de ensino pré-escolar ou na
primeira série do ensino fundamental.(Ministério da Educação, 2006. p. 3)
Foram muito rápidas as mudanças e no fim do ano de 2005 começou a procura das
matrículas para esses alunos. Muitas escolas ainda não estavam preparadas fisicamente para
atender as necessidades de material específico, como mesas redondas e pequenas.
Na escola, onde atuo, as crianças ficaram muito tempo sem aula, pois além do material
físico as salas de aula haviam passado por reformas e ainda não haviam sido liberadas pela
prefeitura. No primeiro dia letivo, iniciou, para os professores, um curso de formação
continuada que durou todo o ano. Primeiramente, com encontros semanais e logo após com
encontros mensais. Nesse curso, estiveram presentes professores da FURG, a assessoria
pedagógica da SMEC e diferentes convidados para debater e explicitar o que seria e como
seria o ensino nesta nova proposta de trabalho adotada pelo município e implementada em
algumas escolas municipais no ano de 2006.
65
Porém, ao mesmo tempo que me sentia motivada a trabalhar com os alunos do 1º ano
do ensino fundamental, pensava que as características para estas classes eram feitas como
algo exclusivo a elas. Em nossos cursos, ouvi muitas vezes que essa idéia precisava ser
estendida a todas as séries, mas ouvi também, que no 1º ano não podia ser uma prática voltada
ao ensino tradicional, precisava ser diferenciada da primeira série, porém, no momento que se
deixa claro essa diferença, toma-se também como pressuposto que nas classes de
alfabetização então é permitido posturas tradicionais.
Quem sabe a entrada das crianças de seis anos não nos ajude a ver de forma
diferente as crianças que já estavam em nossas salas de aula? Está posto aí
um novo desafio: utilizar essa ocasião para revisitar velhos conceitos e
colocar em cheque algumas convicções. (NASCIMENTO, 2006, p. 28)
Minha preocupação, para o desenvolvimento do trabalho, foi não fazer uma quebra
entre a educação infantil e os anos iniciais, trazendo o lúdico sempre presente e construindo
com os alunos um ambiente alfabetizador. Ao longo de nossa caminhada, com a turma do 1º
ano, a riqueza de nosso processo de ensino-aprendizagem foi tomando proporções enormes.
Os alunos, após sentirem que não haveria a cadeirinha do pensamento, que poderiam falar o
que tinham curiosidade, que poderiam tentar brincar de escrever, libertaram-se para viver a
escola de uma forma diferente. Nossa proposta versava os objetivos a serem trabalhados,
sempre com o lúdico e as práticas de letramento presentes. “Que desafio para mim, afinal me
sinto meio deslocada, perdida, será que estou no caminho certo? Será que estou dando conta
dos objetivos propostos?” (Diário de Campo -12/04/06)
Acredito que essa forma de trabalhar não se diferencia substancialmente da postura
assumida no ano anterior com a 1º série. Porém, o fato de ter dois anos de alfabetização
deixou-me mais tranqüila e motivada, permitiu-me trabalhar com as diferentes linguagens que
tanto acredito serem importantes no desenvolvimento de sujeitos mais críticos e criativos.
Para os pais, contudo, foi difícil entender o que se configurou essa mudança; sair da
“creche” como eles chamam, e entrar para a escola era a hora de aprender a ler e escrever,
contar, usar o caderno, fazer o tema. Trago a escrita da mãe de um aluno que demonstra sua
preocupação com o processo de aprendizagem do filho.
66
Escrita da mãe de um aluno.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
É extremamente importante e positiva a participação dos pais no processo de ensino-
aprendizagem, que não se encerra na escola. Fiquei muito contente com as contribuições
apresentadas por ela, visto que é uma forma de participar, de se fazer presente, colocando seus
entendimentos do que é escola e do que nela deve ser aprendido.
Foram abertas três turmas de primeiro ano na escola. Antes do início das aulas foi feita
uma reunião com todos os pais, para lhes explicar como seria o desenvolvimento e o
planejamento das atividades; logo após, partimos para entrevistas individuais com os
responsáveis.
Na primeira semana de aula, fomos conhecer a escola, suas dependências e as pessoas
que trabalhavam nela. Posteriormente, a maioria dos alunos desenhou os livros da biblioteca
como sendo o que mais gostaram da escola, o que demonstra a importância dos livros e a
escola como o meio de ter acesso a eles.
67
Livros da
biblioteca
Desenho de uma aluna.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Buscando um ambiente alfabetizador, trabalhamos com diferentes portadores de texto,
tanto livros de histórias, revistas, jornais, embalagens e todos os diferentes tipos de escritas
presentes no cotidiano das crianças, e com visitas à biblioteca, para ter acesso a livros e ler as
diferentes histórias infantis, e assim fomos problematizando a leitura de imagem e de textos.
Aluna na biblioteca.
Fonte: Arquivo da pesquisadora.
68
Leitura de portadores de texto na sala de aula.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
A leitura em voz alta para crianças pequenas, nas quais elas escutam, olham,
perguntam e respondem, são um meio para que entendam as funções e
estrutura da linguagem escrita, e podem vir a ser, também, uma ponte entre a
linguagem oral e a linguagem escrita. (TEBEROSKY & COLMER, 2003, p.
20)
Uma das atividades desenvolvidas estava relacionada com o desencadeamento do
Projeto Escuna, que ocorreu por meio de recortes de jornais e revistas, em que os alunos
deveriam recortar sobre o que mais gostariam de saber. Quase todos os alunos recortaram
palavras, letras, crianças lendo, números/palavras. Perguntei a eles o que haviam recortado e
por quê. Responderam-me que queriam aprender a ler e escrever. Tentei explicar que faríamos
essas descobertas, mas eles recorreram o tempo todo à escrita e não colocaram outras
atividades que gostariam de estudar. Essa necessidade dos alunos de rapidamente, ler e
escrever, demonstram a mim o grande significado que atribuem ao domínio da leitura e
escrita.
69
Combinamos, então, a confecção de um livro com o objetivo de identificação e
reconhecimento das letras do alfabeto, objetos que iniciam com a respectiva letra, assim como
o trabalho em grupo, o recorte, a colagem. No início organizei o trabalho na forma de
gincana, em que os alunos, distribuídos em mesas, formariam grupos, procurariam as letras e
quem terminasse primeiro ganharia os pontos. Ao fim dessa aula e refletindo a proposta
lançada aos alunos, percebi que através de uma gincana estaria sendo incoerente com todo o
trabalho desenvolvido, pois incentivando a competição estaria valorizando o individual,
deixando esquecido o coletivo que fundamenta a maior parte de minhas posturas. Então
redimensionamos o trabalho para outra forma de organização, todos procuravam tudo para
juntos termos um livro organizado, feito por todos nós.
