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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Conflitos e identidades do passado e do presente: política e
tradição em um quilombo na Amazônia.
Carmela Morena Zigoni Pereira
Brasília, Março de 2008.
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Conflitos e identidades do passado e do presente: política e
tradição em um quilombo na Amazônia.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade de Brasília, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Mestre
em Antropologia Social.
Carmela Morena Zigoni Pereira
Orientador: Prof. Dr. Paul Elliot Little
Brasília, Março de 2008.
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3
Às Comunidades Quilombolas de Jambuaçu.
Para Sérgio Tonetto (in memorian).
4
A
gradecimentos
Agradeço ao meu orientador Paul Elliot Little por compartilhar os saberes; pela
paciência e leveza durante o processo de orientação.
Um agradecimento especial à professora Rosa Elizabeth Azevedo Marin e ao professor
Alfredo Wagner Berno de Almeida, pelo acesso ao campo e pela confiança. Agradeço-
lhes, ainda, pelo engajamento na Academia e em outros mundos possíveis.
Aos queridos Benedito e Maria, pelo acalento em Moju, e por me conduzirem naquilo
que de mais imponderável aconteceu.
À Rachel Zigoni, pelos conhecimentos todos. À Carmelita Heringer Zigoni, Sandoval
Zigoni e Ivan Zigoni Pires. A toda minha família, e às outras irmãs da minha mãe,
Ângela Azevedo, Jaqueline Rutkowski e Paula Simas.
À Priscila Calaf, pelo cansaço disfarçado, pela diligência serena das coisas, pela leitura
atenta das palavras. O riso foi o presente para tornar possível o primeiro fim deste
trabalho.
Sou grata a todos os meus amigos do antes e depois de Brasília, especialmente Letícia
Cesarino, pela chegada, e Luana Lazzeri Arantes, pela memória. À amiga e professora
Cleonice Pitangui Mendonça. Aos colegas das minhas diversas turmas no Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília.
Pela oportunidade, agradeço a Júlio Ribeiro Pires. E ainda a Rômulo Paes de Sousa,
JeniVaitsman, Maria José Silveira Pessoa, Monica Rodrigues, Luis Otávio Pires Farias
e Júnia Quiroga.
Obrigada Rosa e Adriana.
Finalmente, agradeço à minha banca, Ellen Woortmann e Alfredo Wagner Berno de
Almeida, pela leitura desta dissertação.
5
R
esumo
Palavras-chave: quilombolas, conflito, Amazônia.
O objetivo central desta dissertação é trazer contribuições para os estudos sobre as
comunidades quilombolas considerando as teorias antropológicas da etnicidade e da
territorialidade, e utilizando alternadamente duas abordagens sobre o conflito: aquela
dos conflitos socioambientais, e a teoria etnológica da guerra, que considera outros
atributos de interações marcadas pelo conflito como seu caráter institucional, além das
relações de troca e predação, que marcam a produção de identidades. A partir da
vivencia em campo no território de Jambuaçu, no Pará, será analisado como as
comunidades quilombolas locais, tituladas, operam a resistência e se posicionam
frente aos impactos gerados no território associados aos Projeto Bauxita Paragominas,
da Companhia Vale do Rio Doce. O conflito atual, com a CVRD, será o acesso à outro
conflito, ocorrido na década de 1980 com outra empresa, a Reasa Reflorestamento
Sociedade Anônima. Por meio da memória e elaboração nativa de sua história sócio-
política, será demonstrado que situações de conflito entre os quilombolas do Jambuaçu
e os grupos que se lhes colocam em fronteira o perenes, e que as formas de se
posicionar frente a tais situações se tornou, progressivamente, uma tradição.
A
bstract
Keywords: Quilombo people, Amazonia, conflicts.
This dissertation aims to contribute with current studies about quilombo communities,
considering anthropological theories such as those about ethnicity and territoriality, and
treating conflict from, alternately, two different theoretical approaches: on the one hand,
socioambiental conflicts theoretical stream, and, on the other, ethnological theory about
war, which considers various interactional attributes brought by conflict as its
institutional character, besides trading and predation relations (which mark identity
production). From the period lived on fieldwork, at Jambuaçu, in Pará, Brazil, the ways
through which quilombo communities, already formalized and armed with land
6
titulation, operate resistance and position themselves around the impacts in the territory
generated by the Bauxita Paragominas Project, managed by Companhia Vale do Rio
doce, will be analyzed. The present conflict, between these quilombo communities and
CVRD, will provide access to another conflict, that took part on the 80’s, between the
same quilombo communities and another company, Reasa Reflorestamento Sociedade
Anônima. Through memory and native elaboration of their sociopolitical history, this
dissertation will demonstrate that conflict situations between Jambuaçu quilombo
people and the groups that ocupate their borders are perennial, and that the forms of
positioning themselves in such situations have progressively become a tradition.
7
S
umário
9
D
iversas chegadas
C
apítulo 1: Casa de Narciso
16
As comunidades quilombolas de Jambuaçu
26
O negro no Pará e os quilombos de Moju
36
Campesinato negro e estudos de quilombos
47
Nota sobre o Artigo 68
C
apítulo 2: Casa de Rita
51
O conflito com a CVRD
62
Considerações sobre a Natureza: um parêntese
68
Proliferação do(s) outro(s): território perpassado pelo saber exterior
81
Estratégias da CVRD e as estratégias dos quilombolas
93
O tratamento do conflito
C
apítulo 3: Casa de Cutia
97
Conflitos e identidades do passado e do presente
102
Reasa: agência nativa na construção do tempo, espaço e matéria
123
O retorno da natureza – pistas para um sistema coletivista de uso do território
8
C
onsiderações finais
137
O caminho da antropóloga e outros caminhos possíveis
142
R
eferências Bibliográficas
A
nexos
153
Mapa Território Quilombola de Jambuaçu
154
Fotos
9
I
ntrodução
D
iversas Chegadas
Esta dissertação é fruto da pesquisa de campo realizada em 2007 no território
Jambuaçu, localizado no Estado do Pará, onde vivem diversas comunidades
quilombolas. Minha chegada a este território não foi por acaso, mas, ao contrário, é
fruto tanto do desejo de estudar grupos negros campesinos articulados em torno da
identidade de quilombolas, quanto de alguns critérios de recorte da pesquisa que foram
construídos anteriormente ao trabalho de campo propriamente dito, baseados em
escolhas analíticas orientadas pela leitura bibliográfica e outros trabalhos que tenho
desenvolvido com as populações ditas tradicionais
1
. Considerando a atualidade do
debate em torno da questão quilombola, tanto em nível acadêmico como em outros
setores da sociedade as três esferas do governo brasileiro, a sociedade civil
organizada, os setores religiosos e a mídia –, foram eleitos critérios para a escolha do
lugar de realização do trabalho de campo que por si só implicariam em questões
específicas do desenvolvimento da pesquisa, suas abordagens histórica e antropológica.
O recorte que delimitaria as características do grupo que seria estudado foi orientado,
assim, pelas seguintes assertivas: (1) ser um quilombo na Amazônia; (2) ser um grupo
que estivesse vivendo um conflito, fundiário ou ambiental; (3) ser um grupo com posse
de título coletivo fornecido pelas agências oficiais; e, por fim, (4) a escolha deveria se
basear em um diálogo com movimentos sociais e pesquisadores locais no sentido de
eleger uma comunidade em que, apesar do tempo destacado da produção acadêmica e
da política, o trabalho produzido pudesse ser devolvido e quem sabe traduzido ele
mesmo como recurso na situação de conflito em questão. Estes critérios, combinados,
trariam possibilidades de análise, por exemplo, de como o título de “remanescente de
1
Estes outros trabalhos dizem respeito aos três anos de atuação junto ao Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, que coordena, ao lado do Ministério do Meio Ambiente, a Comissão Nacional
de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT, criada por Decreto de
13 de julho de 2006), entre outras políticas públicas com recortes específicos para indígenas e
quilombolas, as quais pude acompanhar como antropóloga pertencente à equipe da referida instituição.
10
comunidade de quilombo” estaria sendo acionado em situações de confronto, ou como a
questão do negro, associada à questão quilombola, se manifestaria em um contexto
tradicionalmente visto como indígena.
Estas opções possibilitaram uma complexidade analítica suposta de antemão, mas que
se multiplicou durante todo o processo da pesquisa e de confecção do texto. Tanto a
pesquisadora quanto o texto seguiram, assim, caminhos algumas vezes imprevistos, em
que o controle se constituiu mais como uma suspeita que propriamente um fato: atribuo
este processo à necessidade metodológica de considerar ao máximo a perspectiva
nativa, apesar da dificuldade ontológica da comunicação intercultural.
Em Belém, vivi as primeiras dificuldades geradas pelo não compartilhamento de
conceitos a mim tão corriqueiros, ao me reunir com a Coordenação Estadual das
Comunidades Negras do Pará, a Malungu. Considerando o último critério de seleção,
debati com o presidente e vice-presidente da Malungu o meu desejo de ir para uma
comunidade em conflito, e fui enviada no dia seguinte para as ilhas de Abaetetuba. Qual
surpresa ao descobrir que tratava-se de um conflito entre lideranças locais, não menos
importante porque articulado em torno de divergências com o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
2
, mas inscrito em disputas internas e não em
oposições com grupos externos articuladas em torno do território. Após uma semana, e
diversas “saias justas” geradas pela minha negativa em interferir no problema local, fui
embora um tanto desanimada por não ter identificado o meu “campo ideal”.
Retornando a Belém, em conversa com a professora Rosa Acevedo Marin, pesquisadora
da Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenadora da Associação de
Universidades da Amazônia (UNAMAZ), finalmente foi possível articular os primeiros
contatos para ir para o território quilombola do Jambuaçu, área rural do município de
Moju. Em janeiro de 2007, cheguei ao território na companhia de Benedito, um
2
O conflito era fruto de desacordos em torno da titulação quilombola em oposição às políticas do
INCRA para grupos assentados. Uma das correntes políticas locais desejava revogar a titulação efetuada
pelo ITERPA porque as políticas públicas dos assentamentos vinham associadas, além da demarcação de
terras, a outros benefícios. Seria profícuo pesquisar este processo do ponto de vista da sobreposição e
concorrência de políticas fundiárias de governo, e as implicações nas identidades locais.
11
mojuense colaborador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que veio a se tornar meu
guia e amigo. Titulado de maneira fragmentada pelo Instituto de Terras do Pará
(ITERPA), o território possui 14 comunidades auto-identificadas
3
, somando um total de
600 famílias
4
representadas por 12 associações.
Naquele momento, as comunidades encontravam-se em conflito com a Companhia Vale
do Rio Doce (CVRD): dias antes ocorrera um confronto, em que foi derrubada uma
torre da linha de transmissão da Companhia instalada no território, fecharam-se as vias
de acesso e estabeleceram-se guaritas para vigília permanente e impedimento da entrada
de funcionários da CVRD. As motivações centrais para tais ações giravam em torno de
impactos sócio-ambientais decorrentes do empreendimento, e de negociações que
vinham acontecendo há três anos entre os nativos e a empresa.
O trabalho de campo foi concentrado nas comunidades de Santa Maria do Tracuateua,
Nossa Senhora das Graças e São Bernardino, nas quais fiquei hospedada, além de Santa
Luzia e Bom Jesus do Centro Ouro, visitadas para a realização de entrevistas. Foram
quase quarenta dias de vivência no campo, em que pude participar das atividades
próprias ao conflito e também da vida cotidiana dos quilombolas.
O objetivo central desta dissertação é trazer contribuições para os estudos sobre as
comunidades quilombolas considerando as teorias antropológicas da etnicidade e da
territorialidade, e utilizando alternadamente duas abordagens sobre o conflito, aquela
dos conflitos socioambientais, e a teoria etnológica da guerra, que considera outros
atributos de interações marcadas pelo conflito como seu caráter institucional, além das
relações de troca e predação, que marcam a produção de identidades.
3
Ressalto que este é o número de vilas que à época do estudo estavam em processo de regulação
fundiárias de seus territórios, existindo outras em fronteira com processos mais ou menos incipientes. O
território em si pode ser definido pelas relações de parentesco, alianças políticas e com referência ao
igarapé denominado Jambuaçu.
4
Existem informações diversas sobre o número de famílias no território, havendo informações da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e das empresas que
realizaram o EIA-RIMA. Tomei como oficial a informação da CPT, que atua junto à população desde a
década de 1980, mas tendo em vista que, como atua de forma semelhante a um “movimento social”, a
Comissão poderia tender, naturalmente, a aumentar o número de famílias.
12
O trabalho está divido em três capítulos, além da conclusão, que buscam expressar os
momentos diversos da relação dialógica entre a pesquisadora e o grupo pesquisado: o
caminho percorrido, entre tantas chegadas anteriores e posteriores, torna a mim
inteligíveis as informações compartimentadas por meio de entrevistas e diário de campo
e, principalmente, o aprendizado incorporado, do qual tentarei subtrair algum fragmento
a fim de realizar uma análise antropológica.
O primeiro capítulo traz a descrição das comunidades quilombolas de Jambuaçu, sua
organização social, produtiva, estética e política de modo geral. Além disto, expõe
informações históricas sobre o processo de escravidão e constituição de quilombos na
região amazônica, em especial no Pará e nas imediações do território quilombola em
questão. Por fim, é chamada a atenção para os estudos de campesinato negro, estudos de
quilombo e acerca das populações ditas tradicionais, no sentido de contextualizar o
campo de estudos.
Os quilombolas estão em todo o território nacional e, portanto, as particularidades
começam a ser inscritas nos recortes regionais, para se inscreverem também em
múltiplos outros recortes sociológicos e identitários só visíveis a partir da observação
circunscrita de cada caso, de cada grupo e suas relações de alteridade particulares com
vizinhos ou invasores. A conjugação das teorias sobre as conformações étnicas dadas
historicamente e por meio de atualizações permanentes, associadas às teorias sobre
territorialidade, meio ambiente e acerca das noções de tradição, se mostrou, assim,
profícua na elaboração do cenário ao qual o grupo pertence na atualidade e ao cenário
da própria pesquisa, em seus diversos níveis.
O Capítulo 2 é uma análise do conflito com a Companhia Vale do Rio Doce a partir das
observações de um período do mesmo feitas in loco, e de entrevistas com os
quilombolas. Para dialogar com estes dados, foram utilizadas as teorias acerca de
conflitos socioambientais, territorialidade, etnicidade e racismo ambiental, a fim de
traduzir o significado da inserção de múltiplos saberes e discursos no território, bem
como sua eficácia em um processo de tentativa de dominação. Por meio do mapeamento
dos atores e eventos do conflito, foi possível acessar a incongruência da retórica exterior
ao território, a assimetria de poder e diversidade de códigos de referência entre os
13
grupos, bem como suas estratégias, institucionalizadas ou não, de luta por espaços e
recursos (“sociais” e “naturais”) em um Estado Nacional governamentalizado que
outrifica, como aponta Segato (2005:7), os grupos e identidades considerados
“residuais” e “periféricos”.
Pretendo demonstrar como a chegada do empreendimento Projeto Bauxita Paragominas
traz para o território do Jambuaçu uma série de atores e saberes que progressivamente
se impõem ao grupo os professores da Universidade, os pesquisadores responsáveis
pela produção do EIA-RIMA, a CVRD (na figura de técnicos, negociadores, peões), a
mídia, advogados, entidades não governamentais, instituições estatais , causando um
proliferação de interpretações sobre a vida local e instituindo de maneira polarizada
poderes antes não estabelecidos. Saliento, por outro lado, que este grupo não se
encontrava de forma alguma em isolamento (geográfico ou social); pelo contrário, sua
história é constituída e reconstituída justamente a partir das relações com o que é
considerado exterior pela concepção nativa.
O Capítulo 3 apresenta a história sócio-política do grupo narrada por eles mesmos, por
meio da análise da articulação nativa do conflito atual com a CVRD com outro conflito
ocorrido na década de 1980, com a empresa Reflorestamento Amazônia Sociedade
Anônima (Reasa). A partir da observância da perenidade das situações de conflito no
Jambuaçu propus analisar, à luz da teoria etnológica da guerra, a constituição de um
ethos guerreiro que é parte da cosmologia local lutar é atributo do grupo, e as formas
múltiplas de resistência operam tanto por meio da absorção crítica e utilização das
instituições exteriores, como pelo fortalecimento das suas próprias. Trazendo para o
primeiro plano outros atores participantes do sistema comunicativo quilombola (os
santos católicos, a Matinta Pereira, as visagens, o Boto, entre outros), não considerados
pelos modernos
5
, o objetivo desta parte do trabalho é demonstrar como a análise de um
conflito pontual, quando se volta para a história social e cosmologia dos atores, insere
no debate a complexidade de diálogos que se inscrevem em contextos híbridos de
5
Será considerado no trabalho dois conceitos de moderno: (1) aquele que se opõe ao tradicional, em
uma ideologia associada à noção de progresso, existência de uma natureza exterior e inesgotável, a
naturalização do capitalismo como modelo social, e que justifica práticas ocidentalizadas de dominação
do outro; (2) aquele desenvolvido por Latour (1994; 1996), em que a modernidade é o exercício ocidental
de separação do feito e do fato, da ciência e da política (crenças), dos humanos e dos objetos.
14
percepção do tempo, da “natureza”, da humanidade, e as implicações morais e políticas
impressas nestes contextos.
Os três capítulos contextualizam o presente etnográfico de forma progressiva,
considerando os diversos fluxos comunicativos que se estabelecem no território, em que
os processos de alteridade o de naturezas diversas e em relação a múltiplos outros:
neste sentido, o grupo elabora sua existência a partir de fronteiras bastante definidas,
realizando trocas, positivas e negativas, com atores mais ou menos conhecidos que se
lhes opõem.
Tomada como princípio da tradição antropológica a assimetria de poder (de fala) na
relação do antropólogo com o grupo que estuda, uma persistência do colonialismo
intelectual neste tipo de interlocução, busquei me aproximar da figura do “antropólogo
político”, engajado em arenas propriamente políticas, ou por meio do uso do texto
6
etnográfico para confrontos em outras esferas, com o objetivo de tentar politizar a
antropologia adjetivada como Ciência
7
(social) a reunião, de que nos fala Latour
(1999:2004).
Os objetos de pesquisa "movimentos sociais" ou "conflitos sociais", portanto, são tão
políticos (porque feitos pelo pesquisador) e atuais quanto quaisquer outros. Para além da
perspectiva fixada em textos jornalísticos e relatórios técnicos e jurídicos sobre o
conflito em tela, esta dissertação é uma busca de tentar registrar pelo texto e análise
antropológicos as relações vividas no Jambuaçu, que sobremaneira compõem um campo
6
Texto de forma ampla: cultura é texto, um vídeo é um texto, uma fotografia, ou uma prosa entre dois
sujeitos, enfim.
7
O sentido de politizar foi tomado de Latour em sua reflexão sobre a politização da natureza pelos
ecologistas. Assim, ora se politiza um objeto em sentido, digamos, “positivo”, ao aplicar a simetria e
democratizar as arenas, ora os processos de politização implicam uma separação entre política (ideologia,
interesses, subjetividade) e ciência (objetividade, verdade). O cientista organiza o mundo dos humanos
porque pode falar do inerte mundo natural. Este enorme poder político dado ao cientista seria legitimado
pelo mundo social através da epistemologia (política), que operaria, então, outra distinção: (1) política:
distinção entre Ciência e política e (2) política: os interesses dos humanos. Escapando ao reducionismo de
definir a Ciência como uma construção social”, a proposta do autor é fazer política, por uma repartição
mais equânime de poderes, onde democraticamente poder-se-ia repolitizar a Ciência. (Latour,1999:2004).
15
complexo de conflitualidade (CASTRO, 2000) e ressemantização das identidades
(ARRUTI, 2006). Neste sentido, as figuras dos técnicos, negociadores, advogados,
lideranças locais, exteriorizam distintas formas, nem sempre essencialmente masculinas,
de estratégias de negociação, articulação política, eleição de prioridades e interesses,
com efeitos radicalmente diferentes para seus núcleos culturais de origem e suas
respectivas instituições. Como entre os havaianos de Sahlins (1985), temos aqui eventos
vividos em comum a serem elaborados historicamente por perspectivas culturalmente
diversas, que partem de percepções da natureza, do Direito e da propriedade
absolutamente distintas.
16
C
apítulo 1:
C
asa de Narciso
As comunidades quilombolas de Jambuaçu
Em Jambuaçu fui acomodada na casa de Seu Narciso, liderança quilombola de Santa
Maria do Traquateua, localidade onde foi derrubada uma torre da linha de transmissão
da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) em dezembro de 2006. Este evento
específico constituiu-se como o ápice do conflito, pois se materializava como uma
represália dos quilombolas ao descumprimento de acordos firmados anteriormente com
a Companhia construção de Casa Familiar Rural
8
, posto de saúde, recuperação de
ponte que caiu e de 33 km de estradas, danificadas pelo tráfego de máquinas pesadas e
outros. Com a torre de energia derrubada, o caulim e a bauxita – minérios explorados na
área não poderiam ser transportados a Barcarena, seu destino final, estando
impedido, assim, seu beneficiamento e comércio.
Os quilombolas de Jambuaçu nutrem uma relação positive, no que concerne à
identidade, com o município de Moju, ao qual pertencem oficialmente: se consideram
“mojuenses”, e sua história esfortemente articulada com a deste município, embora
no que diga respeito aos “eventos históricos”
9
mais marcantes para os quilombolas os
mesmos tenham a característica de oposição aos moradores da cidade e especialmente à
política municipal para com eles.
8
As Casas Familiares Rurais (CFR) tiveram origem na França em 1937, por iniciativa de um grupo de
famílias do meio rural, propondo a adoção de uma formação profissional aliada à educação humana para
seus filhos (pedagogia da alternância). No Sul do Brasil, o processo de implantação das Casas Familiares
Rurais teve início no Paraná, em 1987. em 1991, as Casas Familiares Rurais estavam sendo
implantadas nos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e desenvolveram-se, também, nos outros
Estados do Brasil, sobre a coordenação das Associações Regionais das CFR (ARCAFAR) que hoje
organiza-se em Confederação Nacional (CONACAFARB). Em 1998, as Casas Familiares Rurais
integram-se às ações, em nível federal, do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF). (Fonte: www.planetaorganico.com.br, 2007).
9
Será considerada neste trabalho a crítica de Sahlins (1981, 1985) às dicotomias evento/sistema,
história/estrutura, estabilidade/mudança, e as lógicas subjacentes: estático/dinâmico, ser/devir,
estado/ação, condição/ processo, substantivo/verbo, oposições utilizadas para cristalizar a confusão
história/mudança.
17
Situado na Zona Guajarina, Moju, que significa “rio das cobras” em tupi (biblioteca.
ibge.gov.br, 2007), é um município localizado no nordeste paraense, a 257 km da
capital Belém. Possui aproximadamente 62 mil habitantes (Estimativa IBGE/2006,
2007), a maioria residente na área rural, e é perpassado pelo rio de mesmo nome
10
.
Segundo fontes da historiografia (SALLES, 1971: 2005; GOMES, 2005) era um rio
fortemente utilizado para o tráfego econômico no século XVIII. O município faz
fronteira com outros oito – Breu Branco, Tailândia, Barcarena, Acará, Baião, Mocajuba,
Igarapé-Miri, Abaetetuba –, tendo os últimos cinco deles registros de presença de
quilombos (MDS
11
, 2006; TRECCANI, 2006). Além das informações oficiais atuais
sobre os quilombos nestas localidades, que se referem aos processos de auto-definição e
titulação junto aos órgãos estaduais e federais
12
, existem dados de fontes oficiais do
período colonial que atestam a presença de quilombos e mocambos na região (SALLES,
1971 :2005 ; GOMES, 2005).
O Jambuaçu é um território localizado a 15 km de Moju. É perpassado pelo igarapé de
mesmo nome, e habitado por grupos de trabalhadores rurais que têm como meio de
vivência a agricultura familiar para auto-consumo, extrativismo de frutas as mais
diversas, a caça e a produção de farinha para consumo e venda. O período que encontrei
em campo é o de inverno, aquele em que a pesca está proibida, e se está colhendo a
última etapa da produção agrícola do ano anterior, e preparando-se para o plantio que
virá após as chuvas – tempo, portanto, de escassez.
Embora o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) tenha titulado a área a partir de 12
associações diferentes, a observação empírica e as entrevistas acerca de tempo de
ocupação e parentesco entre as famílias comprovam que trata-se de um grupo só,
organizado em pequenas vilas com matriz religiosa católica. O catolicismo local se
10
Navegável atualmente por embarcações de 2 a 3 metros de calado.
11
Foi utilizada como fonte de consulta uma listagem, não oficial, elaborada para a pesquisa Chamada
Nutricional: uma avaliação nutricional de crianças quilombolas de 0 a 5 anos, elaborada pelo MDS.
Trata-se de uma lista com informações da Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR), da Fundação Cultural Palmares e do mapa do geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
(2005).
12
ITERPA, Fundação Cultural Palmares, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA).
18
inscreve sob o que correntemente se classifica como “catolicismo negro”, associado às
crenças em entidades que se opõem aos santos católicos, como o Curupira, a Matinta
Pereira e o Boto, que, no entanto, fazem parte de um mesmo panteão religioso.
Pela idade dos entrevistados mais velhos, todos nascidos no território, pode-se estimar
que ocupem a região pelo menos 120 anos. Foram visitadas seis comunidades
13
, das
quais fiquei hospedada em três: Santa Maria do Traquateua, Nossa Senhora das Graças
e São Bernardino. Nestas, pude realizar uma “observação participante” do conflito,
além de observação sistemática do cotidiano e realização de entrevistas. Também foram
feitas entrevistas em Bom Jesus do Centro Ouro, devido à proximidade geográfica com
São Bernardino. No total, foram 32 entrevistas semi-estruturadas e gravação de duas
reuniões de lideranças locais. O roteiro das conversas continha os seguintes temas: título
coletivo; etnicidade, território e parentesco (geral); CVRD; trabalho; infraestrutura;
instituições locais. A partir destes grandes temas, foram levantados dados sobre
ocupação do território (familiares mais antigos ali residentes), produção local, relações
de trabalho com empresas, fazendeiros, marreteiros, fontes de renda, família (origem
dos cônjuges, número de filhos), titulação, entendimento da categoria quilombola,
relações com a CVRD (histórico e percepções atuais).
De modo geral, os moradores do Jambuaçu são referidos pela sociedade englobante e se
auto-definem como pobres, mas a categoria de pobreza neste contexto, semelhante ao
observado por Lima (2006) entre os caboclos da Reserva de Mamirauá (AM), é
associada pelos nativos como “...limite de consumo de mercadorias, de acesso restrito
ao mercado e aos benefícios do mundo moderno, como saúde e educação, mas não a
indigência ou a fome.” (LIMA, 2006: 157). A luz elétrica é um serviço recente na
região, implementada no Governo Lula. Associada às quantias de dinheiro repassadas
pela CVRD, tem modificado o tipo de consumo, tanto de alimentos, que agora podem
ser armazenados em geladeiras, como de eletroeletrônicos em geral (aparelho de som,
televisão e até mesmo computadores). Algumas pessoas possuem, ainda, telefones
celulares com antenas. Em Santa Maria do Traquateua, mesmo sem a luz elétrica,
assiste-se ao noticiário e à novela durante a noite, quando dinheiro para comprar o
13
Santa Maria do Traquateua, Santa Luzia do Traquateua, Nossa Senhora das Graças, Santa Ana de
Baixo, São Bernardino e Bom Jesus do Centro Ouro.
19
óleo diesel que alimenta a bateria para a televisão.
As vilas são localizadas no que se chama “terra firme”, em oposição às várzeas ou ilhas,
e são em essência iguais, no que diz respeito à organização espacial e o que esta implica
em termos de status social, parentesco e produção. As casas são dispostas de forma a
reproduzir um círculo ou semi-círculo, e em duas extremidades opostas estão a igreja do
padroeiro da vila e o igarapé. As capelas ficam na extremidade de chegada das vilas,
com suas portas voltadas para o campo central, e os igarapés ao final da seqüência de
casas. Estas, por sua vez, têm suas entradas principais viradas para este centro, que
geralmente serve como palco de festas ou para o jogo de futebol.
Ao dos igarapés, geralmente, um mercado que também funciona como bar, este
com a porta virada para o rio ou para uma direção lateral à do centro da vila. Além
destas casas centralizadas em torno do pátio, existem casas mais afastadas, em diversos
pontos do entorno da vila, somente visíveis por mim quando os próprios nativos me
levaram a elas, de casquinho (pequeno barco) ou de moto. Em todas as vilas pelo
menos uma casa de farinha em funcionamento, utilizada coletivamente pelas famílias.
Melatti (1974) associa este tipo de organização espacial, no caso dos Krahó (ou Craô), à
(1) auto-suficiência ilusória da família nuclear, (2) às relações de parentesco e divisão
sexual do trabalho e (3) às formas rituais de expressão da organização dualista da
reciprocidade (metades) com base na noção de centro/homem, periferia/mulher. De
maneira análoga os grupos do Jambuaçu organizam suas vilas com um centro masculino
(espaço público) e uma periferia feminina (espaço privado), com semelhantes
implicações no que concerne à solidariedade entre as famílias nucleares (parentes) e à
localização por status dos moradores deste centro principal, onde se localiza a capela.
Ressalto que esta diferenciação homem/mulher, centro/periferia se complexifica ao
analisarmos o poder feminino nestes grupos, seja pelo fato de muitas mulheres serem
lideranças, seja pelos conhecimentos específicos ligados à cura ou à caça. O domínio da
casa é feminino, mas seu poder não é restrito a este espaço.
Nas extremidades opostas das vilas estão localizadas duas, senão as principais,
referências mágico-religiosas para eles: a capela e o igarapé ambos são habitados por
20
seres sobrenaturais, como os santos, o Boto e a Oiara. A “floresta” é contígua ao rio, e é
que habitam outras entidades presentes no sistema comunicativo dos quilombolas,
que não dos outros atores em conflito – a Matinta Pereira e, antes dos freqüentes
desmatamentos, o Curupira.
“D. Maria: teve um dia de noite, ela subiu perto da janela do meu quarto.
Carmela: E ela faz o quê?
D. Maria: Ela quer tá junto, a Matina Pereira, eu vejo falar assim, ela
assobia pra lá e ela vai embora. Ela mexe com a pessoa se a gente mexer
com ela. Se ela começa a assobiar, você diz, vai procurar teu rumo, ou então
vem tomar um café comigo amanhã, o que prometer pra ela, ou então se a
pessoa mandar um nome, um palavrão, ela se aborrece, é quando ela cisma
com a pessoa.
Carmela: E por que a pessoa chama ela pra tomar café?
D. Maria: É um tipo de brincadeira, mas se a senhora falar com a Matinta
Pereira ‘vem tomar café de manhã!’, se chega uma pessoa é porque é. Buscar
cigarro também.” (D. Maria, Nossa Senhora das Graças, 2007. Ênfase
minha).
Ao tomar como referencial a capela e o igarapé, o círculo se transforma em um
corredor, e a forma da organização espacial passa a conter o fluxo da “porta de entrada”
para a comunidade, da qual se vê a parede de traz da igreja, passando por esta, seguindo
pelo centro por entre o corredor de casas a o rio. Ambas as estruturas o círculo
(referencial: casas/pátio central) e a linha (referencial: capela/igarapé, mata) – são
pertinentes, e se sobrepõem: é necessário precisar o fluxo comunicativo (e de trocas,
como observou Melatti, 1974) que está em ação, ou seja, o que significam precisamente
estas oposições capela/rio (exterior/interior), pátio/casas (centro/periferia).
O círculo organiza o fluxo interno – posição social, relações de gênero, trabalho,
reciprocidade entre vizinhos e parentes. Por exemplo, as mulheres recebem de fora da
casa o alimento que por elas será processado, e posteriormente trocado de maneira
lateral, entre as casas. O corredor organiza as trocas com o exterior: a capela é a
fronteira com o “fora” (outras comunidades, ou um exterior mais distante, a estrada que
leva ao município de Moju ou mesmo Belém); e o igarapé na ponta mais distante da
21
entrada da comunidade, como que disposto, estruturalmente, para ser resguardado. Em
relação às pessoas (humanos), o rio e a floresta também abrigam o fora”, ou seja, os
animais que podem ser caçados para comer, e os seres sobrenaturais. São múltiplas,
portanto, as relações de alteridade locais.
Internamente, as casas também têm um padrão determinado: são feitas de madeira, e
possuem um cômodo maior de entrada (que funciona como sala de dia, e à noite, como
quarto dos filhos e cunhados), um quarto do casal da família nuclear, fechado, e uma
cozinha, cuja porta e janela estão voltadas para a mata, e que também pode ser utilizada
para pendurar redes à noite, quando é necessário separar por gênero os moradores. As
janelas laterais são usadas para a comunicação com as vizinhas. O banheiro, quando
existe, é uma casinha de madeira, e se localiza atrás das casas, sempre na direção da
mata.
No que diz respeito à divisão social do trabalho, as mulheres realizam o trabalho
doméstico e também ajudam os homens nas roças a depender da quantidade de mão
de obra familiar disponível. No período em que estive, por exemplo, as mulheres que
acompanhavam os maridos na roça, como Dona Juliana, eram admiradas como
trabalhadeiras pelo grupo, que acumulam o trabalho doméstico e o trabalho na roça.
O extrativismo dos vegetais pode ser feito por homens e mulheres, embora os homens
pratiquem mais o extrativismo da castanha, do açaí e da bacaba do que as mulheres,
responsáveis por processar tais frutas para o consumo (descascar, limpar, triturar).
Mesmo as mulheres que não trabalham sistematicamente na roça m um pedacinho de
terra plantada, seja com pimenta seja com maniwa para fazer a farinha. a pesca e a
caça são atividades exclusivamente masculinas.
“De primeiro tinha inverno e verão, tinha três meses de inverno e três meses
de verão, hoje não, cai uma chuva aqui, amanhã dois dias de sol, cai
outra depois de amanhã. De primeiro era toda a boca da noite era trovão e
chuva... Graças a Deus o que tinha de alimentação até eu digo porque já
estou com uma meia idade, eu ainda duro um pouquinho, por causa que
o alimento era natureza, viu, era caça, peixe, alguma comida que vinha
daí, Pirarucu, esse negócio de Gurijuba, isso ninguém nem falava, era
natureza, coisa boa, hoje você come coisa fermentada com veneno de
criação tudo e coisa, você se dura 60 anos você está muito de sorte.
22
Quando foi um bocado da noite, o velho tinha merendado, carira, paca,
tudo, ali embolado na rede, ela tirando o fino com as crianças, chuva,
chuva, epa! Pra pra acolá, desmanchou a rede, quando foi de manha cedo
ele foi pro mato procurar uma tal de sororoca pra botar de capote, num
instante melhorou a situação. Hoje graças a deus o pessoal diz que muito
ruim, tá ruim você sabe o que? É o negócio da alimentação, tem muita,
mas é meio fraca”. (Cutia, São Bernardino, 2007. Ênfase minha).
A farinha, ao lado do açaí, é o principal alimento da família e a principal mercadoria
para venda. Se por um lado trata-se de uma produção familiar e também coletiva, pois
as casas de farinha são compartilhadas por diversas famílias, por outro, cada pessoa é
responsável por fazer a “sua farinha”. Explico: cada indivíduo tem uma mão” para a
farinha, a depender da experiência somada a atributos individuais particulares, uma
espécie de dom ou “manaque influencia nas características da farinha (consistência,
cor, sabor). Por exemplo, a filha de seu Narciso, Cristina, embora tenha ficado anos fora
do território, migrando para a cidade e vivendo fora dos padrões tradicionais do grupo,
tem uma excelente “mão” para fazer farinha. E embora a farinha seja feita com ajuda do
pai e das filhas, em diferentes momentos da produção, a maior parte do trabalho é
efetuada por ela, para que possa dizer “esta é minha farinha”.
O processo envolve colher a maniwa, colocar no rio para amolecer (“cozinhar” ou
“apodrecer”), descascar a maniwa mole, escorrer no tipiti, coar, misturar à mandioca
seca (ralada à mão ou por máquinas movidas a pedal, e em menor escala, combustível),
e torrar no forno. Trata-se de um processo extremamente determinado de produção,
como aponta Woortmann (1997):
“O sistema de cultivo constitui um todo preconcebido, no qual vários fatores
são levados em conta: solo, clima, consumo familiar, relações de parentesco,
relações de mercado, disponibilidade de força de trabalho etc. Um complexo
que envolve cálculos sutis, que frequentemente, passam despercebidos ao
pesquisador”. (WOORTMANN, 1997 apud RAVENA-CANETE, 2004).
A farinha é vendida por meio dos marreteiros, intermediários que passam por toda a
área comprando a farinha para revender nos mercados municipais. Os marreteiros, ou
atravessadores, efetuam a exploração local do trabalho dos quilombolas a partir da
23
mercantilização da farinha, pois os nativos o têm meios de colocar a produção
diretamente no mercado municipal ou regional.
Alguns homens trabalham, também, para a empresa Marborges S/A, monocultora de
dendê com terras vizinhas aos quilombolas como veremos, antiga empresa Reasa
Reflorestamento, que tem grilado terras destas famílias nos últimos 30 anos. Como
fonte de renda existem, ainda, as aposentadorias de trabalhador rural e o benefício Bolsa
Família
14
, extensamente conhecido dos nativos.
Por fim, um outro tipo de especialização do trabalho, central para esta análise: o
trabalho da liderança, realizado tanto por homens quanto por mulheres. Está claro para
os estudos de conflito (GRYNSPAN, 1999), ou mesmo os estudos sobre a guerra em
comunidades indígenas (FAUSTO, 2001; ARANTES, 2006), que a liderança é um ator
especializado, com características e funções muito próprias, relacionadas aos eventos de
embate, e à organização política do grupo. Esta questão será desenvolvida nos Capítulos
dois e três.
A forma de organização política elaborada através dos anos, bem como as
características das instituições locais, seja a família, as irmandades de santos ou as
associações quilombolas, para citar somente algumas, constituem a base para a
formação da história social e política internamente ao território. Por outro lado, as
relações, positivas ou negativas, com outros atores os moradores do município de
Moju, as empresas Reasa, Marborges e CVRD, fazendeiros, CPT, Universidades
Federais do Pará e Amazonas, Governo do Estado, o Centro pelo Direito à Moradia
contra Despejos Forçados (COHRE, uma ONG internacional) conformam um
contexto histórico mais amplo. Indo mais longe, os quilombolas do Jambuaçu são parte,
também, da história social da Amazônia.
