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Fabiana de Amorim Marcello
CRIANÇA E IMAGEM NO OLHAR SEM CORPO DO CINEMA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como requisito
parcial para a obtenção do grau de Doutora em
Educação.
Orientadora: Dr.ª Rosa Maria Bueno Fischer
Capa: Vera Lúcia Gliese
Detalhe do filme A Língua das Mariposas, de José Luis Cuerda (1999)
Porto Alegre (RS), verão de 2008.
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
________________________________________________________________________
M314c Marcello, Fabiana de Amorim
Criança e imagem no olhar sem corpo do cinema [manuscrito] / Fabiana de
Amorim Marcello; orientadora : Rosa Maria Bueno Fischer. Porto Alegre,
2008.
220 f. + Anexos
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade
de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008, Porto Alegre,
BR-RS.
1. Imagem – Leitura – Representação. 2. Criança. 3. Cinema. I. Fischer,
Rosa Maria Bueno. II. Título.
CDU – 778.534.6
________________________________________________________________________
Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes – CRB 10/939
4
DAS NÚPCIAS COM A SAUDADE
Dentro de cada pessoa
tem um cantinho escondido
Decorado de saudade
um lugar pro coração pousar
um endereço que freqüente sem morar
ali na esquina do sonho com a razão
no centro do peito, no largo da ilusão
coração não tem barreira não
desce a ladeira, perde o freio devagar
eu quero ver cachoeira desabar
montanha roleta russa felicidade
posso me perder pela cidade
fazer o circo pegar fogo de verdade
mas tenho meu canto cativo pra voltar
eu posso até mudar
mas onde quer que eu vá
o meu cantinho há de ir
dentro
1
Vivi nesses quatro anos, como em nenhum outro momento da minha vida, a dor da distância:
a distância do lugar em que nasci, das pessoas que amo. Chegado o final deste trabalho e, mais
do que isso, chegado o final de uma etapa, o que fica, porém, não é a tristeza, mas a alegria e
a gratidão às pessoas que souberam, com tanto carinho, se fazer presentes. É o momento de
fazer núpcias com a saudade e agradecer àqueles que dão intensidade e força à minha vida, e
que tornaram “distância”, no meu vocabulário afetivo, sinônimo de “permanência”.
Agradeço à Rosa, essa mulher maravilhosa e surpreendente, que tenho a sorte de ter tão
perto de mim. Agradeço por sua orientação rigorosa, por sua competência, por, com
tamanha sensibilidade, saber respeitar o meu tempo e, acima de tudo, por acreditar e confiar
tanto em mim e no meu trabalho. É com esta tese que terminamos uma etapa de dez anos de
trabalho, de pesquisa e de estudos, que certamente estão hoje gravados, marcados em mim,
no meu pensamento, na minha escrita e no meu corpo. À Rosa, meu “gato de Alice”,
agradeço também pelo carinho, pela cumplicidade, pelas risadas, pelas palavras de conforto e
por se fazer sempre tão próxima. Não tenho dúvidas de que esses dez anos de convivência
foram acompanhados de uma amizade em seu sentido mais genuíno: a amizade que
transforma, que nos modifica radicalmente, que envolve também um jogo de forças e que,
acima de tudo, permite com que a vida e, por que não dizer, a própria existência se torne
mais bela.
1
“Cantinho Escondido”, de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte e Cézar Mendes.
5
Agradeço às professoras que compõem a banca desta tese – e que compuseram a do Projeto
pelas sugestões e pela leitura respeitosa de meu trabalho: Gilka Girardello, Rosália Duarte,
Maria Carmen Barbosa, a nossa Lica (a quem agradeço também pelo olhar sempre carinhoso),
e Margareth Schäeffer, que me acompanha tanto tempo, seja como minha professora na
graduação ou como “vizinha” de sala de pesquisa.
Agradeço ao Eracy, meu parceiro, meu companheiro, por tecer o meu cotidiano com um
amor sem igual, por respeitar com tamanha dignidade a relação que construímos, por saber,
com sensibilidade e maturidade, quando e como estar perto. Tua presença me faz mais forte,
tua leveza me traz paz e teu amor é o que sentido à minha vida. É para ti que dedico este
trabalho... e todos os outros que virão.
Agradeço aos meus pais. Adelice, minha mãe amada, por acreditar que sempre posso mais,
mas por estar lá, cuidando de mim, quando posso menos. Agradeço por estarmos juntas no
amor e nos projetos, por aceitar reinventar comigo a nossa relação quando foi preciso. Enio,
meu pai amado, por me dar a certeza, mais do que ninguém, de que sou especial, por me
amar tão intensamente, por me ceder, desde tão pequena, teu olhar forte e suave, por saber
quando dar a mão e também quando soltar.
Aos meus irmãos, por traduzirmos nossas diferenças em força e amor. Enio, pela
generosidade sem limites e pelas palavras de equilíbrio; Eduardo, pela afetividade e pelas
palavras de orgulho; Fábio, pela cumplicidade e pela alegria. Aos meus sobrinhos-afilhados
Enzo e Lucca, por me fazerem descobrir mais uma forma de amor que, sem vocês, eu não
saberia o quão maravilhosa pode ser.
À Saraí e Luís Henrique, amigos tão presentes, que às vezes confiam e acreditam mais em
mim do que eu mesma. Por me darem, nos últimos meses, o maior gesto de carinho que eu
poderia ter recebido de vocês. Ao Francisco, para quem, queira ou não, serei sempre a
“Faiana”. Ao Pedro, essa nova vida que chega, que se faz forte e nos fortalece ainda mais.
Ao Celso e ao Aveline por me levarem amor, carinho, força e colo, muito colo, num
momento especial: afetos que se acumulam no coração e em meio às tantas lembranças boas
que a nossa amizade já tem. Ao Celso, meu amigo-irmão, agradeço ainda por me fazer rir
como ninguém e por estar sempre disposto a me ajudar.
Ao Tomaz, pela amizade tão generosa, por saber dizer a palavra certa na hora certa, por saber
ouvir e por saber dizer “força” quando mais precisei; por, ainda hoje, conseguir me
surpreender com seu carinho e com sua capacidade de ser sempre mais.
À Suzana, pela amizade fraterna, a quem eu tanto admiro por me ensinar, mesmo que
indiretamente, a não ter medo da vida. Obrigada, Suzi querida, pela escuta solidária e por
estar sempre pronta a dar uma palavra alegre.
6
À Ruth, minha amiga querida, a quem, muitas vezes, não preciso de palavras para dizer o que
sinto e o que penso.
À Gil e Zé, pela presença respeitosa e terna. Aprendo com vocês, com a delicadeza de vocês,
o prazer de uma amizade que nada cobra e nada exige. Agradeço pelos incontáveis gestos de
carinho, pelas risadas, pelo afeto que nos acompanha desde nosso ingresso no mestrado.
Agradeço também por permitirem com que nossos laços se tornem perenes através da minha
afilhada Laura, e agora também pela Isabela.
Em meio às andanças, tive a sorte de encontrar pessoas que realmente deram outro rumo à
minha vida, em momentos tão importantes. À Hélène, agradeço por suas palavras de
sabedoria, por me ensinar a amar ainda mais o francês, por abrir as portas da sua casa para
mim e, com isso, permitir que meu sonho fosse muito, muito, muito além do que eu havia
imaginado. À Christine pelo teu “j’arrive”, que jamais vou esquecer, e porque sem sua
presença amiga, minha estadia em Paris certamente não seria o feliz e cheia de descobertas.
A Euvaldo Mattos, pela escuta atenta, por acreditar, obstinadamente, na minha afirmação e
por me ajudar a compreender talvez uma das lições mais difíceis que ainda tenho que
aprender: a de que para ganhar precisamos saber perder.
À minha família portuguesa, pelo carinho, pela ternura que a distância não separa e muito
menos apaga. De forma especialíssima, agradeço ao Eduardo, pela tua serenidade e pelo teu
carinho; a São, Luís, Gonçalo e Bia, Melas e Wagner, pela presença alegre e calorosa em
minha casa, por terem, naquele momento, trazido um pouco de “família” e, assim, me
possibilitarem renovar energias afetivas.
Aos meus amigos queridos Marcelo e Gilberto, pelo carinho e pelas risadas inigualáveis; à
Débora, incansável em me ajudar, em me dar sempre mais e mais dicas, mais e mais
informações sobre Paris, por sua doçura e por se fazer presente; à Paola, pelo sorriso largo e
afetivo que sempre lanças quando nos encontramos, pelos gestos de carinho que só me
fortalecem; à querida Madalena, pela amizade suave, pela torcida e pelas oportunidades; a
Sérgio Lulkin, por, lá pelas tantas, me dizer que eu era “normal”; à Luciana, por me permitir,
contigo, refazer caminhos e também por, nos últimos minutos de escrita, se dispor a ler
alguns dos meus textos e me dar palavras de força; à Leila, Letícia, Gládis, Cecília, Ninha e
Suyan, esse grupo de pessoas tão especiais, pelos momentos de alegria e descontração.
Aos meus amigos queridos da Central de Produções, pessoas que acompanharam no afeto e
na alegria todo meu trajeto aqui, nesta Faculdade: Paula, Aldanei, Flavinho, Mara, Vera
(artista plástica que, com muita sensibilidade, deu mais vida a todos os meus trabalhos, com
suas capas maravilhosas), Zeca e Aldo. À Paula, em especial, por seu cuidado, amizade e
carinho.
7
Ao CNPq pelos nada menos que oito anos de bolsas de estudos (traduzidos em forma de bolsa
de Iniciação Científica, bolsa de Mestrado e bolsa de Doutorado). Sinto-me privilegiada por
contar com o apoio desta agência. Agradeço, em especial, a Josenilson Araújo, pela
prestatividade em responder aos meus emails e dúvidas. Agradeço também à Capes pela
concessão da bolsa de Estágio de Doutorado no Exterior.
Ao professor Jean-Louis Leutrat, da Université Paris III, por sua respeitosa recepção, que me
permitiu ter a autonomia e assistência necessárias para a realização de meu estágio.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação. À Mary, minha tão querida Mary, por sua
competência e, acima de tudo, por sua sensibilidade, pelo abraço afetivo e pelo sorriso
sempre carinhoso. Ao Eduardo e à Ione, pela prestatividade e pela alegria.
Agradeço, por fim, a esta Faculdade, a este espaço que, durante treze anos, posso dizer, foi
praticamente minha segunda casa. Pela alegria de ter aqui passado e feito grande parte da
minha história. E porque não é sem dor que a gente deixa um lar...
8
RESUMO
O tema central desta tese é a análise da imagem da criança no cinema. Para tanto, este
trabalho está alicerçado, ele mesmo, numa imagem conceitual tríptica, na qual as noções de
criança, imagem, autoria remetem, estruturalmente, a seus três eixos fundamentais. Assim, o
objetivo desta pesquisa é desenvolver o conceito de criança a partir de uma perspectiva que
privilegia analisar, em imagens fílmicas: 1) uma vontade afirmativa de potência da criança,
aliada, nietzschianamente, aos conceitos de “esquecimento” e “novo começo”; 2) a estética e a
imagem cinematográfica não como elemento de representação da criança, mas, antes, como
efeito-superfície de sua exata produção; 3) a questão da autoria, partindo não do princípio da
unidade totalizadora “autor”, mas como processo que consiste, também por parte deste, na
organização, sobretudo, de personagens (personae) (STEINER, 2003) e a partir de uma
espécie de “assinatura” (FISCHER, 2005) para seus filmes: uma autoria que teria menos a ver
com instauração de verdades e mais com meras (e potentes) vibrações, justamente porque a
criança, na condição de persona, é tomada, acima de tudo, como prática de criação. Para tanto,
dois conjuntos de materiais constituíram-se como corpus de análise. O primeiro conjunto de
materiais foi selecionado a partir daquilo que se entende por “cinema de autor”. A escolha
deste critério histórico no campo do cinema permitiu que, ao invés de tomar o conceito
de autoria como dado, ele fosse problematizado a partir das contribuições de Michel Foucault
sobre as categorias de “obra” e de “autor”. O segundo conjunto de filmes foi extraído de um
amplo levantamento cinematográfico acerca da relação mais ampla entre criança, cinema e
autoria e foi selecionado na medida em que se tratava de filmes que punham em operação de
forma mais contundente as discussões essenciais neste trabalho (quais sejam, discussões sobre
“real e “ficção”, “pureza” e “impureza” da imagem). Temos assim constituído o corpus de
análise desta pesquisa: O Garoto (1921), de Charles Chaplin; Zero de Conduta (1933), de Jean
Vigo; Vítimas da Tormenta (1946), de Vittorio De Sica; Bom Dia (1959), de Yasujiro Ozu; Os
Incompreendidos (1959) e O Garoto Selvagem (1970) de François Truffaut; Pixote, a Lei do Mais
Fraco (1981), de Hector Babenco; Fanny e Alexander (1983), de Ingmar Bergman; Onde Fica a
Casa do Meu Amigo? (1987), de Abbas Kiarostami; Central do Brasil (1998), de Walter Salles, A
Língua das Mariposas (1999), de José Luis Cuerda; Promessas de um Novo Mundo (2001), Justine
Shapiro e B. Z. Goldberg; Nascidos em Bordéis (2004), Ross Kauffman e Zana Briski. Por fim,
partindo de um entendimento do cinema como arte e da não diferenciação básica entre filmes
para criança e filmes para adultos, apresento, propositivamente, algumas bases sobre as quais
seria possível efetivar um encontro entre cinema e escola. Entendo que se trata de um
trabalho ético e político a ser realizado, tendo em vista que, muitas vezes, a própria escola
vem se configurando como o único espaço onde crianças e jovens m acesso a esse tipo de
experiência.
Palavras-chave: criança, imagem, autoria, cinema.
9
RESUME
Le sujet central de cette thèse concerne à l’analyse de l’image de l’enfant au cinéma. Ainsi, ce
travail est, lui-même, soutenu par une image conceptuelle triptyque, dans laquelle les notions
d’enfant, d’image et d’auteur se remettent structuralement aux trois axes de la thèse.
L’objectif de cette recherche est de développer le concept d’enfant à partir d’une perspective
qui privilégie décrire dans les analyses filmiques : 1) une volonté affirmative de puissance de
l’enfant, soutenue par les concepts nietzschéens d’« oubli » et de « renouveau » ; 2)
l’esthétique et l’image cinématographiques pas comme des éléments d’une représentation de
l’enfant, mais, avant tout, comme des effets-superficie de sa production ; 3) la question de
l’auteur, pas comme une unité totalisatrice, mais comme ce qui consiste à l’organisation de
personnages (personae) (STEINER, 2003) et à la composition d’une « signature » (FISCHER,
2005). L’auteur (ou le directeur-auteur), en ce sens, a moins à voir avec l’instauration de
vérités et plus avec des vibrations puissantes parce que l’enfant, à condition de persona, est
considéré surtout comme pratique, comme acte de création. Méthodologiquement, le corpus
de l’analyse est constitpar deux groupes des matériaux filmiques. Le premier groupe a é
sélectionné par le critère de ce qu’on comprend comme « cinéma d’auteur ». Le choix par ce
critère historique dans le domaine du cinéma a permit qu’au lieu de prendre l’auteur
comme une unité donnée, il a été possible de le problématiser à partir des contributions de
Michel Foucault en ce qui concerne aux catégories d’«œuvre » et d’« auteur ». Le deuxième
groupe a été dégagé d’un vaste dénombrement cinématographique et les filmes ont été
sélectionnés dans la mesure où ils mettaient en jeu d’une façon plus pertinente les discussions
centraux de ce travail (discussions sur le « real » et le « fictionnel », la « pureté » et l’«
impureté » de l’image). Les films choisis sont : The Kid (1921), de Charles Chaplin; Zéro de
Conduite (1933), de Jean Vigo; Sciuscia (1946), de Vittorio De Sica; Bonjour (1959), de
Yasujiro Ozu; Les 400 Cents Coups (1959) et L’enfant Sauvage (1970) de François Truffaut;
Pixote, La Loi du Plus Faible (1981), de Hector Babenco; Fanny et Alexander (1983), de Ingmar
Bergman; est la Maison de Mon Ami? (1987), de Abbas Kiarostami; Central do Brasil (1998),
de Walter Salles, La Langue des Papillons (1999), de José Luis Cuerda; Promesses (2001), Justine
Shapiro e B. Z. Goldberg; Camera Kids (2004), Ross Kauffman e Zana Briski. Finalement, en
partant de l’idée du cinéma comme art et d’une non différenciation entre des films pour les
enfants et des films pour les adultes, on propose quelques bases sur lesquelles on peut
promouvoir un rencontre entre le cinéma et l’école. On comprend que c’est un travail
éthique et politique à se faire, d’autant qu’en général l’école est le seul lieu où les enfants et
les jeunes peuvent accéder à ce type d’expérience.
Mot-clés : enfant, image, auteur, cinéma.
10
ABSTRACT
The main subject of this thesis is the analysis of children image in the cinema. As such, this
work itself is founded on a tryptich conceptual image; on which the notions of child, image and
authorship are its three fundamental axes. Therefore, the objective of this research is to
develop the concept of child in a perspective that analyzes, in motion picture images: 1) an
will of (affirmative) power of child, associated to the Nietzsche concept of forgetfulness and
new beginning; 2) the aesthetics and the cinematographic image as surface-effects of its accurate
production, not as an element of child representation; 3) the way some directors create a
“signature” for their films: a signature more related to mere (and powerful) vibrations rather
than an attempt to establish truth; precisely because here the child is viewed as a practice of
creation as understood by Steiner (2003). Two sets of materials were used to form the
corpus for analysis. The first set was selected using the criterion of authorship, more
specifically, what is understood as “cinema of author”. The choice of this criterion historical
in the field of cinematography allowed the concept of authorship to be studied based on
Michel Foucault contributions on the categories of “author” and
work
”, rather than seen as
pure data. The second set of movies was extracted from an extensive cinematographic
research about the broad relation between child, cinema and authorship. They were selected
for forcefully bringing the essential discussions of this work to surface (being, discussions
about “reality” and “fiction”, image “purity” and “impurity” or even about the webs of
visibility and enunciability of the cinematographic image). The movies are: The Kid (1923),
Charles Chaplin; Zero for Conduct (1933), Jean Vigo; Shoeshine (1946), Vittorio de Sica; Good
Morning (1959), Yasujiro Ozu; The 400 Blows (1959) and The Wild Child (1970), François
Truffaut; Pixote (1981) Hector Babenco; Fanny and Alexander (1983), Ingmar Bergman; Where
Is the Friend’s House? (1987), Abbas Kiarostami; Central Station (1998), de Walter Salles;
Butterfly (1999), de José Luis Cuerda; Promises (2001), Justine Shapiro and B. Z. Goldberg;
Born into Brothels: Calcutta’s Red Light Kids (2004), Ross Kauffman and Zana Briski. Finally,
starting from the understanding of cinema as an art, and the basic non-difference between a
movie for children and a movie for adults; I present some basis over which it would be
possible to gather cinema and school. It is my understanding that this would be an ethic and
politic work considering that, in many cases, the school has been the only space where
children and youngsters had access to such movie experiences.
Keywords: Children, Image, Authorship, Cinema.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
1.0 A CRIANÇA QUE NOS CONVOCA 38
1.1 A criança que é e se faz potência no exercício estético da amizade 58
1.2 Criança e anômalo: multiplicidades em jogo na estética
cinematográfica
75
2.0 A AUTORIA QUE NOS ESCREVE 909999991
2.1 Criança e autoria no cinema: notas sobre o processo criador 107
2.2 Cinema e lembranças infantis: paradoxos da criação no universo do
já existente
123
3.0 A IMAGEM QUE NOS AFRONTA 140
3.1 Real versus ficção: criança e imagem no limite dos regimes de
veracidade do cinema-documentário
159
3.2 Universalidade ética, singularidade mobilizadora: possibilidades de
pensar a leitura das imagens cinematográficas
177
CONCLUSÃO 197
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 207
ANEXO 1 Súmulas dos filmes analisados 221
ANEXO 2 Post Scriptum 227
12
INTRODUÇÃO
A expressão “olhar sem corpo
2
”, presente no título desta pesquisa, é tomada
diretamente de Ismael Xavier (1988, p. 370). É essa a forma como o autor descreve, em
certa medida, a relação que se estabelece entre cinema e espectador. Mais especificamente, a
expressão diz respeito ao aparato cinematográfico, à sua técnica e, sobretudo, ao seu apanágio
criador, que acaba por construir tanto o olhar mesmo do cinema como, de algum modo, o
que se passa entre o nosso olhar e o da câmera.
Poderíamos perguntar, quem sabe, por que não adotar apenas Criança e imagem no
cinema? Seria a expressão olhar sem corpo” uma espécie de mero adjetivo, ou algo que,
talvez, em alguns casos, pudesse ser usado como sinônimo da palavra “cinema”? De forma
alguma. Explico: partindo da leitura de Xavier, podemos afirmar, de maneira mais
sistemática, que a expressão “olhar sem corpo” do cinema nos remete pelo menos a duas
acepções (que de modo algum se excluem, mas, antes, se complementam). A primeira delas,
mais evidente, diz respeito à organização mesma do cinema, à sua capacidade de produzir as
2
Embora tenha encontrado em algumas leituras a expressão “olhar sem corpo” como estando ligada ao cinema
clássico, às suas primeiras manifestações e à sua gramática específica – que, para alguns autores, “esconderia as
cesuras do discurso, em favor da transparência ilusionista” (ADRIANO, 2005, p. 2) –, optei por abordá-la a
partir da ótica de Ismail Xavier (1998), a qual será objeto de descrição nessa seção. Mesmo assim, é
importante antecipar que, como se verá em seguida, interessa-nos discutir a expressão não somente a partir de
um ponto de vista cinematográfico, técnico, mas também a partir daquilo que ela pode ter em comum com
uma filosofia do olhar.
13
imagens com precisão e acuidade, ou seja, diz respeito àquilo que ele oferece a nós,
espectadores, em estado (momentaneamente) pronto: a imagem, como produto de um
olhar, feita a partir de ângulos cuidadosamente selecionados, com profundidades
determinadas, com uma luz minuciosamente escolhida. É exatamente disso que trata esta
característica: de escolhas escolhas que, por um lado, nos são subtraídas, mas que, por
outro, nos garantem o usufruto de um olhar privilegiado (XAVIER, 1988).
Contudo, a escolha da expressão para compor o título desta tese tem a ver, mais
diretamente, com a segunda característica discutida pelo autor: aquela que crê nas potências
expressivas do “olho sem corpo”. Nesse sentido, justamente pelo caráter técnico ressaltado
pela primeira acepção, o cinema reúne, em seu “olhar sem corpo”, as possibilidades de “nos
insinuarmos nos espaços, invisíveis”, de “saltarmos com velocidade infinita de um ponto a
outro, de um tempo a outro”, ou, ainda, “de escrutinar reações e gestos, explorar ambientes,
de longe, de perto”, enfim, “de estarmos em toda parte e em nenhum lugar” (Ibidem, p.
370). A questão aqui – e o que diferencia o cinema de modo muito particular de outros meios
é que, no ato de “tornar visível” e, mais do que isso, de otimizar o efeito da ficção, o olhar
cinematográfico acaba “cumprindo com muita competência uma tarefa que, na esfera da
cultura, se considera como própria à arte” (XAVIER, 1988, p. 371).
Nesse momento, parece-me válido salientar algumas comparações que poderiam ser
feitas à expressão e que, se assumidas, lhe dariam outra orientação. Destarte, por exemplo, é
quase impossível negar as relações aparentes entre a expressão “olhar sem corpo”, de Ismail
Xavier e “cine-olho” (kino-glaz), de Dviga Vertov. Esta última, porém, estaria mais ligada a
uma noção de “cinema verdade”, às experiências estético-cinematográficas propostas por
Vertov que, em nome de uma supervalorização da técnica, visavam apreender algo que seria
impossível ao olho humano. “Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, vos
mostro o mundo como eu posso vê-lo” (VERTOV, 2003, p. 256), dizia o cineasta. A
busca, para Vertov, era a da verdade, daquilo que era negado ou subtraído da imagem graças
à imperfeição do olho humano. Essa nova possibilidade de captura só seria possível a partir de
14
uma libertação total da câmera e, igualmente, pelo cuidado processo de montagem
3
. O cine-
olho seria, assim, justamente “aquilo que o olho [humano] não vê” (VERTOV, 2003, p. 261).
Não é disso que se trata quando nos referimos ao “olhar sem corpo” do cinema.
Consideramos a importância dos componentes técnicos e da relação entre eles para a
produção de imagens muito específicas (e nem por isso afirmamos que se trataria de um olhar
imperfeito ou deformado). Contudo, ao adotar a expressão, e dar tamanha importância a ela,
assumo que não a compreendo como um processo cujo resultado seria a exibição de uma
mera “sucessão natural de fatos ‘capturados’ pelo olhar [no caso, daquele que produz a
imagem]” (XAVIER, 1988, p. 370). Talvez seja esse um dos perigos apontados pela própria
expressão: a de tomarmos o “olhar sem corpo” como mero apresentador de um mundo
autônomo, e este último como dado natural. No entanto, é importante resistir ao risco de
assumir uma concepção segundo a qual o ato de olhar, de assistir, implicaria uma não-
participação do mundo observado – concepção que diria respeito a tratar o cinema tão-
somente como um meio que nos daria a possibilidade de ver o mundo e “ocupar o centro sem
assumir encargos” (Ibidem).
Para Eisenstein, a imagem cinematográfica não poder ser analisada como se fosse,
isoladamente, o produto de um olhar. Mais do que isso, “a suposição de que houve um
encontro, uma contigüidade espacial e temporal, entre câmera e objeto não seria o dado
fundamental para a leitura das imagens (Cf. XAVIER, 1988, p. 376). O que importa é o que
se produz a partir desse encontro, ou seja, importa que, no processo de narrar, de produzir
imagens “o cinema faz fluir as ações, no espaço e no tempo, e o mundo torna-se palpável (...)
com uma força impensável” (Ibidem, p. 371).
Assim, como dito, é apostando na faculdade criadora do cinema (do olhar sem
corpo do cinema) que se fez pertinente (e penso, também, convidativo) trazer a expressão
para o título desta pesquisa. Proponho, de início, que se estará tratando neste trabalho de
3
Vertov amplia, em muito, o conceito tradicional de montagem. Para o cineasta (e talvez fosse melhor dizer,
pela própria definição da palavra kinok), o conceito de montagem abrange desde a escolha do assunto a ser
filmado (e encontram-se todos os dados, manuscritos, livros, recortes de jornal, etc. relativos ao objeto
principal a ser tratado no filme), o conjunto de observações feitas pelo olho humano sobre o tema e, por fim, a
associação, a ordem de sucessão do material, no caso, a edição das imagens propriamente dita (no caso,
imagens agora já filmadas pelo cine-olho) (VERTOV, 2003).
15
duas idéias-chave (ou seja, olhar que seleciona, recorta e olhar que, exatamente por isso,
cria), mas, igualmente, que as mesmas serão levadas em conta não apenas no interior de uma
técnica específica, mas também àquilo de criador que ela remete. A tarefa, portanto, é a de
tensionar a expressão tal como discutida por Xavier, partindo do entendimento de que
“avaliar as potências do olhar sem corpo não é inventariar as imagens que ele oferece”
(XAVIER, 1988, p. 377).
Ainda assim, um terceiro elemento que gostaria de introduzir junto àquelas
apontadas por Ismail Xaviel (e que, de certa forma, radicaliza a idéia segundo a qual o “olhar
sem corpo” é dotado de uma potência criadora). Mesmo correndo riscos de remeter a alguma
idéia de olho (físico) que olha, que, portanto, tem seu senhor, que é executado por um
sujeito circunstanciado, prefiro apostar também na qualidade de olho como, na verdade, uma
imagem que olha. Apostar, portanto, na idéia de que aquilo que vemos também nos olha e
não propriamente na idéia de um centro subjetivo que controla, que comanda e que seria
prodigioso em manipulações. Afirmo, ao contrário, que tratar da criança e da imagem no
olhar sem corpo do cinema diz respeito a refutar a primazia de uma câmera que capta e
produz a imagem (a qual nós, espectadores, vemos), de um diretor que seleciona uma
imagem partindo de seu olhar específico até mesmo porque se pode dizer, inclusive, que o
olho não seria a câmera, mas a tela (DELEUZE, 1992, p. 72). Asseverar a pertinência desse
olhar sem corpo do cinema é afirmar algo que vai além da câmera, além de uma técnica, da
seleção de uma montagem (mas que não as ignora ou descarta): é afirmar em favor do duplo
ato de ver e, igualmente, ser visto.
***
“El ojo que ves no es ojo/porque tú lo veas/es ojo porque te ve” (ANTONIO
MACHADO, 1997, p. 289)
4
. Os versos de Antonio Machado parecem ter inspirado as
palavras do filósofo francês Didi-Huberman, que nos fala de algo bastante semelhante: “O que
vemos vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (1998, p. 29). Ou talvez não se
trate aqui de inspiração, mas de uma espécie de radicalização dos versos do poeta espanhol.
4
Os versos de Antonio Machado dos quais me aproprio foram originalmente citados no texto de Ismail Xavier
(1988).
16
De fato, ambos nos trazem a discussão acerca de um olho jamais passivo, de um olho que
olha, mas que, no ato de mesmo de olhar, é acolhido, cingido exatamente pelo que vê.
De forma sucinta, poderíamos dizer que Didi-Huberman nos indica que “o ato de ver
se manifesta ao abrir-se em dois” (1998, p. 29) e daí justamente residiria seu paradoxo.
A partir da leitura de Ulysses, de James Joyce, o filósofo discute acerca da “inelutável cisão do
ver” e nos convida: “devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete a um
vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui” (Ibidem, p. 31). Ao
enfatizar que o que está diante de nós também nos olha, o autor, de algum modo, rompe com
o subjetivismo do olhar (mais propriamente, daquele que olha), que acreditaria, por
exemplo, conseguir tornar as coisas inexistentes pelo simples fato de fechar os olhos. Da
mesma forma, a idéia apresentada por Didi-Huberman vai de encontro a uma noção de que
tudo é e está visível a nossos olhos, apenas à espera do olhar iluminador dos sujeitos. Enfim, o
autor nos mostra claramente uma ruptura com duas idéias clássicas na filosofia do olhar,
segundo as quais “ou a visão depende das coisas (que são causas ativas do ver), ou depende dos
nossos olhos (que fazem as coisas serem vistas)” (CHAUÍ, 1988, p. 40, grifos da autora). Ora,
mas por que, quando falamos em olhar, se trata de uma cisão, de um abrir-se em dois? E,
ainda, por que se trata de um ato que nos é inelutável?
A visão, o ato de ver, implica sempre um contato primeiro com o volume dos corpos,
esses “objetos primeiros do todo nosso conhecimento e de toda visibilidade” (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p. 30). Assim, os corpos se constituem como algo a tocar, a apanhar,
eles são algo contra os quais nosso olhar invariavelmente “se choca” (Ibidem). A visão, nesse
primeiro momento imediato, estaria relacionada ao ato de absorver o volume visível das
coisas, e, de algum modo, portanto, de tê-las. Contudo,
cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja,
torna-se inelutável quando uma perda suporta [ao contrário daquilo que
“ganhamos”, naquele primeiro no momento de olhar] ainda que pelo viés
de uma simples associação de idéias, mas constrangedora, ou de um jogo
de linguagem e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue
(Ibidem, p. 33, grifos meus).
Dizemos que algo se perde no ato mesmo de olhar, pois não estamos falando de
volumes plenamente preenchidos, dimensões apreensíveis em sua totalidade, mas de
17
superfícies que nos expõem, por vezes violentamente, o (e ao) vazio que as povoam,
impondo-nos um dentro importunador. A potência daquilo que nos olha reside nesse vazio.
Ou seja, no momento em que ver é tanger esse vazio algo morre, algo foge ao nosso
olhar imediato. É desse ponto que as coisas que olhamos nos olham. E, por isso, tal cisão é
inelutável: queiramos ou não, algo nos escapa no ato mesmo de ver, algo que nada tem de
evidente.
Nesse sentido, o ato de ver implica uma perda talvez porque, para alcançar esse
domínio, que se abrir mão, por um momento, de ver as coisas como objetos primeiros do
conhecimento e de visibilidade, como dito acima. Obviamente, não se trata de uma questão
de escolha: ou olhamos as coisas ou elas nos olham, ou “ganhamos” ou “perdemos” algo no ato
mesmo de olhar e ser olhado. Trata-se sim de uma “cisão do ver”, de um ato que se divide, de
forma paradoxal, em dois: olhamos e somos olhados. Assim, permanecer aquém da cisão do
olhar equivaleria a permanecer no volume mesmo das coisas, naquilo que se ganha, que se
soma (a nós?) quando olhamos. Ou seja, permanecer aquém da cisão significaria tão-somente
“ater-se ao que é visto” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 38, grifos do autor). Por outro lado,
permanecer além da cisão “consiste em querer superar – imaginariamentetanto o que vemos
quanto o que nos olha” (Ibidem, p. 40, grifos do autor). Daí surge um novo convite: não
permanecer nem aquém, nem além da cisão abramos o olhos para experimentar o que não
vemos” (Ibidem, p. 34, grifos do autor).
Talvez seja ainda importante perguntar: tudo o que vemos, ou melhor, qualquer coisa
que vemos, efetivamente, nos olha? Creio que aquilo que efetivamente nos olha – ou melhor,
aquilo que tem a potência de nos olhar com mais intensidade, portanto, de nos mobilizar mais
violentamente talvez seja aquilo que menos “volume” detenha, e, conseqüentemente, para
nosso desespero ou satisfação, mais “vazios” possua.
É em torno dessa pergunta – e das suposições acerca de sua reposta que a expressão
“olhar sem corpo” foi escolhida para compor o título desta pesquisa. Pensar a criança e a
imagem nesse sentido diz respeito às problemáticas acerca dos volumes e dos vazios que,
nesse meio específico que é o cinema, elas (criança e imagem) nos apresentam. Ou seja, trata-
se de nos interrogarmos sobre aquilo que se “perde” e aquilo que se “ganha” quando as
18
imagens da criança no cinema nos convocam a olhá-las (e com isso, de pensar sobre a sua
capacidade de nos atingir, de nos perturbar).
Assim, talvez seja esse um primeiro entendimento acerca dos objetivos gerais dessa
pesquisa: assumirmos o vazio da criança, ao invés de nos contentarmos com suas formas
imediatas. No que diz respeito à imagem da criança no cinema, o trabalho aqui será não de
ficar aquém da cisão do olhar o que significaria tanger a criança naquilo que podemos
“ganhar” de imediato, naquilo que ela nos acrescenta de modo trivial. Ficar, portanto, aquém
da cisão seria permanecer na criança que reconhecemos, na criança dos volumes, das formas
exatas, das certezas que uma vontade de saber criou para ela. No entanto, interessam-nos as
possibilidades abertas por esse olhar sem corpo, no momento em que elas são equivalentes à
garantia de nos situarmos, providencialmente, na sua cisão mesma. Trata-se de, por um
instante, abandonarmos a criança das formas exatas em favor daquilo que, dela, não podemos
“tocar”, não podemos “ter”, e não podemos tocar ou ter não apenas porque ela esteja lá, nas
imagens cinematográficas, na sala de cinema, mas porque ligada com aquilo que é da ordem
do acontecimento. Permanecer na cisão do olhar sem corpo do cinema significa, então,
apreender de imagens muito específicas, da criança que instaura um vazio e que, dali, nos
olha incessantemente criança-acontecimento, que ultrapassa as dimensões de sujeito
empírico. É dela, e somente dessa última, a capacidade de se oferecer ao vazio (ou de
oferecê-lo a nós), de se abrir e de nos lançar para além das “arestas discerníveis” de qualquer
volume apreensível de imediato (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 38).
Encontros entre cinema e educação
Poderíamos perguntar, em relação a esta pesquisa, por que e como se dá o encontro
entre educação, cinema e filosofia. Afirmo que tal encontro se faz aqui a partir de questões
semelhantes àquelas das quais fala Deleuze na entrevista Le cerveau, c’est l’écran”. Certa vez,
questionado sobre as razões pela quais estudou o cinema, Deleuze respondeu: “Pude escrever
sobre o cinema, não para radicalizar a reflexão, mas quando os problemas da filosofia me
levaram a procurar respostas no cinema” (DELEUZE, 2003, p. 356, trad. minha). A intenção
19
de efetuar esse cruzamento não é, claro, a de buscar respostas prontas e certamente não é
delas que Deleuze fala –, mas de ir ao encontro do “risco de eles [problemas] se relançarem a
outros problemas”, já que “todo trabalho se insere em um sistema de relançamento” (Ibidem).
Obviamente, de forma infinitamente mais modesta, posso afirmar que, se este
trabalho contempla algumas discussões sobre cinema e filosofia, é exatamente porque os
problemas da educação me levaram a procurar argumentos nesses dois outros campos,
sabendo, desde o início, que cada um deles, inevitavelmente, me relançaria a outros
problemas.
Encontrei, nesses dois campos cinema e filosofia problemas relacionados aos três
conceitos centrais desta tese, no caso, criança, imagem e autoria (e mesmo à combinação
entre esses três conceitos). Certamente, não se trata de uma “coincidência”: “pode-se
conceber que problemas semelhantes, em momentos diferentes, em ocasiões e condições
diferentes movimentam diversas ciências, quer a pintura, a música, a filosofia, a literatura e
também o cinema. Estes são os mesmos abalos em terrenos totalmente diferentes” (Ibidem,
p. 345, trad. minha). Porém, por mais que os dois campos me dessem sempre novos
argumentos para complexificar a discussão que pauta este trabalho, e até mesmo para
repensar os próprios problemas que nele estão envolvidos (e jamais para servirem de mero
apoio reflexivo), foi partindo do terreno da educação que pretendi dar conta das relações que
esses mesmos problemas, pensados como “abalos”, provocam. Nesse sentido, podemos falar
de encontro entre disciplinas, na medida em que este “não se faz quando uma se põe a refletir
sobre a outra, mas quando uma percebe que deve transformar/converter por sua conta e com
seus próprios meios um problema semelhante àquele que se põe também em uma outra”
(Ibidem, trad. minha).
Trabalhar o cruzamento entre, especialmente, “cinema” e criança ou buscar
caracterizar as singularidades de uma imagem cinematográfica parece ser um tema urgente
não apenas na educação, como em outras instâncias sociais. Isso pode ser observado no
momento em que, por exemplo, reuniões como as da Recam Reunião Especializada de
20
Autoridades Cinematográficas e Audiovisuais do Mercosul
5
ocupam-se com a luta pela
implementação de projetos que contemplem o atendimento à criança e mesmo ao jovem. Em
que sentido? Um deles, por exemplo, “prevê a criação de maletas' de produtos audiovisuais
para o público infanto-juvenil, reunindo as melhores obras produzidas pelos países do
Mercosul”. Em março de 2004, durante o III Festival Internacional de Cinema para Infância e
Juventude, na cidade de Buenos Aires, a Recam aprovou um plano de ação para a criação do
“Espaço Audiovisual das Crianças do Mercosul”. O documento garante “a realização de uma
pesquisa sobre a presença e a influência dos meios audiovisuais no cotidiano das crianças do
Mercosul e a criação de uma Rede de Cineclubes de Crianças e Jovens do Mercosul
6
”. Porém,
o mais interessante é que o documento prevê outros dois aspectos ligados à leitura e à
produção de imagens pelas crianças e jovens. Isso seria feito por meio “da inclusão de uma
disciplina voltada para o estudo da mídia no currículo oficial das escolas dos países signatários;
e a implantação de um curso de especialização em produção audiovisual para crianças e
adolescentes nas universidades”. Estamos, nesse caso, tratando da criança como “platéia”,
como espectadora e até como produtora de imagens. O que resulta da crescente preocupação
por parte de organizações (públicas e não governamentais) é não apenas o debate sobre a
produção de produtos destinados às crianças, mas também a busca pela garantia de acesso das
próprias crianças a estes materiais e, ainda assim, pela possibilidade em torná-las produtoras
de materiais cinematográficos.
Além disso, em 2006, pela primeira vez, a Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd) organiza um “Ciclo de Cinema”. O tema: Imagens da Infância.
Realizado em parceria com o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e
com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foram projetados gratuitamente
5
Criada em dezembro de 2003, a Recam tem como objetivo “articular um intercâmbio entre os setores
audiovisuais dos países [do Mercosul] e formar um bloco comercial coeso que possa dialogar com o mercado
exterior”. As propostas da Recam vão desde a implantação de políticas públicas de fomento ao cinema dos
países do Mercosul, à criação de projetos que garantam condições de igualdade de produção audiovisual e de
acesso ao mercado, incluindo a busca pela implementação de um certificado de nacionalidade dos produtos
audiovisuais produzidos no Mercosul; a luta pela equiparação das tarifas alfandegárias; a criação do
Observatório do Audiovisual do Mercosul e a implantação de acordos de cooperação com a União Européia
(dados obtidos em http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia, ultimo acesso: 30 de junho de 2005).
6
Informações obtidas no site http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia, último acesso: 30 de junho de
2005.
21
durante a semana do evento filmes como Machuca, de Andrés Wood (2004), Valentin, de
Alejandro Agresti (2002), Nascidos em Bordéis, de Zana Brisky e Ross Kauffman (2004), A
Língua das Mariposas, de José Luis Cuerda (1999), Promessas de um Novo Mundo, de Justine
Shapiro e B. Z. Goldberg (2001), A Infância de Ivan, Andrei Tarkovski (1961) e O Menino
Selvagem, de François Truufaut (1969). O Ciclo contou ainda com a participação do diretor
Joel Zito Araújo, que participou de uma sessão especial de discussão de seu filme As Filhas do
Vento (2003).
Em final de 2007, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) organizou o I
Encontro Internacional de Cinema e Educação. O evento visava aprofundar o debate entre
cinema e educação e, assim, gerar espaços para a discussão teórica, para a crítica e análise de
imagens e mesmo para dar visibilidade a projetos e pesquisas, nos quais a criação de imagens
coletivas entre professores e alunos estivesse em primeiro plano. A proposta geral evento
centrava-se na “possibilidade de aprender com a experiência de ler, interpretar e fazer
cinema. A intenção também [era] conhecer alguns processos e criações de diversas iniciativas
de produção audiovisual em contexto escolar no Rio de Janeiro
7
”.
Assim, é em função do interesse que emerge atualmente pela temática acerca das
relações entre cinema e criança, bem como, contraditoriamente, em função do número ainda
não muito significativo de investigações feitas no Brasil, no âmbito educacional, que se
alicerçam algumas das justificativas desta pesquisa. Embora tais estudos não representem um
grande número de publicações, nos últimos tempos vem aumentando o interesse de certos
autores – aqueles que já se destacam pela realização de trabalhos diretamente ligados à
educação e, especialmente, à análise cultural da infância pela mídia em dar visibilidade
àquilo que vem sendo produzido para as crianças (em termos de cinema), seja em materiais
que as colocam como personagens centrais das narrativas ou não.
Destaco, nesse sentido, que não é por acaso que Shirley Steinberg e Joe Kincheloe
abrem o livro sobre a “construção corporativa da infância (2001) com dois artigos que tratam
de cinema. O primeiro texto focaliza uma grande discussão sobre os filmes Esqueceram de Mim
7
Informação obtida através do contato com a prof.ª Adriana Fresquet (UFRJ), uma das organizadoras do
evento e coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão Cinema para aprender e desaprender”, a quem
agradeço pelas gentis e profícuas trocas de informações e materiais.
22
e Esqueceram de Mim 2: perdido em Nova York, porque, como afirmam os autores, eles se tornam
emblemáticos em sua alusão a problemas importantes que atravessam as famílias
contemporaneamente: o da criança indesejada, da criança “esquecida”, “abandonada” em casa
fato entendido como “patologia cultural” (STEINBERG e KINCHELOE, 2001 p. 78). O
segundo, escrito por Henry Giroux, lança em seu título a pergunta que tem sido quase que
uma marca desse autor: “os filmes [de animação] da Disney são bons para seus filhos?” (2001,
p. 87). Nesse artigo, em relação aos desenhos animados, Giroux retira do primeiro plano a
característica de entretenimento e coloca, em seu lugar, o entendimento de que estes
materiais atuam, antes de mais nada, como “máquinas de ensino” (2003, p. 89) das novas
gerações. O autor ressalta as dimensões políticas e éticas envolvidas na medida em que certos
grupos (mulheres, negros, árabes) são representados nos filmes de animação Disney. Além
disso, o autor salienta que a análise destes materiais deve compreender não aquilo que
efetivamente eles dizem ou buscam representar em termos étnicos, sexuais, estéticos, mas,
igualmente, a forma como eles vêm sendo “usados e apreendidos pelas platéias adultas e
grupos de crianças” (Ibidem, p. 104).
Destaco ainda a recente publicação intitulada A Cultura da Mídia na Escola: ensaios sobre
cinema e educação, organizada por Maria da Graça Jacintho Setton (2004). na apresentação
do livro, podemos ter uma dimensão da importância de serem feitos estudos que cruzem os
domínios da educação e do cinema: dados de uma pesquisa concluída em 2003 informam que
a programação televisiva em rede aberta veicula um total de 780 horas de filmes por semana
8
(SETTON, 2004). A própria autora enfatiza a urgência em tornar esses materiais objetos de
pesquisa e, ainda assim, fazer deles “material didático”, entendendo-os como “fonte de
informação, como registro de uma época e história, bem como, (...), instrumento ideológico
que ajuda na construção das identidades individuais e coletivas” (Ibidem, p. 67).
Contudo, por mais que o interesse a respeito do cruzamento entre “cinema” e
“infância” (ou “criança”) seja crescente, as pesquisas sobre esse assunto ainda não chegam a se
constituir como um campo de discussão expressivo como mostra um breve levantamento
nos últimos sete anos sobre esse assunto, feito entre quatro dos cinco principais periódicos da
8
A pesquisa foi realizada pela autora do livro referido e os dados foram coletados no estado de São Paulo.
23
área da educação
9
, bem como a partir de uma recente pesquisa realizada por Sônia Cristina
Soares Dias Vermelho (2004).
Primeiramente, com base neste levantamento, observo que, no periódico que mais
apresenta títulos ligados ao cruzamento em questão, foram publicados apenas cinco artigos
(dois em edições de 2000 e 2001, dois nas duas primeiras edições de 2002 e um em 2006),
sendo que quatro deles se dedicam diretamente à análise de filmes (no caso, um deles analisa
o filme Estado de Cão, de Peter Brosens e Dorjkhandyn Turmunkh; outro analisa Apocalipse
Now, de Francis Ford Copolla, o terceiro analisa dois filmes de animação, Castelo de Areia, de
Co Hoedeman e Histoire de Perles, de Ishu Patel e o último o filme brasileiro Dois Perdidos em
uma Noite Suja). Por promover uma análise imediata dos filmes, esses quatro artigos não
ampliam as discussões para além desses materiais, como o faz, no caso, o quinto texto, que
se dedica a desenvolver uma abordagem dos processos de constituição de subjetividades
pautados na construção de narrativas histórias ouvidas, lidas, cantadas, contadas. Para tanto,
e sim, o texto se utiliza da análise do filme Central do Brasil, de Walter Salles
10
. O segundo
periódico, em termos de “volume” de publicações de materiais sobre cinema, apresenta um
único artigo. O texto presta-se a avaliar a experiência pedagógica realizada em uma oficina de
cinema que, por sua vez, proporcionou a apresentação simultânea de três filmes de Glauber
Rocha (experiência, esta, que diz respeito ao projeto Trilogia da Terra, concebido pelo
próprio diretor)
11
. O terceiro periódico não traz nenhum artigo sobre cinema, no entanto,
apresenta duas resenhas de livros ligados ao tema (nas edições de 2002 e 2003). O último
9
A escolha destas revistas foi feita com base no relatório de avaliação dos periódicos brasileiros em educação
(qualis/Capes) referente ao período compreendido entre 2001-2003. Nesse sentido, o levantamento foi
realizado entre quatro das cinco revistas avaliadas com o conceito “Internacional A”. São elas a revista Educação
& Realidade (UFRGS), Educação e Sociedade (UNICAMP), Revista Brasileira de Educação (ANPEd) e os Cadernos
Cedes (UNICAMP).
10
As referências dizem respeito, respectivamente, aos artigos: ALMEIDA, Milton José de. O eclipse, o dragão
e o cinema estudo sobre o filme O estado do cão. Educ. Soc., set./dez. 2001, vol.22, n.° 77, p. 273-280;
OLIVEIRA JR, Wenceslao Machado de. Rio acima: percursos pelo filme Apocalipse Now. Educ. Soc., abr. 2002,
vol.23, n.° 78, p. 287-295; BRUZZO, Cristina. Areias e contas em movimento: análise de dois filmes de
animação. Educ. Soc., maio/ago. 2002, vol.23, n.° 79, p.297-301; FONTANA, Roseli A. Cação. A
constituição social da subjetividade: notas sobre Central do Brasil. Educ. Soc., jul. 2000, vol.21, n.° 71, p. 221-
234; e, por fim, AMORIM, Antonio Carlos. Invisível e não enunciável. Edu. Soc. set./dez. 2006, vol. 27, n.°
99, p. 1367-1372.
11
O artigo referido aqui é de autoria de Anita Leandro, publicado em Educação & Realidade. Porto Alegre:
Faced, UFRGS, vol. 28, n.° 2, jul./dez., p. 9-28,2003. Contudo, é importante ressaltar que essa mesma
revista possui outras publicações sobre cinema: dois artigos no ano de 1996 e um no de 1997.
24
periódico observado, mesmo tendo recentemente dedicado uma edição especial à temática
mídia, não apresenta nenhum artigo em que o cinema seja abordado como mote de discussão.
Ainda assim, é importante apresentar alguns dados obtidos pela pesquisa, concluída
em 2005, de Sônia Cristina Soares Dias Vermelho, da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUC-Paraná), intitulada “Tendências da pesquisa em educação e comunicação: a
produção em periódicos científicos”. Nessa pesquisa, foram analisados 58 periódicos ligados
aos programas de pós-graduação em educação e comunicação e, mais especificamente, 1543
artigos, que indicavam pelo título tratar-se de trabalhos ligados a esses dois campos. Duas
conclusões levantadas pela pesquisadora merecem ser salientadas: primeiramente, pode-se
dizer, de modo mais amplo, que os trabalhos que relacionam os estudos de comunicação e de
educação dão ênfase a tal relação a partir de uma ótica ligada à sala de aula, ou seja, tendo
como ponto principal a relação entre alunos, professores e sala de aula. Na pesquisa
coordenada por Vermelho, constatou-se também o número ainda reduzido de trabalhos que
têm como foco de análise as produções fílmicas. A partir desses dados (somados ao
levantamento que apresentei acima), observa-se que são poucas as pesquisas publicadas – pelo
menos, nos periódicos mais reconhecidos na área da educação e cinema. Observa-se, da
mesma forma, que o número de trabalhos em que o foco central é a criança ou a infância em
seu cruzamento com o cinema ainda é limitado.
Porém, fora do espaço das revistas acadêmicas, outros trabalhos que relacionam os
campos do cinema e da educação merecem ser destacados. É válido lembrar, por exemplo,
que um dos grandes congressos
12
ligados à área da educação escolheu, na edição de 2005, a
infância como tema e, dentre as conferências principais que compunham a programação geral
do evento, Jorge Larrosa apresentou seu texto “O silêncio das crianças. Notas sobre cinema e
infância”.
Ainda assim, ao olharmos mais de perto os trabalhos que foram aprovados na
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), especialmente
aqueles apresentados no Grupo de Trabalho “Educação e Comunicação”, encontramos poucos
12
Refiro-me aqui ao COLE Congresso de Leitura do Brasil, que em 2005 teve como título “Pensem nas
crianças mudas telepáticas”, em referência aos dois primeiros versos do conhecido poema “Rosa de
Hiroshima”, de Vinícius de Moraes.
25
textos que concentram suas discussões nos estudos sobre cinema. Como mostra Robson
Loureiro (2003), de 133 trabalhos apresentados no GT Educação e Comunicação entre o
período de 1999 e 2003, apenas 19 tratavam da relação entre cinema e educação
13
. Nessa
produção, destaco o trabalho de Rosália Duarte, apresentado na reunião de 2001, em que a
autora analisa “o lugar do consumo de filmes na formação geral de jovens universitários que
vêem filmes regularmente, assim como o modo como esse público específico constrói
significações no contato com essas imagens” (DUARTE, 2002, p. 3) um dos únicos a lidar
com a questão da recepção na prática de pesquisa. Para o que interessa à discussão que busco
empreender, nos últimos seis anos, apenas seis trabalhos contemplam diretamente o debate
sobre educação e cinema (sendo que três são de uma mesma autora). Destaco, no entanto, os
trabalhos apresentados por Mônica Fantin (2003, 2004, 2006) na ANPEd
14
, por dizerem
respeito, diretamente, à relação entre infância e cinema. Se, no primeiro texto, a autora
preocupa-se em discutir o papel das produções culturais infantis e sua experiência de
formação cultural na educação focalizando o cinema na escola (Idem, 2003, p. 1), no
segundo, ela busca responder às seguintes questões: as crianças vão ao cinema? Como é a
relação da criança com o cinema? Que significados as crianças constroem quando assistem aos
filmes? O que as crianças assistem ou deveriam assistir? Como os filmes são ou poderiam ser
usados na educação?” (Idem, 2004, p. 1). Nesse caso, como se pode perceber, a análise
cinematográfica permanece centrada em filmes que são produzidos para as crianças, e não
naqueles em que ela é protagonista. Contudo, a discussão da autora é inovadora, pois dedica-
13
Para esta pesquisa, consideramos apenas as análises fílmicas, e não aquelas realizadas a partir de desenhos
animados como é o caso do trabalho de Ruth Sabat, intitulado “Os desenhos animados como máquinas de
ensinar”, apresentado em 2002, que se dedica a analisar os longas-metragens de animação da Disney e a forma
como estes materiais operam de modo a garantir a heterossexualidade como sexualidade normativa. Texto
disponível em http://www.anped.org.br/25/ruthfrancinisabatt16.rtf, último acesso em 20 de jun de 2005.
14
Não incluo aqui, neste levantamento, o trabalho de minha autoria, aceito para ser apresentado na 29ª
Reunião Nacional da ANPEd e intitulado “Cinema e educação: da criança que nos convoca à imagem que nos
afronta” ou, ainda, aquele de autoria de Rosa Maria Bueno Fischer, apresentado na sessão especial “A dimensão
estética na formação e atuação docente” e intitulado “Cinema e TV na formação ético-estética docente” os
quais serão retomados em outros momentos desta tese. No que diz respeito diretamente à produção do GT, os
outros dois trabalhos que conjugam cinema e educação são “Da pólis grega às ladeiras do Pelourinho: análise do
filme O Pagador de Promessas e as virtudes de do Burro, de lio Cézar Lobo, apresentado em 2006 (texto
disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT16-2037--Int.pdf, último
acesso abril de 2007) e “Cinema, Educação e Psicanálise: uma questão de transmissão”, de Glacy Queiros de
Roure, em 2007 (texto disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT16-3724--
Int.pdf, último acesso em dez. de 2007).
26
se a realizar uma análise do filme O Mágico de Oz concomitantemente à análise das falas de um
grupo de recepção formado por crianças italianas e brasileiras. No terceiro texto (FANTIN,
2006), retomando a pesquisa de recepção realizada no Brasil e na Itália, a autora mostra o
quanto o papel da escola é essencial para o domínio da linguagem do cinema por parte das
crianças, já que constata uma diferença visível entre as crianças de um país e de outro. Os
resultados de um investimento em uma disciplina como “artes e linguagens” (obrigatória no
currículo nacional italiano) são notórios no que diz respeito à forma como as crianças italianas
se expressam em relação ao filme assistido (e dos argumentos elaborados a partir dos quais
organizam seu pensamento em relação à imagem cinematográfica) e, com isso, no que diz
respeito ao ato mesmo de assistir ao material e de frui-lo.
