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Caroline Ausserer
“Controle em nome da proteção”:
análise crítica dos discursos sobre
o tráfico internacional de pessoas
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais do Instituto de
Relações Internacionais da PUC-Rio.
Orientador: Nizar Messari
Rio de Janeiro
Junho de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510706/CA
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Caroline Ausserer
“Controle em nome da proteção”:
análise crítica dos discursos sobre
o tráfico internacional de pessoas
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Relações Internacionais do Instituto de Relações
Internacionais do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Nizar Messari
Orientador
Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio
Prof. José Maria Gomez
Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio
Prof. Clara Maria de Oliveira Araújo
Departamento de Ciências Sociais – UERJ
Prof. João Franklin Abelardo Pontes Nogueira
Coordenador Setorial do Centro
de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de junho de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510706/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Caroline Ausserer
Graduou-se em Antropologia Cultural e Ciência Política na
Universidade de Viena/Áustria (Mag. Phil.). Jornalista
profissional, aprovada pelo Ordine dei Giornalisti italiano,
especializada em Política Internacional, América Latina e
questões de gênero; trabalhou em agências de notícias,
para jornais italianos, austríacos e alemães, e como
correspondente para a rádio italiana RAI.
Ficha Catalográfica
Ausserer, Caroline
“Controle em nome da proteção”: análise crítica
dos discursos sobre o tráfico internacional de pessoas /
Caroline Ausserer; orientador: Nizar Messari. – 2007.
170 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Relações
internacionais)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Relações internacionais Teses. 2. Tráfico
internacional de pessoas. 3. Discursos/Michel Foucault. 4.
Crime organizado. 5. Exploração sexual. 6. Prostituição. 7.
Migração. I. Messari, Nizar. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Instituto de Relações
Internacionais. III. Título.
CDD: 327
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A Leonard, bem-vindo a este mundo!
Leonard, willkommen in dieser Welt!
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Agradecimentos
Quero agradecer aos professores do IRI, que com grande competência
e seriedade introduziram-me no mundo das Relações Internacionais (RI); em
especial a José Maria Gómez que me acolheu carinhosamente no primeiro
ano como orientador acadêmico e depois como coordenador da equipe de
pesquisa Radar; a João Pontes Nogueira que sempre sabia como captar a
minha curiosidade para querer saber mais sobre as RI, indicando caminhos
para ir além do "já conhecido"; a Nizar Messari que com grande paciência se
mostrou um orientador dedicado e interessado, apoiando meus caminhos
"labirínticos" nas RI e ensinando-me como precisar a crítica e como confiar nas
minhas próprias capacidades.
À minha turma do IRI de 2005, compartilhamos, nestes dois anos,
alegrias e sofrimentos, que mostrou muita paciência com a sua única colega
estrangeira. Obrigada a tod@s, especialmente a MC, Tathi, Paula, Rapha e
Chris!
Aos professores Clara Maria de Oliveira Araújo e José Maria Gómez
pela disponibilidade em fazer parte da Banca Examinadora.
À PUC-Rio, e tamm à CAPES e ao CNPq que possibilitaram meu
estudo nesta instituição de excelência. Obrigada pelos auxílios concedidos.
À Magna Fabiana Souza da Silva e à Renata Raggi pela revisão do
português. Obrigada pela paciência em decifrar a mistura de línguas!
À Grazielle, com quem comparto a dedicação às teorias feministas e
que sempre se mostrou uma interlocutora interessada e pronta para ajudar.
Obrigada!
Thanks a lot to Rutvica Andrijasevic, whose study gave me a different
insight into the topic of trafficking and guided me into new ways of thinking!
À Adriana Piscitelli, que me apoiou na minha pesquisa e cujos trabalhos
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me instigaram para uma abordagem crítica do assunto!
À - até pouco atrás - minha "família carioca", que me deu o sentimento
de estar em casa aqui no Rio de Janeiro: obrigada Dani, Fer & Felipito, Maria
Elvira & Rafa, Laura & Rolo, Andrea & gatinha Elis!
Aos meus amigos no Rio, especialmente à MC, Tathi, Susana, Claudia,
Renata e Tathiana F.! Obrigada pelo apoio, pelo carinho e pela amizade!
Ein spezielles Dankeschön geht an meine Familie in Südtirol, die mich
immer in meinen Entscheidungen unterstützt hat, auch wenn sie sie nicht immer
nachvollziehen konnte: Danke, Papi & Mami, Stefan & Kuni mit Sophie und
Isabel; Juliska & Wolfi mit Leonard. Ihr habt mir viel Kraft in einer für mich
schwierigen Zeit gegeben! Danke!
(Tradução: À minha família na Itália (Südtirol), que sempre apoiou
minhas escolhas embora não sempre as entendeu: obrigada pai, mãe e meus
irmãos com filhos: Stefan & Kuni com Sophie e Isabel; Juliska & Wolfi com
Leonard. Vocês me deram força em um período difícil!)
A meus amigos "no mundo": aqueles na Áustria, especialmente a Elvira,
Philipp, Claudia e Matthias; aqueles na Itália, especialmente a Walter, Margit,
Andrea, Fede e a minha “amiga da alma” Froni; aqueles em outras partes do
mundo, especialmente Iracema, Karen e Ara, who was always willing to help
me! Thanks a lot!
Danke für eure Freundschaft, euer Vertrauen, eure Unterstützung, ohne
die ich nie bis nach Rio gekommen wäre! Thanks for your trust, your
encouragement and your friendship! Grazie per la vostra amicizia, senza la
quale non sarei riuscita a realizzare il mio sogno di vivere in America Latina! É
bello sapere che ci siete! Danke, dass es euch gibt! Obrigada por tudo!
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Resumo
Ausserer, Caroline; Messari, Nizar (Orientador). “Controle em nome da
proteção”: Análise dos discursos sobre o tráfico internacional de
pessoas. Rio de Janeiro, 2007. 170 p. Dissertação de Mestrado – Instituto
de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Este trabalho analisa o funcionamento, as ambigüidades e as implicações
políticas dos discursos mais correntes contemporâneos sobre o tráfico
internacional de pessoas. Neste sentido, são escolhidos três exemplos de
interpretação da questão: o tráfico como problema de crime organizado; o
tráfico como problema moral; e o tráfico como problema de migração.
Baseando-se em conceitos de Michel Foucault, o enfoque do trabalho está na
inter-relação entre o estabelecimento de “regimes de verdade” por meio de
discursos, e a produtividade destes, ou seja, dependendo da definição da
questão, distintas formas de “solucionar” o assunto são reivindicadas. O
trabalho adverte que os discursos analisados, embora se apresentem em nome
da proteção das vítimas do tráfico”, na verdade, são utilizados para justificar a
instalação de “mecanismos de controle” no sentido foucaultiano. Assim, a
pesquisa visa a desconstruir estes discursos para, deste modo, problematizar
as práticas políticas atuais que se baseiam prevalentemente neles, e para
possibilitar uma compreensão mais diferenciada do assunto complexo de
tráfico humano.
Palavras-chave
Tráfico internacional de pessoas; discursos/ Michel Foucault; crime
organizado; exploração sexual/ prostituição; migração.
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Abstract
Ausserer, Caroline; Messari, Nizar (Advisor). “Control in the name of
protection”: Critical Analyses of Discourses about International
Trafficking of Persons. Rio de Janeiro, 2007. 170 p. MSc. Dissertation
Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
The present thesis analyses the working, the ambiguity and the political
implications of contemporary discourses about trafficking in persons. Three
examples were chosen to illustrate the most common interpretation of the issue:
trafficking as a problem of organized crime, as a moral concern and as a
question of migration. Based on concepts of Michel Foucault, the main focus of
the investigation is the interplay between the establishment of “regimes of truth”
by the discourses and their productivity. Depending on the definition of the issue
there are different ways that claim “to resolve” the question. The work
challenges the common understanding of strategies against trafficking
developed in the name of protection of the “victim” and furthermore elaborates
that these discourses are used to install “mechanisms of control” in Foucault’s
sense. Thus, the investigation aims at deconstructing these discourses in order
to highlight the problems of current anti-trafficking policies and therefore
enables a more differentiated understanding of the complex topic of human
trafficking.
Keywords
Human trafficking; discourses/ Michel Foucault; organized crime; sexual
exploitation/ prostitution; migration.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..............................................................................12
2 A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO TRÁFICO DE PESSOAS .......26
2.1. Introdução ......................................................................................26
2.2. O “tráfico de escravas brancas”......................................................27
2.2.1. A cruzada contra a prostituição e o tráfico ...........................................28
2.2.2. O pânico moral...................................................................................... 31
2.3. Primeiros instrumentos legais.........................................................33
2.4. O Protocolo de Tráfico de 2000......................................................37
2.4.1. As dinâmicas do processo de negociação ...........................................38
2.4.2. A luta pela definição do tráfico ..............................................................40
2.4.2.1. A questão polêmica do consentimento.......................................................41
2.4.3. O resultado das negociações ...............................................................43
2.5. Conclusão ......................................................................................46
3 O TRÁFICO DE PESSOAS COMO PROBLEMA DE CRIME
ORGANIZADO.........................................................................................48
3.1. Introdução ......................................................................................48
3.2. Grandes números: os dados estatísticos........................................50
3.3. Pobreza e mudança econômica: motivos do tráfico........................54
3.4. Gangster syndicates: os traficantes de pessoas na mira................58
3.5. Ingênua e inocente: o perfil da vítima.............................................65
3.6. Dicotomia vítima-criminosos: as campanhas contra o tráfico..........72
3.7. Conclusão ......................................................................................77
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4 O TRÁFICO COMO PROBLEMA MORAL...................................79
4.1. Introdução ......................................................................................79
4.2. A polêmica no feminismo ...............................................................80
4.2.1. O corpo vendido: prostituição como escravidão sexual .......................81
4.2.1.1. A prostituta fora do lugar ............................................................................86
4.2.1.2. O sujeito reprimido do discurso moderno ...................................................88
4.2.2. Luta pelo direito à escolha: prostituição como trabalho sexual ............93
4.2.2.1. Escapar do estigma....................................................................................96
4.2.2.2. O sujeito resistente no discurso pós-moderno............................................99
4.3. Coalizão perigosa: feministas radicais e direita religiosa..............106
4.4. Conclusão ....................................................................................110
5 O TRÁFICO COMO PROBLEMA DE MIGRAÇÃO....................113
5.1. Introdução ....................................................................................113
5.2. O sonho da migração...................................................................115
5.3. A “crise das fronteiras” .................................................................122
5.4. O migrante como outro.................................................................130
5.5. Conclusão ....................................................................................143
6 CONCLUSÃO.............................................................................146
7 BIBLIOGRAFIA..........................................................................155
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The situation is reminiscent of the story of five blind men
trying to describe an elephant. Each one touches the
animal in a different place: the flexible trunk, the smooth
tusks, the huge, rough flank, the stocky legs, and the
spiky tail. Each provides a completely different verbal
report of what they feel, and yet no one alone can
adequately describe what the elephant is really like.
(Cwikel e Hoban 2005, p. 315)
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12
1 Introdução
De acordo com o dicionário, o termo tráfico está associado a um trato
mercantil, um comércio ou uns negócios clandestinos ou ilícitos, evocando
também o comércio de escravos.
1
Assim, analisando o termo etimologicamente,
falar de “tráfico internacional de pessoas”
2
envolve, por um lado, um comércio
(principalmente clandestino), ou seja, uma “atividade que consiste em trocar,
vender ou comprar produtos, mercadorias, valores, visando, em um sistema de
mercados, ao lucro”
3
; e, por outro lado, assume a existência de práticas nas
quais humanos são convertidos nesta “mercadoria”, “vendidos”
internacionalmente, aludindo a uma continuidade histórica da escravidão.
4
Neste
sentido, o entendimento convencional do tráfico, relaciona-o com a imagem de
uma “moderna forma de escravidão”, e com a conversão de pessoas em
“produtos” vendidos ilicitamente, igual a armas ou drogas, ou, como
antigamente, os escravos africanos.
5
Alguns autores localizam no tráfico uma continuação de práticas culturais e
históricas que arraigam em costumes antigos de vender ou intercambiar
especialmente membros femininos entre famílias com o objetivo de casamento,
tratando as mulheres como uma espécie de mercadoria.
6
A ênfase nos casos de tráfico contemporâneo relatados está na exploração
sexual de vítimas do tráfico; apresentando esta forma de tráfico como a
representativa, como mostram os seguintes relatos:
1
Cfr. Houaiss (2004), dicionário eletrônico da língua portuguesa, versão 1.0.7.
2
A colocação das aspas indica meu questionamento do conceito “tráfico de
pessoas”, que será desenvolvido neste trabalho. Para facilitar a leitura, desisto delas em
seguida.
3
Ibid.
4
Cfr. Truong (2001), p. 1.
5
Para se diferenciar deste último, o “precursor” do tráfico contemporâneo, é
chamado de “tráfico de escravas brancas” (white slave trade), tratando-se supostamente
de prostitutas migrantes européias, como será elaborado no segundo capítulo. Cfr.
Bruckert (2002), p. 3.
6
Cfr. Long (2004), p. 8.
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13
“Viola, a young Albanian, was 13 when she started dating 21-year-old Dilin,
who proposed to marry her, then move to Italy where he had cousins who
could get him a job. Arriving in Italy, Viola’s life changed forever. Dilin
locked her in a hotel room and left her, never to be seen again. A group of
men entered, and began to beat Viola. Then, each raped her. The leader
informed Viola that Dilin had sold her and that she had to obey him or else
she would be killed. For seven days Viola was beaten and repeatedly
raped. (...) Viola was forced to submit to prostitution until police raided the
brothel she was in. She was deported to Albania.”
7
“Na Cidade de Benin, Nigéria, um homem se aproximou de Rachel e
perguntou se ela não gostaria de viajar para o exterior e ganhar dinheiro
vendendo cosméticos. Ela concordou e foi levada para Itália via Gana.
Uma vez na Itália, Rachel foi colocada em uma casa e forçada a se
prostituir. A dona de casa, Sra. Agnes, disse a Rachel que ela devia 90
milhões de lira por sua passagem, e, portanto deveria pagar a divida cm
uma taxa de 300.000 liras (US$132) por dia. (...) A taxa para uma atividade
sexual na Itália é de 30.000 liras (US$13), o que significa que Rachel
necessitava ter relações sexuais com pelo menos dez clientes por dia,
para reembolsar Sra. Agnes. (...) Ela era forçada a trabalhar 22 horas por
dia nas ruas (...) até um dia conseguiu fugir com ajuda de uma ONG.”
8
“Twenty-something Sorina was promised a restaurant job. So she left home
in Belarus, and was flown to a foreign capital where criminals locked her in
an apartment and raped her. Not allowing her out of the apartment, they
used her as a prostitute. She became so desperate that she jumped from
the bathroom window. Still, alive, on the sidewalk below, the sex buyers ran
down to the street and watched her die.”
9
Semelhantes histórias chocantes fazem parte integral de folhetos de
informação de organizações não-governamentais (ONGs), de reportagens na
imprensa e de pesquisas convencionais sobre o chamado fenômeno do tráfico
internacional de pessoas. Muitas vezes, estes tipos de contos são colocados no
início de estudos empíricos sobre o tráfico humano que seguem alistando
inúmeros “casos de tráfico”, contando um destino parecido.
Também nos três relatos sobre Viola, Rachel e Sorina, é possível observar
paralelos: (1) cada história começa com uma forma de engano para captar o
interesse da pessoa, seja com promessas falsas de um casamento, seja com
expectativas sobre um trabalho lucrativo no exterior. Depois do engano, segue a
viagem (2), que, geralmente, é organizada pelos grupos criminosos. Enquanto
somos informados que Viola e Rachel são levadas para Itália, no caso de Sorina,
7
US-State Department (2005), p. 59. Nome da menina é ficcional.
8
WOCON e Projeto Advocacy (2000) apud GAATW (Aliança Global Contra Tráfico
de Mulheres) (2006), p. 26.
9
Miller, John R. (2006), p. 70.
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14
o lugar de chegada não é especificado; sabemos somente que se trata de uma
capital estrangeira, portanto que era necessário cruzar fronteiras. O terceiro
acontecimento (3) é para todas as três o mesmo: elas são presas (em um
quarto, em uma casa ou em um apartamento) e forçadas a se prostituir. Na
história de Viola, são enfatizadas a crueldade e a barbaridade dos traficantes
que a violam várias vezes, batem nela e a ameaçam com a morte. No caso de
Rachel, é sublinhado o sistema de servidão por dívida que leva-a uma
exploração profunda, forçando-a a devolver as “dívidas” com a viagem e com a
hospedagem. O relato breve sobre Sorina, por sua vez, destaca o desespero da
situação, que a leva a preferir a morte a uma vida assim. O final dela representa
o mais trágico dos três, sendo ainda ressaltado pela informação que os
aliciadores a observam morrer sem chamar ajuda nenhuma. As outras duas
mulheres são “resgatadas”, seja por parte de ONGs, seja por parte da polícia. Ao
final, não sabemos o que acontece com Rachel, pois somente no caso de Viola é
especificado que é deportada ao seu país de proveniência, a Albânia.
Assim, nos três relatos é possível constatar várias semelhanças que
contribuem para a constituição da “história típica sobre o tráfico”. Neste sentido,
estes casos extremos são utilizados como representativos para chamar a
atenção, para descrever a crueldade da prática em questão, e para ilustrar a
urgência de estratégias de combate efetivas.
No entanto, enquanto por um lado há similaridade das narrativas, a
repetição contínua de imagens parecidas como também a ênfase na crueldade e
na violência surpreendem e levam a um questionamento geral destas
representações sobre o tráfico internacional de pessoas.
10
Por outro lado, poder-
se-ia interpretar que, justamente através destas práticas discursivas, é realizada
a constituição do fenômeno do tráfico, ou seja, através destas narrativas é
construído, por exemplo, um imaginário unificado e, aliás, pouco questionado da
vítima traficada. Esta é apresentada como jovem, inocente e ingênua mulher –
como será discutido no segundo capítulo do presente trabalho.
Ultimamente no âmbito da política internacional, e especialmente depois
da data já inscrita na história do 11 de setembro de 2001, é possível constatar
um aumento de atenção ao fenômeno em questão por parte da mídia, dos
10
Não é minha intenção de negar nem a violência envolvida, nem a existência do
tráfico per se, senão de colocá-lo em um contexto mais amplo para poder fazer justiça à
complexidade do assunto. Cfr. também Andrijasevic (2004), p. 10.
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15
governos, de organizações quase-governamentais, não-governamentais e de
instituições supranacionais. Assim, o Presidente dos Estados Unidos, George W.
Bush, por exemplo, cinco meses depois dos eventos do 11 de setembro de
2001, refere-se ao tráfico internacional de pessoas como uma forma
contemporânea de escravidão”
11
, e um ano mais tarde relaciona o fenômeno, em
uma fala para a Assembléia Geral das Nações Unidas, à guerra contra o
terrorismo.
12
No debate contemporâneo, então, o tráfico não é somente
interpretado como uma “moderna forma de escravidão”
13
, mas também como
uma das maiores “ameaças” para a comunidade internacional. Além disso, a
corrente referência ao tráfico classifica-o como o terceiro (ou, às vezes até, o
segundo) comércio ilegal mais lucrativo depois do comércio de drogas e de
armas; e são mencionados números exorbitantes como de que todo ano
aproximadamente 1,2 milhões de pessoas seriam traficadas no mundo.
14
Deste
modo, é delineada uma situação extremamente problemática que precisa de
uma “solução” urgente, ou seja, de estratégias que levem a uma erradicação da
prática do tráfico.
Um intento de se aproximar à temática é do lado jurídico; depois de várias
conferências internacionais e de primeiras convenções contra o tráfico no século
XX, segue no ano 2000, a última elaboração legal da questão que se concretiza
no vigente Protocolo de Tráfico, inserido na Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional.
15
Contudo, a integração do Protocolo
nesta Convenção particular interpreta o fenômeno principalmente como um
problema de crime organizado, particularmente visando a combatê-lo com meios
utilizados para perseguir grupos criminosos organizados.
A crescente preocupação internacional com o assunto leva também a um
aumento de estudos e de pesquisas, de programas de anti-tráfico, de
campanhas e de informações de todo tipo, com o objetivo de aumentar a
consciência sobre a temática, convertendo esta em uma importante prioridade
política.
16
A ênfase destes estudos está na “ação”, ou seja, visam em preparar o
11
Bush (2002), p. 231.
12
Miller (s.d.).
13
Roby (2005), p. 136.
14
United Nation Development Programme, PNUD (2000) apud Roby (2005), p.
136. Um número, que resulterá exgerado. Cfr. capítulo 3 do presente trabalho.
15
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000).
16
Cfr. Laczko (2002), p. 6.
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16
fundamento para intervenções contra o tráfico.
17
A maioria dos estudos, então,
limita-se a descrever o fenômeno, indicando os distintos atores envolvidos, as
rotas do tráfico, as práticas, as conseqüências e os mecanismos para combatê-
lo.
18
Vários autores constatam, assim, uma falta de estudos sistemáticos sobre o
assunto, e lamentam a ausência de um quadro teórico consistente que estruture
a análise e a pesquisa sobre o assunto.
19
Os estudos criticados são acusados
não somente de utilizar metodologias não oportunas, baseando-se em dados
limitados, pois a coleta de dados no campo de tráfico é difícil, mas também de
um entendimento pouco diferenciado da questão.
20
Neste sentido, a crítica a estes estudos aponta a uma maior reflexão
sobre o fenômeno para um melhor entendimento, e tem isso em comum com um
corpo de estudos que analisa a questão a partir da perspectiva discursiva, ou
seja, que investiga o tráfico de pessoas como discurso. Para isso, distancia-se
mais das estatísticas e das formas de abordar o fenômeno na maneira “estática”
dos estudos mais empíricos, analisando e questionando as diferentes formas de
tratar o problema. A minha proposta é de analisar a questão do tráfico
internacional de pessoas a partir de uma compreensão da temática como
discurso no sentido foucaultiano, ou seja, no meu estudo pretendo me inserir nos
estudos de discurso.
Neste trabalho, pretendo analisar as ambigüidades dos atuais discursos
sobre o tráfico internacional de pessoas e as suas implicações políticas.
Argumento que, justamente através de práticas discursivas, é realizada a
constituição do fenômeno do tráfico, ou seja, através de narrativas específicas, é
construída uma representação que rodeia o fenômeno do tráfico internacional de
pessoas. Assim, por exemplo, existe a tendência de relacionar a questão a
diferentes temáticas, como ao crime organizado, à prostituição ou à migração
(“ilegal”). No presente estudo escolho estes três exemplos de interpretação do
tráfico e proponho analisá-los como discursos que constituem este de maneira
diferente, mas levando a resultados parecidos. Todas estas perspectivas
influenciam o debate sobre tráfico de pessoas, na medida que cada abordagem
quer impor a própria perspectiva como a concepção de tráfico dominante, para
elaborar “soluções” de acordo com os próprios interesses. Neste sentido, é
17
Laczko fala de estudos action-oriented. Cfr. ibid., p. 8.
18
Bruckert (2002), p. 8.
19
Cfr. ibid., p. 7.
20
Ibid., p. 2.
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17
possível constatar que não existe um consenso sobre a definição do tráfico na
literatura, pois também a definição elaborada no Protocolo de Tráfico é alvo de
críticas.
21
A importância da abordagem discursiva está na análise das implicações
políticas dos diferentes discursos, pois dependendo da definição do problema,
distintas formas de “solucionar” a questão são propostas e reivindicadas, como
chama a atenção Marjan Wijers: “Solutions vary, depending on how the problem
is defined, that is to say, what is seen as the problem that needs to be solved.”
22
Neste sentido, ela divide entre estratégias repressivas e estratégias de
“empoderamento” (empowerment) as propostas de solução.
23
Enquanto as
estratégias repressivas podem abrigar o risco de se voltar contra as pessoas
envolvidas no tráfico, as outras visam a “empoderar” os sujeitos traficados,
devolvendo-lhes o controle sobre a própria vida e garantindo-lhes os seus
direitos.
24
Deste modo, estratégias repressivas podem contribuir na
implementação de condições propícias para o fenômeno.
Para elucidar a complexidade do assunto, então, a pesquisa nortear-se-á
pelas seguintes perguntas:
Como funcionam os diferentes discursos sobre o tráfico
internacional de pessoas?
Quais são as soluções propostas para combater esta prática?
Quais são as implicações dos diferentes discursos especialmente
para as pessoas traficadas?
No presente trabalho sustento que os discursos sobre o tráfico produzem
uma representação específica deste fenômeno, levando a implicações políticas
até perigosas para as pessoas traficadas, no sentido de que em lugar de
combater o tráfico, levam, na última instância, a um aumento daquele.
Argumento que os discursos convencionais sobre o tráfico internacional de
pessoas são utilizados como pretexto para a instalação de mecanismos de
controle, que, em lugar de levar a uma proteção das vítimas do tráfico, visam a
alcançar outros objetivos, como políticas migratórias e regimes de fronteira mais
21
Como veremos nos capítulos seguintes.
22
Wijers (s.d.).
23
Como parte das estratégias repressivas, ela identifica as perspectivas que vêem
o tráfico como problema moral, como problema de crime organizado e como problema de
migração. Cfr. ibid.
24
Ibid.
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18
estritas, implementação de valores específicos e um fortalecimento do poder
estatal no combate ao crime organizado. Como hipóteses, sustento, então, que
os discursos convencionais sobre o tráfico internacional de pessoas que, embora
se apresentem em nome da proteção das vítimas e visem a erradicar a prática,
na verdade, são utilizados para justificar a instalação de mecanismos de controle
político e social, que, por sua vez, contribuem para uma implementação de
condições propícias para o fenômeno.
O objetivo é desconstruir os discursos mais correntes contemporâneos
sobre o tráfico internacional de pessoas como instrumentos utilizados para
fortalecer uma ordem particular seja no âmbito nacional (reivindicando, por
exemplo, valores específicos) e internacional (entendido como espaço da
anarquia e da desordem), perpetuando essa tradicional perspectiva dicotômica
presente nas teorias convencionais das Relações Internacionais (RI). Contudo,
um entendimento diversificado desta temática desafia a concepção
convencional, justamente por traspassar as fronteiras estabelecidas entre os
dois âmbitos.
25
Para resolver a questão, pretendo adotar a análise representacional que
possibilita um entendimento da retórica e das imagens das políticas correntes
sobre o tráfico no nível da representação e da constituição de sujeitos
específicos, ou seja, como forma de discurso. A teoria de Foucault fornece-me
os fundamentos para o trabalho metodológico; por um lado, a análise discursiva
desmistifica a relação entre o poder e a produção de conhecimento, e por outro
lado, a análise de processos de “tecnologização”, ou seja, de processos de
“despolitização”
26
revela que por meio de tecnologias de poder (como do poder
disciplinar e do biopoder) são instalados mecanismos de controle social.
Michel Foucault se concentra nos amplos estudos dele, como explica em
uma entrevista,
27
no estudo de diferentes regimes de práticas e nas implicações
destas práticas, que têm “regularidades próprias, uma lógica própria, uma
estratégia própria, auto-evidência e ‘razão’”.
28
“To analyse ‘regimes of practices’ means to analyse programmes of
conduct which have both prescriptive effects regarding what is to be done
(effects of ‘jurisdiction’), and codifying effects regarding what it to be known
25
Cfr. Buss et al. (2005), p. 13.
26
Como são chamados por Jenny Edkins. Cfr. Edkins (1999), p. 9.
27
Foucault (1980), p. 75.
28
Idem.
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19
(effects of ‘veridiction’).”
29
A minha proposta é de considerar o tráfico de pessoas uma prática que
estabelece certos regimes de racionalidade, constituída através de discursos no
sentido foucaultiano. Neste sentido, os discursos em torno desta questão
representariam os efeitos de veridiction, ou seja, o que deve ser conhecido;
enquanto a judicialização da temática ao longo da historia, ou seja, as tentativas
de elaborar estratégias (jurídicas e além) para combater o tráfico internacional de
pessoas poder-se-ia interpretar como os efeitos de jurisdiction. Deste modo, a
produção de discursos legitima e justifica uma elaboração específica de
estratégias com efeitos prescritivos. Enquanto em um primeiro momento os
discursos constituem “o que deve ser conhecido”, ou seja, estabelecem um
regime específico de verdade, em um segundo momento legitimam a tomada de
ações em nome deste regime. O enfoque do meu trabalho é exatamente a
investigação desta encruzilhada entre discurso e ação, entre o estabelecimento
de regimes de verdade e a justificação de escolha das estratégias para combater
o tráfico de pessoas.
No seu livro Vigiar e Punir, Foucault propôs uma forma de análise política
chamada de “micro-física do poder”, mostrado através do estudo da aplicação de
técnicas disciplinadoras como parte da invenção da prisão moderna
penitenciária.
30
Segundo a análise dele, para criar uma sociedade disciplinar,
não somente é preciso um processo definidor, mas também uma
operacionalização do significado de certas categorias, como daquela do
“criminoso” ou do “delinqüente”, por exemplo, através de uma nova organização
do espaço. Neste sentido, o surgimento do sistema de prisão no século XIX visa
à punição do “criminoso”, mas também a uma transformação deste, adotando
mecanismos disciplinares. Assim, novas práticas de vigilância são construídas,
legitimadas pelo discurso sobre a criminalidade.
31
“This is a depolitizing and controlling process, one that produces a distinct
‘subject’ (the delinquent) and the techniques of producing ‘knowledge’
about that subject (the discipline of criminology).”
32
Um paralelo com os perfis das possíveis vítimas do tráfico, como os
elaboram vários estudos sobre o assunto em questão, é plausível. Para reduzir a
29
Idem.
30
Burchell (1991), p. 3.
31
Cfr. Milliken (1999), p. 241.
32
Edkins (1999), p. 12.
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20
“ameaça” do tráfico para a sociedade, e ao mesmo tempo, o perigo que espera a
vítima, são estabelecidos mecanismos disciplinares que vigiam e controlam a
possível vítima.
Aqui atua, depois do eixo de verdade (axis of truth), o eixo de poder no
sentido de Foucault, no qual são produzidos padrões de normalização ou de
disciplina. No modelo disciplinar, então, atuam aspectos “tecno-disciplinadores”
através da vigilância, da disciplina, da regulação na busca de ordem.
33
Assim, o
tráfico poderia ser interpretado como processo durante o qual os sujeitos se
constituem, ou seja, poder-se-ia vê-lo como processo complexo e contraditório
da formação do sujeito (em relação a um entendimento de poder como opressivo
e gerativo ao mesmo tempo).
34
No pensamento pós-estruturalista, a
subjetividade e a ordem social não são consideradas separáveis, ou seja, a
constituição do sujeito está relacionada à constituição de uma ordem social ou
simbólica particular.
35
Esta noção de sujeito possibilita o entendimento da
produção deste pelas práticas disciplinadoras, levando a processos de auto-
disciplina, que representam parte de práticas discursivas.
36
Deste modo, a
concepção moderna do sujeito cartesiano - racional, pré-existente e unificado - é
desafiada, estabelecendo o “sujeito pós-moderno”:
“The postmodern subject, by contrast, has no fixed, essential, or permanent
identity. Subjectivity is formed and transformed in a continuous process that
takes place in relation to the ways we are represented or addressed and
alongside the production or reproduction of the social.”
37
Foucault apresenta duas tecnologias de poder: enquanto nos séculos XVII
e XVIII prevalecem técnicas centradas no corpo, a chamadas práticas ou
tecnologia disciplinar, que se expressam principalmente por meio de sistemas de
vigilâncias; na segunda metade do século XVIII, surge um novo mecanismo de
poder, o chamado biopoder (ou biopolítica).
38
Aparece uma nova personagem na
teoria do direito, além do indivíduo e da sociedade; a população, como “corpo
múltiplo”, a população como problema político, biológico e de poder.
39
O enfoque
aqui não está mais no corpo individual, na disciplina e na vigilância, mas nos
33
Ibid., p. 11.
34
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 13.
35
Edkins (1999), p. 6.
36
Cfr. ibid., p. 41.
37
Edkins (1999), p. 22.
38
Cfr. Foucault (1999, [1976]), p. 288.
39
Cfr. ibid., p. 293.
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21
fenômenos globais, de população, na regulamentação da vida por si.
40
“Temos, pois, duas séries: a série corpo-organismo – disciplina –
instituições; e a série população – processos biológicos – mecanismos
regulamentadores – Estado. Um conjunto orgânico institucional: a organo-
disciplina da instituição, se vocês quiserem, e, de outro lado, um conjunto
biológico e estatal: a bio-regulamentação pelo Estado.”
41
A distinção não é absoluta, pois os dois mecanismos de poder são
articulados um com o outro, como se vê especialmente no assunto da
sexualidade, que está na “encruzilhada do corpo e da população”.
42
Assim, o
assunto de tráfico de pessoas poderia ser considerado localizado nesta
encruzilhada entre corpo e população, pois atinge os corpos (especialmente na
interpretação do tráfico como problema moral), mas também visa a uma
constituição de uma parte da população como categoria particular – como
(possível) “vítima de tráfico”.
No presente trabalho, então, pretendo analisar os discursos sobre o tráfico
internacional de pessoas como mecanismos de controle que exercem poderes
disciplinadores e regulamentadores. Em vez de uma suposta “proteção” das
vítimas de tráfico, os discursos, além de produzir esta categoria de sujeitos (de
forma específica segundo os discursos), legitimam também a adoção de
mecanismos de controle social, especialmente em um Estado “governamental”
através de aparatos de segurança.
Foucault se interessa pela maneira com a qual os problemas específicos
da vida e da população são postos no interior da tecnologia governamental,
43
ou
seja, através da raison gouvernementale, entendida como “la manière dont on
conduit la conduite des hommes”.
44
Deste modo, a biopolítica está relacionada
com a governamentalidade no sentido que representa, segundo Foucault, “la
manière dont on a essayé, depuis le XVIIIe siècle, de rationaliser les problèmes
posés à la pratique gouvernamentale par les phénomènes propres à un
ensemble de vivants constitués en population.“
45
Esta adoção de mecanismos de
controle especialmente em um Estado governamental instaura modos de
40
Ibid., p. 298.
41
Idem.
42
Ibid., p. 300.
43
Foucault (1979), p. 824.
44
Foucault (2004, [1978]), p. 406.
45
Foucault (1979), p. 818.
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22
“objetificação” chamados de práticas divisórias.
46
De acordo com Jenny Edkins,
é neste eixo de poder que ocorre a operação da “sujeição” do sujeito político,
produzindo “subjected and practiced, bodies, ‘docile’ bodies”
47
, que ela denomina
de “depolitização” ou de “technologização”.
48
Assim, por exemplo, através da
criminalização de questões – como a do tráfico – estas são “depolitizadas”, no
sentido de que, por mudar os termos do debate, a força de protesto ou de
dissensão é removida.
49
Edkins destaca o papel da disciplina de RI nesta
“technologização”:
“International relations as a discipline ‘dissipates the concern with the
political and substitutes, instead, a fascination with the manifold globalised
and globalising technologies of order that have emerged to administer
human being’. An understanding of ‘the political’ is not taught or researched
but rather replaced by a study of ‘the technology of calculative order’.”
50
Uma “repolitização” é possível, segundo Edkins, através de análises
discursivas que questionem o discurso em ato. A intenção é de tornar o discurso
intolerável e de interromper o funcionamento deste, pois “um discurso está
sempre relacionado com a legitimação de poder, e todo poder é em último lugar
ilegítimo”.
51
“Discourse serves to conceal, to cover up, that illegitimacy.”
52
No presente trabalho decidi utilizar o termo “tráfico de pessoas” em vez da
mais empregada denominação de “tráfico de mulheres” por uma série de
motivos. Vários autores enfatizam o uso do termo “tráfico de mulheres” porque,
de acordo com um grande número de estudos, na maioria das vítimas traficadas
tratar-se-ia de mulheres ou meninas. Embora reconheça este argumento, prefiro
o termo mais “neutro” de “pessoas”. Esta decisão resulta não somente de
evidências de que também homens são traficados, e porque em inúmeros casos
trata-se de transgêneros - como mostram pesquisas especialmente do Brasil –
aliás uma categoria pouco considerada neste tipo de debates.
53
A decisão
também resulta de uma crítica ao uso da categoria de “mulher” de maneira
46
Edkins (1999), p. 48.
47
Ibid., p. 51.
48
Ibid., p. 9.
49
Cfr. ibid., p. 12.
50
Dillon (1991) apud Edkins (1999), p. 9.
51
Ewald apud Edkins (1999), p. 59.
52
Edkins (1999), p. 59.
53
Cfr. Piscitelli (2006), p. 17 e 18.
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23
pouco reflexionada como é apresentada na maioria dos estudos sobre o tráfico.
A decisão de trabalhar com o termo “pessoa” em lugar de “mulher” faz
parte de um questionamento mais geral de fundamentos e crenças sobre o que é
um sujeito, e da refutação da tentação de reificar a categoria de “mulher” em
uma unidade artificial, o que é desmascarado pelas feministas pós-modernas
como ato autoritário e não emancipatório.
54
Insiro-me, portanto, no debate
feminista pós-moderno que refuta a fixação de identidades e que questiona uma
essencialização da “mulher” em uma única classe. A crítica pós-moderna
problematiza os fundamentos do discurso moderno, questionando as grandes
narrativas (meta-narratives), e se opondo aos objetivos iluministas de “total
explanation, prediction and control”.
55
O entendimento pós-moderno destaca a
maneira como a categoria de “mulher” é representada e produzida de tal modo
para aparecer “natural”, ou seja, estas teóricas destacam que “não existe
nenhuma mulher original”.
56
O seguinte trabalho está dividido em quatro partes: enquanto o primeiro
capítulo delineia a trajetória histórica da questão do tráfico internacional de
pessoas, enfatizando especialmente o aumento da judicialização da temática, os
três capítulos restantes tratam, cada um, de uma representação distinta do
tráfico: como problema do crime organizado, como problema moral e como
problema de migração. Nestes capítulos, de acordo com o meu objetivo, a
ênfase está na desconstrução do funcionamento dos discursos e na investigação
da produtividade destes no sentido das implicações políticas.
O segundo capítulo, então, trata da perspectiva corrente que interpreta o
tráfico de pessoas como problema do crime organizado. Aqui o tráfico é definido
como problema do direito criminal e do sistema de justiça, que deve ser resolvido
com uma maior cooperação entre a polícia e uma legislação criminal mais
estrita, visando a uma maior punição dos traficantes e de seus intermediários. A
crítica a esta abordagem aponta que a perseguição dos traficantes não inclui
automaticamente a proteção dos direitos das vítimas. Pelo contrário, essa
perspectiva implicita a subordinação dos interesses dos sujeitos traficados aos
interesses da perseguição.
57
54
Cfr. Zalewski (2000), p. 70.
55
Ibid., p. 26.
56
Ibid., p. 41.
57
Wijers (s.d.)
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24
A abordagem tradicional que entende o tráfico de pessoas como um
problema moral, é a temática no terceiro capítulo. Esta visão, enraizada na
condenação moral da prostituição, e o tráfico tornam-se praticamente idênticos.
Portanto, para combater o tráfico, dever-se-ia abolir a prostituição. Neste
discurso, as mulheres são divididas entre as mulheres “inocentes”, ou seja, as
que foram “forçadas” à prostituição e que precisam de proteção; e as mulheres
“culpadas”, ou seja, que escolheram a prostituição. Embora as segundas sejam
“culpadas”, elas também precisam ser libertadas, pois, na verdade, nesta visão,
ninguém escolhe a prostituição, mas é vítima do sistema patriarcal de dominação
sobre a sexualidade feminina.
58
Portanto, todas as mulheres sujeitas à
prostituição precisam ser “libertadas” deste sistema de opressão. Esta visão não
reconhece o direito de autodeterminação das mulheres que voluntariamente se
engajam na prostituição, e nega, portanto, a agência dos sujeitos.
59
Segundo
Wijers e Doorninck, esta perspectiva representa o discurso dominante no debate
internacional.
60
A terceira abordagem, tratada no quarto capítulo, focaliza no tráfico como
problema de migração não-documentada ou “ilegal”. Nesta, para prevenir o
tráfico, são estabelecidas políticas migratórias mais repressivas. Assim, os
“países receptores” que consideram o tráfico como ameaça para a segurança
nacional, solucionam-o com a deportação dos sujeitos traficados, o que converte
as vítimas em criminosos.
61
Essa abordagem serve mais para proteger os
objetivos do Estado do que os do indivíduo, segundo Wijers e outros críticos,
restringindo, deste modo, ainda mais as possibilidades de migração.
62
No meu estudo, pretendo inserir-me no debate discursivo sobre o tráfico,
analisando as ambigüidades dos atuais discursos (mais recorrentes) sobre o
tráfico internacional de pessoas e as suas implicações políticas. Essa escolha se
justifica não somente pela falta de tais estudos nas RI, mas também porque a
maioria dos estudos existentes focalize apenas em partes do discurso,
representando visões parciais e incompletas – igual aos cinco homens cegos,
evocados na epígrafe desta introdução, que tocam o elefante em lugares
58
Cfr. Derks (2000), p. 8.
59
Cfr. ibid., p. 9.
60
Wijers (s.d.).
61
Cfr. Derks (2000), p. 12.
62
Wijers (s.d.), cfr. também Berman (2003).
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25
distintos e, portanto, não chegam a uma descrição adequada do animal.
Visto que a decisão sobre a definição do fenômeno de tráfico de pessoas
é decisiva para a escolha das soluções, problematizar as concepções distintas
nos diversos discursos sobre a questão adquire uma importância inegável. Um
mapeamento discursivo da complexidade do assunto possibilitará, portanto, uma
compreensão mais abrangente e diferenciada do tema, como também políticas
de “anti-tráfico” mais cuidadosas que não utilizem a questão como pretexto para
alcançar outros objetivos, operando como “controle em nome da proteção”.
