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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ALEXSANDRA ANDRADE SANTANA
A SEGUNDA POSIÇÃO ORIGINAL: O CONTRATO SOCIAL
APLICADO À SOCIEDADE DOS POVOS, SEGUNDO JOHN RAWLS
Salvador
2006
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ALEXSANDRA ANDRADE SANTANA
A SEGUNDA POSIÇÃO ORIGINAL: O CONTRATO SOCIAL
APLICADO À SOCIEDADE DOS POVOS, SEGUNDO JOHN RAWLS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. José Crisóstomo de Souza
Salvador
2006
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Santana, Alexandra Andrade
S232 A segunda posição original: o contrato social aplicado à sociedade
dos povos, segundo John Raws / Alexandra Andrade Santana.–
Salvador, 2006.
82 f.
Orientador: Prof. Dr. José Crisóstomo de Souza.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia,
Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, 2006.
1. Contrato Social. 2. Equidade (direito). 3. Filosofia social. 4.
Teoria social. I. Rawls, John, 1921- 2002. II. Souza, José Crisóstomo
de. II Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. III.Título.
CDD – 320.01
TERMO DE APROVAÇÃO
Alexsandra Andrade Santana
A Segunda Posição Original: O Contrato Social Aplicado a
Sociedade dos Povos, segundo John Rawls
Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Filosofia
Banca Examinadora:
Salvador, 14 de dezembro de 2006.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que contribuíram de alguma forma para a concretização deste trabalho.
A Luiz Paulo Rouanet por todo o apoio, pelo esclarecimento de dúvidas pontuais e pelo envio
de material bibliográfico.
A José Crisóstomo de Souza, meu orientador, por acreditar em mim e no meu trabalho, pela
paciência e pelo estímulo nos momentos difíceis, sem o qual não seria possível a
concretização deste trabalho.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Programa e ao
Programa de Capacitação para o Ensino Superior (PROCES) vinculado à Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-graduação da UFBA.
Ao Programa de Mestrado em Filosofia da UFBA, pela confiança depositada em meu
trabalho.
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo investigar como a teoria contratualista rawlsiana, elaborada
primeiramente para o contexto de uma sociedade democrática liberal, pôde ser expandida para
a sociedade dos povos, que inclui tanto povos liberais quanto não-liberais, ressaltando as
semelhanças e diferenças entre essas duas aplicações do modelo contratualista de John Rawls,
a primeira no plano doméstico, e a segunda no plano global. Conclui-se que dentre as
semelhanças, destaca-se que, em ambos os níveis de aplicação da teoria da justiça rawlsiana, a
posição original modela as condições justas e razoáveis para as partes representantes
racionais de cidadãos (no primeiro nível), de povos liberais (no primeiro uso do segundo
nível) e de povos bem-ordenados, liberais ou não-liberais, mas decentes (no segundo uso do
segundo nível) especificarem os termos de cooperação. Quanto às diferenças, nota-se que
foram necessários ajustes na teoria de forma a que o modelo se tornasse adequado à sua
aplicação no plano internacional, de sorte que o modelo pode ser, por isso, considerado
universalizável, mas o as suas conclusões. A primeira aplicação da segunda posição
original não encontra dificuldades conceituais maiores, por envolver apenas povos liberais. As
dificuldades reais aparecem quando Rawls defende que não é preciso que todos os povos se
tornem liberais para que seja possível uma verdadeira Sociedade dos Povos que os inclua. E
mais, que os mesmo princípios que foram escolhidos na primeira aplicação da segunda
posição original também podem ser escolhidos na segunda aplicação. Apesar disso, as
principais críticas não parecem afetar a estrutura interna do modelo, mas apenas apontam
fragilidades quando vislumbradas as condições reais. Rawls não apresenta sua teoria como a
solução dos males da humanidade, mas, enquanto realisticamente utópica, poderia servir de
pano de fundo para a busca de um entendimento entre os povos.
Palavras-chave: Rawls, contratualismo, eqüidade, posição original, direito dos Povos.
ABSTRACT
This thesis aims at investigating how Rawls’ contractualist theory, originally designed for
liberal democratic societies, could be expanded to the society of peoples, which includes both
liberal and non-liberal peoples. Similarities and discrepancies in applying John Rawls’
contractualist model at the domestic level (first application) and at the global level (second
application) are herein pointed out. The main similarity assessed in this investigation lies in
that, at both the levels at which Rawls’ theory of justice has been applied, the original position
provides a framework for the just and reasonable conditions under which the parties, as
rational representatives of citizens (at the first level), liberal peoples (second level, first use)
and well-ordered liberal and decent non-liberal peoples (second level, second use), will be
able to specify their terms of cooperation. One noteworthy discrepancy refers to the required
adjustments made in the theory so that the model could be applied at the international level.
Therefore, while the model itself may be considered universally applicable, its conclusions
may not. The first application of the second original position does not pose significant
conceptual difficulties, since it relates solely to liberal peoples. Real difficulties surface when
Rawls asserts that the possibility of a real Society of Peoples encompassing all peoples does
not require these to become liberal. A further difficulty lies in Rawls’ assertion that the same
principles selected in the first application of the second original position can also be selected
in the second application. In spite of that, the main criticisms against Rawls’ model do not
seem to affect its internal framework. Instead, they refer to elements that are less stable when
real conditions come to mind. While Rawls does not present his theory as a solution to
mankind’s ills, as a realistically utopian theory it could be suitable in setting the grounds for
an agreement between peoples.
Keywords: Rawls, contractualism, fairness, original position, Law of Peoples
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
1. O PERCURSO DA TEORIA DE RAWLS 13
2. A TEORIA DA JUSTIÇA NO PLANO DOMÉSTICO 25
3. A SEGUNDA POSIÇÃO ORIGINAL: A INSTITUIÇÃO
DA SOCIEDADE DOS POVOS 46
4. SOCIEDADES HIERÁRQUICAS DECENTES
COMO MEMBROS DA SOCIEDADE DOS POVOS 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS 78
REFERÊNCIAS 81
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas do século XX, John Rawls (1921-2002), um dos principais
filósofos políticos contemporâneos, retoma a teoria contratualista dos filósofos políticos do
século XVIII. O contratualismo caracteriza-se como uma forma de argumentação na qual as
partes (os homens), situadas simetricamente numa situação inicial de igualdade e liberdade,
firmam um acordo recíproco, com vistas a um objetivo comum, a estabilidade de uma ordem
de convivência. Os objetos do acordo podem variar, em certa medida, entre as diversas
versões do contratualismo. No caso em estudo, o objeto é definir os princípios de justiça
para a estrutura básica da sociedade.
John Rawls começa Uma Teoria da Justiça analisando como os princípios da sua
teoria da justiça como eqüidade, em conformidade com a idéia de contrato social, podem ser
aplicados à estrutura básica de uma sociedade liberal, no plano nacional. O contratualismo de
Rawls se insere na tradição de Locke, Rousseau e Kant
1
, porém não considera o contrato
originário como a instauração de uma sociedade ou estabelecimento de uma forma de
governo:
Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios da justiça para a
estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses
princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus
próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como
definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios
devem regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de
cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se
podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios da justiça eu
chamarei de justiça como eqüidade (RAWLS, 1997, p. 12).
A noção equivalente à de estado de natureza, dos filósofos contratualistas do
1
Apesar da importância de Thomas Hobbes para a teoria contratualista, Rawls não o toma com referência
porque, em suas palavras e sem maiores esclarecimentos, "levanta problemas especiais" (RAWLS, 1997, p, 659,
nota 4).
9
século XVIII, é a de posição original, no trabalho de Rawls. Assim como o estado de
natureza, a posição original não pretende ser histórica. Ela é caracterizada por Rawls como
um modelo de representação, modelando as condições eqüitativas do acordo entre os cidadãos
livres e iguais e as restrições adequadas às razões, a partir do uso de um véu de ignorância.
Posteriormente, Rawls estende tais princípios da justiça ao plano internacional, a
uma ordem que ele chama de Sociedade dos Povos. Adapta tais princípios às especificidades
encontradas no plano global, que reúne povos liberais e não liberais. No seu livro O Direito
dos Povos, Rawls estende a idéia do contrato social à Sociedade dos Povos apresentando os
princípios gerais que podem e devem ser aceitos por sociedades liberais e não-liberais (mas
decentes) como padrão para regulamentar o seu comportamento perante outras (RAWLS,
2001, p. XVIII). A esse contrato global Rawls chama de a segunda posição original.
Rawls distingue cinco tipos de sociedades nacionais: 1) os povos liberais
razoáveis (aqueles que aderem aos princípios do Estado democrático de direito); 2) os povos
decentes (povos não-liberais que reconhecem e protegem os direitos humanos dos seus
cidadãos, bem como adotam uma hierarquia de consulta decente); 3) Estados fora da lei
(regimes que se recusam a aquiescer a um Direito dos Povos razoável, recorrendo à guerra e
ao terrorismo para promover seus interesses não-razoáveis); 4) sociedades sob o ônus de
condições desfavoráveis; 5) os absolutismos benevolentes (povos que honram os direitos
humanos, mas negam aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas e não
possuem uma hierarquia de consulta decente).
A busca da estabilidade pelas razões certas, diferentemente de pelo equilíbrio de
forças, é possível entre povos bem-ordenados (que são os povos liberais razoáveis e os
povos decentes), sejam eles liberais ou não-liberais decentes. Já em relação aos não bem-
10
ordenados, eles continuam sendo uma ameaça à segurança e à estabilidade internacionais até
aceitarem ou terem condições de aceitar o direito dos povos, ou seja, até terem condições de
respeitar os direitos humanos do seu povo e de garantir, no mínimo, uma hierarquia de
consulta decente.
A segunda posição original é apresentada por Rawls em três etapas: 1) a primeira
parte da teoria ideal aplicada aos povos liberais; 2) a segunda parte da teoria ideal, aplicada
entre os povos liberais e não-liberais decentes, e 3) a teoria não-ideal, aplicada aos povos não
bem-ordenados que não aceitam o direito dos povos (Estados fora da lei, sociedades com
absolutismo benevolentes e as sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis).
A partir da leitura das obras de John Rawls, em especial de O Direito dos Povos,
este trabalho tratará de examinar a sua teoria contratualista aplicada à relação entre
povos/Estados, ou seja, tratará de estudar a aplicação da teoria geral de Rawls ao caso
particular das relações globais, no que se refere à relação entre os povos. Notadamente,
analisaremos como a posição original aplicada uma segunda vez pode ser um instrumento
para alcançar a estabilidade nas relações entre os povos bem-ordenados e para especificar o
direito dos povos.
No presente trabalho trataremos da teoria ideal. Isso não significa que a parte
da teoria não-ideal seja menos importante ou que não tenha suscitado questionamentos a
respeito da proposta que Rawls apresenta para o plano internacional. Essa foi uma decisão
tomada de forma a delimitar o foco do trabalho no modelo contratualista. Objetivamos neste
trabalho, de forma analítica, investigar como a teoria contratualista elaborada primeiramente
para o contexto de uma sociedade democrática liberal, pôde ser expandida para a sociedade
dos povos, que inclui tanto povos liberais quanto não-liberais, mas decentes. De forma
especial, intentamos examinar e clarificar os conceitos principais que sejam relevantes para o
11
desenvolvimento do nosso tema, pois, como o próprio Rawls admite (2003, p. XVI),
possibilidade de existirem ambigüidades nas formulações de algumas noções durante o
desenvolvimento da sua obra.
No interior da abordagem do problema central aludido acima, tentaremos fazer
um percurso argumentativo com base nas seguintes questões: Como é possível uma segunda
posição original? Como a segunda posição original, enquanto modelo de representação, pode
ser um instrumento para alcançar a estabilidade nas relações entre todos os povos não apenas
como um modus vivendi? Por que povos não-liberais adotariam princípios liberais de
igualdade e liberdade em suas relações com outros povos?
Este trabalho se justifica pela relevância da obra de John Rawls. Seu livro Uma
Teoria da Justiça, publicado pela primeira vez em 1971, continua tendo repercussão no meio
acadêmico e político, no mundo anglo-saxônico e fora dele, mesmo depois de três décadas.
Rawls é uma referência central da filosofia política do século XX. Ele é um autor que
reconhecidamente retoma, ao seu modo, o modelo moderno da filosofia política, assim como
retoma os temas clássicos da filosofia política, como o contrato social e a justiça. O trabalho
ademais se justifica pela atualidade e relevância do tema, pois cada vez mais se discutem,
inclusive no meio acadêmico e filosófico, as relações entre Estados, a justiça global e a
aplicação global dos direitos humanos, temas associados com o nosso.
A metodologia adotada foi, sobretudo, a leitura e exposição minuciosa e a análise
filosófica dos textos de John Rawls, em especial O Direito dos Povos, na língua original e em
traduções de qualidade. Sempre em relação ao nosso tema, procuraremos clarificar os
conceitos principais da teoria de Rawls que estejam associados às idéias de contrato e de
relações entre povos/Estados.
12
No primeiro capítulo, O percurso da teoria de Rawls, apresentaremos uma
exposição do desenvolvimento do pensamento de John Rawls. Nessa exposição, serão
abordados os principais livros do próprio Rawls. Abordaremos a trajetória do seu pensamento
desde Uma Teoria da Justiça, passando por O Liberalismo Político e Justiça como Eqüidade:
uma reformulação, concluindo com O Direito dos Povos.
No segundo capítulo, A teoria da justiça no plano doméstico, abordaremos a
estrutura do contrato social na teoria de Rawls. Para ajudar a compreensão do seu
contratualismo, trataremos nesse capítulo do construtivismo kantiano, da justiça
procedimental pura e da razão pública.
No terceiro capítulo, A Segunda Posição Original: A instituição da Sociedade dos
Povos, será abordada a passagem da teoria contratualista do plano nacional para o plano
global, e os problemas envolvidos, em que os agentes são os representantes dos povos.
Nesse momento serão levadas em conta as questões acima referidas e algumas críticas à
proposta "utópica realista" desenvolvida por Rawls.
No quarto capítulo, Sociedades hierárquicas decentes como membros da
Sociedade dos Povos, apresentaremos a descrição das passagens da primeira parte para a
segunda parte da teoria ideal, com os problemas teóricos da inclusão de sociedades não-
liberais em um modelo liberal. Dentre os aspectos que não poderão deixar de ser abordados
está a adoção dos princípios dos Direitos Humanos e da tolerância como ponto básico do
Direito dos Povos. Por fim, apresentaremos uma reflexão acerca das implicações e
conseqüências do trabalho com o modelo contratualista no que se refere à relação entre povos.
13
1. O PERCURSO DA TEORIA DE RAWLS
Em 1971 John Rawls publica Uma Teoria da Justiça, obra considerada como um
marco da filosofia política do século XX, uma obra de fôlego em que Rawls retoma alguns de
seus artigos publicados entre os anos de 1958 e 1968
1
. Nessa obra, Rawls objetivava
apresentar uma teoria capaz de construir uma concepção política e moral sistemática e viável,
capaz de fazer frente ao utilitarismo reinante no universo das teorias morais no mundo anglo-
saxônico. O problema principal da visão utilitarista problema esse que Rawls não pôde
admitir é que, em nome da maximização da média geral de bens materiais, os utilitaristas
não se preocupam com os que não atingem essa média e são capazes de sacrificar a liberdade
e outros direitos humanos para garantir o maior bem-estar do maior número de pessoas, não
se preocupando com a situação dos menos favorecidos. Para Rawls:
Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo
o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a
justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem
maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns
poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por
muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são
consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão
sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. (RAWLS,
1997, p. 4)
Para se contrapor ao utilitarismo, Rawls considerou a teoria do contrato social
como sendo capaz de oferecer uma explicação sistêmica alternativa de justiça mas, para isso,
ele acreditava ser necessário generalizá-la e elevá-la a uma ordem mais alta de abstração
2
.
1
O capítulo 1 (Justiça como eqüidade) retoma "Justice as Fairness" (1958). O capítulo 2 (Os princípios da
justiça) retoma "Distributive Justice: Some Addenda" (1968). O capítulo 4 (Liberdade igual) retoma
"Constitutional Liberty" (1963). O capítulo 5 (As parcelas distributivas) retoma "Distributive Justice" (1967). O
capítulo 6 (Dever e obrigação) retoma "The Justification of Civil Disobedience" (1966). O capítulo 8 (O senso de
justiça) retoma “The Sense of Justice" (1963).
2
Abordaremos o contratualismo de Rawls no próximo capítulo.
14
Em 1975, quando da edição de Uma Teoria da Justiça em alemão, Rawls fez
algumas revisões no texto, no sentido de resolver dificuldades ou simplesmente deixar o
raciocínio mais claro. Segundo o próprio Rawls, no prefácio à edição brasileira, as principais
revisões se deram nas explicações das liberdades e nas análises dos bens primários.
Em 1973, H.L.A. Hart publicou um artigo intitulado Rawls on liberty and its
priority, em que aponta duas lacunas na interpretação das liberdades em Uma Teoria da
Justiça. A primeira lacuna seria a de que os fundamentos para que as partes na posição
original adotem as liberdades básicas e concordem a respeito de sua prioridade não estão
suficientemente bem explicados. A segunda, derivada da primeira, seria a de
que nenhum
critério satisfatório é apresentado para a maneira pela qual as liberdades fundamentais
devem ser mais especificadas e ajustadas umas às outras, conforme as circunstâncias sociais
passam a ser conhecidas(RAWLS, 2000a, p. 344). Na revisão de Uma Teoria da Justiça e
no ensaio Basic liberties and their priority
3
[“As liberdades básicas e sua prioridade”] (1982),
Rawls responde a essas críticas afirmando que as liberdades fundamentais e o fundamento
para sua prioridade se apóiam numa concepção de cidadãos enquanto pessoas livres e iguais.
A prioridade das liberdades e direitos básicos garante a todos os cidadãos as condições sociais
essenciais para o desenvolvimento adequado e exercício pleno dos dois poderes morais, quais
sejam, sua capacidade para um senso de justiça e sua capacidade para uma concepção do
bem” (RAWLS, 1997, p. XV), o
que Rawls chama de os dois casos fundamentais:
Resumidamente, o primeiro caso fundamental é a aplicação dos princípios da
justiça à estrutura básica da sociedade pelo exercício do senso de justiça dos
cidadãos. O segundo caso fundamental é a aplicação dos poderes de
raciocínio e pensamento crítico dos cidadãos na formação, na revisão e na
busca racional de sua concepção do bem. (RAWLS, 1997, p. XV)
3
Ensaio, que além de ser uma versão melhorada, foi publicado com o intuito de apresentar à comunidade de
língua inglesa as revisões de Uma Teoria da Justiça incluídas nas traduções (inclusive na brasileira), publicada
em inglês só em 1999.
