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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS
DOGVILLE, FILME E CRÍTICA
Evelise Guioto de Souza
Dissertação apresentada ao programa de
Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos e
Literários em Inglês, do Departamento de
Letras Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para a obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Elisa Burgos Pereira da Silva Cevasco
São Paulo
2007
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AGRADECIMENTOS
À Profa.ª Drª Maria Elisa Burgos Pereira da Silva Cevasco, pela orientação,
pelo estímulo desafiador e pela confiança que depositou em mim.
Aos professores que ministraram as disciplinas que cursei: Marcos Soares,
Maria Elisa Burgos Pereira da Silva Cevasco, Maria Silvia Betti e Marco
Antonio Guerra, por proporcionarem não só conhecimento, mas um espaço de
estímulo ao pensamento crítico.
Um agradecimento especial ao Prof. Dr. Marcos Soares pelo interesse na
minha pesquisa e pela confiança no trabalho que agora apresento.
À Prof. Dra. Iná Camargo Costa, um agradecimento especial pelas inúmeras
palestras, especialmente sobre Dogville, que ampliaram meus horizontes.
A ambos, Marcos e Iná, pela participação na banca de qualificação, por seu
apoio e pelas orientações inestimáveis.
Aos amigos do grupo de estudos, pelas discussões produtivas e
enriquecedoras. À Adriana, sempre disposta a me aconselhar nos momentos
de pânico, e ao Daniel pelas conversas no café que me esclareceram
imensamente.
À minha irmã, Marize, que, antes de haver um Fórum Social, me fez desejar
que outro mundo fosse possível.
Aos amigos. Flávia e Moira, parceiras nas inquietações. Fabi, pelo desprezo
desafiador ao meu objeto de estudo. Graziela, pela cultura útil e inútil. Fúlvio,
sem o qual eu ainda estaria procurando alguma das muitas informações que
me ajudou a encontrar. Gláucia, por compartilhar a paixão pelo cinema.Tony,
por nunca me deixar ter certezas em paz. Fernanda, pelo interesse e pela
leitura. Cleusa, pelo enorme apoio. Jana, pelo exemplo de integridade e
alegria. Lara, Mozar, Luara e Luciane, pela força. Valéria e Milene, pelos anos
de amizade sempre me apoiando incondicionalmente.
Dedico essa dissertação ao Mac,
cujo suporte, compreensão, paciência e amor
me ajudam sempre a atingir meus objetivos.
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SUMÁRIO
ÍNDICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
RESUMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
ABSTRACT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
CAPÍTULO 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
CAPÍTULO 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
ANEXOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
FILMOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
4
ÍNDICE
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . 6
CAPÍTULO 1
Dogville, a armadilha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
CAPÍTULO 2
A recepção crítica de Dogville . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
O mascaramento ideológico da grande mídia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
Panorama da recepção crítica: a separação de forma e conteúdo
e a naturalização da análise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 59
As relações entre a análise da forma e o tipo de
argumento desenvolvido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
A questão das referências e as vantagens de usar Brecht . . . . . . . . . . . . . 80
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
ANEXOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
FILMOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
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RESUMO
Dogville é um filme que suscitou reações opostas e viscerais. Essa dissertação aborda
dois aspectos desse fenômeno. Em primeiro lugar, uma leitura do filme especialmente
no que diz respeito a seu princípio contraditório. Não se trata apenas de abrigar aspectos
realistas da chamada linguagem clássica do cinema conjuntamente com aspectos
antiilusionistas de inspiração assumidamente brechtiana. Trata-se de compreender como
essa contradição é o coração do filme e produz seu sentido. Em seguida, uma leitura da
crítica publicada nos veículos de comunicação de grande circulação procura identificar
como esses textos encaram ou ignoram essa contradição, bem como as pré-concepções
que permitem que eles assim o façam e que determinam as análises que produzem.
ABSTRACT
Dogville is a movie to which most people reacted passionately, whether in favor or
against it. This dissertation approaches two aspects of this phenomenon. First, it
provides a reading of the film that focuses on its contradictory principle. It is not only
about the fact that some of it resorts to classic realism whereas some other aspects
question this illusionism by deriving from a Brechtian inspiration. It is about
understanding how this very contradiction is the heart and soul of the movie and how it
is this that produces its content. Then, a reading of reviews published in wide
circulation papers attempts to identify how these texts either address or ignore this
contradiction, as well as the pre-conceptions that allow them to do so and that determine
the analyses they produce.
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INTRODUÇÃO
As obras de arte, cada vez mais, me interessam em uma medida diretamente
proporcional à sua capacidade de formalizar criticamente a realidade. Formada na
tradição crítica da Universidade de São Paulo, interessam-me especialmente aquelas
que, relevantes para o fazer artístico, revelam estar um passo adiante de uma reflexão
limitada estritamente a esse fazer artístico. Em outras palavras, interessam-me sobretudo
aquelas obras que proporcionam um certo conhecimento ou compreensão da realidade
sócio-histórica. Venho perseguindo, nos últimos anos, compreender inteiramente como
o aspecto formal de uma obra é seu “conteúdo sócio-histórico decantado”, como explica
a famosa formulação de Adorno. A leitura de algumas de suas obras, bem como de
Roberto Schwarz, Fredric Jameson e outros tem sido proveitosa nesse percurso. Duas
afirmativas desses autores foram particularmente norteadoras para a gestação e
elaboração desse trabalho:
Em primeiro lugar, ressalto a defesa de Fredric Jameson, em O inconsciente
político, de que a divisão das obras entre as que são “políticas” e as que não o são é um
erro derivado da grande especialização contemporânea e justamente uma reiteração da
divisão intelectual do trabalho. A leitura de muito da crítica publicada não apenas em
veículos de grande circulação como também em meios acadêmicos revela que a noção
combatida por Jameson é arraigada e tida como ponto pacífico, o que incita o
questionamento.
Roberto Schwarz, por sua vez, defende, em Seqüências brasileiras, que o
marxismo é o modo menos ideológico de fazer crítica cultural e questiona se a suposta
neutralidade defendida por muitos é efetivamente mais produtiva ou cientificamente
mais acertada. Novamente, trata-se de uma colocação que vai contra o senso comum e
cujas implicações podem ser muito reveladoras, pois ter essa noção em mente ajuda a
desnaturalizar os termos do debate contemporâneo.
Assim, o que primeiro me chamou a atenção em Dogville, o polêmico filme de
Lars von Trier, foi não apenas uma compreensão crítica da realidade contemporânea,
como também a discussão acerca do engajamento da arte e da formalização da realidade
como conteúdo. Filmado em um galpão no qual a cidade de Dogville é representada por
meio de marcações no chão, algumas paredes, vitrines, janelas e uns poucos móveis nas
habitações assim delimitadas, o filme desde o começo se coloca na contramão da
estética do ilusionismo. Dividido em capítulos cujos títulos dão indicações acerca do
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que virá e contando com uma narração que aparenta onisciência e comenta as
personagens, a referência a Brecht salta aos olhos desde os primeiro minutos de
projeção mesmo para aqueles que, como eu, não haviam se informado da admitida
inspiração na canção da Jenny-Pirata da Ópera dos três vinténs.
Nesse cenário em que todos os personagens estão sempre à vista – o que enfatiza
a dimensão social, por oposição à exclusivamente individual –, desenrolam-se os
eventos do enredo. A primeira tomada é um plano vertical da cidade, vista como um
mapa ou planta baixa, na qual a câmera mergulha diretamente para a casa de Tom,
primeiro personagem a ser introduzido. Ele é o primeiro a ser descrito pelo narrador,
que deixa claro que Tom se pretende escritor, embora não tenha escrito nada além das
palavras “great” e “small”. A partir daí, Tom passeia pela cidade, promovendo uma
introdução do espaço e das demais personagens. À medida que Tom as cumprimenta,
elas revelam seu traço mais particular: a rabugice de Chuck, o zelo patético de Martha
etc. Ele vai ainda jogar damas com Bill, o qual, somos informados, não é
particularmente brilhante, e é um perdedor contumaz e. Após a partida, Tom senta-se
num banco, pensando sobre como ilustrar suas idéias na palestra que fará para a
comunidade. Ouvem-se tiros. Tom ouve atentamente, mas eles não se repetem. Ele fica
desapontado, mas permanece sentado, procurando manter-se conectado à sensação de
medo por um pouco mais de tempo. A construção falseada dessa personagem central
está dada nessa cena. São ilusórias suas pretensões intelectuais, que não passam da
pretensão de ser reconhecido como um grande autor que desvenda a alma humana,
assim como são falsos seus sentimentos, os quais ele procura saborear com a diligência
de quem os escolhe. É então que a fugitiva Grace aparece na cidadezinha de Dogville.
Ao contrário de Tom, a personagem de Grace guarda um mistério factual que
não é desvendado nem pela narração nem por suas próprias ações. Durante todo o filme,
ela se apresenta como desamparada e é como tal que permite a construção de toda uma
alegoria do modo de funcionamento do sistema capitalista, no qual a moeda de troca
corrente para aqueles que não o possuidores de capital se resume à sua força de
trabalho. Tom, o suposto intelectual, é quem organiza o abrigo e o tipo de sociabilidade
que Grace estabelece em Dogville. Ele sugere que a cidade a receba e que, em troca
dessa benevolência, Grace execute pequenas tarefas para cada um dos habitantes. Inicia-
se um processo de exploração da força de trabalho, que, curiosamente, começa com a
definição, mais uma vez pela intervenção de Tom, de que Grace faria trabalhos que
ninguém achava todos julgavam desnecessários. Curiosamente, também, o primeiro
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desses trabalhos se refere a cuidar de uma parte improdutiva da vegetação da cidade.
Aqui, duas características fundamentais para a sustentação do modo de vida
contemporâneo são representadas: as constantes criação de necessidades e a expansão
do capital. O processo tem continuidade e, em pouco tempo, todos estão satisfeitos com
a execução dessas tarefas desnecessárias. Tanto que Grace é aceita e começa a receber
pagamentos por seus serviços. O primeiro ponto de virada do roteiro se quando a
polícia aparece em Dogville. Num primeiro momento colando apenas um cartaz de
“desaparecida”, a polícia volta durante as comemorações do 4 de julho, ponto alto do
relacionamento de Grace com os habitantes de Dogville, e cola um cartaz de “procura-
se”. Embora as acusações contra ela sejam claramente falsas, que ela já estava na
cidade à época dos crimes, um mal-estar se instala. Porta-voz da moralidade, Mrs.
Henson sente que eles estão cometendo um crime ao não denunciá-la. Curiosamente, e
mais uma vez por intermédio de Tom, novamente a situação se resolve recorrendo-se à
economia. Um acordo dessa natureza, segundo o qual Grace passaria a trabalhar mais e
receber menos, apazigua as consciências de Dogville. Começa a ficar claro como os
escrúpulos, a moral e os sentimentos humanitários se submetem ao imperativo
econômico: a hierarquia imposta pelo capital se impõe explicitamente, bem como a
hipocrisia de ignorá-la.
A partir daí, a exploração aumenta, assim como a dimensão grotesca dessa
exploração. Veículo da introdução do progresso modernizador, Grace é também veículo
das falsas promessas desse progresso e, sendo assim, repositório da frustração e da
compulsão por elas despertadas. A exigência de trabalho aumenta e o funcionamento
psíquico do processo que está em funcionamento é explicitada pelo menino Jason que,
ao portar-se mal e exigir palmadas como castigo, chantageia Grace e explica que
“quando uma pessoa não satisfaz todas as promessas que fez, às vezes aqueles a quem
ela prometeu ficam bravos”. O verniz de moralidade para a exigência de satisfação dos
desejos aparece novamente por intermédio de Mrs. Henson, autora da frase que o
menino repete. O estupro de Grace por Chuck, pai de Jason, ocorre na seqüência e daí
em diante, torna-se regular. Tom, ao saber do ocorrido, sente-se compelido a tomar uma
atitude, mas não o faz porque, segundo ele, os demais habitantes de Dogville não devem
saber da proximidade dos dois, que supostamente estão apaixonados. Seu sentimento de
indignação, no entanto, remete à intenção de prolongar o sentimento de medo da
primeira cena do filme por sua característica falsa. Ele nada faz, exceto preparar uma
fuga para Grace e delatá-la em seguida. Ela é trazida de volta e acusada, pelo próprio
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Tom, de ter roubado dinheiro de seu pai para a fuga. Respaldada por tais antecedentes, a
comunidade de Dogville decide acorrentá-la com uma geringonça grotesca produzida
por Bill, a cuja inteligência limitada Grace dedicou parte de seus serviços
desnecessários. A partir daí, sua transformação em prostituta não paga é um passo
pequeno e não muito custoso para as consciências ora tão zelosas de Dogville. Reduzida
à condição de escrava, Grace não tem o mesmo status de humanidade dos demais e,
portanto, seu estupro não é mais do que ligeiramente constrangedor, “como quando um
vaqueiro consuma o ato com uma vaca”, nas palavras do narrador.
Essa situação de violência extrema se estabelece e a rotina, grotesca, se mantém
em Dogville até o segundo ponto de virada, quando Tom propõe uma mal-sucedida
conversa entre Grace e os demais, recebe uma negativa quando procura ter uma relação
sexual com ela e resolve ligar para os gangsters que a procuram, cujo cartão ele
recebera no começo do filme, logo após a chegada de Grace. A revelação final é que
Grace é filha do chefe da quadrilha. Pai e filha têm uma conversa sobre a suposta
arrogância de Grace, que permitiria aos demais, pelos quais sente compaixão, atos para
os quais não encontraria desculpa se fossem praticados por ela mesma. A questão de
classe, que até aqui vinha sendo figurada pela possibilidade da exploração levada às
últimas conseqüências, ressurge da perspectiva de uma classe dominante e criminosa
que também a naturaliza pelo discurso da moralidade. E é sob o efeito desse raciocínio
que ela decide dizimar a cidade e seus habitantes, vingando-se deles com os mesmos
requintes de crueldade com o qual foi tratada. Esse desfecho, violentíssimo, é ambíguo
como o restante do filme: num primeiro momento, satisfaz os espectadores identificados
com o sofrimento de Grace e, talvez inconscientemente, conhecedores do processo de
exploração e de sua participação em sua manutenção. Nesse ponto, o filme de Trier
talvez atinja o seu ponto máximo de participação do espectador, pois é a reação do
público que constrói seu significado último e possivelmente seja também aqui que seu
humor sarcástico se mostre mais completamente. Enquanto alguns poucos taxaram o
filme, a meu ver equivocadamente, de fascista, outros celebraram a catarse da vingança,
a meu ver, também erroneamente. Esse prazer catártico, no entanto, revela uma – talvez
surpreendente conivência com uma saída de caráter fascista, moralista e conservador,
o que parece sugerir que, num momento histórico em que saídas revolucionárias não
estão no cardápio e que os únicos ajustes concebíveis são aqueles que propostos dentro
da ordem estabelecida, algo de perturbadoramente próximo entre as regras do capital
levadas às últimas conseqüências e a violência de parentesco fascista, incluídos seus
10
elementos racistas, irracionais e intolerantes. Afinal, contra a exploração grotesca de
Grace, todos nos satisfazemos, no início, com os volteios de seu raciocínio e a execução
da decisão a que chega. É ao fazer o espectador se rejubilar e então se dar conta da
razão de seu júbilo que Dogville consegue seu efeito mais perturbador, ao comunicar-
nos que também nós pactuamos da barbárie.
Temos, assim, um filme no qual a construção cênica, as referências teatrais, bem
como um certo esticamento do roteiro até o ponto do grotesco fazem uma assertiva
sobre as relações sociais sob as regras capitalistas. As relações de trabalho são, por sua
natureza, exploratórias, e esse tipo de relação é, em última instância, acintoso à
dignidade humana. As relações intersubjetivas, por sua vez, são contaminadas pelo
funcionamento econômico da sociedade e passam, cada vez mais, a tornar-se utilitárias.
E dentro desse estado de coisas, as regras do jogo do capital estão tão naturalizadas que
até mesmo as soluções são pensadas em conformidade com essas regras, e não de forma
a rompê-las.
Quando realizei a pesquisa sobre a recepção do filme pela grande mídia,
verifiquei que a crítica passava muito longe da marca pedida pelo filme. A maior parte
desses textos interpreta o filme como reflexão sobre uma natureza humana a-histórica e,
conseqüentemente, cuja característica violenta é atribuída a um traço intrínseco dessa
natureza sem determinações históricas ou sociais. Passam ao largo da questão sistêmica
central para o filme e explicitada nela não apenas pelo desenvolvimento involuntário
das ações das personagens, como também, pela estruturação do próprio filme. Assim, ao
me propor a fazer, nesse trabalho, uma reflexão crítica sobre o filme, foi necessário
apresentar uma leitura sem apoio crítico, na qual o esforço analítico e a originalidade da
leitura são contrabalançadas pelas insuficiências e limitações derivadas da falta de apoio
em uma fortuna crítica enriquecedora.
Para atingir o objetivo de apresentar uma leitura do filme que contemplasse,
também, uma reflexão sobre sua recepção, com vistas a uma análise do “fenômeno” de
Dogville, mais do que apenas sobre o filme Dogville, esse trabalho se divide em duas
partes: a primeira, em que procuro esboçar minha compreensão do filme e de sua
relevância; e a segunda, em que apresento um levantamento bibliográfico das resenhas
críticas publicadas na grande mídia, o qual corrobora, por contraste, minha interpretação
tanto do filme como do “fenômeno”. Tenciono que o esforço descritivo desse trabalho
ilustre os principais pressupostos e pré-concepções que embasam a prática crítica atual.
11
Essas duas partes o complementares na medida em que ambas pretendem
investir e investigar o potencial cognitivo das práticas de leitura. A primeira envereda
pela possibilidade de aprendizado sobre a realidade sócio-histórica que se materializa no
filme, em outras palavras, a primeira parte é uma tentativa de explicitar o que o filme
possibilita que o espectador aprenda. a crítica cultural da grande mídia e um olhar
crítico sobre ela possibilitam que aprendamos quais são e como aparecem as formas de
escamoteamento dessa mesma realidade por meio de procedimentos que neutralizam os
verdadeiros significados e valores que regem a vida social contemporânea. São esses
significados e valores que unem as duas partes desse trabalho, na medida em que,
presentes de forma crítica no filme, são naturalizados pela crítica. O processo de
contrapor filme a crítica revelam um fenômeno no qual a última, em muitos casos,
atrapalha a possibilidade de cognição do primeiro.
Em relação aos conceitos explorados por Jameson e Schwarz citados acima, essa
contraposição de filme e crítica se mostra reveladora, que um filme que aborda de
forma explícita as contradições e perversões sistêmicas da organização social capitalista
contemporânea, portanto um filme que – a contragosto de Jameson – se apresenta como
um filme político é, mesmo assim, interpretado com base em conceitos supostamente
apolíticos. Aqui a proposição de Schwarz nos ajuda a pensar, que mostra o caráter
ideológico subreptício dessa perspectiva que se pretende apolítica.
12
CAPÍTULO 1
Dogville, a armadilha
Dogville começa com uma tomada vertical que enfoca a cidade como um mapa,
sua planta baixa, sua estrutura ou como um tabuleiro de jogo. Esse recurso, a que se
recorrerá muitas vezes ao longo do filme, constrói um ponto de vista a partir do qual
não vemos as personagens individual e individualizadamente, mas como pertencentes a
um todo que as transcende e as sobredetermina. Na primeira cena, esse plano vertical é
segue para um mergulho para dentro da casa dos Edisons. Esse movimento será repetido
inúmeras vezes ao longo do filme. Em outra ocasião, o mergulho dará no tabuleiro de
damas de Bill, expondo a premissa de que o filme é análogo a um jogo; como num jogo,
as peças têm funções determinadas e jogam sob determinadas regras. Essa é a
perspectiva que não pode ser perdida se procurarmos compreender a função da
construção esquemática das personagens e a particularidade histórica desse filme. Um
dos momentos mais marcantes em que esse recurso é utilizado é quando Grace tem sua
jornada de trabalho dobrada e ponteiros são sobrepostos ao plano da cidade, indicando a
passagem e a fundamental contagem do tempo para ela, vista como autômato. Naquele
momento, sem deixar de ser Grace, ela é a figuração do processo de exploração do
trabalhador.
Assim, esse tipo de movimentação de câmera se distingue dos demais não
apenas por questões técnicas mas porque, na construção de Dogville, esses planos criam
um ponto de vista privilegiado e diverso do ponto de vista dramático. Esse último
corresponde à descrição de Lucáks:
No nível mais primitivo do conhecimento, essa independência [das forças motrizes reais
da história em relação à consciência (psicológica) que os homens têm dela] se exprime,
inicialmente, no fato de que os homens vêem nessas potências uma espécie de natureza, de que
percebem nelas e nas suas legítimas relações leis naturais “eternas”. (...) Desse modo, a história é
entregue como tarefa ao pensamento burguês, mas como tarefa insolúvel. Pois ele deve suprimir
completamente o processo histórico e apreender, nas formas de organização do presente, as leis
eternas da natureza que, no passado – por razões “misteriosas” e de uma maneira que é
incompatível com os princípios da ciência racional na procura de leis –, não se estabeleceram por
completo ou de modo algum (sociologia burguesa)
1
Vistas de cima, as personagens podem ser entendidas justamente de uma
perspectiva não-dramática e que não se iguala a suas percepções acerca de si próprias e
1
Georg Lukács, “Consciência de classe”, in História e consciência de classe, trad. de Rodnei Nascimento, o Paulo,
Martins Fontes, 2003, p.135-136.
13
do caminho que trilham. Para esse efeito, contribui a concepção cênica do filme em que,
não havendo uma cidade real e, portanto, divisão entre o público e o privado, a
profundidade de campo ganha sentido ao mostrar um conjunto social como organismo e
não como somatória de individualidades.
O cenário é o elemento visual mais extensivamente notado pela crítica.
Concebido como um palco, traz os sugestivos nomes das ruas de Dogville escritos no
chão, da mesma forma são indicadas as residências de cada uma das famílias, o
cachorro Moses, os arbustos de Ma Ginger etc. A rua principal chama-se “elm street” e
o que poderia ter parecido bucólico é imediatamente relativizado pela narração que
informa que jamais houve tais árvores (olmos) na cidade. Duas referências são bastante
óbvias e diretamente relacionadas à cultura americana: Nightmare on Elm Street, o bem-
sucedido filme de terror que se tornou uma série com muitos episódios, e a rua, em
Dallas, onde o presidente Kennedy foi assassinado em 1963. A tendência de “practical
joker” de LVT é extensamente comentada na mídia e a escolha do nome da rua
principal de Dogville certamente poderia confirmar a descrição. Poderia, também,
indicar que realmente um pesadelo na rua com nome de árvore, embora de outra
ordem. Outra rua atende pelo sugestivo nome de “glunnen street”. A palavra não existe
em inglês, mas o desenvolvimento do roteiro e as similaridades encontráveis entre ele e
a peça A visita da velha senhora, do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt, permitem
supor uma referência à cidade visitada pela velha senhora: Gullen. Nela, uma antiga
moradora volta para buscar vingança, o que consegue realizar por meio de uma oferta
milionária que a dispensa de tomar qualquer outra atitude. O simples vislumbrar do
conforto é o suficiente para que os habitantes levem seu plano a cabo. A comparação
entre Dogville e Gullen mostra duas facetas nefastas do capital: a da extração brutal de
conforto e progresso da força de trabalho e as vilanias que muitos aceitam cometer pela
miragem do conforto e do progresso material.
Além do cenário, a natureza é outro elemento da caracterização espacial de
Dogville que merece uma pequena reflexão. Uma árvore que perde as folhas e floresce
conforme a mudança das estações, a neve que cai antes da hora e a menção constante ao
pomar de Chuck são algumas das poucas referências ao mundo natural. Assim como a
suposta natureza humana das personagens, ela não é mais do que um simulacro. O que
vemos, no entanto, é a afirmação do expansionismo em nome do progresso e da
modernidade, como é o caso da primeira tarefa dada a Grace, aquela por meio da qual
ela consegue começar a trabalhar em Dogville: a de cuidar dos arbustos selvagens para
14
que eles possam se tornar produtivos. Uma das ambigüidades centrais do filme pode ser
resumida em uma leitura alegórica dessa cena. estão, além do expansionismo, a
criação de necessidades e a descaracterização da natureza para fins produtivos. Porém,
quem há de argumentar contra boas técnicas de jardinagem que permitem que um
arbusto abandonado possa novamente ter frutos? É dessa maneira insidiosa que o filme
introduz cada um de seus pontos: inofensivos quando tomados por seu valor de face,
mostram sua essência ao serem exagerados ao ponto do grotesco. No caso da natureza,
ela está em Dogville como caracterização do espaço, mas também como aviso contra a
filiação desavisada a argumentos dessa ordem: as macieiras de Chuck podem ser
forçadas a florescer mais cedo, como ele diz a Grace quando colhe dela o fruto que
deseja. Tudo é falso em Dogville. A natureza não é exceção e, como em todo o resto,
interessa atentar para essas implicações que suas ambigüidades carregam.
A maioria das personagens são mais bem descritas como representantes de
instituições ou idéias. São personagens planas e alegóricas. As exceções são Tom e
Grace, que têm um desenvolvimento próprio, apesar de não serem exatamente bem
desenvolvidas do ponto de vista do drama.
Os Hensons, em especial Mrs. Henson, encarnam a defesa da família e da moral,
com todo o seu tradicional conservadorismo (a moral repressora, a educação
tradicionalista, o individualismo interesseiro, a ética flexível). No caso desse núcleo
familiar, como em outros (especialmente Chuck e Vera), a moral surge em sua função
de sacramentar as relações sociais e as condições existentes e manter os interesses de
uma classe dominante. Mr. Henson, o pai de família, mostra-se cordato e aparentemente
inofensivo. Mas não desperdiça a parte que lhe cabe do butim do corpo de Grace e a
estupra como os demais. Liz é a figura da hipocrisia moralista que oprime seu próprio
desejo e não perde a chance de enxovalhar qualquer demonstração divergente, como é o
caso de seu alinhamento com Vera quando julga Grace pelo intercurso supostamente
consentido com Chuck. Mas são Bill e Mrs. Henson que encarnam os valores mais
danosos. O primeiro comprova que a educação serve também a interesses específicos e
das classes dominantes. Assim se explica, no filme como na vida, o interesse por cursos
que agradem ao mercado. A conseqüência, explicitada até o ponto do grotesco, é
justamente que essa educação deve ser posta a serviço dos que lhe dão sustentação, é a
serviço do pensamento hegemônico que ela se coloca: o fruto do aprendizado de Bill é a
repugnante engenhoca que mantém Grace cativa na cidade. E Mrs. Henson, a mãe de
família, é o grande pilar dessa construção. É ela quem se vale reiteradamente do suposto
15
dever para com a lei para exigir mais trabalho de Grace (por intermédio de Tom) e para
empurrar a decisão sempre em direção à delação. É dela a defesa fervorosa do “we
mind our own business”, para justificar esse empurrão rentável. E, principalmente,
embora pareça que é a teimosia e a birra de Jason que iniciam o momento em que a
cidade “mostra os dentes”, o menino explica que foi Mrs. Henson que garantiu que
quando nos prometem algo, temos o direito de exigir o cumprimento da promessa. Ela
voz ao sentimento de necessária compulsão que nasce do embuste da forma
mercadoria, que se apresenta como uma promessa de felicidade que não pode cumprir.
Aqui, é a pessoa de Grace e o “progresso” que traz a Dogville que prometem algo que
não podem cumprir.
À decisão de que Grace trabalharia em coisas que não eram necessárias e, assim,
ao momento em que “things began looking up with the weeding and the town”, segue-
se uma seqüência de cenas que mostram as melhorias que seus serviços
“desnecessários” trazem para Dogville. Uma observação atenta à relação do narrador
com a cena, no entanto, descortinará uma faceta desse pilar da ideologia hegemônica
neoliberal que apregoa o acesso a produtos e serviços sob a forma de mercadorias como
grande panacéia universal. Isso porque a fina ironia estabelecida nessa seqüência
oferece um ponto de vista que nos permite questionar o alcance dessas melhorias. Em
outras palavras, elas dão figurabilidade a um anseio real e legítimo de justiça social,
mas por intermédio dos simulacros sob os quais ele pode se manifestar numa sociedade
colonizada pela forma mercadoria. O que temos aqui é uma oportunidade de ver
justamente o caráter parcial do que a ideologia dominante vende como horizonte
máximo de desenvolvimento social e, por extensão, humano. Vejamos os progressos”
conquistados em Dogville pela modernidade trazida por Grace:
NARRATOR
As Ben had no home, Grace’s domestic experiments were absolutely things he didn’t
need, but he put up with them anyhow, appearing with astonishing punctuality when the act of
domesticity had been completed, no matter how unpredictable business hours in the freight
industry might otherwise have been.
2
Este é mais um dos inúmeros casos em que a narração fica muito próxima do
discurso indireto livre, reproduzindo a fala recorrente de Ben sobre a indústria dos
transportes, “freight industry”, mas, ao mesmo tempo, produz uma certa ironia na cena.
2
Todas as citações referentes aos diálogos do filme estão disponíveis em Dogville script – dialogliste
<http://www.trust-film.dk/off_vis_download.asp?id=12>, e portanto não serão citadas uma a uma.
16
Essa ironia se dá em dois níveis: um, mais superficial e evidente, é o nível do discurso
que diz que Ben “suportavaos serviços de Grace para em seguida acrescentar que ele
passou a chegar em casa com espantosa pontualidade, o que indicaria algo mais do que
o simples esforço para “suportar” a nova organização da casa. O outro nível, mais
profundo, é aquele em que toda essa mensagem é solapada pela cena: ao terminar de
comer a porção que Grace servira em seu prato, Ben continua a comer na panela, como
se nenhuma “melhoria” tivesse ocorrido. Em outras palavras, ele obtém uma melhoria
cosmética que em nada modifica o fato de que ele continua morando precariamente na
garagem onde guarda seu caminhão. Portanto, a cena eleva a ironia da construção
acerca da recepção do indivíduo às melhorias trazidas pelo trabalho a um outro nível.
Trata-se não somente de admitir o fato pouco questionável de que um pouco de ordem e
higiene propicia maior bem-estar mas, para além desse fato, dar a ver que o acesso a tal
comodidade não altera a posição sistêmica dos indivíduos envolvidos ou agraciados por
tal melhoria.
O mais interessante dessa construção sutil é o efeito sarcástico que ela produz no
espectador que, contemplado pela ironia do narrador, toma-no por fonte confiável e,
como se em grande parte da crítica ao filme, deixa passar a significação contrária da
cena. Em termos formais essa arquitetura é análoga ao movimento da câmera do
geral/histórico/distanciado para o particular/individual/“clássico”, na medida em que os
dois procedimentos apontam para a mesma ambigüidade, ou seja, a da consciência
individual cega para os movimentos da história. Aqui, a ironia no nível pessoal (“no
fundo, Ben gosta do progresso”) tem uma aparência de verdade, justamente pela
construção irônica emprestar ao narrador um tom onisciente, o qual, por sua vez, é
desmentido pela ironia da cena, que remete ao nível histórico (esse “progresso” é falso).
assim, uma nota falsa fundamental que atrapalha a harmonia dessa ode ao
progresso e que se encontrará nas cenas subseqüentes que retratam também
ironicamente esse “progresso em que pouco se “progride”:
NARRATOR
Olivia didn’t need anyone to help June to the toilet while she was at work, as hitherto
they had coped splendidly with Olivia’s excellent diaper arrangement.
Aqui a narração ironiza o fato de que as fraldas de June dificilmente poderiam
ser chamadas de uma forma “excelente” para lidarem com o problema da paralisia. No
entanto, a cena ecoa a discussão sobre “inclusão social” como acesso a serviços. No
17
caso de Olivia, como no de Ben anteriormente citado, essa melhora se apresenta como
ascensão social sob a forma de conforto, dado pelo acesso a bens e serviços. Numa
sociedade para a qual a concepção da luta de classes em termos marxistas, de
proprietários e não-proprietários, está morta e enterrada, em seu lugar, o factóide da
divisão de classes em termos de poder aquisitivo. Neste arcabouço ideológico, para o
qual não está prevista a possibilidade de mudança estrutural, os índices de avanço social
são apreendidos, também, como acesso a bens e serviços que, como se sabe, são
vendidos, no plano das idéias, isto é, da ideologia, como soluções amplas para todos os
problemas e não simplesmente como uma melhoria, ou seja, a solução parcial que na
verdade representam. Nesse sentido a fralda de June constitui um exemplo claro do que
do que se quer explicitar aqui como a função enganosa da mercadoria na sociedade
capitalista.
O comentário de Olivia fornece uma ilustração desta operação de suposta
ascensão social: A cleaning lady for a cleaning lady?” faz referência à concepção da
organização da sociedade de classes na qual se define como classe média a classe
composta por trabalhadores que vendem sua força de trabalho como os demais, mas
que, por terem acesso a bens e serviços inacessíveis aos demais, sentem-se
diferenciados. Ao ter uma empregada para si, Olivia experimentará essa ilusão de
ascensão social (que não atinge fundamentalmente sua realidade de empregada
doméstica). Podemos começar a discernir, aqui, de que maneira as cenas de Ben e
Olivia acima, assim como as que se seguem, se configuram em pequenos episódios nos
quais o legítimo desejo de equanimidade social é figurado por meio de uma ilusão.
NARRATOR
If Jack Mckay had needed a partner for conversation he would surely have gone out
and gotten one for himself in the town. So it was not out of need that he allowed Grace to sit with
him in his dark parlor with the dramatic drapes on one wall for lengthy discussions regarding
the underestimated qualities of the light on the East Coast.
O mesmo processo se aqui: a ironia da narração em discurso indireto livre
dizendo que Jack McKay não “precisava” de alguém com quem conversar, contrastada
com a cena de sua longa exposição, parece explicar toda a cena, mas não atinge o
caráter paliativo da melhora. Jack McKay pode ter encontrado alguém com quem
conversar, mas continua cego. Note-se que o assunto de suas conversas está
inequivocamente relacionado ao sentido que ele perdeu, a visão. Mais uma vez, a
construção do filme aponta para um paralelo entre as ações específicas e localizadas dos
18
personagens e as grandes matrizes do funcionamento da ideologia neoliberal ao
apresentar uma situação que remete ao expediente, cara à ideologia burguesa, de
psicologizar questões objetivas em detrimento, muitas vezes, de aspectos factuais que a
sobredeterminam. Aqui, contra a cegueira, fato biológico dado, se propõe um antídoto
de natureza psicológica, o que se reforçará adiante com a grande conquista pessoal de
Jack McKay: admitir sua própria cegueira e, assim, sentir-se mais feliz.
Note-se que, nessa tônica, houve uma profunda vulgarização da psicanálise, o
que atesta, para citar apenas um exemplo, a crescente indústria da auto-ajuda. A
psicologização indiscriminada oferece à ideologia hegemônica a grande vantagem de
tirar de qualquer debate a discussão acerca das sobredeterminações que lhe são
fundamentais, aí incluídas evidentemente as de ordem histórica, social e econômica, que
são as que mais interessam apagar. As razões da cegueira de Jack McKay não são dadas
no filme, visto que não aponta para qualquer determinação anterior, mas apenas para o
mecanismo de psicologização vulgar. Talvez seja enriquecedor notar que esse
mecanismo atinge inclusive um aspecto da prática séria da psicanálise, na medida em
que ela está, devido às regras do mercado, circunscrita àquela pequena parcela da
população que pode ter acesso a tal serviço, a “classe média” que sofre a pressão do
explorado, mas aspira atingir o patamar do explorador. Espremida dentro da sociedade
de classes, recorre ao formato mercadológico que a psicanálise assume para tentar
resolver, no âmbito pessoal, questões que lhe ultrapassam, para o que a figura do cego
que finge enxergar é significativa.
NARRATOR
As Martha wouldn’t dream of burdening the parish with wear and tear of the pedals
and bellows, while waiting for the new priest to be appointed, she practiced without a note ever
leaving the organ, and was therefore not really in need of anyone to turn her pages.
Martha preocupa-se tão dogmática quanto inutilmente com a manutenção de
uma ordem provisória aa chegada do novo pastor que, como diz Tom, nunca virá. A
figura quase acéfala de Martha, aliada ao fato de se tratar da “casa de Jeremias”, como
se chama a paróquia de Dogville, explicitam de que faceta da religiosidade e da
instituição da Igreja está se tratando aqui. O profeta Jeremias, responsável por prevenir
a todos da destruição iminente de Jerusalém, é instrumento do Deus punitivo do Velho
Testamento que, insatisfeito com a conduta do povo de Israel, destrói a cidade de
Jerusalém como castigo pela desobediência. Além do paralelo evidente com a própria
figura de Grace, a “graça”, esses elementos servem aqui para evidenciar que perspectiva
19
religiosa está em jogo: uma Igreja cuja função é normatizadora, que pressupõe
obediência acrítica a dogmas irracionais, uma instituição comprometida com a
manutenção do status quo na medida em que promove a aceitação “estóica” das agruras
da vida terrena com base em esperanças metafísicas. Em tempos de Bush Jr., em que
uma religiosidade desse tipo adentrou a Casa Branca, em que a versão bíblica substituiu
Darwin no currículo das escolas públicas americanas, essa construção faz uma analogia
com os resultados a que aspiram os que promovem tal tipo de fé.
Ao fazer esse recorte para representar o mundo metafísico, mais uma vez a obra
dá a ver o cater falacioso das promessas de redenção de uma instituição importante do
mundo ocidental contemporâneo. É importante lembrar que, ao assumir esse viés,
optou-se por não pôr na cena outras ramificações da Igreja (como a Teologia da
Libertação, comunidades eclesiais de base e outras) que têm uma perspectiva social
presente e importante embasando sua atividade mística. Ao fazê-lo, a obra e no centro
da discussão a Igreja “oficial” vale lembrar que o papa atual, que substituiu João
Paulo II, tem em seu currículo justamente a perseguição e punição de seguidores da
Teologia da Libertação.
A “melhoria” a que Martha tem acesso consiste em que, apesar de seu órgão não
produzir qualquer som, Grace vire as páginas da partitura para que ela possa praticar.
Ou seja, Grace permite que ela exercite uma habilidade ritualística que, entretanto, não
tem existência real numa instituição de tal forma cheia de incitação à obedncia e vazia
de significados profundos, como a prática de Martha.
Dessa forma, temos outra faceta da figuração das ilusões representadas nas
diversas concepções de progresso”, a da possibilidade da redenção metafísica,
colocada aqui como nada mais que um grande simulacro. Aqui, mesmo a aparência de
melhoria é frágil.
NARRATOR
And God knows that Mr. and Mrs Henson’s son did not need any help with his books,
and that the family had taken Grace in for her own sake.
Já nessa cena, entra em questão uma das idéias mais caras às sociedades laicas: a
de que a educação é o grande trampolim para a justiça social. Nessa cena é noite, o
que cutuca com um importante dado de realidade todo esse progresso edificante: é à
custa da força de trabalho de alguém que ele pode se processar, pois, enquanto para Bill
está sendo oferecida a grande oportunidade do conhecimento, para Grace trata-se de
20
mais uma jornada de trabalho depois de um dia extenuante. A ironia da cena começa a
se delinear aí, pois, claramente precisando muito de ajuda, os Hensons dizem que fazem
isso por ela, que poderia tranqüilamente ir descansar depois de um dia inteiro de
trabalho. O sentido último da ironia só se completa realmente, no entanto, com a
confecção da engenhoca para mantê-la presa, grande fruto da educação que ela dá a Bill
e que fecha este ciclo.
No que diz respeito ao Henson em questão, Bill, cuja expressão sofredora
demonstra claramente sua dificuldade de entendimento e, assim, quão “desnecessária” é
a ajuda de Grace, a ironia da cena se move em pelo menos dois sentidos. Em primeiro
lugar, a ajuda com os estudos o o transforma cognitivamente, ou seja, Bill continua
tendo uma inteligência medíocre e, nesse sentido, há novamente uma ironia feita à nota
falsa da apologia da modernização como panacéia universal, na esteira das anteriores.
Em segundo lugar, a capacidade técnica que essa modernização propicia tem um fim
específico, de reprodução e manutenção do sistema que será dado posteriormente pela
cena em que ele constrói o “mecanismo” usado para manter Grace cativa em Dogville.
Como é o caso das demais “melhorias”, essa também traz benefícios
inquestionáveis, como será inquestionável que um indivíduo que tem acesso à escola
terá mais chances de ser “incluído” do que outro indiduo que o teve a mesma
oportunidade. Novamente, no entanto, que se ressaltar o caráter parcial dessa
conquista, quando o ponto máximo a que ela leva é a assimilação dentro de um sistema
de desigualdades e uma ascensão monetária que o chega a ser sistêmica, o que na
obra é apontado de maneira cruel pela forma como Bill contribui para a manutenção da
ordem em Dogville.
Aqui, portanto, toca-se na questão fundamental da educação segundo as regras
do jogo contemporâneo, dentro das quais ela serve para, em série, formar tecnocratas
cujos conhecimentos específicos não cheguem a abranger o significado e as
conseqüências do seu trabalho. Trata-se aqui, muito contrariamente a todo pensamento
acerca do caráter emancipatório da educação, de uma descrição do funcionamento de
uma instituição cuja principal tarefa é produzir alienação sob a forma de diferentes
especialidades.
Note-se, ainda, que o que dizem os Hensons (via discurso indireto livre), que a
família aceitara Grace para o bem dela (“for her own sake”), ecoa na fala de Tom Sr.
quando de seu aprisionamento: “Don’t think of this as punishment. Not at all! Bill, he
made the chain long enough so that you can sleep in your bed”. Em suma, o bem do
21
trabalhador resume-se às condições mínimas necessárias para a manutenção da oferta de
força de trabalho, o que nos leva ao próximo “progresso”.
NARRATOR
And although Liz’s hands had improved through Grace’s good counsel, Thomas Edison
was a doctor and of indisputable health and he did not need care, or help with the pills from the
medicine closet with its many secrets. Actually Chuck was the only one “not yet hooked,” as
Tom put it.
Fechando esse bloco de “progressos”, a relação entre os dois veis de ironia
continua. Em primeiro lugar, aquela ironia próxima da consciência das personagens,
satirizando a teimosia do médico, por um lado, e seu apego à nova enfermeira, por
outro. A menção às mãos de Liz entram, nesse vel, como contraponto que demonstra
as qualidades inegáveis de Grace em relação ao cuidado com a saúde. Apesar de
retomar a conversa em que ela recomenda aloé para as mãos da Henson, há um fato que
parece contribuir de forma bem mais objetiva para o aspecto da pele de suas mãos: ela
não precisa fazer o trabalho que anteriormente lhe competia. Retomemos brevemente
o diálogo:
GRACE(cont’d)
You know, if you put some aloe on those hands of yours they’ll be better by the
morning.
LIZ
It’s the wood shavings. I really do hate them. But I do believe I’ll take your advice.
Your hands are surely the most alabaster hands I’ve ever seen.
A narração produz um efeito irônico quando contrastada com a cena na qual o
médico aceita de bom grado que Grace cuide de seus remédios. Se, por um lado,
ironiza-se o fato de que ele aprecia a atenção e o cuidado que lhe são dispensados, por
outro, a constante conclusão de que ele não sofre de nenhum mal, aliado à experiência
questionável de Grace, que se limita à cosmética mais superficial, dão a essa melhoria o
mesmo caráter falseado dos demais.
Tanto a indústria farmacêutica como a cosmética (que muitas vezes se
confundem) são, em grande medida, instâncias da constante criação de necessidades sob
o capital. A ilusão de saúde e, principalmente, de boa aparência são vendidas num
pacote cujo embrulho científico ainda tem como bônus a vantagem de desonerar do
sistema de exploração do trabalhador a responsabilidade por grande parte dos males
causados a sua integridade física e psicológica.
22
Grande parte das afecções que nos acometem atualmente são oriundas de
características intrínsecas à organização social, entre as quais podemos destacar pelo
menos três grandes fontes de esgotamento físico: cargas de trabalho abusivas ou
estressantes, alimentação inadequada e poluição, todas reduzíveis às necessidades de
reprodutibilidade do capital. Da mesma forma, a opção por alimentos “orgânicos” é a
resposta do mercado para uma demanda por alimentos saudáveis. Custando muitas
vezes mais do que seus pares “comuns”, ou seja, cultivados à base de agrotóxicos
nocivos à saúde, eles parecem querer nos dizer que o mercado realmente tem a solução
para todos os males, desde, evidentemente, que o consumidor possa pagar por isso.
Finalmente, estão epidemias, transformações climáticas e desastres naturais a dar seu
depoimento sobre os efeitos da atividade industrial predatória de nossos tempos.
Excetuando-se organizações específicas, como as ambientalistas, por exemplo, pouco se
conecta as afecções de saúde com suas causas factuais, de ordem econômica e social.
Mais uma vez, apagam-se as sobredeterminações e ficamos apenas com disfunções
fisiológicas, para as quais a indústria farmacêutica está ávida para fornecer soluções
sem mencionar as práticas de subvenção de pesquisas para que seus resultados sejam
favoráveis aos interesses dos grandes laboratórios etc. Assim, não se apaga a razão
última de muitas enfermidades como ainda se produz renda com a produção de
medicamentos e sua comercialização.
Estas melhorias parciais são parte do núcleo essencial do filme e coadunam com
seu posicionamento, que é extremamente crítico sem, no entanto, nem produzir uma
radicalização formal absoluta nem se constituir como porta-voz de uma crítica
completamente explícita. A avaliação do caráter parcial dessas melhorias depende de
uma interpretação mais ampla do que a das personagens, e mais abrangente, também,
que a do próprio narrador que, apesar de irônico, não atinge um nível muito superior ao
delas.
Como se percebe nos excertos citados, o narrador tem um papel extremamente
ambíguo. Ele está acima das personagens e exibe certa onisciência. Sua ironia sugere
que ele tem um conhecimento e um senso crítico dos quais elas não compartilham. No
entanto, o nível a que o filme como um todo atinge lhe é também intangível.
As personagens de Dogville não atendem às necessidades dramáticas de
configuração de uma psique bem delineada, motivações individuais etc. Elas são mais
bem compreendidas usando-se o referencial do teatro épico do que do cinema clássico.
A descrição de Anatol Rosenfeld explica que o teatro épico não está interessado em
23
apresentar apenas as relações intersubjetivas, “mas também as determinantes sociais
dessas relações. Segundo a concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como
o conjunto de todas as relações sociais e diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a
única capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria
para uma ampla concepção do mundo. O homem concreto pode ser compreendido
com base nos processos dentro e através dos quais existe”.
3
Assim, as personagens de
Trier fazem sentido se entendidas como partes no conjunto das relações sociais.
Nesse conjunto de relações é que, para além de uma construção dramática e coerente de
cada uma das personagens individualmente, produz-se o sentido maior do filme.
Trata-se de como elas encenam alguns dos preceitos fundamentais do
capitalismo e de como legitimam esses preceitos sob a ótica de um conservadorismo
cujos valores fundamentais são irmãos dos valores da retórica fascista: a honradez, a
moral, a humildade ou a arrogância. Toda a primeira parte do filme em que Grace
oferece sua ajuda, é aceita e finalmente começa a trabalhar em Dogville – é a encenação
da naturalização do processo de troca e venda da força de trabalho: a criação de
necessidades, sua característica expansionista, as falsas promessas que a forma
mercadoria enseja e a compulsão.
No caso de Martha, ela cuida da “mission house” que se chama “Casa de
Jeremias”. Em primeiro lugar, interessa ter em mente que as missões são parte da
fundação dos Estados Unidos e a alusão a elas está relacionada à manutenção da moral
puritana e suas inevitáveis desvirtuações. É importante lembrar que as reuniões que
decidem o destino de Grace ocorrem na “mission house”, e é a Martha que cabe tocar o
sino no caso de a polícia ser avistada, bem como quem passa a tocar o sino a cada meia
hora para que Grace cumpra sua muitíssimo atarefada jornada de trabalho, o que produz
uma relação direta entre a instituição religiosa e a organização da vida social. Ao se
estabelecerem essas relações, fica também armada a teia para relações mais sutis, como
a condenação moral por parte das mulheres da suposta relação consensual com Chuck e
do flerte com Tom e o reverso da moeda: a aceitação coletiva de seu estupro reiterado.
Empenhada na defesa de sua família contra o que ela acredita ser o apenas
uma atitude condenável, mas também uma invasão ao espaço mais preservado da
intimidade familiar, Vera o pontapé inicial na perseguição constante que se tornará a
vida de Grace em Dogville. Como se verificará mais adiante, o fato de Vera deixar de
3
Anatol Rosenfeld, O teatro épico, São Paulo, Perspectiva, 2002, p.147.
24
confiar os filhos aos cuidados de Grace não significará que ela deixará de prestar
serviços para a família de Chuck e Vera. Mas significará que o verniz da amizade
(Grace era “friend for Vera” até há pouco) já não será mais necessário para referendar a
exploração de seu trabalho. Sua desqualificação em termos morais começa a ganhar
força no trecho seguinte:
GRACE
I’ve been tired.