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26
2 A trajetória histórica do tráfico de pessoas
2.1. Introdução
Para entender a temática contemporânea de tráfico internacional de
pessoas, é preciso investigar o surgimento da questão ao longo da história. O
tema não representa um fenômeno novo do século XXI, muito pelo contrário, o
assunto já existia tempos atrás e tem as próprias raízes em um fenômeno
chamado “tráfico de escravas brancas” (White Slave Trade). As narrativas sobre
esta “antiga forma de tráfico” apresentam vários paralelos com o discurso atual.
No tardio século XIX, a prática de “tráfico de escravas brancas” é
considerada uma ameaça a valores e interesses sociais. Supostamente tratava-
se de mulheres européias que teriam sido levadas ao exterior para trabalhar
como prostitutas. Na Europa e nos Estados Unidos surge, então, um pânico
moral (white slave panic),
63
reivindicando mecanismos de erradicação da prática.
A partir de uma crescente preocupação com este fenômeno, surgem já a partir
de 1904 os primeiros instrumentos legais para combater o tráfico nacional e
internacional de mulheres, que mais tarde será chamado de tráfico de pessoas.
No ano 2000 é elaborado pelas Nações Unidas em colaboração com
representantes da sociedade civil, o atual Protocolo de Tráfico (Protocol to
Suppress, Prevent and Punish Trafficking in Persons, Especially Women and
Children), que suplementa a Convenção contra o Crime Organizado
Transnacional. Apesar das divergências profundas entre os distintos grupos
feministas de pressão sobre a relação entre tráfico e prostituição, depois de dois
anos de intensas negociações, chega-se a um acordo. Assim, no Protocolo
vigente é estabelecida a primeira definição de tráfico humano no direito
internacional.
Neste capítulo, pretendo delinear a trajetória histórica do fenômeno de
tráfico de pessoas e as discussões em torno da questão. Enquanto a primeira
parte do capítulo focaliza a história sobre o “tráfico de escravas brancas” e as
suas relações com o grupo das abolicionistas do século XIX, uma segunda parte
do capítulo trata do surgimento dos primeiros instrumentos legais para combater
63
Derks (2000), p. 25.
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27
o fenômeno. O vigente Protocolo de Tráfico de 2000 que emerge desta
crescente judicialização será apresentado ao final deste capítulo.
O objetivo desta parte, portanto, é elaborar uma vista panorâmica sobre a
temática complexa do tráfico de pessoas, antes de entrar, nos capítulos
seguintes, mais em detalhe em três abordagens que interpretam a questão a
partir de diferentes pontos de vista: o tráfico como problema de crime
organizado, como problema moral e o tráfico como problema de migração.
2.2. O “tráfico de escravas brancas”
A partir das últimas décadas do século XIX, o tema do tráfico
internacional de pessoas esteve associado a narrativas de “tráfico de escravas
brancas” (White Slave Trade). Esse termo, que teria aparecido pela primeira vez
em um texto de 1839,
64
é derivado da expressão francesa Traite de Blanches
que, por sua vez, está relacionada a Traite de Noirs utilizado para denominar o
comércio de escravos negros.
65
Aqui já aparece uma característica importante
do assunto em questão: o entendimento do tráfico como uma forma de
escravidão, ou seja, o fator da exploração presente na escravidão representa um
ponto característico do tráfico. A expressão do “tráfico de escravas brancas”
referia-se a histórias de mulheres européias que seriam trazidas por redes
internacionais de traficantes para os Estados Unidos da América e para as
colônias para trabalhar como prostitutas.
66
Assim, já no século XIX, a prática de
tráfico de mulheres está conotada à prostituição e à escravidão; fatores que
representam características do debate contemporâneo sobre o tráfico.
De acordo com Jo Doezema, o tráfico de escravas brancas pode ser
definido como “a busca, por força, engano ou através do uso de drogas de uma
mulher ou menina (branca) contra a própria vontade, para a prostituição”.
67
Segundo Annuska Derks, essa prática estaria relacionada com as ondas
migratórias da época, nas quais ela identifica uma demanda crescente para
serviços sexuais entre os migrantes quase exclusivamente masculinos.
68
64
Bristow (1982) apud Doezema (2000), p. 30.
65
Derks (2000), p. 2.
66
Cfr. Derks (2000), p. 4, Saunders (2005), p. 345, Schettini Pereira (2005), p. 27,
Long (2004), p. 20 e Berman (2003), p. 65.
67
Doezema (2000), p. 25.
68
Derks (2000), p. 4.
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28
Também Petra De Vries enfatiza a questão da migração da Europa para a
América no século XIX e no começo do século XX em relação ao tráfico. No
entanto, segundo ela, as mulheres não foram coagidas a migrar, pelo contrário,
elas mesmas decidiram escapar da pobreza, de doenças e de conflitos sociais.
69
Nas investigações sobre a questão, então, há elementos contraditórios e
pouco claros, deixando o assunto vago e nebuloso, criando uma imagem do
white slave trade como parte de uma narrativa poderosa da época.
2.2.1. A cruzada contra a prostituição e o tráfico
A campanha contra o tráfico da escrava branca deve ser vista no contexto
dos discursos da época sobre a prostituição. Em fins do século XIX, muitos
países começam a articular “políticas de prostituição” no sentido de
regulamentação estatal da prostituição, debatendo até que ponto os poderes
públicos poderiam intervir em relações sexuais.
70
Essas políticas que visam a um
maior controle e a uma maior regulamentação da sexualidade da época,
constituindo políticas de intervenção política que podem ser vistas como
tecnologias de poder. De acordo com Michel Foucault, particularmente o campo
da sexualidade está influenciado pela tecnologia disciplinar, ou seja,
dependendo de uma vigilância permanente; mas também pela tecnologia
biopolítica, dependendo da regulamentação estatal, como, por exemplo, de
intervenções médicas.
71
Na época, há dois discursos de políticas de prostituição que competem
entre eles: o dos regulacionistas e o dos abolicionistas.
72
Como já diz o termo, os
regulacionistas reivindicam uma certa regulação da prostituição. Nesta
perspectiva, a prostituição representa um “mal necessário” e a prostituta uma
“mulher caída”, um “agente que transmite doenças” ou uma “aberração sexual”,
que deveria ser controlada por parte da “ciência da sexualidade”.
73
De acordo
com Michel Foucault, a partir do século XVII há um aumento de produção de
conhecimento sobre a sexualidade, ou seja, uma “discursividade do sexo”, que
leva ao longo do tempo à constituição da “ciência da sexualidade”.
74
Além disso,
69
De Vries (2005), p. 41.
70
Schettini Pereira (2005), p. 29.
71
Cfr. Foucault (1999, [1976]), p. 300.
72
Cfr. Doezema (2000), p. 26.
73
Ibid., p. 27.
74
Foucault (1983, [1976]), p. 23.
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29
ele constata uma “inflação” de técnicas disciplinadoras que se ocupam a vigiar e
a controlar os corpos.
75
Os regulacionistas estão a favor de um sistema estatal de bordéis, nos
quais as prostitutas são sujeitas a distintas formas de regulação, como controles
médicos e uma certa restrição da mobilidade, ou seja, os lugares de trabalho se
limitam a bairros específicos, como, por exemplo, a bairros portuários. Esta
perspectiva se impôs, por exemplo, na segunda metade do século XIX na Grã
Bretanha, nos British Contagious Diseases Acts.
76
Através destas três leis,
passadas em 1864, em 1866 e em 1869, pretendia-se combater a difusão de
doenças venéreas, que na época estavam espargidas especialmente entre
representantes do exército.
77
Para combatê-las, então, decide-se introduzir
controles e tratamentos médicos obrigatórios para prostitutas. Assim, visto que
os corpos das prostitutas são considerados fonte originária das doenças, os atos
implementam controles ginecológicos obrigatórios para elas. Nesta era vitoriana,
então, o corpo da prostituta é considerado uma ameaça pela sociedade, que
deve ser combatida através de tecnologias de poder, como intervenções estatais
e médicas.
78
Ao mesmo tempo, nasce um debate que questiona se o Estado deveria
regular a prostituição para combater, ao mesmo tempo, as doenças venéreas.
Em torno desta discussão, surge o movimento abolicionista que se opôs aos
Atos de Doenças Contagiosas, considerando que se trate de leis discriminatórias
para as mulheres. Estes atos são criticados por conceder ao Estado o poder de
controlar e examinar todas as mulheres suspeitas de se prostituir e de colocar,
deste modo, todas as mulheres “respeitadas” em perigo de se tornar alvo destas
políticas e de perder a própria “boa reputação”.
79
A representante principal deste
movimento é a inglesa Josephine Butler, uma mulher instruída da classe média-
alta inglesa, descrita também como “cristã apaixonada” e “feminista
revolucionária”.
80
Ela denuncia a hipocrisia da moralidade dos homens, que por
75
Foucault (2004, [1978]), p. 11.
76
Cfr. De Vries (2005), p. 44.
77
Cfr. Enciclopédia Livre Wikipedia, disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Contagious_Diseases_Acts>. Para os militares na
época, é proibido se casar, e atos homossexuais são considerados criminosos; portanto,
como „mal necessário“ lhes é permitido ter contatos sexuais com prostitutas. Cfr. idem.
78
Cfr. Doezema (2006), p. 273.
79
Cfr. Doezema (2000), p. 27.
80
Cfr. a história sobre a vida de Josephine Butler, disponível em:
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30
um lado, culpam as prostitutas de transmitir doenças e, pelo outro lado, não
tencionam a controlar também os clientes, nem questionam a prostituição em si.
Assim, o objetivo originário das abolicionistas é a abolição do sistema de
inspeção médica obrigatória para prostitutas (e para mulheres suspeitas de
serem prostitutas), pois trata estas como corpos contagiosos, enquanto protege
os clientes.
81
Elas lutam contra a imagem da “prostituta como mulher caída” que
é policiada e punida, e a favor de uma interpretação alternativa: a prostituta
representaria, nesta perspectiva, uma vítima que deve ser resgatada e
reabilitada.
82
Ao final, depois de uma longa luta, os abolicionistas conseguem
que os Atos de Doenças Contagiosas sejam revogados em 1886.
O movimento abolicionista luta em vários Estados europeus, sobretudo na
Grã-Bretanha, como também nos Estados Unidos da América, para uma
abolição da prostituição. Desta chamada “cruzada moral” surge a criação de uma
organização internacional, a chamada Fédération Abolitionniste Internationale
(F.A.I.) em 1875.
83
A fundadora desta organização é Josephine Butler, que
também introduz a questão da prostituição não voluntária ao quadro
internacional sob o termo de “tráfico de escravas brancas”.
84
Deste modo,
através da “combinação explosiva entre sexo e escravidão” ganha-se apoio para
os interesses abolicionistas.
85
Ao lado do movimento abolicionista há um outro grupo, os chamados
“reformadores da pureza social” (social purity reformer), que através de
programas repressivos visam a combater não somente a prostituição, mas a
todos os “vícios imorais” da sociedade (especialmente estão interessados em
vigiar o comportamento sexual dos jovens).
86
Apesar de Butler e outras
feministas condenarem a natureza repressiva das campanhas de pureza social,
muitos abolicionistas se unem a esse movimento.
87
“[S]ocial purity reformers
soon discovered the rhetorical power that ‘white slavery’ had on their middle-
class-audience”.
88
Assim, constata Doezema, as campanhas contra o tráfico de
<http://departments.kings.edu/womens_history/jgbutler.html>.
81
De Vries (2005), p. 44.
82
Cfr. Doezema (2000), p. 27.
83
De Vries (2005), p. 44.
84
Cf. Derks (2000), p. 2.
85
Doezema (2001), p. 24.
86
Cfr. Doezema (2000), p. 27, Derks (2000), p. 3 e De Vries (2005), p. 43.
87
Cfr. Doezema (2000), p.27.
88
Grittner (1990) apud Doezema (2000), p. 27.
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31
escravas brancas são dominadas por “moralistas repressivos”, compostos pelas
alianças entre organizações de pureza social e grupos religiosos cristãos.
89
Deste modo, o combate das abolicionistas, inicialmente para libertar as
mulheres do controle estatal, paradoxalmente, desemboca em um discurso de
apoio dos poderes repressivos do Estado.
90
A maioria das abolicionistas apóia as lutas contra a prostituição dos
grupos de pureza social, constatando uma relação estreita entre a prostituição e
o tráfico. O argumento das abolicionistas é que o tráfico internacional se baseia
no negócio de sexo comercial local, ou seja, que um precisa do outro.
91
Ao longo
do tempo, diferencia-se cada vez menos a “escravidão” da prostituta e o tráfico
da escrava branca, até que quase coincidem:
“[T]he connection with the white slave trade made prostitution look like
slavery more than ever as it was implied that all these foreign prostitutes
were held against their will. (…) While one was local, the other was
global.”
92
Nos empenhos posteriores, portanto, o combate ao tráfico inclui o combate
à prostituição em geral, que é interpretado como uma ameaça crucial para a
ordem social internacional.
2.2.2. O pânico moral
No tardio século XIX, a prática de “tráfico de escravas brancas” é
considerada uma ameaça a valores e interesses sociais. Na Europa e nos
Estados Unidos surge, então, um pânico moral (white slave panic),
93
que evoca
imagens terríveis de mulheres captadas e obrigadas a se prostituir. Esta noção
alarmante das jovens mulheres traficadas chama a atenção de muitos,
estabelecendo assim, uma narrativa específica que encontra a própria expressão
nas notícias sensacionalistas da época.
94
Ao longo do tempo, é possível constatar uma mudança neste discurso
sobre o tráfico da escrava branca, ou seja, sucede uma separação entre a
imagem da prostituição como pecado e a abordagem da escravidão da mulher
89
Doezema (2000), p. 28.
90
Ibid., p. 30.
91
De Vries (2005), p. 53.
92
Ibid., p. 52 e 53.
93
Doezema (2000), p. 25.
94
Cfr. De Vries (2005), p. 40.
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32
branca inocente.
95
Enquanto em um primeiro momento, as duas imagens
coincidem, em um segundo momento é estabelecida uma divisão entre a
prostituta - que é considerada uma pessoa imoral - e a mulher traficada - que é
descrita como jovem, ingênua e inocente.
96
Assim, é construída a imagem
paradigmática da “escrava branca” como uma “de nós”, que se reflete no
discurso contemporâneo sobre o tráfico internacional.
97
A ênfase na “branqueza” (whiteness) é interpretada por vários autores
como símbolo que reflete as suposições eurocêntricas das abolicionistas, pois,
na verdade, “a escrava branca podia ser de várias cores”.
98
Segundo Petra De
Vries, por exemplo, o destaque da cor branca serve para fortalecer “a ordem
natural que coloca a raça branca no ápice da civilização”.
99
Por volta da virada
do XIX ao século X, a prostituta torna-se “almost a symbol of social disintegration
in an otherwise ‘civilized’ society”
100
- e a pessoa traficada representa a
contrapartida:
“The prostitute’s body had been for many decades a symbol of sickness,
sin and moral decay; it was a cancer of the social body, a poisonous fruit
on the rotten tree of capitalism. In contrast, the integrity of the female body
– the white female body to be precise – was a mark of civilization.”
101
O branco equiparado à pureza da vítima se torna um símbolo da
chamada civilização, que o tráfico colocaria em perigo.
102
A inocência -
enfatizada pela juventude, a “branqueza” e a pureza da vítima nas histórias
típicas sobre as meninas e mulheres traficadas - não é um conceito absoluto,
adquirindo o significado próprio através da relação ao oposto.
103
A prostituta
como “gêmea escura da virgem”
104
, assim segue a interpretação, serve para
95
De Vries (2005), p.42. Isso coincide com a imagem tradicional dos dois lados da
mulher: a sedutora versus a santa. Cfr. Andrijasevic (2004), p. 116.
96
Doezema (2000), p. 24. Ela descreve a história típica do tráfico assim: “young
and naive innocent lured or deceived by evil traffickers into a life of sordid horror from
which escape is nearly impossible.”
97
Cfr. Doezema (2000), p. 24 e De Vries (2005), p. 46.
98
De Vries (2005), p. 46. Cfr. Doezema (2000), p. 28.
99
De Vries (2005), p. 46.
100
Ibid., p. 43.
101
Ibid., p. 46.
102
Cfr. ibid., p. 49.
103
Cfr. Doezema (2006), p. 271.
104
Idem.
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33
iluminar a integridade e a inocência da vítima do tráfico. Nos discursos sobre o
tráfico, reproduz-se, então, este par duplo da prostituta e da vítima traficada; e
para que não se misturem estas categorias, é necessário definir, controlar e
regular a linha divisória entre as duas.
105
Uma outra interpretação deste discurso enfatiza o papel das narrativas do
tráfico da escrava branca como metáfora para diversos medos e temores da
sociedade européia e americana a respeito de mudanças sociais.
106
De acordo
com Doezema, trata-se dos medos sobre a sexualidade e a independência
feminina, como também dos receios aos estrangeiros e aos migrantes.
107
Assim,
o pânico moral seria causado sobretudo pelo desejo das mulheres de mais
independência e pelas implicações desses desejos para a sociedade.
108
“Women’s independence was, and is, seen as a threat to the stability of the
family and by extension, of the nation. Contemporary efforts to stop
trafficking draw on underlying moral values of feminine dependence and
the ideal role of women in the family.”
109
Neste contexto, o grande êxito da campanha internacional ao combate do
tráfico de escravas brancas no tardio século XIX até a primeira Guerra Mundial é
relacionado à interpretação do discurso às ansiedades e temores da época,
levando a provisões legais que regularizam certos aspectos do trabalho de sexo
e tentam combater o fenômeno do tráfico, ainda relacionado à prostituição.
Deste modo, estabelece-se uma base para a legislação futura nacional e
internacional sobre a prostituição, introduzindo uma “nova era de política
sexual”.
110
2.3. Primeiros instrumentos legais
Em 1895 é organizada a primeira conferência internacional sobre o tráfico
de mulheres em Paris, que é seguida por outros encontros em Amsterdã,
Londres e Budapeste.
111
A conferência em Londres de 1899 decide criar uma
organização para combater o tráfico de mulheres, a Association pour la
105
Cfr. Doezema (2006), p. 284.
106
Cfr. ibid., p. 282.
107
Cfr. Doezema (2000), p. 39.
108
Cfr. ibid., p. 41.
109
Idem.
110
Ibid., p. 40.
111
Cfr. Long (2004), p. 20 e cfr. Moura Gomes (2005), p. 230.
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34
Repression de la Traite de Blanches, dirigida desde Londres pelo International
Bureau for the Suppression of the International White Slave Traffic, que é
seguido pelo estabelecimento de comitês nacionais em vários países.
112
Assim,
é preparada a base para uma abordagem legalista ao tráfico humano, que se
contrapôs ao entendimento mais político das décadas anteriores.
113
No começo do século XX, o direito internacional ocupa-se pela primeira
vez da questão do tráfico da escrava branca. A exploração sexual forçada é
interpretada como uma atividade criminosa que fere a dignidade humana da
vítima.
114
Enquanto no início da judicialização do tráfico, esta direciona-se
exclusivamente a meninas e mulheres (brancas), ao longo do tempo ocorre uma
“de-racialização” e um degendering da questão.
115
O primeiro instrumento legal a respeito do tráfico surge em 1904 a partir
de uma reunião de 13 países em Paris,
116
e se trata do Acordo Internacional
para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas (The International Agreement
for the Suppression of White Slave Traffic). O objetivo deste instrumento é
combater o recrutamento e o abuso de mulheres e meninas para finalidades
imorais no exterior.
117
Os países decidem intercambiar informação e tomar
medidas de proteção como, por exemplo, vigiar portos e rodoviárias.
118
Ao primeiro instrumento legal segue em 1910 a Convenção de Paris
(Paris Convention).
119
O objetivo é de construir uma política comum para
combater o abuso e a coação de mulheres e meninas brancas para fins imorais,
punindo os traficantes.
120
Nesta convenção, o acordo de 1904 é ampliado no
sentido da integração do tráfico dentro de um país, ou seja, traficar pessoas não
112
Cfr. De Vries (2005), p. 50.
113
Cfr. ibid., p. 50.
114
Cfr. Uçarer (1999), p. 237.
115
Idem.
116
Derks (2000), p. 4. De acordo com Long, p. 20 e De Vries (2005), p. 51 trata-se
de 16 Estados. Os países presentes nesta conferência são: França, Alemanha, Grã
Bretanha, Itália, Rússia, Suíça, Suécia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Espanha
e Portugal. Mais tarde se juntam à convenção também Áustria-Hungria, EUA e Brasil.
Cfr. Moura Gomes (2005), p. 230. Disso tal vez resulta que dependendo da fonte, o
número dos países varia entre 13 e 16.
117
Cfr. Derks (2000), p. 4.
118
Cfr. De Vries (2005), p. 51 e Moura Gomes (2005), p. 231.
119
Cfr. Derks (2000), p. 4 e Uçarer (1999), p. 239.
120
Cfr. Uçarer (1999), p. 238.
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35
necessariamente implica cruzar fronteiras.
121
Neste acordo é estabelecido punir:
“any person who, to gratify the passions of others, has by fraud or by the
use of violence, threats, abuse of authority, or any other means of
constraint, hired, abducted or enticed for immoral purposes, even with her
consent, a woman or girl under twenty years of age, or over that age in
case of violence, threats, fraud or any compulsion; notwithstanding that the
acts which together constituted the offence were committed in different
countries.”
122
Neste sentido, a punição de traficantes é restringida a situações nas
quais é utilizada a força ou a fraude. Esta convenção, junto com o acordo
anterior, limita-se à primeira parte do tráfico, ou seja, ao aliciamento da pessoa,
e não é adotável, por exemplo, para o resgate de uma mulher captada contra a
própria vontade em uma casa de prostituição, pois isso seria considerado
assunto da legislação nacional.
123
No caso do tráfico de menores, mesmo
consentido, há o resgate da menor e a punição dos traficantes, perpetuando
assim o discurso de uma necessária proteção de meninas, como critica De Vries:
“If young women, at the time until 23 years of age, fled the parental home for
whatever reason, they could easily and unquestionably be brought back.”
124
Neste sentido, a autora denuncia que a preocupação com o tráfico de escravas
brancas resulta em um discurso de controle da sexualidade das jovens, em uma
white slave surveillance.
125
Este elemento é reconhecido como recorrente seja
no “mito” do tráfico de escravas brancas, seja no discurso atual sobre o tráfico de
pessoas. Segundo Doezema é possível constatar uma preocupação subjacente
moral que está relacionada com perspectivas conservadoras com respeito à
autonomia e a sexualidade feminina, que representam o alvo de críticas
atuais.
126
Também Lynellyn D. Long verifica que as estratégias contra o tráfico
elaboradas na época não se diferenciam muito dos programas de anti-tráfico
atuais. Estes incluem conferências e documentos difamando a prática, tentando
erradicá-la através da perseguição dos traficantes e através de ações de
“libertação” das vítimas.
127
121
Cfr. Derks (2000), p. 4.
122
Uma publicação das Nações Unidas de 1959 cita o texto da Convenção de
1910. Cfr. United Nations (1959) apud Derks (2000), p. 4 e Uçarer (1999), p. 238.
123
Cfr. De Vries (2005), p. 52 e cfr. Chuang (1998), p. 5.
124
De Vries (2005), p. 55.
125
Cfr. idem.
126
Doezema (2000), p. 23.
127
Cfr. Long (2004), p. 20.
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36
Em 1921, sob o patrocínio da Liga das Nações, é elaborada a próxima
Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Meninas
(International Convention for the Suppression of Traffic in Women and Children).
Os 28 países que participam nesta conferência realizada em Genebra
128
decidem ampliar a convenção anterior através da inclusão de crianças, e através
da eliminação da conotação racial.
129
A noção da coação da pessoa traficada, até agora elemento recorrente
nos tratados, desaparece com a seguinte convenção, a Convenção de Genebra
de 1933, chamada de International Convention for the Suppression of Traffic in
Women of Full Age.
130
Aqui são punidos:
“the acts of procuring, enticing or leading away, even with her consent, a
woman or girl of full age, for immoral purposes to be carried out in another
country”.
131
Assim, esta convenção concentra-se, de novo, no tráfico internacional.
Enquanto o aliciamento de pessoas menores e adultas para a prostituição é
declarado crime, a exploração do trabalho sexual em si não é ainda incluída, o
que será tarefa da seguinte convenção.
Depois da Segunda Guerra Mundial e sob o patrocínio da recém fundada
Organização das Nações Unidas (ONU), é criado o próximo instrumento legal a
respeito do tráfico de pessoas: a Convenção para Supressão do Tráfico de
Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem (Convention for the
Suppression of the Traffic in Persons and of the Exploitation of the Prostitution of
Others) de 1949 sobrepõe-se a todas as convenções anteriores.
132
Nesta
convenção é punido quem:
“(1) procures, entices or leads away, for purposes of prostitution, another
person, even with the consent of that person; (2) exploits the prostitution of
another person, even with the consent of that person.”
133
Pela primeira vez, assim, é eliminada a referência explícita às mulheres
como objetos do tráfico e substituída pelo termo pessoas. Ao mesmo tempo, é
evocada a antiga relação entre tráfico e prostituição, construindo uma imagem
128
Cfr. Moura Gomes (2005), p. 231.
129
Incluindo assim na convenção também meninos, mas não homens. Cfr. Long
(2004), Derks (2000), p. 4 e Uçarer (1999), p. 238.
130
Derks (2000), p. 4.
131
United Nations (1959) apud Derks (2000), p. 5.
132
Idem.
133
Moura Gomes (2005), p. 232 e Chuang (1998), p. 6.
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37
de indistinção entre as duas atividades.
134
A condenação do tráfico é combinada
com uma condenação explícita da prostituição, considerando as duas práticas
“incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa”, pois colocariam em perigo
“o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade”.
135
Deste modo, a convenção de 1949 aponta a uma total abolição da
prostituição, continuando a antiga luta das abolicionistas. A inclusão, na
convenção, da condenação geral da prostituição provoca, segundo Derks, que
vários países que assinaram as convenções anteriores, não acedam a esta.
136
A
confluência das duas práticas em uma única é percebida como estigmatizante; a
crítica questiona a interpretação da prostituição - se exercida com o consenso da
mulher - como crime.
137
Contudo, durante as próximas décadas, continua
prevalecendo esta política abolicionista a respeito do tráfico.
138
2.4. O Protocolo de Tráfico de 2000
O assunto volta a reaparecer na agenda internacional somente no final
dos anos 90, levando a uma nova elaboração legal que se concretiza no vigente
Protocolo de Tráfico.
139
No ano 2000, sob o patrocínio da ONU, se reúnem em
Palermo, na Itália, mais de 80 países, para assinar a Convenção contra o Crime
Organizado Transnacional (Convention Against Transnational Organised Crime)
junto com um Protocolo que regulariza o contrabando de migrantes e com o
atual Protocolo de Tráfico, chamado de Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir
o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças (Protocol to Suppress,
Prevent and Punish Trafficking in Persons, Especially Women and Children).
140
A convenção, na qual os protocolos estão integrados, representa o
primeiro instrumento internacional contra o crime organizado transnacional e visa
134
Uçarer (1999), p. 239. Incluindo assim na convenção, pela primeira vez,
também homens como possíveis alvos do tráfico.
135
Derks (2000), p. 6 e Uçarer (1999), p. 239.
136
Cfr. Derks (2000), p. 6. Segundo Uçarer, esta convenção foi ratificada somente
por menos da metade dos membros da ONU. Cfr. Uçarer (1999), p. 239.
137
Cfr. Moura Gomes (2005), p. 233.
138
Cfr. Derks (2000), p. 6.
139
Os documentos do Protocolo sobre tráfico da Comissão contra o Crime da
ONU podem ser encontrados no
<http://www.uncjin.org/Documents/Conventions/dcatoc/final_documents/index.html>.
140
Em seguida será chamado de Protocolo de Tráfico.
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38
a promover a cooperação entre os países para prevenir e combater o crime
organizado de forma mais efetiva.
141
Nos 41 artigos da convenção são
regularizados, entre outros: a criminalização de lavagem de dinheiro e de
corrupção; a cooperação internacional para a confiscação; a extradição de
criminosos; o intercâmbio de informação, de assistência legal e de técnicas de
investigação; as assistência e proteção de testemunhas e de vítimas; e a
prevenção de crimes. A convenção entrou em vigor desde 29 de setembro de
2003.
142
2.4.1. As dinâmicas do processo de negociação
A convenção e os protocolos são negociados, durante dois anos, em uma
série de encontros de um Committee Ad Hoc intergovernamental, que é
estabelecido pela Assembléia Geral das Nações Unidas para preparar o esboço
da convenção,
143
junto com representantes de mais de 100 governos e sob os
auspícios da Comissão de Crime da ONU. Nos encontros participam também
observadores de organizações do sistema da ONU, representantes de
instituições da ONU da rede de programas de justiça criminal e de prevenção de
crime, e lobbistas de organizações intergovernamentais (OIGs) e não-
governamentais (ONGs). Os encontros são realizados no Centro para Prevenção
de Crimes da ONU em Viena/Áustria a partir de janeiro de 1999 até outubro de
2000.
144
O Protocolo de Tráfico representa um dos três protocolos da Convenção
contra o Crime Organizado, sendo os outros dois protocolos referentes
respectivamente ao contrabando de pessoas e ao comércio de armas.
145
O
esboço do Protocolo de Tráfico preparado pelo Committee Ad Hoc baseia-se
originalmente em propostas da Argentina e dos EUA.
146
Na segunda sessão, em
março de 1999, são discutidos os sujeitos principais do protocolo, ou seja, é
141
Cfr. Convenção (2000), p. 25, artigo 1.
142
Cfr. a informação na página da UNODC, disponível em:
<http://www.unodc.org/unodc/index.html>.
143
Estabelecido pela Assembléia Geral da ONU com a resolução n. 53/111 do 9
de dezembro de 1998. Cfr. Convenção (2000), p. 1.
144
Cfr. Ditmore e Wijers (2003), p. 79. Especificamente participaram entre 91 e
121 países. Cfr. Convenção (2000).
145
Cfr.Ditmore e Wijers (2003), p. 79.
146
Protocolo de Tráfico (2000), p. 6.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510706/CA
39
questionado se este deveria direcionar-se a mulheres e crianças ou a pessoas
em geral.
147
Na terceira sessão, um mês mais tarde, identificada como uma
resposta da Assembléia Geral da ONU, ao Committee Ad Hoc foi encomendada
a elaboração de um protocolo especificamente contra o tráfico de mulheres e
crianças. No entanto, sem ulteriores explicações, o título do protocolo menciona
mulheres e crianças, mas também pessoas, chamando-se ”Protocolo para
Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico em Pessoas, especialmente de Mulheres e
Crianças”.
148
A Convenção do Crime Organizado Transnacional é aprovada em 28 de
julho de 2000 com grande satisfação da maioria dos participantes,
149
e o
protocolo aqui em questão é aprovado alguns meses depois, em 23 de outubro
de 2000, depois de 217 encontros.
150
Segue o Protocolo contra o Contrabando
de Migrantes na Terra, no Mar e no Ar (aprovado em 24 de outubro de 2000) e o
terceiro suplemento da convenção, o Protocolo contra a Manufatura de e o
Tráfico com Armas de Fogo, (aprovado em 31 de maio de 2001). Os protocolos,
assim é sugerido na convenção, deveriam ser interpretados preferivelmente em
conjunto com esta.
151
Mas, antes da aprovação, havia de se chegar a um consenso interno
sobre a questão do tráfico, o que se tornou especialmente difícil, segundo
Melissa Ditmore que participava nas negociações, pelo envolvimento da questão
da prostituição, pois introduz o elemento moral no debate, ou seja, a
identificação do tráfico como problema de exploração sexual relacionada à
prostituição leva a expressar posições divergentes sobre o assunto em geral.
152
Além disso, as dinâmicas do processo de negociação teriam sido influenciadas
pela divisão de gênero dos grupos participantes. Enquanto a maior parte dos
representantes governamentais era de homens, a maioria das participantes por
parte das ONGs era feminina.
153
Segundo a autora, aquilo teria salientado ainda
mais as divergências ideológicas sobre a relação entre o tráfico e a prostituição,
147
Ibid., p. 8.
148
Ibid., p. 11.
149
Somente alguns países como Egito, Turquia e Argélia, expressam uma certa
decepção pela ausência da relação clara entre os crimes de terrorismo e o crime
organizado. Cfr. Convenção (2000), p. 15 e páginas seguintes.
150
Cfr. Convenção (2000), p. 20.
151
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000), p. 54, artigo 1.
152
Cfr. Ditmore e Wijers (2003), p. 80.
153
Cfr. idem.
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40
não somente entre as delegações de Estado, mas também entre as ONGs
feministas de pressão.
154
O campo de luta entre as ONGs pode ser distinguido principalmente entre
duas redes feministas diferentes, que competem para influenciar a formulação
do protocolo.
155
Assim, por um lado, está o grupo chamado de Human Rights
Caucus
156
, liderado pela ONG GAATW (Global Alliance against Traffic in
Women) e composto por organizações de direitos humanos, por ativistas de
“antitráfico” e por grupos que representam os direitos de trabalhadoras do sexo.
Esta rede luta para uma perspectiva mais abrangente e emancipadora de tráfico,
reivindicando uma perspectiva afiliada com os direitos humanos. Por outro lado,
há a ONG CATW (Coalition Against Trafficking in Women), composta por grupos
que advogam uma perspectiva abolicionista, ou seja, que colocam a prostituição
como a fonte do problema em questão, representando, deste modo, uma
perspectiva mais conservadora do tráfico.
157
Essa diversidade de entendimentos conceituais conflitantes está no
centro dos discursos sobre o fenômeno tráfico de pessoas. As perspectivas
divergentes influenciam o debate na medida que cada vertente quer impor a
própria perspectiva como a concepção “oficial” de tráfico de pessoas. Assim, o
assunto mais debatido representa a definição de tráfico que até então carece de
um consenso internacional.
158
2.4.2. A luta pela definição do tráfico
O grupo Human Rights Caucus reivindica uma definição ampla do tráfico.
Como elementos importantes para a definição do tráfico são considerados: a
154
Idem.
155
Cfr. Doezema (2005).
156
As seguintes organizações formaram parte do Human Rights Caucus: Global
Alliance against Traffic in Women (GAATW, Tailândia), International Human Rights Law
Group (IHRLG, EUA), Foundation against Trafficking in Women (Países-Baixos), Asian
Women’s Human Rights Council (AWHRC, Filipinas, Índia), La Strada (Polônia, Ucrânia,
República Checa), Fundación Esperanza (Colômbia, Países-Baixos, Espanha), Ban-Ying
(Alemanha), Foundation for Women (Tailândia), KOK-NGO Network Against Trafficking in
Women (Alemanha), Women’s Consortium of Nigéria, Women, Law and Development in
África (Nigéria). Cfr. Ditmore e Wijers (2003), p. 80.
157
Ditmore e Wijers (2003), p. 80, Doezema (2005), p. 67.
158
Ibid.
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41
inclusão de outras formas de exploração além da sexual (e, portanto, uma
diferenciação entre o tráfico e a prostituição), a coerção, a decepção, a servidão
por dívida (debt bondage), o abuso de autoridade e uma distinção entre tráfico
de adultos e de crianças.
159
O grupo advoga uma perspectiva que focaliza a
proteção dos direitos humanos dos traficados, incluindo o direito a alojamento
protegido, as assistências sociais, médicas e jurídicas, o direito à indenização, a
obter vistos de residência e de trabalho temporários e o direito a não serem
sujeitos à discriminação.
160
O segundo grupo,
161
por sua vez, identifica o tráfico como uma forma de
prostituição por considerá-la violência sexual e um modo de escravidão,
revocando assim o discurso abolicionista da época do tráfico das escravas
brancas. Trata-se das neo-abolicionistas que interpretam qualquer trabalho
sexual comercial como inerentemente explorador e como violação dos direitos
humanos. Para elas, na definição do tráfico precisa-se lutar contra qualquer
forma de prostituição, não considerando necessária a menção de elementos
como coação ou consentimento. Nesta visão, a prostituição é sempre “forçada”,
e, portanto, advoga um discurso de “salvação” das “mulheres caídas”.
162
2.4.2.1. A questão polêmica do consentimento
A questão do consentimento, ou seja, a pergunta se o tráfico deveria ser
definido pela natureza do trabalho ou pelo uso do engano e da coerção,
representa, então, o elemento polêmico crucial nas negociações.
163
De acordo com a perspectiva do bloco liderado pela ONG CATW, que se
denomina também de International Human Rights Network,
164
não é possível
consentir a uma atividade tão exploradora quanto a prostituição, ou seja,
nenhum verdadeiro consentimento é possível. Além disso, advertem que a
menção de um consentimento poderia ser utilizada pelos traficantes para
159
Cfr. Ditmore e Wijers (2003), p. 81.
160
Idem.
161
Algumas organizações participantes a este grupo são as seguintes: Coalition
Against Trafficking in Women (CATW), European’s Woman Lobby (EWL), International
Abolitionist Federation (IAF), Soroptimist International, the International Human Rights
Federation e Equality Now. Cfr. idem.
162
Cfr. idem.
163
Cfr. ibid., p. 82 e Doezema (2005), p. 67.
164
Cfr. Doezema (2005), p. 67.
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42
escapar da punição. Este argumento é empregado para justificar a posição deste
grupo que visa a declarar todo tipo de trabalho sexual comercial como tráfico,
independentemente dos meios (ex. engano, decepção, coação etc.) utilizados.
165
Assim, por exemplo, a co-diretora da CATW, Dorchen Leidholdt, escreve:
“The sexual exploitation of women and children by local and global sex
industries violates the human rights of all women and children whose
bodies are reduced to sexual commodities in this brutal and dehumanising
marketplace.”
166
O uso intercambiável da prostituição e do tráfico é fortemente contestado
pelo grupo Human Rights Caucus, que alberga também representantes dos
direitos das trabalhadoras do sexo (sex worker rights movement).
167
O objetivo
deste grupo é uma descriminalização das trabalhadoras do sexo.
168
Portanto,
reivindica uma clara distinção entre a prostituição “voluntária” - que deveria ser
reconhecida como trabalho - e a prostituição “forçada”. Somente esta última
deveria ser entendida como tráfico. Assim, para este grupo de pressão o
elemento da força e, respectivamente, do consentimento, adquirem uma
importância indispensável na definição do tráfico.
“Obviously, by definition, no one consents to abduction or forced labour, but
an adult woman is able to consent to engage in an illicit activity (such as
prostitution, where this is illegal or illegal for migrants). If no one is forcing
her to engage in such an activity, then trafficking does not exist.”
169
Por serem as posições epistemológicas tão distintas entre os dois grupos,
chegar a um acordo parecia difícil, senão impossível. Ao longo das negociações,
os dois grupos aumentaram a pressão para influenciar o protocolo em vários
encontros informais com as delegações de Estado. Enquanto, por exemplo, o
Vaticano, a Bélgica, a Suécia, a França, a Noruega, a Finlândia, o Marrocos, a
Argélia, o Egito, junto com as Filipinas, o Paquistão, a Índia, a China, os
Emirados Árabes, a Síria, o México, a Venezuela, a Colômbia e a Argentina
lutam para implementar a posição da CATW; os Países Baixos, a Holanda, a
Alemanha, a Dinamarca, a Irlanda, a Suíça, a Espanha, a Grã-Bretanha, junto
165
Cfr. Ditmore e Wijers (2003), p. 83.
166
Leidholdt (2000) apud Doezema (2005), p. 67.
167
De acordo com Doezema, a origem deste movimento remonta aos anos 70,
nos quais em alguns países se uniram as trabalhadoras do sexo, reivindicando o
reconhecimento da prostituição como trabalho. Cfr. Doezema (2005), p. 68.
168
Cfr. Doezema (2005), p. 76.
169
Human Rights Caucus (1999) apud Ditmore e Wijers (2003), p. 83.
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43
com alguns países da antiga União Soviética (como Azerbaijão), a Austrália, a
Nova Zelândia, a Tailândia, o Japão e o Canadá defendem a posição do Human
Rights Caucus.
170
A questão do consentimento quase pôs em xeque o protocolo
inteiro, ou seja: “the crucial term blocking consensus was ‘consent’.”
171
.
2.4.3. O resultado das negociações
Ao final e para a surpresa de todos, o elemento de consentimento não
bloqueia as negociações, e é alcançando um compromisso. O uso da força e da
coação é incluído no Protocolo do Tráfico de 2000 como elemento essencial
para a definição do tráfico, como mostra o artigo 3 (a) na primeira seção do
protocolo:
“a) ‘Trafficking in persons’ shall mean the recruitment, transportation,
transfer, harbouring or receipt of persons, by means of the threat or use of
force or other forms of coercion, of abduction, of fraud, of deception, of the
abuse of power or of a position of vulnerability or of the giving or receiving
of payments or benefits to achieve the consent of a person having control
over another person, for the purpose of exploitation.”
172
Ao mesmo tempo, é enfatizada a questão do consentimento, porém
conseguido através da força, ou seja, tratar-se-ia de um consentimento não
verdadeiro. Deste modo, esta menção, reforçada no parágrafo 3 (b), satisfaz
mais o grupo neo-abolicionista:
b)The consent of a victim of trafficking in person to the intended exploitation
set forth in subparagraph (a) of this article shall be irrelevant where any of
the means set forth in subparagraph (a) have been used.”
173
A influência dos dois grupos de pressão é facilmente reconhecível, pois é
possível observar seja a postura que reconhece a importância da força e da
coação no tráfico, como reivindicado pelo Human Rights Caucus, seja a postura
da concepção neo-abolicionista, que considera o consenso irrelevante se obtido
pela força. Portanto, é compreensível que o resultado do protocolo é celebrado
pelos dois grupos como “vitória”.
174
Assim, Doezema, que participou do grupo Human Rights Caucus,
170
Cfr. Doezema (2005), p. 72 e 78. Cfr. também CATW (s.d.), Victory in Vienna.
Disponível em: <http://www.utopia.pcn.net/puta3-i.html>.
171
Doezema (2005), p. 79.
172
Protocolo de Tráfico, artigo 3 (a), p. 55. Itâlico pela autora.
173
Ibid. Itâlico pela autora.
174
Cfr. CATW (s.d.).