Assim, além de sua própria história social e política, investigando a história da
ocupação da região Amazônica até os dias atuais, e privilegiando a perspectiva da
visão/relação do governo colonial e posteriormente do Estado brasileiro sobre estas
populações, é possível compreender como a constituição das identidades locais é
14
Programa de transferência de renda do Governo Federal.
24
perpassada por visões engendradas exteriormente ao grupo, que absorve, lê, relê e
reage, à sua maneira, às nominações que lhes são dadas, historicamente.
25
26
O negro no Pará e os quilombos de Moju
A presença do negro na Amazônia é registrada por meio de trabalhos históricos
(SALLES, 1971; GOMES, 2005), além de trabalhos etnográficos sobre os caboclos
(GALVÃO, 1955; ADAMS, MURRIETA & NEVES, 2006) ou sobre os quilombolas
(ACEVEDO & CASTRO, 1998; O’DWYER, 1993). No entanto, o indígena é o ator
principal dos estudos de uma Amazônia “...tradicionalmente retratada ora como uma
floresta tropical de dimensões continentais, ora como o espaço ocupado pelo
arquetípico ‘outro primitivo’ (Slater, 1996). Ela é projetada, fundamentalmente, como
um domínio natural, em que o social é invasor (Nugent, 1993).” (ADAMS,
MURRIETA & NEVES, 2006).
Apesar dos excelentes trabalhos sobre os quilombolas de Marajó (MARIN, 2001) e
Santarém (ACEVEDO & CASTRO, 1998; O’DWYER, 1993), as ciências sociais m
associado a Amazônia aos chamados “outros genuínos” (ADAMS, MURRIETA &
NEVES, 2006), tradicionalmente excluindo os grupos negros e os caboclos do debate.
Ressalto que a
definição de “caboclo” foi ampliada em diversos artigos reunidos em
Sociedades Caboclas Amazônicas (ADAMS, MURRIETA & NEVES, 2006), podendo
significar “pequenos produtores” (BRONDÍZIO, 2006), “roceiros”, “extratores”,
“seringueiros”, “ribeirihos”, varzeiros”, “nativos euro-amazônicos”, “nativos afro-
euro-amazônicos” (PACE apud BRONDÍZIO, 2006), ou “campesinato amazônico de
origem colonial, de habitantes principalmente das margens dos rios” (LIMA, 2006), ou
“...diversas histórias e economias da Amazônia (ribeirinhos, nordestinos e japoneses
por exemplo).” (NUGENT apud HARRIS, 2006). Assim, caboclo passa a designar não
somente os “mestiços” de brancos e indígenas presentes na região, mas também uma
identidade particular amazônica com características determinadas para além do fenótipo
ou vinculações biológicas de casamentos inter-raciais específicos.
Do ponto de vista histórico, algumas questões o relevantes para este trabalho: em
primeiro lugar, reter como a escravidão distribuiu o negro pelo território paraense, e, ao
mesmo tempo, como se deu a ocupação agenciada pelos negros por meio dos
mocambos ou quilombos, destacando dados existentes sobre as comunidades de
fugitivos na região do rio Moju. Por outro lado, dando relevo aos dados sobre a
27
multiplicidade de atores que formaram grupos resistentes ao modelo de escravidão, é
possível destacar a invisibilização, tanto no senso comum, como acadêmica, das trocas
culturais que possibilitaram uma formação social particular, ocasionada, também, pela
exploração pela qual responderam conjuntamente negros e indígenas.
A obra de Vicente Salles (1971), O Negro no Pará sob o regime da escravidão, é um
clássico no que diz respeito à historiografia sobre a presença escrava negra na região.
Porém, se por um lado os dados advindos de uma minuciosa revisão da documentação
oficial e jornalística dos séculos XVII a XIX são uma excelente fonte para estudos
atuais, a análise do autor está inscrita na ideologia da mestiçagem biológica e cultural
como forma de valorização da influência africana na sociedade brasileira, revisitada
para o caso paraense: “Os contactos interétnicos se processaram intensamente, isentos
do mais rudimentar preconceito racial, fundindo num todos os três estoques
fundamentais: o branco, o índio e o negro.” (SALLES, 1971: 96).
Tomadas as precauções de filtrar em alguma medida o exercício analítico do autor, o
primeiro ponto a ser considerado é a menção a Moju em diversos recenseamentos locais
acerca da proporção de negros no Estado e sobre os movimentos de constituição de
mocambos. Os estudos posteriores aqui utilizados, de Gomes (2005) e Treccanni (2006)
se basearam fortemente na obra de Salles (1971), mas trazem outras contribuições: o
primeiro, no detalhamento da composição dos quilombos no Pará, o segundo, no foco
na situação jurídica dos negros desde o estabelecimento da escravidão até os dias atuais.
Salles (1971) e Gomes (2005), com obras distantes trinta anos, têm em comum o
destaque à relação entre indígenas também escravizados e negros, tanto no que diz
respeito aos espaços de trabalho forçado, quanto acerca de ações de fuga e organização
de grupos alternativos à ordem hegemônica.
“Existiam também mocambos de índios por toda parte (...). Investigações
sobre fugas coletivas de índios em Soure revelaram ‘que todos seguem no
caminho de Arauari, a donde se acham grandes mocambos’.” (GOMES,
2005: 60).
28
A ocupação da Amazônia se baseou no ideário de conquista (surpreendentemente, ainda
atual) fundamentado pela necessidade de enfrentamento da natureza e dos povos
nativos, além de outros povos não originais”. A fundação de Belém, em 1616 foi uma
das estratégias para a exploração da região, que contaria com o trabalho de colonos
portugueses e missionários jesuítas.
“Não foi fácil a conquista da Amazônia, como provam as narrativas das lutas
que os portugueses tiveram de empreender contra tribos indígenas hostis,
notadamente Tupinambá, nas cercanias de Belém, os Aruac, na ilha de Marajó,
e contra holandeses, ingleses, irlandeses e franceses que, ao longo da costa e
até mesmo nas margens do Amazonas, haviam plantado feitorias e algumas
fortificações.” (SALLES, 1971: 35).
A escravidão nesta região se caracteriza por algumas particularidades, a exemplo da
perenidade do “tráfico vermelho”, apesar das proibições oficiais: o indígena deveria ser
de responsabilidade dos missionários, e sua mão de obra aproveitada somente enquanto
“livre”. A predominância do extrativismo em detrimento da agricultura, e a facilidade
com que os indígenas circulavam tanto nas florestas como nos rios (ao contrário dos
recém-chegados africanos, desterritorializados e confrontados com um espaço estranho)
fizeram com que sua presença na empresa de conquista fosse valorizada e
indispensável.
“Isso aconteceu em várias partes do Grão-Pará, principalmente durante a
administração pombalina, com a implantação e, depois, a desestruturação
dos Diretórios dos Índios. Populações indígenas inteiras eram atraídas,
‘resgatadas’, ou por meio dos descimentos acabavam sendo recrutadas para
trabalhos compulsórios por toda essa área colonial. Havia, assim, constante
migração das populações indígenas, transferidas das suas localidades de
origem para as das feitorias, fortificações e outras regiões de produção
extrativa e de agricultura. Este processo foi longo e penoso para as
populações indígenas amazônicas. Houve resistências, lutas, levantes, fugas
e formação de mocambos.” (GOMES, 2005: 59. Destaque do autor).
Com as mesmas justificativas utilizadas em outras colônias portuguesas, a saber, a
fraqueza física e indolência intrínseca dos indígenas, o tráfico de escravos africanos se
29
inicia no século XVII, ainda de forma desordenada, e posteriormente de maneira mais
organizada, por meio de Companhias do Comércio, no século XVIII. Para além do uso
desta mão de obra para o incremento da agricultura, o tráfico em si era fonte de lucro.
Também o valor da própria “peça” (escravos eram fonte, por exemplo, de crédito), era
fator estimulante da implementação do comércio de escravos africanos.
Os primeiros africanos teriam sido trazidos pelos ingleses, na região do Amapá, e
posteriormente pelos portugueses, por meio das Companhias de Comércio
15
. Por volta
de 1670, a produção de cana-de-açúcar ganha espaço. É criada a Companhia do
Comércio do Maranhão, em 1682: com meta de 10.000 negros estabelecida em um
contrato de 20 anos, não conseguiu ir à frente devido a diversos fatores, como a
agricultura incipiente e os preços dos escravos indígenas, muito mais baixos. Em 1755
16
,
é criada a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Em seus 22 anos
de atuação, trouxe para a região aproximadamente 14.000 africanos, vindos de Guiné,
Angola, Costa da Mina, Cachêu, Cabo Verde, e a mesmo Barbados, no Caribe.
“...do grupo banto, vieram representantes das chamadas nações – Angola,
Congo, Benguela, Cabinda, Moçambique, Moxicongo, Maúa ou Macua,
Caçanje etc. Do grupo sudanês entraram Mina, nti-Achânti, Mali ou
Mandinga, Fula, Fulupe ou Fulupo, Bijogó ou Bixagô. Negros de nação Fula,
ou Peulus, de origem e cultura camítica, ligados ao grupo Guiné-Senegalês,
também, tiveram seus representantes no Pará, conforme anúncios de jornais.”
(SALLES, 1971: 83-84).
Alguns vinham por meio de navios, outros vinham da Bahia ou do Rio de Janeiro, por
terra. Em todos os casos, o caminho envolvia passar pelo Maranhão, onde o total de
peças deveria ser dividido igualmente entre as freguesias de São Luis e Belém. Até
1820 totalizavam 38.000 escravos africanos no norte do território brasileiro
17
(SALLES,
15
“Mesmo em outras regiões mais distantes, como Santarém e nas vilas e antigas missões nas áreas do
Tapajós, Solimões e Tocantins, a população escrava negra – ainda que muito diminuta – se faria presente
nas últimas décadas do século XVIII. Fazendeiros e lavradores tentavam desenvolver uma pequena
agricultura e a economia extrativista utilizando ao mesmo tempo trabalhadores indígenas e escravos
africanos.” (GOMES, 2005: 47).
16
Em 1751 havia em toda a capitania do Grão-Pará 24 engenhos reais (GOMES, 2005: 47).
17
Temos que considerar o território do Pasabendo que se tratava de um território mais extenso que
30
1971: 52). O último registro de carregamento de África encontrado por Salles é de
1834, apesar da proibição do tráfico em 1826 (TRECCANNI, 2006).
Os regimes de tráfico eram o estanque (monopólio das companhias de comércio), a
iniciativa particular, o contrabando e o comércio interno (deslocamento de escravos da
Bahia e Maranhão, mas também em menor escala do Rio de Janeiro, por caminhos
terrestres denominados camboieiros).
18
Em 1872 Igarapé-Miri, área de lavoura canavieira, tinha a maior concentração de
escravos depois de Belém. Ressalto esta comarca, hoje um município com 53.920
habitantes (Censo/IBGE, 2000), porque Moju, antes de vir a se tornar um município,
fazia parte desta unidade territorial oficial.
A região do rio Moju aparece com dados sobre presença de engenhos e trabalho
escravo desde o século XVII (SALLES, 1971; GOMES, 2005). Em 1848, de acordo
com o Relatório do Presidente da Província Jerônimo Francisco Coelho apresentado à
Assembléia Legislativa
19
, a freguesia já denominada Moju, contava com 812 escravos (e
os vizinhos: Acará - 928, Igarapé-Miri - 2.562, Abaeté 1268 e Baião - 120).
nos dias atuais: “O Estado Maranhão e Grão Pará foi instituído pela Coroa portuguesa, como unidade
administrativa separada do Brasil e ligada diretamente a Lisboa em 1621. Até meados do século XVIII,
ele englobava toda a Amazônia Portuguesa, Ceará e Piauí. Somente ao iniciar a segunda metade dos
Setecentos as áreas do Maranhão e Grão-Pará seriam separadas em capitanias pela administração
colonial.” (GOMES, 2005: 43).
18
Em 1793, os pretos escravos eram 35,6% (3.051) da população de Belém, sendo os brancos 51,6%
(4.423) e os pretos, índios e mestiços, libertos, eram 12,8% (1.099). Em 1822 eram 5.719 escravos
(inclusos africanos e crioulos), excetuando-se libertos e brancos. Já em 1872, o Pará (composto de 17
comarcas), contava com 23.090 escravos, sendo que Igarapé-Miri, comarca da qual fez parte o município
de Moju, contava com 4.266 escravos. Os dados de 1890 possuem outra classificação étnico-racial
brancos, pretos, caboclos e pardos/mestiços os três últimos, somados, eram 60,79% da população do
Pará (SALLES, 1971: 95, 97, 102, 103). Os dados olhados de maneira progressiva (1872, 1890, 1940,
1950) demonstram como a introdução da categoria pardo”, a partir da abolição e introdução dos censos
nacionais, fez diminuir o número de pretos. Estudos demográficos recentes abordam em profundidade
este tipo de “problema”, ou seja, é necessário estar atento para as formas como o feitos os
recenseamentos, quais são as variáveis de raça e em que contexto são produzidas.
19
Mapa da Província do Pará -1848. Salles, 1971: 131.
31
Em 1856, a população de cor (livre e escrava) em Moju era 7.044. Cem anos depois, em
1950, o dado era de que a população de pretos no município de Moju era de 2.013, e
pardos, 9.648 (IBGE, 1950 apud SALLES, 1971: 136).
Estes números são relevantes para que possamos ter idéia de como o Pará como um
todo, e especialmente a região de Moju, onde se localizam as comunidades quilombolas
de Jambuaçu, contou com uma população expressiva de escravos de origem africana
desde o início da ocupação não indígena da Amazônia, no século XVII.
Não se trata de justificar o objeto pela história, mas de utilizar os dados históricos para
tentar apreender as características de um longo processo de escravidão, do qual a região
amazônica fez parte, guardando suas peculiaridades. Seus reflexos podem ser
compreendidos quando nos debruçamos sobre referências à composição étnica da região
paraense não negros, brancos e indígenas, mas uma gama de nações africanas,
européias e indígenas, com culturas e interesses diversos, bem como posições distintas
na estrutura social patriarcal.
A constituição dos mocambos ou quilombos é um dos fatores característicos do sistema
escravocrata. Longe de serem uma exceção ou formas pontuais de resistência, as fugas
aconteceram paralelamente e de maneira permanente durante todo o período
escravocrata. Anúncios de jornais demonstram quão comuns eram as fugas, de escravos
de qualquer idade e condição física, acontecidas de maneira organizada ou não,
orientadas também pela oportunidade, e ainda, como uma mesma pessoa poderia fugir
diversas vezes durante sua vida.
20
“No dia 17 do corrente desapareceu da padaria cita na Rua do Espírito
Santo, um escravo preto por nome José, com sinais seguintes: idade de 40
anos pouco mais ou menos, o seu tratar é todo prognóstico, intitula-se
liberto. Levou calças de riscado americano e camisa do mesmo mais escuro,
costuma negociar em Assaí, e faz pescarias dizendo ser para o seu senhor.
Quem dele souber e o apresentar na referida padaria terá boas alvíssaras.
20
Os escravos podiam fugir para lugares próximos, sendo registrados 09 quilombos no entorno de
Belém no século XVIII; ou para lugares mais distantes, como Amapá e Guianas Francesa, Inglesa e
Holandesa (Salles, 1971: 100).
32
Protestando-se contra o acoutador ou quem tiver parte em sua fuga.”(O
Publicador Paraense, Belém, ano 1., 1849, apud, SALLES, 1971).
“Do engenho Palheta distrito da Vila de Muanã, fugiram no
de novembro
de 1851 a Manoel Cardoso Amanajás (...), Ignês, cor tapuia, tem falta de
parte do nariz, levou dois filhos gêmeos, pretos; o macho chama-se José e a
fêmea Luzia. Consta que seguiram para o Amazonas.” (O Grão-Pará, ano 1,
n. 30, 1852, apud SALLES, 1971).
Os negros e os índios, embora sujeitos de status diferenciados, tinham em comum o
atributo de serem primitivos, e, portanto passíveis de serem escravizados (ou
civilizados). Os pormenores acerca dos castigos, por exemplo, atestam como de uma
perspectiva da alteridade fundada na dominação total, índios e negros compartilhavam
vivências comuns em relação ao colonizador: “...para os negros das províncias do Sul,
não havia ameaça mais eficaz do que a de serem vendidos ao Pará.” (HANDELMAN,
1931 apud SALLES, 1971).
“A tradição conserva, em muitos lugares, o fantasma do sumidouro, lugar
em que se dava sumiço aos escravos rebeldes ou merecedores de pena
capital: um poço profundo que se acredita geralmente comunicar-se através
de um túnel ao rio ou igarapé mais próximo. (...) O mbolo da justiça era o
pelourinho, para o espetáculo público do castigo.” (SALLES, 1971: 159).
“Os maus tratos que semelhante mulher a uma escrava que não terá mais
de 5 anos sobe aos tormentos do inferno, a ponto que essa criança está
reduzida a um esqueleto enorme. Dias que essa fera está tão enraivecida
contra a sua infeliz escravazinha que nem comer lhe (...).” (Denúncia
enviada ao jornal O Planeta, 1852, apud SALLES, 1971: 161).
Gomes (2005) ressalta que tanto índios como negros tinham consciência do processo
em curso e de seu lugar na estrutura do sistema escravocrata (e de conquista) vigente da
Amazônia
21
. Neste sentido, efetuaram-se alianças entre negros e indígenas para
21
A Cabanagem foi um conflito ocorrido nas primeiras décadas do século XIX em torno da efetivação
da Independência na região – após sua declaração, permaneceram as antigas estruturas, e contra elas, uma
outra elite, revolucionária”, iria compor o movimento (social) cabano. Trata-se de um evento com
grande participação dos negros, porque ao discurso da Independência associava-se o da abolição da
33
implementar fugas e constituir comunidades ilegais em diversas partes da Amazônia.
“Com isso, formaram-se mocambos. Mocambos de índios e depois de
negros e índios. A denominação ‘mocambos de índios’, abundante na
documentação pesquisada, talvez não estivesse sendo anacronicamente
utilizada pela burocracia colonial. Termo africano, usado para designar
comunidades de fugitivos negros e tornado, juntamente com quilombo, de
uso comum pelas autoridades coloniais, era também usado para definir
grupos de índios que fugiam e formavam comunidades no interior da
floresta.” (GOMES, 2005: 63).
No caso de Moju, existem registros históricos específicos sobre mocambos e quilombos.
“Alguns mocambos se formaram nas proximidades da região da lavoura
canavieira, bacias do rio Camim, Moju, Igarapé-Miri e Tocantins. Foram
batidos facilmente alguns, outros nem chegaram a ser incomodados. A
proximidade com o centro da maior concentração de escravos e da capital
paraense, favorecia a pida nucleação dos escravos e o trabalho organizado
da fuga para os mocambos.” (SALLES, 1971: 263).
“No rio Moju, próximo da Vila de São Miguel e Almas, uma outra
expedição punitiva encontrou um mocambo de índios abandonado com
‘casas e muitas roçarias de mandioca’.”. (GOMES, 2005: 60. Referência a
1752).
Existem diversos estudos históricos sobre a questão da organização social dos
quilombos em todo o Brasil (MOURA, 1988; GUSMÃO, 1991; GOMES, 2005).
Destaco como característica central o fato de os mesmos não serem isolados, nem na
ocasião de sua constituição, nem nos dias atuais. Assim também aconteceu no que
concerne aos quilombos do Pará.
“Só nas regiões próximas a Belém entre pequenos e “consideráveis” –,
havia cerca de nove mocambos. Segundo essa informação, todos se
comunicavam entre si.” (GOMES, 2005: 52).
escravidão. “Os escravos estavam sendo politizados. E se manifestavam perigosamente como
ativistas.” (SALLES, 1971: 302).
34
Duas classes emergiram neste processo de fuga: o acoutador ou aquele que
organizava as fugas e também escondia os escravos (podendo ser um aliado dos negros
ou um aproveitador) e o capitão do mato. O primeiro, passível de ser punido por leis
específicas ao acoitamento (SALLES, 1971: 237), o segundo, profissão regulamentada
pelas Assembléias Legislativas (Idem: 246).
Para além das fugas, uma outra instituição propriamente negra que pode ser considerada
tanto como produto de interação entre culturas africanas e européias (SOUZA, 2002),
como forma de resistência e constituição de territórios negros (SILVA, 2001), são as
práticas religiosas categorizadas como “catolicismo negro”. Uma de suas vertentes são
as irmandades de santos. A irmandade do Rosário, por exemplo, foi fundada em Belém
em 1682 (SALLES, 1791: 44). Tratava-se, à época, do único associativismo permitido
aos negros, escravos inclusive (Idem: 195). Esta questão é central para o presente
trabalho. No Jambuaçu, as irmandades de santos o uma instituição presente, sendo
que todas as comunidades possuem santos padroeiros que têm capelas e datas
comemorativas específicas. Os fundadores das irmandades, em geral, são os mesmos
fundadores das vilas, cujos filhos vieram a se tornar lideranças importantes, ativos no
sindicato dos trabalhadores rurais, e hoje pela articulação quilombola.
De uma perspectiva histórica jurídica, os negros tiveram diferentes status frente às leis:
num primeiro momento, na sociedade imperial, vistos como objeto, fonte de riqueza,
tinham suas vidas regulamentadas a partir do ponto de vista econômico (proibição de
exportação, regulação de preços e de distribuição das peças no território). Por outro
lado, eram capazes de responder individualmente por seus crimes, podendo ser
castigados tanto pelas forças da lei públicas, quanto pelo pater famílias.
Posteriormente, a partir da possibilidade de alforrias e de leis abolicionistas como a Lei
do Ventre Livre (1871), até a abolição propriamente dita via Lei Áurea (1888), o negro
passou a vislumbrar o status de liberto, mas sem outros respaldos ligados à
possibilidade de uma vida livre efetiva (“...mais vale ser escravo que viver como vivem
muitos homens livres.”
22
). Por fim, após um período de invisibilidade entre 1888 e 1988,
22
Reflexão do cientista Alfred Russel Wallace, que chegou ao Pará em 1848, sobre a situação social do
escravo (In: SALLES, 1971).
35
a questão do negro, agora ressemantizada pelos atributos “ex-escravo”, “descendente de
escravo” ou “remanescente de quilombos”, passa a ter uma legislação sob a égide de um
Estado moderno democrático.
De todo modo, mesmo antes da governamentalização
23
do Estado brasileiro, a vida dos
negros no Brasil era administrada (por meio de estudos demográficos, inclusive) pelo
colonizador. Isto aconteceu porque, embora sujeitos quase-humanos, os africanos
estavam inseridos em um sistema econômico particular o tráfico de escravos e
articulado a outras economias, como as plantations de cana, cacau e café e mineração.
Assim, era prática ordinária contá-los, cuidar minimamente de sua saúde, enfim,
garantir-lhes a vida enquanto propriedade privada.
Em suma, juridicamente, o termo “quilombo” foi utilizado ainda no sistema
escravocrata pelo governo oficial, como uma forma de definir e institucionalizar a
captura de escravos fugidos que aquilombavam-se, ou seja, formavam grupos sociais
organizados fora do alcance da ordem estabelecida, em que eram classificados como
objeto/mercadoria.
Como veremos adiante, a partir da Constituição de 1988, o termo ganha novo
significado, e os remanescentes de quilombos” tornam-se uma categoria a ser
protegida como “patrimônio” da sociedade nacional. A apropriação do Artigo 68
24
pelos
movimentos sociais reinterpreta os atributos de “remanescência”, ou seja, resquício,
sobrevivência, conferindo ao termo quilombola” um significado histórico dinâmico,
em que é reconhecida a dívida da sociedade brasileira junto aos grupos negros devido
ao período de escravidão.
23
Para o conceito de governamentalização do Estado, ver Michel Foucault, Microfísica do Poder,
1979; para a governamentalização do Estado brasileiro, ver Antônio Carlos de Sousa Lima, Um grande
cerco de paz, 1995.
24
Artigo 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1998: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
36
Após a abolição, a Amazônia passou por diversos processos e períodos de ocupação por
meio de economias baseadas essencialmente em exploração de recursos naturais
25
. Os
grupos de negros, indígenas, caboclos e brancos (e judeus, e japoneses, e árabes), ali
residentes, se inseriram nos processos de formas diversas e assimétricas. No que diz
respeito aos negros, passaram a viver em um modelo de organização de economia
basicamente extrativista, com alguma agricultura, geralmente de mandioca, arroz, cacau
e pimenta, com particularidades micro-regionais. Como os caboclos estudados por Lima
(2006), Castro (2006) e Brondízio (2006), associam a estas atividades campesinas o
trabalho sazonal em fazendas monocultoras e a prestação de serviços os mais variados
26
.
Campesinato negro e estudos de quilombos
As divisões classificatórias operadas pelo governo colonial e posteriormente
republicano se refletiram nos estudos sobre negros e indígenas no século XX: os negros,
como deveriam ser sublimados por meio da mestiçagem, passavam a ser abordados por
meio da categoria “raça”, enquanto que os indígenas, tanto pela ideologia da integração
e assimilação (dos “resgates” ao SPI), quanto pela de preservação (FUNAI)
27
, passaram
25
“Essas regiões estariam sendo alcançadas por frentes de expansão da sociedade nacional, seja pela
primeira vez e nesse caso seriam frentes desbravadoras -; seja por fluxos ou refluxos de uma ou mais
frentes, comumente chamadas de ‘ciclos econômicos’, como o da borracha, o da mineração, o da
indústria madeireira etc.” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972).
26
Embora definido de outra maneira nos dias atuais, o trabalho escravo ainda existe no Panos dias
atuais. Se hoje o conceito se consubstancia pela ideologia da humanidade universal de todos os
indivíduos, por outro lado, se encontra com a conceituação de escravidão do passado: trabalho forçado
(não remunerado ou vinculado a dívidas ao patrão), sem regulamentação seja de horas, condições ou
relações patrão/empregado, em que geralmente as pessoas ficam cativas nas fazendas: “O Pará é o estado
com maior número de libertações quase 6 mil pessoas entre 1995 e dezembro de 2005, ou 37,5% do
total de libertados no período no país.” (Relatório OIT: Trabalho Escravo no Brasil no Século XXI,
2005).
27
O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), ou SPI,
constitui-se em 1910, como o primeiro aparelho estatal de atendimento aos indígenas sua perspectiva
era a de encontrar, civilizar e integrar estas populações. Segundo Lima (1995), “...aparelho de poder
estatizado que tinha por objetivo controlar a relação entre a sociedade abrangente, a Nação, e os
indígenas”. O SPILTN passaria à história em 1918 como Serviço de Proteção ao Índio (SPI), tendo sua
crise e fim em 1967, com posterior instituição da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), no mesmo ano:
37
a ser estudados por meio da categoria “etnia”. Neste bojo, as noções de pureza e mistura
eram fortemente presentes em ambos os campos – jurídico-governamental
28
e intelectual
– como fator a ser considerado na ocasião de classificação de um grupo.
“No caso dos estudos étnicos, os primeiros ensaios de revisão têm início na
década de 1930, quando alguns pesquisadores, inicialmente dedicados aos
estudos de folclore, começaram a se interessar pelos ‘remanescentes
indígenas’, como passaram a ser chamados desde então. Suas abordagens
continuaram, porém, pensando-os não como realidades vivas do presente,
mas como sobras evanescentes de um passado saudoso e sem retorno.”
(ARRUTI, 2006).
A discussão intelectual sobre raça/cor no Brasil remonta ao século XIX e início do
século XX. A Abolição e a Proclamação da República geraram transformações
estruturais na sociedade brasileira, como a mudança de uma economia escravista para
capitalista, de organização monárquica para republicana e o incentivo à imigração como
solução para o problema da mão-de-obra. As teorias vigentes eram as chamadas racistas
ou raciológicas, e seus principais expoentes foram Silvio Romero, Euclides da Cunha e
Nina Rodrigues
29
. Nesta época, a elite pensante do país discutia a questão das raças sob
um enfoque biologizante, e construía teorias que estimulavam a prática da miscigenação
como forma de branqueamento” da população
.
Para Munanga (1999), a ideologia do
branqueamento seria uma forma de evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em
outros países, de um lado e, por outro lado, garantir o comando do país ao segmento
branco, evitando sua “haitinização”.
Com a chegada dos preceitos da modernidade advindos da Europa, começa a se formar
um novo campo intelectual, cujas principais correntes na literatura foram as lideradas
por Machado de Assis, Cruz e Souza e Paula Nei (VELOSO, 1996). A preocupação
comum destes escritores era a de tentar compreender o Brasil à luz da modernidade que
neste momento, um deslocamento dos objetivos do órgão, que passam a ser o de “atender” e
“preservar” (saúde, educação, incentivo à re-população), por meio do instrumento tutelar.
28
Arruti (2006: 60) aponta para o fato de que em alguns casos, indígenas “mestiços” foram
classificados pelo poder administrativo, no século XIX, como indigentes.
29
De acordo com Ortiz (1985), as teorias deste período eram orientadas por três paradigmas: o
positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer.
38
vinha associada, no plano local, ao tradicional (rural/urbano, abolição/mestiçagem,
aristocracia/burguesia etc).
Em 1930, com a fundação da USP, o discurso acerca da realidade nacional passa a ter
uma legitimidade institucional (acadêmica), e seus principais expoentes são Caio Prado
Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Para Ortiz (1985), o lançamento de Casa Grande e
Senzala, em 1933, Gilberto Freyre (que produziu seus escritos fora da instituição
“moderna” da Universidade) viria suprir a nova demanda de uma interpretação do
Brasil. O que Ortiz desconsidera são as implicações da criação do mito da democracia
racial, baseado na dupla mestiçagem, biológica e cultural, entre as três raças originárias.
O mito da democracia racial teve uma penetração muito profunda na sociedade
brasileira ao exaltar a idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimularem desigualdades
e impedindo aos membros das comunidades o brancas de terem consciência dos sutis
mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade (MUNANGA, 1999).
nas décadas de 1960 e 1970, com a introdução das idéias hegelianas e marxistas de
alienação e estrutura de classes, surgem novas teorias para explicar a questão do negro e
da identidade nacional. Uma vertente que surge para abordar o problema é a da
perspectiva das inserções estruturais. Segundo Mendonça (1994), a abordagem clássica
desta vertente seria a de Florestan Fernandes, que discorreu sobre a integração do negro
na sociedade de classes brasileira, apontando como o processo de marginalização do
negro procede de dificuldades de inserção a nível sócio-econômico e de inadaptação
cultural dos segmentos negros à nova realidade (FERNANDES, 1978 apud
MENDONÇA, 1994).
os estudos de quilombos e acerca do campesinato negro no Brasil passaram por
diferentes momentos e com diferentes preocupações. Nas décadas de 1970 e 1980,
historiadores como Clóvis Moura e Décio Freitas estavam preocupados em dar
visibilidade ao objeto quilombo com base em dados históricos sobre comunidades de
fugitivos, especialmente o Quilombo dos Palmares (FREITAS, 1984; MOURA 1988).
Paralelamente, os trabalhos de campo no âmbito dos estudos sobre o campesinato
encontravam realidades que complexificavam as pesquisas: comunidades negras, terras
39
de preto, terras de santo, e outras modalidades de uso da terra, formas de produção,
religião, operadas por comunidades afro-descendentes (RINALDI, 1979; SOARES,
1981; ALMEIDA, 1989). Isto culminou, nas ciências sociais, em estudos sobre
comunidades negras rurais em diversas partes do país, ressaltando a organização social
igualitária e aspectos de resistência, associando aos estudos etnográficos os estudos
históricos sobre quilombos (LEITE, 1991; BANDEIRA, 1988 apud ARRUTI, 2006;
GUSMÃO, 1979 apud ARRUTI, 2006). O conceito de quilombo estava se definindo
nas ciências humanas, constituindo, segundo Arruti (2006), um objeto indefinido e um
espaço analítico amorfo.
30
“Contribui para isso o fato de que praticamente todos os trabalhos iniciais
sobre as ‘comunidades remanescentes de quilombos’ foram realizados no
contexto do seu ‘reconhecimento oficial’ e de afirmação de seus direitos
territoriais, o que nos coloca diante da interessante situação na qual a
‘encomenda’ e o diálogo no campo jurídico não aparecem como um ‘dilema
de adequação, mas como uma marca de origem desse campo de estudos’.”
(ARRUTI, 2006: 65).
Em comum, tais estudos teriam o foco na identidade, e neste sentido, é necessária uma
digressão sobre o conceito de identidade, mais especificamente aquele adjetivado pelo
atributo da etnicidade. Segundo Cardoso de Oliveira (1976), a noção de identidade
possui três dimensões: a social, a individual (ou pessoal), e a cultural. A identidade
pessoal pode ser uma realidade individual que torna os sujeitos únicos, e a consciência
desta individualidade neste caso, ela coloca o sujeito em relação aos outros
indivíduos, aos outros “eus”. Por outro lado, a identidade social se relaciona com as
estruturas sociais que uma sociedade possui, como é o caso das várias posições dentro
da família, nas divisões do trabalho, na religião: o indivíduo passa a ser “composto” por
diferentes atribuições, como pai, filho, patrão, empregado, católico, evangélico, negro,
branco e outros. A identidade pode ser também de uma cultura em relação à outra, entre
nações ou tribos diferentes, assim, pode-se falar também em “identidade cultural”
(Idem). No entanto, esta divisão faz parte tão somente de uma divisão analítica, pois, ao
30
Segundo Arruti (2006), o surgimento da questão da identidade negra na década de 1970, entre
populações eminentemente camponesas, renova o campo dos estudos raciais. Na década de 1980, esta
tradição tem continuidade, com o foco na etnicidade.
40
observar a realidade, é difícil separar as dimensões, cuja característica central seria que
falar em identidade implica falar em relação, do contato entre diferentes.
Brandão (1985), define a identidade como “os nomes sociais dos tipos de pessoas”.
Para este autor, as identidades seriam representações marcadas pelo confronto, não só o
produto da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença.
Cardoso de Oliveira (1976), atenta para o caráter reflexivo e comunicativo das
identidades social e pessoal, uma vez que estas supõem relações sociais e também um
código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento destas relações. No que diz
respeito à identidade étnica, este autor recorre à noção de contraste para definir o
caráter deste tipo específico de identidade social:
“A identidade contrastiva parece se constituir na essência da identidade
étnica, à base da qual ela se define. Implica na afirmação do nós diante dos
outros. Quando uma pessoa ou grupo se afirmam como tais, o fazem como
meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo que defrontam.
É uma identidade que surge por oposição. Ela não surge isoladamente. No
caso da identidade étnica, ela se afirma ‘negando’ a outra identidade,
‘etnocentricamente’ por ele visualizada”. (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1976).
Para Carneiro da Cunha (1986), e esta é a definição que melhor abarca a questão do
presente trabalho, a identidade étnica deve ser entendida fundamentalmente como uma
organização política. A autora também recorre à noção de contraste para caracterizar a
identidade étnica:
“A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de
intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma
nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura
de contraste: este novo princípio que a subentende, o do contraste,
determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar,
tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um
número menor de traços que se tornam diacríticos”. (CARNEIRO DA
CUNHA, 1986).
41
Outra característica da identidade étnica, implicada a partir da primeira premissafalar
em identidade é falar em relação é que ela é uma linguagem, no sentido de permitir a
comunicação. Enquanto forma de organização política, ela existe em um meio mais
amplo e é esse meio mais amplo que fornece os quadros e as categorias desta linguagem
(CARNEIRO DA CUNHA, 1986). Assim, pode-se dizer que relação e comunicação são
pontos de acordo entre os teóricos da etnicidade:
“Este aspecto relacional é fundamental nas teorias interacionistas, mas é
também fortemente afirmado nas abordagens mobilizacionistas em razão da
importância central que elas atribuem à competição e ao conflito étnico: a
etnicidade não se manifesta nas condições de isolamento, é, ao contrário, a
intensificação das interações características do mundo moderno e do universo
urbano que torna salientes as identidades étnicas. Logo não é a diferença
cultural que está na origem da etnicidade, mas a comunicação cultural que
permite estabelecer fronteiras entre os grupos por meio dos símbolos
simultaneamente compreensíveis pelos insiders e pelos outsiders
(SCHIDKROUT, 1974 apud POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998).
Existem controvérsias sobre esta posição: é a natureza simbólica inerente à etnicidade
que lhe confere eficácia política, ou a sua utilização na luta política que lhe confere
dimensão simbólica? (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998:126). Segundo
Poutignat & Streiff-Fenart (1998), estas abordagens seriam pouco conciliáveis porque
as questões formuladas são diferentes:
“...para as teorias mobilizacionistas, a questão é saber porque as pessoas
escolhem traços étnicos para organizar a competição no conflito social,
econômico e político. O que é o principal e objeto de análise, é a realidade
do conflito, sendo a etnicidade apenas uma variável do comportamento
político. Nas abordagens ditas “culturais”, a diferenciação e a identificação
étnicas o colocadas como dados primários, que o o objeto da análise. A
questão é, antes, a de saber como tais processos de diferenciação e de
identificação funcionam do que a de saber com quais finalidades externas
estão mobilizadas.” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998: 127. Grifos
meus).
42
É pertinente, no entanto, assumir que os processos que envolvem etnicidade se
caracterizam por fluxos nas duas direções aspectos simbólicos e instrumentais se
influenciam mutuamente de acordo com o contexto específico, em graus diferentes. A
divergência entre as correntes supracitadas é um problema de recorte e interesses
teóricos, como os próprios autores salientaram, um problema de “objeto”. Portanto, para
o presente trabalho, serão considerados tais fluxos, sendo o foco na instrumentalidade
da etnicidade enquanto recurso político no conflito (Capítulo 2) ou nas diferenciações
étnicas em si (Capítulo 3) oscilante. Considerando a cultura como dinâmica, em
processo, seus símbolos e signos variam no tempo e em contexto, e adquirem
significações novas:
A construção da identidade étnica extrai assim, da chamada tradição,
elementos culturais que, sob a aparência de serem iguais a si mesmos,
ocultam o fato essencial de que, fora do todo em que foram criados, seu
sentido se alterou. Em outras palavras, a etnicidade faz da tradição ideologia,
ao fazer passar o outro por ele mesmo; e faz da tradição um mito, na medida
em que os elementos culturais que se tornaram “outros”, pelo rearranjo e
simplificação a que foram submetidos, precisamente para se tornarem
diacríticos, se encontram por isso mesmo sobrecarregados de sentido. (...)