VERA
Well, maybe you should see about sleeping at night – like most folks do.
LIZ
Sleeping at night?
VERA
Martha saw a certain Tom Edison Jr. sneak out of her shed early this morning.
LIZ
Grace, you won’t hear anything from me about whipping that idiot kid. And I’m also
grateful to you for turning Tom’s wandering eye away from my skirts. But on the other hand. I’d
expected more from you than that. But if that’s the kind of thing you’re after, then I’m sure, with
your innocent looks, you will do just fine in a place like Dogville.
GRACE
It’s not what I’m after, Liz.
LIZ
Oh, no? We all saw you take his hand to the picnic. Maybe that wasn’t flirting?
GRACE
Yes. Maybe I was flirting.
No final desse processo, Grace passa a ser estuprada corriqueiramente por todos
os homens da cidade. Aqui, a descrição fria que o narrador faz da hipocrisia da
sociedade de gente de bem de Dogville contrasta com a repreensão veemente às mãos
dadas no piquenique:
Most townspeople of the male sex now visited Grace at night to fulfill their sexual
needs.
It had occurred to the children to give the bell an extra ring every time such an act had
been consummated, much to Martha’s confusion.
But since the chain had been attached things had become easier for everyone: the
harassments in bed did not have to be kept so secret anymore, because they couldn’t really be
compared to a sexual act. They were embarrassing the way it is when a hillbilly has his way with
a cow, but no more than that.
Segundo o narrador, portanto, apesar de algo constrangedor, tais atos não eram
fonte de grande inquietação moral, pois eram semelhantes aos dos caipiras que têm
relações sexuais com animais. Aqui a seletividade da moral fica evidente: ela deixa de
ter validade quando o sujeito em questão perde seu estatuto de ser humano, no caso,
pela perda da contrapartida na relação de venda da força de trabalho, simbolizada pelas
correntes que a escravizam. Em situação análoga à escravidão, Grace perde sua
25
condição de ser humano e essa perda não se sustenta com argumentos de base racial ou
histórica. A perversidade é explicitada ainda mais pelas crianças, que tocam justamente
o sino de Martha quando cada uma dessas “visitas” acontece.
A alusão a Jeremias, o profeta que anunciou que a cidade de Jerusalém seria
destruída, inclui na imaginário do filme a justiça violenta do Velho Testamento.
O casal formado por Chuck e Vera põe em xeque as falácias da vida simples e
da cultura clássica. Primeiramente, a crença no mito da cidade pequena interiorana
como reduto da pureza e dos bons sentimentos dos cidadãos não deturpados pela cidade
grande é uma idéia que Grace ainda mantém e que descobre que Chuck um dia nutriu.
Esse é mais um escapismo a que o filme nos recusa a possibilidade de recorrer, já que
demonstra que, uma vez estabelecidas as regras do capital, suas deformações também se
impõem e, com elas, a aberração fascistóide com que Dogville se conclui. E a questão
da cultura clássica, presente na caracterização de Vera (os nomes das crianças, seu
desejo de assistir a uma palestra e as aulas que ela mesma e, posteriormente, Grace
ministram aos filhos) é como as demais, apresentada para ser questionada em seguida.
Falta, apenas, a defesa. Faz-nos lembrar que os oficiais nazistas eram leitores
sofisticados e que o nazismo tinha a arte clássica como ideal.
No caso, o julgamento em que Vera quebra os bonequinhos de Grace, é
estruturado e realizado por ela nos moldes dos julgamentos supostamente democráticos,
com testemunhas, vítima, acusação e veredicto:
GRACE
What’s the matter?
VERA
Nothing.
GRACE
Are the police on Canyon Road again?
VERA
No. This is just girl talk. It’s funny you should mention Canyon road though…right,
Martha? She was just there this morning.
MARTHA
Yeah. On the way home from church.
VERA
You see so much more on foot. You know, when you’re in a car you never notice the
apple orchard, for example. You can only see it from one spot on Canyon Road. Do you know
that spot, Martha?
MARTHA
Yes I do.
VERA
And did you stop there to enjoy the view this morning? It’s harvest time, you know, in
the orchard after all. The old masters always loved a good harvest theme.
Redolent, with fertility, not to mention sensibility or even eroticism. But how silly of
me to ask you that, Martha, because you already said you did. She saw you, Grace. She saw you.
26
Behind this pile of broken limbs…with Chuck…He said it wasn’t the first time you’d made
advances towards him. He never told me before because he wanted to spare my feelings. He’s a
withdrawn and primitive man, but at heart he’s loyal and he is good. What do you want with my
husband?
GRACE
I don’t want anything with your husband or anybody.
LIZ
What about Tom and the handholding at the picnic?
GRACE
That’s different. I like Tom.
VERA
But you don’t like Chuck. Liz and Martha are behind me, when I tell you that I’m going
to have to teach you a lesson.
VERA(cont’d)
I believe in education.
GRACE
Vera!
VERA(cont’d)
No. I believe smashing them is less a crime than making them.
GRACE
Vera, remember how I taught your children…
VERA
What?
GRACE
Remember how happy you were, when I...
VERA
When you what?
GRACE
When I taught your children about the doctrine of stoicism and they finally understood
it.
VERA
All right, for that, I’m gonna be lenient. I’m going to break two of your figurines first,
and if you can demonstrate your knowledge of the doctrine of stoicism by holding back your
tears, I’ll stop. Have you got that.
NARRATOR
In her lifetime Grace had had considerable practice at constraining her emotions, and
would never have believed it would be hard to control them now.
But as the porcelain pulverized on the floor it was as if it were human tissue
disintegrating. The figurines were the offspring of the meeting between the township and her.
They were the proof that in spite of everything, her suffering had created something of value.
Grace could no longer cope. For the first time since her childhood, she wept.
Nesta cena, além da defesa dos valores burgueses fundamentais, no topo dos
quais a família e a decência”, um componente do maior interesse que chama nossa
atenção e que é a organização da cena de forma ritualística análoga aos procedimentos
da lei: há uma acusação, uma testemunha, um julgamento com júri, uma sentença de
culpa e sua execução. A apropriação do aparato legal, neste momento em que a luta de
classes se estabelece em Dogville, forma visível a um sentimento conhecido das
classes trabalhadoras, a saber, que a Lei está a serviço da propriedade privada e da
classe social que a detém. No contexto dos anos 30 nos Estados Unidos será suficiente
ter em mente o caso de Sacco e Vanzetti que, dentro de apenas uma década de sua
27
ocorrência, tornou-se um dos casos mais famosos da história jurídica de todos os
tempos. Vale lembrar ainda, que é a Lei que, a serviço de seus supostamente maiores
antípodas, os gângsteres, permitiu o início da sucessão de estupros pelos quais Grace é
agora julgada. Além do mais, o cachorro Moses – cujo nome é uma alusão inescapável a
Moisés, a quem foram confiadas as tábuas da lei pertence a ninguém menos do que à
família de Chuck e Vera.
A intervenção do narrador coincide com o final da cena e a fecha de modo a
esclarecer que naquele momento acabava-se por completo toda a ilusão contida na
suposta relação afetiva estabelecida entre Grace e os habitantes de Dogville,
corporificada nos bonequinhos de porcelana. Entretanto, aqui também, em um certo
sentido, um descortinamento, pois, se a própria coleção dos bonequinhos apontava para
o tipo de relação que se havia estabelecido, mediada pela forma mercadoria, sua
destruição indica o rompimento desse formato. Infelizmente, provavelmente devido às
possibilidades históricas que limitam atualmente os horizontes de um pensamento
utópico, a única saída possível para a quebra dessa relação é a da violência. Sob essa
perspectiva, o final do filme pode ser compreendido como a decorrência última dessa
quebra que, na cena citada, aparece metaforicamente de forma tão visual.
Cada uma das idéias ou das instituições representadas pelas personagens de
Dogville se relaciona com as demais. É o caso da moral puritana presente na mission
house” de Vera, na tranqüilidade da acumulação de Mrs. Henson e no pseudotribunal de
Vera. É o caso, também, do conceito de educação praticado por Vera e cujos resultados
vemos na trajetória de Bill. Assim se compõe o arcabouço ideológico dos habitantes de
Dogville e aquele tecido social que o teatro de Brecht se preocupava em figurar e que o
cinema clássico ignora sob a mão de aço do foco no indivíduo.
Mas é Tom, de certo modo, que é o personagem principal de Dogville. Embora
não seja o foco da ação num sentido estrito, é responsável por virtualmente toda ela. É
dele que parte a iniciativa de abrigar Grace, de consultar os habitantes sobre isso, de
usá-la como “ilustração” para seus fins educativos e sua própria pesquisa social, de
organizar sua estada na cidade, de sugerir que ofereça trabalho em troca de proteção,
então que trabalhe mais por menos, que tente fugir e que seja trazida de volta e,
finalmente, a iniciativa de denunciá-la, precipitando o desfecho. A atuação de Tom é
insidiosa e opina tanto sobre o tipo de iniciativa que se pode esperar da intelectualidade
sob regras como as de Dogville como sobre uma tradição de acomodação e de alianças
contraditórias.
28
Para Fredric Jameson, o capitalismo em seu estado atual tem uma lógica em que
o cultural se move em direção ao econômico por sua existência dependente de uma
estrutura industrial e de políticas protecionistas –, bem como o econômico se move em
direção ao cultural especialmente no que o autor chama de “consumo estético”, o
apelo a esse tipo de categoria para justificar o consumo de determinado tipo ou marca
de bens.
4
Nesse momento em que mercado e produção cultural se encontram tão
profundamente imbricados, é interessante ter essa perspectiva em mente para avaliar a
constituição da personagem de Tom: autodeclarado escritor, portanto representante da
cultura, ele não azeita as relações de exploração em Dogville, como é o principal
agente para sua instituição e consolidação. Tom pleiteia que a cidade a acolha, concebe
a idéia do trabalho braçal como forma de angariar simpatias, não permite que Grace
deixe a cidade, propõe o aumento de suas horas de trabalho para apaziguar as
consciências delatoras (especialmente de Mrs. Henson), planeja e delata sua fuga e,
finalmente, telefona para os gangsters.
Sua construção, mais aprofundada que a dos demais, indica desde o início que
ele tem uma ambigüidade profunda e que seu caráter é falseado. Quando ouve os sons
dos tiros, Tom decide ficar sentado no banco um pouco mais, para se dedicar ao
sentimento causado pelo ruído. Mostra a face fabricada de seus sentimentos, o que fica
registrado para análise futura, quando, ao se relacionar com Grace, esfumaçam-se as
fronteiras entre o sentimento e o utilitarismo de sua pesquisa social.
É Tom, também, que introduz um tema fundamental no filme: a Educação. Toda
a ação de Dogville parte nada mais nada menos do que do intuito educador do auto-
intitulado intelectual da cidade. É parte de seu propósito de ilustrar um tema,
proporcionar uma experiência real e elucidativa que se materializa na recepção de
Grace. Para Adorno, uma educação verdadeiramente emancipatória seria aquela que
garantisse que os horrores do nazismo não se repetissem.
5
Situado nos anos 30, mas
com ressonâncias indiscutíveis no tempo presente, Dogville não apenas reflete sobre os
traços que possibilitaram o nazismo, como sua persistência atual. Em função das regras
estabelecidas em Dogville das quais Tom é entusiasta, não é demais reiterar, tendo
sido dele a idéia de promover mais bem-estar com uma segunda fonte de força de
trabalho – o filme de Lars von Trier poderia se chamar a “pedagogia da barbárie”, dado
4
Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, trad. de Maria Elisa Cevasco,
Petrópolis, Vozes, 2002.
5
Theodor W. Adorno, “Educação após Auschwitz”, in Educação e emancipação, trad. e introd. de
Wolfgang Leo Maar, São Paulo, Paz e Terra, 2003, p.119-138.
29
o encaminhamento do aprendizado por que passam as personagens. Todo o propósito
educativo de Tom, baseado no empirismo de dar a ver por ilustrações reais, é devastado
justamente pela aceitação das “coisas como elas são”, em outras palavras, por uma
utopia pedagógica que não contempla uma utopia revolucionária nos outros aspectos da
vida social.
Se a personagem de Grace pudesse ser descrita por uma imagem, ela seria algo
como um poliedro. Ela é o reagente químico de uma experiência social de cunho
“educativo”, desempenha os dois lados da moeda do progresso capitalista (tanto o do
trabalhador explorado em nome desse progresso como o do veículo de melhorias
sociais), ela alegoriza a ideologia do “Bem” dos bons sentimentos humanos que
encobre o “Mal”, a violência fascista que corrobora justamente esse discurso.
Grace é a materialização do intento educador de Tom. Pelo menos uma das
características da sua construção parece retirada diretamente de “Educação após
Auschwitz”. Trata-se do diálogo em que, convencida por seu pai, aplica aos habitantes
de Dogville o castigo que julga que eles merecem. A aplicação de um castigo,
autoritário, sob o discurso de fazer um mundo melhor nada mais é do que por a nu a
retórica nazifascista. O próprio diálogo entre pai e filha ecoa ao contrário a pregação do
filósofo. Comparemos o que diz Adorno e o diálogo de Grace e seu pai:
Lembro que durante o processo sobre Auschwitz, em um de seus acessos, o terrível
Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à disciplina (...) Essa idéia
educacional da severidade, em que irrefletidametne muitos podem até acreditar, é totalmente
equivocada. A idéia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor
de muito se converteu em fachada de um masoquismo que como mostrou a psicologia se
identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de “ser duro” de uma tal
educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a
dor do outro e dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo
também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir.
6
GRACE
So what is it? What is it, the thing…the thing that you don’t like about me?
THE BIG MAN
It was a word you used that provoked me. You called me arrogant.
GRACE
To plunder, as it were, a God given right. I’d call that arrogant, daddy.
THE BIG MAN
But that is exactly what I don’t like about you. It is you that is arrogant!
GRACE
That’s what you came here say? I’m not the one passing judgment, Daddy. You are.
THE BIG MAN
You do not pass judgment, because you sympathize with them. A deprived childhood
and a homicide really isn’t necessarily a homicide, right? The only thing you can blame is
6
Ibidem, p.128-129.
30
circumstances. Rapists and murderers may be the victims, according to you. But I, I call them
dogs, and if they’re lapping up their own vomit the only way to stop them is with the lash.
GRACE
But dogs only obey their own nature. So why shouldn’t we forgive them?
THE BIG MAN
Dogs can be taught many useful things, but not if we forgive them every time they obey
their own nature.
GRACE
So I’m arrogant. I’m arrogant because I forgive people?
THE BIG MAN
My God. Can’t you see how condescending you are when you say that? You have this
preconceived notion that nobody, listen, that nobody can’t possibly attain the same high ethical
standards as you, so you exonerate them. I can not think of anything more arrogant than that.
You, my child…my dear child you forgive others with excuses that you would never in the
world permit for yourself.
GRACE
Why shouldn’t I be merciful? Why?
THE BIG MAN
No no no. You should be merciful, when there is time to be merciful. But you must
maintain your own standard. You owe them that. You owe them that. The penalty you deserve
for your transgressions, they deserve for their transgressions.
GRACE
They are human beings.
THE BIG MAN
No no no. Does every human being need to be accountable for their action. Of course
they do. But you don’t even give them that chance. And that is extremely arrogant. I love you. I
love you. I love you to death. But you are the most arrogant person I’ve ever met. And you call
me arrogant! I have no more to say.
Dois elementos saltam aos olhos no diálogo. Em primeiro lugar, novamente, a
perspectiva pedagógica. Trata-se de “ensinar aos cães” como se comportar. Tom
pretendeu fazê-lo por meio de ilustrações, Grace, de abnegação, e o gangster finalmente
a convence de que a força é o melhor método. Se esse aspecto já notícia de um viés
autoritário, o argumento é, ainda, exemplo acabado da argumentação de Adorno sobre o
“caráter manipulador” ao que o excerto citado se refere.
Além de notarmos qual das perspectivas prevalece, é também interessante notar
que elas têm tanto em comum quanto de divergente, pois todas estão dispostas a assumir
o papel de ensinar ao povo, aos outros ou aos es algo que julga essencial e que lhes
escapa. A distância e a profunda não-identificação com as pessoas que constituem essa
massa é evidente. Aqui também, a pedagogia da barbárie de Dogville parece encontrar
teorização em Adorno:
Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo
como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição
de tratar outros como sendo uma massa amorfa.
7
7
Ibidem, p.129.
31
Esse momento final do filme, em que Grace muda de idéia e resolve pôr em
prática seu ideal de melhorar o mundo seguindo as sugestões de seu pai, se relaciona
com os demais justamente pela perspectiva pedagógica e pelo distanciamento entre o
educador e seus educandos.
No entanto, esse não é seu único traço. Grace desempenha, ao longo do filme, o
papel daquela que é vitimizada. Vale atentar, no entanto, para as características de sua
vitimização. Embora se argumente muito que a natureza humana se revelará em
todas as oportunidades, no caso de Dogville, esse jogo, esse estudo em um microcosmo
no qual as personagens são tão descarnadas quanto as paredes da cidade, salta aos olhos
as regras sob as quais esse processo se dá. Possivelmente haveria outros tipos de
crueldade e subjugação em um mundo igualitário, mas essa é uma informação de que
ainda não dispomos.
A crueldade de Dogville se dá sob as regras do jogo que são as regras das
sociedades capitalistas. Tom propõe a Grace que trabalhe em troca de abrigo, essa
relação de troca é característica desse modo de produção e produz a pergunta: “o que
aconteceria se, em uma cidade, uma pessoa dispusesse apenas de sua força de trabalho
para convencer a todos de que ela merece ficar entre eles?” O filme responde sem
titubear: “ela seria explorada ferozmente”, mas surpreende ao final, ao acrescentar que,
tendo a oportunidade de decidir como transformar aquele mundo, opta por fazê-lo de
uma forma que não rompe com os moldes da ideologia que permitiram a violência
inicial. Citando e subvertendo Brecht, conclui: “se tivesse a chance de se vingar, ela o
faria com a mesma ferocidade”.
A vingança é o tema da “Jenny-Pirata”, e na cançãopassagens que remetem a
Dogville diretamente:
JENNY-PIRATA
1
Meus senhores, hoje eu lavo copos
E faço a cama de qualquer freguês,
Aceitando gorjetas, no papel
De pobre empregada num sujo hotel,
E ninguém me pergunta: quem és?
Mas um dia ouvem-se gritos no porto
E perguntam: que sons infernais?
Ao me verem sorrindo sobre os copos:
Por que raios sorri sempre mais?
E a nau de oito velas,
Com cinqüenta canhões,
Ancora no cais.
32
2
E dizem: lava seus copos, menina!
E dão-me algum vintém.
A grana é tomada, a cama feita ligeiro,
Mas ninguém deita mais no travesseiro,
E quem sou, não sabe ninguém!
Mas um dia ouvem-se gritos no porto
E perguntam: que sons infernais?
Ao me verem de pé atrás das janelas
Dizem: que sorriso de azar!
E a nau de oito velas,
Com cinqüenta canhões,
Bombardeia o lugar.
3
Meus senhores, seu riso logo passa.
Estes muros estão por cair,
A cidade está por ser devastada,
Só um sujo hotel sobra no nada:
E quem vivo consegue sair?
Nesta noite, ouvem-se gritos em torno
E dizem: por que o hotel se salvou?
Quando fecho a porta pela última vez,
Perguntam: é ela quem lá morou?
E a nau de oito velas,
Com cinqüenta canhões,
Embandeira o convés.
4
Desembarcam cem homens ao meio-dia,
E nas sombras vão se envolver
E prendem um em cada lugar,
Para eu os presos julgar,
Perguntando: quem deve morrer?
E reina silêncio total no porto
Quando indagam: quem deve ser morto?
Todos! – falo sem pestanejar.
E ao tombar a cabeça, digo: – oba!
E a nau de oito velas,
Com cinqüenta canhões,
Some comigo no mar.
8
Também Grace arruma a cama de June e tem o pressentimento de que ninguém
voltara a dormir ali. Também a ela ninguém pergunta: “quem és? Aqui, uma
similaridade perversa: às classes exploradas não interessa perguntar a procedência.
Como mão-de-obra, ou seja, força de trabalho, são vistas de forma indiferenciada pelo
explorador e, nas classes dominantes, conhecidas apenas como “o povo”, “a massa” tão
disforme quanto uniforme.
8
Bertolt Brecht, A ópera dos três vinténs, in Teatro Completo, 3.ed., São Paulo, Paz e Terra, 2004, v.3,
p.35-36.
33
Também o julgamento que Grace faz da cidade se assemelha ao da canção. Opta
pela morte de todos sem exceção. Mas ele também reflete o julgamento pelo qual ela
própria passou sob o comando de Vera e as demais.
No entanto, a vingança de Grace é também uma “subversão” em relação à da
Jenny de Brecht, o que é uma conseqüência dos tempos: enquanto Brecht escrevia em
um momento histórico e em um país que experimentavam a radicalização e a viveriam
até suas últimas conseqüências, Lars Von Trier produz num momento e para um público
para os quais essa experiência foi superada. Produz, ainda, dentro de um mecanismo
industrial de financiamento e produção que faz com que sua obra tenha necessariamente
um horizonte comercial. Assim, se a vingança da canção da Ópera dos Três Vinténs
pressupunha uma revolução social, no filme ela padece da falta dessa perspectiva e se
torna a adaptação possível da esperança brechtiana: a vingança de Grace prova que, na
falta do socialismo, venceu a barbárie, e que o melhor da arte engajada talvez seja
apenas identificar esse estado atual.
A vingança fascista de Grace atualiza a “Jenny-Pirata” de Brecht num certo, e
desiludido, sentido. Num mundo em que a utopia revolucionária o é uma
possibilidade real, especialmente porque o intuito de transformar as relações
econômicas já não está em pauta, sobra apenas a lógica e a retórica do capital, dentro da
qual o horror da violência se impõe. A possibilidade revolucionária foi varrida do
horizonte nos anos 30 e é essa bomba-relógio que caracteriza o nosso tempo presente. A
sua transformação final é o coração do filme: podendo ser compreendida dentro de
uma forma épica, essa personagem explicita como a falta de perspectiva revolucionária
pode resultar em violência. A regra número um, por meio da qual Marx se distingue
daqueles que pensavam a economia antes dele e de muitos que o precederam, é sua
teoria de valor. Para ele, a simples troca de mercadorias por um equivalente universal
não é capaz de criar valor, que pode ser criado quando exploração do trabalho
humano. A exploração é, portanto, parte constitutiva e não efeito colateral do sistema
capitalista. Sendo a ação de Dogville um estudo da educação sob essas regras, a
conclusão a que se chega é a de que, impossibilitados de mexer nas regras que impõem
a barbaridade, as outras variáveis que podem ser alteradas são, em última análise, ou
inócuas – como o falso progresso da cidade ou protofascistas. Não se podendo
eliminar a regra que impõe a exploração, o que resta a eliminar são as pessoas que a
praticam. Daí o desfecho fascista cuja aprovação por grande parte da crítica e dos
espectadores oferece abundante tema para reflexão.
34
Tendo visto como a questão pedagógica está na fundação de Dogville, vemos
também que, profundamente imbricada com o funcionamento social que se estabelece
no modo de produção capitalista, mesmo suas melhores intenções são natimortas.
***
Dogville fala sobre a veia fascista que sobrevive no seio do mundo capitalista
contemporâneo e expõe algumas de suas relações íntimas. Entretanto, apesar de revelar
um ponto de vista próximo ao de posições históricas da esquerda, não as coloca como
um jogador no seu esquema. Para falar dessa veia fascista no mundo atual, Dogville
trabalha com construções ideológicas próprias do pensamento conservador. O filme
prescinde de configurações “clássicas” e o resultado é que mostra os efeitos de sua
ausência. Marx descreve uma classe como um grupo de pessoas que se colocam em
posição hostil a um segundo grupo ou cuja unidade deriva de sua posição na hierarquia
econômica:
Na medida em que milhões de famílias vivem sob condições econômicas de
existência que separam seu modo de vida, seus interesses e sua cultura daqueles das
outras classes e as colocam em oposição hostil a essas outras classes, elas formam uma
classe. Na medida em que há apenas uma interconexão local entre esses camponeses, de
pequenas propriedades, e a identidade de seus interesses não gera nenhuma
comunidade, nenhum elo nacional e nenhuma organização política entre eles, tais
pessoas formam uma classe.
9
Enquanto os habitantes de Dogville constituem um grupo tanto pelo interesse
comum na exploração de Grace quanto, posteriormente, na consumação dessa relação
como uma relação de hostilidade, a própria Grace, por sua vez, não pertence a um
grupo. Como representação de um conflito de classe, em termos estritos, faltaria,
portanto, um fator na equação. Nesse sentido, Dogville puxa o tapete de uma certa
esquerda “clássica” ao não configurar a exploração de Grace como uma questão de
classe bem caracterizada. A questão de classe aparece pela figuração de um processo,
do qual Grace é uma representação alegórica, uma personagem alusiva a todo um
conjunto da sociedade. Aparece, inclusive, na própria dificuldade da personagem em
elaborar sua situação em termos sociais. Essa é parte importante do tecido do filme, que
representa processos sociais por meio de personagens individuais, o que abre espaço
9
Karl Marx, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, citado em Tom Bottomore, Dicionário do
pensamento marxista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p.62.
35
para as leituras da condição humana que são feitas a seu respeito. Assim, Dogville faz
com que a presença de alguns conceitos marxistas fundamentais se dê pela sua ausência
ou relativização do ponto de vista dramático, como é o caso do progresso de Dogville e
das alusões à perpetuação e expansão necessárias do capitalismo complicadas pelo tipo
de relação de trabalho que se estabelece, em grande parte situada no setor de serviços.
premissas fascistas no conservadorismo dos habitantes de Dogville e o desfecho
para o qual o enredo se encaminha não é de natureza diversa. O experimento de Trier é
sobre as possibilidades de um mundo em que o fascismo venceu e seu antagonista
histórico está fora da batalha. É dessa forma, mostrando o horror do pensamento fascista
levado às últimas e grotescas conseqüências e os resultados da falta de uma força que se
oponha a ele de forma fundamental, que ele produz um filme sobre a barbaridade
fascista; um filme que deixa o germe fascista falar, mas não um filme que compactua
com ele. Pelo contrário, seu esforço de afastamento do drama clássico, as menções a
Bertolt Brecht e o esforço de constituir um sistema de regras postas em movimento são
a maneira de construir um filme que se dedica sobre um fenômeno por meio da
utilização das próprias regras desse fenômeno, mas sem se identificar com ele.
Mas ele puxa o tapete, também, dos que esperam, por isso, um alinhamento total
a paradigmas da esquerda, a começar pela expectativa de uma analogia completa aos
procedimentos e ideais de Brecht, de quem provém sua “inspiração” primordial. Ao
falar do estado fascista do mundo capitalista contemporâneo, Trier tem, também, que
falar de sua expressão cultural, e ele o faz usando muitas das suas próprias convenções,
como algumas das do drama, que ele mantém. Na sua mira estão os pontos fracos e a
ideologia implícita no fazer cinematográfico clássico e é colocando-os em ação que ele
pode demonstrar suas insuficiências. Em outras palavras, ele constrói um filme que,
apesar de alegórico, mantém-se sobre um substrato dramático palpável, ainda que frágil,
e deixa suas personagens falarem a língua do drama para mostrar como essa língua diz
pouco acerca dos processos sociais anteriores ao drama individual. Da perspectiva tanto
de Grace como das demais personagens e do próprio narrador, o que se desenrola em
Dogville é um drama cujos grandes atores são a arrogância, o altruísmo, a inveja e o
desejo, ou seja, sentimentos humanos que independem do transcurso da história. Como
obra de arte, no entanto, a análise com base nesses preceitos atemporais fica aquém do
conteúdo do filme. Stephen Holden, crítico do The New York Times, ofendido, afirma
que, para aqueles que se identificam com Grace, a virada final é um tapa na cara que
pergunta “o que você esperava?”. Ele está correto: o filme frustra os que caem na
36
armadilha do drama. A transformação final de Grace precisa ser compreendida com
base no que há de alegórico e antiilusionista no filme, ou seja, sob a perspectiva
histórica dos agentes que atuam no momento contemporâneo, bem como nos anos 30
que Trier encena. Da perspectiva oposta, para uma esquerda que se recuse a admitir que
está perdendo o jogo, a bofetada é do mesmo calibre: “o que você esperava? Que Grace
cantasse o hino da Internacional?” Frustram-se, assim, também os que, inflamados
pela alegoria de Trier, ignoram seu substrato dramático e o limite dentro do qual ele
confecciona suas personagens.
Suas limitações formais nos mostram os limites da própria utopia revolucionária
nos dias atuais. Assim, a construção do filme é contraditória em sua essência e toma a
forma de uma armadilha constante que requer que, a cada afirmativa, olhemos para o
seu contrário. Seu antiilusionismo é contrabalançado por uma filmagem clássica em
muitas aspectos; seu questionável antiamericanismo contempla particularidades
históricas que o devem ser deixadas de lado; suas personagens condensam ideais
conflitantes, mas não chegam ao ponto da despersonalização radical nem prescindem da
identificação do espectador.
Essa construção essencialmente contraditória, que encena o drama da luta de
classe, situa o filme numa posição distante tanto do panfleto de esquerda como do
drama individual “clássico” e, portanto, impede que algumas categorias caras ao
pensamento de esquerda sejam varridas para debaixo do tapete, embora não as abrace
explicitamente. Ao mesmo tempo, tempera-as com complicações do mundo
contemporâneo em que esse pensamento está fragmentado, perdeu sua crença numa
certa teleologia intrínseca e se acusado de anacronismo. Do ponto de vista
conservador, a contradição fundamental, que é o coração da estrutura de Dogville,
atrapalha o desenvolvimento do drama e o faz a tal ponto que apenas dois caminhos
podem ser seguidos: o de rejeitar o filme e seu idealizador ou o de se confrontar com
essas contradições. De que forma isso é feito é objeto da presente investigação.
Provavelmente o argumento mais repetido a respeito do filme concerne a seu
suposto antiamericanismo. A reação do diretor quando questionado em Cannes foi
perguntar de volta se alguém foi conhecer o Marrocos para filmar Casablanca. Na
realidade, os Estados Unidos exportam sua cultura e seu modo de vida tanto pela
imposição bélica quanto pelo poderio econômico intimamente relacionados. Parte do
alcance desse poderio econômico se revela justamente na exportação dos valores e do
modo de vida americano, também, pelo cinema, uma das maiores indústrias do país. A
37
premissa de que a referência aos Estados Unidos é paradigmática está, portanto, muito
bem assentada em fatos notórios da realidade atual. Além disso, a própria resposta do
diretor à polêmica mencionada acima inclui na discussão a questão do “realismo” de
qualquer representação artística e sua validade no mundo contemporâneo. A
representação da realidade como “fatia da vida” foi questionada pela literatura e o
teatro muito tempo, mas ainda sustentação a grande parte do cinema,
especialmente o cinema comercial americano, cujas regras seguem o que se
convencionou chamar de “linguagem clássica” do cinema. Abandonar esse ponto de
partida é uma premissa dos filmes de Lars Von Trier desde o início de sua carreira e,
dentro dessa perspectiva, trabalhar sobre o mito ou o paradigma de um país não
constitui problema de nenhuma ordem. Guardadas as devidas proporções, a gritaria
sobre o antiamericanismo de Dogville mostra um traço que ficou evidente depois dos
ataques de 11 de setembro, a saber, que uma grande desproporção entre a política
externa norte-americana e os valores apregoados internamente. A reação suscitada e a
resposta pronta do diretor apontam para o prinpio de “dois pesos duas medidas” do
pensamento americano.
Por outro lado, interpretar o filme como objeto independente do espaço e do
tempo da ação também causa lacunas de compreensão. A referência aos EUA não deve
ser vista apenas como a escolha aleatória de um país para situar a ação do filme. Como
todos os demais aspectos de Dogville, esse deve ser visto sob duas perspectivas. A de
que o filme é sobre os EUA é parcialmente verdadeira, e é corroborada não pela
escolha da localização da cidade, mas também pela escolha e caracterização de um
momento histórico preciso, pela importância da moral puritana e pela escolha de um
elenco de estrelas de Hollywood. Algumas referências são diretas: a celebração do 4 de
Julho, a canção de Katharine Lee Bates, America the Beautiful (que rivaliza em
popularidade com o hino nacional norte-americano), e as fotografias inseridas durante
os créditos finais. Todas essas referências poderiam, também, ser inócuas. Não são. Elas
têm uma importância fundamental na compreensão do filme e é por meio da
compreensão de qual é a questão americana de Dogville que o filme pode ser entendido,
inclusive, em sua universalidade.
No entanto, a referência aos EUA é, também, sem vida paradigmática. As
insistentes declarações de Lars Von Trier de que não precisa viajar aos EUA para
conhecê-los revelam que essa é uma noção deliberada do diretor. Potência mundial, os
EUA são o mais importante jogador do cenário geopolítico contemporâneo. E é no
38
âmbito da cultura que a crítica de Dogville se faz mais apurada, por tratar dos EUA e de
seu mais importante produto cultural, o cinema, com uma estética européia e conceitos
europeus que os americanos julgam inadequados para avaliar sua realidade.
Capitaneando esses conceitos inadequados ao “excepcionalismo americano”, o de luta
de classe. A notória afirmação do Manifesto Comunista de que “a história de todas as
sociedades existentes até hoje é a história da luta de classe” ilustra a importância do
conceito para o pensamento marxista. muito debate sobre a existência de classes
como tal ou grupos de status em períodos anteriores ao capitalismo, mas o que interessa
é ser a existência de classes uma característica distintiva das sociedades capitalistas, nas
quais o “segredo mais íntimo, o fundamento oculto, de todo o edifício social” é a
relação entre a classe que detém a propriedade das condições de produção e os
produtores diretos.
10
A descrição marxista clássica da divisão da sociedade em duas
classes opostas (capitalistas e proletários) é relativizada pelo próprio Marx, e é
complicada pelo problema das camadas intermediárias.
11
Podemos estar certos de que
não será Dogville que resolverá esse longo debate da tradição marxista. Mas o filme
tampouco pode ser entendido sem essa perspectiva, que as categorias em que se
fragmentou a esquerda mundial e também nos Estados Unidos (nos movimentos sociais
que dominam a agenda social contemporânea: o feminismo, o movimento pelos direitos
civis, os movimentos contra guerras e outros) são categorias que não estão ancorados na
noção de classe social e tampouco explicam as engrenagens de Dogville, em que o
direito à exploração da força de trabalho é uma idéia fundamental.
mulheres e negros entre os habitantes de Dogville, Grace é tão americana
quanto todos eles, como vemos na forma como comungam da celebração do 4 de Julho.
Vivem todos naquela “city upon a hill”. Não há como [nem por que] agrupá-los,
portanto, segundo segundo categorias de raça, gênero etc. Daí a necessidade do conceito
de classe que explica a união dos cidadãos de Dogville no intuito de manter sua fonte de
progresso e conforto, figurada na pessoa de Grace. No entanto, no papel de trabalhadora
explorada, Grace não tem condições de desenvolver nenhum tipo de consciência de
classe: em primeiro lugar porque, sendo a única naquela situação, ela não tem sequer
com quem se agrupar para constituir uma classe.
10
Karl Marx, O Capital (III, cap. XLVIII), citado em Tom Bottomore, op. cit., 2001.
11
Tom Bottomore, op. cit., 2001, p.61-63;223-224. Mari Jo Buhle, Paul Buhle e Dan Georgakas,
Encyclopedia of the American Left, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 1992, p.20-22.
39
Dois movimentos são particularmente interessantes para a compreensão da
experiência americana: o sentimento anticomunista e o movimento antifascista. O
primeiro é responsável pelo afastamento de importantes teorizações da esquerda e está
na concepção do filme que retrata as contradições do capital com suas próprias armas. O
segundo explica como um momento de intensa polarização ideológica provocou um
efeito contrário de desmobilização das lutas da esquerda.
Na Encyclopedia of the American Left, Joel Kovel descreve o anticomunismo
americano como uma matriz ideológica que não deve ser confundida com uma crítica
radical ao comunismo realmente existente nem tampouco com a postulação de
alternativas utópicas à ordem atual, fachadas sob as quais freqüentemente se disfarça.
12
Para o autor, o discurso anticomunista se caracteriza por uma demonização, em que o
comunismo representa um mal absoluto contra o qual desaparecem distinções críticas, e
cita um ditado que exemplifica seu argumento: “Better dead than red” literalmente
“antes morto que vermelho”. A revolução russa cristalizou uma vertente que já se
manifestara em momentos anteriores da história americana, como na defesa da
manutenção da escravatura contra os abolicionistas “fanáticos”, nas manifestações
racistas e xenófobas que se seguiram à Guerra Civil (e que voltaram eventualmente
levando à formação de movimentos como a Ku Klux Klan e outros) e, especialmente, na
defesa do capital contra a classe trabalhadora militante. Esses sintomas de histeria
contra um mal demoníaco aparecem nos ts grandes “red scares” descritos pelo autor:
O primeiro, nos anos de 1919 e 1920, na seqüência da Revolução Russa, quando o
movimento trabalhista se organizava e o governo, a imprensa e os grandes negócios se
uniram contra ele, resultando em histeria e violações das liberdades civis. O segundo
destruiu a parte mais progressista do New Deal ao integrar o movimento trabalhista à
estratégia corporativa e legitimar a política de contenção dos soviets a qualquer custo. A
terceira onda foi, em parte, uma reação ao surgimento de movimentos sociais nos anos
60 e tinha um foco diferente dos anteriores, devido ao sucesso atingido por eles. Nos
anos Reagan, o anticomunismo tinha duas frentes: uma cujo propósito era superar a
“síndrome do Vietnã” e a relutância em se envolver em guerras anticomunistas e
imperialistas, e outra que procurava legitimar os gastos militares exorbitantes como
maneira de reaquecer a economia.
13
12
Joel Kovel , "Anticommunism", in Mari Jo Buhle, Paul Buhle e Dan Georgakas, op.cit., 1992.
13
Mari Jo Buhle, Paul Buhle e Dan Georgakas, op.cit., 1992, p.44-46.
40
Essa descrição é particularmente interessante, pois dá fisionomia a um padrão de
pensamento que faz parte da abolição da tradição de esquerda nos Estados Unidos e
que, se foi chacoalhado nos anos 30, quando os estudantes, engajados, perceberam que
só a esquerda tinha uma teoria que explicava a Depressão, continua a ser um paradigma
importante até hoje. Esse sentimento é parte da razão pela qual todo argumento marxista
é rejeitado pela experiência, supostamente excepcional, americana. Mas é o padrão
descrito por Kovel que interessa acima de tudo. Como ele enfatiza, não se trata de uma
crítica ao comunismo real, mas de um paradigma de demonização que corresponde ao
padrão materializado em Dogville na aglutinação dos habitantes da cidade tanto na
forma como se constituem numa unidade quanto em seu propósito de impedir que Grace
deixe a cidade. Uma vez escravizada, Grace tem que se manter rentável até o fim. Se
não fosse assim, eles poderiam permitir que ela deixasse a cidade e não haveria
necessidade de denunciá-la aos gangsters note-se que a desculpa para aumentar sua
carga de trabalho e diminuir seu pagamento derivava, supostamente, de um sentimento
de que os cidadãos de Dogville ficariam, com sua presença, devendo algo à Justiça, não
aos criminosos. Não parece o caso. A perseguição feroz a Grace se dá por meio da união
dos habitantes de Dogville contra um mal maior e mostra as fraquezas desse tipo de
união.
Os anos 30 marcam, na história mundial, os anos de ascensão do nazifascismo
que desembocaram na Segunda Guerra Mundial. Na história dos Estados Unidos, é um
momento em que intensas ambigüidades se estabelecem, complicando o tabuleiro
ideológico. Compreender essas ambigüidades significa perscrutar não a significância
de ambientar Dogville nos anos 30, como também identificar padrões estabelecidos e
exportados desde então e que são os responsáveis pela real “universalidade” do filme, a
qual se deveo a valores atemporais da natureza dos homens, mas à validade e
persistência da experiência americana naquele momento para outros países até hoje.
Com a Depressão, os Estados Unidos enfrentavam uma crise de superprodução
em que, pela primeira vez, foi necessário que o Estado interviesse na economia numa
escala sem precedentes. Algumas dessas iniciativas foram os programas de construção
de ferrovias, a implantação de energia elétrica nas zonas rurais, o incentivo ao
crescimento do ramo imobiliário em direção aos subúrbios e a expansão da educação de
nível superior, todas elas implementadas ou fortemente subsidiadas pelo Estado. No
entanto, apenas a entrada na Segunda Guerra Mundial tiraria definitivamente os Estados
41
Unidos da crise e muitas dessas iniciativas prepararam o terreno para esse passo final.
14
O que se tem, portanto, é a mais aparente contradição em que, ao encampar demandas
da esquerda, Roosevelt e o New Deal salvaram o capitalismo americano do que talvez
tenha sido seu momento mais crítico.
O surgimento de movimentos fascistas levou muitos pensadores da esquerda a
tentar formular não estratégias para sua contenção como também explicações para
seu surgimento. Um deles foi Trotski, que escreveu uma série de panfletos entre 1930 e
1933 nos quais esboçava as principais características do fascismo. As mais importantes
delas afirmam que o fascismo é conseqüência da “tendência do capitalismo monopolista
a “organizar” o conjunto da vida social de uma maneira totalitária” e que sua base social
é a classe média.
15
Estudos mais recentes “relacionam o fascismo com o capitalismo
monopolista, a aguda crise econômica e a posição ameaçada de grandes segmentos da
classe média
16
e ressaltam a importância do desemprego. F.L. Carsten, em The Rise of
Fascism, afirma que “foi em particular nas fileiras dos desempregados que a SS nazista
(tropa de choque) recrutou, durantes aqueles anos (1930-1932), um exército privado de
300 mil homens”. De onde se conclui que “uma crise econômica aguda pode promover
não o maior radicalismo da classe trabalhadora como também o rápido
desenvolvimento de movimentos políticos de direita”.
17
Dogville oferece um
interessante microcosmos no qual as condições estão dadas para o florescimento de uma
radicalização conservadora. Ela acontece tanto no sentimento persecutório de uma
cidade inteira em relação à nova habitante que pode deixar de atender a seus interesses,
como na solução final encontrada por essa mesma habitante, que de vítima passa a
algoz, questionando o tipo de padrão de pensamento.
O fascismo tem, ainda, um componente do maior interesse para a compreensão
de Dogville, a saber, o apelo irracionalista de sua retórica. A noção da superioridade da
raça ariana, por exemplo, depende da mobilização de preconceitos raciais e da
capitalização do sentimento de opressão em que se lançou a Alemanha depois da
Primeira Guerra Mundial. A cenografia cinematográfica dos discursos de Hitler, a
utilização do som amplificado e da música são também uma forma de manipulação que
atinge diretamente os sentimentos. Isso também é verdade em relação aos grandes
14
James Weinstein, Ambiguous legacy: the left in American politics. New York/London, New
Viewpoints, 1975, p.75-76.
15
Tom Bottomore, op. cit., 2001, p.147.
16
Cf. verbete fascismo”, in Tom Bottomore, op. cit., 2001.
17
Tom Bottomore, op. cit., 2001, p.147-148.
42
valores cooptados como pilares dessa ideologia: a pátria, a honra, o heroísmo de um
povo.
Se o fascismo era o mais preocupante movimento político em ascensão no
mundo na década de 1930, um movimento antifascista fortaleceria a esquerda mundial.
O raciocínio parece óbvio, mas a história mostra que esse foi um tiro que saiu pela
culatra.
O antifascismo começou antes do anúncio da Frente Popular, como uma reação
dos ítalo-americanos à ascensão de Mussolini em 1922. O movimento propiciou uma
coalizão de vários segmentos da esquerda, unindo comunistas, socialistas e anarquistas.
Apesar da resistência dos comunistas entre 1928 e 1933, a Frente finalmente se
constituiu na maior coalizão da esquerda de todos os tempos. O movimento, no entanto,
trouxe três problemas para a esquerda americana. Em primeiro lugar, o sentimento
contra a guerra foi deixado de lado e foi posta em descrédito a grande mobilização do
início dos anos 30 contra os capitalistas que lucravam com as guerras e o sistema que
possibilitava sua existência. Em segundo, da forma como foi desenvolvido, o
antifascismo parecia direcionado para a preservação das democracias ocidentais, num
mundo em que não-brancos ainda eram vastamente oprimidos pelo colonialismo e
neocolonialismo. O clamor antiimperialista dos anos anteriores foi abandonado. E, em
terceiro, a necessidade da transformação socialista começou a desaparecer dos planos e
da retórica comunista. O que havia sido visto de forma pouco realista como uma
possibilidade no curto prazo agora desaparecia do horizonte das possibilidades. Assim,
o pensamento de caráter sistêmico foi abandonado justamente num momento de
polarização em que estavam dadas as condições para uma radicalização do debate. Mais
tarde, com a retomada pelos republicanos do controle do Congresso, em 1942, surgiu
um consenso liberal-conservador que igualava antifascismo a “americanismo”, ligava
stalinismo e hitlerismo e considerava tanto os comunistas americanos quanto os
fascistas como traidores em potencial.
18
Externamente, a política intervencionista e belicista que marca os EUA até os
dias de hoje com conseqüências nefastas foi aprendida naquele momento.
Os anos 30, nos Estados Unidos, se caracterizaram, também, pelo gangsterismo
que lucrava com a Lei Seca. Se a o imaginário coletivo pudesse dar um depoimento
sobre o que identifica essa década, a radicalização política e o debate sobre a entrada
18
Mari Jo Buhle, Paul Buhle e Dan Georgakas, op.cit., 1992, p.46-48.
43
dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial rivalizariam com a figura do gangster.
Em tempos de crise profunda, a imagem do gangster no contexto americano é entendida
por muitos como uma saída para o desejo, impossível, de apropriação (ainda que
indébita). Filmes como Little Caesar (Alma no lodo), de Mervin LeRoy,
19
e uma rie
de filmes “de gangsterincrivelmente bem-sucedidos nos anos 30 dão a medida disso.
A própria figura de Al Capone é um bom exemplo do espaço que a figura do gangster
ocupava no imaginário americano: um criminoso com status de celebridade por sua
simpatia aos holofotes e cuja popularidade era dado notório. Michael Denning diz o
seguinte a esse respeito:
The pulp magazines were full of gangster stories; by the early 1930s, there were entire
magazines devoted to Gangster Stories, Racketeer Stories, and Gangland Detective Stories. “In
1929”, film historian Robert Sklar notes, “the gangster for the first time surpassed the cowboy as
a subject for Hollywood filmmakers”. Though the early film gangsters were aristocratic and
Anglo-Saxon polished capitalists organizing the bootlegging industry the classic gangster
emerged with Edward G. Robinson in Little Caesar (1931), James Cagney in The Public Enemy
(1931), and Paul Muni and George Raft in Scarface (1932), creating the first ethnic” hero in
American popular culture.
20
A figura do gangster é de extrema importância para a compreensão de Dogville
não da perspectiva da apropriação indébita, mas principalmente da perspectiva
sistêmica. A organização mafiosa é o outro lado da moeda da organização corporativa,
guardando com ela as relações mais nefastas. Em Dogville o gangster é o meio que
permite a “justiça” final. Ele toma para si a prerrogativa de deliberar sobre os
habitantes, julgar seus crimes e estabelecer sua punição. Em outras palavras, o crime faz
o papel do Estado. Os termos do debate, principalmente, são de extrema importância,
que revelam a característica fascistóide dessa figura.
Vale aqui notar que o vilarejo nas Montanhas Rochosas guarda pouca ou
nenhuma semelhança com os grandes centros de agitação política e cultural da América
dos anos 30, como Chicago e Nova York. A rigor, efetivamente, um elemento
estrutural que o situa temporal e espacialmente: a pobreza. Além dela, apenas a figura
do gangster produz alguma conexão entre Dogville e o resto dos Estados Unidos e do
mundo. Assim, é com esta economia de meios que o filme se compõe: a miséria está
dada e a alternativa a ela é de natureza criminosa. Dentro desse escopo real, a grande
ideologia que norteia os personagens é da ordem da moral puritana e dos bons
19
Mervyn LeRoy, Little Caesar, EUA, First National Pictures, 1931, P&B, 79'.
20
Michael Denning, “The lure of the gangster”, in The Cultural Front, London/New Your, Verso, 2000,
p.254.
44
sentimentos, figurações da cortina de fumaça da ideologia individualista para a qual o
funcionamento do mundo é um dado de realidade imutável e a agência está restrita a
atuação do indivíduo numa rede social limitada. Cabe ao espectador fazer as relações
entre estes elementos mínimos e seus significados mais amplos, em especial a falácia da
idéia do progresso entendido apenas como conquistas de âmbito pessoal. Esses
elementos constitutivos do funcionamento do capital se vinculam aos do nazifascismo
pelo foco no indivíduo como elemento acima das forças históricas.