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44
reconhece um certo “avanço” na definição do tráfico de pessoas, incluindo
algumas críticas, sobretudo no que concerne à omissão do protocolo sobre uma
proteção específica às trabalhadoras do sexo.
175
Ditmore e Wijers, por sua vez,
constatam no protocolo uma ênfase na postura do Human Rights Caucus, e
destacam o potencial emancipador do protocolo atual, celebrando a partida da
convenção anterior de 1949.
176
No entanto, esta postura entusiasmada pode ser questionada já que o
protocolo ainda reflete uma relação estreita entre o tráfico e a prostituição, que
se sustenta no percurso que vai desde o tráfico das escravas brancas até o
tráfico de pessoas internacional contemporâneo, também chamado de new white
slave trade.
177
“The ghost of the white slave haunted the halls of the UN in
Vienna, where states and feminist met to decide on a definition of trafficking in
women.”
178
Sobretudo a segunda parte do artigo 3 (a) elucida aquilo:
“Exploitation shall include, at a minimum, the exploitation of the prostitution
of others or other forms of sexual exploitation, forced labour or services,
slavery or practices similar to slavery, servitude or the removal of
organs.”
179
Aqui, a expressão “prostitution of others” é transmitida do instrumento legal
anterior, da Convenção de 1949. Deste modo, é evocada a identificação do
tráfico com a prostituição, recordando á época do aparecimento da questão do
tráfico. Ao mesmo tempo, este termo, junto com a menção “toda forma de
exploração” não são definidos em nenhuma parte do protocolo. De acordo com
as notas interpretativas do protocolo, este fato resultaria da impossibilidade de
um acordo de definição destas expressões entre os delegados estatais.
180
Para
possibilitar a cada país uma interpretação própria conforme as leis domésticas, é
decidido deixar estas expressões sem explicação.
181
Como critica Sullivan, é
introduzida uma certa “ambigüidade” no protocolo, pois estas expressões
representam “termos imprecisos e emotivos”.
182
Um risco desta imprecisão
poderia ser a consideração de todo tipo de migração que envolve uma forma de
175
Doezema (2005), p. 80.
176
Cfr. Ditmore e Wijers (2003), p. 87.
177
Cfr. Berman (2003), p. 38.
178
Doezema (2005), p. 67.
179
Protocolo de Tráfico (2000), artigo 3 (a). Itálico pela autora.
180
Nota 64, p. 12 das notas interpretativas.
181
Cfr. Sullivan (2003), p. 80 e Doezema (2005), p. 80.
182
Cfr. ibid., p. 81.
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45
trabalho comercial sexual, como tráfico.
183
Para GAATW, é necessário que os
países desenvolvam definições claras sobre a “exploração da prostituição de
terceiros ou outras formas de exploração sexual”, sendo aquelas essenciais para
a regulamentação da lei e dos direitos do réu.
184
A segunda seção do Protocolo trata de provisões diferentes, como a
penalização de traficantes e a proteção da identidade e da segurança das
vítimas. Além disso, é sugerido aos Estados prover as vítimas com informação,
tratamento médico, alojamento e com possibilidades de formação e trabalho. Os
Estados receptores “deveriam considerar” as possibilidades de permitir uma
permanência legal temporária pelas vítimas do tráfico, e em um possível retorno
destas ao país de proveniência, a segurança delas deveria estar no primeiro
plano. De acordo com artigo 8/parágrafo 2, todo retorno deveria
“preferivelmente” ser voluntário.
A terceira parte do Protocolo de Tráfico de 2000 se ocupa da prevenção e
da cooperação entre os países, as ONGs ou qualquer outra organização
relevante, e a sociedade civil (artigo 9/3). Visa a prover um intercâmbio de
informação e de resultados de pesquisas, uma formação adequada do pessoal
especializado, e iniciativas e campanhas econômicas e sociais em conjunto. No
foco também está a cooperação nos controles de fronteira (border measures).
Além disso, o Protocolo chama os países a reduzir a demanda que favorece todo
tipo de exploração de pessoas, e a aliviar os fatores identificados como
causadores do tráfico: a pobreza, o subdesenvolvimento e a falta de
oportunidades igualitárias (artigo 9/4).
185
A despeito das divergências entre os diferentes grupos envolvidos nas
negociações em torno da convenção, existe um consenso sobre a necessidade e
sobre a importância deste documento.
186
Neste sentido, é destacado que se trata
da primeira definição do tráfico no direito internacional. A convenção, que prevê
“the framework and the tools for better international cooperation against
organized crime without borders”
187
, e o desenvolvimento de um novo
instrumento legal a respeito do tráfico levam a um aumento de conscientização
183
Cfr. ibid., p. 82. Esta temática será tratada mais extensamente no capítulo 3.
184
Cfr. GAATW (2006), p. 28.
185
Os motivos do tráfico serão tratados no terceiro capítulo.
186
Cfr. Sullivan (2003), p. 81.
187
Lauriola (2000), p. 3.
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46
sobre a questão.
188
Além disso, o direito internacional, como recorda Sullivan,
além de figurar como instrumento para lidar com certos problemas, representa
um “ator na construção de significado e de possibilidade”, no sentido de ter
efeitos constitutivos para o tratamento da questão.
189
O Protocolo de Tráfico é assinado até agora por 117 países, ratificado por
28, e está em vigor desde o 25 de dezembro de 2003.
190
2.5. Conclusão
O considerado predecessor do tráfico internacional de pessoas
contemporâneo denominado de tráfico de escravas brancas surge no final do
século XIX, sendo interpretado como parte integral das narrativas da época para
combater a prostituição.
Por um lado, há os regulacionistas que estão a favor de controlar a
prostituição por parte do Estado, e por outro lado há os abolicionistas, que se
opõem a esta abordagem, visando “libertar” toda prostituta, lutando assim
também contra o “tráfico de escravas brancas”, que é classificado como uma
forma de “prostituição global forçada”.
Nesta narrativa, a ênfase na inocência e na cor da mulher traficada, é
utilizada para simbolizar o pertencimento da “escrava traficada” à civilização
ocidental. Este discurso eurocêntrico indica que através da prática de tráfico seja
a pureza da vítima, seja a suposta “superioridade” da civilização ocidental
estariam colocadas em perigo.
Nas interpretações deste discurso, constata-se que estes representam
metáforas para diversos medos da época sobre mudanças sociais, como por
exemplo, o temor sobre a crescente independência (ou do desejo de
independência) das mulheres, que ameaçaria a estabilidade da família como
“fundamento da sociedade”, e ao mesmo tempo, desestabilizaria a integridade
da nação.
A campanha contra o tráfico vem a ser um sucesso e leva, a partir de
1904, ao surgimento de primeiros instrumentos legais para combatê-lo. Estes
188
Cfr. Sullivan (2003), p. 84.
189
Ibid., p. 68.
190
Em comparação: o Protocolo sobre o Contrabando de Migrantes é assinado por
112 e ratificado por 27 países, e o Protocolo contra Armas de Fogo é assinado por 52 e
ratificado por quatro países. Uma lista atual de ratificações é disponível em:
<http://www.unodoc.org/unodoc/en/crime_cicp_signatures_trafficking.html>.
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47
continuam na trilha dos discursos anteriores, no sentido de que nas convenções
seguintes é ainda possível observar a relação estreita entre o tráfico e a
prostituição, especialmente na convenção de 1949 que visa a uma total abolição
da prostituição como estratégia para combater o tráfico. Esta tradição é mantida
nas décadas seguintes até as negociações para o vigente Protocolo de Tráfico
de 2000, nas quais grupos de pressão não-governamentais com perspectivas
opostas tentam influenciar as delegações estatais, levando a um resultado que
se apresenta como compromisso entre os dois pólos. Ao final, a primeira
definição internacional de tráfico de pessoas é elaborada, representando um
novo instrumento do direito internacional.
O Protocolo de Tráfico vigente, fazendo parte da Convenção de Crime
Organizado Transnacional, enfatiza uma perspectiva do tráfico como problema
de crime organizado. No entanto, há várias possibilidades de elucidar o
fenômeno por distintos ângulos; da escolha da abordagem depende, ao final, a
elaboração das estratégias para combater o tráfico. Cada abordagem pode levar
a implicações políticas diferentes e até graves e perigosas para as pessoas
traficadas.
Nos seguintes capítulos pretendo ilustrar estes problemas a partir de três
abordagens ao tráfico diferentes: o tráfico como problema de crime organizado,
como problema de prostituição e como problema de migração. O objetivo final é
mostrar a insuficiência de abordagens singulares e reivindicar perspectivas mais
holísticas que levem em consideração a complexidade do assunto.
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48
3 O tráfico de pessoas como problema de crime
organizado
“Human trafficking is, without a doubt, a major branch of organized crime.”
191
3.1. Introdução
A abordagem que focaliza na questão do tráfico como problema de crime
organizado é uma perspectiva comum e recorrente, representando uma das
primeiras interpretações de tráfico.
192
Sobretudo governos, instituições (inter-)
governamentais e supranacionais consideram a questão do tráfico em primeira
linha assim, reivindicando uma resposta agressiva da justiça criminal.
193
Essa
abordagem também prevalece nas reportagens da mídia - na maioria das vezes
sensacionalistas -, representando as vítimas do tráfico como capturadas por
redes de crime organizado.
194
Como mostra, por exemplo, o Relatório Anual de Tráfico de Pessoas
(Trafficking in Persons Report, TIP-Report) do Departamento de Estado dos
Estados Unidos de América (EUA): a maioria dos países adota uma resposta da
justiça criminal para combater o tráfico.
195
Também em análises de relatórios da
Organização de Segurança e Cooperação Européia (OSCE), da Organização
Internacional de Trabalho (OIT) e da Comissão Européia domina este
enfoque.
196
Deste modo, autores constatam uma “hegemonia da racionalidade
discursiva criminalista” nos debates sobre o tráfico de pessoas.
197
Talvez esta postura não deveria surpreender se olharmos ao Protocolo de
Tráfico das Nações Unidas, que em si suplementa a Convenção Transnacional
do Crime Organizado e, portanto, podemos constatar uma clara prioridade à
191
Stoecker (2000) apud Bruckert (2002), p. 13.
192
Ibid., p. 4.
193
Cfr Chuang (2006), p. 138, Uhl e Vorheyer (2006), p. 28.
194
Cfr. Berman (2003), p. 65 e Andrijasevic (2004), p. 25.
195
Cfr. TIP Report (2005), p. 34 apud Chuang (2006), p. 150.
196
Cfr. Uhl e Vorheyer (2006), p. 28.
197
Ibid., p. 30.
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49
abordagem do tráfico como problema de crime organizado.
198
O artigo quatro do
Protocolo, por exemplo, que regula a aplicação do mesmo, especifica que o
tráfico internacional de pessoas é condicionado pelo envolvimento de grupos
organizados criminosos.
199
Nesta visão, o tráfico é considerado uma atividade criminosa atribuída a
grupos de crime organizado, e a melhor forma para combater este crime é
através de uma legislação mais estrita, que penaliza os criminosos, através de
leis migratórias mais rígidas e da deportação da vítima.
200
Esta última é
considerada importante exclusivamente no que se refere à identificação dos
traficantes criminosos para possibilitar à sua persecução.
201
Posturas críticas a essa abordagem apontam que a perseguição dos
traficantes não inclui automaticamente a proteção dos direitos das vítimas.
202
Pelo contrário, esta perspectiva implicita a subordinação dos interesses dos
sujeitos traficados aos interesses da perseguição. Além disso, a criminalização
propõe a “solução” de “salvar” as vítimas do tráfico, considerando que a questão
do tráfico seja resolvida com a deportação das vítimas e com a punição dos
traficantes. A crítica destaca ainda a falta da ênfase nos direitos da vítima e a
priorização dos interesses do Estado; denominando-a uma estratégia
repressiva.
203
Esta perspectiva, na minha argumentação, constrói um discurso específico
sobre o tráfico, que se baseia na dicotomia vítima-criminoso/s. A lógica
discursiva sugere que para resolver o problema são necessárias leis e controles
fronteiriços mais estritos; e o alvo principal representa o crime organizado. Além
disso, neste discurso, é desenhada a imagem típica da vítima desesperada,
capturada pelo e entregue ao crime organizado. Essa representação particular é
identificada como estratégia que instaura mecanismos de controle dos corpos
198
Cfr. Chuang (2006), p. 149 e Andrijasevic (2004), p. 219.
199
Cfr. artigo 4 do Protocolo de Tráfico (2000), p. 55.
200
Cfr. Levenkron und Dahan (2003), p. 16.
201
Em alguns países, como na Itália, por exemplo, existe a possibilidade para
vítimas de tráfico de receber vistos temporários para permanecer legalmente no país
durante o processo de acusação dos traficantes. Essa medida do artigo 18 da lei italiana
de imigração n. 40/1998 responde ao apelo do Protocolo de Tráfico aos países de
considerar para vítimas de tráfico uma possível permanência temporária no território. Cfr.
Protocolo de Tráfico (2000), artigo 7 e Andrijasevic (2004), p. 47.
202
Cfr. Wijers (s.d.)
203
Cfr. ibid.
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50
das vítimas, que devem ser vigiados e disciplinados. Estas tecnologias de poder,
embora visem a uma proteção da vítima, enfatizam um maior controle das
possíveis vítimas, sobretudo através da construção de perfis típicos desta figura.
Neste sentido, argumento que esta perspectiva da criminalização é problemática,
pois se baseia na dicotomia entre vítima (passiva) e criminoso (poderoso),
representando, deste modo, uma visão estreita do tráfico, não somente
negligenciando a complexidade da questão, mas também criando efeitos contra-
produtivos no combate ao tráfico.
Neste capítulo, pretendo expor a abordagem de tráfico como problema de
crime organizado, apresentando e interpretando algumas características deste
discurso. Depois de delinear dados estatísticos e os motivos mais comuns do
tráfico, entro na descrição dos perfis dos traficantes e das vítimas, concluindo
com a análise da dicotomia vítima-criminoso em campanhas contra o tráfico. Não
é a minha intenção negar a existência do tráfico humano ou o envolvimento do
crime organizado, mas o objetivo é problematizar este discurso, analisando as
implicações políticas destas específicas representações.
3.2. Grandes números: os dados estatísticos
“The United Nations estimates that 4 million people are trafficked each year,
resulting in $7 billion in profits to criminal groups.”
204
Um enfoque principal dos estudos empíricos, que na maioria das vezes
identificam o elemento do crime organizado como característica central do
tráfico, é descobrir os lucros gerados através do tráfico de pessoas e encontrar
um dado que represente o número das pessoas traficadas no mundo.
Geralmente, nestes estudos, o tráfico é considerado o terceiro comércio
mais lucrativo no mundo, depois do comércio com armas e do comércio de
drogas.
205
Às vezes, é considerado até o segundo comércio mais lucrativo,
deixando a venda de armas ao terceiro lugar. Alguns autores enfatizam que
freqüentemente são utilizadas as mesmas rotas para o tráfico de pessoas e para
o contrabando de drogas, enfatizando o tratamento de humanos como
“mercadoria”.
206
Além disso, a atividade é classificada como o crime que cresce
204
Kanics (1998), p. 1.
205
Cfr. UNFPA (2006), p. 44 ou Kelly (2002), p. 12.
206
Bruckert (2002), p. 17 e Jahic e Finckenauer (2005), p. 28.
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51
com maior rapidez, tendo o melhor benefício na relação entre custos e riscos.
207
A respeito do lucro, repetidamente é mencionado um número entre cinco e
dez bilhões de dólares por ano. De acordo com o US-State Department, citando
o Escritório norte-americano de investigação (FBI), o tráfico humano geraria
estimativamente 9,5 bilhões de dólares por ano.
208
Segundo a Organização
Internacional de Trabalho (OIT), esse dado numérico representaria unicamente o
lucro inicial, e se estima que há de se acrescentar mais 32 bilhões de dólares de
lucro por ano que resultaria da exploração contínua das vítimas.
209
Este lucro é
repartido, segundo Bruckert, entre organizações oficiais ou quase-oficiais e
grupos criminosos, ou seja, muitas vezes grupos oficiais estaduais seriam
envolvidos no tráfico.
210
Segundo Jahic e Finckenauer, justamente os enormes
lucros indicariam uma clara participação ao tráfico das redes de crime
organizado.
211
A respeito do número de pessoas traficadas, as cifras variam bastante:
Embora em estudos menos recentes o número de pessoas traficadas circule
entorno de quatro milhões, em estudos atuais, segundo Jahic e Finckenauer,
esta cifra - quase milagrosamente - sofreu uma redução, sendo que na maioria
dos estudos contemporâneos fala-se de 600.000 até 900.000 pessoas traficadas
no mundo por ano.
212
Kelly critica esta contagem, sobretudo pela falta de
explicação:
“The lack of detail about the shifts and why estimates continue to fall is
regrettable because it precludes academic exploration and permits
continued speculation about ‘advocacy numbers’.”
213
Assim, por exemplo, um estudo estadunidense de 2005 estima a existência
de 600.000 até 800.000 pessoas traficadas no mundo (e destes 80% seriam
mulheres e meninas, e até 50% menores),
214
enquanto a Organização de
Estados Americanos (OEA) em 2002 fala de que se trata de aproximadamente
207
Cwikel e Hoban (2005), p. 306.
208
US-State Department (2005), p. 64.
209
UNFPA (2006), p. 44.
210
Bruckert (2002), p. 11: „The profits are shared by official or quasi-official
organizations, criminal groups or all three.“
211
Jahic e Finckenauer (2005), p. 28.
212
Ibid., p. 30.
213
Kelly (2005), p. 239.
214
Cfr. US-State Department (2005), p. 57.
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52
dois milhões de mulheres e crianças.
215
No entanto, estes números e os métodos para obter estes dados são
contestados por vários autores. Sobretudo é criticada a falta de informação da
proveniência destes dados, e se fala de guesstimates.
216
Obter dados é difícil
pela natureza clandestina do tráfico, admite Jini Roby, que não obstante, opera
com muitos números.
217
Cwikel e Hoban, por sua vez, desconfiam que algum dia
um censo acurado das pessoas traficadas será possível, justamente pelo estado
ilegal da atividade.
218
Da mesma forma, também Laura Agustín duvida da
possibilidade de estatísticas corretas sobre o tráfico: “Given that not only the sex
industry but probably half of all migrations are clandestine, no such figures
[correct statistics on ‘trafficked women’] can exist.”
219
Também Adriana Piscitelli
questiona os números, falando de “ampla imprecisão”, e de que “as estatísticas
sobre (...) tráfico, em termos gerais, não passem de estimativas, realizadas
segundo os mais diversos procedimentos, não necessariamente coincidentes
entre si.”
220
Os estudos empíricos sobre o tráfico são criticados por utilizar
metodologias não oportunas, baseando-se em dados limitados, já que a coleta
de dados no campo de tráfico é difícil. Os objetos de estudo fazem parte das
chamadas populações ocultas (hidden populations), que são grupos de
indivíduos nos quais o pertencimento (membership) envolve uma conduta ilegal
ou estigmatizada, levando a atitudes de negação de pertencer a este grupo.
221
Assim, por exemplo, Pinto Leal fala da “invisibilidade” do tráfico no sentido de
que é difícil obter dados sobre o fenômeno, especialmente porque está ligado ao
crime organizado. “Observa-se a resistência dos informantes em prestarem
informações, alegando a inexistência do fenômeno, em uma postura de ‘não me
comprometa’.”
222
John Salt enfatiza que dados estatísticos sobre tráfico - muitas
vezes derivados de estimativas da migração clandestina - representam, no
215
Cfr. OEA (2002), p. 5. Cfr. também a UNFPA (2006), p. 44.
216
Cfr. Cwikel e Hoban (2005), p. 306, Kelly (2002), p. 15, Laczko (2002), p. 11.
Trata-se de uma confluência entre calcular e chutar (do inglês to guess).
217
Cfr. Roby (2005), p. 136.
218
Cfr. Cwikel e Hoban (2005), p. 313.
219
Agustín (2005b), p. 108.
220
Piscitelli (no prelo), p. 6.
221
Tyldum e Brunovskis (2005), p. 18.
222
Pinto Leal (2005), sem pagina.
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melhor caso, “aproximações brutas”.
223
No entanto, esses dados numéricos são utilizados, não somente para
chamar a atenção para a temática, mas também para justificar o financiamento
de pesquisas ou para campanhas contra o tráfico.
224
De acordo com Kemala
Kempadoo, “políticas, legislação e intervenções de longo alcance são
construídas na base da ‘evidência’, e há uma tendência a aceitar estatísticas e
dados não verificados, sem questionamento adicional”.
225
Como criticam Jahic e
Finckenauer, “no intento de gerar interesse para o assunto e de criar um senso
de urgência, perdeu-se de vista que mais importante do que grandes números é
tratar o assunto de maneira efetiva”.
226
Resulta particularmente problemático,
segundo estes autores, que estimativas tenham se tornado “a verdade”,
representando a posição correta sobre o propósito e o tamanho do problema do
tráfico.
227
Como advertem Tyldum e Brunovskis, “pior do que não ter dados, é ter
dados falsos e enganosos”.
228
De acordo com estes autores, seria importante questionar a importância
geral de números, pois “a quantificação não necessariamente captura a
verdadeira natureza do problema”.
229
Frank Laczko reconhece uma melhor
coleção de dados como essencial para combater o tráfico de forma mais
eficiente.
230
Deste modo, a crítica indica que o perigo de coletas de dados
inadequadas está na ineficiência de políticas desenvolvidas a partir deles.
231
Para evitar políticas ineficientes, então, precisa-se ir além de casos extremos e
típicos de tráfico e reconhecer a variedade que caracteriza esse fenômeno.
223
Salt (2000), p. 39.
224
Cfr. Cwikel e Hoban (2005), p. 309 e Jahic e Finckenauer (2005), p. 28. Para o
ano 2004, por exemplo, o presidente dos EUA anunciou dedicar 50 milhões de US$
especialmente para o combate do tráfico. Cfr. US-State Department (2005), p. 77.
225
Kempadoo (2005), p. 72.
226
Jahic e Finckenauer (2005), p. 32.
227
Ibid., p. 31.
228
Tyldum e Brunosvkis (2005), p. 30.
229
Ibid., p. 28.
230
Laczko (2002), p. 11.
231
Cfr. Agustín (2005b), p. 109.
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54
3.3. Pobreza e mudança econômica: motivos do tráfico
“Sex traffic has its roots in the international political economy of the capitalist,
world market.”
232
Se analisarmos o Protocolo de Tráfico, encontramos uma referência
explícita aos fatores que colocam as pessoas em estados vulneráveis para ser
traficadas: o protocolo identifica no artigo 9 a pobreza, o subdesenvolvimento e a
falta de oportunidades igualitárias como fatores cruciais para o fomento do
tráfico, e apela aos Estados a implementar medidas para erradicar estas
situações.
233
No entanto, a literatura faz pouco esforço para desenvolver parâmetros
sobre o tráfico em geral, como também de situar a própria análise em um
contexto mais amplo.
234
Segundo Christine Bruckert, há uma “escassez e falta de
substância”
235
da produção científica na área, e ela afirma que não existe um
quadro teórico consistente sobre a questão do tráfico que estruture a pesquisa
sobre o assunto.
236
A maioria dos estudos, portanto, limita-se a descrever o
fenômeno, indicando os distintos atores envolvidos, as rotas do tráfico, as
práticas, as conseqüências e os mecanismos para combatê-lo.
237
Para Bruckert,
na grande parte dos estudos empíricos, é possível constatar um maior desejo de
combater o tráfico do que de entendê-lo.
238
Os poucos autores que comentam a relação entre o tráfico e as mudanças
econômicas dos últimos trinta anos, consideram especialmente dois elementos
como motivos cruciais do tráfico: a pobreza e a mudança econômica. Chris
Corrin, por exemplo, enfatiza a distribuição de salários mais igualitários durante o
regime comunista, e explica o surgimento da pobreza nos países da Ex-União
Soviética com a introdução da economia de mercado.
239
Como motivo chave que levaria ao tráfico, é identificada, então, a busca de
uma vida melhor das vítimas do tráfico, que pretendem escapar da pobreza e do
232
Bertone (2000), p. 6.
233
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000), artigo 9, p. 57. Cfr. também Chuang (2006), p.
154 e Bruckert (2002), p. 22.
234
Bruckert (2002), p. 8.
235
Ibid., p. 2.
236
Cfr. ibid., p. 7.
237
Idem.
238
Cfr. ibid., p. 8.
239
Corrin (2005), p. 546.
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55
desemprego, e que são motivados pelo desejo de ajudar a própria família a sair
desta situação.
240
Para Bertone, o maior motivo para o tráfico representa o
“desespero econômico” das pessoas.
241
A história típica sobre o tráfico se
desenvolve em torno dessa imagem de vítima típica sendo uma mulher ou
menina desesperada captada com uma oferta especial de trabalho no exterior
que funciona como “isca” e que, posteriormente, se revela em engano. Assim,
Bertone, que não questiona essa forma de representação, esboça o discurso
típico sobre o tráfico:
“Centred in Moscow and the Ukrainian capital, Kiev, the networks trafficking
women run east to Japan and Thailand, where it is estimated that
thousands of young Slavic women now work against their will as
prostitutes, and west to the Adriatic coast and beyond. The routes are
controlled by Russian crime gangs based in Moscow. (…) Women will
respond to ads in the newspapers and are lured to Italy, Germany, Turkey,
and Israel where promises are made of good jobs which simply do not
exist.”
242
Vários autores criticam a representação do tráfico em retratos típicos. Os
estudos empíricos, as notícias e as reportagens sobre o tráfico constroem uma
narrativa contemporânea sobre o tema, que, por um lado, como recorda
Piscitelli, pode ser considerada relevante em termos de chamar a atenção
pública, mas, por outro lado, constitui uma forma de discurso que representa o
fenômeno complexo de tráfico de maneira simplificada.
243
Janie Chuang, por sua
vez, considera as histórias típicas pelo menos incompletas, pois deixam de lado
as condições que causam as vítimas a migrar.
244
Segundo esta autora, o tráfico
representa, na maioria das vezes, migração laboral fracassada na economia
globalizada.
245
“The wealth disparities created by our globalized economy have fed
increased intra- and transnational labor migration as livelihood options
disappear in less wealthy countries and communities.”
246
O fato de que as rotas do tráfico, como identificados nos estudos
empíricos, freqüentemente levam de países mais pobres para países ocidentais
mais ricos, é entendido como resultado da situação econômica nos países-
240
Cfr. Bruckert (2002), p. 18.
241
Bertone (2000), p. 9.
242
Ibid., p. 10.
243
Cfr. Piscitelli (2004), p. 291.
244
Chuang (2006), p. 140.
245
Ibid., p. 138.
246
Ibid., p. 140.
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56
“fontes”. Conseqüentemente, segundo Kempadoo, estes países e criminosos
internacionais são identificados como os principais culpados e beneficiários no
negócio do tráfico. A autora critica essa distinção, pois, segundo ela, “cria uma
divisão internacional em torno de quem é definido como vilão ou ‘do mal’”.
247
Além disso, na literatura é enfatizado o papel crucial da pobreza para
fomentar o tráfico. Da mesma forma, alguns autores admitem que as vítimas do
tráfico não são sempre enganadas e coagidas, como o indica a história típica
com os topoi discursivos (a situação precária econômica é considerada o motivo-
chave que leva as pessoas – e de certa forma até as obriga - a sair do próprio
país).
248
Contudo, unicamente enfocando na pobreza, o aumento do tráfico per
se não é explicado.
249
Rutvica Andrijasevic, por sua vez, depois de entrevistar pessoas traficadas
que trabalhavam na prostituição na Itália (Bologna), chega à conclusão de que o
enfoque principal na pobreza não é satisfatório. Ela vê o tráfico como parte de
projetos de migração, através dos quais as pessoas pretendem criar novas
oportunidades na vida.
250
Segundo ela, tomar a pobreza como motivo principal
interpretaria o ato da migração como uma “ação racional econômica”,
251
sem
levar em consideração outros fatores (não-econômicos) que também colaboram
para instigar a migrar:
“Hence, far from being pushed from pressing poverty, respondents’
narratives suggest that the lack of employment opportunities and/or future
prospects, the desire for economic improvement and/or independence from
the family, and search for alternative resources all informed respondents’
migration projects.”
252
Andrijasevic explica essa postura com que o tráfico poderia ser visto não
somente como resultado de mudanças econômicas, mas pelo contrário, como
uma parte constitutiva das economias locais e, portanto, relacionado às
transformações de condições laborais e da economia global.
253
Neste sentido,
Laura Agustín chama a atenção para a necessidade de ir além dos
constrangimentos econômicos nas análises do tráfico: “It is clear that choice is
247
Kempadoo (2005), p. 70.
248
Cfr. Corrin (2005). P. 546.
249
Idem.
250
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 59.
251
Ibid., p. 48.
252
Ibid., p. 52.
253
Cfr. ibid., p. 199 e 35.
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57
involved, even with the poorest migrants, simply because everyone does not
migrate from places of poverty and violence.”
254
Assim, estas autoras chamam a
atenção para motivos de migração que incluem questões pessoais, instigadas
pelo desejo e pela busca de ampliar o próprio horizonte.
Embora o combate ao tráfico na perspectiva criminalista, reconheça a
pobreza e a mudança econômica como motivos para o aumento do tráfico e do
crime organizado, critica-se que não são incluídas nos programas de combate ao
tráfico. Neste sentido, Janie Chuang reivindica um trabalho mais amplo contra o
tráfico a respeito da prevenção. Ela critica a falta da ênfase nos motivos
socioeconômicos do tráfico nas respostas (nacionais) legais contemporâneas. A
autora expõe que, embora durante os anos 80 e 90 advogados do tráfico
chamassem a atenção ao problema em relação ao contexto socioeconômico, o
que ao final motivou os governos a tomar uma ação, não foram estes elementos
senão as implicações (de migração laboral e de sindicatos criminosos
transnacionais) para a segurança nacional.
255
Kemala Kempadoo confirma esta
interpretação: “[O] tráfico é em geral assumido pelos governos por razões
políticas e não humanitárias ou de justiça social.”
256
Neste sentido, Chuang
critica a abordagem do tráfico como crime organizado como “miopia”, pois
apesar dos milhões investidos para combatê-lo com respostas agressivas de
justiça criminal,
257
não é possível constatar uma diminuição do fenômeno.
258
“Efforts to combat trafficking have proceeded from a narrow view of
trafficking as a criminal justice problem, with a clear focus on targeting the
traffickers and, to a lesser extend, protecting their victims. Addressing the
socioeconomic factors at the root of the problem, by contrast, has largely
fallen outside the purview of government action.”
259
A ineficiência de programas contra-tráfico atuais estaria relacionada com a
não-consideração do contexto socioeconômico que leva as pessoas a
considerarem a opção do tráfico como possibilidade alternativa. Janie Chuang
mostra como as respostas atuais não somente contêm o risco de serem
254
Agustín (2005b), p. 99.
255
Chuang (2006), p. 147.
256
Kempadoo (2005), p. 73.
257
Um dado citado no Trafficking in Persons Report confirma que os EUA
investiram em quatro anos 295 milhões US Dólares para combater o tráfico. Cfr. TIP-
Report (2005) apud Chuang (2006), p. 148.
258
Cfr. ibid., p. 157.
259
Ibid., p. 148.
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58
ineficientes, mas também de contra-produtivos.
260
Assim, por exemplo, a experta
da ONU, Barbara Limanowska, constata em uma análise:
“We have to acknowledge that the law enforcement approach, which in the
last years has dominated anti-trafficking initiatives, proved to be ineffective
and even dangerous.”
261
Kanics e Reister afirmam que “[t]he cycle of trafficking ad re-trafficking will
not be broken until economic and social conditions in countries of origin are
improved.”
262
Segundo Chuang, a resistência de Estados de adotar uma outra
perspectiva que não seja a do crime organizado pode ser explicada com a
dificuldade de elaborar estratégias de longo termo que incluam medidas para
enfrentar as causas socioeconômicas envolvidas na questão.
263
Assim, é possível constatar que nesta perspectiva as estratégias ao
combate do tráfico arriscam-se a não ser eficientes, se não levarem em conta a
integração dos motivos do tráfico na luta contra o assunto em questão.
3.4. Gangster syndicates: os traficantes de pessoas na mira
“Powerful networks are controlling the trade as the activity becomes ever more
lucrative.”
264
O tráfico de pessoas é apresentado, especialmente pela polícia e pela
mídia, no contexto das mudanças políticas e econômicas depois da Guerra Fria
em relação aos organized international gangster syndicates.
265
As redes de crime
são descritas como internacionais, muito poderosas e como ameaças para a
segurança e à paz.
266
Antes de entrar na construção do discurso típico sobre o
tráfico, a sua relação com o crime e as implicações políticas deste discurso, vou
apresentar algumas abordagens que tentam definir “crime organizado”.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, define-o no artigo dois da seguinte maneira:
“’Organized criminal group’ shall mean a structured group of three or more
260
Ibid., p. 139.
261
Limanowska (2003), p. 3.
262
Kanics e Reiter (2001), p. 120.
263
Cfr. Chuang (2006), p. 155.
264
Bertone (2000), p. 10.
265
A Organização Internacional de Migração (OIM) fala em um relatório de 1994
de “sindicatos de crime organizados internacionais”. Cfr. OIM (1994), p. 9.
266
Jahic e Finckenauer (2005), p. 28.
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persons, existing for a period of time and acting in concert with the aim of
committing one or more serious crimes or offences established in
accordance with this Convention, in order to obtain, directly or indirectly, a
financial or other material benefit.”
267
Essa definição ampla não específica detalhes que surgem na discussão do
tráfico como crime organizado. Os estudos que operam com esta abordagem,
normalmente não explicitam o conceito de crime organizado. Alguns sugerem
distinguir entre diferentes formas de crime, outros entre diferentes tipos de redes
criminosos responsáveis pelo tráfico.
Deste modo, Andrea Maria Bertone diferencia entre três redes diferentes:
uma rede de grande extensão (large-scale network), que se qualifica através de
contatos seja no país de recrutamento, seja no país de destinação; uma rede de
média extensão (medium-scale network), que se especializa no tráfico a partir de
um país específico; e as redes de pequena extensão (small-scale networks), que
traficam uma ou duas pessoas ao mesmo tempo.
268
James Finckenauer sugere
diferenciar entre atividades criminosas e crime organizado.
269
Enquanto
atividades criminosas depois de terminar um trabalho se dissolvem, a atividade
de grupos de crime organizado continua independentemente do fim de um
“projeto” criminoso. Thanh-Dam Truong, por sua vez, distingue entre três
aspectos de crime organizado que deveriam ser levados em consideração,
analisando o tráfico: o crime organizado como um “projeto de crime” (project
crime) (envolvendo a produção de documentos falsos etc.), como um “crime em
organizações” (incluindo corrupção, fraude e suborno), e o crime organizado
como um “crime coletivo” (envolvendo organizações em forma de corporações e
redes que adotam as primeiras duas categorias de crime, inclusive ameaças e
violência).
270
Além das dificuldades de definição do termo “crime organizado” com as
suas várias facetas, é possível constatar na literatura um dissenso sobre a
extensão do envolvimento do crime organizado no tráfico.
Alguns autores chegam à conclusão de que atrás do tráfico não
necessariamente estão grandes redes criminosas organizadas. Como constata
Bruckert: “organized crime can involve a number of small organizations that are
267
Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
(2000), artigo 2, p. 25.
268
Cfr. Bertone (2000), p. 7.
269
Finckenauer apud Bruckert (2002), p.15.
270
Truong (2001), p. 4.
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highly flexible and that can thus be modified as required.”
271
Neste sentido,
Ronald Skeldon destaca que na Ásia, sobretudo, pessoas não profissionais
participam no negócio do tráfico de pessoas, sejam eles indivíduos ou pequenos
grupos de criminosos.
272
Além disso, estudos afirmam que os traficantes podem
ser masculinos e femininos, operando tanto em grupos pequenos quanto em
grandes redes criminosas.
273
O Escritório da ONU do Crime Organizado
(UNODC) admite ter subestimado o impacto de grupos pequenos no tráfico.
274
Outros enfatizam que o papel da máfia no tráfico geralmente seja exagerado.
275
No entanto, a mídia e vários relatórios políticos continuam perpetuando a
história típica da vítima explorada (sobretudo) sexualmente, sendo captada pelos
grupos poderosos de crime organizado. Segundo a história convencional, a
vítima é enganada e coagida de alguma forma; às vezes fala-se até de raptos e
abduções das vítimas por grupos criminosos. Além disso, segue o discurso
recorrente, a pessoa traficada é deixada no escuro sobre o que se refere ao
trabalho que vai ocupar no país de destino. Jacqueline Berman cita algumas
passagens de artigos em jornais:
“The women are ‘[s]old several times over, raped and sometimes tortured
by Serb and Albanians pimps’ only to ‘end up in brothels in Europe’s major
capital cities’ where the traffickers ‘will not shrink from mutilations or even
killings when they deal with recalcitrant or loud-mouthed girls’. Huge,
international ‘crime syndicates’ traffic up to 500.000 women a year; the
traffickers are now ‘beyond police control’ and ‘appear to be a law unto
themselves’.”
276
Não quero dizer que todas as violações de direitos humanos por
traficantes sejam fictícias, nem negar que todo tráfico humano seja violento, mas
enfatizar que existem casos, nos quais as pessoas escolhem a opção de
combinar a migração com o trabalho sexual. Sobretudo a imprensa, mas
também estudos de organismos internacionais divulgam uma “história típica do
tráfico”, falando de seqüestros e violações, e constroem assim um discurso
específico sobre o assunto, que se torna um “regime de verdade”, excluindo
outras possibilidades.
277
De acordo com Piscitelli, há um problema crucial com
271
Bruckert (2002), p.17.
272
Skeldon (2000) apud Bruckert (2002), p.18.
273
Cfr. Corrin (2005) e Kelly (2005).
274
UNODC (2002) apud Kelly (2005), p. 250.
275
Okolski (2001), p. 75 apud Bruckert (2002), p.19.
276
Berman (2003), p. 41.
277
Deste modo não quero negar que não existissem casos como estes, mas
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61
esta representação:
“Os resultados desses documentos, velozmente legitimados e
reproduzidos, não apenas pela mídia, mas também por organismos
internacionais de defesa dos direitos humanos, estão adquirindo o estatuto
de conhecimento sobre a temática.”
278
Também segundo Jyoti Sanghera, o entendimento do tráfico está
fundamentado em um discurso anti-tráfico que não é baseado em “evidências”,
mas bem em uma construção de uma “mitologia” particular sobre o tráfico.
279
Igualmente constata Jo Doezema a criação de “mitos políticos” em relação ao
tráfico, sobretudo o que se refere à escravidão branca,
280
e propõe falar de
“ideologias” de tráfico. Para Michel Foucault, as formações discursivas não são
concebidas em termos de ideologia - termo profundamente marcado
historicamente pelo viés marxista de posições no tocante a lutas de classe - mas
em termos da relação entre saber e poder.
281
Para ele, a produção de
conhecimento está diretamente relacionada ao poder; e o discurso - que não
está separado do poder, mas representa uma forma de exercê-lo através da
produção de saberes - pode ser visto como uma forma de poder:
“Temos antes que admitir que o poder produz saber (…), que poder e
saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha
e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”
282
As práticas discursivas, então, exercem poder através da constituição de
um conhecimento específico. De acordo com Jennifer Milliken, todo discurso
requer trabalho para articular-se, para re-articular o próprio conhecimento e para
afirmar o “regime de verdade” estabelecido.
283
Neste sentido, através da
repetição de histórias parecidas sobre o tráfico, esta forma de produzir “fatos”
adquire uma certa confiabilidade.
284
A lógica discursiva da abordagem do tráfico como problema do crime
organizado é contestada por vários autores. Uma primeira crítica refere-se, como
pretendo enfatizar que representa uma imagem generalizadora incompleta e
indiferenciada da questão que não é possível atribuir a todos os casos de tráfico.
278
Piscitelli (2004), p. 292.
279
Cfr. ibid.
280
Cfr. Doezema (2002), p. 4. Como é elaborado no capítulo 1.
281
Cfr. Grangeiro, Claudia (s.d.), p. 4.
282
Foucault, Michel (1994, [1978]), p. 30.
283
Milliken (1999), p. 230.
284
Cfr. Grupo Davida (2005), p. 162.
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já mencionado, ao tamanho do envolvimento do crime organizado no tráfico.
Enquanto alguns autores questionam a participação necessária do crime
organizado no tráfico, outros problematizam o imperativo da relação entre tráfico
e crime em si.
Neste sentido, é possível constatar que nem todos os estudos indicam
um envolvimento do crime em geral, especialmente o que se refere à primeira
fase do tráfico, ao recrutamento. Mostram entrevistas com trabalhadoras do sexo
em estudos empíricos, que não todas as pessoas que nesta visão seriam
consideradas traficadas, tinham sequer contato com o crime organizado.
285
Para
estas autoras, o tráfico pode ser entendido de melhor forma em relação à
migração. Assim, o objetivo de desenvolver um projeto de migração, segundo
estes estudos, é realizado através de redes informais, quase familiares, como
explica Adriana Piscitelli, referindo-se ao trabalho de sexo:
“Nesses casos, o adiamento de dinheiro, a ser devolvido com juros, a
oferta de uma vaga em um apartamento pela qual se paga um valor
bastante superior ao que ela de fato tem e/ou o apoio para inserir-se em
pontos na rua, são lidos como ‘ajuda’.”
286
Também nas entrevistas de Rutvica Andrijasevic e de Laura Agustín é
enfatizada a noção de “ajuda”.
287
Deste modo, é desconstruída a lógica
discursiva da existência de grupos poderosos de crime organizado atrás do
tráfico, ou seja, o enfoque está nas redes informais constituídas por amigos,
conhecidos, vizinhos etc. que possibilitam encontrar caminhos para realizar a
migração desejada.
Uma segunda crítica a este discurso, relacionada a esta primeira, refere-se
aos elementos da coação e do engano por parte de grupos criminosos, que
segundo o Protocolo de Tráfico é considerada parte constitutiva do tráfico.
