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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E
LITERATURA FRANCESA
KOUASSI LOUKOU MAURICE
A presença do moço pobre em Le roman d’un jeune pauvre de Octave e
Feuillet e em O tronco do Ipê de José de Alencar
v.1
São Paulo
2007
1
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA
A presença do moço pobre em Le roman d’un jeune homme pauvre de Octave
Feuillet e em O tronco do Ipê de José de Alencar
Kouassi Loukou Maurice
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Língua e Literatura Francesa
do Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, para
a obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Glória Carneiro do Amaral
v. 1
São Paulo
2007
2
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Kouassi Loukou Maurice
Dissertação de mestrado apresentada ao
Departamento de Letras Modernas da
Universidade de São Paulo para a obtenção do
título de mestre.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof.Dr.________________________________________________________________
Instituição:__________________________Assinatura:__________________________
Prof.Dr.________________________________________________________________
Instituição:__________________________Assinatura:__________________________
Prof.Dr.________________________________________________________________
Instituição:___________________________Assinatura:_________________________
3
A meus pais queridos: N’Dri Kouassi
Assoko Amoin
A todos os meus irmãos e irmãs
A todos os meus irmãos
e irmãs em Cristo pela
oração constante
A meus amigos Samarone,
Ricardo, Priscilia,
Marco, André pelo apoio constante
A toda a comunidade marfinense e africana
do Brasil.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Senhor Jesus Cristo por me ter dado a força nos momentos difíceis,
À Profa. Dra. Glória Amaral, que, nos anos de convivência, muito me ensinou, e
contribuindo para meu crescimento intelectual.
5
6
RESUMO
O presente estudo comparado tenta mostrar os aspectos sociais nas obras de
Octave Feuillet (França) e de José de Alencar (Brasil). Tomando o texto como ponto de
partida e como meta de investigação, o estudo mostra como a presença do moço pobre
em ambos os romances nos ajudar a apreender o movimento histórico e o processo
social. O trabalho não mostra só as semelhanças, mas também as diferenças entre Le
roman d’un jeune homme pauvre e O tronco do Ipê. Notamos que a ideologia dos dois
escritores se reflete na forma de seus romances.
Palavras-chaves: Aspectos sociais, Octave Feuillet, José de Alencar, movimento
histórico, ideologia.
7
ABSTRACT
The present compared study attempts to show the social aspects in the novels of
Octave Feuillet and José de Alencar. Taking the text like starting point and mark of
investigation, the study shows how the presence of the poor boy in the both novels help
us to apprehend the historical movement and the social process. The work not only
shows the differences but also the similarities between the two novels. We notice that
the ideology of the two writers reflects in the form of his novels.
Keys Words: Social aspects, Octave Feuillet, José de Alencar, historical movement,
ideology
8
APRESENTAÇÃO
A minha paixão pela literatura nasceu desde criança. Movido pelo desejo de
conhecer, de aprender, sempre me refugiei nas páginas dos livros. Meu contato com os
livros ocorreu mesmo antes de freqüentar a escola primária por meio da minha irmã
mais velha que já sabia ler e escrever. Esta paixão cresceu quando comecei a freqüentar
a escola primária, pois, já no primeiro ano (CP1: Curso preparatório primeiro ano)
conseguia ler tudo o que está escrito em francês embora não apreendesse às vezes o
sentido das frases. Inimigo das matérias científicas, sempre optei pelas matérias
literárias que requeriam leituras.
Depois de tirar o Baccalauréat (Baccalauréat A: literário) que é o equivalente do
vestibular, ingressei na Universidade e me matriculei na faculdade de espanhol, uma
língua de que gostava tanto. Tendo conhecimento de que se precisava de alunos
voluntários para criar uma faculdade de português, não me fiz esperar. Deixei logo a
faculdade de espanhol rumo para a nova conquista diante das zombarias dos meus
colegas que não viam nenhuma saída na minha escolha. Tudo ocorreu no decorrer do
ano letivo 99- 2000. Três anos depois, fui titular da licenciatura de português que abriu
o caminho para a candidatura à bolsa do programa PEC- PG.
O meu desejo era estudar a literatura brasileira, mas no último momento, tudo
mudou. Felizmente, a Profa. Dra. Glória Carneiro do Amaral aceitou ser a minha
orientadora. Não hesitei diante desta oportunidade na medida em que, embora esteja
matriculado em Língua e Literatura Francesa, a minha linha de pesquisa se insere nas
relações França – Brasil, trabalhando com a literatura comparada.
A primeira proposta de trabalho, por várias razões, não encontrou um terreno
fértil onde germinar. Surgiu, então, a necessidade imperiosa de buscar um outro assunto
que pudesse ser explorado no prazo concedido. Fiz várias leituras ao mesmo tempo em
que cursava as disciplinas obrigatórias que a Pós-Graduação requeria com o propósito
de achar um tema que seja objeto de minha dissertação. Realmente enfrentei muitas
dificuldades. Pensando no prazo que voava, lembrei-me sempre do poema de Lamartine
que começa nestes termos: “Ô temps! suspends ton vol...”
1
. Pressionado, por um lado,
pelo tempo fugaz e por outro por minha orientadora que exigia páginas escritas, tinha a
impressão que estava numa espécie de labirinto.
1
LAMARTINE, Alphonse de. Oeuvres poétiques complètes. Texte établi, annoté et presenté par Marius-
François Guyard, Paris : Gallimard, 1963, p. 38.
9
O presente tema me ocorreu durante uma leitura de “Os três Alencares” de
Antonio Candido, deparando-me com a frase seguinte: “ Este segundo caso é do
orgulho peculiar ao jeune homme pauvre da literatura romântica, prolongada até hoje
pela literatura de carregação e as novelas para moças”
2
.
Achar um tema não implica necessariamente a conclusão do trabalho. É mister
também achar a bibliografia profícua para poder levar a cabo o trabalho. Aí é que se
colocou um dos maiores problemas que enfrentei no andamento desta tese. A pesquisa
bibliográfica sobre o autor francês Octave Feuillet se revelou escassa. É com certeza,
um dos motivos que atrasou o bom andamento do trabalho. Prova disso, só um
exemplar do seu romance: Le roman d’un jeune homme pauvre (1858) foi encontrado
na Biblioteca da FFLCH. Ampliei minha pesquisa procurando na internet meios para
adquirir não só informações úteis como também obras críticas, mas esta busca não deu o
resultado desejado. Cheguei a entrar em contato com a secretária da chamada Revue des
Deux Mondes em que o próprio autor colaborou e publicou. Nela, se encontra também
artigos críticos assinados pela crítica de seu tempo. Embora muitas informações fossem
achadas, não consegui tomar posse delas e, por fim a secretária mudou para outro lugar.
Só consegui ter uma parte de um romance de Feuillet (Monsieur de Camors) que a
Revue des Deux Mondes me enviou por meio de um professor que veio a São Paulo.
Todas estas dificuldades que venho enumerando geraram um atraso enorme.
Mas atraso não quer dizer fim, pois: “O que é difícil de alcançar dá mais prazer do que o
que é fácil. É isto possivelmente uma banalidade de se dizer, mas não de se pensar. Pois
porque há de ser mais agradável o que se paga com sacrifício? E, todavia sabemos que a
sede melhora o que se bebe e a fome o que se come”
3
. Com a sugestão de alguns
professores, eu resolvi trabalhar com as duas obras apesar das dificuldades com o título
seguinte: “A presença do moço pobre em Le Roman d’ un jeune homme pauvre de
Octave Feuillet e O tronco do Ipê de José de Alencar”.
SOBRE OS DOIS AUTORES
2
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte,
Editora Itatiaia Ltd, 2000.
3
Citação tomada ao escritor português Vergílio Ferreira.
10
Octave FEUILLET
4
nasceu em Saint-Lô a 11 de Agosto de 1821, filho de
Jacques Feuillet, advogado, depois magistrado e enfim secretário geral da prefeitura da
Mancha, marido da Senhora Pottier de Thorigny. Este filho de boa família de Saint-Lô
renunciou ao Direito para dedicar-se à literatura na qual iniciou com La Vie de
Polichinelle (1846).
A 25 de maio de 1846, ele teve sucesso com Echec et mat, drama em cino atos
escrito com Paul Bocage. Em seguida, sempre com o mesmo Bocage, ele escreveu
Palma ou la nuit du vendredi saint, que foi aclamada a 24 de março de 1847 na Porte
Saint - Martin, e La vieilesse de Richelieu, que será levada ao palco a 2 de novembro de
1848 na Comédia Francesa.
Por volta de 1850, Octave Feuillet deixou Paris para Saint-Lô a fim de cuidar de
seu pai que morava quase sozinho. Ali ele encontrou Valérie Dubois, filha do prefeito
de Saint-Lô, que nasceu a 11 de novembro de 1832 e tornou-se sua esposa em 1851.
Eles ficarão em Saint-Lô até a morte do pai de Octave, em seguida instalar-se-ão em
Paris, primeiramente na Rua Tournon e depois morarão até junho de 1859 num pavilhão
com jardinzinho entre o boulevard de Passy e a Rua dos Bassins, na atual Rua Newton,
mas deixarão uma casa perto de Saint-Lô aonde voltarão frequentemente. Octave
trabalhou para a Revue des Deux Mondes e nela publicou romances e peças de teatro: La
crise (1848), Le Pour et le contre (1849), Rédemption (1849), Bellah (1850) e La petite
comtesse que revelou suas capacidades de análise e lhe fez ganhar a simpatia do público
feminino. Depois publicou Le Parc, Onesta (1856) e a mais famosa de suas obras: Le
roman d´un jeune homme pauvre em 1858. Paralelamente, levou ao palco várias peças
de teatro: La crise no Ginásio a 7 de março de 1854, Péril em la demeure na Comédia
Francesa a 19 de Abril de 1855 na presença da família imperial, e Le village a 2 de
junho de 1856. A 29 de maio de 1857, escreveu Dalila, drama em três atos e seis cenas.
A 3 de Abril de 1862, Octave Feuillet com 40 anos de idade, foi eleito para a
Academia francesa, depois de um derrota a 2 de fevereiro precedente. Tornou-se o 410º
imortal desde a criação da Academia e tomou o lugar de Eugène Scribe (dramaturgo
1791-1861). Aí foi recebido na presença da Imperatriz Eugénie a 26 de março de 1863
pelo secretário perpétuo Ludovic Vitet, que não deixou de fazer uma comparação entre
o “escritor burguês” (outro alcunha popular de Octave Feuillet) e Alfred de Musset. Em
4
DEMORY, Hubert. Octave Feuillet. Disponível em: <http//mapage. noos.fr/hubert.demory/feuillet.htm>
Acesso em: 23 novembro 2005 . (Tradução nossa)
11
1860, levou ao palco no Vaudeville La tentation e depois Rédemption; a 24 de outubro
de 1863 foi Montjoie no Ginásio; em 1865 La belle au bois dormant teve pouco sucesso
no Vaudeville. Em seguida, Cas de conscience em 1867, Le sphinx em 1874, La partie
de dames em 1884 e Charmillac em 1886.
Ele publicou romances: L´histoire de Sybille (1862), Monsieur de Camors
(1867), Julia de Trécoeur (1872), Mariage dans le monde (1875), Les amours de
Philippe e Le mariage d´une femme (1875), Histoire d´une parisienne (1882), La veuve
(1884), La mort (1886) e Honneur d´artiste (1890). Em 1863, Octave Feuillet foi
elevado ao grau de oficial da Legião de honra. Em 1868, o Imperador o nomeou
bibliotecário das residências imperiais.
Quando a guerra de 1870 começou, Octave levou sua mulher e seus filhos a
Jersey e depois entrou para a Guarda Nacional de Saint-Lô. Ficou em Saint-Lô até 1876
e em seguida voltou para Paris, onde morreu a 28 de fevereiro de 1890 e foi enterrado
em Saint-Lô.
Em 1894 a cidade de Paris atribuiu o nome de Octave Feuillet a uma rua
recentemente aberta e que dava acesso ao sítio e que ocupava o antigo jardim de flores
de Paris, nesse novo XVIº distrito.
Dramaturgo e romancista de sociedade, Feuillet foi realmente o escritor de uma
sociedade: este “Musset das famílias” contrariamente aos românticos, seguiu no teatro a
“Escola do bom senso” de Ponsard e de Scribe, pregando o respeito dos valores
familiares e conjugais (La Crise, 1854), ao passo que um romanesco sentimental,
fundado nos amores contrariados de moços pobres nobres do grande mundo (Maxime
de Le roman d´un jeune homme pauvre), guiados pelo sentimento de honra e a religião
(Histoire de Sybille que suscitou em resposta o anticlerical Mademoiselle de la
Quintaine de George Sand,) concedeu aos seus romances uma grande fama. Flaubert a
definiu a respeito do Journal d´une femme (1878): “Seu sucesso (pois é um sucesso)
tem duas causas: a classe baixa acredita que a classe alta é assim; a classe alta vê-se nele
como ela queria ser”.
Feuillet foi considerado o escritor oficial do Segundo Império graças aos seus
romances e o defensor da tradição idealista.
12
José Martiniano de ALENCAR nasceu em 1829 em Mecejana (Ceará). Seu
pai, o senador José Martiniano de Alencar, ex-padre e vulto de projeção na política
liberal, foi um dos animadores do Clube da Maioridade, que levou D. Pedro II ao trono
em 1840. Ainda menino José de Alencar, mudou-se com a família para a Corte (1838)
onde recebeu educação primária e secundária. Em São Paulo, e, em parte, em Olinda,
ingressou na faculdade de Direito (1845), onde integrou o chamado grupo byroniano, de
que participaram, entre outros, Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, e onde
começou sua atividade literária.
Sabe-se que neste período compôs uma novela histórica, Os contrabandistas,
queimada por brincadeira de um companheiro de quarto... Formado, começou a advogar
no Rio, mas a literatura logo o absorveu: primeiro como cronista do Correio Mercantil
(“Ao Correr da Pena”, 1854), como redator do Diário do Rio de Janeiro para o qual
escreve sob o pseudônimo de Ig uma série de artigos críticos sobre o poema A
Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães 1856, suscitando uma
polêmica. No mesmo jornal, saem em folhetim seus dois primeiros “romancetes” de
ambientação carioca, Cinco Minutos, em 1856, A Viuvinha, em 1857, e o romance
histórico que o faria célebre, O Guarani (1857). De 57 a 60, dedica-se ao teatro
escrevendo o libreto da ópera bufa A Noite de São João, as comédias O crédito,
Demônio familiar, Verso e Reverso, e os dramas As Asas de um Anjo e Mãe, todas
representados no Teatro Ginásio Dramático do Rio de Janeiro.
Morto o pai, em 1860, Alencar entrou para vida política, elegendo-se deputado
provincial pelo Ceará e galgando a pasta da Justiça no Ministério conservador de 1868-
70. Mas, ao contrário do pai, que sempre se batera por teses liberais, o romancista
assumiu posições retrógradas (patentes em face do problema escravista) e foi, no fundo,
antes um individualista que um homem voltado para coisa pública.
Enquanto era ministro da Justiça, contrariando D.Pedro II, Alencar resolveu
candidatar-se ao Senado. E foi o mais votado dos candidatos de uma lista tríplice.
Ocorre que, de acordo com a constituição da época, a indicação definitiva estava nas
mãos do imperador. E o nome de Alencar foi vetado.
Este fato marcaria o escritor para o resto da vida. Daí para diante, sua ação traz os
sinais de quem se sentiria injustiçado.
No decênio de 60 escreveu: As Minas de Prata (62-66), Lucíola (62), Diva (64)
Iracema. -Lenda do Ceará (65), além de opúsculos de natureza política (Ao Imperador
– Cartas Políticas de Erasmo, Ao Imperador – Novas Cartas Políticas de Erasmo,
13
1865; Ao povo – Cartas Políticas de Erasmo, 1866; O Juízo de Deus, Visão de Jó,
1867; O Sistema Representativo, 1868).
Retoma a ficção: O Gaúcho (70), A Pata da Gazela (70), O Tronco do Ipê (71),
Sonhos d´ Ouro (72), Til (72), Alfarrábios (“ O Ermitão da Glória” e “ O Garatuja” )
(73); A Guerra dos Mascates (73), Ubirajara (74), Senhora (75), O Sertanejo (75).
De permeio, um drama, O Jesuíta, em 75. Carreira literária pontuada de
polêmicas de certo ingratas à extrema susceptibilidade do romancista: com os
defensores de Magalhães; com a censura, que suspendeu a representação de As Asas de
um Anjo; com o conselheiro Lafayette que chamou à heroína de Lucíola “monstrengo
moral”...; com Pinheiros Chagas, Antonio Henriques Leal e Antonio Feliciano de
Castilho, zoilos portugueses que em tempos diversos argüíram-no de incorreto, o que o
autor respondeu elaborando uma teoria da “língua brasileira”. Sem falar nas
impertinências de Franklin Távora, que nas Cartas a Cincinato (1871), depreciou o
modo pelo qual Alencar concebeu seus romances regionais.
Combalido pela tuberculose, que se manifestara já na sua mocidade, Alencar
leiloou, em 1876, tudo o que tinha e foi com Georgiana e os seis filhos para a Europa
(1877) em busca de tratamento para sua saúde precária. Tinha programado uma estada
de dois anos. Durante oito meses visitou a Inglaterra, a França e Portugal. Seu estado de
saúde se agravou e, mais cedo voltou ao Brasil, onde veio a falecer, passados alguns
meses, com apenas 48 anos de idade.
Quando se lêem os dois primeiros romances de Alencar, Cinco Minutos e A
Viuvinha, depois de Macedo, tem-se a impressão de que o jovem ficcionista cearense
entrava por um gênero (o romance da vida carioca) em que podia ser completamente
original. Mas os primeiros romances de Alencar não definiram apenas sua
superioridade, desde logo, em face de Macedo; definiram também o que veio a ser, ao
longo de vinte anos, as suas características em tal tipo de romance: interesse pelo estudo
de “caracteres singulares”, sobretudo femininos; gosto de intrigas complicadas,
resultantes da complicação dos caracteres, que as viviam ou provocavam; críticas
“austeras” da “sociedade”, isto é, da alta sociedade carioca, do seu materialismo, do seu
amoralismo, do seu esnobismo e da sua desfiguração por força da influência estrangeira
e do que então se reputava progresso e civilização. E foi sabidamente, no sentido destas
características que Alencar realizou, em dois decênios, obras que o consagraram como
Senhora, e muito influenciaram Machado de Assis na sua primeira fase de romancista.
14
Mas Alencar não se impôs, desde logo, apenas no gênero “perfis femininos” e
“quadros da sociedade”: Com a publicação de O guarani, também se impôs por ter
realizado, o ideal da geração de 30, de uma “epopéia fluminense”. O empenho que pôs
Alencar, desde início de sua carreira de escritor, em realizar um romance brasileiro, não
apenas tipicamente nacional nos temas e na expressão, mas sobretudo válido no plano
da literatura universal, pela originalidade e pelas qualidades artísticas, não foi, contudo
ainda com O Guarani que chegou a uma total realização. Essa total realização só a
conseguiu com Iracema – Lenda do Ceará.
Alencar, como se sabe, pretendia retratar o Brasil no tempo e no espaço. Assim
no prefácio que escreveu para o romance Sonho d´Ouro,em 1872, sob o título de
“Benção Paterna”, Alencar agrupa em três fases o período orgânico da literatura
brasileira: 1) A aborígine (primitiva), que compreende as lendas e os mitos da terra
selvagem e conquistada; 2) a histórica, que corresponde ao consórcio do povo invasor
com a terra americana e na qual a linguagem se impregna de modelos mais suaves, ao
mesmo tempo que se formam outros costumes, daí derivando nova existência, pautada
por diverso clima, e 3) a fase da literatura brasileira, que se inicia com a independência
política e a elaboração do verdadeiro gosto nacional.
Dentro das linhas desse esquema, Alencar acomodou a sua obra de romancista,
de tal sorte que à fase aborígine corresponderia Iracema; à histórica, O Guarani e As
Minas de Prata, e finalmente, à nacional, os romances que têm por cenário o ambiente
urbano ou rural, com as imagens autênticas, ainda puras, já em transformação, da vida
brasileira de feitio patriarcal ou mundano. O Tronco do Ipê, O Til, O Gaúcho vieram
dali, embora, no primeiro, sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte e à data
mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica se repassa do
espírito forasteiro. Essa divisão proposta por Alencar foi posteriormente alterada,
acreditando-se que O Guarani ficaria melhor entre os romances indianistas e não
históricos. De qualquer forma, essa divisão nos revela um Alencar consciente de seu
papel de escritor e consciente de sua própria obra. Apesar dos seus defeitos destacados
pelos críticos, Alencar foi desde o início de sua carreira literária, ao mesmo tempo, uma
figura destacada nas letras brasileiras e um escritor de projeção entre os que constituíam
o reduzido público da época. Ele é o fundador do romance brasileiro e o teor literário de
sua obra merece ainda um grande apreço, tanto maior quanto mais compreendido, em
face das condições do seu meio e da sua época.
15
SUMÁRIO
Introdução
I. A questão do jovem pobre
1.1 Caracterização dos dois heróis
a) O jovem pobre
b) O jovem orgulhoso
c) O jovem talentoso
d) O jovem nobre
II. As demais personagens: a questão da hierarquia
IV. O jovem pobre e a sociedade
4.1 A questão do dinheiro
4.2 Amor e casamento
III. O espaço
a) O espaço natural
b) O espaço social
Considerações finais
16
17
INTRODUÇÃO
Uma das características da produção cultural brasileira do século XIX é a sua
dependência em relação aos modelos europeus, sobretudo franceses. Não há novidade
nessa afirmação. Qualquer estudioso da literatura brasileira sabe que os nossos
movimentos literários do passado nasceram e cresceram sob o influxo estrangeiro, um
fenômeno típico de países pobres e colonizados.
5
Isso remete logo à história da literatura brasileira, inserida, como sabemos num
movimento dialético entre localismo e cosmopolitismo. Uma tal afirmação não pode ser
negada na medida em que o Brasil a dada altura da sua história procurou contemplar a
sua realidade na contemplação do estrangeiro. O Romantismo no Brasil surgiu como
resposta a esta preocupação. Se o Romantismo surgiu na Europa (na Alemanha, na
Inglaterra em fins do século XVIII, espalhando-se daí para a França, Itália e demais
países da Europa) como movimento literário insurreto contra os cânones clássicos, no
Brasil, ele seguiu o mesmo rumo.
Na sua tentativa de recusar, no período que se seguiu à independência, o pai
português, estigmatizado como metrópole opressora, e designar, em livre escolha, um
pai adotivo que reunisse qualidades compatíveis com as exigências nascentes, o Brasil
optou pela França.
Se consideramos o espaço de tempo em que ambos os autores Octave Feuillet
(1821-1890) e José de Alencar (1829-1877) vieram ao mundo, atuaram como escritores
e morreram, podemos, sem sombra de dúvida, assinalar que são contemporâneos.
Feuillet viveu sob o Segundo Império francês. Época em que a conspiração da burguesia
contra a Revolução, a denúncia da luta de classes como alta traição, como tendo
dividido nações manifestamente pacíficas em dois campos antagônicos, a supressão da
liberdade de imprensa, a criação da nova burocracia como o mais poderoso esteio do
regime, o estabelecimento do Estado policial como o juiz mais competente em todas as
questões de moral e gosto produziram uma profunda divisão na cultura francesa, como
nenhuma outra época havia até então conhecido.
6
A vida artística foi dominada pela produção fácil e agradável, destinada à
burguesia comodista e de espírito lento. Feuillet foi um dos autores mais representativos
5
FARIA, João Roberto. O teatro realista no Brasil. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de
São Paulo, 1993, p. 261.
6
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 787.
18
conforme mostrou Arnold Hauser: “Um Octave Feuillet ou Paul Baudry, que não
recebem mais de dez linhas nos nossos compêndios, ocuparam incomparavelmente mais
espaço na consciência do público de então do que Flaubert ou Courbet, a quem, no
entanto, dedicamos hoje o mesmo número não de linhas, mas de páginas”
7
. Ao mesmo
tempo dramaturgo e romancista, Feuillet foi um dos dramaturgos mais representativos
como Alexandre Dumas Filho, Emile Augier, Théodore Barrière, entre outros, que
fizeram muito sucesso no Segundo Império. Ele foi talvez o mais conciliador em relação
ao Romantismo ou mesmo ao melodrama de gosto popular. Sua peça Le Roman d’un
jeune homme pauvre (1858) adaptada de um romance homônimo (objeto de
comparação com O tronco do Ipê ) e que realizou de modo ainda mais completo a fusão
singular de seu espírito burguês e moralizador com algumas excentricidades românticas
foi, na época, bastante aplaudida tanto na França quanto no Brasil. Prova disso, foi
levada ao palco no Brasil com uma boa interpretação de Joaquim Augusto no papel do
octogenário Laroque que lhe assegurou o lugar de primeiro ator da companhia no
primeiro semestre de 1860. É interessante lembrar que embora o assunto seja o mesmo,
há uma ligeira modificação
8
entre a peça e o romance.
É bem conhecido o fato de Alencar ter lido os dramaturgos franceses e de ter
aderido ao teatro realista capitaneado por Dumas Fils. É bom também lembrar que
estudos anteriores mostraram algumas semelhanças entre Alencar e Feuillet. Maria
Cecília Queiros de Moraes Pinto, num trabalho de estudo comparado, chegou a mostrar
de maneira nítida vínculos entre alguns autores franceses, entre outros, Feuillet e
Alencar. Le Roman d’ un jeune homme pauvre mais um outro romance (Monsieur de
Camors) do referido autor foram objeto de comparação com Senhora e outros romances
urbanos. Neste trabalho, ela apontou o fato de Feuillet ser o modelo explícito de
Alencar: “Alencar não é Balzac... nem Machado! Assemelha-se mais a Feuillet, seu
7
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral, São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 790.
8
Na peça, Maxime queima o papel e nada revela, a despeito da insistência da moça, que percebe haver
algo errado no ar. Somente com a intervenção providencial do tabelião Laubépin é que tudo se resolve,
pois ele possuía uma cópia do documento. Diante da revelação, Marguerite quer renunciar à herança, mas
como Maxime a ama o final feliz para o jovem casal fica assegurado. Cf. João Roberto Faria. O teatro
realista no Brasil. – São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1993, p. 59.
No romance, a situação é diferente. Maxime queima o papel e nada revela. Não há nenhuma insistência
da moça. Para que o casamento fosse realizado, foi preciso que M. de Bévallan o noivo interesseiro de
Marguerite fosse desmascarado pelo tabelião Laubépin e que Maxime recebesse a herança de Mlle de
Porhoët, sua parenta nobre distante.
19
modelo explícito [...]”
9
. Críticos como Wilson Martins e Artur Mota para citar só estes
destacaram uma possível influência do romance de Feuillet em alguns romances de
Alencar.
A situação histórica acima referida que levou os escritores brasileiros do
Romantismo para frente a buscarem um modelo estrangeiro e especialmente francês, o
fato de ambos os escritores serem contemporâneos e as demais informações elucidativas
tendem a aproximá-los literariamente e a explicar o ponto de partida de uma
comparação baseando-nos no conceito de influência. Conceito entendido na acepção de
ordem qualitativa como o resultado autônomo de uma relação de contato, entendendo-se
por contato o conhecimento direto ou indireto de uma fonte por um autor, na medida em
que Feuillet, hoje um ilustre desconhecido era “na época de José de Alencar, um
romancista de grande popularidade”
10
.
Porém vamos enveredar por um outro caminho quanto à comparação. Será uma
comparação alheia a fontes e influências. Mas como chegar a uma comparação dessas?
Tal pergunta requer uma resposta bem clara e a resposta determinará o objeto do
trabalho a ser feito.
Assim optamos por uma escolha temática comum às duas obras. A prioridade
nesta ótica é dada ao texto. Em outras palavras, é o primado absoluto da obra literária
em si como ponto de partida e como meta de investigação. Daí surgir o presente tema
após uma leitura atenta das duas obras: a presença do jovem pobre em Le roman d’ un
jeune homme pauvre de Octave Feuillet e O tronco do Ipê de José de Alencar.
Falar, em primeiro lugar, do primado da obra como ponto de partida da
investigação, é tentar mostrar que o elemento gerador da pesquisa não foi testar uma
determinada teoria crítica sobre o conteúdo das obras a serem comparadas. Nós nos
limitamos à leitura atenta para discernir a linha mais fecunda para o trabalho.
Porém não temos a intenção de negar valor à teoria literária uma vez que
qualquer estudioso de literatura deve um ter um conhecimento básico da teoria literária.
Neste sentido, esse embasamento teórico constitui um dado implícito da operação
crítica: seu valor é o de um instrumento, uma ferramenta, que torne mais aguçada a
percepção, por parte do analista, dos fenômenos investigados. Convém ter sempre em
9
PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: Perfis. São Paulo: Annablume, 1999, p.
198.
10
NTRINI, Sandra Margarida. Seixas entre Camors e Maxime Odiot (um exercício de Literatura
Comparada). In: Linha d’ Água: Ensino de língua e literatura em debate, nº especial, junho de 1995, p. 17.
20
mente que se trata de um meio para atingir um fim específico: o conhecimento das
obras, como realidades singulares e irredutíveis a esquemas predeterminados.
A crítica, na qual acreditamos e que buscamos aqui praticar, tem por função
primordial enriquecer, no leitor, a experiência da obra enquanto objeto estético e
cultural, apontando nela novos caminhos de conhecimento e fruição. Para tanto, a
linguagem crítica deve primar pela clareza e objetividade.
Em segundo lugar, brota a preocupação de compreender as duas obras sempre
dentro do contexto histórico, social e cultural em que surgiram e que elas, de uma forma
ou de outra, incorpora à sua substância. O seguinte método nos foi inspirado por José
Mauricio Gomes de Almeida.
Assim o nosso propósito é mostrar os aspectos sociais através da presença dos
dois moços pobres em ambos os romances. Neste sentido, o movimento histórico e o
processo social serão levados em conta. É interessante ressaltar as semelhanças assim
como as divergências no estudo que estamos empreendendo, pois nelas (as diferenças)
reside a singularidade de cada obra que é um fato a não negligenciar no estudo literário.
O MOÇO POBRE
Seja na poesia como na prosa, a questão da pobreza sempre inspirou os
escritores. Tanto na França quanto no Brasil, autores sentiram a necessidade de incrustá-
la seja de maneira suave como crua em seus textos. Na França e, sobretudo na prosa,
irromperam vários autores, entre outros, Victor Hugo, Emile Zola que não ficaram
calados diante deste fato. Poetas como La Fontaine, Baudelaire deixaram ecoar sua voz
por meio da tinta. Feuillet não ficou indiferente. Em Le roman d’un jeune homme
pauvre nos apresenta a história de um moço pobre.
No Brasil, a presença da pobreza se fez sentir nas obras de autores como Aluísio
Azevedo, Machado de Assis e até de José de Alencar cuja obra está sendo estudada. Se
com o primeiro que foi fortemente influenciado por Zola, o tema foi encarado de
maneira crua, com os demais, não aparece com a mesma intensidade. Aparece de
maneira dissimulada talvez por causa da chama romântica que perpassa sobretudo as
obras de Alencar e as obras de Machado da primeira fase. Com eles, deparamos com
moços ou moças pobres que depois são herdeiros de importantes quantias.
21
Isto posto, é bom dizer, de saída, que os dois romances, a saber, Le roman d’un
jeune homme pauvre de Octave Feuillet e O tronco do Ipê de José de Alencar revelam
em sua urdidura a presença de dois moços pobres. No primeiro, temos Maxime, um
jovem da nobreza, ex-marquês de Champcey d’Hauterive que, arruinado pelo
desperdício financeiro do pai, encontra-se numa situação desesperadora, ou seja, de
pobreza. Órfão de pai e de mãe aceita trabalhar como administrador da propriedade dos
Laroque. Dispensa o título da nobreza e retoma o nome de família Maxime Odiot.
No segundo, deparamos com Mário, neto do comendador Figueira o dono da
fazenda do Boqueirão. Seu pai, José Figueira, na verdade, herdeiro presuntivo, sai da
casa grande por causa das intrigas habilmente tecidas pela nova mulher do comendador.
Ele só retorna à fazenda quando o pai está doente. A morte deste durante uma visita ao
pai doente no Boqueirão precipita também o falecimento do velho comendador. Com
esta situação, Mário e sua mãe, reduzidos à pobreza, são recolhidos pelo recente dono
da fazenda que é o amigo de infância de José Figueira.
a) Em Le roman d’ un jeune homme pauvre
Maxime apesar da sua condição social decadente não pode ser equiparado a
Coupeau, o protótipo do operário pobre perdido no redemoinho do mundo capitalista
em L’Assomoir de Zola. Tampouco pode ser comparado a Jean Valjean, um dos
protagonistas pobres de Les Misérables de Victor Hugo. Ele é o tipo do aristocrata
decadente e não um pobre comum. No seu artigo intitulado Stéoréotipie et roman
mondain: l’oeuvre d’Octave Feuillet, Jean-Marie Seillan define no sentido restrito o
romance mundano de Feuillet como o “roman dont les protagonistes appartiennent à la
société aristocratique”.
11
O mesmo diz ainda : “De fait, son monde est exclusivement
peuplé de nobles de vielles souche, en majorité normands comme Feuillet l’était lui-
même. Leur micro-univers autarcique est une sorte de Cabinet des Antiques à la Balzac,
un conservatoire de mots, de mœurs et de valeurs monarchistes survivant à l’écart du
XIXº siècle”.
12
Evidentemente, Maxime é descendente dos Champcey d’Hauterive. Sua
11
SEILLAN, Jean-Marie. Stéréotypie et roman mondain: l’oeuvre d’Octave Feuillet. Loxia17 : Littérature
à stéréotypes / Actes de la journée d’études, Nice, 23 février 2007. Disponível em: <http//www.revel.
unice.fr/loxias/ document. htm>. Acesso em 27 julho 2007.
12
SEILLAN, Jean-Marie. Stéréotypie et roman mondain: l’oeuvre d’Octave Feuillet. Loxia17 : Littérature
à stéréotypes / Actes de la journée d’études, Nice, 23 février 2007. Disponível em: <http//www.revel.
unice.fr/loxias/ document. htm>. Acesso em 27 julho 2007.
22
passagem da riqueza para a pobreza é muito significativa. Ela revela a queda de uma
aristocracia poderosa no Antigo Regime conhecido como o Absolutismo para uma
sociedade burguesa em plena ascensão no Segundo Império sob Napoleão III. Desta
forma, não se trata mais de uma nobreza prestigiosa mas, de uma em agonia, ou seja, em
decadência. Podemos dizer que a queda do absolutismo proporcionou a ascensão da
burguesia que se libertou do jugo nobiliárquico. Assim, a queda da aristocracia explica a
ruína da família dos Champcey d’Hauterive que não é senão a figura da nobreza.
Comprovam isso estas frases tiradas da história de sua vida que estava escrevendo:
Voilà donc la pauvreté, non plus cette pauvreté cachée, fière, poétique, que mon indignation
menait bravement à travers les grands bois, les déserts et les savanes, mais la positive misère, le besoin, la
dépendance, l´humiliation, quelque chose de pis encore, la pauvreté amère du riche déchu, la pauvreté en
habit noir qui cache ses mains nues aux anciens amis qui passent! – Allons, frère courage!... (p. 36)
Este antagonismo se reflete mesmo na frase e é marcado pela conjunção “mais”
que introduz uma oposição. A pobreza aqui passa de uma etapa que podemos qualificar
de primária a uma outra mais avançada, mais acentuada. Por meio da personificação que
é um fenômeno de antropomorfização: “la pauvreté en habit noir qui cache ses mains
nues aux anciens amis qui passent”, há uma identificação entre o protagonista e sua
situação social. É como se o sujeito tentasse se disfarçar sua situação caótica reforçada
por “habit noir” que lembra algo de tenebroso, de terrível. A repetição constante da
palavra “pauvreté” mostra certa insistência que lembra a gravidade deste flagelo e nos
ajuda a compreender mais adiante as conseqüências. Este conflito entre o indivíduo e a
sociedade transparece na estrutura da frase pondo a descoberto a pobreza.
Avultam, através desta frase acima, não só o grau de sofrimento dele como
também as exigências ligadas a sua situação: a necessidade, a dependência e a
humilhação. Este fato se reforça com a ausência de M. Laubépin, o escrivão da família.
Maxime, sem recursos e amparo dedica-se ao passeio, sempre minado pela fome. Na
sua visita ao convento da sua irmã Hélène, pegou o pão que ela não tinha comido
fazendo crer que ia dá-lo a um pobre a sua saída. Este pobre de que fala não é senão ele
próprio:
Oui, Hélène, j´ai rencontré un pauvre, je lui ai donné ton pain, qu´il a emporté comme une proie
dans sa mansarde solitaire, et il a trouvé bon; mais c´était un pauvre sans courage, car il a pleuré en
dévorant l´aumône de tes petites mains bien-aimées. Je te dirai tout cela, Hélène, car il est bon que tu
23
saches qu´il y a sur la terre des souffrances plus sérieuses que tes souffrances d´enfant: je te dirai tout,
excepté le nom du pauvre. (p. 43- 44)
Constatamos a gravidade da situação em que o protagonista vive. Ele não tem
nenhum sustento e é votado ao abandono. Ele se apresenta aqui como um mendigo
diante da sua própria irmã na sua incapacidade de revelar-lhe a verdadeira identificação
do pobre a que refere. O sofrimento se revela como uma cicatriz profunda ligada a sua
condição. A pobreza tal qual é pintada não trai o título do romance: Le Roman d´un
jeune homme pauvre. O romance mostra com um toque realista os contornos da pobreza
no Segundo Império francês. Trata-se de uma situação tão terrível em que o sujeito
parece ver a vida como um pesadelo. A projeção que ele faz no futuro deixa entrever a
situação com que estará confrontado. A condição em que se encontra o leva a
representar-se um futuro sombrio em que a luta, a dependência, e a humilhação são as
palavras-chave. Temos a imagem do sujeito diante de um mundo hostil e conflituoso. A
presença de palavras como “insupportables”, “lugubrement”, “degoût” e “impossibilité”
que veiculam a idéia de hostilidade, de horror, de aversão e de incapacidade reforçam o
choque entre o protagonista e o mundo em subsiste. Tudo para ele converge para o
sofrimento:
Je me suis representé soudain sous les plus insupportables couleurs l´avenir de lutte continuelle,
de dépendance et d´humiliation dans lequel j´entrais lugubrement par la porte de la faim; j´ai senti un
degoût profond, absolu et comme une impossibilité de vivre. (p. 45)
Dando-se conta da situação em que Maxime se encontrava, Mme Vauberger
ficou entristecida e comovida. A discussão que teve com seu marido a esse respeito
deixou aparecer a fumaça negra desta pobreza que parece persegui-lo. M.Vauberger
parece irritado com o problema que sua mulher lhe submete e não manifesta nenhuma
preocupação. Surge a representação de um mundo em que os mais ricos pouco se
preocupam com a condição dos mais pobres. A classe alta sempre pensa em manter a
distância que a separa da classe baixa abrindo cada vez mais o abismo intransponível.