A movimentação política dos anos 30 nos Estados Unidos e a forma como,
contraditoriamente, o antifascismo ajudou a enterrar a esquerda e o New Deal salvou o
capitalismo são componentes de um momento histórico que pode ser considerado um
precursor do momento atual. Foi o momento em que as forças totalitárias mostraram
suas garras e a resolução – a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial
se deu dentro dos ditames da direita. Nesse sentido, a ambientação de Dogville nesse
momento histórico, e precisamente na América do Norte, é muito significativa. O filme
nos faz olhar retrospectivamente para aquele período e perceber que a impotência da
esquerda dá à direita a chance de determinar as regras do jogo sob as quais continuamos
a ser regidos.
Por outro lado, montado como um jogo, as conclusões de Dogville são
exportáveis para qualquer país ou tempo histórico em que suas regras normalizem a
vida social; considerando-se que as regras delineadas continuam válidas na maior parte
do planeta, temos a relevância contemporânea do filme. Daí, e não de uma natureza
humana intrinsecamente boa ou má, a universalidade do filme. Dessa perspectiva,
Dogville não é sobre os Estados Unidos, embora utilize elementos de sua história, mas
sobre as sementes do fascismo e as contradições intrínsecas do capitalismo que
continuam vicejando em nossos dias, que a situação social que as mantém vivas
segue imutável. Essa é mais uma armadilha do filme: se supusermos que ele é sobre os
EUA, deixamos escapar a alegoria que realmente interessa; se, por outro lado,
desprezarmos as particularidades do país em que o filme se situa, perderemos elementos
importantes para a reflexão.
A recusa pela imitação da realidade é um dos elementos que mais interessa à
compreensão do filme de Trier. Fredric Jameson aponta a armadilha dos filmes
supostamente históricos nos quais o verdadeiro sentimento do tempo passado é
substituído pela produção imponente e se restringe a uma imitação superficial de estilos
e maneirismos. Para o autor, o fenômeno do pastiche é como uma colagem de vários
45
estilos do passado e sua manifestação mais generalizada na arte comercial é o que ele
chama de “nostalgia film”. Esse tipo de filme projeta o fenômeno do pastiche no vel
coletivo e social, no qual identifica uma tentativa desesperada de se apropriar do
passado, o que então se pelos ditames da moda e pela ideologia da geração. A
condição fundamental para tais operações é uma redução da história a mero simulacro.
21
Eis uma armadilha na qual Dogville não cai. Pelo contrário, a retomada de um momento
da história recente em que as perversões do capitalismo ficaram visíveis nos Estados
Unidos e no mundo é feita de modo a revelar justamente essas perversões e,
principalmente, sua permanência no mundo atual. A composição reduzida a elementos
mínimos recusa esse tipo de reprodução e, de fato, a retomada é feita no que aquele
momento teve de essencial e de relevante. O cenário exíguo e pouco realista certamente
não contribui para a percepção de Dogville como filme “de época” e, embora a
peculiaridade histórica dos anos 30 passe despercebida a muitos espectadores, ela é
retratada de uma forma muito mais profunda do que o seria a simples reprodução de
cenários e vestimentas. Ela é, principalmente, retomada em sua relevância para o
momento presente.
Assumidamente inspirado na canção Jenny-Piratada Ópera dos Três Vinténs
de Bertolt Brecht, Dogville aproxima-se do dramaturgo em algumas de suas concepções
formais, cuja observação é importante na análise do filme. Por outro lado, apresenta
também importantes aspectos do chamado cinema clássico, o que impede uma analogia
completa com Brecht, embora a adaptação de alguns de seus conceitos produza um
forte efeito de relativização da linguagem clássica e propicie uma alternativa ao foco
absoluto no indivíduo, uma das características dessa linguagem. Assim, o filme de Lars
Von Trier ostenta elementos que vão de encontro ao ilusionismo que caracteriza a maior
parte do cinema contemporâneo, sem, no entanto, promover com ele uma ruptura
radical. No que se refere à sua filiação formal, portanto, se equilibra numa tensão entre
esses aspectos. Pode-se encarar esse fato como uma idiossincrasia do diretor, sem
dúvida, mas talvez seja mais produtivo identificar essa ambigüidade como a própria
forma do filme e produto de um momento histórico em que a proposta radical e o intuito
revolucionário do dramaturgo alemão não figuram no horizonte das possibilidades.
Por outro lado, tampouco o momento contemporâneo pode ser definido como exultação
das conquistas neoliberais. Se no pensamento expresso pela grande mídia, as crenças de
21
Fredric Jameson, “Culture”, in Postmodernism or, The Cultural Logic of Late Capitalism, Durham,
Duke University Press, 2001, p.1-54.
46
Margaret Thatcher e Francis Fukuyama continuam a ecoar, certamente o o fazem
como celebração de indiscutível progresso, mas são resignadamente aceitos como
expressão de que não nada no horizonte que suplante a força de verdade da
afirmação de que não alternativa ao capitalismo. Aproveitar essa oportunidade para
refletir sobre sua violência intrínseca talvez seja a atitude mais utópica que a arte pode
assumir atualmente.
A maior parte do cinema comercial contemporâneo, leia-se as produções dos
grandes estúdios americanos, está profundamente ligado senão à defesa e à apologia do
modo de produção atual, ao menos à resignação de que cabe a ele, no máximo, retratar
as mazelas morais que se desenvolvem como fato consumado e inescapável. O tipo
de cinema praticado em grande escala em Hollywood segue parâmetros estabelecidos
no século XVIII na constituição do drama burguês e teorizados por Diderot e, desde sua
fundação, mantém estreitos laços com essa ideologia então nascente e que do teatro
migrou para as telas do cinema. Naquele momento, o fisofo se voltava contra um
teatro cuja força vinha dos elementos poéticos do texto e que pouco explorava a cena.
Segundo Ismail Xavier, “o ilusionismo, fonte do envolvimento da platéia, é então
assumido como a ponte privilegiada no caminho da compreensão da experiência
humana, da assimilação de valores, da explicitação de movimentos do coração. Tal
demanda, própria do universo da Ilustração do século XVIII, tem seus desdobramentos
e, depois da Revolução Francesa, em outra atmosfera social e política, explode no teatro
popular de 1800. se consolida o gênero dramático de massas por excelência: o
melodrama. Esse tem sido, por meio do teatro (século XIX), do cinema (século XX) e
da TV (desde 1950), a manifestação mais contundente de uma busca de expressividade
(psicológica, moral) em que tudo se quer ver estampado na superfície do mundo, na
ênfase do gesto, no trejeito do rosto, na eloqüência da voz.
22
Essa concepção está em
conformidade com as necessidades e valores burgueses e é uma forma privilegiada de
veicular as narrativas do indivíduo. No cinema, o ilusionismo ganha com a força da
imagem fotográfica e com estratégias como o “close-up”, que permitem explorar ao
máximo as sutilezas expressas pelo rosto humano, o olhar e a expressão. Desenvolve-se,
inclusive, a noção de que a verdade pode ser encontrada na superfície das coisas, a
expressão do rosto é capaz de revelar a “alma”. O foco nas questões do indivíduo e a
dificuldade de expressar generalizações ou afirmativas de alcance coletivo são
22
Ismail Xavier, “Cinema: revelação e engano”, in O Olhar e a Cena, São Paulo, Cosac & Naify, 2003,
p.38-39.
47
características da “linguagem clássica” do cinema, que naturaliza o olhar ao esconder as
marcas da mediação e treina o espectador para aceitar a suposta “naturalidade” da
técnica narrativa.
A linguagem clássica é acachapante não só porque vem se desenvolvendo com a
burguesia, classe que está vencendo e cuja ideologia é hegemônica, mas também porque
esse desenvolvimento burguês do qual ela é parte operou uma interessante manobra de
destruição e transformação da idéia de coletividade. Embora, ao pensarmos nessa
questão, possamos supor que se trata apenas da exacerbação da ideologia da
individualidade, vemos que, por outro lado, a comunicação de massa – da qual o cinema
faz parte – faz com que vivamos numa sociedade profundamente coletiva, mas em que o
coletivo passa a se caracterizar pela formação de indivíduos em série. Num tal
momento, a opção do filme de mesclar procedimentos brechtianos com técnicas
praticadas por Hollywood pode ser visto como um caminho para abordar as
características dessa coletividade tal como está constituída atualmente, e o como
expressão de individualidades naturais e a-históricas. É também, um caminho
suficientemente pouco hermético para que possa ter ressonância nas consciências
contemporâneas. Já em seu filme Epidemic, de 1987, a necessidade do drama para
atingir a audiência é debatida no filme, o qual mescla cenas da ficção com cenas sobre a
realidade da produção do filme. Em uma dessas cenas, o próprio Lars Von Trier afirma
que sem drama as pessoas simplesmente sairão do cinema.
23
As opções formais do
diretor em Dogville são o retrato das possibilidades utópicas do momento atual.
Alguns aspectos de Dogville, muitos revelando parentesco com as propostas de
Brecht, vão de encontro ao ilusionismo praticado pelo cinema clássico: o cenário, a
divisão em capítulos, a narração, o efeito dos planos verticais, a concepção das
personagens como multifacetadas e o uso inesperado do elenco estrelar. No entanto,
esses não são os únicos elementos de construção do filme, que em outros aspectos segue
à risca os preceitos clássicos: a famosa câmera na mão de Trier, por exemplo, usa e
abusa dos “close-ups”, o que leva a uma abordagem “clássica” da construção das
personagens: perscrutando seus sentimentos, que se revelam na expressão, no olhar, no
gesto, além de propiciar uma identificação com as personagens já facilitada pelo elenco
famoso. O roteiro não dispensa em absoluto o critério da ação e revela um arcabouço de
manual de cinema: é estruturado de forma clássica, apoiado na ação e posto em
23
Jack Stevenson, World Directors: Lars Von Trier, London, bfi publishing, 2005, p.42-50.
48
movimento pelas personagens e eventos a elas relacionados. Há um primeiro ato em que
se explicita a situação dramática (uma fugitiva chega a uma cidade pequena e um
habitante quer que a cidade a acolha); um segundo ato em que a personagem principal
se confronta com obstáculos; e um terceiro ato, em que o conflito se resolve de maneira
surpreendente. Além disso, a estruturação em capítulos, que sem dúvida guarda
semelhanças com a proposta brechtiana, é pouco fiel ao uso que dela fazia Brecht: os
letreiros não contam efetivamente tudo o que acontece e não atrapalham o engajamento
do espectador nas reviravoltas da ação. Senão, vejamos. Capítulo 1: em que Tom ouve
tiros e conhece Grace. Capítulo 2: no qual Grace segue o plano de Tom e se lança ao
trabalho braçal. Capítulo 3: no qual Grace cai na tentação de fazer uma provocação.
Capítulo 4: “Dias felizes em Dogville”. Capítulo 5: “Finalmente 4 de Julho”. Capítulo
6: no qual Dogville mostra os dentes. Capítulo 7: no qual Grace finalmente chega ao
limite, deixa a cidade e novamente a luz do dia. Capítulo 8: em que uma reunião
onde a verdade é dita e Tom parte (só para voltar mais tarde). Capítulo 9: no qual
Dogville recebe a visita tão esperada e o filme acaba. O que vemos é um interessante
convívio de uma proposta de descolar o espectador do fascínio da ação e do
desenvolvimento dramático dos personagens, pelo efeito de antecipar o que virá e
estabelecer o tom do capítulo seguinte com uma realização cuidadosa que não impede
que haja surpresas e que o efeito dramático permaneça.
Assim, a compreensão do filme precisa contemplar essa tensão entre elementos
clássicos e antiilusionistas, pois, se cobrarmos fidelidade a Brecht, ficaremos estagnados
nos pontos em que ela falta. Veremos que a realização da divisão em capítulos não
impede que o desenvolvimento do roteiro tenha surpresas e novidades e atue, assim, de
forma análoga aos do cinema clássico. Teremos que considerar que a distribuição dos
papéis e a atuação que leva à identificação do espectador, especialmente com a
personagem de Nicole Kidman, grande musa do cinema atual com cujo sofrimento nos
identificamos. Veremos que a famosa câmera na mão de Trier opera uma aproximação
dos personagens que propicia a identificação do espectador. Se procurarmos a execução
primorosa dos ditames do cine clássico, por outro lado, o cenário faltará, o
desenvolvimento das personagens se parco, suas motivações pouco elaboradas, a
divisão em capítulos e a narração serão empecilhos ao fluir de uma narrativa que
deveria apagar suas marcas. Acima de tudo, a solução final pecará embaraçosamente
por falta de verossimilhança.
49
Dogville é, portanto, um filme que se equilibra em uma tensão entre o épico e o
dramático, na qual o último fornece o estofo do enredo e das personagens e o primeiro é
responsável pela estruturação do filme e seu significado mais profundo. Com essa
combinação, corda para as personagens encenarem seu drama pessoal e se
enforcarem com ele, sem se dar conta dos mecanismos que puxam a corda. A grande
aposta do filme é que o espectador tenha condições de entrever as verdadeiras
engrenagens do drama de Dogville, o que parece ser desmentido por grande parte da
crítica publicada sobre o filme. Assim, resta agora contrapor esta análise, apesar de suas
limitações, à crítica dos meios de comunicação de grande circulação.
50
CAPÍTULO 2
A recepção crítica de Dogville
O escopo desta pesquisa foi limitado às resenhas críticas publicadas em veículos
de grande circulação na imprensa norte-americana e brasileira. A primeira escolha se
deve à influência determinante que todo tipo de produção cultural dos Estados Unidos
exerce no resto do planeta e, também, ao fato de ser o país eleito para situar a ação do
filme e simbolizar os processos sociais abordados nele. Interessa, portanto, ler o que o
“centro” tem a dizer. as resenhas publicadas no Brasil são, am do contexto objetivo
em que se escreve este trabalho, um entre muitos possíveis representantes da
“periferia”.
24
diferenças importantes entre as perspectivas do que estamos
chamando, livremente, de “centro” e “periferia”, embora as semelhanças também sejam
marcantes, o que possivelmente deva se creditar à hegemonia ideológica que caracteriza
o momento da globalização. Ao se contrastar as linhas gerais da recepção que o filme
obteve junto à grande mídia com uma leitura mais aprofundada, temos, além desse
panorama geral, uma medida das operações ideológicas comum e necessariamente
realizadas atualmente.
O interesse em avaliar esses paradigmas dos veículos de grande circulação
deriva do fato de que esses veículos fornecem a única crítica cultural com alguma
profundidade cuja circulação é suficientemente grande para que se possa observar
algumas características subliminares do pensamento hegemônico, as quais, muitas
vezes, se apresentam sob um elevado grau de naturalização.
Uma observação mais detida sobre a recepção do filme nesses veículos é
interessante, ainda, na medida em revela argumentos que se sobrepõem a uma análise
das condições históricas contemporâneas, que são tema do filme, muitas vezes
chegando a ocultá-las. Em muitos casos, o arcabouço geral desse tipo de texto revela o
alto grau de naturalização de algumas noções como a precedência de uma natureza
intrinsecamente humana sobre as determinações históricas, a autonomia dos
desenvolvimentos artísticos em relação ao contexto objetivo em que as obras se
produzem e outras que, respaldadas na noção hegemônica da possibilidade de
neutralidade ideológica e do jornalismo isento, prescindem de justificativa,
24
Usamos os termos “centro” e “periferia” para definir os diferentes papéis ocupados pelos respectivos
países no cenário econômico mundial e, conseqüentemente, sua influência ideológica. A utilização
dos termos não está relacionada à teoria pós-colonial.
51
apresentando-se como simples descrição objetiva do “mundo como ele é”. Para Roberto
Schwarz, o marxismo fornece alguns dos argumentos menos ideológicos do debate
brasileiro
25
e esse argumento é um produtivo ponto de vista para se ler exatamente a
crítica da grande mídia, pois ajuda a desmistificar esse tipo de naturalização. Aqui, as
características reveladas por uma leitura “menos ideológica” da crítica sobre Dogville
mostra que, em última análise, não se trata de interpretar os produtos da cultura de
acordo com o que eles realmente significam, de forma objetiva e não ideológica, como
apregoam os defensores da crítica imparcial, mas sim de seguir um paradigma de crítica
de cultura que evita o posicionamento político.
Afinal, o filme é de um diretor cujos pais eram comunistas, que foi membro do
Partido Comunista, que tem um estúdio em que a criação é feita de forma coletiva e
cujas declarações, como quando recebeu o troféu Diamante da Paz (ver Anexo F),
demonstram claramente a linha política de seu pensamento. Não bastassem os
elementos biográficos, que não são prova irrefutável do conteúdo de nenhuma obra,
o fato de o filme ter sido inspirado em Brecht, não na canção que o mote do
roteiro a vingança da moça oprimida – mas também em sua construção que tem muito
das concepções do dramaturgo, que situa o filme num dos momentos de maior
exacerbação político-ideológica da história recente os anos 30 e que
deliberadamente o constrói personagens com profundidade psicológica e se afasta de
várias formas do modelo dramático. Tudo isso aponta para um posicionamento político
de uma maneira muito mais ostensiva do que a maioria dos filmes, os quais, como a
crítica com pretensões à neutralidade argumentaria, não têm intenção política.
O intuito desse levantamento é de encontrar os pontos comuns e as divergências
entre as opiniões emitidas sobre o filme na grande mídia americana e brasileira, numa
tentativa de identificar características recorrentes na crítica cultural de maior alcance e
identificar algumas matrizes do pensamento cultural “mainstreamcontemporâneo. O
foco, portanto, está nos veículos de grande circulação. Dois critérios o fundamentais
na delimitação do corpus do presente levantamento: a circulação dos veículos e sua
relevância. Assim, embora o Chicago Sun Times não figure entre os jornais de maior
circulação dos EUA, ele foi incluído nesse levantamento, pois seu crítico de cinema,
Roger Ebert, é um dos mais conhecido no país.
25
Roberto Schwarz, “Um Seminário de Marx”, in Seqüências Brasileiras, São Paulo, Companhia das
Letras, 1999, p.86-105.
52
A diferença editorial entre EUA e Brasil é imensa, não só em números de
exemplares, mas também no número de publicações. O número de resenhas críticas
encontradas nos jornais brasileiros mais representativos determinou a quantidade de
veículos americanos pesquisados, de tal forma que o número de textos em cada um dos
países fosse compatível. A mesma diferença editorial justifica a inclusão da opinião da
revista Veja, cuja tiragem é mais de três vezes superior ao do jornal de maior circulação
no país a Folha de S.Paulo. O jornal O Globo, segunda maior tiragem do país, não
publicou resenhas sobre o filme. O número de textos críticos comparados é bastante
próximo, mas sua distribuição se distingue. Enquanto nos jornais americanos há, em
geral, no máximo dois artigos sobre o filme, a maior parte dos textos selecionados no
Brasil se divide entre os publicados pela Folha de S.Paulo (4), Jornal do Brasil (4) e O
Estado de S. Paulo (3).
Veículo (EUA)
Circulação
Veículo (Brasil)
Circulação
USA Today (1º) 2.549.252 Revista Veja 1.115.510
The Wall Street Journal (2º) 2.047.127 Folha de S. Paulo (1
o
) 307.937
The New York Times (3º) 1.623.697 O Estado de S. Paulo (4
o
) 230.859
Los Angeles Times (4º) 1.172.005 Jornal do Brasil 64.200
Chicago Tribune (6º) 937.907 Revista Bravo! 17.620
The Washington Post (7º) 930.619
Houston Chronicle (10º) 692.586
San Francisco Chronicle (19º) 432.957
Detroit Free Press (31º) 348.297
Chicago Sun Times 72.000
Os textos integrais das resenhas estão disponíveis nos anexos, organizadas da
seguinte maneira: anexos “A” são as críticas favoráveis, “B”, desfavoráveis, e “C”,
mistas.
Os anexos contêm uma parte “D”, na qual se encontram artigos relacionados ao
filme, embora não diretamente sobre ele e que, embora não figurem na comparação de
dados central, têm um interesse para a presente reflexão. As partes “E” e “F” contêm,
respectivamente, entrevistas e notas de divulgação. As entrevistas se dividem entre
aquelas que explicitam as perguntas e respostas textualmente e aquelas que mesclam
análises pessoais dos jornalistas com declarações do diretor e, nessa parte, ainda, consta
a nota “Polêmico até a distância” que, apesar de não ser propriamente uma entrevista,
nada mais é do que a descrição de uma declaração do diretor por ocasião de uma
homenagem da organização Cinema Pela Paz. Essas seções encontram-se nos anexos
53
por fazerem parte de um todo que constrói o imaginário coletivo sobre o diretor e o
filme, embora não configurem propriamente textos críticos argumentativos. Embora não
haja análise sobre esses textos, optamos por apresentá-los no presente trabalho, pois eles
também fazem parte e ajudam a compor o panorama geral da, por assim dizer, opinião
pública, acerca do filme. incontáveis sites e revistas eletrônicas sobre cinema, bem
como publicações de menor tiragem para públicos específicos. Um deles, a revista
eletrônica Trópico, publicou um artigo de Sérgio de Carvalho sobre o filme, o qual o
foi computado na comparação de dados em função do critério de circulação, mas consta
nos anexos, pois oferece uma perspectiva produtiva para a compreensão do filme.
A Resenhas favoráveis
B Resenhas desfavoráveis
C Resenhas mistas
D Artigos relacionados ao filme
E Entrevistas
F Divulgação
O foco central desse levantamento está nas resenhas críticas publicadas no Brasil
e nos EUA. São 25 no total, sendo 12 americanas e 13 brasileiras. Do total de resenhas
lidas em veículos de comunicação brasileiros, uma foi desfavorável e as outras 12
favoráveis. Entre as 12 resenhas americanas, o número se distribui de maneira bem mais
homogênea: 3 desfavoráveis, 6 favoráveis e 3 mistas.
Brasil
favoráveis
92%
desfavoráveis
8%
54
favoráveis
50%
desfavoráveis
25%
mistas
indecisas
25%
O mascaramento ideológico da grande mídia
Uma condição é fundamental para uma análise integral de Dogville: um olhar
crítico sobre o funcionamento do sistema capitalista, o que implica partir do pressuposto
de sua desnaturalização. Prerrogativa histórica da esquerda, o questionamento do
sistema como um todo vem se tornando uma questão delicada mesmo para os setores
mais progressistas depois da falência do chamado socialismo realmente existente.
previsto e esperado na histeria dos “red scares”, os eventos do comunismo real
coroaram suas suspeitas: das atrocidades stalinistas à queda do muro de Berlim e ao
comunismo de mercado da China e a falência econômica de Cuba, os fatos históricos
passam como atestados de que toda ideologia questionadora do capitalismo é vã.
Utópico na melhor das hipóteses e inviável para os moderados, esse tipo de pensamento
é, para muitos, intrinsecamente antidemocrático. Talvez uma das características mais
marcantes do momento atual seja o nível a que chegou a naturalização do modo de
produção capitalista, que ainda ressoam como verdades considerações segundo as
quais a história chegou ao seu apogeu e, assim, não alternativa a esse sistema, das
quais são exemplos famosas afirmações de Margaret Thatcher e Francis Fukuyama nos
anos 80.
Esse processo de naturalização profundamente arraigado interfere, logicamente,
na prática e na crítica cultural contemporâneas e compromete, em muitos casos, a
possibilidade de uma leitura alegórica sobre esse mesmo sistema encenada no filme de
55
Lars von Trier. Esse comprometimento está ligado à aceitação e reiteração de
argumentos originários da classe dominante cuja atuação os transforma em argumentos
hegemônicos. Fortemente calcados em aspectos morais ou psicológicos, tais argumentos
têm em comum o fato de ignorarem conceitos que descrevem as formas das relações
sociais sob o jugo do capital. Entre os últimos, especialmente as teorias tradicionais da
esquerda e o conceito de luta de classe, e, conseqüentemente, se constituírem como
cortinas de fumaça que podem, muitas vezes, mais atrapalhar do que promover o
entendimento e a análise tanto do filme em questão como de qualquer outro objeto.
Assim, um exame das resenhas publicadas sobre Dogville nos meios de
comunicação de massa nos permite refletir sobre o panorama ideológico de nosso
momento histórico. Ao contrário do que se possa supor, o filme agradou e desagradou a
muitos numa proporção pouco relacionada com a orientação ideológica dos veículos
que publicaram opiniões sobre ele. Embora convide a uma curiosidade sobre as reações
dos veículos à direita e à esquerda do espectro ideológico, o que se encontra muitas
vezes frustra as expectativas. A dificuldade começa na simples definição, no momento
atual, dos conceitos de direita e esquerda. Toma-se direita, grosso modo, como
designação de idéias conservadoras em termos morais e que defendem o liberalismo
econômico, embora muita nuance se encontre dentro desse bloco. Por oposição, a
esquerda seria a esfera das idéias progressistas e dos que questionam o capitalismo e a
ordem econômica imposta pelo mercado. Na realidade, chama-se esquerda a um bloco
heterogêneo e fragmentado, dentro do qual, atualmente, os grupos de interesse
específicos têm mais espaço na mídia (e uma aura de legitimidade) do que o
questionamento global de um sistema de regras e, portanto, de característica
revolucionária. Não há uma esquerda unificada cuja opinião se possa extrair pela leitura
dos veículos ligados a ela ou simpatizantes de suas idéias.
Em relação aos veículos de comunicação, especialmente os de grande
circulação, essa situação é complicada por eles não terem uma posição ideológica
claramente definida nesses termos. Mantém-se, na grande maioria das publicações, o
conceito de que o jornalismo deve ser neutro e eqüidistante. Assim, excetuando-se as
publicações de partidos políticos como as do PSTU ou do SWP (Socialist Workers
Party) –, sindicatos e algumas revistas especializadas, pouca definição ideológica
explícita, que é uma das características mais marcantes dos veículos de comunicação de
grande circulação, embora não seja exclusividade deles.
Certamente, pode-se questionar essa suposta neutralidade da mídia não apenas
56
devido ao fato conhecido de que todo texto embute um ponto de vista, mas também
atentando exatamente para a maneira subreptícia como se configura esse ponto de vista
hegemônico, para o quê aponta a afirmativa de Roberto Schwarz mencionada. Por
outro lado, fragmentada, a esquerda não se constitui como um todo homogêneo capaz
de produzir uma resposta assertiva à ideologia subliminar das publicações de grande
circulação. Se, por um lado, entrevemos o véu que encobre o discurso ideológico, por
outro, somos também forçados a ver que a teoria que o descortina está ligada a um
posicionamento político em que seus defensores já não falam uma só língua.
Além disso, atualmente, os que se escondem sob o véu e os que pretendem ver
através dele não se distinguem com a clareza que talvez gostássemos de encontrar.
Desde a falência do socialismo “real”, algumas posições históricas da esquerda cada vez
mais soam obsoletas e ultrapassadas e a impossibilidade de imaginar um mundo para
além do capital é gerada e continua a gerar sua contínua naturalização, mesmo quando
as posições mais progressistas hesitam em questioná-lo abertamente.
um dado interessante a observar, a propósito da recepção de Dogville. As
revistas Carta Capital e Caros Amigos, ambas identificadas com posições à esquerda do
espectro, no Brasil, não publicaram resenhas sobre o filme. Em um artigo sobre o
festival de Cannes, a Carta Capital publica o comentário abaixo:
Ocorre que em Cannes, longe dos manuais de Hollywood, os grandes produtores
aceitam com mais freqüência viver o risco. E cineastas formalmente ousados podem inventar e
descobrir novas formas de penetração, inclusive as de mercado.
Será dessa química extravagante, mas essencial, e da discreta circulação de realizadores
como Ruiz, Alexander Sukurov (Pai e Filho,) e o indie ítalo-americano Vincent Gallo (com o
aguardado The Brown Bunny) que o festival poderá tirar forças e inventar suas próprias e
originais criaturas, até simpáticos frankensteins como o cineasta Lars von Trier? Selecionado
pela sétima vez, vencedor da Palma de Ouro em 2001, com Dançando no Escuro, Trier hoje
escreve na Dinamarca diálogos em inglês para filmes que serão distribuídos mundo afora – e diz
ter Bertolt Brecht como grande inspiração para seu novo Dogville, com Nicole Kidman e Ben
Gazzara. O diretor vangloria-se de filmar a América pelo prisma do mito, sem precisar tê-la
visitado.
No currículo desse prolífico e inventivo diretor, constam a renovação do cinema
moderno europeu (com a mitologia do Dogma 95), o boom da produção dinamarquesa e o
cinismo provocador irresistível às salas de arte e ensaio.
Ao combinar formalismo, esquerdismo e sucesso de público, Trier pode ser considerado
uma típica criatura de Cannes. Seu favoritismo a uma segunda Palma de Ouro é indiscutível, mas
correm por fora Gus van Sant (com Elephant, retornando ao cinema de baixo orçamento que o
consagrou nas origens) e Hector Babenco, que têm nas mãos um tema de forte apelo
internacional.
26
26
Alfredo Manevy, “Cannes deita no divã”, Carta Capital, 21/05/03.
57
Nesta nota, publicada antes da estréia do filme, o que temos é uma avaliação das
características do festival e nada mais do que um comentário sobre o diretor. Depois
disso, a revista apenas publicou uma nota quando da estréia do segundo filme da
trilogia, Manderlay. .
No cenário internacional, algumas lacunas semelhantes também chamam a
atenção. A tradicional revista de esquerda norte-americana, The Nation, menciona o
filme em dois artigos: “Speak Memory”, sobre o filme Brilho eterno de uma mente sem
lembranças, e The New World Order”, uma resenha sobre o livro Inhuman Bondage,
de David Brion Davis. Neste último, Dogville é citado como uma parábola útil ao
desenvolvimento de seu argumento:
Lars von Trier's recent film Dogville offers a helpful parable here, showing how fatally easy and
convenient it is for a community to allow a stranger to perform the most disagreeable tasks and only later
discover they are keeping a slave. Racial ideologies allotted very harsh jobs to those regarded as aliens or
a race apart. Davis rightly insists that the racial stereotypes generated by slavery often equated the slave
with a beast of burden or domesticated animal. At the same time, phobic forms of racism did not always
fit very well with being a slaveholder, since the master's dependence on the slave could be quite intimate.
Por mais interessante que o argumento seja, isso é tudo o que o autor diz sobre o
filme, num texto sobre outro assunto. O artigo “Speak Memory”, que é sobre outro
filme, acha Dogville menos do que um exemplo elucidativo:
For the most recent in his long series of stunts, Lars von Trier chalked some building
footprints onto the floor of a soundstage, added a bare minimum of props and flats and then shot
an entire feature in the transparently artificial town he'd created. The name of the place, and the
movie, is Dogville, a title that evokes both the stuntmaker's cynicism and his old Dogme 95
tricks.
Nicole Kidman, as game and smashing as ever, stars as a mysterious fugitive, who at
first is refused shelter in the 1930s Colorado town but then is taken in, grudgingly, thanks to the
insistence of the would-be writer and moral-rearmament crusader Tom Edison (Paul Bettany).
There is rising action (the townsfolk come to love her) and falling action (they begin to use her
most cruelly, as generally happens to the heroines of von Trier's sadomasochistic fantasies). The
movie breaks the usual pattern only in having a bang-bang denouement; someone must always
play the victim in a von Trier production, but this time there's a last-minute change in cast.
I don't deny that von Trier has talent. He kept me staring in fascination at the story he
was unfolding. So what, I thought, that he knows nothing and cares nothing about the real
America. But then came the closing horse laugh. The film ends with a montage of Depression-
era photographs–irreplaceable documents of human suffering and resistance–accompanied jokily
on the soundtrack by David Bowie's "Young Americans."
To paraphrase a celebrated review by François Truffaut: Lars von Trier despises you.
Despise him back.
Esse foi o máximo de atenção que a revista, conhecida como a mais tradicional
revista de esquerda americana, deu ao filme. Chama a atenção o fato de que sua opinião
não se distingue de uma grande parte dos argumentos que, como veremos, elogia o
58
talento de Lars von Trier e não aprecia suas idéias. Aqui, por exemplo, sua opinião se
aproxima muito da expressa pelo The Wall Street Journal, cujo crítico afirma que são os
créditos que identificam os EUA no filme e que, com eles, o diretor se rebaixa ao fazer
críticas tolas e injustas.
Argumentar de forma análoga ao jornal mais abertamente identificado com o
capital e o mercado pode parecer contraditório e indesejável, mas ainda é mais do que
fez a New Left Review, que não publicou nada a respeito do filme.
No presente levantamento as publicações de esquerda não se distinguem
fundamentalmente das demais no que se refere à área de cultura. Entretanto, seu silêncio
sobre um filme a respeito do qual até o “site do cão” que se dedica aos amantes desse
tipo de animal e no qual foi colocado um comentário sobre Dogville se manifestou
não deixa de ser curioso e talvez seja indício de um mal-estar que causa a forma
intrinsecamente contraditória da obra de Trier, que as aproximações com Brecht e a
necessidade de conceitos tradicionais da esquerda são elementos fundamentais para sua
compreensão, mas, por outro lado, não há adesão completa a nenhum deles. O filme não
inclui em sua alegoria elementos importantes para o pensamento de esquerda (como a
configuração de uma classe trabalhadora), preferindo pôr em cena apenas a abstração do
trabalho incorporado numa personagem única. Um certo segmento da esquerda talvez
tenha se incomodado com a abordagem distante do realismo por ela defendido,
enquanto talvez outra ala tenha procurado em vão uma obediência ao pensamento de
Brecht que também o se encontra no filme. Talvez, ainda, a transformação final de
Grace, de mártir da exploração em veículo de massacre fascistóide, não se encaixe
muito bem na expectativa de outros. Embora muito se possa especular, o dado concreto
é o silêncio.
ainda uma outra idéia arraigada a se considerar nos cadernos sobre cultura e
que esdiretamente ligada à obediência à delimitação de nichos de mercado: a esfera
das artes deve se preocupar com a estética, ficando as questões políticas para segundo
plano, no caso de se tratar de um “filme político”. A defesa que Fredric Jameson faz, em
O inconsciente político de que a crítica cultural deve ser sobretudo política e que a
subdivisão da cultura entre obras que são políticas e aquelas que não o são é uma
expressão da compartimentalização de natureza mercadológica também da esfera da
cultura
27
– é uma resposta a esse estado atual da crítica de cultura, que engloba inclusive
27
Fredric Jameson, “A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico”, in O Inconsciente
Político: a Narrativa como ato socialmente simbólico, São Paulo, Ática, 1992.
59
a mais sofisticada. Para o grande público, cujo acesso à crítica cultural se dá, quando se
dá, por meio das resenhas publicadas na grande mídia, as críticas se acomodam
confortavelmente nessa compartimentalização segundo a qual seu material é de ordem
exclusivamente estética. A interpretação cultural com base numa divisão de obras
políticas ou não-políticas, alvo da assertiva de Jameson, é uma prática comum que se
autojustifica pelo argumento de que a objetividade não está relacionada a fatores
ideológicos. Daí o interesse do argumento de Roberto Schwarz, para quem uma leitura
marxista é menos ideológica do que as demais, proposição que bate de frente com o
argumento da suposta objetividade e neutralidade. O que o argumento do crítico
demonstra é que a cortina de fumaça nada mais é do que ideologia disfarçada sob o
factóide da neutralidade.
Panorama da recepção crítica: a separação de forma e conteúdo
e a naturalização da análise
A crítica sobre os filmes de Lars Von Trier não começou a ser controversa com
Dogville. No entanto, observar que aspecto assume a controvérsia no caso desse filme
pode revelar quais são alguns dos paradigmas que regem a crítica cultural
contemporânea e os critérios fundamentais que regem o fazer crítico tanto nos Estados
Unidos como no Brasil.
Embora muito do que se faz no Brasil seja diretamente
influenciado por paradigmas norte-americanos, veremos que os critérios variam
especialmente em relação ao tipo de argumento elencado e ao tratamento e importância
atribuídos às questões formais.
A primeira característica recorrente que chama a ateão é a separação, na
análise, da apreensão da construção formal do filme e de seu conteúdo ou “mensagem”.
A possibilidade de que algumas manifestações artísticas, entre as quais Dogville, sejam
apreendidas como tentativas de figurar a totalidade das relações sócio-históricas
certamente não é facilitada pelo fato de que o filme está inserido no cenário cultural
contemporâneo da lógica imperiosa da fragmentação, o que possibilita que justamente
os aspectos formais que poderiam construir uma perspectiva mais crítica e menos
naturalizada sejam interpretados como escolhas estéticas aleatórias e estanques e que
possam, assim, ser assimiladas dentro de qualquer outro contexto. Dentro desse espectro
do que Fredric Jameson chama de “consumo estético” em que tanto a troca comercial
passa a ser um fenômeno cultural devido a seu apelo à imagem como a cultura passa a
60
ser um fenômeno comercial dadas as regras dentro das quais precisa circular
28
–, não é
de se estranhar que o cenário de Dogville possa ter sido descolado de seu significado e
transportado para uma propaganda de automóvel ou, como mostram os excertos abaixo,
para um desfile de moda ou para um evento de negócios:
Em seguida, Reinaldo Lourenço deslocou o público para o prédio da Faap, onde
mostrou sua coleção de inverno inspirada nos grandes teatros de ópera, de Manaus a Paris,
segundo ele. Um perfume rock impõe atitude mais forte e jovem. O cenário sai do filme
Dogville, de Lars Von Trier, com perfume de Duchamp. Em veludo de seda, ele franze as
cortinas do teatro em saias dramáticas e pendura pingentes em todo lugar: do vestido rose de
festa às calças masculinas pretas, de cavalo baixo usadas com novas bombers
29
.
A Vitrine de Negócios do Iniciativa Jovem, programa que incentiva a inserção social
do jovem por meio do empreendedorismo, acontece no dia 21 de junho, no Armazém 5, Cais do
Porto, Rio de Janeiro. O evento reúne cerca de 40 oportunidades de negócios criadas e
gerenciadas por jovens empreendedores.
Inspirado no filme Dogville, cujo cenário é feito apenas com marcações no chão, os
estandes abertos revelam os serviços e produtos oferecidos pelos empreendedores. Os visitantes
passearão pelas ruas dessa cidade das oportunidades de negócios. Nas avenidas, estarão à mostra
as atuais tendências para o setor de serviços, cultura e turismo
30
.
Esses são exemplos de “consumo estético”, ou de um dos lados dessa moeda: a
cooptação do estético para fins comerciais. Em relação a objetos culturais
especialmente, em nosso caso, o cinema –, a necessidade de circulação comercial tem
duas conseqüências marcantes. Em primeiro lugar, uma ligação estreita com a produção
do tipo linha de montagem. Enquanto em outras manifestações artísticas, tal como a
literatura ou a pintura, a figura do artista pode ser responsável pela maior parte da
confecção de seu objeto, no cinema dos grandes estúdios a divisão das áreas do trabalho
para a confecção de um objeto é notória. As premiações cinematográficas mostram esse
processo: pmios específicos para edição, fotografia, som etc. Essa separação nasce
– e se alimenta de – e ajuda a dar continuidade ao processo de especialização da
produção em todas as esferas do mercado. Interessa particularmente ver como esta
imbricação da cultura com o comércio está intimamente ligada a uma separação entre
forma e conteúdo que constitui uma concepção profundamente arraigada atualmente. Na
cultura, esse fenômeno está relacionado à libertação do signo” dos pós-estruturalistas,
especialmente em voga a partir dos anos 60; mas, também, é interessante perceber que a
premissa pós-estruturalista de que o signo remetia a nada mais do que significantes
vazios que poderiam ser intercambiáveis cai como uma luva para a necessidade da
28
Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Trad. de Maria Elisa Cevasco,
Petrópolis, Vozes, 2002.
29
Lílian Pacce, A aposta na estética dos extremos, Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 22/01/05.
30
Jovem Empreendedor, Painel de Negócios, O Estado de S. Paulo, 15//06/04
61
“lógica cultural” do capitalismo tardio, em que há uma imbricação das esferas cultural e
comercial na qual o signo “livre pode se prestar aos mais variados papéis.
31
O consumo
culturalizado e a comercialização da cultura precisam da separação de forma e
conteúdo, a qual permite que um objeto ou conceito artístico, ponto de chegada de uma
pesquisa estética e parte de um determinado contexto, seja descolado desse contexto
inicial e possa ficar disponível para a serialização que caracteriza a produção para o
consumo. Em outras palavras, na apropriação de elementos estéticos variados, o que
poderia ser chamado de “valor de uso artístico ou conceitual”, precisa ser cindido para
poder se transformar em “valor de troca estético”. Esse fenômeno está tão
estabelecido que, atualmente, muito da produção cultural já é idealizada como objeto de
consumo em série.
O descolamento de forma e conteúdo identificável na arte se encontra também
na crítica que, em grande medida, parte desse princípio como dado e não
necessidade de estabelecer esse tipo de conexão ou sequer a necessidade de fazer uma
análise da desconexão
. Uma primeira observação sobre a recepção crítica do filme
deriva justamente dessa concepção, que chama a atenção, em resenhas claramente
desfavoráveis, menções elogiosas ao aspecto artístico do filme e, também, em resenhas
mistas, uma distribuição de críticas e elogios cuja divisão segue esse mesmo critério de
separação entre forma e contdo.
Esse traço aparece com freqüência nas críticas mistas ou desfavoráveis. Entre as
brasileiras, apenas uma desfavorável e nenhuma mista, assim, a leitura dos textos
com esse tipo de posicionamento fornece dados para a avaliação da recepção do filme
nos Estados Unidos, inclusive no que se refere à separação entre forma e conteúdo. Já
nas resenhas favoráveis, com as quais podemos comparar as ocorrências entre um país e
outro, a diferença no tratamento da forma é um dos traços distintivos, havendo algumas
que mostram uma intenção mais evidente de estabelecer um sentido para as escolhas
estéticas, com conseqüências que veremos abaixo.
Nas resenhas mistas, embora a balança entre os pontos favoráveis e os
desfavoráveis não seja idêntica, um traço em comum que é justamente uma divisão
na qual o conteúdo recebe sinal negativo e a forma, positivo. No Los Angeles Times,
duas resenhas emitem opiniões de autores divididos a respeito do filme. Manohla Dargis
(Anexo C2) é de opinião, fundamentalmente, que Lars von Trier deveria usar seu
31
Fredric Jameson, “Periodizing the 60s”, in The Ideologies of Theory – Essays 1971-1986, Minneapolis,
University of Minnesota Press, 1984, v.2: The Syntax of History.
62
talento para algo mais otimista e construtivo. A resenha se declara “mista”, nem
favorável nem desfavorável, mas os argumentos favoráveis são parcos e se resumem a
um certo respeito pelo diretor e pelo reconhecimento que recebe na Europa. Para o
crítico, quando o filme estreou, no festival de Cannes, os EUA tinham acabado de
iniciar uma guerra impopular na Europa e isso lhe rendeu dividendos graças à
impopularidade do país. Um ano depois, o autor o filme como uma provocação
tediosa que desenvolve fixações contumazes do diretor:
Set on a large soundstage with a smattering of props – with the houses, streets and even
a family dog rendered in white outline on the dark floor "Dogville" is the apotheosis of art-
house high concept. Written by Von Trier and shot in digital video, the story advances on
occasionally conflicting parallel tracks – in a voice-over spoken by British actor John Hurt and in
the action played out by the international cast. The intermittent narration furnishes exegesis as
well as the slow, steady drip of irony. The some two dozen cast members, meanwhile, supply the
meager visual distraction by going through their pantomime paces closing invisible doors,
picking invisible apples with nary a raised eyebrow. The language is stripped down,
reminiscent of social plays of the 1930s, and the influence of Bertolt Brecht is palpable.
The deconstructed set and the mannered line readings are clearly the filmmaker's bid to
destroy the illusion of classical realist cinema by showing us the stitching. But Von Trier's
intentions or at least his results could not be further from the deep-rooted idealism of social
drama, in which hope flickers however faintly. Driven by a Hobbesian conception of human
beings as engaged in a war of all against all, Von Trier uses the familiar conceit of an individual
in crisis as a springboard for his usual fixations. As in his last three dramas "Breaking the
Waves," "The Idiots" and "Dancer in the Dark," Von Trier's so-called Golden-Heart Trilogy
about martyred women, he again employs the spectacle of female suffering as the basis for what
has become a depressingly cruel and merciless worldview.
O trecho acima é o coração de sua resenha e tem pontos interessantes, pois trilha
um caminho escolhido por poucos críticos. Enquanto muitos o vêem o horizonte
político dado pela forma do filme, Dargis descreve alguns elementos formais, inclusive
na sua relação com a inspiração em Brecht, e os utiliza para elaborar sua conclusão.
Para o crítico, o potencial formal/político do filme não é inteiramente desenvolvido na
medida em que ele passa longe do idealismo do drama social a que a forma utilizada
remete. Em última análise, para Dargis, trata-se de abordar a fixação do diretor com o
martírio de uma bela mulher – opinião, aliás, recorrente. O incômodo com o que muitos
chamam de falta de idealismo do filme, especialmente colocada em contraste com a
esperança revolucionária de Brecht, é repetido por outros críticos e talvez seja um dos
fatores relacionados ao sincio de publicações de esquerda em relação ao filme. No
entanto, esse impasse entre o diagnóstico e a prescrição é de natureza tal que não pode
ser resolvido na obra isoladamente, mas no mundo concreto, no qual, atualmente, o
pensamento utópico sofre por falta de legitimidade. Sorina Diaconescu (Anexo C1),
também do Los Angeles Times, declara-se em dúvida, mas seu texto indica mais
63
simpatia pelo filme e pelo diretor do que a de Dargis. No entanto, suas observações
formais o têm tanto alcance. A crítica descreve o aspecto visual do filme e cita a
inspiração nas canções de peças de Brecht, bem como o papel do dramaturgo aleo
por sua adesão ao marxismo e a mudança de paradigma que perpetrou. No entanto, não
desenvolve a questão da forma em relação ao conteúdo do filme, embora elogie o ritmo
elegante, o método, a versatilidade de Trier, seu humor sardônico e a concepção visual
do filme. Desson Thomson, do Washington Post, explicita a cisão em seu primeiro
parágrafo:
O, Great Reviewing God in the Sky, today's dilemma is a tough one. From one
perspective, "Dogville" is a film of great ingenuity and artistic vigor, made by Lars von Trier, the
Great Dane of European filmmakers. On the other, it's a misanthropic clod of earth heaved at
America by a snarky European with gimlet eyes and relaxed shaving habits.
Sua crítica desenvolve esse dilema num texto cuja estruturação se divide em
descrição formal na primeira metade e resumo do enredo na segunda, sem que haja
muito diálogo entre ambas. Esse tipo de estruturação não se restringe às resenhas que
declaram ter opiniões mistas, mas se repete também em muitas das que se posicionam
favorável ou desfavoravelmente.
Entre as resenhas desfavoráveis, esse tipo de estruturação também é comum. A
crítica de Joe Morgenstern do The Wall Street Journal (Anexo B2) é semelhante. Para
ele, o filme é uma avaliação sarcástica da natureza humana, desenvolvida com o um tom
pretensamente elevado, mas com uma realização visual deslumbrante. Na sua opinião, o
resultado da decisão da cidade de hospedar uma fugitiva não poderia ser positivo, já que
não é possível encontrar bondade no coração humano sob o bisturi de Lars von Trier.
Embora aqui não haja dúvida quanto à opinião do autor, que a expressa com profusão de
adjetivos, a crítica desfavorável se aproxima das mistas nesse aspecto, elogiando o
efeito visual e as realizações estéticas apesar do conteúdo que não aprova.
Morgestern compara elogiosamente o cenário de Dogville a um tabuleiro de
“Monopoly” que ganhasse vida própria. Mas, para o crítico, a vida naquela cidade é
dirigida pela rígida preocupação do cineasta com hipocrisia, ganância e traição, o que
desabona o filme a seus olhos. um aspecto recorrente na crítica que se verifica no
texto de Morgenstern: a observação sobre o cenário não tem relação com os eventos que
ali se passam. A comparação, que poderia ser proveitosa para a análise, especialmente
se tratando de um jogo (conhecido em português como “Banco Imobiliário”) cujo
objetivo é conquistar o maior número possível de propriedades e vencer os
64
concorrentes, não chega a ser desenvolvida. Vemos que o crítico observa como é feita a
construção do cenário e faz uma comparação cujo potencial é produtivo, mas não atribui
a ele qualquer significado para o sentido do filme. Ao mesmo tempo em que a forma se
impõe de tal modo que o crítico do The Wall Street Journal faz uma analogia das mais
pertinentes e produtivas, ela tem que ser deixada de lado, pois um aprofundamento o
levaria ao paradoxo de enxergar um sistema de regras cuja análise e crítica é prevista
por uma teoria cuja validade tem historicamente sido largamente ignorada nos Estados
Unidos.