288
Embora estes elementos sejam apresentados (especialmente na imprensa)
como instrumentos típicos no recrutamento de vítimas do tráfico, pesquisadores
chamam a atenção para o fato de que na prática não sejam nada comuns.
“Respondents’ migration to Italy, like other forms of voluntary migration, was not
an abrupt and third party’s orchestrated act,”
289
explicita Andrijasevic os
resultados da própria pesquisa. Na fase do recrutamento, a maioria das pessoas
285
Cfr. Piscitelli (2006) e Andrijasevic (2004).
286
Piscitelli (2006), p. 13.
287
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 38 e Agustín (2003), p. 90.
288
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000), artigo 3 (a).
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entrevistadas, por exemplo, não descreve o contato com os aliciadores como
abusivo, mas os identifica como pessoas que “ajudam” a encontrar um trabalho
no exterior.
290
“Contrary to the idea that women are always forced or coerced by
traffickers into illegal migration, some respondents tell of how they were
only able to realize their plans to leave for Italy with the help of
traffickers.”
291
Também Galma Jahic e James O. Finckenauer enfatizam que raptos e
abduções acontecem raras vezes.
292
Além disso, segundo eles, a maioria das
pessoas traficadas seria consciente, pelo menos em parte, sobre o tipo de
trabalho que vai enfrentar. Marie Segrave, por sua vez, enfatiza a relação entre
este discurso e a forma de representação específica de “vítima”:
„Focussing on trafficking as a crime, that involves ‚kidnapping’ or ‚luring’
victims, not only denies the complexity of the issues, but serves to reinforce
notions of passive victimisation that may have little relevance to women’s
experiences of being trafficked.“
293
Uma terceira crítica a esta lógica discursiva refere-se à já mencionada
imagem da “vítima”, e à sua relação com o traficante. Nas análises é sustentada
uma imagem que concede unicamente aos traficantes agência, enquanto para
as pessoas traficadas é adotada a representação de vítimas passivas.
294
Jaqueline Berman questiona estas representações gerais, que combinam uma
inocência de gênero com um crime abominável:
“Irrespective of a myriad of circumstances that might lead women to seek
the assistance of these traffickers to migrate – including actual instances of
forced trafficking – media accounts collapse the difference to fixate on
crime and its victims.”
295
Nesta direção vai também a crítica de Bärbel Uhl e Heide Vorheyer, que
problematizam a ênfase no agente do crime e não na vítima.
296
Nesta
abordagem, a posição das vítimas é colocada no segundo lugar, já que como
prioridade é identificado o combate ao crime organizado. Deste modo, o foco em
289
Andrijasevic (2004), p. 30.
290
Ibid.,p. 35.
291
Ibid.,p. 43.
292
Cfr. Jahic e Finckenauer (2005), p. 27.
293
Segrave (2005), p. 14.
294
Cfr. ibid., p. 41.
295
Berman (2003), p. 41.
296
Uhl e Vorheyer (2006), p. 25.
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temáticas de segurança política deixa a dimensão humanitária das pessoas
traficadas de lado.
297
Ao mesmo tempo, falando de “sindicatos criminosos” e “redes criminosas”,
evita-se especificar um perfil mais concreto dos traficantes. Através destas
imagens, os agentes de tráfico são “despersonalizados, dramatizados e
mistificados”, argumentam as autoras Uhl e Verheuyer.
298
No entanto, quando
em alguns relatórios há uma menção mais específica dos perfis dos traficantes,
estes são construídos em contraste às perfis das vítimas. Assim, a ênfase no
contraste entre as vítimas (brancas) e os traficantes (escuros), integra um
aspecto racial na discussão, recordando os debates sobre o tráfico de escravas
brancas.
“[I]n these discourses, dark, menacing, eastern criminals and their innocent
victims constitute a ‘Growing Global Menace’ so prodigious and so
pervasive that it threatens to submerge Europe in a flood of illegality,
immorality, disease and criminality.”
299
Na perspectiva do tráfico como problema de crime organizado, então, os
traficantes são representados como “os maus da história”, ou seja, os únicos
culpáveis,
300
representando uma ameaça pela estabilidade dos Estados e o alvo
principal nas políticas de combate ao tráfico.
Uma quarta crítica a esta lógica discursiva refere-se à representação do
tráfico como ameaça que urgentemente deve ser combatida. Esse discurso
constrói um quadro alarmante do tráfico, apresentando-o como “uma das
maiores ameaças para a comunidade internacional”,
301
que precisa de uma
resposta rápida para retomar o controle da situação.
Ao mesmo tempo, são criticadas as “soluções” apresentadas pela
abordagem de tráfico como problema de crime organizado. Assim, as propostas
de implementar maiores controles nas fronteiras, de uma legislação mais estrita
que pune os traficantes e da deportação das vítimas são veementemente
contestadas, sobretudo porque aqui o enfoque no interesse do Estado mostra-se
de forma nítida.
„Sex-trafficking discourses position organized crime – and not women on
the move – as the challenge to the state and provide the state with an
297
Cfr. ibid., p. 30.
298
Uhl e Vorheyer (2006), p. 30.
299
Berman (2003), p. 55.
300
Cfr. ibid., p. 56.
301
Cfr. Aradau (2004), p. 260.
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opportunity to act on behalf of the protection of their citizenries.“
302
Nesta perspectiva, como elaboram Uhl e Vorheyer, os Estados consideram
a si mesmos vítimas da criminalidade e, deste modo, são excluídos da categoria
de “cúmplices”.
303
A suposta “solução” da deportação, por sua vez, não leva em
consideração a vontade das pessoas traficadas e as torna criminosas.
304
Ao
mesmo tempo, não é tido em conta nenhum direito das vítimas à indenização
pelos abusos sofridos através do tráfico.
305
Neste sentido, é construído um discurso que enfatiza a idéia do tráfico
como ameaça global, criando a noção dos traficantes serem os “outros”, que têm
que ser combatidos, enquanto ocorre uma identificação com as vítimas, que
recebem uma atenção especial, constituindo parte de um “nós” específico.
3.5. Ingênua e inocente: o perfil da vítima
“The usual explanation of trafficking point to young, unsuspecting women
being deceived – being told they will have legitimate jobs – only to be sold
to pimps and pressured through violence into prostitution.”
306
A construção de perfis de vítimas do tráfico tornou-se onipresentes nos
estudos sobre o fenômeno.
307
Segundo o Escritório de Drogas e Crime das
Nações Unidas (UNODC), os perfis servem para podê-las identificar e
reconhecer como vítimas para dá-lhes assistência e proteção.
308
Segundo esta pesquisa do UNODC de abril de 2006 sobre o tema, as
vítimas preferidas do tráfico seriam mulheres e meninas.
309
O estudo afirma
ainda que existe um tipo particular de “vítima” que representaria o alvo dos
traficantes: “Recruiters target[ed] young women (17-28 years old) from rural
302
Berman (2003), p. 52.
303
Uhl e Vorheyer (2006), p. 32. Embora que existam várias indicações do
envolvimento de funcionários governamentais no processo de tráfico: „As law
enforcement personnel and government officials become more corrupt, and members of
crime groups gain more influence, the line between the state and the criminal network
starts to blur.” Idem.
304
Uhl e Vorheyer (2006), p. 26 e p. 29.
305
Cfr. ibid. p. 24 e p. 31.
306
Jahic e Finckenauer (2005), p. 26.
307
Cfr. Aradau (2004), p. 269.
308
Cfr. UNODC (2006), p. 75.
309
Ibid., p. 80.
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areas with a low level of education and no employment.”
310
Também o estudo de Maria Lúcia Pinto Leal e Maria de Fátima Pinto
Leal, indica que as pessoas traficadas tratar-se-ia, sobretudo, de mulheres e
adolescentes entre 15-24 anos que, geralmente, seriam oriundas de classes
populares, apresentariam uma baixa escolaridade, e teriam já sofrido algum tipo
de violência intra-familiar, como, por exemplo, abuso sexual, maus tratos ou
estupro.
311
No entanto, como afirma Chris Corrin, as vítimas podem ser também
pessoas educadas, oriundas de cidades e não necessariamente devem
corresponder à visão da pessoa simples do campo. “In Russia, many trafficked
women hold college degrees and come from large cities.”
312
Também segundo
uma pesquisa da OIM, este “conhecimento convencional” não sempre encontra a
sua correspondência nos relatórios:
“In this respect, it is very interesting to note that, of the 130 women assisted
by IOM Pristina from February 2000 to February 2001, 93 were from urban
areas or from the capital cities of their countries.”
313
Igualmente, os dados de outros estudos indicam que a maioria das
pessoas traficadas terminou a formação superior.
314
Contudo, um estudo do
Serviço Europeu de Polícia (Europol), enfatiza de novo o quadro convencional:
“Most victims have been recruited by deceit and false promises. Many of
them lack the necessary education or academic qualifications which would
enable them to be competitive in the labour market. The vulnerable are
preyed upon and their naivety and a desire to believe the ‘too good to be
true’ offer enables their recruitment.”
315
Um estudo brasileiro coordenado pelo Centro de Referência, Estudos, e
Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA) sobre “tráfico de mulheres,
crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial”,
316
chega a
conclusão de que nos estudos de caso são construídos em geral dois “tipos
ideais” (no sentido weberiano) da mulher aliciada:
a) o da pessoa humilde, ingênua que passa por dificuldades
financeiras e por isso é iludida facilmente,
310
Ibid., p. 61.
311
Pinto Leal (2005), sem página.
312
Orphant (2004) apud Corrin (2005), p. 547.
313
IOM (2001), p. 5.
314
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 50 e Kelly (2005), p. 252.
315
Europol (2004), p. 3.
316
PESTRAF (2002), p. 58.
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67
b) o da mulher que avalia com toda clareza os riscos e dispoe-se
para corrê-los para ganhar dinheiro.
Contudo, na maioria dos estudos de caso é possível constatar que,
sobretudo o primeiro “tipo ideal” de pessoa traficada é enfatizado. De acordo
com Jahic e Finckenauer, na descrição de pessoas traficadas nos estudos de
caso são destacadas, geralmente, a “[n]aiveté and a note of childishness in their
thinking [that] characterize their victimization”.
317
Vários autores, entre eles
Bruckert, confirmam essa observação: “The stereotypical victim is still the
innocent young girl who is seduced or kidnapped and forced into sexual
slavery.”
318
Esta representação típica leva a várias críticas.
Ao investigar as características discursivas do tráfico de sexo, Berman
argumenta que há um discurso de tráfico que se constrói em torno da
representação de “mulheres como vítimas de um crime”.
319
Este perfil de vítima
está conforme as histórias sensacionalistas da imprensa, contribuindo para a
construção de uma imagem “típica” da pessoa traficada. Enquanto por um lado
são acentuadas a crueldade e a maldade dos aliciadores, por outro lado são
enfatizados a inocência e o papel de vítima. Segundo Jahic e Finckenauer,
enquanto a vítima não seja apresentada como “uma de nós”, a questão do tráfico
é de baixa prioridade. Somente quando a vítima do tráfico puder ser “a menina
do lado” (the girl next door) surge um interesse público na questão.
320
Segundo
estes autores, a vítima tem que ser inocente justamente para chamar a atenção
do público, para ganhar fundos para a investigação, e para que possa ser
estabelecida uma certa identificação com ela.
Outra característica típica da vítima, além da inocência, é uma ênfase
racial, recordando os discursos do “tráfico da escrava branca”. Assim, observa
Andrijasevic nos relatórios e na imprensa uma “racialização” da vítima
(sobretudo aquela do Leste de Europa):
“Whiteness is emphasized directly through the characterization of women
as blond or blue-eyed, but also indirectly through discursive positioning of
these women as innocent victims.”
321
Outra característica freqüente das descrições das supostas vítimas é que
317
Jahic e Finckenauer (2005), p. 26.
318
Bruckert (2002), p. 3.
319
Berman (2003), p. 49.
320
Jahic e Finckenauer (2005), p. 26.
321
Andrijasevic (2004), p. 207.
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se trate de pessoas que já sofreram abusos. Assim, segundo relatórios de
Anistia Internacional (AI) de 2004, as vítimas de tráfico freqüentemente já foram
vítimas de violência (sobretudo de violência doméstica).
322
Segundo Aradau, os
fatores psicológicos tornaram-se cada vez mais presentes nos perfis das vítimas,
descrevendo-as como pessoas traumatizadas já antes da experiência do tráfico
por causa de violência doméstica, de assédio sexual, de incesto ou de diferentes
outras formas de abuso psicológico e físico.
“Victims of trafficking thus suddenly begin appearing in reports as doubly
traumatised, both by the experience of trafficking and by earlier/childhood
experiences of abuse.”
323
Uhl e Vorheyer opõem-se decisivamente a essa “vitimização secundária”,
pois disso resultaria que, para minimizar o risco, as possíveis vítimas do tráfico
deveriam ser tratadas já antes da possibilidade de ser traficadas.
324
Concretamente, deveriam ser detidas a migrar, o que já faz parte de certas
campanhas da União Européia (UE), como denuncia Aradau:
“The risk of women migrating or being re-trafficked is thus to be contained
and prevented; they are to be surveyed and disciplined, subject to trauma
therapy with the purpose of turning them into subjects able to monitor their
own risk.”
325
Além da construção de perfis de vítimas sofrer críticas, também o
conceito de vítima per se é contestado. Liz Kelly, por exemplo, contesta a
insistência desta noção. De acordo com ela, estão sendo feitos muitos esforços
para estabelecer um entendimento das pessoas traficadas como “vítimas”.
326
“The deployment of the concept of ‘victim’ is too often within a context that
implicitly suggests powerlessness.”
327
Neste sentido, alguns pesquisadores
propõem substituir o termo “vítima” pelo termo “sobrevivente”.
328
Cwikel e
Finckenauer, por sua vez, questionam a noção de vítima especialmente pelo
entendimento êmico diferente, ou seja, por como as pessoas traficadas vêem a
si mesmas:
“It should not be assumed, however, that all women who have been
322
Cfr. Corrin (2005), p. 553.
323
Cfr. Aradau (2004), p. 272.
324
Uhl e Vorheyer (2006), p. 31.
325
Aradau (2004), p. 275.
326
Kelly (2002), p. 11.
327
Kelly (2005), p. 254.
328
Kelly (2002), p. 11. Como, por exemplo, Derks (2000).
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trafficked are traumatized, consider themselves victims, detest their
captors, or wish to escape or go home.”
329
Da mesma forma, Christine Bruckert adverte sobre a designação de vítima,
que, sobretudo no tráfico relacionado com serviços sexuais, pode aumentar a
estigmatização e a vulnerabilidade das pessoas.
330
Ela afirma que “alguns
autores caem na armadilha de desenhá-a como inteiras vítimas que foram
captadas por indivíduos sem escrúpulos na busca de lucro”.
331
Segundo ela,
essa descrição representa uma abordagem simplista, negando às pessoas
traficadas o direito de explicar o significado das próprias ações.
332
Alguns
estudos já reconhecem isso e advertem:
“the Experts Group (...) shares the concern about the use of the word
‘victim’ because of its emphasis on vulnerability, passivity and
powerlessness, thus failing to recognise the dignity, courage, aims and
choices [of the trafficked persons].”
333
De acordo com Laura Agustín - que entrevistou pessoas que segundo o
atual debate seriam consideradas traficadas - a noção de “vítima de tráfico” pode
ser considerada uma “descrição pobre”, pois não reflete um auto-entendimento
de muitas mulheres.
334
Ela conclui que “a palavra vítima pode ser utilizada em
um sentido legal, mas no caso de vítimas de ‘exploração sexual’ transmite a
noção de que estas vítimas são sexualmente inocentes e ignorantes.”
335
Também Andrijasevic problematiza a concepção de “vítima”:
“The category of the ‘victim’ effaces women’s desires for mobility, their
determination to undertake a ‘solo migration project’ and their being an
essential source of family support.”
336
Relacionado com a idéia de vítima, por sua vez, está o projeto de “salvar”
estas pessoas. Como, por exemplo, um estudo do Departamento de Estado das
EUA constata: “Victims must be rescued from slave-like living and working
situations, rehabilitated, and reintegrated into their families and communities.”
337
329
Zimmerman e Watts (2003), p. 3 apud Cwikel e Hoban (2005), p. 309.
330
Bruckert (2002), p. 11.
331
Idem. Tradução minha.
332
Cfr. idem.
333
N.N. (2004), p. 22.
334
Agustín (2005b), p. 106.
335
Ibid., p. 107. Tradução minha.
336
Andrijasevic (2004), p. 53.
337
US-State Department (2005), p. 71.
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70
No entanto, esse conceito de salvação é problematizado por vários autores.
Segundo Jyoti Sanghera, a tarefa explícita de “salvar” as pessoas traficadas está
entre várias suposições dominantes que informam o discurso sobre o tráfico. A
autora contradiz a convicção de que operações de resgate (de pessoas que
trabalham em bordéis, por exemplo) levariam a uma redução do número de
pessoas traficadas.
338
Pelo contrário, ela desmascara como pano de fundo
destas operações um moralismo forte relacionado à prostituição, ou seja, a
consideração da prostituição como algo inerentemente explorador que deve ser
erradicado.
339
Assim, o “discurso de salvação” visa a perpetuar a imagem
convencional da “vítima” traficada desamparada e sem agência. Portanto, a
reivindicação da crítica é que seria importante afastar-se de representações
simplistas e uniformes de pessoas traficadas em favor de descrições mais
oportunas e multifacetadas da questão.
A construção de perfis de vítimas de tráfico, perpetuada nos programas
contra o tráfico representa um mecanismo discursivo específico, como elabora
Claudia Aradau. De acordo com a autora, na construção da pessoa traficada
como vítima, constitui-se um discurso de compaixão, que ela denomina de
“política de compaixão” (politics of pity).
340
Neste, apela-se às emoções que
certos relatos provocam, para construir uma “nova forma de solidariedade”.
341
A
política de compaixão, explica Aradau, necessita da construção do sofrimento de
forma reconhecível; para que os espectadores possam se identificar e simpatizar
com a vítima. Para isso, o sofrimento precisa parecer não merecido, pois a
compaixão não pode ser experimentada para pessoas “culposas” ou
“perigosas”.
342
Deste modo, segue Aradau, “o sujeito de uma política de
compaixão precisa ser separado de uma construção de perigo”.
343
Uma pessoa
traficada, portanto, há de ser descrita como “vítima inocente” para obter ajuda e
apoio. Segundo esta lógica, não é aconselhável lhe atribuir uma identidade mais
ambígua, como, por exemplo, de prostituta migrante ou de migrante clandestina,
sendo estas figuras mais estigmatizadas na opinião pública.
344
338
Sanghera (2005), p. 5.
339
Idem. Pretendo aprofundar esta questão no quarto capítulo.
340
Aradau (2004), p. 255.
341
Ibid., p. 256.
342
Ibid., p. 259.
343
Idem.
344
Estas lógicas serão aprofundadas nos capítulos sobre a migração e sobre a
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71
Segundo ela, a construção da vítima como inocente é uma estratégia que
faz parte do discurso humanitário – em contraste ao discurso securitativo. Neste
discurso, as emoções são utilizadas como “tecnologia governamental” no sentido
de Michel Foucault, moldando as formas de atuação dos indivíduos ou grupos,
constituindo sujeitos que precisam ser governados. Foucault entende por
“governabilidade” um “modo pelo qual o poder político administra e regula
populações”.
345
Ele define a chamada ”razão governamental” com “ces types de
rationalité qui sont mis en œuvre dans les procédés par lesquels on dirige, à
travers une administration étatique, la conduite des hommes.”
346
Neste sentido,
através da governabilidade, o biopoder se exprime e regulamenta como
tecnologia de poder o controle da população, que surge como nova personagem
para a teoria do direito. Deste modo, no discurso humanitário, é preciso a
constituição de sujeitos que necessitam ajuda, ou seja, a construção de
completas vítimas.
Aradau identifica este discurso humanitário relacionado ao discurso
securitativo, que, por sua vez, se fundamenta na “política do risco” (politics of
risk). Neste segundo discurso, as pessoas traficadas não são mais consideradas
alvo de ações de “salvação”, mas causas de insegurança para os Estados. O
objetivo deste discurso é limitar o risco de ser traficado.
“Whereas a politics of pity attempts to exteriorise the threat and divorce it
from the body of trafficked women, (...) a politics of risk (…) interiorises
danger, relocating it within trafficked women.”
347
Neste sentido, para prevenir o perigo, é necessário elaborar perfis de risco
para identificar, assim, identidades de risco. Deste modo, especifica Aradau, são
elaborados perfis específicos que, em seguida, são controlados, vigiados e
disciplinados com o objetivo de modificar os sujeitos de tal modo para que sejam
capazes de monitorar o próprio risco.
348
“This particular construction of victimhood sees women as perpetuating a
risk of illegal migration to Western society; to contain and neutralise the
risk, they are to be surveyed and disciplined.”
349
Enquanto, então, a política de compaixão enfatiza o sofrimento das
prostituição em relação ao tráfico, ou seja, nos capítulos 5 e 4 do presente trabalho.
345
Butler (2004), p. 80.
346
Foucault (1979), p. 823.
347
Aradau (2004), p. 254.
348
Cfr. ibid., p. 275.
349
Ibid., p. 276.
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72
pessoas traficadas, a política do risco fornece uma explicação científica da
vulnerabilidade das vítimas.
350
O perfil das vítimas típicas do tráfico representa parte de um mecanismo
“na defesa da sociedade”, ou seja, de um mecanismo controlador com
“tecnologias governamentais” que constituem sujeitos políticos disciplinados e
vigiados. O estudo de Aradau desmascara a criação de perfis típicos como
estratégia que “inventa” o indivíduo em perigo a ser traficado, e que, ao mesmo
tempo, representa um perigo para a sociedade. Esta dupla “periculosidade”,
então, explica de certo modo a ambigüidade do papel da pessoa traficada nos
programas de combate ao tráfico: enquanto por um lado, está sendo feito grande
esforço para desenhar a imagem da vítima desamparada e inocente (a pessoa
em perigo então), por outro lado, nas políticas de combate à figura da pessoa
traficada, esta deve ser mandada de volta ao país de origem, sendo considerada
uma ameaça à estabilidade e à ordem social e, portanto, representa também um
mal que deve ser evitado (um perigo em si).
3.6. Dicotomia vítima-criminosos: as campanhas contra o tráfico
O instrumento mais comum utilizado para divulgar o conhecimento sobre o
fenômeno são estratégias de curto-termo, como campanhas contra o tráfico,
351
embora o Protocolo de Tráfico aconselhe aos Estados a tomar iniciativas de
longo-termo para combater o fenômeno.
352
Para entender os efeitos das atuais
políticas de tráfico, é essencial analisar, além da retórica nos programas e
relatórios sobre o assunto, a forma de representação visual. Neste sentido,
apresento aqui resultados de análises de campanhas contra o tráfico.
De acordo com Rutvica Andrijasevic, que analisou várias campanhas
contra o tráfico na Europa do Leste, estes não somente informam sobre o
fenômeno do tráfico, mas também produzem através de uma representação
particular das pessoas envolvidas significados específicos do tráfico.
353
Nas
campanhas analisadas, trata-se de projetos da Organização Internacional de
Migração (OIM), que colabora neste âmbito com governos nacionais, instituições
350
Idem.
351
Cfr. a crítica a respeito por parte de Chuang (2006), p. 154.
352
Cfr. artigo 9 do Protocolo de Tráfico (2000), p. 57.
353
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 14.
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supranacionais, organizações européias e internacionais.
354
O combate ao
tráfico constitui o principal trabalho da OIM na área do chamado migration
management.
355
Embora o objetivo das campanhas da OIM analisadas seja um
“empoderamento”
356
das pessoas traficadas, o estudo de Andrijasevic mostra
efeitos contrários como resultado das campanhas.
357
É possível observar que
nas campanhas é reproduzida a imagem estereotipada das mulheres envolvidas
no tráfico representadas como vítimas exploradas por homens violentos e redes
criminosas, nas quais as traficadas parecem sem capacidade autônoma de
atuação, e sem possibilidade de fazer escolhas próprias informadas.
358
Além
disso, é construído um entendimento particular da relação entre vítima e
criminoso, perpetuando a imagem da relação entre homem poderoso criminoso
versus vítima sem poder. Aqui, segundo Agustín, observamos o efeito de fixar as
identidades de “opressor” e “vítima”, convertendo-as em um discurso
hegemônico no qual os sujeitos não podem se expressar.
359
Deste modo, é
possível constatar que é empregado de novo o discurso convencional, que se
desenvolve em torno da dicotomia de vítima-criminoso/s e que representa o alvo
de críticas:
“Hence, privileging the criminal-victim dichotomy results in analytical
oversimplification and theoretical impoverishment with regarding to
trafficking. This concerns scholars and policy makers alike since
understanding trafficking outside of the criminal-victim dichotomy may lead
to more appropriate policy solutions.“
360
Voltando às campanhas contra o tráfico, constatamos que no centro das
campanhas analisadas por Andrijasevic está o corpo feminino. Este corpo, na
maioria das vezes, é representado como capturado, violado, ferido e/ou atado,
mas especialmente como controlado. O controle dos corpos parece representar
354
Cfr. Andrijasevic (no prelo), p. 1.
355
Cfr. idem.
356
Esse termo que representa um objetivo importante nas teorias feministas está
relacionado ao conceito de agência, visa a capacitar mulheres a se tornar atores no
mundo segundo os próprios termos e, neste sentido questiona representações
estereotipadas do feminino. Cfr. Andrijasevic (2004), p. 159.
357
Cfr. ibid., p. 151.
358
Cfr. ibid., p. 207.
359
Cfr. Agustín (2005c), p. 124.
360
Andrijasevic (2004), p. 218.
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um tema recorrente nestas imagens. Assim, por exemplo, uma campanha (da
Ucrânia de 1998) mostra uma gigantesca figura masculina segurando na sua
mão direita uma gaiola com uma mulher dentro, enquanto na sua outra mão
agarra dinheiro em forma de US-dólares.
361
Em uma outra campanha (da
Moldávia de 2001), uma pequena figura feminina é passada de uma mão à outra
em troca de dinheiro (de novo dólares). Essas mãos são caracterizadas
claramente como masculinas, adornadas com um bracelete e um anel de ouro.
Além da interpretação do dólar como principal dinheiro de câmbio nestes países,
a imagem cria referências claras entre o tráfico e o crime, mostrando os
traficantes como representantes masculinos e parte do crime organizado, como
indicam as jóias tipicamente utilizadas para indicar cáftens ou mafiosi.
362
Em outras campanhas, estes estereótipos são substituídos por imagens
que deixam o sexo dos traficantes neutro, mas que enfatizam ainda o controle
dos corpos femininos através do tráfico. Na campanha na Ucrânia de 2001, por
exemplo, um corpo feminino (nu) é capturado por uma aranha gigantesca em
uma teia de aranha. Deste modo, a imagem refere-se ao tráfico como uma
massiva ameaça, representada pela enorme aranha. Ao mesmo tempo, não
tendo mais uma referência explícita aos traficantes, estes são despersonalizados
e recolocados em um fundo imaginário invisível. Também em uma outra
campanha (nos Estados Bálticos de 2002), a referência às redes criminosas está
implícita na imagem: esta mostra um corpo feminino pendurando no ar atado
pelas pernas, pelos braços e ombros por ganchos e cordas, parecendo uma
marionete. As cordas que saem do quadro indicam o envolvimento de alguém
que dirige os movimentos da mulher, tendo total controle sobre ela. Deste modo,
como analisa Andrijasevic, os traficantes são traçados em termos de “um
sistema de controle impessoal e capilar sobre corpos femininos”.
363
Todo este imaginário revoca exatamente à “história típica” do tráfico que
se baseia na lógica discursiva em torno da “pobre vítima” e dos “poderosos
criminosos”. A vítima é representada como desamparada e totalmente entregue
ao controle alheio: capturada na gaiola, passada de mão em mão, presa em uma
teia de aranha e pendurada em ganchos como uma marionete. Em todas estas
representações, as mulheres são constituídas sem agência, elas se tornam
objetos passivos expostos à violência masculina.
361
Cfr. Andrijasevic (no prelo), p. 6.
362
Cfr. idem.
363
Andrijasevic (no prelo), p. 7.
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“By representing the women’s bodies as entrapped, wounded and silenced,
the campaigns restage the familiar scenario where female bodies are
passive objects of male violence.”
364
Além disso, nas campanhas são mostradas diferentes formas de
sofrimento das vítimas, que desatam um sentimento de compaixão no
espectador. Neste sentido, é construída uma identificação com as vítimas, que,
de acordo com Aradau, como já mencionado, faz-se necessária para entrar em
vigor a denominada “política da compaixão”. Segundo a autora, existem duas
estratégias para representar o sofrimento: em forma de denúncia, que focaliza
mais os traficantes; e em forma de sentimento, que se concentra nas vítimas.
365
A representação das pessoas traficadas em campanhas anti-tráfico faz
abundante uso da segunda estratégia, criando, através da exibição do corpo
feminino que sofre (como símbolo para todo sofrimento das vítimas), uma
identificação social, que funciona, como o chama Aradau, de “solidarity inducing
denominator”.
366
Através da objetificação, as mulheres são captadas em representações
estereotípicas que, como indica Andrijasevic, constituem parte do repertoire
patriarcal da cultura ocidental.
367
Nesta perspectiva, o feminino é interpretado
como o potencial desestabilizador da ordem social e política, e assim, as
campanhas têm o efeito de construir discursos regulatórios que recolocam as
mulheres nos espaços da (própria) casa e do (próprio) país, aconselhando como
melhor prevenção ao tráfico a ficar nestes lugares.
“The capturing of women’s bodies within traditional representations of
femininity goes hand in hand, I suggest, with a rhetoric that seeks to
discourage woman’s labour mobility and instead immobilizes female bodies
within the spaces of the home and the nation.”
368
Nestas campanhas contra o tráfico, os corpos femininos são imobilizados,
fixados a uma figura estática, demarcando assim os limites nos quais as
mulheres são imaginadas como agentes ativas.
369
Parece que as campanhas
insinuam que somente recolocando as mulheres no lugar “apropriado”,
imobilizando-as e fixando-as no papel tradicional da mulher, a ordem social e
364
Andrijasevic (2004), p. 151.
365
Aradau (2004), p. 261.
366
Ibid., p. 262.
367
Andrijasevic (no prelo), p. 8.
368
Andrijasevic (2004), p. 151.
369
Cfr. Andrijasevic (no prelo), p. 2.
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política imaginária não é desestabilizada.
Deste modo, as campanhas analisadas expressam uma política de
salvação da inocente vítima do tráfico. As imagens colocam as mulheres dentro
da esfera privada, associando a feminilidade com a domesticidade, perpetuando,
assim, representações tradicionais do “ser mulher”. Esta lógica corresponde à
dicotomia histórica de esfera pública (atribuída ao homem) versus privada
(atribuída à mulher), propagando a idealização do espaço privado isento de
conflito, de violência e de exploração.
370
Para que as mulheres sejam percebidas
como agentes sociais, na perspectiva das campanhas, não devem sair do país,
ficando em casa, espaço assumido como não violento.
371
Neste sentido, a
autora chega à conclusão:
“Rather than empowering migrant women, La Strada/IOM campaign’s
rhetorical construction of victimizing images, dispossession of women’s
narrative voice and idealization of home, de facto seeks to legitimate a
particular arrangement of patriarchal social relations and contain the
changes brought about by women’s mobility.”
372
As campanhas contra tráfico da OIM
373
, então, utilizam imagens
estereotipadas das mulheres, reduzindo-as a vítimas sem agência, a objetos
controlados pelas mãos masculinas ou pelas redes do crime organizado. Neste
sentido, as campanhas não somente não contribuem ao “empoderamento” das
mulheres (embora seja este um declarado objetivo das campanhas), mas ainda
colaboram com um discurso repressivo e limitador, restabelecendo o imaginário
sobre o feminino como um outro que deve ser contido, capturado e controlado
para recuperar a ordem hierárquica social modificada.
374
É possível constatar
que o discurso atua aqui como tecnologia de poder que estabelece mecanismos
de controle social, embora se baseie na justificativa da proteção das vítimas.
A automaticamente assumida dicotomia entre vítima do tráfico e crime
constrói uma narrativa simples e estereotipada, à qual vários autores se opõem.
“Such debates, particularly in the context of EU immigration controls, are often
skewed towards ‘poor victims and bad criminals’.”
375
Em vez de encorajar o
370
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 162.
371
Cfr. Andrijasevic (no prelo), p. 5 e (2004), p. 161.
372
Andrijasevic (2004), p. 163.
373
As campanhas analisadas são organizadas em parte em cooperação com a
ONG La Strada.
374
Cfr. Andrijasevic (no prelo), p. 9.
375
Corrin (2005), p. 545.
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77
“público” para uma migração segura, as campanhas têm o efeito de intimidar e
desaconselhar qualquer forma de mobilidade internacional. Neste sentido, as
campanhas reproduzem o discurso convencional do tráfico, integrado na
perspectiva do tráfico como problema do crime. Como mostram as
representações analisadas, com a falta da referência explícita dos traficantes,
esses são despersonalizados e mistificados, enquanto eles têm o controle total
sobre o corpo da vítima. Esta, por sua vez, está capturada, sem possibilidade de
escapar, silenciada e degradada ao nível de um objeto; ela é mostrada com
necessidade de condução e de proteção, tudo o que se precisa para a política de
salvação e as fantasias de resgate entrarem em ação.
Portanto, em lugar de empoderar, como mostra o estudo de Andrijasevic,
essas campanhas desanimam a migrar e visam a controlar a sexualidade e a
mobilidade feminina.
376
Neste sentido, a autora reivindica uma transformação
destas formas de representação estereotipadas para possibilitar novas formas
de representação de sujeitos femininos.
3.7. Conclusão
Neste capítulo apresento e problematizo o modo convencional de se
aproximar à temática do tráfico de pessoas através da abordagem do tráfico
como problema de crime organizado. Para isso, delineio alguns elementos que
caracterizam essa perspectiva: as pesquisas enfatizam, por um lado, a
importância de números sobre o fenômeno, e, por outro lado, a importância da
elaboração de um perfil de “vítima” de tráfico. Ao mesmo tempo, é criada uma
dicotomia entre vítima e criminoso/s, desenhando uma representação específica
do tráfico. O cerne desta abordagem consiste na imagem ameaçadora de redes
criminosas organizadas como principais causadoras do tráfico, que, por sua vez,
expandem-se cada vez mais, aproveitando o agravamento de situações
econômicas em várias regiões do mundo. Constatei que é estabelecido um
discurso específico que considera o combate ao crime organizado essencial para
combater o tráfico.
Através de “grandes números” é construído um quadro alarmante do tráfico
para chamar a atenção para a questão, para justificar a grande soma investida
no combate, e também para enfatizar a urgência de uma solução rápida e
efetiva. Contudo, os números em jogo são contestados, demonstrando que se
376
Cfr. Andrijasevic (no prelo), p. 11.
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78
fundamentam em métodos questionáveis. Visto que a partir destes números são
elaboradas políticas de combate ao tráfico, o problema está na possível
ineficiência destas políticas públicas.
Na abordagem que interpreta o tráfico como problema do crime
organizado, a participação do crime organizado no “lucrativo negócio” do tráfico
é interpretada como algo “natural” que não precisa ser questionada. Nesta
perspectiva, o papel da vítima ocupa um lugar secundário, pois o combate ao
crime é considerado prioritário. Ao mesmo tempo, atribuindo a “culpa” pelo
tráfico ao crime, o Estado é absolvido de qualquer cumplicidade. Além disso, as
“soluções” propostas representam o interesse estatal e não o das vítimas. Assim,
é possível identificar na abordagem criminalista um discurso específico que
estabelece um “regime de verdade” particular. No entanto, vários estudos
empíricos mostram, que não somente a relação estabelecida entre tráfico e
crime organizado deve ser contestada, demonstrando o envolvimento de grupos
pequenos criminosos e de indivíduos no tráfico, mas também a relação entre
tráfico e crime em si.
Outro elemento deste discurso representa a constituição da “pessoa
traficada típica” como sendo uma jovem, inocente sem experiência, capturada
através de iscas de possibilidades de trabalho bem remuneradas pelas “grandes
redes criminosas do tráfico”. Nesta lógica discursiva, é criticada especialmente a
negação da agência à vítima, que, portanto, deveria ser salvada e resgatada dos
circuitos do crime. Para que se estabeleça esta “política de compaixão”, ou seja,
a identificação e a solidariedade com a vítima do tráfico, é necessário que esta
seja representada como inocente. Assim, a criação de perfis típicos de vítimas
do tráfico é desmascarada como estratégia que inventa o indivíduo em perigo
para obter ajuda e apoio internacional. Deste modo, através de um mecanismo
controlador com “tecnologias governamentais”, são constituídos sujeitos políticos
disciplinados e vigiados. Ao mesmo tempo, é elaborada a imagem da pessoa
traficada como perigo, representando um fator desestabilizador da ordem social
do país de destino. Neste sentido, é possível constatar o papel ambíguo da
pessoa traficada nos programas de combate ao tráfico.
As representações típicas de vítimas do tráfico repetem-se nas campanhas
contra o tráfico, nas quais as mulheres são constituídas sem agência, tornadas
em objetos passivos expostos à violência masculina. O imaginário das
campanhas revoca exatamente à “história típica” do tráfico que se baseia na
lógica discursiva em torno da “pobre vítima” e dos “poderosos criminosos”,
criando a dicotomia vítima-criminoso/s que caracteriza esta abordagem.
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79
4 O tráfico como problema moral
“Trafficking in women is an institution of sexual slavery in which women
are transported across national borders and marketed for prostitution or similar
practices.”
377
4.1. Introdução
A perspectiva do tráfico internacional de pessoas como problema moral
representa uma forma tradicional de abordar o problema em questão.
Atualmente quase cada agenda política de organizações internacionais e
nacionais, como também de algumas locais, explora o assunto de tráfico
relacionado com a exploração sexual.
378
Existe uma ênfase excessiva nas
investigações sobre o tráfico por exploração sexual (sex trafficking) em
detrimento de outras formas de tráfico.
379
Nesta abordagem, então, o destaque
está na exploração sexual da vítima do tráfico; considerando o tráfico parte da
overall evil prostituição.
380
A identificação do tráfico com a prostituição é o cerne
desta perspectiva, que está fundada na condenação moral da prostituição. Para
combater o tráfico é concebido necessário suprimir toda forma de prostituição.
Este entendimento provoca uma polêmica por concepções distintas sobre
a prostituição especialmente entre grupos feministas. Enquanto uma posição
identifica a prostituição como escravidão sexual, a outra luta pelo
reconhecimento da prostituição como trabalho sexual. O pano de fundo são
visões morais diferentes que representam bases teóricas epistemológicas
opostas, estabelecendo assim uma “fossa teórica” entre estas perspectivas
persistentes até hoje.
381
As argumentações a partir de diferentes entendimentos teóricos levam,
evidentemente, a implicações políticas distintas sobre o assunto. Assim, por
exemplo, o grupo das neo-abolicionistas ganha apoio na luta contra a
377
Watanabe (1995), p. 501.
378
Agustín (2005a), p. 620.
379
Chuang (2006), p. 152.
380
Wijers (s.d.), p. 2.
381
Cfr. Zalewski (2000), p. 73.
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80
prostituição por parte de diferentes governos, como o dos EUA e o da Suécia; e
recebe sustento através de alianças com grupos religiosos de direita.
Neste capítulo, pretendo delinear as posições conceituais distintas dos
diferentes grupos feministas sobre a prostituição, relacionando-as com os
próprios fundamentos teóricos. Na minha argumentação, nesta abordagem a
sexualidade é utilizada de novo como forma de tecnologia de poder,
382
estabelecendo um discurso de vitimização da prostituta que deve ser libertada.
Na crítica a esta postura é enfatizado o perigo da não-diferenciação entre a
pessoa traficada e a prostituta, levando a uma ainda maior estigmatização,
marginalização e isolação desta última.
383
4.2. A polêmica no feminismo
O enfoque da abordagem do tráfico internacional de pessoas como
problema moral evoca diversas controvérsias, sobretudo a respeito do
significado da prostituição. A polêmica no feminismo desenvolve-se em torno de
entendimentos diversificados sobre a relação entre a prostituição e o tráfico.
Enquanto para as chamadas feministas radicais, existe uma convergência entre
os dois, as feministas que defendem os direitos das trabalhadoras sexuais lutam
para uma clara diferenciação entre a prostituta e a vítima do tráfico.
Os dois entendimentos
384
constroem dois sujeitos distintos e representam
concepções teóricas diversas. Por um lado, há a teoria feminista radical
enraizada no discurso moderno, na qual a lógica discursiva da vitimização
exerce um papel importante e que concebe um “sujeito reprimido”. Por outro
lado, está uma postura feminista fundamentada no discurso pós-moderno, que
se opôs à fixação de significados e desenvolve um “sujeito resistente”.
385
Em seguida apresento separadamente estes dois discursos aqui
mencionados com o objetivo não somente de esboçar os possíveis perigos que
surgem especialmente do feminismo radical, mas também de problematizar a
fossa teórica em si, reivindicando abordagens que vão além desta blocagem do
debate em dois lados, centradas nos direitos das pessoas traficadas.
382
Cfr. Buss (2005), p. 11.
383
Cfr. Wijers (s.d.), p. 2 e Levenkron (2003), p. 16.
384
Que, na verdade, não representam blocos homogêneos, mas também
albergam diferenças internas, e aqui são resumidas em duas posições por questões
analíticas.
385
Cfr. Scoular (2004), p. 352.
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81
4.2.1. O corpo vendido: prostituição como escravidão sexual
“Trafficked and prostituted women in the sex industry suffer the same kinds of
violence and sexual exploitation as women who have been battered, raped, and
sexually assaulted.”
386
Para o grupo feminista que incorpora a questão do tráfico como problema
de prostituição – e ao qual a ONG CATW (Coalition Against Trafficking in
Women) e as suas aliadas fazem parte - não existe uma diferença qualitativa
entre o tráfico e a prostituição; as duas são práticas que simbolizam a
dominância masculina na cultura patriarcal, e devem ser combatidas até o
extremo. A prostituição é identificada como problema social e como instituição
retrógrada, que deve ser erradicada para, deste modo, libertar “a mulher”.