Saberes praticados, fazeres pensados, articulação prática - teoria-prática que
abre outras perspectivas de compreensão do trabalho e da profissão docente
tanto para o pesquisador-professor, quanto para o professor-
pesquisador – que no exercício cotidiano do agir e do pensar sobre o
agir, interroga o sentido de sua prática e os significados (político, social,
organizacional e epistemológico) de suas ações.(PÉREZ, 2003, p. 119-
120) (grifo meu)
Fotos dos alunos na sala de aula.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Logo após, começamos a dividir nossas tarefas; cada grupo procurava uma letra, uns
procuravam gravuras, e quando percebi era uma grande troca, um achando as letras dos
outros, trocando gravuras e trabalhando em grupo. Foi muito gratificante a atividade, que foi
sendo adequada para não deixar de ser prazerosa e, principalmente, para exercitar a
cooperação, as trocas e a autonomia.
70
Como a ação educativa é formada de erros, acertos, reflexões, idas e vindas, em muitas
ocasiões, eu parava para me perguntar sobre os objetivos e contribuições das atividades e das
mediações qualificadas nos processos de constituição dos sujeitos envolvidos, os alunos e a
professora.
Acreditei na roda como uma forma de exposição o diálogo, a exposição oral e o
trabalho com diferentes portadores de texto, pois além de oportunizar à criança a verbalização
de suas atividades, a livre expressão da linguagem oral, também possibilita a ordenação de
noções espaciais e temporais, o diálogo, a crítica, a troca de idéias, a autonomia. Além disso,
é durante a roda que surgem muitos assuntos a serem trabalhados com os alunos; ao longo do
ano foi uma “porta aberta” para conhecer o contexto das crianças. Em muitas ocasiões, os
alunos chegavam à aula e suas novidades eram sobre os acontecimentos do bairro, falando do
vizinho que foi preso e que é tão amigo da família, o assalto à venda, o ataque da polícia aos
adolescentes com drogas, o cheiro da maconha na esquina, o homem que foi esfaqueado na
casa ao lado, a discussão sobre o porte de armas e sua importância para proteger suas casas
dos ladrões, o comentário da menina justificando sua ausência na sala de aula, pois o pai
bêbado bateu na mãe e esta foi para a casa de outros familiares, a explicação do menino que
conta que sua mãe vai embora de casa, pois seu pai só briga com ela e reclama das contas.
Essas, entre tantas outras histórias interessantes e por vezes assustadoras, mas já vivenciadas
por esses pequenos, foram expostas na roda das novidades.
Fotos dos alunos na sala de aula
.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
71
A seguir, relato fragmentos de falas dos alunos em uma roda em que as crianças
ficaram eufóricas com a fala do colega e começaram a relatar a história, todos queriam falar
ao mesmo tempo.
Leonardo
6
– “Bah! Hoje na frente do Jhony os locão ali. Bah! Veio a polícia.
Mataram o cara.
Leonardo: “A faca ainda tava no peito. Mataram com ferro.
Rafael: “Deixa eu falá professora. Mataram com faca e ferro.Bah! Isso é judiaria.
Prof.: “Tu conhecia?”
Rafael: “Tem o Juninho lá perto de casa, o pai dele deu no gurizinho do cara. O
filho do Fernando deu a bola na trave e furô e aí deram no guri.”
Leonardo: “Tavam com uma coisa de droga.”
Rafael: “Aquela coisa de elástico”.
Leonardo: “Tudo maconheiro!”
Rafael: “Eles são amigos há anos, há anos da minha mãe.”
Prof.: “O que é droga”.
Rafael: “Aquela coisa assim”. (imita uma pessoa fumando)
Vários alunos começam a imitar o uso de drogas.
Prof.: “É na rua da tua casa Wesley?”
Rafael: ”É na rua da Fernanda”.
Monica: ”Eu vi tudo! Eu vi o cara deitado assim, eu e o meu pai.”
Leonardo: “O Fernando era muito amigo da minha mãe. Ela até pediu o CD do
KLB pra ele.
Bianca: “Eu sei escrever casa. É C A S A.”
Nesse dia, registrei em meu diário de campo “como foi difícil me posicionar frente às
falas de hoje; visto que o julgado bandido frente às declarações dos alunos, ao mesmo tempo
era um amigo para Leonardo, um cara em que se podia confiar”.
...a tarefa do professor no dia-a-dia de sala de aula é extremamente
complexa, exigindo decisões imediatas e ações, muitas vezes, imprevisíveis.
Nem sempre há tempo para distanciamento e para uma atitude analítica
como na atividade de pesquisa. (ANDRÉ, 2001, p. 59)
Em diferentes momentos as crianças me colocavam frente a falas inusitadas. Num
outro dia, na roda, um aluno conta que comeu frango com batata, e outro diz: “Mas frango
tem batata dentro?” Acredito que o diálogo oportuniza a troca e construção de conhecimentos,
6
Serão utilizados nomes fictícios para preservar a identidade dos alunos.
72
pois é com o outro, na interação social que vamos nos tornando sujeitos. O posicionar-se
frente a uma opinião, expondo o que pensa e ouvindo o que o outro nos tem a dizer, é uma
base importantíssima para a constituição de seres humanos mais críticos, questionadores,
curiosos e não meramente receptores de uma verdade universal. “Não há também diálogo, se
não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na
sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens.”
(FREIRE, 1987, p. 81)
Da mesma forma, também para mim essa prática se tornou uma atividade prazerosa e
um aprendizado. Interagir com os alunos de forma tão intensa e tão próxima, fez eu sentir-me,
em muitos momentos, tão conhecedora e tão próxima de sua vida que conseguia compreender
suas posturas na sala de aula, olhando a este sujeito em seu contexto de vida e o respeitando
em suas diferenças.
A organização das idéias vem por meio da fala; ao escutarmos, constituímos a
capacidade de reflexão, construindo argumentos, dando voz ao pensamento, que deixa de ser
meramente individual e passa para uma vivência social. Assim, dialogar é estar no mundo
com os homens e se constituir-se um sujeito na relação com o outro, consigo mesmo e com o
mundo.
Por meio da mediação semiótica o sujeito se constitui, mas essa
constituição acontece num confronto eu-outro das relações sociais,
considerando que viver a realidade social não é nem um evento
circunstancial e nem um episódio ocasional, mas é o modo de ser nas
relações sociais. (MOLON, 2003, p. 118)
A valorização de um saber social construído fora da escola é primordial para o
aprender, assim como o saber coletivo que vai sendo formado na vivência da sala contribui
para a constituição de sujeitos que entendem as relações com o meio ambiente de uma forma
diferenciada.