Morgenstern identifica o esquema e a analogia do filme com um jogo, mas não
faz uma leitura das sobredeterminações a que as regras desse jogo aludem. Assim,
interpreta as ações humanas com critérios morais e, conseqüentemente, atribui o sentido
do filme à suposta opinião que o diretor tem da humanidade, numa interpretação
para a qual sua observação formal não é de nenhuma valia. Essa separação, além da
constituição do argumento, pode sugerir uma inclinação conservadora por parte do
crítico.
uma estrutura parecida nas resenhas do The Wall Street Journal e do The
New York Times, a saber, o fato de ambas identificarem aspectos formais importantes de
Dogville e, no caso do primeiro, não tirar grandes conclusões de sua própria descrição e,
no segundo, como veremos a seguir, atribuir a ela valor negativo. No caso dessas
resenhas, um potencial interpretativo nas descrões formais, o qual é limitado pelo
ponto de vista adotado pelos autores. Tais limitações na interpretação de ambos, apesar
de suas observações formais e analogias potencialmente produtivas remetem à noção
hegemônica de que não há sobredeterminações sobre os seres humanos, os quais seriam
livres para agir como lhes aprouvesse. Dessa forma, a descrição do cenário do filme
como um jogo ou a despersonalização das personagens são vistos como nada além de
uma escolha estética aleatória ou de uma redução do status dos personagens.
Para Stephen Holden, crítico do The New York Times, Dogville é expressão da
misantropia do diretor, que retrata o ideal de comunidade como mentira e conclui que os
seres humanos não são melhores do que cães, mas provavelmente piores. Sua descrição
formal é mais detalhada e tem em comum com o crítico do The Wall Street Journal o
fato de identificar e descrever padrões formais de grande interesse. Holden dá um
pequeno passo além de Morgenstern, pois seu incômodo em relação ao retrato das
personagens como formigas atribui valor à formulação formal que descreve, embora não
chegue a utilizá-las como base para sua interpretação. Apesar da descrição da
65
despersonalização e do distanciamento, sua crítica sobre eles é, quando muito, a
expressão de uma opinião negativa, que a vantagem dessa estratégia depende de um
ponto de vista epistemológico diferente do adotado pelo autor da crítica. Sua descrição
formal está contida em parágrafos inteiramente descritivos e não subsidiam a
interpretação, embora Holden faça uma descrição das estratégias de distanciamento o
descarte do naturalismo na concepção do cenário e a narração afetada que é uma das
mais detalhadas do corpus – especialmente entre as americanas:
The Brechtian gap between the audience and what unfolds is much wider in ''Dogville''
than in Mr. von Trier's previous movies because the new film, shot in digital video, all but does
away with naturalistic trappings. It takes place on a stage designed as a map, with props and
chalk directions indicating place names like Elm Street (although we're told that there are no
elms in Dogville). The stage is large enough to accommodate moving cars.
A favorite camera device is to peer down from above to observe the characters (their
actions sometimes sped-up) as scurrying ants. Because of the Depression, the town is hopelessly
bedraggled, and filming the movie (in bleached-out color) on a stage set has enhanced the
claustrophobic ambience.
That Brechtian distance is further widened by the flowery delivery of an unctuous
British narrator (John Hurt), who relates the story in a facetious parody of fairy-tale language.
Like a storybook, the movie is divided into chapters with explanatory titles.
No entanto, ele não tira conclusões dos elementos que descreve nem parece
encontrar nenhuma correspondência entre eles e sua interpretação do filme: a descrição
da forma não encontra correspondência alguma com o conteúdo. Sua descrição mais
detalhada dos aspectos formais do filme contempla, por exemplo, uma descrição dos
planos verticais que, segundo ele, mostram pessoas como formigas. A avaliação do
crítico é negativa e sua antipatia parece derivar do fato de tal procedimento “reduzir”
seres humanos a meros autômatos. De fato, os planos verticais de Dogville produzem
um afastamento da esfera dramática que nos permite olhar para aquele microcosmo
como tal e a comparação com formigas é especialmente interessante: em cenas como a
que mostra Grace apressando-se para cumprir sua nova jornada de trabalho, temos a
possibilidade de olhar para a exploração como noção abstrata, de forma impessoal. O
sinal negativo do crítico, entretanto, sugere uma preferência pelo modelo dramático, o
que talvez explique a rejeição a tomadas que despersonalizem as personagens. Stephen
Holden demonstra ainda um grande incômodo com a questão do que é conhecido, na
fórmula de Coleridge, como “suspension of disbelief”, que nada mais é do que a
premissa de que os dados para a verossimilhança de uma narrativa ou anedota é
postulada por ela própria. O problema, para ele, é que, aceitas as premissas do filme, ele
frustra as expectativas da audiência:
66
Unlike most serious filmmakers who demand your trust, Mr. von Trier solicits it with a
supercilious smirk, then mocks your emotional expectations with a teasing ambiguity. Alfred
Hitchcock, who's also been accused of sadism, played tricks that tickled. Mr. von Trier wants his
to leave a sting, along with the uneasy suspicion that he's played you for a fool.
O que observamos em sua análise é um profundo desconforto com a falsidade das
relações estabelecidas entre as personagens, entre o narrador e as personagens, entre o
narrador e o espectador e, assim, em última instância, entre o filme e sua platéia. O
potencial interpretativo desse desconforto dependeria do abandono dos padrões
dramáticos, pois é do tecido formal do filme contemplar padrões estéticos antagônicos e
lançar dúvida sobre o que pode parecer confiável, como é o caso do narrador irônico.
Ambos, Morgenstern e Holden, mostram como a forma do filme,
despersonalizando as personagens e apontando para um sistema de funcionamento cuja
crueldade as suplanta, encontra sérios obstáculos para ser interpretada sem uma leitura
política. Quando se dedicam a observá-las, deparam-se com elementos que, numa
interpretação do filme dentro de parâmetros que se pretendem “não-ideológicos” e
apolíticos, levam a uma de duas possíveis conclusões: de que o talento do diretor é
desperdiçado e que não contribui para uma mensagem construtiva opinião de
Morgenstern e dividida com outros críticos ou que seu talento está a serviço dessa
mensagem pessimista, caso de Holden, que também não está só.
A descrição de uma estrutura histórica que determina a vida social é uma
prerrogativa da esquerda e, nas opiniões de críticos como Holden e Morgenstern, não é
sequer um elemento a se considerar, que, mesmo descrevendo o tabuleiro de
“Monopoly” ou os planos verticais em que pessoas se parecem com formigas, os
críticos não se desviam de sua atenção ao drama e se incomodam com o que a filmagem
de Trier faz com os seres humanos que, na estrutura do drama clássico, são agentes
individuais análogos ao proposto por Diderot.
Diferentemente de Morgenstern, nos textos de Stephen Holden e de Roger Ebert,
do Chicago Sun Times (Anexo B3) não propriamente elogio ao conceito artístico do
filme, mas sim descrições de suas estratégias. No entanto, a descrição da forma
independentemente do conteúdo e como fim em si mesma persiste.
O conteúdo do filme é, para Ebert, uma parábola da América cujo erro é não
perceber que entre os americanos reais gente boa e má, ou seja, é fazer uma
generalização unilateral e equivocada sobre os EUA. Para o crítico do Chicago Sun
67
Times, a descrição da forma não se relaciona com a argumentação acerca do conteúdo, a
não ser por seu comentário sobre a atuação que, embora ele não explicite, pode ser visto
como decorrência da parábola simplista de Trier: pare ele, os atores recitam truísmos em
falas sem espontaneidade ou variações de tom. Pode-se especular que talvez haja um
raciocínio subliminar que implique que, como o filme se preocupa em demonstrar uma
premissa que não encontra eco nas pessoas reais, o trabalho dos atores seigualmente
vazio e carente de material humano “real”. No entanto, embora a abordagem dos dois
aspectos possibilite o estabelecimento dessa relação, ela pode ser suposta, que o
texto não explicita ligação entre a atuação e o significado do filme.
A resenha de Contardo Calligaris, publicada na Folha de S.Paulo (Anexo B1) se
diferencia acentuadamente das demais, não só pelo tipo de argumento, uma especulação
de ordem psíquica das motivações do diretor, mas também pela pouca atenção dada às
questões abordadas no filme propriamente dito, bem como à sua construção. Na única
resenha desfavorável do corpus de textos brasileiros, pela própria característica do
texto, não nem elogio às conquistas artísticas nem uma descrição empenhada da
estética do filme: calcada numa avaliação psicológica do diretor, o qual, supostamente,
usaria o preconceito para atribuir seus problemas a outros, a resenha de Calligaris
comenta os aspectos formais do filme apenas na medida em que ele julga que servem ao
mesmo intuito de caracterizar psicologicamente o diretor. Para o ctico, o cenário e os
diálogos não são mais do que expressões da pretensão artística e intelectual de Lars Von
Trier (“querem ser Godard”). A única descrição formal é que as personagens o têm
complexidade. Essa última afirmativa, que parece indicar que o crítico ressente os
desvios do modelo dramático, nos instiga a questionar se um filme que expressa apenas
os problemas psicológicos do diretor poderia ter personagens complexas mesmo no
sentido dramático, para o qual há necessidade de personagens desenvolvidas dessa
forma.
Até mesmo devido ao fato de apenas um texto crítico brasileiro ter sido
desfavorável ao filme, pouco contraste de opiniões entre as resenhas brasileiras e
americanas desfavoráveis ao filme. Assim, entre os dois países, há mais diferenças
observáveis entre as que opinam favoravelmente, e que constituem a maior parte do
corpus. Em algumas dessas resenhas, embora o conteúdo passe a ter avaliação positiva,
a descrição da forma ainda é um item separado na análise.
Para muitas das resenhas norte-americanas, a própria razão da avaliação
favorável é justamente a realização artística apesar do conteúdo (em que identificam
68
antiamericanismo, misantropia etc.). Esse é o caso dos textos de Michael O’Sullivan, do
Washington Post (Anexo A 15), e do de Michael Wilmington, do Chicago Tribune
(Anexo A14). Nesses dois casos é a realização estética que garante o tom da crítica.
O’Sullivan acha que o filme chafurda em antiamericanismo nada sutil (o que
atestaria, por exemplo, a cena que as crianças cantam “America the Beautiful” na
comemoração do 4 de julho), retratando os americanos como cidadãos desconfiados e
virulentamente xenófobos. Para ele, no entanto, a audácia da visão artística do filme
compensa o insulto:
Still, such ham- fistedness, annoying though it may be, is not reason enough to avoid
"Dogville," which by virtue of the sheer audacity of its artistic vision, invites mute awe
alongside open condemnation.
A conclusão de seu artigo confirma essa posição:
Yes, it plays like a baldfaced, brazen insult, but it is a stunningly accomplished one. It
hurts, but maybe it should.
Assim, para o crítico do Washington Post o filme é um insulto descarado, mas
realizado com talento notável e produzindo um efeito incrivelmente belo.
No caso do crítico do Chicago Tribune (Anexo A14), Michael Wilmington, o
filme é uma fábula de hipocrisia e redenção na qual a cidade de Dogville é uma arena de
desgraça moral. Atribui o maior interesse do filme à capacidade do diretor de fazer um
drama de 3 horas com um elenco internacional estelar mas sem um cenário:
(…) howl of nihilist mockery at American self-sentimentalization, it's a movie so
theatrical and perverse that it's almost guaranteed to outrage or drive away much of its audience.
But those detractors will be missing something special.
"Dogville" is a three-hour drama from a major filmmaker, with an all-star international
cast headed by Nicole Kidman, but almost no sets or scenery.
Michael Wilmington acha a atuação incrivelmente boa, apesar das filmagens
supostamente difíceis e da narrativa descarnada:
In "Dogville," he strips narrative filmmaking even past the bare bones, super-neo-realist
style of his weird Dogma 95 film "The Crazies." But the acting is very fine. "Dogville" has a
great cast– and, even if, according to Sami Saif's behind-the-film documentary "Dogville
Confessions," many of them were alienated by the difficult shoot, the strain doesn't show. The
actors, especially Kidman, Bettany, Hall, Skarsgaard, Clarkson and Bacall, play their parts with
clarity and total control.
69
Esta resenha tem um argumento que, embora o seja central, nem tampouco
extensivamente desenvolvido pelo crítico, apresenta uma interessante percepção das
questões de esquerda e direita:
But though "Dogville" often preaches like a classic left-wing social drama, there's a
strain of right-wing individualism feeding it as well. Von Trier attacks the same kind of social
and moral flaws that many homegrown American movies target - while, at the same time,
assaulting American moviemaking conventions.
Interessa a percepção de que há um movimento ambíguo em Dogville que
contempla duas questões aparentemente antagônicas e, além disso, a de que uma
crítica às convenções cinematográficas americanas. Talvez o grande salto do crítico seja
perceber a ambigüidade constitutiva do filme e deixar implícita a não de que seu
esquerdismo se baseia fortemente em sua estrutura formal, que ataca as convenções do
cinema americano. Isso posto, ele identifica como questão central do conteúdo do filme
“o mesmo tipo de falha moral e socialque vê atacado por filmes americanos. O crítico
percebe que esse ataque às convenções do cinema clássico, dado pela forma do filme,
indica uma perspectiva maior, sistêmica. No entanto, crê que muitos filmes americanos
não ficam aquém, que a aparência de crítica social e moral lhe parece similar. Em
outras palavras, o ataque formal insere no debate, pelas suas raízes estéticas (Brecht) e
pela perspectiva que oferece (especialmente a que é possibilitada pelos planos verticais
e pela falta de paredes), categorias de pensamento desacreditadas nos EUA, o que faz
com que a elaboração formal não chegue a suscitar uma análise que leve suas
implicações às últimas conseqüências.
A grande diferença entre esse tipo de resenha e as que se declaram mistas e têm
opiniões que mesclam pontos positivos e negativos é que, para críticos como os
mencionados (O’Sullivan e Wilmingon), a realização artística garante a avaliação
positiva do filme, muito embora tenham reservas ou desprezem abertamente seu
conteúdo. Perde-se, assim, a possibilidade da avaliação da forma do filme como
conteúdo, o que poderia dar um alcance maior a ambos os tipos de avaliação. No caso
da resenha desfavorável do The Wall Street Journal, que tem estrutura similar, a ênfase
é oposta. Apesar do efeito visual arrebatador, é o conteúdo do filme, expressão da
misoginia do diretor, que o desqualifica aos olhos do crítico.
O que notamos ao examinar as resenhas publicadas sobre o filme, portanto, é
que a estruturação da maioria delas desmente o argumento dos defensores da
70
neutralidade e da objetividade, segundo os quais um objeto é sobre um assunto e é dele
que a crítica deve tratar, excluindo especialmente as leituras “tendenciosas” ou
“ideológicas”. Isso porque, no caso de Dogville, a leitura da alegoria política é parte
necessária dessa compreensão e, mesmo assim, muitas vezes ignorada. Vimos até aqui
que um dos mecanismos empregados nessa tarefa é a separação do conteúdo da obra da
forma como ele é construído. É ele que permite, nos exemplos citados, que as variações
de opinião independam da análise do filme. Como vimos, em vários desses textos, a
análise de qual seria o assunto ou conteúdo do filme é coincidente e o julgamento de seu
valor constitui muitas vezes não um juízo acerca desse conteúdo, mas um elogio do
talento artístico do diretor. Há, portanto, uma questão que vai am do simples critério
de valor atribuído a um determinado fenômeno e que está relacionada à
compartimentalização de todas as experiências da vida contemporânea. Em outras
palavras, não se trata apenas de, uma vez compreendido o filme, opinar sobre ele. Trata-
se de uma separação que engessa a análise do filme por não levar em conta que a forma
produz sentido e que se insere na questão da delimitação de nichos de mercado e da
instrumentalização da cultura para fins comerciais, um dos aspectos definidores do
capitalismo tardio para Fredric Jameson, como já mencionado.
As relações entre a análise da forma e o tipo de argumento desenvolvido
Outra característica comum às resenhas do corpus está relacionada ao tipo de
argumento elencado para compreender o filme. Muitas delas afirmam que o filme é
expressão da misoginia de Lars Von Trier, de seu ódio contra a humanidade, uma
descrição da natureza humana ou um ataque a ela. Interessa-nos perceber que esse tipo
de argumento revela um alto grau de naturalização dos processos sociais presente de
forma marcante na crítica cultural. Interessa, também, verificar que, embora muitos
prescindam de uma análise formal para desenvolver seu argumento limitando-se a
uma descrição do cenário, da narração e de um ou outro efeito por eles produzido –, há,
também, entre aqueles que procuram produzir uma análise que contemple esse aspecto,
os que acabam reduzindo a discussão a uma analogia entre a falta de cenários e o
desenvolvimento das personagens, seja pela caracterização deficiente ou pela
caracterização de personagens limitados e sem grandes horizontes de pensamento.
Entretanto, na maioria dos casos, é nas resenhas que se propõem a analisar a forma do
71
filme com um pouco mais de atenção que se produzem os argumentos mais críticos e
menos afeitos à naturalização de todos os processos sociais.
A Folha de S.Paulo publicou um artigo de Jacques Rancière em que o autor
francês desenvolve um argumento sobre o que se entende por “mal” no cenário
contemporâneo. Intitulado “O Império do Mal” (anexo D 1), o artigo argumenta o
seguinte: filmes como Dogville, Sobre meninos e lobos e Elefante mostram não apenas
que há mal dentro do território americano, o que, por si só já é um avanço em tempos de
guerra no Iraque e “eixo do mal”, mas também que o “mal” é visto como uma entidade
quase metafísica, que as causas últimas do mal contemporâneo estão fora da
discussão. O autor menciona conceitos populares na década de 1960 e identifica,
justamente, a perda do sentido das causas da violência:
Existem a boa e a violência. Até pouco tempo atrás, policiais, xerifes ou justiceiros
free-lancers exerciam sem complexo, no cinema, a violência da lei comum ou da moral contra a
violência dos que seguiam apenas a lei de sua avidez. Na cena do mundo, via-se, de uma forma
divergente, uma oposição do mesmo tipo: a violência que oprime e a violência que liberta,
dizia-se no tempo de Sartre e de Frantz Fanon [1925-61, escritor martinicano]. Se era possível
marcar a diferença, é porque se podiam atribuir causas à violência, remetê-la a uma violência
mais oculta, a violência da ordem e da propriedade. A partir daí se estabeleciam os roteiros
políticos da dureza necessária à justiça ou os roteiros estéticos do confronto das violências.
Sobre Dogville, o autor explica como o “mal” já é representado
independentemente de suas causas:
Grace (a graça) torna-se uma figura crítica à maneira de Dostoiévski, uma enviada do
além que depara com o gosto da exploração e da humilhação infligidas ao outro nas mais ínfimas
e tranqüilas células do corpo social. O mal encarnado particularmente na perversidade do
pequeno Jason, que pede como prova de amor umas palmadas nas nádegas, que servirão a seguir
para acusar Grace, não pode ser remediado por nenhuma luta. É o que mostram, em sua
ambigüidade, as fotos que compõem os créditos no final do filme: fotografias de Walker Evans,
de Dorothea Lange e outros fotógrafos testemunhas dos tempos da Grande Depressão e do
engajamento social dos artistas. Não se sabe muito bem se essas fotos estão para lembrar uma
injustiça social doravante sem justiceiros ou para dar a entender que os "great men" de Walker
Evans e James Agee se transformaram nesses pequenos monstros da América profunda. Mas
uma coisa é certa: a luta social não é mais uma resposta ao mal com que Grace depara. A
vontade de fazer o bem não é mais uma ingenuidade a esclarecer. É uma arrogância a castigar. O
Senhor, pai de Grace, que se reserva a vingança, é idêntico ao rei dos bandidos que faz justiça à
humanidade sob a forma do extermínio radical. Essa visão do mal e da justiça provocou
indignações - e não norte-americanas. O presidente do Festival de Cannes disse claramente
que não era possível premiar um filme tão afastado dos sentimentos humanistas.
Na opinião de Rancière, portanto, o filme dinamarquês retrata um “mal” que não
encontra na luta política uma possibilidade de combate. Para ele, uma semelhança
com a Santa Joana dos Matadouros e “a mesma conclusão se produz, a saber: a
impossibilidade de fazer o bem num mundo mau e a necessidade da violência. Mas a
analogia se detém aí. Em vez de Chicago, da especulação capitalista e da miséria ou da
72
revolta operária, trata-se de um buraco perdido qualquer da América profunda, dos
serviços de vizinhança e da banalidade do mal entre pessoas de bem.”
Como vimos, não há dúvida de que Lars von Trier não é Brecht e as
ambigüidades de seu filme são muitas. Elas questionam o modelo dramático, mas
esbarram nas (im)possibilidades atuais do épico e de seu horizonte político. A falta de
um horizonte utópico na vida social, e não apenas no filme, determina esses limites.
Mesmo assim, a análise de Rancière é uma das mais esclarecedoras e também traz um
ponto de vista produtivo para avaliar o tipo de argumentação desenvolvida pela crítica.
Algumas resenhas apontam essa diferença entre os supostos pessimismo de
Dogville e otimismo de Brecht. A maioria, no entanto, faz uma análise a-histórica do
filme, na qual as características que descrevem se referem à humanidade ou à natureza
humana como conceitos atemporais, o que demonstra que a falta desse horizonte está na
vida real e impregna as suas possibilidades de interpretação. E a prática da separação de
forma e conteúdo, discutida anteriormente, favorece o uso desse tipo de argumento,
pois, ao perscrutar-se a forma, alguns elementos se impõem à discussão: o horizonte
político inserido pela menção a Brecht, o funcionamento econômico da cidade, as regras
sistêmicas que ali transparecem e o afastamento do modelo dramático, os quais apontam
para um horizonte que desnaturaliza o debate. A própria citação de Brecht tem o
potencial de incluir a questão política no debate, porém, consideradas a separação
contumaz entre forma e conteúdo e a falta de um horizonte utópico na vida real, o que
se constata é que grande parte da crítica ignora o debate político e, sem parâmetros para
avaliar o “mal” de Dogville, atribui a ele a mesma metafísica descrita por Rancière,
embora não a relacione com nosso momento histórico como o autor francês procura
esboçar.
Outro aspecto que se identifica é a recorrência, especialmente nas resenhas
norte-americanas, de textos cujos argumentos são de ordem exclusivamente moral ou
referentes à “natureza humana”. Veremos que a percepção de Jacques Rancière é
especialmente adequada a ambas.
Das seis resenhas favoráveis do corpus de textos americanos, duas interpretam-
no como comentário sobre a natureza humana (entendida como características inatas de
todos os seres em qualquer momento histórico), ts identificam um ataque aos EUA ou
a seus cidadãos e uma no filme a construção de um bizarro drama social. Entre os
73
críticos que não gostam de Dogville, nos EUA, a análise a-histórica é, como vimos, uma
característica comum a todos.
No caso dos textos publicados em veículos brasileiros, cinco tratam da
humanidade como dado a-histórico, cinco abordam questões políticas e sociais, uma
no filme uma discussão de ordem filosófico-religiosa e uma afirma que o tema do filme
é a vingança.
33%
50%
17%
natureza
humana
anti-
americano
drama social
42%
42%
8%
8%
humanidade
a-histórica
questões
políticas e
sociais
questões
filosófico-
religiosas
vingança
mais resenhas favoráveis no corpus de textos brasileiros. Por essa razão, os
argumentos que apelam para a noção de “universalismo” (no sentido de não-
determinação de tempo e espaço) são mais freqüentes no Brasil do que nos EUA. Entre
as brasileiras, 42% apontam a humanidadecomo tema do filme ou alvo da crítica do
diretor, enquanto nos Estados Unidos 33% falam da “natureza humana”. No entanto, os
argumentos americanos que diferem dos relativos à natureza humana se concentram nas
características americanas que julgam estar no alvo de Trier, também sem dar-lhes um
respaldo social, cultural ou histórico mais profundo. Trata-se, portanto, de identificar
em que aspectos os americanos são naturalmente bons ou maus. Somando-se as
referências à natureza humana e ao antiamericanismo desprovido de referência
histórica, teríamos números diferentes:
83%
17%
humanidade ou
americanos
bizarro drama
social
74
Sob essa perspectiva, em 83% das resenhas americanas selecionadas, não há referência
a abstrações teóricas que aludam a leis sociais, econômicas ou políticas que
caracterizem historicamente o modo de funcionamento da sociedade em que o filme se
passa e se produz, mas sim uma relação direta entre como as pessoas em geral ou os
americanos em particular são e como elas são representadas no filme de Lars von Trier.
Como nenhuma delas afirma que o diretor faz um filme elogioso nem aos americanos
nem à natureza humana, conclui-se que, no caso dos textos favoráveis, lhes apraz ter um
retrato pessimista e desesperançoso do possível futuro da humanidade.
Assim, um traço distintivo se nota entre as resenhas norte-americanas e as
brasileiras: enquanto as brasileiras se voltam muitas vezes a questões de ordem política,
especialmente fazendo leituras de Dogville como alegoria do uso/abuso do poder, os
críticos dos EUA recorrem com mais freqüência a argumentos sobre a natureza humana.
Percebe-se assim,
uma diferença importante quanto ao estágio de naturalização dos
processos sociais. A interpretação do filme em termos exclusivamente individuais se
com maior freqüência nas resenhas americanas, enquanto nas brasileiras encontram-se
com mais freqüência argumentos de ordem sociológica ou política. Elas parecem indicar
a prevalência desse tipo de avaliação dos fenômenos no Brasil, em cujos textos
transparece com mais freqüência uma concepção do indivíduo como entidade sobre a
qual pairam sobredeterminações que a suplantam. Essas observações parecem indicar
que a ideologia do individualismo tem mais aparência de verdade nas terras do Norte.
As críticas publicadas no San Franciso Chronicle e no Houston Chronicle
afirmam que o filme é sobre natureza humana. O crítico do Houston Chronicle (Anexo
A17), Eric Harrison, aponta para a natureza humana como tema do filme, sem fazer
contextualizações. Para ele, Dogville é um laboratório no qual Tom conduz um estudo
sobre a natureza humana para cujos resultados, no entanto, ninguém está preparado. Ele
afirma que Trier é crítico dos EUA, mas que isso é quase irrelevante para o sentido do
filme, que é um comentário sobre a natureza humana. pouco comentário do formal,
que se resume à afirmativa de que a abordagem estilizada distrai o espectador por
pouco tempo e que, em última análise, ao abolir as expectativas naturalistas, delimita a
narrativa dentro dos limites da fábula. Não qualquer relação intrínseca, no entanto,
entre determinar um tom fabulístico ao filme e afirmar que ele trata da natureza
humana, já que isso poderia ser discutido no formato dramático “clássico”. Tampouco é
75
intenção do crítico fazer essa relação, o que indica que a descrição formal tem um fim
em si mesma, alheia à discussão do sentido do filme.
Também para Mick LaSalle, do San Francisco Chronicle (Anexo A13), o
grande alvo do filme são os EUA. Apesar de seu conhecimento de segunda mão dos
EUA, Trier retrataria e elucidaria um tipo de patologia humana tipicamente americana:
pessoas que se alinham com autoridade para esconder seus traços vingativos; pobres
que se identificam com riqueza e não um com o outro; e, principalmente, pessoas que,
com fé inabalável em sua própria retidão moral, utilizam-na como licença para cometer
os atos mais imorais. Para ele, no entanto, são os termos humanos da questão que dão
força ao filme. Assim, embora afirme que Trier tem muito a dizer sobre a natureza
humana e o provincianismo, identifica no filme a descrição de uma certa patologia
humana tipicamente americana. O argumento do crítico do San Francisco Chronicle
tem em comum com a maioria das resenhas o fato de descrever o cenário do filme, mas,
num esforço crítico, atribui-lhe um certo efeito. Segundo ele, a construção do cenário
revela que Trier está interessado em retratar o isolamento e a falta de imaginação das
personagens, para os quais daria no mesmo se o mundo fosse plano e cercado de
escuridão. A descrição formal é breve e pouco desenvolvida e, apesar de contribuir para
que o texto seja menos genérico, não impede que ele se debruce sobre categorias morais
e as aborde como fato humano dado.
A maior exceção no que se refere ao espectro ideológico coberto pelas resenhas
americanas talvez seja a de Michael Wilmignton, do Chicago Tribune (Anexo A14).
Para o crítico, como vimos, trata-se de um drama social bizarro aliado a um “case” de
boa atuação, em que, apesar de questionar a estética hollywoodiana, o diretor trata de
questões semelhantes às encontradas em muitos filmes americanos. Portanto, que o
“conteúdo” é semelhante, a crítica da forma seria apenas de natureza estética, o que
mantém intacta a separação de forma e conteúdo em sua análise, apesar da observação
sobre a questão da linguagem. Além disso, analisa o filme como um ataque às falhas
sociais e morais que são alvo de ataque por parte de muitos filmes feitos nos Estados
Unidos, abstendo-se de uma avaliação das condições estruturais que as determinam.
Para Claudia Puig, do USA Today (Anexo A18), Trier merece elogio por fazer
um filme que instiga o pensamento e é notavelmente diferente da maioria dos filmes
produzidos atualmente. Para ela, Dogville simboliza a América e o filme acusa o país de
dar as boas-vindas a estrangeiros, mas, em última instância, explorá-los. Mostra a
impotência do liberal e a crueldade da população conservadora e força os americanos a
76
se inteirarem de como o país é visto de fora. Acredita, ainda, que empregar atores de
Hollywood para fazer um filme tão antiamericano é intrigante tática subversiva. Claudia
Puig se coloca entre os que elogiam a concepção artística do filme, mas seu texto apenas
descreve o cenário sem tentativas de análise mais aprofundada.
Na crítica publicada pelo Detroit Free Press, de Terry Lawson (Anexo A16), o
filme poderia ser interpretado como palestra sobre os efeitos do capitalismo, mas é
sobretudo um ataque ao cater americano. Americanos se esconderiam por trás de uma
fachada de boas intenções e um escudo opressor de autopreservação. Para ele, o mais
interessante é verificar os arquétipos representados pelas pessoas de Dogville, com as
quais facilmente identificamos pessoas que conhecemos.
No Brasil, Paulo Blank, do Jornal do Brasil, e Isabela Boscov, da revista Veja
(Anexos A4 e A12, respectivamente), fazem as resenhas cujos argumentos têm menos
contextualização histórica ou social. Para o primeiro, o filme é uma reflexão sobre a
arrogância, para a segunda, sobre a humanidade e sua escassez de virtudes. Apesar de se
assemelharem a algumas resenhas americanas, no que diz respeito à falta de
especificidade histórica e social, a terminologia empregada chama a atenção. Em vez de
“natureza humana, aparece “humanidade”, que é um conceito de conotação
ligeiramente mais coletivo e social e, assim, situado um degrau abaixo na escala de
naturalização.
Felipe Hirsch, no Jornal do Brasil (Anexo A1), também fala do indivíduo, mas
ressalta a dificuldade do convívio em sociedade. No entanto, não há especificação
quanto a que tipo de sociedade desperta ou contradiz os impulsos da ambição
individual. Trata-se do indivíduo contra a coletividade em abstrato, pouco importando
que coletividade seja essa ou quais suas características. Esse é o caso da crítica da
revista Bravo! (Anexo A11), para a qual não há lugar para Graces nesse mundo, embora
não dê especificidade histórica para o “mundo” em questão e, pelo contrário, identifique
nas referências aos EUA uma armadilha inócua. Para o autor da Bravo!, o filme é
resumido pelas palavras de Tom: é sobre “a alma humana, onde ela cria bolhas”, e o
crítico afirma que ele tematiza o filme tematiza o massacre da inocência pela
brutalidade coletiva e seu moralismo prega a punição em vez da tolerância. Segundo
Michel Laub, duas “iscas” no filme. A primeira seria a noção de que o filme trata da
história americana, que, para ele é uma mera questão de publicidade já que acha o
contexto americano irrelevante para o desenvolvimento do enredo. A outra “isca” seria
a questão do teatro, sobre a qual diz o seguinte:
77
A escolha do teatro, por sua vez, é mais complexa. A forma não está ali por
acaso, e a recusa ao refresco dramático e à fluidez cumprem uma função de catequese,
digamos assim. Dogville tem cerca de 3h de duração, e cada minuto cobra sua taxa em
aridez e peso: é como se o espectador fosse uma espécie irredimível de crédulo, que
precisa ser sempre lembrado de que o mundo é feio, de que o homem é torpe, e a
compreensão dessa verdade em toda a sua inteireza não é nem mesmo a saída para que
algo seja mudado.
O excerto é um interessante exemplo de como um olhar cujo ponto de vista é a-
histórico enxerga procedimentos tomados a Brecht.
Décio Pignatari escreveu um artigo para a Folha de S.Paulo (Anexo A 10), no
qual comenta a influência de Kierkergaard nos filmes de Lars Von Trier e sua
importância para os dinamarqueses em geral. Para ele, Trier transpõe sua “fúria
kierkegaardiana” contra os Estados Unidos. Vemos que, a despeito da roupagem, o tema
do antiamericanismo continua. Também o diretor Hector Babenco, cujo Carandiru
concorreu em Cannes junto com Dogville, escreveu um artigo sobre o filme, nesse caso
para O Estado de S. Paulo (Anexo A 7). Para ele, o filme é sobre a construção da
América, em especial as contribuições da Igreja luterana para o processo de acumulação
capitalista. Isso permite mostrar a hipocrisia dessa sociedade, em que a barbaridade
acontece no seio da gente de bem. O ponto que mais enaltece no filme é de ordem
formal. Para ele, o raconto reduzido ao mais essencial torna-se, assim, mais denso. O
texto de Amir Haddad, para o Jornal do Brasil (Anexo A 3) enfatiza a abordagem
teatral do filme, da qual gosta muito. Para ele, o filme tem muito de Our Town e de
Dürrenmat. É a grande produção teatral em que todos “contam a inquietante história
desta jovem Clara Zanassian que se vinga de maneira magnífica do mal que a cidade lhe
causou”. Ele elogia as escolhas de Trier: é bom ver o cinema romper os grilhões do
realismo e retomar o caminho de seus grandes criadores”.
Nas resenhas cujos autores não são críticos de cinema por profissão, vemos que
as opiniões são variadas e alguns elementos chamam a atenção. Em primeiro lugar, para
Babenco, a forma é um elemento que ele elogia muito, mas como elemento em si
mesmo, e também, especialmente, por acreditar que se Trier houvesse terminado seu
“rascunho” poderia tê-la banalizado. Ou seja, atribui à elaboração formal do filme parte
de sua capacidade de tratar de abstrações, o que corrobora sua análise de que o diretor
parte da contribuição luterana da não do lucro como direito divino para o processo de
acumulação capitalista e chega a expor a hipocrisia dessa sociedade. O diretor teatral
78
Amir Haddad, por outro lado, fala extensamente de fontes possíveis, como Our Town e
A visita da velha senhora, em especial de seus traços épicos e próximos de Dogville. No
entanto, sua comparação com o épico no que se refere ao conteúdo é tímida:
Em Dogville, um narrador nos conta a vida de uma cidadezinha que, como a de
Wilder, recebe a visita de uma jovem que precisa de abrigo. A narrativa informa tudo o
que precisamos saber para entender a história, que é complexa, filosófica e
contemporânea. A cenografia é absolutamente teatral e talvez seja a coisa mais atraente
do filme, não fosse a qualidade do elenco e, principalmente a beleza, a inteligência e a
força dramática de Nicole Kidman.
A princípio a moça é bem recebida pela comunidade. Mas, aos poucos, vamos
vendo, em uma ampla plataforma cenográfica de dar inveja a qualquer diretor de teatro,
a pacata cidade se transformando em algoz impiedoso de sua nova hóspede-moradora-
refugiada. A tortura não tem limite. Atores, roteiristas, diretor, iluminadores e
cenógrafos, juntos, como numa grande produção teatral, contam a inquietante história
desta jovem Clara Zanassian que se vinga de maneira magnífica do mal que a cidade lhe
causou. Pura violência.
E nós saímos do cinema também ''vingados''. É assim que o mundo é? É assim
que deve ser? Poderá ser de outro jeito? É impossível não pensar em Bertolt Brecht e no
seu teatro.
Como em Brecht, as seqüências do filme têm subtítulos que nos esclarecem a
respeito dos acontecimentos futuros. E, embora não haja suspense, é impossível tirar o
olho da tela. O sofrimento de Kidman é tão atraente quanto sua vingança. E é puro
teatro sem deixar de ser cinema.
Aqui vemos, mais uma vez, a expressão de uma simpatia pela linguagem do
filme cuja ligação com suas questões fundamentais, no entanto, permanece pouco
explorada. A aprovação da vingança de Grace suscita dúvidas quanto à interpretação
que parece haver da obra de Brecht.
Na resenha publicada no caderno “Mais!da Folha de S. Paulo (Anexo A 9),
Jorge Coli afirma que Lars von Trier concebe um microcosmos parecido com
Mahoganny, mas não tem a convicção de Brecht de que a sociedade pode se modificar e
que a arte tem papel nisso. Para ele, o filme apresenta o homem como lobo do homem.
Em sua opinião, ainda, a questão do suposto antiamericanismo é um fenômeno da
crítica auto-referente americana, que na realidade o filme seria uma parábola sobre a
humanidade violenta. Seu maior elogio ao filme é que ele “propõe um antídoto, ácido,
contra a calda adocicada e enjoativa dos bons sentimentos. Ao pensar no quanto o
cinema de pretensões intelectuais vem se alimentando de miséria embelezada para
comover generosidades fáceis, o cinismo de "Dogville" ressoa como uma jubilação”.
Para o psicanalista Joel Birman, no Jornal do Brasil (Anexo A 2), o filme enfoca
a maioria silenciosa que busca apenas autoconservação e é capaz das maiores vilanias
em nome desse ideal. Não reconhecem a dor nem a diferença do outro, por isso a “saga
79
da despossessão da arrogância” de Grace a leva à beira da morte: tudo está fadado à
carnificina. Para ele, o grande ponto positivo do filme é que seu argumento é conhecido
em sua versão teórica, mas é a construção teatral épica que resgata potência de dizer do
cinema e pode transmitir tal conteúdo. Começamos a identificar, com essa resenha, uma
linha de textos para os quais a constituição formal do filme é mais do que uma escolha
estética aleatória e tem não apenas contribuições essenciais para a construção de sentido
do filme, como também constrói sentido ela própria.
Resenhas publicadas no Brasil também abordam a questão do poder com mais
freqüência do que as americanas, como é o caso dos textos de José Geraldo Couto, Luiz
Zanin Oricchio e Luiz Carlos Merten. Couto e Oricchio identificam na forma não
conteúdo, mas parte da batalha de poder que descrevem em suas resenhas – batalha pelo
poder da representação, das possibilidades da linguagem e desafio à hegemonia do
cinema americano.
Para José Geraldo Couto, da Folha de S.Paulo (Anexo A 8), o filme retrata um
exercício coletivo do uso da força contra o “outro”. Os horrores a que assistimos são
uma espécie de magma de onde surge a América bélica e expansionista. Créditos
comprovam que se trata dos EUA. O cerne da questão e maior qualidade do filme, para
ele, é que sua coragem política está embutida em sua ousadia formal, que, sem apelo ao
realismo ilusionista do cinema clássico, contrapõe a imaginação ao naturalismo e à
hiperexposição hollywoodianos.
N’O Estado de São Paulo, Oricchio e Merten ressaltam a centralidade da
discussão sobre o poder no filme. Para o primeiro (Anexo A 6), o filme é sobre a
intolerância e as relações de poder entre nações. Embora admita que muitos podem ver
no filme uma disputa de poder interpessoal, para o crítico a analogia com as relações
imperialistas de poder se sobrepõem às últimas e são o verdadeiro cerne do filme
dinamarquês. A crítica aos EUA seria feita pela linguagem cinematográfica contrária ao
suposto realismo do cinema americano, o que a torna mais contundente. Assim, seu
antiamericanismo residiria justamente na linguagem. Para ele, o aparato cenográfico
permite que o filme consiga “mais do menos”, a simplificação cenográfica abre
caminho para que a essência política fique em primeiro plano.
Luiz Carlos Merten (Anexo A 5) aborda o filme pela perspectiva do que
chama de “seu estilo transcendental”. Segundo ele, Dogville ilustra o conceito de
transcendência como esse foi desenvolvido pelo diretor Paulo Schrader, pois se aplica a
ele a noção, derivada de Calvino, segundo a qual “a redução máxima da percepção
80
sensitiva é a única que permite que a consciência desperte de forma pura”. Também
segue o preceito de Schrader de que isso se aplica “negando o princípio cinematográfico
da empatia”. Esses seriam, portanto, os conceitos segundo os quais Trier desenvolveria
sua fábula perversa sobre a ética do calvinismo transformada em ética social. Para
Merten, trata-se de um filme de terror sobre o poder, no qual o homem é o lobo do
homem.
O que se percebe é que, entre as resenhas brasileiras, mais abstrações e os
críticos recorrem com maior freqüência a argumentos de caráter sociológico ou político.
Não há, em nenhum texto do corpus selecionado para este trabalho, uma tentativa
explícita de analisar as particularidades históricas do momento atual, nem tampouco
como suas características sistêmicas encontram figuração no filme de Lars Von Trier.
No entanto, a própria noção de que as normas de funcionamento das sociedades
capitalistas contemporâneas são um dado histórico se apresenta subliminarmente nas
resenhas brasileiras em que questões como as relações imperialistas, do cinema como
arena de disputa de poder e de sua linguagem como aspecto de dominação, da
contribuição de uma determinada religião e cultura para a formação da sensibilidade dos
cidadãos de um país, e assim por diante, são vistas como elementos mais abrangentes e
determinantes do que o indivíduo isolado. Podemos perceber, dessa forma, os diferentes
níveis de naturalização dos processos sociais que se expressam nas resenhas norte-
americanas e brasileiras.
A questão das referências e as vantagens de usar Brecht
O espectador do teatro dramático diz: – Sim, eu também já senti isso. – Eu sou assim. –
O sofrimento deste homem comove-me, pois é irremediável. É uma coisa natural. – Será sempre
assim. – Isto é que é arte! Tudo ali é evidente. – Choro com os que choro e rio com os que riem.
O espectador do teatro épico diz: Isso é que eu nunca pensaria. Não é assim que se
deve fazer. Que coisa extraordinária, quase inacreditável. Isto tem que acabar. O
sofrimento deste homem comove-me porque seria remediável. Isto é que é arte! Nada ali é
evidente. – Rio de quem chora e choro com os que riem.
Assim Bertolt Brecht descreve a diferença entre os dois tipos de espectador de
teatro em “Teatro recreativo ou teatro didático”.
32
Dogville não é uma peça didática
talvez nem tanto porque o próprio Lars Von Trier não é Brecht nem o cinema é idêntico
32
Bertolt Brecht, “Teatro recreativo ou teatro didático”, in Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005.
81
ao palco, mas principalmente porque o momento histórico atual é diverso do panorama
que Brecht tinha a sua frente. No entanto, a descrição do dramaturgo sobre o espectador
confirma a opinião de Sérgio de Carvalho no título de seu ensaio para a revista Trópico:
vantagens em “usar Brecht”. Não para decidir até onde Lars Von Trier é ou deixa de
ser “brechtiano”, mas para avaliar o quanto a própria crítica ganharia se incorporasse
um olhar mais parecido com o do espectador idealizado por Brecht. Como vimos, duas
vertentes podem ser identificadas no corpus selecionado: a aprovação estética quase
unânime do filme independentemente da apreciação geral dele e uma tendência à leitura
dramática mesmo no caso de um objeto que demanda outro enfoque.
A aprovação estética se verifica através dos diferentes tipos de resenha,
incluindo as desfavoráveis ou mistas. Como vimos, mesmo a resenha publicada pelo
The Wall Street Journal, que ataca o filme ferozmente, afirma que o efeito visual é
arrebatador (Anexo B 2). Outras, como a resenha de Desson Thomson para o
Washington Post (Anexo A 15) ou a de Manohla Dargis para o Los Angeles Times
(Anexo C2) apontam o talento artístico de Lars Von Trier e o vigor artístico do filme e
reforçam o elogio ao espetáculo visual de Dogville. O que há de produtivo na forma do
filme é, em muitos casos, esvaziado por um elogio a ela que se faz de forma alheia ao
conteúdo. A noção de que o filme apresenta um espetáculo visual enquanto transmite
uma mensagem desprezível mostra em ação a conhecida separação de forma e
conteúdo, a qual, na contemporaneidade em que todos os processos são reificados e
compartimentalizados, não chega a causar espanto. Apesar de não espantar, no entanto,
ela tampouco ajuda na compreensão do filme. Como esfera completamente alheia, fruto
exclusivo da competência técnica do diretor, a forma se cala e não pode dizer nada.
Se olharmos atentamente para essa composição formal, inclusive reconhecendo o que há
ou não de brechtiano nela, verificaremos que os frutos para a análise serão mais
proveitosos.
Embora Brecht não tenha feito cinema tanto quanto talvez gostasse, o uso da
câmera de Trier talvez o agradasse em alguns aspectos. Os planos verticais distanciam a
ação e o olhar do espectador do drama pessoal dos habitantes de Dogville. os closes
se aproximam dessa individualização. Visualmente, temos duas dimensões do ser
humano: não apenas indivíduo, mas também um afastamento que mostra como ele atua
em sociedade. Visto de cima, o cenário assemelha-se a um tabuleiro de jogo, o que
levanta a questão das regras sob as quais jogam as personagens de Trier. A rigor, talvez
o ser humano seja naturalmente mau, como argumentam alguns e não apenas a título
82
de comentário sobre o filme , e, como outros afirmam, ser a opinião do diretor. No
entanto, esse é um fato sobre o qual, a rigor, não há possibilidade de se fazer afirmações
categóricas. Não sabemos essa resposta, já que nunca estivemos sob outras regras,
especialmente regras que contemplem igualdade econômica. Assim, sob essas regras,
i.e., nesse jogo, ou neste estudo, é assim que as coisas se desenvolvem. Dessa
perspectiva, o retrato das personagens como autômatos é ponto positivo. Da mesma
forma, a falta de cenários se distancia do ilusionismo e, embora as atuações realistas e o
recurso de aproximação permitido pela câmera na mão de Trier o reponham, introduz
um elemento que amplia a possibilidade do nosso olhar, pois, a privacidade como
instância máxima da individualidade é posta em xeque: em muitas cenas, enquanto o
evento fundamental para a continuidade do enredo acontece entre quatro paredes, temos
uma tomada em que a profundidade de campo nos permite ver a cidade inteira e que não
nos deixa esquecer que é entre aquelas pessoas, naquele microcosmo e sob aquelas
regras que a tal ação pode ocorrer. Essa informação visual propicia, também, um
conhecimento acerca do significado deliberadamente metafórico do enredo: a cidade se
apresenta como construção que se refere à realidade sem, no entanto, imitá-la nos
padrões do realismo do cinema clássico. A cidade é apresentada em sua estrutura e
também o são os personagens, que completam esse microcosmos com seu componente
social (e não individual), descarnados, são todos reduzidos a elementos básicos nessa
reflexão, e não retrato, sobre aquele funcionamento social.
O que vemos na maior parte das resenhas cticas, no entanto, é que elas revelam
críticos cujo olhar é mais próximo do espectador do teatro dramático do que do épico.
empatia com as personagens, por exemplo, no texto do The New York Times, que
descreve a virada final de Grace como um tapa na cara daqueles que desenvolveram por
ela uma relação de afeto. A descrição de Brecht para esse espectador que pensa “Sim,
eu também senti isso. Eu sou assim” explica comentários como o de Stephen
Holden e de muitos outros. Da mesma forma, percebe-se nas argumentações
desenvolvidas que o sofrimento retratado os “comove, pois é irremediável” e “é uma
coisa natural”, pois a maioria dos argumentos ou recorre abertamente ao conceito de
natureza humana ou se refere a um contexto social inespecífico. Mais marcante, talvez,
seja que muitos desses textos revelam que os espectadores que escreveram as resenhas
“choram com os que choram e riem com os que riem”, especialmente naqueles textos
em que o autor celebra a vingança de Grace.
83
Outras conclusões seriam derivadas de Dogville por espectadores que pensassem
“não é assim que se deve fazer” ou “o sofrimento (...) comove-me porque seria
remediável”. Para isso, no entanto, esse espectador precisaria de uma perspectiva
utópica de possibilidade de mudança da organização social do capitalismo
contemporâneo que não está dada no momento histórico atual na realidade dos veículos
de grande circulação, embora resista em muitos movimentos sociais e em suas
publicações. Além disso, Dogville fecha a porta da saída fácil ao mostrar que um
indivíduo na situação de Grace e com seu repertório humanista chega apenas a uma
saída violenta e de parentesco fascista. Por isso, essa perspectiva é fundamental para a
compreensão do filme, pois dela depende a desnaturalização do olhar necessária para a
compreensão de que ele faz um diagnóstico do momento presente, tanto como fruto do
momento histórico que retrata, bem como prognóstico de futuro sob tais regras e não
um retrato desinteressante do “mundo como ele é”. A armadilha de passar ao largo da
demanda por esse espectador é a que engole muitos críticos: a de acreditar na vilania
intrínseca ao homem e na impossibilidade de mudança para melhor, o que não só
compromete o entendimento do filme como reflexão sobre esse processo como também
constrói um arcabouço intelectual pouco rtil a transformações. Assim, a naturalização
do olhar do crítico promove a continuidade do processo de naturalização em seus
leitores.