387
Nesta concepção, a prostituta não vende serviços sexuais, mas o próprio
corpo;
388
e especialmente a falta de controle da prostituta sobre os próprios atos
é enfatizada:
“Once in prostitution a woman realizes that she has no control over the
choice of client, the pace or price of work, or the nature of the sexual
activity. She is the shared property of any male who can pay a price for sex
and for her body.”
389
Da mesma forma que o tráfico, também a prostituição é considerada
endemicamente violenta por causa da presença do elemento da exploração
sexual.
390
Janice Raymond fala de prostitutas “violadas no trabalho” (raped on
the job) como padrão que caracterize esta prática.
391
“The sexual service provided in prostitution is most often violent, degrading,
and abusive sexual acts, including sex between a buyer and several
women; slashing the woman with razor blades; tying women to bedposts
and lashing them till they bleed; biting women’s breasts; burning the
women with cigarettes; cutting her arms, legs, and genital areas; and
urinating or defecating on women.”
392
Assim, a prostituição é identificada como uma forma de violência contra as
mulheres, representando uma prática abusiva masculina que, em países que
descriminalizam a indústria do sexo, é transformada em um comportamento
386
Raymond (2004), p. 1174.
387
Cfr. Anderson (2002), p. 748 e 750.
388
Cfr. Raymond (2004), p. 1160.
389
D’Cunha (2002), p. 141 apud Raymond (2004), p. 1171.
390
Ibid., p. 1174.
391
Ibid., p. 1176.
392
Ibid., p. 1175.
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82
socialmente aceito.
393
Nesta perspectiva, a prostituição é equiparada à
escravidão sexual, e para terminar a violência contra as mulheres, visa-se a
uma total abolição da prostituição.
394
De acordo com Kathleen Barry, a
escravidão sexual é “the business that merchandise women’s bodies to brothels
and harems around the world”.
395
Barry é a fundadora da CATW, da organização
de liderança dentro do International Human Rights Network, que reivindica uma
resposta dos governos a esta “forma de violência masculina e exploração sexual
de mulheres em prostituição”, visando à criminalização da demanda para a
prostituição.
396
Este bloco - que é formado por feministas radicais, entre elas
autoras famosas como Andrea Dworkin, Catharine MacKinnon e Carole
Pateman
397
- luta contra uma descriminalização e legalização da prostituição, e
para uma (maior) punição dos clientes, ou seja, para uma ênfase na erradicação
da demanda de serviços sexuais.
A crítica das feministas radicais deve ser vista no contexto do
entendimento teórico delas.
398
Um objetivo deste ramo feminista é a identificação
e a denúncia pública de desvantagens para as mulheres nas sociedades
ocidentais contemporâneas, colocando-as no centro das análises.
399
Nos anos
70, são elas a introduzir o conceito do patriarcado como dominação masculina
estrutural como chave de explicação para a subordinação social das mulheres
na sociedade.
“The structural theory of patriarchy suggested that it wasn’t simply men who
were the problem but all things associated with men and masculinity. This
meant that not only did men dominate – but so did masculine values, ideas
and typical modes of living.”
400
De acordo com as feministas radicais, existem práticas que definem uma
hierarquia na sociedade, que legitimam e fortalecem a subordinação de
393
Ibid., p. 1177.
394
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 63.
395
Barry (1979), p. 39 apud Chapkis (1997), p. 46.
396
Raymond (2004), p. 1177.
397
Cfr. Anderson (2002), p. 749.
398
Na genealogia do debate, a intervenção feminista radical representa uma
resposta ao feminismo marxista e liberal. A contribuição delas é de introduzir na
discussão sobre a relação entre o corpo, a propriedade e o trabalho, o elemento da
sexualidade. Cfr. Andrijasevic (2004), p. 64.
399
Cfr. Anderson (2002), p. 752 e Zalewski (2000), p. 14.
400
Zalewski (2000), p. 12.
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83
mulheres como uma classe. A prostituição é identificada como uma destas
práticas cruciais, chamada, ao mesmo tempo, de indicador e de causa do estado
dependente da mulher na sociedade, ou seja, um “epítome da subordinação”.
401
Scott Anderson expõe três motivos centrais para a denominação da prostituição
como “instituição degradante”:
“(1) that the good purchased from a prostitute is frequently, in part, her own
degradation; (2) that the existence of prostitution depends on the existence
of an inequality in social or economic power between prostitutes and their
customers; and (3) that prostitution contributes to the perpetuation of the
inequalities that underlie the practice.
402
Nesta abordagem, então, como motivo crucial da existência do tráfico e da
exploração sexual em geral é identificado o não-questionamento destas práticas
e a condenação insuficiente da demanda masculina.
403
Neste sentido, a
penalização dos clientes é considerada um passo importante rumo a uma
diminuição até a erradicação da venda de serviços sexuais, pois “a prostitution
market without consumers would go broke”.
404
Para Janice Raymond, o modelo político a seguir, está já realizado na
Suécia. Este país introduz na própria legislação uma completa proibição de
serviços sexuais comerciais. Na lei está formulado que:
“Prostitution and trafficking in women are seen as harmful practices that
cannot, and should not be separated; in order to effectively eliminate
trafficking in women, concrete measures against prostitution must be put in
place.”
405
A convergência entre a prostituição e o tráfico, é considerada condição
importante para um combate efetivo da exploração sexual. Uma diferenciação
não é avaliada necessária, pois nas duas acontece a venda do corpo feminino,
reforçando, assim, a opressão social da mulher na sociedade. Nesta perspectiva,
a ênfase está, então, na venda do corpo em lugar da venda de serviços sexuais,
pois aquilo não é considerado possível. De acordo com Carol Pateman, como
mostra Kathy Miriam, a “história” de um contrato laboral no qual uma pessoa
vende a própria “força laboral” (labor power) em troca de alguma recompensa é
uma “ficção política”.
406
Pateman questiona a possibilidade de poder separar as
401
Anderson (2002), p. 752.
402
Idem.
403
Cfr. Raymond (2004), p. 1157.
404
Ibid., p. 1160.
405
Eckberg (2003), p. 69 apud Raymond (2004), p. 1158.
406
Cfr. Pateman (1988) e (2002), p. 27 e seguintes apud Miriam (2005), p. 3.
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84
próprias capacidades do self, e denomina este chamado “intercâmbio” uma
“prática de alienação”.
407
“[S]ince the worker’s capacities cannot in fact be alienated from his person,
what the worker is really offering (surrendering) to his/her employer,
through the contract, is her/his (situated, embodied) autonomy. That is to
say, the real transaction in this contract is defined by the worker’s freedom
to be subordinated to an employer/boss.”
408
Se adotarmos este entendimento à prostituição, no qual esta é concebida
como ceder o controle sobre o próprio corpo e representaria a culminação da
relação de dominação e de subordinação entre homem e mulher na sociedade
patriarcal, a oposição teórica destas feministas (defendida muitas vezes de
forma emocional) a esta prática é compreensível.
409
Para elas, na decisão da
repulsão desta prática, trata-se de uma questão moral, porque implica a decisão
de favorecer ou não uma regulação do acesso sexual - que é equiparado a uma
exploração sexual - dos homens às mulheres. Esta perspectiva é fortemente
contestada especialmente pela sua falta de diferenciação entre tráfico e
prostituição, e pela determinação de um significado fixo e imutável à prostituição,
como veremos mais em frente.
Na abordagem feminista radical existe a diferenciação entre duas formas
de sexo: a forma comercial por dinheiro e a forma que representa parte crucial
de uma relação amorosa. Pateman explica a diferença:
“[The] difference between the reciprocal expression of desire and unilateral
subjection to sexual acts with the consolation of payment: it is the
difference for women between freedom and subjection.”
410
Para estas feministas, então, unicamente a segunda forma de sexo
mencionada deveria existir, pois a primeira “desumaniza e domina as
mulheres”.
411
Esta diferenciação é criticada (1) por confirmar entendimentos
correntes normativos que o sexo “genuíno” esteja de certa forma fora do poder,
ou seja, represente um âmbito não perpassado pelas dinâmicas de poder; e (2)
por idealizar o sexo relacionado com amor, não reconhecendo, deste modo, a
importância do elemento econômico na prostituição. Justamente este deveria ser
valorizado, argumenta Jane Scoular, pois não somente as conseqüências de
407
Ibid.
408
Ibid., enfâse no original.
409
Cfr. Miriam (2005), p. 4.
410
Pateman (1988), p. 204 apud Scoular (2004), p. 346.
411
Barry (1995), p. 28.
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85
mudança estrutural através dele seriam dignas de menção, mas também o
descobrimento dos efeitos das normas do amor instrumental no qual o trabalho
executado em nome dele não é reconhecido como tal.
412
Como explica Jan Jindy
Pettman: “Women are there to service men, providing domestic and sexual
labour, which is assumed to be a labour of love.”
413
De acordo com Jane Scoular,
o reconhecimento da prostituição como trabalho poderia contribuir a reconhecer
o entrelaçamento da esfera privada com a pública; uma reivindicação que, ao
final de tudo, é surgida do movimento feminista e especialmente das feministas
radicais, que se tornaram famosas com o slogan “o privado é político”.
414
Segundo a teoria do feminismo radical, o grupo social de homens está
interessado na subordinação feminina para poder extrair das mulheres através
de uma variedade de formas de poder em uma ordem política liberal o surplus ou
o chamado “dividendo patriarcal”.
415
Este dividendo estaria legitimado através do
direito de sexo (sex right), como expressão das relações sociais desiguais de
gênero.
“Radical feminist abolitionists conceptualize prostitution as an institution
fundamentally based on men’s sex right, that is, men’s entitlement to
demand sexual access to women.”
416
Para Kathy Miriam, que defende esta posição, a coerção, o consentimento
e a agência – três fatores cruciais para o grupo que defende uma diferenciação
entre a prostituição e o tráfico - estão relacionados no paradigma da dominação.
Este paradigma representa a condição de opressão da classe mulher, dentro do
qual a prostituição é vista como “the cornerstone of all sexual exploitation”,
417
ou
seja, a dominação descreve uma relação (legitimada) de acesso físico, sexual e
emocional de homens aos corpos femininos.
“[G]iven the interweaving of sex, money and power, ‘dominance and
submission, oppression and victimization are necessarily built into the
practice [of prostitution]’."
418
Para estas feministas, então, tudo se concentra no sistema de dominação
412
Scoular (2004), p. 346.
413
Pettman (1996), p. 186.
414
O que Cynthia Enloe mais tarde mudou em “o pessoal é internacional” e “o
internacional é pessoal”. Cfr. Enloe (2000, [1989]), p. 196.
415
Connell (1995), p. 71 apud Miriam (2005), p. 10.
416
Miriam (2005), p. 11.
417
Barry (1995), p. 9.
418
Overall (1992), p. 722 apud Anderson (2002), p. 752.
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86
chamado de patriarcado, que se exprime especialmente no controle da
sexualidade feminina através dos homens. Neste sentido, como explica Judith
Lorber, o patriarcado é considerado, ao mesmo tempo, o processo, a estrutura e
a ideologia da subordinação da mulher.
419
4.2.1.1. A prostituta fora do lugar
De acordo com Laura Agustín, é possível delinear as origens do discurso
sobre a prostituição das feministas radicais. Segundo esta autora, discursos
sobre a prostituição mudaram pouco desde o século XVIII.
420
As prostitutas se
desviam da norma sexual prevista na sociedade, ou seja, da sexualidade
permitida que se desenvolve no âmbito da família; a importância atribuída à
família é o ponto chave nestes discursos. Agustín identifica como motivo central
para a condenação das prostitutas o fato de se tratar de populações fora das
unidades do núcleo familiar, desestabilizando estas e causando ansiedades na
sociedade.
No tardio século XVIII, no âmbito do surgimento de novas cidades, é
tematizada a forma apropriada de viver nas sociedades “civilizadas”. Neste
período o modelo de família na sua definição burguesa é reconhecido como a
unidade principal da sociedade.
421
“With this identification of families as the good and normal, large numbers
of people were discursively converted into social misfits: people without
proper places in a domestic structure. They were also seen as threats to
normal society.”
422
Nesta categoria são colocadas as prostitutas, que são construídas como
um grupo específico.
423
Esta categorização é produzida, como nos mostra
Foucault, através de diversas práticas sociais, assim como por meio de
discursos no direito e na medicina.
424
Assim, as prostitutas são consideradas fora
do lugar, representando a desordem, a ameaça à ordem social, sujeitos
patológicos capazes de contaminar os “cidadãos bons”.
“Thus the category of prostitute was consolidated as a separate, bounded
group of women who were socially necessary if dangerous and polluting.
419
Lorber (1994), p. 3.
420
Cfr. Agustín (2005d), p. 1.
421
Cfr. ibid., p. 3.
422
Ibid., p. 3,4.
423
Cfr. Doezema (2006), p. 272.
424
Cfr. Foucault (1976).
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Even though prostitution was considered a form of contagion, the risk to
nonprostitute women could be allayed by measures that physically and
ideologically separated good and bad women.”
425
Como mostra a antropóloga Mary Douglas, tudo interpretado fora da ordem
deve ser analisado a partir da ordem que colocaria em questão.
“[I]f uncleanness is matter out of place, we must approach it through order.
Uncleanness or dirt is that which must not be included if a pattern is to be
maintained.”
426
Para Agustín, é aqui que começa a história da regulação e do controle da
prostituição, que pode ser interpretado como mecanismo de poder no sentido de
Foucault. Neste sentido, as vidas de uma população específica (aqui das
prostitutas) são administradas através do conhecimento do saudável, do bom e
do normal; ou seja, a chamada biopolítica atua por meio do conhecimento
prevalente da época, construindo uma rede de controle social. Subjacentes
estão os entendimentos morais e ideológicos do lugar reconhecido como
apropriado para a mulher: na família e na casa.
“Women are contained and constrained in the home and in their sexed
bodies. Because public space is male, and women are seen as belonging
in the private, women appearing in public space appear ‘out of place’.”
427
As prostitutas, então, são vistas como o “arquétipo de mulher fora da
casa”,
428
a essência do desvio das normas e, portanto, se concentram nelas a
estigmatização e a desvalorização que se exercem sobre as que se apartam dos
modelos impostos.
429
Dolores Juliano relaciona o desvio com o controle: “La
desviación es una construcción social, una categoría peyorativa utilizada para
controlar aquellos/as que desafían el status quo político.”
430
Neste sentido, o
controle resulta como único remédio de uma licença sexual; sendo apresentado
como ajuda, como obrigação “natural” ou como “missão civilizatória”, a qual se
dedicam especialmente mulheres da classe média.
431
425
Saunders (2005), p. 345.
426
Douglas (1966), p. 40.
427
Pettman (1996), p. 7.
428
Agustín (2005d), p. 7.
429
Juliano (2005), p. 81.
430
Faith (1994), p. 109 apud Juliano (2005), p. 81.
431
Agustín (2004b), p. 73.
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No final do século XVIII, então, são criadas inúmeras organizações de
resgate para estas fallen women.
432
No entanto, acontece que muitas vezes esta
chamada ajuda é rejeitada pelas jovens prostitutas, levando a ainda maiores
esforços por parte das encarregadas com o resgate.
433
Agustín fala de “carreiras
de ajuda” (helping careers), que implicam uma forma de altruísmo e de virtude,
mas ao mesmo tempo, deixam sem voz o objeto de ajuda, ou seja, a chamada
vítima.
434
Segundo a autora, este impulso a ajudar não mudou até o presente:
“It is the middle-class self-denominated ‘supporters’ (activists, lobbyists,
NGO workers) who have become protagonists, not those selling sex, and
the role that feminists play in this exercise of social control needs to be
recognized.”
435
A crítica principal a este enfoque se concentra no efeito (talvez nem
intencional) destas políticas de liberação, e na perpetuação do discurso moralista
do século XIX, como explica a autora em um outro texto:
“Los agentes sociales proponen ‘proteger’ a estas personas, a las que
etiquetan de ignorantes e indefensas. Los sujetos de este discurso no se
ven así, pasivos y coaccionados; el impulso de los que quieren ayudar
vuelve a ser controlador.”
436
Assim, o que originariamente visa a proteger, ao final, resulta em um
mecanismo controlador, para preservar, deste modo, a ordem social. No
discurso contemporâneo sobre a prostituição e o tráfico ainda permanece esta
lógica discursiva de salvação surgida da primeira onda feminista. As feministas
radicais neo-abolicionistas continuam a difundir esta perspectiva, entrando
também em coalizões surpreendentes para alcançar os próprios objetivos, como
veremos no final deste capítulo.
4.2.1.2. O sujeito reprimido do discurso moderno
Enquanto o discurso abolicionista está enraizado na teoria do feminismo
radical, esta, por sua vez, fundamenta-se no discurso moderno, ou seja, o
entendimento teórico do feminismo radical faz parte de uma concepção moderna
do sujeito humano. Para feministas modernas o sujeito principal de preocupação
é “a mulher”, junto com a sua dignidade e o seu valor, que deve ser resgatada de
432
Cfr. Agustín (2005d), p. 8.
433
Cfr. Chapkis (1997), p. 46.
434
Cfr. Agustín (2005d), p. 8.
435
Ibid., p. 9.
436
Agustín (2005c), p. 121.
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séculos de atribuição misógina e patriarcal.
437
A base deste entendimento, então,
representa a política de identidade (identity politics) que estabelece o sujeito em
questão. Esta política é o ponto-chave para um grupo marginalizado, pois a
aquisição de direitos específicos depende da representação do sujeito em uma
forma particular, por exemplo, da “mulher” como sujeito oprimido. Neste sentido,
as feministas radicais, integrando-se neste entendimento teórico, constroem um
sujeito “mulher” que deve ser libertado, baseado em um entendimento meta-
teórico sobre a natureza do sujeito e do self.
438
“This all leads to feminist politics, which for modernist feminists involves
some form of emancipation or liberation from oppression or simply unfair
treatment, resulting in women having control and agency in their lives.”
439
As idéias modernas se fundamentam no projeto do Iluminismo, ou seja, em
uma confidência na capacidade intelectual humana de se aproximar a uma
verdade universal perseguida por muito tempo. A liberação do indivíduo será
possível através desta nova forma de pensamento, substituindo as antigas
autoridades (como a igreja ou a monarquia) com o indivíduo capaz de
conhecimento por meio da razão.
“From the time of Descartes the search for certainty has been firmly
grounded in the rationality and reasoning of the knowing subject or self.
This ‘knowing self’ (…) has been seen, by modernists, as the centre of the
human being and the ultimate producer of all truth.”
440
A reivindicação das feministas radicais é de substituir este indivíduo, que
tradicionalmente é o homem, com a mulher, ou seja, de reinstalar a mulher como
sujeito na história. O estabelecimento da mulher como sujeito político é crucial
para a teoria e a prática da política identitária feminista moderna.
441
Na
perspectiva das feministas radicais existe um self feminino originário que agora é
distorcido pelo patriarcado e, portanto, deve ser redescoberto. Unicamente a
partir da superação da exclusão tradicional histórica da mulher como sujeito
político, ou seja, através dela tornar-se um sujeito, uma política feminista que
demanda direitos igualitários será possível.
442
Assim, esta abordagem se
fundamenta em uma distinção entre sujeito e objeto típica da modernidade,
437
Zalewski (2000), p. 33.
438
Ibid., p. 34.
439
Ibid., p. 33.
440
Ibid., p. 36.
441
Cfr. ibid., p. 37.
442
Cfr. ibid., p. 37 e seguintes.
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como também em um entendimento que os sujeitos existem a priori, e que
unicamente a partir destes uma reivindicação de direitos específicos atribuídos a
este grupo particular é possível.
Na base desta perspectiva estão entendimentos dualistas entre os quais
está dividido o mundo: em homem e mulher, em cultura e natureza, mente e
corpo, racionalidade e emoção, público e privado etc.
443
Estes dualismos estão
caracterizados não somente por uma oposição entre os termos, mas também por
uma hierarquização entre eles, o que representa a principal denúncia do
feminismo: ao feminino é atribuído um sentido de inferioridade.
“Feminist theory thus criticizes the myths and mystifications surrounding
Woman, understood as the construct of the male imagination, inaugurating
a tradition that aims at subverting the systematic disqualification and
denigration of the female subject. Feminism argues that men have
appropriated de jure the faculty of reason, de facto confining women to
compulsory irrationality, unreasonableness, immanence, and passivity.”
444
Além de uma construção específica do sujeito, a modernidade baseia-se
também em uma epistemologia particular, na qual uma importância crucial é
atribuída à verdade objetiva sobre o mundo e à concepção de que a realidade
pode ser encontrada ou alcançada por meio da razão. Esta, por sua vez, é
considerada a capacidade humana principal potencialmente igual para todos os
indivíduos; e o conhecimento é interpretado como uma força progressiva, no
sentido de que mais sabemos, mais podemos entender “a verdade” ou “a
realidade”.
445
“Following on from the modernist aim of discovering and demonstrating the
truth, the point of feminist theory is to do something about the sexist and
misogynist injustices and untruths that are uncovered.”
446
A tradição moderna do pensamento político surgida do Iluminismo, então,
acredita em uma objetividade científica, ou seja, em uma neutralidade do
conhecimento, que é declarada pelas feministas como gendered no sentido de
que o knowing self ao longo da história é desmascarado como masculino.
447
A
reivindicação de uma ampliação das categorias principais do Iluminismo
representa uma contribuição feminista importante; contudo, também o feminismo
radical é criticado por introduzir um universalismo falso:
443
Cfr. ibid., p. 46.
444
Braidotti (1994), p. 236.
445
Cfr. Zalewski (2000), p. 46.
446
Ibid., p. 128.
447
Cfr. Hartsock (1998), p. 206.
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“Instead of ‘Man’ we are now presented with a generic ‘Woman’, a term,
like the universal ‘man’ or ‘human’, that hides or denies differences in
situation and experience, privilege and power – its content based not on
actual commonalities between people, but on the experience and interests
of some who have the position and ability to impose these terms and define
what they mean for themselves and others.”
448
A postura feminista crítica problematiza o universalismo e o essencialismo
implícitos no feminismo radical, ou seja, o enfoque em uma “essência feminina”,
que unifique toda mulher em uma única classe, negando as várias diferenças
(sociais, culturais, raciais, religiosas, econômicas, de orientação sexual etc.)
entre elas. Esta denúncia, originariamente surgida por parte das women of
colour, visa integrar as diversas diferenças na constituição de um sujeito
feminista. Assim, por exemplo, feministas pós-modernas como Rosi Braidotti
delineiam a possibilidade de novas imagens da subjetividade feminina:
“The recognition of a common ground of experience as women mutually
engaged in a political task of resistance to “Woman” – the dominant view of
female subjectivity – lays the foundation for new images and symbolization
of the feminist subject. If we take as our starting point sexual difference as
the positive affirmation of my facticity as a woman, working through the
layers of complexity of the signifier I, woman, we end up opening a window
onto a new genderized bond among different women.”
449
Braidotti denuncia também o entrelaçamento entre o pensamento em
binarismos e a perpetuação de uma dinâmica específica de poder:
“Misogyny is not an irrational act of woman-hating but rather a structural
necessity: it is a logical step in the process of constructing male identity in
opposition to – that is to say, rejection of – Woman. Consequently Woman
is connected to the patriarchy by negation.”
450
Deste modo, é criticada a ênfase extrema na dinâmica de poder do
patriarcado, imputando que, em vez de questioná-lo, o feminismo radical
“essencialize o imaginário falocêntrico”.
451
Ao final, como enfatiza Chapkis, este
discurso que visa a denunciar a dominação masculina, resulta em reificá-la:
“Male power is constantly reaffirmed even as it is denounced. In this way,
anti-sex and romanticist feminist rhetoric tends to reproduce the very
ideology it intends to destabilize.”
452
448
Strickland (1994), p. 265.
449
Braidotti (1994), p. 203, ênfases no texto original.
450
Ibid., p. 235.
451
Scoular (2004), p. 345: “By over-determining gendered power-dynamics critics
have noted that domination theory simply essentializes and fails to move outside the
phallocentric imaginary.”
452
Chapkis (1997), p. 20.
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Segundo a crítica pós-moderna, então, o enfoque extremo no fator crucial
e onipotente do patriarcado por parte das feministas radicais, leva-as a revocar
continuamente o poder masculino sobre o feminino, perpetuando assim o
imaginário da dominação, sem visionar uma saída a esta dinâmica. Assim, por
exemplo, a interpretação da prostituição como prática emblemática da opressão
feminina no patriarcado, não permite perspectivas alternativas, negando vozes
diferenciadas das trabalhadoras do sexo.
453
Ao mesmo tempo, esta perspectiva
teórica é criticada como reducionista por causa do entendimento de todas as
mulheres como potenciais prostitutas, como explica Andrijasevic:
“This reading of prostitution and men-women relations reduces women’s
sexuality to an expression of male dominance, imprisons sex workers (and
all other women too) within a system of engulfing patriarchal oppression,
and leaves no space for any form of agency that prostitutes might wield.”
454
Além disso, a perpetuação de um único tipo de relação na prostituição
(homem “poderoso” versus mulher “sem poder”) fixa as identidades do chamado
opressor e da vítima. Neste sentido, a atribuição da identidade fixa de “vítima”
para mulheres que se prostituem ou que são traficadas constitui a característica
principal desta abordagem, estabelecendo um discurso hegemônico sobre os
sujeitos que, assim, não encontram um espaço para manobra.
455
“Not only does this reify an image of the prostitute as sexual subordinate, it
also sustains the myths and norms of the sex industry, of potent men and
submissive women, rather than transforming it.”
456
Neste sentido, este discurso constrói um sujeito reduzido à sujeição à
própria opressão. “A mulher” - como também “a (potencial) prostituta” - é
estabelecida através dos binarismos do pensamento moderno: como
contraponto ao homem, como “outra” e desvio da norma, como vítima e aquela
que precisa ser libertada de séculos de opressão. Para que este discurso
funcione, é preciso a constituição de um “sujeito reprimido”, como o chama
Scoular.
457
O perigo deste discurso, então, está na perpetuação das dinâmicas
de poder em vez da erradicação destas mesmas e, portanto, em uma
colaboração com as estruturas de opressão, que, originariamente se visava a
eliminar.
453
Cfr. Agustín (2005b).
454
Andrijasevic (2004), p. 64.
455
Cfr. Agustín (2005c), p. 124.
456
Shrage (1994), p. 134 apud Scoular (2004), p. 345.
457
Cfr. Scoular (2004), p. 352.
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4.2.2. Luta pelo direito à escolha: prostituição como trabalho sexual
Na segunda onda feminista nos anos 1960, aparece em oposição a este
primeiro um segundo discurso com visões diferentes sobre a prostituição. Os
advogados dos direitos das trabalhadoras do sexo respondem à perspectiva
neo-abolicionista das feministas radicais, contestando a imagem da prostituta
como vítima passiva que deve ser resgatada. Eles lutam contra a convergência
da prostituição e do tráfico, e para um maior diferenciação na questão. A ênfase
está na prostituição como uma forma de trabalho e, por isso, o termo de
“prostituta” é substituído por “trabalhadora de sexo”.
458
Nesta perspectiva, a prostituição não é per se problemática, senão as
condições de trabalho das trabalhadoras do sexo. Estas deveriam ser
melhoradas para impedir a exposição das prostitutas a distintos abusos, e a uma
ainda maior estigmatização social.
459
Neste grupo aderem o Human Rights Caucus com a ONG principal
GAATW (Global Alliance against Traffic in Women) junto com organizações do
movimento das trabalhadoras do sexo.
460
Este bloco especifica que na
prostituição não se trate da venda do corpo, mas bem da venda de um serviço
sexual; o cliente não paga para ter acesso indeterminado ao corpo feminino,
senão para o tempo da trabalhadora do sexo.
461
Esta abordagem, então, se
contrapõe completamente à perspectiva neo-abolicionista, reivindicando uma
legalização da prostituição, ou seja, do trabalho de sexo nas suas inúmeras
variações.
462
Segundo Kathy Miriam, nesta abordagem é possível distinguir entre duas
perspectivas: o modelo economista e o modelo expressionista.
463
Enquanto no
primeiro modelo é enfatizado o trabalho comercial sexual como uma escolha
econômica legítima, no segundo modelo são enfatizados a liberdade e o direito
da autodeterminação sexual, ou seja, a livre escolha da prostituição como
profissão no âmbito erótico, o que está enfatizado por Wendy Chapkis:
“When erotic labour is viewed as work, it is transformed from a simple act
458
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 65 e Anderson & O’Connell (2003), p. 14.
459
Cfr. Outshoorn (2005), p. 145.
460
Como o International Committee for Prostitutes’ Rights (ICP) e o Network of
Sex Work Projects (NSWP). Cfr. Outshoorn (2005), p. 149 e Saunders (2005), p. 347.
461
Andrijasevic (2004), p. 64 e Chapkis (1997), p. 17 e 30.
462
Cfr. Outshoorn (2005), p. 145 e Agustín (2005a).
463
Miriam (2005), p. 5.
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of affirmation of man’s command over woman, and instead is revealed to
be an arena of struggle, where the meaning and terms of the sexual
exchange are vulnerable to cultural and political contestation.”
464
Estas perspectivas se referem não somente a demonização da
prostituição, à convergência errônea do tráfico com a prostituição, mas
especialmente aos efeitos do discurso abolicionista para as trabalhadoras do
sexo.
“Trafficking in women, when framed as the ultimate expression of violence
against women and equated with prostitution, has been a very effective
discursive tool against programs built from the perspective of sex workers
rights.”
465
Neste sentido, a proposta “solução” das neo-abolicionistas para o tráfico
humano através da erradicação da prostituição não somente é considerada
nenhuma solução, deixando de lado outras formas de tráfico, mas, além disso,
são problematizados os efeitos deste discurso como uma maior redução dos
direitos das prostitutas, e uma generalização da consideração de todas as
trabalhadoras do sexo que migram como vítimas do tráfico humano.
“Although the antitrafficking framework works to define some of these
migrants as victims, it also works to heighten border and police controls,
thus making migrant sex workers even more vulnerable to abuse.”
466
Assim, a reivindicação deste grupo baseia-se no fortalecimento dos
direitos das trabalhadoras do sexo, e em uma clara distinção entre a prostituição
forçada e aquela voluntária. Enquanto para as feministas radicais, toda forma de
prostituição é considerada forçada, aqui uma perspectiva mais diferenciada é
advogada, já que uma convergência entre a prostituição forçada e aquela
voluntária representa sérios problemas para esta abordagem. Este campo de
feministas considera, então, a questão do consentimento como parte integral do
trabalho sexual comercial.
467
Ao mesmo tempo, os sex workers reconhecem que
é possível que haja vítimas do tráfico no sentido de pessoas que são forçadas a
trabalhar em distintos setores (como na prostituição), mas que nem por isso
todas as trabalhadoras do sexo que cruzam fronteiras devem ser consideradas
464
Chapkis (1997), p. 57.
465
Saunders (2005), p. 354.
466
Ibid., p. 354.
467
Cfr. Piscitelli (no prelo), p. 3.
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vítimas do tráfico internacional humano.
468
Contudo, como coloca Chapkis, a
insistência na diferença entre a prostituição consensual e aquela forçada não é o
mesmo que dizer que toda prostituição voluntária necessariamente seja “livre”.
469
Igualmente concorda Doezema que o conceito de livre escolha não represente
um elemento útil no debate:
“There is no way to combat the anti-prostitution position that all prostitution
is forced by using their language and insisting that what I do is ‘freely
chosen’. If I say ‘I choose to do it because I need the money,’ well that’s
economic coercion. For every ‘free choice’ you can think up, they just point
out how it wasn’t entirely free. The idea that there are two distinct poles of
‘forced’ and ‘free’ is a false dichotomy. I mean who really freely chooses to
work at any kind of job?”
470
Neste sentido, é reconhecido que toda escolha seja de uma certa maneira
condicionada; não obstante disso, este grupo de feministas advoga a prostituição
como forma de trabalho que pode ser “escolhida” (nos limites possíveis), fazendo
parte do direito à autodeterminação sexual da pessoa.
Contudo, vários autores criticam a polarização dos debates, e mostram a
variedade de situações, que vão além da simples dicotomia entre força e
consentimento. As entrevistas de Laura Agustín com trabalhadoras do sexo que
poderiam ser consideradas traficadas, por exemplo, denunciam a integração
insuficiente da situação das migrantes, já que estes representam a maioria entre
as trabalhadoras do sexo.
471
Ela propõe uma diferenciação ampla de diversas
categorias de prostituição: aquela autônoma, semi-autônoma, semi-voluntária e
aquela coagida e/ou com elementos de escravidão.
472
O objetivo é de mostrar
que não existe um único regime de verdade e que, portanto, os esforços de
ajudar as pessoas traficadas deveriam se afastar das dicotomias socialmente
construídas no discurso contemporâneo sobre o tráfico humano internacional.
468
Outshoorn (2005), p. 147. A importância da coerção e do consentimento como
elementos chave para a definição do tráfico foi já explorada no primeiro capítulo em
relação com a elaboração do Protocolo de Tráfico.
469
Chapkis (1997), p. 52.
470
Idem. Trata-se de uma entrevista com Doezema do ano 1993.
471
Agustín (2005b), p. 96.
472
Ibid., p. 104.
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4.2.2.1. Escapar do estigma
A preocupação principal da perspectiva a favor das trabalhadoras do sexo
é de escapar do estigma social atribuído à práticas de sexo comercial. Para
alcançar tal objetivo, é possível empregar diversas estratégias, como mostra o
estudo de Rutvica Andrijasevic.
Um resultado da investigação desta autora é que as prostitutas
entrevistadas, na maioria das vezes, não se reconhecem como tal. A percepção
delas mesmas é de não serem “prostitutas verdadeiras”. Ela analisa as
dinâmicas que fomentam este entendimento, que outros interpretam como
estratégias de sobrevivência, e ela vê como uma “reflexão das crenças
subjetivas sobre a feminilidade”.
473
Andrijasevic analisa a forma como as
mulheres entrevistadas se ocupam do impacto da “objetificação” e da
“estigmatização” atribuídas a prostituta, e produzido pelas narrativas da
vitimização.
474
O chamado “estigma de puta” (whore stigma) demarca a separação entre
a feminilidade considerada normal e aquela desviante, tendo várias
conseqüências legais e sociais, como, por exemplo, a expulsão da comunidade
política.
475
O medo da estigmatização e da resultante condenação e exclusão
social é reconhecível nas respostas da maioria das entrevistadas.
Assim, um objetivo das trabalhadoras do sexo é de evitar fazer público o
próprio envolvimento na prostituição. Andrijasevic constata “o silêncio como
acordo tácito” que tem a ver com a dimensão política da sexualidade.
476
De
acordo com Julia O’Connell Davidson, para criar e manter comunidades, é
preciso perpetuar os valores deste grupo; e a quem pretende fazer parte delas
não é permitido transgredir as fronteiras de inclusão destas comunidades.
477
Por
este motivo, ou seja, para não se tornar outsiders, as entrevistadas mantêm em
segredo o próprio trabalho no âmbito do sexo comercial. Em um possível retorno
da mulher à própria família, também os membros desta não investigam a origem
dos inúmeros presentes.
“The tacit agreement of silence between the respondents, their families,
and other community members put the respondents in a precarious
473
Andrijasevic (2004), p. 110.
474
Cfr. ibid., p. 111.
475
Cfr. ibid., p. 115.
476
Cfr. ibid., p. 119.
477
O’Connell (1998) apud Andrijasevic (2004), p. 120.
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position, which could easily slip from their being members of a given
community to becoming ‘outcasts’ if respondents’ work in prostitution
became public.”
478
Deste modo, as fronteiras de gênero e de sexualidade estabelecidas na
comunidade não são questionadas – pelo menos aparentemente.
479
A autora
chama a atenção ao perigo que emana das campanhas contra o tráfico humano
nos países de origem. Estes visam a informar sobre os perigos de uma migração
não documentada, explicitando que uma migração feminina pode facilmente
levar à prostituição. Deste modo, existe o possível efeito de desmascarar o
“acordo tácito”, e de colocar as (ex-)prostitutas em situações difíceis.
“[M]aking prostitution publicly known in order to prevent trafficking might
actually foster the greater stigmatisation of prostitution and might exclude
young women from their communities.”
480
Uma forma para evitar a estigmatização e para negociar uma melhor
integração na sociedade de destino é através do estabelecimento de diversas
relações de amizade com pessoas do lugar, ou seja, oriundas do país de
migração. Assim, explica Andrijasevic, as relações das entrevistadas com
homens italianos não somente contestam o estigma moral reservado para
prostitutas, colocando as mulheres em uma posição de “não verdadeiramente
prostitutas”, mas também mitigam o cargo da ilegalidade e do sentimento de
não-pertencer.
481
A forma legal para negociar uma inclusão na sociedade de destino é
através da autorização de residência temporária, que no caso da Itália é prevista
para vítimas de tráfico. O artigo 18 do direito de imigração italiano introduzido no
ano 1998 (18 D.Lgs. 286/1998) estabelece que vítimas de uma exploração
severa, que estariam em perigo se retornassem ao próprio país, têm o direito a
um visto de residência e de trabalho para seis meses, com possibilidade de
renovação.
482
Esta lei, criada especificamente para pessoas traficadas, mas
aplicável para todos os migrantes em situação de exploração, implica a condição
de entrar em um programa de assistência social e de reintegração organizado
por ONGs ou por projetos comunitários. Embora a concessão não esteja
478
Andrijasevic (2004), p. 121.
479
Cfr. ibid., p. 125.
480
Ibid., p. 126.
481
Ibid., p. 130.
482
Cfr. ibid., p. 131.
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oficialmente relacionada ao fato da pessoa exploarada estar disposta a
denunciar seus próprios exploradores, várias organizações de direitos humanos
demonstram que uma concessão do visto sem perseguição dos criminosos é
bastante excepcional.
483
Andrijasevic, ao mesmo tempo que reconhece a
importância deste artigo, problematiza os elementos implícitos daquele, ou seja,
a institucionalização e a essencialização da retórica da vitimização, no sentido
de que para receber esta proteção legal, é necessário assumir completamente a
identidade da vítima e de condenar a prostituição.
“This disqualifies the possibility that for some women, prostitution might be
part of their migratory projects and establishes a normative narrative of
victimhood grounded in very particular forms and patterns of violence.”
484
Deste modo, resulta que este artigo fortalece ainda mais a tendência das
pessoas que trabalham na prostituição de se autodefinir como vítimas, já que
aquilo significa que não são consideradas “prostitutas verdadeiras”, evitando o
estigma reservado para estas. Neste sentido, o recebimento do visto é
interpretado como um “prêmio” para não ser uma “prostituta verdadeira”. “The
state ‘rewards’ women with residence permit for contributing to police’s fight
against organized criminality and for accepting a ‘proper’ woman’s role.”
485
Assim, nas respostas das entrevistadas é possível observar a manutenção do
binarismo prostituta versus “mulher normal”, colocando-se na última categoria
para serem reconhecidas como “vítimas”, pois isso representa a condição para
obterem o direito à proteção e à possível inclusão legal na comunidade política.
Uma outra forma de escapar do estigma relegado ao ser prostituta
representa a autodescrição como mãe ou/e esposa. Desta forma, a “mulher
normal” aceitada pela sociedade encontra a própria concretização na “mulher-
mãe” ou “mulher-esposa”, consolidando assim o imaginário tradicional do papel
feminino na sociedade.
486
Esta atribuição não tem nada a ver com um não-
reconhecimento da chamada realidade por parte da trabalhadora do sexo, como
explica a autora, mas que, em um entendimento pós-estruturalista da
constituição da subjetividade, pode ser entendido como parte de um imaginário
que fornece os pontos centrais de identificação e da formação da identidade
483
Anti-Slavery International (2002), p. 144 apud Andrijasevic (2004), p. 131.
484
Andrijasevic (2004), p. 131.
485
Cfr. Maluccelli (2001), p. 65 apud Andrijasevic (2004), p. 134.
486
Ibid., p. 141.
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através da negociação com a ordem sócio-simbólica dominante.
487
“While the upholding of the ‘whore stigma’ by women in prostitution points
to the coercive and disciplining impact of normative femininity, it also
illustrates its particular appeal for stigmatised migrant subjects for whom
‘falling out’ of the category of ‘proper’ femininity entails social and legal
exclusion. The impact of normative femininity is therefore both disciplining
and enabling.”
488
Neste sentido, a análise de Andrijasevic mostra que para escapar do
estigma moral atribuído à prostituta, as trabalhadoras do sexo entram no campo
discursivo da ordem social dominante e perpetuam o binarismo entre “mulher
normal” (preferivelmente mãe ou esposa) e prostituta como “mulher fora da
norma”. O auto-posicionamento na primeira categoria, empregando a lógica da
vitimização, libera-as do estigma social, reduz a ansiedade de uma refutação
cultural, e possibilita uma aceitação política.
489
Portanto, nos estudos sobre o
tráfico humano, reivindica a autora, deveria ser considerado o estímulo que a
categoria de vítima implica para sujeitos estigmatizados migrantes em busca de
uma inclusão social e legal. A auto-atribuição do estado de vítima, então, em
lugar de levar a interpretações da prova da passividade das mulheres, muito pelo
contrário, sugere Andrijasevic, deveria ser lido como resultado de um esforço e
de um processo ativo de negociação sobre a constituição da própria
subjetividade.
4.2.2.2. O sujeito resistente no discurso pós-moderno
Na teoria do feminismo radical, como vimos, são reproduzidos os
dualismos do pensamento moderno. Neste sentido, a prostituta é construída
como a “outra”, recordando a diferenciação entre a mulher-prostituta e a mulher-
Madonna.
490
Ao mesmo tempo, neste debate é perpetuada uma visão específica sobre
as mulheres do chamado Terceiro Mundo que é problemática. A constituição da
prostituta como categoria separada, que está “fora do lugar” está combinada
com o estabelecimento dela como terreno de projeções raciais para possibilitar,
deste modo, a construção de uma superioridade ocidental, implícita na noção da
“civilização”. A civilização, neste sentido, é um processo direcionado ao ideal de
487
Cfr. ibid., p. 145.