Em diferentes momentos uma atividade lúdica que praticava com a turma de alunos
era a brincadeira de escrever. Os alunos utilizam-se de desenhos e símbolos diversos para
escrever, demonstrando seu entendimento sobre a escrita nesse momento.
Na minha prática, a representação da escrita é um código, porém a escrita não é apenas
a transcrição gráfica deste, visto que situa tanto o significante quanto o significado. A escrita é
uma representação da linguagem e, portanto, é preciso compreender essa representação.
73
Escrita dos alunos.
Fonte: arquivos da pesquisadora
A criança, ao escrever, expressa-se fazendo representações arbitrárias e utilizando
diferentes símbolos para aproximar-se da escrita do adulto. Segundo Ferreiro (2000), há
poucos anos essa escrita era entendida como meras garatujas e não como escritas reais feitas
pela criança.
Em outra atividade, confeccionamos dois bonecos de papel a metro utilizando dois
alunos como moldes, estes deitaram-se no chão e dois colegas fizeram o contorno de seu
corpo. Aapós o recorte, os alunos confeccionaram as roupas e adereços para serem colocadas
no Daniel Chan e na Floribela Flor. Nessa atividade, os alunos me surpreenderam por sua
autonomia frente ao desenvolvimento do trabalho, minhas interferências eram mínimas,
precisava cuidar mais da organização dos adereços dos bonecos do que da própria criação ou
orientação da atividade.
74
Eles próprios criavam coisas, dividiam as tarefas e também discutiam muito sobre o
que seria colocado. E passaram a aparecer mais enfaticamente os líderes, o tratamento com o
não do colega, a forma como nem sempre minha vontade será feita. Foi uma atividade que me
mostrou o quanto as crianças se envolvem com a criação, com um espaço de liberdade. “A
aula de hoje foi ótima!! A melhor coisa é ver o sorriso em seus rostos, a sensação de
felicidade e satisfação que eles transmitem... é uma coisa muito boa, inexplicável...” (Diário
de campo - 29/05/2006)
Fotos de atividades em sala de aula.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Desenhos dos alunos.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
75
Nossas atividades estavam agrupadas no sentido de trazer o mundo da escrita, seus
símbolos e utilidades num ambiente em que os alunos tivessem liberdade de escrever, que
fosse prazeroso e ao mesmo tempo que possibilitasse diferentes espaços de aprendizagem.
Para mim, essas atividades significam a oportunidade de desenvolver diferentes relações com
a escrita, acreditando assim que os alunos possam utilizá-las como uma ferramenta social.
O trabalho não aconteceu de forma tão linear e estanque, bem como os assuntos se
cruzaram, se perpassaram, se misturaram todo o tempo, da mesma forma que surgiram novos
assuntos trazidos pelos alunos, seus gostos, suas preferências.
Busquei em minha prática oportunizar aos alunos o contato com diferentes linguagens,
como a música, a dança, o teatro, a pintura, a escrita, o desenho, com o olhar, o ouvir, bem
como jogos. Quando releio as produções dessas atividades, consigo visualizá-las no momento
que aconteceram, e quando me deparo novamente com elas, percebo o quanto me preocupei
em desenvolver diferentes potencialidades, em que os alunos pudessem experienciar e viver
todas as formas de linguagem e expressão, em diferentes intensidades e momentos.
Essas preocupações permeiam minha constituição como educadora ambiental;
vivencio o desafio e o desassossego de buscar a coerência, o comprometimento de minhas
ações. Tenho grades ligações e indagações com a alfabetização e por isso trago nessa escrita
de forma tão presente seus dilemas e possibilidades.
Meu desejo é de poder viver intensamente com as crianças esse ambiente
alfabetizador, buscando o que estudei e aprendi, pois alfabetizar requer estudo, leitura,
rigorosidade, aprofundamento teórico e dedicação.
Minha prática está impregnada deste modo de pensar, de querer possibilitar novas
relações sociais e nesse momento, principalmente com a leitura e escrita. Quando chego à
escola, busco trazer para o processo ensino-aprendizagem os saberes dos alunos provenientes
de suas intensas vivências fora da escola e suas relações com a utilização da leitura e escrita,
para assim no coletivo oportunizar o desafio de releituras e novas posturas frente ao mundo
circundante.
Dessa maneira, a EA está efetivamente oferecendo um ambiente de
aprendizagens social e individual no sentido de mais profundo da
experiência do aprender. Uma aprendizagem em seu sentido radical, a qual,
muito mais do que apenas prover conteúdos e informações, gera processo de
formação do sujeito humano, instituindo novos modos de ser, de
compreender, de posicionar-se ante os outros e a si mesmo, enfrentando os
desafios e as crises do tempo em que vivemos. (CARVALHO, 2004, p. 69)
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Em uma ocasião, conversando em aula sobre as diferentes letras e onde as
encontramos em nosso dia-a-dia fora da escola, um aluno diz que o nome das ruas do bairro
são as letras do alfabeto, eu então, sugeri que fizéssemos um passeio no bairro.
Programamos um passeio pelo bairro, que pode parecer repetitivo e sem sentido,
porém, visitar o bairro é olhar a realidade em que estão inseridos e buscar novos significados,
buscando novos olhares acerca do cotidiano aparentemente tão igual.
[...] o primeiro mundo que buscamos compreender é o da família, a casa
onde moramos, o quintal onde brincamos, a pracinha, o bairro onde
vivemos, a cidade, o estado, o país. Tudo isto marcado fortemente por nosso
lugar social, nossa origem social. E, ao buscar compreender, estamos
fazendo leituras desse mundo. Leitura crítica, prazerosa, envolvente,
significativa, desafiadora. Leitura, que inserida num contexto social e
econômico, é de natureza educativa e política, pois nossa maneira de ver o
mundo é modelada por questões de poder, por questões ideológicas.