15
Quanto aos bens primários, no texto original havia uma ambigüidade quanto a
saber se os bens primários eram determinados por fatos naturais da psicologia humana ou se
dependeriam também da concepção moral de uma pessoa que incorpora um certo ideal. Na
revisão, Rawls decide pela segunda possibilidade, visto que as pessoas são caracterizadas em
seu sistema como possuidoras de duas faculdades morais (sua capacidade para um senso de
justiça e sua capacidade para uma concepção do bem) e têm interesses de uma ordem
superior no desenvolvimento e no exercício desses poderes(RAWLS, 1997, p. XV). Com
isso, os bens primários passam a ser classificados como aquilo de que as pessoas necessitam
em sua condição de cidadãos livres e iguais, e de membros normais e totalmente cooperativos
da sociedade durante toda uma vida(RAWLS, 1997, p. XV-XVI). Assim como no caso das
liberdades, Rawls publicou, em 1982, um artigo intitulado Social Unity and Primary Goods
[Unidade social e bens primários] no qual uma exposição mais detalhada dos bens
primários.
Uma Teoria da Justiça é dividida em três seções: Teoria, Instituições e Objetivos.
As duas primeiras fazem parte da teoria ideal da justiça, a última constitui a teoria não-ideal.
Como diz Nythamar Oliveira:
Trata-se [...] de articular o trabalho metateórico dos procedimentos formais
da moral com o seu correlato substantivo normativo: a fim de problematizar
a sociedade como ela é, deve-se partir de uma análise deontológica, qual
seja, a de como ela deveria ser para caracterizar-se como uma sociedade
justa. (OLIVEIRA, 2003, p. 12)
Rawls acredita que parte das objeções à sua teoria decorrem da não compreensão,
por parte dos críticos, de que a posição original é um artifício de representação, como no caso
da crítica à concepção de pessoa e a idéia de natureza humana. Outras decorem de equívocos
no modo como apresentou, pela primeira vez, idéias como a de concepção política de justiça e
de consenso sobreposto. Rawls admite que subestimou o grau de complexidade necessário
para que a Teoria fosse coerente e considerou pontos pacíficos algumas peças essenciais
16
que faltaram para uma formulação convincente do liberalismo político(RAWLS, 2000a, p.
38). Dentre essas peças faltantes estão:
1. a idéia de justiça como eqüidade enquanto visão auto-sustentada, e a
de um consenso sobreposto como um componente de sua
interpretação da estabilidade;
2. a distinção entre pluralismo simples e pluralismo razoável,
acompanhada da idéia de uma doutrina abrangente razoável;
3. uma interpretação mais completa do razoável e do racional
entretecida na concepção do construtivismo político (em contra-
posição ao construtivismo moral), de modo que fique claro o
embasamento dos princípios do direito e da justiça na razão prática.
(RAWLS, 2000a, p. 38).
Vinte e dois anos mais tarde, em 1993, Rawls publica o livro O Liberalismo
Político, no qual retoma vários ensaios e conferências publicadas desde 1978
4
, e cujo único
texto inédito é a conferência A idéia de razão pública. O conjunto traz textos redigidos sob o
peso das apreciações e críticas a Uma Teoria da Justiça. Apesar disto, Rawls não entende as
mudanças ocorridas em sua teoria como conseqüência dessas críticas, mas também não
identifica qualquer outra causa:
Às vezes, se diz que as alterações dos últimos ensaios são respostas a críticas
feitas pelos comunitaristas e outros. Não acredito que essa afirmação tenha
fundamento. É claro que, se estou correto ou não em relação a essa idéia,
depende de as alterações poderem ser satisfatoriamente explicadas por uma
visão analítica de como se encaixam na nova definição de estabilidade.
Certamente a questão não está resolvida porque digo que está. (RAWLS,
2000a, p. 25, nota 6).
Para Rawls, o que diferencia Uma Teoria da Justiça de O Liberalismo Político é
que neste último uma distinção entre as doutrinas abrangentes (filosóficas, religiosa e
morais) e as concepções limitadas ao domínio do político, ausente em Uma Teoria da Justiça
e fundamental em O Liberalismo Político. Rawls acredita que essas diferenças decorrem da
sua tentativa de sanar o grave problema interno da incoerência da descrição de estabilidade
4
A conferência I (Idéias fundamentais) é constituída em grande parte por textos reescritos de “Uma concepção
política, não metafísica” (1985). A conferência III (O construtivismo político) retoma “O construtivismo
kantiano na teoria moral” (1980). A conferência IV é a revisão de “A idéia de um consenso sobreposto” (1987).
A V, “A prioridade do justo e as idéias do bem” (1988). A VII, “A estrutura básica como objeto” (1978). A VIII,
“As liberdades fundamentais e sua prioridade” (1982). [Esses textos, em suas versões originais, foram
publicados em português pela editora Martins Fontes, sob o título “Justiça e Democracia”].
17
apresentado na parte III de Uma Teoria da Justiça em relação ao resto do mesmo texto. Ele
também acredita que a principal causa desse problema interno está na descrição de sociedade
bem-ordenada.
Em Uma Teoria da Justiça, Rawls entende que a justiça como eqüidade e o
utilitarismo são considerados como doutrinas abrangentes ou parcialmente abrangentes. A
própria forma como a idéia de sociedade bem-ordenada é apresentada nesse texto reflete essa
semelhança. Tanto no caso da “justiça como eqüidade” quanto no do utilitarismo, os cidadãos
endossam cada uma dessas concepções como uma doutrina abrangente e, com base nela,
aceitam os dois princípios de justiça, no primeiro caso, e os princípios de utilidade, no
segundo.
A gravidade está no fato do pluralismo razoável
, característico das sociedades
democráticas modernas, em que não um cenário favorável a todos os cidadãos adotarem
uma mesma doutrina abrangente. Segundo o liberalismo político, o pluralismo de doutrinas
abrangentes razoáveis, doutrinas essas muitas vezes incompatíveis entre si, não deve ser visto
como uma situação desastrosa, mas como resultado do uso livre da razão humana dentro da
estrutura das instituições de um regime democrático constitucional. Para Rawls, uma doutrina
abrangente é razoável quando aceita princípios fundamentais de regimes democráticos. Rawls
ressalta a existência de doutrinas abrangentes pouco razoáveis, irracionais e inclusive
absurdas, mas, a respeito delas, não se manifesta, observando no entanto que se deve lidar
com tais doutrinas de forma a proibir que solapem a unidade e a justiça da sociedade
(RAWLS, 2000a, p. 24).
A descrição de sociedade bem-ordenada em Uma Teoria da Justiça é
caracterizada por Rawls como pouco realista, pois a realização de seus princípios não é
compatível com o cenário do pluralismo razoável existente nessas sociedades. Com isso, a
18
descrição da estabilidade também fica pouco realista. A partir dessa incoerência, Rawls
desenvolveu os ensaios posteriores a 1980, nos quais a “justiça como eqüidade é apresentada,
desde o começo, como uma concepção política de justiça (RAWLS, 2000a, p. 25). Essa
revisão manifestou uma série de idéias afins não necessárias anteriormente (como a
concepção política de pessoa e de um pluralismo razoável ao invés de um pluralismo
simples), bem como a revisão de alguns conceitos (como o de consenso sobreposto).
A questão central em O Liberalismo Político é a estabilidade em meio a uma
situação irreversível do pluralismo razoável:
Como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora
razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de
um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção
política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto? O liberalismo
político tenta responder a essas e outras perguntas. (RAWLS, 2000a, p. 25-
6).
O liberalismo político proposto por Rawls não faz parte do projeto iluminista de
uma doutrina filosófica secular, abrangente e baseada na razão, pois reconhece o fato do
pluralismo razoável, aceitando que algumas das doutrinas abrangentes e razoáveis possam ser
religiosas. O liberalismo político pretende formular uma concepção política da justiça que
passa ser endossada pelas mais diversas doutrinas abrangentes, sem a pretensão de substituí-
las ou lhes dar um fundamento de verdade (como ocorre em Uma Teoria da Justiça).
A complexidade de O Liberalismo Político, evidenciada pela necessidade de
inclusão de novas idéias, advém da aceitação do pluralismo razoável. Essa aceitação
pressupõe um consenso sobreposto ideal, em que os cidadãos endossam tanto uma doutrina
abrangente quanto uma concepção política focal, vinculadas entre si de alguma forma. Em
certos casos, a concepção política poderá ser “simplesmente a conseqüência da doutrina
abrangente do cidadão, ou mostra continuidade com ela; em outros, a primeira pode estar
relacionada à segunda como uma aproximação aceitável, dadas as circunstâncias do mundo
19
social(RAWLS, 2000a, p. 26-7). Deve-se então distinguir, no que diz respeito a questões
políticas fundamentais, uma base de justificação pública, de aceitação ampla entre os
cidadãos, e as muitas bases de justificação não-públicas, que fazem parte das diversas
doutrinas abrangentes, que são aceitas apenas por seus defensores.
Para ilustrar como se dão essas bases de justificação não-públicas, suponhamos
que a concepção objeto do consenso sobreposto é a da teoria da justiça como eqüidade e que
os cidadãos sustentem essa concepção com base em uma das três doutrinas seguintes:
A primeira sustenta a teoria da justiça como eqüidade por causa das suas
crenças religiosas e da sua compreensão da fé, que conduzem a um princípio
de tolerância e garantem a idéia fundamental da sociedade como um sistema
de cooperação social entre pessoas livres e iguais. A segunda a sustenta
como conseqüência de uma concepção moral liberal como a de Kant ou a de
Mill. Quanto à terceira, ela sustenta a teoria da justiça como eqüidade não
como conseqüência de uma doutrina mais ampla, mas como suficiente por si
mesma para exprimir os valores que se impõem normalmente a todos os
outros que se pudesse contrapor-lhes, pelo menos em condições
relativamente favoráveis. (RAWLS, 2000b, p.239-40)
Como conseqüência do pluralismo razoável da cultura democrática, Rawls define
como objetivo de O Liberalismo Político: descobrir em que condições é possível haver uma
base de justificação pública razoável no tocante a questões políticas fundamentais
(RAWLS, 2000a, p. 27). Se isso for possível, então deve-se apresentar o conteúdo dessa base
e justificar a sua aceitação. Além disso, deve-se distinguir a razão pública das muitas razões
não-públicas, bem como, manter uma imparcialidade em relação aos pontos de vista das
doutrinas abrangentes e razoáveis.
Para garantir essa imparcialidade, o liberalismo político não ataca nem critica, e
muito menos rejeita, nenhuma visão razoável (RAWLS, 2000a, p. 27). O que inclui não
criticar nenhuma teoria específica da verdade dos julgamentos morais, visto que tais
julgamentos são realizados com base no que a doutrina abrangente tem como valores morais e
políticos relevantes. Não cabe ao liberalismo político escolher o julgamento moral que seja o
correto. Por isso, Rawls se refere à sua concepção política da justiça como razoável e não
20
como correta, o que não é uma questão semântica. Razoável indica um ponto de vista limitado
da concepção política, abraçando apenas valores políticos e apresentando uma base pública de
justificação, e sugere “que os princípios e ideais da concepção política baseiam-se nos
princípios da razão prática [...]” (RAWLS, 2000a, p. 28).
Segundo Richard Rorty (1997, p. 249), ao colocar a política democrática em
primeiro lugar e a filosofia em segundo, Rawls se aproxima de Thomas Jeffesson que o
primeiro aplicou a tolerância à religião, enquanto o segundo, à filosofia. Para Rawls, tanto a
religião quanto a filosofia não devem ter lugar de destaque nas discussões públicas, mas
apenas no que se refere à vida privada.
Rawls justifica sua abordagem com base na Reforma protestante e na controvérsia
acerca da tolerância e o em problemas da vida política contemporânea como os de raça,
etnia e gênero –, tratando acerca de problemas clássicos relativos à estrutura moral e política
do Estado democrático moderno e não acerca da justiça na empresa, na família ou sobre
preservação ambiental. Ele parte do pressuposto de que:
[...] uma concepção de justiça desenvolvida com o foco em uns poucos
problemas clássicos e de longa data há de ser correta ou, pelo menos,
apresentar diretrizes para a resolução de outras questões. Esse é o raciocínio
que fundamenta a focalização em uns poucos problemas clássicos centrais e
persistentes (RAWLS, 2000a, p. 37).
Rawls acredita que os princípios escolhidos em um contexto podem ser utilizados
em outro, mas desde que adaptados à nova situação. Isso significa que os problemas da vida
cotidiana podem recorrer aos princípios anteriormente desenvolvidos para o caso dos
problemas clássicos, desde que sejam adequadamente ajustados.
Ademar Seabra Cruz Jr. defende que a
[...] autocrítica [de Rawls] está centrada numa interpretação do sistema de JE
[justiça como eqüidade] como um sistema normativo ‘puro’, calcado no
contratualismo e na filosofia moral de Kant, ou como uma concepção
política normativa, porém permeada de preocupações com sua aplicabilidade
operacional às sociedades democráticas do Ocidente. (CRUZ Jr, 2004, p.
17).
21
Ou seja, Rawls percebeu que seu projeto original seria demasiadamente
pretensioso com uma orientação universalista, justamente por não ter levado em conta o fato
do pluralismo razoável. Segundo Cruz, A questão seria agora depreender um sistema de
justiça que se adequasse à cultura fundamental (background culture) das sociedades
democráticas contemporâneas e em especial a dos Estados Unidos(CRUZ Jr, 2004, p. 17).
Considerando isso, percebemos que Rawls não revisou os conceitos de pessoa, de sociedade
bem-ordenada, ou a metodologia filosófica embutida no artifício da posição original. Ao
invés disso, de acordo com Cruz Jr. (2004, p. 18), Rawls teria realizado a revisão no sentido
de enfraquecer a força normativa de sua teoria, de forma a torná-la compatível com as
sociedades democráticas onde o pluralismo é condição necessária da democracia. Essa
mudança seria a confirmação de que “Rawls deixou de acreditar no caráter universalizável do
liberalismo, mas passou a crer no caráter universalizável de um tipo especial de liberalismo,
o liberalismo político” (CRUZ Jr, 2004, p. 19).
A justiça como eqüidade, conforme aparece em Uma Teoria da Justiça , não
poderia ser foco do consenso sobreposto, pois outras doutrinas abrangentes e razoáveis
poderiam legitimamente fazer esse papel. Por isso Rawls escolhe torná-la mais rala e diáfana,
desfazendo-se de seus pressupostos normativos. Cruz Jr. acredita que essas mudanças
acabaram por tornar a teoria de Rawls filosoficamente pouco consistente, sem alcançar a
praticidade característica de uma teoria propriamente política.
Após tais mudanças significativas era necessário fazer uma revisão em Uma
Teoria da Justiça. No prefácio à edição brasileira, Rawls afirma que se fosse reescrever Uma
Teoria da Justiça faria duas mudanças: a primeira seria na apresentação do argumento em
favor dos dois princípios da justiça a partir da posição original, e a segunda seria realizar uma
distinção mais clara entre a idéia de uma democracia da propriedade privada e a idéia do
22
Estado do bem-estar social. De fato, Rawls reescreveu Uma Teoria da Justiça, agora com o
título Justiça como Eqüidade: uma reformulação, e fez as mudanças que havia previsto no
referido prefácio.
Erin Kelly, organizador do livro, esclarece que essa obra foi originalmente
redigida como material de apoio a palestras proferidas regularmente em Harvard, durante os
anos 80, num curso de filosofia política que abrangia obras teóricas historicamente
importantes (Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Mill e Marx) e também a exposição dos
elementos fundamentais da teoria do próprio Rawls. Esse material de apoio fazia-se
necessário à leitura de Uma Teoria da justiça, pois, as correções realizadas por Rawls nesse
texto foram publicadas apenas em suas traduções e não estavam disponíveis aos leitores de
língua inglesa. Em 1989, as palestras foram apresentadas como reformulação de Uma Teoria
da justiça. No começo da década de 90, Rawls revisou o texto novamente, ao mesmo tempo
em que terminava de escrever O Liberalismo Político, não apresentando nenhuma mudança
substancial, apenas pontual.
Depois da publicação de O Liberalismo Político, Rawls voltou sua atenção para
outros trabalhos, dentre os quais O Direito dos Povos, que originalmente seria a Parte VI da
reformulação. Por motivo de doença, Rawls não pôde trabalhar o manuscrito até sua
formulação final, como planejara. Entretanto, as Partes I a III estavam em sua versão
acabada.
Kelly ressalta que
, apesar de inacabadas, as Partes IV e V contêm elementos
importantes para a defesa da justiça como eqüidade e que, apesar disso, por decisão editorial,
foram deixadas em grande parte como no original. Os principais ajustes dizem respeito à
reordenação de algumas seções e a exclusão da Parte VI, referente ao Direito dos Povos.
23
Em Justiça como Eqüidade, Rawls tinha dois objetivos: 1) retificar as principais
falhas de Uma Teoria da Justiça e 2) reunir, numa formulação única, a concepção de justiça
apresentada em Teoria e as principais idéias escritas nos ensaios a partir de 1974. Justiça
como Eqüidade representa um fecho para o longo desenvolvimento de uma teoria da justiça
voltada para o plano doméstico. A esfera doméstica, entretanto, é apenas um dos três níveis da
justiça:
Temos ao todo, de dentro para fora, três níveis de justiça: primeiro, a justiça
local (os princípios que se aplicam diretamente a instituições e associações);
segundo, a justiça doméstica (os princípios que se aplicam à estrutura básica
da sociedade); e, por fim, a justiça global (os princípios que se aplicam ao
direito internacional). A justiça como eqüidade parte da justiça doméstica - a
justiça da estrutura básica. Daí, estende-se para fora, para o direito dos
povos, e para dentro, para a justiça local. (RAWLS, 2003, p. 15-6)
Rawls não trata expressamente da justiça local. o nível global é objeto de um
livro específico: O Direito dos Povos (1999). Em Uma Teoria da Justiça, Rawls trata do
plano global de modo apenas pontual no §58 (A justificação da objeção de consciência).