Polissemia que permite a existência de uma cultura de resistência operando
com um discurso que é propriamente refratado. E isto nos dois sentidos, pois
os mbolos distintivos de grupos, extraídos de uma tradição cultural e que
podem servir para resistência, são freqüentemente abocanhados em um
discurso oficial (...)”. (CARNEIRO DA CUNHA, 1986).
Carneiro da Cunha (1986) aponta para dois problemas residuais da teoria, característica
das explicações funcionais: quais elementos serão escolhidos e porque a etnicidade é o
veículo para tais conteúdos. No primeiro caso, o problema é resolvido com uma
observação de Lévi-Strauss, “(...) os traços culturais selecionados por um grupo ou
fração de sociedade não são arbitrários, embora sejam, no entanto, imprevisíveis
(CARNEIRO DA CUNHA, 1986: 103). O segundo problema soluciona-se através das
próprias características da etnicidade: sua retórica própria, que invoca uma origem e
uma cultura comuns, é utilizada para uma “função” específica, a reivindicação política
através da afirmação da diferença.
43
Por fim, têm-se ainda os conceitos de identidade étnica latente e situacional. No
primeiro caso, por exemplo, como observou Cardoso de Oliveira (1976) na região do
Chaco, em que tribos indígenas diferentes, subgrupos dos Guaná, estavam
estabelecendo alianças de diferentes tipos, o que levou a uma fusão, restando apenas o
grupo étnico Terêna, que passou a reunir os sobreviventes dos Layâna, Kinikináu e os
Terêna propriamente ditos. Os Kinikináu, quando em contato com os pesquisadores,
enfatizam sua condição de Kinikináu, diferentes e melhores que os Terêna, enquanto
que em relação com os Terêna, sem a participação de indivíduos de outras etnias, seu
comportamento verbal era no sentido de evitar qualquer referência com a identidade
Kinikináu. Com relação à identidade étnica situacional, Carneiro da Cunha (1986) o
exemplo dos ex-escravos nagôs que voltaram do Brasil para sua terra de origem e
passaram a usar suas identidades de brasileiros e de iorubás para organizarem redes
comerciais com o interior e se assegurarem no monopólio comercial com a Bahia:
“Neste caso, a identidade assumida de ‘brasileiro’ parece totalmente fictícia,
construída, destinada apenas a garantir os limites de um grupo privilegiado
em seu acesso a recursos econômicos, e, para seguirmos o argumento de
Godelier, apresentando-se à consciência como uma categoria ‘verdadeira’, na
medida em que constituía o princípio organizatório das relações de produção.
(CARNEIRO DA CUNHA, 1986: 106).
Estes exemplos mostram que os grupos podem acionar diferentes identidades em
diferentes situações, de acordo com prioridades sociais, o que mostra como a identidade
étnica não é intrínseca, nem imutável, mas um entre outros aspectos culturais das
relações de alteridade.
Feita a digressão, podemos compreender como diferentes grupos quilombolas escolhem
elementos culturais para formular uma “identidade quilombola”, composta de elementos
externos à comunidade (como textos acadêmicos e jurídicos, presença de militantes
religiosos ou outros que discursam sobre a questão, esferas de debate político em torno
do tema), e internos (como a história social do grupo transmitida pelos mais velhos),
que irão orientar uma parte da conduta política e social do grupo
31
. Digo uma parte,
31
O’Dwyer (1993), por exemplo, identificou, em seu estudo sobre os remanescentes de quilombos na
Amazônia, a metáfora do quilombo”, um forma encontrada pela comunidade em questão de
44
porque esta é uma das identidades coletivas possíveis, que em momentos de conflito,
nos quais o contraste com o outro é mais manifesto, será a identidade a ser mais
visibilizada. Em primeiro lugar, esta escolha, que irá garantir a distinção do grupo,
depende de outros grupos em presença e da sociedade em que se acham inseridos. Os
grupos étnicos, portanto, não seriam definidos a partir de sua cultura, embora a cultura
seja essencial na etnicidade (CARNEIRO DA CUNHA, 1986).
Na atualidade, outro marco teórico para os estudos de quilombo são os estudos sobre as
populações tradicionais. Não há consenso sobre o conceito de populações tradicionais e
de quem são esses grupos na antropologia ou em esferas do Estado que tem como papel
contemplar tais grupos com políticas públicas (ZIGONI, 2007).
Em sua análise sobre os múltiplos territórios sociais do Estado brasileiro, Little (2002)
aponta para a imprecisão e abrangência da categoria de “comunidades tradicionais” (a
qual incorpora uma heterogeneidade de grupos distintos colocados sob uma mesma
classificação): sua análise identifica semelhanças entre quilombolas, ribeirinhos,
indígenas, camponeses e outros. A diversidade sócio-cultural destes grupos encontra um
ponto comum, a saber, além das reivindicações para o reconhecimento de seus direitos
territoriais, tais grupos compartilham da mesma condição de assimetria em relação ao
poder estatal, são marcados pela marginalidade econômica e, muitas vezes, pela
invisibilidade social, o que favorece sua submissão aos projetos e políticas
desenvolvimentistas ou conservacionistas do Estado.
De forma crítica, Barretto Filho (2002) analisa a sócio-gênese do conceito de
“populações tradicionais” a partir do conservacionismo ambiental internacional forjado
pelo ideal de “zoneamento negativo”, o qual impõe usos específicos e restrições na
ocupação do território. Semelhante ao observado por Segato (1999) quanto à
identidades políticas (em contraposição às alteridades históricas), o conceito de
“populações tradicionais”, uma vez incorporado pelo Estado, teria se transformado em
uma categoria de dominação política, expressando o desejo objetivo de exercer controle
compreender a situação de opressão em que se encontravam e se posicionar dentro dos conflitos
territoriais em processo. Neste caso, rememorando “tempos de escravidão”, o grupo sistematizava sua
história e tornava inteligível o conflito da atualidade.
45
e vigilância sobre os grupos residentes em áreas protegidas. Assim, estaria encobrindo
uma diversidade de situações sociais e configurações sócio-culturais reduzidas em uma
única definição genérica, contribuindo para a idealização destes grupos, formando
expectativas de imutabilidade histórica com imagens de estabilidade, equilíbrio e
isolamento. O emprego do conceito resultaria, então, no congelamento destes grupos no
tempo, e seu aprisionamento no espaço, sendo utilizado com objetivo de “... conhecer
para melhor convencer, persuadir, mudar o seu modo de produzir e viver para que
evoluam, subordinar e instrumentalizar seus sistemas de manejo ao interesse prático de
administrar áreas protegidas, fazendo-os aceitar uma agenda exógena” (BARRETTO
FILHO, 2002:15).
Embora a crítica de Barretto Filho (2002) seja pertinente, vale destacar a importância do
significado e usos do conceito de comunidades/populações/povos tradicionais como
instrumental político a ser acionado em disputas por espaços na sociedade abrangente.
Como aponta Little (2002), o conceito de “populações” ou “comunidades” tradicionais
apresenta importantes dimensões empírica e política ao serem apropriados pelos grupos
sociais em contextos de disputas em defesa de direitos territoriais, sociais e ambientais.
Quando proferido sob a forma de “povos tradicionais”, o conceito seria inserido no
interior do debate global sobre o “direito dos povos”.
Outros autores (CASTRO, 2000; LIMA & POZZOBON, 2001; ALMEIDA, 2004)
também destacam que conflitos políticos fazem emergir, em condições sociais e
históricas específicas, processos de territorialização produzidos e conduzidos pelas
próprias comunidades: território articulado pela identidade, transformado em lugar, que
congrega pessoas em torno do objetivo comum.
No caso específico do uso da tradição para conceituação dos grupos quilombolas, tem-
se uma associação do termo com a reminiscência e o isolamento, ligada às perspectivas
historicistas. Esta concepção equívoca esconde a diversidade de maneiras de resistência
operada pelos grupos negros durante e após a abolição, bem como a amplitude da
escravidão, que não se limitava à grande propriedade (OLIVEIRA, 2007): assim, temos,
na história dos grupos negros, tanto aqueles que se estabeleceram em locais distantes
dos centros econômicos do início do século XX, como Alcântara/MA (ALMEIDA,
46
2006a), como aqueles que resistiram aos modelos de exploração e se “isolaram” em
territórios do entorno de pequenos vilarejos rurais (COSTA, 1999), permaneceram em
terras de antigos engenhos (RINALDI, 1979), ou mesmo em territórios urbanos
(ALMEIDA, 1996, 2004; CARVALHO, 2006). Neste sentido, a categoria de
isolamento remete mais a um isolamento social deliberado, como no caso dos grupos
religiosos, ou forçado, como no caso da segregação em massa promovida pela abolição
–, do que propriamente geográfico, em que outras formas de organização social, de
relações de produção (grupos extrativistas, por exemplo) e parentesco (famílias extensas
ou praticamente endogâmicas
32
), constituem o que chamaríamos conceitualmente de
“comunidades tradicionais”.
Tanto nos estudos que abordam conflitos ambientais e fundiários envolvendo
“comunidades tradicionais”, como sobre a identidade dos grupos quilombolas, a questão
da “tradição” emerge como problema, na medida em que esta não é uma categoria
objetiva todas as sociedades têm tradições que reproduzem e transmitem, a exemplo
da tradição judaico-cristã ou as fidelidades nacionais (ANDERSON, 1989;
HOBSBAWN, 1997) –, mas um conceito que tenta captar algumas formas de
organização social ou permanências históricas específicas.
Deste modo, as formas de dominação que encontrei em campo, operadas pela CVRD e
pelas elites políticas locais, poderiam ser consideradas tradicionais do ponto de vista de
uma “tradição política brasileira”. Se, por um lado, estava diante de uma multinacional
“moderna”, os processos de diálogo da mesma com o grupo quilombola do Jambuaçu se
apoiavam em valores tradicionais de mercantilização da terra e dos meios de produção,
efetivados por meio de pressões psicológicas, ameaças e promoção de desarticulação
local, apesar das regulações jurídicas claras acerca de empreendimentos deste tipo e
porte.
Assim, poderíamos especular sobre “novos contornos da patronagem” e
reabilitação de formas de dominação existentes no campesinato, operadas em nível local
por uma empresa multinacional.
32
Em um curto trabalho de campo realizado no norte de Minas Gerais, em Brejo dos Crioulos, com o
objetivo de produzir um ensaio para a Disciplina Organização Social e Parentesco, encontrei entre os
quilombolas um sistema de parentesco constituído por famílias extensas, como o definidas em
antropologia para os casos indígenas. Para mais considerações sobre o grupo ver Costa (1999).
47
Nota sobre o Artigo 68
Uma breve pontuação histórica se faz necessária. Como exposto, a aplicação do Artigo
68 influenciou os estudos de remanescentes de comunidades de quilombos na década de
1990, devido à necessidade de produção de laudos antropológicos para as incipientes
titulações. A participação dos movimentos negros urbanos foi crucial para a introdução
do Artigo na Constituição, embora de forma improvisada, como salienta Arruti (2006:
66). A atuação dos movimentos sociais influenciou, posteriormente, nas progressivas
reinterpretações feitas do Artigo 68 e de sua aplicação prática.
O mesmo aconteceu no Pará: acadêmicos e movimento negro urbano (CEDENPA
33
) se
articularam para interpretar e efetivar o Artigo 68 (TRECCANI, 2006). No final da
década de 1980, a construção da barragem na Cachoeira da Porteira, em Oriximiná,
ocasionou a primeira audiência pública da história do Pará para discutir os impactos de
um grande projeto: este foi o primeiro evento para a discussão da implementação do
Artigo 68, e em 1989 é criada a Associação das Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO).
O Pará foi o primeiro Estado a criar uma norma para regulamentar o Artigo, o Decreto
663, de 20 de fevereiro de 1992, assinado pelo então governador Jader Barbalho: o
órgão responsável pela demarcação e expedição dos títulos seria o Instituto de Terras do
Pará (ITERPA).
Em 1997, é criado o Grupo de Trabalho Quilombos
34
composto por órgãos estaduais e
representantes da sociedade civil (FETAGRI
35
, ARQMO, CEDENPA e CPT), que tinha
o objetivo de “promover estudos e propostas de solução à questão relacionada com a
regulação definitiva das áreas atingidas pelas comunidades remanescentes dos antigos
quilombos” (TRECCANI, 2006: 215). A criação deste GT foi sucedida por estudos
encomendados ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade
33
Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará.
34
Decreto 2.246, 18 de julho de 1997/ Portaria SECTAM n0 329, 11 de agosto de 1997.
35
Federação de Trabalhadores na Agricultura.
48
Federal do Pará para que fosse viabilizado um mapeamento das comunidades de
quilombos do Estado.
“Marin e Castro (1999:75) reconhecem a dimensão política desta pesquisa e
como a mesma influencia na elaboração de estratégias por parte destes
grupos sociais: O projeto Mapeamento de comunidades negras rurais
associa-se igualmente a uma visão da estratégia quando, a partir de uma
noção cartográfica, de localização de grupos nas áreas, apresenta outra
configuração do Estado do Pará, pontilhado por dezenas de comunidades
negras rurais’.” (TRECCANI, 2006: 215).
Em 1997, a ARQMO apresentou ao ITERPA a solicitação de reconhecimento de domínio
em favor das comunidades quilombolas do Rio Trombetas
36
. De acordo com Treccani
(2006: 219), este processo abriu um precedente jurídico fundamental, pois considerava o
Artigo 68 como “auto-aplicável”, e em 20 de novembro de 1997 foi expedido o primeiro
título estadual em favor da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo
Bacabal, Aracuan de Cima, Aracuan do Meio, Aracuan de Baixo, Serrinha, Terra Preta II
e Jarauacá.
Em 2004, foi criada a Malungu, Coordenação Estadual das Comunidades Negras do Pará.
Em campo, fiz contato com alguns de seus membros, que me sugeriram alguns locais
para realizar a pesquisa.
Assim, a apropriação local do Artigo 68 que se traduz pela auto-nomeação geralmente é
fruto de alguma militância específica que traz aos grupos informações sobre o direito e
sobre as bases históricas que o constituiu
37
. No caso do Jambuaçu, a Comissão Pastoral
36
Ver o trabalho pioneiro de Acevedo & Castro (1998): “Negros do Trombetas: guardiões de matas e
rios”.
37
“Então, é difícil encontrarmos uma comunidade que diga ‘eu sou quilombola’. quando auto-
conhecimento, auto-discussão com o movimento negro, quando um trabalho de base aí sim você vai
encontrar. Mas numa comunidade que nunca foi visitada, que seja pouco acessível ou pouco conhecida,
jamais vai dizer que é um quilombo [...]. Eu digo que sou quilombola porque é resultado de um
trabalho do movimento negro, com pesquisas e documentos. Conseguimos documentos de 1792, e eles
explicam para a gente que naquela época existiam quilombos naquelas localidades. Vimos, então, que ali
existia um quilombo, porque eu não acredito que naquela época todos nós fôssemos do fazendeiro,
49
da Terra (CPT) de Ananindeua (PA) efetivamente trouxe as primeiras informações sobre
a titulação fundiária a partir do status de quilombola. Por outro lado, localmente existem
formulações sobre o termo, e sobre a noção de negritude e escravidão.
“Olhe, eu, dos quilombola, a gente vem do tempo dos nêgos que se
tratava, ?! Esse é o apelido que se chamava, go, os escravos, daqui
foram separando as famílias, pra um lado, pra outro, pra um lado, pra outro,
hoje nós se acha na situação de quilombola por sangue: por exemplo a
minha avó, a mãe da avó da minha avó, ela era escrava, ela foi escrava.
Aqui dentro do Jambuaçu teve escravatura em Jaguarari, teve escravatura
em São Manuel, no Aramandeua, do Aramandeua veio aqui pra Santana,
daqui teve num lugar que hoje é no Paulo, no Peixe, aquele lugar é
considerado por Bexiga, porque quando aconteceu que deu uma malária
naquele tempo, porque hoje qualquer coisinha é gripe, naquele tempo eles
consideraram gripe, a gripe entrou, acabou o pessoal de Itaboca, onde tinha
também, tinha escravatura...vinha acabando, se a febre desse em mim agora
eu caia pra com febre, daqui a pouco tava aquela outra, aquela outra,
enquanto a senhora ia aí, e quando a senhora vinha de lá, tinha morrido
um. E aí eles corre pra cá, corre pra acolá, se esconde pra cá, se esconde pra
acolá, escapou alguém. Então, no Bexiga, tinha um velho, de nome
Candonga, era escravo, mas ele tinha sido criado bem, então ficou com uma
branca velha, quando morria um garotozinho, uma criança, a velha botava
muito dinheiro dentro do caixãozinho, uma caixa qualquer, que ele fazia, e
mandava ele enterrar, aí, ficou o nome Bexiga, porque a bexiga que deu lá, a
doença, arrasou.” (Namô, 70 anos, Santa Luzia do Traquateua
Jambuaçu, 2007).
“Carmela: o que o senhor entende do quilombola?
O que eu entendo do quilombola é que a gente ser remanescente de
quilombo é resgatar a cultura passada do quilombo e viver essa cultura, é o
nosso trabalho, que futuro, resgatando o que perdemos de terra,
preservar o igarapé, que ta ficando poluído. Nos remanescentes de
quilombo temos valores na nossa luta, defender a cultura negra.
Carmela: Como você acha que os negros chegaram aqui?
Os negros chegaram porque naquele tempo o negro vinha no navio
alguém era revolucionário, e a minha família era revolucionária, porque eu sou revolucionário, então por
isso eu sou um quilombola.” (Declaração de Ivo Fonseca, 2000 apud ARRUTI, 2005:83).
50
tombeiro, chegava no Brasil e eram vendido, as mulheres eram
vendidas pro seu fulano. Eu fui fazer o estudo do quilombo no Quizumba,
na sede da CPT na Sagrada Família em Belém, nós era umas quantas pessoa
lá, ta tudo gravado.
Carmela: Você tem alguma história que os mais velhos contam disso?
Olha, minha era descendente de escravo (ênfase), meu avo. Eu conheci
minha vó, Lucila, era descendente de escravo mesmo, ela contava que
era fugida, ela e os pais dela, e eu acredito, porque eles nunca se
situaram, quando eles sabiam de alguma coisa, eles se empurravam,
andavam pra outros lugares. Minha morreu com 85 anos, em Tomé
Açu, minha mãe morreu com 63 anos, em 1977.”(Paulo, Santa Maria do
Traquateua, 2007).
Poderia-se pensar, precipitadamente, que estar-se-ia forjando um evento histórico ou
uma identidade, mas uma reflexão sobre a forma como os grupos podem e devem se
apropriar do texto jurídico automaticamente nos livra de tais inferências (ALMEIDA,
2004; SEGATO, 2004). Têm-se, assim, duas dimensões da identidade quilombola:
aquela do direito, regulamentada por leis específicas que são interpretadas e acionadas
pelos grupos locais, e aquela que parte do plano local para dar substância às reflexões
exteriores (acadêmicas ou jurídicas) acerca dos processos sociais das terras de
quilombos (ou das terras de preto, das comunidades negras rurais, enfim).
No caso do Jambuaçu, deve ser acrescentado a este fluxo interpretativo entre culturas,
movimentos sociais e instituições, o fato do tempo de ocupação das terras, sinalizado
tanto pela descoberta de dois sítios arqueológicos pelo Museu Emílio Goeldi, como
pelas entrevistas sobre os fundadores. Estes sinais, embora fundamentais para a
pesquisa científica, contribuem, mas não são exclusivamente determinantes das
identidades. Também a história oral do grupo, articulada pela memória, constitui fonte
fundamental para a pesquisa antropológica.
51
C
apítulo 2:
C
asa de Rita
“A “arte da antropologia” (Gell 1999), penso eu, é a arte de determinar os problemas postos
por cada cultura, não de achar soluções para os problemas postos pela nossa (...).
O confronto deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração dos discursos em
jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.”
Viveiros de Castro, 2002.
A Vale é uma firma irrespeitável. Eles não respeitam as coisas dos outros.”
Seu Namô, 70 anos.
Comunidade Santa Luzia do Traquateua.
O conflito com a CVRD
A tensão entre os quilombolas e a Companhia Vale do Rio Doce remete ao início da
instalação das tubulações, em 2004, do Projeto Bauxita Paragominas: em janeiro de
2007, eram dois minerodutos em funcionamento e um em construção
38
. À época da
instalação, três anos antes, como veremos, foram feitas diversas negociações isoladas e
sem valor jurídico com os grupos ali residentes. Os tubos passam ao lado ou mesmo
atrás de casas e cortando roças dos moradores; quanto às torres da linha de transmissão,
por onde passa a energia necessária para que o minério corra nos tubos, existem locais
em que não distam mais que cinco metros de casas
39
.
Durante a pesquisa, participei do cotidiano das atividades próprias ao conflito, como ir
diariamente para a guarita improvisada na estrada, que se encontrava fechada para os
funcionários da CVRD. Realizei minhas primeiras entrevistas nestes espaços, mas
também nos igarapés e casas de farinha.
38
Além destes três, está prevista a instalação de mais quatro minerodutos todos fazem parte do
Projeto Bauxita Paragominas, que transporta matéria-prima e energia que alimentará a Alunorte, a
refinaria Ação Brasil-China e duas outras refinarias em Barcarena e Paragominas.
39
De acordo com Mélo (2001), a instalação de uma linha de transmissão traz impactos tanto para os
meios físico e biótico, como para o meio antrópico: neste último caso, de acordo com a autora, existem
questões do ruído produzido na transmissão e de possíveis efeitos cancerígenos que atualmente têm sido
levantados pelos meios científicos (MÉLO, 2001: 236).
52
O conflito entre as comunidades quilombolas de Jambuaçu com a CVRD é tanto um
conflito territorial quanto ambiental. Territorial, porque os quilombolas vêem a CVRD
como invasora, causadora de descontinuidades prejudiciais no espaço natural e social
onde se inscreve sua territorialidade. A definição dos limites de entrada e uso do
território por parte do empreendedor sempre foi fonte de debates entre as partes. Uma
das ações no confronto, por exemplo, foi o fechamento total do território para
funcionários da Companhia. O conflito é territorial, ainda, porque articula dois
interesses sobre os recursos naturais de um espaço que é visto pelos quilombolas como
território, e pela CVRD como uma área com recursos minerais para serem explorados,
ou seja, como fonte de riquezas.
Esta diferença de visão quanto ao entendimento deste espaço merece um comentário.
Foi exposto que as populações tradicionais, como todos os outros grupos humanos,
possuem uma territorialidade particular (LITTLE, 2002). Em Jambuaçu, a
territorialidade implica uma fixação de longa duração em um determinado território que
tem sido manipulado socialmente pelo grupo, por meio do trabalho e de outras relações
sociais. O território coloca a questão da identidade ao referir-se à demarcação de um
espaço na diferença com os “outros”. De acordo com Little (2002), a territorialidade
seria o “esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se
identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim
em seu território ou homeland”.
“A renovação da teoria de territorialidade na antropologia tem como
ponto de partida uma abordagem que considera a conduta territorial como
parte integral de todos os grupos humanos (...). O fato de que um
território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo
social implica que qualquer território é um produto histórico de processos
sociais e políticos.” (LITTLE, 2002).
Leite (1991), por exemplo, associa de maneira profícua duas questões discutidas neste
trabalho, a territorialidade e a etnicidade. Para a autora, um território negro, seja em
área rural ou urbana, poderia ser definido como:
53
“Um espaço demarcado por limites, reconhecido por todos que a ele
pertencem pela coletividade que o conforma, um tipo de identidade social,
construído contextualmente e referenciado por uma situação de igualdade na
alteridade. O território seria, portanto, uma das dimensões das relações
interétnicas, uma das referências do processo de identificação coletiva.
Imprescindível e crucial para a própria existência do social. Enquanto tal,
pode ser visto como parte de uma relação, como integrante de um jogo.
Desloca-se, transforma-se, é criado e recriado, desaparece, reaparece. Como
uma das peças do jogo da alteridade, é também principalmente contextual.
No caso dos grupos étnicos, a noção de território parece ser tão ambígua
como a própria condição dos grupos e talvez seja justamente o que acentua
seu valor defensivo.” (LEITE, 1991).
Portanto, uma primeira diferenciação que caracteriza os nossos atores em conflito é o
fato de possuírem territorialidades diferenciadas, ou seja, enquanto os quilombolas
exercem a sua territorialidade de maneira fixa neste território específico, ocupado
mais de cem anos, os empreendedores possuem uma territorialidade ligada aos seus
locais e culturas de origem, e a CVRD, enquanto uma empresa multinacional, não
possui territorialidade, mas sim, explora territórios potenciais para o mercado (ou, quem
sabe, teria uma territorialidade difusa).
Os dois atores principais em conflito possuem, ainda, entendimentos distintos sobre o
que seja a “natureza”: para a comunidade local, a natureza é tão parte do processo de
constituição social do grupo quanto qualquer outra coisa: ela constitui trabalho, lazer e
religião. Para a CVRD, ela é parte de um processo produtivo mercantil.
Assim, este conflito é, também, socioambiental, podendo ser caracterizado, com base na
tipologia de conflitos deste caráter proposta por Little (2001)
40
, como de dois tipos: (1)
os conflitos em torno do controle sobre os recursos naturais; (2) os conflitos em torno
dos impactos ambientais e sociais gerados pela ação humana e natural.
40
Little (2001:108) alerta: “Esta tipologia o deve ser entendida como um esquema rígido, mas como
uma ferramenta heurística que é útil para a análise dos conflitos socioambientais e que deve ser utilizada
com flexibilidade.”
54
No primeiro caso, se baseia nos problemas quanto à implantação de tubulações e de
outros equipamentos, que implicavam em revolver a terra, derrubar árvores e drenar os
rios, ou seja, os quilombolas, embora não quisessem ou pudessem controlar a extração
do minério, exterior ao seu território, estavam determinados a controlar os recursos
naturais pertencentes ao território, cujo sacrifício era necessário para viabilizar o
empreendimento.
“Outra dimensão dos recursos naturais é geográfica, que qualquer recurso
se encontra em um lugar específico. Geralmente, os conflitos relacionados
aos recursos naturais são sobre as terras que contêm tais recursos e, portanto,
entre os grupos humanos que reivindicam essas terras como seu território de
moradia e vivência. Os conflitos sobre terras têm dimensões políticas,
sociais e jurídicas.” (LITTLE, 2001: 109)
Outra questão que diz respeito à tipologia dos conflitos em torno dos recursos naturais
diz respeito ao “conflito institucional”, ou seja, “...quando dois ou mais grupos mantêm
dispositivos legais sobre uma mesma área geográfica, muitas vezes vinculados a
distintas instituições governamentais.” (LITTLE, 2001: 110). Neste sentido, o caso do
Jambuaçu é particularmente interessante. Quando o empreendimento se iniciou
considerando como início os processos legais previstos nas leis ambientais, até a
implantação efetiva de dois dos tubos –, o processo de nominação, reconhecimento e
titulação dos quilombolas era ainda incipiente, e as companhias terceirizadas pela
CVRD viam naquele território uma área livre para uso, apesar dos moradores, que eram
então vistos como posseiros. Após as primeiras titulações, os quilombolas passaram a
negociar de outra perspectiva, agora como detentores do usufruto pleno do território,
com garantias constitucionais e instituições específicas para serem acessadas (SEJU,
FCP, SEPPIR, MPU
41
). Neste ponto, a CVRD contava com seus instrumentos legais de
exploração, e os quilombolas com o instrumento legal de posse do território, além de
seus direitos étnicos, que extrapolam o reconhecimento formal nacional, pois têm
perspectivas também no plano internacional. Em todo caso, a CVRD caricaturou os
instrumentos legais ambientais, tornando deslegitimado ao menos aos olhos dos
41
Respectivamente: Secretaria Executiva de Justiça do Estado do Pará (onde está localizado o Programa
Raízes); Fundação Cultural Palmares; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
Ministérioblico da União.
55
quilombolas, de pesquisadores, ONG e CPT –, como veremos, o seu direito à
exploração na área.
Quanto ao segundo caso, os conflitos em torno dos impactos, os quilombolas assistiram,
no decorrer das instalações, ao assoreamento de igarapés e desaparecimento de peixes
de maior porte, a morte de castanheiras
42
e outras árvores, ao vazamento de caulim
(contaminador do solo e da água), acidentes com moradores, destruição de pontes e
estrada, roubo de frutas pelos trabalhadores das empresas. Indo mais longe, outros
impactos sociais como comprometimento de roças e consequentemente do trabalho e do
ganho produtivo das famílias, o desentendimento entre moradores devido à distribuição
desordenada de quantias em dinheiro, a destruição de um campo de futebol utilizado
coletivamente para o lazer e muitos outros. Assim, o caso do Jambuaçu se insere nos
três subtipos básicos de impactos ambientais negativos elencados por Little (2001):
contaminação no meio ambiente, esgotamento dos recursos naturais e degradação dos
ecossistemas.
Para uma melhor compreensão do conflito, é pertinente, em primeiro lugar, realizar uma
exposição dos atores envolvidos direta e indiretamente na questão. Ressalto que esta
descrição foi baseada em dados de naturezas diversas: no caso dos quilombolas, utilizei
dados advindos da observação sistemática e entrevistas. Não se pode perder de vista que
existe uma oficialidade nas entrevistas realizadas, uma vez que as pessoas estavam
informadas do uso que seria feito de suas falas. Além disto, geralmente os próprios
nativos direcionavam minhas entrevistas para figuras que m o papel legítimo de falar
“em nome” da comunidade.
Quanto à CVRD e outros atores, as informações analisadas pertencem a relatórios
42
A castanheira (Bertholletia excelsa H.&.B), cujo fruto é a Castanha do Pará ou Castanha do Brasil, é
protegida pela Lei no 6.895, de 01 de agosto de 2006 no seu Art. 2o: “A supressão total ou parcial da
castanheira (Bertholletia excelsa H.&.B) só será admitida mediante prévia e expressa autorização do
órgão ambiental competente e do proprietário ou possuidor do imóvel, quando necessária à execução de
obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou de relevante interesse social, bem como em
caso de iminente perigo público ou comum ou outro motivo de interesse público; § 1o Na hipótese da
supressão prevista neste artigo, os responsáveis serão obrigados ao imediato replantio do número de
árvores igual ao triplo das abatidas.”
56
técnicos, artigos ou projetos acadêmicos e textos jornalísticos, sendo estes dados,
também, oficiais. No que diz respeito à Companhia, destaco a necessidade de considerar
linguagem (e texto) de forma ampla: as palavras fazem, mas o contrário também é
verdadeiro: agir é dizer. Deste modo, além de considerar os textos oficiais, também as
ações deste ator no território foram traduzidas por meio das ferramentas antropológicas,
para que fosse possível delas subtrair sentido (e contexto).
O primeiro dos atores, os quilombolas, cujas características acerca da organização social
e modos de vivência foram descritas no primeiro capítulo, tem como particularidade
o fato de terem passado pelo processo de auto-atribuição e titulação de suas terras no
decorrer do conflito. Neste sentido, passaram de uma identidade reconhecida de
“trabalhadores rurais” (ou “posseiros”, por alguns) para “quilombolas” em meio às
relações já iniciadas com a CVRD. Portanto, a principal forma de articulação dos
quilombolas na atualidade é a potencialização de sua identidade étnica. De modo geral,
se organizam politicamente de maneira coletiva, ou seja, existem as lideranças
especializadas – que participam nas arenas e se colocam no lugar de confronto direto –,
e aqueles que contribuem indiretamente no conflito: os que trabalham na roça para
produzir alimentos para aqueles que estão engajados em reuniões, que o gostam da
atividade política propriamente dita, mas que elegem articuladores na família (filhos,
irmãos, netos) para participar, enfim.
“Tenho um terreno que é meu e de meu irmão Jorge, inclusive o pagamento
(indenização) foi feito pro Jorge, ele me representa na área. Eu sempre estou
participando das reuniões porque ele não se entrosa muito com isso, sabe,
ele cuida da parte do serviço, eu não, eu faço a negociação, vou para as
reuniões, qualquer coisa pra nossa área. A minha área fica conflutente a
do Catarino.” (Natalina, São Bernardino, 2007. Parêntese meu).
O processo de resistência, que se associou a um outro, da auto-atribuição e titulação
quilombola, aconteceu de forma articulada com o que poderíamos chamar de militantes
(religiosos e acadêmicos), semelhante ao analisado por Grynszpan (1999: 153):
“Para se compreender a passagem de um senso de ilegitimidade e injustiça,
de revolta moral, a determinadas formas objetivadas de luta, contudo, é
57
preciso levar em conta também a presença, naquele momento, de um outro
elemento externo para além dos grileiros. Eram eles militantes de partidos
de esquerda, que começavam a ser deslocados para o trabalho político no
campo. Foram estes militantes que começaram a organizar os lavradores
fornecendo-lhes, no processo de ruptura com seus vínculos anteriores, um
novo quadro de pertencimento e proteção, desnaturalizando a saída,
apresentando a resistência como alternativa concreta de permanência e
acesso a terra, instaurando-a na ordem dos possíveis.” (GRYNSZPAN,
1999: 153).
Além dos quilombolas, tem-se o ator em relação de oposição, a saber, a Companhia
Vale do Rio Doce. A CVRD explora minérios no Pará desde a década de 1970, quando
passa a ser a maior acionista da Mineração Rio do Norte (MRN), que contava também
com capital estrangeiro, principalmente da canadense Aluminium Limited of Canada
(Alcan).
“Em 1979, a MRN efetuou o seu primeiro embarque de bauxita para a
Alcan, no Canadá. Daquela data em diante, a empresa vem ampliando a sua
capacidade instalada, contando hoje com capacidade de lavra anual superior
a dezesseis milhões de toneladas de bauxita.” (MONTEIRO, 2005: 189).
Desde então, os projetos metalúrgicos na Região Norte passaram a ser coordenados pelo
Governo Federal, sempre com políticas de renúncia fiscal e financiamentos, além da
participação do capital estrangeiro
43
. No Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) a CVRD foi privatizada, passando a ter o capital aberto e incorporar diversas
empresas de outros países, alterando a forma de atuação, do sentido e das funções de
intervenção estatal (MONTEIRO, 2005: 194). Já no Governo Lula (2003-atual), embora
exista um discurso que verse pela exploração dos potenciais endógenos em
conformidade com as questões sociais regionais, concretamente o mesmo reforça
lógicas anteriores de relacionamento entre o poder público e as empresas de mineração,
43
Em 1973, o Governo promoveu a instalação da hidrelétrica de Tucuruí (por meio da Eletronorte), para
suprir de energia a transformação industrial de alumina em alumínio; em 1978, consolidou a Alumínio
Brasileiro S.A. (Albras), em associação com a CVRD e a Nippon Amazon Aluminum Corporation (Naac);
além da criação da Alumina Norte do Brasil S.A. (Alunorte); em 1980, criou o Programa Grande Carajás
(PGC); na década de 1990, a CVRD passou a explorar ouro no município de Parauapebas. (MONTEIRO,
2005).
58
priorizando a ampliação do superávit primário (Idem).
E suma, a CVRD, do ponto de vista macro, é uma multinacional com tecnologias
avançadas, que tem explorado minério na Amazônia nos últimos 30 anos. Do ponto de
vista local, a CVRD é uma empresa que o associa o seu potencial tecnológico com
programas de desenvolvimento local, e, ainda, contrata empresas terceirizadas que
implementam tal tecnologia de maneira equivocada, causando impactos sociais e
ambientais que poderiam ser minimizados com planejamento. De um ponto de vista
crítico, a CVRD, enquanto um grupo de funcionários atuantes no Jambuaçu, exprime
interesses de um modelo de desenvolvimento hegemônico efetivado de forma não-
sustentável, que se utiliza de micro-técnicas advindas da tradição política brasileira
coronelista para alcançar seus objetivos.
Os atores em um conflito podem fazer parte de um contexto estritamente local, outros
podem possuir apoio de redes que não se fazem visíveis a um olhar localizado, mas que
estão presentes e agregando poder. Little (2006) chama a atenção para este fenômeno:
os atores sociais (e também os agentes naturais vivos) podem funcionar em articulação
local, regional, nacional ou global, que define sua eficácia política. Empiricamente, em
determinados casos, podem estar articulados em relações transníveis” (Idem), que são
fonte de poder para eles.
“A análise dessa teia de relações vai muito além de uma contextualização’
para demonstrar como essas conexões transníveis são estabelecidas,
cultivadas e acionadas em momentos diferentes do conflito.” (LITTLE,
2006:10).
O etnógrafo, pode, assim, definir qual nível é mais pertinente para analisar a articulação
dos atores em estudo, como regiões baseadas em biomas, em bacias hidrográficas etc: a
delimitação é dada pela dinâmica do conflito em si (Idem). No caso dos quilombolas do
Jambuaçu, a opção foi privilegiar o nível local, ou seja, da comunidade e suas redes de
articulação no nível do seu território e entorno (sindicato, CPT) e, em alguma medida,
ao nível regional (Universidade Federal do Pará, Governo do Estado do Pará/ Programa
59
Raízes, sede estadual do Ministério Público da União
44
).
Porém seria artificial ignorar o fato de que ser quilombola os insere nas questões acerca
de debates acadêmicos e políticas públicas de âmbito nacional, e o fato de residirem na
Amazônia brasileira faz com que estejam inseridos em um debate político ambiental
nacional e global
45
. Como conseqüência, entidades como o Centre on Housing and
Evictions (COHRE) passam a dar-lhes visibilidade. Por outro lado, o outro principal
ator social neste conflito, a CVRD, es articulada nacional e internacionalmente.
Assim, a complexidade deste conflito está na própria complexidade dos atores.
O principal ator externo que apóia os quilombolas do Jambuaçu é a Comissão Pastoral
da Terra de Guajarina. Desde os anos 80, o grupo atua junto a esta população no sentido
de impedir as grilagens constantes de empresas às suas terras.
“A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi fundada em junho de 1975, em
plena ditadura militar, como resposta à grave situação dos trabalhadores
rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia. Nasceu ligada à Igreja
Católica, mas logo adquiriu caráter ecumênico, tanto no sentido dos
trabalhadores apoiados, quanto na incorporação de agentes de outras igrejas
cristãs, destacadamente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil (IECLB) e Metodista. A Pastoral da Terra está organizada em todo o
território nacional com uma Secretaria Nacional, em Goiânia, e 21 regionais,
cobrindo todo o território nacional. A cada ano, desde 1985, publica um
relatório sobre os conflitos e a violência que atingem os camponeses e
camponesas, intitulado "Conflitos no Campo Brasil".”
(http://www.cptnac.com.br, acesso em janeiro de 2008).