A pobreza apresenta sintomas prejudiciais ao indivíduo com quem convive. Estes
sintomas resultam em perigos e sofrimentos a ela ligados caso não haja prevenção. M.
de Laubépin percebeu isso quando consternado com o estado de Maxime se dirigiu a ele
perguntando:
24
Êtes-vous dans les dispositions que je vous ai laissé? Aurez-vos le courage d´accepter le plus
humble, l´emploi le plus modeste, pourvu seulement qu´il soit honorable, et qu´en assurant votre
existence personnelle, il éloigne de votre soeur, dans le présent et dans l´avenir, les douleurs et les
dangers de la pauvreté
? (p. 56)
A discussão virulenta que se travou entre Maxime et Marguerite a caminho do
castelo depois de eles se encontrarem na casa de Mlle de Porhoët, levou-lhe a lembrar
sua condição social:
Assurément, mademoiselle, repris-je avec force; si l´un de nous deux avait un pardon à
demander, ce serait vous: vous êtes riche, et je suis pauvre: vous pouvez vous humilier... je ne le puis!”.
(p. 137)
Surgem nesta frase duas classes sociais opostas. Por um lado, há a classe alta
representada pela figura de Marguerite e por outro a classe baixa cujo protótipo é
Maxime. O conflito reside no embate entre as duas classes antagonistas. A situação
social de Maxime se define melhor no confronto com a de Marguerite.
Se esta pobreza a que Maxime se identifica é a causa de tal sofrimento como a
fome e geratriz de outras situações como a humilhação, a dependência e a necessidade,
ela também se apresenta como óbice ao amor. Ele sabe que está longe de lograr seu
intento que é contrair matrimônio com a Marguerite. As regras sociais exigem que o
pretendente da moça rica seja rico. É uma sociedade que mantém a distância entre a
classe alta e pobre e que favorece mais o casamento por conveniência. O pobre não tem
a menor chance de pedir a mão daquela que ama. Isso leva o indivíduo a uma crise
como reparamos no mundo interior de um Maxime desesperado:
[...] mais, moi, j´ai les mains vides, je n´ai plus d´avenir que de présent; de tous les avantages
que le monde apprécie, je n´en ai qu´un seul mon titre, et je serai très resolu à ne point le porter, afin
qu´on ne puisse dire qu´il est le prix du marché
. (p. 196)
Resumindo, podemos assinalar que o protagonista em Le roman d’un jeune
homme pauvre é caracterizado pela pobreza e está em conflito com a sociedade em que
vive, sociedade burguesa capitalista em expansão. Isso, sem sombra de dúvida, nos leva
a classificá-lo como um herói problemático caracterizado pela busca.
25
A mesma situação observa-se no segundo romance que é objeto de nosso estudo,
O tronco do Ipê. Assim analisando alguns romances de Alencar, como O Tronco do Ipê,
Antonio Candido escreveu:
O certo, entretanto, é que os rapazes são todos pobres e as amadas muito ricas, filhas de grandes
comerciantes e fazendeiros.
13
Mário, o herói do romance acima referido, ilustra a assertiva do crítico. Para
melhor apreender esta colocação é melhor recuar no passado partindo do texto sempre
tendo em mente o tempo exprimido no romance. É interessante fazer menção de que o
conteúdo da obra de Alencar fixa o ano 1850 e por aí nos revela que estamos
plenamente na sociedade patriarcal e escravocrata, ou seja, o Segundo Império
brasileiro rumo para a República. É mister desenhar o quadro social que o Segundo
Reinado oferece. Neste sentido, é importantíssimo referir-se a Raymundo Faoro que fez
um estudo digno de apreciação intitulado Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio
que retoma e individualiza Os donos do poder.
As duas figuras geométricas incrustadas uma na outra merecem atenção
particular por ter uma significação muito grande. A primeira figura, isto é, a pirâmide
desenha a estrutura vertical das classes e a segunda que é o trapézio desenha a estrutura
horizontal dos estamentos. O crítico de vulto Alfredo Bosi no seu ensaio intitulado
Raymundo Faoro leitor de Machado fez uma leitura da obra acima citada. Nele
escreveu:
A pirâmide desenha a estrutura vertical das classes. A base larga reporta-se aos homens do
trabalho braçal: os escravos, os forros, os pobres em geral, brancos ou mestiços. O vértice é constituído
pela reduzida classes dos proprietários, os fazendeiros, os seus comissários e os banqueiros. O
comerciante escalona-se na parte intermediária da pirâmide e gradua-se na proporção dos seus cabedais.
14
Desenha-se através deste trecho a estrutura social do Segundo Reinado brasileiro
com uma classe econômica dominante (os senhores do açúcar e do café). O conteúdo da
obra de Alencar nos leva direito numa fazenda de café, a chamada fazenda do
Boqueirão. A descrição majestosa quanto à situação geográfica da fazenda que Alencar
13
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia Ltd, 2000, p.206.
14
BOSI, Alfredo. Raymundo Faoro: leitor de Machado de Assis. In: Estudos Avançados 18 (51), 2004, p.
363.
26
fez no primeiro capítulo intitulado “O feiticeiro” nos lembra, sem sombra de dúvida, o
famoso vale do Paraíba que ficou impresso nas páginas dos livros de história que
pintam a civilização do café (1820- 1920): “As águas majestosas do Paraíba regavam
aquelas terras fertilíssimas, cobertas de abundantes lavouras e extensas matas virgens”.
(p.34).
Voltando a história do romance, constatamos que depois do casamento
inesperado do comendador Figueira com a sua sobrinha, as relações se alteraram entre
ele e seu filho José Figueira devido à desigualdade da união. Com as maquinações
desta, José Figueira foi obrigado a deixar a casa familiar para ganhar sua vida, ele que
se empregava exclusivamente no serviço da fazenda aumentando o patrimônio que
devia pertencer-lhe como filho único. Assim ficou reduzido a ganhar a vida pelo
trabalho e a aceitar o auxílio de alguns fazendeiros. Mesmo assim, estava reduzido à
penúria e vivia pobremente apesar de sua dedicação ao trabalho para poder sustentar sua
mulher e seu filho Mário que era então uma criança. Com a morte dele no Boqueirão,
Mário e sua mãe passam a viver numa situação de extrema pobreza.
Eles são logos recolhidos à casa de Joaquim de Freitas, o chamado Barão da
Espera, atual dono da fazenda logo após a morte do comendador e antigo amigo de José
Figueira de quem recebeu ajuda. Isso nos remete à estrutura social simbolizada pela
pirâmide e corrobora o que Antonio Candido acima disse. O barão, o mais rico de todos
os fazendeiros da fazenda do Boqueirão está no vértice da pirâmide ao passo que Mário
fica na base larga ostentando a estrutura social do Segundo Império.
Assim como Maxime, Mário o protagonista do romance de Alencar é pobre.
Embora viva numa situação de dependência e sim de favor, Mário mostra os traços da
pobreza que se evidencia no seu trajo como nos o mostra o narrador:
O trajo do menino, embora novo e asseado, indicava logo de primeira vista, pelo corte e como
pela fazenda, que havia entre ele e as duas companhias de passeio muita diferença de posição e fortuna.
(p. 45)
Uma comparação entre o trajo de Mário e de Alice, filha do barão, como de
Adélia, filha do conselheiro, ostenta a condição social de cada um. Temos por um lado
uma classe dominante, ou alta e por outro uma outra, a dos pobres. Alice, filha do barão,
simboliza aqui a primeira e a figura de Mário, a segunda. Uma é rica e o outro é pobre.
O conflito entre o protagonista e a sociedade em que vive é óbvio.
27
Notamos que se trata de uma sociedade patriarcal e escravocrata em que vigora o
favor como o mostrou Roberto Schwarz: “O favor é a nossa mediação quase
universal”
15
. (p.16). Por causa da pobreza, Mário e sua mãe por ordem do barão mudam
para a casa grande. O fato de ele depender do barão e de seu círculo familiar para a sua
sobrevivência cria uma espécie de tensão, uma hostilidade do protagonista à sociedade.
Ele não manifesta mais o desejo de viver como reparamos nesta interrogação:
Mas eu!... Um pobrezinho, que já não tem pai e vive à custa dos outros, que faz neste mundo?
((P.55)
No capítulo intitulado “Tia Chica” Mário, Alice, Adélia e os demais
companheiros fizeram uma visita à tia Chica, esposa de Benedito. Uma vez lá na
cabana, tanto Mário quanto Alice ofereceram presentes respectivamente ao Benedito e a
sua mulher. Mário ofereceu ao Benedito uma moedinha de prata de cunho antigo que
valia uma pataca e um pequeno registro de São Benedito ao passo que Alice trouxe para
a Tia Chica um vestido e um xale de lã bem como um adereço de missangas azuis. O
valor dos presentes dos dois meninos revela a sua posição social, por outras palavras, a
sua classe social como a pirâmide nos mostrou acima: o vértice representado pela classe
dominante e base larga onde se encontra os pobres e os demais componentes. Há um
antagonismo de classe, daí surgir um conflito. O presente de Alice que é a filha do barão
tem um grande valor do que o de Mário o pobre. A tia Chica para provocar seu marido
deixou claro que o presente que recebeu do Mário não era capaz de ser tão rico nem tão
bonito como seu. Frustrado com essa cena, Mário observa:
Sou pobre; não posso dar presentes ricos, como a filha do barão. (p. 67)
Ciente de sua situação, ele só tem uma expectativa: assumir a sua pobreza. Ele
vai até valorizá-la e assevera que às vezes ela dissimula alguma virtude e proporciona
mais a felicidade do que a riqueza: “Que importa ser pobre! Os pobres são às vezes mais
felizes com seu trabalho do que os ricos com seu dinheiro”. (p.88) Apesar do valor que
dá à pobreza, o próprio Mário reconhece a dependência a ela ligada e os sofrimentos
que traz. A dependência a que se refere é o favor que é vigente na sociedade patriarcal e
escravocrata no Segundo Império brasileiro. Embora sua sobrevivência dependa deste
15
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2003, p.16.
28
sistema ele não o aceita plenamente por ser a causa de tantos sofrimentos ignorados por
quem está fora. Aqui é um olhar de dentro para fora. Observamos que o favor apesar de
se apresentar como um sistema coerente a um só tempo tem seu lado positivo e
negativo. Por outras palavras, é um sistema que sopra e morde. A faceta oculta da
referida sociedade se revela nesta frase:
O que me desespera é viver à custa dos outros. Ninguém sabe o que a gente sofre; então mamãe,
coitada! não se queixa, mas chora às escondidas, que eu bem sei. (p. 89)
Mário oferece resistência ao casamento com Alice que o barão planeja. Esta
situação é causada não só pela pobreza como pela suspeita que mina seu ser, pensando
ser ele o assassino de seu pai. Ele se dedicou então a uma introversão revoltando-se
contra o gênio irritável e rústico do menino que tinha sido. Nessa espécie de
ressurreição da alma, sempre transparece o conflito entre o mundo interior do
protagonista e o mundo exterior. O que é pintado aqui é o mundo interior de Mário em
confronto com o mundo exterior por causa da sua pobreza. Há uma crise, daí surgir a
pergunta:
Um moço pobre, educado por caridade, sem arrimo nem futuro, podia nunca recusar o mais rico
dote daquele município quando lho ofereciam de mão beijada e com uma noiva tão bonita? (p.
Se esta situação até aqui é referida pelo próprio sujeito, desta vez, é a vez do
narrador apontá-la:
O pai extremoso empregou todos os recursos para destruir no ânimo do mancebo os escrúpulos
da pobreza orgulhosa que supunha ser o obstáculo sério ao projeto
. (p.27
Face à recusa de Mário ao casamento, Alice numa conversa com seu pai acenou:
Se Mário fosse muito rico e eu pobre, acredito que seria ele o primeiro a pedir. (p.280)
Vem a lume nessa colocação um detalhe importante a não ser negligenciado. A
pobreza aqui se revela como um abismo impedindo o projeto de casamento entre a filha
rica do barão e Mário o pobre. Esta recusa de Mário analisada de perto é velada.
Realmente Mário obedece às exigências da sociedade patriarcal em que não há
29
possibilidade do moço pobre casar com uma moça rica. Sua recusa não é uma recusa
voluntária embora pareça. É uma maneira velada de mostrar certas regras impostas pela
sociedade (Patriarcalismo brasileiro) em que vive que realmente exalta o conflito entre o
protagonista e a referida sociedade.
Ambos os romances Le Roman d´un jeune homme pauvre e O Tronco do Ipê
apresentam a trajetória de dois moços pobres. Embora esta pobreza apareça em
contextos diferentes em duas sociedades diferentes, uma francesa e a outra brasileira ela
constitui um ponto de conexão entre as duas obras. Por um lado estamos numa
sociedade burguesa francesa em expansão do Segundo Império após a decadência da
aristocracia e por outro uma sociedade patriarcal e escravocrata do Segundo Império
brasileiro rumo para a República. As duas sociedades embora diferentes apresentam
características comuns ao estudar a trajetória dos dois heróis. Ambos os heróis vivem
numa situação de dependência, de humilhação. Embora eles sejam pobres, são
orgulhosos, talentosos e nobres, características comuns aos dois, e vistas como uma
forma de afirmação diante da sociedade. Assistimos a uma exaltação dos valores morais
nas duas sociedades através das personagens principais.
b) O moço orgulhoso
A pobreza dos protagonistas favorece o conflito entre eles e a sociedade em que
vivem. Por um lado temos a sociedade burguesa e capitalista no Segundo Império
francês e por outro lado a sociedade patriarcal no Segundo Império brasileiro. Este
conflito faz com que ambos os heróis procurem se afirmar. Aqui não se trata do elevado
conceito que alguém faz de si próprio e sim uma honra, uma dignidade. Os dois moços
apesar de sua pobreza procurem a honra e dignidade. Orgulho aqui é sinônimo de
afirmação do indivíduo pobre diante da sociedade. Os dois autores querem mostrar seja
qual for a pobreza, o homem tem que guardar sua dignidade, sua honra.
Assim em Le Roman d´un jeune homme pauvre, vemos um Maxime orgulhoso.
Apesar de viver na pobreza, sem recursos financeiros e vítima da fome, ele se mostrava
orgulhoso. Esfomeado, decidiu dirigir-se a Mme Laubépin a fim de explicar-lhe a
penúria em que vivia visto que seu marido estava ausente. E como ele hesitava entre o
pudor e a necessidade, a doméstica fechou de súbito a porta. Ele se resolveu então a
jejuar até o dia seguinte dizendo para si próprio que um dia de abstinência não pode
causar a morte. Ele prefere sofrer as conseqüências de seu orgulho:
30
Je me suis dit qu´après tout on ne meurt pas pour un jour d´abstinence: si j´étais coupable en
cette circonstance d´un excès de fierté, j´en devais souffrir seul, et par conséquent cela ne regardait que
moi. (p.44)
Diante desta situação terrível, o pobre Maxime resolveu passear com o fito de
driblar, aliviar a fome que o róia. Mas como escapar a este espécie de felino que ele
próprio expressa por meio desta metáfora? “C´est un tigre qui vous saute à la gorge en
plein boulevard ’’ Esta metáfora, com certeza, traduz um ataque súbito sinônimo de
uma situação perigosa diante da qual ele é incapaz de reagir. Transparece sem sombra
de dúvida o conflito através desta metáfora. Isso também mostra o grau de sofrimento
provocado pela fome que por seu turno é favorecida pela pobreza: “Ce n´est donc pas
un vain mot, la faim”! Il y a donc vraiment une maladie de ce nom-là”. Apesar de tudo
isso, Maxime prefere guardar sua dignidade sofrendo a fome ao usar outros
procedimentos que segundo ele cheiram a miséria e mentira para ganhar a pitança.
Embora possa usar certos métodos mais fáceis para poder sobreviver, opta pela
dignidade, honra mostrando por isso que qualquer homem seja qual for sua pobreza, o
sofrimento pelo qual passa deve ser digno:
Je pouvais en effet l´abréger. Il y a ici deux restaurants où je suis connu, et m´est arrivé souvent,
quand j´étais riche, d´y entrer sans scrupule, quoique j´eusse oublié ma bourse. Je pouvais user de ce
procédé. Il ne m´eût pas été pas plus difficile de trouver à emprunter cent sous dans Paris; mais ces
expédients, qui sentaient la misère et la tricherie, m´ ont décidement répugné. Pour les pauvres cette pente
est glissante, et je n´y veux même pas poser le pied: j´aimerai autant, je crois, perdre la probité même que
de perdre la délicatesse, qui est la distinction de cette vertu vulgaire. Or, j´ai trop souvent remarque avec
quelle facilité terrible ce sentiment exquis de l´honnête se déflore et se dégrade dans les âmes les mieux
douées, non seulement au souffle de la misère, mais au simple contact de la gene, pour ne pas veiller sur
moi avec sévérité, pour ne pas rejeter désormais comme suspectes les capitulations de consciences qui
semblent le plus innocentes. (p.49)
Alertada pela situação pela qual Maxime está passando, Mme Vauberger cheia
de compaixão tenta convencer seu marido para que voe ao socorro dele. M. Vauberger,
muito pelo contrário, oferece terrível resistência à proposta de sua mulher e confessa
não ser a causa de sua ruína. Abalada ela explica ao seu marido ter seguido Maxime, tê-
lo espiado por intermédio de Edouard. Ela afirma ter a certeza que ele está passando
fome: “car il est trop fier pour aller mendier un dîner...” De novo, o orgulho de Maxime
é enfatizado por Mme Vauberger comprovando, mais uma vez, esta atitude adotada pelo
31
protagonista. Este comportamento orgulhoso se evidencia quando ela levou o jantar para
o Maxime quase sufocado pela fome. Este lhe agradece, mas deixar entender que ele só
está passando mal e que ele não tem fome: Ma bonne Luison, je vous comprends, je
vous remercie; mais je suis un peu souffrant ce soir, je n´ai pas faim”. (p.53)
Se diante do sofrimento que o assalta, isto é, a fome, Maxime oferecer
resistência e prefere sofrer por causa do orgulho, este diante da proposta de trabalho que
acabou aceitando manifesta o mesmo sentimento. Maxime vê no fato de trabalhar como
administrador das terras da família Laroque na Bretanha um caráter de dependência. Ele
sabe que ao ir trabalhar nas terras da família Laroque que é, aliás, a mais rica da região,
sofreria humilhações terríveis que afetariam sua dignidade, sua honra. Isso provoca em
si próprio uma insurreição:
Au moment même ou M. Laubépin m’avait proposé cet emploi d´intendant, tous mes instincts,
tous mes habitudes s’étaient insurgés violemment contre le caractère de dépendance particulière attaché à
de telles fonctions
. (p.63-64)
Quando ele se propôs a inaugurar suas funções pela exploração de uma grande
propriedade (fazenda) perto do castelo, Mme Laroque mandou colocar ao dispor de
Maxime um cavalo. Mas Alain pensou que o “berlingot” do seu predecessor é que mais
lhe convinha. Diante desta escolha, Maxime observou:
Mme Laroque foudroya d´un seul coup d´oeil le malheureux Alain, qui osait proposé un intendant de mon
espèce, qui avait été au spectacle chez la grande-duchesse Hélène, le berlingot du père Hivart. (p.90-91)
Relembrando este fato, vemos um Maxime orgulhoso. Esta escolha o levou a
trazer a tona um episódio de sua vida aristocrática, o da época em que ia aos espetáculos
na casa da duquesa Helena. O que está posto em jogo é a questão da honra. Maxime traz
de volta o seu passado feliz, o da sociedade aristocrática para mostrar que merece honra,
respeito e dignidade apesar de estar agora numa situação inferior.
A caminho do castelo, uma conversa travou-se entre ele e Marguerite. Esta, num
tom arrogante, perguntou-lhe se o fato de aproximar-se cada vez mais de Mlle Porhoët
não era uma oportunidade para herdar dela. A primeira resposta que lhe foi dada por
Maxime deixou-a espantada. À sua pergunta: “De me plaindre, monsieur?” Ele replicou
num tom orgulhoso:
32
Oui, mademoiselle, souffrez que je vous exprime la pitié respectueuse à laquelle vous me
paraissez avoir droit. (p.136)
Temos, com efeito, as duas classes da sociedade burguesa, a alta tipificada por
Marguerite e a baixa representada por Maxime. O conflito neste trecho reside na idéia
da primeira querer impor sua supremacia e olhar a outra como desprovida de dignidade
e então inspira a piedade. Isso explica a arrogância de Marguerite e a resposta súbita de
Maxime que exige a honra. Podemos perceber neste embate uma classe que quer impor
sua autoridade, sua soberania e a outra que quer se afirmar, reclamar a honra e a
dignidade. Há uma tentativa de superação, um movimento de baixo para cima. Há um
desejo manifesto de sair do caos, de libertar-se do jugo, uma ânsia para a ascensão.
Após este desentendimento entre eles, Mário passou dois dias sem aparecer no
castelo. Marguerite para pôr fim a este desacordo, convidou-o a um passeio, já que ela
reparou na ausência dele. Cumprindo a ordem de sua mãe que consiste em tratar
Maxime com uma grande consideração, ela apontou para atitude orgulhosa de Maxime:
Ma mère qui prétend, je ne sais pas trop pourquoi, que nous devons vous traiter avec une
considération très distinguée, m´ a priée de m´immoler sur l´autel de votre orgueil, et en fille obéissante je
m´immole. (p.140)
Em substância, convém frisar que Maxime o protagonista em Le roman d’ un
jeune homme pauvre, é orgulhoso. Orgulho sinônimo de busca de honra, de dignidade.
Apesar da pobreza que se revela como uma cicatriz, o herói prefere resgatar sua
dignidade dando assim realce aos valores morais.
Passando para Mário herói em O tronco do Ipê, temos a revelação de que ele
apresenta a mesma característica do que Maxime. Quem chegou a detectar o orgulho do
moço pobre na obra de Alencar foi Antonio Candido. Referindo-se aos dois
protagonistas de Sonhos d´Ouro e O Tronco do Ipê, respectivamente Ricardo e Mário,
ele escreveu:
Este segundo caso é do orgulho peculiar ao jeune homme pauvre da literatura romântica,
prolongada até hoje pela literatura de carregação e as novelas para moças
16
.
16
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia Ltd, 2000, p.206.
33
Assim, como Maxime em Le Roman d´un jeune homme pauvre, Mário em O
Tronco do Ipê é também orgulhoso. Convém apontar logo que esta atitude é
condicionada tanto pela pobreza quanto pela suspeita que lhe róia o coração. Ele
pensava que a herança de que o barão é detentor pertence-lhe e que este matou seu pai
para poder apoderar-se dela. Quem está na base de sua pobreza, no seu entender, é o
barão. Ele está movido pela idéia de se vingar. Neste sentido, ele se aparenta mais a
Hamlet. Então Mário cresce com a preocupação hamletiana de descobrir toda a verdade
e, se possível, punir o culpado.
Quem estudou isso a fundo foi Araripe Júnior, que apresentou Mário como o
irmão gêmeo de Manuel Canho, herói de O Gaúcho:
Irmão gêmeo de Manuel Canho, só com a diferença das exterioridades e de uma aproximação
mais completa das indignações que sitiavam a alma do poeta, o herói do novo romance impõe-se logo à
imaginação como uma afronta a todos os sentimentos francos e bondosos da raça humana. É desagradável
o tipo desse Hamlet-Mirim, que na idade em que todos folgam e desarrazoam ao acaso, já
pertuba-se com
um orgulho descomunal, e sucumbe à idéia de vingar-se na sociedade da morte de seu pai. Caráter
sombrio e cheio de pontos meticulosos, como que José de Alencar combinou-o depois de haver
atravessado alguma dessas criptas que constituem os incidentes de nossa carreira pela terra
17
.
Observa-se que, nestas frases, ao apontar para caráter de Mário, o crítico admitia
a possibilidade de que a experiência individual do romancista houvesse entrado na
formação desse personagem que, segundo disse Eugênio Gomes, é “psicológica e
mentalmente deformado”
18
.
Firme na sua posição, sempre analisando o caráter de Mário que ele denomina
de “criança impossível”, o crítico se esmerou em escrever:
O que de real existe no temperamento de Mário é o progresso de uma mania, que o romancista
inconscientemente insinuou na alma do personagem em que mais se esmerou
19
.
Atentando à análise psicológica empreendida pelo crítico, constatamos que
Mário não é senão o mais expressivo duplo do próprio romancista. Por outras palavras,
ele se identifica o com romancista, daí um desdobramento moral. Eugênio Gomes bate
na mesma tecla quando escreveu:
17
ARARIPE, Júnior. Obra crítica (1868-1887). Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958, v.1, p.224.
18
GOMES, Eugênio. Aspectos do romance brasileiro. Salvador – Bahia: Livraria Progresso Editora,
1958, p. 34.
19
ARARIPE, op. cit., p. 225.
34
Em José de Alencar, a presença mais viva ou mais impressiva é representada pelo menino que
ele quis fazer reviver seguidamente em suas obras. O menino que, atravessando os sertões do Ceará e da
Bahia, na idade de dez anos, reteve os céus e os quadros da natureza que haveriam de servir de fundo às
suas narrativas de sabor romântico. Alencar foi acusado de escrever sobre as florestas sem nunca sair de
seu gabinete. Como se a memória não fosse um receptáculo de coisas vistas... Não atinavam, enfim, os
seus censores, que o menino armazenara para o escritor de longas barbas o material a que sua pena dava
colorido e animação querendo tantas vezes competir com a própria natureza. O mesmo menino dava-lhe
índole combativa desde aqueles dias da escola, em que a perda do posto de monitor feriu fundamente seu
orgulho, predispondo-o a guardar ressentimentos que a experiência da vida política só fez acrescer de
novos dissabores e decepções
20
.
Surge, sem sombra de dúvida, nesta colocação a transferência das aspirações,
idéias, paixões e dos seus pensamentos na alma de seus personagens como é o caso de
Mário. A personalidade emocional do romancista tem, com efeito, na infância, o
espelho em que se mira incessantemente. Estudando o caráter dos personagens de
Alencar entre os quais figura Mário, o mesmo crítico apontou:
Entendido, aliás, que o personagem Ricardo é o duplo lírico, como o menino Mário o é do
caráter resoluto indomável de Alencar – muitos outros personagens, sem excluir alguns tipos de
silvícolas, poderiam ilustrar essa duplicidade individual do romancista através de suas criações.
Duplicidade que, em regra, contribui para reduzir a verossimilhança desses personagens
21
.
À luz das colocações desses críticos, transparece a idéia de que a personalidade
de Alencar influi na criação de suas personagens masculinas. Dito de outra maneira é o
próprio Alencar que se reflete nas suas próprias personagens. Sem, portanto, discordar
de seu ponto de vista, pode-se alegar que o comportamento de Mário tem uma outra
explicação. Aqui temos um moço pobre que carrega no seu peito uma suspeita contra o
barão. Todas suas tentativas para chegar à verdade foram sem respostas a tal ponto que
ele interroga a própria natureza inanimada.
O orgulho que manifesta não é senão o resultado do conflito entre ele e a
sociedade. É uma forma de afirmação. Ele questiona a origem de sua pobreza, o que o
leva a suspeitar que o barão seja o assassino de seu pai que morreu de maneira tão
misteriosa. É uma das razões pela qual ele oferece resistência diante do projeto de
20
GOMES, op.cit., p. 29.
21
Ibidem, 1958, p. 38.
35
casamento orquestrado pelo dono da fazenda. Embora ame a filha do barão, ele resiste à
proposta. Apesar de todos os meios usados pelo barão, Mário parece ser inflexível por
causa dos “escrúpulos da pobreza orgulhosa que supunha ser o obstáculo sério ao
projeto”. Esta “pobreza orgulhosa” constitui um obstáculo à realização do casamento a
tal ponto que o barão reparando nos sofrimentos que a recusa de Mário causava na sua
filha Alice ponderou:
Mário é orgulhoso, minha filha, tem os prejuízos de certos moços pobres. Mostrou dificuldades,
mas havemos de vencer os seus escrúpulos, fica sossegada. (p.279)
Esta colocação mostra, com muita clareza, que a atitude rebelde de Mário é o
fruto do orgulho, mas um orgulho provocado pela pobreza como afirmou o próprio
personagem “orgulho de pobre”. Um outro fato explica a atitude de Mário para com o
barão e a sua filha. Ele representa este casamento como uma forma de expiação. Aceita-
lo é sujeitar-se a servir de pretexto ao delinqüente para aplacar-lhe o remorso do crime.
Aí se coloca a questão da honra, da dignidade. Assim como Maxime, Mário manifesta o
orgulho que é uma forma dele se afirmar na sociedade conflituosa em que está. Sem se
limitar só a estas características, prossigamos nossa análise.
c) O moço talentoso
Como já foi acima mencionado, o talento é uma das características que aproxima
os protagonistas nas duas obras sujeitas ao nosso estudo. Em Le Roman d´un jeune
homme pauvre, Maxime é dotado de talentos. Mostrar seus talentos é uma forma do
moço pobre se afirmar na sociedade conflituosa em que vive. É uma forma de mostrar
que também o pobre tem qualidades apesar de sua situação social inferior com relação
ao rico. É também uma forma de guardar a honra, a dignidade. Quando foi posto à
prova no primeiro dia em que devia inaugurar as suas funções pela exploração de uma
propriedade da família Laroque próxima ao castelo, ele se mostrou talentoso. Apesar da
insistência de Maxime em ir a pé, Mme Laroque pediu que um cavalo fosse colocado a
sua disposição. Por ordem de M. de Bévallan, Proserpine, cavalo difícil de montar, lhe
foi apresentado. Enquanto todas as pessoas do castelo esperavam por uma situação
dramática visto o comportamento do animal, na primeira tentativa de Maxime, a cena
36
assumiu uma outra proporção. Astuto e talentoso, ele escapou à vigilância do animal,
saltou por cima dele rumo à propriedade:
En même temps je me suis mis en selle sans toucher l´étrier, et, pendant que Proserpine
réfléchissait à ce qui lui arrivait, je pris une solide assiette. L´instant d´après, nous disparaissions au petit
galop de chasse dans l´avenue de chataigniers, suivis par le bruit de quelques battements de mains, dont
M. Bévallan avait eu le bon esprit de donner le signal. (p.94)
O talento desenvolvido por Maxime não é o fruto do acaso. Desde criança, ele
recebeu um treinamento rigoroso imposto pelo pai que era um perito nesta arte. A
educação que lhe foi inculcada proporcionou-lhe talentos que acabaram por atribuir-lhe
a importância desejada e aquela que deve garantir-lhe a dignidade pessoal. Alguns dias
depois de sua chegada ao castelo da família Laroque, Maxime foi convidado a um jantar
de que participavam Mme Laroque e o subprefeito. Mme Laroque embora não acredite
no estatuto de administrador de Maxime vê nele um homem bom e agradável com
muitos talentos. Ela suspeitava que Maxime fosse um príncipe mascarado e frisou:
Mon Dieu! Ne m’en parlez pas! Il y a là un mystère inconcevable… Nous pensons que c´est
quelque prince déguisé… Il en a tant qui courent le monde pour le quart d’heure... Celui-ci a tous les
talents imaginables: il monte à cheval, il joue du piano, il dessine et cela dans la perfection. (p. 95)
Note-se que os talentos que ele desenvolve fazem com que tenha uma dignidade,
uma honra na sociedade apesar de sua pobreza como o atestam as palavras acima
citadas de Mme Laroque. Esta habilidade de que Maxime está dando provas não se
limita a essas coisas acima referidas. Ela se manifestou no exercício de suas funções.
Um dia enquanto procedia à renovação do contrato de arrendamento de uma
propriedade importante, Maxime enfrentou um velho camponês finório com quem
negociava. Graças à sagacidade que lhe proporcionou a vocação de advogado, ele
conseguiu persuadi-lo:
Le hasard voulut que j´eusse dès le lendemain à renouveler le bail d´un fermage considérable.
Cette opération se négociait avec un vieux paysan fort madré, que je parvins néanmoins à éblouir par
quelques termes de jurisprudence adroitement combinés avec les reserves d´une prudente diplomatie. ( p.
96)
37
Sentindo o isolamento de Maxime causado pelo desentendimento que surgiu
entre eles, Marguerite convidou Maxime a um passeio pela velha floresta de
Brocéliande em companhia de Alain e do seu cão Mervyn. Guiados por ela, eles foram
até o cume da colina e descobriram a sombrosa e monstruosa mesa de pedra sustentada
por cinco e seis blocos enormes que estão meio cravados no chão e formam uma
caverna realmente cheia de um horror sagrado. Depois de entrado nela e examinado o
dólmen, ele resolveu desenhá-lo. Marguerite com uma coroa de folhas e seu cão ao lado
convidou Maxime a desenhá-los. Com muita dedicação, ele chegou a mostrar seu
talento: “ J’eus le bonheur de reproduire assez fidèlement, grâce au vague d´une
ébauche, la poétique vision que j’étais favorisé ”. A apreciação emitida por Maguerite
depois de examinar o desenho, mais uma vez, corrobora a habilidade de Maxime:
Ce n´est pas mal, dit-elle. (p.148)
Também, O Tronco do Ipê nos apresenta um Mário talentoso. A. Candido
estudando os romances de Alencar evocou a questão do moço de talento. Alice é a
primeira a se referir a este fato quando ao comparar o Sr. Oscar com Mário, observou:
Bonito moço! E tem talento, como Mário. (p.56)
Como Maxime, ele passou por uma fase de treinamento. Contrariamente ao
Maxime que foi treinado pelo pai, Mário é seu próprio treinador: “O menino sabia
nadar; muitas vezes tinha experimentado suas forças no Paraíba, cortando-lhe a veia;
mas a correnteza do rio, ainda mesmo no tempo das enchentes, era suave em
comparação com o torvelinho do lago. Aqui a água tinha um eixo em torno do qual
volvia com a velocidade do tufão”. Como se soubesse que desempenharia um papel
capital no futuro, Mário levou adiante seu treinamento usando todos os mecanismos que
a sua inteligência lhe impõe para desafiar o rio encrespado. Por fim, ele conseguiu a
vitória:
A princípio Mário arriscou-se unicamente nos lugares, onde o lago se espraiava, e a rotação das
águas era ainda lenta, embora pesada. Circulou essas orlas do abismo, provando as forças, e habituando-
se a resistir ao ímpeto da corrente. Mais tarde, protegido por uma corda segura à margem do lago, sondou
o remoinho. Da primeira vez pareceu-lhe que o rodavam vivo. A onda levou-o ao fundo do abismo donde
o vomitou atordoado. Graças ao apoio da corda, e por um supremo esforço, pôde Mário ganhar a margem,
38
onde se atirou extenuado; mas a luta se travara entre aquele menino audaz aquele abismo terrível; um
deles devia triunfar e vencer o outro, ou o abismo havia de devorar o menino, o menino o submeteria o
abismo e zombaria de sua cólera.
Mário triunfou. [...]; com a continuação, chegou a conhecer todos os incidentes do abismo. Sabia onde
estava a raiz encarada no rochedo, a rampa natural da pedra, para em caso de necessidade servir-lhe de
apoio contra a torrente. (p. 125)
Sobressai a imagem do moço pobre que luta para conquistar um lugar na
sociedade. Esta luta entre ele e as águas do Boqueirão é uma representação do conflito
que existe ente ele e a sociedade. O treinamento rigoroso e excessivo a que se submete é
um meio de resistência para poder se afirmar. Este treinamento que se impôs a si
próprio mostra, de antemão, o talento que ia desenvolver no futuro. É importantíssimo
notar que o talento de Mário tem uma ligação estreita com o heroísmo. Bem o mostrou
Mário quando Alice a filha do barão diante da força de atração do abismo se precipitou
na água. Vendo o perigo que ela corria Mário, sem fazer-se rogado se atirou à água:
“com efeito, o intrépido nadador, descendo a prumo ao fundo do abismo, tivera a
felicidade de encontrar ao alcance da mão o corpo de Alice, arrebatada pelo torvelinho.
Enlaçando-lhe com o braço o colo e a espádua e estreitando-a ao seio, procurou surdir;
mas além do ímpeto do remoinho, o peso dos vestidos alagados e da própria roupa que
não tivera tempo de tirar, tornaram a empresa talvez superior às suas forças ”. A idéia
de empreender esta ação salvadora é louvável, mas o boqueirão senhor de seu leito
ofereceu terrível resistência, pronto a defender seu território e a guardar sua presa. Nem
por isso Mário ficou desarmado. Muito pelo contrário não se deu por vencido, mas
decidido a arrancar a presa ao seu inimigo que é o boqueirão. Longa foi a luta, mas
Mário continuou resistindo até que tivesse precisado da ajuda do Benedito e que tivesse
arrancado por fim Alice da voragem. Graças a seu talento de grande nadador e sua
coragem Mário conseguiu desafiar o boqueirão como também a vitória salvando Alice
da morte: “Naquela ocasião, porém, a vida de Alice era preciosa para Mário; pertencia-
lhe como cousa sua; ele a disputara ao abismo, à morte; e tinha-a afinal conquistando
com uma coragem que o elevava perante a consciência. Essa existência arrancada ao
boqueirão era o complemento de seu esforço; o remate de sua obra”. Restava trazer a
vida de volta à vítima visto que ela ainda não recuperou os sentidos. Enquanto o barão e
seu círculo familiar estavam na expectativa ilusória do socorro, desanimados, atados
pela dor e espanto diante do corpo inanimado de Alice, Mário deu provas de seus
talentos trazendo à baila sua experiência adquirida:
39
A perícia do menino na prestação de socorros aos afogados, sendo para admirar, explicava-se
contudo muito naturalmente. Na barca de salvação, montada a expensas do barão, Mário tivera freqüentes
ocasiões de ver aplicadas pelo administrador da fazenda as instruções de um hábil médico da corte, para
combater a asfixia por submersão conforme as indicações do Dr. Curry. Ávido de tudo saber, aquela
jovem inteligência compreendeu o mistério da morte aparente pela falta de ar; e viu em alguns casos a
eficácia desse meio supremo de restabelecer pela inflação do fôlego a vida já extinta no coração
. Ele
sabia que no caso de asfixia por submersão, havia completa cessação de vida, equivalendo a cura a uma
ressurreição; e lembrava-se de ter lido no extrato da obra do Dr. Curry, que, embora a salvação dos
afogados não fosse comum, quando a submersão durava um quarto de hora, contudo havia exemplos de
ressurreição depois de uma submersão por mais de meia hora e até de algumas horas. Alice estivera
dentro d’água apenas uns dez ou doze minutos; e felizmente nenhuma lesão tinha sofrido. (p.143)
Sabendo disso, Mário se livrou de qualquer medo, decidiu empreender sua ação
salvadora. Ao apertar com o dedo as cartilagens do nariz de Alice, ele insuflou-lhe
fortemente o ar nos pulmões por via bucal. Depois de repetir várias vezes a operação, a
vida como a água jorrou e Alice recuperou os sentidos trazendo de súbito o júbilo que
dissipou logo a desgraça.
Apreendidas as três primeiras características conciliadoras, cabe-nos agora
prender nossa atenção à última que é nobreza de caráter.
d) O moço nobre
O jovem Maxime em Le Roman d’un jeune homme pauvre recebeu uma boa
educação. Ele se formou em Direito na qualidade de advogado. É verdade que Maxime
procede de uma família aristocrática, o que realmente influiu no seu caráter, mas o que
nos interessa mais aqui é a nobreza de caráter que ele revela. Assistimos à exaltação dos
valores morais, resultado do conflito entre o indivíduo e a sociedade. O caráter nobre
ostentado pelo protagonista é uma forma de afirmação diante da supremacia
esmagadora da alta sociedade. Prova disso é que ele refutou a primeira proposta de
trabalho que considerou uma ignomínia. Esta consiste em pôr seu nome respeitável “o
marquês de Champcey” no alto de uma lista destinada a lançar uma empresa com fins
especulativos para ganhar a simpatia do público especial a que o anúncio deve ser
dirigido e onde ele ganharia um prêmio, isto é, uma dezena de ações gratuitamente, cujo
valor é estimado no mesmo momento em dez mil francos seria verossimilmente
40
triplicada pelo sucesso da operação. Maxime opta pela honra, isto é, paga as dívidas do
pai, que o deixaram pobre, e honesto. Ao recusar esta proposta de trabalho apesar de ser
gratificante, Maxime se insurge contra a alienação do homem pelo poder do dinheiro.