Como vimos, as resenhas mais atentas às implicações da estrutura formal de
Dogville são também, freqüentemente, as que produzem argumentos menos
naturalizados e, assim, mais críticos e produtivos. É o caso de textos como o de Luiz
Zanin Oricchio, por exemplo, cuja consciência de que aqueles fatos são remediáveis
possibilita que ele aponte um tipo de relação de poder historicamente específico e
transformável como cerne fundamental do filme.
Será interessante notar que há uma segunda diferença marcante entre as resenhas
brasileiras e as americanas, a saber, que, enquanto 42% das brasileiras identificam a
referência a Bertolt Brecht, apenas 17% das americanas o fazem. Além disso, 41% das
americanas identificam um débito para com Thornton Wilder e seu Our Town contra
8% das brasileiras; 42% das brasileiras e 25% das americanas não fazem referência a
nenhum deles; e 8% das brasileiras contra 17% das americanas citam ambos.
84
Brasil Estados Unidos
Brecht 5
Our Town 1
Brecht e Our Town 1
nenhum deles 5
Brecht 2
Our Town 5
Brecht e Our Town 2
nenhum deles 3
42%
8%8%
42%
Brecht
Our Town
Brecht e Our
Town
nenhum deles
17%
41%
17%
25%
Brecht
Our Town
Brecht e Our Town
nenhum deles
Esses dados talvez revelem algo do “mindset” e da formação cultural de cada
um dos países. Em primeiro lugar, vale lembrar que a peça Our Town foi transformada
em filme muito popular nos Estados Unidos e, assim, é uma referência que fica dentro
do escopo do cinema. O desconhecimento de peça e filme no Brasil pode ser
responsável pelas poucas vezes em que é citada nas resenhas brasileiras. No entanto, a
referência a Our Town em textos americanos que procuram compreender Dogville
parece indicar a força que Thornton Wilder conseguiu estabelecer como representante
do épico na América do Norte. Há, possivelmente, uma questão mais abrangente do que
a recepção do filme, que é a própria compreensão do épico e a penetração que o
pensamento de Brecht alcançou naquele país.
O comentário de Joe Morgenstern, do The Wall Street Journal (Anexo B2),
talvez seja o que melhor compreende a relação entre Dogville e Our Town:
To the considerable extent that it evokes "Our Town," "Dogville" is also a
calumny against the gentle spirit of Thornton Wilder.
A afirmativa tem muito a esclarecer às demais. Há definitivamente algo de
profundamente antagônico entre os dois. A utilização de categorias do drama épico em
Our Town é cosmética e não almeja o horizonte transformador das peças de Brecht.
Mimetizando muito do pensamento de Brecht, Thornton Wilder priva as noções de
distanciamento de sua dimensão mais fundamental, a saber, seu conteúdo histórico. Usa
assim um aparato alheio à perspectiva metafísica da obra cujo aspecto mais interessante
talvez seja o fato da contradição entre um aparato épico para um assunto metafísico
85
abrir uma fissura e resultar numa capacidade de figurar, de forma não-intencional, a
alienação do homem do meio-oeste americano e, assim, a auto-alienação do homem
moderno, como diz Peter Szondi. No cinema, Sam Wood dirigiu um filme colado à
peça, com a figura de um narrador que respeita o texto original. A questão formal
fundamental da peça, e única necessidade interna para fazer uma farsa do pensamento
de Brecht, é a intenção de ultrapassar as fronteiras do tempo e, em última instância, da
própria morte. Em linguagem cinematográfica, em que tempo e espaço se constituem
num único elemento, essa temática produz uma coesão algo imprevista pelo texto da
peça. A despeito do aspecto falseado do cenário, a introdução deste narrador é bastante
“natural” no filme e a movimentação temporal naturalizada pelas possibilidades da
fotografia, o que gera um ambiente propício para o reforço da perspectiva metafísica da
peça. Um comentário nada acadêmico – de uma espectadora que enviou seu comentário
para o site imdb.com poderá ilustrar com agudeza esse caráter metafísico e a
pulverização, na transposição para as telas, do impacto formal alcançado na peça:
Having first seen this movie as a small child on TV I was amazed at the fact that Emily
really did die in the play. It seemed to me that it was all the more moving that she did live as this
movie was done prior to World War II and was probably intended as an affirmation of life. More
than that it was so delicately handled and all the characters so meticulously outlined that the
message of America as it was pre-war and the joyous lives of all Americans was more the
intent. A wonderful movie and I wish we had more of them.
33
Não por acaso, o New York Times cita Matthew Arnold e a qualidade “eterna”
da tristeza abordada na obra. Segue excerto do periódico:
But because of the technique employed we are permitted to see these people in their
entirety; we see them in their normal daily tasks, we hear the thoughts which run through their
minds and, at the end, we behold the dream of death and survival of the soul which is dreamed
by the girl who is soon to become a mother. It is, in short, a comprehensive penetration of the
hearts of these good people, an external glance at the toils and humors of their humdrum lives
and an internal revelation of their sorrows which brings, as Matthew Arnold said, "the eternal
note of sadness in."
Em Our Town, Wilder escolhe uma forma que privilegia o distanciamento no
tratamento de um assunto da ordem dos desejos e anseios individuais. Assim, se
Dogville é um acinte ao espírito de Wilder, tanto melhor para o material com que Trier
está trabalhando. Embora não goste do filme, Morgenstern compreende melhor seu
espírito ao considerá-lo ofensivo a Wilder do que aqueles que citam Our Town como
33
Disponível no site Internet Movie Database – www.imdb.com.
86
referência estética de Dogville sem atentar para a tremenda disparidade de propósitos e
de perspectiva entre ambos. Tanto Roger Ebert quanto Stephen Holden, para continuar
entre aqueles que tiveram opiniões desfavoráveis ao filme, comparam-no a Our Town.
Nenhum deles, no entanto, tira grandes conclusões a partir da comparação. No caso do
crítico do The New York Times, tampouco uso produtivo de seu conhecimento do
teatro de Brecht, o qual também menciona como referência formal e descreve seus
procedimentos detalhadamente. Talvez seja sintomático, ainda, que todas as resenhas
desfavoráveis norte-americanas citem Wilder como referência formal para Dogville.
Entre os que citam Brecht, mais diversidade. Entre as americanas, apenas o
texto de Michael Wilmington, do Chicago Tribune (Anexo A 14), o menciona, mas não
extrai conseqüências interpretativas de sua menção ao dramaturgo nem tampouco serve-
se dessa referência para a elaboração de sua interpretação, segundo a qual o filme
compõe um drama social poderoso.
Entre as brasileiras, os diretores teatrais Felipe Hirsch (Anexo A1) e Amir
Haddad (Anexo A3) o fazem. Para o primeiro, no entanto, a admitida inspiração na
canção da Ópera do três vinténs é apenas um detalhe em filme sobre a “dialética entre
escolha individual e personalidade coletiva”. No texto de Haddad, algumas
complicações, pois, afirma que os subtítulos nos esclarecem sobre os eventos que estão
por vir e, também, celebra a vingança de Grace sem questioná-la. Além do fato de que
os subtítulos não chegam realmente a esclarecer-nos, mantendo na realidade amplo
espaço para um desenvolvimento “clássico” do roteiro em muitos aspectos, a noção de
que a vingança violenta de Grace se assemelhe diretamente com as intenções
transformadoras de Brecht é algo desconfortável. Em primeiro lugar pela característica
fascistóide dessa transformação, possibilitada por um gangster e impulsionada por
valores da severidade identificados com essa corrente de direita, como vimos no ensaio
de Adorno mencionado no capítulo anterior, segundo o qual a insensibilidade à própria
dor e, conseqüentemente, à dor alheia constitui um traço da personalidade autoritária.
Em segundo lugar, pelo apelo algo catártico que ela parece ter tido e o que o diretor
teatral celebra e que dificilmente seria um efeito perseguido pelo dramaturgo.
Para Joel Birman (Anexo A2), psicanalista, não é apenas a canção da Jenny e os
piratas que vêm de Brecht, mas a estratégia do distanciamento que evita a catarse. O
real, para ele, nos “atinge como epifania” nessas condições. Mais uma vez, atribui-se a
Brecht a conquista de um efeito que o costuma aparecer como intenção ou conquista
de sua obra. Merten, Coli e Oricchio citam o dramaturgo com mais propriedade,
87
embora suas opiniões variem. Para o primeiro, a contribuição de Brecht é parte do que
ele chama de “o estilo transcedental” de Trier devido à negação da empatia que
consegue. Para o segundo, há diferença fundamental dada a falta, em Dogville, da
convicção na possibilidade de mudança que se encontra no alemão. no texto de
Oricchio, a referência a Brecht atinge o ponto mais alto do corpus:
Nessa dimensão simplificada, o que aparece é sua essência política.
Inspirado em Brecht, Dogville pode falar das assimetrias do poder em qualquer região e
tempo histórico. Mas tem vocação inequívoca para falar do aqui e do agora. Essa alusão aberta à
nova Roma, e sua relação com "países delinqüentes", se torna ainda mais corrosiva ao recusar
não a língua, mas a linguagem do dominador.
Para ele, como vemos, a questão histórica tão prezada por Brecht está viva em
Dogville. Embora não faça observações sistêmicas profundas, traz a discussão para a
seara política e para o tempo presente como seria de gosto do dramaturgo.
O que temos, portanto, tanto no caso das menções a Our Town quanto a Brecht,
é um certo desperdício de referências que poderiam dar pistas importantes no processo
de interpretação. No entanto, as referências a Brecht, como mostra especialmente o
texto de Luiz Zanin Oricchio, quando perscrutadas com atenção, levam a interpretações
que ultrapassam a esfera da naturalização dos processos sociais, enquanto as referências
a Our Town, como não poderia deixar de ser, quando muito reforçam-na, com honrosa
exceção feita ao artigo do The Wall Street Journal.
Uma observação das críticas desfavoráveis e das que têm opiniões conflitantes
sobre o filme revela algumas características que são interessantes no intuito de
identificar os critérios fundamentais desse tipo de texto, pois elas se alinham em um de
três tipos de posicionamento: 1. ignorar a forma como construção de sentido (como é o
de Contardo Calligaris); 2. elogiar a forma como fim em si mesma (como o The Wall
Street Journal); ou 3. descrever a forma, encontrando analogias entre ela e a
interpretação dada ao filme. Esse último tipo de posicionamento é, sem dúvida, mais
produtivo do ponto de vista da crítica. Note-se, entretanto, que, muitas vezes, trata-se de
descrever a forma e estabelecer analogias cabíveis e não de analisar o aspecto formal do
filme como parte da produção de sentido. Dentro de argumentos compostos sobre
premissas conservadoras, essa tentativa encontra um obstáculo, já que os aspectos
formais que se distanciam do padrão dramático estão relacionados a um ponto de vista
político, e não apenas estético, não contemplado pela crítica.
88
CONCLUSÃO
Embora dentro dos limites precisos de uma dissertação de mestrado, meu
trabalho procurou apresentar uma leitura crítica do filme Dogville e um exame
comparativo do que eu hesito em chamar de fortuna crítica.
Sobre o primeiro, procurei apresentar uma leitura que, embora sem apoio crítico,
abordasse tanto as questões formais como o conteúdo do filme de uma maneira
integrada, baseando-me na premissa de que esses aspectos são indissociáveis.
Dessa maneira, pude formular uma hipótese segundo a qual a estrutura do filme
é baseada na contradição. Se, por um lado desafia a linguagem clássica do cinema e seu
ilusionismo, optando por uma abordagem teatral específica, de influência brechtiana,
especialmente na concepção cênica e na divisão episódica; por outro, imprime um tom
realista às atuações e, especialmente graças a recursos como o close-up, personaliza as
personagens. Na movimentação da câmera, uma tensão entre dois tipos de tomadas.
Uma delas se refere aos planos verticais que mostram a cidade como um tabuleiro, um
mapa ou uma planta baixa, o que permite um distanciamento e um olhar sobre os
eventos de Dogville como parte de uma engrenagem que lhes é superior. Outras
tomadas utilizam a profundidade de campo para mostrar a ocorrência de todos os
eventos da cidade como concomitantes à continuidade da vida e das relações usuais – do
que o exemplo mais marcante é, provavelmente, o estupro de Grace, durante o qual há
uma tomada em que vemos todas as demais personagens em suas atividades enquanto a
violência acontece. Todos os acontecimentos pessoais de Dogville são, portanto,
relativizados da perspectiva tanto de um sistema de regras que transcende a
possibilidade de compreensão das personagens como de uma coletividade que figura um
tecido social obediente a essas regras e que está além das relações interpessoais
imediatas.
Grace é uma personagem múltipla, que faz a representação da classe
trabalhadora apesar de estar evidente, desde o início, que essa não é sua origem. E é
devido à sua classe de origem e aqui Trier é implacável, colocando-a como
abertamente criminosa que ela pode vingar-se das torturas e humilhações que sofreu.
Um dos aspectos mais notáveis do filme é que todos os eventos têm em comum e como
motor uma intenção pedagógica. Tanto Tom usa Grace para ensinar a lição que pretende
passar sobre a capacidade de aceitação, quanto Grace mata a todos como punição,
seguindo o conselho de seu pai, segundo o qual as pessoas, como cães, aprendem se
89
forem ensinadas a não obedecer sua natureza. Dentro das mesmas regras, ambas as
intenções pedagógicas são mal sucedidas e têm conseqüências funestas.
Dogville é um filme em que a consciência do modelo sistêmico representado fica
a cargo do espectador, que nem personagens nem narrador a compartilham. E é daí
que tira muito de sua força: ao demonstrar os efeitos da falta dessa consciência.
Em relação à crítica, o que ficou evidente é que os preceitos não-declarados da
crítica estabelecida muitas vezes impedem que se façam as perguntas pertinentes que a
forma do filme coloca. Uso a palavra forma propositalmente, uma vez que o preceito
básico dessa crítica é operar uma disjunção que lhe permite falar do conteúdo como se
ele fosse autônomo em relação à sua maneira de expressão. Isso possibilita que a crítica
sistematicamente ignore toda e qualquer noção de contradição e que projete sobre o
filme seus próprios preconceitos.
O procedimento geral de muitas dessas operações pode ser resumido pelas
palavras “abstração” e “generalização”, que, em vez da especificidade do conflito de
Dogville, tratam da crueldade ou da bondade intrínsecas à natureza humana.
O efeito que esses procedimentos de abstração e generalização produzem é
tornar inócua a discussão do filme, que a reduzem às mesquinhezas que sempre
acompanharam a raça humana. Esse tipo de discussão inespecífica contribui para a
naturalização dos processos sociais, que são exatamente o que Dogville descortina.
Muitos mostram-se, assim, não pouco reveladores e esclarecedores, mas também
ativamente escondem e atrapalham a compreensão do filme.
Os ganhos de uma análise formal empenhada também ficaram evidentes, como
os argumentos apresentados por críticos que procuraram fazê-lo demonstram, embora as
limitações dessas críticas sejam inúmeras devido, inclusive, ao tipo de mídia e ao fim
efêmero a que se destinam, sendo publicações de jornal que circulam num dia apenas.
A minha própria leitura também é, certamente, marcada pelos meus próprios
preconceitos, mas faço minhas as palavras de Raymond Williams:
uma proposição central no marxismo, quer expressa na fórmula da infra-
estrutura e da superestrutura, quer na idéia alternativa da consciência socialmente
constituída, segundo a qual a escrita, como outras práticas, é, num sentido importante,
sempre alinhada; isto é, que ela expressa, explícita ou implicitamente, a experiência
especificamente selecionada, a partir de um ponto de vista específico. Há, decerto,
margem para uma argumentação sobre a natureza precisa desse “ponto de vista”. Ele
não tem, por exemplo, de ser separável de uma obra, como na noção antiga de
“mensagem”. o tem de ser especificamente político, nem mesmo social no sentido
mais limitado. Não tem, finalmente, de ser considerado como em princípio separável de
90
qualquer composição específica. o obstante, essas restrições não pretendem
enfraquecer a afirmação original, mas simplesmente esclarecê-la. O alinhamento nesse
sentido não é mais do que um reconhecimento de homens específicos em relações (em
termos marxistas de classe) específicas com situações e experiências específicas. É claro
que esse reconhecimento é crucial, contra as pretensões a “objetividade”,
“neutralidade”, “simples fidelidade à verdade”, que devemos reconhecer como as
fórmulas ratificadoras daqueles que apresentam seus sentidos e procedimentos como
universais.
34
O que a leitura me permitiu descobrir é que o filme é, ele mesmo, sintoma das
aporias da esquerda contemporânea. Grande parte da esperança revolucionária
repousava na classe trabalhadora, que não levou a cabo as expectativas nela depositadas.
A partir daí, o processo de fragmentação da esquerda esteve ligado, em grande medida,
à procura da resposta para a pergunta: se o o proletariado, quem formará a classe
revolucionária? Em Dogville, Grace faz o papel da classe trabalhadora, embora desde
sua chegada, envolta em um casaco de pele, saibamos que ela não é oriunda do
proletariado. No entanto, no filme como na realidade histórica, essa classe não promove
uma revolução.
Assim, a falta de “idealismo” de que alguns críticos reclamam é, a meu ver, um
dos grandes ganhos do filme e, possivelmente, a maior contribuição política possível
nesse momento, já que visibilidade a esse fenômeno contemporâneo da maior
importância. No lugar da revolução que não aconteceu, temos atualmente Estados
nacionais que convivem e estimulam práticas que em muito remetem aos Estados
autoritários que se estabeleceram nos anos 30. E talvez isso ajude a explicar por que a
trilogia iniciada com Dogville seja situada nos Estados Unidos, país hegemônico no
qual o uso da força para a garantia de seus interesses vem crescendo sob o governo de
George Bush e no qual as liberdades individuais vêm sendo crucificadas em nome da
luta contra o terror. É nessa medida, também, que o filme conecta os anos 30 aos dias
atuais e propõe uma reflexão fundamental sobre os rumos que se estabeleceram naquele
momento e continuam sendo seguidos.
34
Raymond Williams, “Alinhamento e compromisso”, in Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1979, p.198.
91
A 1
Jornal do Brasil – 30/01/04
Felipe Hirsch diretor teatral
O monstro das ambições
Diretor teatral
Assisti aos 178 minutos de Dogville depois de um ensaio, numa sessão do Cine Odeon,
na Cinelândia, que começou muito atrasada, à 1h30. O filme de Lars von Trier é uma
fábula moral declaradamente influenciada por Jenny e os piratas, de Bertolt Brecht.
Mas esse é um detalhe da obra, filmada num enorme galpão sueco, com cenário
minimalista e poucos elementos-signos. Os atores abrem portas e fecham janelas
invisíveis, circulam respeitando o mapa da cidade desenhado no chão. Dogville é
também um reflexo do comportamento dos homens em comunidade, da dialética entre a
escolha individual e a personalidade coletiva. O filme trata da mesquinhez, da inveja, da
hipocrisia, da violência moral e, em última análise, da física, que se estabelece na
relação em sociedade. Por trás da tolerância, do altruísmo e da solidariedade, esconde-se
o monstro instintivo das ambições.
A mesma comunidade que, a princípio, abrigo à fugitiva Grace (Nicole Kidman) é
capaz de negociar pagamentos cada vez mais humilhantes em troca do refúgio.
Acrescenta-se o fato de que, eliminando a dimensão do mundo sico, livrando-o dos
cenários e de suas formas, o comportamento humano aparece em destaque,
violentamente genuíno. Grace aceita se tornar útil a cada um dos moradores em troca de
seus votos.
Assim, oferece sua companhia a cada um dos fracassos deles, às suas infelicidades, aos
homens cegos que não admitem a cegueira, à frágil filosofia moral do seu novo amor.
Traz um pouco de conforto e felicidade à vida dessas pessoas. Mas isso não basta.
Grace ainda pode trabalhar mais horas por um pouco menos de dinheiro. Ela também
não grita quando se deita com um homem depois do outro, aque todos os homens
tenham abusado sexualmente dela.
Assisti à implacável descrição da aventura vivida por Grace, incluindo os castigos
físicos, as formas mais brutais de escravidão, o estupro, todo o rosário de humilhações,
aguardando a inevitável terrível vingança no hiper-violento final. Assisti com
empolgação à belíssima cena de desconstrução e relativização do ideal estóico. Assisti
com algo perdido na alma, entre a vingança do julgamento de Deus no Velho
Testamento e o perdão de seu Filho no novo Livro.
O filme tem narração de John Hurt e Harriet Andersson (inesquecível atriz
bergmaniana) em seu elenco. E muito se falou sobre as óbvias referências aos EUA no
filme à Terra da Oportunidade. Mas, nitidamente, Lars von Trier estendeu sua opinião a
uma causa humanista. Dogville não é só um grito de ódio contra a América, mas contra
toda a humanidade.
92
A 2
Jornal do Brasil – 30/01/04
Joel Birman – psicanalista
Épica do mal
Perseguida por gangsteres, uma bela e jovem mulher, Grace (Nicole Kidman), chega a
uma cidade denominada Dogville, que termina numa montanha intransponível. Como a
mentalidade de sua população é tão estreita como a sua topografia, é preciso a
participação ativa do projeto de intelectual Tom Edison (Paul Bethany) para que seus
habitantes a acolham. Uma assembléia geral decide que a fugitiva deve pagar com
trabalho pela proteção. Inicialmente, no entanto, ninguém precisava de nada.
Foi preciso um certo esforço de Grace para se fazer necessária. E todos ficam tão gratos
com sua colaboração que resolveram pagar-lhe por isso. Quando esta transformação se
processa, contudo, passam a exigir mais. E como Grace a tudo suporta porque pretende
superar a sua arrogância, os moradores vão se tornando cada vez mais ferozes. A
crueldade destes é a contrapartida do quanto precisam dela. E isso era insuportável.
Os espectadores se perguntam até quando Grace vai agüentar. Os moradores da cidade
são de diferentes religiões, etnias e classes sociais. No que concerne a estas oposições
não existiria aqui qualquer diferença no exercício da crueldade, nesta pacata cidade
norte-americana dos anos 30, época da Depressão. A narrativa constitui, evidentemente,
uma parábola tecida pelo gênio do diretor dinamarquês Lars von Trier, um dos autores
do Dogma, proposta estética que retoma os valores básicos do cinema. Para tanto, a
história é construída epicamente, com a presença de um narrador e configurada como
uma montagem de teatro.
Trata-se, é claro, de uma mise-en-scène épica bastante distante do teatro psicológico e
supostamente realista. Pois o que aí existe de terrorificamente real penetra no espectador
por canais, aliás bastante inesperados, temperados por ingredientes surreais. Seria então
pela imprevisibilidade, presente em detalhes da cena cinematográfica, que o real da
história nos atingiria em cheio, enunciando-se como epifania.
A história poderia se passar em qualquer cidade do planeta. Entretanto, a referência
norte-americana é paradigmática, na medida em que seu modelo social e moral se
dissemina pelo mundo como peste nesses tempos de pós-modernidade e de capitalismo
pós-industrial. Estaria aqui a peste imantada pelos cidadãos de Dogville, bastante
diferente, pois, da presente nas tragédias gregas.
A peste referida no filme nos é familiar, apesar da presença de dimensões de não-
familiaridade (Freud) que têm o dom de provocar o tal efeito sinistro do real a que
aludi. Os moradores dessa cidade são o que se pode chamar de maioria silenciosa. São
pessoas capazes de realizar as maiores vilanias em nome do ideal de segurança, capazes
de se submeterem aos poderosos e, ao mesmo temo, impor a servidão aos mais fracos.
Como apenas a auto-conservação direciona o seu horizonte, o resto é apenas o resto e
elas não reconhecem nem a dor nem a diferença do outro.
Mas esse discurso nos é fartamente conhecido em sua retórica crítica. O que não
significa que as pessoas o incorporem em sua densidade trágica. É preciso então dizê-lo
de uma maneira outra para que a sua performatividade possa se realizar. É nesse
contexto preciso que a escolha de um cenário teatral se torna fundamental na estética da
narrativa, inscrita na perspectiva fílmica do Dogma. Recusa-se aqui, com efeito, o uso
dos recursos mirabolantes da tecnologia, valorizando-se a câmera na mão e o trabalho
dos atores, uma vez que é a expressividade trágica do argumento que deve estar no
centro da narrativa.
93
Isso porque, num mundo invadido pela cultura espetacular da imagem, esta perde a
potência de produzir sentido. O espectador fica siderado pelos efeitos encantatórios da
técnica que o impedem de pensar, e as palavras não dizem nada. Para tanto é preciso
então desconcertá-lo, realizando a desconstrução do cinema-espetáculo. A inserção da
cena teatral na narrativa fílmica teve, assim, a intenção de restaurar a potência de dizer
do cinema, que pode se enunciar, enfim, por caminhos surpreendentes e surreais.
Esse artesanato estético é essencialmente brechtiano. E não apenas porque o diretor se
inspirou na música Jenny e os piratas, da Ópera dos três vinténs, de B. Brecht e K.
Weil, mas porque sua técnica do distanciamento na dramaturgia impregna a estética e a
narrativa de Dogville. Evita-se com isso a catarse fácil provocada pelo método
dramático fundado na poética de Aristóteles. Tudo isso para que o real possa ser
apreendido pelo público em estado nascente, permitindo o reconhecimento de sua
objetividade sem qualquer véu. Neste filme, o que domina a cena é o efeito poético dos
gestos dos atores seguido de perto pela simplicidade dos movimentos da câmera.
Em contraste com a cena teatral, uma outra volta do parafuso (Henry James) se realiza
no final - sem perda da lógica do distanciamento –, agora para quebrar justamente o
encantamento teatral. Com os créditos do filme, somos assaltados, em ritmo acelerado,
pela apresentação de algumas das referências reais dos personagens. Com efeito, as
imagens que nos assolam cotidianamente são exibidas, retiradas de jornais e de flashs
de TV, oferecendo uma outra carnalidade para o real ficcional exibido até então pela
cena teatral.
A hipocrisia do amor cristão se inscreve na boca-de-cena da narrativa. A viagem de
Grace para se tornar virtuosa não tem o dom de provocar amor; ao contrário, atrai
crueldade. Sua pureza virginal se evidencia pelos gestos delicados. A busca pela
despossessão da arrogância se choca com a ferocidade dos cães, que mordem sua presa
até mesmo por reconhecerem que precisam dela para viver. Este é o preço da proteção.
A saga do puro amor e da despossessão de si, numa experiência sacrificial limite, lança
a personagem nas bordas da morte. Os profetas do Velho e do Novo Testamento falam
dessa história, de maneira sutil, mas sempre pregnante, por alusões a Moisés. E pela
experiência trágica de Grace.
Numa sociedade de cães como essa que se cultua em Dogville, os intelectuais se
alimentam gulosamente da miséria servil para se inspirarem e colocarem em ação sua
torpe escrita, numa falsa bondade amorosa que provoca engulhos. Neste contexto,
apenas o cachorro não seria efetivamente um cão. De nada adianta alguém fazer
sacrifício para infundir graça nesta comunidade. Tudo estaria fadado à bestial
carnificina. É isso o que nos diz Lars von Trier em narrativa brilhante que pode ser
encarada ainda como versão cinematográfica de mais uma das peças didáticas de
Brecht.
94
A 3
Jornal do Brasil – 30/01/04
Amir Haddad – diretor teatral
A visita de uma bela senhora
Nossa cidade, peça de Thorton Wilder, conta a história de uma pequena cidade da
região nordeste dos EUA. O dia-a-dia da cidade desfila diante dos nossos olhos
conduzido pela narração de um de seus moradores que, pouco a pouco, vai nos
colocando informados a respeito da vida de seus habitantes. Pequenos dramas, tons de
comédias, namoros, fuxicos e mexericos. As vizinhas descascando legumes, o leiteiro
entregando seu leite, os jovens namorando... até a morte entra silenciosamente pelo
palco.
Uma das cenas mais pungentes se dá no cemitério, quando moradores antigos, já
mortos, aguardam a chegada de mais um morador das Praias do Tempo. ''Adeus, tic-tac
do relógio'' é sua despedida. Gente boa, sem maldade, vivendo sua vidinha interiorana,
sem violência. A peça é dos anos 40/50. A grande novidade é a forma narrativa, épica,
da dramaturgia de Wilder, que dispensa qualquer encenação ilusionista. As casas, as
ruas e o cemitério ocupam lugar no espaço sem que seja necessária qualquer referência
realista, nem mesmo o batente de uma porta. A narrativa supre todas as necessidades. O
palco é aberto. O teatro voa, amplifica seus espaços. Influência do teatro oriental,
confessa seu autor.
Mas Brecht existia nessa época e desenvolvia, através de sua prática, teorias para um
teatro épico que modificariam o panorama teatral da segunda metade do século 20.
Mesmo quem nunca ouviu falar de Brecht foi por ele atingido, como Freud.
Outro grande autor dramático, o suíço Dürrenmatt, contemporâneo de Brecht, também
descreve a vida de uma pequena cidade no interior da Suíça, em A visita da velha
senhora, com todos os seus vícios, mazelas, hipocrisias, mesquinharias políticas e
relações perigosas. Quem revela este mundo apodrecido é Clara Zanassian, antiga
moradora que foi extremamente maltratada pela população local, tendo ade deixar a
cidade para viver em outro lugar. Volta milionária e poderosa para se vingar de todos e
da própria cidade. ''O mundo fez de mim uma prostituta, eu farei do mundo um bordel'',
diz ela, em uma fala que se tornou conhecida amesmo por quem o conhece teatro.
Como as de Shakespeare.
Aí também o tom é épico e a técnica é narrativa. Os cenários são desnecessários, pois o
que interessa são as relações em jogo e não o décor. Podemos mesmo afirmar que uma
cenografia clássica ao estilo do realismo psicológico da burguesia protestante
atrapalharia o entendimento do texto.
Em Dogville, um narrador nos conta a vida de uma cidadezinha que, como a de Wilder,
recebe a visita de uma jovem que precisa de abrigo. A narrativa informa tudo o que
precisamos saber para entender a história, que é complexa, filosófica e contemporânea.
A cenografia é absolutamente teatral e talvez seja a coisa mais atraente do filme, não
fosse a qualidade do elenco e, principalmente a beleza, a inteligência e a força dramática
de Nicole Kidman.
A princípio a moça é bem recebida pela comunidade. Mas, aos poucos, vamos vendo,
em uma ampla plataforma cenográfica de dar inveja a qualquer diretor de teatro, a
pacata cidade se transformando em algoz impiedoso de sua nova hóspede-moradora-
refugiada. A tortura não tem limite. Atores, roteiristas, diretor, iluminadores e
cenógrafos, juntos, como numa grande produção teatral, contam a inquietante história
95
desta jovem Clara Zanassian que se vinga de maneira magnífica do mal que a cidade lhe
causou. Pura violência.
E nós saímos do cinema também ''vingados''. É assim que o mundo é? É assim que deve
ser? Poderá ser de outro jeito? É impossível não pensar em Bertolt Brecht e no seu
teatro.
Como em Brecht, as seqüências do filme têm subtítulos que nos esclarecem a respeito
dos acontecimentos futuros. E, embora não haja suspense, é impossível tirar o olho da
tela. O sofrimento de Kidman é tão atraente quanto sua vingança. E é puro teatro sem
deixar de ser cinema.
É bom ver o cinema romper os grilhões do realismo e retomar o caminho de seus
grandes criadores. ''É tudo mentira'', como dizia Fellini. ''É tudo verdade'', como queria
Orson Welles. O filme é uma co-produção de vários países europeus. Se fosse apenas
americano poderia ser Peyton Place ou um novo blockbuster de Steven Spielberg.
Felizmente não é!
96
A 4
Jornal do Brasil – 15/02/04
Paulo Blank
Entre nós caninos brancos
Admitir a entrada do outro revela a necessidade aprisionada em nossas fortalezas
O filme começa com o rapaz branco, lindo e intelectual tentando ensinar alguma coisa à
população depauperada pela recessão americana. Refletindo, chega à conclusão de que
deveria receber, digamos, um presente. Poderia melhorar sua auto-estima. Mas como
dar a quem não precisa de ajuda, apesar da extrema dificuldade em que vive? Aí, os
cães, aceitadores vorazes, podem ensinar aos homens meia dúzia de coisas.
Dogville, como toda obra de arte que vale a pena, escapa ao controle de seu criador.
Tomando o caminho fácil, é mais um retrato da maldade americana, o diabo encarnado
de nossos tempos. Para quem gosta, prato cheio. Mas, aprendendo com a história,
prefiro pensar que sem os irmãos do Norte inventaríamos outras impressões digitais
para identificar o diabo que mora ao lado. Como não creio no demônio, viajei em outras
coisas enquanto era dissecado pelo bisturi nórdico de Lars von Trier. Entrei numa de
que o filme trata do perigo que vivemos ao escancarar o buraco negro de nossas
necessidades. Não é pra isso que servem as metáforas?
Receber ajuda pode ser tão difícil que acabamos dizendo "não precisa" a torto e a
direito. Treinados na atitude, vamos levando a vida apertando o cinto e endurecendo o
peito, enquanto seguimos lustrando a auto-imagem: "Não precisa, dou conta sozinho!"
Dar conta de tudo, eis aí o passaporte para uma viagem sem volta em direção à
permanente sensação de perigo. Perigo em admitir que precisar do outro é expor-se ao
risco de fazer feio e desabar.
A população de Dogville e a mocinha meiga fazem o par perfeito que habita a América
profunda de todos nós. Admitir que preciso de ajuda pode liberar os caninos brancos
escondidos sob a imagem de bondade e justiça que me alimenta. O arrogante arroga,
chama para si as responsabilidades. Não precisa ser agressivo, pode ser sutil na
dominação. O arrogante, como diz o gangster filósofo, sempre perdoa e se coloca acima
dos outros. Para manter as coisas funcionando, precisa de pessoas que precisem dele
para que ele o precise de ninguém. A auto-suficiência pede mocinhas bondosas para
dizer que não precisa delas. As mocinhas bondosas precisam de pessoas arrogantes para
poder ajudar. Todos querem mesmo é conter as bocarras interiores e alimentar a
imagem que fazem de si mesmos. O jogo complicou, não acha?
Complica, porque abrir os portões e admitir a entrada do outro acaba revelando a
necessidade aprisionada na masmorra de nossas fortalezas. No fim, é o medo da
fragilidade confundida com humilhação, que empurra o humano à arrogância do "não
preciso". Ao revelar sua humanidade, a fome, mantida sob controle, pode se tornar
desejo devorador, descontrolado. Do bonzinho de antes surge um carrasco dominador.
A cena é manjada. Liberado o dragão, nos tornamos seres absolutamente ordinários.
Como em toda relação, Dogville é um jogo a dois, uma dança de casais. A mocinha
compreensiva depende da maldade alheia para sofrer e perdoar. Os maus necessitam do
seu sincio para se sentirem bons. A arrogância, como vemos, é de todos. Uma
verdadeira dança no escuro onde cada um sabe direitinho o passo que precisa dar.
No fim, o cão sobrevive às chamas da vingança ateadas pela mocinha salva de sua
meiguice. Tal qual a heroína vingativa, o cachorro, humanamente, em seu latido final,
não perdoa o osso que ela havia roubado. Um filme, sem dúvida, politicamente
incorreto, a platéia em delírio que o diga. Um bom domingo.
97
Saio de férias de mim mesmo. Um abraço e até a volta.
98
A 5
O Estado de S. Paulo27/02/04
Luiz Carlos Merten
O estilo transcendental de Lars Von Trier
No prefácio da nova edição de seu estudo clássico - O Estilo Transcendental no Cinema:
Ozu, Bresson, Dreyer -, o crítico, roteirista e diretor Paul Schrader conta que seu editor
lhe propôs uma atualização da obra, enriquecendo-a com algum autor mais recente.
Schrader pensou em Andrei Tarkovski, mas desconsiderou a possibilidade - não é um
autor que lhe interessasse analisar. Nos últimos tempos, tem gostado mais de Abbas
Kiarostami e Alexandre Sokúrov, mas também não gostaria de incluir nenhum dos dois.
Permaneceu nos ts diretores originais. Schrader talvez devesse ter considerado a
possibilidade de debruçar-se sobre outro autor dinamarquês, a exemplo de Carl Theodor
Dreyer. Seria Lars Von Trier.
Dogville é perfeito para ilustrar justamente a introdução do livro, na qual Schrader,
colaborador de Martin Scorsese em Motorista de Táxi e Touro Indomável e ele próprio
diretor de Gigo Americano e Temporada de Caça, teoriza sobre o que é o estilo
transcendental nos filmes.
O Brasil tem publicado tantos livros de cinema, ultimamente. Ainda falta este. No
Aurélio, transcendente é tudo aquilo que transcende seu sujeito ou tema, que se eleva
além de um limite ou que não resulta de uma classe natural de ações, mas que supõe a
intervenção de um princípio que lhe é superior. Schrader vai além da definição do
dicionário. Por meio de uma análise comparada que mescla referências à arte zen, à
iconografia bizantina e à arquitetura gótica, ele desenvolve sua tese a partir de um
conceito de Calvino, o sensus divinitatis, que diz que a redução máxima da percepção
sensitiva é a única que permite que a consciência desperte de forma pura.
Aplicando o conceito ao cinema, Schrader privilegia os autores que atingem a
transcendência negando o princípio cinematográfico da empatia. Estamos falando de
Ozu, Bresson e Dreyer, mas também poderia ser de Lars Von Trier.
Dogville começa como um jogo cujas regras Lars Von Trier vai, em seguida,
subvertendo. No primeiro plano, a câmera, situada no alto, o cenário e os
personagem. Estão desenhados no solo os espaços correspondentes às casas dessa
cidade imaginária, Dogville. que não existem paredes, apenas o desenho no solo e
alguns objetos essenciais. É aí que Lars Von Trier desenvolve sua fábula perversa sobre
a ética - uma ética do calvinismo e do indivíduo que ele transforma em ética social.
Gostar ou o gostar de Dogville é o de menos, chega a ser irrelevante. O importante é
submeter-se a essa experiência, como o público de São Paulo vem fazendo. As sessões,
especialmente do Espaço Unibanco Arteplex, têm estado lotadas. Um crítico francês
citou Pascal, a propósito de Dogville. Quem quer fazer o papel de anjo, na verdade,
termina fazendo a besta do Apocalipse. E chega-se a Grace, a personagem interpretada
por Nicole Kidman. É uma fugitiva. Querendo permanecer escondida na cidade dos
cães, ela se submete à vontade de todos, executando as tarefas mais ignóbeis. A
população abusa dela e a humilha.
Aguarde para saber se Grace ficará passiva até o fim.
Marqueteiro - Lars Von Trier é hoje um dos diretores de cinema mais importantes do
mundo. E é um marqueteiro de primeira. Criou o Dogma, cujas normas foi o primeiro a
subverter.
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Transformou as cem câmeras digitais que usou em Dançando no Escuro numa bandeira
das novas tecnologias. Cria agora o mais anti-realista dos filmes, mas contradiz o
próprio distanciamento brechtiano com a câmera na mão, que busca captar,
naturalisticamente, a expressão dos atores e com a montagem acelerada, os jump cuts
que aceleram o tempo e desestabilizam o relato, às vezes de maneira arbitrária. É um
filme sobre o poder, sobre o homem como lobo do homem. Neste sentido, é um filme de
terror - o por acaso, a rua que divide a cidade chama-se Elm Street, como na série A
Hora do Pesadelo (Nightmare on Elm Street), mas o pesadelo de Lars Von Trier
prescinde de um Freddy Krueger para ser assustador. O horror nasce da perversidade
das relações, da pusilanimidade, da prepotência. A própria Grace se revelará capaz de
ações insuspeitadas, da importância da discussão final dela com o pai, quando ele a
chama de arrogante
Quem viu O Reino (Riget/The Kingdom), de 1994, sabe quanto Lars Von Trier é
atraído pela idéia do jogo, como atividade estética. O reino podre daquele filme,
concentrado num hospital construído sobre o lodo, era o da Dinamarca, país em que
nasceu o diretor. Um pouco antes, em 1991, Lars Von Trier havia ampliado a base
territorial de seu registro com Europa. E agora faz um filme que, em vez de Dogville,
poderia se chamar América. É certamente uma provocação o fato de ele encerrar a obra
em cartaz com aquelas imagens de excluídos do sonho americano, sobre as quais se
projetam os créditos, fechando um ciclo pessimista, como avaliação do humano. A
origem de Grace é a personagem de Emily Watson em Ondas do Destino, de 1996, o
mais belo (e transcendental) dos filmes do autor. Mas ela também tem alguma coisa da
Björk de Dançando no Escuro, a tal ponto que o filme atual ilumina pontos obscuros e
dá nova dimensão à polêmica obra vencedora da Palma de Ouro em 2000. Dançando no
Escuro mostrava a América - onde o diretor nunca pisou, pois detesta viajar de avião
e não tem a menor vontade de conhecer o país de George W. Bush - como uma terra de
cães (ou lobos). Paul Schrader deveria reconsiderar a oferta de seu editor. O estilo
transcendental de Lars Von Trier chama por aprofundamento crítico.
100
A 6
O Estado de S. Paulo16/01/04
Luiz Zanin Oricchio
A essência política de Dogville
Dogville, que estia hoje no Brasil, foi exibido no Festival de Cannes do ano passado
sob intensa polêmica. Seu diretor, o dinamarquês Lars von Trier, viu-se acusado de
antiamericano em função do conteúdo da obra, uma pabola clara sobre a intolerância.
Questionado, Von Trier nem piscou. Confirmou que o momento histórico não era
mesmo bom para os Estados Unidos e que ele havia se limitado a fazer seu trabalho de
cineasta. Se os outros não gostavam, paciência.
O detalhe é que Von Trier trabalhou com elenco americano - Nicole Kidman, Ben
Gazzara, Lauren Bacall, James Caan, entre outros - e a história, parte de uma trilogia
sobre os Estados Unidos, é ambientada na América, durante a Depressão. O cineasta
não conhece os EUA e nem acha que isso seja uma falha em seu currículo. Chegou a
dizer que a hora não lhe parece propícia para uma visita à terra de Bush. Quando lhe
perguntaram se não era estranho alguém filmar temas americanos sem conhecer os
Estados Unidos, Von Trier encontrou uma boa resposta: "A cultura americana é
difundida compulsoriamente pelo mundo todo; estamos todos imersos nela e portanto
autorizados a falar dela."
Provoca: "Eles se preocuparam em estudar o Marrocos para filmar Casablanca?"
A história de Dogville, em si, é bem forte. A cidade imaginária fica nas Montanhas
Rochosas. Nicole interpreta Grace, fugitiva que chega misteriosamente. Por algum
motivo, ela tem de encontrar um protetor. E o encontra, na figura de Tom Edison (Paul
Bettany). Ele usa sua influência para fazer com que a cidade aceite Grace. Ela é aceita.
Depois é amada. Em seguida, passam a usá-la. Como sua presença de certa forma
representa um risco para a cidade, os habitantes têm de ser recompensados. As
mudanças de atitude em relação a Grace não parecem nunca artificiais. Antes, soam
como lógicas, desenvolvimento de uma relação sempre tensa com o "outro", com o
estrangeiro, com aquele que chegou nossa terra", de quem nos sentimos credores e
esperamos portanto que retribua a nossa acolhida. Até onde vai esse poder?
Bem, esse é um dos temas de Dogville. nele um lado, digamos assim, pessoal ou
psicológico, que examina quando uma relação de favor pode se transformar em
sadismo. Mas, claro, o foco é político e em nenhum momento escapa ao espectador que
se está falando em termos mais gerais, em relações de poder entre nações e não entre
pessoas.
Talvez tudo isso não fosse muito impressionante se o viesse sob uma forma o
inovadora quanto intrigante. Se era para falar dos Estados Unidos, Von Trier o fez da
maneira a mais contrária à estética dominante daquele país - e aí sim, no nível da
linguagem, poderíamos dizer que reside o seu antiamericanismo. Nos EUA privilegia-se
o realismo, o filme como imitação tão perfeita quanto possível da realidade (em geral
idealizada). Dogville é o contrário. Opta sem mais delongas pelo antiespetáculo.
Sabemos o tempo todo que estamos diante de uma recriação (crítica) do real e nunca de
uma tentativa de transcrição direta da realidade.
Tudo é filmado em um galpão europeu, sem cenários, ou com cenários muito toscos. O
distanciamento é radicalizado de tal modo que a cidade imaginária é demarcada por
letreiros e faixas no chão - rua tal, avenida tal, casa de fulano, casa de beltrano, etc.
Meras indicações. Um cachorro, que late o tempo todo, é também um desenho a cal,
com a legenda: "dog", para que não haja dúvidas. A narração, com voz em off de John
101
Hurt, divide a ação em prólogo, capítulos e epílogo. Vai levando o espectador pela mão
nos caminhos dessa fábula moderna.
Os papéis são de risco e não se deve deixar de registrar o trabalho de Nicole Kidman.
Talvez ela seja hoje a mais poderosa diva da indústria, mas não se furtou a encarnar
uma personagem desdramatizada, sem glamour, que às vezes é violentada e humilhada
da pior maneira possível. Nicole poderia se acomodar a papéis insossos, meros veículos
para sua beleza, mas prefere aventurar-se, ao contrário de suas colegas. Não é a primeira
vez que faz isso: basta lembrar de sua participação no testamento de Stanley Kubrick,
De Olhos bem Fechados, no qual contracena com Tom Cruise, então seu marido.
Lars von Trier tem fama de tratar seus atores de forma brutal. Tanto é que, pelas colunas
de fofocas, já se disse que Nicole não volta a trabalhar com ele nem por todo ouro ou
glória deste mundo imperfeito. No entanto, ela ficou brava quando alguém, em Cannes,
insinuou que os maus-tratos que sua personagem sofre em cena seriam reflexo do
sadismo de Von Trier com suas atrizes. Ela compreendeu perfeitamente que tudo o que
acontecia em cena era em função de uma necessidade dramatúrgica. Mais ainda: de uma
urgência dramatúrgica.
Se os atores e atrizes (e não apenas Nicole) transmitem uma forte sensação de vida a
essa encenação, o dispositivo montado por Von Trier também se revela poderoso. É
como se, na simplificação do seu aparato cenográfico, ele conseguisse mais do menos.
Reduzido quase à abstração, todo o entorno do drama humano que se desenrola em
Dogville contribui para uma estranha concentração do "espetáculo", se o termo cabe.
Nessa dimensão simplificada, o que aparece é sua essência política.
Inspirado em Brecht, Dogville pode falar das assimetrias do poder em qualquer região e
tempo histórico. Mas tem vocação inequívoca para falar do aqui e do agora. Essa alusão
aberta à nova Roma, e sua relação com "países delinqüentes", se torna ainda mais
corrosiva ao recusar não a língua, mas a linguagem do dominador. É a primeira grande
estréia do ano.
102
A 7
O Estado de S. Paulo30/10/03
Hector Babenco – cineasta
“Dogville” estimula a reflexão
Não sou do tipo do diretor que não o filme dos outros com medo de se deixar
influenciar. Eu vejo, mas confesso que são raros os filmes que permanecem muito
tempo comigo. Uma das exceções é justamente o filme de Lars Von Trier, "Dogville",
que encerra hoje a mostra. Vi "Dogville" após o Festival de Cannes, em Paris. Ambos
concorríamos à Palma de Ouro, mas na correria de Cannes não tive tempo de ver o
filme de Lars Von Trier na Croisette.
Em primeiro lugar quero dizer que "Dogville" me proporcionou uma emoção muito
especial. O filme permaneceu comigo. Às vezes, me surpreendo pensando nele, como
uma coisa já entranhada no meu imaginário. Tenho a impressão que Von Trier fez o que
nenhum outro diretor havia feito antes. Todos ensaiamos nossos filmes, mas eu tenho a
impressão que ele preferiu ficar no ensaio, sem necessidade de concluir o trabalho,
pelo menos no formato de dramaturgia tradicional a que estamos acostumados. É como
se ele tivesse ficado no rascunho, sem sentir necessidade de colocar paredes e tetos
na sua cidade imaginária. "Dogville" está para o cinema como a poesia não rimada para
a literatura. Lars Von Trier partiu de uma história aparentemente convencional, que
tratou de forma teatral, como se fosse uma bula. Na ossatura dessa fábula, concretizou
sua vontade de ser profundo e visceral. Se tivesse vestido seus personagens com
plumas, se tivesse enfeitado sua história, tenho a impressão que terminaria por banalizá-
la. Sabendo disso, preferiu não correr o risco.
Reduziu seu raconto ao mais essencial, justamente para torná-lo mais denso.
Não é qualquer diretor que consegue isso. É preciso um talento particular.
Von Trier fez um filme sobre a construção da América discutindo a contribuição da
Igreja luterana para esse processo. Discute temas como o processo de acumulação
capitalista na sociedade americana. Para os protestantes, baseia-se em preceitos morais e
éticos muito rígidos, mas eles realmente acreditam no lucro como um direito divino,
adquirido pelo trabalho. Partindo dessa base, Von Trier consegue expor toda a
hipocrisia dessa sociedade. "Dogville" cria um microcosmo social, como "Carandiru".