Devido às suas próprias atribuições, ou seja, trabalhar com conflitos fundiários
relacionados aos trabalhadores no campo, a CPT se destaca de uma concepção mais
44
O MPU não foi um órgão com o qual tive contato face a face na figura de algum representante. Foi
considerado porque encomendou um relatório à ONG COHRE em resposta às denuncias dos
quilombolas, e também porque se pronunciou em reportagens jornalísticas reunidas.
45
Todos querem discutir a Amazônia, desde os militares brasileiros, passando por ecologistas,
economistas, até governantes de países do norte (sua importância estratégica em termos de localização,
biodiversidade, seu papel no aquecimento global, a quem ela pertence ou deveria pertencer etc).
60
heterodoxa de família e propriedade da vertente católica dominante. Localmente, na
figura do Padre rgio Tonetto e da Irmã Maria Luiza, possui um discurso baseado na
garantia da propriedade dos quilombolas, e não da propriedade do grande capital.
Consta em entrevista realizada com uma das lideranças, por exemplo, que o referido
Padre teria trocado o vinho do rito de transubstanciação da missa por suco de açaí,
fazendo uma referência à importância dos modos locais de vida. Nas reuniões
articuladas pela CPT que acompanhei, Padre Sérgio iniciava as mesmas tocando
percussão com os quilombolas, e cantando músicas com letras de evocação da situação
do negro no Brasil. Na década de 1980, o padre teve que retornar para a Itália, pois
esteve ameaçado de morte devido aos conflitos fundiários em Moju. Na atualidade, foi
formalmente afastado da Igreja devido às discrepâncias entre sua atuação política e a
ordem da instituição, mas continuou atuando junto ao grupo. Após quase trinta anos de
atuação nesta localidade, veio a falecer no ano de 2008, por motivo de doença.
Quanto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, no passado, também era um aliado das
comunidades de Jambuaçu, no presente, mostrou-se omisso aos problemas e demandas
dos quilombolas. Devido ao enfraquecimento próprio dos sindicatos de modo geral, e da
corrupção de membros da direção atual, deixou de ser representativo dos quilombolas,
enquanto trabalhadores rurais, chegando a atuar como aliado da CVRD.
“Doutora, acontece tudo isso com o povo, não é que a gente o tenha
conhecimento dessas coisas, porque nós vive em um lugar, nós vive em um
Moju desorganizado, aqui não tem pra quem se queixar, quem era pra ser
por nós, que somos trabalhadores rurais, era o nosso sindicato, eles não
nos apóiam. O que acontece: o seu Lipório (presidente do sindicato)
barbado, pegando o dinheiro dessas firmas, e mandando nós assinar.”
(Namô, 70 anos, Santa Luzia do Traquateua, 2007. Parêntese e ênfase
meus).
Outro aliado dos quilombolas é a Universidade, que na figura de alguns acadêmicos de
instituições como a Associação de Universidades da Amazônia (UNAMAZ), a
Universidade Federal do Pará (UFPA) e a Universidade Federal do Amazonas
(UFMA)
46
, têm realizado estudos sobre o território, além de desenvolver projetos de
46
A historiadora Rosa Acevedo Marin, em conjunto com o professor Alfredo Wagner Berno de
61
sensibilização à questão do Artigo 68 para a população. Acompanham e atuam, ainda,
como interlocutores em negociações com a empresa, traduzindo seu papel como
importante recurso político para o grupo. Ressalto que este apoio não é representativo
da instituição acadêmica como um todo, uma vez que em contato com outros
pesquisadores atuantes na área, pude perceber que apoiavam a CVRD, seja por insumos
para pesquisas, seja por convicções científicas diversas.
Por fim, o COHRE (em português, Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos
Forçados), que realizou, a pedido do Ministério Público da União, um relatório sobre a
situação no território impactos sociais e ambientais, e informações sobre o conflito
47
.
De acordo com a fonte oficial, trata-se de uma organização não governamental
internacional de direitos humanos, com sede em Genebra, sem fins lucrativos. Fundada
em 1994, atua pela promoção e pela “proteção do direito à moradia adequada para
todos, em todos os lugares”. Mantém programas regionais nas Américas, África e Ásia-
Pacífico. Os temas abrangem questões relacionadas às mulheres, restituição de
propriedade, despejos forçados, litígio e água. O COHRE possui status consultivo
perante as Nações Unidas, o Conselho da Europa, a Organização dos Estados
Americanos e a Organização para a Unidade Africana (www.cohre.org, acesso em
janeiro de 2008).
The right to housing is one of the most widely violated human rights.
Over one billion people are inadequately housed. The United Nations
estimates that a further 100 million people worldwide are without a place to
live. One third of humanity (more than two billion people) live without
security of tenure, adequate legal safeguards against forced eviction and
without access to clean and affordable drinking water in the home.”
(http://www.cohre.org/index.php, acesso em janeiro de 2008, grifo no original).
Almeida, coordenou a elaboração local do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, cujo produto é
um trabalho cartográfico realizado em parceria com os quilombolas. Foi publicado um fascículo com os
mapas e informações da organização social do Jambuaçu a partir deste projeto. O mapa principal é
utilizado neste trabalho dar idéia de localização das vilas e outros marcos de referência locais (ver
Anexo).
47
A pesquisadora Cíntia Beatriz Muller gentilmente colocou à minha disposição documentos produzidos
sob sua coordenação, no âmbito do COHRE.
62
Em 2004, lançou, em parceria com a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e ACONERUQ (Associação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão), a Campanha Nacional Pela
Regularização dos Territórios de Quilombos, com objetivo de “promover e proteger o
direito à terra e à moradia adequada dos afro-descendentes”. Ao pesquisar a palavra
“quilombo” na página da ONG, é possível encontrar diversos links sobre grupos
quilombolas.
É necessário destacar as implicações que uma ONG internacional gestada nos países do
norte tem neste contexto, ou seja, que desde o princípio se constitui como associada aos
organismos internacionais que visam “ajudar”, “treinar tecnicamente” e “promover o
desenvolvimento” dos países ditos subdesenvolvidos, com contrapartidas definidas de
maneira unilateral, e dentro de um modelo de desenvolvimento específico. Tais
implicações se complexificam quando a atuação de uma ONG com tais características
atua na Amazônia brasileira. No entanto, a atuação do COHRE no território do
Jambuaçu constituiu-se em um expediente útil para os quilombolas, a partir do
momento que legitimou, junto ao MPU, as denúncias dos grupos locais.
Considerações sobre a Natureza: um parêntese
Como foi dito, os atores do referido conflito possuem noções diferenciadas quanto ao
território, percebendo e construindo historicamente o mesmo de, no mínimo, duas
perspectivas diversas. Foi dito, neste mesmo sentido, que a natureza é vista de forma
distinta pelos diversos grupos em relação neste conflito. As concepções de natureza
devem ser, portanto, em um primeiro momento, relativizadas.
Ao utilizar as análises que privilegiam a tipologia de conflitos socioambientias,
produzidas no âmbito de campos de estudos auto-definidos como sociologia política e
antropologia do meio ambiente, é pertinente destacar o impasse quanto à questão da
natureza. Embora tais abordagens sejam profícuas enquanto instrumental para análise
do conflito em si, porque possibilitam acessar de forma sistemática as diversas facetas
da questão, não poderia deixar de problematizar este campo de estudos, em especial
uma de suas vertentes, a ecologia política, devido à reificação das idéias de natural e
63
social na qual os mesmos insistem.
Em sua maioria ecólogos com propostas alternativas ao desenvolvimento imposto pelo
modelo capitalista, tais pesquisadores costuram aos resultados de suas pesquisas um
léxico comum sobre a questão ambiental que não considera debates sobre a natureza
bastante desenvolvidos nas ciências sociais. Assim, suas análises partem da aceitação
naturalizada da ciência ocidental, da partilha natureza/cultura e da percepção do homem
como um duplo natural e social.
O fluxo de questões dos estudos ecológicos para o senso comum faz com que a base
orientadora do confronto das idéias ambientalistas com os padrões de consumo
particulares ao capitalismo engendre noções de esgotamento, catástrofe e outras que
colocam na natureza uma agência articulada em torno de respostas às ações humanas.
No caso do Jambuaçu, esta construção faz do xico ambiental também um recurso em
um conflito que se traduz, se diz e se materializa como ambiental e territorial, embora
empiricamente a questão seja cotidiana e cultural (distribuição de poder em espaço
territorializado), e o somente uma luta organizada ou objetivada em prol da
sustentabilidade ambiental. Assim, toma-se a natureza como pano de fundo ou como
reagente à ação humana. O exercício é quase inversamente simétrico àquele de
considerar as populações amazônicas como meramente respondentes ao ambiente bio-
físico hostil (VIVEIROS DE CASTRO, 2002; ADAMS, MURRIETA & NEVES,
2006).
No âmbito das ciências sociais em diálogo com as ciências biológicas, Ingold (1995)
analisa a concepção paradoxal da humanidade na sociedade ocidental a partir das
relações simultaneamente inclusiva (humanos são animais) e exclusiva (humanos não
são animais, porque têm características muito específicas, como a razão, a capacidade
de aprendizado e outras), e destaca:
“Um traço marcante da tradição ocidental é a tendência a pensar em dicotomias paralelas, de modo que a
oposição entre animalidade e humanidade é posta ao lado das que se
estabelecem entre natureza e cultura, corpo e espírito, emoção e razão,
instinto e arte, e assim por diante. (...) situando a qualidade dos seres
humanos no plano moral da cultura, em oposição ao plano físico da
64
natureza, terminamos por reproduzir toda a essência da concepção de
homem do século XVIII – dilacerado entre as condições de humanidade e as
de animalidade.” (INGOLD, 1995: 45).
Outras duas análises importantes sobre a natureza (e a cultura) são aquelas de Viveiros
de Castro (2002) e Latour (1999): o primeiro, a partir do perspectivismo ameríndio,
demonstrando como, em culturas com outras tradições, o natural e o social podem ser
assumidos de forma fluida por humanos e não-humanos em momentos situacionais de
relações de alteridade; o segundo, a partir do projeto de antropologia simétrica,
apostando, assim como Viveiros de Castro, na multiplicação de naturezas, e não de
sociedades.
Viveiros de Castro (2002), pesquisando ameríndios da Amazônia, destaca estudos que
desmistificam, em primeiro lugar, a noção do homem amazônico frente a uma natureza
hostil que lhes torna ou incapazes para a produção de uma cultura complexa, ou vítimas
da ausência de biodiversidade (especialmente as análises sobre a pobreza dos solos de
terra firme em oposição às várzeas).
“Em outras palavras, boa porção da cobertura vegetal da Amazônia é o
resultado de milênios de manipulação humana. William Balée, o
pesquisador que tem extraído as lições mais importantes destas descobertas,
observa que a ‘natureza’ amazônica é parte e resultado de uma longa história
cultural, e que as economias indígenas tomadas como exemplos de
‘respostas adaptativas’ (Hames & Vickers [org.] 1983) a um ambiente
primevo e transcendente o, na verdade, meta-adaptações à cultura, ou ao
resultado histórico de uma transformação cultural da natureza (Balée 1988,
1989a, b, 1990, 1992, 1994).” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 326).
Problematizando as séries de oposições escondidas por trás do rótulo “natureza e
cultura”, a saber, universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor,
dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e
espírito, animalidade e humanidade, propõe uma nova abordagem dos conceitos, ao que
define “multinaturalismo”, em oposição às cosmologias “multiculturalistas” modernas.
65
“Enquanto estas se apóiam na implicação mútua entre unicidade da natureza
e multiplicidade das culturas – a primeira garantida pela universalidade
objetiva dos corpos e da substancia, a segunda gerada pela particularidade
subjetiva dos espíritos e do significado –, a concepção ameríndia suporia, ao
contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A cultura
ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou o objeto, a
forma do particular.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 349).
A proposta de Latour (1999) é complementar à dos outros autores. Para compreender o
conceito de natureza neste autor é necessário compreender suas definições de política e
ciência: são elas as três atrizes de sua intricada crítica à ecologia política. Uma primeira
distinção do autor seria: ciências, os diferentes saberes constituídos, as disciplinas
científicas enquanto tal; e Ciência, o “projeto científico” moderno, que abarcaria todas
as ciências, bem como sua relação com a política e a natureza (nas palavras do autor, a
politização das ciências pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via política
ordinária, fazendo pesar sobre ela a ameaça de uma natureza indiscutível.” [1999:
26])
48
.
Para o autor, a Ciência teria seu mito de origem, o “mito da caverna”, contado por
Platão em A República. Este mito teria gerado duas rupturas: a primeira, a colocação da
existência da obscuridade e seus pares (a caverna: a política, a subjetividade, a
humanidade, o feito), e a segunda, o momento em que o sábio, detentor da verdade
conseguida fora da caverna (objetividade, leis, a ordem, o fato), retorna à mesma para
salvar os ignorantes confusos que habitam. No primeiro grupo, o mundo social, no
segundo, a Ciência. Ambos guardando entre si a descontinuidade inerente.
A utilidade desta separação seria a Constituição: conceito desenvolvido por Latour
(1999) em que as distinções natureza/cultura, política/ciência não estão dadas, mas
devem ser analisadas enquanto divisão de poder entre humanos e não-humanos em duas
48
Outra distinção seria a de epistemologia, ou seja, o conhecimento do conhecimento (descrição dos
saberes); e epistemologia (política), que não problematizaria a Ciência em sua implicação com a política,
as ciências e sua ligação com as sociedades. Este último tipo de epistemologia trataria de reduzir qualquer
tentativa de colocar no debate as ligações entre ciências, política e sociedade, classificando-as como
relativistas.
66
câmaras: o interior da caverna (habitado por humanos) e o exterior (constituído de não-
humanos). Tal separação, permitida pela epistemologia (política) impediria a
democracia, que reparte os poderes entre humanos (com poder de fala, mas
ignorantes) e objetos (que podem definir o que existe, mas não dizer sobre eles).
A natureza (objetos e não-humanos) estaria ocupando a câmara da Ciência, sendo
ferramenta freqüentemente utilizada para neutralizar a política. Por outro lado, os
ecologistas tomariam a distinção em duas câmaras de maneira natural, ou também
despolitizando a natureza e dando-lhe a legitimidade de ser a verdade. A ecologia
política é tema para este debate porque não estaria mais se apoiando na natureza para
conservá-la. Aqui, outra distinção: a prática (abundante) dos movimentos ecológicos
ecologia militante e a teoria desta prática militante Naturpolitik (LATOUR, 1999:
42)
49
.
Ao considerar a impossibilidade do acesso imediato à natureza, as ciências sociais
fundam outra partilha: ciências humanas versus ciências naturais. Os ecologistas
estariam, pois, a defender uma perspectiva, um entendimento ocidental da natureza. O
argumento de que existem representações da natureza levaria-nos novamente à
caverna, que recairíamos no argumento da existência de uma realidade exterior, uma
natureza tal como ela é, inatingível. A distinção entre questões ontológicas e
epistemológicas possibilitaria o caminhar entre natureza e sociedade, ao mesmo tempo
que operaria a distinção entre as coisas como elas são” e “as representações que os
humanos fazem delas” (Idem, 1999).
Nos mitos dos antropólogos, construídos ao longo da história, os “selvagens” são
considerados primeiro como seres localizados entre a animalidade e a civilidade, depois,
como em harmonia com seus os ecossistemas, para, finalmente, ser “constatado” que o
que eles estavam fazendo era ordenar os seres de maneira ao distinguir abruptamente
as coisas e as pessoas. Nesta etapa, os “primitivos” passaram a ser considerados como
tendo formado culturas complexas, cujas categorias estabeleciam correspondências
49
A ecologia política não saberia conservar a natureza simplesmente porque “...se chamarmos natureza
ao termo que permite recapitular em uma série ordenada a hierarquia dos seres, a ecologia política se
manifesta sempre, na prática, pela destruição da idéia de natureza.” (LATOUR, 1999: 54).
67
entre a ordem da natureza e a ordem social. Mas o que não se tomava em conta era que
não era uma questão de corresponder ou confundir a ordem natural e a ordem social,
mas de não operar a dicotomia natureza/cultura, ordenando os seres em um só coletivo,
insistindo em não ter as duas câmaras ocidentais.
A partir daí torna-se impossível tomar a natureza como pano de fundo das diversas
culturas existentes a serem investigadas. Para Latour (1999), é necessário superar os
dois exotismos simétricos: aquele que faz crer aos ocidentais que eles estão separados
da natureza; e aquele que fazia crer às outras culturas que elas haviam, por longo tempo,
vivido na fusão entre a ordem natural e a ordem social. Retirando a natureza do lugar de
cenografia política, seria possível uma reunião de todos os povos e suas respectivas
instituições, recursos e conceitos (trabalho de acumulação). Por meio de uma
“antropologia experimental”, que deixe clara a posição política e problematize seu
posicionamento de conservar a dicotomia natureza/cultura, seria possível superar o
mononaturalismo e o multiculturalismo como opções articuladas, que estabilizam a
natureza e as culturas. É preciso transformar a categoria natureza em uma categoria
marcada – esta é a razão deste parêntese.
Se para Latour (1999) a ecologia política implica em práticas que enriquecem os
debates sobre quem tem poder de fala acerca da verdade, para outros autores
(ESCOBAR, 1996; LEFF, 2003)
50
ela é abordada como ferramenta teórica,
metodológica e prática, e a definição de seus contornos, objetos e análises é uma
necessidade ligada às diversas disciplinas com as quais dialoga e nas quais se baseia
50
Arturo Escobar (1996) se atém a uma ecologia política pós-estrutural, em que a análise materialista
deve estar associada à análise de formas discursivas o papel da linguagem na construção da realidade
social. Neste sentido, o desenvolvimento da ecologia política pós-estrutural seria uma comunicação entre
significados para descobrir os tipos de conhecimento que podem conduzir para estratégias eco-socialistas.
Enrique Leff (2003) propõe que o campo teórico-prático (não um novo paradigma) da ecologia política
deve ser formulado para um propósito ecológico: a construção de um futuro sustentável. Utiliza-se de
analogias da linguagem econômica para delinear o que chama de economia, distribuição e custos
ecológicos, e parafraseando Marx, consciência de classe, ecológica e de espécie. Admite a partilha
natureza/cultura e que as relações de poder do homem com a natureza são da ordem do simbólico
natureza marcada, significada, geo-grafada (p. 24, p. 32), e que os esforços em torno de tentar “reconciliar
entes não-dialogantes” (natureza/cultura; mente/corpo) se tratam de falhas epistemológicas, paradigmas
monistas que não servem à ecologia política e a uma sustentabilidade fundada numa política da diferença.
68
(história, sociologia das ciências, biologia, direito). A crítica feita por Latour (1999) é
uma carapuça para alguma parte do trabalho de análise feito nesta dissertação, por isso
considerei frutífero desnudar o presente exercício, mesmo que apenas construindo este
“parêntese”. Feita esta ressalva, é possível dar continuidade à análise do conflito em si.
Proliferação do(s) outro(s): território perpassado pelo saber exterior
O fato de a CVRD explorar minérios na área do Jambuaçu resultou na incidência, sobre
a vida dos quilombolas, de instrumentos científicos, documentos oficiais e textos
jornalísticos que falam sobre seu território. Assim, o grupo local passou a se relacionar
com outros tipos de conhecimento diverso daquele produzido localmente, e que
certamente agregam poder para os atores antes e durante a implementação do
empreendimento, e também durante o conflito. Portanto, observam-se as leis de
regulamentação do uso de recursos naturais, sobre a extração de minerais no solo
brasileiro, sobre a mitigação dos impactos naturais e sociais, entre outras. No caso aqui
estudado, têm-se, além dos documentos já previstos em lei, o Relatório da ONG
COHRE, encomendado pelo MPU (já devido a um “desvio” dos procedimentos por
parte da CVRD do script previsto para a implementação do empreendimento). Devido
ao conflito que se estabeleceu, também foram produzidos textos jornalísticos relatando
e interpretando os eventos, bem como descrevendo a população quilombola e sua
opositora, a CVRD.
Paralelamente, o conhecimento técnico ou aquele produzido nas Universidades também
se fez presente: primeiramente, pelos pesquisadores responsáveis pelo EIA-RIMA e por
arqueólogos do Museu Emilio Goeldi que pesquisaram a presea de sítios
arqueológicos na área, desvendados pelas escavações da Companhia; em segundo lugar,
pelo projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (UNAMAZ/UFAM, 2007), que
elegeu o território como campo de pesquisa.
Assim, conhecimentos diversos com suas respectivas retóricas e marcos teóricos foram
sendo produzidos unilateralmente, ou seja, de maneira independente dos moradores do
território, e também destacados entre si, porque fruto de áreas de conhecimento também
diversas. A análise ou descrição de uma parte de tais elaborações pode ajudar na
69
caracterização dos atores em conflito, e, como aponta Little (2006), suas respectivas
“cotas” de poder. Pode contribuir, ainda, para a reflexão de como os atores locais têm
que “digerir” uma gama de informações para as quais não houve um acesso prévio às
condições de possibilidade
51
necessárias para que fosse efetuada uma interpretação
autônoma e crítica.
Quando uma empresa decide explorar recursos naturais em uma área, seja a construção
de uma hidrelétrica, ou, como no caso em questão, a exploração de minérios, é
necessário seguir uma série de procedimentos regulamentados pelas leis ambientais
vigentes
52
: as etapas do licenciamento ambiental
53
. O que mais interessa às comunidades
a serem afetas são o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), o Relatório de Impacto
Ambiental (RIMA) e as audiências públicas.
“O EIA é um documento técnico-científico compostos por: diagnóstico
ambiental dos meios físico, biótico e socioeconômico; análise dos impactos
51
De acordo com Foucault (1979), o discurso seria o domínio de práticas discursivas que possibilitariam
a inteligibilidade (condições de possibilidade). A partir de concepçõesestabelecidas
e internalizadas de
verdadeiro e falso, que partem de alguns domínios do saber que são reconhecidamente legítimos
(discursos, como por exemplo, o científico), o poder poderia ser exercido nas relações sociais de forma
desigual e hierarquizada.
52
Legislação aplicada em âmbito federal: Constituição Federal (Art. 225): estabelece a exigência do
licenciamento para atividades ou empreendimentos potencialmente causadores de degradação ambiental;
Lei 6.938/81: Política Nacional do Meio Ambiente. Condiciona a construção, instalação, ampliação e
funcionamento de estabelecimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ao prévio
licenciamento pelo órgão estadual competente; Decreto 99.274/90: regulamenta a lei 6.938/81, dispondo
sobre critérios e procedimentos para o licenciamento ambiental; Resolução CONAMA 01/86: Dispõe
sobre critérios básicos e diretrizes gerais para os estudos ambientais; Resolução CONAMA 237/97:
Estabelece lista de atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental, procedimentos, prazos
de validade, definições sobre o licenciamento.
53
Etapas do licenciamento ambiental: Licença Prévia (LP): solicitada na fase de planejamento, alteração
ou ampliação do empreendimento, aprova sua viabilidade ambiental, mas não autoriza o início das obras
nesta fase em que ocorre a elaboração do EIA-RIMA e das audiências públicas); Licença de Instalação
(LI): concedida após atendimento a condicionantes da LP, aprova os projetos e autoriza o início das obras
(respostas às condicionantes da LP e elaboração de Projeto sico Ambiental); Licença de Operação
(LO): concedida após a conclusão das obras e instalação de equipamentos conforme exigências da LI,
autoriza o início do funcionamento do empreendimento (respostas às condicionantes da
LI/implementação do PBA). (Fonte:www.maternatura.org.br).
70
ambientais do projeto e de suas alternativas; definição das medidas
mitigadoras dos impactos negativos e elaboração de medidas mitigadoras
dos impactos negativos; e Programas de Acompanhamento e
Monitoramento. O RIMA é o documento público que reflete as informações
e conclusões do EIA e é apresentado de forma objetiva e adequada a
compreensão de toda a população. Nessa etapa o realizadas Audiências
Públicas para que a comunidade interessada e/ou afetada pelo
empreendimento seja consultada.” (www.maternatura.org.br, acesso em
janeiro de 2008).
No território Jambuaçu, o mesmo aconteceu. Quando a CVRD decidiu explorar
minérios na área, um EIA-RIMA foi realizado, no âmbito do Projeto Bauxita
Paragominas (2003)
54
. Este estudo prévio contempla os municípios de Tomé-Açu,
Ipixuna do Pará, Acará, Moju, Abaetetuba e Barcarena. De acordo com tal documento,
o “sistema integrado de produção da bauxita concentrada” inclui as seguintes etapas:
(1) mineração, (2) beneficiamento, (3) transporte por mineroduto; (4) estocagem e (5)
alimentação da refinaria Alunorte. A planta de beneficiamento é instalada no município
de Paragominas; o mineroduto, com extensão de 230 km, parte de Paragominas
cruzando os territórios dos municípios supracitados até Barcarena, onde se localiza a
estação de desaguamento da refinaria, que transforma bauxita em alumina (EIA-RIMA,
2003).
Em termos de populações específicas (ou comunidades tradicionais), o EIA-RIMA
menciona comunidades indígenas a serem afetadas pelo empreendimento. Neste
sentido, as considera como “Unidades de Conservação” (Lei 9.985, de junho de 2000),
por entenderem que “falta de legislação complementar para áreas indígenas” (Idem:
3). Baseia-se, ainda, na resolução do CONAMA (Nº 13 de 06 de dezembro de 1990),
para definir que o empreendimento deve estar distante 11 km de tais comunidades.
Moju é considerada uma Área de Influência Indireta” (AII), ou seja, aquela que
circunscreve a “Área de Influencia Direta” (AID), cujo limite deverá ser estabelecido
em conformidade com as especificidades de cada empreendimento e onde se refletirão
54
Realizado pelas empresas Brandt Meio Ambiente, Indústria, Comércio e Serviços LTDA., com sedes
em Nova Lima (MG), São Paulo (SP) e Belém (PA); Casaverde Horti Empreendimentos LTDA., com
sede em Belém (PA); e Hidro Engenharia Sanitária e Ambiental, com sede em Belém, (PA).
71
os impactos indiretos decorrentes de sua instalação e operação. Pode vir a ser, por
exemplo, uma bacia ou sub-bacia hidrográfica, para os meios sico e biótico devendo
considerar o (s) município (s) em que se insere o empreendimento em se tratando do
meio antrópico (sócio-econômico).
No entanto, a definição de Área Diretamente Afetada (ADA), descrita abaixo, era a
mais condizente com os impactos observados, e deveria ter sido aplicada ao território
quilombola:
“...que será alterada fisicamente para receber as instalações do mineroduto,
incluindo obras de infra-estrutura necessárias, canteiro de obras e áreas de
servidão para instalação e operação do empreendimento (...), sujeitas aos
impactos decorrentes de ões de supressão da vegetação, movimentação de
terra, intervenções em cursos d’água, compactação do solo, dentre outros.
(EIA-RIMA, 2003: 17).
O EIA-RIMA admite que a ADA “... requererá cuidados ao impor restrições quanto ao
uso do solo, podendo alterar o cotidiano das populações envolvidas, bem como suas
relações de trabalho no campo, tanto durante sua instalação quanto durante sua fase
de operação.” (Idem: 17). Foram definidos 460 ha. de ADA em 230 km de mineroduto,
e uma faixa de servidão de 20 m.
A definição intermediária, AID, é coincidente com a ADA, e definida como a faixa de
200m distante do mineroduto. Em resumo, trata-se da ADA acrescida das comunidades
e povoados situados ao longo do mineroduto, tendo como referencia 1 km em relação a
este. O EIA-RIMA admite, ainda, que a presença dos operários das obras também pode
fazer surgir “novas relações humanas que alterem as relações atuais existentes”.
(Idem: 18).
A Parte 4 do documento, que trata da questão do “Meio Antrópico”, detalha os impactos
para as comunidades a serem atingidas nesta parte, as comunidades quilombolas de
Moju (Santa Maria, São Bernardino, Nossa Senhora das Graças, Santa Luzia, Santa
Luzia do Poacê, São Sebastião e Santa Ana de Baixo), constam como comunidades
pertencentes a AID, porque “...se concentram num raio de até 1 km de distância em
72
relação ao eixo do traçado do mineroduto.” (Idem: 186): nos casos das comunidades
em que realizei o campo, Santa Maria e São Bernardino, os minerodutos, e em alguns
casos também a linha de transmissão, passaram nos pátios das casas ou rente às roças.
O trabalho de campo dos pesquisadores que elaboraram este estudo foi feito em 109
domicílios considerando, além das comunidades pertencentes a Moju, as comunidades
pertencentes aos outros 04 municípios (Acará, Ipixuna do Pará, Abaetetuba e Tome-
açu) como AID, que comporiam 14% da amostra de municípios estudados, percentagem
considerada representativa. Mas somente nas comunidades de Moju consideradas no
estudo existem, segundo o CIMI (2007), mais ou menos 250 famílias, e segundo a CPT
(2007), aproximadamente 600 famílias.
Afirma-se que foi feito estudo arqueológico na região do mineroduto (Idem: 187), mas
segundo meus informantes, na ocasião da implantação do mineroduto em São
Bernardino, foi encontrado um sítio, razão pela qual os técnicos do Museu Emilio
Goeldi foram contratados pela CVRD para novo estudo.
55
O EIA-RIMA reconhece uma estrutura fundiária local da seguinte forma:
“Alto índice de concentração fundiária e baixo índice de titulação; com
organizações movidas por interesses imediatos (crédito agrícola) com
caráter de “associativismo de resultado”, sem compromisso com
problemas e propostas coletivas; e baixo nível de interação entre poder
público municipal, representações de classe (sindicatos, associações e
cooperativas), e órgãos ligados ao setor agropecuário (secretaria de
agricultura do município, Sagri, Emater, Embrapa, Ceplac etc.).” (EIA-
RIMA, 2003: 230. Grifos meus).
55
Conversei informalmente com o arqueólogo responsável no referido Museu, Paulo do Canto, em
janeiro de 2007. As peças encontradas estavam sendo analisadas e ainda não havia sido produzido
nenhum relatório ou artigo com acesso para o público. Aa presente data, identifiquei dois artigos do
pesquisador, aos quais infelizmente não consegui ter acesso.
73
As comunidades de Moju consideradas como AID seriam Santa Luzia, Santa Maria,
Nossa Senhora das Graças e São Bernardino
56
. Tais comunidades não são definidas no
documento como grupos negros, populações tradicionais ou quilombolas neste último
caso, porque as titulações ainda não eram um fato à época do estudo. Diferentemente
dos indígenas, que visibilizados pela identidade jurídica estatal protetiva e tutelar,
aparecem em um capítulo especial dedicado à descrição de suas formas de organização
social.
De modo geral as comunidades quilombolas em questão são definidas no documento
segundo o léxico próprio ao conceito de pobreza exterior a elas “ausência de
infraestrutura”, “fossas rudimentares”, agricultura de subsistência”, “populações
desassistidas”, enfim, pertencentes a municípios com os “piores indicadores sociais”
(IDH baixo, taxa de analfabetismo alta, precárias condições de saúde) e econômicos
(reduzida capacidade de arrecadação, pouca capacidade de geração de renda) (Idem:
267).
Além destas características, usa-se uma definição peculiar de atividades de lazer, sendo
as três principais o banho no igarapé, o futebol e a religião (note-se que o instrumento
de coleta de dados, o questionário, era fechado, sendo as definições, portanto, dos
pesquisadores). As outras variáveis de lazer seriam: “lavar roupa”, “cuidar dos filhos”,
“jogo de bilhar”, “apanhar açaí”, “caçar”, “comer e dormir”, “beber cachaça”, “assistir
televisão”, “festas, boates, bares”, “limpar o quintal”, escutar o dio”, “visitar amigos
e parentes” (Idem: 256-257).
Outra análise que considerei deslocada daquelas dos estudos sociológicos, diz respeito
ao item “organização social”:
56
São Bernardino aparece com a presença de apenas 07 domicílios (!) a não ser que tenha havido um
crescimento populacional relâmpago entre os trabalhos de campo dos pesquisadores do EIA-RIMA e o
meu, o dado está equivocado. Somente na praça central da comunidade existem mais de 10 domicílios,
além daqueles afastados deste centro – eu mesma visitei alguns mais, inclusive afastados até meia hora de
navegação em casquinho”, pequena embarcação na qual os moradores se deslocam dentro do território,
mas pertencentes à São Bernardino.
74
“Em relação à participação em organizações sociais e políticas, a população
das comunidades estudadas têm, de acordo com os dados levantados, alto
índice de participação. Porém tais dados ao serem cruzados com a
freqüência de participação, somente 29% freqüentam regularmente as
reuniões. Deve-se considerar, no entanto, que o alto índice de
participação nas organizações não expressa um alto vel de
conscientização política, ou seja, não se trata de uma prática
participativa em fóruns deliberativos ou consultivos. Trata-se, quase
que exclusivamente, de participação em espaços sociais de caráter
religioso. A pesquisa realizada não permitiu a identificação das motivações,
interesses e história organizativa e participativa dos moradores. Apenas
sugere alguns indicadores, tais como: - 26% o participam de nenhuma
organização; - 74% dos informantes declararam participar de algum tipo de
associação, sendo a incidência maior na associação religiosa, com 31%,
seguida da Sindical com 21%; 9% de moradores, 6% social, 3% em
associações esportivas e 1% partidária.” (EIA-RIMA, 2003: 256. Grifos
meus).
O EIA-RIMA é um exemplo material que versa sobre a invisibilidade do negro na
Amazônia conformada pelas ciências sociais. Enquanto a categoria “indígena” é
trabalhada de maneira diferenciada pelos técnicos responsáveis pela parte social do
estudo, as comunidades negras rurais foram definidas simplesmente como pobres.
Não é somente o texto do EIA-RIMA do Projeto Bauxita Paragominas que não “vê” os
quilombolas, ou as populações negras residentes na região. Pacheco (2006) aponta para
o fato de que a PNAD/2003
57
mantinha como nota de rodapé para seus gráficos o
seguinte texto “Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará e Amapá. (...) somente a partir da PNAD 2004/2005 esses brasileiros e brasileiras
passaram a ser contados na PNAD.. A autora ressalta que esta é uma das expressões
do conceito “racismo ambiental”
58
.
57
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
58
Ver Pacheco (2006): “O conceito de Racismo Ambiental nasceu, não por acaso, entre os negros dos
Estados Unidos, no final da década de 1970, ainda em plena ebulição das conquistas dos Direitos Civis. A
partir da movimentação contra um depósito de resíduos tóxicos no condado de Warren, Carolina do
Norte, entre 1978 e 1982, descobriu-se que três quartos desse tipo de aterros, localizados em sua maioria
75
“O fato é que as injustiças sociais e ambientais não têm origens comuns,
como se alimentam mutuamente. É precisamente essa gica que, de um
lado, forja condições de degradação crescente para uns; de outro, propicia
lucro abusivo para outros. É a submissão a um modelo de desenvolvimento
cada vez mais excludente que faz com que as autoridades optem pela
convivência ou, pelo menos, pela omissão, ignorando o desrespeito às leis,
trabalhistas e ambientais, subsidiando ou diminuindo impostos para atrair
empresas, ainda que nocivas ao meio ambiente e aos próprios trabalhadores;
realizando o que poderíamos chamar de verdadeiros leilões de recursos
humanos e naturais.” (PACHECO, 2006: 6).
Pacheco (2006) ressalta que empreendimentos energéticos e monocultores realizam a
“exploração da vulnerabilidade”. Poderíamos acrescentar que , também, uma
exploração da invisibilidade: desconsiderar as populações (ou reificar classificações das
mesmas que nada dizem, como o conceito amplo de pobreza) na PNAD, ou mesmo no
EIA-RIMA de um projeto, é o somente o mesmo movimento de fazer com que estes
grupos inexistam aos olhos do sistema de controle das populações, ou biopoder
59
,
(FOUCAULT, 1979), forma esta de organização das informações que é a garantidora da
vida nas sociedades nacionais, aquelas que, atualmente, têm na noção de cidadania o
seu núcleo retórico (a invisibilidade foi apontada como característica comum às
populações tradicionais em Little, 2002).
Como observou Foucault (1988:2003), o biopoder seria indispensável ao
na região sudeste dos EUA, registravam uma curiosa coincidência: estavam todos localizados em bairros
habitados por negros, embora na região eles somassem apenas cerca de 25% da população.”
59
Ver Foucault (1988:2003), sobre a centralidade da manipulação e governo dos corpos através do poder
disciplinar (indivíduo) e do biopoder (populações) na constituição dos Estados Nacionais. Concretamente
o poder sobre a vida teria se desenvolvido a partir do século XVII em duas formas principais: o corpo-
máquina, ou o poder disciplinar sobre os corpos que assegura seu adestramento, ampliação de suas
aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua
integração em sistemas eficazes e econômicos (escolas, hospitais, exército); o segundo, surgido a partir do
século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica
do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o vel de saúde, a
duração da vida, a longevidade: tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e
controles reguladores: uma bio-política” da população
. O Estado passa, então, a implementar práticas
políticas de observância dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração
(Foucault, 1988:2003).
76
desenvolvimento do capitalismo: o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado,
as instituições (família, escola, polícia, medicina individual e administração de
coletividades) agiriam ao nível dos processos econômicos, das forças que estão em ação
nos mesmos; operariam, também, como fatores de segregação e de hierarquização
social, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia. A articulação do
crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição
diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do biopoder
com suas formas e procedimentos múltiplos (Idem:133).
O Estado, no caso em tela de invisibilização de populações inteiras, parece deixar de
fazer o seu papel de gerir tais populações. Mas analisando com atenção, note-se que se
trata de uma gestão assimétrica de populações diferenciadas negativamente, em que o
poder público permite e incentiva que territórios habitados por comunidades
tradicionais sejam perpassados pelo capital transnacional, passagem que implica em
vivências cotidianas baseadas na exploração do capital humano e ambiental
(MONTEIRO, 2004, 2005).
Para Pacheco (2006), “O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações
que tenham uma intenção racista, mas igualmente através de ações que tenham impacto
racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem.”
60
. A autora elaborou,
ainda, o Mapa dos Conflitos causados por Racismo Ambiental no Brasil (RIBEIRO &
PACHECO, 2007), relatório no qual o conflito da CVRD com os quilombolas do
Jambuaçu está presente nas páginas 108-110.
O EIA-RIMA descreve em um de seus itens as expectativas de alguns dos moradores
que seriam atingidos pelo empreendimento. Elas dizem respeito basicamente ao desejo
de melhoria de vida e geração de empregos, mas de forma negativa: gostariam que isto
acontecesse, mas não crêem que se efetive.