Dadas essas considerações mais gerais, interessou-me, por um lado, situar a pesquisa
que ora apresento no interior de um campo que, talvez se possa dizer, em ascensão. Por
outro, após empreender algumas discussões sobre a opção assumida em realizar uma pesquisa
que privilegie o cruzamento de campos (no caso, entre educação, cinema e filosofia) e
também sobre as justificativas dessa escolha, passo agora a apresentar o objetivo mesmo deste
trabalho e as aproximações teórico-metodológicas que serão estabelecidas entre os conceitos-
chave de criança, imagem e autoria.
Dos modos de escolher e ser escolhido, de ver e ser visto
Primeiramente, é importante dizer que o critério de escolha dos materiais
cinematográficos que compõem o corpus analítico desse trabalho baseia-se em filmes que
tenham a criança como protagonista. Interessa-me, sobremaneira, a criança em sua
característica de estar ligada à “crítica do que somos, do que nos constitui, do que nos aparece
como necessário, do que temos como fixado como identidade” (LARROSA, 2001, p. 19).
Considerada como sujeito empírico, os filmes analisados privilegiaram a criança em sua
qualidade de agir como crítica do que queremos ser, de tudo aquilo que ainda está na gica
do projeto, do ideal, da auto-conservação, do sentido” (Ibidem). O trabalho buscou, nesse
27
sentido, compreender a criança na medida ela “deixa de ser uma simples representação, uma
idade da vida” e passa a ser “uma arte” (VALLET, 1991, p. 11, trad. minha).
Assim, o que interessou capturar nesses filmes foi justamente aquilo que eles tornam
visível a partir da relação entre criança e imagem. Buscar o que estas imagens tornam visíveis
é diferente de perguntar o que elas representam em sua totalidade. Imagem e criança são
importantes somente pela singularidade que expressam (em sua combinação) e não por aquilo
de universal que podem sugerir. Ao apresentar a criança, importa saber quais são as
singularidades daquela imagem, que a própria imagem é “uma figura que se define não
porque representa universalmente, mas pelas singularidades, pelos pontos singulares que liga”
(DIAS, 1995). Trata-se de perguntar, ainda, sobre esses pontos singulares: que componentes
podemos extrair dos pequenos acontecimentos imagéticos cinematográficos? Em que medida
eles estariam compondo ou exprimindo elementos que remetam à idéia de criança que venho
discutindo até aqui? Ora, das mais variadas acepções que podemos dar à noção de
singularidade (algumas mais ligadas a um senso comum, que entende por singular ou por
singularidade algo que é da ordem do distinto, do excepcional, algo que é “peculiar”,
“característico”), a noção que mais nos interessa é aquela em que singular é o que está fora dos
domínios dos valores (do bem e do mal), que é da ordem da imanência e não da
transcendência.
A questão, portanto, foi caracterizar não “a” criança, mas um conjunto de elementos
cinematográficos que, nas mais variadas circunstâncias, compõem, mesmo que por um
momento, a criança como arte e como acontecimento. Os elementos a serem descritos foram
justamente aqueles que liberam o acontecimento das coisas, dos seres, daquela criança, daquele
estado de coisa, e, por isso, acabam por dar-lhes um outro acontecimento, um outro espaço,
um outro tempo, um outro movimento. Resumindo, tratou-se de descrever os elementos
que têm uma relação com a criança que aparece na imagem, que provêm da relação criança e
imagem, mas que, de modo algum, encerram-se nesse mesmo par. Ao perguntar sobre os
casos, as circunstâncias (“concretos e visíveis numa realidade cinematográfica), estaremos
perguntando, igualmente, sobre o conjunto de singularidades que fez de um estado de coisas,
um acontecimento.
28
Nesse sentido, foi essencial ter clara a especificidade de uma linguagem e mesmo de
um tipo de imagem, que esteve em jogo todo tempo: a linguagem e a imagem
cinematográficas. Assim como Rosa Fischer destaca em relação ao trabalho com televisão
(2001, p. 13), meu esforço foi o de colocar em primeiro plano esta especificidade, a
linguagem própria do cinema, bem como as estratégias de direcionamento de seus materiais
aos mais diversos públicos. E, dentro desse universo, coube ainda sublinhar as múltiplas
variáveis entre os filmes escolhidos para compor o corpus de análise, e que mereceram ser
consideradas: diferenças de produção, de alcance, de nacionalidade de cada um destes
materiais e, acima de tudo, a concepção de criança neles envolvida.
Porém, independente disso (ou quase), creio que a imagem cinematográfica detém a
força capaz de se fazer chocar diretamente com a “imagem dogmática da criança” que, por
sua vez, foi aqui “substituída” por uma multiplicidade de imagens imanentes da criança. Fica
claro que tomamos de Deleuze a expressão “imagem dogmática”, usada pelo filósofo francês
principalmente para referir-se ao que ele chama de “imagem dogmática do pensamento”.
Nesse caso, tratar-se-ia de uma certa imagem “implícita e pré-filosófica que o pensamento
tem de si mesmo e que subjaz a cada tentativa de pensar” que, antes de tudo, está organizada
para adestrar” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 33) seja o conceito de pensamento, seja o
próprio movimento do pensar. O que nos interessou, contudo, foi que, a partir disso,
questionou-se: é possível pensar numa imagem dogmática da criança? Se sim, ela subjaz a
quê? Se os elementos privilegiados da “imagem dogmática do pensamento” são as categorias
do verdadeiro e do falso, como características da representação, quais aquelas da imagem
dogmática da criança? Quaisquer que sejam as respostas a estas questões, o trabalho aqui se
movimenta em torno da pressuposição de Godard em relação ao próprio entendimento sobre
imagem: “não uma imagem justa, mas justo uma imagem”, a partir da qual afirmo: não a
criança justa, mas justo uma criança; não a criança verdadeira, fiel a nossos projetos e
constituição de saberes, mas justo uma criança, na sua capacidade de deles escapar.
Partindo disso, afirmo que o que esteve em discussão foi um mesmo movimento de
pensamento, qual seja, aquele que remete à possibilidade de localizar ou talvez descrever a
criança como potência, a criança como criação, presente nas imagens cinematográficas. Com
29
isso, não estamos afirmando que a criança, o ser infantil, concreto, aquele que povoa os mais
variados espaços institucionais, e nem mesmo o cinematográfico sejam, por um lado, sujeitos
diferentes, nem, por outro, que tenham em si alguma condição perfeita e “verdadeira” de ser
sujeito. A questão a ser discutida e problematizada neste trabalho relacionou-se, antes, com a
tentativa de chocar-se com o movimento de ver e pensar a criança como ser ou como um
campo de conhecimento que foi ou poderá estar em vias de ser dominado, apreendido, e,
por isso, sempre merecedor, cada vez mais, da produção de novos saberes (sobre sua
sexualidade, sobre sua linguagem, sobre seus “problemas de aprendizagem”). Ao invés disso,
a tentativa da qual falo estaria relacionada com idéia de se fazer uma outra escuta, uma outra
escrita sobre a criança (feita com base em autores como Foucault, Nietzsche, Deleuze,
Steiner e outros); firmadas, essa outra escuta e essa outra escrita estariam comprometidas
com uma dimensão do não sabido da criança: não para, após, saber mais dela, mas para lhe
“recolher” o caráter de imprevisibilidade e de acontecimento (escrita e escuta que vêm
sendo feito pelos autores tantas vezes referidos). A criança pensada como criação tem mais a
ver com linha de fuga, com figura que escapa, que foge e que zomba, derrisória, dos saberes e
poderes que a ela tentam objetivar e subjetivar.
Tendo em vista estas considerações, poderia delinear assim o objetivo geral desta
pesquisa:
Desenvolver o conceito de criança a partir de uma perspectiva que privilegia analisar,
em imagens fílmicas:
1) uma vontade afirmativa de potência da criança, aliada, nietzschianamente, aos conceitos de
“esquecimento” e “novo começo”;
2) a estética e a imagem cinematográfica não como elementos de representação da criança,
mas, antes, como efeitos-superfície de sua exata produção;
3) a questão da autoria, partindo não do princípio da unidade totalizadora “autor”, mas como
processo que consiste, também por parte deste, na organização, sobretudo, de personae
(STEINER, 2003) e a partir de uma espécie de “assinatura” (FISCHER, 2005) para seus
filmes: uma assinatura que tem menos a ver com a possessão de um texto imagético e mais
com um relativo apagamento do autor-diretor; uma autoria que teria menos a ver com
30
instauração de verdades e mais com meras (e potentes) vibrações, justamente porque a
criança na condição de persona é tomada, acima de tudo, como prática de criação.
Em relação ao processo de análise dos materiais, creio que é fundamental proceder
em relação a algumas ponderações sobre o ato de assistir às imagens cinematográficas e à
forma como ele foi promovido nesta pesquisa. Num primeiro momento, a mais imediata
delas é a de que todo o processo de análise não se deu na “grande tela” para a qual os filmes
foram pensados originalmente. Tal ponderação acaba dizendo respeito às formas habituais
com as quais nos relacionamos com as imagens do cinema e com os filmes propriamente
ditos, qual seja, a de que eles são vistos essencialmente na tela da televisão. É claro que com
isso perdermos alguma coisa: “imagens nascidas para serem vistas numa tela grande, numa
sala escura, são apresentadas reduzidas, cortadas nas margens, aceleradas” (COSTA, 2003, p.
15). Por outro lado, ganha-se algo nessa transposição, inventa-se uma nova forma de fruir as
imagens fílmicas: seja em videocassete, seja em DVD, os filmes podem ser vistos várias vezes
e, entre outras coisas, pode-se voltar atrás nas imagens, na narrativa fílmica, e inclusive,
examinar fotograma a fotograma.
No cinema, como é sabido, câmera, luz, som, montagem, composição de planos
combinam-se de forma particular, articulando-se no interior de uma gramática específica,
com múltiplas sintaxes. Nesse sentido, e aqui reside uma segunda ponderação, foi importante
dar conta dessa linguagem no processo de análise dos materiais, absorvê-la, dominá-la, pois
assim foi também possível realizar, com mais segurança, a tarefa de “desmanchar” os produtos
sobre os quais nos debruçamos (FISCHER, 2001) tarefa inerente a qualquer trabalho que se
proponha a analisar artefatos audiovisuais.
Mas, afinal, de que elementos dar conta? Apenas para mostrar alguns exemplos do
quão vasta é essa gramática, ao lidar com o cinema, incontestavelmente, lidamos com
variáveis que dizem respeito, por exemplo, ao uso da câmera, aos modos como os espaços são
capturados em seu conjunto, à luminosidade, etc. Nesse caso, poderemos estar falando,
então, de planos gerais, de primeiro plano, de primeiríssimos planos (close up), de detalhe, de
31
plano médio, de plano americano e de plano meio-conjunto
15
. Ainda assim, é importante
distinguir, entre esses planos, se estamos frente a um plano fixo, a um plano em movimento
ou a uma seqüência de planos variados. Em relação ao ângulo da filmagem, poderemos ter
uma filmagem frontal em relação ao eixo horizontal ou vertical do sujeito filmado; da mesma
forma, o ângulo pode ainda ser tomado de cima para baixo ou da direita para esquerda. Em
relação ao modo como essa câmera se movimenta podemos estar lidando com uma
panorâmica, travelling, grua, câmera na mão ou steadycam. Quanto ao som, como diferencia
Duarte (2002), podemos ter os do tipo diegético, “aquele motivado por ações ou fatos
ocorridos na narrativa” (p. 46), como gritos ou ruídos, e os do tipo não-diegético, que
geralmente dizem respeito à trilha musical que pauta o filme e, mais propriamente, as cenas
da narrativa. E, claro, não poderíamos deixar de mencionar a questão da fotografia do filme,
da luminosidade, das “tonalidades” das imagens, dos jogos de sombra e luz, das características
estéticas que os diferentes tipos de iluminação podem dar aos planos de um filme. Todos
esses elementos certamente não esgotam o amplo e rico léxico cinematográfico.
Feitas essas primeiras considerações, afirmo que o corpus de análise desta pesquisa está
constituído por dois conjuntos de filmes, tendo, entre si, apenas um ponto em comum, como
já referido: trata-se de filmes nos quais a criança é protagonista. Ou, dizendo de outro modo,
filmes nos quais ela é figura central no plot
16
de uma narrativa fílmica.
Sendo assim, o primeiro conjunto de filmes é formado a partir de um critério definido
como tendo sido produzidos por “cineastas da criança” (VALLET, 1998, p. 63, trad. minha)
ou, mais amplamente, por aquilo que vem sendo comumente entendido como “cinema de
diretor”. Nesse caso, teríamos, por exemplo, “Truffaut pelo retrato da infância selvagem,
insubmissa; [...] Tarkovski pela representação de um mundo onírico e mágico; Bergman pela
obsessão da memória [...]” (Ibidem). Poderíamos, ainda, acrescentar diretores como Charles
Chaplin, Jean Vigo, De Sica, Jafar Panahi, Abbas Kiarostami, Walter Salles e Hector
15
Não cabe aqui explicitar cada um desses termos. Assim, para uma discussão detalhada da linguagem técnica
do cinema, ver, por exemplo, Costa (2003).
16
Por plot entende-se o “dorso dramático do roteiro, núcleo central da ação dramática e seu gerador”
(MACHADO, 2001, p. 23). Em linguagem televisual, todavia, o termo é usado como sinônimo de enredo,
trama ou fábula: “uma cadeia de acontecimentos, organizada segundo um modo dramático escolhido pelo
autor” (Ibidem). Podemos encontrar ainda o termo multiplot, usado quando nos referirmos a um filme que
apresenta várias linhas de ação, e onde todas as elas apresentam um grau de importância semelhante (Ibidem).
32
Babenco. Por mais que tal indicação, inspirada pelo livro L’Image de l’Enfant au Cinéma, tenha
surgido a partir de uma conclusão de que tais diretores (no caso, Truffaut, Tarkovski e
Bergman) refizeram e repararam o caráter de “perigoso, asfixiante, despedaçado” (VALLET,
1998, p. 63, trad. minha) da vida social, este tornou-se um critério de seleção dos filmes
pois, em se tratando de cinema, seria impossível negar ou simplesmente desconsiderar a
discussão acerca de “autoria”. Mais do que falar de “diretores”, interessou-me apontar para o
fato de que estamos tratando de filmes que marcaram a história do cinema, que serviram de
mote para pensar questões pungentes de um tempo (tempo de guerra, tempo de afirmações
no âmbito de uma arte recente, tempo de dar visibilidade a questões políticas e sociais
importantes). Não por acaso esses “tempos” são inscritos e tornados visíveis na carne de
crianças. Há algo a ser pensado e que, neste trabalho, seria impossível negar. Assim, a escolha
dos diretores se deu não a fim de compreender como “se tecem as redes de troca e de
identificação entre o universo da criança e aquele dos adultos”, tal como propõe Vallet (1998,
p. 63), mas consistiu na tentativa de mergulhar no universo trazido por esses cineastas e,
assim, mostrar como o conjunto destas produções nos mostra e inspira formas singulares
tanto na maneira de lidar com a criança, como na de mostrá-la, construí-la imageticamente.
Além disso, vale desde já destacar que tal critério não foi assumido sem uma problematização
aguda no que diz respeito à própria noção de autoria, baseada e organizada especialmente
pelas discussões filosóficas de Michel Foucault sobre este tema.
O segundo conjunto de filmes foi sendo construído no fazer mesmo da pesquisa. Ao
colocar em movimento os conceitos de imagem, criança e autoria, pude selecionar materiais
que me incitavam a questionar, por exemplo, como analisar as imagens da criança, criadas a
partir de contextos culturais e geográficos tão distantes dos nossos, ocidentais, sul-americanos
e como, nesta mesma condição, havia algo nelas que nos sensibilizava; ou, ainda, sobre as
reverberações das memórias vividas por alguns cineastas e do movimento pelo qual elas são
transformadas em arte, um movimento que envolve a criação, a novidade no interior de algo
que, de fato, existe; ou também critérios que diziam respeito à forma como se organiza a
noção de “real” produzida pelas imagens de documentários, sobre o modo como nos
relacionamos com a imagem documental, a partir da construção de regimes de veracidade.
33
Deste modo, o corpus de análise desta pesquisa é constituído pelos seguintes materiais:
O Garoto (1923), de Charles Chaplin; Zero de Conduta (1933), de Jean Vigo; Vítimas da
Tormenta (1946), de Vittorio De Sica; Bom Dia (1959), de Yasujiro Ozu; Os Incompreendidos
(1959) e O Garoto Selvagem (1970) de François Truffaut; Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981), de
Hector Babenco; Fanny e Alexander (1983), de Ingmar Bergman; Onde Fica a Casa do Meu
Amigo? (1987), de Abbas Kiarostami; Central do Brasil (1998), de Walter Salles, A Língua das
Mariposas (1999), de JoLuis Cuerda; Promessas de um Novo Mundo (2001), Justine Shapiro e
B. Z. Goldberg; Nascidos em Bordéis (2004), Ross Kauffman e Zana Briski.
No decorrer da tese, os filmes não estão separados entre si (justamente porque não
busquei afirmar ou categorizar obras a partir da idéia de diretor-autor). O que une esses
filmes, antes de mais nada, são os conceitos a partir dos quais eles foram lidos e vistos.
Metodologicamente, a escolha dos filmes foi sendo feita concomitantemente à análise dos
materiais e do respectivo desenvolvimento de categorias de análise. Tratou-se, portanto, de
um processo metodológico que não se separou de um processo igualmente teórico: a
metodologia é ela mesma teórica, assim como a teoria e os conceitos são eles mesmos
metodológicos.
Considerando todas as discussões que faço em termos do ato de olhar, de ver
imagens, posso dizer que o processo de análise, sim, estava comprometido com o ato mesmo
de ver os conceitos naquelas imagens. Neste sentido, olhar, ver os conceitos nas imagens diz
respeito acima de tudo de vê-los em suas distorções, em suas incipiências, não na busca de
encontrar o conceito “real” (mais um eufemismo para uma questão de aplicabilidade), mas na
medida em que ver é permitir ir além, em que ver é também criar, em que no ato de ver
coloco sempre um pouco de mim mesma.
Importa dizer que este trabalho está alicerçado sobre três eixos principais, três
conceitos que atravessam o pensamento desta tese: criança, imagem, autoria. Obviamente
que não se trata de, linearmente, dar conta de discussões estagnadas ou presas entre si. Ao
dizer isso, afirmo que a relação entre criança, imagem e autoria está presente na tese por
inteiro, embora em cada um desses eixos encontrar-se-á um dos conceitos em primazia. Mais
34
do que isso, afirmo, então, que se trata de uma tese-tríptica
17
. Tese-tríptica que forma um
e mesmo trabalho, mas poderia, igualmente, ser tomada em cada uma de suas unidades
isoladamente.
Sendo assim, no primeiro capítulo desde trabalho (a primeira imagem do tríptico),
busco introduzir algumas discussões acerca do conceito de criança. Inspirada pelo texto “Das
três metamorfoses” (parábola de abertura do livro Assim Falou Zaratustra), de Nietzsche,
apresento algumas discussões acerca do conceito de espírito criança. É possível dizer que foi a
partir desse conceito, tal como desenvolvido pelo filósofo alemão, que se originou,
especialmente, a pergunta inicial à qual esta pesquisa buscou responder. Nesta pesquisa, não
pretendi desenvolver o conceito de criança como que numa espécie de equivalência entre este
e o espírito criança narrado por Nietzsche. Ao invés disso, a noção de espírito criança serviu
de elemento fundamental para compor um dos conceitos-chave desta pesquisa mas ela não
foi a única.
É importante salientar que o debate operado sobre a parábola foi feito tendo como
referência outras leituras, realizadas por diferentes autores sobre o mesmo texto de
Nietzsche. Por mais que se trate de um texto deveras conhecido, não qualquer certeza ou
segurança em narrar como se dá, efetivamente, cada uma das transformações do espírito,
nem mesmo quanto ao fato de descrever as características que cada uma das personagens
(camelo, leão, criança) possui. O exercício de cotejar diferentes perspectivas sobre o texto
nietzschiano, pode-se afirmar, veio enriquecer o apenas a discussão sobre o mesmo, de
maneira mais ampla, mas um dos conceitos-chave desta tese: o de criança. Explicando
melhor, na medida em que diversos autores, muitas vezes, divergem quanto aos papéis e
características de cada uma das personagens, novas questões acabam sendo colocadas em jogo
e, com isso, mais elementos são introduzidos no debate que fazemos. Partindo das poucas
pistas deixadas por Nietzsche em relação à última transmutação do espírito, busquei
desenvolver o conceito de criança no que diz respeito às suas características de agir ou de se
17
A idéia do tríptico, aqui, não possui nenhuma relação com aquela do tríptico hegeliano tese, antítese,
síntese –, mas remete tão-somente à estrutura plástica composta de três retábulos que, unidos, formam (ou
não) uma única imagem. Considerado como uma criação cristã (dado o recurso potencialmente narrativo da
composição), o suporte tríptico está presente nas artes plásticas pelo menos desde a Idade Média, por
exemplo, em obras como o “Jardim das Delícias” e “O Juízo Final”, de Hieronymus Bosch (1450-1516).
35
constituir como vontade afirmativa de potência, esquecimento e novo começo. Pensando na
efetivação de tal concepção de criança, este eixo possui duas seções.
A forma como a criança torna-se potência e faz-se potência é descrita, na primeira
seção desse capítulo, a partir das relações de amizade que estabelece com outrem. Baseada
especialmente nos textos da fase final da vida e da obra de Michel Foucault nos quais ele se
dedicou a pensar sobre uma ética da existência a partir da leitura de materiais produzidos na
Antigüidade Greco-romana –, descrevo de que modo, em alguns filmes, as relações de
amizade estabelecidas entre crianças e adultos operam numa transformação mútua, passível
de se realizar somente porque a amizade configura-se como espaço de invenção e de
experimentação, já que não está presa a “velhas e rígidas formas de relação institucionalizadas”
(ORTEGA, 1999, p. 156). Além disso, a criança narrada a partir dessas relações faz-se
também esquecimento justamente porque, no espaço de descobrir a si mesma e o outro, nega
a fixação de uma memória e destinos culturais que a mantêm como ser a ser domado e eterno
aprendiz. Os filmes em questão aqui são Central do Brasil, de Walter Salles e A Língua das
Mariposas, de José Luis Cuerda.
A segunda seção do eixo criança” tem como base a discussão sobre o conceito de
multiplicidade (tal como desenvolvido por Deleuze e Guattari), a partir dos filmes O Garoto,
de Charles Chaplin e O Menino Selvagem, de François Truffaut. Por meio dessas análises, busco
outras bases para pensar a relação de encontro entre adulto e criança. No caso, trata-se de
uma relação que favoreça o entendimento sobre a criança como vontade afirmativa de
potência a partir das multiplicidades que estão em jogo quando a criança é a figura do
anômalo ou quando ela encontra o anômalo. Nessa seção, o que importou destacar desse
encontro estabelecido entre adultos e crianças foi o que daí deriva, não em termos de
resultados ou da produção de saberes, mas em termos de singularidade.
A segunda imagem dessa tese tríptica pretende dar conta da discussão problemática
não apenas no cinema sobre o conceito de “autoria”. Realizo o debate sobre esse conceito
por meio de um exercício de sua relativização, especialmente quando comparamos o cinema
com outras artes. Além disso, baseada na discussão proposta por Steiner (2003), relanço a
autoria no interior das diferenças entre invenção e criação, pensando que, mais do que da
36
criança, de um sujeito empírico, tais filmes nos falam, acima de tudo, de “personagens”
(personae), num sentido muito específico: de vidas que pulsam além da superfície filme-
película, vidas que falam de crianças, mas também de vidas que falam um pouco de nós
mesmos.
A primeira seção sobre a autoria tem como objetivo revisitar elementos-chave sobre o
conceito, tal como discutidos por Michel Foucault, especialmente nos textos O que é um Autor?
(2001), A Ordem do Discurso (1989) e A Arqueologia do Saber (2000). Assim, com base na análise
dos filmes Pixote, de Hector Babenco e Vítimas da Tormenta, de Vittorio de Sica, problematizo
o modo como certos diretores imprimem não apenas uma relação de autoria com seus filmes,
no sentido comumente entendido, mas, sobretudo, uma “assinatura” (FISCHER, 2005) um
processo ligado à forma de compor e dar visibilidade imagética à criança. A tentativa, nessa
seção, não é a de reforçar a categoria de “autor”, mas, antes, estabelecer novas bases para ela.
A segunda seção do eixo sobre a autoria analisa um conjunto de filmes cuja
característica central é a de reviverem memórias infantis dos diretores que os conceberam.
Como pensar a criação em cima daquilo que existe? Ou, ainda, como pensar a criação com
base na memória? São essas as duas questões centrais dessa seção. Para efetivar a discussão,
analiso um conjunto de três filmes: Os Incompreendidos, de François Truffaut, Zero de Conduta,
de Jean Vigo e Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman.
No último eixo, que diz respeito ao conceito de “imagem” propriamente dito, a
discussão se da seguinte forma: apoiada especialmente em autores como Michel Foucault
(no que diz respeito às análises de imagem no campo da arte), Gilles Deleuze (especialmente
sobre os conceitos de imagem-tempo e imagem-movimento), Rolland Barthes (sobretudo,
acerca do seu minucioso trabalho sobre os fotogramas fílmicos) e, no Brasil, por Ismail
Xavier, introduzo alguns cruzamentos entre o conceito de imagem e o conceito de criança.
Longe de abarcar a totalidade das discussões que cada autor, a seu modo, efetuou sobre o
conceito de imagem, busco trazê-los para esta tese, na medida em que eles nos auxiliam a
pensar não apenas o próprio conceito de imagem, mas também o de criança e o de autoria,
tão caros a esta pesquisa. Duas seções compõem esse eixo.
37
Na primeira delas, a partir da análise de filmes-documentários, interessa-me revisitar
a grande problemática acerca da relação entre imagem e “real”. Baseada em discussões
extraídas das teorias do “cinema do real”, mostro como se tecem (e como tecemos) “regimes
de veracidade” da imagem nesse tipo de material. Aliado a isso, percorro as crianças
apresentadas pelos filmes Nascidos em Bordéis e Promessas de um Novo Mundo, a fim de destacar os
elementos singulares da criança. Antes de acreditar na objetividade da composição estética
documental, mostro de que modo criança e imagem, nestes filmes, situam-se no limite entre
o “fazer crer” e sua suspensão; mostro como, então, elas escapam de assertivas que buscam
capturá-las para a grande massa amorfa do “as crianças são”.
Na segunda seção, o mote para a discussão da imagem faz-se por meio da análise de
filmes distantes do nosso contexto social e cultural, ocidentais, sul-americanos. Pergunto
como é possível afirmarmos tão categoricamente sobre a impossibilidade de analisarmos
imagens e crianças “orientais” quando vemos, ano após ano, um conjunto de filmes oriundos
desses espaços geográficos e culturais nos sensibilizarem de maneira singular. Tomando como
base a oposição clássica no cinema de “pureza” e “impureza” da imagem, organizo,
especialmente, duas categorias de análise, quais sejam, universalidade ética e singularidade
mobilizadora, para promover a discussão aqui proposta. É, então, na tentativa de não criarmos
mais uma dualidade entre “criança ocidental” e “criança oriental”, bem como no intuito de
não erigirmos novas unidades totalizadoras que essa seção se orienta. Opero e desenvolvo tais
categorias de análise a partir dos filmes Bom Dia, de Ozu e Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, de
Abbas Kiarostami.
Por fim, na conclusão deste trabalho, retomo as discussões teórico-metodológicas que
acompanharam os caminhos da pesquisa, mas também descrevo possibilidades de outros e
novos trabalhos a partir de um conjunto de inquietações derivadas justamente de questões
mais amplas sobre cinema, criança, autoria (criação) e educação. Penso, assim, na viabilização
de um trabalho que una, diretamente, cinema e escola; um novo encontro e, mais uma vez,
tendo como objetivo aquilo que nada mais é do que o tema geral desta pesquisa: o encontro
entre criança e arte.
38
1.0 A CRIANÇA QUE NOS CONVOCA
O objetivo deste capítulo é discutir o conceito de criança trazido pelo texto “Das três
metamorfoses”, parábola de abertura do livro Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche.
Deixo em suspenso, por um instante, que se trata de um texto inúmeras vezes comentado e
faço dele o que ele mesmo é: umbral. E faço dele umbral, porta, caminho para realizar
algumas discussões relativas ao campo da educação. Inicialmente, apresento o texto e seus
personagens (quais sejam, o camelo, o leão, o dragão e a criança). Esta apresentação será feita
também tendo como base outras leituras do mesmo texto, realizadas por autores que nos
expõem importantes questões e maneiras de melhor compreender uma parábola
aparentemente tão simples” que, no entanto, guarda em si conceitos-chave da filosofia
nietzschiana. Partindo desse exercício, absorvo algumas das características discutidas pelo
texto do filósofo alemão para, em seguida, desenvolver o conceito de criança a partir de três
perspectivas, em especial: 1) a criança como vontade afirmativa de potência; 2) como
esquecimento; 3) e como novo começo.
39
Outros modos de pensar a criança: “Das três metamorfoses” e o espírito criança
em Nietzsche
Falemos, então, Das três metamorfoses” para alguns, discurso; para outros, fábula
ou parábola de abertura do livro Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. A leitura e a discussão
que faço sobre esse texto são, devo dizer, focalizadas. Interessa-me discutir esse fragmento do
livro na medida em que ele me e a pensar, principalmente, sobre a questão da criança.
Nesse sentido, importa revisitar os personagens desse discurso, as características que eles
possuem e a relação disso com a criança que daí irrompe; interessa-me, pois, a criança, ou
melhor, pensar como o espírito chega a ser criança tendo passado, antes, por outras duas
metamorfoses: a do espírito que se transmuta em camelo, e de camelo em leão.
No caso deste texto, apresento o discurso de Nietzsche a partir não apenas de seu
texto original, mas com a ajuda de outros trabalhos que, igualmente, se prestaram a explorá-
lo. Na intersecção entre os mesmos, faço questão de ressaltar as características e as qualidades
que compõem as três personagens-protagonistas, pois elas serão indispensáveis para as
discussões que farei a seguir. Como bem salienta Ferraz (2002), por mais que estejam
carregados de sentidos, camelo, leão e criança encontram em “Das três metamorfoses”
propriedades bastante acuradas. Por mais que essas figuras se relacionem entre si e, por isso
mesmo, nos interessem, o foco aqui é, como dito, a criança, mais especificamente, as
“novas sonoridades” que o texto de Nietzsche produz sobre esse conceito.
Passemos, então, à discussão da parábola Das três metamorfoses”, mais
propriamente. Como o próprio título supõe, a relação entre camelo, leão e criança se no
nível das metamorfoses, das transmutações “três metafomorfoses, nomeei-vos, do espírito:
como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança” (NIETZSCHE,
1988, p. 43). Por mais que essa afirmação nos pareça simples, encontramos visões díspares
quanto à primeira metamorfose. Há, pelo menos, duas maneiras de entendermos e
analisarmos a figura do camelo e, especialmente, a relação que este estabelece (ou não) com
os valores, com a moral e mesmo com a religião.
40
Nesse sentido, autores que defendem, de algum modo, a relação entre o camelo e
os valores cristãos. Para estes (autores), o camelo “espírito de suportação”, animal que
carrega “cargas pesadas, as mais pesadas” seria a “mescla de moral cristã, má consciência e
espírito ascético” (LARROSA, 2002, p. 109). Se entendido dessa forma, o sofrimento do
camelo nada tem a ver com afirmação: ele exprime tão-somente ressentimento e culpa. Creio
que teria sentido falar aqui em drama – e não em tragédia ou em querer tratar o camelo como
herói trágico (o que veremos a seguir).
Ainda relacionando essa concepção do “espírito de suportação” à idéia de martírio, de
penitência, Rosa Maria Bueno Fischer pensa, por exemplo, na produção, em nosso tempo, da
criança-camelo (ou no espírito camelo da criança) e discute o quanto nossas mídias
contemporâneas são incansáveis em ensinar a criança a ser sempre servil, e assim torná-la um
ser sempre pronto “a obedecer, a cumprir ordens, a olhar o mundo desse jeito e não daquele,
a fazê-la escrever e falar deste e não daquele modo(2003, p. 6). O que domina a fabricação
dessas crianças-camelo seria justamente a doma ou o peso da culpa (pela transgressão), que
faz com que elas se confessem repetidamente e prometam “jamais deixar de ser bons
meninos, educadas menininhas” (Ibidem, p. 7). A criança-camelo, ignorante por natureza e
ignorada em sua natureza, se curva, aceita e acaba por se satisfazer com o mesmo e com tudo
aquilo que é da ordem do previsível.
Da mesma forma, Deleuze (2001), no primeiro livro que dedica a Nietzsche, coloca a
personagem do camelo ao lado da personagem do burro, ambas sob a mesma acepção. Como
animais do deserto, são eles que carregam os pesados valores superiores; niilistas, negam a
vida e o mundo, justamente porque os colocam (vida e mundo) sob os valores humanos
valores esses que eles firmaram no lugar dos valores divinos e que, agora, insistem em
assumir. Como se pode observar, persiste aqui a idéia de um animal gregário, que nada
afirma, mas que apenas exibe e suporta densos fardos.
Contudo, outros leitores do mesmo discurso/parábola afirmam que, em relação ao
camelo, aquilo que o caracteriza está ligado à idéia de que, ao carregar os fardos mais pesados,
ele está, sim, avaliando suas forças, experimentando sua potência. Maria Cristina Franco
Ferraz (2002) é categórica ao dizer que o desejo do camelo em carregar “o mais pesado” não
41
está de acordo com ideais cristãos de sacrifício, martírio ou penitência. Isso porque, como
afirma a autora, para Nietzsche, a existência da força, do ser da força, pode ser verificada
na medida exata de seu exercício – e é exatamente em função disso que o camelo procura tais
cargas: “Não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção
acrescentada à ação a ação é tudo(NIETZSCHE, 1998, p. 37, grifos meus). Ainda assim, a
autora afirma que o ajoelhar-se do camelo não está ligado ao gesto de genuflexão cristã, nem
mesmo com a “mera submissão a valores consagrados pela tradição” (FERRAZ, 2002, p. 28).
Essa maneira de agir do espírito camelo pode ser, de certo modo, contraposta às
demais, na medida em que o afasta de qualquer visão de subserviência, de resignação e o
aproxima, nesse caso, a um heroísmo trágico. Heroísmo trágico, considerando todo do fascínio de
Nietzsche pelas qualidades da tragédia, é entendido “no sentido de que não contém uma
redenção da dor, como superação e anulação, mas o sentido de querer a dor, de afirmá-la,
como parte necessária, indispensável da vida” (CORAZZA, 2004b, p. 1). Na visão de Ferraz,
o camelo, mais do que reproduzir ou exprimir as dores pessoais, íntimas ou particulares,
afirmaria o que seriam “as dores do crescimento” (DELEUZE, 1976, p. 10). mesmo o
“poder das metamorfoses” (Ibidem, p. 14) para promover, frente a quaisquer obstáculos, a
afirmação; mais do que isso, para fazer de tudo objeto de afirmação (até mesmo a dor). Pois é
nisso que reside a natureza do trágico: ele é fenômeno estético, “forma estética” da alegria
(Ibidem).
“’O que de mais pesado, ó heróis, (...) para que eu o tome sobre mim e minha
força se alegre?’” (NIETZSCHE, 1988, p. 43), pergunta o camelo. A alegria não advém de
um resultado posterior e conseqüente ao cumprimento de uma provação, nem de uma
superação da equação dor-castigo. A alegria advém justamente da capacidade de fazer com
que cada coisa possa ser continuamente afirmada: quando algo é objeto de afirmação, ele é,
simultaneamente, objeto de alegria. Diferente de outras leituras, que preferem destacar no
espírito camelo uma característica mais comprometida com a moral e com os valores (sejam
eles humanos ou divinos), esta concepção apresenta-o como animal que faz do peso uma
afirmação de suas forças e não a marca de sua submissão.
42
Ao apontar para duas visões distintas do espírito camelo, creio que o mais importante
seria justamente considerarmos a abertura e as possibilidades de interpretação que ambas as
leituras nos garantem. Por mais que elas possam, num primeiro momento, entrar numa
suposta contradição, tais leituras tendem a ser aproveitadas no sentido de que podem dizer
respeito a diferentes “momentos” da transmutação. Talvez possamos afirmar que a idéia de
um camelo que usa dos fardos para avaliar suas forças esteja mais próxima do espírito leão e,
portanto, mais próxima da necessidade que o faz transmutar-se em leão conquistar (...) a
sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto” (NIETZSCHE, 1988, p. 44, grifos meus)
do que aquele que apenas carrega os fardos. Como se pode observar, essa conclusão não
implica, de forma alguma, a exclusão de uma das características do espírito camelo, mas,
antes, ambas tendem a se complementar.
Em busca de novas transmutações é para o deserto que se dirige o camelo. Trata-se de
um deserto que mesmo sendo seu “marcha ele para o seu próprio deserto” (NIETZSCHE,
1988, p. 43) –, o camelo deve conquistar. Nessa paisagem, nesse lugar procurado e mesmo
criado por um “espírito que manifesta e potencializa sua força de camelo” (FERRAZ, 2002, p.
30), o camelo transmuta-se em leão.
O leão, animal feroz, encontra na aridez do deserto aquele a quem deve enfrentar
para, em princípio, garantir sua liberdade. O dragão é o animal que barra o caminho do leão,
que faz refulgir no primeiro todo o valor das coisas. O que está em questão é a oposição entre
dragão e leão; o combate entre o que cada um, respectivamente, expressa: o animal
imaginário “tu deves” contra o feroz leonino “eu quero”. A relação agonística que aqui se
manifesta diz respeito a uma vontade (do leão), que se afirma justamente ao se impor sobre os
“valores milenários” que resplendem em cada uma das escamas do dragão (NIETZSCHE,
1988, p. 44).
Mas, como já dito, o leão só luta contra o dragão porque este se coloca como
obstáculo. Obstáculo a quê?, poderia se perguntar: simultaneamente à possibilidade de ele
(leão) “ser senhor de seu próprio deserto” (Ibidem) e, como conseqüência, à garantia de ele
deixar de ser o que é. Afinal, o leão “não luta para se conservar, para ser mais ele (...), mas
para dar lugar a uma vinda que pressupõe sua própria desaparição” (LARROSA, 2002, p.
43
115). Como destaca Larrosa (2002), no combate que trava com o dragão, o leão “despedaça
os valores, mas está fora de seu domínio desempenhar a tarefa da criação de novos valores.
o leão seria capaz de opor o dever à pujança e ao vigor de seu “não(prerrogativas
que o camelo não tinha). É esse não peremptório do leão que anuncia o sagrado sim da
criança. Uma vez que não necessita mais lutar contra os “tu deves”, mas afirmar-se como
vontade criadora, dá-se uma nova transmutação: o espírito leão torna-se criança.
Chegamos agora à última transmutação, e com ela a uma idéia à primeira vista
paradoxal, já que criança, aqui, é origem, é um novo começo: “um movimento inicial, um
sagrado dizer ‘sim’” (NIETZSCHE, 1988, p. 44). Ferraz (2002) salienta que ela é a
personagem menos complexa do texto e sugere que a leitura do mesmo consista em acentuar
características que estão dadas no próprio texto. Nesse caso, e de imediato, interessa-me
descrever, especialmente, três dessas características: a de a criança ser uma origem, um
espírito afirmativo e, por fim, a de ser um espírito criador.
Quando Nietzsche remete a criança à idéia de ela ser um novo começo, isso não se
deve à tenra idade da criança. Não estamos lidando com um sujeito empírico quando falamos
em espírito criança. O espírito criança não é prisioneiro de um tempo linear, ao passado-
presente-futuro, muito menos está preso a uma concepção de desenvolvimento ou de
progresso (onde representaria, talvez, um estágio primeiro). A origem da criança tem a ver
com o “novo enquanto intemporal, enquanto êxtase do tempo, enquanto instante eterno ou
eternidade instantânea” (LARROSA, 2002, p. 122). O tempo da criança não é seqüencial,
nem remete à evolução (onde, mais uma vez, ela estaria em “desvantagem”, pois seria a forma
mais “imperfeita”, a que ainda precisaria passar por muitos estágios). E esta característica da
criança, de fazer-se sempre “presente inatual, intempestivo” (Ibidem, 123), alude à noção de
inocência.
Como parece ser comum no texto nietzschiano, algumas palavras chegam a nos
perturbar justamente porque insistem em escapar à saturação de sentidos que podem lhes ser
previstos de antemão. No caso, “inocência” nada tem nada a ver com aquilo que se entende
no senso comum, nem como qualidade de quem é incapaz de praticar o mal”, nem mesmo
como um “estado daquele que não é culpado de uma determinada falta” (HOUAISS, 2001).
44
De forma contrária, “inocência é a criança [e, veja-se, não é a criança que é inocente], e
esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma” (NIETZSCHE,
1988, p. 44, grifo meu).
Afirmativo, o espírito criança, agora, “quer a sua vontade” (Ibidem, p. 45, grifos do
autor). A última transmutação faz o espírito que aqui em nenhum momento esteve ligado à
noção de algum centro subjetivo – chegar a ser o que é e realizar-se em sua máxima potência:
“uma espécie de vigor que perpassa todo modo de ser daquele (ou daquilo) que está se
transformando” (Ibidem). Após as destruições regidas pela força reativa do “eu quero”
leonino, a criança afirma sua vontade: “aquele que está perdido para o mundo, conquista o seu
mundo” (Ibidem, grifos do autor).
Mas por que, então, a aparição da criança é possível após a última transmutação?
Porque só ela pode realizar a tarefa que nem o camelo e nem o leão puderam: a criação de
novos valores. Esse é o diferencial da criança, é para isso que sua existência aponta e é nisso
que reside a terceira e talvez sua principal característica. É em função disso que ela afirma não
somente a vida, mas ao fazê-lo, coloca em jogo, a cada vez, “o que somos e o que seremos”
(LARROSA, 2001, p. 125).
Como dito, os espíritos camelo, leão e criança não se opõem, não se excluem
(muitas vezes, eles sequer desaparecem após sua transmutação, ou seja, casos em que o
espírito camelo não se dissipa ao transmutar-se em leão, nem mesmo o leão ao transmutar-se
em espírito criança). Pode-se dizer, assim, que entre eles há uma espécie de relação presença-
ausência: o leão implica o camelo, assim como a criança implica o leão e também o camelo.
Seria equivocada a pressuposição de que uma noção de desenvolvimento (ou de
evolução) entre camelo, leão e criança. Não sequer tempo adequado, previsibilidade,
garantias ou certezas de passagem e de transformações. No seio das transmutações, há
elementos que entram em jogo para, digamos, dinamizar a ida ao deserto, mas também para
retardá-la, quiçá obliterá-la.
A partir desta breve explanação da parábola, percebemos, já de início, que o ser
empírico, ordinário, dá lugar a outra criança; uma criança, que, a partir de agora, será
entendida como supondo “pelo menos duas metamorfoses anteriores e [isso] não corresponde
45
a uma transformação fácil ou evidente” (FERRAZ, 2002, p. 33). Antes de qualquer outra
discussão, uma se faz precípua, a de que “não se começa criança, mas, ao contrário, torna-se
criança” (Ibidem, grifos meus).
Assim, tentarei expor de que maneira as três características desenvolvidas até aqui
fundam outras três. Ou seja, interessa-me definir, daqui em diante, em que medida a criança
entendida como um espírito afirmativo desdobra-se em vontade afirmativa de potência; a
criança entendida como um espírito criador desdobra-se em esquecimento e, por fim, a
criança entendida como inocência, como origem, desdobra-se em novo começo. Não se trata
de discussões diferenciadas, mas, antes, complementares e profundamente relacionadas entre
si, e que agora pretendo ampliar.
Criança como vontade afirmativa de potência
Comecemos por desenvolver brevemente uma primeira diferenciação importante
suscitada pela parábola nietzschiana. Afirmar que esta pesquisa pretende entender como a
criança é tecida na estética cinematográfica como vontade afirmativa de potência da criança e
não as formas pelas quais também nesta estética se produz (ou se expressa), por exemplo,
uma vontade de verdade sobre a infância, implica precisar a diferença entre um procedimento
e outro.
Poderíamos dizer que uma investigação disposta a descrever de que forma estaríamos
comprometidos com uma vontade de verdade sobre a infância (valendo-se dela e também
produzindo-a) significaria, num primeiro momento, direcionar o entendimento acerca da
criança para sua qualidade de sujeito empírico e da infância como etapa da vida. Assim,
falaríamos de um trabalho no qual a investigação teria como primeiro plano a descrição de
uma vontade de verdade e, portanto, de como se dá a constituição de uma complexa rede de
sentidos criada ou operacionalizada para a promoção de objetivações dos sujeitos infantis.
Uma tal rede instituiria, reforçaria e contribuiria para a produção contínua de saberes e de
práticas de infantilização.
46
Isso ocorre pois os processos de constituição de saberes dos quais falo articulariam
entre si o poder de nomear, de mostrar e de ser o lugar de sentido e de verdade
(FOUCAULT, 2000). Nesse caso, tratar-se-ia de tornar a criança e a infância que lhe é
correlata visíveis” e “enunciáveis”, como processos constituidores da verdade; mesmo que a
verdade seja sempre entendida como interpretação, como perspectivismo (NIETZSCHE,
1998). Um trabalho preocupado em descrever a vontade de verdade que abarca e cerca a
infância suporia que o conhecimento é almejado para que se possa agir sobre as coisas (sobre
ela), e de que nele há uma utilidade posta em jogo (no caso, o conhecimento produzido,
tendo em vista fins específicos). Nessa vertente, o conhecimento, as formas de abarcar e de
apreender são entendidos como tarefa primordial de qualquer construção de saber
procedimento minucioso, semelhante àquele da aranha que tece sua teia: “não procedemos de
maneira muito diferente da aranha, quando tece a teia para caçar e sugar as presas (...). Nós,
conhecedores, pretendemos exatamente o mesmo quando colocamos as mãos em sóis e em
átomos, fixando e determinando. Fazemos um circuito que nos reconduz a s mesmos, às
nossas necessidades” (NIETZSCHE, 1982, p. 130).
Nesse tipo de investigação, partiríamos, entre tantas formas de apreender a criança,
para tratá-la como objeto discursivo construído como sujeito racional, solucionador de
problemas e “em desenvolvimento”. Trataríamos de mostrar, assim, de que maneira o infantil
que tem sua base em saberes historicamente articulados no final do século XIX, quando
qualidades reguladoras e disciplinadoras da pedagogia foram fortalecidas por disciplinas como
a Sociologia, Filosofia, História, Lingüística, Didática e a Psicologia – é apreendido pelas mais
diversas instâncias culturais. Um trabalho sob essa perspectiva tenderia a mostrar “a
arrogância do saber” (LARROSA, 1998, p. 231) sobre a infância. E uma arrogância que
reside “na exibição do que se conquistou, mas também no tamanho de seus projetos e de
suas ambições, em tudo aquilo que ainda está por conquistar, mas que foi assinalado e
determinado como território de conquista do possível” (Ibidem). Ou seja, tratar-se-ia de
partir de um ponto – a criança como sujeito capturado pelos nossos saberes – e mostrar como
isso estaria discursivamente construído culturalmente e, ainda, de que forma poderíamos
dizer que ela foge, que ela escapa a esses saberes.
47
Ciosamente produzida, a vontade de verdade da criança estaria ligada à idéia de que
a infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições
capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual
podemos intervir, algo que podemos acolher. A infância, desse ponto de
vista, não é outra coisa senão objeto de estudo de um conjunto de saberes
mais ou menos científicos, a coisa apreendida por um conjunto de ações
mais ou menos tecnicamente controladas e eficazes, ou a usuária de um
conjunto de instituições mais ou menos adaptadas às suas necessidades, às
suas características ou às suas demandas (LARROSA, 1998, p. 230).
Essa vontade de verdade diz respeito a uma vontade de apropriação (FOUCAULT,
1997) da criança, processo que implica na tentativa de assimilação e que se define “pelo fato
de tornar idêntico, de reduzir a alteridade ao semelhante” (LAPOUJADE, 2003, p. 356).
Trata-se de um procedimento profundamente ligado à tarefa de atar a criança à noção de
infância, de atribuir-lhe uma identidade, de fazer com o que o vai-e-vem incessante entre fase
da vida e sujeito restituam um ao outro propriedades específicas. A criança, assim,
constituiria a infância, e a infância dotaria a criança de características peculiares. Numa
vertente foucaultiana, por exemplo, investigar sobre a vontade de verdade sobre a criança
implicaria em precisar de que maneira o infantil é narrado, ou como as múltiplas e
proliferantes enunciações efetivamente encontram condições de entrar na ordem do discurso ou
sobre a possibilidade que elas enfrentam de ultrapassar ou mesmo de serem barradas pelas leis
de interdição que tangem e definem os limites do discurso.
Tendo em vista essas considerações, passemos à discussão acerca do entendimento da
criança como vontade afirmativa de potência. Quando afirmo sobre uma diferença entre
vontade de saber (entendida no sentido de vontade de verdade), faço-a não no sentido de
estar em direta oposição com a vontade afirmativa de potência. Creio que o fato de
desenvolver o próprio conceito de criança não esteja completamente distanciado de uma
questão de “abarcar”. Contudo, a diferença crucial reside em que, diferente de falar de uma
vontade de saber, não se busca aqui uma verdade ligada à posse ou a um processo de
apreensão. Se existe uma verdade em jogo nesse processo, dir-se-ia que ela está mais
relacionada a uma “verdade” que “não é algo que podemos adquirir, ter ou utilizar” nas
48
relações que estabelecemos com as imagens da criança, mas, ao contrário, que ela é o próprio
“acontecimento que interrompe essas relações” (LARROSA, 1998, p. 244).
“A vontade de potência não pertence ao espaço do ter, mas ao do ser; querer a
potência é querer-se a si mesmo maior” (HÉBER-SUFFRIN, 2003, p. 75). Ao perguntarmos
“o que quer...”, consideramos “todas as coisas como um conjunto de forças que estão
executando um trabalho como uma potência”; mais do que isso, tal pergunta remete à
necessidade de “observar para onde vai esse conjunto de forças, o que quer essa potência”.
Assim, discutir acerca da criança, nessa perspectiva (ligada à idéia de vontade afirmativa de
potência), diz respeito a, primeiramente, considerá-la como potências, como “atividades
eficazes”, para, em seguida, perguntar: “de onde vêm essas potências” (...), para que objetivos
elas se dividem, o que quer aquele que nelas acredita, as institui?” (Ibidem, p. 67). Examinar
a vontade de potência implica, igualmente, perguntar sobre as forças que estão em jogo, uma
vez que estas se constituem como a própria efetivação de uma vontade afirmativa.
Entendemos, então, que qualquer realidade dirá respeito a um campo de forças; mais
do que isso, qualquer que seja o fenômeno a ser analisado, ele sempre dirá respeito a um jogo
entre forças ativas e reativas. Na medida em que consideramos que não existe apenas uma
força ao contrário, para manifestar-se como tal, é necessário que ela esteja em relação com
outra força –, consideramos, igualmente, que poderá existir mais de um sentido a ser
apoderado num fenômeno, numa realidade: tudo depende da perspectiva adotada. Ora, mas
o que isso quer dizer? Quer dizer que nunca um sentido fixo, uma verdade absoluta, mas
sim um “perspectivismo”, que poderá manifestar-se ativamente ou reativamente. Assim, não
apenas as forças se distinguem como ativas ou reativas, mas também a própria forma de
interpretação dos fenômenos: se, por um lado, uma análise reativa é aquela que
predomínio ao modo como as forças conservam os valores em questão, como elas lutam por
eles; por outro, uma análise ativa é aquela que predomínio ao modo como as forças criam
novos valores, não sem antes destruir os já existentes.
Nesse sentido, seja criança, seja a infância, todas têm tantos sentidos quantas forem as
forças que delas sejas capazes de se apoderar. Se entendermos que “o próprio objeto é
expressão de uma força” (DELEUZE, 1976, p. 5), cabe-nos, então, discernir de que objetos
49
estamos falando, com que forças estamos tratando. No que diz respeito à noção de criança,
cabe perguntar de que maneira ela mesma exerce sua força; quais são os caminhos que a
criança, entendida aqui como vontade afirmativa de potência, adota para afirmar-se como
vontade criadora”. Ou melhor: de que maneira sua vontade (afirmativa de potência) age sobre
outra vontade (de saber da infância)? Ao falar em vontade que age sobre outra vontade,
remeto ao jogo de forças que faz com que os sentidos de infância e criança sejam
constantemente disputados, uma vez que “a história de uma coisa é geralmente a sucessão das
forças que dela se apoderam e a coexistência das forças que lutam para dela se apoderar”
(DELEUZE, 1976, p. 3). Creio, com isso, que podemos pensar em que medida a noção de
infância age sobre a noção de criança, tal como concebida por autores como Nietzsche. O que
importa aqui é investir no conceito de criança como vontade de potência e pensar como este
conceito vem a firmar-se positivamente, na relação de força que estabelece com a noção de
infância (esta última ligada a uma vontade de verdade e de apropriação).
Assim, trata-se de afirmar a criança ou demonstrar de que maneira ela afirma a si
mesma, reinventando-se. Se uma certa confusão entre criança entendida como vontade de
potência e criança entendida como fruto de uma vontade de saber e os efeitos disso –, é
porque uma vontade age sobre outra vontade (NIETZSCHE, 1992, p. 43): vontade de
verdade sobre vontade afirmativa de potência. Como vontade afirmativa de potência, a
criança quer tão-somente afirmar sua diferença em relação a essa outra criança, que é
resultado da infância (se a força é o que pode, a vontade é o que quer DELEUZE, 1976). É
justamente na relação que estabelece com a vontade de saber da infância que a criança afirma
a si mesma; mais do que isso, que faz de sua diferença objeto de afirmação. Não se trata de
uma relação dialética entre infância e criança: “a diferença é objeto de uma afirmação prática,
inseparável da essência e constitutiva da existência” (Ibidem, p. 7). Todo esse jogo talvez
expresse o momento em que o leão transmuta-se em criança: nesse processo, leonina, a
criança tem que negar o que a infância lhe reservou, para que possa se afirmar por inteiro e
criar para si valores outros, sentidos outros; para que possa, enfim, recriar-se a si mesma.
Se entendemos que uma força é sempre uma relação com outra força, o que faz de
uma dominante (ativa) e outra dominada (reativa)? E, mais, por que afirmar que a criança diz
50
respeito a uma vontade afirmativa? Para responder a essas questões que se levar em conta
que a diferença entre as duas forças estará sempre localizada em seu imediato exercício. As
forças reativas exercem-se “assegurando os mecanismos e as finalidades [exercício contrário
àquele das forças ativas, que se exercem em função de uma necessidade], preenchendo as
condições de vida e as funções, as tarefas de conservação, de adaptação e de utilidade [de
maneira totalmente diferente das forças ativas, que antes de tudo movem-se em direção à
criação]” (DELEUZE, 1976, p. 33).
Dizemos que uma vontade é afirmativa quando, acima de tudo, ela age, é pura
atividade (enquanto a outra, por ser passiva, por ser não-ativa, é dita reativa); quando ela
afirma sua diferença (por contraposição à reativa, que, regida pela “moral de rebanho”,
primazia à igualdade), quando ela afirma o ltiplo e o acaso. “Saber afirmar o acaso é saber
jogar” (DELEUZE, 1976, p. 22). Toda vivacidade do jogo é acionada por Nietzsche por meio
do lance de dados (NIETZSCHE, 1988), mais especificamente, por meio dos dois tempos do
lançamento. O primeiro tempo é aquele do lançamento dos dados, onde nada é formado por
antecipação, onde não há nenhuma combinação prevista, esperada ou vitoriosa, onde o
número ou a combinação pode ser fatal porque produzido pelo imprevisível e pelo
indeterminado. O segundo tempo do lançamento é aquele em que os dados caem, aquele em
que o acaso é reafirmado radicalmente: deixai vir a mim o acaso: inocente é ele, como uma
criancinha” (Ibidem, p. 182). Trata-se de um momento único e irrepetível (pois os dados são
lançados uma vez), em que o acaso é afirmado em uma vez, fundindo-se com o destino
e com a necessidade, em oposição à triangulação probabilidade, causalidade e finalidade
(DELEUZE, 1976). Triangulação essa perseguida pelo mau jogador, que conta com a
finalidade (por oposição à necessidade), com a causalidade (ou seja, com a tentativa de vários
lançamentos) e, portanto, com a probabilidade, a fim de que se garanta o resultado desejado.