O filme conta a história da complicada relação entre um pai e sua filha. Ela é adorada na
comunidade, escravizada, usada e violentada e tudo isso ocorre na maior discrição, no
seio de uma sociedade formada por gente de bem. É o ponto que me parece mais
importante. Não fosse assim, "Dogville" perderia sua densidade e poderia virar uma
espécie de caricatura. Perdoem-me o entusiasmo, mas "Dogville" me parece, acima de
tudo, perturbador. As pessoas precisam ir preparadas, sabendo que não vão ver um filme
convencional. Toda a dramaticidade de Dogville decorre da repressão sexual que
provoca um cataclismo dos sentidos na comunidade, terminando por expor toda a sua
carga de repressão. Sou um consumidor fácil, excitado com aquilo que na tela. A
dificuldade é manter por muito tempo essa excitação. Em geral, ela se esvanece no dia
seguinte. A maioria dos filmes que vemos é formada de obras banais. Dogville, não.
Espero dos filmes que sejam excitantes, como estímulo para a reflexão, e que me
proporcionem prazer estético. "Dogville" faz tudo isso.
103
A 8
Folha de S.Paulo – 30/10/03
José Geraldo Couto
Em “Dogville”, Von Trier expõe perversões da América belicista
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"Dogville", de Lars von Trier, possui uma clareza firme. Ela vem reforçada por
intertítulos sugestivos, que dividem a história em episódios, e pela voz do narrador, que
conduz a trama. É parente das histórias de fadas, em que a princesa infeliz se
abandonada na floresta de todos os perigos. Possui também a natureza do conto ou do
teatro filosófico: o espaço reduzido da cidade é como um laboratório onde se podem
observar reações a experimentos precisos. Entre seus personagens, por sinal, emerge um
"filósofo", que pensa determinar o andamento das situações.
Como um brinquedo de criança, a cidadezinha decadente, no fim do mundo, é
desenhada no chão de um estúdio. Não há cenários, paredes, apenas alguns acessórios.
Os ruídos mantêm-se realistas. Fica a impressão de um jogo entre as emoções intensas e
as convenções que o filme determina. Por aí, um humor, negro e feroz, consegue se
infiltrar.
Von Trier declarou sua dívida para com Brecht e, de fato, seu microcosmo é parecido
com o de Mahagonny, por exemplo. Mas, se existe, em Brecht, a convicção de que a
sociedade pode se modificar, de que, na frase de Barthes, "o mal dos homens está nas
mãos dos próprios homens" e que a arte pode auxiliar a história em direção a um mundo
melhor, Lars von Trier nos diz apenas que o homem é o lobo do homem. Ele se norteia
por uma crueldade sem saída. Propõe um antídoto, ácido, contra a calda adocicada e
enjoativa dos bons sentimentos.
Ao pensar no quanto o cinema de pretensões intelectuais vem se alimentando de miséria
embelezada para comover generosidades fáceis, o cinismo de "Dogville" ressoa como
uma jubilação.
Além - a ingenuidade de alguns críticos, nos EUA, muito voltada sobre si mesma,
pôde imaginar que "Dogville" contivesse um ataque à sociedade norte-americana. A
história se passa num vilarejo pobre, nas montanhas Rochosas, durante a Grande
Depressão. No final, aparecem algumas fotografias conhecidas, que mostram, por assim
dizer, o avesso do sonho americano. Mas tudo isso são elementos de um imaginário
(Von Trier nunca pôs os pés nos EUA), um frágil e superficial realismo que sublinha
melhor o caráter de parábola sobre a humanidade violenta.
Perito - Ao conceber "Dogville", Lars von Trier dispôs regras estritas. Elas foram
capazes de estimular sua intensidade criadora. Hitchcock também fazia isso, ao rodar,
por exemplo, um filme em um único espaço exíguo ("Um Barco e Nove Destinos") ou
num único plano-sequência ("Festim Diabólico").
"Dogville" não é obra experimental ou de vanguarda; tudo é levado avante com
maestria e segurança evidentes. Pode ser mesmo que o filme se revele, com o tempo,
mais engenhoso que profundo. Talvez. Isso, no entanto, não estraga em nada o prazer de
vê-lo e não o impede de ficar ecoando na memória. A versão original tem três horas,
que passam como cinco minutos.
Luminares - Eles sabiam o mecanismo das coisas, a direção da história, o destino do
homem: como foi forte, no século 20, o mito do intelectual. Seguros de suas convicções,
de suas verdades e de si mesmos, não se empenhavam eles em transformar o mundo
pelo pensamento? "Dogville" acerta contas com essa figura de vaidades sinistras. Não
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está sozinho. "As Invasões Bárbaras", filme canadense (Quebec) de Denys Arcand, se
centra nessa questão. Faz ressurgir, envelhecido, o grupo de universitários do seu
antigo "O Declínio do Império Americano" (1986). Não são pensadores de primeira
linha: são professores de bom vel, com sensibilidade de esquerda, que viram suas
crenças políticas e sociais se transformarem em quimeras. Um agoniza com câncer. Seu
filho, bem-sucedido nos negócios, consegue, à custa de dinheiro, evitar as condições
precárias de um hospital público. Sem abalos de alma, compra-se todo o possível e
mesmo o que é ilegal. O conforto e a dignidade diante da morte são obtidos, assim, pelo
enterro das ilusões. As emoções individuais sinceras continuam presentes, porém.
Diante da morte, é o que sobra, num mundo onde os sentidos, incompreensíveis, se
emaranharam.
106
A 10
Folha de S.Paulo – 24/04/05
Décio Pignatari
Kierkegaard em Dogville
um pequeno mistério ético-ideológico envolvendo o grupo dinamarquês Dogma,
especialmente o diretor Lars von Trier, e mais particularmente o filme "Dogville", pois
não é comum que artistas talentosos de uma arte industrial voltada para o mercado
sejam tão claramente marcados por um vinco ético-filosófico.
A crítica de cinema, embora bem informada, ainda não atinou com esse viés e toma um
filme como "Dogville" pelo seu valor de face, ideologicamente falando -ou seja, como
uma crítica social ao "império americano", inserindo-se, ao mesmo tempo, ainda que
indiretamente, no sistema europeu de resistência à hegemonia cinematográfica ianque.
Dogma dinamarquês, hoje em fase de desfazimento consentido, entremostra vários
pontos de contato com a "nouvelle vague" francesa, tanto pela economia de meios,
compensada pela inventividade da signagem cinematográfica, como pela postura
ideologizante européia, traço que tenderia a acentuar-se em Godard, o que não parece e
aparece de modo claramente discernível na grande produção italiana das três décadas
que se seguiram ao pós-guerra.
Godard, Antonioni
Ambas as tendências parecem dizer-se adeus, uma à outra e a si mesmas, tomando o
amor como tema, texto e pretexto, no início do novo século, com "Elogio ao Amor"
(Godard) e "Além das Nuvens" (Antonioni/Wenders) -o primeiro, envelhecidamente,
a verbalizar o amor da película e a película do amor, com piadas curiosas sobre os EUA,
enquanto Antonioni, em belas imagens e elipses narrativas, monta uma nostálgica
metafísica erótica para a murmurante cerimônia de adeus dos corpos.
Mas os dinamarqueses do Dogma inovaram para além da fria exasperação sexual
própria dos escandinavos, substituindo a ideologia, mesmo em sentido amplo, pela
ética. Dogma introduziu o realismo ético no cinema, cuja contundência clama por um
dies irae. Essa postura é diretamente influenciada pela filosofia teológico-existencial de
Sören Kierkegaard (1813-1855).
Quiseram o destino e o acaso das sinapses do ser que eu me tornasse obcecado pelo
absurdo absolutismo teo-existencial de Kierkegaard, e eles conduziram meus passos a
Copenhague, em maio de 2004. Fotografei o largo Nytorv, residência da família, e o seu
túmulo, no cemitério Assistens. Era uma semana de núpcias reais, não consegui os
livros que desejava. Mas descobri que o espírito do filósofo inspira até hoje todos os
rebeldes e rebelados, individuais e grupais da Dinamarca, desde os marginais anarco-
lumpen-punk, hoje praticamente confinados numa comunidade independente, no bairro
de Cristiânia, até Lars von Trier (que estava filmando na Suécia) e seus "angry young
men and women" do Dogma, passando pelos artistas do grupo Cobra, com sua explosão
neo-expressionista da década de 1950, sem esquecer o enorme Carl Dreyer (1889-
1968), de "A Paixão de Joana D'Arc" (1928) e de Ordet ("A Palavra", 1955), de que
tanto ouço falar, mas que não consegui ver até hoje.
Igreja Luterana
Estão rolando (já rolaram até no Carnaval carioca) as comemorações do bicentenário de
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nascimento de Hans Christian Andersen, contemporâneo de Kierkegaard (que chegou a
criticar um de seus romances), cujo sesquicentenário de morte também vai ocorrer neste
ano, em outubro, sem tanta festa, com certeza. A Igreja Luterana é a igreja oficial do
Reino da Dinamarca; seus sacerdotes o nomeados e pagos pela coroa.
Um de seus supremos dignitários, Hans Lassen Martensen, coroou o rei Frederico 7º.
Kierkegaard, filho de pastor, perdeu os bens, a saúde e a vida por um Deus sem
intermediários -ou seja, sem a Igreja Luterana e contra Martensen.
Cerca de 95% dos dinamarqueses professam a luterana; sobram 5% para outras
crenças ou crença nenhuma (lembrando que toda a população do país corresponde à
metade dos habitantes da região metropolitana de São Paulo). Daí que todo rebelde
dinamarquês (lá é proibido morrer de fome) seja contra a igreja oficial, não
necessariamente contra a fé cristã, mas necessariamente a favor de Kierkegaard. Aí está
Dogma. está Lars von Trier. Outra novidade ético-religiosa e ideo-teológica de Lars
von Trier está em que transpôs sua fúria kierkegaardiana para e contra os Estados
Unidos. A Björk de "Dançando no Escuro" e a Nicole Kidman de "Dogville" são
"Jesusas Cristas", refazendo os passos da cruz rumo ao gólgota da forca ou da vingança
(curiosa coincidência com o filme de Mel Gibson, "A Paixão de Cristo", que também
termina em zoom "plongé", como em "Dogville"). O chefão dos gângsteres é Deus Pai.
O pastor hipócrita é a igreja, qualquer que seja ela. Óbvio também que "Godville" é
"Dogville" pelo avesso, e vice-versa, homenagem cômica ao Dogma. Beckett havia
feito essa alusão no seu "Godot/todoG". A obsessão apaixonada produz, às vezes,
pequenas e prazerosas recompensas investigativas. Pois encontrei um texto, no imenso
diário de Kierkegaard, já para o fim da vida, que parece apontar diretamente para
"Dogville", tal a sua pertinência. O filósofo, que é também o melhor escritor
dinamarquês, gostava de criar parábolas modernas (do período final do romantismo
europeu).
Traduzo (da versão italiana) e encerro: "Imagine um canzarrão de caça bem amestrado
que acompanha o seu dono numa visita familiar, em cuja casa, por azar, como costuma
ocorrer em nossos dias, um bando de crianças mal-educadas. Mal vêem o animal,
começam a maltratá-lo. O cachorro, que possui o que aqueles debilóides o têm, a
saber, educação, logo fixa o olhar no seu dono para captar um sinal sobre o que deve
fazer. O bicho interpreta o olhar do dono como uma ordem para suportar todos os maus
tratos como se fossem benefícios. Naturalmente, isso leva a molecada a multiplicar as
agressões, a ponto de se convencerem de que se trata de um cachorro palerma, que
suporta tudo dessa maneira". PS. Coisa de cinéfilo: talvez gratuita, "Dogville" me traz à
mente o filme "Nossa Cidade" (1940), baseado na peça teatral homônima de Thornton
Wilder, "production design" de William Cameron Menzies, direção de Sam Wood.
108
A 11
Bravo!
Michel Laub
A poesia dos anjos caídos
Nicole Kidman em cena do filme: pureza e violência
Numa das muitas cenas estranhas e incômodas de Dogville, de Lars von Trier, dois
personagens conversam a respeito de bonecos de louça guardados no interior de uma
igreja. Ele é Tom (Paul Bettany), aspirante a escritor do vilarejo que dá título ao filme, e
ela é Grace (Nicole Kidman), fugitiva ali abrigada durante os anos da Depressão norte-
americana. Os bonecos “descrevem melhor a cidade do que qualquer palavra”, diz a
narrativa em off, que em seguida pergunta: “Eles são bonitos ou horríveis?”. Para Grace,
pelo menos àquela altura da trama, a alternativa correta parece ser a primeira. Para Tom,
também parece e a história de como a resposta lentamente se inverte é o centro deste
filme que, depois de fazer barulho no Festival de Cannes do ano passado, estréia no
Brasil com sua metáfora devastadora sobre as relações entre o indivíduo e o poder.
Evidentemente, um tema assim, nos dias de hoje, daria ensejo a uma série de injunções
políticas. Sabendo disso, Lars von Trier não perdeu a chance: além de situar o filme nos
Estados Unidos, ainda o anunciou como primeiro capítulo de uma “trilogia americana”.
Para os ouvidos de Cannes, foram as palavras mágicas: sendo Dogville o ápice do
pessimismo em sua obra, espécie de aposta no desvirtuamento que a sociedade inflige
ao mais bem-intencionado dos cidadãos, não foi muito difícil considerar que o assunto
tratado era uma representação dos anos George Bush, da arrogância do império, do
mundo corporativo e de outros vilões costumeiros. É um engano, claro: numa análise
mais atenta, a impressão causada pelo filme é bem diferente.
Dogville inicia quando os habitantes do vilarejo decidem acolher Grace. Nesse prólogo
uma sensação geral de pureza, tanto no tom fabulístico da narração, que situa o
cenário num ponto onde “os presentes caem do céu”, quanto na simplicidade e no
bucolismo descritos: ali estão o arbusto de groselha, a macieira, as sardas no rosto
amigável, as mãos brancas que fazem a torta e o pão. As locações têm marcação teatral,
com suas indicações “escola”, “horta”, “casa” – escritas a giz no piso. Não há paredes
a dividi-las, e desde logo se propõe um jogo ao espectador: o.k., todos sabemos que
estamos diante de uma representação, e também se imiscui um tom de sinceridade,
que abre mão de truques para concentrar-se no que é essencial à história.
De certa maneira, repetem-se as proposições do Dogma, movimento fundado por Von
Trier e outros cineastas dinamarqueses na década passada, baseado numa estética que
priorizava os roteiros, obtida sem efeitos de luz e som. Com ela o diretor finalizou Os
Idiotas (1998), que seguiu os promissores Europa (1991) e Ondas do Destino (1996), e
aproveitou-se de uma confusão conceitual que talvez esteja se repetindo agora, com
Dogville. Um dos enganos da crítica à época de Os Idiotas foi a apreciação do filme
majoritariamente sob o seu aspecto formal. Esqueceu-se que o Dogma fora concebido
como misto de esperteza e desabafo, um novo sotaque e uma nova maquiagem para a
velha câmera na mão e o velho orçamento escasso – usado com método, o recurso deu a
seus signatários a publicidade e a atenção que por vezes falta a artistas mais
“tradicionais”. Esse era o seu ponto de partida, mas não a sua essência. Von Trier estava
ciente disso, e pouco adiantaria manipular a “indústria da repercussãose o peixe que
tivesse para vender não fosse minimamente graúdo. Os Idiotas o frustrou a
expectativa: história de um grupo de jovens que imitam deficientes mentais para
protestar contra a apatia e o reacionarismo de uma pequena cidade, é um filme notável,
109
que resiste mais pelo que tem de substância narrativa, a idéia de que o infantilismo e o
alheamento podem ser mais honestos do que a vida hipócrita em sociedade, do que por
seu eventual caráter vanguardista.
Da mesma maneira, Dogville parece usar a isca da “história americana” e do “teatro”
para falar alto. No primeiro caso, continuamos no terreno da publicidade: a irrelevância
desse recurso no enredo é óbvia. Mude-se o nome da cidade para qualquer outro, mude-
se a sua época e local, e rigorosamente nada se perde do drama que a rodeia: os Estados
Unidos aparecem apenas como uma sombra sem estatura, insinuada em cenas tributárias
de algumas tradições do país, como o puritanismo e os tiros de metralhadora disparados
por gângsteres. A questão ética, no entanto, vai muito am de preceitos de uma religião
específica, e a violência é abordada tão canonicamente, numa generalização que chega a
incomodar por seu esquematismo explícito, que é difícil acreditar que Von Trier esteja
falando de algo mais histórico, mais circunstancial e mais ligeiro do que a própria
condição do homem em conflito. A América é muito pequena diante de tamanha
ambição: nas palavras do próprio filme, está-se falando é da “alma humana, onde ela
cria bolhas”.
A escolha do teatro, por sua vez, é mais complexa. A forma não está ali por acaso, e a
recusa ao refresco dramático e à fluidez cumprem uma função de catequese, digamos
assim. Dogville tem cerca de 3h de duração, e cada minuto cobra sua taxa em aridez e
peso: é como se o espectador fosse uma espécie irredimível de crédulo, que precisa ser
sempre lembrado de que o mundo é feio, de que o homem é torpe, e a compreensão
dessa verdade em toda a sua inteireza não é nem mesmo a saída para que algo seja
mudado. O filme é enfadonho em muitos momentos, mas até nisso parece haver
intenção: quebra-se o encanto para que não haja chance de enxergar qualquer beleza na
sordidez, qualquer lirismo na decadência. É uma proposição evidentemente utópica: da
forma como Von Trier dirige seus atores e vida aos diálogos e a certas nuances da
trama, o que se tem ao final das contas é a temida e sempre perigosa poesia da
corrupção.
Dogville explora um argumento bastante semelhante ao de Os Idiotas. Aliás, não
deste filme de Trier: também de Ondas do Destino, sobre a mulher cuja vida desmorona
depois de um acidente envolvendo o marido, e de Dançando no Escuro (2000), que
trata de uma imigrante cega sofrendo o diabo na América. Em todos os casos está-se
diante da contraposição da inocência – sempre representada pela figura feminina, apesar
das constantes acusações de misoginia que recaem sobre o diretor e da brutalidade,
normalmente encarnada num grupo de pessoas “comuns”, numa coletividade
anestesiada pela pasmaceira provinciana. A inocência lentamente perderá a batalha, não
se tenha dúvida, e até os “justos” os rebeldes de Os Idiotas, a Grace de Dogville
saberão revelar a sua face daninha. Von Trier é capaz de filmar esses estupros morais
com uma crueldade digna de Ingmar Bergman, a câmera aparentemente neutra que
assiste ao progressivo desespero dos personagens, à exposição de suas entranhas a uma
luz de meio tom, rara como o sol dos países nórdicos. Antes de jogá-la sobre o cego, o
aleijado, o bêbado, a família que se odeia e a gente que “raspa copos velhos para que
pareçam novos”, Dogville põe Tom e Grace diante dos bonecos e faz a sua pergunta
decisiva. Ao final do filme, não haverá nada mais violento do que a lembrança dessas
palavras e do seu tom à sua maneira premonitório.
Porque a questão posta por toda a obra de Lars von Trier é esta: vamos olhar os bonecos
de perto. Vamos testar Grace? Vamos ver como ela reage quando é examinada tão
minuciosamente? Vamos ver se o conceito que ela tem de beleza permanece o mesmo
depois que os habitantes de Dogville mostram do que o capazes? Em Europa, um
americano trabalha numa sombria linha de trem da Alemanha de 1945 e, apesar de toda
110
sorte de maus-tratos que sofre dos passageiros, diz estar ali para ajudar a fazer “um
mundo melhor”. Ao final de Dogville, Grace diz uma frase semelhante, mas o sentido
do seu “mundo melhor” é bem outro: aqui não se admite mais a aproximação das
diferenças, mas sim a sua eliminação física. Como no romance Extinção, em que
Thomas Bernhard precisa nomear tudo o que será destruído, a câmera de Dogville
enquadra aquilo que deverá ser morto: o intelectual, o trabalhador, o sábio, o educador.
Quem faz o mal só confirma o teorema. Quem tenta fazer o bem, a exemplo de
Dançando no Escuro e da cartilha das mais lebres tragédias, não escapa de
protagonizar o horror.
moralismo aí? Certamente, mas na contramão do espírito de sua época: em vez da
tolerância corrente, prega-se a punição; em vez da crença politicamente correta na
“igualdade das virtudes”, aposta-se na “igualdade das torpezas”. Fosse de fato uma
metáfora sobre os Estados Unidos, os culpados seriam bem mais identificáveis: ou na
pessoa de Grace, que incorpora a lógica da vingança contra os agressores “bárbaros” (o
Iraque? o Afeganistão?), ou nos próprios agressores, os primeiros a identificar a virtude
de Grace (a democracia? o “indivíduo”?) e tratar de destruí-la. Ocorre que, em Dogville,
nenhum dos lados tem a razão. A ética do filme é a ética do julgamento final: no seu
dedo apontado sem condescendência, e as fotos de vítimas históricas na seqüência dos
créditos finais são paradigmáticas, está a denúncia das feridas de um mundo que se
esqueceu de si mesmo. Nesse mundo não há lugar para Grace, parece sempre dizer Lars
von Trier, sabendo ele mesmo da tragédia que é a sua certeza: pessoas deslocadas assim
existem e continuarão existindo, como anjos que fazem lembrar da nossa própria e
irremediável perdição.
111
A 12
Veja 14/01/04
Isabela Boscov
O diretor morde
Uns poucos objetos de cena e um tablado preto, no qual riscos de giz assinalam
marcações como “casa de fulano”, “cão”, “arbustos”: isso, mais alguns efeitos sonoros e
um elenco excepcional – Nicole Kidman à frente -, é tudo de que o diretor dinamarquês
Lars von Trier dispoõe em Dogville (Dinamarca e outros, 2003), que estréia nesta sexta-
feira em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao longo de três horas, a narração mordaz do
inglês John Hurt conta como a jovem Grace (Nicole) se refugia de gângsteres no
vilarejo do título, perdido nas montanhas do Colorado, durante a Depressão dos anos
30. Grace, que usa roupas caras e tem mãos finas, é acolhida por Tom Edison (Paul
Bettany), um rapaz cheio de idéias sobre como iluminar os demais moradores. Grace
passa a ser seu experimento social: em troca de abrigo, ela fará pequenos serviços.
Como o local é paupérrimo e mal há trabalho para os residentes, Grace executa tarefas
de que eles não necessitam, mas que podem tornar sua vida mais suave. Logo ela
parecerá imprescindível e será transformadanuma escrava para todos os usos, inclusive
sexuais.
Fundador e expoente do movimento Dogma, uma espécie de voto de castidade nada
de trilha sonora ou luz artificial, mera na mão etc. lançado pelo cinema
dinamarquês em meados dos anos 90, Von Trier e seus companheiros (como Thomas
Vintenberg, do recente Dogma do Amor) não seguem mais sua doutrina. Agora,
esmeram-se em contradizê-la ponto por ponto. Foi o que Von Trier fez em Dançando
no Escuro nada mais anti-Dogma do que um musical e é o que faz também em
Dogville, que está no extremo oposto do naturalismo pregado pelo manifesto. Mas Von
Trier continua fiel ao princípio da experimentação radical. Assim como o jovem Tom
usa Grace para ilustrar suas teses, o diretor utiliza seu filme para confirmar o ataque do
Dogma ao excesso hollywoodiano. Em algum ponto de Dogville, deixa-se de perceber
que os atores apenas fingem abrir ou fechar portas, ou que a viagem de Grace num
caminhão não passa de uma tomada fixa dela na carroceria. Bastam apenas alguns sinais
– graças ao talento arrasador de Von Trier, sempre os sinais certos – para que o
espectador preencha todas as lacunas, com a vantagem de que não há nada que o desvie
da narrativa. E essa, como tudo o que o diretor faz, é abrasiva.
Dogville vem sendo acusado, pela crítica dos Estados Unidos, de antiamericanismo. Em
parte, com razão. Von Trier, que é um provocador, não só encena a sórdida trajetória de
Grace no coração dos EUA (país que ele nunca visitou, e diz que nem quer visitar)
como encerra o filme com imagens da Depressão, ao som de Young Americans, de
David Bowie. Em outra parte, esses críticas se apressaram em vestir a carapuça. Von
Trier, na verdade, tem uma péssima opinião da humanidade em geral. Com sua
inocência e humildade, Grace faz ressaltar quanto essas virtudes o escassas nas
pessoas à sua volta, e portanto desperta o que de pior nelas. Von Trier, ao contrário
de Grace, é um arrogante assumido – o que não o torna menos arguto. Em Dogville, que
é qualquer lugar e portanto todos os lugares, o perdão é o que há de mias impoerdoável.
112
A 13
San Francisco Chronicle – 09/04/04
Mick LaSalle
“Dogville” as poetic as it is powerful
The best way to see "Dogville" is to know nothing about it, but to trust it and have faith
that it will deliver. At 177 minutes, the film is slow to start or so it seems going
along for nearly an hour before it even hints that it will be anything more than an
innocuous parable. In fact, the groundwork is being set for a movie that's anything but
innocuous, but instead is mischievous, singular and profound.
So stop reading.
Still there? Then let's talk, but not too much about the story and nothing at all about the
ending, but about the nature of "Dogville" as a film and an experience.
In all my years of moviegoing, I've never had a picture lose me so completely and then
win me back so thoroughly as this one. After a half hour, I was tired of it. After nearly
an hour, I was struggling to stay awake. And then the movie took a slight turn, and I
revived, then became interested, then involved, then caught up emotionally and then,
finally, awestruck. This is a seriously important film and a huge achievement.
Written and directed by the Danish filmmaker Lars von Trier ("Breaking the Waves,"
"Dancer in the Dark"), "Dogville" has lots to say about human nature in general and
provincialism in particular. But the movie's special target is without question the United
States. Beneath its surface of Scandinavian serenity, this is an angry film, not a
concerned one, not a reproving one, but one that's boiling mad. Yet for all of von Trier's
rage at us, his criticisms aren't scattershot. His observations are pointed and intelligent.
"Dogville" takes place in a small town in the Rocky Mountains during the nadir of the
Great Depression, but there are no mountain vistas. The film is shot entirely on an
empty soundstage, with chalk outlines standing in for houses, streets and trees.
Throughout, the actors mime knocking on doors and opening them, and this fey conceit
takes a few minutes of getting used to. But gradually the movie's barren look becomes
an advantage. Von Trier is not interested in portraying the boundlessness of the
environment but the characters' insularity and lack of imagination. Their world might as
well be flat and surrounded by darkness. Von Trier makes that literal.
The denizens of Dogville are played by an international cast of famous names and faces
Lauren Bacall and Harriet Andersson as shopkeepers, Ben Gazzara as a blind man,
Blair Brown and Patricia Clarkson as housewives, Chloe Sevigny as the local heartthrob
– with John Hurt as an unseen British narrator, who sets each of the film's nine scenes in
a voice dripping with false kindness. Paul Bettany has the pivotal role of Tom Edison
Jr., not the son of the inventor but a sensitive young man who dreams of becoming a
great writer.
One night gunshots are heard, and Grace (Nicole Kidman) enters, fleeing from
gangsters. Tom hides her and persuades his fellow townspeople to let her stay. In return,
she starts doing little chores for everyone, keeping to a regular schedule. She weeds for
Ma Ginger (Bacall), helps Chuck (Stellan Skarsgard) with his trees, baby-sits for Vera
(Clarkson) and keeps Old Mr. Mackay (Gazzara) company. Gradually, she makes
herself indispensable.
But the town's enthusiasm for harboring Grace is diminished when the sheriff shows up
one day with a wanted poster for Grace's arrest. Though she's wanted for a crime that
everyone knows she couldn't have committed Grace was with them in Dogville at the
113
time – Mrs. Henson (Blair Brown) still wonders if they have a legal obligation to report
her anyway. This is the film's first, faint dark turn. Others, darker, will follow.
Von Trier has never been to America, and for this he has been criticized. If he visited,
he'd probably find a lot to like. Yet, though armed with only secondhand knowledge, he
still portrays and elucidates a peculiarly American strain of human pathology. He shows
people aligning themselves with authority in order to disguise their own vindictiveness,
even from themselves. He shows poverty-stricken citizens identifying with wealth, not
each other. Most tellingly, he shows people with absolute, unshakable faith in their own
rectitude using that faith not as a springboard for good works but as a license to commit
grossly immoral acts.
There's power in this not in the statement, not in the allegory, but just in the human
terms of the story. Kidman's performance is affecting in its simplicity, a portrait in
muted colors that conveys Grace's near-saintliness with an offhand air. She doesn't
express outrage, and so we feel it. Bettany's challenge is different, to show us more of
Tom than Tom sees in himself. And so we see the heroic impulse but also the small
spirit, the true honest yearning of the unevolved soul.
Some have called "Dogville" a Christian allegory, but even if it is, symbols are easy. It's
poetry that's hard. "Dogville" is poetry, as strident and passionate in its outrage as
Chaplin's "The Great Dictator," and it may prove as lasting.
114
A 14
Chicago Tribune – 09/04/04
Michael Wilmington
It’s bizarre, but ‘Dogville’ delivers powerful social drama
Lars von Trier's "Dogville" is a movie about outsiders–and a movie meant for them as
well.
Done with both expertise and an almost scornful defiance of moviemaking norms, this
bizarre Danish-American fable of hypocrisy and redemption ignited one of the biggest
controversies of last year's Cannes Film Festival, fought over both its style and its
alleged anti-U.S. stance.
You can see why. A howl of nihilist mockery at American self- sentimentalization, it's a
movie so theatrical and perverse that it's almost guaranteed to outrage or drive away
much of its audience. But those detractors will be missing something special.
"Dogville" is a three-hour drama from a major filmmaker, with an all-star international
cast headed by Nicole Kidman, but almost no sets or scenery. Set in an isolated Rocky
Mountain town, it was filmed entirely on a nearly bare Copenhagen soundstage, on a
floor covered with chalk marks that are supposed to represent the film's invisible houses
and streets.
What Von Trier conjures up on those imaginary streets and houses (complete with an
imaginary dog lying on an imaginary porch) is a preachy but phantasmagorical social
drama that suggests Bertolt Brecht or Thornton Wilder ("Our Town") as much as it does
Henrik Ibsen or Arthur Miller, while it savagely deconstructs the great American small-
town myths of Norman Rockwell or "It's a Wonderful Life."
Finally, in an absurdist, childlike way, "Dogville" becomes another excruciating von
Trier drama of social hypocrisy and female suffering, this time about a gangster's moll
(Kidman as Grace) fleeing her mobman lover, The Big Man (James Caan).
Desperate, she implores help from a seemingly "salt of the earth" American community.
At first they offer her aid; then they exploit, enslave and nearly destroy her.
Like the Western town that can't be roused to defend its lawman in "High Noon" or the
Swiss village that sells its soul for money in "The Visit," Dogville becomes an arena of
moral disgrace. And though one Dogville man seems both a moral conscience arguing
her case and perhaps the love interest–the evocatively named Tom Edison (Paul
Bettany)–we're not so sure of him. Tom, eventually, may fail Grace too.
Everyone else does: Ma Ginger, the cantankerous widow (played by ageless Lauren
Bacall), gentle old blind man Jack McKay (Ben Gazzara), gossipy townlady Vera
(Patricia Clarkson), thuggish farmer Chuck (Stellan Skarsgaard) and Tom's seemingly
upright father, Tom Sr. (Philip Baker Hall).
Soon Grace is a virtual slave, treated as a whore and chattel by a citizenry all too ready
to cast the first and last stones. This is, in fact, the "persecuted outcast heroine" story
that von Trier has told over and again, with Emily Watson in "Breaking the Waves" and
Bjork in "Dancer in the Dark." But this time it ends with something different: an
apocalyptic explosion.
Von Trier has always had a talent for provocation and scandal, as he's shown before in
the ersatz German expressionism of "Zentropa," the jittery-camera sex fables of
"Breaking the Waves" or "Dancer in the Dark" or in his anti-Hollywood Dogma 95
manifesto and films.
115
But though "Dogville" often preaches like a classic left-wing social drama, there's a
strain of right-wing individualism feeding it as well. Von Trier attacks the same kind of
social and moral flaws that many homegrown American movies target–while, at the
same time, assaulting American moviemaking conventions.
In "Dogville," he strips narrative filmmaking even past the bare bones, super-neo-realist
style of his weird Dogma 95 film "The Crazies." But the acting is very fine. "Dogville"
has a great cast– and, even if, according to Sami Saif's behind-the-film documentary
"Dogville Confessions," many of them were alienated by the difficult shoot, the strain
doesn't show. The actors, especially Kidman, Bettany, Hall, Skarsgaard, Clarkson and
Bacall, play their parts with clarity and total control.
Despite all of its self-indulgence, I enjoyed "Dogville," and I'd recommend it to any
moviegoer with adventurous tastes. A bizarre social drama and actors' showcase, it's a
twisted pop lamentation as well.
It's also, sometimes, a royal pain. But though certainly a failure in some respects,
"Dogville" may be the most fascinating, richly accomplished screw-up you'll see all
year. Von Trier, who has always had a talent for provocation, here nails another heroine
to the cross while playing his role to the hilt: a moviemaking rebel in his own dog days.
116
A 15
Washington Post – 09/04/04
Michael O’Sullivan
‘Dogville’ a Biting American Tale
"DOGVILLE" OPENS and closes with the sound of a pile driver. The first instance is a
literal sound effect alluding to the construction of a prison not far from the titular Rocky
Mountain hamlet in which the film's shocking, Depression-era action takes place. The
second is only metaphorical. Over a montage of archival photographs of impoverished
U.S. citizens, director Lars von Trier (never particularly known for his subtlety) blasts
the David Bowie song "Young Americans."
It's his way, it seems, of hammering home the message that the town we have just
visited, and the bad behavior of its residents who take in a beautiful and mysterious
fugitive named Grace (Nicole Kidman) and then horribly mistreat her – are meant to be
taken as allegorical versions of our country and, by implication, us.
This is by no means the only expression of von Trier's presumed point, that a place
based on the premise of offering refuge has become the tormentor of those it once
sheltered, but it is the most obvious (and some would say heavy-handed) one. Still, such
ham- fistedness, annoying though it may be, is not reason enough to avoid "Dogville,"
which by virtue of the sheer audacity of its artistic vision, invites mute awe alongside
open condemnation.
Von Trier, of course, goes out of his way to turn his movie into a bitter pill. Filmed on a
nearly bare soundstage, on which minimal props decorate a set existing only in chalk
outline, "Dogville" is a hard, three-hour-long sit, made to seem longer by its structure of
prologue and nine chapters, each narrated with sonorous pomposity by John Hurt. When
the characters open their mouths and they are often quite chatty, despite their dour
facades they speak with the archly affected rhythms and vocabulary of characters in
an old novel. Like the artificially theatrical staging, which layers real sound effects on
top of unreal buildings, the stilted dialogue is in stark contrast to the naturalistic acting
of its all-star cast.
Included among the denizens of Dogville (whose name seems to allude to the snarling,
ill-tempered cur that we hear but never see until the end), are Paul Bettany as Grace's
chief savior-turned- betrayer, along with Lauren Bacall, Patricia Clarkson, Ben Gazzara,
Chloe Sevigny and Stellan Skarsgard (among others) playing a clutch of suspicious and
ultimately virulently xenophobic townsfolk.
Despite recent published comments in which the filmmaker has alluded to the film's
universality, von Trier at times slathers on the anti-American symbolism with a trowel.
At one point, in a nod to the otherworldly, if not avenging-angel, nature of their visitor –
who hands her abusers a sublimely nasty form of retribution – the villagers can be heard
to sing the line, "God shed his grace on thee," from "America the Beautiful." What's
more, the late arrival of a character identified only as the Big Man (James Caan), and
his unexpected connection to Grace, suggests a distinctly deus ex machina punishment
for the film's evildoers.
Perhaps most surprising of all von Trier's tricks, however, is his ability to pull off this
high-wire polemic. I'd be hard-pressed to argue that the gloomy Dane wants anyone to
actually like "Dogville." Yes, it plays like a baldfaced, brazen insult, but it is a
stunningly accomplished one. It hurts, but maybe it should.
117
A 16
Detroit Free Press
Terry Lawson – 16/04/04
One Town’s Hidden Agenda
It is unlikely there will be much fence-sitting when it comes to "Dogville," the first in
what Danish director Lars von Trier plans as an allegorical trilogy about the United
States. But while some people may object to its anti-Americanism – a charge I think the
movie lives up to – more may simply find it pretentious and boring, its enforced
artificiality less than artful.
I'm on the other side: I found "Dogville" fascinating, nearly as powerful as Von Trier's
"Dancer in the Dark" and as interesting for the faulty assumptions it makes as for the
supposed truths it reveals.
At a time when many believe that any American who acknowledges the criticisms
leveled against the United States is at best a hand-wringing pantywaist, at worst an
abettor of the enemy, "Dogville" reminds us that art has an obligation to make us
question what we hold near and dear.
Von Trier has set "Dogville" in the Rocky Mountains, perversely reducing their beauty
to a bare-bones, "Our Town"-like stage; the small village of Dogville has its streets,
homes and landmarks defined by chalk marks. It is populated by little more than a
dozen people, one of whom is a writer and self-appointed conscience named Tom (Paul
Bettany).
Tom is certain that Dogville is lacking in purpose or fortitude or heart. So when he
encounters Grace (Nicole Kidman), who is escaping the clutches of mysterious
strangers, it is like receiving a gift. Tom instantly senses a goodness in Grace that leads
him to believe she is worthy of the town's protection, and he calls a town meeting to
argue for just that. After some debate, the motion is passed.
Soon enough, Tom is telling Grace he loves her, and she begins to love him, too, while
arguing that consummating their relationship would bring his motivations under
suspicion.
When the sheriff shows up asking questions, a meeting is called. The townsfolk propose
that Grace give them something in return for their protection specifically, an hour a
day to each of them, for whatever purpose they decide. Grace becomes a gardener, a
baby-sitter, a companion, and the darker instincts of the residents are revealed.
Though "Dogville" could be read as a lecture on the ultimate effects of capitalism, Von
Trier seems to be making a more personal attack on the American character. We hide,
according to this movie, behind a facade of good intentions and a bully's shield of self-
preservation.
It's more instructive, and productive, I think, to look at the archetypes represented by the
people of Dogville, as they are deftly defined by the actors. The performances are
purposely mannered yet emotionally direct and, as with "Our Town," we are easily able
to align the characters with people we know. It is because of them that "Dogville" stakes
territory in our brain, becoming one of those dream-like film experiences that haunts us
long after we have left town, looking for some place nicer to spend our time.
118
A 17
Houston Chronicle
Eric Harrison
Dogville
It's Martyred Blonde week at the movie house. It's hard to believe one woman could
endure as much mistreatment as Uma Thurman does in Kill Bill. Nicole Kidman's
suffering in Dogville is mostly emotional, but it, too, seems more than anyone should
have to bear.
Kidman plays Grace, a stranger who wanders into the ramshackle mining town of
Dogville in flight from a powerful mobster. She's discovered by Tom (Paul Bettany),
the retired doctor's son and a writer, except that he has never written anything.
Tom is a thinker. He spends his time pondering what he pretentiously calls "the human
problem." Then he holds regular meetings so the townspeople can discuss it. He
persuades them to take Grace in. She'll do chores to repay them.
In a way, Dogville becomes a laboratory. The introduction of the helpless, good-hearted
Grace allows Tom to conduct a study of human nature. He isn't prepared for what
happens, though. No one is. The depths of human cruelty exhibited are astounding.
Writer-director Lars von Trier founded Dogme 95, a film movement that champions
naturalism and eschews artifice, but he shot Dogville on a soundstage with few props.
Houses and streets are indicated by outlines on the floor. Actors pretend to open doors
we can't see. Intimacies occur behind walls that don't exist.
This stylized approach is only distracting for a while. Ultimately, by banishing the
expectations that go along with naturalism, it places the tale squarely within the
province of fable.
The effect is aided by an omniscient narrator, reminiscent of Our Town, who introduces
us to the denizens of this little Rocky Mountain mining town and muses on the action.
Partly because of the overt spirituality of von Trier's Breaking the Waves, some view
Dogville as a religious parable. Others, because of a photo montage of bleak scenes that
ends the film, see it as an anti-American screed.
That last interpretation feels wrong. Von Trier, a Dane, is a critic of the United States,
but this movie is a commentary on human nature. He's never visited this country. He
knows of it mostly from television, the movies and the news. He treats it as a fairy-tale
landscape.
In Breaking the Waves and Dancer in the Dark, a bleak musical that he also set in a land
he called America, von Trier established himself as a filmmaker of singular vision and
serious intent.
In each of those stunning films, his central character was a woman who acted as a
sacrificial figure. That's true of Dogville, but the movie also shares with Kill Bill a
theme of vengeance.
The film, which was nominated for the Golden Palm award at the Cannes Film Festival
last year, is three hours long. Slow-moving but engrossing, it feels shorter, and any
reservations you may have about the unorthodox approach are washed away by its
unexpected and purgative ending.
119
A 18
USA Today 26/03/04
Claudia Puig
‘Dogville’ Is Biting Look at Dark side of American Dream
Dogville, a highly stylized allegorical tale about small- mindedness in a big country, is
not for everyone. It is darkly funny, intellectually challenging and obliquely didactic. It
also grows bleaker over the course of its nearly three-hour running time.
But kudos to Danish director Lars Von Trier for attempting a thought-provoking film
that is distinctly different from most screen fare.
Dogville is the name of a village, which actually is simply a set with no buildings.
When people go in and out of "houses," the cue is the sound of a creaking door; there
are no doors or walls. The town's only "dog" is a chalk outline with the word "dog"
inside it. Still, he can be heard barking whenever a stranger comes to town, and it is a
stranger's arrival that kick-starts the action.
Nicole Kidman is Grace, a mysterious woman who is on the run from gangsters.
Dogville's de facto mayor is Tom (Paul Bettany), a liberal-minded writer (who has
written only two words). He believes the town is staid and uncaring, so when Grace
arrives he tests his assessment by asking townsfolk to harbor her and give her work.
They grudgingly agree, and she initially wins them over with her good- heartedness and
hard work. But eventually the villagers turn on her.
Dogville symbolizes America; the film accuses the country of initially welcoming
outsiders but ultimately exploiting them. Von Trier spares no punches, showing the
impotence of liberal Tom and the closed-minded cruelty of the conservative townsfolk.
Kidman does a fine job as does Bettany. Among the villagers, the standouts are Lauren
Bacall as a cold-hearted shopkeeper, Patricia Clarkson as a creepily indulgent mother
with a monster for a child and Ben Gazzara as a blind man who won't face up to his
blindness, then uses it to take advantage of Grace. It's an intriguingly subversive tactic
to employ Hollywood actors to make such an anti- American film.
Von Trier's sociopolitical statements are not subtle, but they are artfully conveyed. The
movie segues from a violent ending to documentary-style black-and-white photographs
that show men, women and children struggling with deprivation, accompanied by the
jarringly jaunty Young Americans by David Bowie.
When was the last time a movie forced you to take stock of how our country is
perceived from afar?
120
B 1
Folha de S.Paulo – 29/01/04
Contardo Calligaris
Filme do cão
No inverno de 1994, na Universidade de Nova York, um painel de intelectuais franceses
debatia os "malefícios" da internet. Alain Finkielkraut (que, apesar do que segue, é autor
de livros respeitáveis) descreveu a net como um pesadelo totalitário. Um estudante lhe
fez observar o óbvio: a net é tudo salvo uma estrutura totalitária centralizada.
Finkielkraut respondeu que, de fato, ele desconhecia o funcionamento da net e nunca
tinha estado on-line na vida. Levantando com brio sua caneta tinteiro, acrescentou que
nem sabia se servir de um computador.
Uma minoria achou graça. A maioria foi embora. Meu vizinho de cadeira, ao levantar-
se, disse a um amigo: "Não vou passar a noite escutando este babaca".
Concordo: quem fala do que não conhece com a intenção de ser levado a sério é um
babaca.
E quem fica para escutá-lo é duplamente babaca.
Ora, o diretor e autor do script de "Dogville", Lars von Trier, dinamarquês, declarou que
seu filme é uma crítica dos Estados Unidos, onde, acrescentou orgulhosamente, ele
nunca esteve. Numa entrevista ao "Guardian" de 15/ 5/2003, ele explicou que não
precisa conhecer o país para criticá-lo e repreendê-lo, pois, afirmou expressa e
literalmente, os EUA são uma parte muito relevante de sua consciência, e isso pode
bastar.
Lendo a entrevista, embora essa última afirmação me deixasse perplexo, pensei apenas
que Von Trier era mais um babaca. Quando o filme estreasse, eu pouparia meus R$ 14.
Mas, recentemente, lembrei-me do seguinte: no inverno de 2002, um amigo, que vivia
em Williamsburg (Brooklyn, Nova York), hospedou Lars von Trier em seu
apartamento. Além disso, o mesmo amigo jura de pés juntos que o diretor dinamarquês
passou meses em Los Angeles entre 1996 e 1997.
De repente, o filme me interessou: queria entender por que Von Trier sentiria a
necessidade de nos contar abobrinhas.
Claro, há um oportunismo de marqueteiro: vocês, que, pelo mundo afora, não conhecem
os EUA e estão indignados com a atual política norte-americana, bebam à fonte de meus
preconceitos. Numa época de vivo antiamericanismo, a atitude garante ingressos.
Mas deve haver outras razões, am da bilheteria, para que Von Trier proponha
"Dogville" como uma crítica aos EUA, e, ao mesmo tempo, ao custo de uma mentira
(por pequena que seja), insista em declarar que sua crítica é o preconceito de quem não
conhece.
A história do filme é a seguinte: nos anos 20, chega a um minúsculo vilarejo norte-
americano uma moça perseguida por gângsteres. O vilarejo aceita protegê-la, mas, aos
poucos, passa a escravizá-la perversamente.
O filme é pretensioso, o cenário e os diálogos gritando: "Sou o novo Godard, olhem
como sou brilhante". Apesar dos esforços admiráveis dos atores, a complexidade das
personagens é escassa.
Se o filme fosse uma meditação geral sobre a perversidade humana, ele seria cínico.
E o cinismo é o disfarce mais barato para simular inteligência: "revelar" que os homens
são todos ruins é (quase sempre) apenas uma maneira de proclamar que a gente não é
burro.
121
Se o filme quisesse apresentar os efeitos do ódio pelo diferente numa pequena
comunidade isolada (e americana), seria inevitável pensar em "Deliverance" ("Amargo
Pesadelo"), de John Boorman, 1972, que é incomparavelmente melhor.
De qualquer forma, a história evoca não os EUA dos anos 20, mas a época sombria em
que, pela Europa invadida e ocupada, muitos judeus perseguidos pagaram caro a
"generosidade" de quem os escondia.
O fim do filme (que não revelarei) é, aliás, estranhamente filoamericano e nos deixa
com uma mensagem contraditória: os habitantes de Dogville (que seriam americanos)
são horríveis, mas ainda bem que, de vez quando, os americanos chegam para acabar
com Dogville. Esse paradoxo se explica se tentamos entender a origem do preconceito
de Von Trier.
A Dinamarca foi ocupada pelos nazistas em 1940, em poucas horas; rei e governo se
resignaram. A nação resgatou sua honra a partir de 1942, quando começou uma
resistência heróica que, por exemplo, em 1943, garantiu a fuga de 7.000 judeus para a
Suécia livre. Mas, antes disso, uma página de história menos gloriosa. Cito uma
fonte pouco suspeita, a história da Dinamarca contada pelo equivalente dinamarquês do
Itamaraty: "Na ocasião da ofensiva alecontra a União Soviética em 22 de junho de
1941, os alemães exigiram que os dirigentes comunistas dinamarqueses fossem
internados, o que foi feito com um zelo que ultrapassava largamente as exigências
alemãs".
Acontece que os pais de Von Trier eram comunistas militantes. Não sei como eles e
seus camaradas viveram essa época. Mas duvido que tenha sido um momento feliz. Se
que houve comunidades dinamarquesas que abusaram de seus comunistas escondidos
como o vilarejo de Dogville abusa de Nicole Kidman, se não pior?
O mecanismo é banal: pelo preconceito, atribuo ao outro alguns traços meus ou de
minha história que prefiro ignorar. Apontar a podridão alhures é mais simples que lidar
com minhas tripas malcheirosas. E, no reino da Dinamarca, aconteceu algo podre que
talvez Von Trier prefira silenciar.
Por isto, o filme, apesar de medíocre e desonesto, é interessante: porque é um exemplo
esclarecedor de como nasce e funciona um preconceito.
O título, "Dogville", significa cidade do cão, e, de fato, há um cachorro na história. Mas,
considerando que o filme fala das dificuldades de Von Trier com sua própria história e
que Dogma é o nome do grupo que o diretor fundou, "Dogmaville" teria sido um título
mais apropriado.