60
Ver Pacheco (2006), alguns exemplos, como o caso da Aracruz Celulose, e o conflito com indígenas e
quilombolas no Espírito Santo, além da contaminação da água pelo uso de Tordon 2,4D; ou o conflito no
Parque da Tijuca, entre praticantes do candomblé e funcionários do IBAMA; entre outros.
77
“Mesmo nas comunidades com experiência em projeto similar, ou naquelas
onde algum nível de conhecimento acerca do projeto, a população não
demonstrou nenhum tipo de expectativa em relação a implantação do
Projeto Bauxita de Paragominas, tampouco nas outras sem essa vivência.”
(EIA-RIMA, 2003: 265).
Os problemas enfrentados pelos atingidos e especificamente pelos quilombolas do
Jambuaçu se inscreve no problema mais amplo dos projetos de mineração na Amazônia.
Monteiro (2004, 2005) analisa historicamente a presença da mineração na Região a
partir dos anos 1940 até os dias atuais, demonstrando dois tipos de ideologia associadas
a estes projetos: o período até a ditadura militar, em que a retórica de que “...a
modernização na região vinculava-se ao estabelecimento de pólos de desenvolvimento
(...) , e outro, até os anos 1990, que conforma a concepção de que “... o fundamental
para o desenvolvimento regional é o estabelecimento de eixos estruturadores de
integração nacional e internacional (Brasil, 1997)” (MONTEIRO, 2005). Ambos, no
entanto, incorrem no mesmo tipo de questão, a saber, o fato de a priorização dos
superávits na balança comercial ter desdobramentos concretos no âmbito local.
“... o fortalecimento de práticas de agentes econômicos que se valem das
vantagens comparativas derivadas do baixo custo, em termos presentes, do
uso dos recursos naturais da região, ou seja, a valorização do minério de
ferro, de bauxita, de cobre, de alunima, de alumínio, de ferro-gusa e não
com o estabelecimento de políticas que sejam capazes de explorar os
“potenciais endógenos” e impulsionar uma produção mais diversificada e
sofisticada”. (MONTEIRO, 2005).
Em outras palavras, o acesso aos recursos naturais a baixo custo não se vincula à
necessidade desta atividade de se integrar ou interagir com arranjos produtivos locais,
que permitissem processos de desenvolvimento socialmente enraizados. A dificuldade
para tanto reside não só no fato da limitada capacidade de encadeamento produtivo, mas
no ...fato de estas atividades serem profundamente dependentes de dinâmicas extra-
regionais que, por sua vez, determinam os padrões tecnológicos (...).” (MONTEIRO,
2005).
78
De modo geral, portanto, as políticas municipal, estadual e federal se direcionam a
vultuosos incentivos fiscais e a não articulação de políticas sociais para a população
local. O deslocamento tempo-espacial inerente ao fato de as decisões relacionadas a tais
empreendimentos se darem extra-regionalmente enfraquece as dinâmicas locais: os
empreendimentos minero-metalurgicos não são capazes de interagir com a diversidade
regional que produz realidades e atores, e com freqüência assume uma postura
conflitante e antagônica com estes (MONTEIRO, 2005). Os pacotes tecnológicos
fechados chegam à região constituindo um fosso de conhecimento entre o saber local e
extra-local, e o processo produtivo particular à mineração faz com que “inexistam
mecanismos significativos de difusão, para outras atividades existentes na região, da
tecnologia incorporada na maquinaria e nos processos de gestão quanto na infra-
estrutura que serve às empresas minero-metalúrgicas (Idem).
A ciência é fundamental para que os empreendimentos minero-metalúrgicos sejam
possíveis, ao que Giddens (1991) define como modernidade possível por meio dos
sistemas de peritos, e Latour (1999) observa como despolitização do que é
essencialmente político. É ela quem legitima, os processos colocados em prática no
âmbito local no que concerne ao Projeto Bauxita Paragominas, garantindo por meio de
seu discurso certezas quanto ao controle e informação dos riscos e benefícios de tal
empreendimento.
Uma das técnicas fundamentais para que o biopoder seja implementado de forma
efetiva é o conhecimento: para Foucault (1975:2004; 1879: 2001), a ciência cria, reforça
e perpetua as idéias de verdadeiro e falso, construindo discursos que são entendidos
como destacados do campo político. Estas fronteiras reconhecidas no senso comum
mascaram a dimensão política da ciência. Em suma, é atribuindo diferentes qualidades
(e fronteiras imaginárias) aos discursos técnico, científico, moral, político que o
biopoder torna-se possível.
Por se auto-definir como autônoma do campo político, a ciência exclui do debate o seu
próprio tempo, como é o caso, por exemplo, de desastres ambientais ocorridos nos anos
1970 no Amapá, fruto de empreendimentos apresentados como baseados em “anos de
pesquisas”, e que depois foram justificados pelo próprio sistema jurídico como não
79
tendo sido agressões efetuadas por negligência ou dolo, “uma vez que não haviam sido
social nem mesmo tecnologicamente estabelecidos parâmetros que as caracterizassem
como tal” (MONTEIRO, 2005)
61
. O significado do texto do EIA-RIMA inscreve-se,
assim, sob a ideologia técnico-científica, conformando um discurso reificador das
noções de modernidade/progresso e tradição/atraso.
Associada a produção técnico-científica, tem-se o âmbito do Direito. As legislações
ambientais foram constituídas progressivamente a partir de “descobertas científicas”
concernentes às questões ambientais enquanto a capacidade de vida em esfera
planetária. Assim, a partir dos anos 1970 e 1980, consolidou-se, no Brasil e no mundo,
grupos de interesses articulados em torno do desejo de institucionalizar a questão
ambiental (LOPES, 2004). Ligados fortemente aos movimentos sociais ambientalistas,
os projetos gravitavam em torno da noção de participação pública para que fosse viável
um processo democrático de gestão do ambiente. É neste contexto que as audiências
públicas, em que a população de modo geral tem acesso ao EIA-RIMA, são instituídas
legalmente como parte do processo de licenciamento ambiental.
Por outro lado, a gestão
pública do meio ambiente é um complexo de ideais diverso do que encontramos em
contextos locais de percepção do território e da natureza.
No caso do Projeto Bauxita Paragominas, não houve consulta aos moradores do
Jambuaçu para a exploração do minério em seu território (RELATÓRIO COHRE,
2006; fontes orais, 2007), apesar de os mesmos serem garantidos pela OIT e por leis
ambientais nas três esferas federativas. As audiências públicas foram realizadas em
outro município (segundo fontes orais, em Barcarena em uma única reunião), e não no
município de Moju, ao qual pertence o território em questão.
Embora juridicamente tais audiências sejam um ato meramente consultivo (BRONZ,
61
Trata-se de um entre diversos exemplos analisados por Monteiro (2005): a Mineradora Icomi no
Amapá, que, à época de sua instalação “... foi apresentada como fruto de importantes pesquisas,
desenvolvidas durante cerca de três anos nos laboratórios da empresa no Amae no Homer Research
Laboratories, da Bethlehem Steel nos Estados Unidos, e reivindicava como marco de um desafio vencido:
‘a instalação de equipamentos de alta tecnologia em plena Amazônia’ (Icomi, 1974). (...) um processo
produtivo que foi apresentado à sociedade e aceito como portador de alta tecnologia e como fruto de anos
de pesquisa, décadas depois, revelou-se como uma “bomba de efeito retardado”.
80
2007), é nelas que se desenrolam as discussões entre o empreendedor e a população
sobre os detalhes do empreendimento, impactos sociais e ambientais, e especificações
de políticas compensatórias
62
. Foram negados aos quilombolas, assim, tanto o direito
formal de opinar sobre o empreendimento quanto a possibilidade de participação na
arena espetacularizada, porém produtora de identidades, porque ritual, que tais
audiências proporcionam. Geralmente, é nestes espaços que os conflitos emergem,
embora regulamentados, compartimentados por leis e condutas no caso do Jambuaçu,
o conflito se inicia em outro momento, no da implementação, quando os moradores se
vêem surpreendidos por obras e pessoas estranhas, portadoras de “documentos” e
discursos dominantes, já agindo no território.
Outro tipo de saber construído sobre o Jambuaçu, no âmbito das ciências sociais é a
Nova Cartografia Social da Amazônia. Também classificado como científico, este
trabalho tem uma legitimidade relativa no senso comum em comparação com o EIA-
RIMA, que incorpora ciências consideradas mais exatas que as sociais (matemáticas e
biológicas). A Cartografia faz uma leitura distinta do estudo encomendado pela
Companhia, na medida em que privilegia as informações locais produzidas pelos
próprios quilombolas acerca de sua economia, relações sociais, referenciais e limites
territoriais.
“Bem aqui é um ramal pra Centro Ouro. É esse esdrobo aqui é onde fica a
vila, né?...Localizado aqui é o campo de futebol que tem bem aqui outro
ramalzinho que entra pelo caminho pra cá...e aqui é a sede. Aqui fica o o
Bernardino.pra identificar bem aqui fica ali a ponte que atravessa. Então
isso aqui é um igarapé que entrou bem aqui... e caminhos que a gente
pega, que eu coloquei o nome. Aí vai para Caratateua aqui onde fica a
localidade da Senhora Apolônia. Tenho aqui meus familiares. Subindo aqui
tem o ramal do Prata. Bem aqui tem um ramalzinho chamado Jurunas. Bem
aqui é onde fui nascido. Nesse aqui chamado Quilombo. Agora esse
caminho aqui corta e vai varar aqui na Vila Nova. Aqui é o ramalzinho
Juquiri, que entra para a comunidade...aqui no mineroduto. Então é mais ou
62
O trabalho de Débora Bronz (2007) demonstra como os processos de licenciamento ambiental,
vinculados a instrumentos legislativos, à Política Nacional de Meio Ambiente e ao Conselho Nacional de
Meio Ambiente (CONAMA), constituem um “script normativo” que reflete aspectos ideológicos,
econômicos e políticos muito particulares.
81
menos aqui a gente conseguiu...ficar umas castanheiras. Aqui tem um
cedro, aqui uma cueira, e aqui tem uma árvore de dendê bem perto do
retiro...”. (Jacinto, Centro Ouro, 2007 apud Nova Cartografia Social dos
Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil: Quilombolas do Jambuaçu-
Moju, 2007. Grifos meus).
Estratégias da CVRD e estratégias dos quilombolas
Como aponta Little (2001), as estratégias escolhidas refletem a ideologia e a quantidade
de poder de cada um dos atores no conflito. No caso do Jambuaçu, ao observarmos as
estratégias, podemos apreender a passagem de conflito latente para manifesto,
classificação corrente nos estudos sobe conflitos socioambientais (GRYNSZPAN, 1999;
LITTLE, 2001; THEODORO, 2005).
O conflito em tela, assim, passou por momentos diferentes, com estratégias utilizadas
pelos atores também diversas. Enquanto nos dois primeiros anos, a postura dos
quilombolas foi de submissão ao projeto, uma vez que eram tratados como posseiros
pela CVRD, e que eram engolidos pelo discurso do progresso e da fatalidade da
chegada do empreendimento autorizado pelo Estado, gradativamente, com os impactos
cada vez maiores, a incorporação de novos atores, especialmente aliados, e com o
deslocamento de categorias identitárias de trabalhador rural/posseiro para quilombola,
vislumbrou-se a possibilidade de um confronto mais incisivo.
“Tomando como ponto de partida privilegiado as instituições legais formais,
como apontam Felstiner, Abel e Sarat (1980-81), os estudos tendem, de um
modo geral, a desconhecer os processos efetivos de emergência e
transformação dos conflitos, isto é, de como de uma sensação ou percepção
de uma experiência como injuriosa, passa-se a uma identificação, a uma
atribuição de responsabilidade, e desta à formulação explicita, formal, de um
pleito. Sobre cada uma destas passagens pesam fatores diversos fazendo
com que possam, ou não, vir a se operar. Na verdade, como procuram os
autores evidenciar, aquilo que chega às instituições oficiais é apenas uma
pequena parcela das várias tensões, dos conflitos que ocorrem na sociedade
de maneira mais ampla.” (GRYNSZPAN, 1999: 147).
82
As etapas poderiam ser dividas, tomando a fala nativa como classificadora, em: (1):
chegada da CVRD, já agindo sobre o território e início dos impactos; (2) pagamento das
primeiras “indenizações”, negociadas individualmente com cada família; (3) articulação
com a CPT, o Programa Raízes e a UNAMAZ para o início do processo de nominação
dos quilombolas; (4) entrega dos títulos e mudança de perspectiva dos quilombolas; (5)
confrontos diretos. Nos três primeiros, o conflito já ocorria cotidianamente, mas em
interações pontuais, ou seja, ele era latente; a partir do título, inicia-se o conflito
manifesto.
Desde a etapa de licenciamento, uma das estratégias da CVRD constituiu-se no controle
da informação, a exemplo da o realização das audiências públicas de maneira ampla,
da manipulação das informações sobre o risco e acerca da legalidade do
empreendimento. Assim, em um primeiro momento, a Companhia agia como se fosse a
única detentora de saberes. Quando chegou ao território, a primeira informação dada era
a de que o empreendimento, por ser autorizado pelo “governo”, era inevitável.
“Carmela: Quando o pessoal da CVRD chegou aqui, o que eles falaram pra
vocês?
José: Quando eles vieram a primeira vez, vieram direto, não falaram nada
pra ninguém, começaram um dia, depois vieram cavaram, enterraram os
tubos primeiro, passou, tornaram a cavar, veio outro embaixo,
começamos a apertar eles lá, o cara veio e falou pra mim que não ia
pagar, veio esse negocio do linhão, vieram com uma conversa
atacando, aperreando, pra dar mil, mil e quinhentos pra cada um,
pelo menos eu lá, ele queria dar mil e quinhentos na área, pra mim, disse
pra ele que tava demais pouco, porque é quase cem metros que eles tiraram,
a largura, acabou a terra, fiquei pensando, resolveram e me deram 12
mil. Me enrascaram. me deram um papel pra eu assinar, mas não me
deram comprovante, aí ele disse: “não, pode ficar se isso, porque a terra é de
vocês, é pra passar o linhão”. Aí eu disse, a terra é minha, mas o
posso fazer nada, e o que a gente vai fazer? Olhe, um terreno, de 4 metros,
na lama, o cara quer 5, 6 mil, e aqui que é nossa terra, que pode se fazer um
serviço, paga um troco desse não tem condição.”(José Correa da Silva, Santa
Maria do Traquateua, 2007).
Mesmo assim, cotidianamente os quilombolas tentavam restringir a ocupação do
83
empreendimento em suas áreas, mais especificamente aquelas próximas às roças. Foi
neste processo de resistência que a CVRD enviou ao território negociadores, para
acertar quantias em dinheiro pelo uso da terra, pedindo aos quilombolas que assinassem
documentos garantindo a servidão à Companhia.
“Olhe, o pessoal da Vale entraram com uma ação aí dizendo tudo bonito que
ia acontecer, isso eu achei tudo negativo o que os primeiros engenheiros
passaram, eu acompanhei porque sou liderança, mas veja, eu não tenho
muito estudo, sou estudante também na nossa escola, pra tentar
acompanhar a conversa deles...mas eles quiseram negociar individual
primeiro Narciso, segundo seu Lucienio, o terceiro o Xerxes, que mora bem
ali, o quarto seu Marinho (...). Porque passa aqui na frente deles. Nós, da
associação não tivemos chance de conversar com eles, porque é só com
essas pessoas, depois vieram a primeira, fazer reuniões, sempre aquela
conversa, que não ia ter problema nenhum, veio a tubulação, e depois o
linhão quer dizer, não era um linhão, eles não gostava que falava, era
uma “pequena linha de transmissão”, pequena, que ia afetar uma base
de 30 metros que ia tirar. Quando foi depois vieram com outra
conversa, que era 80 metros onde fosse capoeirão, aí vou lhe contar, que
essa energia ia beneficiar as comunidades, e depois que eles empinaram
essas torres, mudou a conversa, ela só vai servir mesmo pra função
deles, que por baixo não ia poder fazer tipo nenhum de plantaçãozinha,
e onde eles passaram que ia ampliar um pouco, tiraram a madeira, o dono da
madeira da área ia aproveitar, e nada, levaram a madeira. E agora por final,
prometeram um monte de coisa pras comunidades, não assumiram as
propostas deles com a associação e o conselho geral, né, que abrange todas
as associações na área quilombola, foi a maneira que fizeram esse tipo de
ação, por isso a gente ta aqui segurando essa ponta”. (Paulo, Santa Maria do
Traquateua, 2007. Ênfase minha).
O exerto que se segue, referente ao documento de servidão elaborado pela CVRD e
assinado por alguns quilombolas, demonstra os termos do acordo desejado pela
empresa.
“…concedendo à CVRD a mais plena, rasa, geral, irrevogável e irretratável
quitação do referido pagamento, nada mais ter a receber ou a reclamar a
nenhum título ou pretexto, no presente ou no futuro, em juízo ou fora dele,
renunciando, desde já, a qualquer direito ou obrigações advindas do presente
84
instrumento. PARÁGRAFO ÚNICO: Todo material retirado do local onde
se institui a presente servidão essendo integralmente indenizado (dois mil
reais), inclusive a madeira, que passará a ser de propriedade da CVRD
(...). CLÁUSULA QUINTA: As partes concordam que a servidão ora
constituída será permanente e irremovível (...) devendo, ainda, abster-se
de realizar queimadas, de efetuar plantio de cana e de vegetação de porte
acima de cinco (05) metros de altura na faixa serviente. CLÁUSULA
SEXTA: Os outorgantes (...) neste ato outorgam à CVRD os mais amplos
poderes para agir em seu nome perante terceiros, ente ou órgãos
públicos, cartórios etc. (...), bem como responderão os outorgantes por
perdas e danos relativos a qualquer atraso e/ou óbidce aos trabalhos da
construção da linha de transmissão. PARÁGRAFO ÚNICO: Os outorgantes
se comprometem ainda, caso seja necessário, e após solicitação da CVRD
ou de quem esta indicar, a ceder outras áreas de sua propriedade para
suporte às obras de construção da linha de transmissão,o incluídas na
faixa de servidão (...).” (Instrumento Particular de Constituição de Servidão,
Transação, Quitação e Outras Avenças que entre si fazem a Companhia Vale
do Rio Doce e Marinho Correia da Silva. 2006. Grifos meus)
As negociações conduzidas nestes moldes marcam a profunda insatisfação local, tanto
pelo valor das quantias, quanto pela forma injuriosa de abordagem. Neste momento, o
desgaste na relação entre os quilombolas e a CVRD se torna claro.
“Na negociação do linhão o que mais bateu foi isso, eu fui negociar numa
casa de farinha, primeiro que eu achei que a negociação da Vale foi
clandestina, porque não era pra negociar comigo ou com meu irmão lá
na casa de farinha, nós temos casa, nós somos gente, e foram procurar a
gente lá. Mas deram um preço absurdo, porque se você passou num terreno
de 400 metros, pegou tudinho no meu terreno, 3 tubulaçoes e mais o linhão,
quando chegou disse que ia dar 700 reais, o que é isso? Por que isso, e
as minhas bacabeiras, e a minha madeira, minha ponta de mato, que
vocês vão tirar que é onde eu trabalho? ela falou que a gente ia poder
continuar a fazer roça, plantio, qualquer coisa, mas pra gente não dá, nós
somos dois, eu e o rapaz, eu tenho três filhos e sou solteira, tenho 3 filhos
pra criar, ele não, mas ainda vai ter uma família futuramente, se vocês
destruírem nossa terra, ele vai se casar e vai colocar a família dele onde? E
eu, com 3 filhos pra criar? Daqui a 20 anos meus filhos vão estar
trabalhando tudo onde? Porque destruíram tudo. Ela disse olha, eu não to
aqui pra destruir nada de ninguém, mas a gente vai passar, porque você
85
não quer negociar, porque a gente toda negociou, a gente vai passar
você querendo ou não a gente vai passar, a gente sempre passa. Por que
você ta pedindo a minha opinião? Vem me chamar a atenção e pedir
autorização pra passar se vocês podem passar. certo que o pessoal de
Moju ta tudo liberado, todo mundo negociou, então passa. Agora, te
digo uma coisa, que no meu, você pode até passar, mas vão ter que
passar por cima de mim, porque tu que entrou aqui um mês atrás pra
negociar comigo, tem mais direito do que eu que moro aqui trinta anos
trabalhando nesse terreninho? Isso aqui num vai acontecer, tu pode trazer o
presidente, pode trazer a policia,pode trazer quem você quiser, ai ela me
chamou de ignorante, ai eu sai la de dentro e disse que não vou conversar
com ela não. Depois ela procurou o meu irmão e pagou pra ele, 2.800
reais, e eu digo não sei de nada, não quero mais nem falar com essa mulher,
não quero mais nada, ate porque eu não sou dona de nada. Se eu tivesse
título, como tem agora, ai não, ai seria totalmente diferente, sabe, porque eu
achei assim, tudo foi humilhante, se aproveitaram da oportunidade que a
gente , que num tinha nossos direitos, ou que achava que não tinha, né. o
tinha mesmo, desse jeito. Ai isso tudo interferiu muito nas negociações e
rebaixou demais o nosso trabalho, nossa área.” (Natalina, o Bernardino,
2007. Ênfase minha).
A Companhia enviou três negociadores diferentes, todos de nome “Paulo” para dialogar
com os quilombolas, gerando confusão e deslegitimando os acertos feitos. O uso de
e artifícios de desarticulação da comunidade para convencimento dos locais, como o
pagamento de “indenizações” individuais e em valores diferentes (de 200 reais a 30 mil
reais)
para vizinhos e parentes pode ser considerada uma estratégia típica da CVRD,
que perdurou por todo o processo. O próprio sindicato foi sede para momentos de
negociações destacadas de uma lógica formal.
“Já o sindicato não, deixaram a gente na mão. Na segunda negociação com
Vale eles deixaram a gente sozinhos, se você mora aqui no mato, você não
tem um estudo, você não sabe o que fazer em uma negociação, você
procura um órgão, se nós somos sócios do sindicato, a gente tinha o
direito de procura-los. Procuramos o sindicato, eles disseram que iam
ajudar, que iam chamar uma pessoa pra fazer uma avaliação da área. No dia
seguinte, mandaram um rapaz, ele veio e andou por aí, quando foi pra fazer
a negociação ele disse que tinha perdido o levantamento. Todo mundo veio
revoltado de lá. O pessoal que está no sindicato hoje, que está no comando
se sente ofendido quando a gente fala isso nas reuniões, mas foi o que
86
aconteceu.
Carmela: Como foi o dia do recebimento do dinheiro?
O sindicato chamou a gente pra uma reunião de negociação. Chegamos na
prefeitura, chega o pessoal da Vale, entrava quem ia receber. Aí tava
um rapaz, uma senhora, e o Seu Libório (presidente do sindicato). Nós
estávamos esperando o rapaz do sindicato chegar com o levantamento, pra
poder apresentar pra Vale, dando os valores do que nós íamos receber, por
cada plantação, de roça. Quando eles chegaram, foram pra dentro
conversar. o pessoal do sindicato disse “olha, nós não temos a
avaliação, a gente perdeu, procuramos não encontramos o
levantamento. Então agora o jeito é vocês negociaram com a firma.
Peguem o que eles derem, porque a gente não tem mais como fazer
nada. Eles estão aqui pra pagar.” a moça dali ficou revoltada
(aponta para uma casa). Deram 300 reais pra ela. o seu Raimundo Rosa
entrou, deram 500 reais, ele chorou um bocadinho, aí deram 600 reais pra
ele. Seu Manoel também deram 300, enfim. todo mundo acha que se
eles tivessem feito a negociação aqui dentro do mato mesmo, talvez se
recebesse mais. Mas como procurou o sindicato piorou. Por no meu caso a
gente não procurou o sindicato, a gente recebeu mesmo, eles deram 1200.
Mas que no meu caso, o meu terreno foi todinho, eles danificaram uma
área enorme.” (Natalina, São Bernardino, 2007. Ênfase e parênteses meus).
Outro exemplo, nenhum dos negociadores dizia o sobrenome o mesmo pude verificar
em presença na audiência no Fórum de Moju ocorrida no dia 30 de janeiro, estratégia
auto-explicativa no que concerne a desarticulação: trata-se do “não nome”, ou o nome
simbólico de uma CVRD muito específica. Este fato se agrava pela questão de os
sobrenomes são parte de um sistema local de nomeação em que as relações de aliança
são expressas por eles o “apelido” de um homem geralmente é o sobrenome de seu
padrinho (um “tio”).
Outra questão diz respeito ao sistema local de acertos e acordos, que se verbalmente,
com toda a legitimidade e regulações que em nossa sociedade é realizado por meio do
“papel”, similar ao valor percebido pelos pretos de Bom Jesus (MA) no trabalho de
Soares (1981)
63
: Daí a importância conferida ao manuseio de documentos e,
63
“A passagem da propriedade é representada pela doação do ‘documento das terras’ a Babaçu, líder
máximo dos escravos e antepassado direto dos homens que nos recepcionavam. Os ‘papéis’ se
87
paralelamente, ao ‘saber’ associado aos homens da cidade, receptáculo último dos
segredos da lei.” De forma semelhante, os quilombolas têm consciência que o nosso
sistema de acertos, ou seja, o ordenamento jurídico hegemônico, pode se sobrepor ao
deles.
“A força do direito na conformação dos conflitos fica patente na própria
afirmação da categoria de auto-referência dos lavradores em luta, posseiro.
Ela se impôs a partir das resistências dos lavradores contra as tentativas de
expulsão e tinha a sua origem ligada, em larga medida, à argumentação dos
advogados das associações no sentido de obter da Justiça a garantia de
permanência e, mais do que isso, o reconhecimento, via sentença, do direito
à terra com base no instituto do usucapião.” (GRYNSZPAN, 1999: 150).
“Eu disse, olha patrão, nós somos de uma idade aqui, vocês tem um saber
grande, e eu sou burro, mas eu vou lhe dizer, se vocês derem 3 mil reais
hoje, nós vamos assinar esse papel de vocês, senão nunca mais vocês vem
aqui conversar comigo esse assunto. Ele disse (funcionário da CVRD): nós
temos que ir em Paragominas, se conseguirmos o dinheiro voltamos 5 horas
aqui. Eu disse, esse Paragominas deles, sabe onde é, é ali no Moju. Deram
uma volta, 4 horas eles estavam aqui, com o dinheiro e o papel pra
assinar. (Cutia, comunidade São Bernardino, 2007. Ênfase minha).
“Olhe, eu não tenho muito que me queixar deles, mas eles fizeram meu
filho aqui assinar a assinatura da minha dona. Eu perguntei: dona Temis,
esse negócio não problema? E ela, não, não tem problema o, aí vieram
umas doutoras aí, elas explicaram que esses direito que eles ganharam
em cima de nós, nós ganha duas vezes, porque isso é um crime assinar o
rogo do outro.” (Cutia, comunidade São Bernardino, 2007. Ênfase minha).
Cutia é um senhor de quase 80 anos, hoje em dia pouco afeito a atividades no formato
de sindicatos e associações, mas detentor de um saber profundo sobre política e
sociedade em geral. Filho do fundador Bernardino, Cutia é “dono”
64
de inúmeros
pedaços de terra onde moram seus filhos e sobrinhos, além da área do campo de futebol
extraviaram em algum elo da corrente, por descuido ou ignorância de um de seus guardiões, e terminram
destruídos pelas traças. Esta ignorância custara muito cara ao grupo, era a conclusão.” (SOARES, 1981).
64
Ser dono o significa ser proprietário. Significa que ele foi quem trabalhou na terra durante período
suficiente para ter algum poder sobre ela, inscrito em sentimentos de honra e respeito, não em dominação.
88
e do galpão de festas da comunidade. Em nossas conversas, ele deixou muito clara a
mágoa com os funcionários da CVRD, com os quais inicialmente teria feito alianças,
recebendo-os em casa para jogos de dominó, cedendo parte do terreno para a guarda de
máquinas e instrumentos quando da implementação das tubulações, fazendo acordos
solicitando pequenos reparos na terra que nunca foram cumpridos.
“Não senhor, nós fizemos um compromisso de os senhores irem quarta feira
em casa pra nós conversarmos, hoje eu não quero nem saber, que eu vou
rezar pra um santo aqui (dia 20 de maio, dia de o Bernardino), se vocês
quiserem aguardar, aguardem. Dona, era dois, três carros, eles vieram pra
negociar aqui. E eu, besta que fui, fui fazer o compromisso com eles, mas é
como eu disse pra eles aqui, que nós fomos quase obrigados a negociar por
causa das ações que eles vem (...). Era a Temis, o Seu Paulo e mais outro,
eram três peões da firma. Eles disseram que fizeram orçamento, o que a
comunidade queria pra refazer o campo de futebol (destruído pelas
máquinas), me deram 800 reais. Ah, mas aquilo me agoniou...”(Seu Cutia,
comunidade São Bernardino, 2007. Parênteses meus).
O trecho acima sintetiza o tipo de abordagem realizada pelo empreendedor: propor
negociação no dia do santo padroeiro da comunidade. Mais adiante, veremos como a
Reasa, outra empresa, no passado, teria feito o mesmo, ao agendar um encontro com os
quilombolas no dia sete de setembro. Por meio de uma perversa sabedoria, a CVRD
utilizou-se da cultura do oponente para tentar dominá-lo, ou seja, os contratos fundados
na boa fé, os sentimentos coletivos, as relações de dádiva possíveis.
Paralelamente, eram observados os impactos gerados pela presença dos minerodutos,
sistematizados no Relatório COHRE (2006), pelo Dossiê da CPT (2007) e fontes orais
(2007). A população local, antes forçadamente simpática ao empreendimento
especialmente pela retórica do progresso e do poder dos empresários, “A companhia
Vale do Rio Doce pode tudo, ela é dona do Pará” (Cutia, 2007) –, passou a se opor
fortemente às obras e atores associados a elas.
“Eles tiraram quase três meses de água aqui do igarapé com uma
bomba, não sei quem autorizou. o Paulo, da CVRD, disse que o que
acontecesse aqui era pra eu ligar pra ele, mas nunca consegui falar (...). O
89
Ceará ligou aqui quase chorando, era da equipe deles, nunca recebeu, era
peão, a firma não pagava nem eles. Parece que eu sou dono ou advogado de
alguma coisa. Eles queriam vir aqui com marreta jogar tudo no chão.”
(Cutia, comunidade São Bernardino, 2007. Ênfase minha).
Quanto ao risco, desde o primeiro momento a CVRD dizia que o empreendimento não
seria impeditivo da continuidade da vida normal das famílias. Porém, após as
instalações, o que se observou foi algo distinto. Estavam em risco não as pessoas,
como os recursos naturais que utilizam como fonte de sustento: morte de diversas
castanheiras localizadas próximas às torres, vazamento de caulim e morte de peixes e
espécies vegetais no entorno dos igarapés, o que demonstra que a água se tornou
imprópria para o consumo humano (RELATÓRIO COHRE, 2006).
A proliferação de informações confusas sobre o risco também é uma forma de
dominação. Douglas (1982)
analisa, entre outras questões acerca do risco, seu atributo
enquanto informação. Considerando o risco como uma construção coletiva variante
entre as culturas, e, portanto, não objetiva, a autora demonstra como nas sociedades
ocidentais uma burocratização do risco, ou seja, uma oficialização de sua
informação. Assim, o mencionado processo de governamentalização do Estado e o
aspecto tecnicista da “modernidade” produzem um senso de poluição determinado,
manipulado por meio de dados estatísticos.
“The key word is control: who is to control whom in regard to which aspects
of life? Always some inventions (asbestos, X rays), introduced to make
something safer, turn out to be dangerous. Always dangers that are present
are ignored.” (DOUGLAS, 1982:19).
Neste sentido, a politização da natureza traduzida pelas idéias de poluição faz com que
uma das funções da ciência seja a busca de classificações que dêem conta do perigo, da
possibilidade de contaminação e de ações de prevenção. Se o risco implica em controle,
as fontes oficiais podem comunicar o risco para restringir bitos da população, ou o
comunicar para evitar, por exemplo, o pânico.
“By opening up new realms of knowledge, however, science simultaneously
can increase the gap between what is known and what it is desirable to
90
know.” (DOUGLAS,1982:3)
.
No caso do Jambuaçu, ao comunicação é de outra natureza: não se comunica o risco
para evitar resistências ao empreendimento. De outro lado, da perspectiva dos
quilombolas, o exterior (poluidor em sentido amplo), realizaria a gestão do risco
(também exterior) porque tem conhecimentos para tal. Empiricamente, o jogo se
manifesta de uma maneira assimétrica no que diz respeito a poder sobre a informação
(do empreendimento e de seus riscos associados), e acerca da capacidade de intervenção
dos quilombolas.
“Eles mesmos que quebraram o tubo. Eu acompanhei, vim ver pra ver de
perto, vou lhe dizer, isso aí, foi um sucesso medonho. O primeiro arrebentou
bem aqui, mas eu vou lhe dizer por que isso agora o aparece mais porque
eles fizeram uma enorme de uma cavagem aí, enorme pra aquilo ficar lá, até
parar pra fazer aquela emenda, logo bem na boca do ramal, foi o outro.
Passou aí uns 8 dias um enorme de um buraco, era carro, tudinho os
engenheiro, aqui ficou tudo tomado de carro de noite e de dia trabalhando, aí
encheu a vala ali...” (Paulo, Santa Maria do Traquateua, 2007. Sobre o
vazamento de caulim).
“Ela (linha de transmissão) passa mais pra um pouco do cemitério. Mas
pela lei a qual eu conheço um pouco, essas torres deviam estar distanciadas
de cada família 100 metros, e não existe cem metros das famílias onde ela
localizada, principalmente na casa de um senhor ali, que é agente de saúde,
ela passa praticamente em cima da casa dele. Então, eles dizem assim, o
falar deles é assim: “ah, você pode estar plantando, você pode estar
fazxendo o que você quiser embaixo dessa torre, mas lá, você pode olhar
debaixo dessas torres, tauma placazinha identificando perigo”. E uma das
coisas que eu ainda não entendi foi isso, eu até falei um dia pro doutor
Ricardo, você diz que a pessoa pode plantar, a pesso apode fazer tudo
debaixo na terra por onde vocês passam e é apenas, só fica ali argila. Na
argila o nasce nada, nem produz nada. vocês não dão atenção, dizem
que o agricultor pode plantar, pode fazer o que quiser, mas ao mesmo tempo
eu acredito que não pode.” (Professora Maria do Carmo, liderança, São
Bernardino, 2007. Parêntese meu).
91
Em fevereiro de 2006, os quilombolas mantiveram “detidos” três técnicos
65
e um diretor
da Vale, dois técnicos da SECTAM (Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e
Meio Ambiente do Estado do Pará) e duas técnicas do Programa Raízes, a fim de
pressionar a companhia a negociar. Esta ação desencadeou a assinatura de um Termo de
Compromisso no qual a Companhia se comprometia a recuperar as estradas e pontes do
território, além de construção e manutenção de um posto de saúde, e de construção de
uma Casa Familiar Rural (a ser mantida posteriormente pelo Governo do Estado). Até o
dia da derrubada da torre, somente o posto de saúde estava pronto, mas sem
equipamentos e pessoal para seu funcionamento. A Casa Familiar Rural também foi
construída, mas além de ter problemas em sua fundação que ocasionaram em
alagamento do local na época das chuvas, a cor escolhida pelos quilombolas não foi
respeitada, tendo sido escolhida a cor do partido do então prefeito de Moju.
“Não, diretamente não. Ela (a Casa Familiar Rural) chegou através da luta
das associações, através de uma cobrança feita pelas comunidades
remanescentes de quilombo. Na verdade teve um período que a gente foi
obrigado até a radicalizar com eles, eles ficaram como reféns um dia e uma
noite pra poder assinar o convênio. Então dizer que foi pela companhia, não
foi, foi pelas comunidades.” (Irenio, São Bernardino, 2007. Parêntese meu).
“Então eu acredito que a Vale em parte deixou muito a desejar,
principalmente nós, comunidades diretamente afetadas por ela, olha, eles
não tem o respeito com as pessoas, eles entram na área e o pedem nem
licença, quando sabemos estão fazendo o trabalho deles. Eu acredito
que a Vale deveria sequer dizer que trabalha com a parte social, eles tem um
compromisso social com as comunidades, mas isso nunca aconteceu, eu
nunca vi algo que eles fizessem assim, “não, isso aqui é um trabalho da
Vale, é um trabalho social para as comunidades”, não, eu não acredito
nisso, nunca aconteceu. Eles fizeram apenas uma Casa Familiar Rural e um
Posto, devido a pressão da comunidade, mas que não era objetivo deles
fazer isso. Tem apenas o corpo físico da casa, mas o alojamento das pessoas,
para os alunos, para os professores, não tem espaço pra eles, então como eu
65
Entre os técnicos, professores contratados pela CVRD para dar um curso de “arqueologia” para os
quilombolas. De acordo com os relatos, o curso era ministrado uma vez por mês, totalizando 3 aulas, após
a descoberta dos sítios arqueológicos por pesquisadores do Museu Emilio Goeldi, que realizaram suas
pesquisas com financiamento da CVRD. Após a ação dos quilombolas, os professores não mais
retornaram ao território, e passaram a ser percebidos como “espiões” da Companhia.
92
vou colocar meu filho lá se não tem onde ele ficar? Então por conta disso até
hoje um conflito, fazerem uma danificação nessas torres, derrubaram as
torres, para que eles possam ter mais compromisso com a gente, negociar de
forma diferente.” (Professora Maria do Carmo, liderança, São Bernardino,
2007).
Em dezembro de 2006, a CVRD se retirou das negociações, o que impulsionou mais um
confronto, desta vez impedindo a continuidade dos trabalhos da empresa, exatamente
quando cheguei ao território para iniciar o trabalho de campo. As ões de confronto,
seja a ação de fazer reféns, a derrubada da torre da linha de transmissão e o bloqueio das
estradas, deram projeção na mídia aos quilombolas, algumas das vezes com textos
favoráveis a eles (O Liberal, dezembro de 2006; Diário do Pará, dezembro de 2006;
FolhaOnLine, dezembro de 2006, Agência Carta Maior, janeiro de 2007; outros).
Assim, outro tipo de recurso passou a vigorar para o grupo trazendo mais segurança, o
da visibilidade e da opinião pública, pois eles passaram a “se ver” no exterior, e de
maneira positiva.