Desta forma, o mau jogador abole o acaso “pegando-o com pinça a causalidade” (Ibidem, p.
22).
Assim, no momento mesmo em que relacionada à vontade de verdade, a noção de
criança pode ser considerada como força reativa, como força adaptativa, conformativa,
utilitária. A razão ou mesmo o saber, ligados à busca de uma verdade objetiva e característicos
51
de uma vontade de verdade, buscam uma “verdade previsível, sem riscos inesperados”
(HÉBER-SUFFRIN, 2003, p. 63). Dela derivado, o conhecimento racional está mais
preocupado com garantias, previsibilidades, que só podem surgir a partir da criação das
certezas e das seguranças do já sabido. Pode-se dizer, ainda, por mais paradoxal que isso possa
parecer, que esse conhecimento não quer conhecer, ele “quer tranqüilizar e tranqüilizar-se”
(Ibidem); o que ele procura é a “imagem de um mundo inteiramente submetido às categorias
do nosso pensamento lógico: identidade, causalidade, finalidade” (Ibidem, p. 63-64). Não há
nessa força receptividade ao novo, mas prioritariamente manutenção e fixação do já vivido. A
memória prevalece em oposição à atividade do esquecimento e aqui começamos a
desenvolver a segunda característica.
Criança como esquecimento
Para Nietzsche, o esquecimento é uma força plástica, é a faculdade positiva pela qual a
força (ou aquilo que está em jogo nas forças como expressão de uma vontade) torna-se ativa
(LAPOUJADE, 2003). O esquecimento é compreendido pelo autor “não como uma vis
inertiae [força inercial], mas como uma força inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso
sentido” (NIETZSCHE, 1998, p. 47). O esquecimento torna-se, assim, uma espécie de
“guardião” ou um aparelho inibidor, que garante sempre um lugar para o novo e mesmo para
o presente (uma vez que não fica preso ao passado).
O esquecimento de que Nietzsche fala remete ainda a um processo de digestão a
função é extraída do campo da filologia e introduzida de outra maneira no campo da filosofia.
A digestão da qual Nietzsche nos fala é a digestão do espírito. O esquecimento é entendido
como atividade primordial do homem. Ao contrário do que entendemos no sentido corrente
do termo, “o esquecimento não viria apagar as marcas produzidas pela memória, mas,
antecedendo à própria inscrição, impediria, inibiria qualquer fixação” (FERRAZ, 2002, p.
60). Diferente do sentido mais habitual, teríamos a memória como contrafaculdade, na
medida em que esta se sobrepõe ao esquecimento, e não o contrário.
52
Dessa maneira, não é possível dizer que se trata de uma mera semelhança ou que
espírito e digestão procedem por analogia. Antes disso, ao afirmar que “o espírito é um
estômago” (NIETZSCHE, 1988, p. 212, grifo do autor), Nietzsche pretende romper com
quaisquer distinções metafísicas, fazendo uso da linguagem (não metafórica), para esquivar-se
dessa gica (FERRAZ, 2002, p. 63). É por meio da idéia de digestão que ele coloca em
xeque a separação entre corpo e espírito. A partir daí, ao estilhaçar a metáfora, os
entendimentos mais comuns de corpo e de espírito se tornam incapazes de se concretizar.
Efeito da vontade de verdade, poderemos ter a criança-dispéptica, “cujo estômago
lento e pesado nunca se libera de um excesso de memória paralisante, não metabolizada”
(FERRAZ, 2002, p. 69). A criança-dispéptica é aquela que se torna refém de seu passado,
endividada e comprometida com ele. A criança da vontade de verdade é aquela com quem se
estabeleceram relações contratuais, é a criança da promessa (criança-promessa), e sobre ela o
passado se remói como projeção.
De modo contrário, a criança do esquecimento, da vontade afirmativa de potência, é
aquela que quebra as promessas e não estabelece quaisquer relações contratuais, que isso
implicaria o aprimoramento e o desenvolvimento de uma memória que lhe é correlata: “o
devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a
santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação,
por meio de um contrato, empenha, ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda
possua, sobre o qual ainda tenha poder” (NIETZSCHE, 1998, p. 53).
Quando as forças reativas preponderam sobre as ativas, ou seja, quando as primeiras
separam as demais do que podem, as forças não mais re-agem: mesmo “a reação deixa de ser
acionada para tornar-se algo sentido” (DELEUZE, 1976, p. 92). Neste caso, as forças reativas
mudam de lugar, a reação toma o lugar da ação e sua preponderância acaba por instituir o
ressentimento, “que se exerce contra tudo o que é ativo (...), a própria vida é acusada, separada
do seu poder, separada do que pode” (Idem, 2001, p. 24-25).
Contudo, Nietzsche não aponta para uma total oposição entre memória e
esquecimento, nem fala de uma relação onde aquele que esquece invariavelmente sempre
esquece, ou aquele que guarda, que mantém as marcas o faz num processo incessante e sem
53
fim. Explicando melhor: ao falar de memória e esquecimento, o autor remete-os aos tipos
nobre e escravo. Ou seja, o escravo seria aquele que preferencialmente guarda as marcas,
com elas se ressente e em função delas se torna um tipo ressentido. O nobre não seria
somente aquele que esquece, afinal, o nobre também está sujeito à memória e ao
ressentimento, porém, com um diferencial: “em um caso [no do nobre], o ressentimento
passa, enquanto que, no outro caso, [no do escravo] não passa(LAPOUJADE, 2003, p. 353,
grifos do autor). O homem do ressentimento, condicionado por essa memória reativa, usa
das marcas para perceber a si e ao mundo à sua volta. Doente, é incapaz de “fazer variar a
perspectiva, não mais dela se distinguir e, ainda como conseqüência, proclamá-la como
verdadeira” (Ibidem, p. 354). A “cura” para isso é proceder justamente de forma contrária, ou
seja, sob a condição de variar a perspectiva. o se trata mais de esquecimento (pois o
esquecimento é a atividade que impede qualquer fixação), mas de condição para que o
esquecimento se constitua como atividade primordial.
Assim, ao abrir a possibilidade para ultrapassar o ressentimento e de não se constituir
como um tipo (escravo) em seu interior, a memória agora tornada afirmativa institui-se como
“memória da vontade” (NIETZSCHE, 1998, p. 48). Não mais sustentada pelas marcas de um
passado inexorável, por uma concepção fraca e passiva, a memória adquire um outro sentido
para Nietzsche: passa a ser um “querer querer” (FERRAZ, 2002, p. 67), passa a estar ligada a
um lembrar que é continuar querendo o querido” (Ibidem), passa a ser uma intensificação
da vontade no tempo, uma apropriação do passado do tempo pela vontade” (Ibidem). Isso
mostra que as categorias não estão postas de imediato, podendo sempre oscilar (aliás,
necessitam oscilar): esquecimento e memória ou mesmo nobre e escravo.
Nesse sentido, então, a criança tratada por Nietzsche é esquecimento: seja porque age
como a força plástica que inibe a produção das marcas, seja porque, nobre, na condição de
criadora, está sempre aberta para a novidade. Mas, igualmente, como aquela que, constituída
como a última transmutação, supera a si mesma e esforça-se para transcender-se, ao invés de
ser submetida à transcendência (HÉBER-SUFFRIN, 2003). Tornada ativa, afirmativa e
descolada da infância, a criança adquire uma passividade que só é possível através da coragem:
coragem para retornar até as marcas, aceitar o sofrimento das marcas para que ele passe, em
54
vez de se conservar” (LAPOUJADE, 2003, p. 358); mais do que isso, para que o sofrimento
“passe no tempo, em vez de impedir o tempo de passar” (Ibidem). Se a criança da vontade de
verdade é aquela que teme morrer, teme desaparecer, teme, enfim, tornar-se adulta; a
criança da vontade afirmativa de potência e do esquecimento é aquela que “deixa-se destruir
pelo tempo, sabe deixar morrer partes de si ou ainda sabe lhes dar fim” (Ibidem); esta última
está, sim, sempre refazendo-se e recriando-se; insatisfeita, ela destrói os valores existentes,
cria novos, mesmo para, em seguida, destruir esses também.
Criança como novo começo
Em Nietzsche, a idéia da criança com um novo começo está fundamentada em
Heráclito e na crítica radical e na negação da culpa colocada na existência uma visão que,
para o pré-socrático, se constituía como degradante (SOUTO, 2003). O novo começo,
portanto, é a extensão do conceito de inocência, de uma vida que não precisa ser justificada
ou culpada. A criança que brinca é um novo começo, pois ela joga e, ao mesmo tempo, se
põe em jogo (Ibidem, p. 367). Ao jogar lembrando que o jogo aqui é entendido como
“modelo do mundo – a criança coloca em jogo sua inocência” e, assim fazendo, “suas
transformações originam a multiplicidade das formas existentes” (Ibidem): novo começo. A
criança tomada dessa forma reafirma as características de ser uma força afirmativa e
esquecimento, pois, na qualidade de novo começo, ela diz respeito à criação, à “reinvenção
das formas” (Ibidem, p. 366).
A criança apresentada por Nietzsche e, de certo modo, tomada de Heráclito, é
considerada como condição de felicidade e também de presente. No entanto, o presente da
criança diz respeito ao presente no jogo do Aion, que remete ao passado e ao futuro
concomitantemente e que se contrapõe a Cronos, compreendido como o tempo em sua
relação com o “presente vasto e profundo”, “cronológico”, imerso numa continuidade sem
rupturas, onde o passado é o que foi, o presente é o que é, e o futuro, na qualidade de
promessa, de porvir, é o que, antropomorficamente, faremos dele. O tempo da criança
afirmativa é entendido, ao contrário, como aquele que “realça a onipresença do acaso, não
55
como o confuso e indeterminável, mas dividindo-se ao infinito em passado e em futuro”
(CORAZZA, 2004a, p. 4). Trata-se de um tempo em que o presente existe, na medida
em que ele absorve o passado e o futuro, de modo que, nele, “o passado e o futuro insistem
no tempo e dividem ao infinito cada presente” (Ibidem).
Por mais que o interesse seja o de levantar as características do conceito de criança tal
como desenvolvido por Nietzsche, creio que seja válido realizar uma breve apresentação do
conceito de nascimento de Hannah Arendt. Faço isso tendo em vista que esse conceito está
intimamente relacionado com a idéia de novo começo e de imprevisível, tão valorizados pelo
filósofo. O nascimento, na perspectiva de Arendt, diz respeito ao momento da mais pura
descontinuidade, uma vez que ele abre as portas de algo que não conhecemos de imediato. O
nascimento diz respeito ao acontecimento imprevisível, “que não pode ser tomado como a
conseqüência de uma causa e que não pode ser deduzido de nenhuma situação anterior”
(LARROSA, 1998, p. 236).
Para tratar desse conceito, Arendt toma como exemplo mais emblemático o
nascimento de Jesus. Ou seja, o nascimento de Jesus representaria a expressão mais nítida das
qualidades de todo nascimento: “o milagre da novidade radical no mundo e a possibilidade
sempre aberta da inauguração de um novo começo na história” (Cf. LARROSA, 1998, p.
236). A questão discutida aqui é exclusivamente a da renovação do mundo e, junto a isso, da
descontinuidade do tempo, uma vez que a cada nascimento a possibilidade de “inauguração de
um novo começo na história” (Ibidem) se faz possível.
Diz Arendt que o “terror nasce do medo de que, com o nascimento de cada ser
humano, um novo começo se eleve do ato totalitário por excelência, matar as crianças,
para eliminar do mundo a novidade que poderia ameaçá-lo” (Ibidem, p. 238). O nascimento é
entendido como o “milagre que salva o mundo”, porque é no nascimento que a faculdade de
agir se radica ontologicamente (Idem, 2001, p. 259). Por isso, o totalitarismo tem horror ao
incerto; por isso, executa projeções de futuro, de antecipação e, portanto, ocupa-se com a
produção antecipada do mesmo. O terror do totalitarismo é justamente o fato de que ele
tende cada vez mais a reduzir e destruir a novidade. Reduzir, portanto, o acontecimento e a
vida.
56
Em relação a essa discussão entre nascimento e totalitarismo, Larrosa (1998) propõe
uma relação entre a pedagogia, perguntando como esta, por vezes, assume um espaço
totalitário. Nesse sentido, se entendemos a educação como a forma pela qual as pessoas, as
instituições, a cultura (de maneira mais ampla) recebem aqueles que nascem (Ibidem) ou
respondem à sua chegada, cabe perguntar acerca dos lugares e dos espaços que ela destina ou
prepara para a criança. Trata-se de um lugar previsível ou determinado? Larrosa se utiliza
da frase de Antonio Machado para responder a essa questão: “houve um pedagogo: chamava-
se Herodes”. Mais do que isso, pergunta-se: “quais são as faces de Herodes hoje? Aquelas que
temem a novidade, o imprevisível da infância? Tanto a pretensão de manter a continuidade do
mundo, quanto a pretensão de sua transformação radical exigem, no limite, o sangue infantil”
(Ibidem, p. 238).
A verdade ou a previsibilidade da criança traduz-se pelo modo como nossos saberes a
dizem (a recebem, respondem ao seu nascimento). A própria criança fica reduzida àquilo que
nossos saberes podem abarcar e objetivar, àquilo que nossas práticas podem e tentam
incessantemente submeter, dominar, produzir, controlar. Nesse sentido, a vontade de saber
sobre a criança está intimamente relacionada com a construção de uma verdade prevista e
previsível para ela. De forma contrária, aposto na discussão acerca da vontade afirmativa de
potência da criança, no sentido de que esta estaria radicada na pressuposição de uma direção
inversa de toda a apreensão de saberes e poderes. Ao contrário disso, está o fato de
aceitarmos e restituirmos a “presença enigmática radical” da criança; o que implica tomar a
criança em sua absoluta heterogeneidade (LARROSA, 1998). Isso significaria tratá-la como
“aquilo que sempre nos escapa, que inquieta o que sabemos, o que podemos e que coloca em
xeque os lugares que construímos para ela” (Ibidem). A criança seria, assim, sempre outra
coisa diferente do que podemos prever, talvez porque sempre está além do que sabemos, do
que queremos, do que esperamos.
A partir das discussões que pretendi desenvolver neste texto e tomando como base as
discussões de Jorge Larrosa, pergunto: até que ponto nossa vontade de saber e nossa vontade
de verdade sobre a criança, nosso intuito de pensar que tudo já sabemos sobre ela e de querer
saber sempre mais, não estariam apontando para um processo de “escrever antecipadamente a
57
história”? Como podemos receber e responder à chegada da criança sem que isso implique em
considerá-la como ponto de partida de um processo de desenvolvimento, como matéria-
prima para a promoção de uma nova ordem social, como sujeitos de nossos planejamentos,
como alvo de nossas expectativas e desejos sobre o futuro e, sobretudo, como algo a ser
superado?
58
1.1 A criança que é e se faz potência no exercício estético da amizade
Não é difícil observar que a amizade é um tema constante no cinema. Nos filmes em
que a criança é protagonista isso fica ainda mais evidente. Uma primeira análise de um
conjunto de filmes permite afirmar que há algo “a mais” na relação de parceria, de aliança que
as crianças protagonistas dos filmes estabelecem com outros personagens e mesmo entre si.
Há, talvez, algo “a mais” que provém, que escapa da relação que as crianças estabelecem com
seus pares e que, entendo, se trata de pura afirmação de potência, nada melancólica ou óbvia;
há aí uma sensibilidade estética que merece ser ressaltada.
Trata-se de elementos (ou momentos, em momentos) nada evidentes ou piegas, como
quando o menino René acolhe secretamente em seu quarto o “incompreendido”, e agora
fugido de casa, Antoine Doinel (TRUFFAUT, 1959)
18
; algo “a mais” se passa no desejo
nutrido pelos pequenos engraxates Giuseppe e Pasquale de comprar um cavalo branco, em
Vítimas da Tormenta mesmo que esse desejo seja, mais tarde, cercado pelo desespero de
estarem confinados em um reformatório (DE SICA, 1946). Mesmo quando não estamos
falando da relação entre crianças, mas de outros laços que elas acabam por estabelecer em
tantos filmes, algo que não se deixa apreender de imediato: falamos de relações que vão
além daquelas óbvias que poderiam ser estabelecidas, por exemplo, entre adultos e crianças e
que, por isso mesmo, passam a ser algo de outra ordem. Nesse caso, podemos lembrar a
amizade totalmente dissociada de noções paternalistas ou superprotetoras: “mais que um pai,
Carlitos é o irmão d’O Garoto (VALLET, 1991, p. 21, trad. minha); na relação entre o
menino Marcelino e Jesus, em Marcelino, Pão e Vinho (VAJDA, 1954), contemplamos a
relação inefável que se inicia com o gesto espontâneo e singelo do menino que, ao olhar para
o rosto de dor e sofrimento de Cristo talhado na madeira, diz: “Tens cara de quem está com
fome”; ou talvez possamos nos referir à singeleza que faz com que Patrick, de nove anos,
escolha presentear a mãe de seu melhor amigo Laurent, com rosas vermelhas, depois de
18
A ficha técnica, bem como a sinopse de cada um dos filmes citados nesta tese encontram-se em “Anexo 1”.
59
saber, na própria floricultura, que elas significam “paixão ardente” (TRUFFAUT, 1976).
Essas relações que afirmo ser “de outra ordem” poderiam, ainda, estar relacionadas à
fidelidade, à lealdade da amizade ou do abrigo que ela, na verdade, representa, por exemplo,
no caso de Totó a Savatore, em Cinema Paradiso sentimentos que se estabeleciam ali, dentro
do cinema da pequena Giancaldo, mas que o extrapolaram e transformaram-se em marcas de
vida, tanto de um, como do outro.
Enfim, seria possível listar muitos filmes e incontáveis relações entre crianças e
mesmo entre adultos e crianças que nos inspiram a pensar o conceito de amizade de uma
outra forma. Observo que essas relações permitem pensar o conceito de criança diferente
daquele que remete a criança a um ser aprendiz, ser domado e sempre previsível. Creio que
não se trata, como pode parecer num primeiro olhar, de analisar a criança que simplesmente
imita o mundo adulto, mas de poder dar visibilidade àquela que, por exemplo, nas relações
que estabelece com seu parceiro, inventa seu mundo e cria outras formas de se relacionar
com outrem.
Assim, busco, nesta seção, percorrer os caminhos da amizade, em especial, em dois
filmes: Central do Brasil, de Walter Salles e A Língua das Mariposas de José Luis Cuerda.
Primeiramente, retomo algumas discussões acerca da temática da amizade, do caráter ético,
político e também de criação que ela comporta no âmbito da filosofia. Em seguida, analiso os
filmes em questão, buscando mostrar o quanto as alianças feitas entre amigos traduzem-se, no
cinema, em função da potência de uma relação, mas também em torno da possibilidade de a
criança fazer-se potente e de potencializar outrem. Busco, nesta seção, falar da amizade como
exercício de autotransformação, como busca e criação de si mesmo enfim, práticas que não
se fazem na solidão.
Amizade e novas formas de pensar os relacionamentos
Numa das últimas entrevistas concedidas por Michel Foucault, o filósofo afirmava,
categoricamente: “Se há alguma coisa que me interessa hoje, é o problema da amizade”
60
(FOUCAULT, 1994b, p. 744, trad. minha). Apesar disso, o tema da amizade não pôde ser
amplamente desenvolvido por Foucault por conta de sua morte prematura. É a partir do
último curso ministrado por Foucault no Collège de France intitulado A Hermenêutica do Sujeito,
e das entrevistas que ele freqüentemente prestava aos mais variados meios de comunicação,
que podemos reunir algumas conclusões em relação a esse que certamente viria a ser alvo de
um trabalho de pesquisa por parte do filósofo: depois de ter estudado a história da
sexualidade, creio que deveria tentar compreender a história da amizade, ou das amizades”
(Ibidem, p. 744, trad. minha).
Se o tema da amizade nos interessa aqui é porque ele fornece elementos para pensar a
criança como vontade afirmativa de potência. Tal como entendida por Foucault, a amizade
não teria como objetivo a fixidez de identidades ou mesmo a institucionalização das relações,
mas sua imediata subversão (tanto das identidades fixas, quanto das relações
institucionalizadas). Nesta perspectiva, a amizade concentra um mundo de possibilidades: no
jogo com o amigo, torna-se possível para o indivíduo um movimento de autotransformação,
jamais previsto de antemão, jamais entendido como resultado ou como objetivo último, e sim
como espaço de afirmação e, sobretudo, de criação.
É preciso situar no âmbito de que discussão o tema da amizade se insere na obra de
Foucault. A amizade aparece, especialmente, na última fase de trabalho da vida do autor,
quando ele mergulha nos textos da Antigüidade greco-romana para examinar a produção ética
e estética de si mesmo. A atenção do filósofo sobre a ética distancia-se das noções mais
comuns sobre a moral e centra-se, sobremaneira, às formas pelas quais o sujeito se transforma
e estiliza sua própria existência. Assim como todo o percurso teórico e existencial de
Foucault, o estudo desses textos não estava afastado de suas indagações sobre seu tempo: ele
dizia respeito à possibilidade de pensarmos uma ética do presente (LOPONTE, 2005, p. 74).
Como mostra o filósofo francês, o exercício da amizade para os gregos não estava
separado de um exercício de ascese, ou seja, de um trabalho exercido pelo indivíduo sobre si
mesmo; ascese entendida, ainda, como “atividade de autotransformação” (FOUCAULT,
1994c; ORTEGA, 1999, p. 57). Importa destacar, desde já, que o si mesmo e o eu sobre os
quais falamos aqui não são entendidos numa dimensão psicológica: “essa interioridade não
61
tem a forma de um sujeito, de um eu, mas de um si mesmo, correspondente à categoria de
indivíduo(ORTEGA, 1999, p. 72). Tais assimilações eram desconhecidas para os gregos e
não é, portanto, em torno de uma psicologização que se alicerçam as análises foucaultianas.
O trabalho do indivíduo sobre si mesmo do qual a amizade fazia parte não estava
somente limitado ao domínio estético (da existência), mas também, e talvez sobretudo, ao
(inseparável) domínio ontológico: “por meio dele alcança-se uma transformação total da
forma de pensar e ser, a metamorfose do eu, a superação da própria individualidade e de seus
limites” (ORTEGA, 1999, p. 53). A amizade implicaria, então, uma junção aparentemente
paradoxal entre um conjunto de práticas de si na Antigüidade: o cuidado de si e o desprender-
se de si.
É o fato de estar ligada a um “desprender-se de si mesmo” que permite à amizade
formas de criação e não de previsão ou de antecipação do que ainda está por vir. Em relação
ao trabalho do intelectual hoje, Foucault nos mostra o que seria esse desprender-se de si
mesmo”: diferente de desenvolver um campo de conhecimento factível ou de proceder em
direção a uma recusa de si, desprender-se de si mesmo significa deixar-se levar por aquilo que
não é auspiciado ou esperado. Trata-se, portanto, da capacidade do indivíduo de “modificar
não somente o pensamento dos outros, mas também o seu próprio pensamento
(FOUCAULT, 2004b, p. 248).
Paralelo a isso, o cuidado de si não se apresenta como prática egocêntrica, egoísta ou
individualista. Ao contrário, o cuidado de si pode ser entendido, a um tempo, como
relação consigo mesmo e como “movimento de si para o outro” (ORTEGA, 1999, p. 129);
cuidado de si também, portanto, como cuidado dos outros. É o papel do outro que se
estabelece como essencial tanto para a autoconstituição, como para a autotransformação. O
indivíduo torna-se sujeito também com o outro, na relação que estabelece com o outro. Na
Antigüidade greco-romana, isso significava uma constituição estética de si, por meio da
relação com a figura do mestre, do professor e, igualmente, a do amigo (FOUCAULT,
2004b).
Vale destacar, no que concerne às comparações que podemos fazer com a era
moderna, que o que tem primazia nas relações intersubjetivas grego-romanas é o cuidado de
62
si e não o conhecimento de si. A diferença entre as duas práticas é radical: na cultura greco-
romana, o conhecimento de si aparece como conseqüência do cuidado de si. No mundo
moderno, o conhecimento de si constitui seu princípio fundamental” (FOUCAULT, 1994a,
p. 789). O que muda é que, como modo de ser, o conhecimento de si é “inteiramente
definido pelo conhecimento e, com isso, “submetido ao ideal de um fundamento da
cientificidade” (Idem, 2004b, p. 279-289).
Ainda em relação à amizade, pode-se dizer que ela não seria simplesmente um lócus
de consenso, de placidez ou de tranqüilidade. Antes, ela é o lócus nos quais são travadas lutas
de força: “no amigo, não devemos procurar uma adesão incondicional, mas uma incitação,
um desafio para nos transformarmos” (Idem, 2000, p. 80). A amizade é, assim, também o
espaço vazio, ainda por se fazer, no qual exatamente por isso os indivíduos devem ser capazes
de viver em suas contradições e tensões, um lugar no qual fosse possível um “determinado
agonismo e que não pretendesse anular as diferenças” (Ibidem).
O que faz com que algo seja considerado agonístico é o fato de aumentar ou
“revigorar” a atividade (em oposição à noção de passividade). Se isso acontece, pode-se dizer
que a relação, qualquer que seja ela, se dá “verdadeiramente” ou, de forma equivalente, se
nos relacionamos com algo “verdadeiramenteé porque este algo aumenta ou revigora nossa
capacidade de ação, portanto, “age como um agonista convencional sobre nós(MATILLA,
1999, p. 2, trad. minha). Tal como explicado por Miguel Matilla, “tanto o adjetivo
‘agonístico’ no sentido figurado de relativo a ou agindo como um agonista sobre s’ –,
como o substantivo agonista significam ‘tudo aquilo que aumenta nossa atividade’” (Idem,
trad. minha).
Apenas naquilo que de convergente entre as noções de amizade e de incitação
afirmativa, ressalto que Deleuze e Guattari (2000) retomam a idéia do amigo como
personagem conceitual. Os autores utilizam-se da clássica definição de filósofo como “amigo
da sabedoria”, porém enfatizando que nessa relação a sabedoria, antes de ser algo que se
possua, é algo a ser constantemente buscado. Se o filósofo é amigo da sabedoria e não o”
Sábio – não é em função de sua captura em ato, mas porque “ele aspira a ela, nela se
empenhando em potência(DELEUZE e GUATTARI, p. 11, grifos meus). Assim, o amigo
63
tem a ver com “uma presença intrínseca ao pensamento, uma condição de possibilidade do
próprio pensamento, uma categoria viva” (Ibidem), em uma palavra, potencialidade.
O que importa sublinhar é que todo processo de cuidado de si e cuidado dos outros
não está separado de uma prática de preparação, da organização de um “equipamento” para os
acontecimentos da vida (FOUCAULT, 2004a, p. 387-395). Uma preparação que é, por
certo, aberta e suscetível a variações e transformações. Trata-se, assim, da possibilidade de
nos aparelharmos para o futuro, para aquilo que está por vir e que, de fato, desconhecemos.
Ou seja, trata-se aqui da amizade como elemento potencialmente útil para nos fornecer bases
sobre as quais possamos ser “mais fortes do que tudo que possa acontecer ao longo de nossa
existência” (Ibidem, p. 388).
Partindo do conceito de amizade tal como desenvolvido por Foucault, passo agora a
análise dos filmes propriamente dita. Interessa-me aqui mostrar como se tecem as redes de
amizade, especialmente em dois materiais: A Língua das Mariposas e Central do Brasil. Meu
objetivo, então, é descrever, por um lado, como Don Gregório invade a vida do menino
Moncho, transformando-a e sendo transformado e, por outro, como Josué relaciona-se com
Dora e, no jogo da amizade, como ambos superam-se a si mesmos.
A Língua das Mariposas e a amizade para além do salvacionismo
A Língua das Mariposas é baseado em três contos do autor espanhol Manuel Rivas: La
Lengua de las Mariposas, Carmiña e Un Saxo en la Niebla. O filme tem como tema central a
relação de amizade estabelecida entre o velho professor Don Gregório e o menino Moncho,
de sete anos. Enquanto o primeiro está prestes a se aposentar, o segundo recém inicia sua vida
escolar. A amizade entre os dois se estabelece justamente nesse espaço entre a retirada de um
e a entrada do outro na cena pedagógica stricto sensu. Vemos, porém, que se trata de uma
relação não circunscrita às paredes da sala de aula, mas que, as atravessa, mobilizando tanto o
professor quanto o aluno a uma série de trocas para além dos conteúdos disciplinares. A
relação entre Don Gregório e Moncho é invadida de forma intensa pelos prenúncios da
64
Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a ascensão do regime ditatorial franquista. Don
Gregório, assim como o pai do menino e outros habitantes do pequeno vilarejo espanhol
dentro do qual a narrativa de dá, era uma das figuras de resistência ao modelo de governo que
logo se tornaria vigente.
De início, seria importante perguntar qual a diferença entre a relação de amizade aqui
desenvolvida entre professor e aluno e aquelas o tradicionais, presentes em tantos filmes,
tais com como A Sociedade do Poetas Mortos, de Peter Weir (1989), Conrack, de Martin Ritt
(1974), Meu Mestre, Minha Vida, de John Advilsen (1989) Ao Mestre Com Carinho, de James
Clavell (1967), etc.?
Primeiramente, cabe dizer que não se trata aqui da apresentação de uma “pedagogia
do herói” (FABRIS, 2001), comum em filmes hollywoodianos, cujos personagens centrais são
professores, alunos e escola. Não vemos uma escola degradada, alunos perdidos e um
professor que irrompe nesse espaço a fim de transformá-lo radicalmente. Não é figura do
professor-cometa, que surge iluminando o conjunto de ações escolares mesmo que isso, ao
final do filme, acabe geralmente conduzindo à sua demissão. Antes, a relação professor-aluno
em A Língua das Mariposas é suspensa, e o que toma a cena é somente aquilo que escapa às
relações institucionalizadas.
Nas narrativas hollywoodianas,
Esses professores, na maioria homens, são posicionados em histórias, nas
quais brilham em confronto com a escuridão das escolas que são projetadas
nas telas do cinema ou das televisões. As escolas são representadas como
locais de não-saber (conhecimentos) e de não-ser (educado), onde se
travam conflitos dos mais variados, desde tráfico de drogas, gravidez
precoce até violências, etc. É um reduto da violência urbana, mas, ao
mesmo tempo, é essa escola que na figura de um professor herói,
milagreiro e santo, pode transformar a situação. Mas, todos os problemas
se resolvem graças ao professor herói (FABRIS, 2001, p. 6-7).
Assim, observamos que o movimento de transformação ou mesmo da permeabilidade
da presença de Don Gregório em Mocho não se dá como um gesto de alteração de estados: de
um menino ingênuo, oprimido, para outro liberto e mais lúcido. Não se trata de um
progresso, nem de um desenvolvimento em termos de maturidade. Diferente dos filmes que
65
citei, em A Língua das Mariposas a posição do professor, e especialmente da amizade que
ultrapassa a relação institucional, não é figura de onde provém uma iluminação instantânea ou
aquela que, de um momento a outro, faz com que o outro “abra os olhos” (FOUCAULT,
2004b, p. 248). Ao invés desse movimento, trata-se da proposição de um outro exercício
sobre si mesmo, possível dentro de uma relação sem finalidade; um exercício, portanto,
no qual a única maturidade que está jogo é a do olhar e do gesto: a delicadeza do convite ao
olhar aguçado para a asa de uma borboleta ou a língua de uma mariposa, ao despertar da
sensibilidade de ouvir o grilo-rei cantar no meio do mato ou do aceno à curiosidade, radicado
na singela afirmação de que algumas aranhas inventaram, milhares de anos atrás, o
submarino.
O cinema não é apenas a escritura do movimento, mas a escritura do gesto
(LARROSA, 2006), a partir da conversão do olhar. É justamente o ato de inscrever a amizade
entre professor e aluno no espaço da conversão do olhar que diferencia este filme dos que
citei acima e talvez o aproxime de outros, como Cuore, Lembranças do Coração, de Luigi
Comencini (1986) ou Crainquebille, de Jacques Feyder (1922). O que esta amizade propõe é
um movimento de transformação lenta e gradual, que nada tem a ver com salvacionismo. A
amizade, nas descrições dadas por Foucault, não supõe o domínio de um, do alto de um
saber, em relação a outro, ainda em estado imaturo embora se “na figura do mestre,
guia, professor, amigo” (ORTEGA, 1999, p. 133). A conversão do olhar difere do exercício
de conscientizar, como tradicionalmente entendido, pois o primeiro não diz respeito a uma
conduta com um fim específico e nem é o caminhar de um lugar para o outro: o gesto ou a
conversão do olhar é o fim em si mesmo, ele é, em si mesmo, movimento. Na qualidade de
gesto, o que importa não é a transcendência, mas a imanência que se coloca exterior a
relações de oposição (melhor versus pior, bem versus mal, verdadeiro versus falso).
Tal como referido, a relação de amizade não supõe idéias de um democratismo
abstrato e quimérico da igualdade entre um e outro. Da mesma forma, seria ingênuo afirmar
também que não existe nenhuma relação de superioridade entre Don Gregório e Moncho ou
que o adulto estivesse absolutamente livre da tarefa de ensinar coisas à criança. No entanto,
há uma relação de respeito e de dignidade que merece se ressaltada. Nervoso com seu
66
primeiro dia de aula, Moncho acaba fazendo xixi nas calças em frente aos colegas de sala,
enquanto o professor pede que ele diga seu nome em voz alta. Frente à reação das crianças,
que riem, Moncho corre e foge da sala de aula. Horas depois, Don Gregório vai à casa de
Moncho para falar com seus pais, para saber como ele está, mas acima de tudo para se
desculpar com o menino: “Ele é um garoto muito sensível, gostaria de pedir-lhe perdão e,
além disso, pedir-lhe para voltar para a escola”. Os pais insistem em agradar o professor,
oferecendo-lhe petiscos e dizendo que não nada do que se desculpar. O professor, no
entanto, pede que a mãe chamá-lo. O diálogo entre os pais e o professor é acompanhado
de longe, às escondidas, por Moncho. Não somos apresentados à cena “oficial” do pedido de
desculpas, mas diretamente convidados a acompanhar a seqüência que mostra o dia seguinte,
na escola, quando Don Gregório chega à sala de aula segurando Moncho pela mão. O
professor apresenta o “novo” aluno aos demais e pede que os colegas o recebam com uma
salva de palmas. E é ao seu lado que, naquele dia, Moncho assiste à aula.
Um novo mundo se apresenta ali, a partir da entrada da escola e especialmente de
Don Gregório em sua vida. Ensinamentos que ganham ares de grandes descobertas, ao
mesmo tempo em que não se parecerem com aqueles da sisudez de um organograma
curricular tradicional: na conversa com a mãe e com o irmão adolescente, à noite, na cozinha,
Moncho pergunta: “sabem de onde vêm as batatas? Elas vêm da América. Não existiam aqui”.
A mãe, desconfiada, questiona: “Não diga bobagens. E o que as pessoas comiam, então?”.
Moncho responde: “Castanhas. Antes de Colombo não havia batatas na Espanha”. Ou quando
Moncho pergunta ao irmão: “Você sabe onde fica a Austrália?”. O irmão responde: “Na
América?”. E Moncho corrige: “Na Oceania. E vosabe o que é um ‘tilonorrinco’? É um
pássaro que mora na Austrália. Quando está apaixonado, dá uma orquídea para a fêmea. Uma
flor muito bonita, que custa muito dinheiro”.
Esse novo mundo transforma a criança não para uma conversão no sentido cristão,
de uma súbita mutação”, uma ruptura radical, na qual “o eu que se converte é um eu que
renunciou a si mesmo (FOUCAULT, 2004a, p. 259-260, grifos meus), mas para a abertura de
novas possibilidades; transforma o indivíduo não no sentido de uma falência ou morte do
indivíduo anterior, mas em torno da descoberta de que outros mundos são possíveis. Se
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uma ruptura aqui em questão, ela diz respeito, sobretudo, não ao indivíduo em relação a si
mesmo, mas àquilo que o cerca (Ibidem). Durante uma conversa com Don Gregório, o padre
do vilarejo chama Moncho. Se os dois adultos aparecem no tradicional plano-americano,
Moncho, como em grande parte das vezes, é mostrado praticamente em close. O padre,
então, aplica-lhe um pequeno “teste oral” em latim, uma espécie de tradicional jogral,
daqueles freqüentemente vistos em missas. O menino, porém, esquece a última parte. Era
exatamente isso que o padre queria mostrar a Don Gregório: “Está vendo? Ele não lembra”.
Don Gregório apenas sorri e diz: “Não sabia que ele ia ser coroinha”. O padre, irônico,
explica: “Exatamente: ‘ia’. Você disse tudo. Logo que começou a freqüentar a escola,
começou a perder o interesse pela igreja”. A partir disso, padre e professor estabelecem uma
discussão a partir de diálogos em latim:Nidos tepentes absilunt aves. Aves deixam seu calor nos
ninhos”, diz o padre. Ao que Don Gregório responde: Libertas virorum fortium pectora acuit. A
liberdade estimula o espírito dos homens fortes”. Fugindo de um possível clichê, que
reduziria a situação a uma tomada de consciência por parte do garoto em relação aos valores
conservadores da igreja, o que vemos aqui é apenas o despertar para novas descobertas. É o
ato de poder pensar-se a si mesmo para além dos destinos previstos.
A relação de amizade é o movimento de pensar-se a si mesmo em relação ao outro. É
expor-se ao outro, abrindo-se não para uma imediata inteligibilidade, mas para a espessura
mínima dos ditos. Como quando Don Gregório confessa para o menino a dor de perder a
esposa tão jovem: a morte da esposa que, em seu lugar, deixou “uma cama deserta, um
espelho velho e um coração vazio”. Ainda assim, pensar o outro é pensar-se no outro. Ao
escolher que livro dar para Moncho, Don Gregório hesita, pega um manual comunista como
A Conquista do Pão, de Kropotkine, e acaba dando A Ilha do Tesouro, de R.L. Stevenson.
Pensar-se a si mesmo pelo outro expressa-se no filme quando Don Gregório ao menino
uma rede de caçar borboletas para que, juntos, fossem à mata, descobrir mais sobre a língua
microscópica das mariposas: A língua chama-se tromba espiral’”, diz Don Gregório. “E
podemos ver?”, pergunta Moncho. Não, agora está enrolada. A língua das mariposas é como
uma mola de um relógio. É para alcançar o néctar que as flores possuem no cálice”, finaliza o
professor.
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Ao final do filme, as turbulentas transformações pelas quais o país atravessava colocam
Don Gregório numa situação delicada. Ele é preso e agora es prestes a ser levado pelo
exército. A cidade inteira acompanha a saída dos “comunistas” de dentro do edifício em
direção ao caminhão aberto que os transportaria. Para tanto, os presos devem atravessar um
corredor formado pelas pessoas, que encontram nos insultos a forma de distinguir-se daqueles
agora perseguidos. A cada pessoa que saía, o olhar de surpresa do menino, que ali não o
“criminoso”, mas apenas o pai de um amigo, acompanhado da dor da família. O último a sair
é Don Gregório. Para distanciar-se de qualquer relação com o professor, a mãe pede ao
garoto que grite, que o chame de “ateu”, de “comunista”. O menino atende ao pedido da
mãe, grita, mas não faz isso: corre atrás do caminhão e, com pedras na mão, repete:
“ateu!”, “comunista!”, somados a enigmáticos “tilonorrinco!”, “tromba espiral!”.
Podíamos resumir a seqüência afirmando que se trata da destruição das relações
afetivas provocadas pelo fascismo. Ou, quem sabe, o contrário: dizer que nem a ditadura mais
voraz pode apagar as marcas da amizade. Moncho estaria passando uma espécie de recado
secreto ao professor, ao mostrar que sempre lembraria de suas lições? Ou o menino apenas
volta-se contra Don Gregório, usando justamente o que ele havia lhe ensinado? A lágrima que
corre em seu rosto, a expressão em close entre um rosto expressivo e um punho fechado com
uma pedra na mão é de tristeza? De raiva? O final não se perde no melodrama, nem na
obviedade de mostrar a reação de decepção e tristeza ou de uma relativa alegria do professor
frente à atitude do menino imagem que talvez fosse nos fornecer indícios que, então, nos
revelassem o sentido derrisório daquele gesto. o vemos a reação do professor, mas tão-
somente o rosto congelado do menino e que, pouco a pouco, perde as cores e torna-se
imagem fixa em preto-e-branco. Mais do que explicações para a seqüência final, o que se abre
para nós é a imagem da criança na sua mais genuína imprevisibilidade, sua presença
enigmática, recusando qualquer explicação linear ou fatalista. É ali, exatamente ali, que a
criança nos tira a voz e as certezas. É ali, exatamente ali, que se faz potência em s, por
introduzir o elemento da dúvida. Trata-se, portanto, do espaço aberto, ou mesmo do vazio
que é instaurado no interior da incerteza. E é ali, exatamente ali, que a criança nos escapa.
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Central do Brasil e a amizade como metáfora da viagem
Um dos filmes nacionais que mais obteve sucesso mundialmente, Central do Brasil, de
Walter Salles, nos apresenta a relação turbulenta entre Josué e Dora. Dora é a professora
aposentada que, para complementar as despesas domésticas, escreve cartas para analfabetos
na estação ferroviária que nome ao filme, no Rio de Janeiro. Uma das clientes de Dora é
Ana, que vai até ela a pedido do filho, Josué, para escrever uma carta ao ex-marido, o pai que
Josué nunca conheceu. As cenas iniciais do filme mostram as agruras de uma sociedade
analfabeta; num mar de rostos em close: olhando diretamente para s, lugares e cidades de
um país tão vasto e, ao mesmo tempo, tão desconhecido: Mimoso, Pernambuco; Cansanção,
Bahia; Carangola, Minhas Gerais; Relutaba, Ceará; Muzambinho, Minas Gerais.
Dora, no entanto, é também a juíza, que, ao lado de sua amiga Irene, decide quais
cartas “merecem” ser postadas ou não. Quando não são rasgadas imediatamente, seguem para
um “limbo”: uma gaveta no armário, à espera de serem ou não enviadas a seus destinatários.
No dia seguinte, Ana vai novamente até Dora, pedir-lhe para revisar a carta que escrevera no
dia interior. Pede, além disso, que inclua uma foto do menino. Minutos depois, ao atravessar
a rua, Ana é atropelada por um ônibus e morre ali mesmo, em frente ao filho. Josué agora
perambula sozinho pelos corredores da Central do Brasil a imensa e escura estação durante
a noite, vazia, mas também pequena, tumultuada, nem por isso menos sombria, entre trens e
lanchonetes, policiais, vendedores e passantes durante o dia.
Vendo Josué sozinho, Dora encontra ali a possibilidade de ganhar um dinheiro extra:
vender o menino para uma quadrilha de roubo de órgãos. Dora entrega o menino, com a
promessa de que iriam cuidar bem dele. Volta para a casa, compra uma televisão nova, mas
não consegue dormir. Sabe que um limite de si mesma que foi ultrapassado. No dia
seguinte, ela retorna ao apartamento da quadrilha e tira o menino de lá, ao mesmo tempo em
que se obrigada a fugir do Rio de Janeiro para não ser talvez morta. É então que, junto
com Josué, Dora parte para Bom Jesus à procura do pai desconhecido, tendo em mãos apenas
a carta deixada por Ana.
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Neste momento, começa a viagem de Dora e Josué. Mais do que buscar uma cidade,
do que desbravar terras virgens, do que a certeza do destino final, os dois são lançados para a
viagem como metáfora, como possibilidade de efetuar uma travessia da qual não se sai
idêntico. “Viajar é isto: deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós,
algo que não conhecíamos até então (CALLIGARIS, 2007, p. 1)”. A viagem aqui, vivida ou
metafórica, é marcada pelas tensões, pelas transformações, pelos encontros e desencontros,
por aquilo que se ganha e por aquilo que vai se perdendo pelo caminho.
No meio da viagem, ambos vão deixando e perdendo um pouco de si mesmos: o
apartamento fica abandonado e a vida no Rio de Janeiro suspensa, a mochila dentro do ônibus
e o dinheiro dentro da carteira são perdidos. Apesar disso, Dora e Josué agarram-se às únicas
certezas que têm: o menino que “pôs na idéia” de querer conhecer o pai, insiste em ter nas
mãos o único objeto-carta que liga, a um tempo, o pai que nunca viu e a mãe que recém
morreu; Dora, sisuda, vestindo calças e roupas austeras, sem maquilagem e com o rosto
cansado da jornada que mal começou, agarra-se ao mínimo de controle que pensa poder ter
sobre a situação: “a gente devia andar de ônibus, nunca de táxi. O ônibus tem o caminho
certo, tem o lugar certo, já o táxi não, ele toma um rumo qualquer e depois se perde”.
No início, os corpos pouco se tocam, pois são apartados pelo encosto de braço do
ônibus e pela distância que, resistentes, preferem manter um do outro. Quando Dora encosta
em Josué, é para agarrar-lhe o braço com força. Os dois marcam suas diferenças a partir de
posicionamentos irrisórios: “Nunca se esqueça de roubar mortadela”, diz Dora. “Eu detesto
mortadela!”, responde Josué. “Mentirosa” é nome que Josué àquela mulher, enfrentando
de frente o cinismo, a hipocrisia, a aridez daquela que em nada se assemelha à sua mãe.
“Moleque” é o nome que Dora dá ao menino, como se expressasse ali a tentativa de impor um
respeito que não existe e de diminuir aquele que, diferente das evidências, lhe obrigou a
pegar um táxi e tomar um rumo inesperado e incerto.
Aos poucos, os dois acabam por se reconhecer em meio à desilusão da vida e do
sofrimento, em meio à vegetação agreste, à areia vermelha que marca suas roupas e ao sol
intenso que imprime em seus corpos e na imagem uma luminosidade dolorosa. Aos poucos,
Josué vai encontro de Dora, aproxima-se dela, senta ao seu lado. Juntos, ao de uma
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imensa rocha sólida, mas sozinhos, de frente para uma chapada infinita, eles ficam em
silêncio. Josué apenas pergunta a Dora onde a mãe dele estaria agora. A mão de Dora, neste
momento, não pega mais o braço de Josué, mas o pulso, sua mão, ajuda-o a levantar para
que, juntos, possam colocar o lenço perdido da mãe em um pequeno santuário, daqueles
perdidos na beira da estrada.
Os ditos de Josué ecoam de algum modo em Dora: “Você é feia e mentirosa. Por isso
que ninguém casa com você. Parece homem, nem tem pintura na cara”. Um dos encontros
fortuitos da viagem é com o caminhoneiro César. Dora vê ali a possibilidade de, talvez,
encontrar um companheiro. Solitário, a estrada e o caminhão de César são os únicos veículos
de seu caminhar. Solitária, a rotina e a estabilidade de Dora são os únicos passos que ela
almeja para o seu fixar. Dora e Josué pegam carona com César. Aos poucos, os três vão se
conhecendo. Na última seqüência do encontro entre os três, Dora pede licença da mesa do
restaurante em que vão almoçar e vai até o banheiro. Olha-se no espelho, analisa-se, tenta
arrumar os cabelos. Ao ver ali uma outra mulher, pede-lhe emprestado o batom; ela quer
agora colocar pintura na cara”. O que fala ali é a voz da vaidade (ou seriam apena os ecos de
Josué?), mas acima de tudo trata-se o exercício de se expor ao outro, mesmo que, depois,
este venha a rejeitá-la.
O que antes afastava Dora e Josué, agora os torna próximos; o que antes os fazia
culpados da desgraça mútua, faz-se agora elemento de cumplicidade. A falta de dinheiro e a
decepção de estarem perdidos (por mais que estivessem na cidade destino, Bom Jesus do
Norte), acabam tornando-se estopim para mais uma discussão. Numa das seqüencias mais
belas do filme, Josué foge de Dora, cruzando um mar de pessoas que, à noite, estão em
procissão, cada qual com uma vela na mão. No meio da escuridão, da multidão e das orações
dos crentes, ouvimos os gritos de Dora, desesperada, ritmados pelos sons dos passos rápidos
de Josué, que foge. Por alguns minutos, Dora se perde de Josué. Hipnotizada pelos cânticos,
pela fumaça das velas e pela luz avermelhada da película, ela desmaia. Quando acorda, não
mais nem crentes, nem velas, nem santos, mas tão-somente o rosto sorridente do menino, as
pernas pequenas, nas quais agora ela pode repousar sua cabeça cansada.
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É a partir deste momento do filme que, sem nenhum “acerto de contas” explícito, os
dois retornam ao começo, porém agora transformados: famintos e precisando de dinheiro,
Dora volta a escrever cartas, porém agora numa mesa improvisada e tendo um ajudante.
Cartas que agora não vão mais para uma gaveta, mas para o destino indicado pelo remetente.
É nesse espaço de amizade que ambos se transformam naquilo que são. É neste espaço que
“moleque” e “mentirosa” passam a ser, um para outro, apenas e finalmente “Dora” e “Josué”.
A relação de amizade agora firmada implica também outras incertezas, implica lidar
com outras contingências dispostas pelo caminho. Referindo-se à memória do pai, Josdiz a
Dora, quase no final da travessia: “Tem hora que eu lembro, tem hora que ele se
desmancha na minha cabeça. Eu não quero esquecer de você”. São essas as dúvidas que agora
pairam em Dora, que, uma vez restituído à família que pertence, Josué seguirá um outro
caminho. Dora sai da vida de Joscom o vestido azul e floreado que ganhou do menino,
mas, acima de tudo, ela sai de sua vida não como uma mulher boazinha”, mas como alguém
“mais forte”. É ela agora quem escreve uma carta, desocupando, assim, o espaço no qual ela
até então sabia se movimentar: o de “juíza” dos ditos alheios. É ela agora quem aposta na
confiança e na coragem ao escrever/dizer, emocionada, para o menino: “tenho medo de que
você me esqueça”. O olhar antes divergente agora converge para uma mesma imagem: em
planos distintos, vemos Dora e Josué olharem, ao mesmo tempo, a foto que tiraram juntos no
dia da procissão, ou seja, no dia em que se perderam, mas que, paradoxalmente, também se
encontraram.
O que observamos, assim, é que Dora e Josué, agora separados, tornam posvel – um
em relação ao outro, um em função do outro a vivacidade da “superação de si”
(FOUCAULT, 2004a, p. 388). Uma superação de si que não tem a ver com sentidos de
simplesmente ser “melhor” do que antes ou de, a partir de então, poder ultrapassar os outros.
Não se trata de desenvolvimento, nem de gradação; não se trata de prevalecer sobre os
outros, nem de triunfar entre os seus. Superação de si como capacidade de “ser mais forte”
ou, talvez, mais modestamente, “de não ser mais fraco do que aquilo que pode acontecer”
(Ibidem).
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Considerações finais
Busquei, nesta seção, analisar os filmes A Língua das Mariposas e Central do Brasil tendo
como mote a discussão acerca das relações de amizade estabelecidas entre adultos e crianças.
Para sustentar tais análises, fiz uso dos estudos de Foucault sobre a temática da amizade,
entendendo tal conceito a partir de uma ótica que o considera como “forma de vida”
(ORTEGA, 1999, p. 158). A importância do tema para o autor estava radicada nas
possibilidades de abertura que esta forma de vida podia encarnar: não “a” verdadeira amizade,
a “boa” amizade no sentido daquela que aspira ao consenso. Ao contrário, trata-se aqui de
múltiplas formas de reinventar relações que ainda não estariam tomadas e inteiramente
permeadas por sentidos e controles institucionais. Assim, ao invés de resumirmos as
discussões, lançando-as para um rol de “exemplos” de amizade passíveis ou não de serem
repetidos –, o que os filmes nos mostram são apenas algumas das inúmeras formas que a
amizade pode encarnar. Não se trata aqui de moldes, assim como para Foucault nunca foi
objetivo fazer dos gregos um exemplo a ser rigorosamente seguido – fato discutido por tantos
autores (ORTEGA, 1999; COSTA, 1999; FISCHER, 2006; LOPONTE, 2005, etc.). O que
o autor propunha, ao contrário, era uma possível atualização da estilização da existência sob
novas formas de experienciar a amizade.
A amizade, neste sentido, foi abordada aqui por dois motivos: primeiro e
especialmente para entendê-la como espaço no qual sobressai a criança como potência
afirmativa, a criança como aquela que se afirma a si mesma na sustentação de sua diferença; a
criança que transforma e é transformada no exercício estético da amizade. Em segundo lugar,
tal questão foi abordada no intuito de relançar a própria noção de criança para além dos
espaços familiares ou das relações de fraternidade humanitárias, que não deixam de ser
discriminatórias (ORTEGA, 2000). Ao fazer isso, ao colocar a criança em primeiro plano nas
relações de amizade, estamos a um tempo redimensionando as potencialidades da criança e
lançando a amizade para além das relações privadas e intimistas. O objetivo, então, foi o de
discutir a amizade no âmbito das intersubjetivações ou das “subjetivações coletivas”, universos
aos quais a amizade pertence (ORTEGA, 1999, p. 171). Amizade e criança, assim,
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fortalecem-se no espaço do social e são erigidas à categoria de fenômenos blicos. Pensar o
conceito da amizade hoje, como um desafio lançado por Foucault, significa apostar numa
espécie de reversão ao nosso “apego exacerbado à interioridade, à ‘tirania da intimidade’”
processos que não nos permitem desenvolver “o cultivo de uma distância necessária para a
amizade” (Idem, 2002, p. 161-162). Antes disso, o espaço da amizade é aquele do mundo
compartilhado; espaço que é também “da liberdade e do risco” (Ibidem).
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1.2 Criança e anômalo: multiplicidades em jogo na estética cinematográfica
Nesta seção, discuto as noções de encontro, de composição e, especialmente, aquela
ligada à função anômalo, tal como descritas por Deleuze e Guattari (2002). Para tanto,
analiso os filmes O Garoto, de Charles Chaplin (1921) e O Menino Selvagem, de François
Truffaut (1970). Interessa-me aqui analisar em que medida podemos pensar na criança
singular, na criança acontecimento, a partir do momento em que ela é atravessada,
cinematograficamente, por uma potência desestabilizadora, expressa pela figura do pária, do
indivíduo excepcional, limítrofe – ou, mais diretamente, pelo encontro entre criança e
indivíduo limítrofe.
Interessa ainda compreender como, nesse encontro, a criança é afetada e de que
maneira ela afeta a outrem. Neste sentido, poderíamos perguntar: ao encontrar-se com
outrem, como se sua capacidade de agir? A encontrar-se com Dr. Itard, como se a
capacidade de agir de Victor, o menino selvagem? Ou, tratando-se do encontro do adulto
com a criança, como se a capacidade de agir para Carlitos talvez um dos exemplos mais
emblemáticos do anômalo no cinema? É quando uma questão de dinâmica (de atividade) entra
em jogo que o acontecimento tem lugar, porque ele (o acontecimento) é “sempre produzido
por corpos que se entrechocam, se cortam ou se penetram, a carne e a espada”. Contudo, o
efeito que nasce daí não é da ordem dos corpos, mas, antes, trata-se de uma “batalha
impassível, incorporal, impenetrável, que domina sua própria realização e domina sua
efetuação” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 78). A batalha, então, é o lócus privilegiado do
encontro e do acontecimento. Algo não visível, não tangenciável, mas nem por isso menos
real. Como o amor, que está “no fundo dos corpos, mas também sobre essa superfície
incorporal que o faz advir” (Ibidem, p. 79). Nenhum esoterismo, mas apenas a noção de que
é a partir do encontro que as forças se manifestam e o que o acontecimento tem lugar. Aquilo
que resulta de um encontro é invariavelmente singular.
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Quais os deslocamentos, quais os “ganhos” que teríamos ao perguntarmos acerca do
tipo de universo que se abre quando o encontro com o anômalo é fator capital para as análises
destes filmes? Com o que nos defrontamos nesse universo do encontro que, aos olhos do
mundo das coisas prontas, das formas previsíveis e independentes, nos seria invisível? Ao
perguntarmos o que acontece, por exemplo, quando os elementos heterogêneos da criança
conjugam-se com outros elementos heterogêneos ou, talvez, quando a zona de vizinhança
entre a criança e o anômalo (ou a criança ela mesma anômalo) é traçada, ficamos cada vez
mais distantes de noções de desenvolvimento, de idéias de representação e é aí que reside
grande parte dos deslocamentos desse tipo de análise. Isso porque nunca sabemos o que
resulta de um encontro, já que ele é, em sua essência, da ordem do imprevisível (só se sabe o
que ele é no momento mesmo em que ele se dá).