122
B 2
The Wall Street Journal – 26/03/04
Joe Morgenstern
Weekend Journal
DOGVILLE" IS A symphony for tin ears, a sniggering assessment of human nature
delivered with the faux-lofty tone of a Lexus commercial. To the considerable extent
that it evokes "Our Town," "Dogville" is also a calumny against the gentle spirit of
Thornton Wilder. This all- but-interminable morality play (it does end, after 177
minutes) was written and directed by Lars von Trier, the Danish director of "Breaking
the Waves." The action takes place on a big stage where minimalist props represent an
isolated village in the Rocky Mountains during the Great Depression. The visual effect
is mesmerizing, a sort of Monopoly board come to life, except that the life of this town
is governed by the filmmaker's rigid preoccupation with hypocrisy, greed and betrayal.
No good can come of Dogville's reluctant decision to offer sanctuary to a beautiful
fugitive from the outside world, because no good can be found in the human heart when
Mr. von Trier dissects it.
The fugitive, Grace, is played by Nicole Kidman, whose performance is brilliant when
her material allows it to be. Frequently, though, the director puts a lid on her energy by
having her murmur or mumble. (She's not alone in this. Monotone is Dogville's default
vocal mode.) Like Emily Watson's Bess in "Breaking the Waves," this heroine
embodies a state of grace. She is innocence personified, at least for a while: "Grace had
bared her throat to the town," the narrator says. She brings truth and humanity to
Dogville, and her subsequent suffering at the hands of its citizens is a baleful answer to
the drama's central question of what people do when confronted by unalloyed goodness.
The large and (in other contexts) distinguished cast includes Harriet Andersson, Lauren
Bacall, Paul Bettany, Blair Brown, James Caan, Patricia Clarkson, Jeremy Davies, Ben
Gazzara, John Hurt, Chloe Sevigny and Stellan Skarsgoard. I admired Mr. Bettany's
quietly frightening portrayal of Tom Edison, the craven young man who befriends
Grace, only to betray her. But most of the other actors in this would-be ensemble are
misused by their mechanistic director, undone by their schematic roles or ludicrously
out of place; it's a wacky pleasure, if nothing else, to watch Ms. Bacall tilling the soil
with her hoe.
When "Dogville" made its debut last year at Cannes, it was praised for its originality –
despite obvious borrowings from Friedrich Durrenmatt's "The Visit," as well as from
other sources including "Our Town" – or reviled for its anti-Americanism. I kept
looking for the anti-Americanism as I watched the film at a recent screening, but I
couldn't find it; all I saw was anti-humanism disguised as Olympian empathy. But then
came the coda, a long montage of still photos, including some famous ones by Dorothea
Lange, that clearly identified the United States as the locus of worldly evil. Perverse to
the end, Mr. von Trier demeans himself with a salvo of silly potshots.
123
B3
Chicago Sun Times* – 09/04/04
Roger Ebert
Dogville
Lars von Trier exhibits the imagination of an artist and the pedantry of a crank in
"Dogville," a film that works as a demonstration of how a good idea can go wrong.
There is potential in the concept of the film, but the execution had me tapping my
wristwatch to see if it had stopped. Few people will enjoy seeing it once and, take it
from one who knows, even fewer will want to see it a second time.
The underlying vision of the production has the audacity we expect from Von Trier, a
daring and inventive filmmaker. He sets his story in a Rocky Mountains town during the
Great Depression, but doesn't provide a real town (or a real mountain). The first shot
looks straight down on the floor of a large sound stage, where the houses of the
residents are marked out with chalk outlines, and there are only a few props some
doors, desks, chairs, beds. We will never leave this set, and never see beyond it; on all
sides in the background there is only blankness.
The idea reminds us of "Our Town," but von Trier's version could be titled "Our Hell."
In his town, which I fear works as a parable of America, the citizens are xenophobic,
vindictive, jealous, suspicious and capable of rape and murder. His dislike of the United
States (which he has never visited, since he is afraid of airplanes) is so palpable that it
flies beyond criticism into the realm of derangement. When the film premiered at
Cannes 2003, he was accused of not portraying Americans accurately, but how many
movies do? Anything by David Spade come to mind? Von Trier could justifiably make
a fantasy about America, even an anti-American fantasy, and produce a good film, but
here he approaches the ideological subtlety of a raving prophet on a street corner.
The movie stars Nicole Kidman in a rather brave performance: Like all the actors, she
has to act within a narrow range of tone, in an allegory that has no reference to realism.
She plays a young woman named Grace who arrives in Dogville being pursued by
gangsters (who here, as in Brecht, I fear represent native American fascism). She is
greeted by Tom Edison (Paul Bettany), an earnest young man, who persuades his
neighbors to give her a two-week trial run before deciding whether to allow her to stay
in town.
Grace meets the townspeople, played by such a large cast of stars that we suspect the
original running time must have been even longer than 177 minutes. Tom's dad is the
town doctor (Philip Baker Hall); Stellan Skarsgard grows apples and, crucially, owns a
truck; Patricia Clarkson is his wife; Ben Gazzara is the all-seeing blind man; Lauren
Bacall runs the general store; Bill Raymond and Blair Brown are the parents of Jeremy
Davies and Chloe Sevigny. There are assorted other citizens and various children, and
James Caan turns up at the end in a long black limousine. He's the gangster.
What von Trier is determined to show is that Americans are not friendly, we are
suspicious of outsiders, we cave in to authority, we are inherently violent, etc. All of
these things are true, and all of these things are untrue. It's a big country, and it has a lot
of different kinds of people. Without stepping too far out on a limb, however, I doubt
that we have any villages where the helpless visitor would eventually be chained to a
bed and raped by every man in town.
The actors (or maybe it's the characters) seem to be in a kind of trance much of the time.
They talk in monotones, they seem to be reciting truisms rather than speaking
spontaneously, they seem to sense the film's inevitable end. To say that the film ends in
124
violence is not to give away the ending so much as to wonder how else it could have
ended. In the apocalyptic mind-set of von Trier, no less than general destruction could
conclude his fable; life in Dogville clearly cannot continue for a number of reasons, one
of them perhaps that the Dogvillians would go mad.
Lars von Trier has made some of the best films of recent years ("Europa," "Breaking the
Waves," "Dancer in the Dark"). He was a guiding force behind the Dogme movement,
which has generated much heat and some light. He takes chances, and that's rare in a
world where most films seem to have been banged together out of other films. But at
some point his fierce determination has to confront the reality that a film does not exist
without an audience. "Dogville" can be defended and even praised on pure ideological
grounds, but most moviegoers, even those who are sophisticated and have open minds,
are going to find it a very dry and unsatisfactory slog through conceits masquerading as
ideas.
Note No. 1: Although von Trier has never been to the United States, he does have one
thing right: In a town, the smashing of a collection of Hummel figurines would count as
an atrocity.
Note No. 2: I learn from Variety that "Dogville Confessions," a making-of
documentary, was filmed, using a soundproof "confession box" near the soundstage,
where actors could unburden themselves. In it, Stellan Skarsgard describes von Trier,
who he has worked with many times, as "a hyper-intelligent child who is slightly
disturbed, playing with dolls in a doll house, cutting their heads off with nail clippers."
Von Trier himself testifies that the cast is conspiring against him. Variety thinks this doc
would make a great bell and/or whistle on the eventual DVD.
Note No. 3. We should not be too quick to condemn Von Trier, a Dane, for not filming
in the United States, when "The Prince and Me," a new Hollywood film about a
Wisconsin farm girl who falls in love with the prince of Denmark, was filmed in Toronto
and Prague.
125
B 4
The New York Times – 04/10/03
Stephen Holden
Virtue is its own punishment
The clearest path toward understanding Lars von Trier, whose three-hour quasi-
Christian allegory, ''Dogville,'' is certain to divide audiences into passionate champions
and hissing naysayers, is to accept that he is a ruthless provocateur with a practical
joker's sensibility.
Unlike most serious filmmakers who demand your trust, Mr. von Trier solicits it with a
supercilious smirk, then mocks your emotional expectations with a teasing ambiguity.
Alfred Hitchcock, who's also been accused of sadism, played tricks that tickled. Mr. von
Trier wants his to leave a sting, along with the uneasy suspicion that he's played you for
a fool.
''Dogville,'' which has the first of two New York Film Festival screenings tonight, has
the outlines of a savage Brechtian deconstruction of ''Our Town.'' While you watch the
movie, it can seem ridiculously long-winded (especially near the end, when James Caan
appears as a mobster in a black sedan). But once it's over, its characters' miserable faces
remain etched in your memory, and its cynical message lingers.
As a contemptuous, nose-thumbing expression of this Danish director's misanthropy,
the movie is relentlessly true to its hateful vision, depicting as a lie the ideal of
embracing human community (and especially the cozy, cookie-baking dream of small-
town America). The only true solidarity to be found in any group, it proposes, is
through vengeful, xenophobic mob violence.
Because most people automatically flinch at such misanthropy, ''Dogville,'' which
concludes that people are no better (and probably worse) than dogs, faces a dim
commercial future. Set during the Depression in Dogville, an imaginary American
town, it reworks Mr. von Trier's favorite parable of human cruelty the persecution and
martyrdom of an innocent young woman then subjects it to a transcendentally nasty
twist.
Unlike the director's earlier variations on the theme, this one doesn't culminate with a
comforting peal of celestial bells or a song of faith by an angel facing the electric chair.
Grace (Nicole Kidman), a beautiful stranger running from mobsters, who wanders into
Dogville and throws herself on the mercy of the townspeople, doesn't ascend anywhere.
Mr. von Trier pulls the rug out from under her by suggesting that retaliation is more
satisfying than martyrdom, and asserting that forgiveness is a form of moral arrogance
that deserves to be trampled. For those who come to care about Grace, the turnaround is
a nasty slap in the face, and the practical joker's final crow of ''what did you expect?''
The Brechtian gap between the audience and what unfolds is much wider in ''Dogville''
than in Mr. von Trier's previous movies because the new film, shot in digital video, all
but does away with naturalistic trappings. It takes place on a stage designed as a map,
with props and chalk directions indicating place names like Elm Street (although we're
told that there are no elms in Dogville). The stage is large enough to accommodate
moving cars.
A favorite camera device is to peer down from above to observe the characters (their
actions sometimes sped-up) as scurrying ants. Because of the Depression, the town is
hopelessly bedraggled, and filming the movie (in bleached-out color) on a stage set has
enhanced the claustrophobic ambience.
126
That Brechtian distance is further widened by the flowery delivery of an unctuous
British narrator (John Hurt), who relates the story in a facetious parody of fairy-tale
language. Like a storybook, the movie is divided into chapters with explanatory titles.
When Grace arrives in Dogville, she is befriended by Tom Edison (Paul Bettany), a
young philosopher, know-it-all and John-Boy Walton type who appoints himself her
protector and pleads her case with the townspeople. (Eventually, he and Grace fall in
love.) To gain community acceptance, Grace volunteers her labor as Dogville's unpaid
housekeeper, gardener, baby sitter, and all-purpose farmhand.
But her neighbors' good will curdles into suspicion and loathing after schoolchildren
spot her being raped in an orchard by Chuck (Stellan Skarsgard), an apple farmer who
blackmails her into becoming his plaything. Then her life goes swiftly downhill, and she
ends up a prisoner and unpaid prostitute, all the while maintaining the vestiges of a
misplaced Panglossian faith in her persecutors' underlying humanity.
Among the actors portraying the townspeople, who gather for regular meetings, are
Lauren Bacall, Blair Brown, Patricia Clarkson, Jeremy Davies, Ben Gazzara, Chloë
Sevigny and Philip Baker Hall. They make up an ominously mean-spirited ensemble,
ruled by fear, greed, lust and envy.
Ms. Kidman's Grace (sweetly underplayed) is an angel of compassion and charity who
forgives their rudeness and excuses their sins. Her sin (in their eyes) is to act as if she's
better than other people. And one of the movie's most unsettling notions is that good
people are resented for their virtue. And because they make everyone around them feel
even worse about themselves, they need to be taught a lesson.
A lot of fuss has been made about Mr. von Trier's supposed anti-Americanism. (He has
never visited this country.) It seems to me that this showy stance is more a provocative
maneuver than a hardened prejudice. As long as the United States is touted as the
promised land whose streets are paved with gold, its myths are ripe for puncture. We
ought to be able to stand it.
127
C 1
Los Angeles Times25/03/04
Sorina Diaconescu
A stranger’s take on a strange land
"My goal was to go back to basics and find the joy of believing in a story no matter
what," says Danish filmmaker Lars von Trier about his latest project, "Dogville." "If
someone tells you a story, you have to make an effort to believe in it.
"And when you do, it can really be good."
That the experience can also be perverse, exhilarating, explosively un-P.C. and
unforgettable, it goes without saying. "The sad tale of the township of Dogville," told in
nine chapters and a prologue, is the handiwork of possibly the most controversial
European anti-auteur.
Von Trier is on the phone from picturesque Trollhattan, Sweden, where he just started
shooting his next film, "Manderlay." He likes to make movies in sets of three, and
"Dogville" is the first in what he has referred to as his American trilogy.
The director is reluctant to make interpretation easy, either. "I like films to raise
questions that people will then have to answer themselves. Even I am not really sure
what particular theme connects them. Why make films if you're sure?"
"Dogville," opening in Los Angeles theaters this week, can be read as a Depression-era
allegory about the shabby back side of a purported American Utopia. The credits
sequence juxtaposes, with cheerful rudeness, David Bowie's buoyantly ironic anthem
"Young Americans" against Dorothea Lange's iconic photographs of poverty, for
instance. Later, "Dogville's" omniscient narrator observes that a character "made up for
his lack of preparation by lashing out haphazardly in all directions." In such moments,
Von Trier makes it impossible not to see which country he's skewering.
It shows considerable cheek on the part of an artist who has famously never set foot in
the United States. (He suffers from a fear of flying, as well as other phobias that appear
as recurring themes in his work.) "You can criticize me for this, but I have a tendency to
be inspired by things that I'm not really familiar with and that are quite remote," the
filmmaker says. "It's much easier that way. You don't have to work so much doing
research – I already had a remote idea about how America could be – but of course, you
can make a lot of people angry."
And for some, nothing will be more offensive than the sight of Grace, the film's
protagonist, played with hair-raising abandon by Hollywood megastar Nicole Kidman,
spending a fair stretch of the story shackled to a diabolical leash-like contraption and
being repeatedly raped.
Even so, there is elegant rhythm and plenty of method to Von Trier's provocative ways.
At first, fictional Dogville appears to both audience and Grace (a beautiful fugitive
pursued by gangsters who is granted sanctuary in the village) to be nothing but a
friendly hamlet nestled into a nook of the Rockies, populated by upright people who
live winsome lives. It is a place of utilitarian assets a verdant apple orchard, an
abandoned silver mine, a church with a bell, a watchdog - - many merely outlined on the
ground in chalk.
The film's only discernable lesson is that exploring with any depth this charming slice
of Americana is highly dangerous for everybody involved. By the end, the morality of
Dogville's citizens, that of Grace and that of the audience all will have been called into
question.
128
In his next film, "Manderlay," Grace (played this time around by newcomer Bryce
Dallas Howard) stumbles upon another Depression-era small town in Alabama where
slavery has yet to be abolished. She sets out to help straighten things, but then
"everything, of course, goes awry," Von Trier says in his cordial, mellow phone
manner.
Like the amiable devil from Sartre's play "No Exit," he likes to taunt with the possibility
that no hell dreamed up by gods could ever measure up to the unspeakable evil that
humans readily inflict upon one another.
Because his work has stubbornly, and often in an unexpectedly brilliant manner, probed
ethical and moral quandaries, the United Nations recognized Von Trier with a Cinema
for Peace prize in 2000. His compulsion to needle the establishment characteristically
subverted the awards ceremony.
"I probably offended them because I gave an acceptance speech that was a little
cheeky," he says. "I told them that an apolitical peace prize doesn't make sense to me.
And that first we have to treat each other fairly and divide the world in a just way; I
think that's more important than peace.
"Also, if you are dying of hunger, then you want food more than peace."
Spoken like a true Marxist.
Ne Lars Trier, the filmmaker picked up the aristocratic article in homage to German
directors Erich von Stroheim and Josef von Sternberg. Two other German artists, the
agit-lit team of composer Kurt Weill and playwright Bertolt Brecht, are also partly
responsible for the highly stylized look and feel of "Dogville." Von Trier was inspired
by musical numbers featured in Brecht's 1930s plays, paradigm-shifting examples that
paired Marxist ideology with cabaret-style decadence.
For "Dogville," shot entirely with a hand-held camera on a gigantic sound stage, Von
Trier says he was obsessed with capturing the stylized miens and the slightly alienating
experience of watching theater on television: "I can't explain why. It's a feeling I have,
like when you need a specific vitamin or mineral. Then again, I always set different
kinds of rules and limitations for myself."
Going back to basics is a journey that the 47-year-old Von Trier has been mapping since
the mid-'90s, when he abruptly abandoned the gorgeously baroque expressionism that
had characterized his early work. He coauthored the Dogme 95 manifesto a public
oath he took along with a collective of his Danish peers to banish artifice, decorum and
personal taste from filmmaking.
The austere approach yielded harsh new virtues that quickly shoved one of the world's
most backward filmmaking nations to the vanguard of European cinema.
Von Trier visibly rode the crest of the new wave. Using direct storytelling, grainy,
realistic photography captured by hand-held cameras and quick-cut editing, he reaped
acclaim and infamy with each film.
With the psych-horror hospital soap "The Kingdom," the subversively and violently
anti-bourgeois fantasy "Idiots" and the contrived and heartbreaking melodramas of
female crucifixion "Breaking the Waves" and "Dancer in the Dark," Von Trier proved
himself a poet of varied cinematic moods, a sardonic humorist and a filmmaker of
stunning visual awareness.
Or, depending on whom you ask, a misanthrope, an impertinent hack even a
"degenerate" artist, as a furious Time magazine critic labeled him in 2000.
His fiercely independent manner he funds his work through a filmmaking enterprise
he co-owns, Zentropa Film, which produces the work of fellow filmmakers through an
adjacent distribution company - - as well as the intense commitment he requires of his
casts are well documented.
129
Despite past adversarial working relationships with collaborators, Von Trier has many
notable admirers. His "Dogville" cast runs the gamut from icon Lauren Bacall to indie
luminaries Paul Bettany, Chloe Sevigny and Jeremy Davies, as well as Kidman.
Horror author Stephen King loved Von Trier's "Kingdom" miniseries so much he
decided to write a remake himself for U.S. television. (Von Trier says he finds the idea
itself "very funny," although he hasn't seen the series, currently running on ABC as
"Stephen King's Kingdom Hospital.") "I like to be popular with the people I like to be
popular with, and I like to be unpopular with the people I like to be unpopular with," he
notes.
When pressed about specifics, he keeps the references to the former vague ("they're
difficult to define, but I know who they are") but happily names names among the latter.
"I would like to be unpopular with Harvey Weinstein," he says. "And I think I've
succeeded."
130
C 2
Los Angeles Times26/03/04
Manohla Dargis
Seduced by ideas?
"Without publicity," that great ringmaster P.T. Barnum once said, "a terrible thing
happens: nothing!" It's a lesson that has never been lost on one of Barnum's spiritual
sons, the fitfully brilliant Danish filmmaker Lars von Trier. Part carny, part genius, Von
Trier has been manufacturing minor tempests for years, most recently with his latest
scandal, "Dogville." A movie in which Nicole Kidman gets kicked around by Mr. and
Mrs. USA and David Bowie sings about "young Americans" over photographs of
brutalized human refuse, the three- hour opus was the excited, at times bitter, talk of last
year's Cannes film festival.
Loudly decried as anti-American in some quarters and hailed a masterpiece in others,
"Dogville" was the right movie for that edition of Cannes. The festival had needed a
shock to its system and Von Trier was an old hand with the electrodes. For the more
than 3,000 restless journalists in attendance, the premiere of an anti- American epic so
soon after the U.S. had launched a war that was largely unpopular in Europe and
especially France was manna from hype heaven. A year later, with the war depressing
old news and attention having drifted to such weapons of mass-cultural destruction as
Janet Jackson's breast, it's hard to see what the fuss was about. It is, however, easier to
see "Dogville" for what it is a provocation, a coup de theatre and three hours of
tedious experimentation.
The slyly simple story opens as, once upon a time in America, a young fugitive, Grace
(Nicole Kidman), takes refuge in a Rocky Mountain township called Dogville. Initially
suspicious of the stranger, the townspeople take Grace into their cautious embrace and
gradually offer her shelter, work and fellowship. She weeds a gooseberry patch
belonging to a cranky shopkeeper (Lauren Bacall), keeps company with a lonely blind
man (Ben Gazzara), giggles with the local women (including Chloe Sevigny and
Patricia Clarkson) and embarks on a wan romance with the town's self-appointed moral
compass, Tom Edison (Paul Bettany). But the milk of human kindness sours quickly in
Dogville, and after old doubts and new fear surface, Grace finds herself cast out again,
this time with disastrous results.
Set on a large soundstage with a smattering of props with the houses, streets and even
a family dog rendered in white outline on the dark floor "Dogville" is the apotheosis
of art-house high concept. Written by Von Trier and shot in digital video, the story
advances on occasionally conflicting parallel tracks – in a voice- over spoken by British
actor John Hurt and in the action played out by the international cast. The intermittent
narration furnishes exegesis as well as the slow, steady drip of irony. The some two
dozen cast members, meanwhile, supply the meager visual distraction by going through
their pantomime paces closing invisible doors, picking invisible apples with nary a
raised eyebrow. The language is stripped down, reminiscent of social plays of the
1930s, and the influence of Bertolt Brecht is palpable.
The deconstructed set and the mannered line readings are clearly the filmmaker's bid to
destroy the illusion of classical realist cinema by showing us the stitching. But Von
Trier's intentions or at least his results could not be further from the deep-rooted
idealism of social drama, in which hope flickers however faintly. Driven by a
Hobbesian conception of human beings as engaged in a war of all against all, Von Trier
131
uses the familiar conceit of an individual in crisis as a springboard for his usual
fixations. As in his last three dramas "Breaking the Waves," "The Idiots" and "Dancer in
the Dark," Von Trier's so-called Golden-Heart Trilogy about martyred women, he again
employs the spectacle of female suffering as the basis for what has become a
depressingly cruel and merciless worldview.
Never a lover of humanity, at least on screen, Von Trier is inordinately fond of
brutalizing his female characters. Among the more easily disinterred reasons is the
influence of the late Carl Theodore Dreyer, the director of cinematic masterpieces such
as "The Passion of Joan of Arc" and "Day of Wrath." A filmmaker who certainly loved
the image of weeping women, the earlier great Dane has exerted a profound impact on
Von Trier. Dreyer's influence on Von Trier can principally be detected in the latter's
ongoing preoccupations with religious faith and divine grace and his attempts to
establish new cinematic paradigms, as stated in the infamous Dogma proclamation. But
unlike Dreyer, whose interest in film form is inseparable from his interest in human
nature, Von Trier takes gleeful delight in sacrificing his characters on the altar of his
formalist experiments.
Given the filmmaker's talent for provocation and how little regard he generally shows
for all his characters, it's reductive to decry "Dogville" as simply (or simple) anti-
Americanism. It would also miss the film's other target. Von Trier takes some easy,
uncomfortable jabs at the country – or, rather, a sentimentalized, Norman Rockwell idea
of the country – but because the digs are devoid of historical and political specificity the
criticisms come across as fundamentally toothless. (He's not exactly Michael Moore.)
What he's also after here, what also has Von Trier in a lather, is the realist cinema that
built Hollywood and which the industry has helped export to the world. Principally
because it's a cinematic practice that's radically at odds with his own aesthetic mission
and, perhaps just a little, because Hollywood's dominance puts a terrible squeeze on
non-American cinema.
Von Trier's frustrations are understandable. Internationally recognized as a major
auteur, he remains a marginalized figure in the U.S., as a filmmaker vigorously engaged
in pushing the edge of the cinematic envelope, regulated to the ghetto of the art house.
That doesn't make "Dogville" and Kidman's suffering more pleasant to watch, but it
helps furnish some context that cries of anti- Americanism, especially these days, might
obscure. Still, given the tenor of these days, I wish this exceptionally talented filmmaker
would put aside his dog-eat-dog sadism and wallowing self- indulgence. Writing about
Brecht and Arthur Miller in the mid- 1950s, theater critic Kenneth Tynan pledged, "I
shall continue to applaud all plays that are honestly frivolous, devoutly disengaged; but
I shall reserve my cheers for the play in which man among men, not man against men, is
the well-spring of tragedy."
Then as now, we need dogs that can rip the throat out of injustice, not just bark up their
own tree.
132
C 3
Washington Post – 09/04/04
Desson Thomson
In ‘Dogville’, The Dark Side of the Dream
O, Great Reviewing God in the Sky, today's dilemma is a tough one. From one
perspective, "Dogville" is a film of great ingenuity and artistic vigor, made by Lars von
Trier, the Great Dane of European filmmakers. On the other, it's a misanthropic clod of
earth heaved at America by a snarky European with gimlet eyes and relaxed shaving
habits.
What to say about this film? Extol the dramatic merits without mention of the obvious
Yank-bashing? Issue a jingoistic condemnation of the movie's refusal to genuflect
before the Stars and Stripes? Maybe send a bootleg videocassette copy of "Dogville"
(with von Trier's Denmark address attached) to a few good ol' boys? After all, this is a
movie that advocates Old Testament-style justice.
Thomson, just put your head down and write. Like you did with "Jersey Girl."
Okay. Then I say, let's appreciate the audacious freedom of this movie that von Trier
is exercising his considerable talent to say exactly what's on his mind. Let's enjoy his
dyspeptic vision for its full-throttle, damn-the-torpedoes drive. You can hate von Trier
for his political opinions but you can't watch indifferently. There's nothing equivocal or
boring about this ironic, and clearly anti- American, parable. And visually, it's a
stunning spectacle.
"Dogville" is set on a soundstage, with no attempt to hide the fact. There are no houses
in this interior set, only chalked outlines on the floor where doors and walls would be.
Actors mime the opening and closing of doors as they enter or leave their homes. And
outside one particular "house," a dog named Moses is denoted by a chain and a chalk
drawing.
With this Brechtian minimalism and hand-held video cameras (a trademark of Dogme
95 filmmaking the no-frills-allowed cinematic style that von Trier co-created), the
writer-director gives us a fascinating tango of stagebound artifice and documentary-like
camera coverage. The performers (including Nicole Kidman, Paul Bettany, Stellan
Skarsgard and Lauren Bacall) deliver their lines in an antique, 1930s-style cadence. It's
as if von Trier is co-directing the proceedings with Thornton Wilder and Samuel
Beckett.
Indeed, Wilder's "Our Town" is something of a template here. The characters in this
movie are at first very much the hardworking decent folk. The difference is, von
Trier is merely setting them up as ironic archetypes for a nasty fall from . . .
Grace that's the name of the beautiful stranger (Kidman) who seeks refuge in
Dogville, a Depression-era hamlet in the Rocky Mountains. She claims to be the target
of murderous gangsters. At a town meeting, Thomas Edison Jr. (Bettany), the self-
appointed town intellectual, makes the case for protecting Grace to whom he has
clearly taken a shine.
His speech works. Everyone votes to give her a two-week probation. But there is a price
for this bountiful gesture: Grace must work a little for everybody. That means holding
hands with Jack McKay (Ben Gazzara), a blind and lonely man. It means babysitting
the children of Vera (Patricia Clarkson), tending the gooseberry bushes of shopkeeper
Ma Ginger (Bacall), helping Chuck (Skarsgard) in his orchard and so on. She also
seems to be heading toward a romantic relationship with Tom.
133
When Grace passes her test, all is well. She's an accepted member of the town. That is,
until a reward is posted for Grace's apprehension. It seems she's wanted for robberies.
But even though the residents of Dogville know she's innocent she was in Dogville
when the supposed crimes occurred there is a change in the atmosphere. They feel
guilty for harboring an apparent criminal, but they can't ignore that atavistic smell of
quarry, not to mention the soothing reassurance of a reward. Suddenly the price of their
goodwill jacks up. Grace finds herself working twice as hard for half the money. And
she becomes the brunt of everyone's darkest impulses.
Is this movie "The Passion of the Grace"? She suffers the townspeople's abuses with
such acceptance, Kidman's character is certainly a messianic figure. Is this small-
minded town a metaphor for modern America at least, as perceived by von Trier?
Given the movie's end credits, in which we watch a photographic collage of poverty-
stricken Depression-era Americans while David Bowie croons "Young Americans," the
implication seems to be that America has always ignored its own.
Von Trier has aimed a kick at a hornet's nest, certainly. But isn't that the point?
Shouldn't artists jolt society out of what they see as complacencies? Of course they
should, even if their viewpoint ultimately seems unpersuasive or in this case, archly
simplistic. No matter how you come down on this movie politically, "Dogville" is a
compelling chamber piece with constant cinematic surprises. When Grace starts
working double time for the Dogvillians, motion is sped up while a clock's hands speeds
around the dial. It's a little flash of Chaplin's "Modern Times." And at one point when
Grace takes refuge from her troubles, she falls asleep on the flatbed of an apple truck
under a burlap cover. As the camera looks at her from above, she appears to hover in the
air, smoothed out by the texture of the burlap like an impressionist painting. It's a
stunning, delicate moment. In the midst of this thematic brutality, it touches you. And
you remember that von Trier is, above everything else, a consummate filmmaker.
134
D 1
Folha de S.Paulo – 23/11/03
Jacques Rancière (tradução Paulo Neves)
O Império do Mal
O mal comporta-se bem. À sombra da grande encenação bushista da luta contra o eixo
do mesmo nome, numerosas ficções se dedicam hoje a mostrar o avesso da cruzada: a
maneira pela qual essa América, que persegue os fomentadores da morte em toda a
superfície do globo, os reencontra a domicílio, nas largas avenidas plantadas de bordos
e nos colégios modernos e conviviais da América profunda, sob a figura de cidadãos
honrados ou de adolescentes iguais a quaisquer outros.
O mal não é a violência. Esta se deixa domesticar de diversas maneiras. De um lado,
pode ser tratada como pura intensidade: estrondos de deflagrações, riachos de sangue,
prédios que desabam em chamas são então, como o dilúvio de decibéis ou os
movimentos de câmera espetaculares, puras intensidades que compõem o gozo do
espetáculo do qual se sai tal como se entrou. Desse lado, portanto, a violência não tem
consequências. De outro, ao contrário, ela se presta ao jogo das diferenças e das causas.
Existem a boa e a violência.
Até pouco tempo atrás, policiais, xerifes ou justiceiros free-lancers exerciam sem
complexo, no cinema, a violência da lei comum ou da moral contra a violência dos que
seguiam apenas a lei de sua avidez. Na cena do mundo, via-se, de uma forma
divergente, uma oposição do mesmo tipo: a violência que oprime e a violência que
liberta, dizia-se no tempo de Sartre e de Frantz Fanon [1925-61, escritor martinicano].
Se era possível marcar a diferença, é porque se podiam atribuir causas à violência,
remetê-la a uma violência mais oculta, a violência da ordem e da propriedade. A partir
daí se estabeleciam os roteiros políticos da dureza necessária à justiça ou os roteiros
estéticos do confronto das violências. Não resta dúvida de que esses roteiros se prestam
hoje à suspeita. "Tiros em Columbine", de Michael Moore, o testemunha a seu modo. O
argumento de que "há crimes porque armas que qualquer um pode comprar" oscila
entre duas lógicas. Para completar o esquema causal, próprio da lógica antiga, seria
preciso questionar não simplesmente o encontro dos interesses de um lobby e do ideal
viril norte-americano, mas o fato mesmo de uma sociedade em que tudo se compra.
A interrupção na cadeia das causas corresponde, é claro, às formas contemporâneas de
uma consciência de esquerda mais ligada à regulamentação dos produtos perigosos do
que à crítica da propriedade como tal. Mas ela também deixa livre o lugar a uma outra
forma de causalidade, a que remete o fato finito desse ou daquele ato assassino ao fato
infinito do mal.
Com efeito, a característica do mal é não ter conserto senão ao preço de um outro mal
que permanece irredutível. um traço comum a três filmes recentes que nos falam do
mal em geral e do mal norte-americano em particular: "Dogville", "Sobre Meninos e
Lobos" ("Mystic River") e "Elefante" ("Elephant"). Nesses filmes, a lei está ou
radicalmente ausente ("Elefante") ou é mplice do mal: ela designa a vítima que deve
sofrer e reserva aos bandidos o cuidado de punir os torturadores ("Dogville"); ela deixa
impune o crime do honesto pai de família-bandido-justiceiro ("Sobre Meninos e
Lobos"). Certamente, "Dogville" é o filme que mostra melhor a divergência entre duas
lógicas -que é também uma divergência entre duas gerações.
A encenação abstrata que aproxima o espaço fictício do cinema do espaço real do teatro,
a composição em pequenas cenas que são espécies de contos morais e o papel
135
distanciador da voz em "off" lembram a origem teatral da parábola que Lars von Trier
nos propõe. Esses princípios de mise-en-scène são herdados do "teatro épico" de Brecht.
E a história das desilusões da moça de olhos azuis que quer, mas não consegue, praticar
o bem faz pensar irresistivelmente em "Santa Joana dos Matadouros". A mesma
conclusão se produz, a saber: a impossibilidade de fazer o bem num mundo mau e a
necessidade da violência. Mas a analogia se detém aí. Em vez de Chicago, da
especulação capitalista e da miséria ou da revolta operária, trata-se de um buraco
perdido qualquer da América profunda, dos serviços de vizinhança e da banalidade do
mal entre pessoas de bem.
Figura crística
A nova Joana d'Arc não é mais, então, uma paródia do Cristo que oferece sua vida pela
redenção dos homens e descobre as realidades terrestres da luta de classes. Grace (a
graça) torna-se uma figura crística à maneira de Dostoiévski, uma enviada do além que
depara com o gosto da exploração e da humilhação infligidas ao outro nas mais ínfimas
e tranquilas células do corpo social. O mal encarnado particularmente na perversidade
do pequeno Jason, que pede como prova de amor umas palmadas nas nádegas, que
servirão a seguir para acusar Grace, não pode ser remediado por nenhuma luta. É o que
mostram, em sua ambiguidade, as fotos que compõem os créditos no final do filme:
fotografias de Walker Evans, de Dorothea Lange e outros fotógrafos testemunhas dos
tempos da Grande Depressão e do engajamento social dos artistas. Não se sabe muito
bem se essas fotos estão para lembrar uma injustiça social doravante sem justiceiros
ou para dar a entender que os "great men" de Walker Evans e James Agee se
transformaram nesses pequenos monstros da América profunda. Mas uma coisa é certa:
a luta social não é mais uma resposta ao mal com que Grace depara. A vontade de fazer
o bem não é mais uma ingenuidade a esclarecer. É uma arrogância a castigar. O Senhor,
pai de Grace, que se reserva a vingança, é idêntico ao rei dos bandidos que faz justiça à
humanidade sob a forma do extermínio radical. Essa visão do mal e da justiça provocou
indignações -e não só norte-americanas. O presidente do Festival de Cannes disse
claramente que não era possível premiar um filme tão afastado dos sentimentos
humanistas. "Sobre Meninos e Lobos", em troca, corresponde certamente aos critérios
do humanismo tal como o ri de Cannes devia concebê-lo. Mas ele nos mostra que
também o "humanismo" mudou. Este era, no passado, a na capacidade humana de
organizar um mundo tão justo quanto a fraqueza igualmente humana o permitisse. Hoje,
é antes o testemunho da impossibilidade de semelhante justiça. Somos culpados demais
para nos darmos o luxo de sermos justos: tal é o sentido dos gestos mudos que trocam,
no final do filme, o assassino impune e o policial que guarda seu segredo.
Justiça sumária
Sean e Jimmy são culpados de ter, no passado, em suas brincadeiras de rua, arrastado o
tímido Dave e de tê-lo feito entrar na viatura dos falsos policiais e verdadeiros pedófilos
que o sequestraram e violentaram. O trauma sofrido é irreparável. E é dentro da lógica
desse irreparável que o Dave adulto verá cair sobre si todas as suposições de
culpabilidade no assassinato da filha de Jimmy e será vítima da justiça sumária deste
último.
Toda a estrutura do filme parece ser o desenvolvimento de um pequeno episódio de um
dos filmes iniciadores do estilo norte-americano dos últimos 30 anos: "Era uma Vez no
Oeste" [1968]. A câmera de Sergio Leone [1929-89] nos fazia ler no olhar de uma
criança impotente a decisão do homem que ia matá-la. Ela nos introduzia numa confusa
cumplicidade com o gozo do assassino e a espera da criança pelo inevitável. "Sobre
Meninos e Lobos" é, do mesmo modo, a longa crônica de uma morte anunciada. A
atmosfera noturna em que Dave circula -e a câmera a seu redor-, como num aquário, as
gesticulações e urros selvagens de Jimmy e seus dois acólitos, as vibrações da música
136
de órgão compõem a paisagem mental e sensível dessa preparação para a morte que
transforma o roteiro clássico do falso culpado em roteiro da vítima prometida.
Não-maniqueísmo
Todos nós matamos uma criança, então vamos até o fim: eis como se poderia resumir a
moral do filme, a moral que ele põe em cena e a de sua mise-en-scène. Clint Eastwood
chegou a ser elogiado por ter evitado o "maniqueísmo" de Michael Moore ou de Lars
von Trier. Examinado mais de perto, esse "não-maniqueísmo", essa aceitação da
injustiça em nome do mal, é homogêneo em relação ao discurso reinante contra o eixo
do mal. que somos todos selvagens, todos potenciais assassinos, devemos aceitar a
obra da justiça. Mas, pela mesma razão, o devemos exigir da justiça que ela seja
demasiado justa. A luta contra o mal infinito tem necessariamente suas falhas,
necessariamente suas vítimas, tanto na periferia das cidades árabes como na de Boston.
Quanto a "Elefante", ele se coloca fora de toda consideração de justiça e de toda
perspectiva causal. Se o "freudismo" de Clint Eastwood corresponde à demonstração do
trauma irreparável, o de "Elefante" nos proporia antes uma explicação em termos de
psicose: o mundo dos adolescentes é um mundo "inocente", mundo de que o pecado, a
lei e a autoridade estão radicalmente ausentes. O pai depressivo que bebe, e que seus
filhos tratam como criança, é o único representante da instância parental. Mas nenhuma
causalidade psicológica se induz disso. John, o filho do pai indigno, não será nem
culpado nem vítima. Sua presença ao longo de todo o filme é apenas a da testemunha
que assegura a continuidade da narração interrompida. E os dois assassinos parecem
perfeitamente cândidos, comparados ao pequeno Jason. Nenhuma psicologia da filiação
e de seus distúrbios, nenhuma teologia do mal vêm substituir o horizonte político-social
desaparecido. Todo o princípio do filme está aí. À espessura do trauma em que Clint
Eastwood nos instala, Gus van Sant, como Lars von Trier, opõe um partido assumido de
abstração conceitual que faz da mise-en-scène a demonstração rigorosa de um ponto de
vista. E esse ponto de vista é o seguinte: não razão para o crime, a não ser o vazio
mesmo das razões. A mise-en-scène é a longa manifestação desse vazio. O colégio é
estranhamente inabitado. O laboratório de línguas onde os matadores acumulam seu
material é deserto como o colégio que o adolescente "de mal com o mundo" atravessa.
As salas apresentam antecipadamente esse vazio que o rapaz assassino contemplará no
final como sua obra. A câmera segue longamente o percurso e as voltas que fazem, em
corredores quase desertos, corpos filmados de costas.
Matadouros de Eisenstein
Esse espaço sem consistência e geralmente vaporoso se assemelha ao da tela de
computador em que os dois adolescentes encomendaram suas armas e em que um deles
se exercita num jogo de massacre, enquanto o outro se contenta em massacrar
Beethoven ao piano. E é como uma criatura de videogame numa tela que Alex
aparecerá, no final, sob o olhar do casal de adolescentes prometidos à morte. Morte
prometida, mas que o final do filme deixará em suspenso.
Esse final suspenso é emblemático do método do filme inteiro. Alex na câmara
frigorífica, enquadrado por peças de carne, goza para a eternidade do prazo
concedido/imposto aos dois adolescentes, dos quais ouvimos apenas a voz suplicante.
Pensamos ainda, é claro, em Sergio Leone. Mas esses pedaços de carne que enquadram
o matador adolescente nos fazem remontar mais longe na história do cinema. Eles
lembram os matadouros que Sergei Eisenstein [1898-1948] introduziu simbolicamente
em "A Greve" [1924] e aos quais tantos cineastas prestaram homenagens visuais mais
ou menos discretas. Mas aqui a significação simbólica (carne/sangue/violência) é
absorvida.
137
Resta amara frigorífica, que condensa tanto a frieza dos corredores e das salas vazias
como a da tela de computador ou a do "luar" beethoveniano. E resta, por fim, a
designação do próprio cinema, o partido assumido do diretor construtor dessa câmara
fria em que normalidade e monstruosidade, razão e ausência de razão se mostram
equivalentes. Isso tudo é só um filme, nos diz o plano final.
A mise-en-scène dos matadores e a do cineasta se refletem então uma na outra. Ambas
fazem funcionar um princípio de interrupção. Tanto na câmara frigorífica quanto na tela
de computador dos dois matadores, a deambulação infinita nos corredores e a circulação
interminável de falas vazias -as dos três periquitos ou da associação homo-
heterossexual- se vêem bloqueadas, enquadradas, submetidas a um princípio de
fechamento. A moral do filme estaria portanto aí. Ela seria a boa interrupção que
responde à má. "Faça amor, não a guerra", dizia-se no tempo da violência. "Faça filmes,
não massacres": tal seria, para Gus van Sant, a fórmula de uma ética adaptada ao tempo
do mal. Infelizmente, nem todos podem fazer cinema.
Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed.
34). Acaba de publicar na França "Le Destin des Images" (La Fabrique). Escreve na
seção "Autores". Tradução de Paulo Neves.
138
D 2
O Estado de S. Paulo08/08/04
Luiz Zanin Oricchio
Filmes Discutem os limites do realismo
A partir do quase absoluto domínio comercial norte-americano, costuma-se pensar no
cinema como arte exclusivamente realista. Dois lançamentos em DVD da Califórnia
Filmes (R$ 98 cada um) relembram que esse velho piano pode tocar outras notas.
Dogville, de Lars von Trier, e Dez, de Abbas Kiarostami, empregam modos de
realização não realistas - e o fazem para melhor se aproximarem do real.
Em Dogville, filme do dinamarquês von Trier, o que se tem é a armação abstrata de uma
imaginária cidade americana nas Montanhas Rochosas durante os anos da Depressão.
As ruas o apenas demarcadas no solo, as casas contêm alguns móveis e a porta, ou às
vezes nem isso. Mesmo a casinha do cachorro é desenhada e seu habitante designado
por uma simples palavra riscada no chão:
"dog". Como se tudo tivesse se transformado no mínimo múltiplo comum das coisas.
Um desenho geométrico abstrato que remete, no plano imaginário, à concretude das
coisas e das pessoas. O filme foi rodado num estúdio e não disfarça - ao contrário,
reforça - seu diálogo com o teatro, ou pelo menos um tipo de teatro.
Dez, do iraniano Abbas Kiarostami, compõe como cena o interior de um automóvel.
Uma câmera acompanha a motorista (Mania Akbari) que conduz diversos passageiros -
o filho, uma prostituta, uma mulher de idade, outra que tem problemas com o marido e
assim por diante. Pode-se dizer que uma boa amostragem do I passa por aquele
automóvel. A câmera fixa-se ora na motorista, ora nos acompanhantes.
Talvez não seja também por acaso que as imagens dos dois filmes sejam captadas em
digital. A "filmagem" em vídeo deu nova liberdade aos diretores.
Eles podem rodar quantos planos desejarem, sem sentir a pressão do desperdício de
negativo, implícita na técnica tradicional da película em 35 milímetros. Pelo menos em
tese, abrem-se mais ao improviso, e a leveza substituiu a busca pela perfeição. Claro,
nenhuma técnica, até hoje, rivaliza em definição, cor e textura com a película de 35 mm.
Mas até mesmo a definição menor, o ar "sujo" do digital depois de transposto para
película, beneficia a busca por esse novo "realismo" contemporâneo.
E este não pode ser confundido com o realismo anterior, a imitação da realidade da
maneira tão perfeita quanto possível. Trata-se agora de apostar numa nova linguagem,
numa inscrição do real, que fala sobre ele, se embebe dele, mas não tenta confundir-se
com a realidade
Na verdade, essa tensão entre a imitação da realidade e a construção do real está
presente desde os primórdios do cinema. Para simplificar, os filmetes de Lumière se
queriam transcrições da realidade; já os de Méliès constroem o real a partir da fantasia.
Von Trier nem procura esconder que o seu trabalho é um artifício, que se refere ao real,
mas não se confunde com ele. John Hurt faz a narrativa em off, dividindo a história em
uma introdução e nove capítulos, como se estivesse contando uma fábula moral - o que
a trilha sonora apenas reforça.
O diretor parece querer provar que precisa de um mínimo de efeitos para mostrar como
a fugitiva Grace (Nicole Kidman) encontra abrigo entre os habitantes da cidade, até se
tornar tima deles. Até finalmente, num ato de força, livrar-se daquela amostra
impecável de american way of life que é Dogville. O filme concorreu em Cannes, foi
tido como favorito, perdeu, mas provocou polêmica. Foi tachado de antiamericano.
Talvez porque tenha tido a coragem de colocar o dedo na ferida, no auge da crise da
139
invasão do Iraque sem autorização da ONU. O suposto "artificialismo" em nada
prejudicou sua eficácia política. Pelo contrário.
E quanto a Dez, de Kiarostami? Nenhum produtor americano colocaria dinheiro num
filme como esse. Mesmo porque, como a câmera fica quase o tempo todo no interior do
carro, pouco vemos do exterior. Apenas alguma coisa das ruas e dos outros veículos. No
entanto, esse mundo "exterior" entra de maneira avassaladora na interioridade do filme.
Entra pela fala dos personagens, mas não apenas. O off, o fora da cena, às vezes é tão ou
mais poderoso do que o que está dentro do campo.
140
E 1
International Herald Tribune – 23/05/03
Joan Dupont
Lars von Trier: Looking for America
If there is a reading of American society more severe than that of the Puritan fathers, it
is in the eye of the Danish director Lars von Trier. His "Dogville" is the first film of a
planned trilogy on the country's recent past.
The film, starring Nicole Kidman, takes place in a small village in the shadow of the
Rockies during the Depression. Except that it was shot in a studio in Denmark on a
single complex set, a piece of Americana laid out like a Monopoly board. The daring
and confounding film, with its critique of America, has divided audiences at the Cannes
film festival.
With Kidman at his side at a press conference, von Trier was at his sly, provocative
best. He prodded the actress, asking her to commit to his next two movies; he also
begged her to stub her cigarette out. "Please, Nicole, you promised me." She responded
with a charming smile and wafted the smoke the other way.
The director, 47, who has been coming to the festival since 1984, when he presented
"Element of Crime" in competition for the Palme d'Or, was known for creating a
European fantasy world before turning to American matters. Over the years, he has
grown into his role as the festival's pet pest. He has insulted jury presidents who gave
him small-potatoes prizes and snubbed invitations and is famous for his phobias. Afraid
of flying, he drives to Cannes from Copenhagen and, these days, parks his camper van
at the elite Hotel du Cap, home of the stars during the festival.
Von Trier likes nothing better than making up rules to a game such as the Dogma
doctrine that was meant to restore cinematic purity, with its jittery hand-held camera
and then going off in another direction.
His most recent films are about innocents punished by society. In "Breaking the Waves"
(1996), set in Scotland, Emily Watson played a pious girl whose way of praying sets the
community against her. "Dancer in the Dark," which won the Golden Palm here in
2000, was a musical fable set in the United States, with Bjork singing her way to the
gallows. In "Dogville," von Trier's bird's-eye view of a small town, Kidman is Grace, a
refugee from gangsters, who suffers punishment at the hands of the good folk who give
her shelter.
The townspeople think of themselves as virtuous; they hold meetings at the town hall,
their children have names like Athena and Pandora and read Mark Twain. Tom Edison
Jr. (Paul Bettany), who wants to be a writer of great books, becomes Grace's devoted
guide through the maze of town folk. There's Ma Ginger (Lauren Bacall), who keeps a
neat garden; Jack (Ben Gazzara), who won't admit he's blind; Chuck (Stellan
Skarsgard), who is dangerous, and the women who decide to be Grace's friends Liz
(Chloe Sevigny), Vera (Patricia Clarkson) and Gloria (Harriet Andersson). All will turn
on her, imprisoning her in a terrible device: a dog collar with a long chain.
To critics who claim that he victimizes women in his films, von Trier says, "These are
characters, strong characters, not real people: I see Grace and Tom as two parts of me.
So it's a kind of self-portrait, not a very nice one. Yes, the woman is humiliated, but the
men are too."
And in this film, Grace gets her revenge. "My characters are good normal people, but all
of us can become beasts. Of course, we should fight our instinct to take revenge.