Nesse capítulo, Rawls discorre sobre a recusa em combater ou praticar certos atos em nome
de princípios ou crenças morais, religiosas ou políticas, conferindo maior ênfase nessa última.
Ele apresenta, de forma resumida, alguns pontos para a elaboração de uma teoria da justiça
para a sociedade das nações. Além disso, Rawls adianta que a posição original pode ser
aplicada também ao direito das nações e se refere às condições para uma guerra ser
considerada como justa ou injusta, quando então o indivíduo pode se recusar a prestar serviço
militar. Entretanto, em Uma Teoria da Justiça, Rawls não objetiva desenvolver todas as
complexidades que a extensão de sua teoria para o plano global suscita. Ele fará isso em O
Direito dos Povos.
No prefácio a O Direito dos Povos, Rawls declara que, desde fins da década de
80, pensava em desenvolver esse aspecto global de sua teoria. Apenas em 12 de fevereiro de
1993, ao proferir uma conferência em homenagem ao aniversário de Abraham Lincoln, Rawls
24
apresentou pela primeira vez as suas reflexões sobre a justiça global. Essa versão foi
publicada em 1993, no volume On Human Rights: The Oxford Amnesty Lectures (Nova York,
Basic Books, 1993), sendo incluída também nos Collected Papers de John Rawls, organizado
por Samuel Freeman (Harvard University Press, 1999). No entanto, Rawls não ficou satisfeito
com o que havia dito e escrito pois não tinha desenvolvido suas idéias adequadamente, dando
margem a incompreensões. A versão definitiva, publicada em 1999 juntamente com o artigo A
idéia de razão pública revista, é muita mais extensa. Na presente dissertação trabalharemos
com essa última versão.
2. A TEORIA DA JUSTIÇA NO PLANO DOMÉSTICO
Rawls propõe uma teoria da justiça como eqüidade com o objetivo de oferecer
uma alternativa ao utilitarismo, bem como conciliar o conflito entre as reivindicações de
liberdade e de igualdade. O objeto primário dessa teoria é a estrutura básica da sociedade
democrática:
A estrutura básica da sociedade é a maneira como as principais instituições
políticas e sociais da sociedade interagem formando um sistema de
cooperação social, e a maneira como distribuem direitos e deveres básicos e
determinam a divisão das vantagens proveniente da cooperação social no
transcurso do tempo. (RAWLS, 2003, p. 13).
Rawls parte da idéia organizadora central de que a sociedade deve ser concebida
[...] como um sistema eqüitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais, vistas
como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida(RAWLS,
2000a, p. 51).
A partir dessa idéia, Rawls procura responder a duas questões fundamentais,
derivadas dela:
Qual a concepção de justiça mais apta a especificar os termos eqüitativos de
cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais, e membros
plenamente cooperativos da sociedade durante a vida toda, de uma geração
até a seguinte?
[...] como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade justa e
estável de cidadãos livres e iguais, mas que permanecem profundamente
divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis (RAWLS,
2000a, p. 45-6).
Para Rawls, dadas as condições históricas e sociais que possibilitaram o
surgimento do Estado democrático liberal, como as guerras de religião dos séculos XVI e
XVII, o Estado não pode reconhecer nenhuma doutrina moral geral ou abrangente como
moderadora da estrutura básica da sociedade. Isso porque tais doutrinas admitiriam apenas
uma concepção do bem como legítima a ser adotada por todos: “uma família ordenada de fins
26
últimos que determinam a concepção que uma pessoa tem do que tem valor na vida humana
ou, em outras palavras, do que se considera uma vida digna de ser vivida(RAWLS, 2003,
p. 26). Conseqüentemente, tais doutrinas negam o fato do pluralismo razoável, ou seja, negam
a existência de múltiplas concepções do bem e crenças defendidas pelas pessoas numa mesma
sociedade democrática liberal, que, apesar de serem conflitantes e incomensuráveis entre si,
são compatíveis com a racionalidade, sendo este pluralismo um pressuposto do liberalismo
enquanto doutrina política.
Em face ao pluralismo irreconciliável, a questão que se coloca é saber como
encontrar uma base pública sólida para um acordo político que seja informado e totalmente
voluntário entre cidadãos livres e iguais, isto é, sem recurso a um poder autocrático que
imponha a ordem pela força. A estabilidade social poderá ser garantida se for baseada
solidamente em atitudes sociais e políticas públicas de um povo, e em termos eqüitativos de
cooperação social que provêm de um acordo celebrado por aqueles comprometidos com a
cooperação.
Resolver o problema da estabilidade, encontrando essa base para um acordo
político, é uma das tarefas da filosofia política; é a sua função prática primeira das quatro
funções da filosofia política – em uma sociedade democrática liberal. Nas palavras de Rawls,
uma das tarefas da filosofia política numa democracia é precisamente a de se
interessar por esse tipo de questões [fundamentais, que são fonte de ásperas
controvérsias políticas] e ver se uma base subjacente de acordo pode ser
descoberta e se é possível estabelecer publicamente um meio mutuamente
aceitável de resolver tais problemas. Ou, então, se essas questões não podem
ser completamente resolvidas, a divergência de opinião pode ser reduzida de
maneira suficiente para que se mantenha uma cooperação política baseada
no respeito mútuo. (RAWLS, 2000b, p. 206)
A segunda função da filosofia política é a função de orientação, entendida como a
contribuição da filosofia política para a maneira de um povo pensar as suas instituições
políticas e sociais, bem como as metas e aspirações coletivas, em oposição às de cada cidadão
individualmente tomado. Cabe à filosofia política, enquanto obra da razão, orientar as pessoas
27
no espaço conceitual dos possíveis fins individuais, de modo a demonstrar como esses fins
podem se articular numa concepção de sociedade justa e razoável. A terceira função da
filosofia política é a de reconciliação com a própria cultura política, abrandando o
descontentamento do povo em relação ao pluralismo razoável e às instituições da sociedade
democrática liberal, expondo como ela chegou a sua configuração atual, sua razão e, na
verdade, seu valor e seus benefícios políticos (RAWLS, 2003, p. 05). Por fim, a quarta
função é a do exame dos limites da possibilidade política praticável(RAWLS, 2003, p. 05)
que, levando em consideração as instituições atuais e as diferentes doutrinas defendidas pelos
cidadãos, pode levar a mudanças nessas instituições ou, de acordo com a função anterior,
permanecer com essas instituições por considerá-las as mais racionais e adequada às
conjunturas atuais.
Para Rawls, a busca de construções teóricas que fundamentem o princípio da
cooperação social e da ordem social e política é de fundamental importância em uma
sociedade democrática que convive com o pluralismo razoável de concepções de bem
conflitantes e incomensuráveis entre si. Diante disso, encontrar os meios para alcançar a
estabilidade é tarefa da filosofia política e é o objetivo da teoria contratualista de Rawls. A
própria “teoria da justiça como eqüidade” apresenta instrumentos teóricos para que a filosofia
política consolide essa tarefa. Dentre esses instrumentos se encontra o contratualismo.
O contrato social se entre as partes na posição original. As partes são pessoas
artificiais, meros habitantes de nosso procedimento de representação: são personagens com
uma função no desenrolar de nosso exercício mental(RAWLS, 2003, p. 117). As partes são
descritas como representantes racionais de cidadãos livres e iguais, que agem com o intuito de
defender o interesse daqueles a quem representam. Na posição original, as partes objetivam
garantir a cooperação, a estabilidade social e, sobretudo, a justiça. Para tanto, devem escolher,
sob circunstâncias eqüitativas, os princípios da justiça mais adequados para regular a estrutura
28
básica da sociedade bem-ordenada, que é aquela efetivamente moderada por uma concepção
pública de justiça. A posição original é um procedimento de representação que não pretende
ser real ou histórico; ela é hipotética, pois nela interessa apenas saber o que as partes
poderiam acordar ou acordariam, e não aquilo que de fato acordaram. Ela é também ahistórica
porque não a suposição de que foi ou de que será celebrado tal contrato e, mesmo se o
fosse, não faria diferença pois, como Rawls declara textualmente, a posição original pode ser
invocada a qualquer momento por meio do raciocínio, respeitando as restrições do modelo,
citando apenas razões admitidas por essas restrições(RAWLS, 2003, p. 122). A posição
original
[...] modela o que consideramos você e eu, aqui e agora - como condições
justas e razoáveis para as partes, que são representantes racionais de
cidadãos livres e iguais, razoáveis e racionais, para especificarem os termos
de cooperação para regulamentar a estrutura básica dessa sociedade
(RAWLS, 2001, p. 39).
Dentre essas condições justas e razoáveis está o reconhecimento de que todos os
cidadãos, na posição original, são livres e iguais em todos os aspectos relevantes aos membros
plenamente participativos da sociedade, bem como, de que são racionais e razoáveis e,
portanto, devem ocupar posições simétricas, não sendo permitido o uso de qualquer
instrumento para alcançar quaisquer privilégios.
Rawls não definiu o que seja o racional e o razoável; ele afirma que o significado
de tais conceitos deve ser apreendido pelo modo como são empregados. Razoável é usado
para caracterizar os cidadãos que se dispõem em oferecer termos justos de cooperação social
entre iguais, afirmam apenas doutrinas abrangentes razoáveis e reconhecem o “ônus do
julgamento”. Uma doutrina é razoável contanto que reconheça “os elementos essenciais de um
regime democrático liberale exiba um ordenamento coerente dos muitos valores da vida
(religiosos ou não)”. É razoável, também, reconhecer a possibilidade de uma variedade de
julgamentos políticos em geral, e, portanto, não é razoável rejeitar todas as regras do voto de
29
maioria”. O razoável remete ao justo e representa as restrições dos termos justos de
cooperação social. "É simplesmente razoável politicamente oferecer termos justos de
cooperação a outros cidadãos livres e iguais, e é simplesmente irrazoável politicamente
recusar-se a fazê-lo” (RAWLS, 2001, p. 114).
O Racional remete ao bem, à busca de cada um pela satisfação de seus interesses.
É especificado da seguinte forma:
As outras coisas sendo iguais, é racional selecionar o meio mais efetivo para
os nossos fins. Ou: as outras coisas sendo iguais, é racional selecionar a
possibilidade mais inclusiva, aquela que nos permite perceber todos os
objetivos que os outros percebem, assim como mais alguns fins adicionais.
(RAWLS, 2001, p. 115)
Para Rawls, “o Razoável pressupõe e condiciona o Racional” (RAWLS, 2000b, p. 68)
Para garantir condições eqüitativas, Rawls acrescenta o conceito de véu de
ignorância uma imagem que representa as restrições razoáveis impostas às informações
disponíveis às partes para a escolha dos princípios na posição original, com o objetivo de
possibilitar que o acordo firmado seja eqüitativo e que tal procedimento possa ser usado a
qualquer momento, sempre escolhendo os mesmos princípios.
A adoção do véu de ignorância se justifica porque é razoável supor que ninguém
deve ser favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios em função do acaso natural ou
pela contingência das circunstâncias sociais que geram desigualdade entre as pessoas. Além
disso, é razoável sustentar que os princípios não devem se adaptar a casos particulares. Se as
partes têm conhecimento de contingências sociais e naturais que as envolvem, assim como de
sua própria concepção do bem, isso possibilita às pessoas tenderem para princípios que
beneficiem claramente seu caso particular e se utilizem das ameaças de força e da coação, do
logro e da fraude, dentre outros meios, para influenciar os outros com o intuito de tirar maior
proveito durante a negociação, como ocorre corriqueiramente na vida cotidiana. Isso
comprometeria os resultados do acordo, que passariam a ser injustos, beneficiando a uns em
30
detrimento de outros, e instaurando uma impossibilidade de convergência. Devem-se,
portanto, anular os efeitos das disputas oriundas das contingências naturais e sociais que
possam deformar a apreciação isenta e imparcial dos princípios de justiça.
Para que o acordo seja eqüitativo, é necessário que as condições nas quais ele se
dá sejam também eqüitativas. Para que as partes estejam simetricamente situadas, é necessária
a restrição das informações sobre si mesmas informações essas que estão disponíveis na
situação do acordo pois assim ninguém poderia propor princípios que favoreçam uma
condição particular. Rawls apresenta o seguinte exemplo:
Se um homem soubesse que era rico, ele poderia achar racional defender o
principio de que vários impostos em favor do bem-estar social fossem
considerados injustos; se ele soubesse que era pobre, com grande
probabilidade proporia o princípio contrário (RAWLS, 1997, p. 21).
Essa situação é que possibilita à teoria ser chamada de justiça como eqüidade, pois os
princípios da justiça são escolhidos sob essa condição e podem então expressar integralmente
a idéia de eqüidade (fairness).
Quando sob o véu de ignorância as informações não estão disponíveis às partes;
elas não conhecem seu lugar na sociedade, sua posição de classe ou seu status social; elas não
conhecem sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força,
bem como sua raça, grupo étnico e o seu gênero; elas não conhecem a sua concepção do bem,
as particularidades de seu plano de vida racional; elas não conhecem os traços característicos
de sua psicologia específica, como por exemplo, a sua tendência ao otimismo ou ao
pessimismo; elas não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria sociedade (a
posição econômica e política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi
capaz de atingir); por fim, elas não conhecem a qual geração pertence. Com o véu, as partes
não sabem como o princípio afetará seu caso particular, pois tomam como base condições
gerais. Como conseqüência disso, as partes não têm base para negociar no sentido usual e nem
possibilidade de formar coalizões, visto que são incapazes de saber quais princípios lhes
31
beneficiariam. Dessa forma, as partes são capazes de chegar a acordos eqüitativos justos que
tendem a beneficiar a todos, principalmente os menos favorecidos.
O uso do véu de ignorância possibilita determinar a concepção de justiça que seria
escolhida na posição original. Sem esses limites impostos ao conhecimento, o problema da
negociação na posição original se tornaria insolúvel. Mesmo que teoricamente existisse uma
solução, não seríamos capazes de determiná-la, pelo menos por enquanto(RAWLS, 1997,
p. 151). Assim, teorias que não especificam o que as partes conhecem, o que desconhecem e
quais são as alternativas abertas à escolha das partes, não são capazes de determinar qual será
a conclusão tirada após a aplicação da teoria do contrato.
Como o véu possibilita tal conclusão acerca dos termos acordados pelas partes na
posição original? Ao restringir informações às partes, o véu permite que os parceiros, ao
serem guiados pela razão, defendam princípios justos e eqüitativos, gerais e impessoais. Por
exemplo, se não sabemos o nosso lugar na sociedade, podemos supor tanto que estamos em
uma posição mais favorecida quanto na menos favorecida. Portanto, não seria racional
conjeturar que pertencemos a este ou aquele grupo, e defendermos os interesses de um deles
pois, ao retirar o véu, podemos nos encontrar na situação oposta àquela que pressupusemos.
Por isso, é racional defender princípios que beneficiem a todos do mesmo modo, tanto os mais
favorecidos quanto os menos; ou, pelo menos, ao beneficiar os mais favorecidos, que também
os menos favorecidos sejam de alguma forma beneficiados. É por essa razão que as partes
deveriam escolher os dois princípios da justiça propostos por Rawls na situação eqüitativa da
posição original, qual sejam:
(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente
adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo
esquema de liberdades para todos; e
(b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições:
primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidade; e, em segundo lugar, têm
de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o
princípio de diferença). (RAWLS, 2003, p. 60)
32
Ao mesmo tempo em que esconde aspectos característicos, o véu de ignorância
deixa ver os aspectos gerais. Imaginemos uma pessoa por detrás de um véu de tecido.
Sabemos que é uma pessoa pela estrutura do corpo ou pelo seu movimento mas, ao mesmo
tempo, não somos capazes reconhecer seus traços característicos, como a cor dos cabelos ou a
cor dos olhos. O mesmo ocorre no véu de ignorância, sendo este mais abrangente do que
aquele.
Ora, vimos o que o véu esconde, mas, o que ele permite que as partes
conheçam? Antes de mais nada, é preciso ressaltar que tais informações devem ser conhecidas
por todos e que não pode haver informações privilegiadas para qualquer um na posição
original. Dessa forma, apesar de ocultar alguma informação, o véu permite às partes: 1)
conhecer que a sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça – e às conseqüências que
possam decorrer disso e que nela preponderam as condições razoavelmente favoráveis a
uma democracia constitucional. 2) conhecer os fatos genéricos sobre a sociedade humana, tais
como: as relações políticas e os princípios da teoria econômica; a base da organização social e
as leis que regem a psicologia humana; 3) tentar proteger as suas liberdades, ampliar as suas
oportunidades e aumentar os seus meios de promover os seus objetivos, quaisquer que sejam
eles; 4) ter um plano racional de vida, ainda que, por causa do véu, não conheçam os detalhes
desse plano, como, por exemplo, os objetivos e interesses particulares que ele busca
promover
1
.
Rawls postula que as pessoas, na posição original, preferem ter uma quantidade
de bens sociais primários maior ao invés de uma menor(RAWLS, 1997, p. 153). Mesmo
que esse postulado, por quaisquer motivos, não se confirme após a tirada do véu até porque
ninguém é obrigado a aceitar a mais se não desejar –, é racional pensar assim na posição
original, visto que as partes não conhecem a sua concepção do bem, e, segundo a
1
Para saber mais, ver §24 de Uma Teoria da Justiça (p.146-153, passim).
33
racionalidade, as pessoas na posição original tentam reconhecer princípios que promovem
seus sistemas de objetivos da melhor forma possível” (RAWLS, 1997, p. 155). Além disso, as
partes possuem um senso de justiça e se comprometem se puderem manter o acordo,
inclusive sem grandes dificuldades.
Rawls admite que se pode objetar que a posição original, com as restrições
impostas ao conhecimento das partes, inviabilizaria a escolha dos princípios. Porém, ele alega
que o véu permite conhecer a teoria do bem e os fatos genéricos da psicologia moral, o que
guia as partes na tomada de decisão, não sendo portanto, um exercício de adivinhação. O que
se pode questionar é até que ponto essas informações e pressupostos são verdadeiros.