488
Ibid., p. 145. Cfr. também Braidotti (1994), p. 99.
489
Cfr. ibid., p. 147.
490
Cfr. Scoular (2004), p. 348.
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civilidade. A barbárie representa uma força constante em contrariedade à
civilização.
491
Esta antinomia faz parte de um pensamento evolucionista,
segundo o qual a civilização representaria o nível mais alto de desenvolvimento
humano, depois da selvageria e da barbárie, segundo os trabalhos de
antropólogos como Lewis Morgan.
492
O estabelecimento do paradigmático outro
se contrapõe ao conceito do self, fornecendo este com uma identidade
associada a uma superioridade cultural e moral ocidental.
493
Doezema identifica
este movimento nos discursos abolicionistas sobre a prostituta:
„In CATW-inspired feminist discourses, the ‚third world’ sex worker is
presented as backward, innocent and above all helpless – in need of
rescue. Through her, the superiority of the saving western body is marked
and maintained.”
494
No desejo de proteção das prostitutas como “identidades feridas” (injured
identities), como as chama a autora, os regimes de poder disciplinar sobre estes
são aumentados.
“Through CATW’s complicated process of identification/’othering’, however,
it is the discipline of certain bodies that is being sought in the name of
protecting all women.”
495
A constituição da prostituta como vítima, a estabelece como identidade que
se baseia na dor e no sofrimento que caracteriza um “sujeito–vítima”. Neste
sentido, como explica a autora, “identity based on injury cannot let go of that
injury without ceasing to exist”.
496
Por este motivo, é necessário criar e re-
estabelecer a categoria de prostituta como outra.
“The ‘third world prostitute’, oppressed by tradition and religion, exploited
by western patriarchal capitalism, carrying the baggage of the colonial
legacy of presumed backwardness and sexual innocence, is the perfect
figure to hold up to the world as the image of sexually subordinated
womanhood. Her victimhood, established by over a century of feminist,
abolitionist and colonialist discourse, is indisputable.”
497
A mirada das feministas ocidentais, identificada por Chandra Mohanty
como colonial gaze, então, constitui as mulheres não-ocidentais como
491
Cfr. Nasser (2005), p. 58.
492
Cfr. Yurdusev (2003), p. 66.
493
Cfr. Shapiro (1989).
494
Doezema (2001), p. 31.
495
Ibid., p. 33.
496
Ibid., p. 20.
497
Ibid., p. 33.
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desamparadas, sem poder, exploradas e incapaz de atuar, infantilizando-as.
498
Deste modo, através deste othering, elas mesmas são representadas como o
oposto, perpetuando uma visão eurocêntrica e neo-imperialista do mundo.
“[T]hese discourses once more constitute Third World peripheries as
spectacle, a product of the first World’s gratuitous othering and its
consumption of the ‘exotic’, ‘primitive’, and ‘degenerate’.”
499
A construção de um imaginário acerca do outro, que requer uma “correção”
por parte do ocidente - isto é, levar os “incivilizados” pelo caminho para a
civilização - é o cerne do discurso imperial. Ao mesmo tempo, este outro
significado ao próprio self. Assim, a posição das trabalhadoras de sexo é
reforçada pela crítica pós-colonial, que interpreta o discurso das abolicionistas
como resíduo do discurso imperial.
500
Este processo de othering pode ser rompido através de uma leitura pós-
moderna do sujeito da prostituta.
501
Dissolvendo as dicotomias é possível ir além
do dualismo da modernidade, no sentido de que a prostituição é considerada
nem inerentemente opressiva, nem subversiva, mas que o significado é
continuamente negociado.
Enquanto na abordagem das neo-abolicionistas existe uma busca da
“verdade” sobre a experiência da prostituta, para que esta represente a base da
ação política;
502
na perspectiva pro-sex workers, nem o entendimento da
sexualidade, nem o papel da trabalhadora do sexo são fixos. Aqui o significado
da prática sexual é definido pelo contexto e pode adquirir uma variedade de
sentidos.
503
Wendy Chapkis esboça a abordagem dos chamados “radicais do
sexo”:
“Practices of prostitution, like other forms of commodification and
consumption, can be read in more complex ways than simply as a
confirmation of male domination. They may also be seen as sites of
ingenious resistance and cultural subversion. For this reason, Sex Radical
feminists insist that the position of the prostitute cannot be reduced to one
of a passive object used in a male sexual practice, but instead can be
understood as a place of agency, where the sex worker makes active use
of the existing sexual order. Indeed, the Whore is often invoked […] as a
symbol of women’s sexual autonomy and, as such, as a potential threat to
498
Cfr. Mohanty (1988) apud Doezema (2000), p. 37.
499
Agathangelou (2002), p. 144.
500
Cfr. Outshoorn (2005), p. 147.
501
Cfr. Scoular (2004), p. 348.
502
Cfr. Doezema (2001), p. 28.
503
Cfr. Chapkis (1997), p. 28.
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patriarchal control over women’s sexuality.”
504
Aqui, o entendimento da prostituta como vítima é invertido, ou seja, ocorre
uma re-significação da trabalhadora do sexo, atribuindo-a força, autonomia e
poder. Neste sentido, é criado um imaginário poderoso que poderia se sobrepor
ao imaginário da prostituta como vítima estigmatizada, possibilitando, deste
modo, uma maior aceitação social e um melhoramento das condições de
trabalho desta. Esta estratégia de mudar o significado representa uma forma
comum feminista de re-valorizar algo depreciado, desafiando assim os
preconceitos da cultura dominante.
505
Um outro exemplo de que o significado não é fixo e de que as categorias
raciais e sexuais são continuamente construídas através do contexto é fornecido
por Ashwini Tambe, através de uma análise da posição de prostitutas européias
na ordem sexual na Índia colonial.
506
Ela elabora a atribuição de um status
diferente à prostituta estrangeira, e às conseqüências paradoxais dos primeiros
instrumentos de tráfico que, neste caso, em vez de combater o tráfico de sexo o
sustentaram, não interferindo nos interesses do Estado colonial indiano.
Na Índia, como em várias outras colônias, a prevenção de uma
miscigenação para preservar uma suposta “pureza racial” é parte do projeto
imperial britânico. Para evitar o sexo inter-racial entre homens britânicos e
mulheres indianas, prostitutas estrangeiras são aceitas com a condição de
submetê-las a um monitoramento estatal, ou seja, a uma “proteção coercitiva”.
Esta vigilância da prostituta, tratando-a como problema de uma população
específica tem a ver com os Atos de Doenças Contagiosas na Grã-Bretanha,
que são estendidos à Índia, e fazem parte do mecanismo regulador e de controle
do Estado, ou seja, da chamada biopolítica. O Estado colonial, então, produz
categorias de uma classificação racial para manejar a população das prostitutas,
pois “a desordem racial ameaça a governamentalidade colonial”.
507
Tambe constata na própria análise que na ênfase de um suposto judaísmo
das prostitutas européias e reconhecendo-as como “menos brancas”, elas são
marcadas como duplamente “outras”; e assim, através do anti-semitismo
504
Ibid., p. 29.
505
Cfr. Chapkis (1997), p. 26. Pensamos, por exemplo, no termo dyke que foi
utilizado para desvalorizar as lésbicas, e agora é transformado para expressar o orgulho
de ser gay.
506
Cfr. Tambe (2005), p. 161.
507
Tambe (2005), p. 167.
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corrente na época, colocadas na posição de outsiders subordinadas.
508
Deste
modo, é possível constatar que “[t]he colonial state’s gaze was trained on
selected subjects whom it individuated and controlled”.
509
Com o surgimento dos
primeiros instrumentos legais para combater o tráfico de pessoas, elas não são
incluídas na categoria de vítima do tráfico; não porque é avaliado que estejam
trabalhando voluntariamente na prostituição,
510
mas porque não são
consideradas suficientemente “puras”: “Bombay police declared that European
prostitutes in Bombay were not worthy victims of trafficking because they lacked
the prerequisite sexual purity.”
511
Apesar das organizações de pureza social e das convenções de tráfico no
começo do século XX consideraram prostitutas européias no estrangeiro a priori
como vítimas, o estudo de caso de Tambe mostra que as prostitutas européias
na Índia não entram neste discurso. Elas são utilizadas pelo Estado colonial para
alcançar o objetivo político de manejar o sexo inter-racial e, portanto, não está no
interesse do Estado a deportá-las. Deste modo, Tambe comprova a utilização da
(regulação da) prostituição por parte do Estado para estabelecer uma ordem
hierárquica e racista no Estado colonial. Assim, ao sujeito de prostituta ou
trabalhadora de sexo é atribuído um significado diverso dependendo do contexto
histórico, político e social.
Atrás deste entendimento está uma concepção pós-moderna - e mais
específicamente pós-estruturalista
512
- da construção do sujeito, que se
contrapõe às bases teóricas modernas das feministas radicais. Assim, como
explica Marysia Zalewski, neste entendimento, toda prática de atribuição de uma
508
Cfr. ibid., p. 165 e 166.
509
Foucault (1977/1979), p. 12.
510
E, como sabemos, isso não era ainda uma condição nas convenções da época.
511
Tambe (2005), p. 171.
512
Os pós-estruturalistas surgiram do estruturalismo, ancorado na lingüística
estrutural de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson na virada do século XX.
Saussure concebia a linguagem como um sistema de significação, vendo seus
elementos de uma forma relacional (signifier-signified). Contra a dicotomia no
pensamento estruturalista, dirige-se à crítica do pós-estruturalista Derrida, que questiona
este pensamento binário, demonstrando como oposições binárias sustentam sempre
uma hierarquia de um dos termos. Ele introduz o método da desconstrução para
denunciar a hierarquia e, deste modo, para possibilitar a reinscrição das teorias em
novas vias. Cfr. Zalewski (2000), p. 60 e 68.
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identidade fixa é considerada parte de um processo autoritário.
513
Nesta
perspectiva, as bases iluministas do pensamento moderno são seriamente
questionadas, reivindicando uma revisão dos projetos do Iluminismo. Este é
desmascarado por pensadores críticos como “mito de liberação por meio da
razão”.
514
Para Foucault, os projetos do Iluminismo chegaram historicamente a
um fim, levando á necessidade da modernidade de novos discursos e de novas
formas de legitimação científica.
515
A ênfase aqui está na (des-)construção do
significado e da subjetividade.
“Thought and meaning are constructed through language and there can be
no meaning outside language. It is the place where our sense of ourselves
and where our subjectivity is constructed. (…) [M]eaning is itself arbitrary
and unfixed and only given form by reference to other meanings.”
516
Enquanto para os teóricos modernos é ainda factível explicar “a realidade”
através da linguagem, os teóricos críticos pós-modernos questionam esta teoria
da correspondência, mostrando que não existe a possibilidade de captar algo
“real” sem referência aos modos de representação e de construção da assim
chamada “realidade”. Esta é produzida por práticas representacionais através do
discurso, institucionalizando uma forma de dominação, reafirmando a exclusão
de outras possíveis representações e, portanto, torna o investigador um cúmplice
de um sistema de poder e de autoridade. Precisamente para não se tornar
cúmplice de um sistema hegemônico é necessário - como explica Michael
Shapiro - “decodificar” fenômenos “naturalizados”, desvendar a produção
histórica do código epistemológico na qual estão cunhados, desmascarando a
relação entre práticas representacionais e política.
517
Unicamente deste modo é
possível dissociar-se de uma dependência de “agentes de conhecimento” que
representam o discurso hegemônico do conhecimento racional da modernidade.
Associado ao entendimento da arbitrariedade do significado, está o
questionamento da concepção moderna da existência de uma verdade única.
Aqui o interesse não está na análise de “reivindicações de verdade” (truth
claims), mas na investigação do porquê e do como certas crenças adquirem um
status verdadeiro e outras não, ou seja, a concentração está nos mecanismos
(de poder) que possibilitam o estabelecimento e o funcionamento de um regime
513
Zalewski (2000), p. 24.
514
Cfr. Braidotti (1994), p. 96.
515
Cfr. idem.
516
Zalewski (2000), p. 25.
517
Cfr. Shapiro (1989), p. 20.
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de verdade em detrimento de outros.
518
Um objetivo desta concepção é a
resistência a qualquer forma de categorização, aos aspectos totalizantes do
poder e às verdades excludentes.
519
As feministas pós-modernas, então, criticam as feministas modernas pela
insistência no estabelecimento de um sujeito fixo e claro como fundamento da
política de identidade e da reivindicação de direitos, que, embora tenha sido feito
com boa intenção pode levar a diversas injustiças.
520
Pode resultar, por exemplo,
na criação de exclusões em base de novas fronteiras identitárias, instigadas por
um essencialismo moderno cultural ou social.
521
Nesta concepção, a
desconstrução do signifier “mulher” é necessária, portanto, para evitar efeitos
normativos e exclusivos.
522
Uma nova forma de política feminista dever-se-ia
basear, como explicita Rosi Braidotti, em vez de em uma vitimização
compartilhada, em alianças estratégicas temporárias e móveis, fundamentadas
nos interesses em comum e na “afinidade” (affinity).
523
“The female subject of feminism is constructed across a multiplicity of
discourses, positions, and meanings, which are often in conflict with one
another; therefore the signifier woman is no longer sufficient as the
foundational stone of the feminist project.”
524
Neste sentido, uma característica central no pós-modernismo representa a
celebração da diferença, evitando a exclusiva inclusão do modernismo.
“Postmodernism rejects humanist appeals to a universal subjectivity or
human condition. It points out ‘the partial and excluding quality of the
supposedly inclusive ‘we’ of much humanist discourse’. Instead
postmodernism offers a theoretical celebration ofdifference’, partiality and
multiplicity. It opposes the search for coherence and a desire for ‘the right
answer’. It suggests instead the continuation of ‘conversations’.”
525
As feministas modernas, por sua vez, acusam as feministas pós-modernas
de comprometer os objetivos do feminismo, abandonando o sujeito em foco, e
tornando, assim, reivindicações de direitos baseados na política de identidade
impossíveis. Estas contestam a acusação, indicando que não é possível
518
Cfr. Zalewski (2000), p. 26.
519
Cfr. ibid., p. 27.
520
Cfr. ibid., p. 44.
521
Cfr. Mezzadra (2006), p. 88.
522
Cfr. Braidotti (1994), p. 104.
523
Ibid., p. 105.
524
Idem. Ênfase no texto original.
525
Strickland (1994), p. 266.
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determinar o que seja “a mulher”, pois não existe nenhuma “essência” feminina,
senão infinitas possibilidades de representação: “there is no original woman.”
526
Na concepção pós-moderna, então, “o significado de ‘mulher’ é uma questão de
negociação”
527
; e não implica, como sugerem as feministas radicais, a perda do
sujeito per se, mas, muito pelo contrário, a desconstrução da categoria
representa uma abertura a infinitas possibilidades, como explica Judith Butler:
“To deconstruct the subject of feminism is not to censure its usage, but, on
the contrary, to release the term into a future of multiple significations […]
paradoxically, it may be that only through releasing the category of women
from a fixed referent that something like ‘agency’ becomes possible.”
528
Ao mesmo tempo, as feministas pós-modernas advertem das
conseqüências negativas que surgem de definições fixas sobre o “ser mulher”:
“Women have tended to become subjects only when they conform to
specified and calculable representations of themselves as subjects, for
example as (good) mothers, wives or daughters. Subjects out of place can
suffer severe sanctions.”
529
Uma identidade fixa construída em base de certos elementos, como aquela
da opressão, portanto, reifica continuamente esta característica, levando, assim,
a uma reafirmação, em lugar de uma subversão, de estruturas de dominação.
Neste sentido, como elabora Scoular, é possível atribuir ao discurso feminista
radical a criação de um “sujeito reprimido”, enquanto o discurso feminista pós-
moderno visa à constituição de um “sujeito resistente” que desafia relações
hierárquicas, criando assim um espaço discursivo para uma teoria feminista
transformadora.
530
4.3. Coalizão perigosa: feministas radicais e direita religiosa
A perspectiva abolicionista fundamentada no entendimento teórico do
feminismo radical e nos discursos sobre o tráfico humano difundido
especialmente pela ONG CATW encontra apoiadores em grupos tipicamente
longe das visões feministas. Nos EUA ocorreu uma aliança incomum entre este
bloco de ativistas feministas e grupos de direita religiosa para combater o tráfico
internacional de pessoas, levando a implicações políticas perigosas.
526
Zalewski (2000), p. 41.
527
Tanesini (1994), p. 213.
528
Butler (1995), p. 50.
529
Zalewski (2000), p. 42.
530
Cfr. Scoular (2004), p. 352.
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No ano 2003, o Congresso dos EUA decidiu que cada organização que
recebe fundos do governo americano deve declarar não promover ou advogar a
legalização da prostituição.
531
No mesmo ano, o Presidente dos Estados Unidos,
George W. Bush, condena o tráfico internacional de pessoas como uma forma
contemporânea de escravidão”
532
, e o relaciona, em uma fala para a Assembléia
Geral das Nações Unidas, à guerra contra o terrorismo.
533
A relação entre o
tráfico e a prostituição é explicitada em uma diretiva presidencial que constata:
“prostitution is inherently harmful and dehumanizing, and fuels trafficking in
persons, a form of modern-day slavery”.
534
Nesta perspectiva, o tráfico e a prostituição são práticas inerentemente
exploradoras, ou seja, uma forma de violência masculina contra mulheres, e
devem ser combatidas em conjunto. Este pensamento está conforme a
concepção teórica do grupo de feministas radicais organizadas entorno da ONG
CATW, e mostra que o trabalho deste grupo teve grande influência na política de
anti-tráfico norte-americana.
535
Contudo, esta influência marcante não aconteceu
sem o apoio de outros grupos.
Vários grupos religiosos, na maioria evangélicos, segundo Berman,
exercem uma influência poderosa sobre a Casa Branca.
536
Eles são
responsáveis por 40 por cento dos votos nas eleições de 2000, e também são
decisivos para a reeleição de Bush no ano de 2004.
537
Uma reivindicação central
destes cristãos evangélicos é o combate ao tráfico internacional com propósito
de exploração sexual, pois este fenômeno representa, segundo eles, a
decadência dos valores americanos e da moral em geral, já que assumem que a
mera existência da prostituição se opõe ao sistema de valores cristãos, como
explica a autora:
“These groups believe that the most effective means to stop trafficking is to
end prostitution, reinforce the traditional family, engender abstinence, and
rescue women from risky, post-1960 norms like work outside the home.”
538
Neste sentido, o combate ao tráfico possibilita a estes grupos a fortalecer
531
Cfr. Berman (2006), p. 269.
532
Bush (2002), p. 231.
533
Miller (s.d.).
534
US Department of State (2002) apud Berman (2006), p. 270.
535
Cfr. Berman (2006), p. 271.
536
Cfr. ibid., p. 275.
537
Idem.
538
Ibid., p. 276.
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as próprias posições ideológicas, reivindicando a criminalização de uma
sexualidade não em conformidade com as normas cristãs.
539
Neste
entendimento, a posição da religiosa direita assemelha-se à lógica discursiva
das feministas radicais que lutam contra a inclusão de uma diferenciação entre
tráfico e prostituição nos acordos internacionais.
O contato é estabelecido nos anos 90 por grupos conservadores religiosos
que entram em contato com as abolicionistas para criar uma campanha contra o
tráfico e a prostituição.
540
Com o apoio de vários políticos norte-americanos, esta
coalizão ganha rapidamente um papel significante no debate público e na política
norte-americana contra o tráfico. Esta aliança teve uma influência marcante, por
exemplo, na elaboração da lei de proteção das vítimas do tráfico (Trafficking
Victims Protection Act, TVPA), como também na estrutura do Escritório
Americano do Departamento de Estado para Monitorar e Combater o Tráfico de
Pessoas.
541
A semelhança entre as duas lógicas, então, ajuda a fortalecer esta
aliança perigosa.
A crítica a esta coalizão refere-se ao monopólio da constituição de um
“regime de verdade” sobre o assunto, no sentido de que perspectivas que vão
além da convergência entre tráfico e prostituição, reivindicando uma maior
diferenciação do assunto (como vozes de trabalhadoras do sexo, migrantes,
pessoas traficadas etc.) são excluídas do debate público.
“[T]he totalizing feminist/Christian construction of the issue has disallowed
these other perspectives in favour of one that erases the ways in which
women may make decisions to move and to work, including sex work.
Taken together, this association/conflation may prevent legislation and
policy from adequately protecting the needs of human trafficking victims,
irrespective of the industry involved, and protecting human rights as a
whole.”
542
Outra conseqüência deste debate é o empobrecimento do entendimento
público sobre o tráfico, no qual também a mídia contribui de forma impactante.
543
Especialmente as implicações concretas políticas representam motivos de
preocupação. Assim, várias organizações de direitos humanos (como os
Médicos sem Fronteira e a International Human Rights Law Group) que não
condenam explicitamente a prostituição e o tráfico, são excluídas da lista dos
539
Cfr. ibid., p. 278.
540
Ibid., p. 283.
541
Idem.
542
Ibid., p. 285.
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que recebem fundos do governo norte-americano.
544
Também organizações que
não trabalham diretamente sobre o tráfico são coagidas a se expressar sobre o
assunto. Deste modo, por exemplo, organizações ativas na saúde pública que
recebem fundos da USAID (United States Agency for International Development)
são obrigadas a declarar que a “prostituição não representa uma escolha de
trabalho”, senão são excluídas dos programas financiadores.
545
Ao mesmo
tempo, a administração de Bush reivindica a promoção da abstinência sexual em
lugar do uso do preservativo para prevenir a difusão de HIV/AIDS nas páginas
web das organizações receptoras de fundos.
546
Melissa Ditmore comenta aquilo
como uma “agenda política moral imoral”.
547
“It is unfortunate that the U.S. is sacrificing efficacy for morality in the new
funding. (…) This marks a willingness to sacrifice lives to moralizing about
sexual activity.”
548
Estas diretivas são criticadas também por serem protecionistas, e ao
mesmo tempo, por negligenciarem outras formas de tráfico que não incluam a
exploração sexual. Assim, a análise simplista do tráfico como problema moral
leva a implicações políticas perigosas e provoca a indignação das feministas que
se opõem à perspectiva abolicionista: “It remains deeply upsetting to see
feminists promote policy that purports to protect women but is in fact detrimental
to women.”
549
De igual forma reclama Berman sobre a coalizão incomum,
constatando que os entendimentos morais que dominam o trabalho sobre tráfico
em lugar de fortalecer e de proteger as pessoas traficadas, levam a uma maior
vigilância de mulheres que viajam ou de migrantes em geral, como também a um
aumento de controle e do estigma das prostitutas.
550
Os relatórios anuais sobre o tráfico (Trafficking in Persons Reports, TIP)
representam outra parte do combate norte-americano ao tráfico. Nestes, todos
os países do mundo são categorizados de acordo com os próprios esforços para
lutar contra o fenômeno. Os países na primeira categoria são considerados os
que estão mais de acordo com os padrões norte-americanos; os da segunda já
543
Cfr. ibid., p. 290.
544
Cfr. ibid., p. 290 e Ditmore (2003), p. 1.
545
Berman (2006), p. 290.
546
Idem e Ditmore (2003), p. 2.
547
Ditmore (2003), p. 5. Cfr. também Saunders (2005), p. 352.
548
Ditmore (2003), p. 1.
549
Ibid., p. 3.
550
Cfr. Berman (2006), p. 293.
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estão fazendo bons esforços para alcançá-los, mas ainda precisam trabalhar; e
os da terceira categoria devem sofrer sanções porque não estão em
conformidade com os padrões indicados. Como mostra Kemala Kempadoo, é
interessante constatar que os países na terceira categoria correspondem quase
todos ao chamado “eixo do mal”, tratando-se de países que o Departamento de
Estado etiqueta de Estados “perigosos” ou “terroristas”.
551
Assim, países como a
Coréia do Norte, o Irã, o Sudão, o Afeganistão, a Cuba e a Venezuela, além de
ser rotulados como Estados “perigosos”, também são classificados como
indiferentes no combate ao tráfico de pessoas, o que, na lógica norte-americana,
fornece os EUA com supostos motivos para sanções ou até intervenções
políticas nestes países. As sanções incluem a negação de fundos, a suspensão
de assistência não-humanitária, e a solicitação aos bancos de desenvolvimento
e ao FMI que neguem empréstimos.
552
“These sanctions appear to have less to do with fighting human trafficking,
and more to do with furthering a larger U.S. foreign policy agenda with
which some of these groups disagree. (…) Consequently, U.S.
antitrafficking policy ceases to be about protection of, or social assistance
to, victims of trafficking and instead seems to be just as much about gaining
control over the larger US foreign policy agenda.”
553
Neste sentido, a crítica aponta para os lados problemáticos da aliança
entre as feministas radicais e a direita religiosa, que têm impacto na política
norte-americana. Ao final, em lugar desta aliança conceder uma maior proteção
às vítimas do tráfico, fornece até supostas justificativas para intervenções
militares dos EUA, que, por sua vez, aumentam de novo o tráfico, dando, assim,
início a um círculo vicioso.
554
4.4. Conclusão
Neste capítulo pretendia delinear o debate sobre o tráfico como problema
moral, apresentando os dois discursos centrais que se opõem entre si junto com
os fundamentos teóricos respectivos.
O primeiro grupo, que esbocei é aquele das neo-abolicionistas em torno da
ONG CATW, que se fundamenta na teoria do feminismo radical. Para este grupo
551
Kempadoo (2005), p. 74.
552
Presidential Determination (2004) apud Kempadoo (2005), p. 73.
553
Berman (2006), p. 292.
554
Cfr. Berman (2006), p. 292.
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existe uma convergência entre a prostituição e o tráfico humano; as duas
práticas são interpretadas como violência contra “a mulher”, como causa e
indicador da subordinação da mulher no sistema patriarcal. Elas reivindicam a
penalização da demanda de sexo comercial e a abolição da prostituição em
geral, que, segundo elas, solucionaria também o problema do tráfico.
Na perspectiva destas feministas modernas, o sujeito de preocupação
principal é “a mulher”, que deve ser resgatada de séculos de atribuição misógina
e patriarcal. “A mulher” é constituída através da experiência em comum da
opressão no patriarcado. Também a constituição da prostituta como vítima, a
estabelece como identidade que se baseia na dor e no sofrimento que
caracteriza um “sujeito–vítima”. Para que este discurso funcione, então, é
necessário re-estabelecer a categoria de prostituta como vítima, que deve ser
resgatada ou como outra, que deve ser “civilizada”; dando, assim, um significado
ao próprio self.
Deste modo, o sujeito neste discurso se baseia em uma vitimização em
comum, e, portanto, pode ser interpretado como um sujeito “reprimido”, que é
revocado cada vez que este discurso é adotado. Neste sentido, observa a crítica
a esta postura teórica, em lugar de erradicar as dinâmicas de poder, este
discurso eurocêntrico e neo-imperialista as reifica. A postura crítica, então,
propõe o rompimento desta dinâmica através de uma leitura pós-moderna do
sujeito (da prostituta). Através da dissolução das dicotomias é possível ir além do
dualismo da modernidade, no sentido de que a prostituição é considerada nem
inerentemente opressiva, nem subversiva, mas que o significado é
continuamente negociado.
Em oposição ao primeiro discurso aparece um segundo com visões
opostas sobre a prostituição, lutando por mais direitos das trabalhadoras do
sexo. Neste grupo, que se coloca em torno da ONG GAATW, ou seja, do Human
Rights Caucus, o problema não representa a prostituição em si, mas as
condições de trabalho, os abusos e o estigma social das trabalhadoras do sexo.
Neste sentido, opõem-se à convergência entre a prostituição e o tráfico,
insistindo que unicamente uma prostituição forçada deveria ser entendida como
tráfico. Portanto, nesta visão, a solução visada por parte das abolicionistas, de
erradicar todo tipo de trabalho sexual comercial, não somente constitui nenhuma
solução para o tráfico, deixando de lado outras formas desta prática, mas ainda
agrava a situação frágil e vulnerável das trabalhadoras do sexo. Neste sentido, o
grupo pro sex workers, reivindica uma distinção entre prostituição e tráfico e um
fortalecimento dos direitos das trabalhadoras do sexo.
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112
O interesse pós-moderno está na desestabilização de categorias
aparentemente fixas e na desconstrução do sujeito em si. Neste sentido, o
feminismo pós-moderno denuncia a postura do feminismo radical, porque
fundamenta a própria política no estabelecimento de uma identidade fixa,
construída em base da opressão. Neste sentido, em contraponto ao “sujeito
reprimido” do discurso moderno, o discurso feminista pós-moderno visa através
da criação de um espaço discursivo aberto às transformações e a desafiar as
hierarquias à constituição de um “sujeito resistente”, que é modificado segundo o
contexto e as negociações mantidas.
As feministas radicais abolicionistas, no entanto, difundem o próprio
discurso de salvação, entrando em coalizões surpreendentes para alcançar os
próprios objetivos. Assim, nos EUA, elas entraram em uma aliança com a direita
religiosa, tendo um impacto significativo na política contra o tráfico humano
norte-americano. As duas lógicas discursivas têm como objetivo em comum a
erradicação da prostituição: as feministas radicais defendem esta erradicação
porque a prostituição representaria o “epítome da subordinação da mulher no
patriarcado”; e os evangélicos, porque lutam contra a imoralidade na sociedade,
e concebem a prostituição como a expressão da decadência dos valores
(americanos).
555
Esta aliança é criticada por utilizar o assunto do tráfico para difundir de
melhor forma o próprio entendimento moral sobre as práticas de sexo comercial.
Neste sentido, a coalizão é acusada por sacrificar a elaboração de programas
efetivos de anti-tráfico a uma “agenda política moral imoral”, levando a uma
maior vigilância de mulheres que viajam ou de migrantes em geral, como
também a um aumento de controle e do estigma das prostitutas, em vez de
fortalecer e de proteger as pessoas traficadas.
555
Cfr. Berman (2006), p. 287.
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113
5 O tráfico como problema de migração
“Traffickers fish in the ‘stream of migration’.”
556
“Trafficking in women has to be seen in the larger context of illegal migration
flows and analysed against the backdrop of worldwide economic and political
change.”
557
5.1. Introdução
A perspectiva que interpreta o tráfico internacional de pessoas como um
problema de migração, o associa com a migração forçada e não-documentada.
De acordo com um estudo das Nações Unidas (ONU) existem quatro formas de
migração: a migração permanente, a migração laboral, o refúgio e a migração
não-documentada.
558
Segundo este estudo, o tráfico humano internacional faz
parte da última categoria.
Concebido como um problema da migração não-documentada, então, esta
abordagem focaliza nos mecanismos que combatem esta para solucionar a
questão do tráfico, ou seja, combater o tráfico resulta em uma luta contra a
migração “ilegal”; e a prevenção do tráfico significa evitar que potenciais
migrantes “ilegais” entrem no país.
559
A associação do tráfico com formas de
migração não-documentada faz uma conexão com a ilegalidade e com a
criminalidade.
560
Deste modo, a imagem do tráfico como ameaça à segurança
nacional é reforçada, e a deportação da vítima do tráfico junto com políticas de
migração mais estritas são consideradas as soluções a este problema.
A crítica a esta postura baseia-se na denúncia da reversão do problema,
no sentido de que vítimas são transformadas em criminosas e tratadas como
estrangeiras “ilegais” (illegal aliens), enquanto o Estado é representado como
vítima precisando de proteção contra os movimentos da migração não-
556
Jagori (2005), p. 160.
557
Van Impe (2000), p. 123.
558
Cfr. UN (1998), p. 6 e 7.
559
Cfr. Wijers (s.d.).
560
Cfr. Derks (2000), p. 11.
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documentada.
561
O entendimento do Estado soberano que estabelece as
próprias leis de forma “legítima”, porém restringindo as “obrigações” unicamente
aos próprios cidadãos, é contestado não somente por se basear numa
concepção estática e questionável do Estado como objeto de segurança e de
garantia da ordem, mas também por fundamentar a atribuição de direitos na
constituição e exclusão de um outro (como o migrante ou a pessoa traficada).
Assim, identifico a abordagem do tráfico como problema de migração servindo
mais para proteger os objetivos do Estado que do indivíduo, pois as “propostas
de solução” se limitam a leis migratórias mais estritas, que, por sua vez,
restringem ainda mais as possibilidades de migração legal.
562
Ao final é possível constatar que este discurso resulta em um agravamento
do tráfico, utilizando estratégias repressivas e uma lógica discursiva parecida
com os discursos analisados anteriormente. Aqui, em lugar de suprimir o crime
organizado ou a prostituição, visa-se acabar com a migração “ilegal”. Contudo,
este objetivo não é alcançado por meio de uma política restritiva de migração,
muito pelo contrário, criando as condições para a existência do tráfico,
conduzindo ainda mais pessoas aos braços de traficantes.
Neste capítulo pretendo delinear a abordagem que interpreta o tráfico
como problema de migração, e chamar a atenção aos efeitos deste discurso,
que utiliza a questão em discussão à maneira de um veículo para a expressão
de outras preocupações como do combate à migração “ilegal”. Antes de
tematizar a suposta “crise das fronteiras”, que coloca em questão o papel
convencional do Estado como garantidor da ordem, chamando para uma maior
proteção contra práticas que infligem a esta (como o tráfico); esboço os
possíveis motivos da migração, para depois seguir com a elaboração das
práticas discursivas que produzem o migrante como outro, que deve ser
controlado, possibilitando, assim a instalação de regimes de exclusão e de
discriminação. Na minha argumentação, há uma lógica discursiva racial inscrita
em este discurso, possibilitando a justificativa do tratamento de exclusão e de
discriminação do migrante como outro; como também de potenciais vítimas do
tráfico.
561
Cfr. ibid., p. 12.
562
Wijers (s.d.), cfr. também Berman (2003).
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5.2. O sonho da migração
“Whether considered trafficked or not, all arrive [...] because of a dream: a dream
to feed themselves, and a dream to have more options in life.“
563
A crítica aos discursos convencionais sobre a questão do tráfico humano
internacional como problema de migração coloca em discussão a distinção nítida
entre a migração forçada e a voluntária. Nos estudos de migração tradicionais, a
definição de tráfico como uma forma involuntária de migração enfatiza os
elementos de força e de engano, concebendo o tráfico em termos da
manipulação praticada por terceiros.
564
Assim, de acordo com o Protocolo de
Tráfico, no tráfico – e especificamente na primeira fase deste, ou seja, no
recrutamento - estão implícitos os elementos do engano, da violência e da
coação da pessoa traficada.
565
Na ausência destes fatores, então, não se trataria
de tráfico de pessoas.
Contudo, diversas análises contestam esta concepção do tráfico como
exemplo típico da migração forçada, e desenham operações de tráfico surgindo
de diferentes formas de migração voluntária, como, por exemplo, da migração
laboral.
566
Andrijasevic, por exemplo, investiga os diferentes motivos das
entrevistadas a migrar, e conclui com uma crítica ao entendimento dicotômico da
migração voluntária versus involuntária ou forçada.
“The vagueness of the notion of deception, in combination with force,
coercion and exploitation as core/distinctive components of trafficking
establish an oversimplified and ultimately erroneous demarcation between
voluntary and involuntary processes of migration.”
567
Neste sentido, a autora reivindica a importância de reconhecer a
possibilidade de exploração surgida também de processos de migração legais.
568
Além disso, no processo migratório se misturam elementos legais com ilegais.
“The conflation of trafficking with undocumented migration sustains and
strengthens the representation of trafficking as a form of illegal migration. It
relies on an over-simplified distinction between ‘illegal’ and ‘legal’ migration.
(…) Trafficking may have legal elements such as legally obtained visas.
Conversely, legal migratory processes may involve illegal components like
requests for high fees advanced by the agencies or even illegal payments
563
Ahmad (2005), p. 211.
564
Andrijasevic (2004), p. 30.
565
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000), artigo 3(a), p. 55.
566
Andrijasevic (2004), p. 30.
567
Ibid., p. 39.
568
Idem.
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asked by Consulates.”
569
Assim, por exemplo, a história de duas entrevistadas por Andrijasevic,
Oksana e Ioanna da Ucrânia, que viajaram juntas, mostra que uma combinação
entre elementos “legais” e “ilegais” é possível: elas chegaram na Itália com um
visto de turista válido, organizado por redes de traficantes, e trabalharam em
Bologna de forma “ilegal” na prostituição.
570
Na mesma trilha argumentam John Salt e Jeremy Stein:
“Trafficking ought not be considered simply a form of illegal migration, for
traffickers clearly exploit legal as well as illegal methods and channels of
entry, thus blurring conceptual distinctions between legal and illegal
migration.”
571
Andrijasevic questiona ainda a imagem paradigmática linear do processo
de tráfico: o entendimento de que a exploração esteja unicamente presente no
resultado da migração ignora a variedade de formas de tirar proveito das
pessoas traficadas já durante a migração por parte de um grande número de
indivíduos.
572
Assim, as entrevistas dela mostram, por exemplo, que pessoas da
Moldávia e da Ucrânia viajando para a Itália sem documentos válidos, tinham
que pagar em cada cruzamento de fronteira uma soma para os traficantes,
sendo transferidas de um agente para outro.
573
Com falta de dinheiro, tinham
que pagar aos agentes que as levaram, com trabalho sexual ao longo do
percurso.
574
“Hence, my work suggests that stricter immigration controls adopted to curb
trafficking increase the costs of ‘doing business’, raise the value of migrants
as ‘commodities’, and ultimately serve the economic interest of third
parties.”
575
Ao mesmo tempo de que a prática de traficar pode envolver uma atividade
de migração “ilegal”, ou seja, não-documentada e irregular, é fácil confundi-la
com a prática de contrabando (smuggling).
576
Na literatura sobre o tráfico é
569
Ibid.,p. 46.
570
Cfr. ibid., p. 34.
571
Salt e Stein (1997), p. 484.
572
Andrijasevic (2004), p. 40.
573
Ibid., p. 191.
574
Idem e cfr. também p. 41 e 42.
575
Idem.
576
Cfr. Salt e Stein (1997), p. 470.
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117
repetidamente tematizada a dificuldade de distinguir as duas práticas.
Assim, por exemplo, Marjan Wijers reivindica uma melhor distinção entre
as duas práticas, enfatizando que enquanto contrabandear se refere à facilitação
da migração “ilegal” e, portanto, constitui uma ofensa ao Estado; o tráfico é
definido de acordo com o Protocolo de Tráfico como “o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas,
recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação”, e, deste
modo, representa uma violação dos direitos humanos do individuo.
577
John Salt,
por sua vez, explica a diferença assim:
“[S]muggling is clearly concerned with the manner in which a person enters
a country and with involvement of third parties who assist him/her to
achieve entry. Trafficking is a more complicated concept, in that it requires
consideration not only of the manner in which a migrant entered the country
but also his/her working condition and whether he/she consented to the
irregular entry and/or these working conditions.”
578
No entanto, vários autores questionam a possibilidade de uma nítida
distinção entre as duas práticas, constatando uma sobreposição entre as duas.
Assim, por exemplo, Jaqueline Bhabha e Monette Zard problematizam esta
dicotomia, que, segundo elas, tem o efeito de reforçar a constituição de dois
sujeitos: criando, por um lado, um “sujeito-cúmplice” no contrabando, que deve
ser considerado culpável e criminoso; e gerando, por outro lado, um “sujeito-
vítima” no tráfico, que merece a proteção, pois não decidiu a migrar
ilegalmente.
579
Elas mostram que na prática é difícil encontrar casos “puros” de
contrabando ou de tráfico, constatando que a maioria de estratégias de migração
desafiam esta simples categorização.
580
A distinção entre as duas categorias se concentra muitas vezes na
constatação de uma coação ou de um consentimento a migrar. Mas, como
sustentam críticos, estes fatores resultam em indicadores insuficientes para uma
classificação. Assim, por exemplo, enquanto no começo do projeto da migração
é possível que haja alguma forma de consentimento a viajar, este, ao longo do
tempo, pode mudar, porque também as circunstâncias mudam. Então, de acordo
com o Protocolo de Tráfico e aquele de Contrabando, enquanto uma pessoa que
“consente” no início da viagem seria considerada um migrante contrabandeado e
577
Wijers (s.d.), p. 5.
578
Salt (2000), p. 33.
579
Bhabha e Zard (2006), p. 6.
580
Ibid., p. 7.
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118
“ilegal”, alguém que é “forçado a viajar” entraria na categoria da vítima de tráfico.
“States tend to favour looking at consent at the point of departure, as an
indication of the migrant’s ‘true intentions’; right advocates favour the time
of arrival or stay, as an indication of the migrant’s needs. When should the
determination of category be made and by whom?”
581
Assim, enquanto a determinação do momento do consentimento
representa um problema, também uma clara definição da coação resulta difícil.
De acordo com o Protocolo de Tráfico, a coação não é interpretada unicamente
como o uso (físico) de força, mas também como “abuso de autoridade” ou de
uma “situação de vulnerabilidade (...) para obter o consentimento de uma
pessoa”.
582
Neste sentido, como elaboram Bhabha e Zard, a pobreza, a fome, a
doença, a falta de educação e o deslocamento poderiam teoricamente constituir
circunstâncias coercivas que levam a uma posição de vulnerabilidade. A
possibilidade desta ampla interpretação teria por conseqüência a consideração
de vários casos de contrabando como casos de tráfico.
583
“[T]rafficking may sometimes involve an element of what has come to be
defined as smuggling, particularly when it uses the same routes, forged
documentation and organizational networks as the smugglers.”
584
Neste sentido, uma diferenciação entre as duas práticas é considerada
difícil, levando alguns autores, como John Salt, a reivindicar incluir na definição
do tráfico a prática de contrabando, ou seja, utilizar o termo tráfico mais
genericamente, incluindo também formas de atravessar fronteiras de maneira
“ilegal”.
585
Assim, as temáticas relacionadas com o tráfico e o contrabando desafiam
as teorias migratórias tradicionais, no sentido de que dificultam a diferenciação
entre movimentos forçados ou “ilegais” e aqueles voluntários ou “legais”, e ainda
problematizam a questão do consentimento.