141
Humanity has survived because of forgiveness. Grace doesn't forgive — it's too hard
but she can work on it: She will use her power to do good in the next film."
This mix of high ideals and ironic denouement is the director's special blend. He likes
nothing better than to set up images and then smash them.
"Dogville" is narrated by John Hurt in a stilted literary manner, an old-fashioned device
that works wonders in this anachronistic world that looks like a cross between "Our
Town" and "The Threepenny Opera." "I wrote a 'Barry Lyndon' kind of narration
because I love 'Barry Lyndon,' and in film school, they taught us that narration was poor
taste."
He feels that good things can come from this combination of literature, theater and film.
And he sees this style as kind of contract between the audience and the film.
"You need clear acceptance; it's the kind of game you played when you were a child.
When I started thinking of the film, I kept seeing the people from above, like in
children's books where you see them each in their houses. It's the old fairy-tale style: I
have a very limited range of characters and stories. It's always been this fairy-tale thing,
and I hate fairy tales — I need a little more flesh and blood."
"Dogville" certainly draws blood, and raises hackles. Von Trier laps up controversy, but
he is sensitive to criticism from Americans. One article in the daily trade press called
"Dogville" his "J'accuse," aimed at the entire American nation.
He claims he hasn't read that review. "I presume it's a bad review," he says. "I've had
many in my life. I've told many nasty stories about what goes on in Europe in my earlier
movies about the Danish people, the Scottish people, the German people I've made
movies with people in chains and told nasty stories about everybody."
He says one of his reasons for setting "Dogville" in the United States was a response to
criticism. "When I came out with 'Dancer in the Dark,' some American journalists
criticized me for making a film about the U.S.A. without having been there," he said.
"This provoked me to make 'Dogville,' because as far as I can recall, they never went to
Casablanca when they made 'Casablanca."'
He liked the idea of setting his films in a country where he hasn't been. "It has to do
with a feeling I have, things I've read Steinbeck and Mark Twain I feel that
narration with sarcasm is an American tradition. The story could have taken place
anywhere in the world."
Of course, a bonus of reproducing an American town on stage for a man who is afraid
of flying is that he has complete control in his own backyard, his Zentropa studios near
Copenhagen, and can work within a small budget. "These are not big budget films," he
said. "I felt Nicole was sort of a bridge to America, even if she's Australian, but I don't
think her typical audience will come to see this film. Nic wanted to do the film, and she
didn't get paid, not much."
Von Trier has also come under fire for humiliating his actresses. Even the hand-held
camera technique, in close-ups, seems like punishment in some scenes, an invasion of
privacy.
He sighs. "I think I'm a nice director, but I try to get things out of them, and, like
therapy, it hurts, but it's good for you. Bjork was not happy, no." No, he is not known as
an easy person, nor is he "evil," as he once called another director.
"Dogville" is dedicated "in loving memory of Katrin Cartlidge," one of his favorite
actresses, who started working on this movie but died suddenly last year of
complications of pneumonia, at the age of 41. "I was always offering Katrin parts," he
said. "She was always busy, and I think that this was her way of getting out of the
movie — she left us, and now I can't work with her any more."
142
Even in his own country, von Trier admits, his way of looking at things is considered
strange. But this year in Cannes, "It seems that I am politically correct for once that
is Mr. Bush's fault, not mine. Now, I would like to start a 'Free America' campaign after
the 'Free Iraq' campaign.
"Grace presents herself as a gift to the townspeople, and that's dangerous. It gives
people power over you and power corrupts. I think that the people of Dogville were
O.K. until Grace came along, just as America would be a beautiful country if there were
only millionaires playing golf. It would be a wonderful peaceful society, but that's not
how it is, as far as I've been told."
143
E 2
Folha de S.Paulo – 22/05/03
Pedro Butcher
Provocativo, Dogville” faz crítica aos EUA
144
E 3
O Estado de S. Paulo12/11/03
Luiz Carlos Merten
Lars Von Trier abre o jogo
Lars Von Trier estava de excelente humor na segunda-feira de manhã, horário do Brasil.
Em Copenhague, já era tarde e ele acabara de almoçar.
Adorou saber da corrida do público para ver seu novo filme, Dogville, no encerramento
da Mostra BR de Cinema - 27.ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo. Havia sido
a mesma coisa no Festival do Rio 2003. Marcado para ter apenas uma sessão, Dogville
teve duas, tão grande foi o afluxo de espectadores interessados em assistir ao novo
trabalho do autor de Dançando no Escuro. Lars Von Trier confidencia: "Na Dinamarca,
o filme fez grande sucesso de crítica, mas teve um público, digamos, dio. uma
faixa muito seletiva de espectadores quis ver e rever Dogville."
Ele sempre teve consciência das dificuldades que o projeto encerrava. Nunca pensou em
deixar Dogville de lado, por causa disso. O filme estréia em dezembro no Brasil, no dia
19, pouco menos de uma semana antes que, no dia 25 (Natal), O Senhor dos Anéis - O
Retorno do Rei tome de assalto as telas do País. Serão centenas de cópias do épico que
Peter Jackson adaptou da saga mítica e erudita de J.R.R. Tolkien. Comparativamente, o
lançamento de Dogville será pequeno, mas o filme está destinado a repercutir. Nada do
que Lars Von Trier tem feito nos últimos anos consegue passar em branco. Virou um
cineasta-farol, um demiurgo, apontador de caminhos. Lançou os fundamentos do
Dogma com Os Idiotas, celebrou o digital com Dançando no Escuro. E agora, com
Dogville?
Mesmo se não conseguiu ou não quis ver Dogville na correria da mostra, o cinéfilo
sabe, com certeza, da nova ousadia estética do filme de Lars Von Trier. Hector Babenco
escreveu um artigo altamente elogioso, aqui mesmo no Estado. Disse que a maioria dos
diretores ensaia seus filmes. Lars Von Trier ficou só no ensaio em Dogville. Não sentiu
necessidade de vestir sua história. Não erigiu as paredes das casas, não colocou a
pavimentação dos caminhos. Criou uma espécie de esqueleto e leva o público a
acreditar naquilo. Se Lars pusesse uma vestimenta espalhafatosa em sua história, se
criasse qualquer tipo de efeito plástico (ou cênico) ao narrá-la, correria o risco de perder
a essência do que quer dizer.
Ele ri, do outro lado da linha, ao ouvir essas observações do repórter. "Ok, podemos
então desligar, já conversamos tudo, não?" A conversa está recém começando e Lars
Von Trier conta como teve a idéia de Dogville. "Ela sai inteirinha da Ópera dos Três
Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill. Lá, existe a canção da personagem feminina,
que fala de vingança. E existe a própria concepção de Brecht e Weill de fazer uma ópera
contra o capitalismo.
Aproveitei as idéias básicas da ópera - a discussão sobre as origens do capitalismo, a
personagem feminina, usada e abusada, a vingança."
Isso explica só em parte o que o público pode ver em Dogville. Explica, talvez, as idéias
políticas e morais do autor, mas não dá nem uma pálida idéia do seu partido estético. E
a estética é que tem provocado as maiores polêmicas do cinema mais recente do autor
dinamarquês. "Sinto muito lhe dizer, talvez o decepcione, mas não trabalho de forma
consciente. As idéias me m, algumas imagens permanecem comigo e é desta maneira
que gosto de trabalhar. Quando as imagens ficam comigo, o filme torna-se uma
necessidade." No caso de Dogville, ele resolveu radicalizar certos procedimentos
145
dramáticos de Brecht, o famoso conceito do distanciamento crítico. "O cinema é um
meio avassalador. Não deixa tréguas ao espectador no escuro das salas. Achei que seria
interessante desmontar a história, narrá-la como uma representação, tentando envolver o
público, mas deixando claro que aquilo não é a vida, mas uma representação da vida."
Elenco - Um filme em que as casas não têm paredes e a própria geografia da cidade é
um desenho no chão depende muito dos atores para construir seu fascínio aos olhos do
público. Nicole Kidman é a protagonista de Dogville. Sua personagem chama-se Grace
- Graça. O próprio nome revela alguma coisa do seu desejo de redenção num mundo
hostil. Lars Von Trier reconhece que teve problemas com Nicole no set. Não poderia
negá-lo. As desavenças estão registradas no documentário sobre a rodagem de Dogville,
exibido no Festival do Rio. Mas ele não poupa elogios à atriz: talentosa, corajosa,
Nicole é capaz de ir ao fundo das coisas pelos projetos em que acredita." O elogio
estende-se a todo o elenco de Dogville. "Foram todos ótimos. Entraram logo no espírito
da coisa, perceberam que dependia deles, da voz, dos gestos, da expressão corporal, a
possibilidade de construção dramática dessa história, a priori, desconstruída
esteticamente."
O autor nega que tenha pretendido, com esse retrato selvagem do capitalismo predador,
fazer um retrato da América de George W. Bush. Seu filme, afinal de contas, passa-se
nessa cidade do interior dos EUA, no começo do século passado. Desde que Dogville
passou no Festival de Cannes, em maio, a associação com a América bushiana tem sido
uma constante na maioria das críticas. "De novo, corro o risco de decepcionar, mas não
pensei em Dogville como um comentário sobre a América reacionária de Bush filho. É
verdade que ele representa tudo o que eu odeio num político, está fazendo a vida pior
para todos nós no planeta, menos para os seus cúmplices. E talvez esse sentimento tenha
passado de forma inconsciente para o filme."
Também acha que foi o mesmo procedimento inconsciente que faz com que se possa
ver no capitalismo da sociedade puritana de Dogville - pessoas de bem, que acreditam
no lucro e aceitam todos os horrores praticados contra Grace - uma reflexão sobre a
contribuição da Reforma de Lutero ao sistema econômico que triunfou nos EUA. "Tanta
gente me fala que encontra no filme a base para essa reflexão que eu estou
convencido de que, sim, tudo deve estar lá."
Não aceita a acusação de niilismo, mas sabe que o desfecho de seu filme é
desconcertante, por nivelar todo mundo, ricos e pobres, no mesmo movimento
derrisório. "Esse final era essencial no projeto, não poderia ser de outra maneira.
Qualquer outro desfecho seria conciliador e não era o caso." No quesito "niilismo", pede
ao repórter que olhe para os lados e veja algum motivo de esperança. "Gostaria de
acreditar mais", insiste.
Nega, de forma veemente, a interpretação da revista francesa Positif, que comparou
Dogville ao game dos Sims, onde o jogador tem de construir tudo - a geografia, as
histórias dos personagens. "Não gosto desses jogos nem conheço os Sims. Ou melhor,
sei que existe porque minha filha é dos Sims, mas ela não me influenciou", garante.
Prefere ver em Dogville, além da de Brecht, a influência de cineastas de vanguarda dos
anos 1970 e 80 (não cita nomes), que praticavam um cinema estilizado e teatralizado,
como o seu filme consegue ser. E o Dogma, como vai? Lars Von Trier, que criou o
movimento, admite que se distanciou dele. Dogma, nunca mais? "Não diria tanto, mas
não sou do tipo que gosta de ficar se repetindo. Gosto de tentar coisas novas, que me
estimulam." E o que ele vai tentar agora? "Ainda é cedo para falar, mas estou com
certas idéias que, não sei, corro o risco de perder o público que consegui com Dançando
no Escuro e, agora, Dogville."
146
Numa conversa com Lars Von Trier, você não pode perder a oportunidade de discutir
seus gostos de cinéfilo. "Estou certo que são os mesmos que os seus", diz. Depois de
muita insistência, cita um nome. "Andrei Tarkovski, com certeza, é um cineasta
essencial." Induzido, admite que também admira Yasujiro Ozu e seu compatriota, o
mestre dinamarquês Carl Theodor Dreyer, mas conta que, cada vez mais, tem menos
vontade de ver os filmes dos outros.
Sua próxima área de interesse é a ópera. Vai dirigir O Anel dos Nibelungos, de Wagner,
em Bayreuth. O repórter pergunta se foi difícil, para os organizadores do evento,
convencerem Lars Von Trier a aceitar a direção.
"Eles não me convidaram; eu é que quis fazer e tive de convencê-los." A montagem será
em 2006, mas ele está trabalhando freneticamente no projeto. "Não sei nada de
ópera. Preciso preparar-me bem, não se brinca com Wagner impunemente."
147
E 4
Jornal do Brasil – 14/01/04
Carlos Helí de Almeida
Era uma vez na América
Com “Dogville”, Lars von Trier abre sua trilogia sobre a condição humana
O diretor dinamarquês Lars von Trier é dono de um portfólio impressionantemente
esquisito. contou pesadelos em preto-e-branco (Europa, Europa), ambientou contos
fantasmagóricos em hospitais (Epidemia) e criou tragédias românticas fora de foco
(Ondas do destino). fez filmes sem qualquer recurso técnico de luz, som ou imagem
(Os idiotas) e até conseguiu dar um sentido trágico à expressão vídeo-musical
(Dançando no escuro). Está sempre inventando moda e, até por isso mesmo,
emplacando prêmios no Festival de Cannes que produzem acaloradas discussões nos
circuitos de arte do mundo inteiro. As dúvidas e certezas sobre a genialidade do cineasta
de 47 anos voltam à pauta no início deste ano com o lançamento de Dogville, que chega
ao Brasil sexta-feira, depois de protagonizar uma das sessões mais concorridas do
Festival do Rio, em setembro.
Desta feita, o fundador do movimento Dogma 95 (que defende a realização de filmes
sem pirotecnias) lança mão das técnicas do teatro experimental para contar uma história
de exploração humana, ambientada nas Montanhas Rochosas americanas durante a
Grande Depressão, nos anos 30. Aqui, os atores contracenam em um palco vazio, de
fundo escuro, com poucos adereços cenográficos. Os espaços (casas, ruas, calçadas,
praças) são delimitados por linhas brancas pintadas no chão. Sem portas ou paredes, os
personagens estão sempre à vista da câmera. Lars von Trier não se diz grande do
teatro puro, até prefere o teleteatro, outra expressão artística que conquistou reputação
nos anos 60 e 70. Ao desnudar o cenário, o diretor pretendia priorizar a dramatização.
- A simplicidade do teatro no cinema é algo que venho desejando experimentar há
algum tempo. Vejo muitas qualidades no teatro e no cinema dos anos 70, quando se
experimentou muito em termos de linguagem. Hoje em dia, quase ninguém busca algo
novo, particularmente neste momento em que os computadores entraram em cena e
permitem que se faça filmes como O senhor dos anéis por um preço irrisório. É bom
voltar a algo que é o simples como Dogville. Acho que o que fiz foi tirar o óbvio da
técnica de um certo tipo de teatro (brechtiano) que era muito praticado naquela época
para aplicá-la ao cinema - resumiu o diretor em entrevista ao JB, em Cannes.
Lars nunca foi levado muito a sério pelos americanos - até hoje só acumula duas
indicações ao Oscar, o de melhor atriz, para Emily Watson, pela atuação em Ondas do
destino (1996), e o de melhor canção, para o tema de Dançando no escuro (2001). Mas
sua natureza inovadora tem conquistado admiração de atores estrangeiros, inclusive
americanos. Depois da inglesa Emily, passaram pelas mãos e pelos rígidos métodos do
diretor a francesa Catherine Deneuve e a cantora islandesa Björk, co-estrelas de
Dançando no escuro (Palma de Ouro e prêmio de melhor atriz em Cannes para Björk).
A reputação de Lars como realizador pode ser avaliada pelo peso estelar do elenco de
Dogville, encabeçado pelos americanos Nicole Kidman, Lauren Bacall e Ben Gazarra.
Foi a própria ganhadora do Oscar de 2003, Nicole, que procurou pelo diretor.
- Nicole é uma atriz muito curiosa. Acho que ela queria experimentar coisas diferentes
no cinema. Sei que fez teatro. Talvez tenha sido isso que a tenha atraído para o projeto
de Dogville. Mas ela me procurou bem antes de eu começar a escrever o roteiro, que
acabou sendo escrito especialmente para ela – contou Lars.
148
O dinamarquês é obcecado por heroínas trágicas. Em Dogville não é diferente. Nicole
Kidman experimenta as humilhações de Grace, uma loura bela e enigmática que,
fugindo de gângsteres, encontra abrigo numa minúscula comunidade encravada nas
Montanhas Rochosas chamada Dogville. Esta a aceita escondê-la, desde que ela execute
pequenas tarefas para os moradores. Quando as buscas pela fugitiva se intensificam, no
entanto, os habitantes da vila passam a explorá-la, física e mentalmente. Numa atitude
extrema, Grace é amarrada a correntes e coleiras de ferro. Mas, ao contrário de suas
outras protagonistas, esta terá chance de vingança.
Foram seis semanas de filmagens durante o rigoroso inverno europeu de 2002. Os
ânimos da equipe andaram bastante exaltados durante o período, devido ao cronograma
curto, os exaustivos ensaios e o método de trabalho do diretor, que exige total
submissão dos atores. Na época, circularam histórias de conflitos entre Lars e sua
estrela principal, acalmados depois de longas caminhadas e conversas pelo gigantesco
estúdio vazio.
- Eu me sentia muito mal em não poder dar a mesma atenção a todos os atores, sempre.
Às vezes, eram 15 de uma vez em cena, e eu estava trabalhando com uma técnica
bastante específica. Era impossível dar atenção a todos. É como lidar com crianças,
sabe? Se você tiver que lidar com uma, apenas, você é um ser humano. Quando precisa
cuidar de duas ou mais, você tem que se transformar em um policial (risos). Parece
piada, mas foi o que aconteceu e é a típica relação entre diretor e atores, o que nem
sempre é ruim - justificou Lars.
Dogville é o primeiro título de uma trilogia americana imaginada pelo diretor e batizada
de U, S and A. Ironicamente, a idéia da série tem raízes nas críticas americanas ao
trabalho do diretor. O projeto começou a ganhar forma a partir da reação da imprensa à
vitória de Dançando no escuro no Festival de Cannes, três anos atrás. O filme
protagonizado por Björk se passava numa comunidade operária americana, nos anos 50.
Alguns repórteres americanos criticaram Lars por ter feito um filme sobre os Estados
Unidos sem nunca ter estado lá. A resposta do dinamarquês foi contar mais histórias
ambientadas na América. Os americanos nunca foram ao Marrocos para filmar
Casablanca, correto?
Mesmo assim, Lars diz que não pretende apontar os defeitos da sociedade americana.
Segundo ele,
Dogville trata da condição humana e, por acaso, se passa em um tempo e local
determinados: as Montanhas Rochosas, que fornecem o isolamento necessário à trama,
marcada pela Grande Depressão. No entanto, o filme não é completamente desprovido
de interpretações sobre o país.
- A história de Dogville, em si, não tem nada a ver com os Estados Unidos. Eu diria que
ela poderia acontecer em qualquer outro lugar. Mas foi escrita ambientada nos Estados
Unidos porque reflete o modo como sinto e sou influenciado pelo que chega até mim de
lá. Sou muito crítico sobre o que acontece nos Estados Unidos e acredito que até os
americanos concordariam com o meu ponto de vista. Mas não se trata de uma crítica ao
país. Adoraria fazer isso, mas não poderia, até porque nunca fui lá, que o ando de
avião - explicou o diretor.
Os Estados Unidos continuarão sendo o cenário dos dois capítulos da trilogia - Lars
adianta que o último se passará na capital, Washington. Portanto, espera-se que haja
mais reclamações da imprensa americana. O diretor promete manter afiado o senso
crítico.
- O problema em relação aos Estados Unidos é que eles são uma nação muito poderosa
e influente e, pelo que aprendi desde criança, quando se é tão poderoso e influente você
149
tem que ser responsável e piedoso na mesma proporção do seu poder. E, às vezes, acho
que algumas ações do governo americano não demonstram isso.
150
E 5
Folha de S.Paulo – 16/01/04
Do “Le Monde”, em Copenhague – Tradução Clara Allain
“Conheço Todos os Sabores do meu filme”
No fundo de um antigo campo militar e atual base estratégica do cinema escandinavo,
onde tremula uma bandeira negra com a inscrição "Filmbyen" (cidade do cinema), o
escritório de Lars von Trier está instalado num antigo arsenal. Mas as únicas "armas"
visíveis são uma máquina de fliperama e uma bicicleta ergométrica. E tampouco
qualquer coisa de militar na acolhida jovial dada pelo autor de uma nova bomba
cinematográfica sob a forma do surpreendente "Dogville".
Pergunta - Rodado num set único, sem outra decoração senão indicações no chão e
alguns acessórios, seu filme declara uma posição estilística marcante. Esta precedeu
o relato ou é conseqüência dele?
Lars Von Trier - Comecei por escolher a história. O primeiro "clique" foi o fato de
jornalistas americanos terem me criticado por ter situado "Dançando no Escuro" nos
EUA sem nunca ter ido para lá. Como se Hollywood fosse aos lugares que se mete a
representar! Sou uma pessoa obstinada -essa é sem vida minha qualidade principal-,
então decidi situar meus próximos filmes nos EUA. Este é situado nas Rochosas, o
próximo será no Alabama.
Depois disso, pensei em "Jenny e os Piratas", a canção da "Ópera dos Três Vinténs" que
conta uma história de vingança, exatamente o tipo de sentimento que minha mãe me
ensinou a condenar. Apesar disso, ela adorava Bertolt Brecht. Pensei em minha mãe e
em Brecht e isso me fez pensar numa espécie de mapa, de geografia abstrata. Foi assim
que cheguei a esse estilo de direção. Se eu o tivesse escolhido de antemão, teria jogado
mais, teria feito coisas mais hábeis a partir do fato de que os personagens não devem,
supostamente, se ver, mas que nós os vemos a todos. O resultado teria sido mais
sofisticado, menos interessante. A experiência me ensinou a não ser habilidoso demais.
Detesto essa ideologia da eficácia, tão americana.
Pergunta - Ao mesmo tempo em que tem lugar na América da época da Lei Seca e da
Depressão, o filme não se situa no imaginário ocidental? Você utiliza clichês (o
povoado, os gangsters, a filha perdida, etc.) que o cinema difundiu no mundo.
Von Trier - É claro que essa "América" é um espelho que tem por objetivo estimular a
imaginação. Eu nunca filmei pessoas de maneira realista. Acho muito mais divertido,
comovente e interessante inventar regras de jogo particulares. Mas, a partir disso, é
preciso respeitar essas regras.
Pergunta - Em seus filmes anteriores, você se ressentiu do fato de precisar de
cenário?
Von Trier - Não. Mas o problema no cinema é que, dentro do quadro, tudo faz sentido.
Ao conservar apenas os atores e alguns objetos de cena, posso me concentrar sobre
aquilo que me interessa.
Pergunta - Mais uma vez você optou por uma câmera muito móvel.
Von Trier - Gosto da câmera segurada na mão, por tudo o que ela capta de imprevisto.
Não gosto de ter tudo sob controle. Não tenho vontade de compor quadros, detesto essa
idéia de imagens construídas. O que eu quero é direcionar o olhar como um dedo que
aponta para cá ou para lá.
Pergunta - Por que você mesmo quer segurar a câmera?
Von Trier - Em primeiro lugar, para estar o mais perto possível dos atores. A vantagem
da câmera de vídeo é que você pode rodar durante horas sem interrupção. Não faço
151
cortes entre as tomadas rodamos uma cena, conversamos, recomeçamos, e a câmera
registra tudo. É como um jogo. É exaustivo, também, mas minha relação com o filme é
muito diferente daquela de um diretor que permanece atrás de seu monitor. Ao segurar a
câmera, sei de tudo o que filmei. Sou como um cozinheiro que sabe quando falta um
pouco de tempero. Conheço todos os sabores de meu filme.
152
E 6
Folha de S.Paulo – 25/01/04
Sérgio D’Avila
Choque e pavor
Se há algo de podre nos EUA, quem mostra é um dinamarquês.
Para entender tanto "Dogville", o espetacular filme de pouco mais de três horas e nove
episódios em cartaz atualmente em São Paulo, quanto seu autor, Lars von Trier, e o
império norte-americano é preciso ter em mente a seguinte informação: o diretor da
obra nunca esteve nos EUA.
Mais: ele não pretende visitar os EUA. Primeiro, porque Lars von Trier morre de medo
de andar de avião, um medo doentio que o faz evitar mesmo viagens curtas como as de
Copenhague, onde vive e de onde falou à Folha por telefone no começo da semana, para
Estocolmo, na vizinha Suécia.
(O diretor de 47 anos, um dos autores do Dogma, movimento do meio dos anos 90 que
pregava uma volta aos valores básicos pelo cinema, com a câmara na mão e sem tantos
recursos técnicos e efeitos especiais, é dado a ataques de pânico. Para suprir a ausência
de emoções fortes em sua vida e por recomendação de sua mulher, comprou um
Porsche. De vez em quando, pisa fundo.)
Segundo, porque ele não quer que a realidade afete seu trabalho. como o pintor que
prefere fazer seus quadros de cabeça", define. "Os EUA estão em tudo o que eu faço, na
TV de minha casa, nos cinemas de meu bairro, nos jornais que leio pela manhã. Não é
necessário juntar a estas a experiência de visitar o país."
Mesmo assim -ou por isso mesmo-, não há filme recente que capture tanto a alma de um
povo quanto o seu "Dogville" faz com o norte-americano. Ambientado na cidadezinha
fictícia do título, aparentemente nos anos 30, durante a Depressão, conta a saga de
Grace (Nicole Kidman), uma mulher delicada, com pele cor-de-neve e gestos suaves.
A princípio, o espectador e os moradores da cidade pensam que ela vem de ser
perseguida por gângsteres. Nessa frágil condição e sem ter mais para onde ir -Dogville
se espalha ao longo de um beco que termina numa montanha intransponível, e a
mentalidade de beco move seus habitantes-, Grace é aceita na cidade, a um custo
pessoal cada vez maior.
Metáfora
Orientada pelo iluminista Tom Edison (Paul Bethany), que cuida de levar o pouco de
ilustração para o vilarejo e logo se apaixona por ela, a garota começa a realizar
pequenos trabalhos como maneira de pagar por sua estada ali. Conforme o assédio da
polícia e dos gângsteres cresce entre os moradores, estes passam a exigir cada vez mais
da fugitiva; no final, Grace andará acorrentada a uma roda e será estuprada todas as
noites pelos homens locais.
Críticos viram uma metáfora para os Anos Bush; outros ligaram a história de uma
graça (Grace) concedida a um povo, que a ignora e a rejeita, ao Novo Testamento,
impressão reforçada pelo final do filme. Trier não referência necessariamente ao
governo de quem ele chama de "Bush Filho", mas até enxerga certa lógica na
comparação bíblica.
"Mas não posso controlar o que os críticos pensam", diz ele. "Na verdade, não consigo
controlar nem mesmo o que eu penso sobre o filme. Hoje, digo que é uma fábula sobre
as mentes estreitas, e que estas mentes estreitas imperam nos EUA atual. No plano
153
concreto, porém, tirei a trama toda da música "Jenny e os Piratas" [da "Ópera dos Três
Vinténs", de Bertolt Brecht e Kurt Weill]."
É brechtiano mesmo o clima, reforçado pelo cenário -ou ausência dele. Trier colocou
toda a cidade riscada de giz num chão de quadro negro, com alguns objetos pontuais e
atores vestidos com roupas das primeiras décadas do século passado. A exceção são os
carros, também de época, que aparecem na sua plenitude -afinal, a cidadezinha pode ser
qualquer uma, mas é uma legítima cidadezinha norte-americana.
Não é a primeira investida do dinamarquês contra o Grande Império do Norte. Em
"Dançando no Escuro", a imigrante européia interpretada por Björk também ia sofrendo
cada vez mais nas mãos dos gringos à medida que ia avançando sua cegueira e a
montagem escolar que comandava de "A Noviça Rebelde".
A crítica local arrasou o filme. As revistas de celebridade optaram por colocar ruído na
comunicação falando do estresse que houve no set de filmagem entre o diretor e sua
equipe, notadamente com a cantora islandesa, que saiu de "Dançando" dizendo que
nunca mais faria outro filme. Desta vez, não foi diferente.
"Animais"
"Dogville" ganhou mais centímetros e minutos no ar nos EUA por conta do atrito que
teria ocorrido entre Trier e Nicole Kidman. Numa conversa recente entre o diretor e o
grande Paul Thomas Anderson, autor de "Magnólia" e "Boogie Nights", o dinamarquês
parafraseia Alfred Hitchcock e diz que "atores são como animais".
Pergunto se ele pensava em Nicole e Björk quando falou aquilo. Ele ri e explica: "Quis
dizer mais como entidades indomáveis, que devem ser respeitadas como tal, mas que
precisam da guia de um diretor". De qualquer maneira, a potranca ruiva declarou que
não mais fará o resto da trilogia que "Dogville" inaugura e que foi escrita por Trier
tendo ela como personagem feminina central.
"Realmente, a agenda de Nicole é impossível e ela deve participar de um dos dois
próximos, se tanto", atenua. São eles "Manderlay", que começa minutos depois de
terminado "Dogville", tocará na questão do racismo norte-americano e deve ser rodado
em 2006, e "Wasington", ainda em projeto. Ele conta que esperou uma vez pela atriz,
quase um ano, mas que não faria isso de novo.
Por que, por ter virado um diretor-celebridade, premiado em Cannes e indicado ao
Oscar? "Sou uma pessoa comum, não sou uma celebridade nem em meu país", disse.
Meia verdade. Pelo menos pelo critério da lista telefônica de Copenhague, seu nome é
mesmo bem comum: 47 Trier e 352 Lars; o "von" não estava em sua certidão de
nascimento, o diretor inventou durante a faculdade de cinema e nunca mais abandonou.
Por fim, pergunto se ele não acha inico o fato de estarmos, um jornalista brasileiro e
um diretor dinamarquês, conversando em inglês sobre um filme que ataca justamente os
Estados Unidos. Ele pede desculpa por não falar espanhol ("excuse me?") e ri. "Você
acha que Bush Filho vai querer me bombardear por isso?"
É improvável, mas não necessariamente impossível.
154
E 7
Jornal do Brasil – 12/02/04
Carlos Helí de Almeida
Polêmico até à distância
BERLIM - O diretor dinamarquês Lars von Trier é capaz de criar polêmica mesmo à
distância. Homenageado como a personalidade do ano pela organização Cinema pela
Paz, o autor de Dogville, em cartaz no Rio, enviou uma fita de vídeo com um discurso
de agradecimento, para ser exibido durante a cerimônia de entrega do troféu Diamante
para a Paz, na noite de segunda. A fita, no entanto, foi exibida sem alguns trechos,
considerados controversos pela entidade.
O prêmio foi entregue durante o jantar anual da amfAR (American Foundation for Aids
Reasearch), a organização americana que promove leilões e jantares beneficentes
mundo afora para levantar fundos para a pesquisa da Aids. Cerca de 600 convidados
(um assento na mesa custa em média U$ 1 mil) compareceram à recepção, que lotou o
Konzerthaus, um prédio histórico de Berlim. A cantora e atriz Liza Minelli era a grande
vedete da noite, que contou com a presença do ator Christopher Lee. Todos perceberam
a indignação da produtora Vibeke Windeloev, da Zentropa, a companhia de von Trier,
que veio representar o cineasta.
Windeloev retirou-se bruscamente do palco montado no Konzerhaus assim que
percebeu que o vídeo enviado pelo colega havia sido mutilado.
- Sei que todos vocês são pessoas civilizadas, mas eu estou fula da vida - disse a
produtora, justificando a sua saída dramática.
Aparentemente, o comitê do Cinema pela Paz se sentiu ofendido com certas partes da
mensagem de von Trier. Na fita, o cineasta agradece a lembrança do comitê, diz que
acredita na paz tanto quanto a organização e reforça a idéia de que todos os que dividem
esta crença têm a tarefa de fazer com que todos no mundo sintam o mesmo. Em seguida,
compara os pacifistas a duas tribos que aspiram ao mesmo objetivo, mas de forma
diferente. O texto sugere que a honraria foi criada por gente bem nascida e bem
alimentada e é destinada a pessoas na mesma situação.
''Nem todo mundo quer o mesmo que nós (a paz). A população do mundo é composta
por duas tribos, que vivem no deserto. Uma delas vive em um país que tem um poço. A
outra tribo vive em um país distante. A tribo do país que tem o poço quer paz. A tribo
no país distante não quer paz - ela quer água!'', dizia o diretor, na fita original.
''A tribo do país distante é, provavelmente, um pouco menos civilizada e não tem sequer
uma palavra para 'paz' no vocabulário. Mas essa tribo tem uma palavra para 'sede', o
que, nessa situação, é mais ou menos o mesmo. O Comitê da Paz do país que tem o
poço é constituído de pessoas boas, sábias, belas e ricas, que não sentem sede (é por isso
que eles têm tempo para se dedicar ao Comitê). As pessoas do país que tem o poço
falam muito sobre o Prêmio da Paz com que o Comitê homenageia outras pessoas do
país com o poço'', continua o diretor. ''O povo do país distante não fala tanto sobre o
Prêmio da Paz. Obrigado pelo meu Prêmio da Paz'', encerra von Trier.
No dia seguinte à cerimônia, os ânimos dos envolvidos ainda pareciam exaltados:
''Acho que deveríamos devolver o prêmio'', disse Vibeke à versão diária da Screen
International.
- Eles podem dar esse prêmio a alguém que seja mais próximo às idéias de George Bush
- reagiu Peter Aalbaek Jensen, também da Zentropa. Von Trier, que tem sido criticado
pelos americanos por ter feito filmes ambientados nos Estados Unidos, considerados
155
ofensivos, sem nunca ter visitado o país, também manifestou sua indignação à
publicação.
- Se isso tivesse acontecido com qualquer outra pessoa, eu também ficaria indignado -
reagiu o diretor, que está na Dinamarca preparando as filmagens de Mandalay, a
continuação de Dogville, e segundo episódio da trilogia sobre os EUA.
156
F 1
Folha de S.Paulo – 22/05/03
Pedro Butcher
Von Trier radicaliza propostas do Dogma
Lars von Trier vive caindo em contradição. Ele foi a voz mais ativa na divulgação do
manifesto "Dogma 95", mas fez um único filme respeitando suas regras ("Os Idiotas",
de 1998). Dois anos depois, negou-as no musical "Dançando no Escuro", com Björk.
Quando levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2000, disse que não voltaria a
competir. E cá está ele outra vez, disputando. "Não acredite em mim", disse Von Trier à
Folha.
O gosto pela polêmica rendeu-lhe a fama de "marqueteiro" -coisa que é, mas que
termina ofuscando uma obra sólida e, sobretudo, mais coerente do que suas declarações
públicas. O novo filme do cineasta, "Dogville", é forte exemplo dessa coerência.
São três horas de projeção de algo que está entre a literatura e o teatro, mas não deixa de
ser cinema. Dentro de um estúdio um palco retangular. Cada espaço demarcado traz
um sinal ("casa de fulano" etc.). Quando é dia, o fundo é branco; quando é noite, preto.
Cartelas indicam a passagem dos capítulos. Simples assim. Tal simplicidade permite
evoluções complexas. Com a ajuda de um narrador (John Hurt), o público conhece a
infortúnia de Grace (Nicole Kidman), jovem que foge de gângsteres e se refugia na
minúscula cidade de Dogville. A partir daí, Von Trier constrói uma fábula de situações
metafóricas.
"Dogville" radicaliza as propostas do Dogma. Segundo o diretor, a decisão final em
relação ao estilo despojado foi tomada depois de ele ter assistido a "O Senhor dos
Anéis" e sua avalanche de efeitos digitais. "Quando um garoto com um mouse torna
tudo possível, o cinema fica chato." Em outro sinal de coerência, o diretor volta a criar
uma personagem marcada pela pureza, vítima da crueldade humana, que se manifesta
respaldada pela razão. E, de uma forma mais pontual que em "Dançando no Escuro",
que fazia uma crítica à pena de morte, "Dogville" expõe um ponto de vista político. Von
Trier quer demonstrar, em forma de parábola, as formas de utilização do poder por
aqueles que estão numa situação mais forte. Os diálogos são frios, detalhe que o
cineasta busca compensar no trabalho dos atores e com a aproximação da câmera.
"Dogville" é longo, mas é sua duração que permite um "crescendo" essencial,
culminando com um desfecho de impacto. Mais forte, até, que o de "Dançando no
Escuro".
157
F 2
Folha de S.Paulo – 16/01/04
Inácio Araújo
Fábula ataca fragilidade humana
Se é para cultivar o sentimento antiamericano, não discussão: o filme é "Dogville".
Mas se é de cinema que se trata, o filme de Lars von Trier tem muito para ser discutido.
Desde a primeira imagem, "Dogville" nos lança num cenário particular. Não numa
cidade, mas na planta dela. Lá a ação vai se desenrolar. Existe, desde o início, a voz de
um narrador -sinal de que o registro de fábula, enunciado pela escolha cenográfica, se
consolidará.
A fábula se passa nos anos 1930 e gira em torno de Grace (Nicole Kidman), que chega à
cidade perseguida por gângsteres. O intelectual Tom Edison (Paul Bettany) faz com que
seus concidadãos a recebam de modo cortês.
Edison não é o único nome com estranhas ressonâncias. A menção a Thomas Edison é
acompanhada por outras a Jason e Chuck, personagens de séries de horror; a rua
principal é Elm Street -e quem lembra de Freddy Kruger sabe do que se trata.
Estamos em um filme de terror. o o de susto, mas outro mais sub-reptício, que a
convivência entre Grace e os habitantes revelará a cada passo. Pois logo que os
gângsteres vão embora, a polícia começa a fechar o cerco. Polícia, bandidos, isso é uma
coisa. Mas não são eles que interessam a Von Trier tanto como o americano dio: é
sua perversidade que começará a se mostrar.
"Dogville" vai um pouco mais longe que "Dançando no Escuro" na crítica aos EUA e
suas instituições. Pois do começo até o surpreendente final Von Trier ataca a fragilidade
e a imperfeição humanas. O momento mais chocante acontece nos créditos de
encerramento, quando Von Trier introduz fotos tiradas nos anos 30.
São em geral retratos de pessoas pobres e sofridas, como os habitantes de "Dogville". É
tudo ambíguo: será a essas pessoas que se está julgando com brutalidade? A elas que é
negada a graça? A graça de Grace? Ponto de vista pouco indulgente com os EUA e com
a espécie humana. Ou será que Von Trier está admitindo o esquematismo de sua
construção? Hipótese menos provável, mas que torna o filme mais atraente.
158
F 3
Folha de S.Paulo – 18/07/04
Tiago Mata Machado
Von Trier aposta alto demais em “Dogville”
Para os que ainda não viram, o lançamento de "Dogville" em DVD é mais uma chance
de conferir o polêmico filme de Lars von Trier; para os que já viram, também: afinal, a
obra é daquelas que chegam mais para confundir do que para explicar.
A cada novo projeto, Trier se impõe novas regras de jogo. A cada filme, tenta se
equilibrar entre a aplicação restrita dessas regras e o livre fluir do jogo. Em "Os
Idiotas", Trier esteve bem próximo disso. Já em "Dogville", a aposta é alta demais.
Uma forasteira, Grace (Nicole Kidman), chega a uma cidade americana, vive lua-de-mel
com os habitantes locais, mas, revelada foragida da Justiça, logo passa a ser escravizada
e sodomizada por estes. Trier flerta com a idéia de encenar a xenofobia americana.
O problema é que, dada a proposição, lançadas as regras, Trier não consegue ir muito
longe. Nas raras vezes em que soma alguma invenção nica ao modelo brechtiano de
que parte, seu filme cresce, como na seqüência do Dia de Ação de Graças. De resto,
seus personagens não saem do papel, permanecem esboços de uma dramaturgia ruim.
Trier ergue, em "Dogville", um monumento à sua pretensão –imaginamos estar vendo
uma alegoria antiamericana quando, na verdade, somos apenas testemunha da
autocomplacência explícita do autor.
Monumento erguido por motivação das menos nobres: o cineasta queria responder
àqueles que o haviam criticado por realizar um filme ambientado na América
("Dançando no Escuro") sem (supostamente) nunca ter ido lá. Assumir o preconceito foi
uma resposta válida, mas preconceitos assim, como lembrou o colunista da Ilustrada
Contardo Calligaris, a propósito de Trier, costumam revelar muito mais sobre quem os
perpetua.
A certa altura de "Dogville", a crueldade exercida em Grace pela comunidade passa a se
confundir com o tratamento de choque que Trier costuma reservar às suas heroínas.
Trier a impressão de desprezar suas personagens e, por extensão, as atrizes que as
encarnam –não deve ser por acaso que estas volta-e-meia se recusam a com ele trabalhar
de novo.
159
F 4
Jornal do Brasil – 16/01/04
Gustavo Leitão
Von Trier no auge da forma
Se os últimos filmes de Lars Von Trier retratavam os sacrifícios de um indivíduo frente
à crueldade do mundo - a Trilogia Coração de Ouro, formada por Ondas do destino, Os
idiotas e Dançando no escuro - com Dogville, ele toma um caminho mais radical em
direção ao niilismo. Não sobram heróis ou esperança na história de Grace (Nicole
Kidman, linda e talentosa), uma mulher que, fugindo de gângsteres, surge em uma
cidadezinha e precisa lutar por aceitação. É protegida pelo filósofo Tom (Paul Bettany)
e cativa simpatias fazendo pequenos trabalhos, até que os cidadãos passam a mostrar
sua face sombria.
No auge da forma, Von Trier manipula como nunca suas assinaturas: a mulher
submetida à expiação, a câmera digital de mão, o antiamericanismo, a supressão de
recursos - desta vez, some o cenário, substituído por marcações no chão. Tudo serve
para retratar a sociedade como um organismo moralmente debilitado e autodestrutivo.
Mas não se engane. Apesar do tom de fábula, acentuado pela narração em off, o filme é
também sobre os americanos. Poucos elementos bastam para situar a história na
Depressão dos anos 30, em um país sitiado pelo medo que elege a truculência como
meio disciplinador. Desde Michael Moore não se via golpe tão certeiro.
160
G 1
Revista Trópico
Sérgio de Carvalho
“Dogville”: das vantagens de usar Brecht
Não é através do tema que “Dogville”, filme do diretor Lars Von Trier, se aproxima
da obra de Bertolt Brecht. De fato, a canção “Jenny e os Piratas”, parte da “Ópera de
Três Vinténs”, inspira o argumento do filme, cedendo-lhe a imagem da moça explorada
por toda a cidade e a de uma vingança de aniquilação. Mas o parentesco de assunto é
distante, comparável ao da releitura feita por Chico Buarque em sua “Geni e o
Zepellin”. São casos em que o assunto brechtiano serve a outros propósitos.
Em “Dogville”, ao contrário do que se tem dito, o que está em jogo não é uma imagem
dos Estados Unidos, e sim a forma de representação norte-americana do mundo, ao
menos como foi consagrada por Hollywood, e que corresponde a uma reelaboração dos
padrões europeus do drama burguês do século 19, em sua hipertrofia do individualismo
moralizante.
Para que não haja dúvidas sobre o núcleo do assunto, somos introduzidos no filme pela
caminhada da personagem Tom, um jovem idealista com pretensões filosóficas que
organiza na paróquia de sua pequena cidade uma série de reuniões sobre “reforço
moral”. Quando por acidente ele encontra uma fugitiva à procura de ajuda, Graça, tem à
mão a “ilustração” adequada para seu discurso.
Na tensão crescente entre a representação moralizadora defendida por ele e a realidade
vivida, as nove partes de Dogville” mostram o processo de exploração consentida de
Graça, em que ela tenta levar adiante o plano de integração social de Tom até o limite
da dor: oferece sua ajuda aos habitantes, torna-se geradora de coisas supérfluas, passa a
ser disputada como mão-de-obra barata, até que sua vida fica o cara que lhe resta
entregar o corpo como última moeda de troca. Seu vínculo idealista com Tom a mantém
presa às relações perversas, fetichizadas por ela própria nas sete estatuetas
(correspondentes às sete casas da cidade) que coleciona e que mais tarde serão
destruídas junto com a sua liberdade física.
A pergunta crítica de Dogville” aparece no penúltimo ato: Não vale a pena
comprometer somente um dos seus ideais, um pouco, para aliviar a minha dor?”. O
sentido da frase -que depende de quem a pronuncia, em que momento- volta a ressoar
no massacre final, quando a violência repugnante das mortes põe em dúvida qualquer
possível prazer com a vingança.
Mais do que pelo tema, “Dogville” se aproxima do Teatro Épico (de Brecht) pelo modo
“distanciado” de narrar, que estimula o espectador a sair da ficção e completar a história
com a realidade, procedimento sugerido pelo perturbador corte para as fotografias dos
créditos, em que a miséria sem paternalismo das fotos de Jacob Holdt é contraposta à
música de ritmo alegre de David Bowie.
Brecht também se interessava pelo imaginário norte-americano, pelos gângsters de
Chicago e pelas lutas de boxe. Não sei se pelos filmes de terror, como Lars von Trier.
Reconhecia ali um limiar simbólico em que a ética e a estética da sociedade de consumo
aproximam o novo do arcaico. Essa paisagem moderna de truculência e vitalidade era
despedaçada em sua poética para que a conformação ideológica ficasse visível.
Foi por isso que fez de seu teatro uma espécie de armadilha moral, um tribunal
impossível, que desconcertava qualquer expectativa de identificação com o caráter das
personagens, de comoção com as paixões dos protagonistas. Sua estratégia era sugerir
161
perguntas morais que não podem ser respondidas sem uma reflexão sociopolítica.
Criava no espectador o sentimento da ausência, de que faltava alguma coisa ao qual
estava habituado. E o que faltava era a praticabilidade de certos ideais burgueses.
A qualidade cinematográfica de "Dogville" deve muito ao fato de que o paradoxo moral
gerado no plano da fábula -através de uma “redução ao absurdo” da lógica da situação-
aparece como problema estético na encenação cinematográfica.
O “sistema teórico” de Tom é um análogo do sistema de filmagem exibido por Trier
dentro do filme. Aquilo que surge como assunto, na imagem do “cego que não quer ver
e decide permanecer de cortinas fechadas idealizando uma luz imaginária, encontra
correspondência formal na tensão entre os modos de ver: de um lado a paródia do
naturalismo das atuações e da câmera (que procuram uma dramaticidade convencional),
do outro o antinaturalismo do cenário pintado no chão, amparado pela narração e
construção poética das falas.
A incompatibilidade de registros, o vai-e-vem entre o conflito fechado e a materialidade
dos espaços torna a cena descontínua, quebrada e permite que os extremos sejam
tocados: no máximo da vitimização pelo estupro, a câmera se distancia e revela a
artificialidade da composição dos atores diante do espaço, suspendendo a emoção. Trier
nos leva a suspeitar de vários aspectos do filme, inclusive da utilização de uma estrela
consagrada.
Estabelece-se um jogo nico autocrítico, com regras mais ou menos expostas,
aparentado àquele que Paulo Emílio percebeu no filme “A Chinesa”, de Godard, quando
escreveu que “o moderno espetáculo teatral nos obriga cada vez mais a refletir sobre sua
natureza, pois deliberadamente se desagrega diante de nossos olhos. O teatro não
pretende mais enganar ninguém. É através do desengano que procura nos atingir”.
A técnica épica da incompletude fundamental -que nada tem a ver com precariedade
artística, mas sim com capacidade de mobilizar a atuação crítica do público através da
geração de espaços de intervenção- ainda é um osso duro de roer para a crítica
conservadora, que sempre reage aos gritos, reclamando da falta de “complexidade” das
personagens, ou acusando a natureza esquemática da montagem. Como pensador
dialético, Brecht dizia que uma obra de arte dura o tempo em que exige trabalho, existe
enquanto está para ruir, enquanto requer a co-fabulação do espectador.
“Dogville” deve ser comemorado como uma retomada da experimentação formal e do
conceito de obra-ensaio no cinema, como negação do plano preso ao campo do visível e
do colorido homogeneizador que falsifica o “prisma brilhante do mundo”. Talvez
enfático demais em algumas de suas explicações, talvez íntimo demais dos valores que
nega, supera qualquer defeito ao estimular o espectador a uma atitude produtiva. Numa
época em que o maior protagonista do cinema comercial é o virtuosismo técnico do
orçamento, “Dogville” se serve dos avanços da tecnologia para pôr o ato de produzir em
primeiro plano, à frente dos meios de produção.
Sérgio de Carvalho
É diretor de teatro, integrante da Companhia do Latão e professor de teoria do teatro na
Unicamp. Dirigiu "Mercado do Gozo" (2003) e "A Comédia do Trabalho" (2000), entre
outras peças. É doutor em literatura brasileira pela USP.
162
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B.V. / J&M Entertainment / KC Medien AG / Kushner-Locke Company / Kuzui
Enterprises / Liberator Productions / MDP Worldwide / Memfis Film &
Television / Pain Unlimited GmbH Filmproduktion / Q&Q Medien GmbH /
Sigma Films Ltd. / Slot Machine / Something Else B.V. / Summit Entertainment
/ Sveriges Television / Trust Film Svenska / Zoma Ltd. / Zentropa Entertainment
/ What Else? B.V., 178’, 2003.
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