Primeiramente, situo a discussão acerca desses conceitos, e o faço a partir das
elaborações de Deleuze e Guattari, como referido acima. Em seguida, mostro de que
maneira os próprios conceitos vão sendo tecidos e desenvolvidos a partir da análise das
imagens dos filmes em questão. Ou seja, mais do que tomar os conceitos como “prontos”,
importa mostrar de que maneira eles são tensionados quando postos a operar nas análises
cinematográficas. No que diz respeito à imagem da criança, tais conceitos nos permitem
pensar que não interessa o que é melhor ou pior, em que estágio está, de que espécie é, se é
fiel ou não a um modelo infantil (pedagógico? Sociológico? Psicológico?); interessa saber,
afinal, do encontro entre John e Carlitos, entre Victor e Itard, o que se produz de novo. O
que de inesperado surge? Quais as fulgurações que esses encontros favorecem? Eles dizem
algo do acontecimento? Que singularidades são produzidas aí? Como a criança irrompe e se
transforma nesse encontro-acontecimento? É em torno destas perguntas que as análises são
feitas.
Multiplicidade, encontro e função anômalo: dos modos de ver a criança
Como suspender uma vontade de abarcar a infância e, no lugar disso, apostar na
conjugação das forças ativas e imprevisíveis da criança? Como descrever, como discorrer ou
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mesmo como contemplar um elemento tão sutil, e por isso fugaz, que atravessa uma vida,
que a singulariza, e que, ao mesmo tempo, não permite que ela seja individualizada (ou
assujeitada, no sentido de fazer dela resultado, efeito de um sujeito, de um corpo)? Como
descrever esse elemento singularizador, sem favorecer uma noção que resuma e limite a
criança na afirmação totalizadora de “as crianças são” (brincalhonas, engraçadas, ternas, etc.)?
Em relação a isso, vale mencionar a discussão sobre a singularidade radical a partir da
figura do bebê, tal como desenvolvida por Stéfan Leclerq (2002). No texto “Deleuze e os
bebês”, o autor traduz o caráter de indeterminação do infantil, afirmando que a vida se
encarna na figura do bebê”, uma vez que ele é inteiramente “singularidade pré-individual”
(Ibidem). Segundo o autor, podemos afirmar que “todos os bebês se parecem, embora eles
mostrem expressões que os atravessam inteiramente, como um sorriso ou uma careta”. Tais
expressões são “a manifestação de uma vida que percorre e singulariza o bebê, sem
individualizá-lo, faz dele algo que pertence apenas ao sensível” (Ibidem, p. 23, grifos meus).
Essa vida que se encarna no bebê é vida imanente, “pura potência, e até mesmo beatitude”
(DELEUZE, 2002, p. 14). Nesta perspectiva, os recém-nascidos não m individualidades ou
qualquer outro elemento que os individualize (LECLERQ, 2002).
Talvez, então, devamos falar não em uma vontade de abarcar a infância, mas numa
vontade de imanência (HÉBER-SUFFRIN, 2003) da criança. Vontade de imanência da criança
significaria qualquer recusa a um elemento ou mundo transcendente. No que diz respeito aos
filmes escolhidos, portanto, não interessa descrever a criança que a infância realizou,
entendida como criança transcendente, pois esta se apóia na criação e atualização dos
dualismos advindos de noções de verdadeiro e de falso (“verdadeira” criança), de mais e de
menos (ser “mais criança”, “menos” criança). A criança, assim, estaria relacionada com a
finalidade, com a possibilidade (ou com o total fracasso) de efetuar-se em sua plenitude.
Antes disso, trataremos da vontade de imanência da criança como algo que existe em si
mesmo, que não está nem mesmo localizada na criança (mas no encontro estabelecido com
outrem), que não depende ou não pertence a ela, mas que a própria criança, como pura
potência de vida, existe na imanência.
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Como pensar, então, nesta imanência e não na transcendência? Para tanto, efetuarei a
discussão de um modo muito particular, qual seja, buscando privilegiar três aspectos no que
diz respeito às análises cinematográficas da criança: primeiro, o fato de a criança dizer
respeito a uma multiplicidade; tal domínio (da multiplicidade), para Deleuze e Guattari
(2002), está necessariamente caracterizado pela composição entre partes ou elementos (assim,
o segundo aspecto relaciona-se à compreensão acerca das disposições entre a criança e aquele
com o qual ela se relaciona nos filmes); e, por fim, a consideração de que a criança diz
respeito àquilo que chamaremos aqui de função anômalo.
Propor uma análise da imagem da criança em função das multiplicidades das quais ela
faz parte configura-se como uma tentativa de afastamento da noção de identidade. Ou seja, ao
invés de pensarmos no ponto de convergência de uma identidade reconhecível e/ou a ser
reconhecida, onde características de uma criança repousariam tranqüilamente, trata-se de
efetuar um deslocamento em favor justamente da sua dispersão. Com o conceito de
multiplicidade, são eliminadas quaisquer características abstratas: unicidade, permanência,
fixidez, universalidade. Ao contrário, ao modo de Nietzsche, cabe compreender a
multiplicidade concreta que envolve a criança como um conceito, ao mesmo tempo pluralista
e dinâmico, uma vez que “cada elemento de uma multiplicidade varia sem cessar, modifica
sua distância em relação aos outros” (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 44).
O que importa para a análise, portanto, é em que medida a multiplicidade se
apresenta como tal e, assim, coloca em jogo um conjunto de elementos heterogêneos para sua
composição. Dessa maneira, a criança será concebida aqui como pertencente ao domínio de
uma multiplicidade do tipo intensiva. Não é a criança que é múltipla, ela, antes, atravessa esse
tipo de multiplicidade (a intensiva). Entendida dessa forma, a criança deixa de ser um lo
aglutinador e passa a ser um campo de forças, de intensidades, de relações diferenciais, de
elementos indiferenciados” (TADEU, 2004, p. 137). Nessa multiplicidade, o que interessa
são as forças que agem e reagem e como elas o fazem. Por atravessar um campo formado
de elementos contínuos (e não exteriores uns aos outros) e heterogêneos (uma força nunca é
igual à outra)” (Ibidem), o que acontece acontece ali, naquele momento e em nenhum outro
mais, pois o que acontece acontece em função das disposições, das combinações que estão ali
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e em nenhum outro lugar. Por isso se diz da multiplicidade intensiva que, ao se dividir, muda
de natureza: ao dividir-se e caberia melhor falar em “desdobrar-se”, “ficamos,
necessariamente, com conjuntos cujos elementos são de natureza diferente dos elementos
originais” (TADEU, 2004, p. 136-137). Tal assertiva é cara a esta discussão, na medida em
que entendemos que a análise em si dará conta de descrever os elementos de uma
multiplicidade.
“As relações, as determinações espaço-temporais não são predicados da coisa, mas
dimensões de multiplicidades [intensivas]” (DELEUZE e GUATTARI, 2002, p. 50). A partir
dessas considerações, talvez seja possível dizer que uma multiplicidade em jogo quando
vemos a imagem da criança que cria o seu mundo e que pode ser vista também em outros
filmes. Valentin, em seus ensaios para uma futura carreira de astronauta. Ingemar
(HALLSTRÖM, 1985), em sua casa-esconderijo. Jean e Pierrete (FEYDER, 1925) e a
pequena ilha que constroem à beira do rio. Léolo (AGRESTI, 2002), em sua crença de ser
filho de um tomate italiano, de abrir a janela do seu quarto e, em meio aos edifícios vetustos
de um subúrbio em Montreal, os campos mais verdes da Itália mediterrânea. Não se trata da
criança que finge ser astronauta, brinca de casinha”, que finge ter sua própria casa, que finge
estar uma ilha e ser dona dela: é a criança que, por dizer respeito a uma multiplicidade do
tipo intensivo, é astronauta, ela é a casa, a ilha, a Itália mas, ao mesmo tempo, não é
nenhuma dessas coisas. É esse entre-lugar que nos interessa, pois é dele que partem a
possibilidade única e irrepetível da criação e o modo pelo qual as crianças se tornam
irredutíveis umas às outras.
Obviamente, não nenhum projeto para que finalmente toda criança venha a ser
criança-acontecimento. A questão é que sempre se está (ou elas estão) no caminho entre uma
e outra, no caminho entre a determinação e a indeterminação, entre o que é da ordem do
estado de coisa e do acontecimento. Criança empírica, corpo, materialidade em relação à
criança-acontecimento, “quarta pessoa do singular” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 78),
criança-fulguração, entre o é e o não é. Pode-se dizer com isso que, sempre oscilantes, as
crianças (criança-empírica e criança-acontecimento) são contínuas uma em relação à outra.
Uma necessita da outra para manifestar existência e, além disso, facilmente uma pode se
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transformar na outra, sem que isso suponha um processo de exclusão. Daí a possibilidade de
pensarmos: “será que não é necessário um mínimo de formas, de estratos [...], um mínimo de
sujeito” para deles pudéssemos extrair aquilo que, de algum modo, seria da ordem do
acontecimento? (DELEUZE e GUATTARI, 2002, p. 60).
Imersa em multiplicidades, composta por elas e atravessando-as, a criança será
considerada então sob um ponto de vista da relação, do encontro e da composição entre suas
partes, entre seus elementos. Assim, em certa medida, talvez se possa afirmar que se tratará,
nesta seção, de realizar a análise da composição, cuja pergunta guia poderia ser assim
formulada: como a criança-imagem se compõe com elementos outros e, no seio dessa
relação, como ela se torna criança-acontecimento? Tal pergunta converge para a tarefa não de
analisar o que a criança é efetivamente, quais são suas características, mas como ela se
compõe com outras, consigo mesma e o que deriva daí (não em termos de resultados, de
produtos ou de saberes, mas de potências afirmativas). Interessa-nos, portanto, compreender a
criança mais no momento em que está ligada à noção de aliança do que propriamente no de
filiação (DELEUZE e GUATTARI, 2002).
A composição se dá a partir de dois vetores, duas coordenadas que, menos do que
guias para a análise, no sentido de indicarem que se trataria de propor uma cartografia”,
servirão como fonte inspiradora de perguntas a fazer aos objetos fílmicos. Portanto, uma das
problemáticas a ser considerada no trabalho de análise não seria aquela “da organização, mas
da composição; não [a] do desenvolvimento, mas [a] do movimento e do repouso, da
velocidade e da lentidão” (DELEUZE e GUATTARI, 2002, p. 41). Como se pode perceber,
é uma questão de longitude que é colocada em jogo. Em relação às velocidades e às lentidões,
podemos afirmar que a velocidade da criança será inversamente proporcional àquilo que se
entende por “representação”. Ora, mas o que isso quer dizer? Porque leve, a criança-
acontecimento é mais rápida, talvez até seu movimento seja o da dança; porque carrega em si
a finalidade inarredável do ser a criança empírica, a criança-corpo, é mais lenta. Contudo,
mais uma vez, não se trata de entender a criança-corpo e a criança-acontecimento como
elementos inteiramente apartados, piores ou melhores entre si ou como constituindo estágios
81
diferenciados de desenvolvimento. Ao contrário, “a velocidade não tem privilégio algum
sobre a lentidão” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 109).
Em Deleuze e Guattari (2002), as noções de multiplicidade e encontro reúnem-se de
modo singular por meio da figura do anômalo. Pensar no anômalo que aqui será
considerado como aquele que está numa posição anômala, que exerce uma função anômala,
ou mesmo que é uma potência anômala é pensar num “indivíduo excepcional” (Ibidem, p.
25), com o qual se deve fazer aliança para sair da ordem do ser e entrar no espaço
indiscernível do ser-não ser. Anômalo nada tem a ver com anormal. Este último, do grego
anômalos,os,on designa o desigual, maldisposto, desequilibrado, mal-arranjado(HOUAISS,
2001). Ainda assim, enquanto o anormal é definido em função de suas características em
relação a uma norma que o individualiza, o anômalo é uma “posição ou um conjunto de
posições em relação a uma multiplicidade” (DELEUZE e GUATTARI, 2002, p. 26).
As noções de multiplicidade e de encontro conjugam-se na medida em que um cresce
em função do outro: quanto mais variados forem os elementos de determinada composição,
mais dimensões estarão em jogo numa multiplicidade. Daí a importância do anômalo como
categoria de análise: é ele que, de algum modo, vai conduzir, na relação com a criança, os
limites da multiplicidade. O anômalo não é apenas a figura que diz respeito ao limite, à
borda: ele próprio é um fenômeno de borda, “linha que envolve ou é a extrema dimensão em
função da qual pode-se contar as outras” (DELEUZE e GUATTARI, 2002, p. 27). Se o
anômalo é a borda, ao compreendê-lo podemos igualmente compreender a multiplicidade
que ele bordeja. Ir além ou ficar aquém da diagonal que o anômalo traça significa dizer que
estaríamos nos ocupando com uma multiplicidade de outra natureza (Ibidem) – pois os
elementos que estariam dispostos seriam outros, assim como as velocidades e as potências de
agir.
Em relação a essa função anômalo e ao conceito em questão, poderíamos perguntar se
é o anômalo que define e a criança ou a criança que define o anômalo. Nem um nem outro:
anômalo e criança definem-se mutuamente, na composição de suas partes. Assim,
Mohammad Reza é o anômalo em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, que precipita em Ahmad a
busca fremente pelo imprevisível. O anômalo é a potência desestabilizadora: é Saga para
82
Ingemar (HALLSTRÖM, 1985), Jean Bonnet para Jean Quentin (MALLE, 1987), David para
Martin (SPILBERG, 2001). Entre o anômalo e a criança a relação não é de identificação; os
dois tornam-se outra coisa quando do seu encontro e é dele que a criança como singularidade
irrompe: da zona de vizinhança que se estabelece entre anômalo e criança. Jesus para
Marcelino (VAJDA, 1954), Don Gregório para Totó (TORNATORE, 1988), Rufo para
Valentin (AGRESTI, 2002), Sueli para Pixote (BABENCO, 1981). Até mesmo a guerra pode
também exercer essa função anômalo, como para Edmund (ROSELLINI, 1947), Ivan
(TARKOVSKI, 1962), Bill Sebastian (BOORMAN, 1987). Ou mesmo o pequeno peixe
dourado para Razieh (PANAHI, 1995), o cavalo branco para Giuseppe e Pasquale (DE SICA,
1946), a baleia para Keisha (CARO, 2003) ou o perseguidor balão vermelho para Pascal
(LAMORRISE, 1956).
Assim, interessa-nos capturar o anômalo como função, ou seja, entendendo que sendo
adulto, ou criança, ou animal, é a partir de sua condição de anômalo que se traçam linhas de
força, as quais, no encontro com a criança, produzirão (ou não) a criança-acontecimento. É
por meio dessa função de anomalia que o anômalo permite o surgimento da criança e não do
fato de o anômalo ser ou não (outra) criança. Pode-se afirmar com isso que é somente na
relação entre criança e anômalo, no encontro que ambos estabelecem, na aliança que é tecida
entre eles, que a criança se transmuta em criança-acontecimento. No processo de análise,
portanto, terá primazia a explicitação da condição de anomalia, pois é isso que define as
diferenças de grau e de natureza das multiplicidades que estarão em jogo entre as crianças dos
diferentes materiais. Importa agora verificarmos as multiplicidades, os encontros entre esse
anômalo que é Carlitos e o menino John; as multiplicidades e os encontros entre essa criança
anômala que é Victor e o Dr. Itard.
O Garoto e O Menino Selvagem: anômalos, multiplicidades e encontros
Carlitos. Talvez a expressão mais direta do anômalo, do pária, daquele que se
distingue dos demais de sua “espécie”. Uma mistura de vagabundo, maltrapilho, palhaço,
mímico. Figura capital do cinema, Carlitos não é apenas um marginal, ele é o mais marginal
83
dos marginais” (TRUFFAUT, 2000, p. 13, trad. minha). O personagem consegue reunir, a
um só tempo, o riso e a emoção – e talvez venha daí a genialidade do cineasta (HAAG, 2006).
Dos mais de quinze filmes protagonizados por Carlitos, de fato, apenas alguns se tornaram
mais emblemáticos – mas foram suficientemente capazes de imortalizar a figura desse outsider:
Uma Vida de Cão (1918), O Garoto (1921), O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931), Tempos
Modernos (1936). Carlitos de mil faces. O personagem de Charles Chaplin é ainda hoje
identificado com o próprio cinema. Quem não conhece o andar de pato, a bengala, o fraque
furado, as calças levemente caídas, a despretensiosa cartola, os sapatos gastos e,
especialmente, o bigode em forma de trapézio? “É a humanidade inteira que se equilibra nas
pernas frágeis de Carlitos” (MERTEN, 2005, p. 60).
O pseudo-herói Carlitos nunca teve suas formas plenamente definidas, que sempre
prestes a ser encarnado numa outra história, repaginado. A presença de M. Verdoux (O Barba
Azul 1947) desestabiliza a figura do vagabundo, torna-se seu martírio: Carlitos, “fantasiado
de seu avesso”, surge aqui “na condição de sobre-impressão” em M. Verdoux (BAZIN, 2000,
p. 44, trad. minha). Carlitos-Verdoux: “se Carlitos sofre de um evidente complexo de
inferioridade em relação ao outro sexo, Verdoux assume o papel de Don Juan e com sucesso
[...]; Carlitos é terno e inocente, Verdoux é um cínico [...]. Carlitos tem em sua essência a
inadequação social, Verdoux a super-adaptação; a polícia que aterroriza Carlitos é facilmente
enganada por Verdoux, aliás, é a polícia que tem medo dele” (Ibidem, 45-46, trad. minha).
Quem é Adnoid Hinckel, em O Grande Ditador (1940)? “Por ter-lhe roubado o bigode, Hitler
entregou-se de s e mãos atados para Carlitos” (Ibidem, p. 32, trad. minha). Hitler toma de
Carlitos o bigode, Carlitos, então, retoma seu bigode e faz dele, agora, um bigode à la Hitler.
Ao invés de matar seu adversário, Carlitos o enfraquece: Hickel não nos inspira o ódio, a
raiva ou o medo, mas o ridículo, a ironia, a partir da introdução do burlesco. não se sabe
mais o que caracteriza Carlitos: ser um vagabundo? O bigode? O andar de pato? Não se trata
de respostas, não se trata de fixar o personagem, encerrando-o num conjunto demarcado de
características, mas de saber que ele é todos e nenhum, ao mesmo tempo.
O que se observa, por certo, é o fato de que Carlitos se relaciona de modo muito
particular tanto com o universo de caracterização do personagem, como com temáticas
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pungentes do seu tempo e que, exatamente por isso, fizeram-se perenes (tanto o personagem
em si, como a vida que dele deriva a partir da problematização dos “tempos modernos”).
Carlitos no circo, Carlitos como limpador de vidraças, como palhaço, como milionário,
como apaixonado e, em meio a isso, encontramos Carlitos também na crítica humorística da
figura do ditador, o retrato satírico da maquinização do homem depois da Revolução
Industrial. Para o que nos interessa aqui, não é por acaso que dentre tantas abordagens,
dentre tantos universos, lá está a criança. Anômalo e criança: a primeira das alianças.
De um outsider, passemos ao outro. algo de fascinante na figura da criança
selvagem. Na criança que, ausente de quaisquer intervenções culturais, permanece alheia à
educação. Rousseaunianamente, a criança selvagem é aquela que cresceu na selva, geralmente
acompanhada de animais (e, por isso, vivendo como um deles). A criança que, capturada de
seu habitat, vem ao encontro da civilização. No cinema, retiradas de experiências verídicas ou
não, crianças-lobos, crianças-ursos tornaram-se protagonistas: desde o filme de Truffaut, a O
Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog (1974) até Mogli, o Menino Lobo.
Em Truffaut, a criança selvagem é o anômalo: causa espanto, vertigem, curiosidade
dos adultos e também das próprias crianças do vilarejo. A criança suja, mal vestida, de unhas
mal cortadas, de cabelos longos e tão rebeldes quanto seu corpo: tirá-la da selva é tarefa
árdua, requer táticas e estratégias, mantê-la na carruagem exige paciência e agilidade, não é
fácil afastá-la do rio e das árvores, para onde ela insiste em fugir. É assim, então que, nos
primeiros quinze minutos do filme, ela foge, escapa, resiste à prisão. A criança selvagem é
aquela a que não se sabe dar nome, aquela cuja presença enigmática conduz seus responsáveis
a abrigá-la naquilo do qual eles minimamente conseguem dar-se conta. “Idiota irrecuperável”,
como diz o mais famoso psiquiatra da época, Pinel que marca também sua presença no
filme, como um dos primeiros a analisar o caso do sauvage d’Aveyron”. Sua presença radical
nos obriga a pô-la, a situá-la em algum lugar, talvez apenas aproximativo, tangencial. Onde
confiná-la? Na prisão? Na delegacia? Ou no Hospital Bicêtre, que no final do séc. VIII
período em que se passa o filme era o asilo destinado a loucos e doentes mentais,
“incuráveis”? Talvez no abrigo de surdos e mudos. Criança-anômalo e Itard (o médico,
responsável pelo menino): a segunda aliança.
85
várias formas de descrever e de pensar o corpo desse selvagem. Após ser
capturado, o menino é levado ao professor-doutor Itard e ao psiquiatra Pinel para exames:
contata-se que ele mede 1m39cm de altura, tem pele fina, cor escura, rosto oval, olhos
negros, grandes pestanas, boca média, língua normal e bem distinta, dentição normal. Os
observadores calculam ainda que ele deva ter entre 11 e 12 anos. No momento da apreensão,
ele tinha quatro cicatrizes no braço esquerdo, no ombro e na perna direita, e umas quinze
cicatrizes, arranhões e rasgões pelo resto do corpo (a maior parte devida a mordeduras de
animais). Tinha ainda uma cicatriz diferente das outras no pescoço, uma sutura de 40mm, que
parecia ser um corte provocado por instrumento afiado. A hipótese colocada pelos médicos
foi a de que o selvagem deveria ter tido necessidade de matar animais para sobreviver. Os
que o abandonaram devem ter querido assassiná-lo”, afirma o professor.
Contudo, sabe-se que “é no num encontro que um corpo se define” (TADEU,
2002, p. 53). É no encontro com Dr. Itard que Victor pode ser Victor (no sentir de ter
agora um nome, de ser esse e não um outro qualquer), que pode ser corpo-resistência, que
pode ser corpo-defesa, corpo experimento, mas também corpo-rejeição. “Individualmente,
isoladamente, um corpo não tem interesse” (Ibidem, p. 53-54). É tão-somente por conta do
encontro com Dr. Itard que podemos ver, levando em conta as disposições do jogo, do que
Victor é capaz. Se as disposições fossem outras, outras capacidades, outras potencialidades
estariam, por certo, ainda por se fazer e por se definir. Tudo o que faz aqui “é pela primeira
vez”, como diz o médico Itard, responsável pelo menino.
Antes de ser corpo-métrico, mensurável, dado, importa-nos destacar esse corpo que
agora se esforça para assumir uma outra forma de comunicação. Se alguma medida interessa é
a da sua velocidade: aquela que, após satisfazer o desejo de seu professor-doutor em unir o
objeto-tesoura à figura que lhe corresponde ou à palavra que o substitui (como um dos muitos
exercícios que são propostos ao menino), Victor joga-se no chão e atira tesoura, desenho e
palavras ao longe. A criança rápida é aquela que sabe deslizar entre(DELEUZE e PARNET,
1998, p. 42, grifos meus). Se alguma medida interessa é esta, do deslizar entre: entre o corpo
(a ser) educado e o corpo selvagem. Em sua velocidade, Victor suspende as expectativas em
torno da noção de progresso: ele “evolui” por um lado e recua por outro. Encaixa
86
perfeitamente a tesoura-objeto na tesoura-palavra (escrita no quadro-negro), mas ao mesmo
tempo rompe com a união entre palavras e coisas que buscam definir ele mesmo, na condição
de criança.
Em O Garoto, Carlitos é surpreendido com o choro de um bebê no meio de um beco.
Ela pega o menino, do qual porém logo tenta se livrar: tenta dá-lo a uma mulher que passa à
sua frente, a um mendigo que, bêbado, mal percebe o que está a se passar e, por fim, tenta
deixá-lo ali mesmo, onde o encontrou. Em função da exigência do policial, que lhe pede
explicações para tal ato, ele se obrigado a recolher o menino e assumir como “seu”. Neste
primeiro momento do filme, criança rejeitada e criança acolhida coexistem e concorrem
entre si. Cinco anos depois, no encontro com o vagabundo, o menino John aprende o
gingado, a malícia, a ironia que, do alto de seus cinco anos, lhe permite lidar com policiais
ou, ainda, lhe permite driblar o contador de gás. Do encontro com Carlitos, a brincadeira de
atirar pedras nas janelas da vizinhança ganha outro sentido: ela serve agora para ocupar um
limite indiscernível entre brincadeira e trabalho: John quebra as vidraças para, logo em
seguida e estrategicamente, Carlitos passar pela frente da casa da “vítima” vendendo placas de
vidro. E é dessa velocidade que aqui falamos: do espaço entre o cúmplice infantil, imitador do
adulto, para aquele que também não deixa de ser o corpo-anjo, corpo-sonho na imaginação
de Carlitos. Numa das seqüências mais belas do filme, Carlitos, desesperado com o
desaparecimento do menino, cochila na sarjeta. É então que somos transportados para seus
sonhos: ele sonha com o céu, com o paraíso, com o país das maravilhas” (dreamland, como
nos sugerem as tradicionais legendas fixas dos filmes mudos). Em seu sonho, o beco onde
moram é todo adornado de flores, as crianças, animais e adultos inclusive os policiais, os
quais Carlitos tanto teme cantam e dançam com suas harpas e asas e roupas brancas: são
agora todos anjos, com exceção do sonhador. Aqui, nada de uma inocência óbvia de a criança
transformar o adulto em anjo. Antes disso, John pega Carlitos pela mão e juntos vão fazer
compras (shopping): é assim que também Carlitos compra, ele mesmo, suas próprias asas.
O encontro, neste sentido, é o que permite com que as crianças Víctor e John
afirmem e coloquem em exercício suas forças. Não é de afetos que estamos falando, mas do
poder de afetar. Não é de uma relação de carinho, tampouco de familiaridade, de algo que
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viria do exterior para sacudir o outro, em sua passividade, mas tão-somente da mobilização
de forças as quais, em seu exercício, mostram-se profícuas para a capacidade, para a potência
do agir. Em uma (ou duas) palavra (palavras): criação, invenção de formas de agir. E, enfim,
quando criança-corpo torna-se criança-acontecimento.
Victor não se torna “educado”, mas também não persiste como “selvagem”. Itard não
se torna “professor”, nem permanece como “médico” do menino. Da mesma forma,
“Carlitos” deixa de ser o solitário, mas também não é pai. John deixa de ser órfão, mas
também não é filho. É nesse espaço nascido da relação entre ambos que emerge esse entre-
lugar indiferenciado, aquele que se afasta da designação e, justamente, do reconhecimento.
Não ser nem uma coisa nem outra, mas, ao mesmo tempo, ser as duas. Os filmes, portanto,
não se resumem a propor uma evolução entre estados (de selvagem a educado, de solitário a
patriarcal), mas, ao contrário, nos apresentam as involuções (DELEUZE e GUATTARI,
2002) ente os termos que estão o tempo inteiro em jogo. É esse movimento, pois, que é
criador a involução é criadora, nos diz Deleuze pois entre os estados um tanto ainda
para se inventar (nos estados, nada se inventa, eles estão lá, dados). A criança não é animal,
ela torna-se (devém) animal, assim como selvagem não é a criança, ele torna-se criança
(devém-criança).
Cabe entender que indescidibilidade e indiscernibilidade são possíveis por estarmos
aqui falando do encontro com o anômalo. Ser e não ser, todo o tempo, ao mesmo tempo. Se
em O Menino Selvagem trata-se de reinventar um novo vocabulário para quem, aparentemente,
até agora “ouve, mas não escuta; olha, mas não vê”, em O Garoto trata-se de criar modos de
ser criança no seio do espaço vazio entre o órfão e o cúmplice imitador.
Como criar esse espaço, ou, como criar nesse espaço? Com que elementos contar?
Universos inteiramente apartados daqueles vivenciados por Victor na selva são agora postos
em sua frente: caderno, tesoura, giz, quadro-negro, leite, pratos, colher. Agora, ele deve
inserir, unir de algum jeito estes àqueles que lhe são familiares: água, lua, sol, chuva,
paisagem. Melhor dizendo, não se trata aqui de união, mas de composição. A união dos
campos de multiplicidades se dá pela preferência lírica de beber água no copo somente em
frente à janela. Ao som de Vivaldi, olhamos o menino olhar: a janela é aqui o lugar de onde
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ele pode ver, ao longe, as árvores que até ontem eram as únicas escadas que ele conhecia. Um
outro tipo de nascimento faz-se na imagem do cinema: um outro corpo, não mais aquele nu,
que anda de quatro, mas aquele que agora, com sapatos, esforça-se para andar ereto. Não
mais os gritos mudos, onde toda a face se move para exprimir aquilo para o qual não tem voz,
mas um grito ainda baixo, que se empenha ao máximo para dizer “leite” (lait). Não mais as
mãos vorazes que levam a comida à boca, mas aquelas que, trêmulas, sentem dificuldade em
pegar uma faca. Nenhuma dessas ações é realizada plenamente: quando volta a andar de
quatro, não é mais nu, mas com as vestimentas que lhe foram dadas; quando toma o prato de
sopa, é a colher que ele agarra faminto (a fome, portanto, é da colher, do manuseio com
aquele objeto meio estranho, meio familiar). É em função do encontro e da composição ou,
melhor dizendo, do choque entre multiplicidades que um campo aberto de possibilidades
ganha existência. Unir, juntar os campos? Rejeitar o anterior e aceitar o novo, de forma
tranqüilizadora para aqueles que assistem? Não, desfilar entre, organizar composições entre
eles: é essa a opção que as crianças cinematográficas nos apresentam.
No caso de O Garoto, a criança oscila entre sua condição de órfã, criança-bilhete (“por
favor, ame e cuide desta criança órfã”, escrevera a mãe no papel depositado ao lado do
menino), e criança responsável. A pequena estatura dificulta o acesso ao fogão para preparar o
café da manhã, mas também facilita quando tem de fugir e esconder-se dos policiais com
Carlitos. As mãos que fazem o almoço são as mesmas que, junto com as orelhas, devem ser
inspecionadas para certificar-se de que estão limpas. A mesma criança que, com as mãos na
cintura, faz Carlitos sair da cama pela manpara tomar café é aquela a quem se obriga a
rezar antes das refeições. Infantilidade genuína composta com uma suposta adultez
margem aqui para a criação de uma criança que não se localiza nem num pólo, nem no outro.
Quase final do filme, o menino adoece e Carlitos vê-se obrigado a providenciar
cuidados dicos. O médico vai até a casa dos dois, examina o John e, ao saber que ele não
era filho de Carlitos, sai furioso do recinto, dizendo que o menino “precisa de cuidados
apropriados”. Na seqüência seguinte, os responsáveis pelo orfanato da cidade m buscar
John, devido à denúncia feita pelo médico. Dramaticamente, eles são separados, mas não sem
resistência. O menino, localizado num canto da casa, assiste à briga corporal entre Carlitos e
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os homens do orfanato, e chega a bater neles com um martelo. Agora com reforços, a tarefa
de retirar o menino da casa torna-se mais fácil, e também mais dolorosa. Vemos o menino em
close, no caminhão do orfanato, chorando e chamando por Carlitos. Carlitos consegue fugir
e, cambaleante pelos tetos das casas, vai ao encontro do caminhão, buscar o menino de volta.
Por meio desta seqüência, vemos que a criança, ela mesma, faz vacilar a posição de anomalia
de Carlitos, até então um homem solitário. Ele abraça John, beija-o e chora. Por um
momento, é o anômalo que precisa fazer aliança com a criança (e não o contrário), para
ampliar os limites de sua própria multiplicidade.
Considerações finais
A partir dos filmes O Menino Selvagem e O Garoto, busquei, nesta seção, analisar os
materiais a partir de conceitos que me auxiliassem a não resumir as crianças à ordem do
mesmo. Ou seja, ao articular multiplicidade, encontro (ou composição) e função anômalo
com as imagens cinematográficas, interessou-me enfatizar os espaços vazios nos quais elas se
moviam para o exercício de criar diferenciadas formas de ser formas jamais reconhecíveis
ou passíveis de serem reunidas com outras, a não ser sob a égide da invenção. Seria possível
até pensar (reunir) as crianças em torno dos conceitos que sustentam a discussão, mas aquilo
que deles deriva dificilmente é agrupável. É disso, portanto, que trata a rejeição à categoria
do mesmo: poderíamos supor um movimento no qual Victor, o menino selvagem, fosse
apenas uma metáfora para aquilo que escola, família, cultura fazem com as crianças: domar,
tratar, normalizar. Ou, ainda, aquilo que a presença de Carlitos faz com John: acolher, dar-
lhe uma família, um lar. Seguramente, estes seriam caminhos legítimos. No entanto, meu
interesse esteve radicado não na descrição de imagens-corpo que, num primeiro momento, se
fizeram massa confusa, para depois tornarem-se reconhecíveis e semelhantes entre si, no
interior de um conjunto maior que responderia pelo nome de “crianças”. Ao pensar as
crianças dos filmes a partir de uma perspectiva do encontro, da composição e como sendo
atravessadas por uma função anômalo, busquei somente efetuar um movimento que passasse
do confirmativo “é assim” para aquele, talvez provocativamente, do “e se fosse assim?”
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(TADEU, 2002, p. 53). E se, para além de domadas, educadas, familiares, as crianças
pudessem ser outra coisa? Tal como as mulheres de Picasso”, ressaltadas por Tomaz Tadeu,
trata-se também aqui de crianças heteróclitas, que suspendem qualquer noção de
reconhecimento ou de totalização e se tornam, portanto, resistentes à identificação. Victor e
o garoto são, eles mesmos, movimentos de dissolução: “a cada olhada, um rosto diferente”
(Ibidem, p. 49).
Assim, podemos concluir que a própria criança que irrompe na tela, nestes filmes
específicos, não é da ordem do exemplo dos conceitos que discuto: ela mesma, em sua
condição de imagem cinematográfica, é o que constitui os conceitos. Os filmes nos servem de
base para algo que, de imediato, é insubordinável à identificação e à apreensão derradeira. O
que importou, portanto, foi transformamos sutilmente a afirmação de que a criança é: aqui
ela simplesmente interessa na medida em que nos mostra como efetivamente ela se torna isso
que é – mesmo que, num piscar de olhos, ela se torne, mais uma vez, uma outra coisa.
91
2.0 A AUTORIA QUE NOS ESCREVE
A idéia de que o conceito de “autoria” no cinema é problemático e complexo não é
nova. Isso se resumidamente porque, no que diz respeito ao cinema, estamos lidando com
conjunto muito extenso de indivíduos envolvidos no processo de produção e distribuição de
um filme: desde roteiristas, produtores, diretores de arte, de fotografia, figurinistas,
cenógrafos, responsáveis pela edição, pela trilha sonora, pela seleção de elenco, os próprios
atores, e mais um sem mero de pessoas. Como bem ressalta Duarte (2002, p. 56), trata-se
de “uma arte profundamente coletiva”.
No entanto, como nos afirma François Jost, justamente o fato de ser uma arte coletiva
exige que se estabeleçam novas bases para a noção de autoria no cinema. Por mais que
venhamos a questionar a forma como o autor chega a esta conclusão para ele, o cinema
funciona contrariamente às artes plásticas, pois nesta última “o artista assina, alguns
séculos, o artefato que produziu” (Idem, 1996, p. 119, trad. minha) Jost destaca um
aspecto relevante para a discussão que proponho: “a presunção de intencionalidade que um
filme provoca poderia ousaria dizer, deve ser ltipla por razões ligadas, ao mesmo
tempo, à sua natureza e às múltiplas vozes que se exprimem por meio dele” (Ibidem, p. 119,
trad. minha, grifos meus).
92
Estamos tratando, portanto, de uma arte na qual organização independente não passa,
senão de quimera, pelo menos de ingenuidade. Penso que no ato mesmo de questionar o
conceito de autoria, ele deve, sem dúvida, sofrer um deslocamento, na medida em que se
trata de uma característica inerente à própria organização do cinema. Daí que, antes de tomar
o próprio conceito de autoria como “essencial” e imutável, devemos tratá-lo, no caso, a partir
desta diferença básica. Quero dizer com isso que o próprio conceito de autoria merece ser
“rachado”, como diria Deleuze.
Desta forma, busco organizar aqui algumas bases sobre as quais poderíamos pensar a
questão da autoria no cinema, para além de uma noção de arte coletiva, mas, igualmente,
aquém daquela que residiria na atividade intencional e soberana de um indivíduo. De início,
situo historicamente a problemática da autoria no campo das discussões cinematográficas. Em
seguida, no cotejo destas com a análise de diferentes obras artísticas (especialmente do campo
das artes plásticas), proponho outras maneiras de pensar tal conceito. Tal movimento é feito a
partir das leituras foucaultianas, mas sobretudo a partir do conceito de criação, como
desenvolvido por George Steiner em sua obra Gramáticas da Criação (2003). Percorro, assim,
caminhos que vão da negação à unidade fixa de autoria à afirmação possível sobre a criação de
vidas pulsantes na materialidade da imagem cinematográfica. Interessa-me pensar a autoria de
certos diretores em relação à imagem da criança no cinema, na condição de personae: não para
apostar na categoria de unidade envolvida, mas para mostrar que eles acabam fazendo
circular outras ordens discursivas em relação à criança.
Concepções históricas sobre a noção de autoria no cinema
Na história do cinema, a noção de autor percorreu as mais variadas teorias ou
concepções estéticas. Obviamente que tal noção conquista seu ápice com a Nouvelle Vague,
justamente por ganhar uma certa sistematicidade nos artigos então publicados, especialmente
nos Cahiers du Cinéma. Para a Nouvelle Vague, e por vias inteiramente diferenciadas, a
responsabilidade do diretor é atribuída historicamente ora a aspectos técnicos (da montagem,
da captação de um “real” por meio da câmera, etc.), ora a aspectos culturais e sociais mais
93
amplos (da industrialização hollywoodiana, da relação com noções ideológicas e de relações
de classe, etc.).
No livro A Técnica do Cinema, publicado pela primeira vez em 1926, o russo Pudovkin
nos diz que “a arte do diretor consiste na faculdade de criar a partir de planos separados pela
montagem, frases’ claras e expressivas”. Nele se concentraria uma espécie de “solução de
problemas” que, por exemplo, se encontram num roteiro, cuja escrita é sempre uma “uma
formulação abstrata” (PUDOVKIN, 2003, p. 72).
Partilhando de idéias semelhantes àquelas formuladas por Einseistein, Kulechov não
reduz a montagem à mera combinação de planos, mas afirma, em 1935, que “artistas com
diferentes visões de mundo percebem a realidade que os cerca diferentemente; eles vêem os
acontecimentos de modo diferente, os discutem de modo diferente, os mostram, os
imaginam e os ligam uns aos outros diferentemente” (Cf. XAVIER, 2005, p. 51). O método
da montagem pelo qual o diretor era então responsável seria a sugestão categórica de sua
intricada relação com a ideologia: “atrás da montagem, sempre uma intenção de classe”
(Ibidem).
A valorização do autor proposta pela Nouvelle Vague – da qual falaremos mais adiante –
encontra ecos no cinema brasileiro, especialmente na época do chamado Cinema Novo, em
que a afirmação do caráter autoral se fazia não tanto pela industrialização e padronização dos
filmes (e sua conseqüente “impessoalidade”), mas em busca de uma afirmação nacional, cujo
apogeu se encontra nos filmes de Glauber Rocha. No contexto brasileiro, não sem pesar, a
revalorização da chanchada acabou caracterizando o “declínio da política autoralembora
não seja possível dizer que o problema tenha se resumido a isso, como ressalta Xavier (2005,
p. 44, grifos meus).
De algum modo, cineastas que se ocuparam em escrever ou teorizar sobre o cinema
impingiram sobre si mesmos essa responsabilidade da qual falo: Tarkovski e o “tempo
esculpido”, para quem a tarefa do cineasta era a de constituir uma imagem específica do
tempo, criando um ritmo que não deveria ser construído via montagem, mas via intervenção
sobre o acontecimento filmado; Bresson e o entendimento de um cineasta-mestre (cinéaste-
maître), cuja virtude maior deveria ser a simplicidade, a capacidade de abertura aos acasos, aos
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imprevistos e às descobertas que se dão no espaço mesmo da filmagem, e cuja invenção maior
seria aquela de reinventar incessantemente aquilo que havia imaginado de antemão; Astruc e a
“câmera-caneta” (câmera-stylo), para quem o diretor seria aquele que permite executar a
direção de um filme na qualidade de organização do real (um procedimento gico,
intelectual e sensível ao mesmo tempo). O empenho do autor na erradicação da “tirania do
visual, da imagem pela imagem, da anedota imediata, do concreto, para tornar-se um meio
de escrita tão doce e sutil como aquele da linguagem escrita” (ASTRUC, 1948, p. 5, trad.
minha); Dziga Vertov (na organização do cine-olho) afirma as determinações do autor no que
concerne à ordem de alternância e à de seqüência do material filmado, ao tempo de projeção
de cada imagem e àquele relativo à visão do espectador. Cine-verdade” proposto por um
diretor, e no qual se concentra a “possibilidade de tornar visível o invisível, de iluminar a
escuridão, de desmascarar o que está mascarado, de transformar o que é encenado em não
encenado, de fazer da mentira a verdade” (VERTOV, 2003, p. 262). Mais do que definir o
que, de fato, se constitui como um universo para cada um destes diretores, minha intenção é
mostrar a predominância da temática do “cinema de autor” como um tema recorrente e não
restrito à chamada “politique des auteurs”, que teve seu auge na França, nas décadas de 50 e 60.
Não obstante, uma parte considerável da bibliográfica cinematográfica destina-se,
ainda hoje, tanto a afirmar o que vem a ser a pedra de toque da concepção de “cinema de
autor”, como, especialmente, a tangenciá-la das mais diversas formas. Entrevistas, críticas,
discussões: um conjunto produtivo de materiais não apenas fortalecem a categoria de autor,
como a sustentam continuamente. Ora, essa categoria da qual falamos não é dada
imediatamente, mas precisa de um conjunto ecoante de ditos que a reiteram o que, como
sabemos, não é válido somente no caso do cinema. Como se, na busca da palavra, do dito do
autor sobre sua obra, pudéssemos encontrar “a unidade do texto que se coloca sob seu nome”
(FOUCAULT, 1989, p. 29, trad. minha). Auscultar o autor, com o objetivo de que, em
relação aos materiais (obras) que produziu, ele “revele, ou que pelo menos traga no seu
íntimo, o sentido escondido que os atravessa, pede-lhe que os articule com a sua vida pessoal
e com as suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer” (Ibidem, p. 30).
Centrado na idéia de uma figura originária, é o diretor-autor quem deve responder sobre a
95
verdade daquilo que produziu: “é o autor que à inquietante linguagem da ficção, as suas
unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real” (FOUCAULT, 1989).
Acrescida a essa coerência que teria lugar na palavra enunciada pelo criador, as
elucubrações sobre as obras cinematográficas e especialmente sobre sua feitura funcionam,
muitas vezes, no espaço do “comentário” ou da “crítica”, num sentido estritamente
foucaultiano (1989, 2000, 2001). O papel exercido por estes textos que se constituem
como um outro campo discursivo instalado no traço deixado pela afirmação do “autor”
pretende dar conta de dizer, finalmente, aquilo que estaria silenciosamente articulado numa
espécie de texto original”. Esse empreendimento se dá dentro de um inescapável paradoxo
que implica, a um tempo, dizer algo novo e repetir o já-dito de um texto fundador e
original. Paradoxo por vezes perverso que, muitas vezes, transforma ou inverte a própria
função a que se propõe, fazendo com que “o novo não [esteja] naquilo que é dito, mas no
acontecimento do seu entorno” (Idem, 1989, p. 28).
Isso mostra o que, por certo, já sabíamos: falar de Bergman, de Hitchcock, de
Eisenstein, de Fellini ou de Tarkovski não é falar de um diretor qualquer: o nome pessoal é
sistematicamente elevado à categoria de “palavra que deve ser recebida de uma certa maneira
e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status”(Idem, 2001, p. 274). Na medida
em que exerce nada menos do que uma função no interior de certos textos (inclusive aqueles
pelos quais ele mesmo é responsável), o autor é o que singulariza um modo específico de ser
do discurso, um certo modo de existência e de continuidade do discurso.
A grande crítica que se deve fazer à categoria de autor, penso, é justamente sobre a
forma como ela permite agrupar um conjunto de dados e, ao mesmo tempo, derivar e falar
sobre outros, repetir o dito. O que Foucault diz em relação à análise literária faz todo
sentido aqui, que no cinema unidades semelhantes são postas em jogo: “não a alma ou a
sensibilidade de uma época, nem os ‘grupos’, as escolas’, as ‘gerações’ ou movimentos’,
nem mesmo a personagem do autor no jogo que ligou sua vida à sua criação” (FOUCAULT,
2000, p. 5).
Se o autor é uma questão de discurso e este, por sua vez, “não passa de um jogo”
(Ibidem), minha proposta agora é que se mude, mesmo que minimamente, as regras desse
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jogo sem, com isso, desconsiderar que o diretor-autor cumpre uma função discursiva e que
ele é, ao mesmo tempo, sujeito de discursos. Ou seja, o autor do qual falo aqui não é a
unidade aglomeradora da imagem da criança. Ao mesmo tempo, sua autoria não pretende
reiterar o já-dito do infantil, mas, antes, “descrever afastamentos e dispersões, em desintegrar
a forma tranqüilizadora do idêntico” (FOUCAULT, 2000, p. 14).
Cinema e autoria: da arte coletiva à criação de personae
O tema da obra como resultado de um processo coletivo não é novo. No que diz
respeito à arte (especialmente nas artes plásticas), seus questionamentos atravessam obras dos
mais diversos momentos históricos: de Michelangelo a Duchamp, de Rubens a Christo
Javatcheff. Creio ser importante, neste momento, revisitar, mesmo que brevemente, os
processos de criação de alguns artistas, no intuito de colocar em suspenso tanto a primazia da
autoria, como sua acepção totalizadora. Retomando a afirmação de François Jost, creio que
mesmo nas artes plásticas é difícil considerarmos a questão da assinatura” como possessão de
um texto ou obra, como elemento definitivo daquilo que é, na verdade, em muitos casos, um
processo concreta e materialmente coletivo.
Nesse sentido, pergunto, por exemplo, quem questionaria a “autoria” de
Michelangelo sobre a Capela Sistina, mesmo sabendo-se que não foi o próprio pintor, ele
mesmo, que pintou o teto por inteiro, senão um séquito de discípulos-pintores? Ou, quem
sabe, poderíamos perguntar ainda quem seria o “autor” dos mais de 60 retratos encomendados a
Ticiano (e, grande parte deles reunidos e expostos em 2006, no Museu de Luxemburgo, na
exposição Le pouvoir en face”). Prática comum também em artistas como Renoir, Van Eyck,
Hans Holbein, Velázquez, Rubens, Frans Hals, Goya, El Greco e tantos outros, os retratos
pintados por Ticiano e solicitados por Charles V, Felipe II da Espanha, Francisco I ou pelo
Papa Paulo III – poderiam reunir o que de mais previsível e imediato poderia haver na
combinação entre “encomenda” e “modelo”. Contudo, mais do que retratos, trata-se de obras
que não se resumem a capturar uma fisionomia e de fixá-la na imagem de um indivíduo, mas
falam, antes, de um estatuto social: “liberado de uma retórica maneirista, o pintor se engaja
97
num impressionismo mágico de contornos fluidos; a cor se dissolve na luz e matéria se
decompõe”; com isso, mais do que a simples representação, “seus retratos formalizam e
perenizam o lugar ocupado pelo modelo na sociedade” (LE POUVOIR, 2006, s/p).
No caso de Rubens, sabe-se que as telas que lhe eram encomendadas sofriam uma
longa discussão entre o artista e o freguês. “Só após a aprovação é que Rubens continuava seu
trabalho, desenhando a lápis aspectos detalhados das figuras do quadro. A seus discípulos,
cabia o encargo de transpô-la para a tela que receberia a obra definitiva, e de colori-las”
(CARTA e MARGULIES, 1984, p. 4). Assim, Rubens executava a arte final”, “dando ao
quadro o último retoque” (Ibidem).
Ainda assim, poderíamos perguntar quem é o autor da Monalisa tal como recriada por
Duchamp, acrescida somente de um irônico bigode? O ready made caracteristicamente
duchampiano rompe com perspectivas tradicionais, ao favorecer uma criação estética baseada
na apropriação daquilo que existe (do mais simples objeto industrializado, ao mais
inesperado urinol ou a roda de bicicleta que gira sobre uma cadeira) e na elevação desta à
categoria de obra de arte. “Quando Duchamp comprou um funil usado para engarrafar cidra
da Normandia em 1913 e o assinou, o que fez foi subverter de uma vez toda a definição
ocidental da arte como criação original e campo autoria” (STEINER, 2003, p. 347).
Na esteira de uma nova estética proposta pela
arte contemporânea e da inevitável dispersão da
questão do autor por ela sugerida –, poderíamos citar,
por exemplo, os processos criativos de Vik Muniz e de
Christo Javatcheff
19
. O primeiro, à la Magritte, que
desenha um gigantesco e efêmero cachimbo na praia, ou
que torna “real” a nuvem mais estereotipada, contornada
por limites óbvios e vazia em seu interior, na medida em
que intrigantemente suspensa nos céus de Manhattan. O
segundo, cuja marca são as intervenções de grande porte
19
Agradeço a meu amigo Celso Vitelli, artista plástico, pelas importantes discussões sobre autoria e obra de
arte e pelas imagens cedidas.
98
em ambientes naturais, embrulha”, literalmente, o corredor de árvores símbolo da Avenue
Champs Elysées, ou dispõe bandeiras ondulantes (“The Gate”) de tecido, compostas como 7.600
portas, cada qual medindo cinco metros de
altura, espaçadas de quatro metros em
quatro metros, ao longo de 37 quilômetros
no interior do Central Park. Quem é o
autor dessas obras? Vik Muniz ou o piloto
que não somente tornou possível a
efetivação da obra, como delineou, ele
mesmo, os limites da nuvem? Christo ou o
conjunto de auxiliares (centenas deles) que
estacaram as bandeiras cor de açafrão em Nova York ou que “empacotaram” as árvores, em
Paris?
Acrescentam-se a isso exemplos da sica trazidos por Steiner (2003), ou seja, das
partituras que jamais imaginaríamos terem sido compostas “em conjunto”: “obras como
Réquiem de Mozart, a Turandot de Puccini, o Doktor Faust de Busoni, a Lulu de Berg ou a
Décima Sinfonia de Mahler, que foram concluídas por estudantes ou admiradores” (STEINER,
2003, p. 232).
Sendo assim, o que é efetivamente a autoria? Mais do que isso, o que torna possível o
nosso não questionamento acerca da autoria (individual) de obras como as que citei acima,
mas, em contrapartida, a nossa afirmação mais contundente acerca da impossibilidade de
colocá-la nos mesmos termos quando se trata de cinema? Por que elas não poderiam ser
consideradas coletivas tanto quanto o cinema? Penso, então, que mais do que responder a
essas questões de forma a categorizar a noção de autoria, possamos neste momento deslocar o
conceito para outros caminhos: não o da possessão de um texto, como nos sugere Foucault,
mas, antes, o da afirmação de uma relatividade inerente ao objeto com o qual lidamos.
Mais do reforçar a literalidade concreta da obra em conjunto ou da negação de que
tais obras sejam deste ou daquele pintor, músico, escritor, creio que o que importa é
entender que “mesmo o mais original’ dos artistas, no sentido mais rigoroso da nossa de
99
‘originalidade’, é polifônico (STEINER, 2003, p. 99, grifos meus). Ao descrever variados
exemplos, reafirmo a assertiva de que o próprio conceito de autoria não é fixo, e, mais do
que isso, “toda a atribuição definitiva a respeito do domínio do criado ou do inventado
pode ser intuitiva e provisória” (Ibidem, p. 137). No caso específico do cinema, o que
entendemos por autor, portanto, não pode ser baseado na idéia de um indivíduo que seria em
si mesmo o efetivador solitário de uma obra (qualquer que seja ela). Autor, assim entendido,
não seria aquele que sozinho assinou uma obra, sem contar com outros ecos de seu tempo,
mas aquele que, pelos mais variados e intricados entrecruzamentos (incluindo os da
coletividade), cria vidas pulsantes.
Mas como definir, então, o que é criação dentro dessas discussões? Em Gramáticas da
Criação, George Steiner percorre discussões históricas, mitológicas, estéticas, entre outras,
que diferenciam (ou aproximam) as noções de invenção e de criação. A definição de ambas as
acepções, a rigor, não nos é dada ao longo da discussão. Ao contrário, ele nos leva a caminhos
por vezes tortuosos, que vão da literatura à matemática, do hip hop à religião. Caminhos que,
ao que tudo indica, aproximam, em muito, os dois conceitos: “há impurezas da invenção em
atos de criação, assim como pode haver vestígios ou prenúncios de uma criatividade autêntica
na prática da invenção” (STEINER, 2003, p. 137), mas também os diferenciam em alguma
medida.
Steiner nos apresenta alguns elementos que, sutilmente, poderiam nos indicar
algumas diferenças entre esses conceitos. O que me interessa aqui não é a diferenciação em si,
mas os elementos envolvidos em uma e em outra acepção o que me faria crer que, ao
tratarmos de criança e cinema, estaríamos lidando, simultaneamente, com processos de
invenção e de criação. Contudo, a idéia de autoria que discuto neste trabalho permite com
que pensemos o cinema (e mais diretamente o diretor) como responsável por processos de
criação, sem com isso afirmar que estejamos lidando com unidades suspensas
discursivamente.
Dizer que a ciência ou o cientista inventa algo (de um objeto técnico a uma teoria, de
uma fórmula a uma regra matemática) parece soar mais razoável a nossos ouvidos. Isso
pressupõe dizer que a esfera da invenção, no campo das ciências, vem sendo tomada por essas
100
acepções de “descoberta”, de algo que até então, de fato, não existia, mas que, em dado
momento, passou a ser fundamental para o domínio e desenvolvimento de uma série de
outros movimentos no âmbito das ciências exatas em geral: “do concreto reforçado para a
metrópole moderna ou o titânio para o museu de Bilbao” (STEINER, 2003, p. 197). Como
num efeito de dominó, a genética encontrou novas formas de se desenvolver a partir da
descoberta de Mendel, em relação à lei de pureza dos gametas entre os anos 30 e 40. A
invenção tem a ver aqui com uma centelha que desencadeia e ramifica-se quando uma dada
elaboração técnica é formulada.
Nessa perspectiva, poderíamos dizer, assim, que o cinema foi e continua sendo uma
invenção. Primeiro, na época de seu surgimento, como técnica, como possibilidade inédita de
projeção de imagens em movimento. Ampliando as potencialidades da lanterna mágica, o
cinema é, ele mesmo, a própria invenção de uma nova linguagem que coloca em jogo,
concomitantemente, quatro componentes até então jamais combinados: o movimento
contínuo, a projeção, a narração e a montagem (DUBOIS, 2006).
No que diz respeito a isso, ainda assim o cinema não cansa de se re-inventar talvez
até por se tratar de uma arte relativamente nova. Desde as concepções de montagem
propostas por Vertov ou por Eiseisntein, ao domínio do close em Griffith, passando pelos
investimentos nos planos-seqüência, em que os movimentos de câmera dão conta da
exploração de um mesmo espaço, e as relações nele estabelecidas se fazem em uma e
imagem (entre tantas e tantas outras), o cinema (se) experimenta e, ao fazer isso, inventa e
cria novas “matérias-primas” para outros processos de execução cinematográfica.
