Os tempos da roda também se distinguem da temporalidade das aulas. Há uma clara
oposição entre a estrita regularidade da sucessão dos fazeres na roda e a imprevisibilidade da
dinâmica de cada aula
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, uma vez que os exercícios e atividades propostos nos treinos variam
constantemente (exercícios individuais ou em dupla; grande variedade de movimentos
ensaiados numa aula ou um único movimento repetido durante duas horas; aulas de
instrumentos musicais ou acompanhamento com música mecânica, etc). Os fazeres da roda
seguem, por sua vez, uma seqüência precisa, dita ritualizada, evidenciada pela entrada
sucessiva dos instrumentos musicais da bateria, inalteravelmente na ordem seguinte: berimbau
gunga, berimbau médio, berimbau viola, pandeiros, agogô, reco-reco e, por fim, atabaque
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;
observa-se também a seqüência igualmente inalterável dos cantos: ladainha, chula e
corrido
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.
O caráter sagrado da roda tem como paradigma o caráter sagrado da bateria musical,
sendo assim transferida a deferência devida às figuras de autoridade de pessoas (mestres e
capoeiristas mais velhos) para instrumentos musicais explicitamente hierarquizados. Com
efeito, diferentemente da escala de poderes imprecisa – no sentido de que não demarca
claramente as diferenças qualitativas entre os diversos integrantes do grupo, à exceção do
mestre, como se viu – que estrutura o grupo hierarquicamente, os instrumentos musicais têm
um status preciso e imutável, conferido pela tradição.
Tal escala de classificação dos instrumentos coincide, embora imperfeitamente, com a
sua ordem de sucessão na performance da bateria. Encontram-se situados segundo a seguinte
escala (em ordem decrescente) : berimbau gunga, berimbau viola, berimbau médio, atabaque,
pandeiros, agogô e reco-reco.
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Em paralelo com a oposição, visível na prática, entre a dinâmica imprevisível dos treinos e a dinâmica da roda
ritualizada, é delineada uma oposição inversa no sentido de a roda ser o lugar onde tudo pode acontecer
enquanto as interações que têm lugar nas aulas estão sob controle, ou seja, pouco perigosas.
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Esta seqüência é própria aos grupos FICA e Nzinga, assim como alguns outros grupos da linhagem de Mestre
Pastinha. Pequenas diferenças são encontradas em outros grupos, como o adiamento da entrada do atabaque após
a finalização da ladainha (canto inicial). A ordem temporal e espacial da bateria musical constitui-se, assim,
como signo distintivo entre grupos, caracterizando sua identidade singular, e também distingue o conjunto dos
grupos de capoeira angola do conjunto dos grupos de capoeira regional. Nestes, a composição da bateria não
inclui a mesma variedade de instrumentos, além de permitir que seja realizada uma roda com um número de
instrumentos variáveis a depender das circunstâncias e da disponibilidade de tocadores e instrumentos.
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Ladainha: canto solo de início de roda, geralmente executado pelo tocador de berimbau gunga. Caracterizada
por uma forma narrativa, pode celebrar as façanhas de um mestre ou herói da capoeira, evocar algum episódio
histórico ou consistir em um meta-comentário sobre a filosofia da capoeira.
Chula: canto que segue a ladainha com formato dialógico solo/coro. É composta de versos curtos repetidos pelo
coro: louvações à capoeira, aos jogadores, aos mestres, a Deus; chamadas de atenção sobre os perigos do jogo
expressas de modo metafórico (por exemplo: faca de ponta/pode cortar); convites a iniciar o jogo.
Corrido: também cantado no formato solo/coro, porém segundo o esquema pergunta (solo) resposta (coro),
sendo a pergunta variável e sujeita a improvisações e a resposta inalterável. Os corridos são cantados durante
todo decorrer dos jogos na roda, sendo o repertório muito vasto e variado.