Ao se colocar as doutrinas abrangentes por detrás do véu de ignorância, esse se
torna denso ao invés de fino. Para alguns, é injustificável um véu denso porque tais doutrinas
abrangentes são extremamente relevantes na vida das pessoas e na determinação de seus
objetivos de vida. O motivo pelo qual Rawls adota o véu denso está relacionado ao fato do
pluralismo razoável que, como vimos, é o reconhecimento de que há uma diversidade de
doutrinas abrangentes, todas perfeitamente razoáveis e defendidas por cidadãos de uma
mesma sociedade democrática. Como o objetivo da posição original é elaborar uma
concepção política da justiça eqüitativa que possa ser defendida por todos, independente de
qual doutrina defendam, é, então, necessário um véu denso em vez de um fino. Após tirar o
véu, tais doutrinas serão o foco de um consenso sobreposto (overlapping consensus), ou seja,
de um consenso que inclui [...] todas as doutrinas filosóficas e religiosas contrapostas, que
podem ser duradouras e encontrar adeptos numa sociedade democrática constitucional mais
ou menos justa(RAWLS, 2000b, p. 205). Assim, para cada doutrina defendida, haverá uma
justificativa para adotar a concepção política de justiça originada na situação eqüitativa do
acordo.
34
A posição original é um modelo que permite, levando-se em conta as nossas
convicções atuais, saber as condições eqüitativas de acordo entre cidadãos livres e iguais e
as restrições apropriadas às razões(RAWLS, 2003, p. 24), advindas do uso do artifício do
véu de ignorância, de modo que quaisquer princípios escolhidos sob tais condições sejam
justos. Isso porque o contrato social invoca a justiça procedimental pura em um nível mais
elevado: a eqüidade das circunstâncias transfere-se para a eqüidade dos princípios aceitos
(RAWLS, 2000a, p. 311).
A justiça é caracterizada como procedimental quando não importam os conteúdos
ou resultados, mas os trâmites, as formalidades e as competências, que, por sua vez, não têm
um fim em si mesmas. A justiça é procedimental pura quando, ao se adotar um procedimento
justo, o resultado será, ipso facto, sempre justo, seja ele qual for, contanto que o procedimento
tenha sido corretamente aplicado. Nesse tipo de justiça, não critérios que possam
demonstrar que os resultados do procedimento são princípios justos. O que é justo se define
apenas pelo resultado do próprio procedimento” (RAWLS, 2000b, p. 58).
Tanto o contratualismo quanto a justiça procedimental pura fazem parte da
concepção construtivista adotada por Rawls, que é estritamente política. O construtivismo
político é caracterizado como uma visão relativa à estrutura e conteúdo de uma concepção
política. No caso da justiça, isso quer dizer que,
[...] depois de obtido o equilíbrio reflexivo, se isso vier a acontecer, os
princípios de justiça política (o conteúdo) podem ser representados como o
resultado de um certo procedimento de construção (a estrutura). Nesse
procedimento, modelado de acordo com a posição original, os agentes
racionais, enquanto representantes dos cidadãos e sujeitos a condições
razoáveis, selecionam os princípios públicos de justiça que devem regular a
estrutura básica da sociedade. Esse procedimento, assim conjecturamos,
sintetiza todos os requisitos relevantes da razão prática e mostra como os
princípios de justiça resultam dos princípios da razão prática conjugados às
concepções de sociedade e pessoa, também elas idéias da razão prática.
(RAWLS, 2000a, p. 134).
35
Rawls descreve as seguintes características principais de uma concepção
construtivista:
1) Para o construtivismo, [...] os princípios de justiça política (conteúdo) podem
ser representados como o resultado de um procedimento de construção (estrutura)
(RAWLS, 2000a, p. 138). Nesse procedimento, os representantes dos cidadãos, enquanto
agentes racionais, escolhem, em condições razoáveis e eqüitativas, os princípios de justiça
para regular a estrutura básica da sociedade bem-ordenada.
2) O procedimento de construção baseia-se essencialmente na razão prática, e
não na razão teórica(RAWLS, 2000a, p. 138), uma vez que o objetivo do procedimento é a
construção de objetos de acordo e não o conhecimento de determinado objeto. Apesar disso, a
razão teórica exerce um papel importante, pois forma às crenças e aos conhecimentos das
pessoas que participam do acordo.
3) O construtivismo político adota uma concepção complexa de pessoa e
sociedade. Para ele, a sociedade é entendida como um sistema eqüitativo de cooperação social
entre os cidadãos, transmitido de uma geração para outra. Nesse sentido, os cidadãos são
possuidores de duas faculdades morais: o senso de justiça e uma concepção do bem. Segundo
Rawls, Todas essas estipulações e outras mais são necessárias para chegar à idéia de que
os princípios de justiça resultam de um procedimento adequado de construção(RAWLS,
2000a, p. 138).
4) Por fim, o construtivismo político não adota e nem nega o conceito de
verdade, pois a concepção política não leva em conta o conceito de verdade. O construtivismo
usa uma idéia do razoável aplicável a vários objetos, especificando os critérios que
possibilitem julgar se o objeto em questão é razoável. A causa disso é que a idéia do razoável
viabiliza o consenso sobreposto das doutrinas razoáveis, o que não é possível quando se
36
utiliza o conceito de verdade pois, mesmo que uma doutrina abrangente divirja de outra, elas
podem se considerar como razoáveis, mas não com a mesma facilidade uma considerará a
outra como verdadeira.
O construtivismo político funda-se na idéia de equilíbrio reflexivo. As conclusões
obtidas depois do procedimento de construção são submetidas a um julgamento, depois de
cuidadosa reflexão, de maneira que a formulação do procedimento utilizado na construção é
colocada à prova. O procedimento correto é estabelecido através da reflexão, usando nossa
capacidade de raciocínio. No entanto, ele pode se equivocar ao descrever a si mesmo.
Quando, pois, acontece um julgamento inaceitável, é no procedimento que se vai buscar a
causa dessa imperfeição. Isso porque, segundo Rawls, a falha deve estar na maneira pela
qual o procedimento modela os princípios da razão prática conjugados às concepções de
sociedade e pessoa (RAWLS, 2000a, p. 141). Para o construtivismo, se o modelo do
procedimento for correto, então se produzirá princípios de justiça considerados corretos
depois de cuidadosa reflexão.
No construtivismo político, o objeto construído é o conteúdo de uma concepção
política de justiça princípio de justiça a ser aplicado à estrutura básica da sociedade –,
selecionado na posição social pelas partes devidamente especificadas. Para que seja possível a
construção, é necessário partir de concepções não construídas, como as concepções
fundamentais de sociedade bem-ordenada, e das concepções de pessoas, compreendidas como
cidadãos livres e iguais. Aquela enquanto um sistema eqüitativo de cooperação e esta
enquanto possuidora das duas faculdades morais – senso de justiça e concepção do bem. Além
disso, tais concepções possibilitam que os princípios da razão prática tenham sentido, uso e
aplicação(RAWLS, 2000a, p. 153). Tais concepções dão forma ao conteúdo da justiça e do
direito político, ou seja, possibilitam a construção dos princípios substantivos que especificam
o referido conteúdo. A posição original, enquanto procedimento de apresentação, é apenas
37
estipulada com as características que possibilitem determinar as condições e restrições
razoáveis impostas às partes.
A importância de uma concepção política construtivista, segundo Rawls, é que, ao
se deparar com o fato do pluralismo razoável e com o interesse em assegurar uma sociedade
democrática, tal concepção garante a possibilidade do consenso sobreposto. O construtivismo
político procura desenvolver os princípios de justiça de modo a evitar o conflito, uma vez que
se levam em conta todas as características anteriormente abordadas.
Essa tentativa de evitar um ponto de conflito insolúvel, no mínimo a curto prazo,
caracteriza o que Rawls chama de método de esquiva, que nada mais é do que um esforço de
não afirmar nem negar nenhuma opinião religiosa, filosófica ou moral, tampouco suas
análises filosóficas da verdade e o status que elas atribuem aos valores. A esperança é que,
apesar das divergências profundas, seja possível que todos os cidadãos reconheçam uma
concepção política como verdadeira ou razoável, segundo o seu próprio ponto de vista, seja
qual for a visão abrangente que adotem.
A noção de razão pública é uma das idéias incluídas por Rawls em sua teoria da justiça
como eqüidade, divulgada a partir da publicação de O Liberalismo Político e com o intuito de
torná-la compatível com o fato do pluralismo razoável, ou seja, com o reconhecimento de que
existem múltiplas concepções do bem e crenças defendidas pelas pessoas numa mesma
sociedade democrática liberal e que, apesar de serem conflitantes e incomensuráveis entre si,
são compatíveis com a racionalidade. Como não como chegar a uma compreensão mútua
com base em suas doutrinas abrangentes, então os cidadãos devem oferecer razões razoáveis
uns aos outros quando estão em jogo questões políticas fundamentais. Essa razão, por sua vez,
deve ser política. Segundo o liberalismo político, tais doutrinas abrangentes não devem ser
rejeitadas nem criticadas desde que aceitem um regime democrático constitucional e a idéia
38
de lei legítima que o acompanha. Essas doutrinas abrangentes serão então consideradas
razoáveis. Esse fato é uma característica básica de sociedades democráticas, advindos da
própria liberdade de expressão e pensamento.
A razão pública pode ser bem compreendida se percebermos que essa idéia faz
parte de uma concepção de sociedade democrática constitucional bem ordenada. Sendo a
forma e o conteúdo dessa razão pública parte da idéia de democracia. A razão pública
determina a relação que um governo democrático constitucional deve ter com os seus
cidadãos e a relação destes entre si. Rawls propõe que “na razão pública, as doutrinas
abrangentes de verdade ou direito sejam substituídas por uma idéia do politicamente
razoável dirigido ao [sic] cidadãos como cidadãos (RAWLS, 2001, p. 174). Aqueles que
rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão também a
idéia de razão pública.
A razão é pública de três maneiras: 1) é a razão do público, enquanto razão de
cidadãos livres e iguais; 2) seu tema é o bem público na medida em que diz respeito a
questões de justiça política fundamental, englobando elementos constitucionais essenciais e
questões de justiça básica; e 3) a sua natureza e conteúdo são públicos, expressos por uma
família de concepções razoáveis de justiça política no raciocínio público, que possam
satisfazer o critério de reciprocidade.
Rawls descreve cinco aspectos básicos da idéia de razão pública:
(1) as questões políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a
quem se aplica (funcionários do governo e candidatos a cargo público); (3)
seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis
de justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussões de normas
coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo
democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados
das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade
(RAWLS, 2001, p. 175).
39
Quanto ao primeiro aspecto, a idéia de razão pública se aplica às discussões das
questões políticas fundamentais no fórum político público. Esse rum é constituído pelo
discurso dos juízes (especialmente dos juízes de um tribunal superior); dos funcionários de
governo (especialmente executivos e legislativos principais); de candidatos a cargo público e
de seus chefes de campanha (especialmente nos discursos públicos, nas plataformas de
campanha e declarações políticas).
O segundo aspecto a ser observado é que a razão pública se aplica a juízes,
legisladores, executivos principais e outros funcionários do governo; assim como candidato a
cargo público – a esses a idéia de razão pública se aplica diretamente ao concretizarem o ideal
de razão pública. Esse ideal se concretiza quando as pessoas a quem se aplicam a idéia de
razão pública atuam a partir dela, a seguem e explicam a outros cidadãos suas razões para
sustentar posições políticas fundamentais em função da concepção política de justiça que
consideram como a mais razoável” (RAWLS, 2001, p. 178).
Os cidadãos que não são funcionários do governo podem também concretizar o ideal
de razão pública, mas, para isso, idealmente, os cidadãos devem pensar em si mesmos como
se fossem legisladores, e perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais razões
que satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável decretar(RAWLS,
2001, p. 178) Esse critério se assemelha ao princípio do contrato original de Kant. Essas
semelhanças, no entanto, não serão discutidas aqui.
Os cidadãos, enquanto membros de um regime representativo, tendem a repudiar os
funcionários públicos e os candidatos a cargos públicos que violam a razão pública. Essa
atitude é fundamental em uma democracia, pois os cidadãos além de cumprirem com o seu
dever de civilidade, fazem o que podem para que os funcionários do governo mantenham-se
fiéis à idéia de razão pública.
40
O conteúdo da razão pública no plano doméstico, que é o terceiro aspecto a ser
observado, é dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça, e não por
uma única. Isso significa que muitos liberalismos e visões relacionadas e, portanto, muitas
formas de razão pública. O liberalismo político não procura fixar a razão pública, mas admite
outras visões dessa mesma razão. Além disso, novas variações podem ser propostas de
tempos em tempos, e as antigas podem deixar de ser representadas” (RAWLS, 2001, p. 188).
Todas as formas de razão pública devem respeitar o critério de reciprocidade. Rawls
descreve três características que modelam as concepções políticas razoáveis de justiça e que,
para fazerem parte da razão pública, devem ser atendidas:
Primeiro, uma lista de certos direitos, liberdades e oportunidades básicas
(tais como as conhecidas de regimes constitucionais);
Segundo, uma atribuição de prioridade especial a esses direitos, liberdades e
oportunidades, especialmente no que diz respeito às reivindicações do bem
geral e dos valores perfeccionistas; e
Terceiro, medidas assegurando a todos os cidadãos os meios adequados a
quaisquer propósitos para que façam uso eficaz das suas liberdades.
(RAWLS, 2001, p. 186).
Para Rawls, todos os liberalismos têm como característica em comum endossar “[...]
as idéias subjacentes dos cidadãos como pessoas livres e iguais, e da sociedade como um
sistema justo de cooperação ao longo do tempo(RAWLS, 2001, p. 186). No entanto não
um consenso sobre como essas idéias são interpretadas. Como resultado, diferentes
formulações dos princípios de justiça e diferentes conteúdos da razão pública. As concepções
políticas desses liberalismos diferem no modo como ordenam ou equilibram princípios e
valores políticos.
Para participar da razão pública é necessário recorrer a uma dessas concepções políticas
ao debater questões políticas fundamentais. Uma característica do raciocínio público é que ele
deriva inteiramente de uma concepção política de justiça, mas isso não significa que nas
discussões políticas a doutrina abrangente professada pelos cidadãos seja ela religiosa ou
não-religiosa não possa ser introduzida no debate público, contanto que, no devido tempo,
41
ofereçamos razões adequadamente públicas para apoiar os princípios e políticas que a nossa
doutrina abrangente alegadamente sustenta. Refiro-me a essa exigência como proviso
[condição] [...]” (RAWLS, 2001, p. 189).
Segundo Rawls, a origem da idéia de razão pública é uma concepção de cidadania
democrática numa democracia constitucional”, sendo que essa cidadania realiza-se em uma
relação política segundo duas características:
Primeiro, é uma relação de cidadãos com a estrutura básica da sociedade,
uma estrutura em que entramos apenas pelo nascimento e da qual saímos
apenas pela morte; segundo, é uma relação de cidadãos livres e iguais, que
exercem o poder político último como corpo coletivo (RAWLS, 2001, p.
179).
Essas características suscitam a questão da lei legítima, de como os cidadãos
podem ser obrigados a honrar a estrutura básica do regime democrático constitucional e
aquiescer aos estatutos e leis decretados sobre ele. Sendo essa aplicação das concepções
políticas razoáveis em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei
legítima para um povo democrático, o quarto aspecto da razão pública.
Por quais idéias e princípios, então, os cidadãos que compartilham
igualmente o poder político último devem exercer esse poder para que cada
um possa justificar razoavelmente as suas decisões políticas para todos?
(RAWLS, 2001, p. 180).
A disposição jurídica que expressa a opinião da maioria é lei legítima quando todos os
funcionários governamentais adequados atuam a partir da razão pública e quando todos os
cidadãos razoáveis pensam em si mesmos como se fossem legisladores, seguindo a razão
pública no que se refere à questão constitucional essencial ou numa questão de justiça básica.
Isso não quer dizer que todos a aceitem como a mais adequada, mas é politicamente
obrigatória, visto que todos seguiram a razão pública e, ao exercerem o poder político,
acreditaram que ofereciam razões para as suas ações políticas e poderiam ser aceitas por
outros cidadãos, cumprindo assim o critério de reciprocidade. Satisfazendo o quinto aspecto
42
básico da razão pública: a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das suas
concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade. A aplicação do critério de
reciprocidade ocorre em dois níveis: um é na própria estrutura constitucional, o outro é o
dos estatutos e leis particulares decretados em conformidade com essa estrutura(RAWLS,
2001, p. 181). O papel do critério de reciprocidade, como expresso na razão política, é
especificar a natureza da relação política num regime democrático constitucional como uma
relação de amizade cívica” (RAWLS, 2001, p. 181).
Ao analisarmos essas cinco características pudemos perceber que a idéia de razão
política será rejeitada por aqueles que invocam razões segundo sua idéia de verdade inteira e
não de razões que possam ser compartilhadas por outros. O liberalismo político essa
insistência na verdade inteira na política como incompatível com a cidadania democrática e
a idéia de lei legítima” (RAWLS, 2001, p. 182).
Além desses aspectos, é importante ressaltar que a razão pública, como abordada por
Rawls, é parte integrante de uma democracia deliberativa, pois, ao deliberarem no que diz
respeito a questões políticas públicas, os cidadãos trocam pontos de vista e debatem as razões
que sustentam tais pontos de vista. Nesse processo, as opiniões políticas podem ser revistas
por meio da discussão com outros cidadãos. Portanto, em tal democracia, os cidadãos não têm
suas opiniões políticas como o resultado fixo dos seus interesses privados ou não-políticos. A
razão pública é crucial nesse ponto, pois caracteriza o raciocínio dos cidadãos quanto a
elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica” (RAWLS, 2001, p. 183).
Rawls descreve três elementos essenciais em uma democracia deliberativa:
Um é uma idéia de razão pública, embora nem todas as idéias de tal tipo
sejam as mesmas. Um segundo elemento é uma estrutura de instituições
democráticas constitucionais que especifique o cenário dos corpos
legislativos deliberativos. O terceiro é o conhecimento e o desejo dos
cidadãos em geral de seguir a razão pública e concretizar o seu ideal na
conduta política. (RAWLS, 2001, p. 183)
43
Para que a deliberação ocorra de forma adequada, é necessário o financiamento público
de eleições, o provimento de ocasiões públicas para a discussão ordenada e séria de questões
fundamentais e questões de política pública, instrução ampla sobre os aspectos básicos do
governo democrático para todos os cidadãos e um público informado a respeito de problemas
prementes, resoluções políticas e sociais cruciais simplesmente, sem as quais não se pode
decidir.