“Na chamada sociedade da informação – também conhecida como sociedade
pós-industrial –, a geração e controle de informação e conhecimento servem
como fonte de poder. Neste contexto, os mbolos e imagens cobram uma
importância inusitada e tornam-se parte do domínio público. Todos os atores
sociais envolvidos nos conflitos socioambientais utilizam estes símbolos e
imagens para promover seus próprios interesses, de tal forma que estes
conflitos, além de possuírem uma base material, também contem disputas
semióticas e discursivas. O âmbito semiótico, com suas tentativas de gerar
opinião pública favorável, se transforma num novo campo de luta para os
conflitos socioambentais.” (LITTLE, 2001).
Em meados de janeiro de 2007, após ampla divulgação na dia sobre o conflito, dois
advogados que se apresentaram à CPT como especialistas em causas relacionadas ao
meio ambiente e se ofereceram para defender os quilombolas, ao que cobrariam 30%
sobre o que fosse definido em termos de indenizações. Os quilombolas, confiantes no
papel do “advogado”, aceitaram a representação e chegaram a assinar um documento
que a reconhecia oficialmente. Houve uma reunião em Moju com estes advogados e as
lideranças, e os primeiros percorreram o território conversando com os moradores.
Poucos dias depois, no entanto, descobriu-se que tais advogados possuíam clientes e
93
defendiam causas incompatíveis com a ética tanto da CPT quanto dos quilombolas e os
mesmos foram retirados do caso.
O tratamento do conflito
Diversas teorias acerca de conflitos apontam como questão última para uma análise
completa o tema da resolução do conflito. Little (2001:119) prefere o termo tratamento
do conflito, por considerar mais realista, dado que resoluções definitivas seriam difíceis,
devido à corrente complexidade e profundidade da divergência entre as partes. Irei
adotar esta estratégia, ao menos para o momento, tomando também de sua teoria as
classificações do tratamento que mais atendem ao caso em tela: confrontação,
exposta no tópico anterior, acerca das estratégias; manipulação política, perene e
acionada essencialmente pela CVRD; e, por fim, mediação, que se exemplificada
pelos eventos de negociação pós-confronto (entre as partes opositoras e os mediadores),
seguidos das negociações internas quanto aos recursos recebidos pela empresa.
No dia 30 de janeiro de 2007, foi realizada em Moju uma reunião preparatória para a
audiência que ocorreria no município no mesmo dia, à tarde. Esta reunião aconteceu na
casa da Maria e Benedito, colaboradores da CPT. Estavam presentes a CPT, as
lideranças quilombolas e um dos referidos advogados, que conduziu uma parte da
reunião explicitando seu desejo de defender a causa e também dando informações sobre
os valores jurídicos dos papéis assinados pelas famílias e acerca da necessidade de uma
estratégia, juridicamente montada e apoiada na continuidade da resistência.
A audiência em si foi rápida, a CVRD e os quilombolas trocaram acusações, e a
empresa não apresentou nenhuma proposta para as famílias. Ressalto a questão estética
(estética é ética, como diria Leach, 1954: 73): quatro representantes da CVRD sentados
à mesa ao lado do juiz e do promotor, enquanto dois os quilombolas sentaram-se à mesa
na lateral mais distante do centro, e o restante, na platéia. Os representantes da
Companhia, como fizeram no território, não disseram seus sobrenomes ao se apresentar.
Após a audiência, um fato inusitado, que causou revolta aos quilombolas: os
funcionários da Companhia foram embora em um carro da Prefeitura de Moju. No
retorno para casa, falava-se neste episódio, nas ões do conflito, e também de
94
esperanças. Dias depois, os advogados foram dispensados.
Após 50 dias de paralisação das obras, a CNBB
66
interveio para que se reunissem em
Belém a CPT, quilombolas, a professora Rosa Acevedo e um representante do Governo
do Estado do Pará, Valdir Ganzer
67
, para reabrir as negociações. As negociações
duraram três dias. Esta é uma lacuna em minha pesquisa: devido a minha permanência
no território, e à dificuldade de comunicação (não telefones, e em alguns momentos,
nem mesmo luz), não cheguei a Belém a tempo de participar de tal reunião, iniciada em
5 de fevereiro de 2007. Tentei minimizar este “prejuízo” realizando algumas entrevistas
com as lideranças presentes nesta reunião com foco nos acontecimentos da mesma.
“A proposta nossa não era de 2 anos, era de 20 anos. Por incrível que pareça
ficou em 2 anos, eram 20 anos, 2 salários mínimos. A proposta da Vale 150
mil reais para 20 famílias. Eles queriam parcelar esses 150 mil, e somente
para 20 famílias. Então nós tivemos que ir pra porrada mesmo, nós saímos
de casa para voltar no mesmo dia, e voltamos depois de 3 dias de
negociações, tinha momentos que eles saíam da reunião aperreados, tinha
momentos que era nós que saíamos, e o certo é que a Vale do Rio Doce teve
que ceder, do mesmo jeito que nós também tivemos que ceder.” (Manoel,
São Manoel, liderança, 2007).
O produto desta reunião foi a assinatura de novo Termo de Compromisso, versando
sobre a execução dos termos firmados anteriormente e o pagamento de 350 mil reais de
multa, também prevista no primeiro Termo, além de dois salários mínimos mensais pelo
período de dois anos para as 58 famílias consideradas diretamente atingidas. Foi
acordada, ainda, a formação de uma comissão composta por quilombolas e
representantes da CVRD para levantamento dos danos causados ao meio ambiente
tendo em vista sua recuperação e/ou mitigação; e o custeio de um estudo ao longo de
seis meses, por parte de uma instituição competente, para mapear as potencialidades
produtivas do território visando elaboração de projetos de geração de trabalho e renda.
66
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
67
Poderia ter sido discutido o papel do Estado como ator. No entanto, a Governadora do PT Ana Julia
Carepa havia tomado posse há um mês, e o Governo estava sendo constituído. A Governadora se limitou
a dizer que o haveria intervenção policial no conflito para evitar “um novo Carajás”, e escalou o
Secretário de Transportes, Valdir Ganzer, para as reuniões de negociação.
95
A última reunião de que participei foi a de definição do que fazer com o dinheiro das
indenizações. Esta reunião pode ser considerada como um dos “eventos-síntese” do
processo sociológico do conflito: fruto dos eventos de mediação externos, será
considerada como ponto de encerramento do trabalho de campo. Estavam presentes as
lideranças quilombolas e a CPT, e durante as discussões, claramente estes dois atores se
tornaram pares de oposição: travou-se uma pequena batalha em torno das decisões
práticas, que expunham os marcos ideológicos políticos de ambos os lados. Enquanto a
CPT advogava em torno do uso coletivo dos 350 mil reais que seriam depositados pela
CVRD para as associações construção de um escritório para as associações, compra
de um ônibus, poupança para projetos de geração de trabalho e renda, e também salário
para as lideranças que continuassem se dedicando exclusivamente –, os quilombolas
passaram a deliberar longamente sobre como realizar a divisão do dinheiro, tomando
como critério o mérito das lideranças de maneira hierarquizada.
“Eu queria que nós estivéssemos olhando os companheiros que realmente
largaram as suas famílias, com fome, deixaram seus trabalhos, olhando a
participação do Manoel, que perdeu estudo, perdeu tudo. Olhando a CPT
que gastou carro, quebrou carro. O Benedito, que andou de casa em casa
até ontem. Eu me lembro da palavra de Deus, da palavra da Bíblia, se os
apóstolos dividiram as coisas que eles arrecadaram conforme. o é
descriminar ninguém, é chamar atenção. Eu não vou ganhar um centavo
desse dinheiro aqui, porque eu não participei, eu o fui pra luta, eu não
briguei. Deixei meus companheiros brigando, arriscando a vida, perdendo
seus dias de trabalho.” (Liderança, “última reunião”, 2007).
“Usando esse dinheiro de forma coletiva, estruturar um pequeno escritório,
com computador, telefone, isso é benefício para vocês. E eu gostaria de
antes de ir para o cemitério, e está demorando (risos), e dizer que nesse
Brasil teve um grupo étnico que deu certo porque apostou na coletividade.”
(Padre Sérgio, CPT, “última reunião”, 2007).
Algumas lideranças tomaram a frente para desqualificar a participação da CPT nas
decisões sobre o dinheiro destinado às famílias, outros propuseram a votação
democrática das duas propostas, após serem devidamente explicadas. Fui convidada a
participar, dando opinião os quilombolas consideraram que, por eu estar
acompanhando a luta” com eles, poderia ter um momento de fala –, e também
96
escrevendo no quadro e ajudando a explicitar as propostas. Fui partidária da proposta da
CPT, por considerar que o dinheiro distribuído individualmente para as lideranças, em
somas diferenciadas segundo a lógica meritocrática (as lideranças que trabalharam mais,
gastaram mais tempo no conflito, ganhariam mais, e assim por diante), poderia gerar:
(1) enfraquecimento das associações; (2) desarticulação das comunidades e
encerramento das atividades de negociações com a CVRD; (3) possibilidade de
corrupção das lideranças.
Este foi o momento mais crítico de minha observação participante”: plenamente
envolvida no conflito e vestida de minhas próprias convicções políticas, vivi uma
situação de angústia porque vi na vitória da proposta dos quilombolas a sobreposição da
lógica individualista do capital sobre a lógica coletivista interna da comunidade.
mais tarde, ainda em campo, pude perceber que minha angústia nada mais era do que a
materialização dos meus próprios mitos do “bom selvagem”. O fato que me fez acessar
com mais clareza o meu “ato falho” foi rever o caderno de campo, e verificar que, como
nas entrevistas anteriores acerca do que foi comprado com o dinheiro das
“indenizações” distribuídas, o dinheiro seria gasto com bens para as famílias, como
geladeiras, aparelhos de som e bens de consumo. O caderno de campo sinalizou,
finalmente, para o fato de que todos são parentes (ou compadres) no território do
Jambuaçu. O parentesco trataria de distribuir e acomodar as quantias, que circulariam
internamente ao território.
Esta foi uma das pistas para a possibilidade de outras análises, considerando,
fundamentalmente, não separar aquilo que o nativo une: assim, no Capítulo 3, será
tomada como foco da análise, além de aspectos sobre as cosmologias dos atores em
conflito, a história sócio-política do grupo elaborada e contada por eles mesmos. Será
demonstrado que situações de conflito entre os quilombolas do Jambuaçu e os grupos
que se lhes colocam em fronteira são perenes, e que as formas de se posicionar frente a
tais situações se tornou, progressivamente, uma tradição.
97
C
apítulo 3:
C
asa de Cutia
“Saber “falar duro” (-je’eng-ahy) é uma capacidade de poucos:
apenas os moropetenga (“batedores de gente”), os grandes matadores,
têm a devida força e coragem para faze-lo,
principalmente nas situações de comunicação com o inimigo.”
Carlos Fausto, 2001.
Conflitos e identidades do passado e do presente
Ao final do mês de janeiro, fui acomodada em São Bernardino. Fazia parte da estratégia
“finaldas lideranças mobilizarem os quilombolas dissidentes e fechar o outro acesso
ao território, nesta localidade. São Bernardino situa-se no extremo oposto geográfico do
meu lugar de chegada, e, por meio do mapa, é possível compreender como os nativos
coordenaram meu movimento dentro do território:
(1) Casa de Narciso em Santa Maria do Traquateua: início do trabalho de campo no
território. Permaneci vários dias nesta comunidade, onde a torre da linha de
transmissão da CVRD foi derrubada, e havia uma guarita fechando a estrada.
Trata-se de uma das comunidades com menos infraestrutura (não possui taberna
ou escola) e, dentre aquelas visitas, uma das mais engajadas politicamente.
Digo isto porque o ativismo desta comunidade no conflito com a CVRD era
bastante central para o grupo, assim como durante o outro conflito que será
considerado neste capítulo, com a empresa Reasa. Os mais velhos, Narciso e
Dona Florência, são lideranças décadas e bastantes pioneiros nas
organizações, seja o sindicato, seja a associação quilombola;
(2) Santa Luzia do Traquateua: comunidade mais nova, na qual fui levada para
realizar entrevista com o fundador, Seu Namô, cujo pai fundou São Bernardino.
A filha de seu Namô, Dona Nelis, também é liderança. Possui escola primária;
(3) Santa Ana de Baixo: não foi realizada nenhuma entrevista, pois na ocasião da
visita a esta comunidade era um dia de festa devido à final do campeonato de
98
futebol do qual são participantes times de todas as comunidades do território.
Possui escola primária, taberna e capela;
(4) Nossa Senhora das Graças: nesta comunidade permaneci durante alguns dias, e
fiquei em casa de casal muito jovem, a casa de Rita e André. Pude realizar
entrevistas com lideranças mais antigas. A presidente atual da associação é uma
adolescente, que, embora de família que não tem tradição de ofícios de
liderança, participou dos eventos do conflito, como as reuniões, de forma ativa.
O antigo presidente, Seu Estandico, por não poder mais ser eleito e pela doença
de seu pai de 99 anos, colocou sua participação em suspenso. A comunidade
possui escola primária, duas tabernas e capela;
(5) Casa de Cutia e Maria do Carmo, em São Bernardino: comunidade
materialmente mais próspera, na qual tive como hospedagem a casa da
professora Maria do Carmo, simpática à CVRD por extenso período, e do
senhor Cutia, filho do fundador. Localizada no extremo oposto a Santa Maria,
ao lado dela, trata-se de uma das comunidades mais afetadas pelo
empreendimento, e onde foi estabelecida outra guarita para bloqueio da estrada
que acesso ao território. Possui escola primária, mais de uma taberna, capela
e também uma sede recreativa;
(6) Bom Jesus do Centro Ouro: assim como Santa Luzia, visitei esta comunidade
somente para realizar entrevistas. Esta comunidade tem como fundador um
indígena, e suas lideranças são filhos deste homem, falecido. o possui
capela, nem taberna, mas um galpão onde um dos adolescentes, que estuda
em Moju, dá aula aos mais velhos e mais novos;
Ao classificar as comunidades em mais ou menos políticas, e mais ou menos materiais,
trago para a perspectiva frontal do estudo algumas diferenciações internas ao território.
De modo geral, parecem existir grupos mais fortes e grupos mais fracos com respeito a
questões religiosas, políticas e materiais, inferência possível devido à presença física de
instituições (capelas, sedes recreativas, escolas), bem como da participação em espaços
formais de deliberação política. No entanto, o se trata de uma diferenciação inscrita
99
em uma hierarquia de valores, mas, sim, da percepção de particularidades internas.
Tampouco são problemas sociais, mas possivelmente conseqüências de decisões
políticas no decorrer do tempo, que escapam aos dados levantados na pesquisa.
Todas as comunidades têm uma ligação, essencialmente dada pelo parentesco (e
alianças) generalizado, e os potenciais de uma e outra são valorizados de acordo com a
demanda social. Portanto, não é o caso de uma adaptação melhor ou pior, ou de uma
capacidade de acumular recursos maior ou menor, mas de uma particularidade
provavelmente inscrita pelas relações de reciprocidade estabelecidas ao longo dos anos.
O crescimento de uma determinada comunidade implica em escassez de terras em
alguma geração, e neste sentido, a fundação de outras vilas é uma estratégia de
reprodução social orientada pela necessidade de produzir alimento. Certamente, se
consideramos a antropologia como referência, a forma como as novas ocupações irão se
dar obedecem a lógicas culturais o somente associadas à questão de disponibilidade
de recursos.
68
No que diz respeito aos aspectos políticos, por outro lado, diversos tipos de arenas onde
se materializa a agência política dos quilombolas podem ser destacados: reuniões no
território entre o grupo, reuniões com a CPT, audiências no Fórum de Moju e em
Belém com a CVRD. Para além destes espaços formalmente constituídos como
coletivos, sejam deliberativos ou combativos, todos os espaços físicos e sociais foram
permeados por elaborações e negociações políticas. Assim, a cozinha, as salas, as roças,
os igarapés, a mata, eram lugares do conflito, da negociação dos compadres, dos
primos, das lideranças locais, eram locais em que as mulheres opinavam, em que as
famílias decidiam alianças, em que correligionários e grupos de oposição se
movimentavam para elaborar sua posição frente à CVRD.
Nesta fase da pesquisa, os quilombolas, acostumados à minha presença, passaram a
fornecer informações de outra natureza. Aspectos dos conflitos com a CVRD e Reasa
68
Woortmann & Woortmann (1997: 45), analisando a questão dos sitiantes nordestinos fortes e fracos,
demonstram como os primeiros, por terem poucos filhos, conseguem reproduzir-se na terra com mais
facilidade. As relações de compadrio serviriam, neste modelo, para “corrigir” a eventual escassez de
algum grupo doméstico.
100
foram complementados por informações acerca do parentesco, religião e até mesmo por
“fofocas” que sugeriam a caracterização – menos inscrita pela ordem – dos membros do
grupo, como a presença de mães solteiras, lideranças mais ou menos legítimas,
conhecimento místico das parteiras e técnicas mágicas de caça.
Ressalto que o tempo exíguo da pesquisa impossibilitou um aprofundamento em temas
diversos, e tentei concentrar a análise nos aspectos relacionados às técnicas de
resistência, que também considerei “tradicionais”, porque transmitidas dos velhos aos
jovens. Por outro lado, a Matinta Pereira foi uma forma retórica de acesso a estas
informações, e, portanto, algumas considerações sobre os aspectos religiosos serão
feitas no sentido de esclarecer como as relações locais organizam o espaço social. A
premissa é a de que diferenças cosmológicas implicam em ruídos comunicativos, e,
portanto, considerá-las é um exercício profícuo em análises de conflitos que são, antes
que materiais (por recursos naturais, por exemplo), discursivos.
Para analisar o primeiro ponto, os dados etnográficos centrais são os documentos e
textos jornalísticos sobre o conflito com a Reasa, reunidos em um dossiê elaborado pela
CPT, além de entrevistas estas últimas, discursos nativos que trazem a relação lógica
entre um conflito e outro. O objetivo não é realizar uma outra análise de conflito em si
com base em dados documentais e memória, mas, identificar os principais eventos e
formas de atuação dos atores no confronto do passado para captar a articulação que o
grupo faz destes fatos com o presente, elaborando, assim, uma história local das
relações políticas com o exterior.
Foi colocado como a identidade de quilombola tem se delineado no território do
Jambuaçu, por meio de um trabalho militante da CPT, Programa Raízes e da UNAMAZ
para que os grupos locais compreendam o Artigo 68 e suas implicações históricas e
atuais. Esta atualização da identidade quilombola não significa, como foi ressaltado no
primeiro capítulo, uma redução da identidade local a uma categoria política, mas a
ressemantização de identidades locais complexas por meio da leitura particular (e
legítima) de uma categoria histórica e jurídica. A identidade quilombola se associa,
assim, à identidade “cabocla amazônica” ribeirinhos, caçadores, extrativistas,
pescadores, mas também agricultores, motoqueiros, trabalhadores sazonais em
101
latifúndios, comerciantes e outras –, assumindo um caráter multifacetado ao se compor
de inúmeras dimensões das relações específicas de alteridade que se estabelecem.
Neste sentido, o conflito fundiário com a empresa Reasa, ocorrido na década de 1980, é
fonte de características identitárias para o grupo, associadas à resistência, lutas, perdas e
vitórias, ou seja, a capacidade de permanecer na região e reproduzir-se socialmente.
Este conflito coincidiu com a identidade de “trabalhador rural com direitos”,
apresentada pelo Estado aos grupos campesinos: hoje, esta identidade, fortíssima, se
depara com outra, no contexto de um novo conflito, a saber, quilombolas versus CVRD.
Identidades apresentadas, ambas, pelo aparelho estatal, ou seja, que se constituem em
sua base como institucionalizadas, têm, por outro lado, formas de (re) significação e
absorção próprias. Veremos como o a negritude, como também um espírito
guerreiro, verdadeira pulsão ética (SEGATO, 2004), aparece na memória dos velhos do
grupo, que permanecem engajados na atualidade.
No Capítulo 2, foi feita uma análise do conflito com a CVRD utilizando tipologias
sociológicas e sistematização do campo de disputas, bem como da distribuição de poder
entre os atores do conflito. Porém, ao observarmos a não pontualidade dos conflitos no
Jambuaçu, mas a sua repetição na história, é pertinente recorrer a outros aportes a fim
de compreender o que chamarei de ethos guerreiro”. Será considerado o conceito de
guerra, extensamente utilizado nos estudos etnológicos, devido aos atributos de
situações conflituosas não contemplados nos estudos de conflito correntes, como seu
caráter institucional (em alguns estudos deslocado para a vingança), de troca, relações
de predação (ou consumo) para a produção de identidades locais, especialização de
guerreiros ou chefias (ou lideranças), entre outros: “A alternativa seria pensar a guerra
como uma modalidade de relação: a predação familiarizante, na qual predomina a
relação social entre sujeitos.” (ARANTES, 2006: 30).
Para a abordagem dos aspectos mágicos e metafísicos serão utilizadas entrevistas e
também dados recolhidos por meio de conversas que não foram gravadas, mas
registradas por meio do caderno de campo: não se trata do segredo propriamente dito,
como alguns grupos definem âmbitos de suas culturas (entre os ciganos ou no
candomblé, por exemplo), mas de informações que não poderiam ser fixadas facilmente
102
pela pesquisadora, a não ser por uma insistência deselegante, que são assuntos tabus
em relação à gente de “fora”.
Reasa: agência nativa na construção do tempo, espaço e matéria.
Se em um primeiro momento a narrativa da história recente do grupo, a saber, as
relações com a CVRD existentes nos últimos três anos, consistiam no mais urgente de
ser relatado, desde as primeiras entrevistas, outro conflito, com a Reasa, apareceu como
referência a um momento como que semelhante ao que viviam hoje. Assim, memória e
atualidade, tradição e modernidade, se articulavam no discurso dos quilombolas para
compor sua identidade.
O conflito com a Reasa, no que diz respeito ao contexto político da época, é parte do
contexto de apropriação da terra de forma mercantil incentivada pelo Estado. Como
aponta Soares (1981), a terra na região amazônica era um bem em processo de rápida
valorização e a especulação imobiliária um empreendimento em sim mesmo. As linhas
de crédito com base em projetos de agricultura e pecuária geravam especulações
também no mercado financeiro. Para o autor, o Estado estaria financiando indiretamente
a retenção ociosa de terras e a expropriação dos pequenos produtores; por outro lado, as
formas de resistência operadas pelos grupos campesinos locais seriam a base para
estudos de “campesinato de fronteira”.
A Reasa (Reflorestamento Amazônia Sociedade Anônima), empresa que se apresentava
formalmente como de reflorestamento, é uma monocultora de dendê que se estabeleceu
na região na década de 1980 existente ainda hoje com o nome de Marborges LTDA,
se utilizou do método de grilagem de terras para efetivar sua produção.
A Reasa chegou e começou a comprar as terras do pessoal e dizendo que se
nós vendesse nós levávamos mais vantagem que ficar na terra, e eles
tinham requerido toda a área. o que eles faziam, tinha um papel
branco, o pessoal assinava, e eles colocavam como comprado a
benfeitoria, na época foi a doutora Vera da CPT que foi se virar pela
gente. A gente foi no Iterpa descobrir e ver que realmente eles tinham
comprado apenas a benfeitoria de 40 moradores. Aí a gente correu e
103
ajuntou todas as assinaturas dos moradores, e fomos apresentar no
Iterpa, e aí que a gente criou essa associação pra fazer esse movimento.
(Pregote, São Sebastião, 2007. Ênfase minha).
“A Reasa, apesar da ferrenha resistência dos quilombolas, conseguiu ainda
subtrair quase que a metade do território (uns 20 mil hectares plantados de
dendê), obviamente com o consenso do Estado, da polícia e do poder
judiciário.” (Dossiê CPT Guajarina: 5, 2007).
O conflito com esta empresa durou quase uma década, e teve também os seus períodos
mais latentes e mais manifestos de forma oscilante. Pode-se dizer, ainda, que o
instrumental do conflito era diferente do observado no conflito com a CVRD: além da
semelhante manipulação política de grupos locais como a polícia e os políticos por parte
da Reasa, e do uso da identidade pelas comunidades locais, os atores em conflito
utilizaram também armas brancas e de fogo, o que ocasionou mortes de ambos os lados.
Em suma, nesta época a grilagem operada pela Reasa era realizada por meio de
jagunços e corrupção de autoridades. Outra estratégia da empresa era a contaminação
das águas dos igarapés. Seu Tomás, irmão de Narciso, cujo pai morreu aos 112 anos na
década de 1990, sinais, em seu relato, de uma possível contaminação proposital das
roças e água por esta empresa:
“A Reasa escangalhou tudo isso aqui, parece que foi uma coisa que
mandaram, que nós adoecemos tudinho lá de casa, eu mamãe, meu
irmão Nazario, papai, nós tinha um roçadão lá, um sítio, umas árvore de
abacate lá, mamãe tinha, quando dava enchia de abacate, tinha cada cacho
de açaí que enchia uma lata, nós adoecemos tudo, e ela começou a
trabalhar pra lá, e quando papai melhorou, ele disse, Maria, eu vou lá no
campo buscar milho pras galinha, quando ele chegou lá que ele
atravessou o igarapé, eles derrubaram com maquina, trator,
trabalharam à noite. Tinha um vizinho nosso, chamado Alexandre,
esbandalharam tudo, pra plantar o dendê. meu irmão Narciso, se
virou né, foi pra cidade atrás de advogado, tinha uma advogada de
Abaeté (Abaetetuba), pagaram um pouco, mas roubaram quase tudo, uns
520 metros de lá pra cá.
104
Carmela: E aí o pessoal se organizou...
Foi, pra buscar pra ela não vir tanto, mas o dendê chegou até ali. Desses pés,
dessas árvore de dendê pra lá, era tudo nosso, mas eles ainda entraram mais
um pouco dentro do nosso terreno aqui.”(Tomás dos Anjos, Santa Maria do
Traquateua, 2007. Ênfase minha).
Diferentemente de hoje, além da CPT, os quilombolas contavam com o forte apoio do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Neste momento, estava presente uma outra
identidade de origem estatal, a de trabalhador rural, associada à idéia de sindicalização:
criado em 1963, o Estatuto do Trabalhador Rural, nesta época, já contava com quase 20
anos, e embora tenha promovido a modernização do latifúndio em lugar de dividir a
propriedade (GARCIA JR., 1990), era a base legal na qual os trabalhadores da terra
poderiam se apoiar na garantia de direitos.
69
Garcia Jr. (1990) discorre sobre como a
igreja católica agiu, desde os anos 60, para impedir que a organização dos camponeses
fosse associada aos grupos comunistas, e aponta para a rapidez com que os sindicatos e
associações campesinas foram formados devido à forte competição política e ideológica
em torno destes grupos. Empiricamente, por outro lado, a CPT Guajarina possuía ela
mesma um caráter, para a época, “subversivo”.
“Pela devolução da terra ao mojuenses. Pela reforma agrária radical e
imediata. Pela valorização dos produtos do lavrador. Por eleições diretas
para os diretores de escola, de divisão de educação e Presidente da
República.” (Folheto. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Moju (PA) e
Comissão Pastoral da Terra, 10 de setembro de 1984).
Pode-se dizer que hoje, em Jambuaçu, a identidade de trabalhador rural é central,
embora a sua referência institucional, o sindicato, não seja, no contexto de disputas com
a CVRD, um aliado. O enfraquecimento do sindicato pode ser considerado a partir de
uma leitura sobre a crise do sindicalismo de modo geral (e do estatuto da greve, por
exemplo). Além disso, no caso em tela, o fato de alguns funcionários do sindicato terem
sido corrompidos é um agravante, que pode ser definido como uma contingência do
69
Na Constituição de 1988, o Estatuto foi promulgado com algumas alterações, sendo a mais importante
delas o entendimento da indistinção de status das categorias de trabalhador rural e urbano (INCRA,
2007).
105
conflito. Diferentemente, no caso com a Reasa, o sindicato apoiou fortemente os
quilombolas no sentido de barrar a grilagem de terras.
“Sindicato do Moju denuncia violências: Em documento encaminhado ao
governador Jader Barbalho, ao secretario de Interior e Justiça, Itair Silva, e
às lideranças do PMDB e do PDS na Assembléia Legislativa, o Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Moju volta a denunciar irregularidades
da firma Reasa (Reflorestadora da Amazônia), (...). Segundo o sindicato,
a Reasa vem praticando
violências contra os agricultores da região, com a
derrubada de casas e destruiçao de lavouras de posseiros, que há anos
habitam aquela terra.” (O Liberal, 04 de janeiro de 1984. Grifos meus).
A articulação nativa dos conflitos entre trabalhadores rurais e Reasa, entre quilombolas
e CVRD pode ser analisada pela teoria da “comunidade afetiva” presente nos estudos de
memória de Halbwachs (1968) e Polak (1989), mas também em estudos sobre
elaboração local da história (SOARES, 1981; RINALDI, 1979), e acerca da composição
particular dos elementos da identidade étnica, como já apontado no Capítulo 1
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976; CARNEIRO DA CUNHA, 1986; POUTIGNAT &
STREIFF-FENART, 1998).
Para Halbwachs (1968) e Polak (1989), a memória coletiva serve à coesão social de um
grupo. O segundo aponta para o fato de que a memória coletiva opera por meio de
seleções, agenciadas pelos indivíduos que, por um processo de negociação, determinam
os elementos da memória, legitimados por pontos de contato (o que de comum), a
serem lembrados e atualizados no grupo (POLAK, 1989). Assim, a memória é, também,
objeto de disputas internamente a um grupo ou entre grupos com poder diferenciados
para elaborar a história – história oficial versus memórias subterrâneas.
“...a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva (...). um elemento dessas definições que
necessariamente escapa ao individuo e, por extensão, ao grupo, e este
elemento, obviamente, é o Outro. Ninguém pode construir uma auto-
imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos
outros.” (POLAK, 1992).
106
Uma das entrevistas que realizei, à luz de lampião, na casa de D. Florência, atualmente
com 70 anos, teve como público seus filhos e netos, atentos aos seus relatos sobre um
dos confrontos com a Reasa. Naquela ocasião, esta senhora teria ido para o mato com os
homens, levando seu terçado, para esperar os pistoleiros da empresa no mato.
Ao transmitir acontecimentos lembrados como fundamentais não para os
descendentes, mas para mim, a antropóloga, a memória dos quilombolas do Jambuaçu –
memória proibida ou clandestina, parafraseando Polak (1989), porque daquele que não
elabora a história dominante, e sobre fatos que devem ser esquecidos –, estaria sendo
atualizada, e a história do grupo legitimada.
“Opondo-se mais à mais legitima das memórias coletivas, a memória
nacional, essas lembranças o transmitidas no quadro familiar, em
associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou política. Essas
lembranças proibidas (caso dos crimes stalinistas), indizíveis (caso dos
deportados) ou vergonhosas (caso dos recrutados a força) são zelosamente
guardadas em estruturas de comunicação informais e passam despercebidas
pela sociedade englobante.” (POLAK, 1989: 8).
Como salienta Austin (1975), as palavras fazem, portanto, ao implementar uma prosa
por meio da técnica da entrevistas, identidades estão sendo produzidas (efeito, eficácia).
O confronto com a Reasa, embora violento e passível de ser objeto do silêncio por causa
do sofrimento, é, ao contrário, fonte de sentido para o conflito vivido hoje.
“Nesse dia eles se rebelaram pra (Santa Maria de Traquateua). Nós
tivemos num conflito bem ali na casa do meu sogro, que tinha uma outra
firma que entrou ali, uma outra firma, ninguém sabe de onde veio, se era
mandada da Reasa, sei que tava cortando a beira do Igarapé todinho,
marcando, a gente se reuniu, veio o Padre Sérgio, e veio a irmã Rosa,
esperamos eles chegarem, tivemos uma conversa meia dura com eles, nós
dobramos as costas pra eles foram embora. Esses correram e nunca mais
apareceram.
Carmela: Foi na mesma época?
Foi, tava nesse intervalo da Reasa. E o pessoal não sabia brigar com a firma,
queriam brigar sozinho, aí foi quando aconteceu, que a Reasa mandou
107
queimar a casa do compadre Teto, mandou fazer um bocado de coisa aí.
Ta certo, que pra nós aqui realmente não mexeram com nada, mas eles o
mexeram, porque quando eles estavam aí no centro cortando, o papai mais o
pai dessa daqui (outra mulher presente), que também tem o sangue na veia,
se reuniram e foram mandar eles pararem, e ameaçaram eles lá, foi
que eles frearam, porque se não fosse assim, isso aqui era só dendê.”
(Jane, filha de Namô, liderança local, Santa Luzia do Traquateua. Ênfase
minha).
No contexto do conflito de hoje com a CVRD, os atores que lutaram 20 anos atrás estão
com idades entre 50 e 80 anos de idade, e é recorrente a necessidade de as testemunhas
oculares, quando sabem que vão “desaparecer”, quererem inscrever suas lembranças
contra o esquecimento (POLAK, 1989).
“Isso, mesmo, na época que a Reasa entrou aqui, minha mãe adoeceu.
Meu pai morreu em 1985. Quando minha mãe morreu eu tinha 13 anos. Eu
era um rapaz, vi o conflito tudinho aí, o dia que o pessoal de Santa Maria
saiu pra encontrar o pessoal da Reasa eu vi.
Carmela: Como foi essa história, você pode contar?
Foi assim, não foram com violência, o pai do seu Zé, que foi o mais
prejudicado, você tinha que ver a quebrada que eles fizeram aí. As roças
dele dava gosto de ver, era mandioca, a comunidade apoiada pelas
paróquia foi tentar encontrar eles que vinham pra tomar tudo mesmo. Só que
foi um conflito que não teve violência, os engenheiros da Reasa o
reagiram com violência.
Carmela: Nessa época juntou varias comunidades ou foi só Santa Maria?
Junto varias comunidades, realmente, duas mesmo que lutava aqui, Santa
Maria e São Sebastião, no km 40, se ajuntaram pra ir defender, e mesmo
com muita luta conseguiram defender essa parte aqui até o igara.
O seu Narciso aqui com muita luta, o terreno dele vai a lá beirando o
igarapé, mas tem dendê até bem ali.” (Paulo, liderança, Santa Maria do
Traquateua, 2007).
Rinaldi (1979) e Soares (1981), ao analisar elaborações locais da história coletiva,
demonstram como a mesma é permeada de marcos fundamentais que a dividem
progressivamente em (diversos) antes e depois. Isto não se dá necessariamente de forma
108
linear, mas variada: no caso dos indígenas, por exemplo, esta operação tem sido
acessada por etnólogos a partir dos variados “mitos” de criação do mundo, e suas
implicações nas relações vividas no hoje. No caso dos pretos de Vila de Pedras,
Pernambuco (RINALDI, 1979), o tempo de Santo Antônio, legítimo proprietário das
terras do antigo engenho onde se localiza a comunidade, constituía o tempo da terra
forte, enquanto que o momento do conflito atual, de expropriação da propriedade do
santo por um novo proprietário do engenho, se traduzia como o tempo da terra fraca. No
caso dos pretos de Bom Jesus, no Maranhão (SOARES, 1981), a história começa com a
escravidão, e os marcos eleitos pelo grupo como fundamentais para a reprodução social
baseada no sistema comunal da terra e na herança, são a doação de terras pelo senhor e
o início do tempo da liberdade e da fartura. O conflito que viviam no presente
etnográfico do estudo do autor representava, dentro da estrutura ontológica imprimida
por esta versão histórica dos fatos, um retorno ao tempo do cativeiro. Assim, é possível
observar nestes exemplos a articulação necessária, salientada por Viveiros de Castro
(2002:339), entre cosmologia e história, etnicidade e ritual, economia política e análise
simbólica.
Os dois tempos, o tempo da fartura e o tempo da penúria, do santo forte e do santo
fraco, em Jambuaçu, são organizados pela recorrência de momentos de crise da garantia
e sustentabilidade da terra. O tempo da Reasa é também o tempo da vitória, fonte de
força e sentido para o tempo presente. Mas é também o tempo da morte de
companheiros sacrificados no conflito, mortes causadas por pistoleiros ou contaminação
das águas.
Os principais eventos do conflito com a Reasa o o embate ocorrido no dia 07 de
setembro de 1984, e o “dia dos 100 encapuzados”. No primeiro caso, trata-se da ocasião
da morte de Edimilson Ribeiro Soares, grileiro, funcionário da Reasa, que marcou
encontro no dia 07 de setembro no território dos quilombolas. Estes, mesmo
desconfiados da reunião marcada no mato e no “dia do Brasil”, partiram para encontrá-
lo.
“No dia 07 de setembro aconteceu a tragédia (...). Os trabalhadores, ouvindo
o barulho dos tratores, foram ao local da invasão. Ao chegarem foram
recebidos a bala pelos pistoleiros da Reasa, comandados por Edmilson. Os
109
lavradores dispararam suas armas de caça e correram, largando as mesmas,
não sabendo que havia morrido alguém. No dia 09.09, 45 lavradores da área
se entregaram espontaneamente à polícia de Moju, sendo levados, presos,
para Abaetetuba, onde, no dia de hoje (10.09) estão sendo interrogados pela
polícia daquela Delegacia. Lamentamos que não tenham sido presos e
levados para interrogatório os pistoleiros da Reasa, que estavam na área do
tiroteio, e estão em toda área ocupada pela Reasa, e também dirigentes da
firma que, invadindo terra alheia, se constituem
em primeiros responsáveis
pelo que disso possa advir.”(Carta. CPT e Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Moju, 10 de setembro de 1984).
Em 08 de janeiro de 1988, quatro anos depois, e com a persistência do conflito,
acontece o segundo fato marcante relatado pelos quilombolas e registrado por meio de
cartas e outros documentos.
“Eram mais ou menos 10 horas da manhã e eu me encontrava no único posto
telefônico de Moju quando percebi que as pessoas corriam assustadas na
rua. (...) Então também fiquei assustada e saindo do posto corri rumo à
minha residência que ficava ali perto. Mas o consegui chegar lá, pois ao
tentar atravessar a rua deparei-me com um grande mero (que mais
tarde fiquei sabendo que eram 100) de pessoas vestidas de preto, corpos
pintados de carvão em pó com o rosto encapuzado também de preto,
marchando decididas e portanto rifles em riste. (...) A polícia abandonou
o local e os 100 justiceiros entraram, soltaram os presos e botaram fogo em
tudo. O comissário ali presente, no auge do terror, escondeu-se nos fundos
do terreno e pensando em maior segurança enfiou-se em um barril que
continha óleo queimado. (...) recebemos a visita de um dos encapuzados,
agora sem capuz, que vei enviado pelos outros para nos acalmar. Mesmo
não sabendo o seu nome, o reconhecemos como um trabalhador do
Jamuaçu, sempre presente nas lutas populares e sindicais. Esse
participante do grupo nos contou que estavam ali para fazer justiça pois
a polícia junto com os pistoleiros amedrontavam a cidade com suas
ameaças e ações, haviam matado o Canindé, membro do grupo, além de
estarem espalhando o terror na cidade e ameaçando tomar as terras dos
posseiros.”(Carta. Rosa Maria Paes Figueiredo, CPT, carta escrita em 2007,
grifos meus).