O cinema constitui-se como invenção justamente por se retroalimentar
constantemente de outras e novas “tecnologias da sensibilidade” (STEINER, 2003, p. 197).
Ou seja, tecnologias que, no caso da arte, podem ser entendidas como “invenções que
oferecem matéria bruta e formas significativas para a consciência ao mesmo tempo em que
buscam serem reconhecidas e reconhecer-se” (Ibidem).
No entanto, diferenças cruciais entre a invenção num contexto e no outro. A
invenção no domínio das ciências exatas é marcada por questões concretas de
desenvolvimento e necessidade. um desenvolvimento da ciência, nos modos de fazê-la e
101
concebê-la bastante visíveis quando Einstein desloca a perspectiva absolutista do espectador
com a teoria da relatividade, ou quando Newton formula as leis da gravidade. Agora, como
sugerir desenvolvimento linear entre Dom Casmurro e Grande Sertão: Veredas, O Tempo e o Vento e
A Ferro e Fogo?
Isso quer dizer que, no domínio da ciência, por mais grandiosa que possa ser a
invenção, ela provavelmente seria dada por outro cientista. “Se Copérnico ou Galileu
tivessem sido eliminados antes que suas descobertas fossem conhecidas, seguramente cada
uma de suas descobertas acabaria sendo feita por outros cientistas” (STEINER, 2003, p. 245).
Na arte, de modo contrário, Madame Bovary, A Flauta Mágica e Guernica jamais teriam vindo ao
mundo senão pelas mãos de Flaubert, Mozart e Picasso.
Talvez a diferença radical entre a impossibilidade de substituição imposta pela arte
seja expressa em Fahrenheit 451, de Truffaut: o filme mostra o exercício de um estado
autoritário, no qual os livros são totalmente proibidos. Para garantir a ordem imposta,
bombeiros aqui não apagam fogo, mas queimam qualquer vestígio de palavra escrita que possa
ser encontrado. Na eminência de que a literatura possa ser perdida, vemos se constituir, do
outro lado da cidade, uma sociedade organizada por homens-livro”. Cada um dos moradores
daquela pequena comunidade é responsável por um livro; responsável não pela sua
conservação material, mas por uma conservação que se faz memória: eles simplesmente
decoram obras inteiras. Liberados do papel, esses homens-livro têm como função guardar
aquilo que de outra forma seria impossível fazer-se novamente e, além disso, transmitir a
herdeiros mais novos o conteúdo daquilo que, se esquecido, seria perdido para sempre.
Liberados também de seus próprios nomes, acabam se apresentando como As Crônicas
Marcianas, de Ray Bradbury”, “Ilíada, de Homero”; ou Os Miseráveis, de Victor Hugo”.
Talvez seja nessa diferença que a invenção no campo do cinema (assim como em
outras artes) venha a deslocar-se para o âmbito da criação. Mais do que obras, quadros, filmes
ou peças musicais, a singularidade materializada tem suas bases, pelo menos, em um
elemento básico: “o conceito de ‘criação’ liga-se diretamente ao de personagem ou persona
(STEINER, 2003, p. 173).
102
Falamos, mais especificamente, de vidas que adquirem existência somente porque
atadas e tecidas pelos fios de uma “tecnologia da sensibilidade” que lhe é inerente. Mais do
que o relato de um caso verídico, mais do que a descrição detalhada de um assassinato brutal,
o jornalismo literário proposto por Truman Capote na obra A Sangue Frio erigem
personagens: Perry e Dick não são somente os assassinos “reais” da família Clutter, mas,
tecidos numa composição que vai da descrição-reconstrução literária de fatos (tornada
possível a partir de uma vasta pesquisa e entrevistas feitas com a comunidade da isolada cidade
de Holcomb, no Kansas) ao estilo irônico e apurado do autor, eles se fazem carne e osso para
o leitor.
No cinema, as personagens não são mais (ou não são apenas) imagens numa tela, seus
movimentos não são mais (ou não são apenas) aqueles caracterizados pela montagem, sua dor
deixa de nos comover somente pela (e com a) música que acompanha a lágrima escorrida: o
olhar da persona deixa rastros na nossa memória, mesmo depois que o close se desfez. É disso,
pois, que trata a criação de um diretor: de uma vida engendrada que supera, que excede seja
o momento da criação, seja o filme que a projetou. Uma vida, portanto, sobrevivente e
pulsante, que atravessa os limites da imagem para fazer-se real.
Por mais que tenha se passado mais de 40 anos, a cena do suicido de Edmund, em
Alemanha, Ano Zero, continua a nos chocar, mesmo quando a vemos duas, três ou dez vezes; a
fuga para a beira do mar de Antoine Doinel insiste na imagem permanentemente como
expressão de uma fuga para além daquela do reformatório em que estava internado; nenhum
espaço de tempo será capaz de apagar ou mesmo diminuir a busca fremente de Ahmad para
encontrar a casa do colega que esqueceu o caderno na escola; nenhum evento será capaz de
apagar a imagem viva da mãe morta de Ana, em Cría Cuervos; décadas se passarão e a crença de
que Jesus está vivo na cruz e no sótão do mosteiro será sempre a mesma para Marcelino.
As personae colocadas na tela encontram-se no limite entre o real e o ficcional, mas
não são nem totalmente um, nem totalmente outro. Trata-se de um limite “que não se
encontra jamais nas coisas nem nos homens, mas na impossível verossimilhança daquilo que
está entre ambos: encontros, proximidade do mais distante, ocultação absoluta do lugar onde
os encontramos” (FOUCAULT, 1990, p. 30). Mesmo que pertencente a um universo limite,
103
os efeitos produzidos em nós por essas vidas são, por vezes, tão ou mais contundentes do que
qualquer experiência “vivida”. Cada persona urdida por certos diretores, na qualidade de gesto
criador, “não precisa de mais de um instante para fazer-se inesquecível (STEINER, 2003, p.
178). Mesmo tratando-se de vidas fragmentadas, a vitalidade de conjunto expressa por essas
personae exerce sobre nós um certo domínio, uma relação que não se dá somente no momento
imediato da sala de cinema ou do sofá da sala, mas igualmente quando Pixote, Josué ou
Pascale reconquistam sua vida, como num clarão, dias, semanas ou mesmo anos depois,
inesperadamente, seja em nossas atividades cotidianas mais prosaicas, seja na discussão mais
apurada com colegas ou amigos.
um pouco de Pixote que pulsa em cada menino de rua ou nas cenas de um filme
como Ônibus 174; um pouco de Dadinho que ultrapassa Cidade de Deus e vai para as telas de
televisão; um pouco da graça de Jackie Coogan (de O Garoto) que alimenta não Carlitos,
mas toda a memória em torno do diretor; uma graciosidade, mesmo que por vezes forçada e
infantilizadora de Shirley Temple, que permanece murmurante em s na mais comovente
propaganda publicitária; um pouco da dor da guerra que se faz vestígio aos nossos olhos por
meio dos olhos de Sebatian (Esperança e Glória). Enfim, falamos aqui de “vidas dotadas de uma
presença penetrante, que não podemos explicar nem justificar por meio de qualquer
divagação causal” (STEINER, 2003, p. 178). Vidas que não deixam de ser reais, por mais que
circunscritas à materialidade da imagem cinematográfica.
De forma axiomática e visceral, é bem possível que sintamos e
compartilhemos com outras sensibilidades ‘normais’ a reveladora
convicção do senso comum de que as personae criadas pela literatura e pela
arte pertencem a uma ordem de realidade diversa da realidade das pessoas,
por exemplo, que encontramos no metrô. Isso não alterna em nada o fato
de que a realidade alternativa da arte possa exercer sobre nossas
consciências e nossas vidas cotidianas uma pressão que supera
prodigamente aquilo que definimos como ‘real’ tanto em relação à sua
presença tangível, ao seu impacto invasivo e à sua capacidade de imprimir-
se como memória (STEINER, 2003, p. 177).
As personae criadas por alguns cineastas vibram em nós, individualmente, mas também
num tempo. Ultrapassam a língua e a geografia nas quais estão inscritas. Elas excedem a nossa
existência, a do momento histórico em que tiveram visibilidade e, a um só tempo, aquele que
104
a criou e o ator que a interpretou. Passadas muitas décadas, Edmund, de Alemanha, Ano Zero
(1947) continua com seus 12 anos; Antoine Doinel, de Os Incompreendidos, com 11; Jackie
Coogan, de O Garoto, ainda tem 4 anos. Não é o ator que tem essa idade, assim como não é o
caso de saber se hoje ele está morto ou vivo, porque daqui a cem anos Edmund continuará
tendo 12. O que quero dizer é que, por serem mais do que atores interpretando papéis, trata-
se da criação de personagens perenes, sujeitos a perdurarem por muitos e muitos anos.
Não seria de duas vidas praticamente autônomas a que Truffaut se refere ao afirmar
que “Jean-Pierre Léaud, que tinha quatorze anos naquele momento, era menos soturno que
Antoine Doinel, que fazia tudo às ocultas, que finge sempre submissão para no final agir sobre
sua própria veneta(TRUFFAUT, 2006, p. 4, grifos meus)? Onde estava Antoine Doinel no
seguinte período descrito por Truffaut: “Em Beijos Proibidos, que realizei em 1968, voltamos a
encontrar Antoine Doinel cinco anos mais tarde, saindo do serviço militar e tentando se
readaptar à vida civil. Pedi que meus amigos Claude de Givray e Bernard Revon imaginassem
e escrevessem comigo essas novas aventuras de Antoine” (Ibidem, p. 27)? Ou, quem sabe, o
que seria senão uma vida pulsante para que Truffaut venha a dizer: Em Domicílio Conjugal,
tenho a impressão de ter sido severo com Antoine Doinel e ter lançado sobre ele um olhar
crítico” (Ibidem, p. 29)?
20
Cabe lembrar, ainda, que estas personagens das quais falo são também o resultado de
um conjunto de imprevisíveis que se dão no espaço de um set de filmagem ou de uma tomada
externa. Elementos como a interpretação dos atores ou a variação da luz entram em jogo para
exceder qualquer intencionalidade do dito “autor”. Ao falar da experiência de dirigir a
criança, Bergman ilustra de modo primoroso, especificamente em relação a seu filme Fanny e
Alexander, o que se passa entre câmera, criança e diretor, e os momentos singulares que eles
estabelecem entre si: “quando uma expressão que jamais se repetiu anteriormente nasce, num
momento preciso, e que a câmera o registra. É precisamente isso que acontece (...)”
(BERGMAN apud VALLET, 1991, p. 106, trad. minha). Voltamos a uma situação
semelhante à vida de certa forma autônoma da persona e de reações, das quais nem seu criador
pode, por vezes, dar conta: “Sem ter sido preparado e sem ter ensaiado, Alexander fica
20
Apenas para lembrar: Antoine Doinel é o nome da personagem principal de filmes como Os Incompreendidos e
tido como alter ego de Truffaut; enquanto que Jean-Pierre Léaud é o autor que o interpretou.
105
subitamente pálido, uma dor pura se desenha em seu rosto. A câmera registra. Há alguns
instantes, a dor inacessível esteve lá, mas a película registrou justamente essa passagem”
(BERGMAN apud VALLET, 1991, p. 107, grifos meus, trad. minha). Quem fica pálido?
Alexander (o personagem) ou Bertil Guve (o menino-ator)? Trata-se, portanto, de uma
mistura, mélange entre câmera (de modo mais amplo, poderíamos dizer, técnica), diretor,
ator e personagem; uma composição, na qual a emoção do momento, muitas vezes, não pode
ser prevista ou assegurada (que dirá intencionada), mas que está lá, viva e eternizada na
persona de Alexander.
Considerações finais
É importante sublinhar que o processo de criação, tal como vem sendo debatido neste
trabalho, não está radicado no gesto fundador, nem mesmo na possibilidade de se criar um
evento inaugural, que “o conceito de originalidade em sua essência, de originação de novo,
seria pouco mais que um devaneio, uma ilusão lisonjeira do sujeito” (STEINER, 2003, p.
180). No entendimento mais direto dessa prerrogativa, podemos dizer que, no cinema, é
comum um filme remeter-se, mesmo que sutilmente, a outro. A famosa cena de Zero de
Conduta na qual Jean Vigo usa um professor com pretensão de Carlitos para guiar os alunos
nas ruas de Paris na aula de Educação Física. Atrás dele, os alunos vão se dispersando (e
voltam à fila quase à porta do colégio); a mesma cena que, por sua vez, é retomada
propositadamente por Truffaut, em Os Incompreendidos. Mais uma vez: onde está a autoria?
Onde começam e onde terminam os limites de uma obra e outra?
O interesse não é, portanto, tirar esses autores do contexto geral da produção e
circulação de discursos até mesmo porque isso, numa vertente foucaultiana, seria
impossível. Ao contrário, o esforço é o de deslocar a função-autor que esses diretores
exercem em relação a seus filmes: de um nível de unidade e concentração do discurso,
mostro de que forma os filmes de certos diretores organizam novas formulações sobre a
criança (a partir de enunciados, por certo, já existentes). Mudo, portanto, o foco: ao invés de
investir na reunião dos ditos, invisto numa (nova) economia discursiva em relação à criança.
106
Assim, as personae não reativam nem repetem enunciações acerca de uma criança prevista e
previsível, mas tensionam enunciados de um campo discursivo, organizado em torno de uma
vontade de verdade. As personae, na qualidade de materialidade enunciativa da imagem
cinematográfica, engendram formas de ser e viver a criança, plenas de novidade formas
nem por isso menos murmurantes em outros materiais que os precedem, que lhes são
contemporâneos e que os seguirão. Portanto, a criação da qual falo não é resultado de um ato
inaugural ou originário, muito menos se desfaz ao final do filme: ela não inventa a criança
como acontecimento, mas lhe dá novos contornos ao fazer variar as formas de enunciá-la.
Assim, nesta tese, o que fiz até agora – e o que continuarei fazendo nas seções
posteriores é nada menos do que revisitar um conjunto de personae criadas por certos
diretores. É sobre a crença de que é que reside o processo de criação (considerando todas
as discussões aqui feitas, que relativizam o conceito e o colocam sobre outras bases) que a
questão da autoria fez-se pertinente neste trabalho justamente porque a partir dela pude
compreender melhor os caminhos pelos quais a criança transforma-se em arte no cinema.
Mesmo que, por vezes, as análises feitas se situem no limite tênue entre a afirmação e a
negação da autoria, o movimento de articular a discussão em torno dessas vidas e não nas
semelhanças e diferenças possíveis entre a criança de um (mesmo) diretor – serviu aqui como
estratégia para tangenciar uma certa tentação em constituir unidades. Rejeitar esse
movimento implicou, a um só tempo, renunciar à caracterização de um conjunto de crianças,
mas, igualmente, sua conseqüência direta: renunciar à caracterização de um diretor
(especialmente no que diz respeito à imagem da criança por ele proposta, mesmo que com
variações). Tratou-se, portanto, do movimento de aceitar o convite de Foucault, qual seja, o
de “inverter o jogo da positividade da função-autor”, ao fazer da análise um jogo negativo de
um recorte e de uma rarefação do discurso (FOUCAULT, 1989, p. 54, trad. minha).
107
2.1 Criança e autoria no cinema: notas sobre o processo criador
Nesta seção, apresento algumas discussões acerca do conceito ambíguo de politique des
auteurs, desenvolvido na França especialmente nos anos 50 e 60, e que tinha como objetivo o
fortalecimento da categoria diretor-autor. No entanto, ao invés de tomar o conceito
originalmente proposto pelo conjunto de críticos do célebre Cahiers du Cinéma (muitos deles
diretores na Nouvelle Vague), interessa-me problematizá-lo a partir das importantes
contribuições de Michel Foucault sobre as categorias de “obra” e de “autoria” – especialmente
aquelas desenvolvidas no célebre texto “O que é um autor?” (2001). Faço esse exercício na
medida em que pretendo analisar de que maneira certos diretores de cinema constituem, em
suas imagens, novos elementos para pensar a criança.
Assim, primeiramente, situo o conceito de politique des auteurs, mostrando alguns
aspectos do surgimento dessa política e de seus desdobramentos tanto para as teorias do
cinema, como para o próprio conceito de cinema (e análise fílmica), de maneira mais ampla.
Faço esta articulação não no sentido de adotar a vertente da politique, mas suspendendo e
revendo algumas de suas discussões, a partir de conceitos propostos por Michel Foucault.
Em seguida, discuto os filmes Vítimas da Tomenta (1946), de Vittoria de Sica, Pixote
(1981), de Hector Babenco, a fim de apresentar alguns elementos de análise de imagens que
nos permitem pensar acerca do processo de criação ou, no caso, de assinatura que certos
diretores empreendem ao tratar da imagem da criança no cinema. Busco descrever as bases
sobre quais, tendo como tema a criança enclausurada, a criança delinqüente, Babenco e De
Sica sustentam a imagem para além da mera denúncia ou da redução domesticada de conflitos
sociais e históricos.
108
A politique des auteurs e a problemática dos conceitos de autoria e de obra no
cinema
Palavra de ordem. Prática de afirmação. Método de análise. Promoção teórica e
militante da categoria de diretor-autor. “Uma certa tendência do cinema francês”, como
sugere o título de um artigo de François Truffaut. A expressão politique des auteurs,
desenvolvida especialmente pelos críticos e jovens cineastas franceses pouco antes (e mesmo
paralelamente) do (ao) boom da Nouvelle Vague (décadas de 50 e 60), teve suas linhas traçadas
inicialmente por Truffaut, a partir de um texto publicado em 1954, no famoso periódico
Cahiers du Cinéma e intitulado Aimer Friz Lang”. De forma ainda embrionária, lançava-se ali
uma parte das idéias da politique, posteriormente concretizada e “batizada” no artigo escrito
pouco mais de meio ano depois, e pelo mesmo autor, com o título “Sir Abel Gance” (1954),
na revista Arts.
Em relação às motivações históricas para o surgimento desta política, interessa
assinalar dois pontos essenciais: primeiro, que ela significava um movimento contra um
período de estagnação da cinematografia francesa, o que dificultava a visibilidade e mesmo o
surgimento de novos diretores e, segundo, que ela serviu de mote, de uma espécie de ante-
sala para ações efetivamente criativas no âmbito desta arte, naquele País. No entanto, é
inegável que suas diretrizes e discussões trouxeram, com isso, conseqüências que até hoje
persistem em relação às categorias de diretor e de obra (conjunto de filmes).
Inicialmente, vale destacar que a política dos autoresé definida por seus próprios
organizadores como “perigosa”, justamente porque “seus critérios são difíceis de formular”
(BAZIN, 2001, p. 114). É sabido que tanto a afirmação da categoria de autor promovida pela
politique, como a categoria de obra, não era feita sem questionamentos. Tratava-se, de fato, de
duas discussões inseparáveis. O rechaço à idéia de “desenvolvimento”, de “progresso” ou
mesmo de “retrocesso”, pelo qual supostamente um diretor passaria ao longo de seus filmes,
não estava separado, paradoxalmente, de sua exaltação. Truffaut afirmava, categoricamente:
“recuso-me a fazer minhas as teorias tão empregadas pela crítica cinematográfica do
‘envelhecimento’ de grandes cineastas, e mesmo de sua ‘senilidade’” (TRUFFAUT, 2001, p.
109
196, trad. minha). Assim, tomando a obra como um todo, a tendência era definir erros e
acertos de um diretor como momentos inseparáveis de um (mesmo) processo embora seja
importante sublinhar que “erros” e “acertos” eram geralmente aqueles apontados por este ou
aquele crítico, especialmente do próprio Cahiers.
Importava, politicamente, desconstruir as bases que fortaleciam a crítica de filmes
“maiores” ou “menores” ou, talvez mais importante, tratava-se de combater julgamentos e
valorações quanto ao “conteúdo” de um filme e, com isso, a hierarquização entre “bons” e
“maus” temas (BAECQUE, 2001). Não mais uma “desculpa” em relação às condições
econômicas, políticas, técnicas e histórias na realização de um filme, mas a crença em uma
assertiva primeira: a de que um filme “se parece sempre com aquele que assina sua direção
ou, no pior dos casos, (...) estaríamos diante de um cavalheiro que dirigiu os atores, não
colaborou com o roteiro e não decidiu quanto às tomadas” (TRUFFAUT, 2005, p. 13). O
diretor é, portanto, aquele que escolhe e que, exatamente por isso, “não tem o direito de se
queixar” (Ibidem).
Como se pode perceber, introduz-se um movimento que envolve “uma
proximidade, uma intimidade com o autor escolhido, em relação ao qual devemos defender
todos os filmes, mesmo aqueles desprezados pelo seu nero ou pelos seus defeitos”
(BAECQUE e TOUBIANA, 2001, p. 195, grifos do original, trad. minha). A “política dos
autores” traz, assim, a radicalização da idéia de que devemos amar todos e quaisquer filmes de
Renoir, todos e quaisquer filmes de Fritz Lang, todos e quaisquer filmes de Hitchcock, todos e
quaisquer filmes de Rossellini. Mas jamais todos e quaisquer diretores, e sim um grupo
circunscrito, geralmente, no contexto europeu, por Carl T. Dreyer, Robert Bresson, Fritz
Lang, Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini, Max Ophüls, e, no contexto americano,
Howard Hawks, Minnelli, Orson Welles, e, ainda, Luis Bruñel, além daqueles que foram
aqui citados. Inaugura-se (ou retoma-se), no cinema, o argumento em favor do autor e da
“obra”, já tão polêmico em outros campos da arte (literatura, artes plásticas, etc.).
Ao promover este deslocamento e tentar desmistificar certas dualidades (bom e mau
filme deste ou daquele diretor), a politique acaba criando outra: a diferenciação (e
conseqüente hierarquização) entre o auteur e o meteur en scène. Dualidade especialmente
110
desenvolvida por André Bazin, crítico tutelar do Cahiers du Cinéma e de seus jovens redatores,
quando afirma, em 1951, que Hitchcock seria um auteur e Huston um metteur en scène
(BAZIN, 1953). O que se faz, portanto, é a distinção entre duas práticas, entre cineasta e
confectionneur; distinção cuja característica principal está radicada na “diferença entre a
capacidade do autor para fazer um filme verdadeiramente próprio, ou seja, uma espécie de
original” e, por outro lado, “na incapacidade do metteur en scène para ocultar que a origem de
seu filme está em outra parte” (BUSCOMBE, 2005, p. 284). Isso indica uma disposição a
elevar a categoria de autor não só por suas habilidades, mas pela capacidade de transformá-las,
efetivamente, em marca, em pessoalidade. Mais do que isso, “um filme identifica-se com seu
autor, e compreende-se que o sucesso não é a soma de elementos diversos (...), mas liga-se
exclusivamente à personalidade de seu condutor” (Ibidem). Ao fazer isso, reconhecia-se e
afirmava-se aquilo a que chamamos de talento com todos os problemas que um conceito
como este carrega.
Rapidamente, a idéia é assumida das formas mais diversas. Produtores, mecenas e
responsáveis pela distribuição dos filmes assumem a politique, entendo-a como uma verdade
única e potencialmente (e também economicamente) bastante útil: “um filme vale o que vale
quem o faz” (TRUFFAUT, 2005, p. 17). Ou, ainda, que “somente o conjunto de seus filmes,
retraçando um trajeto pessoal, único, permite compreender um autor” (BAECQUE e
TOUBIANA, 2001, p. 197, trad. minha). Ora, isso envolve assumir uma das tantas
interpretações possíveis quanto à idéia defendida, especialmente por Truffaut e relatada
acima: a de que o diretor-autor vale pelo conjunto de sua obra e que esse conjunto (e
somente ele, com seus desvios e retomadas) permite compreender cada uma das obras, na
qualidade de unidades relativas e relativizadas no interior de um todo totalizador.
No caso deste trabalho, interessa-me discutir o conceito de autoria, tendo como mote
a “política dos autores”, pois ela foi um marco na história do cinema. Contudo, menos do que
simplesmente adotá-la, pretendo proceder em direção à sua problematização, mais
especificamente, em torno da problematização dos conceitos de autor e de obra. Faço este
exercício baseada, sobretudo, na leitura de Foucault. Apesar disso, uma questão que me
parece essencial: não estarei aqui tratando de “obras”. Não é meu objetivo analisar ou mesmo
111
revisitar o conjunto de filmes de certos diretores. Da mesma forma, não é meu objetivo nem
mesmo analisar um exemplar dito “primordial”, “emblemático” deste conceito “problemático”
– como nos ensina Foucault – de “obra”. O que, de fato, não torna a questão menos
complexa. Se insisto sobre essa questão, sobre a idéia de trazê-la aqui para a discussão, é
porque penso que não teríamos com negá-la. Ao contrário, pretendo trazer certos diretores-
autores e filmes para a discussão, situando-os no limite histórico e circunstancial das noções
de autor e obra.
Quanto a isso, Foucault é bastante claro: “a noção de autor constitui o momento forte
da individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da
filosofia também, e na das ciências” (FOUCAULT, 2001, p. 267). O que intriga Foucault e o
que o faz debruçar-se sobre essas noções é a relação do autor com a obra ou “a maneira com
que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente”
(Ibidem).
Como se pode observar, a grande crítica foucaultiana dirige-se para a noção de
unidade, seja ela autor, obra, autoria, e mesmo livro (e, por que não dizer aqui?, filme). Ao
sistematizar a discussão, sobretudo, no texto “O que é um autor?” resultado da palestra
proferida na Sociedade Francesa de Filosofia, em 1969 –, o filósofo retoma o trabalho
iniciado em As Palavras e as Coisas e mesmo em A Arqueologia do Saber, este último lançado
meses depois de sua conferência. Autor, obra, livro: unidades sempre variáveis e relativas,
jamais imediatas, certas ou homogêneas (FOUCAULT, 2000). Ao fazer isso, Foucault nos
convida, a um tempo, a suspendê-las e a sacudir a quietude com a qual as aceitamos”
(Ibidem, p. 29).
Ora, a crítica que Foucault faz à categoria de obra é “como definir uma obra entre os
milhões de vestígios deixados por alguém?”. Ainda assim, penso que a questão da definição de
obra, no caso do cinema, pode nos levar a um outro problema, que é de ligá-lo a um dito
“fato histórico” ou “período” (noção igualmente questionável, embora quase sempre presente
no campo de uma arte): o neorealismo, o Cinema Novo, o expressionismo, ou, ainda, “o”
cinema russo, “o” cinema italiano, e tantos outros. Tais divisores suscitarão, por certo,
dificuldades de apreensão do mesmo modo que a de “obra” e de “autor”.
112
Assim, a proposta que faço é a de descrever elementos da imagem e da relação com a
criança que ela torna visível, porém “não em referência à interioridade de um pensamento ou
de um sujeito”, mas de acordo com a dissolução de uma “exterioridade” (FOUCAULT, 2000,
p. 144). O nome próprio (e, da mesma forma, o nome do autor) tem outras funções além das
indicativas: ele é mais do que uma indicação, um gesto, um dedo apontado o alguém: em
uma certa medida, é o equivalente a uma descrição” (Idem, 2001, p. 272). Portanto, ao
designar uma intencionalidade, a afirmação do nome próprio propõe, igualmente, uma
positividade. Ao supor uma anterioridade, nele incide uma produtividade.
“Autor” como noção que não é soberana, mas que exerce, em determinados campos
discursivos, uma função, função-autor. Ou seja, o que Foucault contesta e mesmo rejeita é
justamente aquilo que a politique afirma: a possibilidade de tomar esta função como espaço
preenchido e não como variável, contigente e, acima de tudo, vazio. Ao reunir essas questões
entre os filmes não me interessa estabelecer um “isomorfismo entre nome de autor e nome
próprio” (MIRANDA e CASCAIS, 1992, p. 21). Ao selecionar os filmes de um diretor-autor,
e conjugá-los com outros, de outros diretores (também autores), afasto-me da pretensão de
estabelecer um instrumento de classificação de textos [ou de filmes] e um protocolo de
relação entre eles (Ibidem). Faço-o pois não pretendo tomar o conjunto da obra, por
exemplo, de Truffaut e compará-la, mensurá-la, valorá-la em função do conjunto da obra de,
por exemplo, De Sica. Ou seja, trata-se não de afirmar uma função-autor, de não apostar
numa “vontade de perdurar” (Ibidem, p. 27), nem de construir um espaço de estabilização,
mas antes aquele do “reconhecimento da finitude humana” (Ibidem, p. 27). Ao delinear esses
contornos, ao narrar as escolhas específicas desses diretores em relação às imagens que nos
são oferecidas, minha intenção é a de fazer com que elas (as imagens) refiram-se a si próprias
e, no máximo, à forma como estabelecem certa e relativa relação com uma outra. Jamais,
portanto, aprisoná-las a uma interioridade (relação com outras obras deste mesmo diretor),
nem com uma exterioridade manifesta (a imagem é esta e só poderia ser esta porque é de De
Sica).
Permito-me este movimento, pois certificar as regras da instauração de uma função-
autor, como diz Foucault, “não significa (...) dizer que o autor não existe” (FOUCAULT,
113
2001, p. 294). Exatamente por isso é que podemos pensar num diretor-autor. Bem, mas se o
diretor-autor existe, sob que bases podemos traçá-lo aqui, no caso do cinema? Assim como
Rosa Fischer quando escreve sobre a produção de textos acadêmicos ou sobre aquilo que
nos move (ou não) a construí-los – acredito que há filmes que portam algo como uma
assinatura. Uma assinatura que tem menos a ver com a possessão de um texto e mais com um
relativo apagamento do autor; ali algo a mais que o mero “eu”, do que mera pessoalidade,
mas que tem a ver, sobretudo, com a paixão daquele que cria” (FISCHER, 2005, p. 118,
grifos meus); tem a ver menos com instauração de verdades e mais com meras (e potentes)
vibrações; menos com o reconhecimento e reafirmação do mesmo do que com seu
esvaziamento; menos com assepsia e mais com aquilo “que nos mobiliza e nos faz tremer a
voz, as vísceras, o olhar” (Ibidem, p. 122). Trata-se de falar sobre (ou de filmes de) diretores-
autores e de uma assinatura que os envolve; porém uma assinatura cujo princípio não tem a
ver com uma categorização fixa, mas com a possibilidade de encontrar ali, naquele espaço
imagético, as fendas de sua dispersão.
Ora, se o próprio Foucault (2004) se debruçou sobre textos de Sêneca, Sócrates,
Platão, Epicuro, não foi para ali reunir ditos e emergir uma categoria fixa de autor. As
leituras refinadíssimas e rigorosas dos textos clássicos não lhe serviram para definir e apostar
na essencialidade do conceito de “obra” deste ou daquele filósofo. Mas, acima de tudo, foi
porque Foucault estava interessado em como foram tramadas as relações entre sujeito e
verdade, no Ocidente (2004). Ou, em como o sujeito foi estabelecido (e estabeleceu-se)
como objeto de conhecimento e de cuidado e, acima de tudo, como conhecimento e cuidado
de si. Epiméleia heautoû como ponto de partida: “cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se
consigo mesmo, de preocupar-se consigo” (Ibidem, p. 4). Para o filósofo, interessava nesses
textos a construção de uma vida, de uma ética de vida, na qual estavam em jogo práticas de si,
exercícios de resistência, de abstinência, de conversão e, igualmente, “treinamentos em
forma de pensamento e pelo pensamento” (Idem, 1997, p. 130).
Obviamente, não estamos falando aqui de práticas de si, e não estamos falando de
conversão, mas estamos falando de um mesmo movimento, qual seja, o da construção ética
(de si, da imagem) e, com isso, o do convite para pensarmos diferentemente. Num nível
114
muito mais modesto, reúno aqui as figuras de diretor-autor e de filme num sentido
semelhante, qual seja, o de mostrar de que maneira o processo de criação da imagem da
criança pode nos mostrar formas diferenciadas de pensar e agir politicamente, que lidar
com a construção da imagem é lidar com uma construção ética.
Frestas de humanidade em Pixote e Vítimas da Tormenta
Penso que sofremos de uma ilusão comum quando se trata de análises fílmicas:
acreditar que uma boa” análise é aquela que se carrega de todos os detalhes exteriores ao
filme, situando-o, entornando-o, completando-o. Sabemos, por exemplo, que Fernando
Ramos da Silva (o Pixote) foi morto seis anos depois da estréia do filme, vítima da violência
urbana da qual foi, no filme (e talvez fora dele), protagonista; ou que o célebre filme Os
Incompreendidos, de Truffaut, era para ser originalmente um média-metragem (um dos tantos
que o diretor realizou), que seu personagem principal, Antoine Doinel, nada mais era que seu
alter ego. E daí poderíamos citar infinitos sabe-se, murmúrios anônimos, que tangenciam
grande parte das obras fílmicas, em especial, as ditas “clássicas”. A falsa ilusão a que me refiro
diz respeito à apreensão sedenta de um “todo” que, simplesmente, é impossível capturar. Ao
almejar esse “todo”, um conjunto que envolveria anotações, discussões, relevâncias (sempre
contingentes), contextos políticos, sociais, culturais, emocionais da época, do autor, de seus
pares, de sua família, etc, almejaríamos, sim, o “sagradode uma obra e/ou de autor, bem
como daquilo que dela e/ou dele, supostamente, faria parte e é justamente contra isso que
argumento.
O que é um filme? É aquele artefato de 90, 110 minutos? As cenas que foram cortadas
e às quais temos acesso pelos chamados “extras” de um DVD fazem parte do filme? Os
diálogos e entrevistas explicativas, elucidativas de um autor, dos atores, dos produtores, dos
roteiristas devem ser incorporados na análise de um filme? Os bastidores, os romances hors
image entre diretor e atriz, entre atores – e que tornaram possível aquela cena mais “verídica”,
aquele olhar mais “genuíno” interessam para o entendimento dessa unidade filme”? Ao
contrário das perguntas que suscito, penso que a análise de um filme se faz pelo que se “tem”,
115
por mais modesto que isso seja: pelas relações que podemos estabelecer entre e a partir de
uma materialidade específica e delimitável a que, convencionalmente, chamamos filme. Isso
não quer dizer que possamos simplesmente adotar uma regra segundo a qual os filmes, na
qualidade de objetos de análise, simplesmente se equivaleriam, democraticamente; ou que
seriam “tudo a mesma coisa”.
No entanto, interessa-me a análise de uma superfície sensível, em suas duas acepções:
interessa-me considerar o filme como artefato que mobiliza de uma forma ou de outra, que
nos traz o olhar sobre e da criança, sem explicações, sem determinismos, sem influências,
sem buscas acirradas de interpretações pretensamente totalizadoras; e interessa-me essa e
somente essa superfície frágil, mas também vigorosa e por vezes violenta do filme (película
luminosa), em sua qualidade de unidade imagética, devidamente assinada”. Busco situar-me
sobre essa unidade material, levando em conta alguns de seus contornos (sobretudo históricos
e característicos de uma arte), mas sem a pretensão de seguir rastros e pistas em busca de uma
totalidade ilusória.
Nos filmes aqui selecionados, o limite entre adulto e criança parece ser banalizado e
completamente rachado aos olhos de uma classe média. Talvez algo que, aos olhos de hoje,
possa ser trivial, mas nos filmes datados de 1946, no âmbito italiano, e no Brasil de 1980, isso
operava como diferentes perspectivas de tratar a criança. Ou seja, em Pixote, a criança que
vende cocaína, que a consome, que rouba, que mata, que acompanha de forma natural tanto
o filme de ação da TV quanto a cena de estupro à sua frente, entende que tornar-se adulto é
atingir os dezoito anos, pois, sim, “a barra vai pesar”. Da mesma forma, o diálogo entre o
diretor do reformatório e seu assistente vai nessa direção. O assistente fala ao diretor a
respeito da situação pela qual passa a instituição e, por sua vez, os meninos ali abrigados:
“Muitos deles estão presos meses, sem previsão de saída, não por conta de uma sentença,
mas por conta da falta dela”. O diretor do reformatório, então, lhe diz: “Se você lesse as
estatísticas, saberia que, comparado a 1936, o crime aumentou 60%. Os juízes devem estar
cheios de trabalho”. O assistente insiste: Eu sei. Mas se trata de meninos”. E o diretor
finaliza: Meninos? Assalto à mão armada, arrombamento, roubo, latrocínio? O que fazer
para puni-los? Jantar sem sobremesa?”.
116
Impossível não lembrar de um diálogo semelhante, apresentado no filme Cidade de
Deus, de Fernando Meirelles, no qual a criança vai ao barraco do traficante e lhe pede uma
arma para, assim, poder participar da “guerra” entre quadrilhas que se aproximava. O
traficante rapidamente tenta desmontar o impensável” pedido do menino, alegando: Que
arma, o quê? Voé uma criança!”, a que ele responde: “Já fumei, cheirei, já matei, já
roubei. Sou bicho-homem!”.
Trata-se de uma assinatura comum, ou talvez praticamente de um “abaixo-assinado”,
que suspende a idéia de criança como futuro adulto ou mesmo que desestabiliza a mais óbvia
assertiva a respeito da criança como guardiã do futuro. Mesmo que por outras vias, a
problemática da criança promessa ainda nos é dada, mas brutalmente invertida, para que
possamos ver outra coisa, talvez sua própria resistência.
Um dos elementos mais mobilizadores do filme Pixote é justamente a oscilação
proposta por Babenco, entre o aparente universo genuíno da criança e sua imersão no mais
cruel dos mundos, aquele dos “menores”, no Brasil. Como é o caso do primeiro assalto feito
com a gangue recém formada (Pixote, Dito, Lilica e Sueli), em meio à cena da prostituta que
atrai o cliente para uma emboscada: os três menores surgem por detrás de uma cortina,
prontos para efetivar o assalto. A tensão provocada pelo close no rosto dos três, porém sem
deixar de mostrar as armas que cada um tinha em mãos, é quebrada pela careta de Pixote,
feita como se estivesse apenas respondendo a uma malcriação. Em seguida, após o assalto
realizado com sucesso, o prêmio: a janta num simples botequim. Pixote, contudo, pensa na
sobremesa: um grande sorvete de chocolate.
Acompanhamos o encantamento nítido de Pixote por Sueli, por aquela figura
feminina descontraída, engraçada e beirando, em muitos momentos, o maternal. Talvez
então a idéia de um menino fugido da (antiga) FEBEM e de uma prostituta fique suspensa,
fazendo-nos apenas lembrar que ali mais parece estarmos diante da cena do primeiro amor de
um aluno por sua professora. O sorriso tímido, a cabeça que abaixa, de vergonha, quando ela
pergunta: “E aí, quer ser meu machinho?”.
O que fazem Babenco e De Sica é aquilo que tão bem foi introduzido pelos novos
cinemas dos anos 60 na América Latina, tal como descritos por Ismail Xavier (1993, p. 116),
117
no sentido de que um cinema dito político não se presta somente a tematizar “problemáticas
candentes da vida social”. Haveria, naquele momento, naquele contexto, que se pensar uma
nova forma de conduzir os dramas, tendo em vista que “um traço essencial da produção
considerada como mais mistificadora era justamente o de abordar os problemas candentes’
trazendo embutida em sua estrutura uma interpretação redutora, voltada para a reprodução
de preconceitos e não para o esclarecimento das questões” (Ibidem). Aqui, da mesma forma,
não luta entre bem e mal, nem entre mocinhos ou bandidos (por mais que o universo
composto seja propício para tanto): Pixote não é o herói sobrevivente da vida nas ruas e do
descaso social, nem mesmo o menino bandido, frio e amargurado pela injustiça; Giuseppe e
Pascale não se resumem a serem as vítimas a que o título em português os relega, nem tão
pouco as crianças perigosas descritas pela instituição que os prende.
Lembremos ainda que o filme Pixote explora, como outros filmes de um período
posterior à avalanche do Cinema Novo, imagens que pouco circulavam no universo da
televisão (e, portanto, de menos acesso à maioria da população). “O Brasil que aparecia na TV
era pacífico” (HAMBURGUER, 2005, p. 199). Nas décadas de 70 e 80, nas quais o intuito
era a propagação e consolidação da TV, a circulação de imagens estava vinculada ao “universo
glamoroso das novelas”, bem como às ações governamentais visibilizadas pelo telejornal.
Mesmo que as obra ditas de ficção envolvessem casos de crimes e suspense (...) a tônica era
o romance, em geral via privilegiada de ascensão social (Ibidem, p. 198-199).
No mesmo período em que, na Rede Globo, assistíamos a Baila Comigo (1980/1981),
Coração Alado (1981) e Brilhante (1981/1982), Babenco escancara nacionalmente o universo
das instituições de seqüestro dos corpos infanto-juvenis. Numa das seqüências iniciais do
filme Pixote, acompanhamos a chegada de um grupo de meninos. Ao som de uma televisão,
estão eles, à espera de serem chamados pelo funcionário responsável e, assim, encaminhados
para outras instituições (uma espécie de delegacia para menores). A chamada ali é a simples e
fria conferência entre palavras” e “coisas”: “José Otacílio, 16 anos. Pai: Fortunato. Mãe:
Julia. Rua 3, Favela Novo Mundo. Confere?”. “João Henrique, 10 anos. Mãe: Maria da Costa.
Pai desconhecido. Rua Nova fé, sem número, fundos. Confere?”. Porém, imediatamente, as
“coisas” rejeitam sua designação, sua apreensão fria e direta e protestam: “Meu pai morreu
118
[portanto, bem sei, ele não é desconhecido]”. Conferência entre palavras e “coisas”: em sua
mesa, o diretor do presídio de Vítimas da Tormenta folheia o imenso livro de registros dos
meninos. A luz ilumina não apenas seu rosto como, para nós, aquilo que ele está a escrever:
um silêncio desconcertante precede o que vamos ler (e que vai ser escrito). A sentença parece
chegar até nós por meio das palavras, mas também da sica forte ao fundo: Tende a ser
violento, perigoso para si e para os outros. Recomendamos solitária”. Ao sinalizar a frieza da
lógica linear entre palavras e coisas, diretores-autores vêm aqui justamente negá-la.
Pixote olha: olha com estranhamento o amigo homossexual no banho; olha para o céu
ou para o teto escuro da sala de aula, olha fixo para a professora, olha Sueli com dores pós-
aborto no banheiro, ao lado da tigela de sangue e da agulha de tricô. Nós, igualmente,
olhamos Pixote, olhamos com os olhos de Pixote ou, talvez, olhamos o olhar mesmo de
Pixote. Em seus olhos, imagens distorcidas, confusas, resultado da intoxicação pela cola de
sapateiro. Olhamos também com os olhos de Giuseppe (ou de Pasquale), quando este chega à
prisão. Estamos, assim como ele, presos e, de dentro do camburão escuro, enxergamos as
grades de proteção do veículo e, através dela, o prédio “da tormenta” se aproximando. Em
ambos os filmes, são os raccords de regard que nos conduzem a ver seja as incertezas hipnóticas
das imagens, seja seus desconhecidos e amedrontadores recortes.
O universo das brincadeiras, tão característico da criança, toma aqui outros sentidos.
Elas incidem sobre o par real e ficção para, num primeiro momento, indicar-nos quase
linearmente: ora, trata-se apenas de retratar o universo em que as crianças vivem e as cenas a
que já assistiram. Assim, temos a brincadeira de assalto que impressiona pela veracidade, ou a
cena de tortura que choca pela riqueza de detalhes. Temos, ainda, a brincadeira que acaba
porque uma das regras (da brincadeira? Da vida real?) não foi cumprida: no meio do “assalto”,
o parceiro diz o nome do amigo. “Pô, meu, disse, não pode dizer meu nome pros cara!
Assim, não brinco mais!”. Mais do que retratar a realidade da realidade, penso que o convite
que é feito aqui é também o de tensionar realidade e ficção (o próprio filme, em seu
conjunto, nos faz permanentemente esse convite e talvez as brincadeiras o fragmentem): ao
mostrar a brincadeira, poderia pretender-se retratar a realidade, mas a “realidade” com a qual
estamos lidando é a própria brincadeira.
119
Se em Pixote temos um roteiro horizontalizado (no sentido de cenas que se sucedem e
que, geralmente, têm o menino como protagonista), em Vitimas da Tormenta temos um
roteiro, digamos, verticalizado (temos a história de dois meninos, que, num certo momento,
se separam e passam a ocupar, cada uma delas, dois espaços simultâneos e não separáveis
da narrativa). E é justamente em função disso que passamos o filme inteiro, talvez,
“angustiados”, pois trata-se de uma história dobrada e desdobrada em mal-entendidos. A
prisão de Giuseppe e Pasquale é um mal-entendido (pelo menos, para eles); as desavenças
entre os dois, dentre várias que ocorrem durante o filme, são frutos de sucessivos mal-
entendidos; a morte trágica, talvez o momento em que os espaços voltam a se encontrar, ao
final do filme, é um acidente. E é nesse ponto que as imagens nos tocam ainda mais: porque,
como espectadores, somos colocados na posição de testemunhas das falas e dos gestos dos
dois meninos, ora de um pólo, ora de outro; testemunhas, portanto, impotentes, de que tudo
não se passa de um grande engano.
A morte é o que caracteriza o final de ambos os filmes. As seqüências, tanto em um
quanto em outro, são dramáticas justamente por aquilo que têm em comum: as crianças são,
elas mesmas, assassinas de seus parceiros. No filme de Babenco, Pixote defende-se, ou talvez
tente defender Dito e, ao fazer isso, erra o tiro e acerta o amigo. Em timas da Tormenta, a
morte do amigo, ou melhor, o assassinato igualmente acidental do amigo, acaba por coroar a
tragédia completa. Se em Pixote a cena se em meio a um quarto sujo, em Vítimas da
Tormenta ocorre em meio a uma montagem onírica, que combina o cavalo branco, um
bosque, uma ponte de pedra e um riacho. Contudo, o sentimento que temos, seja no quarto
vetusto ou na paisagem sombriamente frugal, é semelhante: mata-se, por acidente, a via do
sentimento, a ligação, o pouco daquilo que de concretamente sensível as crianças têm. Mata-
se, em oposição às frias gicas do encarceramento infanto-juvenil e do descaso geral pelos
ditos “menores”, os elos mais genuínos de amizade e de lealdade que entre si elas
estabelecem. E é exatamente por isso que, a um só tempo, isso nos toca e nos horroriza.
Contudo, se no filme de De Sica esta cena marca o final do filme, no de Babenco ela
lhe é apenas um indicativo. É a ante-sala de uma das seqüências mais marcantes do filme. O
último diálogo entre Pixote e Sueli é marcado pelo passado-presente. De início, mais direto,
120
fala-se aqui de uma criança querer, tão cedo, esquecer o seu passado: “Não fala mais nisso!”,
referindo-se à insistência de Sueli ao lembrar, com pesar, da morte de Dito. Em seguida,
vemos o grande rosto em close de Pixote, assistindo à televisão (num enquadramento que
mostra o rosto do menino em primeiro plano, sentado à beira da cama e, ao fundo, Sueli,
deitada, com um copo de uísque nas mãos, o que faz com que Pixote converse com Sueli de
costas para ela). É, desta maneira, colado” a nós, que vemos o menino vomitar. Sueli vem
até ele, abraça-o, limpa o menino com as mãos. No plano seguinte, temos a cama e o casal ao
centro. Sueli pega o menino como a um bebê e, ele, como um bebê, vai literalmente à
procura do seio da “mãe”. Uma mãe que, de início acolhe, o seio exatamente como uma
mãe a seu filho, para, logo em seguida, rejeitá-lo violentamente, atirá-lo longe e gritar em
seus ouvidos (apesar da resistência do menino, que tenta esconder a cabeça entre as mãos):
“Eu não sou sua mãe! Eu não quero filho! Eu odeio crianças!”.
O processo de assinatura do qual falo atravessa, por inteiro, o final dos filmes. Nem
em Pixote, nem Vítimas da Tormenta finais felizes; nem em um, nem no outro, o menor
delinqüente converte-se em adulto do tipo escritor de best-sellers sobre “Como venci na vida
sendo morador de rua (ou engraxate)”. Ao contrário, o que se organiza são construções
diferenciadas de se abordar as “feridas sociais” diferenciadas especialmente das soluções
propostas pelos “produtos de massa”, nos quais a “denúncia das iniqüidades canalizadas para
uma catarse que, longe de ser ameaçadora, era fator de equilíbrio porque oferecia uma
expressão domesticada, reconfortadora a determinadas inquietações presentes no seio da
sociedade” (XAVIER, 1993, p. 116). Não “soluções malandras”, não herói redentores.
Há, no entanto, tensões permanentes: do menino que busca afirmar-se como adulto” para
seus cúmplices”, como daqueles que, separados, são expostos ao limite de si mesmos. Mais
do que fornecer elementos para a compaixão, as imagens nos fazem cúmplices da instauração
de um “pathos da tragédia” (Ibidem).
121
Considerações finais
A partir das discussões entre os conceitos-chave deste texto e daquelas empreendidas
pelos filmes Pixote e Vítimas da Tormenta, busquei assumir, mesmo que temporariamente, a
definição de diretor-autor como critério de organização. Contudo, a idéia foi a de que esse
critério não viesse a ser aquele que define sua existência, mas que, justamente, a faz vacilar.
Assim, o diretor-autor entra aqui em cena não para ser reconhecido, mas para caracterizar
uma certa variação no modo de pensar a criança. Um fixo, portanto, fadado à morte,
justamente porque dele se faz outra coisa; “em vez da síntese, a errância do pensamento; em
vez de autor, o traço da vida (des)fazendo-se(MIRANDA e CASCAIS, 1992, p. 27). Não se
tratou, portanto, de agarrar-se a categorias fixas, mas de suspendê-las para que, na abertura
possível do olhar, elas pudessem nos servir de degraus para a leitura de imagem.
Neste sentido, importou, portanto, menos estabelecer as regras de uma “relação de
atribuição” (FOUCAULT, 2001, p. 265) do que investigar, a partir de dois filmes específicos,
a posição do diretor-autor em um campo discursivo mais amplo, um campo discursivo que
reúne criança, violência e aprisionamentos (da criança, de seu corpo). Ou seja, busquei
mostrar de que maneira, antes de apontar para o diretor-autor como elemento exterior ou
menos anterior ao filme, entram em jogo elementos que marcam a obra menos como um
resultado (derivado de combinações e relações específicas) do que como prática, prática
discursiva, mas também de criação.
Assim, analiso que as discussões lançadas por estes diretores (Babenco e De Sica), em
relação aos filmes aqui tratados (Pixote, a Lei do Mais Fraco e Vítimas da Tormenta), não recaem
sobre uma polêmica das causas: não se trata de mostrar o laço acro e linear entre “família
desestruturada” e delinqüência. Não busca ou denúncia de porquês, mas, por vezes, a
apresentação chocante de universos que nos remetem à “vergonha de ser homem”, relatada
por Primo Levi, sobrevivente dos campos de concentração nazista, em uma carta endereçada
a Walter Benjamin. Comentada por Deleuze (1995), a frase de Levi nos inspira a pensar
sobre esta vergonha de forma mais ampla e, paradoxalmente, mais modesta: “para cada um de
nós, na nossa vida cotidiana, acontecimentos que nos inspiram a vergonha de ser um
122
homem” (DELEUZE, 1995). Talvez o movimento de r a nu as mazelas de um país recém
saído da guerra ou de um outro que perpetua a violência com os menores seja exatamente,
aqui, o movimento de dar uma assinatura às imagens. Não é meramente uma história que está
ali em jogo, mas as escolhas feitas para que ela fosse narrada desta ou daquela forma: a criança
que, insistente e para tudo, olha, pois disso não a podem privar, a mesma a quem olhamos
vomitar bem à nossa frente; a criança rotulada, fixada por uma sentença escrita diante de nós,
com letras imageticamente garrafais e que, nem por isso, deixa de lembrar, oniricamente, do
cavalo branco à sua espera. É, portanto, desta assinatura que falo, do esforço para que uma
determinada composição de elementos nos mostre, igualmente, frestas de humanidade em
construções edificadas de negligência.
123
2.2 Cinema e lembranças infantis:
paradoxos da criação no universo do já existente
Ao considerarmos a (ampla) parcela de filmes que têm a criança como protagonista,
imediatamente nos defrontamos com uma primeira evidência: em sua maioria, esses filmes
trazem um menino (ou um conjunto de meninos) como personagem central. De fato, em
termos de destaque, são relativamente poucos aqueles nos quais a narrativa se concentra nas
meninas. Destes últimos, poderíamos destacar alguns que acabaram se tornando
emblemáticos: Zazie no Metrô, de Louis Malle (1959), Cría Cuervos, de Carlos Saura (1975), O
Balão Branco e O Espelho, de Jafar Panahi (respectivamente 1995 e 1997), Encantadora de
Baleias, de Niki Caro (2003) e, mais recentemente, os belíssimos Pequena Miss Sunshine (2006)
e A Culpa é de Fidel, de Julie Gravas (2005). Uma das hipóteses para essa invasão de meninos
nas telas de cinema talvez possa estar relacionada ao fato de que, em grande parte dos casos,
os filmes sobre crianças acabam sendo atravessados pelas memórias infantis de seus diretores
(e, como se sabe, o cinema foi e é ainda hoje ocupado em sua maioria por homens)
21
.
Ao filmar Adeus, Meninos, Louis Malle (1987) retorna à sua infância, vivida em grande
parte no interior de um colégio religioso durante a ocupação da França na Segunda Guerra
Mundial; Fellini relembra de um modo até irônico a infância na Itália fascista em Amarcord
(1973), assim como, por outro lado, John Boorman reconstrói suas memórias a partir de
Esperança e Glória (1987), mesclando as brincadeiras pueris ao bombardeio da cidade de
Londres. Poderíamos dizer, igualmente, que um quê de Chaplin em O Garoto (1921),
também ele abandonado pela mãe artista de teatro. Teríamos, ainda, as imagens da cidade do
Porto, trazidas à tela não pelas lentes documentais, mas por aquelas da memória viva da
infância de Manoel de Oliveira (2001), em O Porto da Minha Infância, ou o roteiro e direção
autobiográficos de Alejandro Agresti em Valentin (2002), sobre a infância singela num bairro
21
Agradeço à Tânia Cardoso pelas longas discussões acerca desta problemática, que tornaram possível a
organização de muitas das idéias apresentadas neste texto.
124
suburbano de Buenos Aires, cercada pelos cuidados da avó paterna. E esses seriam apenas
alguns dos exemplos.
Nesta seção, interessa-me discutir três filmes organizados em torno das memórias
infantis de diretores. São eles: Zero de Conduta, de Jean Vigo (1933), Os Incompreendidos, de
François Truffaut (1959) e Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman (1983). Contudo, mais do
que mostrar de que maneira a infância pessoal é transposta para a tela, importa destacar como
ela é, nesse processo, inteiramente transformada. Ou seja, mais do que se referir a um caso
individual, as crianças mostradas afastam-se de um passado familiar para seguirem em direção
a uma poética da criação. Faço este movimento articulando o conceito de “escrita de si” tal
como desenvolvido por Foucault, com o objetivo de descrever como os filmes (e os
respectivos diretores) organizam uma “imagem de si”, que ultrapassa os limites da memória
pessoal. Como é possível elaborar algo de novo, quando a matéria-prima que está em jogo é
aquela do já existente, do já vivido? Como percorrer o trajeto entre estado de coisa e
acontecimento? Eis os paradoxos da criação, os quais, no que diz respeito a alguns filmes
específicos, esta seção pretende deslindar.
Escrita de si, imagem de si: constituição da infância para além da memória
individual
Em Foucault, a problemática da “escrita de si” insere-se na série de estudos e trabalhos
sobre “as artes de si mesmo”, sobre a forma como a cultura grego-romana, nos dois primeiros
séculos de nossa era, dirigiu formas de ser e agir em direção a uma estilização da existência.
Somada a outros elementos que compunham a vida ascética (e sobre os quais falamos na
primeira seção do eixo sobre a criança, pelo menos no que diz respeito à amizade), a escrita
de si viria integrar um amplo sistema de regras de conduta, cujo apoio, também aqui, estaria
radicado no trabalho do indivíduo sobre seu próprio pensamento. O fato de escrever (sobre
si) para si e para o outro, como ato vinculado à ordem de um “exercício pessoal”
(FOUCAULT, 2004a, p. 146), constituir-se-ia, assim, a um tempo, como “trabalho de
pensamento, trabalho pela escrita, trabalho na realidade” (Ibidem, p. 147).