(PILLAR, 2003, p. 14)
Esse passeio objetivou partir de seu contexto para problematizá-lo e mostrar quanto
outros olhares podem ser feitos e quantos significados podem ser ressignificados. Durante o
passeio fomos analisando as casas, sua construção, o que havia de comércio, como eram as
calçadas, os esgotos, os postes, os animais; pedi para que prestassem atenção em tudo o que
viam. Enfatizei muito a rua onde moram, buscando a localização de sua casas, uma em
relação às outras e em relação à escola. Paramos no valetão e ali conversamos bastante sobre a
atitude de jogar o lixo nesse lugar, se este era o local adequado e, se não, quais seriam as
alternativas. Segundo Carvalho (2004),
... lemos e interpretamos o mundo e as nós mesmos todo o tempo, seja
quando observamos nosso entorno já conhecido, seja quando deparamos
com uma nova paisagem, seja ainda quando algo se altera em nosso
ambiente. Nesse sentido, a interação com o ambiente ganha o caráter de
inter-relação, na qual aquele se oferece como um contexto do qual fazemos
parte, envolvidos que somos pelas condições ambientais circundantes, ao
mesmo tempo em que nós, como seres simbólicos e portadores de
linguagem, produzimos nossa visão e nossos recortes dessa realidade,
construindo percepções, leituras e interpretações do ambiente que nos cerca.
(p. 75-76)
Fotos do passeio no bairro.
Fonte: Arquivo da pesquisadora.
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Fotos do passeio no bairro.
Fonte: Arquivo da pesquisadora.
Os alunos debatiam muito durante o passeio enquanto eu buscava intervir para que
olhassem aquela paisagem tão conhecida com outros olhos, percebendo a realidade de uma
maneira diferenciada, apontando outras formas de percebê-la.
Encontramos em nosso passeio problemas com o lixo, com valetas abertas, discutimos
sobre o ambiente e a atitude de jogar lixo fora do lixo, quem jogava, quem seria prejudicado e
a forma como poderíamos fazer para aquele lixo ter outro destino.
O olhar de cada um está impregnado com experiências anteriores,
associações, lembranças, fantasias, interpretações, etc. O que se vê não é o
dado real, mas aquilo que se consegue captar e interpretar acerca do visto, o
que nos é significativo. Desse modo, podemos lançar diferentes olhares e
fazer uma pluralidade de leituras do mundo. (PILLAR, 2003, p.13-14)
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Foto do passeio no bairro.
Fonte:arquivo da pesquisadora
Meu objetivo não foi sair para mostrar aos alunos a existência do lixo, afinal esse
ambiente eles conhecem muito bem, e convivem com o lixo, tampouco tinha o desejo de
trabalhar com o lixo como forma de fazer Educação Ambiental, meu intuito era ressignificar a
redondeza, olhar novamente para o contexto que se apresenta cotidianamente, mesmo que o
lixo apareça, pois faz parte desse ambiente de forma muito incisiva. A partir desse passeio,
realizamos a confecção de uma maquete do bairro, os alunos trouxeram areia e embalagens
vazias, onde pintamos, forramos e confeccionamos suas casas, a escola e o que havíamos
visto no bairro.
Pensei em abordar com os alunos o olhar mais voltado à escrita em seu cotidiano, para
que pensassem na escrita no contexto do letramento, que está por todos os lados,
reconhecendo o bairro enquanto moradia, cuidado, localização de suas casas.... E
principalmente como local que está rodeado de escrita, de símbolos, de numerais...
Acredito ser muito interessante o que é mencionado pelo pai deste aluno...
Eu acho que Alexandre vem desenvolvendo desde o início do ano um grande
interesse pelo conhecimento das letras, sempre que possível me pergunta:
‘Que letra é essa, que letra é aquela, que letra começa tal palavra, esta
palavra começa com a mesma letra daquela outra’; pois antes disso ele só me
perguntava e se interessava por números. (Pai de um aluno- narrativa em
registro escrito)
É nesse sentido que vejo a importância de uma educação ambiental que busque a
diversidade, a pluralidade, que valorize a construção histórica de cada indivíduo em um
ambiente de experiências individuais e coletivas, em que todos tenham a possibilidade de
vivenciar os diferentes espaços do meio social e natural.
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A educação acontece como parte da ação humana de transformar a natureza
em cultura, atribuindo-lhes sentidos, trazendo para o campo da compreensão
e da experiência humana de estar no mundo e participar da vida. O educador
é por “natureza” um intérprete, não apenas porque todos os humanos o são,
mas também por ofício, uma vez que educar é ser mediador, tradutor de
mundos. (CARVALHO, 2004, p. 77)
É importante aos sujeitos do processo educativo outras possibilidades de integração
com seu meio, consigo mesmo, com outras e diferentes maneiras de expressão, criação e
conseqüente vivência do mundo, e como educadora sinto-me eticamente comprometida com
seus novos olhares acerca do mundo e dos homens.
Em outro momento, trabalhando sobre as diferenças trouxe para aula um poema da
autora Ruth Rocha – “Crianças são diferentes”. Discutimos as diferenças entre as pessoas,
principalmente entre as crianças, e logo após eu lia novamente os versos do poema e os alunos
iam dando sua interpretação através do poema. Trabalhando com a diversidade, com o
respeito ao outro, e em seguida, trabalhando como cada um é dentro deste grande universo.
Pessoas são diferentes
São duas crianças lindas,
Mas são muito diferentes!
Uma é toda desdentada,
A outra é cheia de dentes...
Uma anda descabelada,
A outra é cheia de pentes!
Uma tem cabelos longos,
A outra corta eles rentes.
Uma delas usa óculos,
E a outra só usa lentes.
Uma gosta de gelados,
A outra gosta de quentes.
Não queira que sejam iguais,
Aliás, nem mesmo tentes!
São duas crianças lindas,
Mas são muito diferentes!
Ruth Rocha
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Elaboramos então dois livrinhos com desenhos, um mostrando a diversidade e outro
falando da individualidade de cada um. E, paralelamente, a isso, desenvolvemos muito a
escrita, aprendendo a respeitar a escrita do outro, bem como a aceitação dos desenhos de
alunos que não demonstravam tanta habilidade para tal, mas que expressavam no papel seus
saberes, suas interpretações e as riquezas de suas elaborações. Assim, fomos criando um
ambiente que perpassou todas as atividades: o respeito à alteridade, entendendo que o outro
precisa ser respeitado em sua diferença.
No início do ano letivo dois alunos já estavam alfabetizados, inclusive a mãe de um
deles, procurou a escola na tentativa de colocá-lo diretamente na primeira série. Seu irmão foi
meu aluno no ano anterior, ele brincando e se envolvendo nas atividades do irmão também foi
alfabetizado. Como já estava alfabetizado foi para uma turma de 1º série. Nos primeiros dois
dias foi tudo tranqüilo, porém, a partir do terceiro dia, o aluno começou a chorar
seguidamente e não queria entrar na sala de aula. A mãe me procurou relatando o que ele
havia lhe dito, que estava com muita saudade da creche, que lá ele podia brincar com seus
amigos e não precisava ficar escrevendo até o final da linha as vogais. Relatei a ela meu
pensamento, explicando que apesar de seu conhecimento da escrita era apenas uma criança de
seis anos que sabia ler e escrever, mas que isso não estava contribuindo nesse momento. Ela
procurou a escola e pediu para que o aluno freqüentasse o primeiro ano do ensino
fundamental, e assim ele entrou para a minha turma. Como o desenvolvimento da criança não
pode estar limitado apenas ao seu domínio da leitura e escrita, era importante preservar o seu
desenvolvimento e aprendizagem em todas as dimensões, não apenas a escrita.