110
Quando da ocasião de minha presença na região, a CPT distribuiu um dossiê aos
quilombolas, elaborado por Padre Sérgio figura presente no contexto desde os anos
1980 –, com o registro de ambas as situações de conflito pela terra vividos pelos
moradores do Jambuaçu. Este registro material, escrito, que possui um caráter
documental diferente da história oral organizada pelo grupo, foi entregue aos
representantes de associações e outros membros notadamente importantes da
comunidade em uma reunião de decisão de estratégias de ação em relação à CVRD,
momento ritual de congregação política. Assim, as lideranças, como profissionais do
fazer político, atuariam também como “profissionais da memória”
70
, de uma memória
escrita por um outro já incorporado, porque aliado de muitos anos, a CPT.
“A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado, que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos
diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias,
nações etc. A referencia ao passado serve para manter a coesão dos grupos e
das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar
respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis.”
(POLAK, 1989: 9).
A articulação do conflito do passado e do conflito do presente pode ser evidenciada pela
fala de seu José Correa da Silva, de Santa Maria do Traquateua:
Eles (a Reasa) entraram na marra mesmo, pra querer tomar a área
da terra de todo mundo. que foi uma firma que nunca teve a coisa pra
entrar em acordo com ninguém não, o caso do cara era largar tudo na rua. Aí
pegou, tinha esse ramal aqui, até na beira do Igarapé, queriam que eu
desocupasse a área da terra, mas que disseram que não dava nada, que
não ia indenizar nada, aí fui conversando, aí quase que ia dar prejuízo pra
mim, pra ele, até que depois nos conversamos, entramos em um acordo,
de pegar do ramal pra até o igarapé é meu, pra do ramal tirou tudo,
70
“Esse trabalho de enquadramento da memória tem seus atores profissionalizados, profissionais da
história das diferentes organizações de que são membros, clubes e lulas de reflexão. (...) Os rastros
deste trabalho de enquadramento são os objetos materiais: monumentos, museus, bibliotecas etc.”
(POLAK, 1989).
111
agora passou esse mineroduto, tubulação, e esse linhão e acabou com
a área da terra.” (grifos meus).
Uma categoria comum aos estudos de Rinaldi (1979) e Soares (1981) é a de
“resistência”. A resistência pode ser observada tanto por confrontos diretos em conflitos
ditos manifestos, por meio de organizações institucionalizadas como sindicatos e
associações, e também por meio de outras formas de agenciamento nativo, ao
manipularem os objetos de dominação geralmente disponibilizados por sistemas de
mercantilização dos bens locais. Assim, no estudo de Rinaldi (1979) observamos a
agência do santo, patrão sobrenatural para quem se canaliza o poder local em situações
de conflito. No estudo de Soares (1981) a resistência era operada por meio do uso
metalingüístico dos “papéis”, documentos que versavam sobre a posse da terra, perdidos
no tempo ou existentes, dos quais se falava recorrentemente; pela nominação do outro
por meio de categorias associadas à percepção histórica, como “senhor”, “barão”,
“enricados”; e, por fim, pelas “greves secretas”
71
. O uso da categoria de resistência para
analisar posicionamentos nativos em relação àquilo que vem de “fora” e se impõe
forçosamente ao plano local são também o foco dos estudos de Burke (1996) e Taussig
(1980).
Burke (1996) analisa as relações coloniais no Zimbabwe a partir do entendimento da
natureza e papel das mercadorias introduzidas pelos colonizadores brancos,
investigando como as coisas adquirem significado, examinando a economia política
colonial e aspectos da cultura local. Tomando como foco da análise os produtos
cosméticos aparentemente irrelevantes, mas centrais para a identidade moderna –,
demonstra como a resistência nativa se operou por meio de atribuições de significado
distintas dos significados inicialmente atribuídos por quem os produziu, ligadas aos
costumes anteriores à chegada das mercadorias (e à centralidade do corpo também para
a identidade “primitiva”). Assim, por exemplo, a margarina era usada pelos africanos
como óleo para o besunte corporal, sendo deslocada de sua função prévia (alimento), e
colocada em um sistema no qual o bezunte com óleos de palmeira ou gordura de
71
A comunidade efetuava a repressão, por meio de violência física, àqueles que, ou o eram da
comunidade e queriam participar da partilha de terras, ou aqueles que pertenciam ao grupo e queriam um
pedaço de terra maior e faziam acordos com atores do exterior (barravam o movimento de quem era de
fora, em querer ser coletivo, e quem era do grupo, em querer ser indivíduo).
112
animais eram usados: (1) para proteger dos insetos, sujeiras e doenças; (2) para proteger
da chuva; (3) para produzir diferenciações estéticas etárias, de gênero e classe (BURKE,
1996:25).
A higiene na sociedade ocidental seriam um sistema complexo de definições de limpeza
e beleza, no qual o negro africano apareceria como o representante da sujeira, falta de
civilidade, doenças (eram chamados de sifilíticos, independentemente de terem ou não a
doença), da feiúra. De outro lado, os nativos de Zimbabwe eram conhecidos localmente
exatamente pelo contrário, por sua manipulação intensa do corpo por meio de piercings,
escarificações, penteados diversos, e uso de pastas, óleos e gorduras para passar no
corpo.
“Given that merchants did posses the power by 1930s to compel Africans to
accept certain commodities; this inevitably had an effect on local tastes and
aesthetics. The heritage of this kind of coercion and the generally negative
reputation that ‘truck’ traders had acquired by the 1940s forged a loose and
flexible association for most Africans between consumption an exploitation
(….) Merchants in all areas experienced sudden ‘dead lines’ produced by
‘mysterious’ shifts in tastes or sudden determinations to resist merchant
coercion. Boycotts of stores were apt to appear suddenly, last a few weeks or
months, and then fade. (…) Sometimes, Africans gave up what seemed to be
firmly established, deeply felt ‘needs’ overnight: during both the First and
the Second World Wars, the ‘truck’ prices skyrocketed, Native Department
officials frequently reported that Africans in rural districts had
spontaneously reverted to ‘traditional’ clothing and that almost no Western-
style clothing could be seen.” (BURKE, 1996:89-90).
O fetichismo da mercadoria de Marx é revisitado por Burke (1996) com algumas
críticas, por exemplo, às “falsas necessidades” e a oposição valor de uso e valor de
troca, bem como a particularidade do fetichismo atribuída ao capitalismo. Para ele, as
coisas têm poder e significado em sociedades pré-coloniais, e o problema estaria no fato
de que fetichismo é mais que os significados investidos nas coisas, é também o poder
acumulado das mercadorias, relacionados às pessoas, instituições e discursos, contendo
em si as formas de conscientização por meio da qual o capitalismo se objetiva. Assim, o
capitalismo assumiria formas imprevistas, dificuldades advindas do cotidiano, de
operações de resistência articuladas por meio da percepção dos objetos em uma
113
estrutura prévia de conhecimento. Por exemplo, sociedades em que a dádiva (gift) é
instituição central, em detrimento da mercadoria (commodity). O papel da propaganda,
neste sentido, seria central para regular o significado, estabelecendo padrões de uso para
as coisas, e também modelos ideais de comportamento. A não obediência ao modelo
tornava-se, assim, uma rebeldia que, no nimo, irritava os brancos em África: não
bastava vender, era preciso colonizar no sentido mais profundo, era preciso transformar
os hábitos. Por outro lado, em situações de observância nativa daordem”, os africanos
eram sempre tratados como caricaturas bizarras do modelo ideal de homem.
Taussig (1980) também parte do fetichismo da mercadoria para analisar as formas de
resistência das plantations na Colômbia e minas da Bolívia. Considerando o surgimento
dos cultos ao demônio nestas localidades e sua associação com o capitalismo,
demonstra como em situações de controle da força de trabalho (assalariamento), os
nativos elaboravam um discurso de oposição às noções de acumulação e alienação da
força de trabalho. Como observamos em trabalhos sobre o campesinato brasileiro, a
expropriação do poder do chefe de família sobre a produção é fonte de frustração e
desonra para as famílias (SOARES, 1981). De maneira análoga, os ritos ao demônio
servem para dizer sobre esta insatisfação, para discorrer sobre o fato de que o novo
modelo não é visto como “natural” (enquanto social) para os locais.
“It should be noted that political militancy and left-wing consciousness are
high in both of these areas and in both of these industries. Prior to the recent
oppression an reorganization of the work force, a large proportion of the
Cauca Valley plantation workers belonged to aggressive and skillfull trade
unions. Strikes and occupations were common. The militancy of the
Bolivian mine workers is legendary.” (TAUSSIG, 1980: 14).
Assim, as noções de sombi”, como o mal materializado que atinge crianças e é
conseqüência do enriquecimento de alguns, a cerimônia do “batismo do dinheiro”, onde
a nota toma vida, ou os cultos utilizando bonecos vodus e os grupos de magia
organizados entre os trabalhadores, são as formas de resistir ao modelo de exploração
que ignora os valores locais. A associação do capitalismo com o mal, em oposição à
associação de Deus com a fertilidade e a colheita, no caso dos agricultores, é uma
maneira de atribuição de significado particular daquilo que é exterior.
114
Trago estes exercícios para demonstrar: (1) como grupos de ideologia capitalista,
quando confrontados com lógicas camponesas de percepção da vida social, tendem a
colocar em prática técnicas de naturalização da alienação do trabalho e da terra, bem
como de fetichização dos objetos com base em sua potência de troca para acumulação; e
(2) como a resistência” dos grupos locais pode se dar de maneira cotidiana,
materializada por diversos tipos de atos discursivos (rituais, em sentido amplo
72
)
orientada pela incapacidade desejada de não absorver a lógica capitalista.
Em Jambuaçu, a resistência é perene, e acontece de maneiras múltiplas, ou seja, em
confrontos diretos em conflitos reconhecidamente políticos e exteriorizados por
instrumental específico, mas também uma resistência operada por formas outras de
resistir ao que é permanente. Ou seja, dando sentido às relações políticas com os
diversos grupos que lhe fazem fronteira no sentido de entrar, comprar ou tomar a força,
e vivendo sua própria cultura, apesar das tentativas incessantes de englobá-los em um
modelo de exploração do trabalho e nomeação da pobreza exteriores. Os grupos
quilombolas relêem o texto que vem de fora para operar a resistência. Por exemplo,
relêem o olhar do Estado sobre si, agindo de maneira oposta ao esperado em um modelo
individualista de acumulação fundiária.
Ele (Narciso) também achou que era um bom projeto, porque o terreno
dele era titulado ele cancelou e entrou na área quilombola com a
gente. Enquanto outras associações tem esse problema, que tem gente que
tem área dentro titulada e não quer entrar, porque não entenderam o que é
remanescente, eu entendo que mesmo sendo coletivo é uma segurança pra
nós que sente vontade de trabalhar não abandonar. Teve gente que quando
viram isso, cuidaram de negociar suas terras e foram embora pra cidade,
venderam pra Reasa, e hoje tão voltando, pra querer chegar junto com a
gente, mas tem que explicar o que é ser quilombola, as regras que tem, pra
poder manter dentro da associação, se por exemplo eles se situam lá, faz
uma casa dentro da área quilombola, que quando ele planejar sair se não der
certo, ele não tem o direito de vender a terra, ele pode deixar pra uma pessoa
cultivar, aproveitar, ou então a própria associação é responsável por cuidar.”
72
Rito entendido como produtor de identidades, mas não como a distinção entre sagrado e profano,
em que o rito sintetiza em uma arena destacada do cotidiano, mas também práticas rituais mais sutis e
profanas, porque comunicativas, porque de negociação de atos e palavras produzindo eficácia
(PEIRANO, 1991).
115
(Paulo, Santa Maria do Traquateua, 2007. Ênfase minha).
“Mas, se não se pode mais tomar a Amazônia como cenário dominado
exclusivamente por pequenas aldeias de caçadores-horticultores igualitários,
tampouco se deve exagerar pelo outro lado, atribuindo uma condição
vestigial, degenerativa e marginal aos povos da terra firme. Importa
observar, sobretudo, que fenômenos como a ‘regressão agrícola, ou, mais
geralmente, os modos de vida indígenas atuais, não são um evento
evolucionário, mas o fruto de um conjunto de escolhas políticas (Rival
1998a), de decisões históricas de recusa à assimilação pelos brancos,
escolhas e decisões que privilegiaram certos valores (p. ex., a
autonomia) em detrimento de outros (p. ex., o acesso às mercadorias).
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 342. Grifos meus).
A história dos quilombos amazônicos de modo geral é inscrita em sua origem pelo
conflito, ou seja, a partir dos grupos que se organizaram fora da ordem hegemônica por
meio de um tipo de resistência por vezes violenta com os grupos não aquilombados.
“O espírito de luta dos negros aquilombados no Trombetas e no Curuá
produziu uma soma considerável de informações. Numa das vezes em que
foram atacados, avisados previamente, os negros o hesitaram e
incendiaram sua Cidade da Maravilha, indo refugiar-se mais além, subindo
mais algumas cachoeiras, no interior das matas.” (SALLES, 1971: 269, grifo
no original).
“Na vila Igarapé-Mirim uma força policial era mobilizada contra o mulato
Alexandre e seu irmão Agostinho. As acusações rezavam que fugidos
andavam numa ‘vida libertina absoluta’ e tinham ‘decomposto homens
brancos e puxado armas de fogo’.” (GOMES, 2005: 59).
Uma das estratégias do sistema escravocrata, além do tráfico, do resgate e dos
descimentos, como aponta Gomes (2005: 61), era a compra dos prisioneiros de guerra
dos próprios indígenas. Isto significa que em um determinado período histórico,
semelhante a alguns casos da colonização africana, a guerra dos nativos era utilizada
pelo modelo englobante como forma de obtenção de mão de obra, mas também, como
forma de constituir alianças com alguns grupos locais e potencializar conflitos
anteriores evitando a associação dos nativos entre si.
116
“Estratégias de índios e negros fugidos podiam ser semelhantes. Assim as
teriam percebido as autoridades coloniais e metropolitanas. Talvez isto
explique a série de consultas feitas pelas autoridades coloniais ao Conselho
Ultramarino. Em 1752, em carta enviada ao rei, o governador Mendonça
Furtado pedia novamente que as penas previstas aos negros por lei de 1741
fossem também aplicadas aos índios amocambados da Capitania do Grão-
Pará.” (GOMES, 2005: 65).
O que chamamos confronto em ambos os conflitos analisados – o dia sete de setembro e
a morte do grileiro Edimilson, a invasão do município de Moju pelos 100 encapuzados
ou a destruição da torre da linha de transmissão e fechamento de estradas –, seria o que
Fausto (2001) teria chamado de guerra ofensiva.
“A guerra ofensiva não principia apensas por uma deliberação. Seu primeiro
movimento depende de uma mobilização das vontades: é preciso, como diria
Florestan Fernandes, ‘atiçar as emoções polarizadas contra o inimigo’
(1970:70). Para que cada um passe do provimento da vida ao
empreendimento coletivo da morte, é mister que as forças psíquicas sejam
direcionadas para um objetivo.”. (FAUSTO, 2001: 271).
A proposta de transformar provisoriamente em sinônimos os conceitos de conflito e
guerra tem o objetivo de tentar: (1) acessar o caráter institucional da guerra,
desconsiderado nos estudos de conflitos socioambientais; (2) ampliar, assim, as noções
de conflito e resistência; e, por fim, (3) tentar captar o porquê da resistência e
confrontos permanentes e de longa duração efetuados pelos quilombolas de Jambuaçu.
Isto não significa uma análise comparativa com a guerra indígena analisada por Fausto
(2001), mas o acesso ao instrumental analítico da etnologia da guerra para clarear
algumas questões que se obnubilam com a observação do caso empírico em questão: em
suma, por que os quilombolas estão sempre prontos a lutar por seu território e modos de
vida?
Ressalto que a guerra entre sociedades indígenas, de modo geral, pode ser considerada
mais simétrica, pois está ordenada a partir de um sistema de trocas mais amplo, que
visam o equilíbrio do butim, mesmo que considerando espaços de tempo distintos (o
ano de trazer e o ano de ceder bens e pessoas, por exemplo). Neste sentido, uma guerra
117
ocidental entre nações ou uma guerra entre uma empresa capitalista e uma comunidade
tradicional pode ter como princípio a assimetria de poder de fala e de fogo. Por outro
lado, lutas, conflitos ou guerras, seja como conceitos sinônimos, seja como categorias
antropológicas distintas, implicam, logicamente, em ganhos e perdas, trocas e partilhas,
predação e submissão e não necessariamente obedecendo a simetria ou o equilíbrio
(por exemplo, mulheres podem ser butim de guerra constituindo outros necessários ao
sistema exogâmico de casamentos, ou em outros contextos serem estupradas, fator
comum em guerras de modo geral).
“Outro ponto relevante é que ao tratar as guerras nas sociedades primitivas
somente como positividade, o lado destruidor fica esquecido. Acredito que a
guerra é um meio de sociabilidade no mínimo para os casos Tupinambá e
Botocudo – entretanto não como ignorar a destruição de pessoas material
e imaterialmente.” (ARANTES, 2006: 29).
A guerra no Jambuaçu é imanente porque é fundadora do grupo enquanto quilombo
histórico. A guerra também é parte da trajetória da comunidade de manutenção do
território e seus modos de vida, como observamos no caso da Reasa e da CVRD.
Também é imanente porque a predação é parte de uma cosmologia em que todos os
animais são potencialmente malignos (GALVAO, 1955:106), em um panteão que
estabelece relações de alteridade entre o mundo do rio, da floresta e o dos homens (em
que são raros, por exemplo, os animais domésticos).
“As brenhas daquelas florestas podiam proteger os quilombolas, mas o
isolá-los. Quilombolas visitavam as vilas e povoados próximos para praticar
saques, razias e seqüestros. Nos primeiros anos do século XIX temia-se que
os pretos amocambados de Araguari, em Macapá, se aproximassem da
cidade de Macapara fazer tumultos na ‘noite de natal’.” (GOMES, 2005:
51).
Seria o conflito disjuntivo e a guerra conjuntiva, devido à questão da troca inerente a
esta última? Tendo a crer que o. A diferenciação conceitual entre guerra e conflito é
tão somente uma escolha teórica da Disciplina, e não uma distinção de conteúdo
intrínseca aos termos. Fausto (2001) ressalta alguns tipos de conceituação de guerra,
como a de Malinowski (1941: 522), em que os limites são dados pela autonomia
118
política: guerra é “conflito armado entre unidades politicamente independentes”, ou de
Mead (1940: 402): “conflito reconhecido entre dois grupos enquanto grupos, no qual
cada grupo coloca um exército (mesmo que este seja de apenas quinze pigmeus) no
campo para combater e matar, se possível, alguns dos membros do outro grupo.” Sua
própria definição, no entanto, consiste em:
“Por isso, prefiro utilizar o termo guerra de maneira bastante ampla e frouxa,
sem me preocupar com uma definição precisa. Classifico como evento
guerreiro todo e qualquer encontro entre grupos indígenas que se percebam
como inimigos e resulte em violência física, independente da dimensão
desses grupos ou da amplitude da violência. Nessa categoria incluo também
tanto um ataque de monta a uma aldeia inimiga como uma escaramuça entre
grupos de caça no meio da floresta.” (FAUSTO, 2001: 271).
Uma primeira consideração à definição de Fausto (2001) é a questão da “violência
física” como definidora do conceito, pois outras formas de violência (seriam
simbólicas?), de qualquer modo, imprimem nos corpos sua marca. Mas aceitando de
modo geral sua definição, temos que a mesma diz sobre os conflitos analisados neste
trabalho.
A meu ver, em contextos de oposição onde não resistência e conflito, as relações são
fundadas a partir da submissão de um grupo e dominação do outro. O conflito, por outro
lado, é a ação de tentar tornar simétrica a relação, a tentativa de trocar no sentido de
garantir a fala ao lado tornado mudo, ou amordaçado. Neste sentido, o conflito viabiliza
a troca tanto quanto a guerra: o as trocas de mulheres ou de cunhados (e as trocas
materiais a elas associadas), mas as trocas discursivas entre grupos que não
compartilham, como aponta Soares (1981), os mesmos “códigos de referência”. Como
vimos em Burke (1996) e Taussig (1980), relações conflituosas cotidianas são possíveis
e desejadas por aqueles que estão em posições subalternas em um contexto. A
resistência é operada, assim, por escolhas interpretativas acerca da realidade que se
apresenta, bem como leituras particulares das instituições do outro e fortalecimento das
suas próprias, seja o panteão religioso, sejam as formas institucionalizadas de combate.
119
Fausto (2001: 254-258) analisa dois grupos parakanãs, os quais tem como diferença um
ethos lico mais ou menos manifesto: os ocidentais, mais dispostos para a guerra nos
dias atuais, porque “...a atividade bélica foi a única forma de abertura das mônadas, e
a política exterior passou a ser quase exclusivamente um movimento para a guerra.”; e,
os orientais, que “...estavam envolvidos na institucionalização de um lugar de interação
baseado numa modalidade discursiva a conversa (morongeta) oposta à fala
intimidadora dos guerreiros
73
. Localizados geograficamente em duas áreas indígenas
no Estado do Pará
74
, este grupo étnico possui uma tradição bélica que funcionaria como
mecanismo de reprodução social.
“Na subdisciplina conhecida como antropologia da guerra costuma-se
distinguir, pelo menos, dois tipo de violência armada: de um lado, o uso da
força por sujeitos coletivos, politicamente autônomos, que se defrontam por
interesses blicos; de outro, um modo privado, quase individual, de
violência entre pessoas enlaçadas por vínculos de sangue e/ou parentesco. A
distinção ergue-se sobre uma serie de dicotomias superpostas
público/privado, político/doméstico, comunidade política/comunidade de
sangue etc. dando lugar a tipologias binárias, como a clássica oposição de
Otterbein entre feuding e warfare. Boa parte destas tipologias não admite
combinações impuras: se estas existem no real é porque o formas
transicionais, necessariamente instáveis. A dificuldade de trabalhar com esse
aparato teórico no estudo da guerra primitiva” é que não parecem existir
senão formas transicionais e híbridas.” (FAUSTO, 2001: 269).
Fausto (2001: 277-285) também tem um modelo para analisar a guerra: o primeiro
momento trata da mobilização dos guerreiros (enfurecer-se contra o inimigo, -jemamai
akwawa-rehe); em segundo, tem-se a produção de armas e localização dos inimigos por
parte dos xamãs; e, por fim, o ataque. De acordo com o autor, as técnicas de caça como
73
Fausto (2001) ressalta que uma postura defensiva não deve ser vista somente como reativa, como
imposição da política externa, mas “...é afirmada como uma posição social do grupo.
74
A primeira, na bacia do Tocantins, municípios de Repartimento, Jacundá e Itupiranga não muito
distantes de nossa área de estudos; a outra, Terra Indígena (TI) Apytarewa, na bacia do Xingu, em
Altamira e São Félix do Xingu). No primeiro caso, com representantes de maioria orientais, recebem
assistência de um convênio estabelecido pela FUNAI e Eletronorte; no segundo caso, sem terras
demarcadas, os indígenas vivem em constante tensão com madeireiros, fazendeiros, colonos e
garimpeiros – são em sua maioria representantes do modo ocidental (FAUSTO, 2001:31).
120
as tocaias e os ritos para vislumbre da localização dos inimigos são vastamente
utilizados na guerra.
“No dia 7 de setembro foi o seguinte, entraram na área do Adeló, porque
eles compraram uma área lá, e queria inteirar, mas 12 hectares na terra do
Adeló, ele não consentiu, porque ele tinha a documentação toda legal. A
juíza que tinha falou pra eles o entra na terra do homem, a terra tem
documento, e tal. ele correu com o delegado e pediu pra eles pararem. O
que aconteceu foi que eles continuaram invadindo, o pessoal regiram.
o pessoal (da Reasa) foi pedir na delegacia uma equipe de soldados pra
acompanhar ele pra resolver o problema. Aí o João Martins, que era o
delegado nessa época, disse, o, hoje é dia da pátria, não se pode de jeito
nenhum. Ele com o revolver na mão, outro na cintura e a mão cheia de bala,
foi na prefeitura e falou a mesma coisa, não teve apoio. Aí pegou dois
pistoleiros, que foi o Mineiro e o Guto, pra ir pra lá. Quando chegou na
entrada do ramal, os pistoleiros sentiram e pararam. Quando retornou uns 40
poucos tiros que não sabe em quem pegou. Depois continuou tentando
comprar. A maioria do pessoal que vendeu foi trabalhar pra empresa.”
(Pregote, São Sebastião, 2007. Parêntese meu).
“Quando voltamos, na nossa frente vinha uma carreta da CVRD cheia de
materiais pesados. Por sinal uma carreta muito grande, a ponte, que não
estava em estado muito bom, desabou uma parte. E aí nós fomos em cima
falar com eles e eles disseram que não tinham sido eles, que tinha sido um
carro que tinha passado na nossa frente. Mas nós tínhamos visto! Nós
tínhamos passado na ponte e o tinha desabado, e foi quando eles
passaram. foi aquela questão, tivemos que pressiona-los e junto a
prefeitura também pra que eles assumissem a responsabilidade de consertar
o que eles haviam quebrado. E essa luta, tem sido até pelo Ministério
Publico, foi chamado o prefeito também, essa luta durou 4 meses, pra poder
a ponte ficar num estado transitável.
(…)
o participei (evento dos reféns). Eu tinha ido a Belém levar uma paciente
para uma consulta. Mas o meu filho participou.
E a senhora é a favor dessa ação?
Sou sim! E infelizmente não participei porque não estava aqui, porque se eu
estivesse participaria, e se tiver outra eu participo também, porque o que a
CVRD está causando no nosso território é um absurdo.” (D. Raimunda, São
Bernardino, 2007. Parêntese meu).
121
O objeto da predação quilombola não são outros homens menos humanos que os
parentes, como no caso dos indígenas, mas, sim, as instituições do outro. O que se
engloba (e digere) são as instituições exteriores, elas são necessárias à reprodução social
local: ser sindicalizado, ou quilombola, trata-se da ação de fazer releituras locais de
instituições do outro, de digerir o que vem de fora dando-lhe sentido particular. Assim
como no caso de resistência observado por Burke (1996) entre os africanos, ou de
Taussig (1980) entre bolivianos e colombianos, não se trata de rejeitar o que é imposto,
mas atribuir sentido com base na estrutura cultural anterior aos atos de dominação.
Comunicação produz identidades, e neste sentido, qualquer relação, mesmo que
conflituosa, implica no diálogo com instrumental múltiplo de linguagens, e em retóricas
mais ou menos corporais.
Outra questão é o fato de que o é o gênero que marca a especialização do oficio de
liderança em Jambuaçu: homens e mulheres vão para a guerra, os primeiros com armas
de fogo, as segundas munidas de terçados (facões), ambos abastecidos de um discurso.
As chefias são anteriores aos conflitos propriamente ditos com as empresas, porque o
as mesmas pessoas ou linhagens que ocupavam os cargos das irmandades de santos. Da
mesma forma como as parteiras são filhas e netas de parteiras, e o mesmo ocorre com as
benzedeiras, as lideranças têm uma tradição familiar que orienta o ethos para a posição
de organização política da coletividade no plano visível.
“O primeiro ponto é a chefia: quem é o chefe, como se tornar um chefe,
como é o processo sucessório, quais atividades o realizadas pelo chefe,
quais as qualidades necessárias para se tornar chefe.” (ARANTES, 2006:
34).
“Cada comunidade chamava seu pessoal e dizia olha, você se acertou
comigo aqui, daqui até aqui eu que mando, que sou o presidente deste lugar,
daqui prali é fulano. Então, faz uma reunião aqui pra s entrar em contato,
outra ali, outra acolá.” (Namô, Santa Luzia, 2007).
“Eu sou acostumado a ir em reunião, eu fui em reunião ana presença
do comandante do exército, até uma vez, ia entrando, ele mandou me
chamar eu fui. Ai cheguei , ia bem vestidinho, que eu achava, ele
122
disse pra mim, ele me olhou assim e disse ‘e trate de se uniformizar pra
voltar’. Eu nem falei com ele. Quando eu fui descendo a escada, ia subindo
um sargento que era meu colega, e eu ia quase chorando, e ele disse ‘rapaz,
o que é que tu tem?’ e eu digo ‘rapaz, o comandante mandou me chamar,
pra mim falar com ele, chegou lá ele deu um grito comigo que era pra mim
ir me uniformizar pra poder ir. E a roupa que eu tenho é essa, não tenho
outra’. Ele olhou assim pra mim e disse: ‘abotoa esse botão da camisa, aí’.
Ai eu abotoei e ele me recebeu.” (Namô, Santa Luzia, 2007).
“Eles (Reasa) chegaram tipo surpresa, se localizando no local aqui de
Santana do Alto, e nós nessa época criamos uma associação, porque eles
taparam o ramal, esse que nós viemos, foi fechado por eles, dali do acapu
pra cima, eu juntei o pessoal, nesse tempo eu tinha uma motosserra, juntei o
pessoal, e trabalhamos, 105 dias e lipamos o ramal, porque era da prefeitura,
mas a prefeitura nessa época estava em conjunto com a própria firma. E
limpamos e conseguimos, eu coloquei assim uma comissão do pessoal
que limpou, e nos tivemos um advogado, o Antonio Pereira, que teve por
com a gente e disse que não podia ser comissão, pois não podia ser
registrada, que antes tinha que ser implantada uma associação, uma
comunidade qualquer. a gente fez a associação dos moradores do
Jambuaçu, porque nessa tinha umas 40 famílias. (...) Essa foi a primeira
associação, depois foram surgindo as associaçõeszinhas e essa ficou
encostada. Eu que era o presidente.” (Pregote, 70 anos, São Sebastião, 2007.
Parêntese meu).
Como foi dito ao final do Capítulo 2, as lideranças foram premiadas por sua atuação no
conflito com a CVRD. Isto significa não só o pagamento por um trabalho, mas o
reconhecimento do grupo pelo engajamento e resultados alcançados no combate. Além
disto, observa-se neste pagamento o reconhecimento da especialização do oficio de
líder, e a sua eficácia.
As empresas que se opõem aos quilombolas, como colocado no capítulo dois, também
têm suas estratégias, que são mesmo de guerra, para confrontar os grupos locais e
alcançar seus objetivos. O butim obtido por estes atores são, no entanto, matéria ou
melhor, a vida social do outro que transformam em valor de troca.
“Butim. s.m. 1. conjunto de bens materiais e de escravos, ou prisioneiros,
que se toma ao inimigo no curso de um ataquem de uma batalha, de uma
123
guerra 2. produto de roubo ou de pilhagem 3. frm. produto de caça ou pesca
4. infrm. proveito, lucro; ETIM fr. Butin (1350) ‘bens materiais e escravos
ou prisioneiros tomados do inimigo em uma guerra, despojo, presa’ <prov.
Buten ‘trocar, partilhar, repartir’; SIN/VAR ver sinonímia de presa; PAR.
Botim (s.m.).” (HOUAISS, 2001: 535).
O retorno da natureza – pistas para um sistema coletivista de uso do território
“…nenhuma diferença é indiferente,
pois toda diferença é imediatamente relação,
dotada de uma positividade.”
Eduardo Viveiros de Castro, 2002.
Foi salientada no Capítulo 2 a necessidade de uma atenção do pesquisador ao tratar da
natureza em estudos sobre grupos denominados como “povos de ecossistema”, em
oposição aospovos da biosfera
75
, colocando em suspeição o critério de repartição por
ruptura dos campos natural e social. Chama a atenção na presente pesquisa a disposição
dos nativos em falar sobre a Matinta Pereira que surgiu como assunto em minha
primeira noite em Santa Maria do Traquateua –, o Boto e as visagens.
Este tópico visa explorar tais informações à luz do pioneiro trabalho de Galvão (1955),
complementado pelas análises sobre a organização das vozes dos humanos e não-
humanos, bem como de seus potenciais políticos, extensamente considerados por Latour
(1994;1999) e Viveiros de Castro (2002).
“Algumas crenças derivam de tradições européias conservadas e
transmitidas pelos colonos dos primórdios do povoamento ou mesmo por
imigrantes recentes, outras trazidas pelos escravos africanos e, finalmente,
muitas que se atribui ao ancestral ameríndio. Essas crenças se modificaram e
se fundiram ao catolicismo constituindo a religião do caboclo.” (GALVÃO,
1955: 91).
O objetivo deste exercício é demonstrar que a agenda política local envolve outros
75
Os povos de ecossistema são aqueles que “...ganham sua sustentação por meio da exploração direta
do ecossistema que os circunda”, ou seja, indígenas, camponeses, caçadores e coletores, enquanto os
povos da biosfera são aqueles que “...têm como ambiente de exploração direta toda a biosfera graças às
altas tecnologias disponíveis., sendo representados por grupos urbanos de modo geral. (LITTLE,
2001:115).
124
atores, que aos olhos dos grupos de oposição (representantes da CVRD, por exemplo)
não estão presentes, mas que participam indiretamente ao serem considerados no
sistema comunicativo das relações de alteridade e repartição do território. Ou seja, os
seres da floresta o são materializados formalmente em uma reunião no Fórum de
Moju, mas são implicadores de decisões políticas mais amplas dos quilombolas em
relação, por exemplo, com a “natureza”. Soares (1981), e também Rinaldi (1979),
analisam como noções de liberdade, força e fartura estão fortemente ligadas às relações
de trabalho na terra estabelecidas por grupos campesinos, e destes em relação a seres
sobrenaturais, como os santos – todos pertencentes ao mesmo sistema de trocas/dádivas.
Assim, para além dos elementos diacríticos mais óbvios inscritos pela etnicidade
manifesta no conflito, outras questões, menos visíveis nas situações de diálogo entre os
grupos, mas capturadas pela pesquisadora, podem ser explicitadas para que o campo de
disputas seja problematizado em seu nível comunicativo e discursivo. Se tomarmos a
definição foucaltiana de discurso utilizada neste estudo (diferente de discurso como
construção retórica, mas como o domínio de práticas discursivas que possibilitariam a
inteligibilidade condições de possibilidade) –, pode-se observar como diferentes
cosmologias implicam em um tipo de diálogo que passa a ser assimétrico não pelas
condições materiais diferenciadas dos atores (e o poder que isto implica), mas
assimetria inscrita pelo não compartilhamento de idéias internalizadas sobre o
verdadeiro e o falso, interesses, linguagem.
Como aponta Wagner (1981), a questão da disparidade de símbolos utilizados por
grupos distintos é problemática a ser considerada na comunicação: para ele, isto gera
metaforização e objetivação na relação de alteridade. Tem-se, assim, territorialidades
diferentes, percepções da natureza diversas, ou seja, um discurso do Jambuaçu, e um
outro, o discurso da cosmologia capitalista.
“The organic conception of society is here dissolved by two synergistic
processes: communality and mutuality give away to personal self-interest,
and commodities, not persons, dominate social being. (…). Divided
psychologically by the market orchestration of division of labor, producers
are also separated from their products.” (TAUSSIG, 1980: 26-27).
125
“This enduring quality of traditional domestic production based on the
production of use-values leads to what we feel are bizarre and irrational
responses to a system that is based on production of exchange-values. It is
important that these responses be specified in this manner and not buried in
the obscure realm that is defined by categories such tradition, the irrational,
and primitive.” (TAUSSIG, 1980: 21).
O exercício feito no Capítulo 2 poderia ser classificado, a partir da teoria da etnicidade
de Poutignat & Streiff-Fenart (1988: 127) como uma análise mobilizacionista, na qual a
questão é saber como a etnicidade é utilizada para organizar a competição em um
conflito social, econômico e político. Proponho agora caminhar no sentido de fazer um
exercício classificado por estes autores como “abordagem cultural”, ou seja, em que a
diferenciação étnica passa a ser o dado primário da análise.
Do ponto de vista histórico, destacou-se no Capítulo 1 que a situação de escravidão e
também a constituição dos quilombos foi compartilhada por indígenas e negros
(SALLES, 1971; GOMES, 2005, TRECCANNI, 2006). Neste sentido, é possível inferir
que os diálogos entre culturas são relevantes para formações cosmológicas atuais na
região.
“O meu bisavô era José Santana Campos, casado com Maria do Ó Campos,
eles deviam ter algum parentesco. Eles que fundaram Centro Ouro. Esse José
Santana era índio. Índio Gavião. Casado com a Maria do Ó que era negra. Ele
tinha duas mulheres, a outra era índia, não morava aqui não. Ele vinha aqui,
tinha uma turma negra aí, e eles trabalhavam na roça, na pesca e caça.
Plantava mandioca, milho, arroz, jerimum, macaxeira.” (Moreira, liderança
Bom Jesus do Centro Ouro, 2007).
As fugas tornaram-se institucionalizadas: eram parte do sistema escravocrata enquanto
ações de oposição ao mesmo, e possuíam especialistas em seu processo de constituição
e repressão os fugitivos, os acoutadores e os capitães do mato. Esta “instituição de
resistência”, como apontado pelos autores que resgatam os documentos históricos da
época, tinha como produto a constituição de territórios negros relativamente autônomos
em regiões diversas da Amazônia.
126
Foi esboçado no primeiro capítulo, ainda, que as irmandades de santos eram uma forma
permitida de associativismo de negros, inclusive escravos, e já em 1682 teria sido
fundada a irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Belém (SALLES, 1971). Tem-
se, portanto, duas instituições históricas de resistência de naturezas diversas, uma mais
radical, porque se formava pelo distanciamento e oposição à ordem estabelecida, e
outra, permitida pelos atores dominantes, as instituições religiosas, consideradas, apesar
da orientação católica, profanas.