125
Foucault analisa, de forma especial, dois tipos de escrita, organizados sob a forma das
hupomnêmata e das correspondências (2004a). Mais uma vez, encontramos nos gregos práticas
de si estruturadas coletivamente, ou seja, na relação que se estabelece com o outro
(notadamente, no segundo caso, com aquele que ) e, com isso, distantes da idéia de que a
constituição do eu fosse dada no interior de um monólogo solitário.
As hupomnêmata eram compostas por registros públicos, por cadernetas individuais,
enfim, por um conjunto de escritos que serviam, antes de mais nada, como “lembretes”
àquele que as organizava. Nelas se escrevia regularmente sobre experiências, momentos de
superação ou mesmo de reincidência de erros e falhas de conduta (reações frente a situações
de cólera, inveja, desgraça, luto, etc.). Esse “tesouro acumulado”, diferente de um diário
intimista, de mera “narrativa de si”, existia com o objetivo não de suprir uma falta de
memória, mas de ser oferecido à consciência como material que pudesse ser acionado,
“utilizado tão logo [fosse] necessário, na ação” (FOUCAULT, 2004a, p. 148). Observa-se,
ainda, que o propósito dessas reflexões escritas não era o de “buscar o indizível, não [era] de
revelar o oculto, não [era] de dizer o não-dito, mas de captar, pelo contrário, o dito”
(Ibidem, p. 148). Retornar ao passado, mas para dele se afastar (Ibidem, p. 150): “é sua
própria alma que é preciso criar no que se escreve” (Ibidem, p. 152).
As correspondências, por outro lado, se assemelhariam às hupomnêmata, embora não
fossem exatamente seu prolongamento (Ibidem, p. 155). As cartas, esse modo mais profundo
de se estabelecer a relação direta com o outro, antes de se resumirem a meros conselhos,
teriam a ver com a reciprocidade do olhar: olhar lançado para aquele a quem se escreve, olhar
recolhido, mas também projetado, por aquele que lê.
Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer seu próprio
rosto perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um
olhar que se lança sobre o destinatário (pela missiva que ele recebe, se
sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe
é dito sobre si mesmo. A carta prepara de certa forma um face a face
(FOUCAULT, 2004a, p. 156).
Ao expressar a “qualidade de um modo de ser” (Ibidem, p. 159), as correspondências
agiriam também como elementos de partilha entre os indivíduos na medida em que, assim
126
como as hupomnêmata, eram elaboradas não apenas a partir de experiências vividas, mas
também de experiências lidas e ouvidas. Escritas, portanto, que relançam a outras escritas
que lhes são (ou foram) anteriores. Divide-se com o outro aquilo que se leu com o objetivo
tão-somente de que, ambos, pensem sobre o próprio pensamento, exerçam uma relação de
força sobre as enunciações coletivas, seja para adotá-las, seja para, a partir delas, reinventar
novas formas de ser e de agir.
Importa ressaltar ainda que as problemáticas lançadas sobre a escrita de si” grego-
romana não estavam de forma alguma apartadas do exercício de escrita e de trabalho do
próprio Foucault, ele mesmo. A escrita, dizia o filósofo francês, “só vale a pena na medida em
que se ignora como terminará” (2004b, p. 294). O trabalho intelectual é, assim, o que
permite com que aquele que escreve torne-se diferente do que é. Enfim, trata-se de um
movimento avesso à nostalgia e intimamente relacionado à “relação reflexiva e positiva com o
presente” (Ibidem, p. 297).
Qual a relação entre essas discussões e aquelas que pretendo fazer aqui sobre o
cinema? Busco pensar que, ao colocarem visíveis suas lembranças de infância, alguns diretores
estariam elaborando uma espécie imagem de si. Vale lembrar, de imediato, que entre escrita de
si e imagem de si a relação não se dá no nível da equivalência, mas de um mesmo movimento
de pensamento; não se dá no nível de uma adaptação, mas de um mesmo exercício de
exposição; não se no nível de uma conservação, mas de uma mesma aposta numa função
etopoética (FOUCAULT, 2004, p. 147) sobre si mesmo e também sobre aquilo que nos
interessa sobremaneira: a imagem da criança.
Nesse sentido, o trabalho etopoético, no que diz respeito à construção da imagem de
si (que não deixa de ser também a imagem da criança), consiste justamente na transformação
tanto da criança individual e individualizada pela memória, quanto dos conceitos
estereotipados que a perpassam: operador “da transformação da verdade em ethos(Ibidem).
Não se produz nos filmes somente a imagem da criança: afirmo que, ao atravessar o espaço
entre o individual e a vida (“a vida é algo mais do que pessoal”, nos diz Deleuze), produz-se
nesses materiais uma imagem etopoética da criança. O modo como ultrapassam a fórmula
centrada no mero resgate de memórias familiares é o que constitui a assinatura fílmica dos
127
diretores. Talvez ao criar o espaço entre as crianças que foram e, ao mesmo tempo, que não
foram, eles estejam simplesmente dizendo, tal como Clarice Lispector, “eu te invento,
realidade” (1998, p. 68).
Falamos, portanto, de formas bastante diferenciadas de organizar e de expor ao outro
as memórias, as experiências, mas que, entre si, se assemelham pelo menos em dois sentidos:
um, primeiro, que diz respeito às formas específicas de criação da existência criação que se
faz não pela transposição direta e imediata do vivido, mas por sua reformulação, pelo
exercício de uma superação, no momento em que reorganizadas imageticamente. Ainda
assim, tais práticas convergem na medida em que, ao serem consideradas como operações
éticas-subjetivas”, constituem-se como um “espaço respirável entre as relações de saber e de
poder” (LOPONTE, 2005, p. 104). É claro que aqui não nos interessa a auto-transformação
do sujeito que as produz, mas sim dos conceitos de criança que tal exposição revisa, ou seja,
interessa-nos a dimensão coletiva que a prática da criação da imagem de si envolve. Imagem
de si como uma forma de se manifestar e de se expor para os outros, seria também
considerada como uma arma” (FOUCAULT, 2004a, p.155) para aquele que a produz, tanto
quanto – ou mais – para seus destinatários.
Ao articular as questões sobre memória, sobre escrita e sobre criação no que diz
respeito à literatura e à criança, Deleuze pergunta: “O que interessa a Nathalie Sarraute de
sua infância? São algumas fórmulas estereotipadas das quais ela vai tirar maravilhas” (1995,
s/p). Para o autor, nada se ganha em simplesmente vasculhar arquivos familiares. Ao
contrário, mesmo quando se trata de acionar as memórias da infância, a tarefa do escritor
estaria radicada na dissolução do “eu”. Não importa, portanto, a criança que “eu” fui, mas a
imersão desta na categoria de uma “criança qualquer”, ‘uma’ criança entre tantas outras”
(Ibidem). O ato criativo, o espaço dentro do qual haveria maior movimentação para a
criação, seria aquele resultante da dispersão de “as” crianças para “uma” criança: a um
tempo, impessoalidade e indiscernibilidade.
Talvez possamos dizer que se trate de uma espécie de atualização de tais práticas, de
sua reorganização, menos em termos de exemplos a serem seguidos do que em termos de
novas formas de pensar sobre as verdades que nos constrangem. Neste sentido, ressalto o
128
trabalho desenvolvido por Luciana Loponte, que, penso, segue a direção de uma suposta
“atualizaçãodestas práticas hoje no caso, no campo da formação de professores. Ao reunir
sistematicamente um grupo de professoras de artes, a autora nos propõe novas formas de
articular o que chama de uma docência-artista. A partir de trocas concretas, da produção, por
parte das professoras, de materiais dirigidos a si mesmas e às colegas, configura-se ali, naquele
espaço de trocas de memórias e de experiências e também de amizade, possibilidades de
“invenção de si mesmo”, que nada têm a ver com “auto-descoberta” (LOPONTE, 2005, p.
99). Assim, “o modo artista docente surge no entre-espaço da escrita de si (configuração
privada de si mesmo) e das relações de amizade (configuração pública e política). A ética e a
estética de si mesmo passariam então pela reinvenção de um espaço político de formação”
(Ibidem).
O que importa, portanto, é capturar desses materiais fílmicos a vida que deles emana.
Compreender que, antes de significações latentes ou ocultas, eles nos fornecem ao olhar
existências singulares não porque retiradas de um “eu”, mas porque justamente o
ultrapassam. De fato, nesse movimento, acabamos nos deparando com um paradoxo: como
criar algo de novo quando o que se tem em mãos é o vivido, o existente? Creio que tal
paradoxo seja superado por uma espécie de permeabilidade dos diretores e das memórias que
lhes são correspondentes à linguagem cinematográfica. Com isso, nessa relação que
obrigatoriamente o movimento de “adaptação” contempla, as lembranças infantis precisam
necessariamente ser imersas e dissolvidas no cadinho da arte – um cadinho que contém
elementos de uma sintaxe e, igualmente, o jogo polifônico murmurante da história do
cinema, portanto, uma trama sempre coletiva e partilhada. Nesta imersão-dissolução que
ser promovido um movimento constante e contínuo de adaptação, tensão, avanços e recuos.
Em outras palavras, “outras vozes convidam ao desequilíbrio, ao abandono da compostura
estéril, e acabam deflagrando o movimento da imaginação” (STEINER, 2003, p. 99).
Passo agora às análises dos filmes Zero de Conduta, de Jean Vigo, Os Incompreendidos, de
François Truffaut e Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman, a fim de percorrer o universo das
crianças. Ao invés de auspiciar indagar se tais universos correspondem peremptoriamente à
“realidade” dos fatos ou se seguem à risca o que foi ou deixou de ser vivido, importa aqui
129
saber, por um lado, que se trata de filmes baseados nas memórias de seus diretores e, por
outro, descrever de que maneira e por quais caminhos a criança-Truffaut, a criança-Vigo e a
criança-Bergman passam a ser simplesmente “crianças-quaisquer”.
Zero de Conduta: nos traços da memória, o lócus para a revolta lírica
Declarado como um filme anti-francês”, Zero de Conduta, foi censurado e obteve
autorização para projeção em 1946 apesar de ter sido concluído em 1933. Ao retratar a
vida de três crianças em um internato, Jean Vigo recorre às suas memórias, aos quatro anos
vividos em espaços como este, desde a morte de seu pai. O título do filme nada mais é do que
a reprodução de suas notas de comportamento, ao mesmo tempo em que, ironicamente, ele
lança para o primeiro plano uma crítica à tirania e ao autoritarismo experimentados não
apenas nas escolas, mas na sociedade francesa em geral – exatamente por isso o próprio filme
teria sido confinado durante treze anos.
O filme começa e, enquanto os créditos nos são apresentados, ouvimos apenas, em
off, gritos, berros, uma algazarra de vozes infantis. As férias terminaram, é chegada a hora de
voltar ao internato. De início, observamos o que vem a se tornar uma marca do filme: cada
espaço, por menor e mais singelo que seja, torna-se ambiente propício para a troca alegre
entre crianças. De cabeça baixa, um dos meninos está sentado no trem que o leva de casa
para a escola. Triste e entediado, o que ele faz é olhar pela janela, à espera de, numa próxima
estação, ganhar alguma companhia. Um outro menino entra no vagão. Ele senta ao seu lado,
e é então que começa uma verdadeira exposição compartilhada de jogos e brincadeiras: tocam
corneta com o nariz, sopram dois balões e fazem deles dois grandes seios, colocam papéis
pelo corpo, de modo que se tornam ali mesmo, simplesmente, duas galinhas a cacarejar. Por
fim, sacam dois charutos dos bolsos. Combinadas plano a plano, as imagens da fumaça
produzida pelo trem misturam-se àquela que agora invade o espaço alucinógeno do vagão
enfumaçado.
130
Entre as crianças, quando sozinhas, tudo pode acontecer, especialmente o insólito:
dar vida ao esqueleto na aula de anatomia, fazer do banheiro o atelier para a produção de
bandeiras piratas e, por fim, o aprisionamento de um dos professores. Dormindo em sua
cama, ele é amarrado pelas crianças com cordas. Elas erguem a cama, de modo que o
professor permanece deitado, porém na posição vertical. Ele é apenas mais uma “vítima”:
tudo não passa de pano de fundo para a revolta derradeira, que ocorre no final do filme. É
assim que as crianças vão ocupando, vão se apropriando e ressignificando espaços e funções
antes precisas: espaços de dormir, de estudar, de calar.
O que se observa é que, para Vigo, as crianças não são, elas mesmas, rebeldes, mas
antes elas são o próprio lugar onde a subversão, a desordem e o tumulto irrompem. Antes de
se constituírem como uma massa resistente frente a um fim específico, com um objetivo
delimitado, o que vemos é uma “solidariedade sem estatuto” (OUBIÑA, 2006, p. 115).
Rebelião sem finalidade, concentração desorganizada, “horda infantil” impossível de ser fixada
(Ibidem).
Crianças e professores estão concentrados em pólos distintos. Naquelas, o caos;
nestes, a imposição (sem sucesso) da ordem. E entre os professores? Entre eles temos a figura
de Huget, um professor diferente dos demais. Com traços visivelmente retirados de Carlitos
(a bengala, o chapéu, o andar de pato que por vezes imita), ele tenta, em vão, agradar as
crianças. Nada de um personagem partidário das crianças, a quem elas recorreriam; nada de
uma parceira óbvia entre o professor que enfrenta seus colegas em prol das crianças, mas,
antes, aquele a quem elas rejeitam ironicamente. Por outro lado, ele, um preceptor, “não
postula nenhum preceito de conduta, mas se deixa arrastar pela torrente de desordem”
(OUBIÑA, 2006, p. 116). É ele quem leva as crianças a um passeio pelas ruas vizinhas. As
crianças, em fila atrás do professor, o seguem... somente até a próxima esquina. Alheio ao
que se passa atrás de si, Huget não percebe que as crianças se dispersam, seguem para todos
os lados e fogem. Nós, no entanto, vemos as cenas num plano privilegiado: acompanhadas de
cima por nosso olhar, elas seguem seus trajetos labirínticos, cada uma para um lado diferente,
entram em lojas, becos, e voltam a se encontrar novamente na porta da escola, na mesma
fila, atrás do professor.
131
Se, por um lado, Huget faz questão de ser irônico, o diretor da escola é, ao contrário,
ele mesmo ironizado por meio das imagens escolhidas para compor o personagem. Diretor-
anão, sempre irritado, vestido de terno e com uma imensa barba, prega que “as crianças têm
de ser vigiadas”. “Sua textura física similar [à das crianças] não faz mais que acentuar a
distância que os separa” (Ibidem, p. 116). De fato, o pequeno diretor cresce frente aos
olhos de um dos alunos: torna-se apenas uma imensa cabeça em close: cabeça desgovernada,
descontrolada, aos gritos em sua sala, enquanto surrealisticamente é envolta por uma fumaça.
Somente aos olhos da (imaginação da) criança as dimensões físicas do diretor conseguem
ultrapassar os limites de sua mesa de trabalho.
Frente à disciplina imposta pela organização da escola, os alunos organizam uma
revolta. Uma revolta, no entanto, alegre e poética, que atravessa o filme por inteiro e que
culmina apenas nos últimos minutos da narrativa. As imagens sensivelmente mais lentas,
acompanhadas por música suave, nos mostram as crianças quase em delírio, desorganizando,
tumultuando e, ao mesmo tempo, dando uma nova vida ao acético e homogêneo quarto
comunitário. No caso dos meninos de Zero de Conduta, trata-se de uma beleza que não remete
a um convite à (mera) contemplação e que, exatamente por isso, não é facilmente
identificável. Visíveis a partir de uma montagem, a um só tempo precisa e errante, as imagens
oníricas invadem o espaço fílmico não para amortecer o olhar, mas para que, no encontro
com a imagem, ele venha a suavizar-se. Penas ao ar, travesseiros voadores, lençóis
tremulantes, estacas improvisadas: é assim que saem em marcha para fora do dormitório,
levando à frente uma das crianças no colo, erguida e triunfante. Nenhum objetivo final, a não
ser o da desordem.
É dessa maneira que imediatamente as crianças seguem para o pátio da escola.
estão o prefeito da cidade, policiais, um general, um padre e o diretor-anão. Talvez seja a
cerimônia de início do ano letivo, talvez o mero espaço de encontro entre “autoridades”. O
pátio está tomado por cadeiras em círculos, onde sentam os adultos. Está também
inteiramente decorado de bandeirolas, mas é a bandeira que elas mesmas produziram que
agora vem a substituir aquela da escola no mastro. Ao se atreverem a retirar a bandeira
“oficial”, os meninos determinam um fato: a escola foi ocupada. As crianças sobem no
132
telhado da escola e iniciam um confronto descontraído, jogando sobre as “autoridades” papéis
e pedaços de madeira. Ao invés de descerem e se dissiparem pelas ruas, elas fogem ali
mesmo, pulando entre os telhados dos edifícios vizinhos. Em suas mãos, apenas a bandeira
delas, retirada do mastro da escola. Vemos as crianças de costas, prontas para desaparecem
por trás de uma das coberturas. Seguem agora em busca de uma nova ocupação? Afinal, para
onde vão as crianças? Será que importa?
Os Incompreendidos: nos traços da memória, a criança de mil faces
Antoine Doinel, o protagonista de Os Incompreendidos, é tido como alter ego do próprio
François Truffaut. De fato, Antoine Doinel, Truffaut e mesmo Jean-Pierre Léaud (o ator que
interpreta o menino) talvez se misturem, talvez se confundam. Antoine Doinel: o
personagem imaginário que acaba sendo a síntese de duas pessoas reais, Jean-Pierre Léaud e
eu próprio”, diz o diretor (2005, p. 23). A vida no reformatório, a identificação judiciária, o
transporte da delegacia para o abrigo de menores em um camburão, a traição da mãe
comprovada pelo encontro fortuito entre a mulher e a criança, no meio das ruas de Paris:
todos esses elementos aproximam a memória do diretor e o filme exibido pela primeira vez
em 1959 (e que lhe rendeu, no mesmo ano, o prêmio de melhor direção no Festival de
Cannes).
O filme contempla muitos dos elementos valorizados pela Nouvelle Vague: desde as
filmagens preferencialmente feitas no exterior (nas ruas) sem contar, portanto, com
cenários montados , até a adoção de uma linguagem mais simples ou a predominância de
personagens e situações extraídas do cotidiano banal e, por isso mesmo, dotadas de uma
complexidade singular. O limite entre a infância e a adolescência marca o personagem central
da narrativa. Esboça-se nas imagens uma tensão constante, e nelas tal limite é captado não a
partir de uma “habitual nostalgia enternecida, mas, ao contrário, como um ‘mau momento ao
passar’” (TRUFFAUT, 2005, p. 25). Antoine Doinel está permanentemente entediado:
entediado com a escola, com a casa, com a família. Os momentos mais espontâneos e de
maior interesse por parte do garoto restringem-se àqueles ligados às fugas constantes da
133
escola, para perambular aleatoriamente pelas ruas da cidade com seu amigo René (momentos
nos quais se destacam as idas ao cinema) e, especialmente, aos de leitura, prazerosamente
fruídos quando descobre os livros de Balzac.
A escola é o espaço genuíno do autoritarismo e da ordem. A criança, ao contrário,
situa-se nas margens entre a lera e a suavidade, sempre pronta a passar de um lado para o
outro. Momentos de extrema indiferença e mesmo de revolta para com as regras impostas
pelos professores são mesclados a outros, delicados, como quando Antoine Doinel monta ao
lado de sua cama (sofá-cama), no quarto minúsculo, um altar para Balzac. Junto à fotografia
do autor, uma vela e uma flor; uma prece e uma cortina para proteger o objeto sagrado
elementos que, combinados, resultaram também no princípio de um incêndio dentro do
apartamento.
Vítima? Culpado? Antes de ser um delinqüente ou um mero inocente, Antoine Doinel
talvez seja mais um “atrapalhadoe, de fato, é isso que gera um lugar instável, de difícil
definição e captura do menino. Ele é expulso da escola por dois motivos. Primeiramente,
porque copia o fragmento de um dos livros que leu, e é dessa maneira que conclui uma de
suas redações. Ao ler em voz alta, em frente aos colegas, o texto que produziu, ele é acusado
violentamente de plágio pelo professor. Depois do ocorrido, ele deixa de ir à escola, e passa a
vagar pela cidade. Afinal, ir à escola no dia seguinte implicaria em ter de apresentar um
documento assinado pela mãe, comprovando ciência do “crime” que o menino cometeu.
Imaginando ter a desculpa perfeita, ele retorna à sala de aula dois dias depois, dizendo que sua
ausência se devia nada menos do que à morte de sua mãe – fato imediatamente descoberto, já
que a mãe, justo naquele dia, havia ido até a instituição. Da mesma forma, a prisão do menino
é acarretada pelo roubo de uma máquina de escrever retirada do estabelecimento onde o
padrasto trabalha. A máquina serviria para ser vendida, porém, dada a dificuldade da
efetivação do negócio, Antoine volta ao local do outro “crime” para devolver o objeto. E é
neste momento que é surpreendido por um dos vigias do prédio e encaminhado para a
delegacia.
Vítima? Culpado? Somos conduzidos imageticamente para esse lugar instável do
menino que oscila presencialmente (e paradoxalmente) entre cenas chocantes e singelas: o
134
misto de tristeza e indiferença na viagem no camburão, cercado de prostitutas e, ao mesmo
tempo, o misto de medo e excitação quando brinca numa roda giratória no parque de
diversões; o misto de revolta e decepção quando seu amigo René é proibido de visitá-lo e, ao
mesmo tempo, o misto de timidez e naturalidade quando interpelado pela psicóloga do
reformatório. Nessa seqüência, talvez uma das mais marcantes do filme, acompanhamos o
interrogatório de Antoine a partir da posição do interrogador, ou seja, daquele que encara o
menino de frente. De frente para s, ou diretamente para nós, com as mãos trêmulas, com
o olhar ora baixo, ora erguido, ele responde a perguntas do tipo: “Por que tu não amas a tua
mãe?”, “O que tu pensas sobre o teu pai?”, “Teus pais dizem que tu mentes o tempo inteiro. É
verdade?”, “Já transaste alguma vez?”. Impossível delimitar as múltiplas facetas de Antoine
Doinel, em torno de uma unidade coerente – característica que tão bem expressa Truffaut ao
compor a imagem do menino recortada, talhada, por diversos espelhos em frente à
penteadeira da mãe. De costas para s, o grande Antoine pode ser visto através do reflexo
do espelho maior; porém, por estarem ali, suspensos no vel, outros espelhos menores,
vemos igualmente as pequenas dimensões de uma parte de sua face, de seus braços, de seu
peito. Grandes e pequenas dimensões do “mesmo” (?) menino.
Preso e sem perspectiva de sair, a única alternativa encontrada por Antoine é fugir do
reformatório. Aproveitando um descuido dos guardas e de um buraco na cerca que marca a
propriedade, ele corre em direção àquela que seria sua única saída. Atravessa arbustos,
riachos e se depara com a imensidão do mar. O mar aqui não é mais aquele do sonho inocente
de férias, expresso numa conversa com a mãe, mas aquele do desespero de não ter para
onde ir. Errante e incerta, a câmera acompanha os movimentos de Antoine. Por alguns
segundos, ele (e ela) vai (vão) em direção ao mar. Contudo, se o menino segue, a câmera
agora recua. Ela volta e captura o olhar de Antoine Doinel, diretamente dirigido para nós.
Talvez como se perguntasse: vítima? Culpado? Mais uma vez, a criança nos escapa.
135
Fanny e Alexander: nos traços da memória, a criança e a imaginação
Uma obra sobre infância encerra a carreira do diretor Bergman no cinema. A
narrativa é tecida a partir das lembranças infantis do cineasta que, quando criança, viveu,
junto com a mãe, o pai e a irmã, na casa da avó paterna: um espaço marcado por festas e por
encontro entre familiares; um espaço acolhedor e essencialmente matriarcal. A saída dolorosa
da casa da avó para a casa do padrasto também está registrada em Fanny e Alexander. Assim, no
filme, somos conduzidos pelo olhar de Alexander. Com ele, percorremos trajetos sensíveis
dos caminhos entrelaçados e simultâneos da família, do casamento, da morte, do nascimento,
da fuga. É com a infância, então, que Bergman se despede do cinema.
Três espaços diferenciados concorrem na narrativa de Fanny e Alexander. O primeiro
deles é o da casa da avó. Intenso, detalhadamente decorado e invariavelmente repleto de
pessoas, a casa da avó é também o espaço dos brinquedos e do teatro. O teatro de
marionetes, a lanterna mágica, pessoas vivas e mortas convivem no horizonte de imaginação
de Alexander. É ali que as relações afetivas se tecem, que o riso e a desenvoltura têm lugar: a
mesa farta e repleta de parentes, a confusão organizada nas refeições, as roupas bem alinhadas
e com cores vivas, o séquito de empregadas, o tio que não se cansa em brincar às escondidas.
Contudo, a mãe, agora viúva, casa-se novamente, e as crianças passam a ter de ocupar
um outro espaço: o da casa do padrasto. A morte do pai, assim, marca um dos limites da
narrativa. No que diz respeito à constituição da estética cinematográfica, há algo que merece
ser ressaltado especialmente no momento do anúncio da morte do pai – e que se torna apenas
exemplar no que diz respeito à forma como as imagens se organizam no filme de Bergman.
Fanny e Alexander aparecem tranqüilos na cozinha da casa da avó, entre as conversas
superficiais das empregadas. Alexander oferece-se para cuidar de um filhote de cachorro.
Fanny, para lamber os selos das cartas que uma das empregadas posta. É então que, séria, a tia
vem à cozinha, chamá-los para a sala. Os meninos saem atrás da tia pela casa. O barulho dos
passos e dos saltos dos sapatos é a música que acompanha o longo trajeto da cozinha à sala.
Nesta, a família está concentrada, acompanha os meninos passarem, como a um cortejo,
com olhar de piedade. O close no rosto de Alexander é dado pelo recorte do espaço entre os
136
corpos da tia e de Fanny, que vão à sua frente. O rosto do menino aparece, então, em meio
aos ombros, por trás, ainda acompanhado pelo barulho dos saltos dos sapatos. Antes de entrar
na saleta, onde a avó está prestes a contar sobre a morte do pai, Alexander olha para trás, olha
para nós: num raccord de regard vemos a família reunida, como se as pessoas ali compusessem
um quadro, uma pintura do luto. Três ou quatro planos de sobrepõem: alguns parentes mais
de perto, outros mais ao longe. O menino, no entanto, resiste e fica parado junto à porta,
apesar da insistência da avó: “Venha, querido”. Alexander entra na saleta, deita a cabeça em
seu colo e chora, como se já antecipasse a notícia que está por vir.
Destaco este momento do filme, pois, no lugar deixado pela contigüidade de cenas
(em favor de um realismo que implicaria em produzir ou reconhecer nas imagens a busca
mais perfeita do real), a opção adotada é aquela em torno de um realismo estético (XAVIER,
2005). Isso expressa a escolha por um tipo de narrativa no qual a gica das imagens não é
dada somente pelas relações que estabelecem entre si, mas especialmente pelo que ocorre no
interior delas mesmas. Retomo aqui, portanto, a descrição que fiz sobre o anúncio da morte
do pai: destacar as cenas amplas, os três ou quatro planos sobrepostos, mostrar a personagem
por trás de outras, entre os ombros de outras, toda essa elaboração fílmica implica em
assumir amplitudes nas quais o visto é inteiramente concentrado e nas quais a ordem do plano
em profundidade adquire significativa importância. O que se ganha com isso? Ganha-se a
extensão (e a intensão) dos planos-seqüência. Não mais a aposta na montagem como técnica
principal, mas na primazia da profundidade de campo: esta talvez seja a marca da estética
cinematográfica em jogo no filme.
No lugar de planos múltiplos e variados da montagem clássica, os planos-seqüência
longos e igualmente prenhes de elementos. Ao invés de rias cenas entrecortadas,
mostrando a cada vez a dor de um parente, o choro de outro, temos o quadro pictorial em
seu conjunto. Da mesma forma, numa das cenas iniciais do filme, observamos a dança
comemorativa do Natal: ao invés de várias cenas, mostrando uma e outra vez a sica e o
movimento da família, testemunhamos os passos de uma dança que invade todos os cantos da
casa. Assistimos aos movimentos de uma dança que ora vem em nossa direção, ora se afasta
de s; e, por isso mesmo, por acompanharmos as imagens tão diretamente, somos levados a
137
dançar junto com as imagens e participamos, de um modo ou de outro, do espetáculo onírico
do Natal na casa da avó. Portanto, trata-se aqui de uma estética organizada não em torno da
decomposição, mas da captura de um bloco (XAVIER, 2005).
É esse espaço profundo” que, com a morte do pai, os meninos devem abandonar.
Junto ao padrasto, eles devem abdicar da casa familiar, da casa-família. Ao invés de aposentos
amplos e repletos de detalhes decorativos, o novo lar é agora austero, minimalista, sem
adornos, sem cores, sem vida, sem calor. Mesmo sem os brinquedos, que antes preenchiam o
cotidiano, ainda há espaço para a imaginação: num misto entre real, sonho e imaginação,
Alexander passa a deslindar o passado do pastor, a forma como, viúvo, ele teria perdido a
esposa: morte acidental, fuga, assassinato? “A transgressora persistência da imaginação, agora
tornada expressão da vingança infantil, é duramente punida. O real é impresso na carne do
personagem, inscrito a sangue” (GOUVÊA, 2006, p. 86). Frente à aspereza e à violência
contra seu imaginar, Fanny e Alexander passam os dias sentados frente à imensa janela de seu
quarto, num gesto em que “anuncia um lento definhar da vida pelo limite imposto à
transgressão” (Ibidem).
A mãe não suporta por muito tempo a aspereza daquele universo incrustado em
valores religiosos, enclausurado em si mesmo. Antes de pedir o divórcio ao marido violento,
ela deve se certificar de que as crianças estão fora da casa. Capturados pelo companheiro da
avó paterna, Fanny e Alexander passam a ocupar o último espaço da narrativa (antes de
retornarem, definitivamente, para a casa onde nasceram): a casa de Isak, o companheiro da
avó. Numa radicalização do espaço imaginativo, as crianças agora convivem com bonecos
gigantes, fantasias, adereços e objetos decorativos: um atelier onde se produzem os cenários
mais diversos. Naquele espaço inteiramente fantasioso, Alexander conversa com o pai morto,
com Deus e com Ismael, o irmão confinado, meio andrógino, que o interpela a um diálogo
delirante que, para o menino, é também amedrontador. O fantástico insinua-se na
composição dos planos, “inscrevendo suas marcas, compondo um clima que, no espaço da
casa habitada por figuras e objetos deslocados do cotidiano, em seus tempos e espaços,
finalmente explode nas imagens quase oníricas” (Ibidem, p. 87).
138
Se há, de fato, algo que une os três espaços (casa da avó, casa do padrasto, casa de
Isak), este é o da imaginação: “é no espaço das sucessivas casas que a imaginação se exerce”
(GOUVÊA, 2006, p. 85). No universo criado por Alexander, também nós somos convidados
a imaginar: na seqüência em que o companheiro da avó (Isak) vai até a casa do padrasto buscar
as crianças, uma tensão nos é dada pelas imagens. Para poderem fugir, as crianças devem
esconder-se numa espécie de arca, que supostamente seria comprada por Isak (assim, arca e
crianças poderiam ser retiradas da casa com facilidade). Com a ajuda da mãe e de Isak, as
crianças descem do quarto e são postas dentro da arca. O padrasto, então, desconfiado, não
pede para ver o que dentro do objeto, mas, ao contrário, sobe diretamente até o quarto
das crianças. Ao abrir a porta, ele se surpreende (e nós igualmente) ao ver Fanny e Alexander
(também!) no quarto, dormindo. Somos nós agora que imaginamos? Questionado sobre esta
cena, Bergman apenas responde: “É permitido!” (BERGMAN, 2006, p. 102, trad. minha).
Considerações finais
Nesta seção, o objetivo principal foi o de delinear as formas pelas quais, nos filmes
Zero de Conduta, Os Incompreendidos e Fanny e Alexander, se organiza uma imagem de si dos
diretores; uma imagem que articula, a um tempo, memória e criação, superação do eu
pessoalizado em direção à ordem da novidade da criança. De fato, não vemos aqui a imediata
transposição das antigas hupomnêmata e correspondências greco-romanas para a tela de
cinema, mas entre escrita de si e imagem de si um movimento semelhante: aquele ligado ao
trabalho de organizar sua memória individual, de expô-la ao outro e, nesse processo, de
poder transformá-la, superá-la. O que importa destacar, então, é que em ambos os casos (por
mais diferenciados que sejam) vemos se delinear uma construção etopoética: se para os gregos
essa construção tinha como objetivo direto a estilização da existência, aqui, nos filmes, ela
tem a ver com a composição da imagem da criança como ethos, como lugar onde é possível a
criação de novas formas de pensamento sobre a criança. Assim, mais do que compor
estratégias para a manutenção intacta de recordações, creio que estes materiais nos convidam
a olhar (e a sermos olhados) a (e pela) criança em sua mais absoluta complexidade. Uma
139
complexidade que não nos é dada, por exemplo, por meio de uma espécie de “acertos de
contas”, de um “exorcismo” das agruras vividas na infância ou pela celebração óbvia de uma
felicidade inocente. Ao contrário, no intuito de descrever a composição imagética desses
materiais, compreendemos como a criança, produzida a partir de rastros, de marcas pessoais,
é tida como estopim para a articulação de novas formas edificantes de compor o próprio
conceito de criança. Ou seja, não se trata de uma imediata absorção de crianças particulares,
mas a irrupção da criança-revolta, no caso de Vigo, criança-caleidoscópica, no caso de
Truffaut, criança-imaginação, no caso de Bergman. A criança, então, aqui se desprende do
tempo e do espaço, dos quais justamente é “resultado”. A criança que, ao ser despojada do
caso particular, acaba sendo atravessada por um mistério inexorável: “por mais que se esgote
a análise de todo contexto histórico-social e de seus componentes filológicos, formais e
estilísticos e por mais que se investigue a biografia do autor, suas leituras, seus encontros, o
segredo vital da personagem que descreve continuará esquivo” (STEINER, 2003, p. 181).
140
3.0 A IMAGEM QUE NOS AFRONTA
Como vimos assinalando desde o primeiro capítulo, um dos objetivos centrais desta
pesquisa é o de discutir o conceito de imagem na medida em que articulado às noções de
criança e, especialmente, quando vinculado ao universo cinematográfico. Assim, pretendo
aqui apresentar algumas discussões sobre esse conceito (o de imagem), valendo-me das
contribuições de diversos autores que, tendo ou não se debruçado diretamente sobre a análise
de filmes, souberam formular interrogações que nos fazem, de certo modo, pensar sobre as
imagens cinematográficas.
Inicio esta seção sobre a imagem a partir do exame de conjunto de textos de Michel
Foucault, que tem como mote o conceito ou a análise da imagem. Embora o filósofo francês
não tenha aspirado à realização de estudos sistemáticos sobre a imagem (e muito menos sobre
as fílmicas), creio que suas difusas produções, que dizem respeito, na verdade, a palestras ou
artigos acerca de uma analítica das imagens da arte, nos ofereçam inequívocas contribuições.
Trago também para este texto as discussões formuladas por Deleuze sobre as imagem-
movimento e imagem-tempo, as quais, mais diretamente, introduzem elementos que
convergem com aqueles do conceito de criança, tal como vem sendo até então discutido neste
trabalho. É válido salientar ainda que, embora as duas abordagens do conceito de imagem
sejam centrais nesta seção, elas são acompanhadas por outras que, aqui, o teríamos como
141
abandonar. Refiro-me, especialmente, às análises minuciosas e clássicas de Rolland Barthes
sobre o cinema, bem como aquelas feitas, no Brasil, por Ismail Xavier.
A intenção, portanto, não é dar conta das dezenas de autores que trabalharam com o
conceito de imagem, muito menos realizar um levantamento exaustivo sobre o conceito em
suas mais variadas acepções e abordagens. Ao contrário, destaco nesta pesquisa autores e
estudos muito específicos, “recortados” no que de produtivo eles podem acrescentar às
perguntas mais gerais que se fazem aqui e no que de convergente eles têm com os objetivos
deste trabalho.
É sabido que Foucault não se ocupou em desenvolver uma sistematização acerca de
uma teoria da imagem. Talvez possa se dizer que em obras como O Nascimento da Clínica e A
História da Loucura o filósofo tenha se aproximado mais do que poderíamos chamar de uma
teoria do olhar, ou, ainda, que os livros A Arqueologia do Saber e A Ordem Discurso estejam mais
de acordo com uma teoria das visibilidades. Contudo, sabemos o quanto esse “vidente”, como
Deleuze (1991) o denominou, e suas incontáveis palestras, entrevistas, artigos, proferidos e
publicados em todo mundo (da França ao Brasil, da China ao Irã) dão conta de análises
primorosas sobre a questão da imagem, especialmente, no domínio da arte. De fato, os
trabalhos de Foucault sobre a loucura, sobre o que se poderia chamar de uma “teoria do
discurso”, sobre a arqueologia das ciências humanas e sobre a história da sexualidade foram
acompanhados de artigos hoje reunidos nos Ditos e Escritos sobre René Magritte, Edouard
Manet, Paul Klee, Kandinsky, Gérard Fromanger, Panofsky, no cinema sobre Paolo Pasolini,
Hans Jüger Syberberg, entre tantos outros (e isso apenas para citamos artistas diretamente
ligados à produção de imagem)
22
.
Para iniciar, abordaremos os textos de Foucault que fazem isso de forma mais incisiva
e que, nesse sentido, examinam a relação (ou disjunção) entre linguagem e pintura: Las
meninase Isso não é um cachimbo”. Neles, o autor aponta questões pertinentes em relação
às análises das imagens, no sentido de que isso nunca será um mero exercício de significação
ou um exercício de uma tranqüila descrição. “Não que a palavra seja imperfeita, nem que, em
22
No campo da música e da literatura Pierre Boulez, Raymond Roussel, Gustave Flaubert, Sade, Margueritte
Duras, Mallarmé, Klossowski, Maurice Blanchot, Bataille, Julio Verne, Robbe-Grillet, André Breton seriam
apenas alguns nomes.
142
face do visível, ela acuse um déficit que se esforçaria em vão por superar” (FOUCAULT,
1998, p. 65).
O texto que serve de abertura ao livro As Palavras e as Coisas merece ser situado. Ainda
que tenha hesitado em incluí-lo no livro – reservando-lhe ora uma versão resumida no
interior do Capítulo IX, ora no início com destaque –, Foucault faz do texto mote para
definir a episteme da Época Clássica, que tinha como fundamento o princípio da
representação. Mas não isso. Ele não analisa o quadro, mas faz dele, ao mesmo tempo,
uma metáfora para pensar tanto a época clássica como a moderna, como espaço da ordem,
como ligação forçada entre palavras e coisas (MIRANDA, 1993), onde as coisas transformam-
se em objetos e o corpo em sujeito (Ibidem). As Meninas”, assim, é usado para pensar e
problematizar a idéia do quadro como (incapaz de) representação e igualmente, para pensar e
problematizar a idéia do quadro do saber, quadro “prisão”, no sentido de espaço que permite
ao pensamento colocar os seres em ordem, separar as coisas em classes, realizar
agrupamentos nominais segundo os quais diferenças e semelhanças são distribuídas
(FOUCAULT, 1998).
Cabe-nos enfatizar, em relação a essa análise, a “centralidade da visão” (MIRANDA,
1993, p. 55) jogo de olhares, de luzes e de espelhos que o próprio Foucault nos oferece.
Centralidade que, para o autor, é tomada não para remeter a qualquer idéia de primazia,
justeza ou rigor. Ao contrário, o que o autor faz é sair das certezas de que a visão num
primeiro momento pode garantir para, em seguida, desestabilizá-las, ao afirmar que “nenhum
olhar é estável” (FOUCAULT, 1998, p. 61). Mais do que isso, o autor, a partir do quadro de
Velázquez, nos interroga sobre nossa própria posição de “espectadores”: afinal, “somos vistos
ou videntes? (ibidem). Somos por ele (por eles?) atravessados em relação àquilo que
“adquirimos” no próprio ato de ver: “nós lhe pertencemos porque ele nos pinta ou ele nos
pertence, pois nós o contemplamos” (Ibidem, p. 64)?. Enfim, a partir da análise minuciosa de
As Meninas”, somos lançados à marca irrefutável da relação que estabelecemos com a
imagem: “a invisibilidade profunda do que se é solidária da invisibilidade daquele que vê”
(Ibidem, p. 70).
143
O que Foucault (e Velázquez) mostra (mostram) é que a imagem é irredutível às
interpretações ou às significações, pois estas são e serão sempre inesgotáveis – não por
incompetência daquele que olha, mas por resistência da própria imagem, que desdobra os
ditos que se fazem sobre ela, sempre em novas possibilidades, portanto, em novos ditos, que
por sua vez não darão conta, por mais que se esforcem, em abarcá-la por completo. É essa
tensão que interessa a Foucault, ou seja, a recusa de um domínio de exterioridade que a
representação propõe como se a imagem pudesse dar conta, apreender em si,
internamente, um “real” que lhe é exterior.
Tal perspectiva corrobora a idéia de que a ligação entre os domínios daquilo que se
vê e daquilo que se diz está tanto menos no âmbito da articulação e da complementaridade do
que da dependência ou da obviedade de seu possível encadeamento: “há disjunção entre falar
e ver” (DELEUZE, 1991, p. 73). Assim, “por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê
jamais reside no que se diz; por mais que se tente ver, por imagens, (...) o que se diz, o lugar
em que estas resplandecem não é aquele que os olhos projetam, mas sim aqueles que as
seqüências sintáticas definem” (FOUCAULT, 1998, p. 65). uma certa e relativa
independência entre aquilo que se e aquilo que se diz, no sentido que a linguagem segue
normas específicas, “que não é uma proposição a designar um estado de coisas ou um objeto
visível”; da mesma forma que aquilo que se vê não carrega em si “sentido mudo, um
significado de força que se atualiza na linguagem (Ibidem). Nesse sentido, a proposta de
análise aqui em jogo não foi a de fazer um trabalho que fosse contra essa idéia e que,
portanto, insistiria no empenho acerca das significações –, mas, antes, tratou-se de analisar os
materiais considerando essa característica inelutável entre imagem e linguagem, ou seja,
tratou-se de fazer um trabalho a partir dessa incompatibilidade.
Como no espelho do quadro As meninas, de Velázquez, magistralmente descrito por
Foucault no livro As Palavras e as Coisas (1998), a imagem se torna refratária a qualquer
representação; ela não reflete o que supostamente refletiria, ela não abarca objetos visíveis,
mas, ao contrário, atravessa perpendicularmente o campo da representação e “restitui a
visibilidade ao que se encontra fora do alcance de todo o olhar” (FOUCAULT, 1998, p. 63,
grifos meus). Se, na pintura holandesa, os espelhos desempenhavam a função de replicar o
144
que estava no interior da tela, em Velázquez ele assume uma outra função, diametralmente
oposta. Isso não é feito nem a modo de Van Eyck onde o espelho reduzido não reflete
simplesmente, mas, que convexo, transforma, deforma a mesma imagem que nós,
observadores, vemos com clareza e nem mesmo da maneira como é pintado o espelho de
Manet, em Bar aux Folies Bergères em que este acaba por desorientar (imagem, modelo e
espectador) e produzir uma nova imagem a partir da sua incapacidade de representar com
clareza aquilo que não está à sua frente: imagem difusa, “pintura-objeto” (Ibidem), que não
representa o que deveria está ali (FOUCAULT, 1971)
23
. Assim, cabe tomar aqui a imagem
cinematográfica como aquela que, fugidia, rejeita integralmente o que poderia refletir, mas
que, acima de tudo, como n’As meninas, “nada diz do que já foi dito” (Ibidem).
Talvez por provir do cinema, a imagem da criança, tal como num quadro de
Velázquez, instaure um lugar impreciso, onde “contemplador e contemplado permutam-se
incessantemente” (FOUCAULT, 1998, p. 60). E é desse lugar que ela vem tensionar toda e
qualquer estabilidade do olhar. Radicalizando essa idéia, a imagem cinematográfica da criança
pode ser considerada como pura potência desestabilizadora, isto é, como potência que
compromete de maneira insuperável as categorias de representação, objeto e espectador.
Nesse sentido, a criança, nas imagens do cinema, pode inclusive nos olhar
literalmente e, nesse movimento, perturbar a ordem e lugar daquele que vê a imagem, como
o faz Antoine Doinel em Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959) que olha fixamente para a
objetiva, como se realmente estivesse se confessando a nós, espectadores
24
. Trata-se do poder
convidativo da imagem para que, dela, sejamos cúmplices. Aqui um paralelo: no quadro de
Manet analisado por Foucault (1971), o escândalo da nudez da Olympia se deu pelo jogo não
apenas entre corpo despido e luz, mas entre corpo despido, luz e olhar do espectador, que
aqui se torna integralmente implicado na composição (iluminando mesmo o corpo de
23
O texto que Foucault preparava sobre Manet (“Le Noir et la Couleur”) jamais foi publicado. O que permanece
disponível são tão-somente os manuscritos da conferência dada na Tunísia em 1971 sob o título Conferece sur
Manet” (1971).
24
É importante destacar, nesse sentido, que, em 1924, em Visages d’Enfants, o protagonista Jean, após mais
uma das discussões com sua madrasta, olha diretamente para a objetiva, olha para “nós” e diz :“Eu te detesto!
Eu te detesto”. Não se trata de um mero jogo de substituições, como se tivéssemos “assumindo” o lugar da
madrasta: somente depois que ela sai do plano, quando ele vê-se sozinho no quarto, que o menino, então, nos
olha. Tornamo-nos agora cúmplices e talvez confidentes de sua tristeza.
145
Olympia) (Ibidem). No cinema, poderia se dizer que se trata de uma inovação em sua própria
linguagem, uma estratégia “bastante ambiciosa”, onde o espectador se torna, igualmente, um
elemento na composição essa, pois, a função dos raccords de regard). No caso de Antoine,
falamos de um olhar dirigido diretamente a nós, acompanhado de uma confissão que “nos
interpela, nos solicita uma resposta (no sentido mais forte da palavra: nós nos sentimos
responsáveis)” (VALLET, 1991, p. 69, trad. minha).
no texto “Isto não é um cachimbo” Foucault analisa os dois quadros de Magritte,
intitulados A Traição das Imagens e Os Dois Mistérios. Apenas para tornar a descrição dos quadros
mais sucinta, trata-se do jogo entre a imagem de cachimbo seguido do dizer “Isto não é um
cachimbo” – o que muda nas duas versões é a disposição dos elementos: em uma, um
cachimbo desenhado seguido dos dizeres; na outra, dois cachimbos, um de tamanho grande,
solto e outro menor pintado em um quadro (diríamos que se trata do quadro do quadro),
acompanhado dos mesmos dizeres. Se a primeira “desconcerta por sua simplicidade”, a
segunda “multiplica visivelmente as incertezas voluntárias” (FOUCAULT, 2001a, p. 245).
Para Foucault, interessa analisar essas imagens na medida em que elas propõem um
rompimento promovido justamente pela expressão que o pintor insere. Ou seja, ao dizer
“Isto não é um cachimbo”, Magritte não apenas nomeia aquilo que não haveria necessidade de
ser nomeado, como, ao fazê-lo, contradiz e rompe com quaisquer equivalências entre palavra
e imagem. Talvez, mais do que contradizer meramente, ele evidencie a “rede inextricável das
imagens e das palavras e a ausência de lugar-comum que possa sustentá-las” (FOUCAULT,
2001a, p. 258). Ao nos perturbar de diferentes maneiras, o enunciado de Magritte nega a
independência e mesmo as relações lineares entre similitude e afirmação; ao fazer isso, ele
estilhaça as afirmações que vão em direção ao “o que vocês vêem é isto” (Ibidem, p. 256).
Assim, não é a criança-espelho (“representação”) que nos interessou analisar, mas a
criança tautológica; é da criança-caligrama que nos ocupamos, pois é daí que sua singularidade
irrompe. Diz-se do caligrama que ele “introduz uma relação negativa entre o que ele mostra e
o que ele diz” (FOUCAULT, 2001a, p. 252), que ele “evita nomear o que a disposição dos
grafismos delineia” (Ibidem), ele vai algo além, pois concentra aquilo que nossa “civilização
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alfabética” como atos senão “opostos” (Ibidem, p. 250), pelo menos duais e apartados:
olhar e ler.
Ao dizer “Isto não é uma criança”, a criança no cinema age como o elemento
desestruturador; ela faz vacilar o conceito de criança resultado da vontade de verdade e
decompõe o caligrama, fazendo-o desaparecer e “deixando como traço seu próprio vazio”
(FOUCAULT, 2001a, p. 363). Criança-imagem ou criança-superfície agora abre as portas
que tão ardilosamente a vontade de verdade fechou portas que garantem a captura, por
parte desta última, a algo de que o discurso sozinho e o puro desenho” não são capazes
(Ibidem, p. 251). Se o quadro de Magritte, “‘Isto não é um cachimbo’, era a incisão do
discurso na forma das coisas, era seu poder ambíguo de dobrar e desdobrar” (Ibidem, p. 258),
aqui, a criança-imagem do cinema perverte, perturba as discursividades sobre o infantil e
sobre a infância, extraídas da vontade de verdade.
A partir de um exercício de análise sobre um conjunto de fotografias de Fromanger,
reunidas sob o título Le désir est partout”, Foucault nos fala da imagem como sempre
portadora de outras imagens. Mais do que isso, pintura (fotografia, cinema) é considerada
como “funda de imagens” (2001b, p. 352), como “foco para miríades de imagens em jorro”
(Ibidem), como “lugar de nascimento das imagens” (Ibidem, p. 353). Aqui, todo um campo
aberto se coloca na medida em que nem os pintores, fotógrafos e autores (produtores das
imagens) estão sós e nem “a” imagem é tomada como soberana, como se, de seu pedestal, ela
reinasse passivamente num mundo de significações.
Se em “Isto não é um cachimbo” Foucault sustenta que “pintar não é afirmar” (2001a,
p. 263), em “A pintura fotogênica” (2001b) ele mostra que uma fotografia jamais tem a
capacidade de apreender as coisas num instante, portanto, em uma suposta fixidez, mas,
antes, o ato mesmo de fotografar remete a uma concentração e intensificação do movimento
das coisas (Idem, 2001b).
Nesse sentido, a riqueza da imagem seria não aquilo que ela capta (seja a fotografia,
seja o cinema). Ao contrário, quadro e câmera não fixam as imagens, mas, antes, “fazem-nas
passar” (FOUCAULT, 2001b, p. 352). A riqueza, a potência da imagem residiria naquilo que
cinema e fotografia, quadro e câmera fazem com as imagens, ou seja, “eles as conduzem, as
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atraem, lhes abrem passagens, lhes encurtam caminhos, lhes permitem queimar etapas e as
lançam aos quatro ventos” (FOUCAULT, 2001b, p. 352). A questão, assim, é a de poder
garantir o trânsito de imagem, fazer com ela seja lançada a outras imagens. Ao contrário do
absolutismo da imagem, nela se concentra a sua própria pluralidade, sua capacidade de fazer-
se múltipla e, ao mesmo tempo, indivisível.
Deste modo, mais do que a fixação imagética da criança, importa aqui o
acontecimento que ocorreu, e que continua incessantemente a ocorrer sobre a imagem, pelo
próprio fato da imagem” (FOUCAULT, 2001b, p. 351). Ao mesmo tempo, se diz que ele,
acontecimento, ocorre “no interior da imagem” e que ela, imagem, é o próprio acontecimento:
“um acontecimento único, (...) e que a torna única: reprodutível, insubstituível e aleatória”
(Ibidem, grifos meus). A idéia nos parece paradoxal, na medida em que observamos que o
que a torna única é justamente o fato de ela ser reprodutível. Como algo que se reproduz
incessantemente por ser único?
A imagem seria uma porta (ou uma ponte) para outras imagens, uma espécie de
trajeto a ser percorrido por aquele que olha. A ela cabe suscitar um acontecimento que
transmita e magnifique o outro, que se combine com ele e produza, para todos aqueles que
vierem a olhá-lo e para cada olhar singular pousado sobre ele, uma série ilimitada de novas
passagens” (FOUCAULT, 2001b, p. 352). E é que se encontra uma idéia notável: nesse
sistema de “relançamento de imagem, imagem que relança a outras imagens, o
acontecimento não seria um lugar mesmo de encontro, de um ponto de concentração, mas,
antes disso, o espaço de sua “dispersão” (Ibidem, p. 353). Mais uma vez, Foucault reitera: a
imagem não diz respeito ao que é da ordem da representação. Ela não representa a casa, o
parque, a criança: ela é a casa, o parque, a criança e, desse espaço, será lançada alhures. Como
no “sentido obtusodo qual nos fala Barthes e que será objeto de discussão a seguir –, não
se trata de uma paródia, de uma mera expressão da coisa representada: o acontecimento se dá
porque, no espaço deixado pela representação, a coisa é a imagem, a imagem é a coisa.
Nessa direção, Alain Badiou introduz uma outra problemática, em relação ao cinema
especificamente, ao dizer que este é, “ao mesmo tempo, a possibilidade de uma cópia da
realidade e a dimensão artificial dessa cópia. O que equivale a dizer que o cinema é um
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paradoxo, que gira em torno da questão das relações entre o ‘ser’ e o aparecer’. É uma arte
ontológica” (BADIOU, 2004, p. 28, trad. minha). Ou seja, o cinema não seria nem a cópia,
nem sua distorção, mas o espaço entre uma e outra e entre as relações estabelecidas a partir
daí.
Badiou enfatiza, ainda, o fato de o cinema se constituir como uma “arte de massas”.
Uma primeira definição bastante objetiva do que significa, para o autor, dizer que o cinema é
uma “arte de massas” reside na idéia de que as obras fílmicas são reconhecidas, vistas e
“amadas” (BADIOU, 2004, p. 29, trad. minha) por milhões de pessoas, no exato momento
de sua criação – o que o diferencia, portanto, de outras artes, que podem obter esses mesmos
efeitos, porém geralmente o são por um “efeito de passado” (Ibidem). Ou seja, outras obras
podem ser reconhecidas, vistas e amadas, mas isso acontece, muitas vezes, apenas depois de
um certo tempo de sua exposição junto ao público. Tomemos o exemplo de Chaplin, citado
por Badiou: em larga medida, com um alcance gigantesco (ainda mais se compararmos as
condições de distribuição dos filmes na época e atualmente), pode-se afirmar que seus filmes
obtiveram uma imediata compreensão”, pois eles diziam respeito à humanidade, e, mais do
que isso, diziam respeito à “humanidade mais além das diferenças” (Ibidem, trad. minha).
Afirmar que o cinema é uma “arte de massas” implica ainda supor uma relação
paradoxal, que acaba por colocar em jogo pares que por muito tempo se colocavam como
opostos uns aos outros: arte e “massas”, invenção e reconhecimento, novidade e gosto geral
(BADIOU, 2004, p. 30). O cinema, assim, acaba por oscilar ou por percorrer, muitas vezes
de forma tênue, as margens da arte e da não-arte, ou seja, oscilar entre o espaço do clichê e
da profunda criação. Ele se constitui como um espaço que “explora o limite da arte”, estando
sempre “a ponto de passar para o outro lado” (Ibidem, trad. minha).
É claro que Badiou não trata de uma valorização excessiva da arte e de uma atitude
discriminatória em relação à não-arte, uma vez que mesmo nas imagens mais banais pode
haver a possibilidade de criação do novo. Como ele mesmo afirma, o importante é saber o
que o cinema traz de novo, se trate de uma arte ou não” (2004, p. 47, trad. minha). Nesse
sentido, e retomamos uma outra definição sobre o que faz o cinema ser uma “arte de
massas”, é que ele partilha com essas (“massas”) um imaginário comum e é desse ponto que
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algo novo pode irromper. Assim, em qualquer filme, mesmo naqueles que se dizem “obras de
arte”, podemos dizer que encontramos imagens “banais, material vulgar, estereótipos,
imagens já vistas em outra parte, coisas carentes de interesse” (BADIOU, 2004, p. 33, trad.
minha). Longe de reduzir esses elementos a categorias de “semelhança” ou de “pobreza”,
interessa ver justamente como reside aí a possibilidade de uma “compreensão universal”
(Ibidem).