A perspectiva sócio-histórica de Vygotsky aponta a Zona de Desenvolvimento
Proximal como
[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas
sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais
capazes. (VYGOTSKY, 1993, p. 97)
Assim, partindo da zona de desenvolvimento real da criança e buscando situações e
vivências que lhe possibilitem potencializar novos conhecimentos, aproximando-se da zona
de desenvolvimento potencial.
O processo de ensino-aprendizagem é marcado pela construção e ressignificação do
mundo que nos cerca, das palavras, tanto pelos alunos quanto pela professora, como pode ser
observado no relato abaixo, relacionado à saída da escola para um passeio.
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Antes das férias do meio do ano, foi exposto pela supervisora, em uma reunião, a
possibilidade de levar as crianças a um passeio na Fearg/Fecis, uma feira de artesanato e
comércio que acontece todos os anos na cidade e reúne muitas atividades. Haveria um veículo
para transportar os alunos, mas só poderiam ir 10 deles, e o horário de retorno estava previsto
para mais tarde do que o horário do turno de trabalho. Entretanto, como muitas professoras
desistiram de levar suas turmas, foi possível levar todos os alunos dividindo-os em duas
turmas. Foi uma experiência maravilhosa, ver em seu rostos a expectativa do que iria
acontecer, a felicidade por estar ali; abraçavam-me como se quisessem me agradecer pelo
passeio, foi muito rico, participamos de muitas atividades, assistimos, no segundo dia, a uma
peça de teatro. A escola recebeu o convite de uma artista plástica para que os alunos
participassem de uma oficina de argila, que foi muito gratificante.
Passeio dos alunos à FEARG/Julho 2006.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Assim após o término da oficina passeamos para conhecer a feira de artesanato e
realizar outras atividades. Ao término da atividade com argila disse aos alunos:
- Bem, agora vamos visitar a feira.
O aluno me respondeu:
- Ai que bom professora! Eu adoro ir na feira!
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Então expliquei a ele que era um outro tipo de feira, e não igual a que ele vai perto de
sua casa.
No momento em que disse aos alunos que iríamos assistir a uma peça de teatro, uma
aluna me disse:
- Não quero, tá tia!
- O que não queres? - perguntei.
- Não quero me apresentar no teatro tá?!
Expliquei a ela que iríamos assistir a uma peça de teatro que iria ser apresentada para
nós, e aos poucos seu rostinho de medo foi se transformando em alívio e sorriso.
Fotos do passeio à Fearg/ Julho 2006.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Percebo, a cada fala dos alunos, a importância de lhes possibilitar outras formas de
pensar, o contato com outros espaços, o ver o novo, o participar do diferente; é preciso
oportunizar diferentes espaços ricos em aprendizagens e vivência do mundo aos alunos.
Mostrando em pequenas atitudes um grande mundo que existe além de sua pequena
realidade. Estar na Fearg para eles foi muito mais que um passeio, foi abrir-se ao novo e a
todo mundo de possibilidades que os envolve, penso que é necessário partir da vivência do
aluno e assim possibilitar outras experiências.
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Em outra oportunidade perto do dia das crianças levei os alunos na Brinquedoteca da
Furg, onde tiveram a oportunidade de manusear diferentes brinquedos, interagindo em outro
espaço.
Fotos do passeio a Brinquedoteca/Outubro 2006.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Após essa atividade, fomos passear na universidade e disse a eles que os levaria para
ver um laguinho que há próximo do centro de convivência da mesma. Passamos pelas salas de
aula, por alguns Núcleos de Estudos e Pesquisas, e pela biblioteca, que também os deixou
surpresos pela sua imensidão. Chegando ao lago, ficaram encantados com tanta água, e um
dos alunos me disse:
- Pô, professora, e isso que tu disse que era pequeno!
Eles ficaram estarrecidos frente àquele lago, às tartarugas, às pombas, à natureza ao
redor. Foi muito emocionante ver a reação que tiveram ao estarem em contato com aquele tão
“simples” lago a meus olhos.
Um dia sai da aula e quando estava voltando estranhei tanto silêncio, a sala parecia
vazia, nenhuma fala; quando entrei na sala de aula, os alunos todos escondidos me
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surpreendem gritando todos juntos: SURPRESA! Havia crianças atrás da porta, embaixo da
mesa, do lado do armário, por todos os lados, em um silêncio que daria inveja a todo
professor que tentasse fazer isso e não conseguisse. E depois desse dia, todas as vezes que
saía da aula, era a hora da surpresa. E o mais interessante foi perceber que não havia medo
neles, mas confiança, amizade, carinho, um espaço já conquistado. Quando algum não queria,
não participava, continuava a fazer sua atividade, mas eram suas escolhas, sem minha figura
como professora. Aprendi mais uma vez e de forma especial a boniteza da docência!
“Que espaços e tempos estamos criando para
que as crianças possam trazer para dentro da
escola as muitas questões e inquietudes que
envolvem esse período da vida?
As peraltices infantis têm tido lugar na
escola ou somos somente a ‘polícia
dos adultos’?”
(NASCIMENTO, 2006, p. 28)
Fotos da sala de aula.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
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Na época da Copa do Mundo, os alunos queriam jogar futebol, mas se atrapalhavam
nas regras e na divisão dos times, então pediram para eu ser a juíza. Fizemos várias atividades
sobre o futebol, inclusive no torneio na escola.
Fotos pátio da escola.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
Busquei oportunizar aos alunos espaços de criação e contato com o meio ambiente e
com os acontecimentos do mundo, por meio de brinquedos, brincadeiras, histórias infantis,
textos coletivos, passeios, poesias, músicas, pintura, pesquisas, entre outras coisas.
Para o término do ano realizamos duas atividades: uma peça teatral e um passeio pelos
Molhes da Barra. Para montar a peça, contei aos alunos a história O Menino que Aprendeu a
Ver, de Ruth Rocha, uma história que retrata o mundo das letras ressignificado pelo aluno
após estar na escola, uma peça de teatro que propus construirmos para apresentar no final do
ano aos pais e à escola, por meio do projeto escuna.