586
O tráfico, além de ser utilizado como exemplo paradigmático da migração
forçada, é interpretado tradicionalmente como o resultado de fatores estruturais
econômicos. O problema estrutural de realidades sociais e econômicas distintas,
chamadas “a fossa entre os ricos e os pobres”, é convencionalmente identificado
581
Idem.
582
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000), artigo 3.
583
Bhahba e Zard (2006), p. 7.
584
Salt (2000), p. 34.
585
Cfr. idem.
586
Cfr. ibid., p. 35. Cfr. também o segundo capítulo do presente trabalho.
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como o maior motivo que estimula pessoas a emigrar de países chamados em
desenvolvimento para países chamados desenvolvidos.
587
De acordo com Saskia Sassen, as condições estruturais que levam às
várias formas de migração (inclusive ao tráfico) são imbricadas com as
dinâmicas constitutivas da globalização.
588
Neste sentido, como elabora
Eleonora Kofman, o processo da globalização conduz a um aumento da
interdependência, da integração, mas também a uma elevação do acesso
desigual à mobilidade.
589
Esta chamada “globalização da migração”, como
Kofman denomina este processo, constitui um aumento dos sistemas de
migração diversificados e converte a mobilidade em um fator poderoso,
produzindo um sistema de mobilidade hierárquica em um sistema estratificado
de Estado-nação.
590
Desta forma, um suposto “mundo sem fronteiras”, na prática
resulta em um “mundo territorializado e guetificado”.
591
Assim, por exemplo,
Berman fala que alguns são “freer to move than others”, se referindo ao sistema
de Schengen na União Européia e aos direitos de mobilidade diferentes entre
cidadãos europeus e “outros”.
592
Sassen, por sua vez, denomina os diversos circuitos alternativos de
migração que compartilham o elemento de gerar lucro às custas dos menos
favorecidos de countergeographies of globalization, e identifica a formação de
mercados globais, a intensificação de redes transnacionais e trans-locais e o
desenvolvimento de tecnologias de comunicação como fatores constitutivos
destes.
593
Ela enfatiza nestas countergeographies a combinação de elementos
que são integrados na economia regular e naquela irregular (shadow
economy).
594
A autora destaca ainda a importância destes circuitos - que de
587
Cfr. Van Impe (2000), p. 123.
588
Sassen (2003), p. 59.
589
Kofman (2004), p. 650.
590
Ibid., p. 645.
591
Cfr. Vainer (2001), p. 182.
592
Berman (2003), p. 53. O Acordo de Schengen é uma convenção entre países
europeus sobre uma política de imigração comum e controle compartilhado de fronteiras.
O acordo foi originalmente assinado em 1985 e seu objetivo era abolir postos fronteiriços
dentro da área. Da chamada Schengenlândia fazem parte 23 nações da União Européia
(exceto Irlanda e Reino Unido) mais outros três países não-membros da União Européia,
Islândia, Noruega e Suíça. Cfr. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_de_Schengen>.
593
Sassen (2003), p. 59.
594
Cfr. idem.
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120
crescente maneira são compostos por mulheres - especialmente para governos.
“These circuits can be thought of as indicating the – albeit partial –
feminization of survival, because it is increasingly women who make a
living, create a profit and secure government revenue.”
595
Para Kofman é importante enfatizar a prevalência de mulheres nestes
circuitos de countergeographies da globalização, pois são elas que asseguram a
sobrevivência das próprias famílias e das economias nacionais.
596
Neste sentido,
as teorias migratórias convencionais são criticadas pela falta de uma ênfase em
fatores como classe, raça e gênero.
597
Existe uma literatura substancial que
focaliza na migração do ponto de vista de gênero, e constata ao longo do tempo,
uma “feminização da migração internacional”,
598
isto é, um aumento na
percentagem de mulheres que decidem a migrar. Para Jill Krause, o tráfico
reflete a desigualdade de gênero, pois representaria o resultado da chamada
“feminização da pobreza”, relacionada com a “feminização do trabalho” que
acompanha a reestruturação global.
599
Contudo, nos estudos tradicionais
continua a perpetuação da imagem dos homens migrantes como aventureiros e
das mulheres migrantes como possíveis vítimas do tráfico.
600
„[M]igrant women are routinely characterized as pushed, obligated, or
coerced, even when they travel for the same reasons as men: to expand
their horizons and get ahead through work.”
601
Assim, na literatura convencional sobre migração, além de não diferenciar
entre os distintos impactos para os gêneros, também prevalece a ênfase na
explicação dos motivos de migrantes em termos econômicos. Deste modo,
então, distingue-se entre os fatores de oferta (pull factors) que atraem para
imigrar (como o desenvolvimento, a prosperidade e a possibilidade de trabalho),
e os fatores de demanda (push factors) que estimulam para emigrar (como
condições econômicas, sociais e políticos desfavoráveis no próprio país).
602
A
combinação destes fatores estaria presente na prática de tráfico de pessoas.
603
595
Ibid., p. 61.
596
Kofman (2004), p. 649.
597
Cfr. Uçarer (1999), p. 235 e Kofman (2004), p. 650.
598
Kofman (2004), p. 646.
599
Krause (1996), p. 227.
600
Cfr. Kofman (2004), p. 646.
601
Agustín (2005b), p. 107.
602
Cfr. Uçarer (1999), p. 231.
603
OIM apud ibid., p. 232.
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121
Contudo, estas abordagens estruturais à migração são criticadas por não
reconhecerem fatores não-econômicos e instâncias subjetivas da migração
como constitutivos desta. A investigação de Andrijasevic mostra justamente a
importância destes elementos para a decisão de migrar:
“For Kateryna, as for other respondents, migrating abroad corresponded to
the desire to escape oppressive economic situations and look for
alternative ways of making a living. At the same time, women’s migration
was triggered by their desire for autonomy from their families, pursuit of
recognition and respect, and search for ways of escaping a general sense
of life stagnation.”
604
Adriana Piscitelli enfatiza a importância da consideração da migração
como projeto de mobilidade social (familiares e individuais) que vai além dos
fatores econômicos estruturais, permitindo não somente uma ascensão material-
financeira, mas também uma ampliação dos próprios universos culturais.
605
Assim, uma entrevistada brasileira que trabalha no âmbito do sexo comercial na
Espanha comenta:
“Então, quando eu saio daqui e vou para o Brasil e você começa a
conversar com as pessoas, você vai vendo a grandeza que você tem em
termos de cultura, entende? Que você aqui fora você aprende muito.
Quando eu vim para cá, por exemplo, é como se estivesse assim abrindo o
mundo, entende? Que no Brasil você não se dá conta disso, entende?”
606
Relacionado à ampliação do universo cultural está a transformação de
papéis de gênero, ou seja, Piscitelli constata um “deslocamento nos
posicionamentos de gênero”, como mostra a seguinte passagem:
“Que agora num vou quere ter só um homem, agora eu vou querer ter o
que eu queira...Que a gente lava passa cuida e eles sempre tão atrás de
busca de outras. Não, eu agora quero que ele lave, passe e eu usar. Agora
minha cabeça mudou, eu agora já disse a ele, agora aquela que tu
conheceu é outra. Agora quem dá as cartas sou eu.”
607
Igualmente Laura Agustín enfatiza, além dos fatores econômicos que
instigam a migrar, o elemento do desejo, de alcançar a independência e de
buscar novas oportunidades; e para isso se precisa de uma personalidade
disposta a tomar riscos.
608
Enquanto na discussão sobre o tráfico como problema de migração, então,
604
Andrijasevic (2004), p. 189.
605
Cfr. Piscitelli (2006), p. 13 e p. 16.
606
Ibid., p. 16.
607
Idem e Piscitelli (no prelo), p. 16.
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o enfoque está no engano, na força e na violência, estas autoras contrastam
com as próprias pesquisas esta ênfase, destacando o elemento da realização de
um sonho relacionado à idéia de mobilidade, que não se limita a expectativas
econômicas:
“A migração para países europeus significa muito mais que escapar à
pobreza: significa o desejo e a consciência do direito a uma posição social
e política inteiramente diferente no mundo.”
609
Andrijasevic reivindica um entendimento diversificado do tráfico como um
sistema alternativo de migração para os que não tem acesso a canais
migratórios de cruzar fronteiras legalmente.
“This shift of perspective would allow us to move away from the
conceptualisation of migrant women as duped into trafficking and bring to
the fore the complexity of desires and projects migrant women articulate in
their demand of social and material mobility via trafficking systems.”
610
Neste sentido, é possível constatar que projetos migratórios vão além da
fuga de situações (políticas e econômicas) difíceis, podendo ser interpretados
como realização de sonhos de migração que manifestam reivindicações ao
direito à mobilidade, e a uma inclusão social relacionada à prática de
cidadania,
611
no sentido de que desafiam fronteiras simbólicas, jurídicas e
materiais que são estabelecidas para confinar estes projetos.
5.3. A “crise das fronteiras”
“Globalization has generated, in the West, a sense of anxiety, especially around
the modern nation-state, in what might be called a crisis over boundaries.”
612
O aumento do tráfico humano internacional no contexto de transformações
socio-políticas, e seu relacionamento com migrações não-documentadas, leva
autores a constatar que a prática em questão - pelo menos no contexto europeu
- esteja relacionada com uma chamada “crise das fronteiras”.
613
Neste contexto,
as fronteiras são entendidas como símbolos da soberania, mas também como
608
Cfr. Agustín (2005b), p. 100.
609
Piscitelli (2004), p. 312.
610
Andrijasevic (2004), p. 60.
611
A cidadania entendida como “full membership in the community”, cfr. Yuval-
Davis (1997), p. 116.
612
Berman (2003), p. 39.
613
Idem e Andrijasevic (2004), p. 206.
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123
agentes na constituição da identidade nacional como identidade política
preeminente no Estado moderno.
614
Esta “crise das fronteiras” representaria uma
suposta perda de controle das fronteiras por parte dos Estados e, por
conseqüência, um declínio de soberania.
615
“[M]igration is seen as a case of
nation-states losing control.”
616
A discussão sobre uma suposta perda de controle
é considerada parte de um debate mais amplo em relação com a dinâmica da
chamada globalização.
“In some views the modern nation-state is weathering the storms of cultural
globalisation, economic and political internationalisation, and social
transnationalism, processes which are seen to be weakening the organs of
the state, transforming notions of citizenship, and eroding state control over
economic performance.”
617
Contudo, enquanto o processo complexo chamado de globalização pode
representar um fator da “crise das fronteiras”, proponho desvincular estes dois
elementos, focalizando na minha análise mais no conceito da fronteira mesmo.
No debate, a incapacidade dos Estados de regular a migração de forma
efetiva, ou seja, de reduzir os fluxos “ilegais”, é considerado um índice da perda
do poder estatal. A base deste entendimento representa a concepção clássica
do papel do Estado como protetor dos cidadãos e da noção tradicional da
fronteira como preservadora da soberania, constituindo a base da conceituação
do Estado moderno europeu.
“[T]he crisis of the nation-state is in fact a crisis in the efficacy of political
action, in which the state is perceived to be failing in its primary role as the
provider and guarantor of internal and external sovereignty.”
618
A definição do tráfico como atividade criminosa e como forma de migração
“ilegal” enfatiza a noção da ameaça à segurança nacional, reconfirmando a
narrativa do Estado como “protetor” da comunidade nacional.
619
No entanto,
críticas a este entendimento constatam em lugar de uma perda do controle sobre
as fronteiras e de uma diminuição da soberania, uma transformação destes
conceitos associados ao Estado, como afirmam, Hastings Donnan e Thomas
Wilson:
614
Donnan e Wilson (1999), p. 15, 4 e 5.
615
Cfr. Salt e Stein (1997), p. 485 e Berman (2003), p. 63.
616
Sassen (1996) apud Guiraudon (2000), p. 164.
617
Donnan e Wilson (1999), p. 152.
618
Ibid., p. 153.
619
Cfr. Berman (2003), p. 42.
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124
“Because international borders have served as both locuses and symbols
of a state’s sovereignty, territorial integrity, and power, and have done so
since states have existed, they have now become places and symbols
which mark the important transformations which states are undergoing.”
620
É possível captar a transformação do conceito da fronteira, por exemplo,
na investigação da constituição de campos de detenção para pessoas em
processo de asilo. Em um outro estudo, Rutvica Andrijasevic destaca os campos
fora do território europeu, como aqueles financiados pela Itália na Líbia.
621
Estes
são resultados da colaboração entre a Líbia e a Itália para controlar os fluxos de
migração “ilegal” direcionados à Europa.
622
De igual forma, a Espanha utiliza os
enclaves espanhóis, Ceuta e Melilla, ao Norte de Marrocos, para reagrupar estes
demandantes de asilo. A autora enfatiza nesta pesquisa a noção da
“externalização do asilo”, que na prática se torna uma “retração do direito do
asilo” por causa do vasto número de obstáculos ao asilo.
623
O estudo dela
mostra que a estratégia implementada para diminuir a migração “ilegal”, ao final,
leva a um efeito contrário: “Whereas the expulsions are carried out as a deterrent
for undocumented migration, the obstacles to filing an asylum request are likely
to increase irregular migration.”
624
De acordo com a leitura de Andrijasevic, estes campos desafiam a
concepção da fronteira territorial fixa e estável que circunda o território soberano,
introduzindo a idéia da fronteira descontínua e porosa.
625
Neste sentido, é
possível constatar uma mobilidade e uma “desterritorialização” da fronteira (aqui
européia). No lugar de afirmar uma debilitação da fronteira por parte de distintas
formas de migração, inclusive do tráfico (visto como realização de um projeto
migratório), seria oportuno entender o conceito de fronteira em si como um lugar
620
Donnan e Wilson (1999), p. 156.
621
Cfr. Andrijasevic (2006), p. 12.
622
“Italy strengthened its collaboration on illegal migration with Libya by signing a
readmission agreement, refurbishing several detention facilities and funding a repatriation
scheme for irregular migrants in Libya. Libya on its part increased internal checks on
specific groups of migrants (…), a practice resulting in arbitrary detentions and unsafe
repatriations in which more than one hundred people lost their lives.” Andrijasevic (2006),
p. 26.
623
Ibid., p. 18.
624
Ibid., p. 19.
625
Andrijasevic (2007), Seminário sobre a migração não-documentada,
Universidade de Pádua, 15 de março de 2007.
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125
de ambigüidade, deslocando-o da circunscrição típica do espaço territorial,
atribuindo-no uma mobilidade, uma porosidade e uma chamada
“desterritorialização”.
A interpretação da debilitação da soberania por parte das distintas formas
de migração não-documentada, por sua vez, também relacionada ao conceito
clássico da fronteira, é igualmente contestada por autores críticos. Neste sentido,
como afirma Virginie Guiraudon, no debate sobre a chamada globalização, é
constantemente constatada uma erosão da soberania nacional por parte de
dinâmicas atribuídas a este processo.
626
Como exemplo de erosão da soberania,
é mencionada a entrega de competências de controle da migração a instituições
supranacionais (como a União Européia) ou a privados (como linhas aéreas,
companhias de transporte, agências de viagem). Guiraudon questiona que a
constituição de novos atores na política internacional leva a uma diminuição de
poder.
“The extent of state commitment to control its borders is marked by a shift
in the level of decision making and regulation, resulting in a proliferation of
new actors involved in migration control. (…) The proliferation and
diversification of instruments used to restrict immigration in Europe are
considered to fortify the state agencies of immigration control, such as
security forces, which reinforce images of police states.”
627
Deste modo, em vez de interpretar a delegação de competências como
perda de soberania, Guiraudon sugere entendê-lo como uma transformação do
conceito de soberania no sentido de um afastamento da noção tradicional da
soberania indivisível e do poder estatal monolítico a um conceito de soberania
divisível e a dinâmicas de poder divididas entre vários atores.
Uma desconstrução das bases do entendimento da narrativa sobre a
suposta “crise das fronteiras”, então, desmascara esta como parte de um
discurso mais amplo, que cria diversos medos para justificar a instalação de
regimes mais estritos de migração. Neste sentido, as posturas críticas apontam a
um questionamento do argumento da perda de controle dos Estados por causa
da chamada “crise das fronteiras”, que levaria a um aumento do tráfico.
“Sex-trafficking as a discourse involving innocent victims, violated orders
and criminality becomes a means of problematizing immigration and
justifying anti-immigration policies in order to assuage fears about
globalization.”
628
626
Guiraudon (2000), p. 164.
627
Ibid., p. 176 e 179.
628
Berman (2003), p. 57.
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126
Esta argumentação segue a trilha indicada por Andrijasevic, que identifica
as regulações de fronteira, de migração e de trabalho como mecanismos de
controle da mobilidade dos migrantes. Estes mecanismos, em lugar de erradicar
a prática de tráfico, servem para criar as condições da emergência e da
proliferação do tráfico.
629
Além disso, como mostram Donnan e Wilson,
atividades “ilegais” (da subversive economy) como o contrabando, a prostituição
que cruza fronteiras e a migração não-documentada, não somente subvertem de
certa maneira o poder estatal, mas também reafirmam este por meio das
fronteiras e dos regimes regulatórios de entrada no país, legitimando
paradoxalmente a existência destes.
630
Assim, em vez de uma perda de controle,
é possível constatar um aumento de mecanismos de controle por parte do
Estado (e de instituições relacionadas). Estes, por sua vez, conduzem a uma
proliferação do tráfico, instalando um círculo vicioso perigoso, como constatam
inúmeros autores.
“There is now widespread recognition that the restrictive immigration
policies practiced by virtually all states which receive migrant labour does
not stop migration, it simply increases the number of migrants who are
clandestine.”
631
Khalid Koser, no seu estudo da relação entre políticas de asilo e o tráfico
humano, chega à conclusão de que existe uma variedade de relações entre
políticas de asilo restritivas, o aumento da vulnerabilidade e o tráfico.
“[T]rafficking has become an unintended consequence of restrictive asylum
policies. (…) At the moment, asylum policies encourage trafficking, and
trafficking overcomes asylum policies, and this is a vicious circle that can
be broken only through closer coordination. (…) Trafficking exposes asylum
seekers to vulnerability, but at the same it provides for many their only
means of escaping persecution and applying for asylum.”
632
Deste modo, a observação de Foucault que “the existence of a legal
prohibition creates around it a field of illegal practices”, é reafirmada.
633
Andrijasevic chega ao mesmo resultado da ineficiência de políticas migratórias
mais restritas no combate ao tráfico:
“My data thus suggests that border controls that aim at suppressing
trafficking and hampering the ‘illegal’ circulation of people increase the
629
Cfr. Andrijasevic (2004), p. 182.
630
Donnan e Wilson (1999), p. 105.
631
Phizacklea (2003), p. 89.
632
Koser (2000), p. 106.
633
Foucault (1979), p. 280 apud De Genova (2002), p. 422.
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involvement of trafficking enterprises and produce situations of greater
vulnerability for migrants.”
634
Andrijasevic menciona a história de Larisa como exemplo de uma maior
vulnerabilidade por causa da migração em dívida, e constata uma relação entre
uma possível exploração e o tempo da viagem.
635
Em lugar das duas semanas
de viagem prometidas pelo traficante contatado na Moldávia, Larisa demorou
dois meses para chegar á Itália, por causa de maiores controles fronteiriços e
das dívidas que ela assumiu com os agentes traficantes, tendo que devolver em
forma de trabalho em cabarés ao longo da viagem.
636
Jaqueline Berman, por sua vez, identifica o papel dos discursos sobre o
tráfico claramente como parte constitutiva de questões de fronteira, mas também
como reificação do papel do Estado como garantidor da proteção da comunidade
política integrada na noção de cidadãos. “[T]hese discourses work to affirm the
place of the state in maintaining sovereign borders and quelling the anxiety
created by European integration and globalization.”
637
De acordo com esta
autora, os discursos sobre o tráfico instigam a uma “performance soberana”
638
no
sentido de que são colocados em ação mecanismos de controle que são
justificados e legitimados pelos discursos.
639
A ruptura do círculo vicioso em questão, então, é possível através de uma
desconstrução dos entendimentos de base, ou seja, da noção clássica da
fronteira como fixa e estável que circunda um território soberano, constituindo
um Estado monolítico e permitindo uma clara distinção entre o dentro e o fora
(inside/outside), como problematiza Robert B. J. Walker:
“Spatially, the principle of state sovereignty fixes a clear demarcation
between life inside and outside a centred political community. (…) Violence
634
Andrijasevic (2004), p. 43.
635
Cfr. ibid., p. 42.
636
Cfr. ibid.
637
Berman (2003), p. 50.
638
Judith Butler apresenta um aprofundamento do termo „sovereign performance“.
Cfr. Butler (2006, [2004]).
639
“Trafficking, a transgressive practice that calls into question this sovereign
performance, becomes an ideal site at which this control can be legitimated and
practised. Sex-trafficking discourses position organized crime – and not women on
the move – as the challenge to the state and provide the state with an opportunity
to act on behalf of the protection of their citizenries.”
639
Berman (2003), p. 52.
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128
outside permits peace and justice inside.”
640
Ele explica a relação entre a soberania e a legitimidade do Estado
moderno da seguinte maneira:
“The modern principle of state sovereignty has emerged historically as the
legal expression of the character and legitimacy of the state. Most
fundamentally, it expresses the claim by state to exercise legitimate power
within strictly delimited territorial boundaries.”
641
Se investigarmos o discurso estabelecido mais por perto, verifica-se que os
Estados se beneficiam desta lógica. Assim, enquanto nos debates sobre a
chamada migração “ilegal” é enfatizado o problema deste assunto para os
Estados, o que deveria nos preocupar precisa de uma reviravolta da
problemática, no sentido de que “the problem is the state rather than those who
are mobile”.
642
Assim, na verdade não existe uma “crise das fronteiras”, já que o
conceito da fronteira em si é questionável, sendo esta um sítio de ambigüidades
e nunca representou um lugar de separação verdadeiro.
De acordo com Nicholas De Genova, não é suficiente analisar a chamada
“ilegalidade” da migração não-documentada em termos das conseqüências, mas
também é necessário investigar os processos sociopolíticos da “ilegalidade”, ou
seja, “a produção legal da ilegalidade do migrante”.
643
Neste sentido, esta
“ilegalidade” está constituída e regulamentada por meio da lei de migração
estabelecida por parte do Estado.
644
De Genova chama a atenção não somente
ao fato que a lei não seja neutra, mas que ela gera desigualdades, e que, além
disso, o direito per se deveria ser interpretado como instrumento de disciplina e
de coerção, ou seja, como uma forma de tática que visa a produzir sujeitos
disciplinados no sentido de Foucault.
645
Deste modo, o autor elabora a produção
da “ilegalidade” do migrante como instrumento para justificar um aumento de
controle contra o/s sujeito/s na mira.
646
Além do papel constitutivo do direito como “campo discursivo de práticas
640
Walker (1993), p. 62 e p. 151.
641
Ibid., p. 165.
642
Harris (1995), p. 85 apud De Genova (2002), p. 421.
643
Cfr. De Genova (2002), p. 419.
644
Cfr. ibid., p. 424.
645
Cfr. ibid., p. 425.
646
Cfr. Ibid., p. 429.
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129
significadoras”,
647
De Genova destaca também a importância do discurso:
“Migrant ‘illegality’ is produced as an effect of the law, but it is also sustained as
an effect of a discursive formation.”
648
De Genova desmascara, assim, o
estabelecimento da distinção entre legal e ilegal como produção discursiva para
criar a categoria do sujeito “ilegal” que está caracterizado por sua situação de
vulnerabilidade por causa da onipresente possibilidade de deportação, ou seja,
de seu status de deportável.
649
O autor destaca a importância da
“deportabilidade” - e não da deportação - como instrumento disciplinar,
produzindo a subordinação requerida do migrante “ilegal”.
650
A produção desta
vulnerabilidade, então, serve para criar e manter forças de trabalho baratas e
disponíveis a serem exploradas.
651
Michael Welch e Liza Schuster constatam um deslocamento conservador
rumo a um aumento do controle social depois da data marcante do 11 de
setembro de 2001. Este controle está direcionado a grupos específicos, e
reivindica um retorno a valores de família, de trabalho, de abstinência e de
autocontrole.
652
O impacto da fronteira neste discurso desenha um aumento de
uma chamada “cultura de control”.
“Therefore, what we witness is not so much the disappearance of borders,
as their fragmentation and flexibilisation: these no longer operate as unitary
and fixed entities; instead, borders are becoming flexible instruments for
the reproduction of a hierarchical division between deserving and
undeserving populations, wanted and unwanted others.”
653
Igualmente De Genova na sua análise da migração entre México e EUA,
atribui uma maior importância à fronteira para a produção deste discurso:
“[I]t is precisely ‘the Border’ that provides the exemplary theater for staging
the spectacle of ‘the illegal alien’ that the law produces. The elusiveness of
the law, and its relative invisibility in producing ‘illegality’, requires the
spectacle of ‘enforcement’ at the U.S.-Mexico border that renders a
racialized migrant ‘illegality’ visible and lends it the commonsensical air of a
‘natural’ fact.”
654
647
Ibid., p. 428.
648
Ibid., p. 431.
649
Cfr. ibid., 433.
650
Ibid., p. 438. “It is deportability, and not deportation per se, that has historically
rendered undocumented migrant labor a distinctly disposable commodity.”
651
Ibid., p. 440.
652
Cfr. Welch e Schuster (2005), p. 348.
653
De Giorgi (2005), p. 3 apud Welch e Schuster (2005), p. 344.
654
De Genova (2002), p. 436.
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130
Deste modo, a desnaturalização da fronteira desmascara a produção da
ilegalidade como parte integral de mecanismos de controle estatais e como
pretexto para a exploração contínua dos sujeitos constituídos como “ilegais”.
Neste sentido, não é possível constatar um declínio do poder estatal, muito pelo
contrário, este discurso favorece um fortalecimento das dinâmicas de controle
estatais.
Resumindo, então, constatamos que não há mais tráfico por causa da
chamada “crise das fronteiras” e de uma relacionada perda de controle por parte
dos Estados, pelo contrário, ocorre um aumento da prática do tráfico por causa
de um aumento dos mecanismos de controle estabelecidos através do direito
migratório e dos discursos analisados. A ruptura desta lógica discursiva
possibilita o questionamento do Estado como defensor das vítimas de tráfico,
como suposto protetor dos cidadãos, como punidor dos criminosos e como
mantenedor da ordem,
655
desmascarando as dinâmicas estabelecidas em nome
da proteção como novas formas de controle.
5.4. O migrante como outro
“[G]roups of ‘strangers’ – trafficked women, illegal immigrants, foreign workers –
help to substantiate the place of the citizen in the nation-state.”
656
O discurso que vê no tráfico principalmente um problema de migração
identifica as pessoas traficadas como “estrangeiros não desejados” (undesirable
aliens)
657
e, portanto, desenha a dificuldade de controlar a migração (não-
documentada) como problema crucial a ser corrigido. Para que o discurso que
identifica o tráfico como problema de migração funcione, precisa de um
sujeito/objeto ao qual adotar tal discurso. Neste caso, trata-se da produção do
imaginário do migrante como outro que possibilita a instauração de mecanismos
de controle da migração “ilegal”. Este imaginário é influenciado por imagens
correntes que desenham a migração como forma de invasão, como ameaça à
integridade estatal e a uma suposta homogeneidade nacional, desatando medos
e ansiedades.
“[M]uch of this nebulous anxiety over the narrowing capacities of the nation-
state to designate, to contain and to protect the political community has
655
Cfr. Berman (2003), p. 64.
656
Berman (2003), p. 57.
657
Ibid., p. 44.
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landed on migrants, refugees and other ‘unpopular strangers’.”
658
Para Foucault, as estratégias de controle político se expressam através da
racionalidade da chamada “governamentalidade“, que opera em forma de
biopoder visando a regulamentar o homem-espécie, ou seja, a população, ou
uma parte desta.
659
O biopoder, então, como nova forma de poder que em lugar
de se dirigir a indivíduos como o poder disciplinar, concentra as próprias
intervenções ao corpo múltiplo da sociedade, estabelecendo regimes de
controle.
660
Neste sentido, proponho interpretar as políticas migratórias e a
constituição da categoria de migrante como tecnologias de poder ou como
mecanismos reguladores no sentido de Foucault.
“[T]rata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa
população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio,
manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar
compensações: em suma, instalar mecanismos de previdência em torno
desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de
otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida.”
661
Neste contexto, por exemplo, as quotas que estabelecem o número anual
admitido na migração legal em certos países, poderiam ser entendidas para
“manter o equilíbrio” na população nacional para assegurar o bem-estar desta.
Neste discurso, então, o bem-estar da população nacional é dependente do bom
funcionamento desta tecnologia de controle. Assim, os regimes de controle
estabelecidos são entendidos para “proteger” a população de cidadãos da
“população” dos migrantes, desenhados como ameaças e perigos.
De acordo com Peter Nyers, aos migrantes como “objetos de medos e
ansiedades (securitizados)” são atribuídas duas formas de agência: uma
perigosa (dangerous agency), que se refere a criminosos, terroristas ou outros
“agentes de insegurança”; ou uma “adversa” (unsavoury agency), que se refere a
pessoas que minam o consentimento político através de fraudes de
identidade.
662
As duas formas de agência são resultados de processos de
othering, ou seja, de uma construção social do migrante - e assim também das
pessoas traficadas integradas na categoria dos migrantes “ilegais” - como outro.
Enquanto a “agência perigosa”, como poderíamos distinguir, está mais
658
Ibid., p. 55.
659
Cfr. Foucault (1999, [1976]), p. 289.
660
Cfr. ibid., p. 292.
661
Ibid., p. 294.
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relacionada à imagem da migração como ameaça, a “agência adversa” recorda à
negação de direitos a esta “classe abjeta de migrantes globais”,
663
ou seja à
constituição do migrante como “non-persona”.
664
A categoria do migrante não é algo “natural”, mas um resultado de uma
negociação contínua e de uma construção social.
665
De acordo com Aradau, que
segue linhas de Foucault, ocorre uma “invenção do indivíduo perigoso“, que
requer a instalação de mecanismos de defesa da sociedade.
666
Assim, a
exclusão de uma categoria específica está condicionada pela produção anterior
deste grupo, ou seja, da atribuição de uma identidade perigosa, por exemplo, a
migrantes.
667
A autora constata: “Trafficked women are risky only in relation to
their agency as migrants.”
668
Esta constituição de uma categoria que deve ser controlada e
regulamentada é justificada por meio de um elemento crucial no discurso sobre o
migrante: o racismo. O campo biológico da população é fragmentado pelo
racismo, ou seja, a emergência do biopoder insere o racismo como mecanismo
fundamental do poder nos mecanismos do Estado.
669
Através deste, é possível
constituir um grupo específico que será atingido pela biopolítica do Estado.
Foucault elabora de que maneira o racismo está ligado ao funcionamento de um
Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da
raça para exercer seu poder soberano.
670
O racismo moderno, segundo
Foucault, não está ligado a mentalidades, ideologias e mentiras do poder, mas a
técnicas ou tecnologias de poder.
671
De acordo com Nira Yuval-Davis, “[r]acism
occurs when the construction of ‘otherness’ is used in order to exclude and/or
exploit the immutable ‘other’”.
672
Através do racismo, então, é estabelecida a diferença que constitui o
migrante como outro, ou seja, através do processo de othering como parte do
662
Nyers (2003), p. 1070.
663
Cfr. idem.
664
Cfr. Dal Lago (2005, [1999]), p. 211.
665
Cfr. Yuval-Davis (1997), p. 73.
666
Cfr. Aradau (2004), p. 259 e 263.
667
Cfr. ibid., p. 267.
668
Ibid., p. 276.
669
Cfr. Foucault (1999, [1976]), p. 304.
670
Ibid., p. 309.
671
Idem.
672
Yuval-Davis (1997), p. 49.
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racismo é estabelecida a diferença entre o self e o outro. A criação do outro
possibilita a existência da própria identidade, ou seja, para estabelecer a própria
identidade se precisa da delimitação do outro, por sua vez, visto que nada pode
existir sem ponto de referência. Concebendo a identidade em termos relacionais,
então, significa que a identidade do self precisa do outro para se estabelecer.
673
A reação ao outro, pode ser resumida no que Inayatullah e Blaney, citando
Tzvetan Todorov, denominam o “duplo movimento”
674
. Ou seja, (1) a diferença
do outro é apresentada como inferioridade, para, desse modo, justificar um
tratamento discriminatório; e (2) o reconhecimento de uma humanidade em
comum denota a necessidade de assimilação. Assim, o outro é visto
principalmente como ameaça trazendo como conseqüência o surgimento da
demanda de conter, domesticar ou destruir essa diferença para alcançar o que
estes autores chamam de “império da uniformidade”.
675
O movimento duplo inibe
um reconhecimento do outro como diferente e igualitário e, ao mesmo tempo,
representa uma forma de splitting entre o self e o outro.
676
Segundo Inayatullah e
Blaney, esse splitting surge de tentativas de produzir uma pureza ou uma
diferença absoluta, que é perigosa, pois cria violência, como constata também
Nizar Messari:
“Otherness becomes thus not only the object of exclusion, but also of
violence. The value of the self is exalted whereas the value of the other is
deflated, justifying moral superiority. The missionary objective of conquest
and violence, in order to bring civilization to the other and make it equal to
self, becomes a natural consequence of a ‘legitimate’ cause.”
677
O discurso do migrante como outro, então, estabelece a diferença
necessária, em sentido de uma inferioridade para justificar a violência contra ele.
Ao mesmo tempo, esta narrativa produz justificativas para políticas
intervencionistas, fortalecendo uma visão do mundo imperialista dividido entre
“Estados receptores/nós/o self” e “Estados mandadores/eles/o outro”;
construindo o que Peter Nyers denomina uma “cartografia moral de abjeção”.
678
Também David Campbell fala de “cartografia moral”, indagando o ponto de
vista da ética e da responsabilidade que o pensamento sobre identidade
673
Cfr. Messari (2006), p. 3.
674
Inayatullah e Blaney (2004), p. 10.
675
Ibid., p.
676
Cfr. ibid., p. 187.
677
Messari (2006), p. 4.
678
Nyers (2003), p. 1073. Cfr. também Ibrahim (2005), p. 171.
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implica.
679
Através do papel que os Estados Unidos da América (EUA)
desempenham desde o fim da Guerra Fria, o autor expõe o modo em que a
cristalização da identidade representa um discurso político de poder. Segundo
Campbell, a “cartografia moral” do tempo da Guerra Fria continua na
desvalorização do outro, encontrando nele todo o mal que tem que ser
combatido. Esta “cartografia moral” é sustentada pelas perspectivas
hegemônicas nas RI, que tomam o Estado como um sujeito pré-dado. Neste
sentido, investigar o discurso sobre a identidade tem a ver com a crise de
representação que questiona os fundamentos do Estado soberano. Campbell
desmascara o Estado como ficção ou “simulacro”, e identifica o momento
fundador do Estado-nação como um coup de force, ou seja, como uma força
interpretativa e performativa, que se baseia na violência. Ele argumenta que
somente através de estratégias de desconstrução pode ser identificada a
violência do coup de force e combatido o risco do totalitarismo, já que os maiores
atos de violência na história foram possíveis pela aparente natureza
(naturalness) das práticas.
680
A tarefa é de desconstruir esta suposta “natureza”
para resgatar a responsabilidade humana frente ao outro e incluir a questão da
ética na política.
A percepção dos migrantes como ameaças para o corpo político leva a
uma criação de leis de migração exclusivas, constituindo, segundo Maggie
Ibrahim, um discurso no qual a migração é descrita em termos de segurança.
681
Nem sempre a migração foi associada com a ameaça, pelo contrário, migração
mostrou ser um fator decisivo para a produção e o desenvolvimento do
capitalismo.
682
De acordo com Foucault, a produção de um regime de verdade e
a criação de conhecimento através do discurso é um exercício de poder. Neste
sentido, o discurso do migrante como ameaça, é possibilitado através da
ampliação do conceito de segurança e do seu relacionamento com o risco e a
ameaça por parte dos migrantes.
683
“This linking of migrants to insecurity, (…)
‘sustains a radical political strategy aimed at excluding particular categories of
people by reifying them as danger’.”
684
679
Cfr. Campbell (1996), p. 163.
680
Ibid., p. 177.
681
Ibrahim (2005), p. 164 e 167. Cfr. também Nyers (2003).
682
Ibrahim (2005), 167. Cfr. também auch Mezzadra (2006, [2001]).
683
Ibrahim (2005), p. 164.
684
Ibid., p. 171.
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135
De acordo com a Agência de Desenvolvimento das Nações Unidas
(PNUD), existem novas ameaças que incluem: “transborder challenges, such as
unchecked population growth, environmental degradation, excessive international
migration, narcotics production and trafficking, and international terrorism”.
685
Neste sentido, como analisa Ibrahim, ocorre uma reversão da problemática,
colocando os migrantes como ameaça, em lugar de concebê-los em perigo.
“In terms of migration, the populations that are at risk are the migrants who
move across borders to escape war, persecution, and hunger. However,
due to this new ‘human-centered’ approach it is the migrants themselves
who are seen as threatening to the receiving country’s population.”
686
Este discurso, portanto, legitima novos medos raciais, que não se limitam a
partidos de direita, que tradicionalmente instigam de certa maneira um discurso
destes, senão, como adverte Ibrahim, por parte de uma organização como as
Nações Unidas, que apela a uma audiência mais ampla.
687
De acordo com
Ibrahim, então, o elemento principal constitutivo da narrativa que delineia o
migrante como ameaça representa uma forma de “novo racismo”, no sentido que
re-atualiza um discurso racista que se baseia em dois conceitos: (1) na diferença
cultural que substitui a diferença biológica; e (2) em um medo do outro.
688
“The
defining feature of new racism is that cultural pluralism will lead to interethnic
conflict which will dissolve the unity of the state.”
689
Neste sentido, diferenças
raciais e culturais são reificadas, e associadas com uma forma de ameaça para
a integridade do Estado, como constata também Berman:
“Immigrants ‘are seen as threats that appear from nowhere and destabilise
and undermine the security and coherence of the sovereign project’.
Trafficked women function as ‘the most perverse facet of the European
fortress and its treatment of others’.”
690
Desta forma é produzido um medo da diferença cultural, que levaria a um
desmoronamento social (societal breakdown); e este receio é conseqüentemente
utilizado para garantir a continuidade da cultura e da nação.
691
Contudo, quando
a migração é considerada uma ameaça à identidade da sociedade nacional, o
685
UNDP (2002) apud Ibrahim (2005), p. 169.
686
Idem.
687
Cfr. idem.
688
Ibid., p. 165.
689
Ibid., p. 166.
690
Soguk (1999), p. 679 e Morokvasic (1991), p. 69 apud Berman (2003), p. 57.
691
Ibrahim (2005), p. 166.
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136
entendimento de base é uma identidade suposta homogênea da comunidade
política. “If the principal fiction of the nation-state is ethnic, racial, linguistic and
cultural homogeneity, then borders always give the lie to this construct.”
692
O pensamento aqui subjacente perpetua a concepção da distinção nítida
entre a esfera doméstica e aquela internacional. Assim, o doméstico é
considerado representar a ordem, a cultura, o self civilizado, enquanto o
internacional é vinculado com a desordem, a natureza, o outro bárbaro, não-
civilizado. Segundo Inayatullah e Blaney, ao lidar com a diferença, criou-se a
estratégia espacial de divisão do mundo entre o âmbito internacional e
doméstico. Eles constatam que a criação do Estado moderno não solucionou o
problema da diferença, que é simplesmente deslocado para a esfera
internacional. A atribuição da diferença a aqueles fora da esfera nacional justifica
a instalação de mecanismos de proteção no interno, possibilitando ao mesmo
tempo a constituição do próprio self, como elabora Messari:
“According to this understanding, representations of alterity are in a certain
way representations of self. Otherness can be defined as a discourse on
difference, particularly on the difference on those who are outside the
domestic realm.”
693
A diferenciação entre o espaço interior do Estado como o seguro inside e o
espaço exterior como o moralmente inferior outside, constitui o fundamento das
políticas de identidade. David Campbell analisa, por exemplo, como a identidade
dos EUA é constituída pelos interesses nacionais, que, por sua vez, são
definidos através da criação de inimigos externos, que representam ameaças
para o próprio “interesse nacional”, criando, assim, uma “geografia do mal”.
694
Se
no inside também são encontrados elementos que ameaçam a identidade
nacional, estes serão relegados a ameaças do outside, para poder combatê-los
da mesma maneira. Neste sentido, Campbell identifica a política externa como
elemento crucial para a construção da identidade nacional, ou seja, “one of the
boundary-producing practices central to the production and reproduction of the
identity in whose name it operates”.
695
Ao “movimento duplo” da separação entre outro e self, identificado por
Inayatullah e Blaney, está contraposto pelo “movimento etnológico”, baseado nos
692
Horsman e Marshall (1995) apud Donnan e Wilson (1999), p. 1.
693
Messari (2006), p. 8.
694
Cfr. Campbell (1996), p. 167.
695
Ibidem, p. 169.
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137
escritos de Tzvetan Todorov e Ashis Nandy, no qual o outro não está separado,
mas representa uma parte intrínseca do self. Reconhecer o outro como fonte
para a auto-reflexão crítica possibilitaria, assim, concepções alternativas da
diferença, como, por exemplo, encontros “dialógicos” em vez de “monológicos”
com o outro.
696
Segundo Inayatullah e Blaney é nesses encontros, nessas
“zonas de contato”, que novas possibilidades emergem, apontando a um
entendimento da diferença mais abrangente. Neste sentido, a proposta deles é
uma co-constituição entre o self e o outro, invocando identidades que se
sobrepõem, ou seja, nas quais o self está presente no outro e vice-versa. Esta
percepção possibilitaria uma nova dinâmica nos discursos sobre um outro, como
também estratégias elaboradas em relação a este, integrando visões mais
abrangentes no sentido de uma responsabilidade em comum dos Estados na
política internacional que vá além das preocupações nacionais.
Além de ser considerado como ameaça ou perigo, o migrante como outro,
faz parte de um discurso de exclusão, que interpreta a migração como uma
ameaça à identidade nacional.