Em seguida, dispensa o título da nobreza, retoma o nome da família que é
Maxime Odiot e abraça com coragem e determinação a maior das virtudes burguesas: o
trabalho. Ele vai, então, trabalhar como administrador das terras da família Laroque na
Bretanha, uma província da França. Apesar da falta de experiência de Maxime na
qualidade de administrador, M. de Laubépin informou Mme Laroque sobre a sua
probidade.
O primeiro dia de sua administração consistiu na renovação do contrato de
arrendamento de uma propriedade apreciável, operação que ele negociava com um
camponês espertalhão. Findo o contrato com sucesso, o camponês deixou-lhe de acordo
com as cláusulas três rolos de peças de ouro. O costume exigia que a cada renovação do
contrato os rendeiros pagassem um sinal ao proprietário. Maxime nunca sonhou em
reclamar este sinal, pois, nenhuma menção foi encontrada por ele nos documentos que
lhe serviam de modelos deixados por seu hábil predecessor. Porém, Maxime nobre de
caráter, virtuoso, generoso preferiu entregá-los a Mme Laroque ao guardá-los para si
próprio. Ela ficou surpresa ao receber este dom, pois, em trinta anos, mais de dez
contratos foram renovados durante as funções do primeiro administrador, mas ela nunca
tomou conhecimento de uma gratificação dessas. Esta ação não só levou Mme Laroque
a cair em uma profunda reflexão acerca da primeira administração como também a
agradecer Maxime. Isso é percebido quando Maxime põe a descoberto seu mundo
interior:
Ce trait de probité grossière, dont elle avait eu le bon goût de ne pas me faire compliment, n’ en
porta moins Mme Laroque à concevoir une grande idée de la capacité et des vertus de son intendant.
(p.98)
Descobrimos, com efeito, a figura do moço pobre, que apesar da condição social
inferior prefere preservar a sua honra, sua dignidade ao usar meios fáceis e
comprometedores. A atitude de Maxime assume uma feição moralizadora. Maxime é o
protótipo do jovem pobre mas virtuoso, exemplar na sociedade burguesa em expansão.
Apesar da atitude rude de Marguerite para com ele e das humilhações sofridas,
Maxime sempre se mostrou virtuoso, respeitoso, nobre. O episódio da torre de Elven, ou
41
seja, o encontro casual no alto de torre de Elven foi uma oportunidade para a nobreza de
Maxime se evidenciar. Marguerite o convidou para um passeio pela torre de Elven.
Uma vez no alto desta, os dois entraram e ficaram a sós. Quando vão sair, porém,
perceberam que foram trancados ali por alguém que não os viu. Já é quase noite e
Marguerite, nervosa, insinua que Maxime preparou uma armadilha para comprometê-la,
isto é, desonrá-la. A isso, acrescentou ela que ele valeu-se desta artimanha para
consquistá-la na sua fraqueza e gozar de sua fortuna, mas que não conseguirá. Fora de
si, e diante das incriminações proferidas contra ele, Maxime a segurou pelas mãos numa
manifestação de violência que a dominou e abre-lhe o coração. Marguerite ficou
inflexível perante estas declarações amorosas. Para provar então que a ama e que deseja
preservar a honra de ambos, ele atira-se do alto da torre, sobre a copa das árvores,
arriscando sua vida. Este incidente levou Marguerite a mudar de opinião pedindo para
Maxime não só perdoar-lhe as ofensas, mas também falar-lhe. Ele então respondeu:
– Ne craignez rien, lui dis-je. Je n’ai aucun mal. Prenez seulement patience une heure ou deux.
Donnez-moi le temps d’aller jusqu’ au château, c’est le plus sûr. Soyez certaine que je garderai le secret,
et que je sauverai votre honneur comme je viens de sauver le mien. (p.242)
A preservação da honra e da dignidade é que domina mais o pensamento de
Maxime. Nesta obstinação, surge a idéia de que a pobreza não fixa limite à exaltação
das virtudes do homem seja qual for a sua situação social. Feuillet através do
personagem principal pobre exalta os valores morais da sociedade burguesa a que se
identifica. Nesta exaltação impressionante, há uma camuflagem manifesta do conflito
entre nobreza e burguesia no Segundo Império francês. Para melhor entender, paremos
nosso olhar sobre esta reflexão de Arnold Hauser:
Ao romance naturalista de Flaubert, de Zola e dos Goncourts, que sempre excitam e agitam o
leitor, a elite social opõe os romances da Révue des Deux Mondes, sobretudo os de Octave Feuillet. Obras
que descrevem a vida da sociedade elegante e representam seus
objetivos como o ideal supremo da
humanidade civilizada; obras em que ainda há heróis reais, cavaleiros fortes, bravos e
altruístas,
personagens ideais
que são membros da alta sociedade ou estão corporificados em jovens que essa
sociedade está preparada para adotar. [...] Feuillet não vê diferença entre elegância e cultura, entre boas
maneiras e bom caráter; em seu entender, a boa educação é sinônimo de uma nobre disposição, e uma
atitude de lealdade às classes superiores é prova de que a pessoa é, em si, “algo melhor”. O herói de seu
Romance de um jovem pobre (1858) é a personificação dessa boa criação e nobreza; ele é generoso e
42
bonito, desembaraçado e inteligente, virtuoso e sensível, e apenas prova por sua pobreza que a
distribuição dos bens materiais da vida não fixa limite para a realização dos ideais aristocráticos
22
.
Estes trechos revelam com muita clareza o pensamento de Feuillet. Autor a favor
da burguesia, Feuillet molda seu personagem de acordo com sua visão idealista,
conciliadora. Notamos que ele é defensor da supremacia da classe alta sobre a classe
baixa, o que explica, aliás, a atitude de lealdade de Maxime.
Um dia depois do incidente, Maxime teve a oportunidade de analisar alguns
documentos indispensáveis que, a seu pedido, lhe foram entregues por Mme Laroque no
sentido de resolver algumas dificuldades assinaladas. Estes arquivos secretos estão nas
mãos de seu sogro aos quais sempre se mostrou atento. Enquanto o velho estava
dormindo, duas ou três gavetas cheias de papéis que foram tirados secretamente do
gabinete de M. Laroque foram sujeitos à análise. Para sua grande surpresa, no primeiro
papel com que deparou, seu nome de família foi repetido várias vezes. O documento
surpreendente descoberto delata os fatos ocorridos no início do século nas Antilhas,
envolvendo pirataria e guerra com a Inglaterra, que revela a origem desonesta da fortuna
do patrão. E a vítima, coincidentemente, foi um ancestral de Maxime. Este segredo
descoberto coloca Maxime como senhor da situação. Mas exigir a fortuna da família
Laroque significaria prejudicar Marguerite. Ele então queima o papel e nada revela
embora saiba que este segredo pode mudar o curso da situação. Este gesto ainda mostra
a nobreza de caráter do jovem Maxime:
Cependant que devais-je faire de ce terrible secret ? Ce qui me saisit tout d’abord, ce fut la
pensée qu’il détruisait tout obstacle entre Marguerite et moi, que désormais cette fortune qui nous avait
séparés devait être entre un lien presque obligatoire, puisque pour seul au monde je pouvais la légitimer
en la partageant. [...] Eh bien, non ! ni aujourd’hui, ni demain, ni jamais, s’il tient qu’à moi, la honte ne
rougira ces deux nobles fronts. Je n’achèterai point mon bonheur au prix de leur humiliation. Ce secret
qui n’appartient qu’à moi, que ce vieillard, muet lui-même, ce secret n’est plus : la flamme l’a dévoré.
(p.251-252)
A pergunta de Maxime exibe o conflito subjacente. Constatamos que há um
conflito entre ele e a sociedade. Ou seja, a sua situação social inferior com relação a
Marguerite constitui um obstáculo. Ao descobrir o segredo, Maxime tem o direito de ser
22
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral, São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 815 et seq.
43
o herdeiro mas o autor faz com que renuncie ao seu direito queimando o documento
comprovador. Isso é um desejo manifesto do autor a fim de atingir seu objetivo como
foi acima mencionado.
Dois dias depois da sua desventura, Maxime resolveu ir ao castelo e foi logo
avisado do estado crítico em que o avô de Marguerite se encontrava. A paralisia que
tomou conta dele está piorando e anuncia sua morte em breve. Assim Maxime e M.
Desmarets foram substituir Mme Laroque e sua filha que, tendo cuidado do doente com
abnegação por muito tempo, tinham que descansar. O doutor também exausto não
tardou em deixar Maxime sozinho. Às tantas da noite, ele foi tirado do sono de súbito e
para sua grande surpresa viu o velho doente que, meio erguido de seu leito o olhava
atento. Este revelou logo a identidade oculta de Maxime e pediu para conceder-lhe
perdão: “Monsieur le marquis, pardonnez-moi”. Sempre com os olhos fixos em Maxime
ele reiterou seu pedido. A resposta positiva de Maxime a um só tempo proporcionou-lhe
a alegria e fez-lhe chorar. Enquanto ele estendia seu braço ao Maxime, ele murmurou
estas palavras: “Oh! l’anglais!” e entregou a alma. Maxime ficou com a alma
profundamente perturbada, mas resolveu guardar o segredo entre o morto e ele.
Alertada pela situação desagradável que está se preparando, Mlle de Porhoët
decidiu avisar logo Maxime para que o projeto não seja levado a cabo. Mme Laroque e
sua filha Marguerite resolvem abandonar seus bens a uma congregação de Rennes com
o propósito de abolir a desigualdade de fortuna que os separa. Por outras palavras, elas
querem ser pobres dado que é-lhes impossível tornar Maxime rico. Aqui se coloca a
questão da diferença social. O nobre Maxime por ordem de Mlle de Porhoët decidiu
deixar o castelo. Antes de partir, ele escreveu uma carta a Mme Laroque pedindo-lhe
para renunciar a uma resolução cujas conseqüências ela ignorava e de que ele não era
cúmplice. Ele nunca iria aceitar sua felicidade à custa de sua ruína e para desviá-la
completamente deste projeto infundado ele informou-lhe vagamente sobre a
possibilidade de conseguir uma fortuna no futuro:
Je fis à la hâte mes apprêts de départ, puis j’écrivis quelques lignes à Mme Laroque. Je la
suppliais de renoncer à une resolution dont elle n’avait pu mesurer la portée, et dont j’étais fermement
déterminé, pour ma part, á ne point me rendre complice. Je donnais ma parole, – et elle savait qu’on
pouvait y compter, – que je n’accepterais jamais mon bonheur au prix de sa ruine. En terminant, pour la
mieux détourner de son projet insensé, je lui parlais vagamente d’un avenir prochain où je feignais
d’entrevoir des chances de fortunes. (p. 272- 273).
44
Convém frisar que apesar da pobreza de Maxime, ele dá provas de uma nobreza
de caráter admirável. Embora possa mudar o curso da situação, ele preferiu ocultar o
segredo para preservar o bem-estar da família Laroque. Além disso, ele resolveu deixar
o castelo para aniquilar o projeto infundado de Mme Laroque e sua família que consistia
em abandonar sua riqueza para ficarem pobres a fim de estabelecer a igualdade entre os
dois moços.
Mário, em O Tronco do Ipê, também é inteligente, educado e revela a nobreza de
caráter embora seja pobre. Assim como Maxime, foi concluir seus estudos na França
principalmente em Paris, pois, o barão tendo-se incumbindo do futuro do menino,
lembrou de mandá-lo à Europa, a fim de concluir seus estudos em um colégio francês.
Mário regressou a sua pátria com o bacharelado em engenharia e em letras. Ainda
jovem, antes de ir para a Europa, demonstrou que é nobre. Embora seja minado pela
suspeita que o leva a pensar que o barão é o assassino de seu pai e que faz com que ele
tenha uma atitude de rejeição ao barão e sua filha, este tem uma virtude que está além
das fronteiras do mal. Quando Alice atraída pelo magnetismo do abismo se precipitou
na água, Mário diante do perigo que corria Alice deixou de lado todo pensamento
vingador e voou ao socorro da vítima com uma determinação inabalável: salvar Alice
ou talvez morrer. Esta vontade é manifestada através destas linhas:
Diante da catástrofe ele esqueceu quem era a vítima, para só se lembrar-se que uma vida corria
perigo. A idéia de vingança, que afagara em um instante de cisma, agora o enchia de horror. Como pudera
associar uma memória querida à desgraça de outrem?
Por isso o nome do pai lhe viera aos lábios, como um grito de perdão e ao mesmo tempo uma santa
invocação, no momento em que ele se arrojava no remoinho para salvar Alice, ou talvez morrer. (p.128)
Neste gesto, transparece, sem discussão, esta virtude louvável do herói.
Enquanto o barão empregava todos os meios para chamar Mário à razão para que o
casamento pudesse se realizar, ele, muito pelo contrário, manifestava seu orgulho e
oferecia terrível resistência. Ele decidiu deixar a fazenda para pôr obstáculo a este
projeto. Diante desta recusa, o barão planejou matar-se afim de que o desejo fosse
levado a cabo, pois, ele sabe que sua morte faria Mário aceitar a proposta. O pretexto
inventado para visitar o comendador Matos no sentido de discutir a proposta que lhe
fizera de comprar certa porção de terras contíguas à fazenda do Boqueirão entrava em
seu plano oculto. Assim de volta para a casa grande depois desta discussão, ele pediu
para o pagem Martinho passar adiante e ir à cabana chamar Benedito para que venha lhe
45
falar. Entretanto o barão o fez de propósito lançou o cavalo para o lago mal este
encobriu-se. E quando o animal espantado empinou arrojando-se fora do remoinho, ele
pronunciando uma última vez o nome de Alice, precipitou-se. Felizmente Mário que
presenciou mais uma vez um incidente desses logo lhe acudiu, daí sua nobreza de
caráter que nós constatamos através destas linhas:
O mancebo não hesitou um momento. São assim feitas as organizações generosas: os atos de
heroísmo e abnegação as reclamam imperiosamente; não pensam, não refletem. Esquecem tudo ante o
perigo: não se lembram, nem indagam, por quem se esforçam. Dedicar-se é para elas um impulso, um
instinto, prodigalidade sublime! Antes que Benedito se recobrasse do espanto, Mário se arremessou da
lapa a tempo de agarrar o corpo do barão. (p.300).
O mistério que há muito pairava e fazia com que Mário suspeitasse o barão
acabou por ser revelado. Depois de salvo o barão, Mário foi chamado à parte por
Benedito para entregar-lhe os papéis que o senhor lhe confiara. Esta carta do barão ao
Mário é uma verdadeira confissão. Nela, ele declara não ser o assassino do pai dele e lhe
conta exatamente a maneira como ele adquiriu a riqueza que não é senão a herança do
Mário. Ele lhe suplicou que renunciasse sua teimosia e aceitasse o casamento, pois, é
ele o próprio herdeiro. Depois de tê-la lido, abalado pela emoção causada pelas últimas
palavras: “E agora não é um homem rico e poderoso quem oferece ao moço
desprotegido a mão de sua filha; é o infeliz, que do seio da eternidade, implora de seu
juiz a felicidade de uma pobre órfã desvalida”, Mário atirou a carta e os outros
documentos ao fogo e os queimou. Com efeito:
O moço fez um gesto de desespero, e parou indeciso. Voltando rapidamente, apanhou a carta que
atirou com os outros papéis ao fogo, acendido poucos antes para aquecer o corpo e as roupas do afogado.
(p.301).
Como Maxime, Mário ao queimar estes documentos que lhe concediam o direito
de reclamar os bens preferiu guardar o segredo para evitar não só a infelicidade de toda
a família como também e a da inocente Alice. O percurso dois protagonistas nos mostra
que ambos aspiram a um mesmo ideal que é guardar a honra, a dignidade embora sejam
pobres. Ambos aspiram a uma ascensão social, mas rejeitam qualquer caminho fácil, o
que explica a atitude dos dois que apagam quaisquer vestígios dos documentos que lhes
46
outorguem o direito de possuir os bens, presumindo uma eventual possibilidade de
alcançar este desejo.
Em substância, podemos dizer que os dois protagonistas tanto na obra de Feuillet
como de Alencar apresentam características comuns, o que estabelece uma ponte as
duas obras. Ambos são pobres e apresentam os traços do herói problemático além de
compartilhar outras características que foram apresentadas ao longo da nossa análise.
Reparamos também que os dois autores escolheram o jovem pobre para projetar sua
visão de acordo com projeto literário de cada um. Feuillet escolhe Maxime o jovem
pobre para melhor exaltar as virtudes da burguesia ao passo que Alencar molda Mário a
fim de melhor difundir seu projeto nacionalista. Ele veicula esta visão habilmente
através do seu personagem principal masculino.
Notamos que a escolha do jovem pobre pelos dois autores para atingir seu ideal
deixa configurar a sociedade e o processo social. Por um lado, temos a sociedade
burguesa e capitalista em expansão no Segundo Império francês e por outro a sociedade
patriarcal e escravocrata no Segundo Império brasileiro rumo para a República,
ostentando desta forma um realismo subjacente.
Ambos os heróis apesar de sua situação inferior preferem resgatar sua honra e
sua dignidade e não usam meios comprometedores como a malandragem, o furto etc.
Esta visão se aparenta com a concepção da Idade Média de que a pobreza longe de
constituir uma desgraça, podia ampliar as possibilidades de salvação. Maxime é longe
de ser o Jean Valjean, personagem de Les Misérables de Victor Hugo que diante da
miséria tentou roubar um pão para poder salvar a vida das crianças afaimadas e acabou
por levar anos de prisão. Quanto ao Mário, ele não assume a mesma posição do que o
Leonardo, herói de Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de
Almeida que surgiu como a figura do malandro na literatura brasileira segundo estudou
meticulosamente Antonio Candido no famoso ensaio intitulado Dialética da
Malandragem.
. Mas limitar-se a estas semelhanças entre Maxime e Mário leva a pensar que não há
nenhumas diferenças entre eles. Porém, há diferenças nítidas que nas linhas a seguir vão
ser destacadas. Analisar estas diferenças nos leva a apresentar a singularidade de cada
47
obra. Notamos que o grau de pobreza de ambos os protagonistas não é o mesmo. Além
do mais, a maneira de eles atuarem constitui um ponto de divergência entre eles. Isso se
deve talvez ao contexto histórico, social e cultural em que as duas obras foram
produzidas e a visão que cada autor quer projetar.
Assim em Le roman d’un jeune homme pauvre, Maxime vive numa condição de
extrema pobreza a tal ponto que lhe é difícil achar comida para se sustentar. Nessa
primeira fase, ele passa por momentos de sofrimento agudo. São momentos em que
observamos um Maxime sem pai nem mãe, sozinho no remoinho da esfera capitalista
em que enfrentava a fome. Embora viva numa sociedade de abundância, de luxo em
que, em princípio, não deveria existir uma situação dessas, ele infelizmente depara com
o imprevisto. Assim reparamos na existência de uma sociedade que, pela aparência, leva
a pensar que tudo é harmonia enquanto dissimula outras realidades tristes. A fome surge
através desta metáfora como um fenômeno da vida selvagem no meio da vida civilizada,
mostrando o lado assustador que esta oculta no seu esplendor:
Il y a quelque chose de particulièrement poignant à se sentir attaqué, au milieu de tout l’ éclat et
tout l’abondance de la vie civilisée, par le fléau de la vie sauvage, la faim. (p.48)
É a esta mesma sociedade que se refere Mme Vauberger numa conversa com seu
marido a respeito de Maxime subjugado pela fome:
Ce n’est pas une honte et une indignité, ça, et ce n’est pas un drôle de gouvernement que ton
gouvernement qui permet des choses pareilles ! (p.52)
Esta análise nos remete à questão do individualismo que é o traço da sociedade
moderna e que foi bem apreendido por Ian Watt:
Na segunda fase, assistimos a uma superação da situação acima pintada.
Maxime, não só para sobreviver como para realizar seu desejo que é casar sua irmã,
opta pelo trabalho. Assim é que ele foi trabalhar como administrador das terras da
família Laroque.
Cumpre notar que os autores realistas (romancistas e dramaturgos) seja os da
École du Bon Sens, François Ponsard e Émile Augier, seja os da comédia realista entre
outros Dumas Filho, Octave Feuillet e Théodore Barrière (estes dois últimos mais
48
romanescos) trataram de apregoar os valores burgueses como o casamento, a
honestidade, a família e sobretudo o trabalho. Como a burguesia estava em franca
ascensão neste momento histórico (O Segundo Império francês) estes valores acima
referidos são exaltados sempre com uma feição moralizadora.
Não podemos esquecer de dizer que é uma época em que: “A França torna-se
capitalista não meramente nas condições latentes mas também nas formas exteriores de
sua cultura. É verdade que o capitalismo e o industrialismo se desenvolvem segundo
diretrizes conhecidas de longa data, mas só agora exercem plena influência; de 1850 em
diante, a vida cotidiana, os lares das pessoas, os meios de transporte, as técnicas de
iluminação, alimentação e vestuário sofrem mudanças mais radicais do que em todos os
séculos desde o início da moderna civilização urbana”. (P.788)
Se atentarmos a este trecho, diremos que este momento histórico é caracterizado
pela mudança e pelo progresso. Trata-se de uma sociedade capitalista em plena
expansão marcada por uma onda de prosperidade econômica e por uma mudança no
comportamento das pessoas. Nela, há tanto uma consolidação e aceleração do tráfego de
mercadorias como uma crescente e disseminada flexibilidade do sistema de crédito.
Com esta transformação vertiginosa da sociedade, poderíamos sem sombra de dúvida
dizer que o poder do dinheiro afeta os valores exaltados pela burguesia revolucionária
que se opõe à degradação moral.
Defensor das idéias burguesas de Feuillet, Maxime insurge-se contra a
especulação, a ociosidade consideradas como uma indignidade e apega-se a maior das
virtudes burguesas: o trabalho. Ao adotar esta postura, o protagonista nos leva à
dignidade do trabalho, tema caro à burguesia em ascensão. O burguês autêntico, está
posto, é aquele que sobe na vida pelo trabalho e não por outro meio contrário aos
valores nobres da burguesia. O homem ainda que pobre deve alcançar a ascensão social
trabalhando e não usando subterfúgios que poluam a moral burguesa. O trabalho, neste
sentido, tem uma função libertadora e enaltece aquele que o exerce.
Como já foi acima referido, este tema foi cultivado por vários autores realistas,
entre outros, Ponsard e Dumas Filho. O primeiro escreveu L’Honneur et l’Argent, peça
que foi um dos grandes sucessos do ano 1850 e o segundo assinou La Question
d’Argent também de sucesso.
A primeira peça narra a história de George, rapaz rico de vinte e cinco anos que
passou a viver pobre depois de gastar toda a fortuna que lhe resta para pagar as dívidas
de seu pai que morreu arruinado e endividado resgatando deste modo a honra da
49
família. Digamos, de passagem, que a história de George é bem parecida com a de
Maxime que seguiu o mesmo procedimento. Diante da proposta de um casamento por
dinheiro com uma mulher de quarenta e cinco de idade, o jovem George quase
absorvido pela tentação chegou a recuperar auxiliado pelo amigo Rodolphe que o
aconselhou a trabalhar. Por fim, ele, tendo escolhido o caminho nobre, isto é, o trabalho
enriqueceu tornando-se um pequeno industrial e casou-se com Lucile, a eleita do
coração.
Quanto a segunda, ela pinta a ascensão de uma burguesia gananciosa por meios
desonestas na França. Dumas nos faz a caricatura desta sociedade através de um
especulador chamado Jean Giraud, que enriqueceu por meios desonestos, manipulando
o dinheiro alheio em manobras arriscadas no mercado das ações. A este, opõem-se René
de Charzy, protagonista e De Cayolle, ambos defensores das idéias do autor.
Contrariamente a Jean Giraud, os dois fazem o elogio dos valores que nobilitam o
homem, a saber, o trabalho, a inteligência e a probidade.
A idéia do trabalho, já foi antes da aparição em cena dos referidos autores
realistas exaltada pelo conhecido fabulista e moralista La Fontaine. Observador da
sociedade francesa do século XVII, La Fontaine, através das fábulas a critica sem
esquecer de trazer à tona sua visão moralizadora. O que nelas retrata não é senão o que
vê cada dia na sociedade em que vive conforme mostra Hippolyte Taine, um dos
maiores estudiosos da época na sua obra cujo título é La Fontaine et ses Fables:
Un homme rentre chez lui le soir, cause avec ses amis, et s’amuse à leur peindre les gens qu’ il a
vus, les caractères qu’ il a observés, les traits de moeurs qui l’ ont frappés ; il ne cherche point ses idées, il
les trouve : elles sont nées d’elles mêmes, par la seule présence des objets. Voilà l’origine des fables de
La Fontaine. Chacune est le récit d’une journée. Il a vu tout à l’ heure les originaux qu’il copie. Ce sont
les personnages de son temps, roi, clergé, bourgeois, paysans. Ils sont à côté de lui, il vient de les quitter
dans la rue, il les désigne du doigt.
23
O mesmo continua:
23
TAINE, Hippolyte. La Fontaine et ses fables. 19. ed. Paris : Hachette, 1911, p. 73 et seq.
50
Il n’y a qu’ à recueillir ces traits épars, on verra repaître tout un monde esquissé à la volée mais
sans que rien y manque. Ces pétits récits, amusettes d’enfants, contiennent en abrégé la société du dix-
septième siècle, la société française, la société humaine.
24
Constatamos que La Fontaine, partindo dos fatos extraídos da experiência
cotidiana, de uma maneira brincalhona, simplista e admirável pinta a sociedade francesa
de seu tempo. O panorama é amplo, pois ele faz o retrato do rei, do burguês, do nobre,
do clero, do camponês.
Emile Faguet, um dos críticos mais conhecidos do Segundo Império francês ao
estudar com mais acuidade a produção de La Fontaine fez a classificação das fábulas em
quatro categorias conforme a orientação que deu a seu trabalho. Diz ele:
Les fables de La Fontaine peuvent être classées, pour la clarté de l’ exposition, en quatre
catégories. On en trouverait cinq, on en trouverait six, on en trouverait davantage mais il ne faut pas
multiplier les espèces, comme disaient nos pères avec beaucoup de raison, en philosophie ; il ne faut pas
non plus multiplier les classifications ; et je crois qu’il suffit, pour la clarté, de partager les fables de La
Fontaine en quatre catégories. Il y a des fables qui sont des contes, et quoique je vous en aie parlé trop
brièvement à mon gré, je n’en reparlerai pas aujourd’hui ; – il ya les fables que j’ appelerai zoologiques,
en vous demandant pardon du pédantisme du terme, c’est-à-dire qu’il y a des fables où figurent des
animaux et seulement des animaux ; – il y a en troisième lieu, les fables que j’appelerai d’ un mot encore
plus pédantesque, mais il n’ en a pas d’ autre, ce me semble, les fables où l’ anecdote n’ est qu’ un
prétexte à une description à une narration de la nature, les fables où le fond du petit poème est un aspect
ou plusieurs aspects successifs de la nature ; – enfin, il ya des fables qui ne sont plus du tout des fables et
qui ne sont que des discours philosohiques ou moraux ; le mot discours peut vous paraître un peu trop
fort, un peu trop solennel, encore que La Fontaine l ait employé lui-même, je dirai : il y a des fables qui
sont des causeries philosophiques et morales et qui ne sont pas autre chose.
25
“Le laboureur et ses enfants”, título de uma das famosas fábulas de La Fontaine
adere, sem dúvida, à quarta categoria. Nela, ele mostra um lavrador que, logo antes de
morrer convida seus filhos a trabalhar. Melhor beber o poema à fonte:
Travaillez, prenez de la peine:
C’ est le fonds qui manque le moins
Un riche laboureur, sentant sa mort prochaine,
Fit venir ses enfants et leur parla sans témoins
24
TAINE, Hippolyte. La Fontaine et ses fables. 19. ed. Paris : Hachette, 1911, p. 74.
25
FAGUET, Emile. La Fontaine. Paris : Société Française d’Imprimerie de Librairie, 1913, p. 268 et seq.
51
«Gardez-vous leur dit-il, de vendre l’héritage
Que nous ai laissé nos parents :
Un trésor est caché dedans
Je ne sais pas l’endroit ; mais un peu de courage
Vous le fera trouver : vous en viendrez à bout
Remuez votre champ dès qu’ on aura fait l’oût
Creusez, fouillez, bêchez, ne laissez nulle place
Où la main ne passe et repasse.»
Le Père mort, les Fils vous retournent le champ,
Deçà, delà, partout, si bein qu’au bout de l’an
Il en rapporta davantage
D’ argent, point de caché. Mais le Père fut sage
De leur montrer, avant sa mort,
Que le travail est un trésor.
A mensagem que decorre da fábula não precisa de novas interpretações. Um
lavrador abastado antes de sua morte, agindo como um testador chamou todos seus
filhos e lhes confiou um segredo. Isto consistia em não vender a herança (a terra) que
tinha recebido de seus pais, e que lhes deixará. Insistiu com eles sobre o fato de um
tesouro estar escondido em algum lugar e que só descobririam depois de tanto esforço.
A mensagem é clara: a prosperidade se dá por meio do trabalho. Enquanto filhos
dignos e obedientes seguiram à letra o conselho e dedicando-se ao trabalho depois de
sua morte lograram o objetivo. Afinal de contas, a sabedoria do pai triunfou e a
conclusão a que chegamos é que o trabalho é um tesouro.
Através deste discurso filosófico e moral conforme a classificação estabelecida
por Emile Faguet, La Fontaine não está lançando as bases de um novo conceito, e sim
explorando um tema inerente à estirpe humana. É um convite para cada qual deixar de
lado a facilidade, a ociosidade e trabalhar para sobreviver e alcançar a prosperidade de
maneira honesta.
Podemos, partindo desta visão, estabelecer uma ligação estreita entre esta fábula
e Le roman d’un jeune homme pauvre com base na valorização do trabalho para poder
alcançar a prosperidade e não por meios desonestos. Por isso que Maxime recusou pôr
seu nome respeitável “marquês de Champcey” no alto de uma lista destinada a lançar
uma empresa com fins especulativos no sentido de ganhar a simpatia do público
especial e preferiu ir trabalhar como administrador das terras da família Laroque na
Bretanha. Digamos que Feuillet assim como os demais autores do Segundo Império
52
acima referidos empenhou-se em discutir as questões sociais de interesse burguês. É o
que nos mostra a Histoire illustrée de littérature française :
Plutôt que par son habileté à combiner des incidents romanesques, il vaut par une observation
assez exacte de l’ aristocratie
26
.
Em O Tronco do Ipê, assistimos a uma situação diferente. Apesar da sua
pobreza, Mário nunca passa fome. Em oposição ao Maxime, ele não trabalha para
sobreviver por ser recolhido com sua mãe na casa do barão, dono da fazenda depois da
morte de seu pai. Sua sobrevivência e sua instrução dependiam dele. Prova disso é o
barão que permitiu que completasse seus estudos na Europa, principalmente, na França.
Vigora, então, uma situação de favor e Mário se apresenta como um simples agregado.
Roberto Schwarz nos informa claramente sobre isso:
Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra,
três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os
primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem
proletários, seu acesso à vida social e seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direito, de
um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz
uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre
estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em conseqüência, por este mesmo
mecanismo
27
.
O próprio Mário apontou para isso quando disse:
Mas eu!... Um pobrezinho, que já não tem pai e vive à custa dos outros, que faz neste mundo? (p.
55)
Assim podemos alegar que a pobreza de Mário explica-se pelo fato de ser um
agregado como nos comenta Raimundo Magalhães Júnior: “Com a morte do pai, José
Figueira, em condições assaz misteriosas, a Fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão,
de sua propriedade, passara para seu amigo Joaquim de Freitas. E o menino, de filho do
fazendeiro, à condição de um simples agregado, numa situação de favor”. (P.284)
26
ABRY, E., AUDY, C., CROUZET, P. Histoire illustrée de littérature française. Paris : Henri Didier
Editeur, 1912, p. 626.
27
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 16.
53
O fato de ele não trabalhar pode explicar-se pela sociedade patriarcal e
escravocrata em que se encontra como pela sua condição.
Nós sabemos, como escreveu, Caio Prado Jr. que: “Naturalmente o que antes de
mais nada, e acima de tudo caracteriza a sociedade brasileira de princípios do séc. XIX
é a escravidão”.
28
Isto estipula que a sociedade está assentada na grande unidade
produtora (grandes extensões de terra que pertenciam a único proprietário) na
monocultura, na mão-de-obra escrava, ademais de estar voltada para fora. Isto nos leva
a entender que nem o fazendeiro, nem as pessoas do núcleo (o caso de Mário) trabalham
já que o trabalho naquela época é motivo de rebaixamento social e é então relegado aos
escravos. Isto é que explica a presença constante das palavras fazenda, casa grande,
senzala, barão e a figura do escravo na sua obra de Alencar que pinta a sociedade
patriarcal e escravocrata.
Note-se que a idéia do trabalho como desonra e degradação era presente,
segundo mostrou Marilena Chauí em sua introdução a O Direito à preguiça
29
de Paul
Lafargue, nas sociedades escravistas, como a grega e a romana, cujos poetas e filósofos
não se cansam de proclamar o ócio um valor indispensável para a vida livre e feliz, para
o exercício da nobre atividade da política, para o cultivo do espírito (pelas letras, artes e
ciências) e para o cuidado com o vigor e a beleza do corpo (pela ginástica, dança e arte
militar), vendo o trabalho como pena que cabe aos escravos e desonra que cai sobre
homens livres pobres.
É significativo, por exemplo, que nas línguas dessas duas sociedades não existia
a palavra “trabalho”. Os vocábulos ergon (em grego) e opus (em latim), referem-se às
obras produzidas e não à atividade de produzi-las. Além disso, as atividades laboriosas,
socialmente desprezadas como algo vil e mesquinho são descritas como rotineiras,
repetitivas, obedientes a um conjunto de regras fixas, e a qualidade do que é produzido
não relacionada à ação de produzir mas a avaliação feita pelo usuário do produto.
Se voltarmos à etimologia da palavra “trabalho”, veremos que ela tem uma carga
negativa. Assim a origem a palavra latina que deu origem ao vocábulo acima referido é
tripalium e significa instrumento de tortura para empalar escravos rebeldes e derivada
de palus, estaca, poste onde se empalam os condenados. Outrossim, labor (em latim)
28
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 8.ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1965, p. 267.
29
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. Trad.; José Teixeira; intr; Marilena Chauí. São Paulo:
Hucitec/ UNESP, 1999.
54
significa esforço penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e
fadiga.
Isto posto, cumpre salientar que na sociedade patriarcal e escravocrata, os
personagens brancos e senhoriais nunca trabalham com a mão, visto ser o trabalho
manual considerado indigno e relegado à mão-de-obra africana, isto é, os escravos.
A visão de que o trabalho é uma desonra e que leva à apologia do ócio patente
nas duas antigas sociedades escravistas acima referidas está presente na sociedade
brasileira patriarcal e escravocrata. Enquanto o escravo se dedica ao trabalho, o senhor
branco leva uma vida ociosa como nos mostra Gilberto Freyre que dedicou páginas
importantes ao ócio do senhor de engenho em Casa-Grande & Senzala. Leiamos uns
trechos para corroborar o que foi acima dito:
Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida
de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em
viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. [...] Da rede não precisava afastar-se do escravocrata
para dar suas ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão
com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar cavalo:
deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na
rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando charuto, cuspindo no chão,
arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas mulequinhas, coçando os pés
ou genitália; uns coçando-se por vício; outros por doença venéra ou da pele. (P. 429)
A idéia depreciativa do trabalho leva João Fera em Til a considerar o trabalho
como uma vergonha e motivo de rebaixamento social: “O trabalho, ele o tinha como
vergonha, pois o poria ao nível do escravo”.
30
Se Mário não trabalha, é porque ele não
só faz parte do círculo familiar do barão, dono da fazenda gozando assim do favor, mas
também é porque é aos escravos que cabe esta tarefa ignóbil. Quem nos ajuda a
entender melhor é Ir. Elvo Clemente quando escreve:
Em O tronco do Ipê, Alencar apresenta uma faceta da problemática da sociedade rural na década
de 1850, sob o impulso dos primeiros ventos da libertação dos escravos. A economia brasileira assentava
em grande parte na força do braço escravo
31
.
30
ALENCAR, José de. Til. São Paulo: Ed. Ática, 1980, p. 82.
31
CLEMENTE, Ir. Elvo. Leitura de o tronco do ipê. In: José de Alencar: O tronco do ipê. 11.ed. São
Paulo: Ed. Ática, 1993, p. 3.
55
Ao examinarmos este trecho, constatamos que são os escravos que se dedicam
ao trabalho transformando-se, deste modo, em uma máquina muscular e pilar da
economia brasileira mesmo com a irrupção das idéias liberais a favor da abolição da
escravidão. Notamos que tanto no Brasil quanto em quaisquer outros países em que
vigorou a escravidão, principalmente nos Estados Unidos, os negros foram considerados
uma raça inferior que tem só uma missão na terra: servir aos brancos. A este respeito,
Harriet Beecher Stowe nos traz revelações tremendas. Na sua famosa obra intitulada A
cabana do pai Tomás, ela nos apresenta um quadro assustador desta aviltante instituição
humana que é a escravidão nos Estados Unidos, principalmente nos estados do sul.
A obra, através da trajetória do escravo Tomás, que é, aliás, o protagonista nos
revela todas as faces da escravidão que, embora seja uma instituição humana,
desumaniza o homem. Assim, St Clare o novo dono de Tomás, embora trate com
indulgência seus escravos e tache a escravidão de obra do Diabo acha, ao considerar
esta instituição de maneira geral, que os negros existem apenas para o bem-estar dos
brancos: “Todas essas pobres raças vieram ao mundo apenas para maior vantagem dos
brancos”. (P.75). Quanto a sua mulher, representante inveterada do pensamento sulista,
o escravo não tem nenhum valor e não pode, deste modo, ser igual ao branco. Ele deve
sempre ser submisso ao seu senhor, pronto para cumprir qualquer ordem. À pergunta de
a Sra. Orfélia prima de St Clare de saber se os negros não têm o mesmo sangue que os
brancos ela responde: “São uma raça degenerada” (P.67). Podemos observar que os
negros foram sempre sujeitos à servidão no regime escravagista.
Para completar o quadro, é interessante atentarmos a estas observações de
Sidney Chalhoub colhidas em Machado de Assis Historiador:
Numa sociedade escravista, escravos e animais encontram-se muitas vezes em lugar semelhante
no que tange à estrutura legal e até representações sociais: num inventário post-mortem, por exemplo,
escravos e animais aparecem lado a lado com os bens semoventes do senhor/proprietário; nos discursos
de denúncia contra a escravidão, era comum que os críticos do regime acentuassem seus horrores
traçando paralelos entre a condição dos escravos e a dos animais “irracionais” à sua volta.