A deliberação pública deve ser possível, reconhecida como característica
básica da democracia, e livre da maldição do dinheiro. Do contrário, a
política é dominada por interesses corporativos e outros interesses
organizados, que através de grandes contribuições para as campanhas
eleitorais distorcem, quando não excluem, a discussão e a deliberação
públicas (RAWLS, 2001, p. 183-4).
Para que a razão pública possa ser plenamente desenvolvida é necessário também que
os princípios de tolerância e liberdade estejam difundidos. Em virtude do fato do pluralismo
razoável, eles são importantes na medida em que estabelecem “[...] a base fundamental a ser
aceita por todos os cidadãos como justa e regulamentadora da rivalidade entre doutrinas
(RAWLS, 2001, p. 200).
A idéia de tolerância pode ser expressa de duas maneiras: a primeira é puramente
política “[...] sendo expressa em função dos direitos e deveres que protegem a liberdade
religiosa em conformidade com uma concepção política razoável de justiça(RAWLS, 2001,
p. 200). A outra não é política, ela é expressa partindo-se de uma doutrina abrangente, que
justifica a tolerância com base em seus próprios pressupostos. Como exemplo disso, Rawls
lembra que uma determinada religião pode pensar que os limites para a sua liberdade,
impostos pela tolerância, são da vontade de Deus. Pensar dessa maneira é raciocinar a partir
da conjuntura, ou seja, o raciocínio parte do que se acredita de forma a endossar uma
concepção política razoável de justiça.
44
Essas duas formas de endossar a tolerância refletem um ponto central no liberalismo
político; o de que cidadãos livres e iguais afirmem ao mesmo tempo uma doutrina abrangente
e uma concepção política e que um consenso sobreposto razoável dessas doutrinas
abrangentes é o que sustenta a concepção política de justiça, de sociedades democráticas
razoáveis. No entanto, existem doutrinas abrangentes não-razoáveis, como as doutrinas
religiosas fundamentalistas, que conjuntamente com governantes autocráticos e ditatoriais
rejeitarão as idéias de razão pública e democracia deliberativa. As doutrinas irrazoáveis são
uma ameaça às instituições democráticas, pois lhes é impossível aquiescer a um regime
constitucional, exceto como um modus vivendi” (RAWLS, 2001, p. 234).
A existência de tais doutrinas deve ser tolerada, assim como as doutrinas razoáveis,
pois, segundo Rawls, não uma tolerância para os razoáveis e outra para os não-razoáveis.
A implicação da existência das doutrinas irrazoáveis é estabelecer um limite para a realização
plena de uma sociedade democrática razoável, com o seu ideal de razão pública e a idéia de
lei legítima.
A idéia de razão blica, uma vez que se encontra integrada ao fato do pluralismo
razoável, é de suma importância para o consenso sobreposto de doutrinas abrangentes, que,
embora incomensuráveis, podem sustentar uma mesma concepção política de justiça. Quando
da passagem da concepção liberal de justiça de um regime nacional para uma Sociedade dos
Povos, a razão pública permanece com um papel de destaque.
Na primeira parte da teoria ideal, seguindo os aspectos da idéia de razão pública,
temos que na Sociedade dos Povos a razão pública de povos liberais livres e iguais se aplica
ao debate das relações mútuas enquanto povos. Similarmente ao caso nacional, a idéia de
razão pública se aplica a executivos, legisladores e outros funcionários governamentais, assim
como candidatos a cargo público quando tratam de políticas externas. O ideal de razão pública
45
se realiza sempre que eles ajam conforme os princípios do Direito dos Povos, explicando a
outros povos as suas razões para seguir ou rever a política externa de seu povo no que envolve
outras sociedades. Além disso, esse ideal também se realiza quando os cidadãos pensam em si
mesmos como se fossem executivos e legisladores, e perguntam a si mesmos quais políticas
externas julgariam mais razoáveis propor a outros povos. Quanto ao conteúdo, o ideal de
razão pública é composto pelos oito princípios de Direito dos Povos. Nesse ponto, o critério
de reciprocidade também é requerido pela razão pública, ou seja, os que propõem princípios
para a política externa devem pensar sinceramente que o outro povo pode razoavelmente
aceitá-los.
Na segunda parte da teoria ideal, Rawls não enfoca a razão pública da forma como faz
na primeira parte, talvez por considerar desnecessário. No entanto, os povos decentes também
devem honrá-la, visto que é importante para uma adequada aplicação da segunda posição
original.
Usando a razão pública, tanto os cidadãos em uma sociedade nacional quanto povos
liberais e decentes em uma Sociedade dos Povos, poderão sustentar uma concepção política
pública de justiça baseada em princípios que podem ser aceitos por todos os razoáveis e
decentes como o mais adequado.
A partir do esclarecimento das concepções de contrato social, posição original,
véu de ignorância, consenso sobreposto, justiça procedimental pura, construtivismo político,
método de esquiva e razão pública, poderemos entender melhor algumas questões acerca da
forma pelo qual a teoria da justiça como eqüidade – elaborada para o caso da sociedade bem-
ordenada e para o caso doméstico posteriormente foi aplicada também ao caso da justiça
global, no que se refere à relação entre povos. No próximo capítulo veremos a primeira
aplicação do modelo para o caso da justiça global.
3. A SEGUNDA POSIÇÃO ORIGINAL: A INSTITUIÇÃO DA
SOCIEDADE DOS POVOS
Rawls começa o prefácio de O Direito dos Povos explicando a escolha do termo
povos:
Escolhi primeiro o nome 'povos' em lugar de 'nações' ou 'Estados' porque
quis conceber os povos como tendo características diferentes das que têm os
Estados, sendo inadequada a idéia de Estados tal como tradicionalmente
concebida, com os seus poderes de soberania. (RAWLS, 2001, p. XVII).
Neste livro, Rawls estende a idéia do contrato social à Sociedade dos Povos e expõe os
princípios gerais que podem ser aceitos como padrão para regulamentar o comportamento das
sociedades bem-ordenadas (sociedades liberais, e não-liberais mas decentes) perante outras,
sendo tal contrato global a segunda posição original.
O Direito dos Povos e A idéia de razão pública são para Rawls o ápice de suas
reflexões acerca do modo como os cidadãos e povos podem viver juntos pacificamente:
Com 'Direito dos Povos' quero referir-me a uma concepção política
particular de direito e justiça, que se aplica aos princípios e normas do
Direito e da prática internacionais. Usarei o termo 'Sociedade dos Povos'
para designar todos os povos que seguem os ideais e os princípios do Direito
dos Povos nas suas relações mútuas. Esses povos têm os seus próprios
governos internos, que podem ser democráticos, liberais e constitucionais ou
governos não-liberais mas decentes. Neste livro considerarei como o
conteúdo do Direito dos Povos poderia ser desenvolvido a partir de uma
idéia liberal de justiça, similar, mas mais geral, à idéia que chamo justiça
como eqüidade em Uma teoria da justiça (1971). Essa idéia de justiça
baseia-se na idéia familiar de contrato social, e o processo seguido antes que
os princípios de direito e justiça sejam selecionados e acordados é, de certa
maneira, o mesmo no caso nacional e no internacional. (RAWLS, 2001, p. 3-
4)
Ao desenvolver o Direito dos Povos dentro do liberalismo político, sendo uma
extensão da concepção liberal de justiça do caso interno para o externo, Rawls elabora os
ideais e princípios de um povo liberal razoavelmente justo para a política externa. O fato de o
47
Direito dos Povos incluir também povos não-liberais não tem a intenção de prescrever
princípios de justiça para esses povos, mas pretende verificar se as idéias e princípios da
política exterior de um povo liberal também são razoáveis do ponto de vista não-liberal. Essa
garantia é necessária porque a visão liberal admite a existência de pessoas e povos não-
liberais que, para conviverem pacificamente, é importante, além da tolerância, aceitarem
entre si os mesmos princípios básicos fundamentais. A extensão do Direito dos Povos às
sociedades não-liberais será tratada no capítulo quatro.
Rawls define o seu trabalho sobre o caso internacional apelando à sua idéia de
uma utopia realista:
Esta monografia sobre o Direito dos Povos não é um tratado nem um texto
didático sobre Direito internacional. Antes, é um trabalho concentrado
estritamente em certas questões que se ligam a ser ou não possível uma
utopia realista e às condições sob as quais ela se poderia realizar. Começo e
termino com a idéia de uma utopia realista. (RAWLS, 2001, p. 6)
A idéia de utopia realista é considerada por Rawls como sendo essencial. Críticas de que
elementos utópicos podem ser um sério defeito na cultura política de uma sociedade quando
estão a serviço do poder não se aplicam porque Rawls utiliza o caráter utópico para colocar
limites ao exercício razoável do poder, mas expande os limites do possível em termos do que
pode ser construído para uma sociedade mais justa.
As duas idéias principais que motivam o Direito dos Povos estão profundamente
ligadas à idéia de utopia realista:
Uma é que os grandes males da história humana - a guerra injusta e a
opressão, a perseguição religiosa e a negação da liberdade de consciência, a
fome e a pobreza, para não mencionar o genocídio e o assassinato em massa
- decorrem da injustiça política, com as suas crueldades e brutalidades. [...]
[Outra é que] assim que as formas mais graves de injustiça política são
eliminadas por políticas sociais justas (ou, pelo menos, decentes) e
instituições básicas justas (ou, pelo menos, decentes), esses grandes males
acabarão por desaparecer. (RAWLS, 2001, p. 7-8)
Ou seja, sabendo-se o que provoca os grandes males da humanidade, pode-se,
expandindo os limites do possível, concretizar o sonho de uma sociedade justa pela adoção de
48
políticas sociais e instituições básicas justas. A adoção de uma estrutura de instituições
políticas e sociais razoáveis e justas não só combate os grandes males referidos como também
garante que esses males não se repetirão no futuro. Os cidadãos, ao crescerem sob tais
instituições, afirmá-las-ão ao longo do tempo e atuarão para que seu mundo social perdure por
longo tempo. Isso porque tais instituições podem ser endossadas, aprovadas e compreendidas
pelos cidadãos.
O roteiro adotado por Rawls é realisticamente utópico porque poderia existir e, ao
mesmo tempo, é altamente desejável, porque une razoabilidade e justiça às condições que
tornam possível a realização dos interesses fundamentais dos cidadãos. Para sua
concretização, é necessário que seja levado em conta o limite do possível. Precisamente a
filosofia política é realisticamente utópica quando estende o que comumente pensamos ser os
limites da possibilidade política praticável e, ao fazê-lo, nos reconcilia com a nossa condição
política e social” (RAWLS, 2001, p. p.15). Aqui duas palavras são chave para a compreensão
de utopia realista: limites da possibilidade e reconciliação. O que determina aqueles limites é,
para Rawls, a condição histórica favorável à sociedade democrática constitucional
razoavelmente justa, que é a sociedade idealizada mais factível, ou seja, realisticamente
utópica, bem como as leis e tendências da sociedade.
O fato do pluralismo razoável limita o que é possível apesar desse limite ser
flexível pois se pode, em menor ou maior grau, mudar as instituições políticas e sociais,
dentre outras, visto que estas são criadas historicamente. Essa é a razão pela qual é difícil
demarcar os limites do praticável e quais são as condições do nosso mundo social. Em vista
disto, podemos nos valer de conjunturas e especulações com bons argumentos que sejam
capazes de fazer crer que o mundo social que é proposto por Rawls é factível e pode existir.
Para Rawls, o fato do pluralismo razoável é mais que uma simples contingência;
49
ele é um elemento fundamental; faz parte das condições históricas para a existência de uma
sociedade democrática razoavelmente justa, de acordo com sua visão liberal. Por mais que se
possa pensar em uma sociedade homogênea, onde todos defendam uma mesma doutrina
abrangente, isso extrapolaria os limites do possível, no plano doméstico e especialmente na
Sociedade dos Povos, visto que, no plano internacional, as diversidades são maiores e, apesar
disso, devem ser aceitáveis por povos razoáveis.
A impossibilidade de existir um mundo onde todos professem a mesma doutrina
abrangente não deve ser motivo de descontentamento nem de resignação, mas antes deve ser
aceita e afirmada, pois o pluralismo faz parte da natureza e cultura de instituições justas. Esse
tipo de sociedade é a que garante uma maior justiça política e liberdade perante outras
possibilidades socialmente viáveis. Afirmar isso com argumentos convincentes é o que Rawls
chama de reconciliação com a nossa condição histórica.
Rawls descreve sete condições sendo as duas primeiras as condições realistas
para que exista a utopia realista, primeiramente descrita para o caso interno
1
e posteriormente
para a Sociedade dos Povos. Se tais condições fossem válidas, a Sociedade dos Povos seria
também um caso de utopia realista. As três primeiras condições, segundo Rawls, são
facilmente comprovadas para o caso internacional, as outras não.
i) Rawls expõe duas condições para que uma concepção liberal de justiça seja
realista: a) deve valer-se de leis efetivas da natureza de forma a alcançar a estabilidade pelas
razões certas. Essa estabilidade é adquirida ao se nascer sob instituições justas e ao participar
delas. Valer-se de leis efetivas da natureza significa tomar as pessoas como são [...] e as leis
constitucionais e civis tal como poderiam ser(RAWLS, 2001, p. 17). Aqui, Rawls afirma
1
Essa descrição para o caso interno foi desenvolvida pela primeira vez no próprio Direito dos Povos. Depois foi
retomada na introdução de Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação.
50
estar seguindo o pensamento de Rousseau, apresentado na abertura do Contrato Social; e b)
os seus primeiros princípios e preceitos sejam funcionais e aplicáveis a arranjos políticos e
sociais em andamento (RAWLS, 2001, p. 18). Deve-se, portanto, levar em conta as
condições sociais existentes e propor princípios e preceitos que possam ser observáveis na
sociedade em seu estágio atual.
A Sociedade dos Povos é realista da mesma forma que a sociedade interna liberal
ou decente, pois nela se tomam os povos tais como são e o Direito dos Povos como deveria
ser. O Direito dos Povos é funcional porque pode ser aplicado a arranjos em andamento. Por
causa dessas condições foi essencial que se adotassem povos, com seus atributos morais, ao
invés de Estados.
ii) Para que uma concepção política de justiça seja utópica é condição necessária
que use idéias, princípios e conceitos (morais) para caracterizar uma sociedade razoável e
justa. No caso do Direito dos Povos, ela caracteriza os arranjos políticos e sociais
razoavelmente certos e justos para a Sociedade dos Povos. Além disso, os princípios dessas
concepções de justiça devem satisfazer o critério de reciprocidade, critério segundo o qual, ao
se proporem os termos de cooperação, deve-se pensar que esses termos são os mais razoáveis
e podem ser aceitos por outros enquanto cidadãos ou povos livres e iguais.
iii) Uma terceira condição para uma utopia realista exige que a categoria do
político contenha em si todos os elementos essenciais para uma concepção política de
justiça(RAWLS, 2001, p. 20), ou seja, todos os elementos essenciais para a construção de
uma concepção política de justiça devem pertencer à esfera política. No caso do Direito dos
Povos, isso é satisfeito porque Rawls estende a concepção política liberal da democracia
constitucional para as relações entre os povos, e, ao fazer isso, tais elementos políticos
continuam no âmbito do político. O mesmo não ocorre no caso de doutrinas abrangentes que
51
sempre se estendem para além dele.
iv) Neste ponto, Rawls apresenta uma idéia de utopia realista definida por ele
como sumamente institucional. As democracias constitucionais devem ter instituições
políticas e sociais que proporcionem aos cidadãos adquirir um senso de justiça à medida que
crescem e participam da sociedade, bem como as virtudes políticas de cooperação social,
como um senso de imparcialidade e tolerância e disposição para soluções de compromisso
com os outros. Essa idéia é condizente com o fato do pluralismo razoável.
No caso internacional, o processo institucional viabiliza aos membros de
diferentes sociedades bem-ordenadas desenvolver o senso de justiça e apoiar governos que
honram o Direito dos Povos. Rawls admite que a lealdade ao Direito dos Povos pode não ter a
mesma intensidade em todos os povos, mas deve ser suficiente, idealmente falando. Essa
lealdade é tratada por Rawls como sendo a afinidade do povo com o Direito dos Povos.
v) Segundo a concepção liberal, a estabilidade social não depende de que todos
adotem uma mesma doutrina abrangente. Deve antes ser baseada numa concepção política
razoável de direito e justiça determinada pelo consenso sobreposto de doutrinas abrangentes.
Na sociedade dos povos ocorre algo similar. Não existe necessidade de uma unidade religiosa,
filosófica ou política, pois a estabilidade está baseada no conteúdo da razão pública, associada
aos princípios de justiça nas sociedades democráticas.
vi) Outra condição é que a concepção política deve conter uma idéia razoável de
tolerância, derivada de idéias extraídas da categoria do político. Assim, tal idéia de tolerância
poderá ter sua razoabilidade demonstrada pela razão pública. Tal idéia também é válida na
Sociedade dos Povos pelo fato de conter mais doutrinas abrangentes do que qualquer
sociedade individual, o que torna inevitável a idéia de tolerância, visto que os povos razoáveis
devem empregar a Razão Pública em suas relações.
52
Segundo Rawls, muitos podem questionar se a idéia de uma sociedade dos povos
justa, baseada na utopia realista é possível, visto que na história ocorreram episódios de
extremo desrespeito a outros povos e aos Direito Humanos, como o caso do holocausto
promovido pelos nazistas, e os graves casos de intolerância religiosa, como os que
provocaram massacres durante as Guerras de Religião dos séculos XVI e XVII. A resposta
de Rawls é que tais fatos não devem destruir a esperança na possibilidade de construção de
uma Sociedade dos Povos, caso contrário significaria que tais condutas venceram e
determinaram o futuro das relações entre povos.
Rawls esclarece que, ao adotar a idéia de uma utopia realista, foram deixadas de
lado, ou apenas tratadas ligeiramente, algumas questões importantes. Dentre tais questões
encontram-se o problema da guerra injusta, a imigração, e as armas nucleares e as armas de
destruição em massa. Entretanto, tais questões foram abordadas na parte da teoria não-ideal,
teoria essa que não faz parte da utopia realista, mas que é necessária para lidar com os casos
de não aquiescência. A existência de Estados fora da lei justificaria a abordagem de tais
questões mesmo que elas se apresentem como parte exterior a utopia realista. Vislumbrar tais
questões ajudaria a definir os limites do possível e a possibilidade de expandir tais limites.