697
O entendimento do migrante como diferente
cria os fundamentos para os mecanismos de exclusão, ou seja, a constituição
dos migrantes como “non-persone”, como o formula Alessando Dal Lago, se
baseia na diferença atribuída.
698
Precisamente a ênfase nesta diferença possibilita a distinção não somente
entre nós e eles, mas também entre migrantes “legais” e “ilegais”. Esta
classificação constitui a categoria dos “estrangeiros ilegais“, e se baseia em
conceitos raciais e espaciais, como elabora De Genova. A importância da
dimensão racial na fronteira entre os EUA e o México, por exemplo, mostra a
produção de uma relação entre a racialização e a criminalização destes
migrantes, levando a uma sistemática exclusão de migrantes mexicanos e de
chicanos (mexicanos com cidadania americana) de oportunidades de trabalho e
de benefícios sociais.
699
A dimensão espacial, por sua vez, reproduz as
fronteiras físicas no interior do território nacional, estando presente na vida de
todos os dias dos “ilegais” através do medo de ser deportados, disciplinando
696
Cfr. Inayatullah e Blaney (2004), p. 181.
697
Cfr. Berman (2003), p. 51. O perigo consiste na possível fragmentação da
pensada homogeneidade da nação, uma chamada “balkanization” doméstica, como o
chama David Campbell. Cfr. Campbell (1996), p. 170.
698
Dal Lago (2005, [1999]), p. 207.
699
De Genova (2002), p. 433.
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138
assim os migrantes como disposable commodity.
700
Ao mesmo tempo, então, que o migrante (e especialmente aquilo “ilegal”) é
considerado uma força de trabalho barata, constituindo uma “subclasse móbile
internacionalmente” (internationally mobile underclass), como o formulam
Donnan e Wilson, também fazem parte da categoria dos não-cidadãos.
701
Neste
sentido, a constituição do migrante como outro, ou como o chama Nyers, como
“sujeito-abjeto”,
702
tem um papel constitutivo para a construção do self,
instalando uma dinâmica dualista de inclusão e de exclusão. Assim, o cidadão
como “sujeito político puramente incluso” precisa do migrante como “sujeito
apolítico puramente excluso”, para se estabelecer, como explica Nyers:
“As the embodiment of exclusion, the abject[s] are prime candidates for
‘hidden, frightful, or menacing’ subjectivities to define their condition.
Understood politically, they stand in contrast to the purity of citizenship, ie
the authoritative, articulate, visible and political subjectivity. Instead, the
abject suffer from a form of purity that demands them to be speechless
victims, invisible and apolitical. In a twisted reversal, the impurity of the
abjection becomes the purity of the abject.”
703
Assim, o processo da negação de direitos políticos para o migrante abjeto,
faz parte da atribuição de direitos ao cidadão, constituindo este como tal. A
manutenção clara dos limites entre as duas concepções, então, é condição para
a preservação da ordem política. “Our received traditions of the political require
that some human beings be illegal.”
704
Neste sentido, os
estrangeiros/migrantes/pessoas traficadas junto com outras categorias abjetas
exercem um papel importante na fundação de comunidades políticas, no sentido
de que as narrativas em questão as re-fundem continuamente.
705
Assim, a constituição da diferenciação entre nós e eles não somente
possibilita a instauração de mecanismos de exclusão, uma negação de direitos
relacionada a aquilo, mas também uma “refundição” da comunidade política.
Além disso, a ação de constituição da diferença pode ser interpretada como
resultado de um “ato de força”, no sentido de que na designação de um status
700
Cfr. ibid., p. 438.
701
Donnan e Wilson (1999), p. 109.
702
Nyers (2003), p. 1073. “The abject is someone who is cast-out, discarded and
rejected. (…) Abjection therefore, describes a degraded, wretched and displaced
condition.” Idem.
703
Ibid., p. 1074.
704
Ibid., p. 1089.
705
Cfr. ibid., p. 1075. Cfr. também Andrijasevic (2004), p. 208.
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139
especial se trata de uma arbitrariedade, que, porém, é representado como
condição “natural”. Como explícita Nyers, “’being abject’ is, in fact, always a
matter of ‘becoming abject’”.
706
Este tornar-se um abjeto, então, que ocorre no
processo de othering, expressando a diferença especialmente na atribuição ou
na negação de direitos, deve ser desnaturalizado para romper o discurso em
ação.
“Thus we need to see this rejection of migration as stemming from a new
racial discourse which has equated migrants to risk. At such, we need to
‘identify racism as a specific and significant object, to comprehend it as a
part of a web of discourse, to see that it has a knowable history, and to
appreciate its social implications in the exercise of [the] biopolitical
powers.”
707
Característico da constituição do outro é também a definição deste em
termos negativos, ou seja, a integração em uma lógica de negação.
708
Assim, por
exemplo, os migrantes não-documentados podem ser definidos, segundo Dal
Lago, como “non-persone”, já que o conceito de pessoa dependente de uma
atribuída humanidade.
709
Ele constata várias estratégias de “despersonalização”
para a constituição de “non-persone”, por exemplo, através da anulação
lingüística.
710
Assim, o fato que as categorias atribuídas ao migrante “ilegal”
sejam caracterizadas em termos de negação, representa uma forma de
“despersonalização”; o migrante é um “não-europeu, um não-nativo, um não
cidadão, não está em regra e não faz parte de nós”.
711
Além da negação de
direitos, então, o othering puxado aos seus extremos, leva a desqualificação dos
migrantes da categoria de humanos. A atribuição a eles de nomes de animais
como forma comum de denominação de categorias abjetas, por exemplo,
representa uma estratégia para justificar a violência e a exclusão. Além da
descrição dos contrabandistas como coyote (na fronteira mexicana-norte-
americana), loups (Gibraltar-Marrocos-Espanha) ou snakehead (China-
Hongkong), aos migrantes “ilegais” são atribuídos termos como franguinhos
(pollitos), ovelhas ou abelhas assassinas (killer bees, se chegarem em
706
Nyers (2003), p. 1074.
707
Gilroy (2004), p. 163 apud Ibrahim (2005), p. 178.
708
Cfr. Nyers (2003), p. 1074.
709
Dal Lago (2005, [1999]), p. 208.
710
Ibid., p. 211.
711
Ibid., p. 213. Igualmente enfatizam Donnan e Wilson a identidade dos “não-
documentados” definidas em negativos. Cfr. Donnan e Wilson (1999), p. 113.
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140
muitos).
712
“This reclassification of undocumented entrants as other than human is
another aspect of the liminality of the border zone. (…) Once stripped of
their humanity, they can be hunted down, like the wild animals which some
of them are taken to represent.”
713
Neste sentido, a classificação dos migrantes “ilegais” como outros ou como
além do humano, justifica mecanismos de exclusão, como também práticas de
violência. Ao mesmo tempo, instala-se um discurso de naturalização e de
racialização destes outros, considerando a diferença uma característica fixa e
inerente nos corpos de estrangeiros, chamando à proteção do “corpo” social
nacional, e da chamada solução à ameaça por meio da desaparição destes
“non-persone”.
714
Este status é ainda enfatizado pelo entendimento do migrante em uma
situação de transição, que, segundo teorias antropológicas sugerem uma perda
da própria existência. De acordo com Leo Chavez, o movimento de migrantes
não-documentados pode ser entendido como uma passagem territorial
marcando uma transição de uma forma de vida a outra.
715
Baseando-se em
estudos antropológicos de Arnold Van Gennep e Victor Turner, que classificam
os diferentes rites de passage em três estágios, Chavez advoga um paralelo
com a prática da migração.
716
Também nesta, como nos ritos de transição
convencionais (o nascimento, ou os ritos de iniciação para obter o status de
adulto, o casamento ou a morte), é possível identificar o modelo das três fases: a
separação, na qual simbolicamente é eliminada a existência desta pessoa; a
transição, que representa a fase mais perigosa; a incorporação na sociedade
como membro com o novo status.
717
Embora o modelo de três fases possa ser útil analiticamente e encontre
terreno de aplicação também nos estudos de migração,
718
esta categorização
provoca também crítica, especialmente pela linearidade assumida no processo
712
Cfr. Donnan e Wilson (1999), p. 134 e 135.
713
Ibid., p. 135.
714
Cfr. Dal Lago (2005, [1999]), p. 222.
715
Chavez (1991), p. 257.
716
“For undocumented migrants, crossing the border is a territorial passage that
marks the transition from one way of life to another.” Chavez (1991), p. 258.
717
Cfr. Van Gennep (1981, [1909]), Turner (1967), Chavez (1991), p. 257 e
Donnan e Wilson (1999), p. 110.
718
Cfr. Salt e Stein (1997), p. 477.
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141
de migração. Assim, como afirmam Donnan e Wilson, para alguns migrantes a
passagem nunca se completa,
719
no sentido de que inúmeros migrantes não
saem da fase de transição, sendo “captados” no status de migrante “ilegal”, que,
como mostrou De Genova, resulta geralmente benéfico para o Estado e a sua
economia. Deste modo, estes migrantes permanecem na liminaridade
720
da fase
entendida como transitória, que, porém, às vezes se torna permanente.
721
Além disso, De Genova tematiza a constituição de espaços de
nonexistence através da negação oficial de uma presença de “ilegais” no
território estatal. Uma conseqüência do estabelecimento destes espaços “ilegais”
que implicam uma invisibilidade forçada, uma exclusão, subjugação e repressão,
é “an erasure of legal personhood”.
722
Uma dimensão desta “não-existência” se
expressa, por exemplo, na mobilidade física restrita dos migrantes “ilegais”, que
resulta como efeito paradoxal da inicial mobilidade destes (e do originário desejo
de mobilidade no começo dos projetos migratórios).
723
Esta concepção da eliminação do outro de forma simbólica, encontra a sua
realização de forma material na prática da deportação. O Protocolo de Tráfico
dedica mais da metade do próprio texto à especificação do fortalecimento de
regimes de fronteira, e visa a proteção das pessoas traficadas, sobretudo, em
termos de “repatriação”.
724
De acordo com o Protocolo, então, os Estados são
aconselhados a adotar métodos efetivos para promover a cooperação entre eles,
prevenir o tráfico humano por meio da informação e da educação do público,
assegurando que as vítimas de tráfico recebam assistência e proteção, e de
prover - em casos apropriados - para o retorno voluntário das vítimas aos países
de origem.
725
No entanto, pesquisas indicam que a probabilidade que migrantes
719
Cfr. Donnan e Wilson (1999), p. 110.
720
O estado liminar da transição é definido por Victor Turner como um período no
qual uma “anti-estrutura” atua, pois o sujeito do ritual está libertado da estrutura e situado
em uma situação ambígua, sendo considerado em perigo, mas, ao mesmo tempo,
também como perigoso. “[T]ransitional beings are particularly polluting, since they are
neither one thing nor another; or may be both; or neither here nor there.”
720
Turner
(1967), p. 97.
721
Cfr. Agustín (2005b), p. 98.
722
De Genova (2002), p. 427.
723
Idem. Cfr. também Andrijasevic (2004), p. 71.
724
Cfr. Protocolo de Tráfico (2000), artigo 8, p. 56.
725
Cfr. Van Impe (2000), p. 123.
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142
devolvidos ou deportados possam tentar repartir novamente é grande e,
portanto, constatam que estes esforços de reprimir a migração vão contra os
interesses dos migrantes.
726
Entre as entrevistadas de Piscitelli, por exemplo, a
maior preocupação se centraliza não no tráfico, mas nas ações repressivas do
governo em relação à prostituição e às migrantes irregulares, ou seja, no medo
da deportação.
727
“Neste universo o desejo não [é] necessariamente sair da
prostituição, mas poder permanecer de maneira regular na Europa.”
728
E
Kempadoo enfatiza: “As pessoas não querem ser resgatadas, elas querem se
sentir seguras. Elas não querem voltar, elas querem continuar.”
729
Igualmente
denuncia Agustín o perigo de serem retraficados, e a situação na qual narrativas
contra o tráfico são utilizadas para estabelecer políticas anti-migratórias.
“And when migrants are referred to as ‘trafficked’ they are assumed to have
been wrested away against their will, allowing immediate unsubtle
deportation measures to appear benevolent (and to be characterised by
some ironic activists as ‘re-trafficking’).”
730
Neste sentido, a deportação faz parte do discurso que estabelece o
migrante como outro, representando uma conseqüência da diferença constituída,
possibilitando o Estado a recuperar o poder supostamente perdido, como
problematiza Berman:
“They [state institutions] remake these ‘popular strangers’, into ‘unpopular’
foreigners, into illegal immigrants whose deportation becomes part of the
price paid for the reiteration of state sovereignty. (…) The rapid deportation
of ‘illegals’ and ‘victims’ empowers the state to contest this threat and to
protect the political community while in practice placing more barriers
before migrants, increasing the likelihood that they seek traffickers’
assistance and creating more opportunities for their exploitation.”
731
Analisando as respostas ao “problema” da migração irregular por parte dos
governos como resultado da produção de conhecimento através do
funcionamento do discurso,
732
é possível constatar que através da deportação, o
biopoder exerce a sua expressão mais cruel, no sentido de que na base está o
racismo que individua o migrante “ilegal” como não pertencente ao território
726
Cfr. Kempadoo (2005), p. 69.
727
Cfr. Piscitelli (2006) p. 14 e Piscitelli (no prelo), p. 20.
728
Piscitelli (2006), p. 14. Cfr. também Agustín (2005b), p. 111.
729
Kempadoo (2005), p. 69.
730
Agustín (2004a), p. 89.
731
Berman (2003), p. 53 e p. 59.
732
Cfr. Ibrahim (2005), p. 178.
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estatal e impõe a expulsão desta pessoa; um fato que Foucault comenta como
“assassínio indireto”.
733
Assim, na tentativa de controlar o processo migratório, os
Estados criam uma “diáspora abjeta”, ou seja, como o denomina Nyers, uma
“deportspora”.
734
A análise deste discurso revela que a associação da pessoa traficada com
o migrante “ilegal” leva a implicações preocupantes, no sentido de que constrói
este como outro, instalando mecanismos de exclusão de direitos, concedidos
unicamente a uma comunidade política (supostamente) homogênea, composta
por cidadãos. A pessoa traficada não somente não obtém proteção e ajuda, mas,
além disso, é exposta a políticas questionáveis, que aumentam a vulnerabilidade
das pessoas em questão, e que também não solucionam o problema do tráfico.
Através da análise dos discursos é possível desmascarar a constituição de
um outro como parte da dinâmica que visa a legitimar a exclusão, a
discriminação e a expulsão deste outro; e a identificar a perspectiva que
considera o tráfico como problema da migração e advoga a instauração de
regimes de migração mais estritos como condição que, ao final, leva
paradoxalmente a uma proliferação da prática de tráfico de pessoas.
5.5. Conclusão
O entendimento do tráfico internacional de pessoas como problema de
migração no sentido que o interpreta como uma forma de migração não-
documentada, enfatiza a presença dos elementos da força e da coação. De
acordo com o Protocolo de Tráfico, estes fatores são os critérios característicos
para que uma prática possa ser concebida como forma de tráfico. No entanto,
existe uma variedade de autores que criticam a suposta concordância entre
tráfico e migração forçada.
Uma primeira crítica se refere a que o tráfico não surge exclusivamente de
processos de migração “forçada”, senão que é possível que resulte de diferentes
formas de migração voluntária. Ao mesmo tempo, é muito provável que formas
voluntárias, não-voluntárias, legais e “ilegais” no projeto de migração se
misturem, dificultando ainda mais uma distinção nítida entre as diferentes formas
de migração. Também a diferença conceitual entre a prática de tráfico e aquela
de contrabando é problematizada pelo efeito de constituir um “sujeito-vítima” no
733
Foucault (1999, [1976]), p. 306.
734
Nyers (2003), p. 1070.
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tráfico - que precisa ser salvo - versus um “sujeito-cúmplice” no contrabando -
que deve ser condenado. Neste sentido, a crítica reivindica uma definição do
tráfico mais diversificada, mostrando que na prática quase não existem casos
“puros” de contrabando ou de tráfico, e constatando que a maioria das
estratégias de migração desafiam a simples categorização.
Além disso, a interpretação do tráfico como problema de migração o
identifica preferivelmente como resultado de fatores estruturais econômicos. No
entanto, autores críticos enfatizam a parcialidade desta literatura, que deixa do
lado fatores cruciais para o desenvolvimento do projeto de migração, ou seja, a
importância da subjetividade e da perseguição de um sonho, relacionado à idéia
de mobilidade, que não se limite a expectativas econômicas.
Uma outra tese na literatura convencional sobre o tráfico internacional
humano - particularmente no contexto europeu - é que este se trate de um sinal
da chamada “crise das fronteiras”, no sentido de que Estados estão perdendo o
controle sobre as próprias fronteiras, incapacitados a regular a migração “ilegal”
e, portanto, a garantir a “proteção prometida” aos cidadãos. Esta argumentação
está fundamentada sobre a concepção clássica do Estado, concebido
principalmente em termos espaciais, dos quais os limites representariam as
fronteiras externas, e em termos temporais, dos quais o poder soberano seria a
expressão de uma identidade política moderna permanente e eterna.
735
No
entanto, na crítica esta concepção clássica é contestada, enfatizando que em
lugar de uma perda de controle, trata-se de uma transformação dos elementos
chave desta perspectiva, ou seja, da fronteira e da soberania. Enquanto ocorreu
uma “desterritorialização” da fronteira que se apresenta porosa e descontínua
em vez de linear e estável; a soberania resulta dividida entre vários novos atores
na política internacional.
Neste sentido, a desconstrução das bases do discurso estabelecido,
possibilita uma investigação e um questionamento da dinâmica inerente. Assim,
um aumento de tráfico não é deduzível de uma chamada “crise das fronteiras”,
senão pelo contrário, está relacionado com a implementação de regimes de
migração mais rígidos; ou seja, não há mais tráfico por causa de uma falta de
controle senão por um acréscimo de mecanismos de controle. A suposta “crise
das fronteiras”, então, gera medos para justificar a instalação de tecnologias de
controle em forma de leis migratórias mais rígidas.
Neste contexto, as posturas críticas expõem a participação dos Estados na
735
Cfr. Walker (1993), p. 162.
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produção da lógica da “ilegalidade”, e quanto este discurso seja benéfico para
este. Deste modo, a produção da “ilegalidade” do migrante é desmascarada
como instrumento para legitimar um aumento de controle contra os sujeitos na
mira, que, por sua vez, estão caracterizados pela vulnerabilidade da onipresente
possibilidade de deportação, constituindo forças de trabalho baratas e
“descartáveis”.
A identificação da pessoa traficada como migrante “ilegal” o constitui como
outro. Assim, o imaginário da migração como forma de invasão desata medos e
ansiedades que são projetados neste outro. Neste sentido, alem das políticas
migratórias, também a constituição deste outro faz parte dos mecanismos de
controle que se articulam através do biopoder. A reificação de certas categorias
de pessoas como perigo, estabelece uma estratégia política que visa a excluir
estes grupos de pessoas.
736
Assim, o discurso constrói uma naturalização e
racialização destes outros, colocando a diferença como característica fixa e
inerente nos corpos dos “sujeitos abjetos”. O entendimento do outro como
“ilegal”, o concebe em termos de criminoso que deve ser punido. A atribuição do
status de “non-persone”, por sua vez, leva a humanidade deles, justificando a
exclusão da comunidade política e dos direitos relacionados. Além dos
mecanismos de exclusão e da negação de direitos, então, este discurso
estabelece as bases para uma “refundição” do self, ou seja, da identidade da
comunidade política. Assim, uma parte do discurso que coloca o migrante como
outro culmina na reivindicação da desaparição deste, e encontra a expressão
material nas políticas de deportação.
Neste sentido, a análise do discurso que estabelece o migrante como outro
é importante no sentido que possibilita a desmistificação desta narrativa como
justificativa para a integração e o aumento de mecanismos de controle, que, na
sua última conseqüência, em lugar de erradicar a prática da migração “ilegal” -
junto com o associado tráfico de pessoas internacional - paradoxalmente, leva a
um aumento daquelas práticas. Neste sentido, o discurso analisado traz consigo
implicações políticas preocupantes, sublinhando o poder estatal em detrimento
dos direitos das pessoas que migram ou que são traficadas.
736
Cfr. Donnan e Wilson (1999), p. 171.
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146
6 Conclusão
“[T]here is a problem with the manner in which the ‘problem of trafficking’ (...) has
been addressed by a majority of players over the past decade or so. This
problem is connected to the construction of the discourse of trafficking or the
manner in which the trafficking story is been told.”
737
A minha proposta neste trabalho era de analisar a questão do tráfico
internacional de pessoas a partir de uma perspectiva discursiva. Neste
entendimento, a prática em questão é constituída através de diferentes discursos
no sentido foucaultiano, que exercem poder por meio do estabelecimento de um
conhecimento específico, ou seja, de “regimes de verdade”, que, por sua vez,
formam a base para a tomada de ações. Neste sentido, o enfoque deste trabalho
está na relação entre a atribuição de significado por meio de diferentes discursos
e a produtividade destes.
A concepção de discurso como um sistema de significação que constrói a
realidade social, está ancorada num entendimento teórico pós-estruturalista,
que, por sua vez, entrou na disciplina das Relações Internacionais (RI) através
do chamado Terceiro Debate, reivindicando uma desestabilização de supostos
fundamentos disciplinares, e de um afastamento de todo tipo de “meta-
narrativas” e formas de “fundacionalismo”. Contudo, existe uma tendência do
auto-denominado “centro” da disciplina a marginalizar as críticas surgidas deste
debate. Da mesma forma, os estudos de discurso sobre o tráfico internacional
de pessoas ocupam um lugar "marginal" entre as pesquisas sobre a questão,
pois a maioria destas se limita a descrever o fenômeno, indicando os distintos
atores envolvidos, as rotas do tráfico, as práticas, as conseqüências e os
mecanismos para combatê-lo. Assim, a minha pesquisa se diferencia da maioria
dos estudos sobre o tema, que se aproximam ao tráfico reivindicando políticas
específicas para erradicar a prática, alistando reportagens de violência e criando
a “história típica de tráfico”, sem questionar nem os significados do termo
“tráfico”, nem as implicações relacionadas com as definições atribuídas. Neste
sentido, a abordagem aqui adotada parece “an unaffordable luxury to step
737
Sanghera (2005), p. 4.
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147
outside”;
738
porém permitindo um questionamento dos pressupostos, do
funcionamento e das implicações dos discursos que constituem o fenômeno
complexo do tráfico.
No primeiro capítulo delineei a trajetória histórica do fenômeno em
questão, constatando diversos paralelos entre os discursos contemporâneos
sobre o “tráfico de pessoas” e as narrativas do chamado “tráfico de escravas
brancas” no final do século XIX. As duas práticas são consideradas ameaças
para a ordem social e política que devem ser combatidas urgentemente, e
podem ser interpretadas como metáforas para diversos temores. O chamado
“pânico moral” é interpretado por vários autores como expressão de medos
sobre a sexualidade e sobre a independência feminina na virada do século
XIX/XX. Deste modo, esta narrativa funciona, sobretudo, para reter mulheres
prestes a migrar e para indicá-las o lugar “apropriado” na família e na casa,
reivindicando valores e papéis (femininos) tradicionais. Na análise resulta que
ocorre o mesmo que no chamado “precursor” do tráfico atual, também neste há à
constituição da vítima emblemática do tráfico como principalemente uma mulher
jovem, inocente e ingênua. Assim, alguns elementos cruciais do funcionamento
dos discursos sobre o tráfico humano internacional são já esboçados.
No presente trabalho escolhi como exemplos três interpretações mais
correntes do fenômeno em questão: como assunto de crime organizado, como
problema moral e como questão de migração. A análise enfatiza a produtividade
destes discursos, ou seja, as implicações políticas deles.
A interpretação do tráfico internacional de pessoas como problema de
crime organizado prevalece como uma das primeiras definições nos debates
sobre o tema. Nesta perspectiva, que recebe apoio do vigente Protocolo de
Tráfico que suplementa a Convenção Transnacional do Crime Organizado das
Nações Unidas, é enfatizada como estratégia de combate ao tráfico uma
resposta agressiva da justiça criminal. O cerne desta abordagem consiste na
imagem ameaçadora de redes criminosas organizadas, que supostamente se
expandem cada vez mais, construindo, deste modo, um quadro alarmante do
tráfico como ameaça para a segurança e estabilidade nacional que requer uma
tomada de ação rápida e efetiva.
Nesta perspectiva, o combate ao crime é considerado prioritário e, assim, o
papel da vítima do tráfico ocupa um lugar secundário, o que leva a posturas
críticas a indicar que as “soluções” propostas, como a perseguição dos
738
Doezema (2000), p. 47.
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148
traficantes e a deportação das vítimas, representam mais o interesse estatal do
que o das vítimas, absolvendo, ao mesmo tempo, o Estado de qualquer
cumplicidade, e atribuindo toda “culpa” a sindicatos de crime organizados. Outro
elemento crucial deste discurso representa a dicotomia vítima-criminoso, que
está presente particularmente na elaboração de perfis de vítimas. A imagem
típica da vítima é a de uma pessoa desesperada, desamparada, inocente e
ingênua, capturada pelo e entregue ao crime organizado como parte da
estratégia que instaura mecanismos de controle sobre os corpos das vítimas,
que devem ser vigiados e disciplinados.
Neste sentido, a identificação da pessoa traficada como vítima representa
a condição para a justificação do discurso de “salvação” e de proteção; e a
condição para um reconhecimento desta como “vítima”, por sua vez, é uma
identificação com ela, ou seja, o discurso de compaixão precisa de uma
construção do sofrimento de forma que seja reconhecível e não merecido, para
que os espectadores possam se identificar com a “vítima” do tráfico. Segundo
esta lógica, para obter ajuda e apoio internacionais, não é aconselhável lhe
atribuir uma identidade mais ambígua, pois colocaria em questão o
funcionamento do discurso humanitário. Assim, elaborei que neste discurso as
emoções operam como “tecnologia governamental” constituindo sujeitos
governados, ou seja, possíveis vítimas do tráfico que antes de ser traficadas se
“autocontrolam” ou se “autogovernam”. Enquanto este discurso constitui a
possível vítima do tráfico em perigo, o discurso securitativo estabelece a pessoa
traficada como perigo em si; explicitando deste modo a ambigüidade do papel da
pessoa traficada nos programas anti-tráfico. Aqui ela é interpretada como perigo
e ameaça para a sociedade; elemento que surge de modo ainda mais explícito
no discurso sobre o tráfico como problema de migração.
A dicotomia vítima-crime está também presente nas campanhas anti-
tráfico analisadas, no qual é evocado um imaginário em torno da “pobre vítima” e
dos “poderosos criminosos”, lembrando a lógica discursiva da “história típica” do
tráfico. As campanhas reduzem as “vítimas” a objetos controlados pelas redes
do crime organizado, sem agência própria, estabelecendo um discurso sobre
elas como um outro que deve ser contido, capturado e controlado para recuperar
a ordem hierárquica modificada pelo movimento intrínseco do tráfico. Assim, é
possível constatar que as campanhas, em vez de encorajar uma migração
segura, intimidam e desaconselham qualquer mobilidade.
Neste sentido, este enfoque desloca uma compreensão diversificada do
tema, pois atrás destas narrativas está o perigo de que as simplificações e
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149
representações uniformes da questão desfigurem a questão de modo tal que os
mecanismos elaborados para combater o tráfico não se apresentem eficientes,
no sentido de úteis e solícitos para as pessoas traficadas. Nesse sentido, a
crítica a este discurso aponta a uma maior reflexão sobre o fenômeno para obter
um melhor entendimento e, assim, práticas políticas mais efetivas.
Além disso, podemos constatar que a relação entre tráfico e crime
organizado não é auto-evidente, ou seja, o discurso que estabelece esta relação
como essencial e inevitável é contestado especialmente porque se apresenta
como quadro exclusivo, dominando o engajamento atual social e político contra o
tráfico. Assim, esta abordagem é denunciada por utilizar a temática do tráfico
como ponto de partida para reivindicar outras questões, como o controle dos
grupos envolvidos no crime organizado. Neste sentido, esta abordagem
representa somente uma parte do quadro sobre o fenômeno multifacetado do
tráfico e, portanto, é necessário reivindicar abordagens alternativas que levem
em consideração as variedades e complexidades do assunto.
No capítulo três analisei o tráfico humano internacional como problema
moral, mostrando que a temática em questão muitas vezes é reduzida a esta
forma de tráfico. Na minha análise da polêmica no feminismo em torno da
relação do assunto com a prostituição, constato que é possível diferenciar
principalmente entre dois entendimentos que se opõem. Estas duas lógicas
discursivas não somente estão arraigadas em concepções teóricas diversas,
mas constroem também dois sujeitos diferentes.
Para a abordagem das feministas radicais, não existe diferença qualitativa
entre a prostituição e o tráfico; elas reconhecem a convergência entre as duas
práticas como condição importante para um combate efetivo da exploração
sexual da “mulher” na estrutura de dominação chamada patriarcado. O
entendimento deste bloco, que está representado pelo grupo denominado
International Human Rights Network com a ONG Coalition Against Trafficking in
Women (CATW) na liderança, está arraigado no discurso abolicionista da virada
do século, produzindo a prostituta como “fora do lugar” e desviante, que precisa
ser “salva” e “resgatada”, para não colocar em perigo a ordem social.
No grupo que contesta esta perspectiva estão aderidos ao Human Rights
Caucus a ONG GAATW (Global Alliance against Traffic in Women) e
organizações do movimento das trabalhadoras do sexo. Aqui a prostituição é
considerada uma forma de trabalho, e a luta se refere ao direito de escolha,
tanto econômica como de autodeterminação sexual. Além disso, uma
diferenciação entre o tráfico e a prostituição é reivindicada, enfatizando a
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150
importância da questão do consentimento. Enquanto para as feministas radicais,
toda forma de prostituição é considerada forçada, aqui é advogada uma
perspectiva mais diferenciada que propõe distinguir entre a prostituição forçada e
aquela voluntária, classificando a primeira como uma prática de tráfico.
A crítica às feministas radicais, imputa nesta perspectiva não somente a
falta de diferenciação entre as práticas em questão, mas também a atribuição de
um significado fixo e imutável à prostituição. Na abordagem neo-abolicionista
que está fundada no discurso moderno, mulheres que se prostituem ou que são
traficadas são vistas como “escravas sexuais” ou como “vítimas”, estabelecendo,
deste modo, um discurso hegemônico sobre os sujeitos sem deixá-los espaço
para a agência. A crítica denuncia esta perspectiva pela reificação de uma
imagem da mulher/prostituta como subordinada sexual. Aqui “a classe mulher” é
constituída através da experiência em comum da opressão no patriarcado. Deste
modo, o sujeito neste discurso baseia-se em uma vitimização, e pode ser
interpretado como um “sujeito reprimido”, que é revocado cada vez que este
discurso é adotado. Assim, a minha análise revelou que as políticas de
“libertação” perpetuam um discurso moralista, que, embora originariamente
tenha visado a proteger a suposta vítima, ao final, vem a ser um mecanismo
controlador, reificando a dinâmica de poder inerente ao discurso.
A postura crítica propõe o rompimento desta dinâmica através de uma
leitura pós-moderna do sujeito. Através da dissolução das dicotomias é possível
ir além do dualismo da modernidade, no sentido de que a prostituição é
considerada nem inerentemente opressiva, nem subversiva, mas que o
significado é continuamente negociado. A proposta, então, refere-se à
constituição da subjetividade através de processos ativos de negociação. Aqui, o
significado da prática sexual é definido pelo contexto e pode adquirir uma
variedade de sentidos. Neste entendimento, toda prática de atribuição de uma
identidade fixa é considerada parte de um processo autoritário, já que todo
significado constitui-se unicamente em relação a outros significados. As
feministas pós-modernas criticam as feministas modernas pela insistência no
estabelecimento de um sujeito fixo como base pela reivindicação de direitos, que
pode levar a um essencialismo moderno. Portanto, argumentam, é necessário
uma desconstrução de “mulher”, como também da vitimização compartida como
base para uma política feminista. Deste modo, como enfatizam, por exemplo,
Rosi Braidotti e Judith Butler, são abertas infinitas possibilidades, contestando a
acusação da suposta perda do sujeito. Neste sentido, em contraponto ao “sujeito
reprimido” do discurso moderno, o discurso feminista pós-moderno visa, através
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151
da criação de um espaço discursivo aberto, a uma subversão de estruturas de
dominação, sem levar a uma essencialização, naturalização e reificação
daquelas. Assim, esta visão abre mais possibilidades para um entendimento
diversificado do tráfico humano.
Contudo, a criação de novas dicotomias, por sua vez, abriga o perigo de
perpetuar - de novo - um pensamento em binarismos visado a romper. Neste
sentido, o objetivo para o futuro do trabalho contra o tráfico internacional
humano, dever-se-ia concentrar em ir além desta “fossa teórica”, visionando to
bridge the gap, dando voz às pessoas envolvidas no tráfico internacional
humano, que agora estão à margem da discussão, já que as experiências delas
se apresentam bem mais complexas e mais amplas do que este debate de dois
lados consegue captar.
A minha pesquisa sugeriu, então, que o perigo do discurso moralista está
na perpetuação de dinâmicas de poder em vez da erradicação e da
transformação dessas. Assim, em lugar de permitir uma transformação de
estruturas de opressão, ao final converte-se em uma colaboração com essas.
Esta colaboração faz-se ainda mais evidente nas alianças que contrai este bloco
com grupos religiosos de direita, como indicou o exemplo nos EUA, levando a
implicações políticas perigosas, no sentido de que os entendimentos morais
subjacentes, em lugar de fortalecer as pessoas traficadas, levam a uma maior
vigilância dessas, como também a um aumento de controle e do estigma das
trabalhadoras do sexo em geral. Ao mesmo tempo em que este discurso é
estabelecido como “regime de verdade”, outras perspectivas são excluídas,
levando a um empobrecimento do entendimento da questão do tráfico e a
práticas políticas questionáveis, como a da negação de fundos para
organizações que não condenam explicitamente a prostituição; e a sanções para
países que não combatem este fenômeno de forma considerada “efetiva”.
No capítulo cinco, analisando a perspectiva do tráfico como problema de
migração, é desconstruída a lógica discursiva da interpretação do tráfico como
exemplo paradigmático da migração forçada. Neste sentido, uma visão
diversificada e um afastamento das dicotomias (migração forçada versus
voluntária, “ilegal” versus “legal”) são reivindicados, enfatizando a
impossibilidade de uma suposta “pureza” destas categorias, além da
constatação de que a prática do tráfico pode surgir de diferentes formas e
motivos de migração.
Além disso, o entendimento de migração em termos de segurança,
representado pela metáfora da invasão – especialmente presente depois dos
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152
eventos do 11 de setembro 2001 e no âmbito da chamada “guerra ao terrorismo”
- evoca a imagem da ameaça já presente no discurso do tráfico como problema
de crime organizado. Assim, o tráfico é interpretado como resultado de uma
suposta “crise das fronteiras”, requerendo estratégias de proteção urgentes
como, por exemplo, normas de controle fronteiriços mais estritas.
739
Esta chamada “crise das fronteiras” levaria a uma perda de controle das
fronteiras por parte dos Estados e, por conseqüência, a um declínio da
soberania. Contudo, como elaborei, este entendimento faz parte de uma
concepção clássica do papel do Estado como protetor dos cidadãos e da noção
tradicional da fronteira como preservadora da soberania. Uma desconstrução
das bases desta narrativa desmascara esta como parte de um discurso mais
amplo sobre a globalização e sobre temores associados a este processo. Assim,
é possível identificar que neste discurso são criados diferentes medos para
justificar a instalação de regimes mais estritos de migração. Neste sentido, o
argumento da perda de controle por parte dos Estados, por causa da chamada
“crise das fronteiras” que levaria a um aumento do tráfico, é questionado.
Na minha pesquisa problematizei que os mecanismos de controle da
mobilidade dos migrantes, em lugar de erradicar a prática do tráfico, servem para
criar as condições da emergência e da proliferação do tráfico. Assim, um círculo
vicioso é colocado em ação e, por sua vez, é perpetuado também em estudos
convencionais das RI que mantêm a noção da soberania indivisível e da fronteira
fixa e estável, permitindo uma nítida distinção entre um “dentro” e um “fora”,
atribuindo ao outside os elementos de desordem, da anarquia e do caos – se
contrapondo a um inside pacífico, justo e ordenado.
Neste sentido, podemos afirmar que os discursos que atuam aqui não
somente fortalecem as dinâmicas de controle estatais em lugar de debilitá-las,
mas também mostram que, em lugar de um aumento do tráfico por causa desta
suposta “crise das fronteiras”, ocorre um acréscimo do tráfico por causa e de
uma ampliação dos mecanismos de controle estabelecidos. Assim, constato que,
em lugar de um mundo mais aberto para todos, o direito à mobilidade não está
realizado, muito pelo contrário, está acontecendo um processo de “rebordering”,
ou seja, um aumento da construção de fronteiras.
740
Contudo, o aumento de
políticas restritivas, em lugar de ajudar a combater as práticas “ilegais” - como as
de tráfico, contrabando e migração não-documentada - criam situações de
739
Cfr. também Pécoud e Guchteneire (2006), p. 70.
740
Cfr. ibid., p. 80.
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153
“ilegalidade”, não impedindo as pessoas de migrar, senão forçando-as a se
mover no espaço “ilegal”; que, por sua vez, aumenta a vulnerabilidade destas.
Esta vulnerabilidade junto com o estado de “deportável” (deportable) fazem parte
da produção do migrante “ilegal” como sujeito subordinado, sem direitos e
desamparado, que é utilizado como força de trabalho barata e descartável, e
alvo de exploração.
A constituição do migrante como outro, junto com a implementação de
políticas migratórias mais rigorosas, são mecanismos identificados como
reguladores e técnicas de poder para “proteger” a população dos cidadãos da
população dos migrantes, desenhados como ameaças e perigos. Através da
biopolítica que utiliza o racismo para fragmentar o campo biológico da
população, é constituída a categoria do migrante como outro (parecida com o
estabelecimento da prostituta como desviante), atribuindo-lhe uma identidade
diferente e inferior para, deste modo, justificar um tratamento discriminatório.
Neste contexto, ocorre a reversão da problemática: a xenofobia e o racismo são
apresentados como reações às ameaças em lugar de ameaças em si mesmas.
Assim, os cidadãos convertem-se em “vítimas de invasão”, enquanto os
imigrantes tornam-se “perpetuadores de agressão”.
741
Deste modo, por meio da
reificação do migrante como outro, estabelece-se um discurso que coloca os
migrantes como ameaça, em lugar de concebê-los em perigo.
Além disso, a análise da lógica discursiva permite desmascarar a
construção do migrante como outro como tendo um papel constitutivo para a
construção do self, ou seja, o cidadão como “sujeito político incluso” precisa do
migrante como “sujeito apolítico excluso” para se estabelecer. Neste sentido, o
processo de negação de direitos políticos para o “abjeto” migrante é condição
para a atribuição de direitos ao cidadão. Para que a ordem política seja
preservada, então, os limites entre estas duas categorias devem ser mantidos.
Deste modo, como elaborei no presente trabalho, as categorias “abjetas”, como
os “estrangeiros/migrantes/traficados”, exercem um papel importante na
fundação e na preservação de comunidades políticas.
A construção do migrante como outro, puxado aos seus extremos por meio
do processo de othering, leva a uma desqualificação dele da categoria de
humano, representando uma estratégia para justificar a exclusão e a violência
contra ele. Deste modo, uma identidade fixa é instalada através de um discurso
de naturalização e de racialização deste outro, considerando a diferença uma
741
Andrijasevic (2006), p. 2.
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característica fixa e inerente ao corpo dele - comparável ao discurso sobre a
prostituta por parte das feministas radicais, apresentado no capítulo quatro.
A eliminação do outro, que se exprime de forma simbólica na interpretação
do processo de migração como paralelo da fase liminar e transitória dos ritos de
iniciação, encontra a sua realização de forma material na prática de deportação.
Através desta prática, o biopoder exerce a sua expressão mais cruel, no sentido
de individualizar o migrante “ilegal”, classificá-lo como não pertencente ao
território e impor a expulsão dele, criando, deste modo, uma “diáspora abjeta” ou
“deportspora”.
742
Assim, o discurso que atua aqui é identificado como
instaurando dinâmicas que visam a legitimar a exclusão, a discriminação e a
expulsão deste outro e, deste modo, como dando justificativa para a integração
de mecanismos de controle. Estes, por sua vez, como já mostrado também na
análise dos discursos anteriores, em lugar de erradicar a prática de migração
“ilegal” e o associado tráfico de pessoas, leva a um aumento daquelas práticas.
Para concluir, podemos constatar que a abordagem discursiva deste
trabalho possibilitou uma visão diversificada e crítica do assunto. Neste sentido,
através da desconstrução dos discursos mais correntes sobre o tráfico, foi
possível problematizar as bases que os sustêm. Deste modo, é possível
constatar vários paralelos entre os discursos analisados que, confirmando a
minha tese, funcionam como mecanismos de controle e como meios repressivos
e pretextos para alcançar outros objetivos, porém se disfarçando como formas
de ajuda e de proteção para as vítimas do tráfico.
Assim, a análise desmascara os discursos mais comuns e verifica que os
mesmos têm efeitos contra-produtivos e até perigosos para as pessoas
traficadas. Para pesquisas futuras, então, seria adequado seguir um enfoque
que vá além das lógicas discursivas inerentes aos discursos mais correntes
sobre o tráfico de pessoas e que chegue, talvez por meio de entrevistas com
pessoas “traficadas”, a um imaginário diversificado do assunto.
Deste modo, a presente pesquisa, enfocando a produtividade dos
discursos, alerta para um maior cuidado no tratamento do fenômeno, e para uma
maior consideração das implicações políticas dos discursos adotados,
reivindicando uma aproximação à questão complexa do tráfico internacional de
pessoas de maneira mais abrangente.
742
Cfr. Nyers (2003), p. 1070.
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