Segundo os quilombolas de Jambuaçu, as irmandades de santos, enquanto instituição,
estão enfraquecidas, embora as festas dos santos ainda aconteçam nos períodos de
fartura do ano produtivo. Considerando a participação das lideranças, estiveram
superpostas primeiramente pela organização em sindicatos (que produziu o primeiro
conselho da comunidade), e atualmente pelas associações quilombolas, que guardam os
nomes dos mesmos santos a chefia destas organizações é de modo geral composta
pelos mesmos atores e suas famílias, um modo especializado de atuação e coordenação
da comunidade.
De acordo com Galvão (1955: 39, 48), as irmandades de santo na Amazônia, embora
diferentes das implementadas em outros lugares do país como o Nordeste ou Minas
Gerais, guardariam algumas semelhanças, como o fato de serem geralmente instituições
negras. O culto do santo padroeiro seria uma forma de exercício da autonomia, uma vez
que as autoridades eclesiásticas não tinham poder sobre nenhum de seus âmbitos, nem
sobre os mitos de associação de um determinado santo a uma comunidade, nem sobre o
comando da elaboração dos festejos ou participação nos mesmos. Ao contrário, a igreja
considerava tais cultos como desordem. Em comum, ainda, têm o fato de as entidades
Deus e Cristo serem remotas, sendo que as imagens do santo têm mais destaque nos
cultos do que as cruzes.
Em geral, o culto do santo padroeiro se inicia com um “promesseiro”, que ao alcançar a
graça realiza uma festa para homenagear o santo, atraindo assim, outros devotos
(GALVÃO,1955: 41,52). ainda uma difusão na região amazônica do culto a São
Benedito, considerado padroeiro dos seringueiros (e em diversas partes do país, este
santo é apontado como negro). Os festejos possuem datas específicas, que quase nunca
127
coincidem com as datas oficiais da igreja católica. A comunicação com o santo se faz
por meio de ladainhas ou novenas, nas capelas ou nos altares domésticos, além das
promessas. As irmandades possuem funcionários com papéis bem definidos, como
tesoureiro, procurador, secretário, zelador, mestre sala e andador. As irmandades
organizam, ainda, o sistema de compadrios, pois é nos festejos dos santos que as
alianças são efetuadas no caso estudado por Galvão (Idem: 20) a relação de
compadrio se estabelece no pular da fogueira na festa de Santo Antônio.
Em Jambuaçu todas as vilas têm um santo padroeiro, para o qual são realizados os
festejos, que se iniciam por volta de maio. Também a Nossa Senhora de Nazaré,
padroeira do Pará, tem uma importância central, aparecendo em pôsteres ou imagens
nas salas de todas as casas visitadas Ao lado destas, muitas vezes encontrei a foto do
presidente Lula, da irmã Dorothy Stang e de Chico Mendes.
Em São Bernardino tive informações mais específicas sobre o santo, que se confundem
com a fundação da vila e a história do fundador. Após fundar a vila, Bernardino, pai de
Cutia e Namô, teria feito uma longa viagem. Ao retornar, trouxe consigo a imagem de
um santo, São Bernardino, que ele disse não saber existir. Assim, rebatizou a
comunidade com o seu nome, o nome do santo. O festejo de o Bernardino é 20 de
maio.
“Todavia, os santos, embora tenham seus poderes, não atendem a todas as
necessidades e setores da vida e do ambiente local. O individuo e a
comunidade, apelam para outras crenças, que reunidas àquelas cristãs,
formam o todo da religião. O catolicismo é na sociedade rural da Amazônia,
uma superestrutura, uma ideologia, que se sobrepõe a crenças locais, porém
por si incapaz de responder a todas as exigências do meio.(GALVÃO,
1955: 43).
A não ser pela Matinta Pereira, as visagens e os encantamentos, os outros seres
identificados por Galvão (1955) me foram referenciados como parte da memória,
pois seu desaparecimento está relacionado com o desmatamento, como é o caso do
128
Curupira
76
, e a diminuição da profundidade dos igarapés, como no caso do Boto.
“Carmela: E o que mais tem no mato? Tem curupira aqui?
o, já teve. Meu primo já viu, chegou na cabeceira e viu.
Carmela: E pega fogo mesmo?
Ele cerca a gente, faz visagens, bota medo na gente, e fica perdido no mato.
Carmela: E na época do seu pai, do seu avô, tinha?
Tinha! O tal de mandador do mato, que chegava na mata umas oito hora do
dia, para derrubar madeira, e a gente escutava: eeeeeeeeee! Era curupira. O
cara o ligava, ficava no serviço dele. E o curupira falava: e e e ! mas a
gente fingia que não ouvia.” (Seu Cosme, Centro Ouro, 2007).
De acordo com os dados de entrevistas desta pesquisa, a Matinta Pereira é um ser
noturno. Ela não tem uma forma específica, é uma qualidade por exemplo, Cristina,
filha de Narciso, me relatou que um primo encontrou uma porca à noite, quando voltava
bêbado por uma estrada. A porca era muito agressiva e tentou atacá-lo, ao que ele bateu
muito na porca. No dia seguinte, uma velha senhora da comunidade amanheceu muito
machucada, e pereceu até morrer. O primo, muito culpado, acabou se tornando uma
Matinta Pereira. Ou seja, ele absorveu a qualidade de Matinta Pereira de sua vítima.
Mas de modo geral, se na hora certa de se recolher, todos estão em casa, a Matinta
somente perambula pela mata chamando as pessoas a com ela se encontrar “Fiiiiiit,
Matinta Pereira!”, é o som do chamamento. Quando perguntei o que a Matinta Pereira
faz com a pessoa, me respondiam: “ela abraça a pessoa”. Esta referência não é sexual,
mas de uma violência contaminadora. Se a pessoa está em casa e decide abrir a porta
ou janela para a Matinta, a mesma provavelmente lhe pedirá um café e um cigarro. No
dia seguinte, a pessoa que aparecer na casa pedindo um café ou cigarro revela-se como
a Matinta da noite anterior. Por isso é necessário conter a curiosidade, e manter toda a
casa fechada durante a noite.
76
Woortmann & Woortmann (1997) apontam: “Essa concepção da relação com a natureza é semelhante
àquela dos camponeses caboclos da Amazônia, expressa pela crença no ‘curupira’, ser sobrenatural que
pune os que superexploram a natureza. Como mostra Tatiana Lins e Silva, a não punição dos ocupantes
“modernos” da região que derrubavam a mata em proporções exageradas só podia ser explicada pelo fato
129
O meu conhecimento sobre a Matinta Pereira começou, inclusive, por causa de minha
primeira noite em Santa Maria. Fazia muito calor, e eu perguntei o porquê das janelas
fechadas, e assim, após risinhos quase sarcásticos, a família de Cristina me relatou as
estórias. A partir daí, sempre que eu tinha dificuldade em me entrosar em uma
entrevista, mudava de assunto perguntando sobre a Matinta. Todos têm casos para
contar sobre ela, sempre na terceira pessoa, que eu o conhecia. Somente no final do
campo, uma informante afirmou categoricamente “Fulana, sabe, é Matinta Pereira!”.
Note-se como funciona a etiqueta da relação com a Matinta Pereira: o território é de seu
domínio durante a noite, quando todos devem estar recolhidos em suas casas. Ela passa
no entorno das casas, mantendo-se no escuro, chamando as pessoas. Estas podem
decidir se querem ou não encontrá-la.
A Matinta Pereira é associada ao demônio, mas a escuta das estórias não me fazem
incorrer que trata-se de uma associação com o mal tal como o catolicismo define.
Entretanto, como os quilombolas são católicos, e os seres associados ao catolicismo são
os considerados “legítimos”. O sistema do catolicismo é fechado, não engloba outros
ícones, e assim, a Matinta, parte de outro sistema simbólico-religioso, esassociada ao
“tinhoso”. uma certa simetria na noção de “tentação” embutida na relação que se
pode estabelecer tanto com o demônio quanto com a Matinta, assim como, de maneira
diferente, ocorre com o Boto. Tanto a Matinta como o Boto são perigosos, mas
enquanto com a Matinta algum controle da pessoa sobre a relação, com o Boto este
controle é quase inexistente, apesar dos tabus protetivos que a ele se ligam.
O boto é um invasor. Nas ilhas de Abaetetuba, onde estive antes de ir para o Jambuaçu,
ele é mais presente, certamente por tratar-se de ilhas e não terra firme (outro motivo está
relacionado com o açoreamento dos igarapés informantes me disseram que com este
nível de água o boto não vem”: falavam disto com pesar, mesmo o boto apresentando
perigo para as famílias). Lá, D. Lurdinha me relatou que tivera que se mudar com a
família, quando era ainda mocinha, porque todos os dias os botos apareciam no porto da
casa. O pai dela, com medo do que poderia acontecer às filhas, preferiu abandonar a
casa e ir se estabelecer em outro lugar. Ela conta que a casa nunca mais foi ocupada, e
de que ‘os curupira foram embora’.”
130
que quando passam por de barco à noite, vêem uma sombra de homem dentro, e
vários botos no porto. Maria, também ribeirinha, mas hoje residente em Moju, disse que
a irmã dela morreu por causa do boto. Sua irmã sempre teve muito medo do boto, até o
dia que encontrou um. Tornou-se uma pessoa doente (sempre febril, desanimada, fraca,
magra), não se casou, e morreu antes de completar 30 anos. Outro caso me foi relatado
no próprio território de Jambuaçu.
“O boto é o seguinte, tinha aqui no jambu açu uma mulher, irmã de uma que
chamava Odocia. Ela se agradou, quer dizer, um boto se agradou nela, numa
festa na Santana do Alto, e ela dançou com ele a noite inteira, e ela não sabia
que era boto. Ela ficou impressionada. Quando foi cinco horas da manha ele
disse, eu não posso amanhecer na festa, eu tenho que ir-me embora, aí ele se
despediu dela, e ela procurou ele depois, e não viu mais. Ele tinha dito que
na próxima festa ele ia. Aí não sei se foi aqui no São Bernardino, era
inverno, quando foi umas dez horas da noite, o bicho chegou, parou ,
todo bonitão, uma pinta engraçada, o cara todo perfumado. Chegou e falou
com ela, começaram a se gostar de novo, e ela perguntava de onde ele vinha,
onde parava, aque ela dançou e quando foi cinco horas da manha ela quis
trancar ele, ela tava desconfiada ‘fica, nós vamos em casa’, ele disse não,
que não podia, e tentou despistar ela, foi embora de novo. Quando foi uma
virada ela ficou assim camuflada, ruim, né, aí tinha um curador, o Anastácio,
aí ele foi lá, ela tava amarela, começou adoecer, bem fininha. chegou lá o
Anastácio deu uns banhos nela, ele tinha o poder de saber, quando foi na
hora do trabalho lá ele falou logo pra família dela, que o sofrimento dela era
assim, assim, assim. eles ficaram meio não acreditando. Ele disse, vocês
querem ver, escuta uma coisa, só: se ela tem encontro marcado com ele, ela
pega um dente de alho e mete no bolso da saia, que o boto não vai nem
querer saber dela. O que ela fez, ela tinha encontro com ele, pra descobrir,
ela cismava, então o pai dela disse olhe, esse rapaz que vogosta, é boto.
Pega o dente de alho e enrola na sua saia. Aí quando foi no encontro
marcado da festa, ela pegou o dente de alho e foi festa. Sabe que o cara não
chegou perto dela. E ele o apareceu mais. que ele fica te perturbando,
ele vai levando sua sombra, seu nome...
Carmela: E tem gente que morre disso?
Morre, morre sim!” (Seu Cosme, Centro Ouro, 2007).
Como foi dito no Capitulo 1, a organização espacial das vilas engendra um fluxo
131
comunicativo e material, com base nas relações interior/exterior relacionais, em relação
aos humanos e não humanos, e em relação aos distintos tipos de humanos (quilombolas
versus mojuenses, funcionários, fazendeiros, universitários, políticos). Retomando, o
fluxo-círculo organiza as relações de reciprocidade entre humanos, que trocam objetos,
animais (a serem transformados em alimento), e também homens e mulheres. O fluxo-
corredor organiza as trocas dos humanos com a mata, distinta da roça: esta última,
embora seja aos olhos de um naturalista um lugar do natural, aos olhos dos quilombolas
é lugar do social, é a terra trabalhada. “a mata”, o mato”, é lugar do outro porém,
um outro ambíguo, formado de humanidade e animalidade ao mesmo tempo.
“Descola distingue três modos de objetivação da natureza’: o totemismo,
onde as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas para organizar
logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a relação entre
natureza e cultura é do tipo metafórico e marcada pela descontinuidade
intra- e inter-serial; o animismo, onde as categorias elementares da vida
social’ organizam as relações entre os humanos e as espécies naturais,
definido assim uma continuidade de tipo sociomórfico entre natureza e
cultura, fundada na atribuição de ‘disposições humanas e características
sociais aos seres naturais’(id. 1996:87-88); e o naturalismo, típico das
cosmologias ocidentais, que supõe uma dualidade ontológica entre natureza,
domínio da necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade, regiões
separadas por uma descontinuidade metonímica. O modo ‘anímico’seria
característico das sociedades onde o animal é o ‘foco estratégico de
objetivação da natureza e de sua socialização’ (id. 1992:115), como na
América indígena, reinando soberano naquelas morfologias sociais
desprovidas de segmentação interna elaborada.” (VIVEIROS DE CASTRO,
2002: 362).
Note-se aqui uma diferença com os sitiantes nordestinos analisados por Woortmann &
Woortmann (1997): para eles, o mato era potencialmente um lugar a ser transformado
em roça, e além disso, o lugar de Deus (apesar da ambigüidade). No caso aqui
analisado, em que a agricultura é presente, mas convive com outras formas não menos
valorizadas de trabalho como o extrativismo e a caça, o mato é o lugar de seres que se
“opõem” a Deus, ou melhor, ao sistema católico também presente. Ele é morada de
seres que também são extra-mundanos, e determinantes das condições ideais da mata
lugar entendido antes que como essencialmente potencial para a roça, potencial para o
132
extrativismo. A oposição natureza/cultura articulada pela diferenciação mato/roça
observada pelos autores se complexifica em um sistema onde o mato também é cultura,
porque é necessário para abrigar outros tipos de relações sociais: o entendimento desta
diferenciação entre os dois grupos campesinos deve se voltar para a diversidade de
formações étnicas e questões regionais de percepção do trabalho, além das
particularidades dos distintos panteões religiosos.
Como salientado no Capitulo 2, a possibilidade de acessar uma outra cultura a partir do
marco teórico do multinaturalismo, ou da antropologia simétrica, permite inserir no
debate sobre o “social” outros seres, também sociais, que em outras análises são
considerados como naturais, o que é possível a partir da ruptura (cosmológica)
ocidental. Assim, a qualidade humana e animal da Matinta Pereira, do Boto e do
Curupira, à luz de reflexões sobre o animismo ou o perspectivismo, vem convergir para
modos de percepção do mundo radicalmente diversos daqueles dos grupos que se
colocam em oposição neste território.
“Acredita-se que todos os animais são potencialmente malignos. Cada
espécie possui a sua mãe, a mãe do bicho, entidade protetora que castigam
aqueles que maltratam muito os animais. A mãe assombra o ofensor
roubando-lhe a sombra, o que resulta em loucura. Afirma-se que os
caçadores evitam matar o mesmo animal dias seguidos. Abatido um veado
hoje, é preciso seguir o trilho de uma paca amanhã.” (GALVÃO, 1955:106).
“Cecílio: Agora esse negócio de visão assim, que eles chamam de visagem, o
pessoal da cidade chama visão, no interior é visagem, aqui eu tenho um
colega que mora pra pra estrada, ele disse que morreram 3 irmãos, no
mesmo lugar da estrada. Toda vida que um ônibus passa eles mandam parar
o carro. Eles entram no carro, os três irmãos que morreram, aqui perto da
Concórdia, mas diz ele – e eu não nego –, o ônibus sai 4 horas da concórdia e
entra e o desce do ônibus. Morreram os 3 no mesmo lugar. Toda
madrugada tem isso. Ficam espiando no meio do ônibus e some. Eles entram,
mas ninguém vê eles saírem.
Carmela: Curupira tem aqui?
Cecílio: Não já foram embora, está acabando essas mata, o tem mais
floresta já quase.” (Cecílio, Nossa Senhora das Graças, 2007).
133
“Chama Oiara. É uma sombra que tem dentro do igarapé.
Carmela: e ela tenta os homens?
Tenta tudo, homem, criança, se uma criança encontra no mato, leva a
alma...por isso que tem que batizar bem cedo.” (Seu Cosme, Centro Ouro,
2007. Ênfase minha).
As decisões do grupo são influenciadas por esta cosmologia, por exemplo, as decisões
sobre a vida e a morte dos não humanos, e a divisão territorial (por exemplo, o poder da
mãe do bicho na mata, do Boto no rio, da Matinta no período noturno). Vimos como a
elaboração nativa sobre a perda da presença do Boto e do Curupira por ações de agentes
exteriores que alteram o “habitat” destes seres era negativa. Assim, podemos observar a
qualidade política política enquanto negociação por espaços e poder de fala não
necessariamente simétrica, mas existente nestes seres.
“Parece cada vez mais claro que a emergência e persistência de estruturas
sociais ‘simples’ ou complexas’- evolucionismo social não pode ser
explicada por fatores ambientais tomados em abstração de dinâmicas
históricas e interações societárias de larga escala, bem como de processos de
decisão política guiados por sistemas de valores que respondem a bem mais
que a deságios ou problemas ambientais definidos de maneira extrínseca e
objetivista.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 330).
“Passados alguns dias, esse engenheiro, doutor Paulo, chegou aqui comigo e
com outros meus confinantes, dizendo que tinha feito o levantamento da
área e que o pedaço que a Vale queria usar valia 700 reais. eu disse
que não aceitava os 700 reais, porque ia derrubar vários pés de bacabeira
produtiva, açaizeiros, e outras frutas regionais que tem lá.(D. Raimunda,
São Bernardino, 2007).
Chama a atenção a porção de humanidade de tais seres, tanto nos relatos que registrei,
quanto em Galvão (1955). Por exemplo, o boto sempre é macho, e pode ter relações
sexuais com uma mulher, estando em seu estado de corpo humano, e a mulher pode,
inclusive, engravidar (GALVÃO, 1955:96). O Curupira é descrito como um menino, às
vezes preto, outras um “caboclinho”, e possui uma força extraordinária.
134
“Mulher: Mas a Matinta pereira atormenta a gente. Ela faz o que quer com a
pessoa. É porque tem um rapaz ali que ficou mal. Aí fizemos umas rezas pra
ele. Na cidade também tem, porque eu ouvi assobio. A Matinta Pereira é
igual a nós. De noite ela tem essa devoção dela.... Tem umas que voa....você
ta comendo e bebendo com aquela pessoa e nem sabe...o bicho é horrível.
Uma hora você descobre. Tem um cordão de Francisco que usa, é poderoso,
pai de santo usa, é um cinto trançado. O Moreira de Centro Ouro
sabe...”(Conversa coletiva, Centro Ouro, 2007).
O trabalho das benzedeiras e parteiras é uma síntese do panteão, convergindo tanto as
crenças em santos quanto em outras entidades. Em conversa com uma parteira local, me
foi relatado que ela era parteira porque a mãe e a avó também eram. Perguntei se ela
tinha realizado o primeiro parto após ter se tornado mãe, e ela me disse que não, que era
moça ainda, tinha 13 anos, o tinha ninguém por perto, e ela teve que fazer o parto,
precedido de um Pai Nosso. Questionei quem a tinha ensinado, ao que ela me respondeu
que ninguém, que ela sabia. Depois que acaba o parto (ela já realizou mais de 15 em sua
vida), não se lembra de nada: suspeito que se trate de um processo de encorporação,
uma vez que deu a entender que faz os partos “fora de si”. As benzedeiras têm o poder
de curar de doenças, mas também de fazer “milongas” ou defumações para combater
encantados, panemas (semelhante a um mana negativo, atribuído a quebra de tabus das
mulheres que recaem sobre os caçadores) e maus olhados.
“Eu benzo, só que eu benzo porque minha mãe ela benzia. Mas ela nunca foi
curadeira, que faz macumba, ela só benzia e ensinava os remédios pras
crianças. Aí ela me ensinou a rezar essa oração, aí um dia eu fiz a oração pra
um menino, e fiz obra. Aí agora toda semana eu to benzendo um, dois.
Carmela: E as plantas?
Eu planto, eu tenho no meu terreno, no meu quintal, os vizinhos m, eu
ensino, aí eles ficam bem.
Carmela: O nome da planta, a senhora pode falar ou é segredo?
o, porque cada planta tem um sentido, o banho de arruda, manjericão,
arruda é pra mal olhado, o mato cheiroso, pião roxo...aí tem outras ervas do
mato, cicatinga, cedro, cipó tucano, bom pra dor de cabeça, tem muitos
remédios que a gente tira do mato. Minha mãe fala que minha atambém
benzia, aí ela chegou pra mim e eu comecei, peguei uma pratica com isso.
Ontem de tarde veio uma menina aí, umas cinco horas, ‘ai, minha filha
135
desde cedo baldeando, desinteria e vomito, não mamou mais...benze ela
pra mim’, eu disse pra ela levar na curadeira, mas ela insistiu pra eu benzer.
Eu benzi, hoje de manha ela mandou dizer que a menina tava impezinha.
Carmela: E essas pessoas, te dão algum presente?
Eu não cobro nada, não, mas tem gente que manda farinha, bacaba, açaí...
Carmela: E a oração, é secreta?
o é secreta. A gente reza ela e depois reza uma Ave Maria, uma Santa
Maria e um Pai Nosso, e também oferece pro anjo da guarda da gente e da
criança, para que não seja a gente que esta fazendo aquilo, seja Deus (Drina
dita a oração).” (D. Drina, São Bernardino, 2007).
A estórias destes seres que me foram relatadas possuem uma estrutura que diz um
pouco sobre como uma ideologia de compartilhamento dos espaços se eles
influenciam as relações de gênero e parentesco, de usos dos “recursos naturais”, de
exercício de valores e regulações morais em geral (curiosidade, desconfiança). Não
conflito com tais outros, e sim, convivência. Uma convivência nem sempre harmônica,
mas que não significa conflito: conflito não necessariamente significa desequilíbrio,
tampouco a vida social deve ser compreendida a partir de um possível equilíbrio.
Entenderemos conflito mais aos modos da guerra, da ruptura – seja pontual, seja
cotidiana –, que produz troca e identidades, e não como relações entre os diferentes.
“A linha de estudos sobre a tradição oral tem produzido alguns trabalhos
sobre etnohistória em sentido estrito (Hill & Wrigth 1988; Franchetto 1993;
Hendricks 1993; Basso 1995) que demonstram a importância de uma
consciência propriamente histórica nas culturas amazônicas,
problematizando a imagem tradicional que tende a submergir a memória
indígena no mundo intemporal do mito. As relações entre mito e história,
entretanto, tem sido analisadas quase exclusivamente no quadro da situação
colonial (Hill [org.] 1988); suas implicações para a história cultural mais
ampla dos povos amazônicos ainda não foram adequadamente exploradas.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 338).
A história cultural dos quilombolas efetivamente se inicia no quadro das relações
coloniais, embora a dos negros, não. Por isso, os estudos e atenções devem se voltar
para a diáspora, e quem sabe a religião seja um campo fértil para a conexão destes
136
vários mundos, não em uma perspectiva mitologizante, mas de uma mitopráxis (Sahlins,
1985), de um ponto de vista que aceita que as religiões atualizam uma série de questões
fundamentais e que, em contextos de história oral, funcionam como um meio de contar
a história.
A resistência perene dos quilombolas é viver as relações de alteridade múltiplas que são
possíveis no território do Jambuaçu, permeado por fronteiras com exteriores também
diversos. O butim é a possibilidade de reproduzir-se socialmente, de aprender com a
experiência comunicativa, de potencializar instituições locais e englobar as novas desde
que investidas das lógicas nativas.
137
C
onsiderações finais: o caminho da antropóloga
e outros caminhos possíveis
Tentar compreender a lógica do conflito dos quilombolas do Jambuaçu com a
Companhia Vale do Rio Doce, bem como as relações sociais estabelecidas em outros
conflitos e internamente ao território, foi um desafio permeado de descobertas não
imaginadas, apesar da tentativa de formular perguntas prévias para o desenvolvimento
da pesquisa antes da chegada propriamente dita ao campo. A cada nova vila, a cada
nova casa, novos processos de estranhamento se deram: este foi o cerne deste trabalho
de pesquisa.
Simbolicamente representadas pelas casas de Narciso, Rita e Cutia, as circunstâncias do
campo foram marcadas neste texto porque cada nova casa constituiu-se em uma
chegada. Foram múltiplos os momentos de apreensão acerca das dinâmicas locais, onde
a memória dos textos antropológicos transformou-se em lapsos e fragmentos frente à
quantidade e intensidade de processos comunicativos vividos localmente. Em campo,
fui deslocada por lugares físicos e lugares de fala, aprendizado, lugares das pautas: tudo
se metamorfoseou em meu caminho. Realizando o tradicional exercício antropológico
de retornar, pude refazer o meu trajeto, e confrontá-lo com outros, das teorias.
Uma consideração relevante é a de que faz-se necessário estudar dinâmicas vividas por
grupos negros que histórica e socialmente se fundaram e ainda se encontram em uma
margem falsamente criada pela ordem hegemônica, o por acaso, mas por
características intrínsecas aos modelos de exploração do homem (escravidão) e do
trabalho do homem (capitalismo). O exemplo etnográfico do Jambuaçu visa contribuir,
assim, em primeiro lugar, para o entendimento da conformação atual de identidades
políticas de grupos ditos periféricos, e suas relações com modelos hegemônicos que se
lhes apresentam (desde os marreteiros que exploram o comércio local da farinha aas
empresas voltadas para produção de produtos primários como o dendê ou de exploração
de minérios).
Outra contribuição que considero fundamental é o fato de esta pesquisa trazer
informações (dados etnográficos), para o campo de estudos do negro na Amazônia,
138
região, como foi apontado, em que tais grupos são tomados como objeto de pesquisas
também de forma periférica: assim, vimos como a invisibilidade do negro amazônico
não pode ser atribuída somente à orientação elitizada de nacionalização dos ícones
indígenas em detrimento daqueles de origem africana. Esta invisibilidade também
permeia as políticas estatais, bem como a própria agenda de pesquisas nas ciências
humanas e sociais.
No que diz respeito à identidade quilombola, foi possível, por meio da investigação de
um caso específico, refletir como a auto-nomeão e titulação de terras emergem para
dar novos contornos nas negociações em um conflito que é territorial e fundiário ao
mesmo tempo, e que se articula também em torno de narrativas mais ou menos
legítimas da sociedade nacional. Neste sentido, foi dada extrema importância ao que
vem de fora e se coloca frente à realidade local: as instituições do outro, seu sistema
produtivo, sua moral. O instrumento coletivo de titulação acabou por refletir uma lógica
interna ao território, de uso comum das terras e do que denominamos recursos naturais
(por humanos e não humanos).
Em “Casa de Rita”, foi dada atenção especial à forma como a identidade quilombola,
uma identidade étnica, foi acessada como recurso no conflito com a CVRD. Os saberes
exteriores impostos aos quilombolas o texto do EIA-RIMA, os documentos
apresentados pela empresa, os textos jornalísticos e relatórios técnicos – se legitimavam
como o saber técnico-cientifico a-político, definido por Latour (2002) como a base da
cosmologia moderna que se pretende não fetichista (os objetos são fatos, a natureza é
um fato). Assim, uma disputa por objetos nesta esfera onde diversos técnicos e
cientistas vêm falar/agir sobre o território, tendo vínculos fortes com o modelo
capitalista (e com sua moral que separa humanos e objetos). Este processo de produção
de conhecimentos sobre Jambuaçu se deu de forma unilateral, excluindo os próprios
quilombolas do debate, exceto pelo trabalho da Nova Cartografia Social da Amazônia.
Ainda neste tópico, a caracterização dos atores partiu da ênfase nas percepções distintas
sobre o território Jambuaçu e sobre os recursos naturais ali disponíveis. Duas
perspectivas distintas tomavam forma na descrição e análise das entrevistas
(quilombolas), por um lado, e de documentos (CVRD), por outro. Os tipos básicos de
139
impacto (contaminação no meio ambiente, esgotamento dos recursos naturais e
degradação dos ecossistemas) considerados em estudos socioambientais possibilitaram
o acesso aos níveis de impasse por que passavam os quilombolas. A gigante CVRD,
tradicionalmente exploradora de minério na Amazônia desde os anos 1970, utilizava-se
da ciência, do texto jurídico e de estratégias políticas pouco éticas (controle do saber, do
risco, das instituições municipais) para legitimar e viabilizar o Projeto Bauxita
Paragominas. Em contraposição, os quilombolas se organizaram e realizaram
articulações transníveis, efetuando formas de resistência direta às ações da Companhia.
Ao mapear os atores e as estratégias, foi demonstrado como a CVRD utilizou
caricaturas mal feitas do sistema legislativo e jurídico da sociedade nacional que
regulamenta empreendimentos de mineração com impactos sócio-ambientais,
efetivando práticas ilegais como a assinatura de documentos em branco, fé, não
obediência à regulamentação das instalações em relação ao meio antrópico e outras. Os
quilombolas, no entanto, nem um pouco ingênuos, percebiam este processo legitimado
pelo papel” e pela linguagem imposta do funcionário ou do advogado. Os nativos
elaboraram de forma reflexiva um discurso sobre a retórica, que associa
dicotomicamente modernidade e progresso, tradição e atraso, resistindo às atribuições
externas de nominação da pobreza, e aceitando nomeações como a de trabalhador rural
sindicalizado e quilombola, porque inscritas pela orientação dos direitos. Se o discurso
do exterior, que versa sobre um texto comum (leis) a ser aplicado para todos é por um
lado aceito, por outro, a resistência por meio da leitura local do texto é permanente. Os
quilombolas sabem que as leis não configuram uma narrativa simples, inerte,
onipotente. Eles sabem que os invasores têm a prerrogativa de seu uso, pois foram eles
que as elaboraram.
Esta sabedoria não é uma produção recente, como foi apontado em “Casa de Cutia”. Ela
é parte de um longo processo de constituição da história sócio-política do grupo, seja
aquela lembrada e atualizada pelos próprios nativos, seja aquela reconstituída pela
pesquisadora em “Casa de Narciso”, por meio dos dados históricos acerca dos processos
de constituição dos quilombos na Amazônia. A memória política do grupo tem como
um de seus marcos principais a narrativa de um conflito primeiro com a Reasa na
década de 1980 conflito este que produziu identidades guerreiras, prontas para
140
defender seu território devido à viabilidade e eficácia da luta (este conflito passa a se
constituir como produtor de condições de possibilidade, pois fornece os parâmetros de
verdadeiro e falso acerca da resistência que tornam o conflito de hoje inteligível).
Voltando ao que foi dito em Casa de Rita”, foi elaborado um parêntese que denomino
como “ruptura produtiva”, ou seja, uma tentativa de gerar um rompimento intencional
no texto com o fim de problematizar a análise linear e tranqüila própria ao modelo dos
conflitos socioambientais, trazendo para o foco a dificuldade do diálogo inter-cultural,
das diferenças de percepção do espaço (território, lugar, coisa, objeto) e da natureza
(fonte inesgotável de riquezas, morada de outros atores necessários à reprodução social
local, fonte imediata de alimentos e também de relações de alteridade etc.)
Assim, em “Casa de Cutia”, a natureza retorna para que a análise possa versar sobre as
diferenças cosmológicas dos atores em conflito, fundamentais ao denominarmos o
conceito de guerra aplicado ao caso trocas discursivas. A partir dos santos e outros
seres do panteão religioso, foram trazidas para o foco as formas de percepção do espaço
locais, os fluxos comunicativos com outros diversos, que se organizam por níveis de
percepção do que é mais ou menos próximo (parentes, vizinhos, moradores de outras
vilas, do município, funcionários da CVRD, CPT, pesquisadores, e também visagens,
matintas, botos, oiaras, curupiras etc.). Desta feita, tem-se um sistema em que a
negociação política é onipresente, desde os status e regras seguidas por humanos, até os
limites espaciais e metafísicos estabelecidos (e respeitados) por seres não-humanos,
seres “naturais”, ou seres sobrenaturais. Este limite é sustentado por uma ética muito
particular do trabalho, da exploração da natureza pelo ser humano, da reciprocidade
estabelecida com seres mágicos.
Outros caminhos foram traçados durante o ano de produção do texto. Narciso, lideraa
de Santa Maria do Traquateua, veio à Brasília para uma cerimônia da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais,
onde foi lançado o fascículo da Nova Cartografia Social da Amazônia sobre o território
de Jambuaçu. Narciso ficou hospedado em minha casa, e neste sentido, outras prosas
puderam ser implementadas, agora da perspectiva de Brasília. Em campo, percebi que,
da perspectiva local, Brasília nada mais era que duas imagens na televisão com estética
141
muito própria e repetitiva: a de um repórter em frente a um prédio iluminado narrando
acontecimentos distantes daquele lugar, ou de um salão enorme cheio de cadeiras e
homens vestidos formalmente, discutindo assuntos também distantes, porém percebidos
como fundamentais para um Brasil quase inexistente aos olhos nativos.
Dona Carmita, sua esposa, faleceu em meados do ano, assim como Padre Sérgio, da
CPT. Ambos seguiram caminhos outros, que certamente estão inscritos na memória
atualizada localmente. Em fevereiro de 2008, recebi o convite para a inauguração da
Casa Familiar Rural Padre Sérgio Tonetto. O próximo retorno, o do texto para o
território, possibilitará um novo olhar sobre as conquistas alcançadas, e, quem sabe,
sobre novos impasses e processos de alterizaçao das comunidades quilombolas do
Jambuaçu.
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VELOSO, Mônica Pimenta. Cafés, revistas e salões: microcosmo intelectual e
sociabilidade. In Modernidade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed.: Fundação Getúlio
Vargas, 1996.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. Rio de Janeiro:
Cosac & Naif. 2002.
WAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago: University of Chicago Press,
1975:1981.
WOORTMANN, Ellen F. & WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra. A gica e a
simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
ZIGONI, Carmela. A Antropologia na gestão de políticas públicas para populações
tradicionais do Brasil: uma estratégia de produção de inteligibilidade. Anais da VII
Reunião de Antropologia do Mercosul. Porto Alegre, 2007.
Documentos jurídicos.
BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
_______. Artigo 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal da República. Estabelece que aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, e
dá outras providências. Brasília, DF, 1988.
_______. Lei Federal número 6.938/81. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio
Ambiente, seus fins e mecanismo de formulação e aplicação, e outras
providênciasBrasília, DF, 1981.
_______. Lei Federal número 9.985/2000. Dispõe sobre as reservas extrativistas
brasileiras. Brasília, DF, 2000.
_______. Decreto número 99.274/1990. Regulamenta a Lei 6.902, de 27 de abril de
1981, e a Lei . 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõem, respectivamente sobre a
criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e sobre a Política
Nacional do Meio Ambiente, e outras providências. Brasília, DF, 1990.
151
_______. Decreto número 2.246/97. Dispõe sobre a política exterior do Brasil,
assegurar sua execução e manter relações com Estados estrangeiros, organismos e
organizações internacionais. Brasília, DF, 1997
_______.Decreto nº. 4.887/2003. Regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, DF, 2003.
._______. Decreto número 5.051/ 2004.
Promulga a Convenção no 169 da
Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais Brasília,
DF, 2004.
_______. Resolução CONAMA 01/86. Dispõe sobre as definições, as
responsabilidades, os critérios básicos e as diretrizes gerais para uso e implementação
da Avaliação de Impacto Ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional
do Meio Ambiente Brasília, DF, 1986.
_______. Resolução CONAMA 13/90. Dispõe sobre as Unidades de Conservação e dá
outras providências. Brasília, DF, 1990.
_______. Resolução CONAMA 237/97. Dispõe sobre o Licenciamento Ambiental e
dá outras providências. Brasília, DF, 1997.
PARÁ. Lei Estadual número 6.895/2006. Dispõe sobre a regulamentação da extração
da Castanha do Pará e dá outras providências. Belém, 2006.
152
Referências Eletrônicas
http://www.ibge.gov.br. Estimativa da população por município em 2006. Acesso em
2007, 2008.
http://biblioteca.ibge.gov.br. Histórico do município de Moju, Pará. Acesso em
2007,2008.
www.cptnac.com.br. Acesso em 2007, 2008.
www.cohre.org. Acesso em 2007, 2008.
www.maternatura.org.br. Acesso em 2007, 2008.
www.planetaorganico.com.br. Acesso em 2007.
153
A
nexo 1.
M
apa Território Quilombola Jambuaçu (Moju, Pará).
Fonte: Nova Cartografia Social da Amazônia, 2007.
154
Comunidades Quilombolas de Jambuaçu. Pará.
Comunidade quilombola São Bernardino.
Janelas. Comunidade Quilombola Santa Luzia do Traquateua.
155
Preparando-se para a caça. Casa de Rita. Comunidade quilombola Nossa Senhora das Graças.
Tatu.
156
Preparando a bacaba. Comunidade quilombola São Bernardino.
Farinha e bacaba.
157
Santos.
Capela de São Bernardino.
158
Nossa Senhora de Nazaré.
Casa Familiar Rural.
159
Casa de Narciso. Comunidade Quilombola Santa Maria do Traquateua.
160
Comunidade quilombola Nossa Senhora das Graças.
Casa de Cutia. Comunidade quilombola São Bernardino.Conflito manifesto.
161
Fazendo farinha
Maniwa amolecendo no Igarapé.
Narciso e neta descascam maniwa.
162
Escorrer no tipiti.
163
Maniwa mole com maniwa seca.
Coar.
164
Forno.
Benedito torrando farinha.
165
Comunidade Quilombola de Bom Jesus do Centro Ouro. Entrevista com família em casa de farinha.
Ralando farinha com máquina a pedal.
166
Conflito Manifesto
Guarita. Comunidade quilombola Santa Maria do Traquateua.
Torre da Companhia Vale do Rio Doce derrubada. Comunidade quilombola Santa Maria do
Traquateua.
167
Guarita comunidade quilombola São Bernardino.
Carro Companhia Vale do Rio Doce. Comunidade quilombola São Bernardino.
168
Cancela. Comunidade quilombola São Bernardino.
Guarita. Comunidade quilombola São Bernardino.
169
Impacto
Torre da linha de transmissão (CVRD) e casa de família quilombola. Comunidade quilombola São
Bernardino.
Torre passando pelo cemitério. Comunidade quilombola São Bernardino.
170
Estrada e ponte. Obras de recuperação.
Dendezal da empresa Reasa, atual Marborges.
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