Antes de anunciar aos alunos minha idéia da peça teatral, retornamos à história mais
duas ou três vezes, sendo que, em cada ocasião, eu solicitava a eles algumas tarefas; pedi a
eles que, pesquisassem em suas casas objetos que tivessem em sua casa símbolos, letras,
coisas escritas e fizemos um painel. Conversamos sobre cada uma e fomos colocando no
papel a metro e fazendo
Muitas crianças não sabiam o que era uma peça de teatro. A idéia teve uma ótima
aceitação na turma, eles ficaram muito empolgados, expliquei que iríamos adaptar a peça a
nossa realidade, era preciso escolher outro nome para o nosso personagem,os alunos então
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sugeriram que fosse Daniel Schan e Floribela Flor, nossos amigos do início do ano. Adorei a
idéia e batizamos seus nomes para nossa peça. Assim, paralelamente a essas atividades,
começamos a ensaiar a peça de teatro, que foi uma atividade simplesmente surpreendente e
emocionante. A dedicação e o desenvolvimento dos alunos fez com que a peça de teatro se
transformasse em um acontecimento especial e importantíssimo. De forma espontânea,
entraram realmente na peça, seus gestos, suas falas, sua alegria, seu prazer...
Fotos da apresentação dos alunos na escola.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
O passeio de encerramento no fim do ano por alguns pontos turísticos da cidade,
Molhes da Barra e Museu Oceonográfico, foi mais uma experiência única, tanto para os
alunos quanto para as professoras, acredito. Muitas crianças não conheciam a praia, nunca
tinham molhado os pés no mar. A primeira sensação parece de desconforto com a areia,
depois o medo dos pés afundando nas ondas. Algo tão banal e corriqueiro para muitos que
não conhecem verdadeiramente a realidade do nosso país. Crianças não conheciam o mar!
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Foto dos alunos no passeio aos Molhes da Barra.
Fonte: Arquivo da pesquisadora.
Do que corres menino?
Do que será?
É o medo? A euforia? Ou
será a alegria??
Fico eu aqui pensando ao
ti olhar... Mas não se
preocupe, não me
atreveria a lhe pedir uma
só palavra. Esse momento
é só seu!!
Sua liberdade anunciada
pelos poros já me diz que
a sensação...
Não é possível explicar!
Foto dos alunos no passeio aos Molhes da Barra.
Fonte: Arquivo da pesquisadora.
O trabalho com essa turma foi tão significativo que optei por continuar
acompanhando-os no 2º ano, construímos valores de extrema relevância, como respeito,
solidariedade, autonomia, dialogicidade, se tentasse agora saber em que momentos foram
construídos não saberia dizer, e nunca imaginei que o trabalho realizado pudesse trazer tantas
maravilhas. Os alunos são cooperativos, no sentido de pensar no outro, tentar resolver os
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problemas com o outro e achar soluções para a problemática vivida pelo outro, como uma
briga em casa, a perda de um lápis, o acordo no jogo, o comportamento frente a uma
discussão. Ao mesmo tempo em que requisitam minha presença em suas atividades, também
demonstram autonomia dentro do espaço da escola, como para expor suas opiniões nos
assuntos surgidos, trazendo de casa artefatos para deixar na escola. Dividem com os colegas
suas alegrias, ajudam-se mutuamente na realização de atividades, e seu desejo de aprender é
intenso e prazeroso em participar, sem medo! Os alunos estabeleceram relações de amizade e
companheirismo muito singulares, a afetividade está presente tanto na relação que
estabelecem comigo quanto na relação uns com os outros.
A educação, como processo que se dá na e pela vida, está sendo desafiada a
oferecer sua contribuição para o entendimento e possível construção de
alternativas que venham a contribuir para “imaginação” de novos modos de
vida, nos quais sejam levados em consideração não apenas os valores
clássicos da competição, da luta, da prosa, da separação, mas também, e
fundamentalmente, da cooperação, da solidariedade, da poesia, da justiça
social e do amor entre os seres vivos e tudo o que demais existe no universo.
(BARCELOS, 2002, p. 61)
Para mim, essa experiência representa a possibilidade de reafirmar minha crença na
educação e na Educação Ambiental como uma prática educativa que se torna fundamental
para diferentes relações socioambientais. Educação Ambiental esta que nos possibilita
experienciar a nós mesmos e nossa relação com o outro, de forma que olhamos todos como
construtores de novas bases para o hoje, multiplicando essas bases em suas famílias e assim
atuando no coletivo, o grande agente potencializador.
Percebo o quanto ser Educadora Ambiental é uma construção sempre renovada e
construída, baseada no respeito aos diferentes saberes e nos homens como seres de
potencialidade que são capazes de atuar politicamente, amorosamente e eticamente em suas
relações. Vou me constituindo Educadora Ambiental cotidianamente, e as relações na escola
fortificaram meu pensar acerca da Educação Ambiental como uma prática educativa. As
vivências pessoais, ao mergulhar nesse ambiente de atuação profissional, suscitaram
indagações, possibilidades e desassossegos; exigindo assim a tentativa de compreender e
apontar novas proposições a essas relações complexas que fui trilhando.
89
Afeto, estética e imaginação se
transmutam uns dos outros,
emergindo deste processo um
sujeito e uma subjetividade,
que saem do campo da epistemologia
para mergulhar na ontologia.
Em lugar da representação, o que temos
é um sujeito da experiência,
potência que sente,
reage e cria.
(SAWAIA, 2006, p. 85)
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7 AINDA HÁ TANTO A DIZER... FICAM MUITAS PERGUNTAS E
INQUIETAÇÕES....
"Enquanto eu tiver perguntas e não houver
respostas continuarei a escrever."
Clarice Lispector
“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no
que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver
ultrapassa qualquer entendimento”.
Clarice Lispector
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Mergulhei! Rendi-me! Insistentemente percebi-me na tarefa de me assumir!
Ao ler os fragmentos escritos por Clarice Lispector, sinto-me coberta por essa
emaranhada teia de entender - escrever - não entender - viver. São etapas que estão sempre
presentes, trazendo os desafios, percalços, surpresas, descobertas pelas quais a escrita desta
dissertação fez-me vivenciar.
Foi nas diferentes relações que estabeleci enquanto aluna de pós-graduação no
mestrado que compreendi e encontrei a relevância de um exercício contínuo e complexo de
desvelar as diferentes trajetórias que foram me constituindo como professora alfabetizadora,
educadora ambiental e pesquisadora.