32
(P.32)
Isso explica o fato de Mário em O tronco do Ipê não trabalhar por fazer parte do
núcleo, metáfora usada para figurar a organização patriarcal da família brasileira em que
o senhor do engenho ou o fazendeiro ocupa o centro e é senhor dos escravos. Não é de
32
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 32.
56
se admirar que o narrador que pode ser considerado um viajante, no primeiro capítulo
intitulado “O feiticeiro” ao nos apresentar o escravo pai Benedito apesar de sua reserva
deixe transparecer:
Ignorante das relações íntimas que entretinha o habitante da cabana com o príncipe das trevas,
tomei-o por um velho preto, curvado ao peso dos anos e consumido pelo trabalho da lavoura; um desses
veteranos da enxada, que adquiriram pela existência laboriosa o direito a uma velhice repousada, e
costumam inspirar até a seus próprios senhores um sentimento de pia deferência. (P.37)
É importante mencionar que embora haja naquela época várias categorias de
trabalhadores agrícolas, os escravos tinham peso na produção, pois, o tráfico negreiro é
proibido em 1850, mas a escravidão é suprimida em 1888 como o menciona Frédéric
Mauro:
Várias categorias de trabalhadores agrícolas não têm senão um papel fraquíssimo na produção do
café. Os sitiantes, pequenos proprietários que cultivam sítios, voltam-se de preferência para as culturas
jornaleiras; do mesmo modo, o parceiro ou meeiro, e agregado, que ocupa a terra título precário e paga o
aluguel da mesma sob a forma de uma verdadeira corvéia, ou ainda o trabalhador livre assalariado,
bastante raro (salvo para o enquadramento dos escravos) cujo rendimento é baixíssimo. Os escravos têm,
portanto, um papel esmagador na produção. Ora, em 1850, o tráfico negreiro é proibido, em 1888, é
suprimida a escravidão
33
.
Assim, essas razões acima evocadas podem justificar o porquê nosso
protagonista em contraposição ao Maxime, não passa pelos momentos difíceis nem
exerce nenhum trabalho para sustentar-se.
Se em O tronco do Ipê, a noção de trabalho está inexistente por ser considerada
um motivo de rebaixamento social, algo indigno, vil e então é relegado para os escravos
considerados como inferiores na sociedade patriarcal em que está vigente a escravidão,
ela é abordada por Alencar na sua peça teatral intitulada O crédito.
Assistimos, porém, a uma passagem da zona rural, isto é do vale do Paraíba
fluminense para a zona urbana, o Rio de Janeiro com o nascer do capitalismo. Cumpre
ressaltar que com a brusca interrupção do tráfico a partir de 1850, os investidores foram
obrigados a recolocarem os recursos anteriormente destinados ao pagamento dos negros
na criação das sociedades em comandita. Como o assentamento dos capitais do tráfico
deu-se em grande medida dentro da atividade comercial, a vida urbana entrou num
33
MAURO, Frédéric. História do Brasil. Trad. Rolando Roque da Silva, São Paulo, DIFEL, 1974, p. 71.
57
período de franca prosperidade e alargamento da sua economia. A este respeito, os
seguintes trechos extraídos do ensaio de Clara de Andrade Alvim nos trazem
esclarecimentos sobre o assunto:
O efeito imediato dessa supressão do tráfico – conforme o ensaio sobre o período que
procuramos resumir – foi liberar subitamente capitais consideráveis nele investidos, que intensificaram a
vida comercial brasileira e possibilitaram empreendimentos da maior importância para o progresso e a
modernização do país, como a abertura de vias férreas, concessões para linhas de navegação e a
inauguração do telégrafo. (P.1)
Raymundo Faoro referiu-se a este momento decisivo ao analisar a produção
literária de Machado de Assis cuja ação percorre o espaço de cinqüenta anos: de 1840 a
1896:
Foram cinqüenta anos cheios de vibração econômica, da definitiva ascendência do café, da
criação dos bancos, das primeiras tentativas industriais, da extinção do tráfico, da abolição, do emprego
da mão-de-obra livre nos campos e nas cidades. Muita gente enriqueceu e muita gente se arruinou, ao
tempo da abertura das estradas de ferro e das vivas transformações urbanas. O Rio de Janeiro expande-se:
torna-se uma grande metrópole, com seus 415.000 habitantes em 1896. (P.181)
Bateu na mesma tecla Flávio Aguiar quando escreveu na introdução à Antologia
de comédia de costumes:
[...] a aristocracia deu a si própria um espírito burguês e mais nacionalista, tornou-se ela mesma mais
organizada e implantou ou permitiu uma maior urbanidade na corte. Houve ampliação do comércio e dos
serviços.
Alencar, vivendo no Rio de Janeiro desde 1851, acompanhou de perto esse surto
de atividade que crescia amparado pelos capitais dantes invertidos na compra de
escravos. Contudo, o aparelhamento da vida financeira do país, a multiplicação dos
bancos, das empresas financeiras, das companhias de seguro e dos negócios de bolsa só
fizeram incrementar a mentalidade capitalista. [...] Para isso contribuíam as chamadas
sociedades em comandita, incorporadas na base dos papéis de crédito e do capital
aberto, possibilitando portanto o surgimento da especulação e dos jogos de bolsa. (P.56)
58
Para só repetir as palavras de Ruth Villela Cavalieri, “Alencar, sem dúvida viveu
intensamente os conflitos da nossa formação, como escritor, como político e como
cidadão fluminense por adoção.” (P.28)
Reparamos, a partir destes dados, no surgimento de uma sociedade capitalista
marcada pelas rápidas transformações econômicas ocorridas na vida urbana nos anos
imediatamente posteriores à extinção do tráfico de escravos. O Crédito tenta fotografar
a situação sócio-econômica caracterizada por uma ânsia de enriquecer de repente, daí
uma visão crítica das relações humanas e sociais deterioradas pela supervalorização do
dinheiro. Percebemos logo o poder do dinheiro na ordem econômica capitalista que traz
como conseqüências a perda dos nobres valores que deviam orientar a sociedade
burguesa. Dito de outra maneira, os valores pregados pela burguesia com a ditadura do
dinheiro começam a ceder lugar à especulação, à agiotagem, ao lucro ilícito e à
monetização do sentimento abrindo caminho para a corrupção moral.
Uma aproximação pode ser estabelecida entre a peça e Senhora, um dos
romances urbanos de Alencar. Este denuncia o casamento por interesse como é o caso
de Seixas que, por um dote de 30 contos, trocou sua namorada Aurélia por uma outra.
Traça também um retrato preciso dos costumes morais e políticos do Rio de Janeiro na
segunda metade do século XIX. Tudo indica a emergência de uma burguesia ascendente
e as transformações vertiginosas pelas quais a sociedade brasileira está passando sob a
direção do dinheiro. A corrupção, neste sentido, não pode poupá-la como nos o mostra o
narrador: “Quando a riqueza veio surpreendê-la, a ela que não tinha mais com quem a
partilhar, seu primeiro pensamento foi que era uma arma. Deus lha enviava para dar
combate a essa sociedade corrompida e vingar os sentimentos nobres escarnecidos pela
turba dos agiotas.” (P.85)
Embora seja defensor da nova ordem econômica, Alencar, segundo nos mostrou
João Roberto Faria, critica os abusos cometidos por especuladores na Bolsa do Rio de
Janeiro que só pensam em enriquecer sem preocupar-se com a maneira como o dinheiro
é adquirido. Na peça, Macedo é o agiota incorrigível, o especulador que procura
explorar toda a possibilidade de lucro, mesmo que isso o faça perder a estima e a
amizade dos que o cercam. Deixemos o próprio Macedo falar:
MACEDO – como quiser! Nunca estudei moral, Sr. Pacheco, e por isso não entendo essas
distinções filosóficas. Sou um homem prático, um homem de negócios; trato da minha vida sem me
preocupar com a dos outros. Podem dizer que sou agiota, especulador, que vivo de jogar na Praça. Pouco
59
me importa! Estou convencido que só há na sociedade dois poderes reais: a lei e o dinheiro. Respeito
uma, e ganho o outro. Tudo que dá riqueza é bom; tudo que a lei pune, para mim é justo e honesto. Eis os
meus princípios. Estou os cumprimentando, meus senhores! (P. 174)
A este, Alencar opõe Rodrigo, personagem principal, defensor de suas idéias
moralizantes em relação aos desmandos da burguesia ávida do dinheiro. Melhor dar a
palavra a Rodrigo:
RODRIGO – É porque a lei despreza o agiota; e deixa que sua punição lhe seja dada pelo
próprio dinheiro que o desmoralizou. O seu castigo é o suplício de Tântalo dessa riqueza mal adquirida.
Com o ouro ele compra tudo, menos aquilo que mais deseja, aquilo que ambiciona; que inveja do pobre; e
que todos os seus milhões não lhes poderão dar...
MACEDO – O quê?
RODRIGO – A honra e a estima dos homens de bem. (P.174)
Defensor intransigente de valores encarecidos pela burguesia, Alencar através do
protagonista valoriza o trabalho e condena não só o ócio (coisa permitida na zona rural,
pois, o fazendeiro não trabalha porque ao escravo cabe esta tarefa) como também a
especulação. Graças a Rodrigo, Hipólito, Guimarães, Cristina e sua mãe tomaram uma
decisão repentina que consistia em abandonar a preguiça, a vida ociosa para dedicar-se
ao trabalho.
A posição de Alencar aqui é a de ressaltar a dignidade do homem que enriquece
por meio do trabalho, em contraposição à figura abjeta e imoral do especulador ou
agiota, daí uma discussão ética entre o capital e o trabalho. Para melhor entender este
ponto de vista, refiramos à importância do trabalho em contraposição ao trabalho
alienado tal qual foi apresentada por Marx e a que se reportou Marilena Chaui na sua
introdução a O Direito à preguiça de Paul Lafargue:
O trabalho, em si mesmo, é uma das dimensões da vida humana que revela nossa humanidade,
pois é por ele que dominamos as forças da natureza e é por ele que satisfazemos nossas necessidades
vitais básicas e é nele que exteriorizamos nossa capacidade inventiva e criadora – o trabalho exterioriza
numa obra a interioridade do criador. Ou, numa linguagem vinda da filosofia de Hegel, o trabalho
objetiva o subjetivo, o sujeito se reconhece como produtor do objet. (P.34)
60
AS DEMAIS PERSONAGENS: a questão da hierarquia
Para não fugir de nosso objetivo, julgamos necessário tentar uma apreensão do
conjunto dos personagens em ambos os romances. Neste sentido, é mister estudar as
demais personagens importantes das duas obras como membros de uma estrutura social
hierarquizada. Como podemos falar da presença do jovem pobre se não existe uma
hierarquia social estabelecida? A resposta a esta pergunta, além de mostrar cada grupo
social com sua posição e função, com certeza, nos ajudará a ver os dois protagonistas e
lançar luz sobre o processo social em andamento nas duas obras.
Notemos que : “les personnages de roman agissent les uns sur les autres et se
révèlent les uns par les autres. De même que l’individu impliqué dans une «dynamique
de groupes », par l’ image qu’il projette, par les réactions diverses qu’il fait naître, se
voit perçu de façon fort différente par chacun des individus du groupe, le personnage du
roman, en amenant les autres à révéler une part d’eux-mêmes inconnue jusque là,
dévoilera à chacun un aspect de son être que seul le contact dans une situation donnée
pouvait mettre à jour”
34
.
Isto aponta para a relação que existe entre as personagens de um romance e
mostra como a ação e caracterização de uma determinada personagem dentro de um
grupo podem levar ao conhecimento das demais.
a) Em Le roman d’un jeune homme
Isto posto, podemos asseverar que existe uma sociedade hierarquizada tanto em
Le roman d’un jeune homme pauvre como em O tronco do Ipê de que o jovem pobre
faz parte. No primeiro romance, nós estamos no Segundo Império francês com a
substituição da aristocracia decadente pela a burguesia ascendente no poder.
Para melhor estudar a estrutura social e sua hierarquia no romance de Feuillet,
seria interessante fazer uma viagem ao passado (sem pretender ser historiador) a fim de
mostrar a maneira como estava organizada no Antigo Regime e depois as mudanças
ocorridas e situar o romance no contexto apropriado. Assim, sob o Antigo Regime,
também conhecido como o Absolutismo, a sociedade estava dividida em três Estados ou
Ordens. De acordo com História Geral: “A ordem mais antiga era o clero, que, assim
34
BOURNEF, Roland; OUELLET, Real. L’ Univers du roman. Paris: Presses Universitaires de France,
1972, p. 144.
61
como a nobreza, beneficiava-se da estrutura social feudal, isto é, da servidão. Portanto,
ainda que sujeitas à monarquia, ambas as ordens possuíam privilégios sociais e
econômicos que lhes asseguravam a primazia hierárquica na sociedade do país. O
desenvolvimento do comércio e da atividade artesanal na Idade Média trouxe, porém,
um novo conceito de riqueza – a mobiliária – e uma nova sociedade – a burguesia, que
nos fins do século XVIII tornou-se o sustentáculo do Estado, fornecendo-lhe capitais
necessários a sua sobrevivência. Dessa forma as ordens privilegiadas passaram a
desempenhar papel parasitário, recebendo do Estado um aval inadequado à realidade
social e econômica”
35
.
Em substância, podemos dizer de acordo com a fonte acima citada que a
sociedade era assim discriminada: o clero compunha a primeira ordem social no país e o
catolicismo, religião do Estado, dominava a vida pública e exercia profunda influência
nos valores da sociedade francesa no século XVIII.
A nobreza, a segunda ordem social do reino, compunha a fração dirigente, pela
origem de seus membros e também por sua riqueza. Embora constituísse uma minoria
da população, possuía um quinto das terras, além de privilégios honoríficos,
econômicos e fiscais que caracterizavam os direitos senhoriais.
Por fim, temos o Terceiro Estado que representava a maior parte da nação, com
uma maioria de camponeses e uma minoria de burgueses e artesãos que se uniram na
oposição aos privilégios e na reivindicação de igualdade civil.
Esta estrutura social da França que “era essencialmente aristocrática” é de novo
confirmada por este trecho extraído de História das Sociedades: “[...] a estrutura social
legal (a sociedade permanecia dividida em três Estados ou Ordens: o Clero, integrando
o Primeiro Estado; a Nobreza, formando o Segundo Estado; e o Povo, comportando
inúmeras classes reunidas no Terceiro Estado) não correspondia mais à realidade
existente. Chefiado pela burguesia, o Terceiro Estado contrapunha-se aos privilégios das
classes parasitárias. Nos campos, os camponeses, em situação miserável, tinham que
pagar ao clero (dízimos) e à decadente nobreza”
36
.
É bom mencionar que inúmeras crises sociais, políticas e econômicas ocorreram
por causa de ausência de reformas na monarquia e da inabilidade política das
instituições do Antigo Regime. Todas as tentativas de reformas iniciadas sob o Rei Luís
35
VICENTINO, Cláudio, MARONE, Gilberto Tibério. História Geral. 2 ed. São Paulo: Anglo, 2002, p.
75-76.
36
AQUINO, Rubim Santos Leão de [et. al]. História das Sociedades. – 2 ed. rev. e atualizada. – Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1993, p. 131.
62
XVI foram infrutíferas e deram origem à Revolução francesa (1789) que, não sendo
exclusivamente burguesa, foi essencialmente burguesa. Assim, “a Revolução Francesa
representou a crise final do Antigo Regime, cujas estruturas foram abolidas e
substituídas por outras apropriadas ao novo Estado burguês (capitalista)”
37
.
Porém, a chegada ao poder da burguesia não garantiu o clima de paz desejado e
o bom andamento da sociedade. A queda de Napoleão Bonaparte em Waterloo (1815)
permitiu a restauração da monarquia dos Bourbon com Luís XVIII (1815-1824) e
Carlos X (1824-1830). Com o segundo, a França restabeleceu o Antigo Regime,
instaurando de novo o absolutismo. Isso provocou uma outra revolução batizada de
Revolução de 1830 liderada pela alta burguesia conservadora, levando ao poder Luís
Felipe (1830-1848) conhecido como o “Rei burguês” ou “Rei das barricadas”. Por
atender exclusivamente os interesses da burguesia, ignorando os do operariado, abriu
uma brecha para a agitação político-social, a oposição generalizada que desembocou na
Revolução de 1848. No dia 10 de dezembro deste mesmo ano, Luís Bonaparte, sobrinho
do imperador Napoleão I, foi eleito pelos franceses como presidente.
Em 1851, quase ao final de seu mandato e com ambição continuísta, fechou a
Assembléia Nacional e estabeleceu a ditadura. Em 1852, foi instaurado o Segundo
Império e Luís Bonaparte coroado como imperador (1852-1870) e passou a ser
conhecido como Napoleão III.
É de suma importância assinalar que Le roman d’ un jeune homme pauvre foi
publicada em 1858, isto é, no Segundo Império de Napoleão III com a burguesia e o
capitalismo em ascensão. É a época em que segundo Arnold Hauser: “o governo
enquadra a arte e os artistas em seu sistema educacional e correcional. Os redatores-
chefes e os críticos dos grandes jornais e revistas, homens como Buloz, Bertin, Gustave
Planche, Charles Montégut, são autoridades supremas; Jules Sandeau, Octave Feuillet,
Emile Augier e Dumas Filho, seus respeitados autores; a Universidade e a Academia,
seus institutos de ensino e pesquisa para a higiene intelectual; o promotor público e o
prefeito de polícia de Paris, os guardiões de seus princípios morais”
38
. Não é de se
admirar que Feuillet se esmere em tratar assuntos relacionados com “o ambiente
burguês” para usar as palavras de João Roberto Faria.
37
AQUINO, Rubim Santos Leão de [et. al.]. História das Sociedades. – 2 ed. rev. e atualizada. – Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1993, p. 131.
38
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura; (tradução Álvaro Cabral). São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 799.
63
Depois de pintar o quadro histórico mostrando a estrutura social do Antigo
Regime, as mudanças políticas e sociais ocorridas e situar o romance de Feuillet no
contexto histórico adequado, convém patentear a estrutura social e sua hierarquia na
obra. Com o abalar do Antigo Regime e com o advento da Revolução, a burguesia
triunfante passou a conquistar o primeiro lugar na estrutura social diante de uma
aristocracia em declínio. Para melhor configurar a estrutura social e amenizar o conflito
entre os grupos, Feuillet opta por um deslocamento da ação (da cidade para o campo) e
faz com que todos os grupos sociais se encontrem num mesmo lugar.
Assim o protagonista Maxime, o rico decaído, protótipo do aristocrata decadente
sai da cidade (Paris) para a zona rural (Bretanha) aonde foi trabalhar como
administrador das terras da abastada família burguesa Laroque. Isso mostra com clareza
a inversão da ordem social estabelecida no Antigo Regime. A burguesia ascendente
agora se encontra no topo enquanto a nobreza se afunda, melhor dizendo, entra em
declínio. Sem nos limitar a este mero fato, tentemos fazer uma análise minuciosa da
referida família burguesa.
Constatamos que M. Laupébin o escrivão, conhecedor das realidades reinantes
no castelo dos Laroque fez uma lista de todas as pessoas que aí estão, cada uma com sua
caracterização e a entregou a Maxime. Leiamos o referido documento:
Château de Laroque (d’Arz).
ÉTAT DES PERSONNES QUI HABITENT
LEDIT CHATEAU
« Iº M. Laroque (Louis-Auguste), octagénaire, actuel de la famille, source de la fortune ; ancien
marin, célèbre sous le premier empire en qualité de corsaire autorisé ; paraît s’être enrichi sur mer par des
entreprises légales de diverse nature ; a longtemps habité les colonies. Originaire de Bretagne, il est
revenu s’y fixer, il y a une trentaine d’ années, en compagnie de feu Pierre-Antoine Laroque, son fils
unique, époux de
« 2º Mme Laroque (Joséphine-Clara), belle-fille du susnommé ; créole d’origine, âgée de
quarante ans ; caractère indolent, esprit romanesque, quelques manies : belle âme ;
«3º Mlle Laroque (Marguérite-Louise), petite-fille et présomptive héritière des précédents, âgée
de vingt ans ; créole et Brétonne ; quelques chimères : belle âme ;
«4º Mme Aubry, veuve du sieur Aubry, agent de change, décédé en Belgique ; cousine au
deuxième degré, recueillie dans la maison : esprit aigri ;
«5º Mlle Hélouin (Caroline-Gabrielle), vingt-six ans ; ci-devant institutrice, aujourd’hui
demoiselle de compagnie : esprit cultivé, caractère douteux.
64
«Brûlez.»
O documento com a lista dos moradores do castelo dos Laroque e sua
caracterização entregue a Maxime com certa discrição e reserva apresenta uma certa
ordem hierárquica. É verdade que o objetivo do documento é lançar luz sobre as
personagens de tal sorte que Maxime as conheça melhor, cada uma com sua
caracterização moral. Mas ele traz uma outra verdade: a presença de uma estrutura
familiar hierarquizada. Tentemos examiná-las seguindo a ordem decrescente.
Em primeiro lugar, temos o círculo familiar estreito dos Laroque composto por
M. Laroque (Louis-Auguste) octagenário, atual dono da família e da fortuna. Além do
mais, há Mme Laroque (Joséphine-Clara), mulher do falecido Pierre-Antoine Laroque,
filho único de M. Laroque e depois sua filha, Mlle Laroque (Marguerite-Louise)
herdeira presumida. O trecho acima mostra que o atual octogenário enriqueceu durante
o Primeiro Império, isto é, sob Napoleão Bonaparte que se proclamou Imperador e
conhecido como Napoleão I. Não devemos esquecer que este período marcou a
ascensão da burguesia ao poder colocando-se à frente da aristocracia. Isso confirma,
mais uma vez, que a família Laroque é burguesa.
Em segundo lugar, há Mme Aubry, viúva do senhor Aubry, corretor de câmbios
falecido na Bélgica; prima em segundo grau, recolhida na casa e em seguida Mlle
Helouin (Caroline-Gabrielle); antigamente professora primária, atualmente dama de
companhia. Assim no seio da família, existe de um lado o núcleo formado estritamente
pelos Laroque e de outro a periferia composta por Mme Aubry et Mlle Helouin.
A apresentação da família Laroque nos leva a entender que há uma distância
social entre as três primeiras personagens e as duas últimas. Embora todas morem na
mesma casa, há uma ordem estabelecida que se percebe através não só da disposição
numérica como também da caracterização moral. As três primeiras personagens são
vistas como as mais influentes, sem nenhum defeito psicológico uma vez que formam o
núcleo.
Aqui a burguesia é exaltada sem rodeio através da caracterização psicológica
marcando deste modo uma oposição social. As mais ricas (as do núcleo) são
apresentados com boa índole ao passo que as demais pobres embora compartilhem o
mesmo espaço no castelo, são pintadas com caracterização moral digna de sua posição.
Na realidade, as duas últimas personagens podem ser consideradas como agregados que
beneficiam do favor da família Laroque, sistema existente na sociedade brasileira como
65
veremos adiante. É uma maneira de mostrar a benquerença da burguesia em relação aos
necessitados. Há necessidade de dizer que no próprio círculo familiar dos Laroque, a
distância social está estabelecida de maneira visível e mesmo através da disposição
numérica proporcionada pelo texto como já foi anteriormente assinalado.
É também visível o empenho do autor em apontar só as virtudes da burguesia,
quando apresenta um quadro em que esta se revela como um pai benfazejo aos
necessitados, vistos, na verdade, como agregados à família.
A referida família é a mais rica da região de Bretanha. A própria Mme Laroque
chegou a confessar: “[...] je vous assure, car enfin nous avons le besoin, on ne peut le
nier, le malheur d’être fort riches...” (P.71) Isso mostra o poder e a dominação da
burguesia de que ela é o protótipo. O castelo que a família Laroque comprou, segundo
Alain o doméstico, era a propriedade que “appartenait autrefois au comte de
Castennec”. (P.105) Esta precisão é importantíssima e nos leva, mais uma vez, a
confirmar a ascensão da burguesia e a decadência da nobreza. A ascensão se verifica no
fato de a burguesia comprar as propriedades de uma aristocracia que antigamente
exercia uma influência muito grande no mundo rural por possuir a maior parte das terras
e a decadência se percebe no fato de a referida aristocracia estar perdendo sua influência
e propriedades.
Assim, podemos dizer que no topo da estrutura social, está a burguesia em
ascensão simbolizada pela família Laroque. No seio desta família, descobrimos a
existência de outras pessoas dependentes que vivem à custa dos Laroque.
Depois de ter apresentado a família Laroque com sua hierarquia e mostrado que
o círculo estreito representa a burguesia, é bom examinar os demais grupos sociais. É,
aliás, dentro do castelo que estes podem ser identificados na medida em que são
convites dos Laroque. Aí é que identificamos a nobreza ou a aristocracia cujos
representantes são Maxime e Mlle de Porhoët-Gael.
Sabemos que a nobreza no Antigo Regime, como já foi anteriormente
mencionada, compunha a fração dirigente, pela origem de seus membros e também pela
riqueza. Era uma minoria e possuía um quinto das terras além de muitas outras
prerrogativas. Era a segunda ordem social depois do clero. Observamos que com o
advento da Revolução Francesa, a aristocracia levou um golpe e entrou em decadência
que culminou com a proclamação do Segundo Império sob Napoleão III.
Este declínio é visível no romance à imagem de Maxime e Mlle de Porhoët,
ambos descendentes de família aristocrática em decadência. Em nossa análise, a ênfase
66
será posta sobre a última já que o caso de Maxime já foi analisado na primeira parte
deste trabalho. Assim para não fugir do objetivo que é estudar as demais personagens
com o fito de mostrar a existência de uma estrutura social hierarquizada, é interessante
polarizar nossa atenção sobre Mlle de Porhoët que, neste caso, é o exemplo adequado.
Isto posto, o texto revela através do narrador-protagonista que:
Mlle de Porhoët-Gael, qui a vu cette année son quatre-vingt-huitième printemps, et qui
l’apparence d’un long roseau conservé dans de la soie, est le dernier rejeton d’une forte noble race dont
on croit retrouver les premiers ancêtres parmi les rois fabuleux de la vieille Armorique. Toutefois cette
maison ne prend sérieusement pied dans l’histoire qu’au XIIº siècle, en la personne de Juthaël, fils de
Conan le Tort, issu de la branche cadette de Bretagne. Quelques gouttes du sang des Porhoët ont coulé
dans les veines les plus ilustres de France, dans celles des Rohan, des Lusignan, des Penthièvre, et ses
grands seigneurs convenaient que ce n’était pas le moins pur de leur sang. Je me souviens qu’étudiant un
jour, dans un accès de vanité juvénile, l’histoire des alliances de ma famille, j’y remarquai ce nom bizarre
de Porhoët, et mon père, très érudit en ces matières, me le vanta beaucoup. Mlle de Porhoët, qui reste
aujourd’hui seule de ce nom, n’a jamais voulu se marier, afin de conserver le plus longtemps possible
dans le firmament de la noblesse française, la constellation de ces syllabes magiques : Porhoët-Gael.
(P.115)
A descrição da família de Mlle de Porhoët mostra que pertence à alta nobreza
francesa. A genealogia acima delineada exibe alguns nomes dos mais ilustres nobres da
França relacionados com os Porhoët. É por isso que o texto informa que ele é a última
descendente “d’une forte noble race”. O que mostra que ela tem uma ascendência nobre,
ilustre e rica. Porém o trecho menciona que ela “reste aujourd’hui seule de ce nom”.
Esta precisão merece atenção particular e deve ser analisada como veremos. Assim,
podemos dizer que com o declínio do Antigo Regime e com a ascensão da burguesia, a
aristocracia perdeu a sua força e entrou em decadência. Uma decadência que a está
levando ao esquecimento.
Neste sentido, é conveniente citar Arnold Hauser que, lidando com a história
social e da arte e da literatura no Segundo Império, diz: “A dissolução do ancien regime
entra na fase final e, com o desaparecimento dos últimos representantes da velha e boa
sociedade, a cultura francesa passa por uma crise mais séria do que quando recebeu seu
primeiro choque violento”
39
.
39
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura; (tradução Álvaro Cabral). São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 788.
67
Esta colocação de Hauser embora se aplique à esfera cultural corrobora o que
está acima dito. Mlle de Porhoët é a última representante da nobreza decadente
tipificada pelos Porhoët-Gael assim como Maxime (último representante dos Champcey
d’Hauterive). É a razão por que ela se recusou a casar-se no sentido de conservar por
muito tempo a raça nobre que está em desaparecendo. Ademais, ela sonha em construir
uma “cathédrale du plus style flamboyant, qui propagerait jusqu’ au fond des siècles
futurs le nom de la fondatrice et d’une grande race disparue”. (P.117). Este projeto visa
imortalizar o nome de uma nobreza que está sem fôlego. Assim “la noblesse,
authentique ou fausse n’en garde pas moins une existence sociale, mais son influence
s’exerce mieux d’autant qu’elle peut joindre à la tradition d’un nom et d’une famille
l’usage d’une fortune foncière”
40
.
Outra coisa a ser mencionada é que a decadência se verifica também no fato de
Mlle de Porhoët ser ridicularizada pelo docteur Desmarest quanto ao processo que ela
intentou contra “une des plus vieilles maisons de Castille, alliée à la branche espagnole
des Porhoët” a fim de recuperar a fortuna de que é herdeira e ao seu projeto de construir
a famosa catedral que virou uma obsessão para ela. Ele chegou a lhe perguntar: “A quoi
vous serviraient des millions, voyons?... Quant à votre cathédrale, je n’en parle pas,
parce que c’est une mauvaise plaisanterie”. (P.119) Esta zombaria de que Mlle de
Porhoët é alvo encerra a idéia do colapso sofrido pela aristocracia. Ela veicula a idéia de
que, apesar de todas as tentativas para sair do abismo e tentar perenizar o seu nome
através de obras grandiosas, a nobreza nunca mais renascerá das cinzas, mas está fadada
ao esquecimento. O que aqui sobressai é a imagem de uma aristocracia que antigamente
era poderosa, mas que, com a ascensão da burguesia, entrou em declínio. Avulta
também a tentativa de guardar a honra.
Depois identificar a aristocracia, prossigamos em nossa análise a fim de lançar
luz sobre as demais pessoas presentes no castelo dos Laroque. Estas, segundo o
narrador-protagonista são os freqüentadores assíduos:
J’étais allé passer la soirée au château : deux ou trois familles étrangères qui venaient d’ y
séjourner pendant une quizaine l’avaient quitté dans la matinée. Je n’y trouvais que les habitués, le curé,
le percepteur, le docteur Desmarest, – enfin le général de Saint-Cast et sa femme, qui habitent, ainsi que
le docteur, la petite ville voisine. (P.110)
40
DUBY, Georges. Histoire de la France. Paris: Larousse, 1987, p. 363.
68
O trecho acima revela a presença de várias pessoas, a saber, o pároco (le curé), o
cobrador (le percepteur), o doutor Desmarest (le docteur Desmarest) e enfim o general
de Saint-Cast (le général de Saint-Cast) e sua mulher Mme de Saint-Cast. O primeiro
está relacionado com o clero e os demais são os funcionários. No segundo caso,
achamos interessante precisar que o general de Saint-Cast embora seja classificado
como um funcionário está ligado ao exército. De acordo com esta identificação,
podemos classificá-los em dois grupos. Separamos o clero dos funcionários porque este
representa em si uma força. No Antigo Regime, o clero constituía a primeira ordem
social e era sujeito à monarquia assim como a nobreza.
Mesmo com o abalo do absolutismo e com o surgimento do novo regime, isto é,
o Segundo Império, o clero constitui uma entidade poderosa e influente e está ligada a
todos os setores da sociedade. Esta interpenetração se verifica no romance uma vez que
ele está com todas as camadas sociais presentes no mesmo lugar. Assim “la meilleure
victoire de l’Empire, c’est sans doute aucun celle qu’il a obtenue en Bretagne, où un
clergé royalement influent sur les masses campargnardes, mais qui craint la
contamination débilitante des villes bleues, déserte le camp légitimiste pour rallier celui
de l’Empire”
41
.
Por fim, os que exercem uma profissão, isto é, os funcionários (o cobrador, o
doutor e o militar) que, em outras palavras, estão ligados à administração e em última
posição os camponeses. Há que dizer que estes, contrariamente aos demais grupos, não
estão reunidos no castelo. Assim, a presença do camponês evidenciou-se no romance
quando da renovação do contrato de arrendamento de uma propriedade importante dos
Laroque. Maxime teve que negociar com “un vieux paysant fort madré”. (P.96)
A presença do camponês no romance não é casual mas, faz parte da estrutura
social nele traçada. Segundo Edward McNall Burns: “Não devemos permitir que a
história dramática do processo de industrialização e urbanização obscureça o fato de
que, em 1850, a população da Europa ainda era predominantemente camponesa”
42
. No
tocante à França o mesmo diz: “Ao chegar 1870, a Europa não havia de maneira alguma
voltado as costas à agricultura. Cinqüenta por cento da força de trabalho da França
41
DUBY, Georges. Histoire de la France. Paris: Larousse, 1987, p. 433.
42
BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental: do homem das cavernas às naves
espaciais. – v.2; tradução Donaldson M. Garshagen – 39 ed. – São Paulo: Globo, 1999, p. 530.
69
continuava no campo”
43
. Assim estas colocações não fazem senão confirmar o foi
acima dito.
Em substância, reparamos na existência de uma estrutura social hierarquizada
presente no romance. Embora não tenhamos consultado nenhum documento a respeito,
admitimos com base no romance que exista. Assim, no topo desta estrutura social, está a
burguesia ascendente simbolizada pelos Laroque, família abastada de toda a região.
Depois, apresentamos a imagem de uma aristocracia decadente cujos últimos
representantes são Mlle de Porhoët (Os Porhoët-Gael) et Maxime (Os Champcey
d’Hauterive) com a ascensão da burguesia. Ela é a segunda na hierarquia social porque
no próprio romance, constatamos a origem nobre e ilustre dos representantes embora a
sua posição social esteja decadente.
A aristocracia apesar do colapso que sofreu ainda representava uma força. É
isso que talvez explique o respeito que Mme Laroque e sua filha têm por Mlle de
Porhoët: “Mme Laroque et sa fille se sont prises pour leur noble et pauvre voisine d’une
passion qui les honore; elle est chez elles l’objet d’un respect attentif...” (P.115)
Logo depois vem o clero que, conforme já foi acima mencionado, representa
uma força, os funcionários e enfim os camponeses que representam ainda a maioria da
população no Segundo Império conforme nos diz Georges Duby: “La France est
majoritairement paysanne”
44
.
b) Em O tronco do Ipê
Após mostrar a hierarquia social em Le roman d’un jeune homme pauvre,
vejamos como ela é configurada na obra de Alencar.
Em O tronco do Ipê, estamos no Segundo Império e nos albores da República. Há uma
preocupação evidente do autor de tratar dos aspectos da vida brasileira, principalmente a
sociedade rural na década de 1850 para retomar as palavras de Ir. Elvo Clemente. “O
autor esboçou no romance alguns aspectos da vida dos senhores rurais da época”
45
diz
ele. Comprovam o que está sendo dito estas palavras de Raymundo Faoro: “O Brasil
seria, no século XIX, a “aristocracia rural”, – dono do açúcar e depois do café, os
43
BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental: do homem das cavernas às naves
espaciais. – v.2; tradução Donaldson M. Garshagen – 39 ed. – São Paulo: Globo, 1999, p. 528.
44
DUBY, Georges. Histoire de la France. Paris: Larousse, 1987, p. 433.
45
CLEMENTE, Ir. Elvo. Leitura de O tronco do Ipê. In: ALENCAR, José de Alencar. O tronco do Ipê.
11. ª ed. São Paulo: Ática, 1993, p. 3.
70
sucessivos produtos essenciais da economia – o senhor de terras e escravos formavam
os dois pólos dinâmicos da sociedade. As cidades refletiriam um apêndice da riqueza
rural, empórios de mercadorias, fornecedoras de produtos, centro de tráfico de
escravos”.
46
Há necessidade de apontar, sem sombra de dúvida, para uma sociedade
com uma hierarquia estabelecida.
É bom lembrar esta colocação de João Roberta Faria para melhor abordar o
nosso assunto. Ao analisar O Crédito, peça de Alencar, ele diz: “No Brasil, a
inexistência de uma oposição de classes sociais com características tão peculiares como
a que existiu na França, entre a aristocracia e a burguesia, obrigou Alencar a observar
apenas no interior da classe burguesa as contradições que marcaram a sua ascensão
entre nós, no decênio de 1850”.
47
A inexistência de uma oposição de classes sociais não significa que não haja
uma sociedade hierarquizada. Muito pelo contrário, ela é subentendida. Ao comentar as
observações do historiador Caio Prado Jr. sobre a formação da sociedade brasileira do
século XIX, Roberto Reis assinala:
As ponderações do historiador paulista desembocam na estruturação da sociedade brasileira de
então – senhores de terra no topo, escravos na base; no meio, indefinidos socialmente, “os homens”, que
não se encaixam em nenhum dos pólos da pirâmide.
48
O termo usado “pirâmide” prova como nós o constatamos a existência de uma
hierarquia na sociedade brasileira de então assim representada: senhores de terra no
vértice, no meio os homens livres (seres socialmente indefinidos), e na base os escravos.
Esta hierarquia está extremamente desenhada em Til, outro romance de Alencar como
nos mostra Flávio Aguiar:
Há na fazenda, os seres “integrados”, aqueles que fazem parte do seu mundo de trabalho
“normal” do cotidiano, sejam senhores, homens livres ou escravos. Há uma quantidade incrível de seres
“apocalípticos”, marginais, brutos, idiotas, seres cujo espírito se refugia da razão e de suas exigências. Aí
estão, por exemplo, Zana, Brás e João Fera; assim como a galinha sura que perdeu as pernas e o burrico
mutilado. Estes aleijões exibem a face sinistra da ordem social da fazenda, são seus párias, fruto dos
46
FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, Secr. Cult. Ciência e
Tecnol. Est. S. P., 1976, p. 22.
47
FARIA, João Roberto. José de Alencar e o teatro. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de
São Paulo, 1987, p. 65.
48
REIS, Roberto. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade do Rio de Janeiro, 1985, p. 11.
71
conflitos de ciúme, de propriedade (o burrico levou a foiçada por invadir a roça alheia), das desgraças
familiares (Brás). São, em conjunto, se quisermos, o preço da civilização.
Essa marginalidade dolorosa contrasta, no universo do romance, com uma outra, a marginalidade
consciente, dos escravos Faustino, Monjolo, e do branco Ribeiro ou Barroso, que conspiram pela morte
de Galvão, senhor de terras, pai de Linda, de Afonso, e também de Berta. Não nos enganemos pelas
aparências. Por trás do projetado assassinato de Galvão, que parece mera vendetta pessoal, medram
conflitos sociais notáveis o conflito da honra (Galvão “desonra” a mulher de Ribeiro) se apóia sobre uma
clara noção de roubo e de propriedade. Em sua vingança, aliciando capangas (João Fera) e negros
(Faustino e Monjolo), Ribeiro viola fronteiras sociais claramente demarcadas.
49
A relação senhor - escravo é uma das formas mais patentes da mencionada
hierarquia. A sociedade retratada em Til comporta os elementos da casa- grande – Luís
Galvão, sua esposa e filhos –, os que vivem a seu redor, não raro dependendo deles,
como Miguel, Berta, Nhá Tudinha, João Fera, os escravos. Aí estão os três grandes
segmentos sociais produzidos pela colonização.