Sociedades democráticas não têm nenhum motivo para entrar em guerra contra
outras sociedades democráticas. As guerras dinásticas, dentre elas as travadas no período
moderno inicial na Europa, eram tradicionalmente desencadeadas com o intuito de conquistar
territórios, defender uma religião tida como verdadeira, ou, simplesmente, por poder e glória.
E ainda é assim para os Estados fora da lei.
O fato crucial da paz entre democracias baseia-se na estrutura interna das
sociedades democráticas, que não são tentadas a guerrear exceto em
autodefesa ou em casos graves de intervenção em sociedades injustas para
proteger os direitos humanos. Como as sociedades democráticas
constitucionais oferecem segurança recíproca, a paz reina entre elas.
(RAWLS, 2001, p. 9-10)
53
Os motivos tradicionais de migração tais como, perseguição religiosa ou
política, fome e a pressão populacional não ocorrem quando a sociedade é bem-ordenada,
pois, nesse tipo de sociedade, justiça social e respeito aos direitos humanos e políticos dos
cidadãos, não havendo motivo para o desejo de emigrar. Além disso, há uma responsabilidade
com respeito ao tamanho da população, ocorrendo um controle de forma indireta advinda do
fato das mulheres em tal sociedade terem seus direitos e liberdades assegurados. Vale
ressaltar que muitos dos motivos de emigração são causados por omissões políticas e pela
falta de um governo decente.
Portanto, a liberdade religiosa e a liberdade de consciência, a liberdade
política, as liberdades constitucionais e a igual justiça para as mulheres são
aspectos fundamentais de política social judiciosa a favor de uma utopia
realista. O problema da imigração não é então, simplesmente deixado de
lado, mas eliminado como problema sério numa utopia realista. (RAWLS,
2001, p. 11).
No que diz respeito ao controle de armas nucleares e de destruição em massa,
Rawls afirma que, como povos bem-ordenados não têm razões para guerrear, tal controle seria
fácil e tais armas poderiam ser banidas com facilidade. Porém, como no mundo Estados
fora da lei, é necessário que os povos liberais e decentes mantenham algumas destas armas
para efeito de coação, de modo a inibir ofensivas de estados expansionistas. Rawls ressalta
que o melhor modo de fazer esse controle não cabe à filosofia decidir, mas as questões morais
relativas ao uso de tais armas, sim.
Rawls descreve cinco tipos de sociedades nacionais: os povos liberais razoáveis
[reasonable liberal peoples] (aqueles que aderem aos princípios do Estado democrático de
direito); os povos decentes [decent peoples] (povos não-liberais que reconhecem e protegem
os direitos humanos e políticos dos seus cidadãos, bem como adotam uma hierarquia de
consulta decente); Estados fora da lei [outlaw states] (regimes que se recusam a aquiescer a
um Direito dos Povos razoável, recorrendo à guerra e ao terrorismo para promover seus
54
interesses não-razoáveis); sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis [societies
burdened by unfavorable conditions]; os absolutismos benevolentes [societies that are
benevolent absolutisms] (povos que honram os direitos humanos, mas negam aos seus
membros um papel significativo nas decisões políticas).
Rawls dividiu a exposição do Direito dos Povos em três partes, sendo as duas
primeiras dedicadas à teoria ideal e a terceira à teoria não ideal. Na primeira parte da teoria
ideal, é abordada a expansão da idéia do contrato social à sociedade dos povos democráticos
liberais. Na segunda, esse contrato abrange também as sociedades dos povos decentes, de
modo a mostrar que tanto povos liberais como não-liberais decentes concordariam com o
mesmo Direito dos Povos. Uma Sociedade dos povos é razoavelmente justa no sentido de
que os membros seguem o Direito dos Povos razoavelmente justo nas suas relações mútuas
(RAWLS, 2001: 5).
Na terceira parte, Rawls trata da teoria não-ideal, na qual dois aspectos são
vislumbrados: 1) O caso das condições de não-aquiescência e de como as sociedades bem-
ordenadas devem lidar com os Estados fora da lei, de modo a se defenderem; e 2) o caso das
condições desfavoráveis, [...] das condições de sociedades cujas circunstâncias históricas,
sociais e econômicas tornam difícil, se não impossível, alcançar um regime bem-ordenado,
liberal ou decente. (RAWLS, 2001, p. 6). Rawls também aborda a questão do dever de
assistência de povos bem-ordenados para com essas sociedades sob tais ônus. Neste trabalho
trataremos apenas das duas primeiras partes, pelo motivo já exposto na introdução.
Rawls escolheu o termo Povos
2
, em detrimento do termo Estados, por causa das
características básicas dos povos democráticos liberais. Povos são, para o liberalismo
2
Rawls utiliza em seu livro a expressão “The term ‘peoples’ [...]” (O termo povos), no entanto a questão não é
apenas uma mera escolha de palavras, mas sim a delimitação do sujeito que atua na Sociedade dos Povos.
55
político, os atores na Sociedade dos Povos, assim como os cidadãos na sociedade nacional. A
descrição dos povos no liberalismo político se por meio das concepções políticas que
especificam a sua natureza, uma natureza [...] de povos atuando por meio dos seus
governos (RAWLS, 2001, p. 30). São três as características básicas dos povos liberais: 1)
um governo constitucional razoavelmente justo, ou seja, sob o controle político e eleitoral do
povo que defende e representa seus interesses fundamentais, sendo regulado por uma
constituição (aspecto institucional); 2) cidadãos unidos pelas afinidades comuns
3
, que se
referem aqui a um desejo de estar sob o mesmo governo democrático (RAWLS, 2001, p.
32). Outras afinidades são possíveis, como uma mesma língua, história ou cultura. No
entanto, tais afinidades não seriam plenamente satisfeitas em virtude de imigrações (aspecto
cultural); 3) natureza moral: os povos liberais, assim como os cidadãos em uma sociedade
nacional, são razoáveis e racionais, sendo suas ações racionais limitadas pela sua percepção
do que é razoável. Além disso, os povos liberais oferecem termos de cooperação justos a
outros povos, respeitando os princípios da reciprocidade.
Outra razão pela qual Rawls usa o termo "povos" é que esses carecem da
soberania tradicional que os Estados possuem.
O termo ''povos'', então, tem a intenção de enfatizar essas características
singulares dos povos como distintos dos Estados, tal como tradicionalmente
concebidos, e destacar o seu caráter moral e a natureza razoavelmente justa,
ou decente, dos seus regimes. É significativo que os direitos e deveres dos
povos no que diz respeito à sua chamada soberania derivam do próprio
Direito dos Povos, com os quais concordariam juntamente com outros povos
em circunstâncias adequadas. Como povos justos ou decentes, as razões para
a sua conduta estão de acordo com os princípios correspondentes. Não são
movidos unicamente pelos seus interesses prudentes ou racionais, as
chamadas razões de Estado. (RAWLS, 2001, p. 35-6)
A soberania confere aos Estados uma autonomia (interna) no modo de tratar seu próprio povo
autonomia esta considerada errada segundo a perspectiva de Rawls e confere o direito de
3
Essa idéia de afinidades comuns é desenvolvida seguindo o pensamento de J. S. Mill, apresentada em
Considerações sobre o Governo Representativo (1860-2), no qual ele utiliza a idéia de nacionalidade para
descrever a cultura de um povo.
56
guerrear no desempenho de políticas estatais segundo os interesses prudentes racionais de
Estado. O direito à guerra é aceitável dentro do Direito dos Povos, ou seja, regulado por
regras, e não como direito de Estado.
Rawls propõe que os poderes da soberania dos Estados sejam limitados. Essa
proposta é condizente com as expectativas recentes de reforma sobre como o Direito
Internacional deve ser compreendido. A idéia é de limitar o direito de guerrear de um
Estado a casos de autodefesa (também no interesse da segurança coletiva) e a restringir o
direito de soberania interna de um Estado (RAWLS, 2001, p. 35).
Os povos liberais diferem de Estados por limitarem seus interesses básicos pelos
critérios do razoável, da reciprocidade. Povos liberais desejam
proteger o seu território, garantir a segurança dos seus cidadãos, preservar
suas instituições políticas livres e as liberdades e a cultura livre da sua
sociedade civil. Além desses interesses, um povo liberal tenta assegurar
justiça razoável para todos os seus cidadãos e para todos os povos (RAWLS,
2001, p. 38).
Esses interesses permitem aos povos liberais conviverem pacificamente com outros povos.
Quão grande é essa diferença, entre povos e Estados, depende de como a racionalidade, as
preocupações com o poder e os interesses básicos dos Estados são definidos e aplicados nas
relações mútuas. Se a racionalidade exclui o razoável “[...] então, a diferença entre Estados e
povos é enorme (RAWLS, 2001, p. 37).
Vale ressaltar aqui que, apesar de ser arbitrária, a fronteira nacional no Direito
dos Povos tem o papel de desenvolver a responsabilidade do povo e de seu governo pelo seu
território, pela manutenção e preservação da integridade ambiental e pelo tamanho da
população. Tais cuidados com o território afastarão a necessidade de conquistar outros
territórios ou a necessidade de migração.
Rawls defende que o modelo da posição original é versátil, pois pode ser
57
aplicado a duas situações distintas. As diferenças se encontram no modo como as partes são
compreendidas em cada caso. Como dissemos, a posição original, com o véu de ignorância, é
um modelo de representação para as sociedades liberais, modelando a relação entre as partes
- na primeira posição, os cidadãos, e, na segunda, os povos -, sob condições razoáveis e
justas, bem como com as restrições adequadas às razões.
Rawls apresenta cinco características básicas da Posição Original, seja na
aplicação ao plano doméstico, seja no plano internacional. Para a primeira aplicação:
(1) a posição original modela as partes como representando os cidadãos
imparcialmente; (2) ela os modela como racionais, e (3) ela os modela
selecionando, dentre princípios de justiça disponíveis, aqueles que se
aplicam ao sujeito adequado, que é, nesse caso, a estrutura básica. Além
disso, (4) as partes são modeladas como fazendo essas seleções pelas razões
adequadas, e (5) como selecionando por razões relacionadas com os
interesses fundamentais dos cidadãos como razoáveis e racionais. (RAWLS,
2001, p. 39-40)
Na segunda posição original, os representantes do povo são:
(1) razoável e justamente situados como livres e iguais e os povos são (2)
modelados como racionais. Também os seus representantes estão (3)
deliberando a respeito do tema correto, neste caso o conteúdo do Direito dos
Povos. (Aqui, podemos ver esse Direito como governando a estrutura básica
das relações entre os povos.) Além disso, (4) as suas deliberações
prosseguem em termos das razões certas (como restritas por um véu de
ignorância). Finalmente, a seleção de princípios para o Direito dos Povos
baseia-se (5) nos interesses fundamentais de um povo, dados, nesse caso, por
uma concepção liberal de justiça (já selecionada na primeira posição
original). (RAWLS, 2001, p. 43)
A imparcialidade é garantida porque em ambas as posições os representantes das
partes estão situados simetricamente. Simetria resultante do uso do véu de ignorância e de os
povos se considerarem como livres e iguais. Lembramos que, nesse momento da primeira
aplicação da segunda posição original, povos liberais participam do contrato. As partes
decidem por razões adequadas porque o véu de ignorância os impede de invocar razões
inadequadas. Na primeira posição original, as partes são racionais na medida em que visam
defender os interesses básicos dos cidadãos que representam, interesses esses especificados
58
pelos bens primários, ou seja, pelas suas necessidades básicas como cidadãos. Na segunda
posição, as partes são racionais porque selecionam os princípios para o Direito dos Povos
guiadas pelos interesses fundamentais das sociedades democráticas, expresso pelos
princípios liberais de justiça.
De acordo com as distinções no uso do modelo do contrato, os cidadãos dentro de
uma sociedade nacional liberal têm doutrinas abrangentes do bem, e, para lidar com suas
necessidades como cidadãos, é usada a idéia de bens primários. Já os povos de uma
democracia constitucional não têm, como povos liberais, nenhuma doutrina abrangente do
bem. Os interesses fundamentais dos cidadãos são compostos pela sua concepção do bem e
pela realização, em um grau adequado, dos seus dois poderes morais (senso de justiça e
concepção
do bem). Já os interesses fundamentais de um povo
como povo são
especificados pela sua
concepção política de justiça e pelos princípios à luz dos quais
concorda com o Direito dos Povos.
Rawls propõe oito princípios do Direito dos Povos, baseando-se em princípios
tradicionais de justiça entre povos liberais democráticos, que seriam o objeto da segunda
posição original.
1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência
devem ser respeitadas por outros povos.
2. Os povos devem observar tratados e compromissos.
3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam.
4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção.
5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a
guerra por outras razões que não a autodefesa.
6. Os povos devem honrar os direitos humanos.
7. Os povos devem observar certas restrições especificas na conduta de
guerra.
8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições
desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou
decente. (RAWLS, 2001, p. 47-8)
Diferentemente da primeira posição original, na qual as partes recebem um menu
de possibilidades de princípios e idéias a escolher, na segunda posição original cabe às partes
59
escolherem entre as diferentes formulações e interpretações dos oito princípios do Direito dos
Povos, citados acima. No argumento da posição original do segundo nível, Rawls considera
os méritos apenas dos oitos princípios do Direito dos Povos já selecionados.
Para Rawls, [...] os oitos princípios do Direito dos Povos são superiores a
quaisquer outros (RAWLS, 2001, p. 52). Para justificar tal superioridade, Rawls começa
analisando a diretriz básica da igualdade a igualdade de todos os povos e os seus direitos
iguais seguindo o mesmo roteiro usado na justiça como eqüidade para examinar os
princípios distributivos. No caso do Direito dos Povos, não cabe vislumbrar se algum grau de
desigualdade seria aceitável, ainda que fosse para o benefício de todos e em especial dos
menos favorecidos, como na análise do caso nacional. No Direito dos Povos, as pessoas estão
sob vários governos e os representantes dos povos procurarão garantir a igualdade e
independência de suas próprias sociedades. No funcionamento de organizações e de
confederações de povos [...] frouxas, as desigualdades têm o objetivo de servir os muitos fins
que as pessoas compartilham” (RAWLS, 2001, p. 53).
Na primeira aplicação do modelo, a pergunta é se haveria concordância com
algum desvio da diretriz da igualdade, mesmo que fosse para o benefício de todos os
membros da sociedade, e em particular dos menos favorecidos. Já na segunda, as pessoas
estão sob vários governos, e os representantes dos povos desejarão preservar a igualdade e a
independência da sua própria sociedade. Segundo Rawls, as desigualdades não constituem
problema na relação entre os povos caso eles estejam dispostos a receber retornos
proporcionais à sua contribuição na federação dos povos
4
.
Formas de associações e federações cooperativas entre povos são viáveis, visto
que são adotados princípios de igualdade entre os povos. Pode acontecer de haver
4
Essa posição de Rawls é questionada por alguns rawlsianos como Thomas Pogge e Charles R. Beitz.
60
[organizações que seriam responsáveis para regular tal cooperação entre os povos] e de
cumprir certos direitos reconhecidos" (RAWLS, 2001, p. 46-7). Rawls fala aqui de uma
ONU idealmente concebida, que tivesse a autoridade de expressar a sua condenação a
instituições nacionais injustas e esclarecer casos de violações aos Direitos Humanos. Em
casos graves, poderia impor sanções econômicas ou mesmo determinar intervenção militar
com o objetivo de sanar tais problemas. Além disso, a organização teria uma abrangência
sobre todos os povos pactuantes, incluindo questões internas relevantes. Rawls, assim como
Kant, considera um Estado mundial como um governo frágil em virtude de conflitos internos
em busca de autonomia política de cada povo. Assim, Rawls não o vislumbra como uma
possibilidade para a Sociedade dos Povos.
Thomas Pogge questiona se tal pressuposição reflete uma avaliação moral ou está
enraizado em fatos empíricos (2001, p. 248). Pogge argumenta que, em Uma Teoria da
Justiça, Rawls admite a possibilidade de uma população com tamanho indeterminado ser
capaz de se auto organizar institucionalmente em um “sistema fechado” e “auto-suficiente”.
Rawls imaginava uma divisão entre povos distintos mas, segundo Pogge, não nenhuma
indicação de que a ordem social proposta é moralmente aceitável somente se existir
estrangeiros, não sujeitos a estas regras. Em O Direito dos Povos, Rawls teria adotado um
procedimento dogmático a respeito de um governo mundial ao seguir a visão de Kant em A
Paz Perpétua, ou seja, ele não explica porque não seria viável um Estado mundial e não
aponta razões para um futuro no qual o significado do Estado desaparecendo, enquanto o
de associações e comunidades supra-territoriais e não territoriais venha a crescer. Na verdade,
essa questão é bastante controversa desde a própria arbitrariedade da delimitação da maioria
dos Estados, havendo casos de Estados habitados por vários povos, povos divididos em
vários Estados e povos sem Estados.
Rawls propõe três organizações cooperativas cujas diretrizes seriam formuladas
61
na segunda posição original: 1) uma estrutura para assegurar padrão de eqüidade nas relações
comerciais de forma a garantir um mercado de cooperação livre vantajoso para todos, no qual
as economias mais ricas não tenham a pretensão de criar monopólios ou cartéis. Isso seria
aceito por todos os povos supondo que estejam sob o véu de ignorância, não sabendo,
portanto, se sua própria economia seria grande ou pequena, seria algo análogo ao GATT e a
OMC; 2) uma organização responsável por um sistema bancário cooperativo no qual os
povos cooperados tenham acesso a um sistema de empréstimos a juros adequados, sendo
análoga ao Banco Mundial; 3) uma Confederação de Povos cujo papel seria similar ao da
Organização das Nações Unidas.
Rawls descreve duas formas de estabilidade no plano internacional: a
estabilidade pelas razões certas e a estabilidade como equilíbrio de forças (Modus Vivendi).
Quanto à primeira, Rawls acredita que, do mesmo modo como ocorre no caso nacional, no
caso do Direito dos Povos, enquanto utopia realista, também deve haver um processo pelo
qual os povos desenvolvam um senso de justiça de modo a aceitar as normas do Direito dos
Povos de boa vontade, desenvolvendo uma confiança mútua. Isso se dá com a aceitação
dessas normas pelos povos, ao longo de determinado tempo, transformando-as em um ideal
de conduta. Rawls ressalta que, sem tal processo psicológico, que ele chama de aprendizado
moral, a idéia de utopia realista para o Direito dos Povos carece de um elemento
essencial” (RAWLS, 2001, p. 57). Esse tipo de estabilidade difere de um mero modus
vivendi; baseia-se em parte no senso de justiça e na fidelidade ao Direito dos Povos.