Dessa forma, isso nos impede de reduzir a discussão à busca de mostrar uma verdade
que, por sua vez, estaria contida na imagem, ou seja, como se as imagens a serem analisadas
pudessem trazer, mostrar, capturar e, portanto, “provar”, peremptoriamente, no caso desta
pesquisa, a existência de uma noção de criança específica. Creio, ao contrário, que a leitura
dessas imagens jamais pode se dar de maneira imediata ou mesmo linear, já que “ela resulta de
um processo onde intervêm o as mediações que estão na esfera do olhar que produz a
imagem, mas também aquelas [imagens] presentes na esfera do olhar que as recebe”
(XAVIER, 1998, p. 369). Nesse caso, não estamos falando somente de uma questão de
“recepção”, mas da característica fundamental que sustenta o próprio conceito de cinema: a
de ele estabelecer relações entre imagens e movimento, entre imagem e tempo; por isso,
trata-se de uma característica relacionada à produção de ligações que o cinema força a s,
espectadores, a estabelecer, já que elas não estão ali e nem são dadas na tela (Ibidem).
Embora sejamos privados da feitura ou mesmo da tarefa de composição das imagens –
portanto, privados do “privilégio da escolha” (Ibidem, p. 370) deste ou daquele ângulo, desta
ou daquela profundidade, desta ou daquela distância –, o cinema nos garante o exercício de
uma dedução em relação àquilo que a montagem
25
apenas sugere (Ibidem). Isso significa dar
conta de especificidades outras que não dizem respeito somente ao que a imagem dá a ver; ou
seja, importa mergulhar na imensidão da imagem (e, portanto, compreender essa “abertura”
como componente criador e não como falha na busca de uma verdade, de um sentido, neste
caso, de uma criança não concreta), mas igualmente de seus limites.
A abertura à qual nos referimos diz respeito ao vazio, às fendas”, deixados pela
montagem, como foi dito, mas também diz respeito aos jogos entre “verdade” e “mentira”,
25
De acordo com Bazin (1991), montagem é “a criação de um sentido que as imagens não contêm
objetivamente e que procede unicamente de suas relações” (p. 68).
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“real” e “ficção”, bem como aqueles introduzidos por problemáticas acerca do ser e do
parecer, próprios não apenas da imagem cinematográfica. Ultrapassando quaisquer dessas
dimensões, o cinema atua como linguagem criadora. “A partir de imagens de esquinas,
fachadas e avenidas, o cinema cria uma nova geografia; com fragmentos de diferentes corpos,
um novo corpo; com segmentos de ações e reações, um fato que só existe na tela” (Ibidem, p.
369).
Esta afirmação de Ismail Xavier está profundamente ligada com as afirmações que
Foucault faz sobre imagem e, da mesma forma, com o objeto desta pesquisa, na medida em
que podemos afirmar que, a partir das múltiplas imagens de crianças (seja na sua mais prosaica
imprevisibilidade que, por vezes, nos faz rir, ou em sua dor pungente, que tanto nos
sensibiliza; nos diálogos mais surpreendentes ou no seu silêncio, em muitos momentos,
ameaçador) o cinema, sim, cria uma nova criança. O cinema não representa, não traz a
criança de um exterior para seu interior: ele, antes, a produz.
Isso fica mais claro na medida em que pensamos no próprio conceito de imagem
exposto por André Bazin. Para ele, imagem é “tudo aquilo que a representação na tela pode
acrescentar à coisa representada” (1991, p. 67, grifo meu). Em que pesem todas as discussões e
críticas acerca do conceito de representação que até aqui vimos fazendo (embora, como se
pode perceber, o autor não afirme que imagem é representação), saliento o apanágio criador
da imagem cinematográfica, que não mostra, não apresenta, não narra ou simplesmente
afirma, mas, acima de tudo, inventa, vai além do dado (e, portanto, faz dele outra coisa).
Nada oculto a ser decifrado linearmente (“essa imagem significa isso”), nada por trás dos
pontos luminosos: as imagens “valem como efeitos-superfície, imagem remetendo a (sic)
imagem” (XAVIER, 1988, p. 378, grifos meus) e não a um sentido, a uma significação para
além de si mesma. E aqui, claro, não se trata de buscar estabelecer correspondências entre as
crianças da tela e a “criança ordinária”, nem verificar se as situações a que elas são expostas (e
se expõem) são factíveis ou improváveis, pois isso significaria “romper um pacto” (Ibidem)
que estabelecemos quando assistimos a um filme.
Creio que seria importante trazer para esta discussão a clássica definição de Rolland
Barthes sobre o “sentido óbvio” e o “sentido obtuso” das imagens. Não cabe realizar nenhuma
151
explanação exaustiva da semiologia do autor francês o que, penso, foi feito inúmeras
vezes em outros trabalhos. Seleciono para a discussão apenas aquilo que converge para as
discussões que até então venho fazendo. Nesse sentido, trago as análises cinematográficas de
Barthes sobre os fotogramas de Eisenstein, especialmente dos filmes Ivan, o Terrível e O
Encouraçado Potemkin. A partir dessas análises, Barthes traça o que seriam os três níveis do
sentido da imagem: um primeiro nível chamado informativo (que concentra as informações
básicas acerca dos elementos da imagem; no caso de um filme, diz respeito ao cenário,
figurino, personagens em relação à trama, etc.), chamado de nível da comunicação”. O
segundo nível, simbólico, que seria o sentido óbvio; e o terceiro, errático, denominado
sentido obtuso. É sobre esses dois últimos sentidos que tratarei a seguir.
Nas análises dos fotogramas feitas por Barthes, o sentido óbvio diz respeito àquilo que
um primeiro olhar pode apreender sobre a imagem, no caso, seu sentido mais imediato, “o
volume dos corpos” do qual falava Didi-Huberman (1998). Mais do que isso, beirando o
limite do lugar-comum da imagem, o sentido óbvio age como elemento que, ao invés de
atenuar o sentido das imagens, o enfatiza (Ibidem, p. 49). O sentido óbvio é, portanto,
aquele “que me procura”, “que vem à frente”, “que vem ao meu encontro” (Ibidem, p. 50).
No entanto, não é esse o ponto central da discussão de Barthes. Não é o sentido óbvio
dos fotogramas fílmicos que lhe interessa e não é esse o ponto de seu interesse na análise da
imagem, pois, paradoxalmente, permanecendo nesse sentido, não nos desprendemos dela
(BARTHES, 1990). Não se pode dizer com isso que o sentido “obtuso” seja algo oculto, algo
que estaria dissimulado, à espera da luminosidade do analista. Pelo contrário, o sentido
obtuso tem, pois, pouco a ver com o disfarce” (Ibidem, p. 51). As imagens (ou o sentido
obtuso que as constitui) não dizem respeito a algo que lhes é transcendente, mas a suas
dimensões internas, a “lâminas sobrepostas de sentido”: imagem em si e não como suporte
referencial.
O sentido obtuso, também ele escapa à representação: ele não copia nada; ele,
inclusive, está “fora da linguagem” por isso, sua dificuldade de descrição e mesmo de
captura, visto que ele “parece desdobrar suas asas fora da cultura, do saber, da informação”
152
(BARTHES, 1990, p. 47-48). O sentido obtuso de uma imagem é pura e propriamente
imagem, e Barthes nos diz que isso é “muito pouca coisa” (Ibidem, p. 55).
Podemos dizer ainda que o sentido obtuso joga com aspectos os quais não podemos
nos furtar de considerar nem menosprezar quando tratamos de imagens cinematográficas. O
obtuso é saturado de elementos plásticos o que não é a mesma coisa que dizer que ele
carrega padrões estéticos. Nesse sentido, afirma Barthes, a beleza pode, sem dúvida,
interferir como um sentido obtuso” (1990, p. 52). Mas não se trata da beleza como um valor.
Poderíamos sugerir que não se perguntaria às imagens “obtusas” “que é o belo?”, mas “o que é
belo?”. Ao se adotar a primeira interrogação, somos levados a crer que as coisas em si são
belas “por natureza”, acreditamos que elas já aparecem como belas. Nesse pensamento, o belo
seria um fim em si mesmo, algo a corrigir se uma coisa não aparece como bela. Ao contrário,
se perguntarmos a elas “o que é belo?”, fazemos da “coisa” algo que é sempre o resultado
provisório, por vezes frágil, de um perspectivismo fato que, portanto, supõe uma
pluralidade e não uma verdade.
O que interessa em relação a esses apontamentos de Barthes, feitos sobre o sentido
obtuso das imagens, é sabermos se, afinal, não é disso que estamos tratando ao falarmos da
criança como arte. Não seria ela algo que passa, que corre entre ou em direção a um sentido
obtuso das imagens cinematográficas? que distanciada da representação, descontínua,
perturbadora, de modo recalcitrante, algo que não está na língua, não seria daí que a criança
singular irrompe? Por outro lado, poderíamos dizer que o importante não seria afirmar
categoricamente se é ou se é não um sentido obtuso que preenche as imagens da criança, mas
que pode ser pertinente não perdermos de vista os elementos que introduzidos por Barthes
nessa discussão sobre a imagem e sobre o “mais” que lhes avulta.
Para Deleuze, o cinema não convoca um mundo-imagem frente ao olhar de um
sujeito-espectador. A particularidade do cinema é, ao contrário, produzir imagens
irredutíveis ao modelo de uma percepção subjetiva. O projeto de Deleuze, nos estudos que
desenvolveu sobre esse campo, é o de libertar uma “essência” do cinema, de descrever aquilo
que lhe pertence como coisa particular, de analisar como e segundo quais modos singulares o
cinema pensa diretamente sobre as imagens.
153
Profundamente inspirado por Henri Bergson, Deleuze afirma que “as coisas mesmas
são imagens” (1992, p. 57), que elas não são algo que está na nossa cabeça, no nosso cérebro
o próprio cérebro é, pois, uma imagem dentre outras tantas. O ato de ver aqui é fraturado
no momento em que o autor garante, de certa maneira, que ouvir também tem o poder de
capturar imagens. “Imagens sonoras”, portanto, impregnadas de palavras de ordem (ou de
idéias que agem como), que possuem a habilidade de dizer o que deve nos interessar.
Invariavelmente, somos tomados numa cadeia de imagens, cada uma no seu lugar, cada uma
sendo ela mesma imagem; mas também somos tomados numa trama de idéias, que agem
como palavras de ordem” (DELEUZE, 1992, p. 58).
O que importa aqui é problematizar a “rapidez” com a qual as imagens podem ser
povoadas de sentidos pré-determinados. Subverter a imagem, chocar-se com ela é disputar
esse campo instável, sempre prestes a ser tomado por palavras de ordem, que buscam
apreendê-la. Ou talvez se trate de um movimento duplo, onde, resistente e perspicaz, é ela (a
imagem) que vem chocar-se com as palavras de ordem que lhe são dirigidas e, nesse caso,
provavelmente estejamos lidando com imagem-arte. Assim, perguntamos, no que diz
respeito a esta pesquisa e aos objetivos aqui propostos: não seriam as imagens-arte da criança
aquelas que lutariam contra as palavras de ordem, contra dados imediatos de uma vontade de
verdade que a cerca?
Apoiando-se em Bergson, especialmente, nos conceitos desenvolvidos em Matéria e
Memória, Deleuze afirma, de modo aparentemente simples, que a imagem “é aquilo que
aparece” (DELEUZE, 1981, p. 2), sendo que “aquilo que aparece” o faz na qualidade de
movimento, em movimento: daí a expressão bergsoniana por excelência de “imagem-
movimento”. Nesse sentido, pode-se dizer que não existe nenhuma dualidade entre imagem e
movimento: é em si mesma que a imagem é movimento e é em si mesmo que o movimento é
imagem. Mais do que isso, “não existem senão imagens-movimento” (DELEUZE, 1981, p. 4,
trad. minha). Ao afirmar isso, ingressamos num universo no interior do qual tudo é imagem-
movimento. Nele, a imagem age sobre outras imagens ao mesmo tempo em que estas reagem
à ação da primeira (não num sentido cronológico). Não se trata, contudo, de compreender a
imagem como mero esteio ou veículo da ação e reação das imagens: as próprias imagens e
154
todas as suas partes são ação e reação. Por isso se diz das imagens que elas são “abalo,
vibração” (DELEUZE, 1981, p. 4, trad. minha), porque apenas imagens em constante
variação, umas em relação às outras.
Para Deleuze, o “elemento genético” da imagem seriam, a um tempo, suas partes
constituintes e integrais. De modo ontológico, a imagem deleuzeana é imagem-movimento
(1981, p. 5). Antes de dizer respeito a um signo, a um referente, a imagem é movimento.
Não se trata somente de analisar, então, as relações que as imagens estabelecem entre si, mas,
igualmente, as não-relações, as disjunções de seu conjunto. Trata-se de apostar menos em
torno de uma significação da imagem, menos na descrição de seus signos e mais (ou
integralmente) no potencial do cinema como um pensamento não-representacional (Idem,
1985).
Por outro lado, Deleuze sublinha que a imagem-movimento, por sua vez, nos uma
noção indireta do tempo. Ou seja, na imagem-movimento, o tempo é subordinado ao
movimento, remontado à forma passado-presente-futuro. Característica do cinema moderno,
“a imagem-tempo não implica a ausência de movimento (...), mas implica a reversão da
subordinação; não é o tempo que está subordinado ao movimento, é o movimento que se
subordina ao tempo” (DELEUZE, 1990, p. 322). Na imagem-tempo não uma cronologia
linear, tudo ocorre no interior da simultaneidade de um mesmo tempo: é o tempo em sua
forma pura. É em função disso que a imagem-tempo é aquela que diz respeito mais
diretamente ao acontecimento.
A distinção realizada por Deleuze entre imagem-movimento e imagem-tempo não
remete a uma história ou mesmo a uma espécie de evolução do cinema. A intenção é realizar
uma taxionomia, um trabalho minucioso de classificação das imagens cinematográficas
(DELEUZE, 1985). Não qualquer primazia de uma imagem sobre a outra e nem
desaparição de uma quando do surgimento da outra. O que Deleuze faz é buscar no cinema
problemas que a filosofia (lhe) colocava (no caso, em relação, especialmente, ao tempo, ao
movimento e ao pensamento). Assim, podemos dizer que
A relação passa a ser entre as imagens e não mais entre a imagem e o
movimento, entre imagem e o tempo. Tempo e movimento não se
155
constituem mais como dimensões suplementares, no interior das quais
seriam estabelecidas relações de dependência, de subordinação ou de
dedução. A relação aqui é de equivalência, de relação, que não remetem
senão a si próprias: “automovimento” e “autotemporalização” da imagem
(DELEUZE, 1992, p. 76).
Ora, por que estas discussões nos interessam aqui? Porque se trata de compreender o
universo das imagens-movimento e das imagens-tempo como um universo que se caracteriza
pela ausência de finalidade ele se produz, ele “aparece” sem causa ou objetivos pré-
estabelecidos. A imagem não contém nada além e nada aquém daquilo que ela nos dá: por isso
a necessidade de nos determos na distinção entre os tipos de imagem e no exame acerca das
leis que orientam as relações de ação e reação no interior desse universo (DELEUZE, 1981).
Ou seja, o que importa é compreender que a imagem é, ao mesmo tempo, “material e
dinâmica” (Ibidem, p. 4).
Ao descrever, então, a “imagem-movimento”, Deleuze afirma que é próprio desse
conceito cinematográfico “extrair dos veículos ou dos móveis o movimento que é sua
substância comum, ou extrair dos movimentos a mobilidade que é a sua essência”
(DELEUZE, 1985, p. 36). Baseado nisso, um dos objetivos deste trabalho foi o de extrair da
imagem a singularidade da criança. Se, no caso do cinema, vinculamos o movimento a uma
coisa ou a um veículo (como citado por Deleuze), num sentido mais amplo, vinculamos a
infância ao sujeito criança, como sujeito empírico. É importante pensarmos em extrair, seja
do movimento da imagem cinematográfica, seja dos “corpos-infantis”, a “mancha colorida”
que, no primeiro caso, é a imagem-movimento e, no segundo caso, a criança (tal como vimos
discutindo até aqui, ou seja, ligada à idéia de uma vontade afirmativa de potência).
Ainda assim, essa discussão acerca das imagens-tempo e das imagens-movimento nos
interessa de modo especial, na medida em que Deleuze afirma que esses tipos de imagens não
pré-existem. Ao contrário, “eles têm de ser criados” (DELEUZE, 1992, p. 65) (e, mesmo
assim, uma vez criados eles têm de ser continuamente recriados) não há, pois, nada que
remeta a alguma noção de imagem-original. Em certa medida, um trabalho que pesquise
sobre as imagens ou sobre os diferentes tipos de imagem, criadas por cineastas singulares
pode convergir diretamente para essa discussão. Assim, tal pesquisa teria como suas
156
perguntas: de que materialidades são compostas as imagens da criança para certos diretores?
A que dinâmicas de ação e reação elas respondem?
Podemos dizer, ainda, que o objetivo desta pesquisa não convergiu (e não converge)
para uma mera tarefa de descrição dos filmes a partir do conceito de criança. Na medida em
que entendo que os conceitos com os quais trabalho fundamentalmente (criança e imagem)
não estão dados, o trabalho aqui foi (e será), justamente, o de desenvolvê-los.
Metodologicamente, isso significa produzir esses conceitos mesmos, que não pré-existem à
análise (ao contrário, eles foram e são tecidos no cotejo entre essa e as discussões mais amplas
que já fiz e aquelas que se seguem).
A criança, por certo, pode cumprir funções diferenciadas na relação que estabelecem
com as imagens: função de consenso por um lado, função estética por outro. Função
estética” é entendida como aquilo que diz respeito à qualidade da imagem de ser precária,
mas isolável em certos casos e certas condições; um pouco de arte e pensamento”
(DELEUZE, 1992, p. 94-95). Alguns diretores fazem com que o cinema assuma a criança
como um problema seu, e não como algo que lhe vem do exterior cumprindo, assim, com
uma função estética. O cinema, nas mãos desses diretores, se choca com a criança, não
simplesmente a acolhe, faz dela algo seu e não apenas a toma emprestado para depois
devolver. Trata-se, portanto, de uma função estética, no sentido de que apresenta uma
espécie de “suplemento” (Ibidem), paradoxalmente, que se mostra em defasagem em relação
àquilo que não está previsto pela ordem do consenso.
Nesse sentido, enfatizo a pergunta acerca dos componentes do conceito de criança
aqui em jogo. Obviamente, não busquei encontrar nas imagens fílmicas um conceito pré-
formado”, pré-concebido de criança (até mesmo porque não busquei responder,
efetivamente, a “o que é uma criança”). Pelo contrário, entendo que “o encontro do conceito
com a imagem impõe ao conceito sucessivas modulações, ou especificações” (DIAS, 1995, p.
28). Ou seja, no encontro com a imagem, a criança transforma-se. Por mais que o conjunto
de discussões feitas até aqui apresentem alguns elementos que vêm a compor a noção de
criança, ela mesma sofre alterações quando do seu encontro com as imagens do cinema.
Melhor dizendo, o próprio conceito de criança está sendo constantemente tensionado, pois é
157
impossível negligenciar a idéia de que a criança se reinventa (e é reinventada) na imagem do
cinema.
Metodologicamente, trata-se de distinguir ou talvez de refutar, a partir de uma
estética cinematográfica, “os pontos de vista que nos mostram uma realidade plana e sem
perfis; as perspectivas dogmáticas que nos dão a realidade completamente esclarecida, sem
contradição e sem mistério; as visões supostamente ‘desinteressadas’ que nos dão uma
realidade sem paixão, sem orientação” (LARROSA, 2002, p. 31). Trata-se de ver, de analisar
e mesmo de buscar caracterizar a força do que a imagem expressa.
Pretendi que, nesta pesquisa, a análise dos materiais privilegiasse, em relação à
combinação entre imagem e criança, justamente aquilo que não é apreendido ou que não
pode ser lido numa percepção imediata. Ou seja, tratou-se (e trata-se) do investimento sobre
os pequenos momentos em que a imagem da criança deixa de falar por si mesma. Penso que,
quando pudermos deslocar da imagem da criança aquilo que uma vontade de verdade criou
para ela, talvez o que reste, o que sobre, ou mesmo o vazio e o silêncio que ali se instaurem
seja exatamente o que desprenda a criança de sua infância. É nesse espaço, onde a criança
deixa de ser o que é para quem sabe devir, que este trabalho se movimenta.
Trata-se de pensar, como nos sugere Foucault, no “silêncio das imagens” (1997, p.
27); ou de adentrar no vazio que delas irrompe. Trata-se de pensar, ainda, como dois
elementos (por um lado imagem da criança e, por outro, sons de uma infância) podem
constituir nesses filmes que selecionei, uma não-relação, num sentido muito específico. Ao
firmarem essa paradoxal relação, os dois elementos acabam por não propor, em sua
associação, um todo (o que, concluo, acaba por afastá-los de noções fechadas ou ligadas a um
representacionismo), uma vez que o “vazio [é] o único fator de ligação entre eles” (LEVY,
2003, p. 74).
Nesse caso, vazio não é entendido como “nada”, como qualidade primeva de ausência
ou como propriedade daquilo que é vão; vazio é entendido como “despojamento dos hábitos e
dos rituais da existência”, como aquilo que é “desnudado dos modos habituais de significação
de experiência” (LARROSA, 1998, p. 71). Em suma, como espaço que “não é povoado pelos
hábitos da história pessoal ou coletiva” (Ibidem). Mais uma vez, a questão aqui colocada está
158
distante de uma idéia de criança que remeta a um centro subjetivo, mas somente àquilo que é
possível eclodir de sua total dispersão: a “plena possibilidade, a possibilidade absoluta”
(Ibidem).
159
3.1 Real versus ficção:
criança e imagem no limite dos regimes de veracidade do cinema-documentário
O gênero documentário talvez seja o tipo de produção fílmica que coloca em jogo de
forma mais pontual a dualidade entre “real” e “ficção”. De certa forma, ele tensiona o próprio
conceito de ficção (justamente por afirmar-se como seu oposto), da mesma maneira que a
fotografia viria a fazer em relação à pintura em meados do séc. XIX. Ou talvez possa se dizer
que ele revigora, pelo menos entre o senso comum e por outros modos, caminhos
anteriormente percorridos quando da invenção do cinematógrafo e dos múltiplos
entendimentos, em termos de linguagem, acerca do cinema como “testemunha do mundo”.
O “cinema do real” encontra-se predominantemente assimilado a uma idéia geral de
produção de imagens mais “puras”, que atuariam como uma espécie de reflexo fiel do mundo
(o mundo, digamos, “tal como ele é”). Ainda assim, as imagens criadas na rede narrativa do
documentário funcionariam como testemunhas de uma realidade que, a princípio, lhe seria
preexistente. A câmera testemunhal, “objetiva”, no lugar de uma câmera intencional e
autoral, imagens que “falam por si mesmas”, no lugar de um ponto de vista construído,
pensado, organizado em torno de fatos, pessoas e coisas (MAIXENT, 2003, p. 165, trad.
minha).
Nesta seção, meu objetivo é discutir as questões que tangenciam a organização
imagética do gênero documentário a partir de dois materiais: Promessas de um Novo Mundo
(2001), de Justine Shapiro e B. Z. Goldberg e Nascidos em Bordéis (2004), de Ross Kauffman e
Zana Briski. Num primeiro momento, apresento alguns elementos da constituição desta
linguagem específica, bem como algumas das alterações que foram e vêm sendo feitas no
âmbito deste gênero fílmico. Em seguida, analiso esses filmes e a forma como nos são dadas as
relações de veracidade a partir das imagens e da construção das narrativas. Paralelamente a
isso, e por acreditar que tais materiais nos oferecem mais do que o jogo real versus ficção,
discuto sobre imagens que nos fazem pensar justamente porque colocam, lado a lado,
160
crianças, abandono, miséria e morte. Trata-se de vidas, de histórias que certamente estariam
destinadas a ser esquecidas e apagadas, mas que, alçadas pela câmera cinematográfica, nos
convidam a ver que há ali mais do que isso, há ali dignidade e arte.
Cinema-documentário e os regimes de veracidade da imagem
Dziga Vertov foi um dos primeiros cineastas a sistematizar acerca da capacidade da
câmera cinematográfica como instrumento de captura do “real”. Vertov acreditava na
capacidade da câmera como elemento de ultrapassagem do olho humano (este sempre
carregado de intenções); mais do que isso, ele punha olho humano em oposição ao cine-olho.
Este último, mais aperfeiçoado que o primeiro, sem suas intenções subjetivas, teria como
captar tudo aquilo que podia servir para descobrir e mostrar a verdade(VERTOV, 2003, p.
262-263, grifos do autor).
Por mais que a idéia pareça hoje ultrapassada no âmbito do cinema, ela reincide na
crença de que a imagem seria uma espécie de superfície lisa, uniforme e, ao mesmo tempo,
opaca e, em certa medida, misteriosa, na qual a câmera e o olhar testemunhal do cineasta
viriam a atingir (ou pelo menos a buscar) uma luminosidade ascendente. Trata-se de uma
espécie de crença absoluta, do convite à adesão a uma imagem em seu “estado bruto”, como
se fosse possível estabelecer d uma “religião”, uma relação de fé: a coisa na imagem e,
conseqüentemente, na condição de imagem, a coisa falaria de si mesma. Ora, as crenças e
afirmativas mais comuns acerca da produção do documentário reiteram em grande parte essas
assertivas semelhante àquelas que, mais tarde, viriam a operar na também religiosa adesão
ao “eu vi no telejornal” e àquela a que somos convidados, por exemplo, pelas imagens “ao
vivo” na televisão.
O documentário como tal tem sua história exatamente em meio às novas
possibilidades oferecidas pela câmera. Isso implica em afirmar que o documentário não teve
suas origens anos depois da invenção do cinematógrafo, anos depois do surgimento de filmes
tidos como “ficcionais”. O documentário nasce, ele mesmo, com o cinema, junto ao cinema:
161
Saída dos Trabalhadores das Fábricas Lumière ou A Chegada do Trem na Estação os primeiros
filmes dos irmãos Lumière estão muito próximos do valor documental das imagens; muito
próximos, portanto, deste gênero a que chamamos documentário. Porém, o investimento
nesta capacidade inicial de “reprodução do real” e a exploração de uma linguagem específica
(aliadas a uma habilidade comercial que lhe deram bases institucionais) fizeram com que, em
meados dos anos 20, o documentário, enfim, se diferenciasse de outros gêneros e assumisse
estatuto próprio.
O “pai do documentário”, Robert Flaherty, introduz nesse período a prática do
documentário “encenado”. No célebre Nanook, o Esquimó (1922), o cineasta filma a vida de um
esquimó inuit Nanook no interior da Alaska. Cenas que aparentemente se davam dentro
de um iglu, eram de fato filmadas ao ar livre para que fosse possível uma melhor captação de
luz; cenas triviais do dia-a-dia esquimó, que iam desde a preparação dos alimentos, aos
momentos de refeição propriamente ditos e mesmo situações de caça, eram reconstituídas (e
muitas vezes inventadas, como a captura de um lobo marinho algo que Nanook nunca havia
feito). Tais cenas não tinham como objetivo ser o resultado direto de um acompanhamento
rigoroso do cotidiano o que hoje torna-se marca nesse tipo de produção. As imagens do
dito “real” de Flaherty eram uma “encenação” dos hábitos e não sua imediata efetivação
“original” frente à câmera e, em função disso, avaliadas por alguns como métodos
‘inescrupulosos’” (DI TELLA, 2005, p. 73).
A idéia da câmera como uma “mosquinha na parede”, que captava imagens e registrava
fatos como se não estivesse ali, ganhou primazia com o documentário moderno. Essa
modalidade de organização documental teve seu início na década de 60, no âmbito
americano, em meio à ilusão da possibilidade de se fundar um “cinema direto”, baseado numa
intervenção mínima do diretor e na reprodução da “realidade tal como ela é” (Ibidem, p. 73).
Tal crença tornou-se possível, sobretudo, com o advento da tecnologia da fabricação de
equipamentos de captação de imagens e sons: câmeras portáteis, mais leves, e que eram
capazes também de capturar as imagens sincronicamente aos sons tornaram a filmagem, de
certa forma, mais independente de todo o aparato cinematográfico das grandes produções.
162
Nesse mesmo período, fervilhava na França o cinéma veri, que tinha como pioneiro o
etnógrafo Jean Rouch. Diferente das concepções mais objetivas da produção do documentário
(formuladas pela noção americana de “cinema direto”), o cinéma verité não partia de um
princípio de invisibilidade ou indiferença frente à câmera (seja por parte do documentarista,
seja por parte dos personagens que ele convoca). Para Rouch, o documentário não revelaria a
realidade stricto senso, mas “a realidade de um tipo de jogo que se produz entre as pessoas que
estão à frente e atrás da câmera” (DI TELLA, 2005, p. 76).
Obviamente que, por mais que algumas dessas idéias persistam, elas vêm sendo
constantemente questionadas no interior de discussões, digamos, teóricas” que são feitas no
domínio do campo do cinema documentário. Como diz Rabiger (2005, p. 62), “acredito que
todas as histórias – ficcionais ou de documentários – envolvem um drama”. Isso implica supor
que o documentário, como qualquer outra narrativa, gira em torno dos ingredientes clássicos
da dramaturgia: “os personagens, suas necessidades, o que estão tentando fazer ou conseguir,
o que os está impedindo, como eles lutam para obter ou fazer, como suas listas são resolvidas,
e quem cresce em conseqüência disso” (Ibidem).
Sabe-se que entre a câmera e as pessoas entrevistadas num documentário ou entre a
câmera e o cineasta que a conduz “sempre atuações” (DI TELLA, 2005, p. 72). Entre a
câmera e o entrevistado um paradoxo que envolve a mais óbvia atuação (dos gestos, das
falas pensadas, devidamente articuladas), mas também o espaço de novidade que, sem a
filmagem, dificilmente seria produzido. “A consciência de que estamos filmando gera no
sujeito uma entrega de si dificilmente possível sem o compromisso com o ato documental”
(Ibidem, p. 73). Entre a câmera e o cineasta, a atuação se dá, por exemplo, no nível da
provocação para obter certas respostas e certos efeitos dos personagens-entrevistados (como
na proposição de perguntas cujas respostas seriam de seu conhecimento, mas que, para
efeito de imagem, teriam de ser ditas como se o fossem pela primeira vez) (Ibidem).
O que os documentários colocam em jogo é a “verdade” e o “real”, um real que,
entendo aqui, existe não diretamente na imagem, mas na relação que estabelecemos com ela
(o que significa apostar naquilo a que somos por ela convocados) e que, a nossos olhos, se faz
verdadeira e fruto da realidade. Assim, minha intenção neste texto é fazer jus àquilo que tão
163
claramente nos escreve Ismail Xavier, ao dizer que “toda leitura de imagem é produção de um
ponto de vista: o do sujeito observador, não o da ‘objetividade’ da imagem” (XAVIER, 1988,
p. 379). O real da imagem está ligado às formas de sua construção e, sobretudo, às formas
por meio das quais damos sentido e valor a ela.
Dos regimes de credibilidade do cinema-documentário em Nascidos em Bordéis e
Promessas de um Novo Mundo
Um grupo de sete crianças (árabes e judias) prestam depoimentos sobre a guerra da
qual também fazem parte. A quem pertence o território de Israel? O que sentem ao verem
amigos e familiares perderem suas casas e mesmo suas vidas? As respostas a estas questões são
acompanhadas, paralelamente, pela tentativa de um encontro entre ambas que, por mais
que vivam a 15 minutos umas das outras, encontram-se distantes, espremidas entre o rancor
de um conflito que dura mais de 50 anos e a prolixidade dos discursos de paz que
invariavelmente também as atingem. Por outro lado, no Distrito da Luz Vermelha, em
Calcutá, acompanhamos o cotidiano de meninos e meninas filhos de prostitutas que, desde
cedo, convivem com a miséria, com a pobreza e com a condição de serem cidadãos de
segunda classe. Ao mesmo tempo, convidados por uma fotógrafa, eles têm aulas de
fotografia, manuseiam câmeras, registram seu cotidiano e cedem um outro olhar para aquilo a
que vêem todos os dias. A partir dos filmes Promessas de um Novo Mundo e Nascidos em Bordéis,
gostaria de discutir a presença de um conjunto de elementos que participam da construção
deste “real” de que falei anteriormente ou, mais diretamente, de como se estabelecem aqui os
regimes de veracidade ou de credibilidade da imagem documental.
Inicialmente, poderíamos até destacar alguns elementos que repousariam numa
concepção mais clássica das características gerais do documentário: a ausência de atores,
ausência de cenários previamente organizados, presença de especialistas que outorgariam os
ditos, presença de imagens de um arquivo histórico, entre outras (NICHOLS, 2007).
Contudo, sabe-se que muitas destas características sofrem hoje um duplo movimento de
crítica e de relativização.
164
O surgimento de novos documentários e as invenções que são tramadas neste campo
vêm, nos últimos anos, a tornar senão inválida, pelo menos duvidosa a caracterização do
documentário por meio desse conjunto de elementos. Apenas para citar um exemplo, o
documentário lançando recentemente por Eduardo Coutinho, Jogo de Cena (2007), nos coloca
à prova tanto a representação de atrizes e não-atrizes, como a veracidade de depoimentos e
histórias pessoais. Convidadas por um anúncio de jornal publicado pelo diretor (seqüência
inicial do filme), mulheres anônimas são colocadas lado a lado de atrizes como Marília Pêra,
Andréa Beltrão e Fernanda Torres (entre outras atrizes, para o público geral, desconhecidas).
Cada uma das mulheres (personagens?) conta histórias pessoais, ou continua contando uma
história da personagem mostrada anteriormente, a ponto de não sabermos mais se são as
atrizes que interpretam as histórias das anônimas ou se são as anônimas que interpretam as
histórias das atrizes.
O que vemos com isso é que
A credibilidade de uma imagem, de uma situação, de um momento do
cinema, não tem nada a ver com os gêneros codificados da ficção ou do
documentário. A ficção pode produzir o verdadeiro e o documentário o
falso. O que mais vale é o regime de credibilidade organizado por este ou
aquele filme do que o pertencimento deste a este ou aquele gênero
(MAIXENT, 2003, p. 168, grifos meus, trad. minha).
O que podemos, no entanto, é examinar que outras formas de veracidade são
estabelecidas por esses materiais. Ou, usando as palavras do autor, perguntar sobre os
“regimes de credibilidade” elaborados pelos filmes, lembrando que, para tanto, sempre,
entre nós e a imagem, um apelo à participação, um jogo que só se joga porque a relação entre
imagem e espectador jamais é unilateral. No caso dos documentários em questão (Nascidos em
Bordéis e Promessas de um Novo Mundo), esses regimes dizem respeito, especialmente, a três
movimentos: o encadeamento não sistemático, mas visível, entre causas e conseqüências dos
fatos; a utilização não de especialistas para conduzir a narrativa ou afirmar a veracidade dos
dados, mas de “gente como nós” e, por fim, o apelo a um elemento comovente, qual seja, a
relação criança versus futuro.
165
No que diz respeito ao primeiro aspecto, o que se entende por encadeamento de
causas e conseqüências? Tal encadeamento diz respeito à apresentação de conclusões que não
são dadas pelo comentário direto do cineasta, nem mesmo como resultado de entrevistas
entre os personagens, mas que, ao mesmo tempo, concorrem (talvez por afirmarem) com
aquelas que, de algum modo, temos antes mesmo de assistir às imagens. Por um lado, a
luta entre israelenses e árabes que não leva senão à desgraça e à tragédia de vidas,
acompanhada da exposição de sistemas religiosos e práticas conservadoras que contribuem
para a manutenção das posições e não para seu questionamento. Por outro, na Índia, o
descaso com as crianças, com um espaço geográfico instalado entre os becos e a prostituição,
o sistema cruel de uma burocracia desorganizada, que, entre outras coisas, não permite, por
exemplo, que uma criança aidética tenha a chance de se matricular numa escola (quando,
sabe-se, a Índia é um dos países mais assolados pela epidemia).
O que gostaria de trazer para o debate não é se tais conclusões são verdadeiras ou
mentirosas, nem mesmo apontar para uma suposta intencionalidade para que sejamos
apresentados (ou não) à opinião daqueles que produziram o material. O que interessa é
perceber de que maneira o documentário se organiza a partir de um encadeamento de
conclusões que não estão lá, dadas e localizadas nesta ou naquela seqüência. Ou seja, o que
digo aqui e que se torna visível pelo conjunto da narrativa não é fruto de um comentário
explícito, nem mesmo encontrado diretamente na imagem. Antes disso, trata-se de
estratégias, de um repertório de idéias que vão sendo estabelecidos também por nós,
espectadores, e que contribuem para a construção do verídico. O que importa, portanto, é a
nossa participação nesse processo. Ou, em outras palavras: como questionar a credibilidade
de algo que eu mesmo conduzo, porque solidário à sua constituição?
O segundo aspecto da composição do “real” dado pelas imagens dos filmes diz
respeito, nestes materiais, à apresentação dos fatos via pessoas como “nós”, mas com um
diferencial decisivo. Em ambos os documentários, o elemento condutor da narrativa o
narrador-diretor, presente seja na voz em off, seja no diálogo com os personagens que
compõem a trama são ao mesmo tempo “nós” e “eles”. Em que sentido? Eles são “nós”,
porque, de certa maneira, nos identificamos com aquelas pessoas que, num caso, saíram do
166
ambiente da guerra judaico-palestina, não moram mais ali, naquele espaço e muito menos são
vítimas diretas das conseqüências do conflito. No outro caso, a fotógrafa é aquela que,
americana, procura dar uma nova oportunidade de vida àquelas crianças, a partir da arte da
fotografia (que ensina a elas por meio de aulas não-sistemáticas), como também busca
avidamente que aquelas crianças possam ter acesso à escola. Eles são “nós” porque se
espantam com aquela realidade, não a aceitam e, cada um a seu modo, na distância que lhes
caracteriza, mostra as possibilidades e impossibilidades de reversão desse fato.
Contudo, tanto o documentarista quanto a diretora-fotógrafa são também “eles”: é o
judeu que teve sua infância em Jerusalém, que diz ter vivido uma infância “normal”
normal que, como explica, em se tratando de Oriente Médio, significava conviver com a
guerra; ou seja, o judeu que volta depois de anos para Israel e dali nos narra o conflito com a
ajuda das crianças. Como pertencente àquele universo, ele sabia que “as crianças tinham algo
a dizer, mas ninguém lhes perguntava o que pensavam do conflito ou dos processos de paz”.
De forma semelhante, a fotógrafa que não apenas aparece ali, no bairro de prostituição
indiana, para filmar; trata-se de uma voluntária que anos exerce um trabalho naquela
comunidade. De fato, ela se aproximou das mulheres, para conhecer e para fotografar a vida
delas, mas foram as crianças que a “apaixonaram”. “Eles” e “nós” conjugam-se em um
personagem (ou dois, um em cada documentário) e, conseqüentemente, organizam a junção
de duas estratégias que geralmente se encontram separadas no domínio do documentário: “eu
falo deles para vocês” e “eu falo – nós falamos – de nós para vocês”.
Por fim, o terceiro aspecto de organização da veracidade presente nos filmes diz
respeito à conclusão, que também não é dada imediatamente na tela, da crueldade de crianças
cujas possibilidades de ser algo diferente do que são lhe foram amputadas. Em troca, um
outro futuro, talvez pronto, talvez previsível e, por que não dizer?, chocante, lhes é dado.
Futuros que são expressos pelas palavras tão bem organizadas das crianças, idéias prontas,
extraídas de suas certezas a respeito de qual povo, afinal, pertence o território de Israel. Nas
palavras “maduras” das crianças, naqueles textos baseados na página exata do Alcorão, que diz
que o território pertence aos árabes, ou nas folhas da Torá, que afirma a posse por parte dos
judeus, vemos o futuro de uma guerra certa e de um ódio que se perpetua. Um futuro por
167
vezes descrito em seus mínimos detalhes, a ponto de se parecer mais com um mero conjunto
de compromissos dispostos numa agenda, talvez a serem cumpridos no dia seguinte: “Quando
eu for grande e for mãe, vou pôr a mesa. Vou cozinhar e ter convidados. Depois, vou
descansar. E depois acender as velas e ir até a sinagoga. E aí, a gente vai ter um jantar de Sabá,
uma aula de Torá. De manhã, vamos de novo para a sinagoga. E vou descansar com o meu
marido. Depois vou almoçar e passear com as minhas amigas. Vamos levar as crianças no
parquinho e sentar no banco. E quando o sol se pôr, voltamos para casa e comemos a terceira
refeição”. A menina judia diz essas frases de forma tão decidida, com a qual tenta, ao mesmo
tempo, separar duas cadeiras de plástico na cozinha de sua casa, ironicamente presas entre si.
Em Nascidos em Bordéis, a sina das mulheres à prostituição, as gerações compostas, muitas
vezes, por bisavós, avós, mães e filhas que nos são oferecidas ao olhar por imagens granuladas,
avermelhadas e desfocadas, tanto pela câmera do cineasta, como pelas fotos produzidas pelas
crianças. Vemos ali, nas meninas, a herança que as famílias podem lhes dar.
O que essas discussões nos mostram é o investimento na crença sobre aliança entre
criança e futuro. O que nos comove não é a reversão dessa crença, mas a aposta na
possibilidade de que o futuro seja outro, não tão duro e cruel. A narrativa, em si, não é mais
“real” do que outras, chamadas “ficcionais”, mas resultado de um conjunto discursivo
específico, que aqui encontra seus ecos no apelo genuíno entre a criança e a modificação do
curso da história. Não afirmo que os filmes façam só e exatamente isso e falaremos sobre
essa relação mais detalhadamente a seguir –, mas as narrativas seguramente contemplam tal
aliança.
Na análise que faz sobre o filme brasileiro Cidade Baixa, Maria Rita Kehl (2005)
questiona a marca que tem sido cada vez mais comum nos filmes produzidos no Brasil – e que
talvez também seja visível em outros, de outras nacionalidades: a lógica do “soco no
estômago”. Diz a autora que “esperamos a carnificina, esperamos gozar de aflição ante a
imagem terrível que é, sempre, a de um homem morrendo pela mão do semelhante”. Não há
dúvida de que Promessas de um Novo Mundo e Nascidos em Bordéis operam com essa lógica. As
imagens telejornalísticas da guerra tecidas junto aos comentários das crianças judaicas e
árabes, somadas àquelas que mostram as visitas ao cemitério onde está enterrado o amigo
168
com o qual brincavam, fortalecem e sustentam tal lógica. Da mesma forma, encarar de frente
a mulher prostituta no quarto com seu cliente e, ao lado, a filha que olha para a janela (e que
diz: “a vida que a gente leva não permite que a gente realize nossos sonhos”) nos agride de
forma áspera. Kehl pergunta-se, ainda, “por que essa expressão se tornou um elogio ao
cinema: por que nós, espectadores, gostamos tanto de levar socos no estômago?” (2005, p.
1). Talvez saiamos das imagens com a impressão de que “ainda bem que estamos longe”,
como se o fato de acompanhá-las da sala de estar nos expurgasse da total passividade e mesmo
impotência frente ao universo devastador. No entanto, talvez o “soco no estômago” nos atinja
porque, antes de mais nada, ele fale um pouco de nós mesmos e também da nossa dificuldade,
genuína por certo, em digerir imagens de crianças que m seu futuro traçado, previsto,
mesmo que insistam e se encantem com a criança que passa ao lado e diz saber “ler as mãos”
curiosas, as crianças oferecem suas mãos à menina, como se elas não soubessem o que as
aguarda, como se pudessem ou se quisessem fugir daquilo, nem que seja pela ilusão da
quiromancia. Que curiosidade é essa sobre aquilo que já sabem? Que curiosidade é essa, vital,
que as faz esquecer, por um momento, da frase dita há alguns segundos, segundo a qual “há
que se aceitar que a vida é triste e dolorosa”?
Colocar a discussão nessas bases implica em assumir que o gênero documentário não
traz imagens mais ou menos “reais”, já que “todos os grandes filmes tendem ao documentário,
como todos os documentários tendem à ficção. [...] Quem opta por um necessariamente
encontra o outro no final do caminho” (GODARD, 1985, p. 144, trad. minha). Obviamente
isso não quer dizer, de modo linear, que tais materiais estejam falando de outra que coisa que
não sobre o conflito árabe-judeu ou da vida humilhante no Distrito da Luz Vermelha, na
Índia. Elencar os mecanismos de composição de uma linguagem específica não significa
afirmar que os documentários em questão apostariam numa prática manipulatória. Significa
tão-somente apostar que as imagens que ele traz não são mimésis, não são representações
diretas de um real que lhe seria anterior.
169
Nascidos em Bordéis e Promessas de um Novo Mundo: para além dos limites de
veracidade da imagem documental
Seguramente os documentários em questão não se resumem a estabelecer regimes de
veracidade. Este é um de seus aspectos, mas não o único. No que se refere diretamente à
análise da imagem da criança, importa destacar a forma como algo ali escapa e ultrapassa a
veracidade posta em jogo pelas imagens, como algo li foge da mera atribuição do isto é”
(FISCHER, 2006, p. 64). Os depoimentos dados pelas crianças e mesmo a própria
organização do material nos convidam a pensar outras relações entre criança e imagem,
criança e cultura; relações que vão além do olhar condescendente para as vítimas de guerra e
da pobreza ou do sentimento piedoso para aquelas que parecem ter a vida inteiramente
traçada. O menino árabe loiro, de olhos verdes, bem como os gêmeos judeus que, por não
serem religiosos, têm medo de se aproximar da mais sagrada área judaica, o Muro das
Lamentações, nos dão algumas pistas mais imediatas desse movimento que excede as
generalizações.
Tal como Rosa Fischer descreve em relação aos meninos infames de Cidades de Deus,
da mesma forma as crianças dos dois filmes nos são apresentadas na sua condição de
“existências-clarão” (FOUCAULT, 2003; FISCHER, 2006) e que não deixam de ser também
“poemas-vida”, porque singulares e humanas. Existências que certamente estavam destinadas
a não deixar rastros e a ficarem confundidas na grande massa amorfa a que hoje chamamos das
mais variadas formas: “judeus, “árabes”, “indianos”, “terroristas”, prostitutas”. Também aqui
“vidas singelas, insignificantes, por vezes infames, recebem o olhar das lentes do cinema, e
nos são oferecidas ao olhar” (FISCHER, 2006, p. 59). Mas não um olhar qualquer, senão
aquele distante do “consenso, medido por roteiros padronizados e fórmulas dualistas, através
dos quais se deseja tocar nas feridas sociais sem correr o risco de perder a audiência”
(Ibidem).
Somos convidados a ver mais, a ver além, tal como as próprias crianças do Distrito da
Luz Vermelha, a quem a fotógrafa-diretora fornece câmeras fotográficas para novas
descobertas daqueles mesmos becos cotidianos, dos mesmos rostos familiares e da mesma
170
degradação humana. Somos convidados a ver a criança que instaura um vazio em nossas
certezas e também em suas próprias. Por um lado, a aproximação entre crianças judias e
árabes, propiciada pela produção do documentário. Um encontro que tem a ver com
curiosidade mas que nos leva a perguntar: que curiosidade é essa em relação àquilo sobre o
qual eles não cessam de falar (o outro, o árabe, o judeu) e aparentemente parecem ter
delineado? O momento esperado envolve uma delicada preparação: acompanhamos
especialmente Faraj, o menino árabe, na arrumação cuidadosa da casa, seu banho, seguido do
penteado meticulosamente esculpido com gel, a roupa nova e o perfume. Tudo isso pautado
pela canção tipicamente árabe que toca no rádio e por sorrisos de excitação.
Como todo encontro com o desconhecido, também nesse não são pequenas as
dificuldades a se enfrentar. Primeiro, dificuldades de movimento: há que se transpor os
postos de fiscalização israelenses que separam e cercam Jerusalém das regiões vizinhas. Já que
é mais difícil para os árabes passarem pelo exército, sãos os meninos Yarko e Daniel, judeus,
que vão ao encontro de Faraj e Sanabel, até o campo de refugiados onde moram. Dificuldades
mesmo de língua: o árabe que não fala hebraico e o judeu que não fala árabe devem agora
manter a comunicação numa língua comum, na qual ainda são poucos fluentes (o inglês).
Um encontro também nem por isso menos cercado de medos, receios e tristeza.
Medo de adentrar literalmente no “território inimigo”, medo de tocar em assuntos tão
delicados para ambas as partes (“Podemos falar de esportes com ele, política não”, diz o
Yarko; “Você não pode fugir de tudo sempre”, responde o irmão, Daniel). Receio de falar em
hebraico em pleno campo de refugiados na Cisjordânia, ao lado de muros pichados pelo
Hamas e em meio às marcas indeléveis da Intifada. Tristeza que, após terem passado um dia
inteiro juntos, faz o menino árabe perguntar: “o que vai ser da nossa amizade quando o filme
terminar?”.
Promessas de um Novo Mundo não preconiza a amizade óbvia e dada entre as crianças
fazer isso significaria resumir as potencialidades em jogo e lançar tudo para a ordem do
mesmo: ao invés de os “judeus”, os “árabes”, seriam apenas as “crianças” e as universalidades
que as cercam. Ao contrário, sutilmente percebemos que há crianças judias que não se
propuseram a encontrar crianças árabes, e vice-versa. E, mesmo após o encontro,
171
observamos que pouco restou do futebol que jogaram e do almoço compartilhado. Por mais
que se chame Promessas de um Novo Mundo, o documentário também não segue o caminho fácil
de comprometer as crianças com a possibilidade de paz, nem mesmo responsabilizá-las por
aquilo que efetivamente pensam sobre o povo oponente. O que o filme faz é instaurar um
espaço entre esse comprometimento e essa responsabilização: um espaço no qual nem o futuro
concentra-se nas mãos das crianças (seja ele a favor da paz ou não), nem se limita a mostrá-las
como resultados diretos daquilo que anos lhes vem sendo ensinado. Seria ingênuo supor
que não há tais assertivas e que elas não sejam tornadas visíveis pelas imagens e pelos
depoimentos. Certamente que sim, mas também esse espaço entre a previsibilidade e a
“conscientização”.
De forma mais ampla, talvez possamos dizer ainda que esse espaço é aquele no qual é
instaurada, mesmo que brevemente, uma suspensão do “isto é”: isto é a criança que não
diferença entre culturas, que naturalmente brinca e que faz amigos; “isto é” a criança a quem
podemos confiar um futuro melhor e, igualmente, “isto é(ou são) os judeus e os árabes.
Paradoxalmente, tal espaço, no entanto, não deixa de ser elaborado em meio a uma
linguagem que insiste e que se organiza sobre a lógica do “isto é” (FISCHER, 2006).
Em Nascidos em Bordéis, a imagem da criança é constituída junto à pobreza e ao
descaso, mas também junto a folhas de contato, à escolha desta ou daquela imagem que elas
mesmas produziram a partir de máquinas fotográficas simples. Crianças que ganham
visibilidade não pelo documentário, mas também pela exposição fotográfica das imagens
que fizeram e que fora organizada por Zena, a fotógrafa-diretora. Visibilidade de si e de suas
imagens, que chegam a ganhar a primeira página do mais importante jornal indiano e o filme,
em si, o Oscar de melhor documentário. Olhamos para elas e, paralelamente, somos
conduzidos a olhar aquilo que elas selecionaram, recortaram, compuseram. Seu encontro,
portanto, é com a arte. Um encontro igualmente preparado, esperado, curioso, expresso
pela excitação com que vão até o zoológico, entulhadas dentro um mesmo táxi, ou no ônibus
a caminho da imensidão do mar.
Existências que ganham visibilidade por se chocarem talvez não só com o poder, mas,
especialmente, com a vontade de saber (embora, sabe-se, poder e saber para Foucault não
172
estão em pólos separados). Vontade de saber, de um lado, das culturas que a criaram. Por
outro, daqueles (nós?) que as olha. Que vidas são essas que teimam em (querer) sair da
condição a que foram predestinadas? Que vidas são essas que ultrapassam a pobreza e guerra
para tornarem-se mais, para tornarem-se, elas mesmas, corpo-curiosidade, mesmo cercadas
pelo medo?
Faço questão de usar a palavra espaço, pois, de fato, ela é o pano de fundo que
sustenta os dois documentários. Em Promessas de um Novo Mundo, é em função do espaço, do
território que a narrativa (e a história) se concentra. Espaço é o tema dos depoimentos. É o
que divide opiniões e corpos. O espaço é controlado e atribuído a um e a outro povo pelas
páginas do Alcorão ou pelo papel enrolado da Torá, mas também pelo exército armado
israelense. É o separa e o que dificulta a possibilidade do encontro (ao final do filme, o
menino árabe diz: “se não fosse pelos postos de fiscalização, poderíamos ter mais amigos”). O
espaço é o que separa israelenses e árabes entre cidadãos e refugiados.
Em Nascidos em Bordéis, o espaço é delimitado pelos quartos sombrios e vetustos das
prostitutas; é o espaço dividido entre as mães e os “homens maus” que as freqüentam, homens
que bebem, que fumam, que, muitas vezes, as espancam e a quem as crianças têm de servir,
seja para comprar cigarros ou para comprar curry às três horas da manhã. O espaço é também
o da fuga deste para um outro, talvez o da escola ou o do telhado do prédio, para onde as
crianças fogem enquanto a mãe trabalha. O espaço é o que separa os moradores do bairro
(homens, mulheres, crianças) do “resto”, em outras palavras, da própria cidade: espaço entre
cidadãos de direitos e sub-cidadãos.
Não por acaso, a escola tem uma importância fundamental tanto em um filme como
no outro. Em Nascidos em Bordéis, isso é mais evidente. A escola é a possibilidade de as crianças
terem “uma outra vida”. A escola aqui é quase o lugar de exílio: confinadas, elas têm menos
chances de estarem em contato com a família e, portanto, com a perpetuação daquela vida
indigna. Em Promessas, a escola é o lugar em que o mero desenho infantil expressa muito mais
do que aquilo que efetivamente “sentem” (como se sabe, o ato de desenhar vem, anos,
sendo resumido a isso na escola). O desenho é o propulsor de perguntas e de respostas: mais
do que jogo de saber-não saber, é o jogo do confirmar e reafimar o que está em evidência.
173
O professor árabe pergunta a seus alunos, mostrando-lhes uma figura: “Esse cervo gosta mais
da liberdade ou do cativeiro? E você? Gosta mais da liberdade? As crianças da Palestina vivem
em liberdade? Quem pode fazer um desenho mostrando o que sente? Você é livre como esse
cervo ou algo que atrapalha sua liberdade?”. Um dos alunos vai até o quadro e explica o
desenho que fez: “Esta é uma criança com uma pedra dizendo: vou matar eles. A outra
criança está chorando: mataram minha mãe, pai e irmã, que Deus amaldiçoe eles”. O tapinha
nas costas que recebe enfatiza não a excelência de uma pueril e estereotipada árvore verde
com o tronco marrom, mas a certeza de que a morte é a única solução.
A escola constitui-se, assim, como espaço de resistência, talvez bastante diferenciado
das nossas noções de resistência. A noção de resistência que organizamos para o conceito de
escola choca-se com aquelas formuladas pelos filmes: o que se ensina é, num filme, a
diferença radical entre nós” e “eles”; no outro, mais do que pensar num futuro melhor a
escola é, antes de mais nada, a distância imediata, possível e desejável de um ambiente
assolador. Resistência torna-se, em função disso, sinônimo de nada menos do que
“sobrevivência”.
Por mais que, em Nascidos em Bordéis, haja um quê de salvacionismo, da fotógrafa que
busca, para além das aulas de fotografia, uma escola para cada uma das crianças, também
algo que não se resume na alegria óbvia de “saírem daquela vida”. Acompanhamos a sua busca
ávida, que implica, diz ela, em atender aos “pedidos de ajuda” feitos a ela pelas crianças. Zena
vai de escola em escola, acompanha todos os passos do processo das inscrições, organiza
detalhadamente desde o preenchimento da documentação à sessão de fotografias 3X4.