A questão de hierarquia em Alencar foi também tratada por Silviano Santiago
em seu ensaio cujo título é Liderança e hierarquia em Alencar. Ao comparar os valores
europeus estabelecidos e os valores brasileiros até então indefinidos, o crítico por meio
do texto chegou a definir a hierarquia de poder no Brasil (ainda que o sistema seja
totalmente equivocado, caso se tome o significado europeu dos conceitos).
O processo de definição do ser político-social brasileiro (o que é o senhor de
engenho? Por exemplo), segundo ele, é dado pela comparação com o correspondente na
estrutura européia, gerando como conseqüência um deslocamento geográfico e temporal
bastante significativo. As duas forças econômicas mais fortes no Brasil, o senhor de
engenho e o colono, são dados como semelhantes à do fidalgo e à do cidadão europeus.
Assim fica estabelecida a hierarquia social:
E, ao mesmo tempo que as compara, estabelece-se uma primeira hierarquia nacional: assim
como os cidadãos dependem dos fidalgos na Europa, assim também os lavradores dependem dos senhores
de engenho. Na medida em que a pirâmide do poder é estabelecida, fácil é compreender a primeira frase
de Antonil: “O senhor de engenho é título a que muitos aspiram (...)”. No entanto na Europa, o título é
concedido pelo Rei, ou pelo próprio status familiar do indivíduo, aqui o título é dado pelo texto (ainda
que ele não o delegue claramente) dado pelo texto a uma liderança que, inclusive, conduz à exploração do
homem pelo homem, no sistema escravocrata. E de novo uma outra série de comparações. Só que agora,
como a dependência é total, o campo semântico das definições ficará restrito a corpo, ao corpo do senhor
49
AGUIAR, Flávio. Flor nacional, apresentação a José de Alencar In: ALENCAR, José de. Til. São
Paulo: Ed. Ática, 1980, p. 8.
72
de engenho. De resto, estabelecido o vértice superior da pirâmide, as comparações com a Europa
desaparecem do texto, pois lá já não existe a escravidão.
Neste particular é significativo que o terceiro e o quarto segmentos sociais (o senhor e o colono
seriam os dois primeiros, pois estamos excluindo da nossa discussão o “clero”) não dependem do segundo
segmento e se ligam, respectivamente, pelas mãos e pelos pés ao senhor de engenho. O terceiro e o quarto
segmentos seriam os feitores (governo da fazenda) e os escravos (trabalho na fazenda). Vejamos como os
feitores são escritos: “Os braços de que se vale o senhor de engenho para o bom governo da gente e da
fazenda, são os feitores”. Repara-se, no entanto, que são “braços” que não podem aspirar a serem
“cabeças”: “se cada um deles [feitores] quiser ser cabeça, será governo monstruoso e um verdadeiro cão
Cérbero” a quem os poetas fabulosamente dão três cabeças. Eu não digo que se não dê autoridade aos
feitores; digo que esta autoridade há de ser bem ordenada e dependente, não absoluta, de sorte que os
menores se hajam com subordinação ao maior, e todos ao senhor a quem servem. Se entre o primeiro
segmento e o terceiro há subordinação à cabeça e diferença quanto ao braço, entre o terceiro e o quarto
são os pés que se ajuntam às mãos. “Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, por sem eles
no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente”. Realmente mais
esdrúxulo do que o cão Cérbero seria esse corpo branco com mãos e pés negros. Apesar de ser o último
na escala hierárquica, diz o texto que é verdadeiramente indispensável.
50
Fica patente a existência de uma hierarquia social com vários segmentos, a
saber, o senhor de engenho, o colono, os feitores que representam os braços do senhor
de engenho e na última escala os escravos que, apesar de sua inferioridade, são o
segmento indispensável, pois deles depende o bom funcionamento da fazenda. Há uma
dependência dos feitores e dos escravos em relação ao senhor de engenho, pois ele está
no alto da pirâmide.
Tudo aquilo que foi dito pode ser resumido nestes termos do crítico acima
citado: “Se como diz hoje Mc Luhan, os meios de comunicação são extensões do
homem, naquela época a força-trabalho era a extensão dos membros do senhor de
engenho. A ociosidade das mãos e dos pés do senhor só é possível por ter sido seu
trabalho delegado ao feitor (mando) e ao escravo (obediência e trabalho). Dentro desta
visão ampla, bicolor e social do corpo do senhor de engenho é que justifica o seu
governo e o seu prestígio enquanto ser. De todos, ele é cabeça e é o cabedal.”
51
Estabelecida a base, é melhor embrenharmos no universo romanesco de O
tronco do Ipê a fim de pôr a descoberto a hierarquia social nele arquitetada. A este
50
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. – Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982, p. 95-96.
51
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. – Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982, p. 97.
73
respeito, é bom citar um trecho do primeiro capítulo do romance intitulado “O
feiticeiro”:
A casa da habitação chamada pelos pretos casa grande, custoso edifício, estava assentada no
cimo da formosa colina, donde se descortinava um soberbo horizonte. [...] Nas fraldas da colina à
esquerda estavam as fábricas e casas de lavouras, a habitação do administrador da fazenda e as senzalas
dos escravos. (P.35)
Esta passagem é reveladora da estrutura social hierárquica vigente. Ela se
percebe através da disposição das casas da fazenda na forma de pirâmide. No cimo da
formosa colina, está assentada a casa grande, hábitat do senhor do café já que o texto
revela que estamos no vale do Paraíba. No sopé desta colina, estão a casa do
administrador da fazenda e as senzalas dos escravos. Esta disposição reproduz o mesmo
esquema ressaltado no texto de Silviano Santiago. Ela também mostra a dependência
dos dois últimos segmentos sociais com respeito ao senhor da fazenda como o mostrou
o ensaio do crítico acima referido. Resumindo temos o senhor do café (fazendeiro) no
vértice da pirâmide, no meio o administrador da fazenda rotulado de feitor no texto
anterior e na base os escravos.
Feito o levantamento, cabe-nos mergulhar cada vez mais no texto para poder
identificar os personagens da hierarquia, sua posição, função e destacar os outros
segmentos sociais cuja presença apenas se faz sentir dentro do círculo familiar do
fazendeiro. Neste sentido, sentimo-nos guiados a observar no interior da casa grande.
Ali é que se encontram Mário o moço pobre, sua mãe D. Francisca, D. Alina, viúva do
comendador e seu filho Lúcio não identificados na hierarquia apresentada pelo primeiro
capítulo assim como os demais personagens que merecem ser identificados.
É importante, porém, lembrar que há um elemento aqui presente, mas que não
foi identificado ao longo do romance: o administrador da fazenda. Assim a primeira
configuração acima mencionada vai nos permitir não só identificar os primeiros
segmentos como trazer a lume os outros elementos subentendidos que só seriam
revelados após estudo minucioso. É bom saber que a família brasileira de caráter
patriarcal apresentava até os fins do século XIX uma estrutura dupla. Maria Sylvia de
Carvalho Franco é quem nos diz: “Consideremos o padrão de organização da família
tradicional brasileira, vigente entre as camadas altas da sociedade, até os fins do século
XIX. Durante este período em que tendeu para um padrão patriarcal de organização, a
família brasileira apresentou uma dupla estrutura: um núcleo legal, composto do casal e
74
seus filhos legítimos, e a periferia, constituída por toda sorte de servidores e
dependentes”.
52
Isto posto, constatamos que no romance, o fazendeiro Joaquim de Freitas que
chegou mais tarde a receber o título de Barão de Espera, está no vértice da pirâmide
conforme ostenta a hierarquia. Sendo o mais rico fazendeiro de todos que estão na
Fazenda do Boqueirão, ele é protótipo da “classe dominante” do Segundo Império para
repetir as palavras de Alfredo Bosi.
Visão esta é também compartilhada por Nelson Werneck Sodré. Vejamos como
é que este trecho extraído em Formação Histórica do Brasil é revelador:
A classe dominante é a de senhores de terras e de escravos, ou de senhores de terras e de servos.
A sua dominação é ainda absoluta. A extensa apropriação territorial, a permanência do trabalho escravos
em largas zonas, a transformação do escravo em servo em outras, a continuidade da servidão primitiva em
terceiras, representam o suporte de sua força. Contra tudo o que representa ameaça ao seu domínio,
aparece unida, compacta, sólida. A estria liberal com que disfarça, num jogo político de reduzidas
proporções, a sua dominação, é a concessão máxima e meramente formal que oferece.
53
Esta dominação é, aliás, apreendida no texto pela situação da casa grande no
cimo da formosa colina em relação à casa do administrador da fazenda e das senzalas
dos escravos. Neste sentido, uma possível aproximação pode ser estabelecida entre O
tronco do Ipê e O Guarani sempre com os olhos voltados para a hierarquia. Sem
examinarmos, em detalhe, as páginas iniciais do último romance referido em que
Alencar faz uma descrição explosiva da natureza, há necessidade de dizer que a alusão à
vassalagem do Paquequer, tributário do Paraíba prenuncia a estrutura social
característica dos brancos conforme salientou Maria Cecília.
54
A alusão à vassalagem
implica a presença de um soberano que na esfera social é simbolizado por D. Antonio
de Mariz em relação a seus sujeitos. Avulta aqui a hierarquia (daí a questão de
dominação) revelada pelo texto e que é também presente nas páginas iniciais de O
tronco do Ipê.
52
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. – 4. ed. – São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 44. – (Biblioteca básica)
53
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 1963, p. 267.
54
Maria Cecília detectou uma estrutura social hierarquizada n’ O Guarani por meio da comparação entre
o Paquequer e o Paraíba. Cf. PINTO, Maria Cecília de Moraes. A Vida selvagem: paralelo entre
Chateaubriand e Alencar. – São Paulo: Annablume, 1995, p. 181. (Coleção timbre; 2)
75
Não podemos, porém, falar de dominação sem falar de poder. A afirmação não
deve ser entendida no sentido de que o fazendeiro é um apropriador do Estado, mas
como aquele que recebe benefícios do poder central:
Os grandes fazendeiros do Vale do Paraíba receberam benefícios do poder central e sua vaidade
foi afagada com a concessão de títulos de nobreza. [...] O império tinha agora uma base de apoio nos
grandes comerciantes e proprietários rurais, entre os quais se incluíam com destaque os barões do café
fluminenses.
55
Verdadeiro dono do Brasil” para usar as palavras de Roberto Reis, o fazendeiro
é detentor do poder. No entanto, não é um poder absoluto já que este está nas mãos do
Estado. Neste sentido, ele tem um poder parcial. Vejamos como isto é refletido nesta
metonímia: “A fazenda é poder. O equivoco do dito feudalismo brasileiro nasce deste
segundo termo; haveria, no mando do fazendeiro uma parcela de mando político, capaz
de, pela autonomia, coordenar-se contratualmente dentro do organismo do Estado”
56
. O
uso do continente pelo conteúdo é significativo. Não é a fazenda em si que tem poder,
mas o fazendeiro que é o dono. Então há uma referência implícita ao poderio deste.
Podemos compreender porque o conselheiro, durante a festa organizada pelos
escravos na noite de Natal, fez um discurso a respeito do tráfico com o intuito de
angariar as simpatias dos fazendeiros, de quem dependia a sua reeleição:
– Eu queria, disse ele concluindo, que os filantropos ingleses assistissem a este espetáculo, para
terem o desmentido formal de suas declamações, e verem que o proletário de Londres não tem os
cômodos e gozos do nosso escravo. (P.237)
Estas justificativas do conselheiro candidato não fazem senão aumentar o poder
dos fazendeiros em geral e de nosso abastado Freitas em particular de quem depende a
sua reeleição. Ao assumir tal postura, ele representa, obviamente, os interesses da
camada senhorial dirigente, pois os fazendeiros cujo representante fiel é o Freitas têm
uma influência eleitoral muito grande: “É a primeira influência eleitoral do colégio...”
(P.110). Isso revela a interdependência que existe entre a camada política e a camada
dita dominante, isto é, dos senhores do café.
55
FAUSTO, Boris. História do Brasil. – 10. ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2002, p. 190 . – ( Didática, 1)
56
FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, Secr. Cult. Ciência e
Tecnol. Est. S. P., 1976, p. 28.
76
Não é de estranhar que haja “um conúbio de titulações honoríficas”
57
, pois, “por
força de máquina, colada a todos os poros do organismo político, os fazendeiros não
eram senão os cortesãos dos ministérios, decorados com baronias, comendas e patentes.
Atrás do real poder, urbano por sua natureza, estava a imensa camada das influências,
enraizadas no estamento político, vizinhas à intermediação que alimentava os
comerciantes, comissários e banqueiros”.
58
A história nos ensina que no vale do Paraíba “são os fazendeiros que constituem
a alta sociedade rural. Pertencem a famílias que remontam ao século XVIII. Vieram de
Portugal, das Ilhas, de Minas, como negociantes, pequenos proprietários ou militares:
sua ascensão é, pois recente. Alguns ostentam títulos de barões, não hereditários,
concedidos por Dom Pedro II. Calculou-se que cerca de 14% dos por ele conferidos
foram-nos a fazendeiros de café”.
59
“Assim, o Segundo Reinado não se compreenderia sem os barões, coronéis,
comendadores e conselheiros. A imensa rede de títulos, comendas e patentes doura a
sociedade, revelando, debaixo dos embelecos, rigoroso mecanismo de coesão de força.
Cobria o Império, com os títulos nobiliárquicos, as camadas sociais existentes,
domesticando-as, atrelando-as ao seu carro. Não se cunhava uma realidade existente,
com os dourados de uma nobreza de ficção. Não bastava ser rico, fazendeiro ou
comerciante, para obter a baronia, nem esta era a conseqüência daquele estado.
Incorporava, transformando; abraçava, assimilando. Do fazendeiro, fazia um fazendeiro
do Império; do comerciante, fazia um comerciante do Império. Aceitava as classes
como fundamento, mas só as localizava, legitimando-os socialmente, para integrá-lo na
ordem política. As fornadas de barões sucediam-se; ao fim do Império, em 1889,
existiam 7 marqueses, 10 condes, 54 viscondes e 316 barões”.
60
Este fato é tratado com ironia no romance. Enriquecido “A riqueza e a
importância de Freitas criaram-lhe invejosos e inimigos”, Freitas decide pedir ao
Ministro do Império que lhe seja dado o título de Barão do Socorro. Para isso, oferece
doze contos para as obras do Hospício: “Não foram porém sua reputação e filantropia
57
BOSI, Alfredo. Raymundo Faoro: leitor de Machado de Assis. In: Estudos Avançados, São Paulo, v.
18, n. 51, p. 356, mai/ago. 2004.
58
FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. 2. ed. São Paulo: Ed. nacional, Secr. Cult. Ciência e
Tecnol. Est. S. P., 1976, p. 29.
59
MAURO, Frédéric. História do Brasil; trad. de Rolando Roque da Silva. São Paulo: DIFEL, 1974, p.
76.
60
FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. 2. ed. São Paulo: Ed. nacional, Secr. Cult. Ciência e
Tecnol. Est. S. P., 1976, p. 29.
77
que lhe valeram o título de barão, e sim a soma redonda de doze contos de réis que deu
para o hospício de Pedro II, suntuoso edifício, que sob a augusta invocação tem servido
de lenitivo à loucura de uns e à vaidade de outros”. (P.103). Além do mais, alega os
seus serviços de chefe eleitoral “É a primeira influência eleitoral do colégio”.
Mas surgem dificuldades e o título não é concedido. Um dia, o ministro está
conversando com o Lopes, um malicioso jornalista, de sua maior intimidade, pois
“mediante 500$000 mensais pagos pelas despesas secretas o defendia na sua impressa
em artigos bombásticos”, quando alude às dificuldades surgidas: “O Freitas insiste por
Barão do Socorro; mas eu já me contentava em fazê-lo Barão de qualquer coisa...” O
jornalista, tipo pérfido e irônico, diz logo: “Tive uma idéia, excelentíssimo. Proponha
Barão de Espera”. E sorri, pois tal título seria uma alusão às acusações ou rumores
correntes.
Mas quando o ministro quis saber o porquê dessa sugestão, Lopes cavilosamente
a explicou a seu modo: “O Freitas mora pelas margens do Paraíba; e como nos rios há
sempre uns pontos chamados esperas, onde as canoas abrigam enquanto passa a força
d’água...” (P.110) No dia seguinte está publicado o despacho do Barão de Espera. O
ministro pegara o imperador de veneta. Só então o perverso jornalista soprou ao ouvido
do amigo o significado oculto de espera: “Excelentíssimo, os ministros fazem
programas, e os reis epigramas” (P.111) Revelada a verdade, a princípio enfureceu-se o
ministro, mas depois “tomando a coisa em ar de chalaça, desabotoou o sobrolho em
uma gargalhada”. Freitas desesperado quis renunciar ao título e reclamar seu dinheiro,
mas o ministro nem quis ouvi-lo e ele partiu lívido de cólera. Com o tempo, habituou-se
ao novo nome e acabou até mesmo amigo de Lopes.
É com razão que escreveu Raimundo Magalhães Junior: “Alencar valeu-se de O
Tronco do Ipê para mais uma ferina crítica à nossa aristocracia rural e ao modo pelo
qual eram distribuídos pelo imperador os títulos de nobreza”.
61
Apreendido este aspecto, compete identificar os demais membros da família do
barão. Surgem então a mulher do barão D. Júlia e sua filha Alice, herdeira presuntiva, a
qual o fazendeiro abastado pretende dar por mulher a Mário. É fácil entender por que é
que ela é apresentada como a moça rica ao longo do romance. A análise até aqui mostra
todos os componentes que estão no vértice da pirâmide. Em substância, temos o rico
barão Joaquim Freitas, e sua família no alto da hierarquia. Trata-se do núcleo legal.
61
JUNIOR, Raimundo Magalhães. José de Alencar e sua época. 2. ed. corrigida e aumentada. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1977, p. 285.
78
Seguindo adiante, deparamos com os outros segmentos da hierarquia que,
embora sejam ocultos merecem ser estudados. A este nível, cabe-nos usar nossas lentes
de aumento para fixar esses segmentos sociais que se encontram no círculo familiar do
barão (não se trata círculo estreito, mas da periferia). A respeito, um trecho do capítulo
intitulado “O conselheiro” deve ser citado:
Com o conselheiro entraram na varanda várias pessoas, hóspedes do barão, que tinham ido
depois do almoço dar uma volta pela fazenda. Notam-se entre outras, a volumosa e repolhuda reverência
do padre Carneiro, vigário da freguesia; a exígua estatura do capitão Tibúrcio, subdelegado vitalício no
domínio conservador; e finalmente a figura, esguia e exótica, do Sr. Domingos Pais, inserida em umas
calças de Lilá preto e brochada com um fraque justo cor de rapé. (P.112)
Estas personagens, aqui descritas de maneira a buscar um perfil caricatural por
meio de traços grotescos ou exagerados, são os hóspedes do abastado fazendeiro e têm
um papel importante no romance. É por isso, aliás, que o autor chama-nos a atenção por
meio desta descrição explosiva. É bom acrescentar a este grupo o juiz municipal.
(P.256)
A presença destes no texto não é fortuita. Muito pelo contrário, revela a presença
de um outro segmento social que Nelson Werneck Sodré denomina de “classe média”
que, na segunda metade do século XIX, já é possível admitir. Esta “classe”, segundo
ele, é composta por frações diversas as quais são os elementos ligados ao comércio, o
externo como o interno, o primeiro emvel muito alto do que o segundo, e por isso
mesmo os seus elementos gravitando na órbita da classe senhorial exportadora e
reforçando-as; os elementos ligados ao aparelho de Estado, o numeroso funcionalismo
que deriva da ampliação daquele aparelho e de características normais à estrutura
econômica brasileira, em que o Estado se apresenta como o empregador por excelência,
a válvula propícia à compensação das limitações de um mercado de trabalho onerado
pelo escravismo e pela servidão; os elementos ligados a determinadas a atividades ou
profissões que passam, pouco a pouco, a ocupar um espaço mais amplo: as profissões
ditas liberais, a atividade militar, a atividade religiosa, a atividade intelectual sob os seus
diversos aspectos, inclusive o da atividade estudantil; os pequenos produtores agrícolas,
particularmente os que provêm da imigração e da colonização, sufocados pela presença
79
esmagadora da grande e pela invasão do mercado interno pelos concorrentes
estrangeiros.
62
Isto posto, constatamos que todas as personagens a que nós nos referimos acima
são claramente identificadas nesta camada social. Lopes (o conselheiro) é considerado
no texto um homem que “gozava da reputação de um dos mais brilhantes talentos
políticos daquela época, o que lhe valera o título de conselheiro...” (P.109) “O
conselheiro era realmente um talento notável; e as esperanças de seus amigos não
podiam ser mais bem fundadas. Um deputado capaz de provar ao governo e à oposição
que ambos se acham de perfeito acordo, estava talhado para ministro”. (P.113). Ele é
com certeza identificado ao elemento ligado ao aparelho do Estado, razão por que
proferiu o discurso a favor do tráfico negreiro no sentido de ganhar a simpatia dos
fazendeiros de quem dependia sua reeleição. O juiz municipal pode ser classificado
neste grupo.
Quanto aos demais, isto é, o capitão Tibúrcio, subdelegado vitalício no domínio
conservador, o padre Carneiro e o Sr. Domingos Pais, são ligados respectivamente à
atividade militar e religiosa, ou seja, o primeiro ao exército e os dois últimos ao clero.
Deter-se aqui significaria não levar a cabo a nossa análise já que temos a
incumbência de identificar os demais personagens que fazem parte da dita hierarquia.
Assim, digamos que no mesmo círculo familiar do fazendeiro estão D. Francisca mãe de
Mário, D. Alina, viúva do comendador Figueira antigo dono da fazenda e seu filho
Lúcio. Estes foram recolhidos na casa grande após a morte de seus respectivos maridos
e pais. É mister acrescentar que Mário é o protótipo deste segmento social.
É, aliás, esta camada socialmente indefinida que John Gledson repetindo
Roberto Schwarz chama de o grupo intermediário de “agregados”. São eles que estão no
meio e que não podem se encaixar em nenhum pólo da pirâmide. É a estes que se referiu
Roberto Schwarz nestes termos: “O agregado é sua caricatura”. Dependem do barão que
é, aliás, o senhor do café e dos escravos e então beneficiam do favor que é o mecanismo
que rege a sociedade de então.
Na última escala da hierarquia cuja existência tentamos demonstrar, ou seja, na
base da pirâmide social existente na sociedade brasileira de então, encontram-se os
escravos. A sua inferioridade em relação ao senhor (fazendeiro abastado ou o senhor do
café) e às outras camadas é óbvia, pois, se nós olharmos para nosso texto, depararemos
62
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 1963, p. 268.
80
com uma ordem hierárquica assim disseminada: a casa grande no cimo da colina, nas
fraldas da colina à esquerda, a habitação do administrador da fazenda ou feitor e as
senzalas dos escravos em última posição.
Embora estes dois últimos segmentos sociais dependam do senhor, é evidente o
grau de inferioridade dos escravos devido à sua posição na ordem hierárquica
estabelecida. A conclusão a que chegamos não precisa de mais interpretações. O
escravo está numa posição inferior, na base da pirâmide.
Benedito é representante dos escravos embora revele a presença de muitos
outros. Já no primeiro capítulo intitulado “O feiticeiro”, o narrador com perfil de
viajante naturalista encontra-se com ele e apresenta-o como um “bruxo, subdelegado de
Satanás” embora tenha qualidades notáveis. Num outro capítulo que lhe foi por inteiro
dedicado e leva seu nome, é apontado o fato de Benedito morar numa palhoça isolada
que tinha pertencido a um outro escravo chamado Inácio, reputado como o Diabo em
pessoa.
Embora Benedito seja apresentado como “um feiticeiro de bom coração” o que
nos faz lembrar o pai Tomás o herói escravo do romance de Harriet B. Stowe: “Tomás
tem um nobre coração” (P.20), há menção de que “não era senão o mesmo pai Inácio,
ou para melhor dizer, um rebotalho do inferno que tomara figura de negro para tentar a
gente cá na terra” segundo o testemunho de outras pessoas da fazenda do boqueirão. Ao
longo do romance, notamos que a relação senhor - escravo é de submissão, mesmo que
não haja uma violência declarada.
Estas referências todas, mais uma vez, dão provas de que há uma brutal distância
social. Outra coisa importante a ser mencionada é o fato de não haver de maneira
tangível menção de que o escravo trabalha quando é sabido que, eles, embora sejam
vistos como inferiores (estão na base da pirâmide), têm um papel importante não só na
vida econômica brasileira como também na vida familiar do senhor. Basta ler este
trecho extraído de Casa grande e Senzala de Gilberto Freyre para uma melhor
compreensão:
[...] sem escravos não se produziria açúcar. E escravos em grande número; para plantarem a
cana; para a cortarem; para colocarem a recoltada entre as moendas impelidas a roda de água – nos
engenhos chamados de água, e por giro de bestas ou de bois, nos chamados almanjarras ou trapiches;
coalhar o caldo; purgarem ou branquearem o açúcar nas formas de barro; destilarem a aguardente.
Escravos que se tornaram literalmente os pés dos senhores: andando por eles, carregando-os de rede ou de
palanquim. E as mãos – pelos menos as mãos direitas; as dos senhores se vestirem, se calçarem, se
81
abotoarem, se catarem, se lavarem, tirarem os bichos dos pés. De um senhor de engenho pernambucano
conta a tradição que não dispensava a mão do negro nem para mais íntimos da toalete; e de ilustre titular
do Império refere Von Den Steinen que uma escrava é que lhe acendia os charutos passando-os já acesos
à boca do velho. Cada branco de casa-grande ficou com duas mãos esquerdas, cada negro com duas mãos
direitas.
63
A relevância do escravo na sociedade é mostrada aqui sem rodeio. Dele
dependia a produção açucareira. E se esta produção dependia dele, não é ousadia dizer
que sem ele não se podia falar de economia brasileira. Ele era não só o pilar da
economia como também a máquina muscular. Se já trabalhava na era da produção
açucareira, não o faria também na era do café? Sabemos que o café era o verdadeiro
alicerce da economia brasileira no Segundo Império e que o tráfico negreiro foi abolido
em 1850, mas que a supressão da escravidão ocorreu em 1888.
Quem nos ajudar a responder a esta pertinente pergunta é Alves Motta Sobrinho.
Em A Civilização do Café, faz reviver uma das passagens mais interessantes da história
do Brasil. História esta que retrata a implantação da lavoura cafeeira no vale do Paraíba
que sustentou a economia brasileira e desvenda uma sociedade de fazendeiros opulentos
e de pobres e sofridos trabalhadores escravos. A respeito do trabalho escravo, é melhor
deixá-lo expressar-se:
No eito, os escravos cantantes e luzidios, sempre em linha, ora plantavam, abrindo e fechando
covas. Ora limpavam, carpindo ou cortando os talhões. Os intervalos, antes que os cafeeiros creassem
sáias, recebiam culturas auxiliares, que, naturalmente, enfraqueciam o solo, onde deitavam apenas
detritos, bagaços de cana, talos de milho, como adubação. Ora colhiam, apanhando dos galhos, ou
catando do chão, os cocos do cafeeiro”.
64
Este trecho é revelador na medida em que aponta para o trabalho escravo na
civilização do café principalmente no vale do Paraíba fluminense. A situação geográfica
da fazenda do Boqueirão como veremos adiante no capítulo dedicado ao espaço nos dá
a entender que a dita fazenda está no vale acima referido. Aliás, o nosso texto não diz
que “costumava o fazendeiro tratar a venda dos cafés ou a compra de escravos”?
63
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 30. ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 428-429.
64
MOTTA SOBRINHO, Alves. A civilização do café (1820-1920). Pref. Caio Prado Júnior, São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1967, p. 60.
64
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 1963, p. 268.
82
Embora não haja nenhuma referência palpável ao trabalho escravo na obra de
Alencar, é fora de dúvida dizer que o trabalho é inexistente.
É interessante referir-se a Nelson Werneck Sodré que estudando a hierarquia
social na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX em Formação
Histórica do Brasil apontou:
Aparece, por último, a classe trabalhadora, que se discrimina pouco mais ou menos assim:
escravos, servos, trabalhadores livres, colonos, assalariados, pela ordem numérica decrescente, em
estimativa, compreendendo os que trabalham no campo; artesãos, empregados e operários, também pela
ordem numérica referida, compreendendo os que trabalham nas áreas urbanas. A grande fonte do trabalho
urbano, então, está no campo.
65
Embora haja no seu estudo muitos outros componentes na base da pirâmide
representando a “classe trabalhadora”, os escravos são os que se destacam mais.
Analisando com minúcia o trecho, chegamos a conclusão de que os escravos têm um
peso maior na produção do império uma vez que figuram em primeiro lugar na
configuração acima apresentada. O escravo, para resumir, tem um papel importante
mesmo que assuma uma posição inferior e se ache na base da estrutura social até aqui
delineada. Representa uma força na sociedade brasileira na medida em que é no suor de
seu rosto que repousa a economia do Brasil de então.
Referindo-se a eles, Maria Isaura Pereira de Queiroz em seu estudo intitulado A
estratificação e a mobilidade social nas comunidades agrárias do Vale do Paraíba,
entre 1850 e 1888 diz: “[...] os escravos é que proporcionavam aos donos a riqueza.
Eles é que trabalhavam...”
66
Resumindo, podemos enfatizar que existe uma estrutura social hierarquizada
assim estabelecida de acordo com o romance de Alencar. No alto da pirâmide social,
temos o ricaço fazendeiro e sua família. Ele é o senhor do café e dos escravos e goza do
poder e dominação.
Depois vem o administrador da fazenda (embora não seja identificado ao longo
do romance) que é aquele de que se vale o senhor para o enquadramento dos escravos e
da fazenda. Ele representa, em outras palavras, os braços do senhor.
66
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. A estratificação e a mobilidade social nas comunidades agrárias
do Vale do Paraíba, entre 1850 e 1888 / São Paulo, REVISTA DE HISTÒRIA nº 2 abril-junho de 1950, p.
206.
83
A seguir, o grupo composto de funcionários, do clero e do exército. A eles,
Maria Isaura Pereira de Queiroz chamava “o pessoal da administração”.
67
(P.207)
Notamos este grupo também depende do fazendeiro e está acima dos agregados que
veremos.
Os agregados vivem do favor. “Tinham um fundo de semelhança que era viver à
custa e à sombra do fazendeiro”.
68
(P.208).
Na última escala da hierarquia, estão os escravos. Representam as mãos e os pés
do senhor. Embora sejam considerados inferiores em relação a todos os demais grupos
sociais acima referidos, constituem uma força em se baseia a economia do país. Sendo
escravos, estão em situação de inteira e total dependência do senhor.
Falando em modo geral da estrutura social presente nas fazendas do Vale do
Paraíba entre 1850 e 1888, Maria Isaura insiste: “Posso então dizer que nas fazendas do
Vale do Paraíba, no período que vai de 1850 a 1888, o pessoal comumente encontrado
era: o dono das terras e sua família; o administrador e outros empregados da
administração (capelão, médico, escrivão, etc); libertos e caboclos, que englobarei sob a
designação de agregados; escravos finalmente. Deixo assim de lado os colonos, cuja
quantidade, no Vale, era irrisória”. (P.204) Nesta exposição, encontramos todos os
grupos sociais que figuram em O tronco do Ipê.
Resumindo a mesma a autora diz: “Temos um conjunto de pessoas dividido em
três corpos distintos: o dono da fazenda e sua família; os empregados assalariados da
administração, incluindo o capelão e o médico; os escravos. Entre as duas camadas, de
empregados da administração e de escravos, existia no Brasil outra intermediária,
formada de libertos, de colonos e de agregados [...]”. (P.203). Mário o moço pobre faz
parte dos agregados.
67
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. A estratificação e a mobilidade social nas comunidades agrárias do
Vale do Paraíba, entre 1850 e 1888 / São Paulo, REVISTA DE HISTÒRIA nº 2 abril-junho de 1950, p.
207.
84
A questão do dinheiro
Especulando sobre o dinheiro e suas funções sociais no regime senhorial do
século V a XV, João Bernardo escreveu em Poder e dinheiro:
Derivado de um fetiche, ao qual se confere a virtude de prender em formas específicas de
relacionamento aqueles que o tocarem ou de qualquer modo caírem no seu âmbito, o dinheiro esteve
desde a origem fortemente conotado com a esfera da magia, dos talismãs. Quem possuía o objecto mágico
tinha por isso o poder de obrigar os outros a servi-lo e de obter os seus préstimos; do mesmo modo o
dinheiro conferia o poder de adquirir serviços e outros bens, de alargar clientelas e fortuna. E o carácter
inesgotável desta virtude do dinheiro só na magia encontrava paralelo. O dinheiro, como o talismã, eram
intransmissíveis sem nada perderem das suas qualidades e indefinidamente empregues sem atenuarem em
cada acto a capacidade de operar. Porque era de virtude permanente e não fungível, o talismã-dinheiro
servia de repositório do valor. E, por todos cobiçado e por todos aceite enquanto fonte de poder,
estabeleciam-se no seu âmbito o carácter genérico do valor e os seus padrões. Mesmo quando a função
simbólica se resumia a veicular uma dada relação ou a representar um objecto particular, na medida em
que era generalizadamente reconhecido neste papel adquiria um carácter mais amplo e servia, assim, de
dinheiro.
69
Este longo trecho não só nos informa o que era o dinheiro desde sua origem
como também a sua função principalmente no regime senhorial do século V a XV.
William Shakespeare, segundo mostrou Valentim Facioli, já se referiu à capacidade do
dinheiro de subverter e inverter a ordem do mundo. Na Inglaterra de fins do século XVI
e início do XVII, expressou com clareza esta capacidade do dinheiro de operar
mudanças, inclusive desatinadas para produzir um mundo às avessas.
Ao analisar As Memórias póstumas de Brás Cubas, Valentim Facioli em Um
defunto estrambótico dedicou um capítulo interessantíssimo sobre o funcionamento do
dinheiro na sociedade escravista partindo desta visão shakespeariana. Já no início do
capítulo, ele nos dá a definição do dinheiro, que pode ser vista como o resumo do trecho
acima citado:
69
BERNADO, João. Poder e dinheiro: do poder pessoal ao estudo impessoal no regime senhorial,
séculos V-XV. Porto: Afrontamento, 1995, v.3, p. 474. (Parte I)
85
O dinheiro é o grande fetiche moderno como encarnação do valor, tornando-se a mediação
universal entre os homens, sendo a medida de valor substitutiva de todas as mercadorias, incluindo a
força de trabalho humana e o próprio dinheiro.
70
Isto posto, convém mostrar a presença e o funcionamento nas duas obras.
Fazemos questão também de não deixar de lado o contexto das obras a fim de entendê-
lo na pluralidade de suas operações. A questão do dinheiro, convém apontar, de saída,
perpassa direta ou indiretamente as duas obras tanto na zona urbana quanto na zona
rural.
a) Em Le roman d’un jeune pauvre
No romance de Feuillet, há menção de que a família de Maxime tinha uma
fortuna considerável, mas que passou mais tarde a entrar pela porta da pobreza. A
questão do dinheiro é um dos temas abordado no romance conforme observou Maria
Cecília de Moraes Pinto em Alencar e a França: “A questão do dinheiro, princípio
condutor da ação no texto de Feuillet – Maxime Odiot não iria trabalhar se o pai lhe
tivesse deixado herança compatível com sua posição social...”
71
Constatamos que a primeira referência ao dinheiro mesmo que seja indireta é
mencionada no episódio que nos informa sobre a maneira como o pai perdeu toda a sua
fortuna. Aqui estamos na cidade. Ao tentar restaurá-la por estar à beira da falência,
entregou-se aos “détestables hasards de la Bourse” e acabou por perdê-la por completo,
daí sua ruína. Isso nos dá a entender que estamos em cheio no sistema capitalista,
sistema do qual a especulação e a agiotagem são parte integrante. Aqui é bom destacar o
lado sinuoso do referido sistema. João Roberto ao analisar o Crédito peça de Alencar
diz:
Os mesmos problemas relativos à especulação e a agiotagem existiam em países europeus, cujas
grandes praças financeiras eram os modelos dos financistas brasileiros que procuravam sincronizar o país
com a marcha do mundo capitalista ocidental. Na França, por exemplo, a ascensão de uma burguesia
70
FACIOLI, Valentim. Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás
Cubas. – São Paulo: Nankin Editorial, 2002, p. 88 et seq.
71
PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: perfis. – São Paulo: Annablume, 1999,
p. 155.
86
gananciosa por meio desonesto foi um tema bastante aproveitado pelos dramaturgos realistas que
pretendiam retratar a degradação moral do homem excessivamente apegado ao dinheiro.
72
Embora a crítica seja aplicada à situação sócio-econômica do Brasil,
principalmente ao Rio de Janeiro do decênio de 1850, João Roberto Faria traça um
paralelo com o mundo capitalista ocidental e principalmente a França onde o dinheiro
exercia uma influência muito grande sobre os homens a ponto de acarretar a degradação
moral. Segundo Arnold Hauser era o momento de franca ascensão do capitalismo e do
industrialismo na França.
Já no início do romance, o narrador-protagonista ao escrever seu diário nos
informa com clareza sobre a capital da França, mas quanto à data ele nos deixa
perplexos. Vejamos:
Paris, 20 avril 185...
Mesmo que a data seja incompleta, não há lugar para a dúvida quanto à
emergência do capitalismo na França, pois 1850 é uma data de grande importância no
surgimento da industrialização no referido país. É a era da burguesia. Além do mais, é
bom acrescentar que o ano de publicação do romance de Feuillet é 1858, o que mais
uma vez comprova que nós estamos em cheio numa sociedade capitalista. Quem fala de
capitalismo fala necessariamente do capital, isto é, do dinheiro.
A questão da especulação é de novo observada na ocasião em que Maxime
deveria, se gostasse da proposta, pôr seu ilustre nome “marquês de Champcey de
Hauterive” numa lista dos fundadores de uma eventual empresa a fim de conquistar a
simpatia do público especial ao qual está dirigida. Isso ajudaria consideravelmente no
êxito da dita empresa. Tal proposta classificada por Maxime como uma ignomínia vem
de um hábil especulador, rico e influente. Este promete oferecer gratuitamente a
Maxime dezenas de ações cujo valor é estimado em dez mil francos, seria triplicado
pelo sucesso da operação.
Por trás de tal proposta, há uma tentativa do especulador de procurar tirar
proveito usando o conhecido e ilustre nome aristocrático de Maxime. Por isso, tenta
usar o dinheiro como meio para chegar ao seu fim. O que resulta deste fato é a
72
FARIA, João Roberto. José de Alencar e o teatro. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de
São Paulo, 1987, p. 58.
87
existência de um mundo em que reina a corrupção. Aqui o dinheiro é visto como um
meio para persuadir, daí desempenhar um papel subornador num mundo capitalista
assaltado pela corrupção, pela ânsia de tirar lucro custe o que custar.
Maxime recusa-se a aceitar tal proposta e opta pela segunda que consiste em ir
trabalhar como administrador das propriedades da opulenta família dos Laroque na
Bretanha, lugar afastado do burburinho da capital da França. Mais digna é esta última
proposta, pois ele receberá, desta vez, um ordenado estimado em “six mille francs par
an”, isto é, seis mil francos ao ano. Esta parte abre um outro episódio, o da presença e
do funcionamento na zona rural.
Notamos, com clareza, uma das funções do dinheiro (ver a definição acima) que
consiste na aquisição da força trabalho alheia mediante pagamento de salário. Maxime
ao exercer sua função de administrador recebe um salário. Isso nos leva a afirmar que há
a existência do trabalho assalariado, algo ligado ao sistema capitalista.