A estabilidade pelas razões certas inclui a idéia de paz democrática entre povos,
que é, segundo Rawls, a união de no mínimo duas idéias: 1) apesar de desastres naturais que
não podem ser evitados, as instituições políticas e sociais podem ser revistas e reformuladas
pelo povo com vista a melhorar a vida dos cidadãos. 2) o comércio tende a levar a paz, pois o
que falta aos povos democráticos
62
[...] em bens eles poderiam adquirir com mais facilidade e menor preço pelo
comércio e porque, sendo democracias constitucionais liberais, não seriam
impelidos a tentar converter outros povos a uma religião estatal ou a uma
doutrina abrangente de governo.(RAWLS, 2001, p. 60).
Um ponto importante para a paz democrática é que os povos se respeitam mutuamente e
reconhecem a igualdade entre os povos como compatível com esse respeito (RAWLS,
2001, p. 61). Rawls compara sua idéia de paz democrática com o que Raymond Aron chama
de paz por satisfação, paz que só é plenamente alcançável se for compartilhada por todos os
povos.
Rawls apresenta cinco instituições que são também exigências no plano
doméstico para alcançar a estabilidade pelas razões certas.
(a) Certa igualdade imparcial de oportunidade, especialmente na educação.
(Do contrário, nem todas as partes da sociedade podem participar dos
debates da razão pública nem contribuir para as políticas sociais e
econômicas.)
(b) Uma distribuição decente de renda e riqueza que satisfaça a terceira
condição do liberalismo: devem ser garantidos a todos os cidadãos os meios
para todos os propósitos, necessários para que tirem vantagem inteligente e
eficaz das suas liberdades básicas. (Na ausência dessa condição, os que têm
riqueza e renda tendem a dominar os que têm menos e a controlar cada vez
mais o poder político a seu favor.)
(c) A sociedade como empregador de última instância por meio do governo
geral ou local ou de outras políticas sociais e econômicas. (A ausência de
uma percepção de segurança e da oportunidade de trabalho e ocupação
significativos destrói não apenas o auto-respeito dos cidadãos, mas sua
percepção de serem membros da sociedade, não de simplesmente estarem
presos a ela.) (RAWLS, 2001, p. 64)
(d) Assistência médica básica assegurada para todos os cidadãos.
(e) Financiamento público das eleições e maneiras de assegurar a
disponibilidade de informação pública em questões de política. (Uma
formulação da necessidade de assegurar que os representantes e outros
funcionários sejam suficientemente independentes de interesses sociais e
econômicos particulares e de prover o conhecimento e a informação sobre os
quais as políticas podem ser formadas e inteligentemente avaliadas pelos
cidadãos.) (RAWLS, 2001, p. 65)
Essas exigências abrangem pré-requisitos para a estrutura básica da sociedade ser capaz de
preservar as liberdades básicas e impedir que as desigualdades econômicas se tomem
excessivas.
63
As características apresentadas suscitam várias questões a respeito de sua função
na sociedade e da prioridade de um ponto ou outro. Quanto a isso, Rawls não oferece
respostas porque, segundo ele, não existem dados históricos suficientes. O ponto essencial é
que, na medida em que os povos democráticos constitucionais têm as características de (a) a
(e), sua conduta sustenta a idéia de uma paz democrática (RAWLS, 2001, p. 66).
Como vimos, a primeira aplicação da segunda posição original tem suas
características muito similares às da aplicação do contrato ao caso doméstico. Como nesta
fase do Direito dos Povos apenas sociedades liberais participam, a extensão da teoria da
justiça como eqüidade, com o seu modelo contratualista, não encontra restrições teóricas. Os
principais pressupostos de uma sociedade justa, tanto na esfera doméstica quanto na global,
são idênticos. Entretanto, o mesmo não acontece na segunda aplicação da segunda posição
original, como veremos no próximo capítulo.
64
4. SOCIEDADES HIERÁRQUICAS DECENTES COMO MEMBROS DA
SOCIEDADE DOS POVOS
A segunda aplicação da segunda posição original é a mais “problemática” das
suas três, pois, para que os princípios e o modelo pudessem ser aceitos por sociedades não-
liberais, Rawls precisou abrir mão de vários pressupostos tornando a sua teoria “frágil”.
Rawls apresenta um modelo de sociedade não-liberal que pode ser aceita na Sociedade dos
Povos como sendo uma sociedade de boa reputação, que ele denomina de decente
1
. Dentre as
sociedades decentes, Rawls descreve as sociedades hierárquicas decentes. Partiremos da
descrição dessas sociedades hierárquicas decentes e posteriormente trataremos do
contratualismo neste nível.
Se em uma sociedade liberal uma pluralidade de doutrinas abrangentes, no
plano internacional este pluralismo é potencializado ao máximo, e é claro que muitas dessas
doutrinas não têm filiação liberal. Na segunda parte da “teoria ideal”, Rawls responde
afirmativamente quanto à possibilidade de povos não-liberais decentes fazerem parte da
Sociedade dos Povos e afirmarem o Direito dos Povos propostos por um modelo liberal. E
que, para isso, estas sociedades não necessitam se tornar liberais.
Neste contexto, Rawls apresenta a tolerância, que é intrínseca ao liberalismo
político, como um dos pilares dessa possibilidade. Rawls considera como tolerância não o
abster-se de sanções com o objetivo de fazer com que o outro povo mude suas práticas, mas,
sobretudo, o reconhecer o outro como membro igual e de boa reputação, com direitos e
obrigações, inclusive o dever de civilidade. O dever de civilidade exige que os povos
1
O significado rawlsiano de decência está apresentado nas folhas 68-72, passim.
65
ofereçam, uns aos outros, razões para os seus atos adequados à Sociedade dos Povos.
Rawls afirma que muitas propostas liberais de Direito dos Povos não vão além da
primeira parte da segunda posição original, ou seja, propõem um modelo onde povos
liberais podem ser membros bona fide de uma Sociedade dos Povos, e que os povos não-
liberais seriam objeto de sanções até que se tornem liberais, e, sim, poderem participar da
Sociedade dos Povos. Rawls rejeita essa posição quando admite que sociedades hierárquicas
decentes podem ser toleradas ao descartar o argumento de que as sociedades não-liberais
devem sempre estar sujeitas a algum tipo de sanção.
Não há necessidade de todos os povos serem liberais porque:
Se sociedades liberais devem respeitar doutrinas abrangentes
dos seus cidadãos (respeitando certos direitos), da mesma forma devem tolerar
e aceitar sociedades não-liberais que se orientam por uma tal doutrina.
exigir que todos os povos sejam liberais, sob pena de sanções, é
negar o devido respeito a outros povos e a seus membros, e isso exige razões
fortes, pois essa atitude pode levar a muita “amargura e ressentimento”.
Apesar de sociedades não-liberais deixarem de tratar as pessoas como
verdadeiramente iguais e livres (RAWLS, 2001, p. 78), não se deve inferir daí que as
sociedades não-liberais devem sempre estar sujeitas a algum tipo de sanção política antes
mesmo de se elaborar um Direito dos Povos razoável, pois, como já foi ressaltado, na
segunda posição original, as partes são representantes de povos iguais que desejam manter
essa igualdade mútua. Sem a tolerância devida, os povos não-liberais não estariam dispostos
a participar da segunda posição original. Além disso, na visão de Rawls, a posição original
global não demonstra que sociedades não-liberais não podem ser aceitáveis na Sociedade dos
66
Povos.
Para serem decentes, as sociedades não-liberais devem ter instituições que
cumpram certas condições especiais de direito, política e justiça, e devem levar seu povo a
honrar um direito razoável e justo para a Sociedade dos Povos. Os povos decentes respeitam
os direitos humanos de seus cidadãos, consultam-nos e garantem-lhes um papel substancial
nas decisões políticas, através do que Rawls denomina de hierarquia de consulta decente ou
seu equivalente. E, por fim, os povos decentes não aceitam um certo grau de dissidência,
como reconhecem que tal dissidência não é conseqüência de uma incompetência ou carência
de compreensão e que , portanto, deve ser oferecido à dissidência uma réplica respeitosa por
parte do governo e dos funcionários judiciais, que ao encontro dos méritos da questão
segundo a norma de Direito, tal como interpretada pelo judiciário”(RAWLS, 2001, p. 80).
Tal como ocorre em sociedades liberais, “a concepção do bem comum da justiça
sustentada por povos decentes pode mudar ao longo do tempo, como resultado da
dissidência de membros desses povos” (RAWLS, 2001, p. 80). Essa reforma interna é
encorajada quando se reconhecem essas sociedades não liberais como bona fide da Sociedade
dos Povos, mas é sufocada quando se nega o respeito a esses povos decentes. Esse é um
argumento a favor da idéia de autodeterminação de um povo.
Os povos liberais, ao oferecerem o devido respeito aos povos não-liberais,
potencializam as chances deles adotarem instituições mais liberais ao longo do tempo e,
assim, se tornarem liberais por si mesmos. Esse resultado supera os que poderiam advir de
sanções com o objetivo de minimizar injustiças que não são tão graves a ponto de justificar
sanções.
Sustentar o respeito mútuo entre os povos na Sociedade dos Povos constitui
uma parte essencial da estrutura sica e do clima político dessa sociedade.
O Direito dos Povos considera essa estrutura básica de fundo mais ampla e
os méritos do seu clima político no incentivo às reformas com tendência
67
liberal como superiores à falta de justiça liberal nas sociedades decentes
(RAWLS, 2001, p. 81).
Sociedades hierárquicas decentes não são tão justas e razoáveis quanto as
sociedades liberais, pois, segundo critérios liberais, essas sociedades não tratam seus
membros com igualdade. No entanto, têm uma boa concepção política de justiça, que é
honrada na sua hierarquia de consulta decente, e honram o mesmo Direito dos Povos que os
povos liberais honram. Como enfatiza Rawls, “o modo como os povos se tratam mutuamente
e o modo como tratam os seus próprios membros são coisas diferentes(RAWLS, 2001, p.
108-9).
Uma sociedade hierárquica decente cumpre as exigências morais e jurídicas
suficientes para sobrepujar as razões políticas que poderíamos ter para impor sanções ao
seu povo, suas instituições e cultura, ou nela interferir pela força(RAWLS, 2001, p. 109).
Com relação a sanções, deve-se levar em conta o perigo de erro e também de arrogância da
parte dos que as propõem.
Além disso, as sociedades hierárquicas decentes devem possuir certas
características institucionais que merecem respeito(RAWLS, 2001, p. 109). O fato dessas
sociedades não serem suficientemente razoáveis do ponto de vista liberal não pode ser
justificativa para impor sanções, pois até mesmo sociedades liberais não são todas
igualitárias num mesmo grau. Da mesma forma que essa maior ou menor igualdade deve ser
tolerada, as sociedades hierárquicas decentes podem ser similarmente toleradas, na visão de
Rawls.
Rawls admite que objeções à sua visão de tolerar as sociedades hierárquicas
decentes continuarão a existir. No entanto, devem-se distinguir os argumentos a favor da
intervenção, baseado na razão pública do Direito dos Povos, e o argumento moral e religioso
68
baseado nas doutrinas abrangentes dos cidadãos. O primeiro deve prevalecer para a garantia
da paz estável em oposição à paz pelo Modus Vivendi.
Dar incentivos para que sociedades hierárquicas decentes se tornem mais liberais
são, para Rawls, artifícios que não devem ser utilizados. Primeiro porque tais sociedades
podem recorrer a fundos internacionais e tomar empréstimos sem que seja feita qualquer
exigência para que se tornem liberais. Segundo porque fazer tal exigência seria ferir o seu
direito de autodeterminação. E terceiro porque não seria razoável esse incentivo fazer parte
da política externa de povos liberais. Mais razoável seria concentrar recursos no dever de
assistência às sociedades sob condições desfavoráveis
2
.
As sociedades hierárquicas decentes são caracterizadas por Rawls como
associativas na forma. Ou seja, na vida pública, as pessoas são vistas como membros de
grupos diferentes, “[...] e cada grupo é representado no sistema jurídico por um corpo numa
hierarquia de consulta decente (RAWLS, 2001, p. 84). Para que sejam reconhecidas na
Sociedade dos Povos como membros de boa reputação, tais sociedades devem, segundo
Rawls, atender a dois critérios de decência.
O primeiro critério é o dever que os povos decentes têm de honrar as leis da paz,
ou seja, não ter objetivos agressivos, buscando alcançar seus fins legítimos por meios
diplomáticos, comerciais e outros meios pacíficos. Assim, embora seja uma sociedade
orientada por uma doutrina abrangente, normalmente de caráter religioso, com influência
sobre a estrutura do governo e da sua política social (RAWLS, 2001, p. 84), ela deve
respeitar a ordem política e social de outras sociedades. Ou seja, respeitar a autonomia e
independência de outras sociedades no que diz respeito a suas opções religiosas e políticas.
2
Rawls prevê um dever de assistência. Não trataremos dessa questão. Ver RAWLS, 2001, p. 140-56, passim.
69
O segundo critério diz respeito ao sistema de Direitos compatível com a
decência. Esse critério é subdividido em três partes: a) o sistema de Direito deve assegurar a
todos os membros do povo os direitos humanos. Os desrespeitos aos direitos humanos
impedem qualquer sociedade de manter um esquema decente de cooperação política e
social
3
. b) O sistema de Direito de um povo decente deve impor direitos e obrigações morais
bona fide a todas as pessoas dentro do respectivo território. Esses direitos e obrigações
morais têm respaldo no modo como Rawls descreve os membros de uma sociedade decente:
Como os membros do povo são considerados decentes e racionais, assim
como responsáveis e capazes de desempenhar um papel na vida social, eles
reconhecem que esses deveres e obrigações ajustam-se à sua idéia de justiça
do bem comum e não vêem seus deveres e obrigações como meros comandos
impostos pela força. Têm a capacidade do aprendizado moral e sabem a
diferença entre o certo e o errado tal como compreendidos na sua
sociedade. Em contraste com uma economia escravista, seu sistema de
Direito especifica um esquema decente de cooperação política e social
(RAWLS, 2001, p. 86).
Além disso, Rawls afirma que uma sociedade hierárquica decente não seus
membros como cidadãos iguais, em conformidade com a visão liberal, mas antes como
membros responsáveis e cooperativos dos seus grupos respectivos”, e portanto, enquanto
membros desses grupos, as pessoas podem reconhecer, compreender e agir em
conformidade com seus deveres e obrigações morais (RAWLS, 2001, p. 87),
desempenhando certo papel no esquema de cooperação.
Por fim, c) as pessoas responsáveis pela efetivação do sistema de Direitos devem
ter uma crença sincera e não irrazoável de que a lei é realmente guiada por uma idéia de
justiça do bem comum, que leve em conta o que como interesses fundamentais de todos
na sociedade.
Para explicar o significado da idéia de justiça do bem comum, Rawls primeiro
distingue-a do objetivo comum de um povo. Para ele, o objetivo ou fim comum (deve haver
3
Trataremos dos direitos humanos mais detalhadamente a partir da folha 74.
70
um) é o que a sociedade como um todo tenta conquistar para si ou para os seus membros. O
objetivo ou fim comum afeta o que as pessoas recebem e o seu bem-estar
(RAWLS, 2001, p.
93). Na idéia de justiça do bem comum, a busca do objetivo comum deve ser encorajada,
respeitando-se os limites advindos da decência e incluindo uma base institucional que garanta
a proteção dos direitos e deveres dos membros do povo.
O segundo passo consiste em insistir que o sistema jurídico de um povo
hierárquico decente deve conter uma hierarquia de consulta decente (RAWLS, 2001, p.
93), pois essa consulta permite que os dissidentes sejam ouvidos. É bem verdade que não
serão ouvidos da mesma maneira como em sociedades liberais. No entanto, as pessoas,
enquanto membros de associações e corporações, em algum momento do processo de
consulta (provavelmente quando da escolha dos representantes de um grupo), têm o direito de
expressar sua dissidência política, a qual merece - e é de obrigação do governo, juízes e
outros funcionários - uma resposta conscienciosa. Essa resposta não precisa ser aceita pelos
dissidentes, devendo estes explicar porque ainda não estão satisfeitos, e essa explicação deve
receber uma resposta adicional mais completa. A dissidência expressa uma forma de
protesto público e é permissível, contanto que permaneça dentro da estrutura básica da idéia
de justiça do bem comum” (RAWLS, 2001, p. 94).
Para tornar mais clara a idéia de sociedade hierárquica decente, Rawls apresenta
uma sociedade islâmica hipotética denominada Casanistão. Seria uma sociedade que
obedece aos dois critérios de decência e adota uma hierarquia de consulta decente,
satisfazendo seis diretrizes. Primeiro, devem-se consultar todos os grupos. Segundo, todas as
pessoas do povo devem pertencer a um grupo. Terceiro, cada grupo deve ser representado
por um corpo composto por alguns dos membros do grupo que conheçam e compartilhem os
interesses fundamentais desse mesmo grupo. Pelas três primeiras condições, é garantido que
os interesses fundamentais de todos os grupos sejam consultados e levados em consideração.
71
Quarto, os governantes, que são o corpo que toma a decisão final, devem levar em conta as
visões e reivindicações de cada um dos corpos consultados, o que pode influenciar o
resultado da decisão final. Quinto, a decisão deve ser feita segundo uma concepção das
prioridades especiais, provavelmente definidas pela idéia de justiça do bem comum. No caso
do Casanistão, que é uma sociedade islâmica, pode-se esperar que as minorias não-
mulçumanas estejam menos comprometidas com certas prioridades do que os mulçumanos.
Mesmo assim, os não-mulçumanos podem considerar essas prioridades como razoáveis e
significativas. Por fim, sexto, as prioridades especiais devem estar em consonância com um
esquema geral de cooperação do grupo, cujos termos devem ser especificados
explicitamente.
Sociedades liberais também têm uma concepção do bem comum, mas em sentido
restrito. O bem comum de sociedades liberais consiste em alcançar justiça política para
todos os seus cidadãos ao longo do tempo e preservar a cultura livre que a justiça permite
(RAWLS, 2001, p. 92, nota 10). A idéia do bem comum decente dos povos hierárquicos é
uma idéia mínima a partir da concepção liberal, considerada razoável com a devida reflexão.
