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dramáticos de Brecht, o famoso conceito do distanciamento crítico. "O cinema é um
meio avassalador. Não deixa tréguas ao espectador no escuro das salas. Achei que seria
interessante desmontar a história, narrá-la como uma representação, tentando envolver o
público, mas deixando claro que aquilo não é a vida, mas uma representação da vida."
Elenco - Um filme em que as casas não têm paredes e a própria geografia da cidade é só
um desenho no chão depende muito dos atores para construir seu fascínio aos olhos do
público. Nicole Kidman é a protagonista de Dogville. Sua personagem chama-se Grace
- Graça. O próprio nome revela alguma coisa do seu desejo de redenção num mundo
hostil. Lars Von Trier reconhece que teve problemas com Nicole no set. Não poderia
negá-lo. As desavenças estão registradas no documentário sobre a rodagem de Dogville,
exibido no Festival do Rio. Mas ele não poupa elogios à atriz: "É talentosa, corajosa,
Nicole é capaz de ir ao fundo das coisas pelos projetos em que acredita." O elogio
estende-se a todo o elenco de Dogville. "Foram todos ótimos. Entraram logo no espírito
da coisa, perceberam que dependia deles, da voz, dos gestos, da expressão corporal, a
possibilidade de construção dramática dessa história, a priori, desconstruída
esteticamente."
O autor nega que tenha pretendido, com esse retrato selvagem do capitalismo predador,
fazer um retrato da América de George W. Bush. Seu filme, afinal de contas, passa-se
nessa cidade do interior dos EUA, no começo do século passado. Desde que Dogville
passou no Festival de Cannes, em maio, a associação com a América bushiana tem sido
uma constante na maioria das críticas. "De novo, corro o risco de decepcionar, mas não
pensei em Dogville como um comentário sobre a América reacionária de Bush filho. É
verdade que ele representa tudo o que eu odeio num político, está fazendo a vida pior
para todos nós no planeta, menos para os seus cúmplices. E talvez esse sentimento tenha
passado de forma inconsciente para o filme."
Também acha que foi o mesmo procedimento inconsciente que faz com que se possa
ver no capitalismo da sociedade puritana de Dogville - pessoas de bem, que acreditam
no lucro e aceitam todos os horrores praticados contra Grace - uma reflexão sobre a
contribuição da Reforma de Lutero ao sistema econômico que triunfou nos EUA. "Tanta
gente me fala que encontra no filme a base para essa reflexão que eu já estou
convencido de que, sim, tudo deve estar lá."
Não aceita a acusação de niilismo, mas sabe que o desfecho de seu filme é
desconcertante, por nivelar todo mundo, ricos e pobres, no mesmo movimento
derrisório. "Esse final era essencial no projeto, não poderia ser de outra maneira.
Qualquer outro desfecho seria conciliador e não era o caso." No quesito "niilismo", pede
ao repórter que olhe para os lados e veja algum motivo de esperança. "Gostaria de
acreditar mais", insiste.
Nega, de forma veemente, a interpretação da revista francesa Positif, que comparou
Dogville ao game dos Sims, onde o jogador tem de construir tudo - a geografia, as
histórias dos personagens. "Não gosto desses jogos nem conheço os Sims. Ou melhor,
sei que existe porque minha filha é fã dos Sims, mas ela não me influenciou", garante.
Prefere ver em Dogville, além da de Brecht, a influência de cineastas de vanguarda dos
anos 1970 e 80 (não cita nomes), que praticavam um cinema estilizado e teatralizado,
como o seu filme consegue ser. E o Dogma, como vai? Lars Von Trier, que criou o
movimento, admite que se distanciou dele. Dogma, nunca mais? "Não diria tanto, mas
não sou do tipo que gosta de ficar se repetindo. Gosto de tentar coisas novas, que me
estimulam." E o que ele vai tentar agora? "Ainda é cedo para falar, mas estou com
certas idéias que, não sei, corro o risco de perder o público que consegui com Dançando
no Escuro e, agora, Dogville."