Convém ressaltar que embora a família Laroque contrate Maxime para trabalhar
como administrador com vistas a produzir e acumular mais afim de que a fortuna não
diminua, elas (Mme Laroque e sua filha) não atribuam grande importância ao dinheiro.
Já sabemos que a família Laroque é a mais rica da Bretanha conforme o próprio
testemunho de Mme Laroque: “Nous sommes donc très riches...”. (P.72) No entanto, há
um desprezo pelo dinheiro por parte de Mme Laroque e sua filha Marguerite. Não há
menção em alguma parte do romance de que elas têm uma empresa ou têm a idéia de
fundar uma, mas o fato de elas terem uma fortuna considerável e, aliás, serem a família
mais rica da região, uma família burguesa. A idéia que assalta seu pensamento é o
desprezo pelo dinheiro ou a infelicidade de serem ricas. Poderia ter uma explicação para
tal atitude?
Sandra Nitrini é quem nos ajuda a responder:
Também soa falso o desprezo de Marguerite e de sua mãe, a senhora Laroque, pelo dinheiro no
nível da intriga. Nada de suas experiências pessoais justifica tal atitude. [...] No entanto, se no nível das
trajetórias pessoais, o desprezo pelo dinheiro, por parte das Laroque, não se justifica, ele é perfeitamente
compreensível do ponto de vista do comprometimento do autor com uma política de conciliação entre a
burguesia e a nobreza, na França do Segundo Império.
73
73
NITRINI, Sandra Margarida. Seixas entre Camors e Maxime Odiot (Um exercício de literatura
comparada). Linha D’Água, São Paulo, n. especial, junho de 1995, p. 19.
88
Este desprezo do dinheiro pela burguesia é explicado pelo comprometimento do
autor com uma política de conciliação entre a burguesia e a nobreza conforme o trecho
acima. Feuillet, com o intuito de disfarçar as contradições sociais, ou seja, atenuar o
conflito entre as duas classes sociais tenta construir um mundo burguês harmônico em
que segundo Roberto Schwarz “triunfa uma liga exemplar de aristocratas igualitários e
burgueses sem ganância”.
74
Levando adiante a nossa análise, descobrimos que o dinheiro também se
apresenta como uma ferramenta para ostentar o orgulho, o poder e a vaidade. Isso se
percebe no diálogo travado entre Mme de Saint-Cast e Mme Aubry unicamente voltado
para a riqueza. Mme de Saint-Cast gaba-se de ter uma fortuna maior que a de seu
marido, o general de Saint-Cast. No seu dizer, o general não seria nada sem ela, já que
não tinha absolutamente nada quando contraiu matrimônio com ela.
Movida pelo orgulho, ela vai até dizer ao seu marido que sem o seu carro
(coche) cujo valor é estimado em quatro mil francos, voltará para casa a pé. O general
não ficou indiferente a esta provocação e acabou por responder que seu carro de gala
também custou cinco mil francos inclusive a pele de tigre para os pés.
Ainda insatisfeita, acrescenta que a renovação do mobiliário de sala é avaliada
em quinze mil francos: “Je viens de renouveler mon meuble de salon, et rien qu’en tapis
et en tentures, j’ en ai pour quinze mille francs.” (P.112)
Assaltada pelo desejo de vangloriar-se, deixa transparecer que tal atitude não é
vã, muito pelo contrário, leva a cidade inteira a ficar de joelhos, melhor dizendo
subjugada e a inspirar respeito diante de sua obra. Pensamento compartilhado por Mme
Aubry, em cuja opinião, o homem é respeitado em proporção ao dinheiro que tem.
Quando mais rico ele é, mais respeito tem, mas quando é pobre como, no caso dela, é
menosprezado. É melhor deixá-la tomar a palavra:
– Sans doute, madame, répliqua Mme Aubry, on aime à être respecté qu’ en proportion de
l’argent qu’on a. Pour moi, je me console de n’être plus respectée aujourd hui, en pensant que, si j’ étais
encore ce que j’ai été, je verrais à mes pieds tous les gens. (P.112-113).
Vemos que o dinheiro é usado para comprar carros, objetos móveis para uso ou
adorno interior de casa sendo “a medida de valor substitutiva de todas as mercadorias”
74
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. – São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 76.
89
comprovando a idéia de que o capitalismo está em franca ascensão na França da
segunda metade do século XIX, principalmente no Segundo Império.
Mas é bom ressaltar que o dinheiro, além de assumir esta função, serve para
ostentar orgulho, confirmar sua superioridade à imagem de Mme de Saint-Cast. O
dinheiro na opinião desta e de Mme Aubry, faz com que quem o tem seja respeitado por
todos. Ele, neste sentido, serve para promover a vaidade e mostrar a pretensa
superioridade em relação aos outros. Tudo isso nos leva a ter uma idéia de que era o
dinheiro na sociedade burguesa. Riqueza era sinônimo de superioridade, de poder. Dito
de outra maneira, o dinheiro é um meio para mostrar sua supremacia.
O texto nos oferece o exemplo de Mlle de Porhoet-Gaël que, para que o nome
“Porhoet-Gaël”, nome ilustre da nobreza francesa não caia no esquecimento sonha em
erigir uma catedral. Esse desejo poderá se realizar se vier a ser possuidora da grande
fortuna de que é herdeira, mas cuja posse é impedida por causa de uma pendência contra
nobres espanhóis. Há uma referência ao dinheiro mesmo que seja de maneira implícita.
O pensamento da nobreza francesa em decadência é aqui posto a nu. Lutar, fazer algo o
quanto antes, para não cair no esquecimento. Trata-se de uma nobreza que não quer
proclamar a sua morte definitiva com o surgimento da burguesia que, por sua vez, está
em ascensão. Ela (a nobreza) tenta sair do abismo sinônimo de ruína em que se
encontra. A única saída, nesta tentativa de guardar a honra, é procurar imortalizar o
nome erigindo um monumento imponente de grande valor.
Por fim, notamos o envolvimento do dinheiro no matrimônio negando aos
jovens a escolha afetiva, ou seja, a possibilidade de decidirem livremente com quem
namorar ou casar. Partindo desta visão, chegamos à conclusão de que o rico deve
necessariamente casar-se com a rica. O jovem pobre embora ame não tem a menor
chance de contrair matrimônio com uma moça rica. Assistimos assim à capitalização do
sentimento e não ao triunfo do amor enquanto instrumento eficaz contra a
despersonalização capitalista.
Resumindo, podemos dizer a presença do dinheiro na obra de Feuillet não pode
ser desmentida. Direta ou indiretamente, ele aparece assumindo funções seja na cidade
como no campo, o que nos leva a considerá-lo nas múltiplas operações desvelando
pensamentos e regras estabelecidas pela sociedade.
90
b) Em O tronco do Ipê
O tronco do Ipê é um romance que, segundo disse Ir. Elvo Clemente, retrata
“alguns aspectos da vida dos senhores rurais da época”
75
, ou seja, a sociedade rural da
segunda metade do século XIX (1850). Reportando-se ao capítulo sobre o espaço,
descobrimos que a fazenda de que a obra trata, a fazenda do Boqueirão,
geograficamente falando, é situada no vale do Paraíba fluminense, lugar onde floresceu
o café, produto que sustentou a economia brasileira de então. Houve também neste lugar
“opulentos fazendeiros”, “os fazendeiros ricaços” conforme nos informa o romance e
segundo a voz da própria História do Brasil.
É inevitável abordar a questão do dinheiro e suas funções na obra de Alencar
mesmo que compareça direta ou indiretamente. A sua presença não pode ser
negligenciada ao longo do romance. De saída, é bom salientar que Joaquim de Freitas
que passou a ser o dono da fazenda do Boqueirão e o Barão de Espera depois da morte
do comendador Figueira (avô de Mário e antigo dono da referida fazenda, o mais rico
fazendeiro) e de seu filho José Figueira (herdeiro presumido) era “filho de um simples
administrador de fazenda; na idade de treze anos ficara órfão e em extrema pobreza”.
(P.92)
Este passou a assumir o controle da fazenda e ficou tão rico, aliás, o mais rico de
todos os fazendeiros; a tal ponto que surpreendeu as pessoas do lugar com “a rapidez
com que enriquecera”. Temos o testemunho de que é realmente rico a ponto de levantar
suspeitas e acusações contra a origem de sua fortuna conforme nos mostra este trecho
que merece ser citado: “A riqueza e importância de Freitas criaram-lhe invejosos e
inimigos. Houve quem fomentasse suspeitas a respeito da origem de sua fortuna.
Chegaram até a insinuar que José Figueira fora vítima de uma espera, junto ao
boqueirão, onde tinha lançado o corpo para dar ao assassinato a aparência de um
simples desastre”. (P.103) Há outros índices no romance que comprovam a idéia de que
Freitas tem muito dinheiro como esta referência implícita ao referido fazendeiro: “É
filha do barão... não cai... tem muito dinheiro” (P.48)
Mesmo que não haja um valor declarado quanto à riqueza de Freitas, a presença
do dinheiro transparece, pois a riqueza, em nosso caso, é necessariamente ligada ao vil
metal para usar o eufemismo conhecido de todos. Freitas é protótipo dos ricaços,
75
CLEMENTE, Ir. Elvo. Leitura de O tronco do Ipê. In: ALENCAR, José de. O tronco do Ipê. 11. ª ed.,
São Paulo: Ática, 1993, p. 3; (Série Bom Livro)
91
poderosos fazendeiros e senhores de terras e de escravos que enriqueceram com a
implantação da lavoura cafeeira no vale do Paraíba tanto fluminense quanto paulista e
que povoaram a esfera social e política e econômica do Segundo Império brasileiro.
Enquanto rico fazendeiro e amigo do falecido José Figueira, Freitas recolheu
Mário e sua mãe na casa grande onde passou a viver como dono: “Freitas mostrou-se
nesta emergência digno, pela gratidão e pela generosidade, da fortuna que o elevara.
Deu amparo à viúva e filho do seu amigo de infância, chamando-os para fazenda, onde
foram habitar a antiga casa do administrador”. (P.102) Dele dependiam Mário e sua
mãe. Foi ele, o barão quem se encarregou do futuro do filho de seu amigo falecido,
permitindo que fosse concluir seus estudos na França. Não podemos negar aqui a
vigência do favor, mecanismo que regia a vida ideológica da sociedade de então. O
barão passa a ser benfeitor e protetor conforme salientou o próprio Mário, o moço pobre
na carta que endereçou ao fazendeiro: “Colocando-me na posição de rejeitar seu último
benefício, obrigou-me V. Exa. a romper o vínculo que me prendia ao benfeitor e
restituiu-me a liberdade”. (P.296)
Aqui se desvela um dos funcionamentos do dinheiro na sociedade escravista, o
de reforçar a dominação paternalista fazendo com que o fazendeiro, melhor dizendo o
senhor de café e de escravos seja “um outro pai”, benfeitor e protetor dos dependentes
(os sem pais), isto é, aqueles que vivem à custa dele. Enquanto benfeitor e protetor ou
“padrinho”, ele não faz senão “mostrar a sua generosidade”, aumentando deste modo
seu poder e dominação.
Outra função do dinheiro é a compra e a venda dos escravos. A este respeito,
julgamos necessário referir-nos a Valentim Facioli que tratou bem deste assunto. Ao
ponderar sobre a sociedade de Brás Cubas que viveu provavelmente entre 1805 e 1869,
Facioli apontou para o tráfico negreiro externo e interno. O trecho, embora seja longo,
merece ser citado:
É possível também afirmar que a sociedade brasileira em que viveu Brás Cubas (entre 1805 e
1869) seja a sociedade diretamente engendrada por capitais do mercantilismo internacional,
especialmente no seu funcionamento peculiar no Brasil, que tinham como centro de suas atividades
comerciais o tráfico negreiro (externo e interno, ou seja, africanos trazidos ao Brasil e os escravos
vendidos aqui mesmo entre os negociantes e fazendeiros das províncias do Império). O tráfico negreiro
externo e interno era a atividade mais lucrativa no país, sendo, ao mesmo tempo, uma atividade comercial
normal, primeiro legal, depois ilegal e mesmo criminosa, mas tolerada e completamente mesclada com
todas as atividades normais do comércio de mercadorias de importação e exportação ou de circulação
92
interna, naquele período. O tráfico externo de escravos conheceu seu apogeu entre 1750 e 1830, ano em
que foi tornado ilegal, mas continuando mais ou menos livremente até 1850, conforme foi visto
anteriormente. Já o tráfico interno, embora com algumas restrições legais, durou até a Abolição.
76
É revelador este trecho na medida em que nos leva a legitimar o contexto
histórico da obra e a desofuscar a presença do tráfico tanto externo quanto interno no
texto a fim de descobrir o funcionamento do dinheiro. O romance nos informa que tanto
o comendador Figueira, avô de Mário e antigo dono da fazenda quanto Freitas são
donos de escravos. Sobre o primeiro, o texto nos avisa: “Esse novo proprietário, que era
Figueira, avô de Mário, trouxera vários escravos e entre eles um molecote de nome
Benedito, colaço e pagem do filho José. Pelo tempo adiante o mancebo casou-se e
retirou-se da fazenda, agastado com o pai; Benedito, que já tinha mais de quarenta anos
era cativo; não pôde acompanhar o senhor moço, como lhe pedia o coração”. (P.76)
Este “trouxera vários escravos e entre eles um molecote de nome Benedito” nos
leva a dizer que se trata exatamente do tráfico externo, isto é, os escravos que vem do
continente africano e que são vendidos no Brasil aos fazendeiros. É um exemplo
perfeito a origem de Benedito que se percebe através da saudação de Martinho: “– Viva
o rei do Congo!” Se fizermos uma dedução de tudo aquilo que foi dito, descobriremos
com relação à colocação de Facioli que “os vários escravos” do comendador Figueira
são os do trafico externo. A data da morte do pai de Mário “na noite de 15 de janeiro de
1839” mais uma vez nos ajuda a sustentar o nosso argumento uma vez que o tráfico
negreiro externo conheceu seu apogeu entre 1750 e 1830 tendo continuado ilegalmente
(mais ou menos livremente) até 1850, ano de supressão do referido tráfico.
Feito este levantamento, podemos dizer que o dinheiro servia para comprar os
africanos transformados em escravos para trabalhar na lavoura. Deste modo, passam a
ser considerados mercadorias. É sabido que depois da supressão do tráfico, os “capitais
dantes investidos na compra de escravos” ou “os recursos anteriormente destinados ao
pagamento dos negros importados” ou ainda “capitais consideráveis nele investidos”
ajudaram a intensificar a vida comercial brasileira e possibilitaram empreendimentos da
maior importância para o progresso e a modernização do país.
Nelson Werneck Sodré bate na mesma tecla quando escreve: “É permitido
supor, ainda aqui fazem falta os dados estatísticos comprovantes, que o tráfico negreiro,
atividade comercial e, portanto, característica de um capital comercial, isto é, de uma
76
FACIOLI, Valentim. Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás
Cubas. – São Paulo: Nankin Editorial, 2002, p. 25.
93
forma anterior ao capitalismo, era a área que absorvia, no comércio, a maior parte dos
recursos brasileiros...”
77
Isso mostra o quanto o referido tráfico exigiu grandes capitais
revelando um dos papéis desempenhado pelo dinheiro na sociedade escravista.
De Freitas, sabemos que depois de ser dono da fazenda e mesmo de obter o
título de barão, tornou-se um poderoso, ricaço fazendeiro e senhor de escravos também.
Prova disso, sua filha única Alice tinha uma “mucama” conhecida pelo nome de
Eufrosina além de muitos outros escravos. Notemos que durante o passeio das crianças
pela floresta, a Eufrosina sucedeu um infortúnio. Por ter chamado Mário de
“cabritinho”, recebeu “uma jaca madura, que esborrachando-se na cabeça, cobria-lhe
toda a cara, pescoço e ombros, de bagos amarelos”. Esta cena que acabamos por
descrever não deixou as demais crianças indiferentes, mas suscitou uma hilaridade
geral. Não podendo se conter diante desta humilhação ela soltou:
– Desaforo! Vou fazer queixa a Sinhá! Eu sou sua mucama dela, sua mucama de estimação; não
é para ser tratada assim. Se não presto mais, então me vendam!... Depois é que hão de ver! Ai, a
Eufrosina, aquilo sim, era uma boa rapariga! Coitada! Aonde andará ela?... Ora bem descansada de minha
vida! Senhor bom é o que não falta! (P.52)
A queixa da mucama de estimação, segundo ela mesma, merece atenção
particular, daí uma análise meticulosa, pois, delineia-se o segundo aspecto de nosso
estudo, o do tráfico negreiro interno que se fazia nas províncias do próprio Império
depois da supressão do tráfico externo em 1850 e que durou até a Abolição. De novo a
questão do dinheiro merece ser ressaltada.
O próprio romance nos informa que a cena acima relatada ocorreu “Na manhã de
15 de janeiro de 1850”. Ao dizer “se não presto mais, então me vendam!”, a escrava nos
leva, sem sombra de dúvida, a acreditar na existência dum mercado interno. Não
devemos esquecer que o verbo vender significa: alienar ou ceder por certo preço; trocar
por dinheiro conforme o dicionário Aurélio. De novo, o homem torna-se mercadoria e
passa a ser trocado pelo dinheiro. Aqui a venda do escravo é uma atividade lucrativa
para o senhor. “Senhor bom é que não falta” mostra que o escravo pode ser vendido a
um outro senhor ou fazendeiro que, por sua vez, pode revendê-lo confirmando mais
uma vez a existência de um mercado interior. Neste sentido, esta colocação de Roberto
77
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1963, p. 246.
94
Schwarz é bem acolhida: “Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas
não despedido”.
78
Nesta troca, o dinheiro é a medida de valor substitutiva da mercadoria que é o
escravo. Neste mercado interior, sendo o escravo uma mercadoria, ele pode não só ser
vendido como também comprado como nos atesta esta passagem: “Assim costumava o
fazendeiro tratar a venda dos cafés ou a compra de escravos...” (P. 111)
Após mostrar a presença do dinheiro e seu funcionamento na sociedade durante
os dois tipos de tráfico existentes no texto, prossigamos a nossa análise no sentido de
descobrir as outras operações. Isso nos leva a dizer que a presença do dinheiro não se
faz sentir só na venda e compra de escravos, como também se faz presente na venda do
café conforme o trecho acima citado. O café, além dos outros papéis importantes que
desempenhava, “fornecia” segundo o historiador Boris Fausto “tamm a maior parte
das divisas necessárias para as importações e o atendimento dos compromissos no
exterior, especialmente os da dívida externa.”
79
É verdade que aqui há uma referência
ao dinheiro.
Sempre prosseguindo, diremos que o dinheiro é também um meio para alcançar
um certo privilégio. Isso é magnificamente representado no texto. Freitas, ricaço
fazendeiro, como já sabemos, aspirava a ter o título de Barão de Socorro. O direito ao
baronato exigia então dinheiro, pois “Não foram porém sua reputação que lhe valeram o
título de barão, e sim a soma redonda de doze contos de réis que deu para o hospício de
Pedro II, suntuoso edifício, que sob a augusta invocação tem servido de lenitivo à
loucura de uns e à vaidade de outros”. (P.103)
Em outras partes do romance, está também escrito: “Quando o barão pretendeu o
título, pensou que seu rasgo de filantropia, embora não servisse para alcançar-lhe o
despacho, somente devido aos doze contos de réis, dava-lhe contudo direito a escolher a
denominação do baronato. Por isso escrevera ao correspondente incumbido de efetuar a
transação, recomendando-lhe com instância que obtivesse o título de Barão de Socorro”.
(P.109) “Entendia Freitas e com boa razão, que tendo oferecido doze contos de réis à
vista pelo título de Barão de Socorro, e não por outro qualquer, o governo devia dar o
objeto comprado, ou declarar que não podia aceitar a oferta, fazendo de sua parte
contraposta”. (P.111)
78
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. – São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 14.
79
FAUSTO, Boris. História do Brasil. – 10. ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2002. p. 273, - (Didática, 1).
95
Claro está aqui a idéia de que o dinheiro serve para alcançar um privilégio
principalmente para a concessão ou atribuição de um título. “O dinheiro é a chave e o
deus desse mundo, dinheiro que mede todas as coisas e avalia todos os homens”,
80
escreveu Raymundo Faoro. A fome e a sede de ser honrado e ser elevado, características
da sociedade de então, não são isentas. Impera então a idéia de que há uma busca de
poder, de autoridade, de glória e de nobreza e que o dinheiro é o meio para alcançar esse
objetivo. Isso não é uma maneira de Alencar criticar o modo como o rei D. Pedro II
concedia os títulos naquela época?
Por fim, há que mencionar que por trás da questão do casamento por aliança
registrada no romance, está sempre a questão dinheiro. Trata-se de um tipo matrimônio
que tem como finalidade fortalecer os grupos de parentesco no sentido de preservar a
herança e poder econômico.
80
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, Secr.
Cult. Ciência e Tecnol. Est. S. P., p. 4.
96
Amor e casamento
Le roman d’un jeune homme pauvre e O tronco do Ipê apresentam até um
determinado momento do processo narrativo uma intriga amorosa que, na verdade,
oculta aspectos sociais que merecem ser evidenciados neste estudo. Assim, a ênfase será
posta sobre o amor e o casamento, assuntos a serem estudados ao longo desta análise.
Ressaltemos de início que, amor, casamento e família são termos estritamente ligados.
Esta interpenetração fará com que não haja talvez uma separação sistemática entre eles
no desenvolvimento do trabalho.
a) Em Le roman d’un jeune homme pauvre
No romance de Feuillet, é-nos apresentada uma intriga amorosa entre Maxime e
Marguerite. O primeiro é o rico decaído que, para sobreviver, vai trabalhar na Bretanha
como administrador. A segunda é rica e uma dos membros da família burguesa da
região que acolhe Maxime, os Laroque. Maxime logo se apaixona por ela. Ela também
o ama; entretanto mostra-se hostil a ele.
A observação a ser feita, de saída, é que estamos diante de duas classes sociais
em conflito. Por um lado temos a burguesia ascendente tendo Marguerite como
representante e por outro a aristocracia em decadência simbolizada por Maxime
conhecido no romance como o jovem pobre. Este antagonismo de classe, sem dúvida, se
faz sentir de maneira sutil e explica a relutância de Marguerite. É neste sentido que esta
colocação de Maria Cecília é significativa: “O fidalgo, na verdade marquês de
Champcey d’Hauterive, apaixona-se pela riquíssima e jovem herdeira que, embora
também o ame, teme um casamento desigual”
81
.
O romance apresenta episódios em que há aproximação entre Maxime e
Marguerite, sobretudo fora do castelo, isto é, durante os passeios. No castelo,
Marguerite mostra-se mais arrogante e hostil para com ele. Porém, muda de atitude e
torna-se dócil fora do alcance da família.
Constatamos que foi ela a instigadora do primeiro passeio pela floresta de
Brocéliande depois de um desentendimento entre eles. O segundo ocorreu durante a
visita à aia de Marguerite na granja de Langoat. A pedido da mãe, levou Maxime a um
81
PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: Perfis. – São Paulo: Annablume, 1999,
p. 153.
97
cemitério onde havia uma plataforma e de onde podiam ter uma vista panorâmica da
natureza. O terceiro foi pela torre de Elven que acabou mal.
Se no primeiro ela mostrou-se bondosa e até pediu que Maxime fizesse um
retrato dela e seu cachorro, apresentando-se como a druidesa Velléda e Mervyn (o
cachorro) como o druida, no segundo, chegou a chorar com pretexto de ser bonita e não
ser amada: “– Parce que je suis belle, et que je ne puisse être aimée!” (P.189) No
terceiro, isto é, na torre de Elven, ela mostrou-se branda até o episódio do
aprisionamento dos dois na referida torre.
Essa situação inopinada levou Marguerite a insinuar que Maxime preparou uma
armadilha para comprometê-la e num tom violento disse: “– C’est vous, répliqua-t-elle
avec une brusque véhémence, c’est vous qui avez payé cet homme, – ou cet enfant, – je
ne sais, pour nous emprisonner dans cette misérable tour ! Demain, je serai perdue...
déshonorée dans l’opinion... et je ne pourrai plus appartenir qu’à vous !... Voilà votre
calcul, n’est-ce pas ? [...]” (P.238) Delineia-se então o movimento seguinte :
hostilidade-proximidade. Como podemos explicar este movimento?
Primeiro, podemos avançar a idéia de que naquela época havia um impedimento
da aproximação dos corpos antes do casamento de acordo com as exigências religiosas e
morais. Ou melhor, a moça tinha que guardar a virgindade, requisito para um casamento
bem sucedido. Por isso, ela é vigiada. Essa caracterização “pure comme une pervenche”
traduzindo a idéia de pureza, castidade atribuída a Marguerite pelo narrador-
protagonista corrobora o que foi acima dito. A moça tinha que se casar e constituir uma
família, vista segundo Roberto Reis “como o lugar sublime, edênico, para o qual
converge a máxima felicidade: vida simples, amor santo, puro, espiritual [...]”
82
.
Isso pode explicar talvez a hostilidade de Marguerite para com Maxime dentro
do castelo e no episódio do aprisionamento na torre de Elven. O incidente da torre pode
ser interpretado como uma subversão às exigências sociais estabelecidas, caso os dois
viessem a ser surpreendidos trancados dentro do edifício. É o que leva Marguerite a
acusar Maxime de ser o autor dessa maquinação no sentido de comprometê-la, ou
melhor, desonrá-la: “Demain, je serai perdue... déshonorée dans l’opinion...”.
O uso do adjetivo “déshonorée” por Marguerite traduz não só a idéia de
subversão, de transgressão das exigências estabelecidas pela sociedade como também a
vergonha a que estará sujeita na opinião pública. Compreendemos que a atitude de
82
REIS, Roberto. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1983, p. 32.
98
Marguerite obedece às regras que regem a sociedade naquela época, ou melhor, dizendo
as normas estabelecidas condicionam sua atitude.
Podemos também observar este impedimento de aproximação dos corpos antes
do casamento, ou melhor, a vigilância com que eram tratadas as moças candidatas ao
casamento no romance Une vie de Guy de Maupassant. É bom lembrar sempre que esta
vigilância tem um duplo sentido: guardar num primeiro momento a mulher pura e
depois fazer uma aliança política e econômica que exclua o triunfo do amor. Ainda
nesse romance, observamos que o barão Simon-Jacques Le Perthuis des Vauds,
aristocrata de nascença, com o intuito de tornar a sua filha Jeanne feliz segundo nos
informa o narrador “voulant la faire heureuse, bonne, droite et tendre”, encerrou-a aos
doze anos no convento Sacrée-Coeur, não lhe permitindo nenhuma distração antes da
data por ele fixada. Qual é a razão desse recolhimento? O narrador onisciente é que nos
informa melhor:
Il l’avait tenue là sévèrement enfermée, cloîtrée, ignorée et ignorante des choses humaines. Il
voulait qu’on la lui rendît chaste à dix-sept ans pour la tremper lui-même dans une sorte de bain de poésie
raisonnable ; et, par les champs, au milieu de la fécondée, ouvrir son âme, dégourdir son ignorance à
l’aspect de l’amour naïf, des tendresses simples des animaux, des lois sereines de la vie
83
.
Este trecho revela a intenção inabalável do barão de manter sua filha casta antes
do casamento para depois a tornar feliz por meio do matrimônio, algo que aconteceu
mais tarde após a sua saída do convento. Constatamos que tanto em Une vie quanto em
Le roman d’un jeune homme pauvre a questão da castidade e da vigilância antes do
casamento é evidenciada. No romance de Maupassant, ela aparece claramente (reclusão
da moça no convento antes do casamento) ao passo no de Feuillet, é velada e isso
explica, aliás, a atitude hostil de Marguerite para com Maxime no castelo e no momento
do aprisionamento dos dois na torre.
Essa rigidez ligada às exigências morais e religiosas da época nos ajuda a
explicar a aproximação de Marguerite e de Maxime fora do castelo, isto é, nos passeios
pela natureza. Uma vez fora do alcance do olhar acusador e vigiador, ela muda de
atitude. De arrogante, torna-se mais dócil, aberta. Observamos a imagem de um casal na
representação binária druidesa-druida durante o primeiro passeio. Isso realmente veicula
83
MAUPASSANT, Guy de. Une vie. [Paris]: Librio, 1996, p. 6
99
o afeto que tem por Maxime, intenção que no segundo se concretizou em confissão
amorosa acompanhada de choro.
Disto, pode-se deduzir que a aproximação dos namorados naquela época não era
maior porque as circunstâncias não permitiam. A isso podemos também acrescentar que
a declaração amorosa dos namorados de maneira oficial era proibida. Mas por que este
empecilho?
Porque como foi dito, a princípio, a candidata ao casamento de acordo as regras
morais e religiosas tinha que ser vigiada e guardada pura para evitar os encontros “que
causavam transtornos para o sistema de casamento, que se via ameaçado com o
impedimento de realização de uma aliança política e econômica desejável e esperada”
84
. É que chamamos, em outras palavras, casamento por interesse ou de conveniência.
Neste tipo de casamento, também é levada em conta a posição social e a escolha
cônjuge não depende da moça, e sim, do pai ou da mãe de família de acordo com os
princípios da época. Assim, descobrimos apesar de Marguerite e Maxime se amarem, o
casamento fica, num primeiro momento, impossível porque este último é pobre (figura
do aristocrata decadente).
Há, claro, impedimento porque de acordo com as exigências vigentes naquela
época, ela tem que se casar com M. de Bévallan, homem “d’excellente noblesse” que é
“après les Laroque le plus riche du pays” (P.106). A sua fortuna embora inferior à dos
Laroque é estimada em “cent cinquante mille francs de rente environ”. (P.170)
Entendemos que este tipo de casamento não se fundamenta no poder do amor mas no
do dinheiro. A moça não tem o privilégio de escolher o homem que ama mas contenta-
se com a decisão tomada pela família para sua felicidade.
A longa conversação entre Maxime e Mme Laroque a respeito desse casamento
é significativa. Esta embora não consinta totalmente nos leva a entender que o referido
casamento, com certeza, será aceito de todos (já que obedece às regras de então) e que
se opor à sua realização seria sua culpa. Segundo ela, trata-se de um casamento de
conveniência: “[...] voilà un mariage où toutes les convenances se rencontrent, et que le
monde approuvera certainement, je serais coupable de ne pas m’y prêter. On m’accuse
déjà de souffler à ma fille des idées romanesques...” (P.171) Esta idéia torna-se mais
clara nesses termos: “– Mais non... il ne me convient pas... et il ne convient pas
davantage à ma fille... C’est un mariage... mon Dieu ! c’est un mariage de convenance,
84
INCAO, Maria Angela d’. O amor romântico e a família burguesa. In: INCAO, Maria Angela d’.
[organizado por]. Amor e família no Brasil. – São Paulo: Contexto, 1989, p. 69.
100
voilà tout !”. (P.173) O ritmo ofegante da fala de Mme Laroque mostra a um só tempo
sua desaprovação desta prática e a sua sujeição à ordem estabelecida. Há uma luta
visível entre sua posição e a da opinião pública na sua fala. Embora o pretendente não
convenha nem a ela nem à sua filha, aquiesce porque a sociedade estabeleceu este tipo
de matrimônio. Isso exclui Maxime da lista por causa do desnível social.
Podemos enfatizar que o matrimônio, neste sentido, é mais voltado para a
aliança política e econômica e é contraído sem o assentimento da pessoa interessada. O
caso do famoso fabulista e moralista francês La Fontaine merece ser relembrado. Quem
nos ajuda a este respeito é o crítico Roger Duchêne na sua obra La Fontaine: “La
Fontaine avait vingt-six ans. «Son père l’a marié, dit Tallemant, et lui l’a fait par
complaisance.» Mariage banal selon les habitudes du temps, où la famille décide plus
que l’interessé du moment opportun et des conditions financières de l’affaire. Les
garçons devaient se soumettre tout comme les filles à ces impératifs sociaux. [...]
Majeur d’un an, Jean s’est marié parce qu’on avait jugé qu’il devait le faire et qu’on lui
a trouvé une femme acceptable. Acceptable pour sa famille, mais aussi pour lui”
85
.
O exemplo de La Fontaine mostra, mais uma vez, que a família é mais implicada
no processo do que o candidato ou a candidata ao casamento. Ele ou ela tem que se
submeter à decisão tomada pela família que, por seu turno, se inscreve nas exigências
sociais da época. Não é só as moças que são vítimas como também os moços.
Constatamos também que este tipo de casamento é presente na obra
anteriormente citada de Guy de Maupassant, Une vie. Nela, assistimos a uma situação
em que o barão Simon-Jacques Le Perthuis des Vauds deu a sua filha Jeanne por
casamento ao visconde de Lamare também conhecido como Julien. Jeanne foi
informada pelo pai depois deles tomarem a decisão sem a sua aquiescência. Ela teve que
se submeter. Lembramos que é um casamento que envolve uma aliança. Para ilustrar o
que está sendo dito, é melhor beber à fonte:
Son père reprit: “Nous avons remis notre réponse à tantôt. ”
Elle haletait, étranglée par l’émotion. Au bout d’une minute le baron, qui souriait, ajouta : “Nous n’avons
rien voulu faire sans t’en parler. Ta mère et moi ne nous sommes pas opposés à ce mariage, sans
prétendre cependant t’y engager. Tu es beaucoup plus riche que lui, mais, quand il s’agit de bonheur
d’une vie, on ne doit pas se préoccuper de l’argent. Il n’y a plus aucun parent ; si tu l’épousais donc, ce
85
DUCHÊNE, Roger. La Fontaine. Paris: Fayard, 1995, c 1990, p. 59.
101
serait un fils qui entrerait dans notre famille, tandis qu’avec un autre, c’est toi, notre fille qui irais chez
des étrangers. Le garçon nous plaît. Te plairait-il... à toi ?
86
Trata-se, ao certo, de um casamento arranjado tendo como objetivo o
fortalecimento da família aristocrática e a preservação da herança. A moça, neste caso,
tem que aceitar o homem indicado pela família. Ou melhor, a jovem tem que concordar
querendo ou não com a escolha do cônjuge feita pela família. Isto exclui geralmente o
amor porque o que a família ama não é necessariamente o que a jovem ama. O ato de
amar da família está no mais das vezes ligado ao interesse ao passo que o da moça é
“um fogo que arde sem se ver” para usar as palavras de Luís de Camões. Ou seja, um
sentimento terno ou ardente de uma pessoa por outra e que engloba a atração física.
Estes exemplos nos ajudam a ilustrar o tipo de casamento praticado no romance
de Feuillet, o casamento por interesse. Esta forma de casamento leva em consideração a
posição social e exclui categoricamente o sentimento amoroso. A escolha do cônjuge
não depende da moça, mas da família e sempre com a finalidade de realizar uma aliança
política e econômica. Pode-se também dizer que a decisão tomada pela família é sempre
influenciada pelas normas sociais estabelecidas pela sociedade de então.
Neste sentido, a união entre Marguerite e Maxime não pode de maneira
nenhuma ser realizada. Também não se pode negligenciar o fato de existir um conflito
entre uma burguesia em plena ascensão e uma aristocracia em decadência. Aliás, o
nosso protagonista pobre não é um pobre comum. Ele é a figura do aristocrata
decadente. Esta visão pode ser um dos meios para tentar explicar a invalidade do
casamento entre ambos.
Mas, se à luz destas considerações, o casamento entre os dois é invalido, como
podemos explicar o fato deste ser realizado no final do romance? Para responder esta
pergunta, apelemos para Roberto Schwarz que nos traz esclarecimentos:
No livro de Feuillet, os antagonismos implicados nesta disposição de espaços e temas são como
sombras de dúvida e subversão, debeladas pela virtude das personagens positivas. Triunfa uma liga
exemplar de aristocratas igualitários e burgueses sem ganância. No entanto, os problemas da revolução
burguesa não só estão formalizados no travejamento do romance realista, a que se filia Feuillet, como
sobretudo trabalham a própria realidade, o corpo social da Europa, que é matéria viva desta literatura.
86
MAUPASSANT, Guy de. Une vie. [Paris]: Librio, 1996, p. 35.
102
Assim, disfarçar as contradições sociais e desmanchar o relevo literário são neste caso uma e a mesma
coisa.
87
Entendemos que esta mudança repentina da situação que desemboca num fecho
róseo do romance (casamento de Maxime e Marguerite) traduz o ponto de vista
ideológico do autor. Sendo um dos grandes representantes da literatura idealista,
Feuillet disfarça as contradições sociais optando por uma política de conciliação entre a
burguesia e a nobreza. Consegue isso de maneira admirável ao dar todas as qualidades
ao protagonista de maneira a mostrar sua lealdade. Fazendo isso, ele não só tenta exaltar
ainda a aristocracia como também contribui para a escamoteação de certos aspectos
sociais.
Para tanto, Maxime é apresentado como tipo de nobre ideal. Embora pobre, é
cheio de virtudes. Ao descobrir a origem da fortuna dos Laroque (a origem desta fortuna
provinha de um dos seus antepassados), não fez nada para reverter a situação no sentido
de quebrar a barreira social e permitir a realização do casamento com Marguerite.
Preferiu queimar o documento para não tornar Mme Laroque e sua filha infelizes.
Quando soube que elas queriam desfazer-se de seus bens para suprimir a
desigualdade social e tornar viável o casamento, saiu da Bretanha para Paris. Enfim, foi
preciso que as ambições (relacionamento interesseiro) de M. de Bévallan fossem
desmascaradas e que Maxime fosse herdeiro da fortuna de Mlle de Porhoët-Gaël,
também descendente de uma família aristocrática com que os Champcey d’Hauterive
fez aliança para que a realização do casamento fosse viável.
Assim segundo Sandra Nitrini “O casamento é a meta da estória e do texto.
Consuma-se o casamento e acaba-se o livro. E acaba-se o livro com uma mensagem
conciliatória de classes: nobres bons de coração casam-se com burguesas ricas e nobres
de caráter. Os maus e os interesseiros são punidos, como ocorre com Bevallan, o noivo
nobre e rico de Marguerite, que foi desmascarado pelo tabelião no ato do casamento.”
88
Numa palavra, pode-se dizer que por trás dos termos como o amor e o
casamento, estão alguns aspectos sociais ocultos que foram desvendados inclusive a
própria visão do autor. Isto posto, passemos a analisar a obra de Alencar e ver como as
coisas são configuradas.
87
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. – São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 76.
88
NITRINI, Sandra Margarida. Seixas entre Camors e Maxime Odiot (Um exercício de literatura
comparada). Linha D’Água, São Paulo, n. especial, junho de 1995, p. 20.
103
b) Em O tronco do Ipê
O romance de Alencar também nos apresenta uma trama amorosa,
principalmente na segunda parte, entre Mário e Alice. Assim como na obra de Feuillet
os dois se amam, mas o casamento até um certo momento é impossível devido a certos
obstáculos. É bom acompanhar o enredo para detectar os aspectos sociais
escamoteadas. Na primeira parte do romance, o narrador onisciente nos faz acompanhar
a infância das duas personagens acima referidas que terminou com a saída de Mário da
fazenda para completar seus estudos na corte e depois num colégio da França.