Ao recompor minhas trajetórias, percebo como estas me sucumbiram ao inusitado,
mostrando-me que nesse exercício, mergulhado em um profundo processo de
autoconhecimento, enquanto conto os fatos, faço escolhas, desprovidas em sua grande maioria
de interesses a priori, mas recoberta de significados e limitações. Ao interpretá-la, revejo-me,
analiso-me através de diferentes ângulos, tentando exercer a postura difícil de olhar para o que
vivi com distanciamento. Este é o grande desafio: pensar sobre e não com os trajetos que
experienciei; tarefa que exige um processo de reflexão e questionamentos, de olhares
aprofundados, pois o que é vivido está marcado com o sabor do significado nas memórias e na
subjetividade.
Reconstruir memórias é revelar escolhas, escolhas que refletem processos
particulares de subjetivação e singularização, processos que atualizados
revelam não o que somos, mas o que vamos sendo, o que chegamos a ser - o
outro, nossa diferente evolução.( PÉREZ, 2003, p. 37)
Ao retomar meu foco de investigação nesta pesquisa, que trata da constituição da
educadora ambiental e da alfabetizadora, olho o que escrevi e vejo que são as inquietações do
viver cotidiano da escola as maiores significações no meu processo de constituição. Ao ver o
que produzi, percebo que as memórias que trago e, portanto, as escolhas que se aprofundaram
no meu diálogo foram mais enfaticamente acerca da minha prática com a classe de
alfabetização.
Momentos de conflito até o último minuto desta escrita, em que mais uma vez tento
insistentemente entender como é tão vasto, incontrolável e significativo lançar-se à escrita em
uma abordagem narrativa, em que os dados são construídos no viver diário. Como essas
palavras têm significância para mim! Que aprendizagem! Não há bases firmes quando se trata
de autoconhecimento, é a emergência do novo que se apresenta.
92
É o pensar, o agir, pensar sobre o agir e buscar uma coerência entre o saber e o fazer, o
que se configura em uma tarefa tensa quando é realizada na situação em que “o eu é tanto o
narrador quanto àquele que tem sido narrado.” (PÉREZ, 2003, p. 53)
Lidar com essas distintas posições fez-me, primeiramente, calar e buscar entender e
viver nessa relação; posteriormente passei a escrever todas as minhas vivências e também
pensamentos, idéias, experiências, tanto como professora quanto como pesquisadora,
mergulhando em um processo de dúvidas e exigências que me faziam refletir sobre o que
vivia de forma problematizadora, em um diálogo tenso, cuidadoso e de conhecimento.
Lancei-me a dialogar com essas diferentes dimensões da identidade, que por mais
distintas que pareçam entrelaçam-se e diluem-se a todo momento. Pois, sendo estas
concomitantes e paralelas, operam na relação de proximidade e distanciamento, de negação e
afirmação permanentes; na desafiante tarefa de entender a dinâmica em que ocorrem.
Desenvolvo três atividades diferenciadas, ser professora, alfabetizadora, atuar na
escola desvelando e conhecendo a cada dia seus sentidos e significados peculiares; e ao
mesmo tempo, como aluna de pós-graduação, vivenciando os prazos, exigências, leituras, e
como pesquisadora de minha própria prática, que requer a coleta de dados, sistematização de
experiências, rigorosidade metodológica e teórica.
Situações distintas, mas que estão sendo intensamente vividas e sentidas, visto que
estando na escola não deixo de fazer pesquisa ou de fazer Educação Ambiental, pois já não
posso estabelecer os limites em que essas ações são conjugadas. Elas acontecem em espaços-
tempos-responsabilidades diferentes, mas são exercidas conjuntamente no processo de
constituição da educadora ambiental, entendendo que nessa prática a pesquisa, a ação e a
formação continuada são indispensáveis a nosso caminhar enquanto educador.
Ao longo deste estudo a alfabetização foi tomando um espaço maior do que havia
imaginado inicialmente, ao “ler-me”, vi que, recompondo pedacinhos de vida, ao final, esta
escrita revela a mim mesma caminhos ainda desconhecidos, em que me apresento de uma
forma nova!
Segundo Souza (2006), a pesquisa por meio de narrativas parte da experiência de si,
em que o sujeito questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens, em um movimento
de “implicar-se e distanciar-se de si.” (p. 98).
O objetivo da minha pesquisa, foi abordar minha constituição enquanto educadora
ambiental e alfabetizadora, porém, ao final do trabalho, relendo cada palavra, olhando para as
fotos, falas, percebo o quanto a escrita narrativa me fez percorrer caminhos que não foram
escolhidos conscientemente por mim enquanto pesquisadora. Como sempre nossas escolhas
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nos fazem falar do que tem maior significado, maior sentido, o que mais incomoda, o que
mais apaixona. Assim, a alfabetização, a coerência, a ética e o comprometimento com um
processo de leitura e escrita diferenciado, impregnados de minha postura e atuação como
educadora ambiental, fizeram com que eu mergulhasse nessa vivencia, como se estas tivessem
assumido a frente da minha escrita, fazendo com que eu me descobrisse não mais
fragmentada, mas organicamente constituída educadora, sintetizando a alfabetizadora, a
educadora ambiental e a pesquisadora.
O que aparentemente me identifica no contexto escolar é minha identidade
profissional como alfabetizadora, estando a educadora ambiental imbuída em como me sinto e
me comporto de uma forma diferenciada.
Por ser tão significativo e tão reconhecido, o meu processo de alfabetização, deixou
muitas marcas, que se fizeram presentes neste trabalho através de minha prática pedagógica.
Em muitos momentos, ponho-me a pensar quais serão as lembranças que meus alunos terão
de mim. Questiono-me como se deixa marcada a vida de uma criança, a ponto de essa relação
ter um significado vivo depois de mais de 15 anos? E por que com a professora alfabetizadora
minha relação foi tão diferenciada, inclusive da minha primeira professora da pré-escola?
Penso e desejo que este trabalho possa ser uma fonte inspiradora, que possa servir de
identificação e por conseguinte uma mostra de que é necessário a todos os professores pensar,
refletir, teorizar e dialogar sua prática e assim valorizar o trabalho pedagógico (re)descobrindo
as grandes potencialidades e as riquezas, que muitas vezes ficam escondidas no silêncio de
quatro paredes da sala de aula.
Não tenho o intuito de divulgar aqui uma receita ou um modelo de atividades, mas
partilhar de um desafiante e empolgante enfrentamento que me constitui de forma diferente ao
alfabetizar sendo uma educadora ambiental e pesquisadora.