Rawls afirma que os critérios de decência não foram deduzidos de nenhuma
definição de decência, mas que os dois critérios parecem aceitáveis na sua formulação
geral” (RAWLS, 2001, p. 87). E mais, que o significado de decência é dado pelo modo como
é usado, é desenvolvido expondo-se os vários critérios e explicando-se o seu significado. Ou
seja, os critérios são o que define a decência, sendo a decência uma idéia normativa do
mesmo tipo que a razoabilidade, embora mais fraca.
O conceito de decência é incluído no Direito dos Povos de modo a qualificar as
sociedades não-liberais que cumprem os dois critérios de decência, cujo conteúdo também
pode ser aceitável aos olhos de povos liberais. Isso pode parecer contraditório com o que foi
72
observado na introdução do capítulo, pois, como vimos, o Direito dos Povos é desenvolvido a
partir de uma teoria liberal. Entretanto, acreditamos que a aceitação da decência seja mais
difícil do ponto de vista liberal do que do ponto de vista não-liberal, pois, abrir mão de
princípios básicos como a liberdade e a igualdade entre os cidadãos, a separação entre a igreja
e o Estado, dentre outros, pode ser visto como inaceitável ao olhar liberal. Ao mesmo tempo,
tal concepção de decência pode parecer a um olhar não-liberal como incompatível com sua
doutrina abrangente.
Aqui voltamos ao ponto central na teoria de Rawls, qual seja, a tentativa de
elaborar um modelo que possa ser aceito, em um consenso sobreposto, pelas mais diferentes
pessoas, que adotam diferentes doutrinas abrangentes e que, nesse caso, pertencem a
sociedades com culturas diferentes. Rawls acredita que a maioria dos cidadãos razoáveis de
sociedades liberais aceitaria os povos decentes como membros de boa reputação da Sociedade
dos Povos, ou seja, haverá pessoas razoáveis que não aceitem os povos decentes, como os que
exigem que para fazer parte da Sociedade dos Povos é pré-requisito ser liberal. Em suas
palavras, Rawls objetiva:
[...] delinear uma idéia de justiça que, embora distante das concepções
liberais, ainda possui características que dão às sociedades assim
regulamentadas a condição moral decente exigida para que sejam membros
de boa reputação de uma Sociedade dos Povos razoável (RAWLS, 2001, p.
88).
Dentre os que questionam a flexibilidade dos princípios liberais em prol da
aceitação de sociedades não-liberais está Thomas Pogge. Em seu ensaio Rawls on
international justice, ele critica Rawls por deixar em aberto quão pobre e desigual pode ser
considerado compatível com a decência. Afirma ainda que, apesar de não perseguir minorias,
o regime decente pode impor-lhes uma maior e desigual restrição à liberdade de expressão e
liberdade de consciência, o que seria anti-democrático. Enquanto isso, os governantes se
justificam, perante outras sociedades, assumindo que essas desigualdades estão adequadas a
73
um regime de hierarquia de consulta decente. O responsável por isso seria a redução da lista
dos direitos humanos. Assim, os povos decentes estariam em total conformidade com o
principio de decência, apesar destas carências/deficiência (shotfalls) reconhecidas pelo
próprio Rawls.
Pogge então questiona que se uma sociedade hierárquica decente é realmente
moral, então por que povos liberais rejeitam a idéia de se tornarem regimes hierárquicos
decentes ao mesmo tempo em que aceitam regimes hierárquicos decentes no exterior? Em
outras palavras: por que uma sociedade liberal não deveria se tornar um regime decente?
Rawls postula que sociedades não-liberais se tornariam liberais e não o contrário, justamente
porque uma sociedade liberal seria superior às outras. A aceitação de povos não-liberais e a
restrição de princípios liberais teriam, para Rawls, o objetivo de fazer com que sociedades
não-liberais percebessem, por meio do exemplo, a superioridade do regime democrático
liberal, fazendo com que os não-liberais se tornasse liberais por vontade própria, de forma
paulatina.
Rawls apresenta três observações acerca da idéia de hierarquia de consulta
decente. Na primeira, Rawls chama atenção para o fato de que[...] há grupos representados
pelos corpos na hierarquia de consulta(RAWLS, 2001, p. 95), corpo entendido como uma
unidade orgânica. Na hierarquia de consulta decente esse corpo é o grupo ao qual cada
pessoa faz parte, enquanto que, nas sociedades democráticas liberais, cada pessoa é um
corpo. Esse esquema é similar à visão de Hegel para a qual as pessoas pertencem primeiro a
estados, corporações e associações, isto é, grupos. Os grupos representam os interesses
racionais de seus membros. As pessoas participam no processo de consulta representando
esse interesse coletivo e não individual, como no esquema de uma pessoa, um voto. “Os
membros votantes dos vários grupos levam em conta os interesses mais amplos da vida
política” (RAWLS, 2001, p. 95).
74
A segunda observação diz que [...] a natureza da visão de tolerância religiosa
de um povo decente precisa de menção explícita” (RAWLS, 2001, p. 96). Embora em
sociedades hierárquicas decentes possa haver uma religião do Estado como autoridade última
na sociedade, essa autoridade não é [...] estendida politicamente às relações com outras
sociedades. Além disso, as doutrinas religiosas ou filosóficas (abrangentes) de uma
sociedade hierárquica decente não devem ser completamente irrazoáveis(RAWLS, 2001,
p. 96); elas devem admitir uma medida suficiente de liberdade de consciência, liberdade
religiosa e de pensamento, mesmo que não seja igual à da sociedade liberal. Para ser decente,
é essencial que nenhuma religião seja perseguida ou tenha negadas as condições cívicas e
sociais que permitem sua prática em paz e sem medo(RAWLS, 2001, p. 96-7). É essencial
também que se permita o direito de emigração e se lhe assistência. Há, para Rawls, um
espaço entre o completamente irrazoável e o completamente razoável. É neste espaço que se
encontram as doutrinas abrangentes em sociedades hierárquicas decentes.
Por fim, na terceira observação, Rawls defende que os membros da sociedade
que tiveram seus direitos humanos negados por muito tempo, como as mulheres, devem ter
representação na hierarquia de consulta.
Em virtude da peculiaridade da segunda parte da segunda posição original, Rawls
restringe a compreensão de quais direitos ditos humanos são compatíveis com as sociedades
não-liberais. Ou seja, Rawls apresenta um conjunto de direitos humanos mínimos, dos quais
não se pode abrir mão e que, ao mesmo tempo, não afirmem aspirações liberais. Como
exemplo dos que notadamente são de aspiração liberal, temos o caso do Artigo 1 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: "Todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir
mutuamente com um espírito de fraternidade". Ou os artigos, da referida Declaração, que
pressupõem tipos específicos de instituição, como o direito à segurança social, no Artigo 22,
75
e o direito a pagamento igual por trabalho igual, no Artigo 23. Dentre os direitos humanos
mínimos estão:
O direito à vida (aos meios de subsistência e segurança); à liberdade
liberação de escravidão, servidão e ocupação forçada, e a uma medida de
liberdade de consciência suficiente para assegurar a liberdade de religião e
pensamento); à propriedade (propriedade pessoal) e à igualdade formal como
expressa pelas regras da justiça natural (isto é, que casos similares devem ser
tratados de maneira similar). Os direitos humanos, compreendidos assim,
não podem ser rejeitados como peculiarmente liberais ou específicos da
tradição ocidental. Não são politicamente paroquiais (RAWLS, 2001, p. 85)
Segundo Rawls, os Direitos Humanos, como expressos no Direito dos Povos,
podem ser caracterizados de duas maneiras:
1. [...] vê-los como pertencentes a uma concepção de justiça política
liberal e como um subconjunto dos direitos e liberdades assegurados
a todos os cidadãos livres e iguais num regime democrático liberal
constitucional (RAWLS, 2001, p. 89).
2. [...] vê-los como pertencentes a uma forma social associativa (como
a denominei), que as pessoas primeiro como membros de grupos
- associações, corporações e Estados. Como membros, as pessoas
têm direitos e liberdades que as capacitam a cumprir seus direitos e
obrigações e a participar de um sistema decente de cooperação
social. Aquilo que veio a ser chamado direitos humanos tornou-se
condição necessária de qualquer sistema de cooperação social
(RAWLS, 2001, p. 89).
Rawls apresenta duas possíveis interpretações dos direitos humanos no Direito
dos Povos, das quais discorda. A primeira delas vê os direitos humanos como sendo os
mesmos direitos de cidadãos em regime democrático constitucional razoável. Essa visão
expande os direitos humanos. Entretanto, para ele, os direitos humanos no Direito dos Povos
são:
[...] uma classe especial de direitos urgentes, tais como a liberdade que
impede a escravidão ou servidão, a liberdade (mas não igual liberdade) de
consciência e a segurança de grupos étnicos contra o assassinato em massa e
o genocídio. A violação dessa classe de direitos é igualmente condenada por
povos liberais razoáveis e por povos hierárquicos decentes (RAWLS, 2001,
p. 103).
A outra interpretação diz que apenas governos democráticos liberais seriam
eficazes para proteger tais direitos humanos especificados pelo Direito dos Povos, tendo
como parâmetro para essa afirmação a própria experiência histórica que demonstra que
76
regimes hierárquicos são opressores e negam os direitos humanos. No entanto, o Direito dos
Povos admite o contrário, isto é, “que existem povos hierárquicos decentes, ou que poderiam
existir, e considera por que devem ser tolerados e aceitos pelos povos liberais como povos
com boa reputação(RAWLS, 2001, p. 103). Os direitos humanos têm um papel especial no
Direito dos Povos, “[...] eles restringem as razões justificadoras da guerra e põem limites à
autonomia interna de um regime” (RAWLS, 2001, p. 103).
Os direitos humanos exercem três papéis:
1. Seu cumprimento é condição necessária da decência das instituições
políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica
2. Seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e
coercitiva de outros povos, por exemplo, por meio de sanções
diplomáticas e econômicas ou, em casos graves, da força militar.
3. Eles estabelecem um limite para o pluralismo entre os povos.
(RAWLS, 2001, p. 105).
Esses direitos humanos honrados por povos liberais e decentes são para Rawls
como direitos universais:
[...] eles o intrínsecos ao Direito dos Povos e têm um efeito (moral) sendo
ou não sustentados localmente. Isto é, sua força política (moral) estende-se a
todas as sociedades e eles são obrigatórios para todos os povos e sociedades,
inclusive os Estados fora da lei. Um Estado fora da lei que viola esses
direitos deve ser condenado e, em casos graves, pode ser sujeitado a sanções
coercitivas e mesmo a intervenção (RAWLS, 2001, p. 105).
Segundo Rawls, “[...] povos hierárquicos decentes são bem-ordenados em função
das suas próprias idéias de justiça, que satisfazem os dois critérios(RAWLS, 2001, p. 89).
Por serem bem-ordenados, Rawls admite que seus representantes, em uma posição original,
adotariam os mesmos oito princípios que seriam adotados pelas sociedades liberais. Os
representantes das sociedades hierárquicas são decentes e racionais e aceitam a posição
original como justa entre os povos. Além disso, eles endossariam o Direito dos Povos como
especificando termos justos de cooperação política com outros povos.
Assim como na primeira aplicação da segunda posição original, na segunda
77
aplicação os representantes dos povos liberais e dos povos hierárquicos estão situados
igualmente, apesar das sociedades hierárquicas não tratarem seus membros com igualdade.
Rawls discorda que isso possa ser considerado incompatibilidade, pois a igualdade deve ser
adequada ao caso em questão. Embora a igualdade plena possa estar ausente em uma
sociedade, a igualdade pode ser razoavelmente proposta ao fazer reivindicações diante de
outras sociedades” (RAWLS, 2001, p. 91).
As dificuldades teóricas para a aceitação de sociedades não-liberais como
membros bona fide da Sociedade dos Povos não intimidam Rawls. Assim como no plano
doméstico, Rawls procura apresentar um modelo capaz de proporcionar escolhas de
princípios de justiça que possam ser aceitos pelos cidadãos, no primeiro momento, e pelos
povos, no segundo momento, sem que eles necessitem abrir mão de suas doutrinas
abrangentes.
A primeira aplicação da segunda posição original não encontra dificuldades por
tratar apenas com povos liberais, em um modelo de filiação liberal. As controvérsias
aparecem quando Rawls defende que não é preciso que todos os povos se tornem liberais
para que seja possível uma Sociedade dos Povos. E quando defende, além disso, que os
mesmo princípios que foram escolhidos na primeira aplicação da segunda posição original
também sejam escolhidos na segunda aplicação. No entanto, as principais críticas não afetam
a estrutura interna do modelo; apontam fragilidades quando vislumbradas as condições reais.
Rawls não apresenta sua teoria como a solução dos males da humanidade, mas, enquanto
realisticamente utópica, pode servir de pano de fundo para a busca de um entendimento entre
os povos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da leitura das obras de John Rawls, em especial O Direito dos Povos,
examinamos sua teoria contratualista aplicada à relação entre povos/Estados. Analisamos
como a "posição original" aplicada uma segunda vez (em dois níveis sucessivos) pode ser um
instrumento para alcançar a estabilidade nas relações entre todos os povos e para especificar o
direito dos povos.
No presente trabalho, ressaltamos as semelhanças e diferenças entre a aplicação
do contrato (posição original) no plano doméstico (entre cidadãos membros de uma mesma
sociedade) e no plano global (entre os povos). Dentre as semelhanças, destacamos que, em
ambos os níveis de aplicação da teoria da justiça rawlsiana, a posição original modela as
condições justas e razoáveis para as partes especificarem os termos de sua cooperação. As
partes são representantes racionais de cidadãos (no primeiro nível), de povos liberais (no
primeiro uso do segundo nível) e de povos bem-ordenados, liberais ou não-liberais, mas
decentes (no segundo uso do segundo nível). Tais partes são consideradas livres e iguais,
sendo todos situados (em ambos níveis) atrás de um véu de ignorância, que é uma imagem
para expressar as restrições adequadas às razões para definir uma concepção política de
justiça. Tais restrições estão no nível de informação disponível às partes, principalmente
aquelas que podem ser usadas para o favorecimento de alguém.
Em ambos os planos, há duas preocupações básicas que motivam o contrato
social: 1) encontrar os termos básicos de cooperação entre as partes (os cidadãos e os povos),
que garantam a estabilidade política, apesar do pluralismo razoável característico da
79
sociedade democrática liberal e da Sociedade dos Povos; 2) especificar os princípios da
justiça como eqüidade (no plano doméstico) e do Direito dos Povos (no plano global).
Dentre as diferenças no uso do modelo do contrato para os dois planos, observamos
que: 1) a primeira posição é aplicada apenas uma vez, enquanto a segunda é aplicada duas
vezes, a primeira entre povos liberais, a segunda incluindo povos liberais e povos
hierárquicos decentes; 2) os cidadãos dentro de uma sociedade nacional têm doutrinas
abrangentes do bem, já os povos de uma democracia constitucional não têm, como povos
liberais, nenhuma doutrina abrangente do bem, diferentemente de povos não-liberais; 3) os
interesses fundamentais dos cidadãos são compostos pela sua concepção do bem e pela
realização dos seus dois poderes morais (senso de justiça e concepção do bem); já os
interesses fundamentais de um povo como povo são especificados pela sua concepção
política de justiça e pelos princípios à luz dos quais concorda com o Direito dos Povos.
Começamos a exposição pela apresentação da teoria no plano doméstico,
ressaltando o método rawlsiano. Em seguida, apresentamos a primeira aplicação da segunda
posição original (para povos liberais) e concluímos com a segunda aplicação da posição
original (tanto para povos liberais como não-liberais decentes). Ou seja, tratamos apenas da
teoria ideal, isto é, a aplicação da posição original a povos bem-ordenados, que são os povos
liberais e os não-liberais decentes. A decisão de não tratar das situações onde não
possibilidade de aplicação da posição original, ou seja, da teoria não-ideal, justifica-se pelo
próprio enfoque do trabalho, qual seja, investigar como a teoria contratualista elaborada
primeiramente para o contexto de uma sociedade democrática liberal pode ser expandida para
a sociedade dos povos, que inclui tanto os povos liberais quanto os não-liberais. Essa é uma
questão central quando se trata do Direito dos Povos, pois muitas concessões teóricas feitas
por Rawls para adequar sua proposta a povos não-liberais tornaram-na possivelmente mais
frágil e suscitou contra ela muitas questões controversas.
80
Após percorrermos os quatro capítulos podemos responder, apesar de
precariamente, às questões enunciadas na introdução, quais sejam: 1) Como é possível uma
segunda posição original? 2) Como a segunda posição original, enquanto modelo de
representação, pode ser um instrumento para alcançar a estabilidade nas relações entre
todos os povos, não apenas como um modus vivendi? 3) Por que povos não-liberais
adotariam princípios liberais de igualdade e liberdade em suas relações com outros povos?
Para a primeira questão, deve-se lembrar que a posição original é um modelo de
representação e que a justiça é procedimental pura, na teoria de Rawls. Com isso, o conteúdo
do contrato não é previamente determinado. Ao se adaptar o modelo ao caso da justiça global
poder-se-á estabelecer os princípios do Direito dos Povos da mesma forma como foi feito
para o caso doméstico. Sendo assim, o modelo pode ser universalizável, mas não suas
conclusões para cada caso. O que é universal na teoria de Rawls é a idéia básica do modelo e
não os princípios básicos da justiça.
A questão de saber como é possível uma estabilidade entre os povos sem que isso seja
um mero modus vivendi só pôde ser respondida depois que levamos em consideração a
possibilidade da paz democrática, uma paz cujas raízes se encontram na cultura pacífica dos
povos liberais e decentes. Ou seja, é possível a estabilidade entre os povos, sem que ela
seja um modus vivendi mas apoiada em razões certas, se, e somente, os povos adotam o
princípio da paz democrática. Vale lembrar que não tratamos neste trabalho do caso de povos
que não aceitam o Direito dos Povos, ou seja, não tratamos da teoria não-ideal, parte em que
Rawls descreve como povos bem-ordenados devem lidar com povos não-bem-ordenandos.
Por fim, as sociedades não-liberais decentes poderiam seguir sim princípios liberais
no trato com outras sociedades, desde que eles sejam compatíveis com sua doutrina
abrangente dominante.
REFERÊNCIAS
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