O primeiro capítulo “A doceira” da segunda parte nos mostra Alice já na flor da
idade como “uma linda moça de dezoito anos” (p. 172). Muito senhora de si, ela, em
dona de casa reinava dando ordem aqui e ali. “Era antevéspera de natal”. Era também o
momento que precedia à volta de Mário. Numa descrição cativante de Alice, o narrador
a compara com a doce virgem do quadro de Murilo: “Lembra a doce virgem, que
Murilo pintou sobre a tela de um guardanapo ou mantêm de cozinha” (p.172).
Em outras partes, com certeza com a chegada de Mário, o texto nos fala sobre “o
pudor” de Alice. A primeira referência está mencionada no episódio em que Mário após
uma conversa com Alice se afastou dela e entrou no seu aposento para não sucumbir à
tentação: “Nestas ocasiões, Mário fugia da menina; não só por certo pejo, como pelo
temor de cair-lhe aos pés e pedir perdão”. (P.262). Alice queria arrancar o segredo que o
fazia agir desse modo. Foi até o limiar da porta, mas parou indecisa. Havia um
impedimento. Qual?
O narrador onisciente é que pode nos orientar: “Ela se julgava com direito de
penetrar na consciência de Mário; desvendar o arcano; e disputar a esse inimigo ignoto a
afeição de seu companheiro de infância, do escolhido de seu coração. Para isso não
recuaria diante de qualquer perigo, e contudo parou indecisa ao limiar da porta, que se
não animava a transpor. Se a morte guardasse aquela porta, não recuaria; mas era o
pudor”. (P.263)
Notamos a segunda referência ao pudor quando do último encontro entre Mário
e Alice antes deste deixar a fazenda com a intenção de não voltar mais. O mesmo
narrador nos informa que antes de partir “Mário tomou entre as mãos a loura cabeça do
anjo transfigurado pela visão da bem-aventurança, e beijou-a santamente, murmurando
104
a palavra – adeus!”. E Alice? “Imóvel, como ele a deixara, permaneceu Alice, com a
fronte levemente pendida e as mãos no seio onde as cruzara o pudor”. (P.284)
Assim como no romance de Feuillet, a questão da virgindade e do impedimento
da aproximação dos corpos antes do casamento existe de maneira sutil em O tronco do
Ipê. As referências acima são ilustrativas. As palavras “virgem”, “pejo”, “pudor”
mostram que, na sociedade patriarcal e escravocrata, a moça que, com certeza, é
candidata ao casamento tem que guardar a virgindade. Esta exigência religiosa e moral
existia desde os primórdios do Brasil colonial. Maria Beatriz Nizza em sua obra Sistema
de casamento no Brasil colonial trouxe esclarecimentos sobre o assunto. Embora tenha
delimitado cuidadosamente a região de São Paulo (A capitania de São Paulo), ela nos
avisou que a maior parte das fontes impressas se referiam simultaneamente à metrópole
e a colônia, o que supunha que um mesmo sistema de normas, sobretudo jurídicas,
vigorava em Portugal e no Brasil.
Sobre a virgindade, a autora escreveu:
Se passarmos agora da análise da noção de “honra” ao nível da fama, do parecer, para o nível do
real, veremos que, para a mulher solteira, ser honrada significava o mesmo que ser virgem.
A perda da virgindade diminuía consideravelmente as chances matrimoniais da população feminina e não
deixaram as leis do Reino de examinar a questão cuidadosamente.
89
Podemos entender que a virgindade da moça era uma exigência antes do
casamento. A esta, está ligado o conceito de honra e de fama. A perda da virgindade era
considerada uma desonra e diminuía as chances matrimoniais. Por isso “existiam
instituições denominadas recolhimentos, cuja finalidade era alojar e ao mesmo tempo
formar, longe dos perigos do mundo, as jovens que se preparavam para o casamento” e
“mesmo onde não existiam tais recolhimentos, não deixava a comunidade de zelar pela
honra das jovens, reclamando junto das autoridades contra os homens libertinos”.
90
Isso leva a entender que havia vigilância ou impedimento da aproximação dos corpos.
Voltando à sociedade patriarcal, constatamos de acordo com os trechos extraídos
do romance que estas exigências também estavam presentes, mas de maneira sutil.
Sendo a virgindade um requisito fundamental para o casamento, aliás, voltado para uma
89
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. – São Paulo: T. A. Queiroz:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, p. 71.
90
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. – São Paulo: T. A. Queiroz:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, p. 73.
105
aliança política e econômica, é conveniente que haja um impedimento da aproximação
do corpo para que não haja uma ameaça ao sistema de casamento. A isso, pode-se
acrescentar que o matrimônio é visto como uma instituição destinada a preservar a
família e a propriedade.
No romance, não há referência nenhuma sobre a existência de recolhimentos.
Porém o texto insinua que há uma vigilância que se traduz pelo afastamento dos dois
corpos (os dois namorados) embora ambos se amem. Isso é reforçado pela presença
constante da palavra “pudor”. Mário foge de Alice para não cair na tentação. Alice não
pode transpor o limiar da porta do aposento dele.
Um olhar para a “sociedade brasileira na época romântica – e quem diz
sociedade brasileira, no caso, diz sociedade do Rio de Janeiro” nos revela a existência
de tal prática. Nos romances urbanos de autores como Joaquim Manuel de Macedo, de
Taunay, Machado de Assis e Alencar, que têm como pano de fundo o Rio de Janeiro,
notamos a presença constante do baile, principalmente da valsa ou da polca. Será que é
um mero artifício para divertir o leitor? Absolutamente não. O baile é a única
oportunidade para os namorados se encontrarem quebrando deste modo a barreira física
que os separa.
A esse respeito diz Brito Broca: “Vivendo as mulheres reclusas no âmbito
doméstico sob a vigilância dos pais, sem baile dificilmente poderia haver namoro. E
quando os pais não arranjavam o casamento da filha ou até do filho, sem consultá-los, o
que se dava com freqüência na época, o baile é que desempenhava essa função. Os
jovens e as jovens casadouras sentiam pois a necessidade de freqüentar o máximo
possível um gênero de divertimento, que lhes dava meios para decidir das preferências
do coração.”
91
É também interessante acrescentar o parecer de Dante Moreira Leite sobre o
assunto: “Para melhor compreender as reações à valsa, devemos lembrar que os sexos,
estavam, na sociedade brasileira do século XIX, separados por uma grande barreira
física, e que os seus contatos eram regulados por um ritual muito mais rígido do que o
nosso. A valsa, ao permitir que o casal se aproximasse fisicamente, e se isolasse dos
outros representava uma situação quase única na época. Por isso, os seus efeitos
aparecem muito claramente na literatura romântica, onde a valsa passa a apresentar uma
91
BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos: vida literária e romantismo brasileiro;
prefácio de Alexandre Eulálio. – São Paulo: Polio; (Brasília): INL, 1979, p. 137.
106
situação de perigo real ou potencial. É na valsa que os amores se declaram, ou é nela
que os heróis se apaixonam pelas heroínas.”
92
Destas duas colocações, deduzimos que há uma separação dos corpos antes do
casamento impedindo qualquer contato que possa prejudicar o casamento. A valsa serve
de intermediário, daí haver reações. Podemos dizer que as exigências morais e religiosas
proíbem o contato direito dos corpos. Isso para evitar encontros desastrosos e
prejudiciais ao sistema de casamento. Neste sentido, pode-se avançar a idéia de que uma
confissão amorosa entre os namorados é publicamente interditada.
Estes argumentos podem nos ajudar a justificar o comportamento dos dois
namorados Mário e Alice marcado por um certo distanciamento, índice de que há uma
proibição de contato direito dos corpos. Devemos lembrar de passagem que estamos no
vale do Paraíba fluminense e numa fazenda. O que pode nos leva a dizer que a
vigilância aí é ainda mais acentuada. Vemos que o contato direito quando se dá é
sempre voltado para a virtude e pureza, daí usar o advérbio “santamente”. Isso é com
certeza a maneira romântica de representar as coisas.
Resumindo, podemos dizer que por trás jogo amoroso e do comportamento dos
dois namorados, estão camuflados alguns aspectos sociais que foram delineados ao
longo da análise. O sistema de casamento vigente da época faz com que a virgindade
seja um requisito fundamental. O que leva a uma separação dos corpos, uma maneira de
afastar qualquer perigo que possa prejudicar o matrimônio.
Voltando ao casamento propriamente dito, é bom dizer, de início, que envolve
uma aliança política e econômica. Maria Beatriz Nizza da Silva nos informa que “a
escolha do conjugue era norteada, no período colonial, pelo princípio de igualdade no
que se refere à idade, condição, fortuna e saúde, e também por aquilo que poderíamos
denominar princípio da racionalidade, que evidentemente marginalizava a paixão ou a
atração física.”
93
Podemos avançar a idéia de que estas exigências estão também vigentes na
sociedade patriarcal. Num primeiro momento, é natural que Mário na sua condição de
agregado não possa casar-se com a filha do abastado barão. A sua condição social torna
o casamento inviável por causa da desigualdade social. Exemplos deste tipo não faltam
nos romances da primeira fase de Machado de Assis. Neles, “a situação amorosa,
92
LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. 2. ed., ampliada. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1979, p. 51.
93
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. – São Paulo: T. A. Queiroz:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, p. 70.
107
quando se estabelece, é entre um elemento da família e um elemento de fora dos
vínculos de parentesco, mas ligado à família pelo convívio, o favor ou o compadrio.
Normalmente, é uma mulher aceita como filha adotiva da família que a protege, que se
apaixona pelo filho da/do chefe da família”.
94
Assim “As relações de compadrio e o
convívio dos agregados da família geram tramas complicadas com os conflitos
amorosos típicos de tais situações”.
95
É o que observamos em Iaiá Garcia quando Valéria, viúva de um
desembargador honorário tenta afastar seu filho de uma agregada por quem ele se
apaixona. Por isso ela quer mandar o filho Jorge à guerra de Paraguai.
O tronco do Ipê apresenta uma situação quase semelhante com a diferença de
que o agregado é um moço. Também não há referência nenhuma no romance que
mostre que o barão queria afastar Mário de sua filha para que não houvesse casamento.
Muito pelo contrário, mandou-o estudar e voltou da França já formado. O desejo do rico
fazendeiro é que o jovem seja o esposo de sua única filha recusando qualquer outro
pretendente mesmo com uma situação social favorável.
Porém o nosso jovem pobre apesar das súplicas do pai recusa-se a obedecer.
Qual o motivo desta teimosia? Mário suspeita que o benfeitor seja o assassino de seu pai
a fim de se apoderar da herança que lhe pertence. Conclusão: ele é que está à base de
sua pobreza. Por isso o casamento é visto por ele como uma forma de expiação.
Para melhor entender, é preciso fazer um resumo da história. A fazenda do
Boqueirão pertence ao comendador Figueira, avô de Mário. Seu único filho José
Figueira, herdeiro presuntivo, sai da fazenda por causa da nova esposa arrogante e
orgulhosa de seu pai. Esta habilmente indispõe o espírito do velho Figueira contra seu
próprio filho. Com esta nova situação, José Figueira fica reduzido a ganhar a vida pelo
trabalho e aceitar o auxílio de alguns fazendeiros. Desta forma, passam a ser agregados
ele e sua família. Um dia, depois de visitar o pai doente, José Figueira, voltando, erra o
caminho, precipita-se no boqueirão e morre. Esta desgraça provoca a morte do já
agonizante comendador. Com o falecimento deste, Joaquim Freitas que goza do favor
do comendador por ter sido órfão na idade de treze anos, passa a ser dono da referida
94
LEITE, Míriam L. Moreira; MASSAINI, Márcia Ignez. Representações do amor e da família. In:
INCAO, Maria Angela d’. [organizado por]. Amor e família no Brasil. – São Paulo: Contexto, 1989, p.
75.
95
LEITE, Míriam L. Moreira; MASSAINI, Márcia Ignez. Representações do amor e da família. In:
INCAO, Maria Angela d’. [organizado por]. Amor e família no Brasil. – São Paulo: Contexto, 1989, p.
75.
108
fazenda. A grande surpresa é que este, a quem está hipotecada a fazenda no valor de
cem contos de reis, é um dos principais credores do falecido.
À luz de tudo o que foi dito, entendemos com certeza a atitude de Mário. Ele
quer desvendar o arcano. Esta herança não lhe pertence? O fato de o barão querer lhe
dar a filha por casamento não é uma maneira de cobrir o crime? São estas as perguntas
sem respostas que borbulhavam na cabeça, daí o ódio ao fazendeiro e a antipatia por
Alice embora a ame.
O casamento nestas condições é inviável. Porém o romance termina com a união
de Mário e de Alice na capela da fazenda e com a ida deles para o Rio de Janeiro.
Um olhar atento nos mostra que por trás desta incerteza que termina em certeza, está a
questão da inviolabilidade da vontade senhorial. Baseada na política de dominação, a
vontade também favorece o casamento por aliança política e econômica.
Se atentarmos ao texto, descobriremos que o comendador Figueira, sabendo das
maquinações da sua esposa, passou habilmente antes de morrer, a herança para Joaquim
Freitas que nos dizeres de Benedito “era muito amigo, unha com carne” de José
Figueira. Este na verdade era agregado. “O comendador não falava certamente da
deserdação solene por testamento, nos casos da lei, mas desse indireto de que usam
muitos pais, colocando simuladamente os bens em nome de terceiro” diz o narrador
onisciente. (P.95)
Desta forma, a herança “ficava segura” e mais tarde seria a propriedade de José
Figueira a quem na verdade cabia. Um tal arranjo pode ser possível? Com certeza.
Maria Sylvia de Carvalho Franco em Homens livres na ordem escravocrata mostra que:
“As demandas de terras registraram o quanto os dependentes eram utilizados como
peças para que os propósitos do fazendeiro fossem alcançados em juízo”.
96
Aqui, Freitas o atual barão é peça para cumprir a vontade senhorial. Dito de
outra maneira, nele são cumpridas as vontades senhoriais: a da transmissão da herança e
da realização do casamento. Entendemos o porquê da insistência de Mário com ele em
saber da verdade. Quando o segredo lhe foi revelado – a herança lhe pertencia – ele
preferiu queimar a carta que lhe dava o direito de tomar posse dos bens para não tornar
infeliz Alice. Foi depois da tentativa de suicídio do barão que Mário resolveu mudar de
idéia. Aceitou casar-se com depois de pactuar com o barão não dizer a sua filha o
porquê da tentativa do suicídio.
96
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. – 4. ed. – São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 102. – (Biblioteca básica)
109
Este pacto é significativo na medida em que confirma a ideologia senhorial. Ele
encerra não só a transmissão da herança como o casamento por aliança no sentido de
manter a dominação política, social e econômica.
Falando do sistema de casamento na sociedade patriarcal e escravocrata,
principalmente no vale do Paraíba fluminense e paulista, Maria Sylvia de Carvalho
Franco aponta:
O casamento, longe de ser deixado à discrição das partes diretamente interessadas, decidia-se
conforme ponderações impessoais e de acordo com os interesses da família enquanto grupo. O processo
de seleção dos cônjuges deixa bem claro o quanto as uniões estiveram fundadas em considerações
racionais de interesses. Completa-se esse quadro ao se indicar que, mediante alianças intrafamiliares,
estabelecia-se uma intrincada, ampla e solidária rede de parentesco, integrando-se assim grandes grupos
que constituíram um poderoso sistema de dominação socioeconômica.
97
Deste trecho deduzimos que a escolha dos cônjuges no ato de casamento
depende dos pais da família e não das pessoas interessadas. Os candidatos ao casamento
têm que se submeter à decisão tomada pela família. Eles não têm escolha própria. Esta
escolha dos pais é mais voltada para o interesse da família enquanto grupo e tem como
objetivo o fortalecimento da rede de parentesco bem como a consolidação e a
preservação da herança. Trata-se de alianças entre famílias ricas assentadas num
poderoso sistema de dominação socioeconômica.
Verificamos este tipo de casamento no romance de Alencar. Um olhar atento
para o texto nos revela que o casamento de Mário e de Alice já foi decidido antes deles
nascerem e poderem tomar qualquer decisão. Sendo a vontade senhorial é inviolável, o
casamento tem que, custe o que custar, ser realizado. A escolha dos dois cônjuges foi
feita quando os seus próprios pais eram ainda mais jovens. Diz o barão durante uma
conversão com Mário:
– Quando seu pai e eu tínhamos sua idade, Mário, fazíamos nossos castelos, como todos os
moços costumam. Uma vez, no meio daqueles sonhos do futuro, ele disse-me gracejando que pedia a
Deus um filho para casar com a filha que eu devia ter, conforme seu desejo: “Assim, ficaremos ainda
mais unidos”, acrescenta ele. (P. 277-278)
97
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. – 4. ed. – São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 44. – (Biblioteca básica)
110
O trecho traz esclarecimentos sobre a ideologia senhorial. Ela consiste em
estabelecer alianças entre famílias por meio do casamento. Por isso os cônjuges são
escolhidos pelas famílias sem o consentimento destes últimos. Este tipo de casamento
como já nos avisou Maria Sylvia de Carvalho é fundamentado em considerações
racionais de interesses. O que importa não é a vontade dos candidatos, mas a dos pais
que pensam em como reforçar os vínculos e manter o sistema de dominação política,
social e econômica. Esta aliança é cristalizada nestas palavras de José Figueira, pai de
Mário: “Assim, ficaremos mais unidos”. É este desejo ardente do pai que foi
concretizado no final do romance depois de ambos, Mário e o barão, pactuarem e
consentirem em não revelar o segredo a Alice.
A referida aliança é, várias vezes, mencionado no texto, através da fala do barão
e das interpelações do narrador onisciente. Primeiro, vejamos como ela se reflete no
discurso do barão:
– Mais tarde, quando sucedeu a desgraça que o privou de seu pai e a mim do único amigo, quase
irmão, esse gracejo de nossa mocidade tornou-se um voto. Fiz à memória de Figueira a promessa de
cumprir seu desejo, e no dia em que você, Mário, salvou Alice, eu selei aquela promessa com um
juramento. Faz sete anos que eu espero com ansiedade o momento de realizar esse voto; tinha medo de
morrer sem cumprir meu juramento. O momento chegou... (P.279)
E depois nas palavras do narrador:
Representou o casamento de Alice não como um favor ou beneficio para Mário, mas ao contrário
como um sacrifício que fazia à felicidade da inocente menina, ao sossego dos pais. Invocou a amizade de
José de Figueira, como título para merecer do filho tão grande serviço, ao mesmo tempo como
testemunho da obrigação em que estava, ele barão, de confundir em uma as duas famílias. (P.279)
Afigurou-se a Mário que seu casamento com Alice era um projeto já resolvido pela família e
divulgado entre os estranhos, ignorado unicamente por ele cujo destino dispunham sem darem-se ao
trabalho, não só de consultá-lo, mas até de preveni-lo. Contavam com seu consentimento, como cousa
infalível. (P.249)
A questão da aliança intrafamiliar surge com mais vigor nos trechos supracitados
revelando também a maneira como as famílias decidem sem consultar as pessoas
envolvidas. Desta forma, somos guiados a dizer que o amor entre os jovens não é levado
em conta pelas famílias implicadas no processo. O consentimento dos pais implicados
111
na aliança é e deve ser necessariamente o dos filhos. Melhor, os pais decidem no lugar
dos filhos que, por sua vez, têm que se avassalar. A vontade dos pais é irrevogável.
É o que percebe Maria Helena Bueno Trigo quando escreve: “[...] as famílias
estruturavam os sistemas de aliança e aprimoravam suas estratégias com a finalidade
primeira de casar bem os filhos e, no mais das vezes, o casamento era arranjado, não se
cogitando da necessidade de amor entre os cônjuges”.
98
Tudo o que foi dito pode ser assim resumido: “Considerado na ordem patriarcal
como engrenagem essencial de uma política voltada para a manutenção e transmissão
do patrimônio, o casamento não deixava espaço para interesses pessoais. Bem ao
contrário, a finalidade primeira da aliança matrimonial era de ordem social, ou seja, de
fortalecimento de grupos de parentesco e de status, preservação da herança e do poder
econômico. Neste sentido, é grande a sua contribuição para a formação de um sistema
de dominação política e econômica”.
99
98
TRIGO, Maria Helena Bueno. Amor e casamento no século XX. In: INCAO, Maria Ângela d’.
[organizado por]. Amor e família no Brasil. – São Paulo: Contexto, 1989, p. 89.
99
TRIGO, Maria Helena Bueno. Amor e casamento no século XX. In: INCAO, Maria Ângela d’.
[organizado por]. Amor e família no Brasil. – São Paulo: Contexto, 1989, p. 89.
112
O ESPAÇO
Entre as várias armadilhas virtuais de um texto, o espaço pode alcançar estatuto
tão importante quanto outros componentes da narrativa, tais como foco narrativo,
personagem, tempo, estrutura etc. É bem verdade que, reconheçamos logo, em certas
narrações esse componente pode estar severamente diluído e, por esse motivo, sua
importância torna-se secundária. Em outras, ao contrário, ele poderá ser prioritário e
fundamental no desenvolvimento da ação, quando não determinante. Uma terceira
hipótese ainda, esta bem mais fascinante! É a de ir-se descobrindo-lhe a funcionalidade
e organicidade gradativamente, uma vez que o escritor soube dissimulá-lo tão bem a
ponto de harmonizar-se com os demais elementos narrativos, não lhe concedendo,
portanto, nenhuma prioridade.
100
Entendemos, com efeito, o quanto a questão do espaço é delicada e merece
atenção particular. O leitor tem a incumbência de descobrir onde se passa uma ação
narrativa, quais os ingredientes desse espaço e qual sua eventual função no
desenvolvimento do enredo, pois, “loin d’être indifférent, l’espace dans un roman
s’exprime dans ses formes et revêt des sens multiples jusqu’à constituer parfois la raison
d’être de l’oeuvre”.
101
Assim em nosso trabalho, resolvemos fazer um estudo sobre o espaço nas duas
obras com o fito de mostrar como este nos ajudar a fixar o momento histórico e a
caracterizar as personagens entre as quais figura o moço pobre. Neste sentido, é
interessante fazermos uma breve introdução teórica para aprofundar nosso estudo. É de
suma importância sublinhar que Osman Lins, romancista precocemente falecido, trouxe
uma das contribuições mais concretas e especulativas para o nosso assunto. Com Lima
Barreto e o espaço romanesco, ele deu um passo importante para aclarar o problema,
pois além de tocar num ponto virgem da bibliografia sobre Lima Barreto, elaborou
alguns capítulos teóricos que melhor situam essa preocupação com o espaço na
narrativa.
O crítico Antonio Dimas se inspirou nessa produção crítica de Osman Lins na
elaboração de um dos capítulos intitulado “Rumo aos conceitos” de sua obra Espaço e
Romance. Obra indispensável para uma análise do espaço por nos trazer outro arsenal
100
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 6.
101
BOURNEUF, Roland, OUELLET, Real. L’univers du roman. Paris: Presses Universitaires de France,
1972, p. 97.
113
teórico importante. Assim, as duas obras vão servir de trampolim para nossa análise na
medida em que fornecem várias possibilidades teóricas numa perspectiva de
complementaridade.
Antes de examinarmos a fundo o problema do espaço nas duas obras, reportemo-
nos ao ensaio de Osman em que distingue espaço e ambientação. Assim, ele escreveu:
Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a
provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa
experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do
autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa
102
.
Com esta distinção estabelecida pelo crítico, Antonio Dimas nos dá a conhecer
que “o espaço é denotado; a ambientação é conotada. O primeiro é patente e explícito; o
segundo é subjacente e implícito. O primeiro contém dados de realidades que, numa
instância posterior, podem alcançar uma dimensão simbólica”
103
. Nesta altura, vale
lembrar a definição do espaço tal qual foi dado por Carlos Reis em Dicionário de
narratologia: “Entendido como domínio da história, o espaço integra, em primeira
instância, os componentes físicos que servem de cenários ao desenrolar da ação e à
movimentação das personagens: cenários geográficos, interiores, decorações, objectos,
etc.; em segunda instância, o conceito de espaço pode ser entendido em sentido
translato, abarcando então tanto as atmosferas sociais (espaço social) como até as
psicológicas (espaço psicológico)”.
104
De saída, convém distinguir os dois tipos de espaços que pretendemos analisar
os quais são o espaço natural e o espaço social. Para maior esclarecimento, é melhor
referir-se a Nelly Novaes Coelho
105
e sua terminologia. Menciona o ambiente natural
como equivalente à paisagem, natureza livre; o ambiente social seria a natureza
modificada pelo homem: a casa, castelo, tenda etc. Daí o espaço natural se relacionar
com o ambiente natural e o espaço social com o ambiente social. É, sobretudo do último
de que fala Carlos Reis quando escreve: “Num plano mais restrito, o espaço da narrativa
centra-se em cenários mais reduzidos: a casa, por exemplo, dando origem a romances
102
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo, Ática, 1976, p. 77.
103
DIMAS, op. cit., p. 20.
104
REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. 4. ed., Lisboa: Almedina, 1994, p. 135.
105
O autor aqui referido foi citado por Osman Lins. Cf. LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço
romanesco. São Paulo, Ática, 1976, p.74.
114
que fazem dela o eixo microcósmico em função da qual se vai definindo a condição
histórica e social das personagens....”
106
1. O espaço natural
Embora os dois romances sejam escritos por dois autores de países diferentes,
isto é, Feuillet na França e Alencar no Brasil, podemos observar que a zona rural é que
abriga mais a ação.
Em Le Roman d’ un jeune homme pauvre, embora Paris fosse primeiro o palco
da ação, constatamos que a grande parte do relato ocorreu na Bretanha, uma província
afastada de Paris aonde Maxime foi trabalhar como administrador nas propriedades da
abastada família Laroque. Há, está claro, um deslocamento da zona urbana para a zona
rural. É interessante mencionar esta colocação de Maria Cecília Queiroz de Moraes
Pinto quanto às semelhanças por ela destacadas entre Sonhos d’Ouro e o romance de
Feuillet. Dentre todas estas semelhanças, maior destaque foi dado ao espaço. É melhor
deixá-la expressar-se: “Aliás, outras semelhanças entre esse romance de Alencar e o de
Feuillet não faltam, por exemplo, a ambientação afastada da capital [...]”
107
Outrossim, há semelhança entre Le Roman d’ un jeune homme pauvre e O
tronco do Ipê no que diz respeito à ambientação afastada da capital, sendo a zona rural
fluminense o palco da fábula no romance de Alencar.
Assim, a viagem empreendida pelo narrador-protagonista no romance de Feuillet
nos permite ver a particularidade da paisagem da região acima referida. Neste sentido,
podemos estabelecer uma aproximação entre este narrador protagonista e o narrador-
viajante de Alencar, o qual fixa, descreve e nomeia a paisagem brasileira,
principalmente a que cobria o vale do Paraíba fluminense. No caso de Le roman d’un
jeune homme pauvre, há um empenho aqui por parte do narrador em descrever a
paisagem da região no sentido de ressaltar sua peculiaridade como também sua beleza,
daí uma vista panorâmica. Melhor citar um trecho:
J’ avais mis pied à terre pour monter la côte. La lande, que rien ne separait de la route, s’étendait
tout autour de moi à perte de vue : partout de maigres ajoncs rampant sur une terre noire ; çà et là des
ravines, des crevasses, des carrières abandonnées, quelques rochers affleurant le sol ; pas un arbre.
106
REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. 4. ed., Lisboa: Almedina, 1994, p. 136.
107
PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: Perfis. – São Paulo: Annablume, 1999,
p. 155.
115
Seulement, quand je suis arrivé sur le plateau, j’ ai vu à ma droite la ligne sombre de la lande découper
dans l’extrême lointain une bande d’ horizon plus lointaine encore, légèrement dentelée, bleue comme la
mer, inondée de soleil, et qui semblait ouvrir au milieu de site désolé la soudaine perspective de quelque
région radieuse et féerique : c’était enfin la Brétagne. (P.63)
Estes traços acentuam-se cada vez mais com o passeio de Marguerite e Maxime
pela velha floresta de Brocéliande em companhia de Alain e de Mervyn o cachorro dela.
A natureza aqui nos revela o aspecto histórico da Bretanha com os vestígios da
misteriosa religião dos Celtas e com a presença do dólmen formado por seis blocos de
pedras cravados no chão. Estes elementos que apontam para o sagrado revelam uma
forte presença das religiões primitivas e apresentam-se como características peculiares à
região de Bretanha. O episódio em que Marguerite se dizia Velleda, a druidesa, e o seu
cachorro Mervyn, descendente de Merlin, seria druida é mais uma confirmação das
tradições bretãs. Segundo Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto, trata-se de uma
referência às tradições bretãs, na qual assoma o nome de uma personagem do ciclo do
rei Artur.
108
Assim a descrição majestosa que o autor faz de maneira disseminada no
romance e sempre quando houver uma viagem ou passeio das personagens não surge
como um mero quadro, e sim, como um empenho em levar-nos a conhecer mais o local
onde ocorre a ação. É uma maneira de chamar nossa atenção para o mundo aristocrático
ainda repleto de “valeurs monarchistes survivant à l’écart du XIXº siècle bourgeois”
109
Em O tronco do Ipê, a fábula se passa na chamada fazenda do Boqueirão, longe
da agitação atormentadora da cidade. Como se sabe, o próprio Alencar no prefácio que
escreveu para o romance Sonhos d’Ouro, em 1872, sob o título de “Benção Paterna”
apresentou as três fases do período orgânico da literatura nacional.
A primeira, que é a aborígine, compreende as lendas e os mitos da terra
selvagem e conquistada. A este período corresponde, segundo ele, Iracema; a segunda
conhecida como a histórica corresponde ao consórcio do povo invasor com a terra
americana e na qual a linguagem se impregna de modelos mais suaves, ao mesmo
tempo que se formam outros costumes, daí derivando nova existência, pautada por
108
PINTO, Maria Cecília Queiroz de Moraes. Alencar e a França: Perfis. – São Paulo: Annablume, 1999,
p. 154.
109
SEILLAN, Jean-Marie. Stéréotypie et roman mondain : l’oeuvre d’Octave Feuillet. Loxias 17 :
Littérature à stéréotypes/ Actes de la journée d’études. Nice, 23 février 2007. Disponível em: <http//
www.revel.unice.fr/loxias/document.htm> Acesso: 27 jul. 2007.
116
diverso clima. O Guarani e As Minas de Prata se acomodam a esta fase. Enfim, a
terceira chamada fase da literatura brasileira, que se inicia com a independência política
e a elaboração do verdadeiro gosto nacional. A este período nacional, pertencem alguns
romances, entre os quais O tronco do Ipê que têm por cenário o ambiente rural, com as
imagens autênticas, ainda puras ou já em transformação, da vida brasileira de feitio
patriarcal.
Mesmo se o projeto literário de Alencar fosse mapear o Brasil, é importante
mencionar que a realização deste projeto passa pela fixação de um conjunto de
realidades determinadas. Dito de outra maneira é ao fixar uma realidade específica
dentro da história que ele vai dando corpo ao seu projeto literário conforme foi
assinalado no prefácio acima referido. O tronco do Ipê dentro do projeto responde a esta
preocupação, a de fixar um momento histórico importante no estudo do espaço que
abriga a ação. Esta visão é também compartilhada por Heron de Alencar. Ao
caracterizar o romance regionalista segundo a classificação por ele estabelecida dos
romances de Alencar, entre os quais figura O tronco do Ipê, escreve:
Que significa o deslocamento do interesse de Alencar, do geral nacional para o geral regional.
Depois de haver iniciado o registro da vida brasileira como um todo, numa visão de conjunto que abarca o
que há de mais característico no amplo panorama do país, o romancista, em certo sentido limitando o seu
campo de observação, vai fazer o romance representativo de determinadas regiões, ou porque estas
regiões lhe pareceram mais diferenciadas e de características mais fortes, ou porque nelas naturalmente se
dividia o país, àquela época: o norte, o centro e o sul. E dentro de cada uma delas focalizaria o aspecto
interior, a vida agrícola e pastoril com suas peculiaridades, seus hábitos, seus costumes, suas tradições, as
relações sociais aí verificadas, os pormenores da vida coletiva, abandonando o aspecto urbano das
capitais, que lhe serviu para outro tipo de romance. E ainda nisso Alencar se mostrou cuidadoso
observador do nosso processo de desenvolvimento, uma de cujas dominantes fundamentais era e continua
a ser o contraste entre a vida das capitais e a das cidades do interior. Este cuidado do romancista
representa, para a época, um passo bastante significativo, inclusive porque evidencia – da concepção à
execução das obras – um predomínio de tendência realista já manifestada no romance histórico e no
urbano.
110
Isto posto, reparamos que o primeiro capítulo intitulado “O feiticeiro” começa
com uma descrição majestosa da situação da fazenda:
110
ALENCAR, Heron de. José de Alencar e a ficção romântica. In: COUTINHO, Afrânio, (dir.), A
Literatura no Brasil. 2. Rio de Janeiro: Editora Sul Americana S. A., 1969, p. 250, v.2.
117
Era linda a situação da fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão. As águas majestosas do Paraíba
regavam aquelas terras fertilíssimas, cobertas de abundantes lavouras e extensas matas virgens. [...]
Assomava ao longe, emergindo do azul do céu, o dorso alcantilado da Serra do Mar, que ainda o cavalo a
vapor não escarvara com a férrea úngula.
Trata-se aqui de uma ambientação franca segundo a terminologia de Osman Lins
em que o narrador não participa da ação, mas que se pauta pelo descritivismo. Mas esta
descrição não surge como uma mera informação. Em outras palavras, não tem apenas
um caráter informativo. Salta-nos aos olhos a preocupação do autor em organizar um
retrato objetivo e globalizante do local da ação.
Além de nos informar sobre a situação da fazenda, este trecho, sobretudo chama
nossa atenção para a existência de um ambiente natural, isto é, da natureza e de sua
beleza. Natureza esta que é vista de perto no capítulo intitulado “Tia Chica” e em
outros. Nele, o narrador-viajante, acompanhando o passeio pela floresta das crianças em
direção à cabana de Benedito, faz uma descrição mais acentuada da paisagem com
destaque para sua beleza com um olhar naturalista. Por esta descrição ser extensa,
limitar-nos-emos a citar este trecho:
O sítio em que estavam agora as crianças era de uma beleza agreste, porém majestosa. Abria-se
ali uma pequena várzea que de um lado o rio cingia como um braço, e do outro a floresta sombreava
como pálio cobrindo a linda espádua de uma ninfa. Algumas árvores, que se tinham separado da mata,
errantes e solitários, erguiam aqui e ali pela várzea.
O sol, derramando torrentes de luz sobre o descampado dava ao esmalte da relva ondulações de
ouro e fazia reverberar as águas do Paraíba, como borbotões de fogo.
Entre os solitários da várzea, destacava um frondoso ipê. Monarca da floresta, alçando com soberba a
régia coroa de esmeralda, parecia preceder a selva, que o rodeava como sua corte submissa e respeitosa.
Não era então o tronco decepado que vi muito depois; estava em todo vigor, embora se notasse já, na cruz
onde se abriam as ramas, uma caverna feita pela carcoma.
No fim da planície corria uma cadeia de penhascos, que descia verticalmente das altas colinas e
submergia-se no leito do rio. O mais saliente desses penhascos sustentava na encosta uma cabana de sapé.
De longe e visto de perfil, o rochedo parecia um tropeiro, derreado sobre o pescoço da mula e carregando
às costas sua maca de viagem. (P.60)
Com minúcia descritiva e olhar naturalista, o narrador, além de mostrar a beleza
da paisagem, deixa transparecer a idéia de que é conhecedor da natureza brasileira. À
maneira de um viajante naturalista voltado para a expedição científica, ele tem esta
capacidade de fixar a paisagem, descrevê-la, nomeá-la. No trecho acima citado, o
118
narrador como se estivesse à procura de um espécime raro, vai até localizar dentre todas
as árvores, um ipê que é comparado a um rei e a que a natureza toda “sua corte” é
submissa. Há necessidade de dizer que tem uma mirada paisagístico-classificatória dos
viajantes-cientistas do século XIX, o que, aliás, permite ao narrador alencarino
“aproximar” de seus objetos de descrição.
Flora Süssekind lança luz sobre o assunto quando aponta: “Há a expressão clara,
da parte de Alencar, de que desejava dar ao seu narrador um perfil de viajante. Mas não
de qualquer visitante, e sim de um capaz de fixar paisagens, descrevê-las, nomeá-las.
Um perfil atento e armado de viajante-naturalista ou de paisagista de expedição
científica”.
111
É conveniente assinalar que a descrição explosiva do ambiente natural que, com
certeza, não foge do desejo de Alencar de valorizar a cor local nos leva a conhecer uma
região que é de suma importância na história social, política, econômica do Brasil do
século XIX. Aqui, ressalta-se num primeiro momento o esforço de esboçar um quadro
espacial panorâmico no sentido de dar mais precisões sobre o local da ação que
descobriremos adiante.
Assim, a referência ao rio Paraíba com “as águas majestosas”, a existência de
“terras fertilíssimas e abundantes lavouras”, a presença de “extensas matas virgens”,
sem esquecer a presença de um outro elemento relevante que é a Serra do Mar “o dorso
alcantilado da Serra do Mar” testemunham com exatidão do Vale do Paraíba região
pertencente ao Rio de Janeiro onde floresceu o café, alicerce da economia brasileira no
Segundo Império brasileiro. Quem nos ajuda a entender bem isso é Alves Motta
Sobrinho:
Ainda hoje se chega à conclusão de F.C. Hoehne, de que toda a vertente da serra da Mantiqueira,
o vale do rio Paraíba e a serra do Mar, foram primitivamente, ocupados por uma formação vegetativa
silvestre. Eram cobertos de florestas majestosas, de que sobrou uma ou outra mancha, em ponto mais
inacessível. Talvez mais viridentes que a mata virgem de entre Parati e Cunha, onde até pouco tempo, o
machado não entrara, não havia estrada de rodagem, nem extração vegetal que a desfalcasse de sua
pureza
112
.
111
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. – São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 211.
112
MOTTA SOBRINHO, Alves. A civilização do café (1820-1920). Pref. Caio Prado Júnior, São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1967, p. 12.
119
Aqui temos a revelação de um vale do Paraíba paradisíaco pintado antes da
penetração do branco europeu, ou seja, antes da forte penetração da civilização
européia. Tanto Alves M. Sobrinho quanto Alencar nos apresentam a situação anterior e
posterior à penetração da civilização européia. Alencar nos mostra duas visões do
famoso vale, isto é, antes e depois da penetração da civilização européia. Primeiro, ele
apresenta um vale paradisíaco ou idílico embora haja a presença de “abundantes
lavouras” sem a presença do europeu. Isso transparece da maneira sutil no uso da
metáfora simbolizando a destruição: “que ainda o cavalo a vapor não escarvara com a
férrea úngula”. Em seguida, ele mostra uma outra faceta desoladora e isso no período
posterior à penetração européia: “Se a natureza brasileira, toucada pela arte européia,
perdia ali a flor nativa e a graça indígena, em compensação tornava-se mais faceira”.
Dão crédito à visão de Alencar estas frases de Alves M. Sobrinho:
Antes do ingresso do branco europeu, nesse soberbo cenário, o gentio já empreendera, em
pequena escala, sua destruição, mas as reduzidas coivaras, para suas insignificantes plantações, não
comprometiam sua beleza nem a feracidade do solo, restauradas pela própria força da terra e das chuvas
então abundantes. Já no regime da economia de subsistência dos primeiros povoadores brancos e
mamelucos, mais ainda no da exploração extensiva e intensiva da camada agricultável, com a formação
de canaviais, de cafezais imensos, de fazendas de criação, não se deu o mesmo. E o pasto de capim
gordura, com seu séqüito de barba de bode, sapé, samambaia, joá, fez recuar a mata, não se reproduzindo
mais as preciosas madeiras da lei, nem as frutas silvestres. Até a fauna apreciável bateu em retirada ou foi
extinta
113
.