Após essa vivência, posso afirmar que esses diferentes papéis são coexistentes, pois
quando falo de processo de constituição, quando remeto à idéia de exercer uma educação
ambiental problematizadora, crítica e com a preocupação de na ação educativa diária exercer
no processo de ensino-aprendizagem a cidadania no hoje, a solidariedade no agora, a
autonomia fundamentada, não pensando em construir bases para que um dia estas apareçam,
mas no cotidiano exercê-la como práticas de direitos e de liberdade do presente.
Posso dizer que nesse movimento em diferentes situações fui me constituindo uma
educadora que se apropria dos princípios da Educação Ambiental e que desenvolve uma
pesquisa investigando os movimentos de sua constituição. Ao mesmo tempo que são
experiências distintas, elas estão entrecruzadas, pois terminando o mestrado não deixarei de
94
ser pesquisadora, pois é o fazer que nos constitui e nesse fazer-saber essa experiência trouxe-
me a grande dimensão do que é ser educadora, do que é trabalhar com educação. É o olhar
para minha profissão de forma plural e ilimitada, alargando meu entendimento para o
processo de educação como uma constante mudança e principalmente a clareza de vivenciar a
educação ambiental como uma verdadeira possibilidade de construção de valores e práticas
diferenciadas nas relações socioambientais.
No processo de pesquisa, percebi como são extremamente relevantes as contribuições
de Souza (2006), quando aponta as pesquisas com abordagens autobiográficas como sendo
um processo de conhecimento de si, de auto-escuta, uma atividade metarreflexiva, pois
[...] mobiliza no sujeito uma tomada de consciência, por emergir de
conhecimentos de si e das dimensões intuitivas, pessoais, sociais e políticas
impostas pelo mergulho interior, remetendo-as a constantes desafios em
relação às suas experiências e às posições tomadas.” (SOUZA, 2006, p. 101)
Vivo os dilemas, as incoerências humanas e tento refletir criticamente sobre elas em
espaço cuidadoso porque tenho uma preocupação na denuncia por si só, visto que ela não tem
sentido se não traz consigo o anúncio de conhecimento, pois a cada linha escrita é viver o já
vivido com tantas outras vozes, de diferentes interpretações, porque o registro não é
meramente informativo ou descritivo, mas traz consigo as relações interpretativas do fato
vivido ou pensado. Essa escrita “é um desafio, uma criação” [...] “é espelho e reflexo do eu-
outro-nós.” (PÉREZ, 2003, p. 56)
Essa experiência trouxe-me inúmeros crescimentos profissionais e pessoais, reafirmou
meu pensamento reflexivo, crítico e problematizador. Possibilitou dialogar e atuar com a
Educação Ambiental na minha prática pedagógica, fundamentando minhas escolhas e
contribuindo na prática de alfabetização.
Quando olho os alunos da turma do 1º ano do ensino fundamental, pergunto-me se há
um momento, ou uma situação ou que atividade foram constitutivas a sua autonomia,
alteridade, coletividade, dialogicidade, criticidade, e percebo que não há um momento, uma
atividade, uma fala, mas que estas foram sendo construídas no cotidiano, perpassando
qualquer atividade. Está no olhar, no entender e no querer, no buscar e no acreditar que
através de uma educação ambiental crítica e problematizadora é possível trabalhar com o
social, com o individual, com o objetivo e o subjetivo construindo e exercendo o que acredito
necessário para atuar de forma diferenciada no mundo em que vivemos: saber quem somos e
as potencialidades do que podemos ser, resgatando a cidadania, a afetividade, a autonomia, a
dialogicidade e a alteridade. Quando falo nessas categorias, elas são significadas,
representadas por todos aqueles alunos que têm rosto, vontade, nome e direitos.
95
Possibilitou-me até o último momento desta escrita repensar o que foi vivido e o que
este profundo exercício de autoconhecimento contribui para minha formação pessoal e
profissional.
Esse processo trouxe-me a dimensão e a legitimidade da Educação Ambiental
humanizando-me, possibilitando conhecer-me e afirmando um pensar acerca do que
compreendo por produção do conhecimento, tanto no espaço escolar quanto na universidade.
Entendendo ao mesmo tempo que essa constituição é algo que não conquistei, mas que se
recomeça a ser construída nas relações entre os sujeitos. As bases e os princípios que
fundamentam meu pensar irão estar consolidadas em qualquer espaço em que aturarei, mas
para que se efetive ela, Educação Ambiental, precisa ser feita entre sujeitos, no coletivo, com
o outro e por isso acredito que ela precisa estar comprometida com as mudanças sociais e
culturais para a construção de uma sociedade justa e igualitária.
Nesse processo de autoconhecimento, de formação e transformação, percebo que as
escolhas que fiz deixam claro a relação com os alunos e com a problemática da alfabetização.
Penso que esse exercício é imprescindível aos educadores, pois registrar minha
prática, interpretá-la e refletir sobre ela proporciona um intenso reviver, um ressignificar.
Minhas reflexões precisam ser interrompidas, embora, neste momento, sinto-me com
vontade de escrever e aprofundar algumas análises, pela motivação, pelos desejos,
questionamentos e curiosidades que me movem. Entendo que este processo não tem
fechamento, pois a cada leitura são novas interpretações, o que me deixa motivada a buscar
novas leituras e escritas. Afinal, a tentativa de compreender e problematizar são o que me
põem a caminhar, como diz Clarice, enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas
continuarei a escrever...
96
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Papirus, 2001.
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98
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______. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
100
ANEXO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
101
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL-PPGEA
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
O projeto de pesquisa “Na travessia escola-universidade: (des)encontros de saberes e
fazeres de uma professora alfabetizadora e educadora ambiental
7
”, tem o objetivo de refletir o
processo de constituição do ser professor, seus ritos e mitos de iniciação. O projeto de
pesquisa apresentado é o foco de pesquisa da mestranda Juliane de Oliveira Alves, professora
da escola pública onde foi realizado o estudo, na turma do 1º ano B e aluna do programa de
pós-graduação em Educação Ambiental, na linha de Educação Ambiental: Ensino e Formação
de Educadores (as).
Assim, venho através deste pedir sua autorização para utilização de fotos, falas e filmagens do
(a) aluno(a)____________________________________________ da turma do 1º ano B do
ensino Fundamental de nove anos, estando ciente de que será preservado o anonimato do seu
nome e preservada sua identidade.
_________________________________________
Assinatura do responsável
7
Na época em que foi assinado o termo de consentimento livre e esclarecido, o projeto de pesquisa estava com
outro título que foi modificado mais tarde pelas necessidades decorrentes na pesquisa.
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