Atentando à situação geográfica da referida fazenda do Boqueirão descrita no
romance de Alencar podemos, sem sombra de dúvida, frisar que se trata do vale do rio
Paraíba onde o café foi implantado. Há vários elementos mencionados no texto que nos
levam a comprovar nossa tese como veremos. Como se sabe, o cafeeiro foi introduzido
ao longo do Paraíba, quase ao mesmo tempo, tanto no vale fluminense, quanto no
paulista, e logo após o esgotamento das minas. Trata-se da velha civilização do café
que, no século XIX, floresceu nas áreas do Rio de Janeiro e São Paulo pertencentes à
região do Vale do Paraíba. Essas áreas incluem-se no território que Van Delden Laërne,
em sua classificação das lavouras de café da época, chamou do Rio em oposição à zona
de Santos
114
.
113
Ibidem, p. 12 et seq.
114
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 16 et seq.
120
É interessante acrescentar que malgrado a efetiva supressão do tráfico, em 1850,
e a crise resultante disto, o período de 1850-1870 é bom para o café: a conjuntura
internacional é favorável (na França, prosperidade do Segundo Império; na Inglaterra,
esplendor da era vitoriana). Já por volta de 1850, grande parte do vale do Paraíba estava
cultivada.
Historicamente falando, pode-se dizer que a produção literária de José de
Alencar em particular e a literatura nacional romântica em geral inscrevem-se na
civilização do café que, segundo o interessante trabalho de Alves Motta Sobrinho, se
estendeu de 1820 a 1920.
Esta visão histórica bastante esclarecedora vem corroborar e dar crédito à idéia
de que o texto de Alencar fornece vários elementos quanto à situação da fazenda do
Boqueirão no vale do Paraíba. Constatamos que o ano 1850 determinado pelo autor é de
uma importância capital. Tamm, há uma oposição campo-cidade ao longo da obra e
que às vezes se reflete nas personagens tanto masculinas quanto femininas. O campo,
como se sabe, é a zona rural onde está situado a fazenda e de que estamos tratando.
Quanto à cidade, sabemos que se trata do Rio de Janeiro. Muitas referências no romance
tais como “Babilônia fluminense”, “meu querido Rio de Janeiro”, “O baile do Cassino”,
“Na corte” comprovam sem discussão que a cidade oposta à zona rural é o Rio de
Janeiro.
Esta oposição campo-cidade vem reforçar a idéia de que se trata do vale do
Paraíba. Assim, o espaço natural até aqui analisado é o vale do Paraíba fluminense onde
floresceu o café durante o Segundo Império. O empenho do autor em fazer um retrato
globalizante e concreto advém da necessidade de determinar uma região de maior
importância tanto na história quanto no processo social e de desenvolvimento do Brasil.
Podemos deduzir de tudo aquilo que foi dito que a apresentação do
espaço
natural em ambos os romances não é uma mera descrição, mas uma maneira de
circunscrever uma determinada região de suma importância. Isso contribui a examinar o
segundo aspecto desta análise. Isto posto, passemos ao estudo do espaço social e sua
relação com as personagens.
121
2. O espaço social
Trata-se de mostrar aqui a relação entre o espaço dito social e a personagem. Ou
seja, mostrar como o espaço precisa ou revela a personagem, daí sua função
caracterizadora em ambos os romances.
Le roman d’un jeune homme pauvre abre-se com estas frases que merecem ser
citadas:
Voici la seconde soirée que je passe dans cette misérable chambre à regarder d’un oeil morne
mon foyer vide, écoutant stupidement les murmures et les roulements monotones de la rue, et me sentant,
au milieu de cette grande ville, plus seul, plus abandonné et plus voisin du désespoir que le naufragé qui
grelotte en plein Océan sur la planche brisée. – C’est assez de lacheté !... (P.5)
Estas primeiras frases que servem de abertura ao romance de Feuillet, são as do
diário de um personagem, diremos o protagonista do próprio romance que não podemos
identificar de saída. A identificação com certeza será possível mais adiante. O que
prende de início a nossa atenção é a existência de um espaço restrito, principalmente um
quarto. É o lugar onde está o nosso protagonista para escrever a história de sua vida. É,
aliás, o personagem principal que conta a sua história, daí ser assimilado ao narrador-
protagonista.
O nosso narrador-protagonista qualifica o referido quarto como “misérable
chambre”, daí surgir a idéia de miséria, de infelicidade, de desgraça, de indigência, de
pobreza. Sozinho neste ambiente miserável, a personagem principal sente-se infeliz,
sem esperança e amparo, miserável, mais abandonado e mais afetado pelo desespero
nesta grande cidade mais do que um náufrago que treme de frio no meio do Oceano na
sua prancha partida.
Esta comparação nos leva a medir a gravíssima situação em que está o nosso
protagonista já que a sua condição é pior do que o náufrago, diremos sem esperança
beirando a morte. Os adjetivos “morne”, “vide”, “monotones”, “seul”, “abandonné”
(estes dois últimos sobretudo acompanhados pelo advérbio plus marcando a
intensidade) traduzem a solidão que acompanha a idéia de miséria, pobreza,
infelicidade.
Podemos, sem sombra de dúvida, enfatizar que há uma relação entre o espaço,
dizemos social e a personagem. Ressalta-se aqui uma atmosfera de angústia, de miséria,
de infelicidade associada ao espaço em que está, revelando assim a sua condição social.
122
O espaço neste sentido é prenunciador da condição social da personagem. Isso nos ajuda
a entender melhor o título do próprio romance: Le roman d’ un jeune homme pauvre
confirmando a questão de pobreza que perpassa toda a obra.
Diremos que há uma homologia entre o quarto miserável e a condição social
miserável. A idéia de ruína, de miséria associada ao quarto em que ele está leva-o a
escrever a sua história, a procurar no passado as raízes de sua desgraça atual. O espaço
não só influencia, revela os movimentos íntimos como é provocador da ação. Vejamos:
Je veux regarder mon destin en face pour lui ôter son air de spectre: je veux aussi ouvrir mon
coeur où, le chagrin déborde, au seul confident dont la pitié ne puisse m’offenser, à ce pâle et dernier ami
qui me regarde dans ma glace. – Je veux donc écrire mes pensées et ma vie, non pas avec une exactitude
quotidienne et puérile, mais sans omission sérieuse, et surtout sans mensonge. J’aimerai ce journal : il
sera comme un écho fraternel qui trompera ma solitude, il me sera en même temps comme une seconde
conscience, m’ avertissant de ne laisser passer dans ma vie aucun trait que ma propre main ne puisse
écrire avec fermeté.
Je cherche maintenant dans le passé avec une triste avidité tous les faits, tous les incidents qui
dès longtemps auraient dû m’éclairer, si le respect filial, l’habitude et l’indifférence d’un oisif heureux
n’avaient fermé à toute lumière. Cette mélancolie constante et profonde de ma mère m’est expliquée...
(P.5-6)
Esta volta ao passado é bastante significativa na medida em que nos ajuda a
conhecer a condição social anterior do protagonista. Um passado, aliás, com uma
posição social diferente da situação atual em que está. Um passado glorioso. Revela-se a
partir daí a verdadeira identidade desde o início camuflada do nosso protagonista.
Maxime Odiot é seu nome, ex-marquês de Champcey d’Hauterive, descendente de uma
família aristocrática agora arruinada depois de o pai ter perdido toda a fortuna. Isso
mostra a decadência da aristocracia francesa, antigamente poderosa, influente, mas que
cedeu lugar à burguesia ascendente com o abalo dos alicerces do Antigo Regime na
França e com a ascensão do capitalismo.
Neste flashback, constatamos que o espaço contribui muito para conhecer o seu
passado. A antiga casa em moravam ele e sua família e outros móveis revelam sua
condição social anterior, sua descendência aristocrática conforme nos esclarece este
trecho:
Nous habitons en effet auprès de Grenoble le château héréditaire de notre famille, qui était cité
dans le pays pour son grand seigneurial. Ils nous arrivait souvent, à mon père et à moi, de chasser tout un
123
jour sans sortir de nos terres ou de nos bois. Nos écuries étaient monumentales, et toujours peuplées de
chevaux de prix qui étaient la passion et l’orgueil de mon père. Nous avions de plus à Paris, sur le
boulevard des Capucines, un bel hotel où un pied-à-terre confortable nous est reservé. (P.11-12)
O castelo hereditário da família “cité dans le pays pour son grand air
seigneurial”, a existência de “écuries [...] monumentales, et toujours peuplées de
chevaux de prix” objetos da paixão e do orgulho do pai e a presença de um “bel hotel”
com um quarto confortável que lhes é reservado vêm reforçar a idéia de uma situação
social mais estável e digna.
Esta enumeração nos revela que a família de Maxime pertence à classe alta tanto
pela grandeza e pelo número de seus imóveis como pela qualidade de vida. Isso nos leva
a dizer que o nosso protagonista era rico, aristocrata antes de sua ruína, episódio já
referido no começo desta análise. Ou seja, era descendente de uma família aristocrática
detentora de poder e dominação nas eras gloriosas mas, que passou a ser miserável,
infeliz depois de sua decadência. Isso é a imagem da aristocracia soçobrando à fúria dos
ventos burgueses e capitalistas. Nos dois casos, isto é, na situação anterior (riqueza) e
posterior (pobreza) a atuação do espaço é de suma importância já que nos ajuda a
revelar a condição da personagem conforme mostra a nossa análise até aqui.
O final da vida do pai de Maxime completamente arruinado (situação da
aristocracia) deixar transparecer um ambiente prenunciador da morte sua. A atmosfera
de tristeza que tomava conta da antiga habitação quando chegava Maxime ao local em
“une sombre soirée du mois février” após uma viagem, a presença de “une légère
couche de neige qui couvrait la campagne” e de “feuilles mortes” que caiam no chão
úmido com “un bruit faible e triste” pintam um quadro pressagiador, o da morte.
A sombra que viu, ao entrar no pátio, muito parecida com a de seu pai, desenhar-
se numa das janelas da grande sala que estava no térreo e que nos últimos dias da vida
de sua mãe nunca se abria também reforça idéia da morte. O adjetivo “sombre” que
acompanha “soirée” anunciando a vinda da noite já carrega uma dose de tristeza,
veicula a idéia das trevas associada à sombra do pai solitário na casa, lugar onde morreu
também a sua mãe e nos informa sobre o futuro acontecimento, a morte deste último. A
tristeza que reina na natureza associada com aquela que reina na própria casa é um sinal
de que a morte ia se fazer sentir.
124
Também, não podemos deixar de assinalar que o aspecto exterior do castelo,
segundo a descrição que Maxime fez, é um prenúncio da condição social dos Laroque,
família burguesa extremamente rica de Bretanha. Melhor citar um trecho:
En face de moi s’élevait le château, construction considérable, dans le goût élégant et à demi
italien des premières années de Louis XIII. Il est précédé d’une terrasse qui forme, au pied d’un double
perron et sous les hautes fenêtres de la façade, une sorte de jardin particulier auquel on accède par
plusieurs escaliers larges et bas. (P.67)
A descrição exterior do castelo conforme nos revela o trecho acima se ajusta
com a situação social dos Laroque, família reputada como a mais rica da região. A alta e
imponente construção erigida de acordo com as preferências da época, principalmente
dos primeiros anos de Louis XIII, expressa a influência, a riqueza, o poder desta família
em toda a região de Bretanha. Podemos referir-nos a esta citação de Georges Duby que
nos mostra a importância do castelo na França romântica e burguesa: “[...] le château
reste le centre politique et social dans presque toute la France...”
115
A majestosa altura da considerável construção condiz com alta e privilegiada
posição social dos Laroque. É “un lieu de plaisance” segundo observou Maxime. A este,
está associada uma atmosfera de alegria, de festa pois “une demi-douzaine de jeunes
filles, enlacées deux à deux et se riant au nez, tourbillonnaient dans un rayon de soleil,
tandis qu’un piano, touché par une main savante, leur envoyait, à travers une fenêtre
ouverte, les mesures d’une valse impétueuses”. (P.68)
Administrador das propriedades dos Laroque, Maxime freqüenta o castelo na
hora das refeições e quando for necessário, porém há um apartamento de três quartos
separado do castelo que lhe é reservado:
Sur ma requête, le vieil Alain s’est armé dans une lanterne et m’a guidé à travers le parc vers le
logis qui m’est destiné. Après quelques minutes de marche, nous avons traversé un pont de bois jeté sur
une rivière, et nous nous sommes trouvés devant une porte massive d’ une espèce de beffroi et flanquée
de deux tourelles. C’est l’entrée de l’ancien château. (P.86-87)
O afastamento dos dois espaços traduzidos nas seguintes palavras “après
quelques minutes de marche”, “nous avons traversé un pont de bois” nos revela a
distância que existe entre a família mais rica da região e o pobre administrador, o rico
115
DUBY, Georges. Histoire de la France. Paris : Larousse, 1987, p. 363.
125
decaído. É a imagem do conflito que existe entre duas classes sociais na França: a
burguesia e aristocracia. A primeira está em plena ascensão e a segunda está em
decadência. É o que explica, aliás, a distância que separa o castelo do apartamento de
Maxime. É também uma distância social. Além do mais, constatamos que o termo
“ancien” adjetivo que acompanha o substantivo château (lugar onde se encontra o
apartamento) sugerindo a idéia de abandono, o aspecto misterioso que as árvores
proporcionam a “ce débris féodal” traduzindo a idéia de ruína, de um sistema decadente
e a idéia de isolamento “un air de profonde retraite” não fazem senão reforçar a situação
social declinante em que se encontra Maxime.
De rico que era passou a ser pobre e completamente arruinado. À sua situação
social atual corresponde a habitação que lhe é reservada, lugar que veicula a idéia de
ruína. Há então uma compatibilidade entre a sua habitação e sua posição social: “C’est
dans cette ruine que je dois habiter. [...] Ce séjour mélancolique que je ne laisse pas de
me plaire: il convient à ma fortune”. (P.87)
A correlação entre o espaço e a personagem é flagrante. Ou seja, o espaço
desempenha um papel caracterizador ajudando-nos a determinar a condição social da
personagem. Sem sombra de dúvida, podemos asseverar que existe uma estreita ligação
entre o continente e o conteúdo uma vez que o primeiro ajuda a revela a condição do
segundo. Isto posto, passemos a analisar esta relação em O tronco do Ipê.
Para apreender melhor a função caracterizadora do espaço na obra de Alencar,
citemos este trecho extraído do primeiro capítulo “O feiticeiro”:
A casa de habitação chamada pelos pretos Casa grande, vasto e custoso edifício, estava
assentava no cimo de formosa colina, donde se descortinava um soberbo horizonte. Assomava ao longe,
emergindo do azul do céu, o dorso alcantilado da Serra do Mar, que ainda o cavalo a vapor não escarvara
com a férrea úngula. Das abas da montanha desciam como sanefas e bambolins de verde brocado, as
florestas que ensombravam o leito do rio. Às vezes tardo e indolente, outras rápido e estrepitoso com a
crescente das águas que o intumesciam, assemelhava-se o Paraíba na calma, como na agitação, a um píton
antediluviano coleando através da antiga selva brasileira. Nas fraldas da colina à esquerda estavam as
fábricas e as casas de lavoura, a habitação do administrador da fazenda e as senzalas dos escravos. Todos
estes edifícios formavam um vasto paralelogramo, com um pátio no centro; para este pátio, fechado por
um grande portão de ferro, abriam os cubículos das senzalas. Mais longe, derramados pelo vale, viam-se a
bolandeira, o moinho, a serraria, tocados pela água de um ribeiro que serpejava rumorejando entre as
margens pedregosas. À direita da casa, onde erguia a alva capelinha da fazenda sob a invocação de Nossa
Senhora, a colina declinando com suave depressão ia morrer às margens do Paraíba. Desse lado
encontrava-se o jardim, o pomar, a horta, e vários sítios de recreio arranjados com muito gosto. (p. 35-36)
126
Este trecho não só nos informa sobre a situação da fazenda como também nos
mostra que estamos numa sociedade patriarcal e escravocrata. A disposição das casas
que obedece a uma certa ordem hierárquica e a presença das palavras como Casa
grande, senzalas dos escravos, pretos, administrador da fazenda etc., lembra o
patriarcalismo brasileiro e a época do café no Vale do Paraíba fluminense ou melhor a
sociedade rural no Segundo Império.
Seguindo a ordem, temos primeiro a Casa grande, edifício que domina as outras
casas e cuja dimensão nos é revelada pelo adjetivo “vasto”. O adjetivo “custoso” epíteto
de edifício nos mostra o valor da casa e a opulência do senhor do café. A situação da
referida casa no cimo de uma formosa colina ostenta a soberania, a supremacia da
camada dominante economicamente, isto é, os senhores do café.
A descrição da colina em que está a Casa grande sancionada pelo adjetivo
“formosa” e o uso da personificação “horizonte soberbo”, nos mostra o domínio
absoluto do senhor do café em todos os aspectos.
Em segundo lugar, há a habitação do administrador da fazenda e enfim as
senzalas dos escravos. Ao analisarmos de perto estes pontos, podemos afirmar sem
dúvida que estes últimos, a saber, o administrador e os escravos são tributários ao
senhor prenunciando assim a estrutura social estabelecida na fazenda. Constatamos que
estas últimas casas ficam na parte inferior da colina como as seguintes palavras “Nas
fraldas da colina” nos confirmam.
Surge, com clareza, uma espécie de vassalagem. A presença das duas palavras
“direita” e “esquerda” marcando uma oposição aponta para uma distância social entre o
fazendeiro e os demais personagens como já foi anteriormente abordado. Temos, por
um lado, a Casa grande, a capelinha da fazenda sem esquecer o jardim, o pomar, a
horta, e vários sítios de recreio arranjados com muito gosto. Por outro, isto é, à
esquerda, estão as fábricas e as casas de lavoura, a habitação do administrador da
fazenda e as senzalas dos escravos. Esta disposição assim descrita corrobora mais uma
vez a supremacia da casa grande. A presença dos outros elementos como o monjolo, a
bolandeira, o moinho, a serraria constituem prova de que se trata da sociedade patriarcal
e escravocrata e como o texto o mostra na segunda metade do século XIX.
Vejamos a alusão de Gilberto Freyre feita a esta sociedade: “Puro romantismo
literário, esse paisagismo ou esse parapaisagismo? Não: também crítica social. Crítica
127
indireta a todo um sistema sócio-econômico: o patriarcal e escravocrata das casas-
grandes e dos sobrados”.
116
A análise até aqui revela que, na dita sociedade, o fazendeiro e o escravo
formam os dois pólos opostos da estrutura social. Como já foi anteriormente assinalado,
é impossível identificar o administrador da fazenda, pois não aparece mais ao longo do
romance. Depois de fazer esta apresentação mostrando o tipo de sociedade, seria
interessante tentar perguntar-nos se há uma harmonização entre o referido espaço e a
personagem.
Segundo Osman Lins: “Tem-se acentuado, no espaço romanesco, como das mais
importantes, sua função caracterizadora. O cenário, escreve Philippe Hamon, no estudo
sobre Émile Zola, confirma, precisa ou revela o personagem”.
117
Nesta altura, é interessante valer-se das metáforas espaciais usadas por Roberto
Reis no seu trabalho intitulado A permanência do círculo: hierarquia no romance
brasileiro. Menciona ele:
No centro ou núcleo está a figura do senhor e patriarca, junto com ele os que habitam a casa-
grande. Na nebulosa ou periferia, a bem dizer, todos os restantes. Precisando mais: na nebulosa circulam
o índio, o sertanejo, o jagunço, o gaúcho e o negro. Ou seja: nela alinhamos categorias étnicas (o negro e
o índio) e sociais (o jagunço, o sertanejo e o gaúcho), aglutináveis na medida em que não figuram no
núcleo sendo subjugados na base de uma relação de dominação, hierárquica. Efetivamente, os figurantes
do núcleo senhorial exercem domínio sobre os da nebulosa.
118
Com efeito, constatamos que no centro ou núcleo, está a casa grande e seus
moradores, sendo o senhor o cabeça enquanto na nebulosa ou periferia estão os demais
figurantes. No romance de Alencar, vemos que a casa grande como já foi acima referido
destaca-se por sua formosura e sua imponência, o que mostra o poder, a riqueza e a
dominação do senhor do café. Sua posição em relação às demais habitações já prenuncia
não só a hierarquia como também a dominação absoluta do fazendeiro.
Então se usarmos o continente pelo conteúdo, daí a metonímia, diremos que a
casa grande (centro ou núcleo) é sinônima de poder e de dominação em relação à
senzala (nebulosa ou periferia). Melhor dizendo, da casa grande emanam o poder e a
116
FREYRE, Gilberto. José de Alencar, Renovador das letras e crítico social. In: ALENCAR, José de. O
Tronco do Ipê. 3.ª ed., São Paulo: José Olympio, 1955 p. 18, v. X. (Romances ilustrados)
117
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo, Ática, 1976, p. 97.
118
REIS, Roberto. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade do Rio de Janeiro, 1983, p. 22.
128
dominação já que ela é estritamente ligada ao fazendeiro que exerce uma grande
influência sobre os que estão na senzala, ou seja, os escravos.
Depois deste apanhado, é interessante fazer uma análise meticulosa dos dois
espaços no sentido de saber como é que contribuem para caracterizar os seus
respectivos figurantes. Por um lado, a casa grande e por outro, a senzala.
A casa grande é ocupada pelo ricaço barão Freitas e sua família composta de sua
mulher D. Júlia e sua filha Alice, herdeira presuntiva. Também há o conselheiro Lopez,
sua mulher Luíza, sua filha Adélia e os demais convidados do barão sem esquecer os
agregados que foram recolhidos a saber Mário, sua mãe D. Francisca, a viúva do
comendador D. Alina e seu filho Lúcio.
Nela podemos notar a presença de uma hierarquia assim discriminada: primeiro
lugar o barão e sua família (o círculo estreito), depois o conselheiro, sua família e os
demais convivas e por fim os agregados por sua vez divididos em dois: primeiro D.
Alina e seu filho e segundo D. Francisca e seu filho Mário.
O barão é que está no alto em função de sua posição estabelecem-se os lugares
sociais restantes, dentro ou fora da casa grande configurando uma ordem social
hierarquizada. Sendo o ponto de referência, ele é não só rico como poderoso e
dominador. Domina não só os que estão no núcleo como os que estão na periferia, isto
é, os escravos.
Em relação aos escravos, todos os figurantes da casa grande desde o fazendeiro
até o agregado são socialmente superiores, mas em função da hierarquia estabelecida
dentro da própria casa, podemos deduzir o grau de superioridade e de importância de
todos os componentes. O lugar ocupado por cada um nos ajuda a determinar sua posição
social. É por isso que este longo trecho merece ser citado:
À hora em que os meninos chegavam à cabana, estavam reunidas na varanda da casa grande
várias pessoas.
Ao redor de uma mesa de junco no centro da sala, conversavam três senhoras vestidas com muito
apuro e elegância. A mais alta era a baronesa, mãe de Alice, senhora de muita formosura, embora fria e
sem expressão. À direita ficava-lhe D. Luíza, mãe de Adélia, uma das estrelas do Cassino naquela época.
À esquerda movia-se na poltrona com uma volubilidade nervosa, o talhe delgado de D. Alina, cuja
magreza extrema desaparecia sob uma nuvem espessa de fitas, babados e filós.
A baronesa abanava-se com um rico leque de madrepérola; D.Luíza arranjava em ramalhete as
violetas espalhadas sobre um lenço de fina cambraia. D. Alina gesticulava.
129
A alguma distância deste grupo, junto à janela, estava sentada uma senhora desfeita e pálida,
vestida de preto e com extrema simplicidade. Era D. Francisca, viúva de José Figueira e mãe de Mário;
trabalhava em malhas de lã; e constantemente volvia os olhos à janela, alongando-os pela encosta da
colina, onde se desdobravam até a margem do rio, o jardim, a horta, o pomar e a várzea. Naturalmente seu
pensamento acompanhava-se o filho no passeio. (P.104)
Este trecho nos mostra como a condição social corresponde ao lugar ocupado
por cada pessoa dentro da própria casa grande. Em outras palavras, todas partilham o
mesmo espaço, mas a disposição de cada qual dentro deste revela sua posição social daí
haver uma relação entre o espaço e a personagem.
Dentro da mesma, está no centro uma mesa de junco ao redor da qual estão
reunidas três senhoras vestidas com muito apuro e elegância, a saber, D. Júlia a
baronesa, D. Luíza mãe, de Adélia mulher e do conselheiro Lopez, e D. Alina viúva do
comendador o antigo dono da fazenda. Separada do grupo está D. Alina a mãe de
Mário, também viúva recolhida pelo barão. É bom começar por D. Francisca e seu filho,
o moço pobre para não perder de vista o fio condutor do trabalho e depois terminar com
as demais personagens.
De acordo com esta disposição hierárquica dentro da casa grande, D. Francisca e
seu filho Mário o moço pobre (aliás protótipo deste grupo no romance) são agregados
de segundo grau e então socialmente inferiores aos demais figurantes. Se em relação aos
escravos, eles têm uma posição social um pouco melhor, dentro da casa grande são
relegados ao segundo plano e considerados como necessitados ou dependentes. É o que
explica a distância entre D. Francisca “uma senhora desfeita e pálida, vestida de preto e
com extrema simplicidade” e as demais senhoras ricamente vestidas. Esta distância é
significativa na medida em que revela a distância social entre elas.
Sendo dependentes, beneficiam com certeza do favor do fazendeiro, porém
sofrem a humilhação ligada à sua condição. D. Francisca, por exemplo, é humilhada
pela baronesa D. Júlia por ter perguntado se esta consente que mande alguém ver onde
está seu filho. Mário também é chamado de “demoninho em corpo de gente” pela
mesma. Designação esta que o rebaixa e o relega ao mesmo plano que o escravo uma
vez que este também é visto como servo do diabo como veremos adiante. Mário e sua
mãe são apelidados de “Essa gente”, termo depreciativo usado por D. Alina para realçar
sua condição social. A baronesa os vê como uma carga e manifesta o desejo de vê-los
fora de sua casa: “É preciso que esta mulher e seu filho deixem a minha casa;...”
(P.116).
130
Há necessidade de dizer que há sempre um abismo entre os pobres e os ricos
mesmo quando ambos os grupos compartilham um espaço social comum. Esta situação
exibe a política dependência e de dominação em que estão inseridos os dependentes
dentro da casa grande embora gozem do favor no sistema patriarcal e escravocrata.
Assim o lugar ocupado pelo agregado dentro da casa grande conforme o trecho acima
citado combina perfeitamente com sua condição social.
Passemos então para as três outras senhoras vestidas com apuro, a saber, D.
Júlia, D. Luíza, e D. Alina ao redor da mesa de junco no centro da sala e vejamos a
relação entre elas e o lugar em que estão. O fato de D. Luíza estar à direita da baronesa
e D. Alina à esquerda revela com clareza que ela ocupa o centro. Isso confirma sua alta
posição social a qual está ligada a noção de poder e de dominação.
Além do mais, o texto nos informa que ela é a mais alta de todas e de muita
formosura. Isso mostra a estreita relação entre o espaço e a personagem, pois se
voltarmos ao início constatar-nos-emos que a “casa grande vasto e custoso edifício,
estava assentada no cimo da formosa colina, donde se descortinava um soberbo
horizonte” enquanto as demais casas “estavam nas fraldas da colina”.
Embora todas as três estejam vestidas com apuro e elegância, notamos que a
baronesa destaca-se por ser a mais rica, pois “abanava-se com um rico leque de
madrepérola”, revelando deste modo a opulência e a importância do fazendeiro no
Segundo Império se a consideramos como um tipo.
Logo depois vem D. Luíza “uma das estrelas do Cassino naquela época”. O fato
de ficar “à direita” da baronesa mostra que assume uma posição social melhor. Mulher
do conselheiro homem político reputado goza de uma condição social superior à dos
agregados e dos escravos. Constatamos que ela também é vestida com apuro e
“arranjava em ramalhete as violetas espalhadas sobre um lenço de fina cambraia”.
D. Alina destaca-se como a terceira pessoa com uma posição um pouco melhor.
Em relação à baronesa D. Júlia e a D. Luíza, ela ocupa uma posição social inferior, mas
superior em relação a D. Francisca e seu filhos, agregados de segundo grau e os
escravos. D. Alina seu filho Lúcio também beneficiam do favor do barão de Espera
Freitas, mas têm prestigio junto à baronesa. Talvez isso se explique por sua condição
social anterior.
Aliás, está “à esquerda” da baronesa, o que mostra que há uma proximidade
entre elas, apesar das condições sociais não serem iguais. Sendo viúva do comendador,
antigo dono da fazenda, ela e seu filho fazem parte dos agregados, mas de primeiro
131
grau. Sua condição é diferente da de D. Francisca que, aliás, se encontra a alguma
distância do grupo. Podemos alegar que há uma mobilidade social entre os agregados,
isto é, dentro do mesmo grupo alguns são valorizados e outros rebaixados.
D. Alina também é vestida com apuro, mas com “o talhe delgado [...] cuja
magreza extrema desaparecia sob uma nuvem espessa de fitas, babados e filós”. Este
detalhe é significativo na medida em que revela que há uma diferença entre ela e as
demais mulheres. Assim todas moram na mesma casa grande, mas a disposição de cada
qual dentro desta revela sua condição social.
Depois de examinar a relação da casa grande e seus componentes, é interessante
voltar-nos para a periferia ou nebulosa onde está o escravo. A periferia é simbolizada
pela senzala (hábitat de todos os escravos) em geral e em particular pela cabana de
Benedito, escravo fiel e submisso, aliás, protótipo de todos os escravos. Ele é
considerado “o personagem que tudo vê, tudo sabe, tudo presencia”.
No que diz respeito às senzalas, o texto nos mostra que ficam nas fraldas da
colina à esquerda, o que marca evidentemente uma separação entre a casa grande e as
senzalas dos escravos. Distanciamento este que significa de um lado, a autoridade e
superioridade do senhor e, de outro, a submissão e a inferioridade dos escravos. Assim a
situação da senzala justifica a posição social destes.
Quanto à referida cabana, era habitada por um outro escravo chamado Inácio
antes que Benedito a ocupasse. Assim “o aspecto diforme do negro, e o isolamento em
que vivia naquele sítio agreste em meio de ásperos rochedos, incutiram no espírito da
gente da vizinhança a crença de que Inácio era feiticeiro. Realmente ele tinha todos os
traços que a superstição popular costuma atribuir aos bruxos”. (P.75)
A palavra “isolamento” veicula a idéia de afastamento do convívio social do
escravo num certo sentido em relação ao senhor. Melhor dizendo, embora o escravo
trabalhe na fazenda do senhor e mesmo exerce trabalhos domésticos dentro da própria
casa grande, ele é separado.
Este fato é também observado em A Cabana do pai Tomás de Harriet B. Stowe.
Embora Tomás seja o escravo de estimação dos Shelby, aliás, “um sujeito fora de
comum: trabalhador, honesto e capaz” e até “realmente bom, sensato e piedoso”
119
, ele
encontra-se separado da casa grande: “A cabana do pai Tomás era uma pequena casa
feita de troncos contígua à casa grande, e precedida por um jardim muito bem cuidado”.
119
STOWE, Harriet Beecher. A Cabana do pai Tomás; rev. e adaptação do texto de Evangelista Prado.
São Paulo: Clube do Livro, 1969, p. 11
132
(P.16) A descrição da cabana revela sua condição de escravo e nos leva a pensar que
apesar dos elogios ele é menos valorizado e permanece escravo.
Este afastamento revela a existência da barreira social entre o senhor e o escravo
confirmando deste modo a relação de dominação-submissão como de superioridade-
inferioridade. Notemos no romance de Alencar que há uma atmosfera de mistério, de
terror, e de horror que acompanha a cabana a ponto do primeiro morador Inácio e do
segundo Benedito serem reputados como feiticeiros, pior como servos do diabo. Aliás,
não está escrito que “com a palhoça, Benedito herdou a reputação do pai Inácio;
sobretudo depois que novos desastres se deram no boqueirão?” (P.76) Estas
características conferem ao escravo uma feição satânica e contribuem para inferiorizá-lo
embora seja considerado um feiticeiro de bom coração.
Assim como no primeiro romance, existe uma relação estreita entre o espaço e a
condição social das personagens. O espaço de uma maneira plausível contribui em
muito para revelar a personagem.
A análise do espaço nas duas obras até aqui mostra evidentemente as
semelhanças que existem entre elas. Isso se deve ao fato de que os dois autores
escolheram a zona rural para abrigar a ação e de que o espaço social em ambos
romances contribuiu para caracterizar os personagens. Porém, convém dizer que
existem diferenças que merecem ser destacadas. Claro é que o período fixado nas duas
obras é a segunda metade do século XIX, daí o Segundo Império na França e também o
Segundo Império no Brasil. No entanto, as realidades não são as mesmas dado que os
países são diferentes. Uma das diferenças reside na especificidade do lugar e seu
significado. Assim, constatamos que a análise do espaço natural em Le roman d’un
jeune homme pauvre nos remete à Bretanha, província francesa afastada do burburinho
de Paris e em O tronco do Ipê ao vale do Paraíba fluminense.
Por um lado, há uma preocupação do autor em pintar-nos uma Bretanha
pitoresca e histórica, ambiente que reflete a grandeza da aristocracia embora decadente
em contraposição a Paris, mundo contaminado, poluído da burguesia. O desejo de
sempre exaltar a aristocracia em decadência, leva-o a afastar-se de Paris considerado
“un lieu moralement délétère”.
120
120
SEILLAN, Jean-Marie. Stéréotypie et roman mondain : l’oeuvre d’Octave Feuillet. Loxias 17 :
Littérature à stéréotypes/ Actes de la journée d’études. Nice, 23 février 2007. Disponível em: <http//
www.revel.unice.fr/loxias/document.htm> Acesso: 27 jul. 2007.
133
Assim, ele ignora o Paris moderno pintado em Tableaux parisiens de Baudelaire
e embrenha-se no mundo rural que era dominado pela aristocracia no Antigo Regime já
que possuía a maior parte das terras embora seja uma minoria. Esta escolha não é
fortuita, mas significativa, pois “sous le rapport géographique, la province, qui élève
encore des anges angéliques, s’oppose à la jeunesse contaminée par le scepticisme et
l’immoralité parisienne...”
121
. A zona rural é vista como o lugar de pureza onde reinam
ainda os valores aristocráticos em oposição ao ambiente burguês corrupto.
Por outro, a escolha do vale do Paraíba fluminense com suas extensas florestas
naturais e primitivas, suas terras fertilíssimas espelha a vontade do autor de, em O
tronco do Ipê, retratar, primeiro, a cor local, leitmotiv de seu projeto literário. É por isso
que o narrador com o perfil de viajante se move com um olhar fixo mostrando os
detalhes paisagísticos. Segundo, a preferência pela zona rural fluminense responde à
preocupação em representar uma região que desempenhou um papel importante no
processo de desenvolvimento do Brasil. Esta região é, se podemos assim dizer, o
primeiro berço da lavoura cafeeira onde se criou uma sociedade de padrão patriarcal.
121
SEILLAN, Jean-Marie. Stéréotypie et roman mondain : l’oeuvre d’Octave Feuillet. Loxias 17 :
Littérature à stéréotypes/ Actes de la journée d’études. Nice, 23 février 2007. Disponível em: <http//
www.revel.unice.fr/loxias/document.htm> Acesso: 27 jul. 2007.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vergílio Ferreira escreve em Pensar:
Só um escritor é um alvo fácil dos que o não são. Porque um pintor ou um músico ou um artista
de um outro sector, exigem já um especialista para que possa dizer mal deles. E a razão é talvez fácil e é
que o escritor se imagina utilizar palavras com a mesma funcionalidade das do uso quotidiano, ou seja as
de toda gente. E num baldio não se exige bilhete de entrada.
122
Ao citar esta passagem, o nosso desejo é ressaltar a importância das palavras
como meio de comunicação de qualquer escritor. É por isso que, aliás, optamos por um
método que consiste em dar primazia à obra literária sem negar a importância da teoria
literária uma vez que qualquer estudioso de literatura deve ter um conhecimento básico
desta.
Tal opção nos levou a uma escolha temática comum às duas obras: “A presença
do moço pobre em Le roman d’un jeune homme pauvre e em O tronco do Ipê”.
Nossa intenção é mostrar os aspectos sociais em ambos os romances com destaque para
a história e processo social. Ao escolher o aristocrata decadente como protagonista,
Feuillet nos deixar ver a substituição da aristocracia pela burguesia. Passamos da antiga
França para a França pós-revolucionária. Isso mostra também a queda do Antigo
Regime e a ascensão da burguesia.
O romance mostra com clareza a intenção do autor de exaltar o mundo
aristocrático que ele considera perfeito, daí o deslocamento da ação de Paris para a
Bretanha. Esta preferência pela zona rural explica-se pelo desejo do autor de se afastar
do mundo burguês agitado para o mundo aristocrático perfeito.
Ao adotar tal postura, Feuillet se afasta cada vez mais das realidades de seu
tempo para se mergulhar nas águas do idealismo de que ele é um dos representantes no
Segundo Império. Ele não aponta os antagonismos sociais, mas faz com que burguês e
aristocrata se encontrem no mesmo castelo, símbolo da harmonia no mundo
aristocrático decadente. Nem menciona a presença da classe operária urbana como o fez
Zola.
Falando de sua obra, Jean-Marie Seillan aponta: “Exceptionnelle par son
homogénéité et son imperméabilité à l’Histoire, son oeuvre romanesque apparaît avec le
122
FERREIRA, Vergílio. Pensar. Venda Nova: Bertrand, 1992.
135
recul comme le répertoire et le conservatoire des stéréotypes du roman mondain
idéaliste: milieux, décors, personnages, intrigues, principes philosophiques, valeur
morales et spirituelles, tout s’y reproduit selon une combinatoire événementielle et une
casuistique morale immuables.
123
O idealismo de Feuillet se reflete na forma de seu
romance e afeta seu valor estético.
Ao escolher o agregado como protagonista em O tronco do Ipê, Alencar
vislumbrou esta camada social intermediária, dependente dos abastados fazendeiros que
mais tarde será fixada e examinada nos romances de Machado de Assis. A presença do
moço pobre na obra de Alencar nos leva a fixar concretamente as demais camadas
sociais reinantes e sociedade patriarcal no Segundo Império.
Todos os aspectos sociais analisados refletem sociedade patriarcal e sua
ideologia mesmo que sejam velados pela chama romântica que perpassa a obra.
Podemos dizer a visão romântica de Alencar condiciona a forma de seu romance.
Assim não podemos acusar os dois autores de ser escritores destituídos de visão
crítica. Muito pelo contrário, podemos aplicar esta observação de Conrad Busken Huet
aos dois: “[...] sous ce langage délicieux se cache une critique”.
124
123
SEILLAN, Jean-Marie. Stéréotypie et roman mondain : l’oeuvre d’Octave Feuillet. Loxias 17:
Littérature à stéréotypes/Actes de la journée d’études. Nice, 23 février 2007. Disponível em:
<http//www.revel.unice.fr/loxias/document.htm>. Acesso em: 27 julho 2007.
124
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