Enquanto fala ao celular com um amigo, observamos seu desespero frente ao burocrata do
cartório ou quando descobre que o aceite das crianças depende do resultado negativo em
testes de HIV. Incansável, ela agenda os exames, recebe os resultados e comemora que
nenhuma das crianças é portadora do vírus. Uma grande parte do filme é dedicada a esse
empenho quase épico, que mescla desde as providências burocráticas às conversas de
convencimento com cada uma das famílias. No entanto, algo a mais do que a
comemoração da gica sustentada pela chance de a escola fornecer novas possibilidades. As
crianças são confrontadas com o fato de que estas “novas possibilidades” significam também
174
estarem distantes das mães, de casa (seja esta a casa suja, na qual convivem com estranhos,
ratos e restos de comida pelo chão): o que para a fotógrafa é a “solução”, para as crianças é
também saudade, ausência, receio de adentrarem em um universo inteiramente diferente. Os
momentos são atravessados pela dúvida e até mesmo pelo descontentamento por parte das
crianças. Não é sem relações de força, portanto, que se a proposta de nova escola. A
fotógrafa alerta o menino Avijit de que a nova escola sea “única chance dele na vida”. Por
outro lado, para além do amanhã e do futuro aparentemente promissor, ele insiste, por um
momento, em dizer que prefere ficar na escola em que está do que ter recuar duas séries,
como talvez exija a nova.
O que tais considerações mostram é justamente a traição entre palavras e coisas; são
instabilidades e conflitos o que crianças colocam em jogo no momento em que recebem seu
feixe de luz pela vontade de saber. É por meio do espaço vazio instaurado que elas escapam:
não se resumem ao descontentamento com futuro a que são destinadas, nem à alegria certa
daquele a que agora são convidadas a assumir. Antes disso, as crianças se constituem num
lugar incerto e intermediário, qual seja, aquele que cinde a afirmação do “isto é”.
Considerações finais
No célebre texto “A vida dos homens infames”, Foucault (2003) mostra-se fascinado
por um pequeno conjunto de vidas ínfimas, narradas apenas por meio de algumas páginas, às
vezes até frases, mas que alcançam uma intensidade impossível de apreender. Trata-se das
lettres de cachet: documentos emitidos em nome e para o rei, datados em sua maioria dos séc.
XVII e XVII e que tinham como objetivo a prisão, o internamento de indivíduos, cujos
comportamentos e vidas tramam-se em função de uma única prerrogativa, a de serem
“indesejáveis”. Denúncias e queixas sobre devassos, libertinos, escandalosos, ladrões, ateus;
textos que se constituíam como uma parte mínima daquelas vidas, mas que exatamente por
isso as ataram à sua (in)felicidade, à sua loucura e também à sua visibilidade imediata. Para o
autor, não importa se as palavras descritas por aqueles documentos eram falsas, enganosas,
injustas: importa que através delas homens e mulheres viveram, morreram e ganharam um
175
outro tipo de visibilidade, muito aquém daquelas advindas de sua genialidade, de seu
heroísmo, de seu nascimento ou de sua riqueza material. Aquilo que arranca essas existências
“da noite” (FOUCAULT, 2003) é o encontro momentâneo com o poder, é o fato de
defrontarem-se com regimes de disciplinamento. Jogo paradoxal que, no intuito de querer
aniquilar essas vidas, fazem-nas justamente sobreviverem até hoje. É por meio das palavras
precárias que as descreveram para que tivessem um fim, que aquelas vidas persistem e
insistem em manifestar sua ira, sua aflição, a ponto de continuarem divagando, senão mais lá,
pelo menos aqui, entre nós.
Rosa Fischer (2006) atualiza a discussão de Foucault ao pensar, hoje, nos “meninos
infames de Cidade de Deus” (Ibidem, p. 56). De fato, as denúncias de infâmia atualmente, em
pleno no séc. XXI, dispõem de uma rede de comunicação seguramente muito mais ampla.
Para a autora, outras e novas lógicas de exclusão e de exposição de existências “indesejáveis”
são tramadas; gicas distantes em cerca de cinco ou seis séculos, mas que não se excluem e
não se apagam e, conseqüentemente, encontram outras formas de se exercer. De
personagens de livro, meninos de 8 a 20 anos, moradores da favela e vizinhos do tráfico,
passam a protagonistas de um filme, disseminam-se, multiplicam-se e ecoam nos mais
diversos aparatos midiáticos, com diferentes roupagens não se trata mais de discursos raros
como aqueles descritos por Foucault, mas prolixos, que não cessam de tentar cercar os
infames, seja no filme ficção, no documentário, nas páginas do jornal ou no horário nobre de
domingo à noite. Apesar disso, esses corpos-resistência não se cansam em escapar: “por mais
que haja semelhança com a realidade, sempre outras relações sugeridas pelo que vemos e
ouvimos” (Ibidem, p. 65).
Neste texto, busquei analisar o conceito de imagem documental a partir de dois
materiais, que, igualmente, contemplam “vidas infames”. Crianças que estariam fadadas a
permanecer na invisibilidade do grande conjunto que as cerca (“judeus”, árabes”, “indianos”)
são trazidas até s por meio de imagens que, por mais que pretendam por vezes atá-las à
lógica imediata entre palavras e coisas, mostram também sua dispersão. Entendo que, mais do
que fazer visíveis um conjunto de depoimentos de crianças árabes, judias e indianas, tais
materiais ocupam-se de uma dramaturgia do real” (FOUCAULT, 2003). Percorrendo estas
176
“crianças infames”, cujo choque entre as imagens e suas vidas produzem em nós um misto “de
beleza e de terror” (FOUCAULT, 2003, p. 206), procurei pensar em que medida e por quais
caminhos a linguagem cinematográfica e as existências que pulsam na superfície-tela, em seu
cotejo, nos mostram vidas singulares, que não se resumem a um mero “isto é”. Existências
curiosas e humanas que, em se tratando de criança, não se limitam a serem descritas por
universalidades que as cercam (seja por instaurarem um espaço incerto entre a conformidade
e a inconformidade com seu futuro, seja por desestabilizarem a alegria óbvia de sua reversão,
seja na negação e, por que não dizer?, até mesmo na afirmação uma ingenuidade pueril, de
afeto fácil). Vidas que, portanto, não podem ser tomadas a partir de uma leitura linear, mas
no interior de suas contradições, paradoxos e incongruências, nem por isso menos
“verdadeiras”, menos “reais”. Vidas, portanto, que chegam até nós, nos olham e nos
questionam em sua “medonha ou lamentável grandeza” (FOUCAULT, 2003).
Afirmar que o documentário não traz ou guarda em si “a” verdade ou que ele não
captura “oreal não significa, de modo algum, desvalorizar sua linguagem ou condenar sua
organização particular. O que importa trazer para a discussão são os elementos que nos
conduzem a pensar que ele faria isso e que, por conseqüência, seria mais verídico, mais real
do que outras produções fílmicas. Reiterando tais discussões, o documentário não estaria
acima ou abaixo de nenhum outro tipo de cinema nem mesmo seria um outro cinema, como
sugere o título de um dos livros clássicos a discutir a temática: O Documentário: um outro
cinema, de Guy Gauthier (MAXIMENT, 2003). Trata-se, antes, de um tipo de filme que, por
mais que se propusesse a cingir a imagem à verdade”, se depararia justamente com sua
eclosão. Promessas de um Novo Mundo e Nascidos em Bordéis foram tomados, portanto, como uma
outra forma do real” (não mentirosa, nem “verdadeira”). Isso porque não estamos lidando
com representação, mas, acima de tudo, com criação, com algo que se inventa e que, neste
caso, tem relação com o ato de dar visibilidade ao que há de singular na imagem da criança.
177
3.2 Universalidade ética, singularidade mobilizadora:
possibilidades de pensar a leitura das imagens cinematográficas
A criação envolve, acima de tudo, escolhas. Alain Bergala (2002) é categórico quanto a
esse argumento ao dizer que nada se altera, em termos de resultados cinematográficos, se
considerarmos o fato de que a filmagem de um script seja produto de uma equipe. Para o
autor, a escolha final seria sempre a do diretor. Assim pergunto-me, nesta seção, acerca
dessas escolhas ou, mais propriamente, sobre como podemos efetivar a leitura de imagens
frente à dualidade entre “universal” e “singular” a partir das escolhas feitas por certos
diretores-autores tomando tais conceitos como mais um dos elementos que compõem e ao
mesmo tempo tangenciam a noção de autoria.
Não como negar que certos diretores constroem seus filmes de modo singular.
Creio que o caráter peculiar de narrar de alguns cineastas fica insinuado, gravado nas imagens
pelas quais, em certa medida, eles acabam se tornando responsáveis. Talvez poucos diretores
souberam introduzir, compor ou fazer sobrevir um “selo”, algo que faria com que os filmes se
estruturassem de maneira diferenciada e em nada se assemelhassem, na medida em que o
caráter fílmico seria elevado à enésima potência. Fílmico” entendido como algo que não
pode ser imediatamente descrito, como algo que não se confunde com a narrativa, como “a
representação que não pode ser representada” (BARTHES, 1990, p. 57). Podemos dizer,
nesse sentido, que “o fílmico está para o filme assim como o romanesco está para o romance
(posso escrever romanescamente, sem nunca escrever um romance)” (Ibidem) diria, ainda,
que podemos escrever romances sem nunca termos escrito romanescamente o mesmo,
creio, se dá no cinema em relação ao fílmico.
uma questão, portanto, que permanece em relação a essas escolhas, a esse caráter
fílmico e ao modo como se a construção da imagem da criança: como pensar acerca de
materiais que falam de universos aparentemente tão diferentes dos nossos, ocidentais, latino-
americanos? Em outras palavras, creio que cabe indagar de que maneira certos filmes
178
conseguem nos comover de forma tão contumaz, mesmo ao narrarem crianças a partir de
pontos de vista que, seguramente, nunca nos serão absorvidos em sua totalidade. Contudo,
como podemos ter como dado, como trivial o fato de que o conceito de criança oriental é
radicalmente diferente do nosso, na medida em que vemos, anos após ano, um conjunto de
filmes japoneses, chineses, iranianos, nos sensibilizarem de maneira singular? Ao assumir
previamente a assertiva de uma separação total entre universos, não estaríamos encerrando
ou mesmo categorizando crianças (e autores, e filmes) em torno de unidades totalizadoras?
Assim, busco promover esta discussão baseada em conceitos caros à história do
cinema: o de pureza e impureza da imagem. Primeiramente, retomo algumas discussões
acerca da dualidade marcante neste campo desde sua criação e revejo de que forma ela
encontra ecos ainda hoje, depois de tantas transformações. Em seguida, analiso dois filmes,
cada qual pertencente a um contexto geográfico-cultural (e mesmo histórico) bastante
diverso: Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, de Abbas Kiarostami e Bom Dia, de Ozu. A partir
desse conjunto de discussões, interessa-me investir não na oposição entre pureza ou impureza
da imagem (e das escolhas feitas para que fossem produzidas desta ou daquela forma), mas
recolocá-la em outras bases, quais sejam, as da contigüidade entre uma universalidade ética e
uma singularidade mobilizadora. O esforço, então, será o de capturar as escolhas de certos
diretores (em termos especialmente de temas e de constituição estética da imagem) e a forma
como eles colocam em jogo, mesmo em contextos culturais diferentes dos nossos, uma
criança que nos convoca por meio de uma linguagem cinematográfica que nos mobiliza,
eticamente, a olhar o indiscernível.
Criança e imagem para além das dicotomias
A diferenciação entre pureza e impureza no cinema não é nova. Ela coincide, num
primeiro momento, com um movimento de afirmação do cinema como arte diferenciada do
teatro. O que sustenta, neste momento histórico, a noção de impureza é a crítica à
heterogeneidade entre duas artes, na qual a combinação e a permuta de elementos teatrais
favoreceriam um cinema “impuro”. Esse pensamento marcou, especialmente, os anos 20, na
179
Rússia, onde Dziga Vertov manifestava-se contra a aplicação de cnicas teatrais no cinema,
entendidas como manifestação de um modelo burguês de cultura (LEUTRAT, 2001). A
mesma idéia é retomada anos depois por Bazin, nos mesmos termos (pureza versus impureza),
porém com entendimentos bastante distintos.
Bazin coloca a discussão considerando que não existe nenhuma arte pura: nem poesia
pura, nem pintura pura, nem romances puros, que dirá cinema puro. Para ele, a
heterogeneidade nas artes (e entre as artes) tem a ver com sua condição de existência. Isso
não pressupõe que a “mistura das artes” seja sempre bem-sucedida: cruzamentos fecundos,
mas também “acasalamentos monstruosos” (BAZIN, 1991, p. 88). No caso do cinema, não
apenas o teatro agiria muitas vezes positivamente na sua “impureza”, mas a literatura, com a
infinidade de adaptações de romances clássicos. Mais do que transposições diretas, tais
adaptações exigiriam um talento criador, que impulsionaria o diretor a reconstituir e a dar
um novo equilíbrio à obra em questão – movimento que jamais seria a reprodução do
idêntico, mas a criação de um equilíbrio, ao menos, equivalente. Assim, “considerar a
adaptação de romances como um exercício preguiçoso no qual o verdadeiro cinema, o
‘cinema puro’, não teria nada a ganhar é, portanto, um contra-senso crítico desmedido por
todas as adaptações de valor” (Ibidem, p. 96).
As formulações de Bazin rapidamente foram adotadas e ampliadas pela vanguarda
francesa. Serge Daney admite uma impureza no cinema mais no âmbito de um projeto do que
propriamente de um fato. Impuro significa, então, transitivo (DANEY, 1996); mais do que
explorar experiências endógenas, o cinema impuro visa alguma coisa que não seja ele mesmo.
Com a imagem fotográfica, por exemplo, o cinema tornaria possível a coexistência do dado e
do contingente. Tratar-se-ia, neste caso, de uma mélange, da organização de um bloco
impuro, no interior do qual aquilo que foi previsto e aquilo que era possível de ser visto
coexistiriam. É a produtividade da impureza, diferente do pessimismo originalmente
proposto por Vertov frente a ela, que faz Daney afirmar: “não espero nada de um cinema que
se alimentasse de si mesmo” (Ibidem, p. 176, trad. minha).
Nas discussões mais atuais sobre a dualidade entre impureza e pureza do cinema, a
coexistência de linguagens artísticas não é plenamente ultrapassada, mas perde sua primazia
180
em favor de outros elementos. Youssef Ishaghpour baseia sua discussão sobre esses conceitos
na capacidade técnica do cinema de representação do visível. Um cinema puro seria, assim,
aquele que busca a captura do momento vivido, de um presente dado ali, na superfície da
tela. Analisando o filme Stromboli, Terra de Deus, de Visconti, Ishaghpour nos especifica como
se tramaria essa pureza, mesmo que somente por um breve momento: “o encontro atual,
imediato, como olhar cinematográfico, entre um estrangeiro e uma aldeia, imersa numa
paisagem desconhecida” (ISHAGHPOUR, 2004, p. 118, trad. minha). Assim, o filme “não é
outra coisa senão esse encontro impossível com o mundo no exato momento da revelação”
(Ibidem). Ou seja, trata-se aqui, neste filme, de uma pureza na medida em que nada se
interpõe entre câmera e objetivo visível: nem a cultura, nem a história; é somente o homem e
a paisagem que se econtram.
Contudo, a impureza do cinema de Visconti reside na possibilidade de ultrapassar a
dualidade entre a exterioridade do olhar e do mundo. Isso se dá, pois, em relação à
reprodução técnica desse encontro, e tal revelação tem um elemento mediatizador: Deus. É
esse elemento que, na imagem, se faz texto e, mais do que isso, torna-se “uma idéia incômoda
e perfeitamente impura” (ISHAGHPOUR, 2004, p. 118, trad. minha). Porém, a impureza
do cinema de Visconti, de modo geral, vem não dessa mediação específica, circunscrita a um
filme Ishaghpour a cita para afirmar a impossibilidade e a inacessibilidade de um cinema
puro. Ela vem, sobretudo, da relação mesma do cinema com o passado; um passado na
qualidade de História, mas também referente a outras obras fílmicas que lhe são anteriores.
“É em função da riqueza de suas descrições, da intensidade patética, do sentido histórico e da
beleza de seus filmes que falamos de uma impureza do cinema de Visconti, em relação à
especificidade do cinema” (Ibidem, p. 117, trad. minha). Assim, a impureza do cinema de
Visconti vem de um “elo entre a herança de outras artes e o cinema: sua obra é mesmo uma
síntese cinematográfica” (Ibidem).
Alain Badiou situa a discussão na compreensão de que, como arte de massas”, o
cinema é impuro na medida em que aposta no caráter banal das imagens e o enfatiza. O
grande trabalho do cinema passa a ser, então, apreender a complexidade infinita dos eventos e
extrair daí a sua pureza. Não se trata de uma definição que vem do exterior, algo que venha
181
de fora da imagem. A pureza refere-se justamente à operação de extrair algo da própria
imagem, de seu interior, em direção a uma nova simplicidade, ou melhor, em “direção à
criação de novas simplicidades” (BADIOU, 2004, p. 70, trad. minha). Para explicitar essa
relação entre imagem que remete à pureza ou à impureza, Badiou cita o exemplo do uso dos
carros no cinema, feito por Abbas Kiarostami e Manuel de Oliveira. O que esses diretores
criaram, diz o autor, foi “outra utilização para os carros” (Ibidem, p. 67, trad. minha) uma
utilização que vai além de expressar uma mera imagem de ação, do veículo que chega e parte
de algum lugar e que vai além dos carros de gângster ou de policiais. Assim, em Kiarostami,
“o carro se transforma em um lugar das palavras”; ele se transforma “no lugar fechado da
palavra no mundo” (Ibidem). De forma semelhante, nos filmes de Manuel de Oliveira, “o
carro se converte em um lugar de exploração de si mesmo (...), uma espécie de movimento
em direção às origens” (Ibidem, p. 67, trad. minha). A questão que se coloca em relação a
esse deslocamento é a supressão da banalidade do carro a partir de sua “purificação”.
O cinema luta constantemente com esses sentidos de pureza e de impureza das
imagens. Mais diretamente, pode-se dizer que, no cinema, constantemente lutas são travadas
contra a imagem impura: trata-se de uma “batalha artística contra as imagens impuras”
(Ibidem, p. 71), em que estão em jogo, simultaneamente, a luta da imagem consigo mesma, a
luta daqueles que produzem a imagem com a própria imagem produzida e a luta entre nós,
espectadores, com essas imagens, na medida em que também participamos da criação da sua
“pureza”. Pode-se dizer, assim, que “um grande filme tem algo de heróico, porque realmente
é uma batalha e uma vitória” (Ibidem).
Exatamente por que faço este percurso entre impureza e pureza das imagens? Porque
me interessa absorver alguns aspectos das discussões de Ishaghpour e Badiou, na medida em
que eles me ajudam a pensar, especialmente, acerca da composição de imagens específicas
no caso aquelas que, por certo, não estamos impossibilitados de ler ou de analisar, porque
extraídas de filmes produzidos em contextos históricos, geográficos e culturais, de uma
maneira mais ampla e radicalmente diversos dos nossos. Assim como não creio existir “a”
pureza ou “a” impureza em estado absoluto, acredito, igualmente, que não podemos
constituir a análise desses materiais na forma de outra unidade totalizadora ou seja, como se
182
houvesse a” leitura correta deste ou daquele filme, desta ou daquela criança e que, sendo
distante do nosso âmbito cultural, estaríamos impossibilitados de realizar. Do mesmo modo,
a análise também não pode residir em graduar semelhanças (crianças orientais, ocidentais),
nem mesmo de ordenar (suas) diferenças: o que interessará é apreender, na imagem da
criança, dinâmicas irredutíveis, radicais e singulares.
Mais do que pureza ou impureza das imagens, creio que tais filmes colocam em
funcionamento, a um tempo, uma universalidade ética e uma singularidade mobilizadora.
Assimilando aspectos mais gerais trazidos por Ishaghpour e Badiou, a questão da pureza da
imagem não tem a ver nem com a relação direta entre imagem e mundo, nem com uma
relação sem intermediações entre estes, nem tão-somente com o fato de livrá-la de um
sentido banal. Como crer na existência de um sentido banal per se e desconsiderar os
atravessamentos culturais que se fazem para que o “banal” seja assim considerado? Mais do
que uma relação de correspondência entre termos, trato de universalidade ética e
singularidade mobilizadora, especialmente, a partir de dois aspectos: a criança e a “adesão ao
mundo em sua imediatez (immédiateté)” (ISHAGHPOUR, 2004, p. 132, trad. minha) e a
linguagem que se faz gesto. Ou seja, é partindo de universalidades tomadas num sentido muito
específico que esses filmes produzem imagens singulares e é em função disso que mobilizam
uma ética do olhar.
Ao invés da grandiosidade dos temas que geralmente circundam a noção de criança, o
que esses filmes nos trazem são preocupações singelas, em função das quais todo um outro
universo nos é apresentado. Trata-se de elementos presentes não apenas nos filmes que
analisarei nesta seção, mas também em outros como Filhos do Paraíso, de Majid Majid (1997),
e a tarefa dos irmãos em compartilharem um mesmo par de tênis; em O Balão Branco, de Jafar
Panahi (1995), e a busca da pequena Razieh pelo peixe dourado.
É a essa imediatez a que me refiro: ao invés do grande projeto, o hoje, o agora, no
máximo o amanhã. A criança poderia ser considerada como tema de fácil apelo, talvez
“impuro”, no sentido dado por Badiou. Porém, aqui, ela é mais do que isso: trata-se de uma
universalidade ética, pois é atravessada por formas específicas de tratamento, ou seja, ela é
universalidade ética, pois organizada imageticamente na qualidade de gesto e na adesão, por
183
parte da criança, ao mundo em sua imediatez. Movimentos que, paradoxalmente, podem
ser vistos na singularidade mobilizadora de cada filme e não numa espécie de chave que
abriria as portas para todas e quaisquer análises (portanto, reitero, universalidade ética e
singularidade mobilizadora como dois lados de um moeda, contíguos e simultâneos, um
não é possível sem o outro).
Esses filmes, em seu conjunto, tratam de uma criança que
se situa no limite da natureza, no qual a cultura existe como costumes
exteriores, não como problema de realidade histórica. Para o espectador, a
infância é imediatamente perceptível, sem exigências de referência que
imporiam mediações diversas. Suas aventuras não possuem a
complexidade, desprovida de magia, da vida adulta. Ao mesmo tempo, o
charme da infância permite não enfrentar esta complexidade de problemas
e nem o poder em vigor, sempre despótico no Oriente (ISHAGHPOUR,
2004, p. 132, grifos meus, trad. minha).
No que concerne à organização da linguagem cinematográfica, a atenção ao gesto diz
respeito ao esforço em constituir a criança como paisagem e não como cenário (PEIXOTO,
1992). O cenário seria a imagem explícita, o apelo à descrição e ao detalhe, o espaço que não
deixa margem para o vazio. A paisagem, ao contrário, é a surpresa e a metáfora genuína da
falta de palavras para dar conta do que é inenarrável e que, por isso, tensiona os próprios
limites da descrição. A paisagem não é um lugar a que pertencemos, nem nunca é apreensível
num instante: “Sempre falta alguma coisa para se alcançar a paisagem muros, obstáculos”
(Ibidem, p. 313). Em termos de linguagem cinematográfica, como será assinalado, isso
significa a aposta numa composição da imagem da criança como uma imagem que exige
tempo, que dura, que não passa tão rapidamente sob nossos olhos, que sabe esperar, porque
dotada de uma “lentidão que conserva” (Ibidem, p. 316). Uma imagem que, por fazer o
tempo vivo em seu interior, exige e convoca a uma ética do olhar.
O que faço agora é me embrenhar nas paisagens propostas por estes filmes, pontuar os
trajetos pelos quais essa adesão se dá, bem como descrever, com cuidado, a linguagem-gesto
que a cerca. Mais do que apontar o dedo para aqui está o mundo em sua imediatez”, “aqui
está a linguagem que se faz gesto”, percorro as cenas e cedo meu olhar a esses filmes. O que
mostro, mesmo que sutilmente, é o movimento de uma universalidade ética, em que, por
184
mais que se trate de temas de fácil reconhecimento, instaura-se um vazio em torno deles, um
vazio que não pode ser completado nem preenchido por palavras ou outras imagens: fica
sempre algo a se dizer, sempre algo a se ver. Um movimento, no entanto, que se torna
possível porque fala de uma criança singular.
Criança e corpo-amizade em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, de Abbas
Kiarostami
Ao fazer seu dever de casa, Ahmad descobre que, acidentalmente, trouxe consigo o
caderno de seu colega Nématzadé. Talvez isso nem fosse um problema, caso o professor não
tivesse advertido Nématzadé de que se ele apresentasse, mais uma vez, seus deveres numa
folha avulsa (como já o fez em outros momentos), ele seria expulso da escola. Ao se dar conta
da infeliz coincidência, Ahmad decide ir pessoalmente entregar o caderno ao amigo.
Contudo, a única informação que Ahmad tem sobre o endereço do colega é a de que ele mora
no vilarejo vizinho, em Poshted. Como os arabescos que adornam as janelas e portas da
arquitetura iraniana, o percurso transcorrido por Ahmad para realizar seu objetivo se
estabelece a partir de um caminho que se repete e que tangencia a si mesmo. Dois eixos aqui
concorrem paradoxalmente entre si: o da obstinação de Ahmad e da dificuldade da tarefa, que
se torna ainda mais problemática pelas constantes informações erradas que lhe são dadas.
Importa destacar, ainda, de que forma vários elementos pontuam toda a caminhada de
Ahmad e como eles insistentemente persistem em retardar ou invalidar seu encontro com
Nématzadé. Tais elementos criam uma outra narrativa, que coloca o menino frente a frente
com os adultos, seja com a mãe, com o avô ou mesmo com as pessoas desconhecidas da
cidade vizinha, como o velho que tenta ajudá-lo. Tais elementos se inserem uma vez mais no
campo aberto das repetições e na circularidade que caracteriza o filme: um e mesmo leimotiv é
posto em ato por Ahmad em sua busca. Ainda assim, são estes elementos que colocam em
jogo a tensão do olhar da criança e aquele dos adultos. Refiro-me, então, a elementos que
tensionam ainda a relação da (in)visibilidade da criança e de um olhar que simplesmente não
(a) vê. O diálogo com a mãe, logo depois que Ahmad percebe que escom o caderno do
185
amigo, combina a repetição e a invisibilidade que marca a imagem da criança na sua relação
com os adultos. “Mamãe, eu trouxe o caderno de Marhamed por engano. Posso levá-lo para
ele?”. A mãe sequer ouve o pedido do menino e continua a fazer o que está fazendo: lavando
roupa. Ahmad insiste: Mamãe! [...] Mamãe! [...] Mamãe! Trouxe o caderno de [Nématzadé]
Reza por engano... Eu preciso devolvê-lo para ele!”. A mãe lhe avisa: “Primeiro faça seus
deveres, depois você brinca”. Ahmad fica ali mesmo, parado, estático, sentado. Pensa alto,
sozinho: “Ele precisa fazer os deveres no caderno”. Após uma discussão com a mãe, que busca
colocar ordem nas tarefas do menino (primeiro dever, depois brincar), o menino permanece
parado, em pé à sua frente. “Mas... seu caderno...”. Ele insiste mais uma vez com a mãe,
repetindo o mesmo refrão. E a mãe, por sua vez, repete o seu. Passados alguns segundos,
Ahmad vai novamente até ela: “Eu não quero brincar, é só para devolver o caderno para ele”.
Mesmo tendo a mãe aos gritos, furiosa com a insistência do menino, ele se aproxima dela
e, mais uma vez, lhe diz: Eu peguei o caderno dele sem querer...”. Passados mais alguns
segundos, Ahmed vai, finalmente, fazer seus deveres. A mãe o interrompe, e pede que lhe
alcance uma bacia. Ahmed levanta-se, caminha dois passos, mas, hesitante, volta e pega os
dois cadernos. Ao entregar a bacia para a mãe, ele mostra os cadernos: “Está vendo, mamãe?
Esses dois cadernos se parecem. Este é o de [Nématzadé] Reza e esse é o meu”. Indiferente, a
mãe lhe sugere que o entregue amanhã. “Mas amanhã... amanhã o professor vai expulsá-lo da
escola.” Mais uma vez, ele ergue os dois cadernos e mostra-os: “Eles se parecem. Eu tenho
que ir até Pochté, eu tenho que devolver o caderno”. Ditos que insistem, que tentam entrar
naquela mãe, mas que simplesmente a “atravessam”, sem, para ela, fazerem qualquer sentido.
Mohammad mora em Poshted, a cidade vizinha, e é naquela direção que Ahmad sai
em sua epopéia. Encontros fortuitos o separam e o distanciam de seu objetivo tão singelo de
devolver o caderno ao amigo: as tarefas domésticas (fazer os deveres de casa, cuidar do irmão
menor, ajudar a mãe em tarefas triviais como lavar a roupa e comprar o pão), o avô que lhe
pede para comprar cigarros, ou mesmo a vaca que se atravessa em seu caminho ou a roupa da
vizinha que cai varanda abaixo, bem à sua frente. Sem saber o endereço de Nématzadé, as
pistas de Ahmad são escassas e vagas e por vezes parecem indicar lugar algum ou todos os
lugares: o menino que mora na casa da porta azul, aquela casa “ao lado de uma escada”, a casa
próxima de uma árvore morta ou aquela que se encontra ao lado dos banhos públicos.
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Os planos de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? são sombrios, especialmente aqueles onde
a noite se fez e o vento uiva assustadoramente para Ahmad, perdido. No entanto, uma
luminosidade emana da montagem, que mistura visivelmente elementos de fábula e de
documentário. Não há espetáculo, não há excessos. Há precisão e simplicidade, numa câmera
que se faz potência, ao tornar-se aqui um olhar sem corpo que acompanha os pés da criança,
por todos os lugares: seja na vitalidade do sobe e desce da montanha (magnificamente talhada
por um Z sem começo nem fim), seja nas escadas grandes e pequenas que levam a casas e
ruelas, todas elas semelhantes. Enquadramentos amplos nos indicam a dimensão da travessia,
entretanto, enquadramentos concisos nos mostram a intricada rede da procura da casa sem
endereço. Trata-se de um minimalismo perspicaz, pois inscrito também na repetição dos
diálogos, no fôlego, nos medos e nos minutos de silêncio e de vida de Ahmar: “Para onde
ir?”.
Lidamos todo o tempo com uma beleza que não aquela da contemplação, embora
perceptível em magníficos planos-seqüência de trajetos labirínticos. Como resultado de uma
montagem precisa, onde o ritmo rigoroso é o que nos convoca, trata-se de uma beleza que se
“apropria do espectador, o invade, não para o entorpecer, mas para que ele venha a senti-la
em si mesma, a formular o apelo. A tensão não pode terminar em outra coisa que não no
estilhaçamento” (ISHAGHPOUR, 2004, p. 141, trad. minha) e, com isso, em sua total
dispersão.
O filme termina sem que tenhamos visto a aventura culminar no objetivo cumprido.
Sem êxito em sua empreitada, Ahmad chega em casa, senta no chão e chora. Mesmo com a
insistência da mãe, ele prefere não jantar, está sem fome. Na cena seguinte, na escola, o
professor começa a passar entre as mesas para revisar os cadernos dos alunos. Ahmad chega
atrasado e senta-se ao lado de Nématzadé. De sua pasta, ele tira os dois cadernos e diz para o
colega: “Fiz o seu tema para você”. Nada de músicas sutis que poderiam caracterizar ou
mesmo reforçar o final feliz. O elemento que nos comove é o gesto, em si, sem
intermediações. O professor chega à mesa dos meninos, abre o caderno de Nématzadé e
rapidamente corrige a lição, sem dar importância para o fato de que, ao lado dos exercícios,
uma flor dada pelo velho a Ahmad. O tratamento dado à imagem, imagens de tantos
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“caminhos que se bifurcam”, não nos faz sequer questionar por que o menino não resolveu de
imediato o problema da troca de cadernos, fazendo, de uma vez por todas, o tema pelo
amigo. E é isso que cinde universalidade ética e singularidade mobilizadora: a generosidade e
a humanidade que advêm da criança. Mesmo que o tempo seja exíguo e o espaço não leve a
lugar algum, a busca vale pelo trajeto, o trajeto vale pela travessia.
Trata-se de uma universalidade ética justamente por tocar mais fundo e de forma mais
vivaz no genuíno universo da criança, pois, justamente ao fazer isso, Ahmad não é mais “a”
criança, mas uma criança qualquer, nem por isso menos singular e comovente, com um
objetivo tão limitado, porém tão infinito; tão modesto, porém tão “nobre”, como aquele,
obstinado, de devolver o caderno ao amigo, para que ele não seja expulso da escola – é essa a
adesão ao mundo em sua imediatez de que fala Ishaghpour.
Como descreve o autor, em Kiarostami isso ocorre paralelamente à organização de
uma estética da finitude: uma estética que não reside no exame do sentido, da história, do que
é da ordem do dado. Não aqui tentativas de reconhecimento ou de inspeção subjetiva do
mundo e da vida, mas tão-somente uma adesão-revelação àquilo que é, em sua singularidade
singela” (ISHAGHPOUR, 2004, p. 134, trad. minha). Essa estética, bem como a vida que
nela pulsa, só se torna possível graças a uma linguagem cinematográfica que conjuga o
singular imerso no universal. Singular e universal que se mostram característicos desta
narrativa e que por vezes dizem respeito a qualquer outra, seja da vida-imagem, seja da vida-
carne: a distância (pequena ou imensa) que separa dois pequenos vilarejos e a estranheza de
um mundo que, mesmo estando ali, ao lado, permanece mergulhado na imensidão e no
incerto e configura-se, para o menino, como um universo a ser desbravado.
O close final do filme sobre a flor no caderno de Nématzadé talvez seja a expressão
mais autêntica do que Béla Baláz chama de close up lírico: close ups que irradiam uma atitude
humana carinhosa ao contemplar um delicado cuidado, um gentil curvar-se sobre as
intimidades da vida em miniatura, o calor de uma sensibilidade” (BALÁZ, 1983, p. 91-92). A
flor ali é mais do que flor, é imagem lírica e poética do final de uma trajetória. “Os bons close
ups são líricos: é o coração e não os olhos, que os percebe” (BALÁZ, 1983, p. 91).
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Talvez como o homem do Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, Ahmad não
sabe onde vai chegar. Se um quer veementemente sair em busca de uma ilha desconhecida, o
outro quer, na mesma medida, sair à procura de uma casa desconhecida. Nenhum
isomorfismo, mas de fato há algo que, nos dois casos, é semelhante: a coragem de ir em busca
de algo sem mapas, sem traçados prontos, sem final previsto. Insistente, no conto do escritor
português, o homem pede ao rei que lhe um barco, e ganha, junto, a companhia feminina
de uma das serviçais do palácio; errante, Ahmad perambula e pede a todos que cruzam seu
caminho pistas para encontrar a casa de Ahmad. E, se assim como a mulher pode ser a própria
ilha desconhecida, Ahmed pode ser também, ele mesmo, a própria casa do amigo.
Criança e corpo-silêncio em Bom Dia, de Ozu
Bom Dia é uma visão do Japão pós-guerra, da acelerada modernização do país no final
dos anos 50, traduzida por um mesmo movimento de tensionar os universos dos adultos e das
crianças, paradoxalmente, por aquilo que, de alguma forma, os aproxima ao passo que os
distancia. O universo dos adultos do filme é, especialmente, aquele feminino (tendo em vista
que o mundo masculino é praticamente inexistente), do desejo pelos novos eletrodomésticos
que começam a invadir os lares japoneses e, com isso, começam também a se tornar objeto
de cobiça das mulheres daquela comunidade. O universo das crianças, central na narrativa,
diz respeito ao desejo de dois meninos, os irmãos Minoru e Isamu, de terem uma televisão
em casa. Sem o aparelho, eles vão freqüentemente à casa ao lado, dos vizinhos mesmo que
isso implique fugir das tarefas escolares ou das aulas de inglês – para assistirem a seu
programa predileto: lutas de sumô. Ponto de encontro (de desejos), mas também de
tensionamento, pois a organização familiar (ali composta pelos pais e pela tia), é atingida, na
medida em que, proibidos pelos pais de irem à casa dos vizinhos, os dois iniciam uma greve
de silêncio que só terminará, ameaçam, com a compra de sua própria televisão.
A estabilidade cotidiana atingida pela avalanche de eletrodomésticos é sentida nas
primeiras seqüências do filme, seja nas fofocas entre as vizinhas, intrigadas como e por que
uma delas comprou uma máquina de lava-louça nova, seja pela apresentação imediata da
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problemática central do filme: as crianças e a televisão. Reconhecemos rapidamente a figura
do irmão mais velho que, divertidamente, “comanda” o menor. Minoru pega seus cadernos e
diz, displicentemente, para a mãe: “Estamos saindo!” frase que é imediatamente repetida
pelo pequeno Isamu, de 4 anos: “Estamos saindo!”. A mãe pergunta: “Onde você está indo?”.
Minoru: “Estudar inglês”. Ironicamente, ela acrescenta: “Isamu também?”. Apesar da resposta
afirmativa de Minoru, a mãe repreende: “Televisão de novo não. Não vá para a casa do
vizinho”. No entanto, Minoru apenas concorda e sai, enquanto Isamu se despede com um
desconcertante “I love you.
Talvez um dos elementos mais importantes a serem destacado no filme é a
simplicidade de abordagem de temas tão cotidianos e, com isso, de reconhecimento imediato:
desde de a parceria entre irmão mais velho e irmão mais novo, na sua relação de imitação,
àqueles tão óbvios, das crianças que, na hora do jantar, reclamam da comida e de terem que
comer sempre a mesma coisa (embora, no quarto, escondidos, acabem se alimentando,
estranhamente, de de pedra-pome); desde aquele da mãe dona-de-casa que, ao ver o
marido chegar em casa, reclama, em relação aos filhos, que “eles estão impossíveis”, “eles não
me escutam”, “eles são uma grande dor de cabeça”, às desavenças triviais do cotidiano da vida
em comunidade, atravessado pelas fofocas entre vizinhas, pelo conhecimento exagerado da
vida uns dos outros, dado pelo espaço estreito entre casas, em que janelas e portas se
encontram uma ao lado da outra, uma à frente da outra. Aparentemente, tudo nos parece
demasiado familiar. No entanto, é exatamente a singeleza de pôr em primeiro plano estes
temas tão triviais que marca o filme.
É bem verdade que Bom Dia trata de forma mais descontraída assuntos proeminentes e
reincidentes em outros filmes de Ozu, como a modernização da vida e dos costumes (e, com
isso, a perda das raízes “tradicionais” japonesas), a velhice, ou os desentendimentos
ocasionais, por falhas ou desinteresse de comunicação. Verificamos um contraste ainda maior
ao estabelecermos um paralelo deste filme com, por exemplo, Viagem a Tóquio (1953) e o
doloroso relato de pais que viajam, entusiasmados, em busca dos filhos crescidos, e acabam
sendo ignorados por eles.
190
Há, assim, uma relativa universalidade em jogo no filme, que diz respeito à clássica
dificuldade de comunicação e mesmo de compreensão entre gerações, expresso em dois
níveis. Conflito de gerações, visto pela impaciência para com (e dos) mais velhos em relação a
seus filhos, como da mulher que xinga a mãe porque a mesma esqueceu de lhe dar o dinheiro
do pagamento dos impostos que a vizinha efetivou. Se por um lado a filha diz: “Vá para o
Monte Narayama, onde os velhos vão para morrer, caduca!”, a velha, por outro lado,
resmunga: “Sempre importunando. Pensa que cresceu sozinha! Depois de me deixar louca, se
casar com um marido ruim, acha que é coisa boa. Dar à luz uma filha como essa... ela me tira
a paciência”.
Contudo, o conflito de gerações mais pungente em Bom Dia é especialmente aquele
que nos é apresentado sob a disputa entre escola (deveres escolares) e o advento de uma
tecnologia (aqui, a televisão). Porém, o filme de Ozu mostra mais do que isso, ele fala sobre a
máxima familiar banal de primeiro os temas, depois a televisão (ou a brincadeira, o
videogame, ...)”. Não é sem critério que as crianças fazem uma greve de silêncio como forma
de pressão sobre os pais para a compra da televisão: como reclama Minoru, o que está em
jogo é a visão sobre a fala cotidiana; a visão sobre uma linguagem que, para eles, perdeu o
sentido, pois trata-se de uma linguagem reduzida ao mero formalismo e que, nas palavras do
menino, estão limitadas a um “‘Bom dia’, ‘Boa tarde’,Boa noite’, o tempo está bom’. ‘Ah,
é mesmo!’. Pergunta ele: “Para quê? Só por hábito. Só conversa fiada. Tudo falso!”.
Se no filme Nasci, mas... as crianças faziam uma greve de fome, Ozu reincreve (ou re-
escreve) a revolta das crianças por uma greve “de palavras”. Da greve de fome, portanto, à
greve de palavras. No filme (praticamente) mudo de 1932, a ironia vem de uma atitude
irônica das crianças diante de uma ordem da qual elas não conseguem entender o mecanismo
(hierarquização social entre o pai e seu patrão). Vinte anos depois, entre um e outro, o que se
mantém é o cenário pueril de desestabilização do nicho familiar pela tensão das crianças. Se
para o pai a televisão é “desnecessária”, para os meninos, “desnecessários” são os diálogos
cotidianos produzidos pelos adultos.
A crítica à televisão é introduzida para além da expressividade de símbolos estranhos à
cultura milenar por mais que, na conversa de bar, o pai afirme que “alguém disse que a TV
191
produziria 100 milhões de idiotas”, o que significaria que “todos os japoneses se tornarão
idiotas”. Ainda que, no mesmo diálogo, haja espaço para se dizer que “TV é uma praga”, a
crítica vai além. As questões tecnológicas são marcadas, igualmente, pela presença sutil
entrecortada no filme de vendedores obsoletos que passam de porta em porta: um para
vender elásticos ou para apontar lápis, outro para vender uma grande novidade: a de um sino
para prevenir crimes. A apreciação acerca da entrada da televisão no ambiente familiar é
acompanhada por (ou, ainda, imersa em) questões sociais (e, de certa forma, humanistas)
mais amplas, como a da aposentadoria (mais uma vez, reiterando o tema da velhice, comum
nos filmes do diretor), num país marcado pelo alto nível de idosos: o velho amigo do Sr.
Hayashi, pai dos meninos, desabafa, em relação à sua condição de aposentado: É terrível.
Como ser morto lentamente. As companhias acham que não comemos depois de nos
aposentar”. O mesmo idoso que, ao final do filme, encontra na venda de eletrodomésticos
por catálogo – e que vai, de porta em porta oferecer seu produto” – a “solução” para
continuar a trabalhar.
A greve de silêncio dos meninos tem regras e uma organização própria, as quais são
por eles mesmos estabelecidas. “Não responda, Isamu, não importa o que disserem.
Entendeu? Falo sério! Não fale!”. “Lá fora também?”. “Sim”. Para verificar a possibilidade de
sua efetivação, fazem “testes”: Minoru bate com um pau no irmão mais novo, belisca
fortemente a bochecha de Isanu. O irmão é “aprovado”: não grita, não chora, não responde
absolutamente nada. Ainda assim, estabelecem entre si um código com as mãos para quando
querem dizer algo um para o outro (uma espécie de permissão para falar) que a greve de
silêncio se somente na relação com os adultos; entre si, eles conversam (quase)
normalmente. Mais uma vez, ainda na mesma cena, silêncio entre os dois para colocar à prova
a capacidade de não falarem. O pequeno Isamu pede licença uma vez, esta lhe é negada pelo
irmão. Pede uma segunda vez. Antecipando o que o irmão quer, ele avisa: “Soltar pum pode”.
A família trata com leveza a situação, pergunta-se quanto tempo aquilo vai durar e
chega à conclusão de que “é melhor ignorá-los. É a fase da rebeldia”. Mas a greve de silêncio
ultrapassa os limites da casa e atinge aqueles demarcados pela vida em comunidade: saindo
para irem para a escola, os meninos passam pelas vizinhas e não as cumprimentam.
192
Estranhando a reação dos meninos, uma delas começa a questionar as causas daquele silêncio:
“Os dois olharam para mim e não disseram uma palavra. Será que a Sra Hayashi [mãe dos
meninos] ainda está braba comigo por causa de ontem?”. A partir do silêncio das crianças,
instauram-se os diz-que-diz, um irônico e divertido zumzumzum: a mulher, então, vai à casa
de outra vizinha (Sra. Okubo) para lhe dizer que a mãe de Minoru e Isamu é rancorosa, que
depois do mal-entendido entre as duas ela proibiu os filhos de a cumprimentarem. A Sra.
Okubo, por sua vez, receosa e desconfiada, vai a até a casa da mãe dos meninos pagar-lhe uma
cerveja e um passe de ônibus que lhe devia. Porém, antes de voltar à sua casa, a sra. Okubo
alerta uma outra vizinha (Sra. Tomizawa): “Se você pegou algo emprestado da Sra. Hayashi
devolva. Ela guarda rancor de coisas pequenas”.
Corredores e aposentos vazios, varais com roupas estendidas, postes de luz, planos
gerais de paisagens, entre-casas (em nenhum momento vemos as casas da comunidade por
completo, mas pela metade) e entre-planos (os tradicionais raccords de regard de Ozu, em
que o falante está de frente para a câmera ou para nós?). Bom Dia afirma a beleza dos
momentos singelos, porém plenos de novidades (especialmente pela atuação do pequeno
Isamu) e de quanto eles são capazes dar vida à imagem. Enquanto vemos o movimento da
reconstrução japonesa no período pós-guerra, contraditoriamente, não é o travelling, mas a
panorâmica fixa que nos mostra a tensão que a televisão catalisa, desde a desconfiança entre
os vizinhos, às crises sociais (a aposentadoria, o desemprego, o trabalho informal), aos não-
ditos que sustentam uma murmurante convivência (especialmente aquela inter-geracional).
Além disso, “o rigor da depuração do plano cinematográfico, o encadeamento que imprime
um ritmo entre seqüências descontínuas, bem como a minuciosa composição do
enquadramento, tudo isso geralmente nos convoca ao olhar, mais do que a falar sobre”
(GARDNIER, 2005, s/p). Os elementos narrativos são levados ao máximo da simplicidade.
Tal como em Kiarostami, não uma preocupação extremada à dramaticidade. Ruy Gardier
destaca que se trata de uma composição de imagens que, para nós, aparece muitas vezes com
características negativas: “‘ele não move a câmera’, os atores não são exagerados’,
procedimento distante de chegar a algum lugar na tentativa de definir o cinema de Yasujiro
Ozu” (Ibidem).
193
Ozu é generoso: generoso na duração dos planos, na linguagem cinematográfica que
instaura, bem como nas soluções para os conflitos. É generoso com as personagens e não as
descarta logo depois da palavra final de um diálogo: ao contrário, se o diálogo entre as
personagens acaba, ficamos ali, por algum tempo, a contemplar o não-dito, o silêncio da
conversa diária mais prosaica: o gesto. Empregando a câmara em posição baixa na quase
totalidade dos planos (na altura do tatame, fazendo jus às construções japonesas, onde as
situações se dão ao nível do chão), combinada a uma sobreposição de close ups nos atores, nos
quais os diálogos são retirados à maneira de um retrato em um estúdio fotográfico (inovando
assim a noção clássica de campo/contracampo), Bom Dia nos mostra uma montagem
absolutamente linear, onde as falas se dão no limite do monólogo (YOSHIDA, 2003, p. 285).
Pervertendo as tradições e os costumes, é a ingenuidade pueril de uma greve de
silêncio que expõe as redundâncias da verborragia cotidiana e desarticula uma estabilidade
ordinária. Se as saudações são vistas pelas crianças como perda de tempo, pelos adultos elas
são tomadas como poéticos “lubrificantes neste mundo”, que, como diz o professor de
inglês dos meninos, “as coisas importantes são difíceis de dizer”.
O filme não se perde no final feliz (que os pais dos meninos compram a televisão
pelas mãos do idoso aposentado), mas ganha na delicadeza, ao mostrar que, mesmo
desnecessários, os diálogos mais “vazios” são também o espaço onde o encontro é possível. É
justamente pelo domínio das frases feitas, do diálogo repetitivo e cotidiano sobre o tempo,
que permite ao tímido professor de inglês se aproximar da tia dos meninos, por quem é
apaixonado. As mesmas frases triviais são aquelas que separam, mas também as que permitem
a aproximação: o professor de inglês, apaixonado pela tia dos meninos, recorre aos
“lubrificantes do mundo” para abordar a mulher: “Bom dia!”. “Bom dia!”. “Belo dia, não?”.
“Ah, sim. Belo dia”. O tempo ficará bom por enquanto”. “Sim, parece que vai ficar bom um
tempo”. “Aquela nuvem tem uma forma interessante”. “Sim, tem uma forma interessante”.
194
Considerações finais
Em 1906, a chegada na França do rei do Cambodja, acompanhado de seu ballet, incita
Auguste Rodin a deslindar a beleza e a leveza do movimento das dançarinas, muitas elas
mirins, por meio de uma série de desenhos e aquarelas. Fascinado pelo movimento daqueles
corpos, ele subitamente resolve acompanhar o ballet de Paris a Marselha, mesmo sem seus
apetrechos de pintura o que o obriga a realizar seus desenhos em meros papéis de
embrulhar pão e a pintá-los somente mais tarde, já em seu atelier. Mais do que mera
inspiração, mais do que uma série da vida e na obra do artista, composta por cerca de 150
peças, Rodin é tomado pela paixão provocada por uma ebulição, uma efervescência de mãos,
braços, troncos, pescoços, movimentos. Para ele, mais do que a dança, é “a pintura, a
escultura, a música inteiramente o que elas animam” (RODIN, 2006, s/p, trad. minha).
Rodin afirma, ainda: “Eu as acompanhei em êxtase. Que vazio quando elas partiram, me senti
na sombra e no frio e acreditei que levaram consigo toda a beleza do mundo.... eu as segui até
Marselha e as teria seguido até o Cairo!” (Ibidem, s/p, trad. minha). Para Rodin, as
dançarinas comportavam beleza plástica expressa através do movimento, do dobramento dos
dedos e das mãos; desdobramento que, como diz o artista, “nenhuma mulher ocidental jamais
alcançaria” (Ibidem). Beleza facilmente aceita, universal, mas composta por uma
singularidade que se afirma no gesto, nunca plenamente inteligível ou narrável.
Nos filmes que aqui analisei trata-se de uma beleza que não é visível pelo caráter
exótico, pelo gosto e prazer voyerístico pelo diferente. Se tomarmos as acepções centrais
nesta seção, a universalidade diria respeito à abordagem de temas que facilmente
reconhecemos e reconhecemos não porque são caros a nós, presentes em nossas vidas,
“banais” –, mas porque repletos e tomados de um apelo ético a um olhar que nos mobiliza,
nos convoca exatamente em função do atravessamento de uma singularidade que se faz, ela
também, ética, pela afirmação de movimentos, de composição da imagem e de uma estética
cinematográfica que, talvez, “nenhum diretor ocidental alcançaria”. É mais do que pureza,
mais do que impureza: é um mesmo jogo que é possível porque questões culturais,
geográficas e históricas que o tangenciam.
195
Desta maneira, a relação que estes filmes colocam em primeiro plano excede à
dualidade ocidental e oriental, pois, ao fazerem dos temas mais que temas, os superam
justamente por dizerem respeito à tensão entre universal e singular. Portanto, não se trata de
uma diferença, de uma oposição e de um movimento que vai de um pólo a outro, mas de
relações de contigüidade, nas quais o universal só se efetiva como elemento ético na medida
em que tecido por fios aprazíveis de uma singularidade mobilizadora. Não é da criança futuro
que os filmes tratam. Não planos ou projeto, mas sua singularidade mobilizadora torna-se
talvez e também uma universalidade ética, até como algo a se desejar. Ao contrário, Ahmad
vem afirmar justamente o presente, em sua trivialidade e em sua singela exuberância; Minoru
e Isamu concentram em si o silêncio e o fazem arma potente contra a ordem da linguagem
sem sentido, da verborragia. Falamos, logo, de uma beleza singela, cotidiana e nem por isso
menos densa.
O movimento dos corpos infantis é lento, é compassado, possui um ritmo específico
traduzido por longos planos e closes, por sonorizações delicadas e, especialmente, com a
ausência de sonorização (ao invés de notas graves ou melodias doces, ouvimos, por vezes,
apenas o vento, o cacarejar de um galo ou o bater de um relógio); da mesma forma, a
ausência de dramaticidade dos atores nos acesso a uma outra forma de experienciar tanto o
tempo como as emoções. Se observarmos com atenção, essa adesão ao mundo em sua
imediatez e a forma como ela é narrada nos coloca frente à sensação de que ali nada parece
acontecer. No entanto, trata-se de imagens que concentram tudo aquilo que as imagens
apressadas não são capazes de apreender. Aquilo que, em geral apesar de estar sempre ali,
na nossa frente – não conseguimos ver” (PEIXOTO, 1992, p. 304).
Uma universalidade ética que se faz na afirmação de uma singularidade
mobilizadora. Ora, isso quer dizer que, por mais que a temática da universalidade circule em
torno da adesão da criança ao mundo em sua imediatez e no predomínio do gesto sendo
gesto aquilo que tem a a evidência de algo que não podemos ver nem definir, mas que nos
arrebata” (PEIXOTO, 1992, p. 301) –, esses filmes se fazem singularidades mobilizadoras
individualmente (não há, portanto, conceitos totalizadores, que abarcariam todos e quaisquer
filmes). O que nos arrebata e o que nos captura é mais do que a mera busca do menino ou a
196
greve de silêncio dos irmãos: é sua elevação à categoria de gesto singular. Ou seja, o gesto
que, em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, diz respeito ao olhar indeciso e à busca fremente, o
leimotiv (talvez a amizade, algo que não podemos “ver”, mas tão-somente sentir), em Bom Dia
diz respeito ao silêncio e ao predomínio de uma linguagem cinematográfica específica que
a ver o vazio, o não-dito (talvez a cumplicidade entre irmãos). Isso quer dizer que não são
filmes que falam de amizade, de cumplicidade: as crianças Ahmad, Nématzdé, Minoru e
Isamu fazem-se corpo-amizade, corpo-silêncio; elas dão corpo a esses sentimentos, elas
mesmas são seus veículos e não exemplos de sua atuação: “manifestação mais corporal
possível do indefinido, a marca perceptível do inapreensível” (Ibidem, p. 302). Crianças que
se fazem visíveis justamente porque concentram o invisível e o indiscernível.
Não pretendi, nesta seção, defender uma universalidade de filmes ou de diretores,
nem mesmo situar-me numa análise que se contentasse em dizer que não podemos
considerar, democraticamente, todos os filmes como sendo iguais. Ao contrário, busquei
enfrentar essa assertiva, ao desenvolver, a partir dos dois filmes, os conceitos de
universalidade ética e de singularidade mobilizadora (bem como os deslocamentos e
movimentos entre ambos), para apostar num espaço entre o universal e o singular. É por
acreditar que as imagens analisadas de Kiarostami e de Ozu nos comovem, que afirmo um
certo sentido de universal, referente à capacidade de ultrapassar as fronteiras para a
mobilização do olhar do outro; ao mesmo tempo, é porque as mesmas imagens nos falam de
uma forma radicalmente diversa sobre a criança que aposto em sua singularidade afirmativa,
que concerne às diferenças culturais. Assim, as formulações que descrevo e que têm sua
base, de fato, nas noções de pureza e impureza apontam para a sensibilidade de
compreender aquilo que pode nos surpreender nas imagens, aquilo que, deslocado dos
sentidos habituais e lineares que qualquer imagem aparentemente poderia nos trazer, nos
lança para o que é da ordem do novo e da criação. Isso significa apostar no potencial criador e
mesmo de subversão do dito, na medida em que “o cinema pode reproduzir o ruído do
mundo; [mas] também inventar um novo silêncio. Pode reproduzir nossa agitação, [e
igualmente] inventar novas formas de imobilidade. Pode aceitar a debilidade da palavra, pode
inventar um novo intercâmbio” (BADIOU, 2004, p. 70).
197
CONCLUSÃO
Desde o momento em que o tema desta pesquisa foi escolhido, em meados de 2004,
já sabia que ele iria me fascinar (e creio que é exatamente por isso que um tema de pesquisa é
escolhido). A idéia de me embrenhar no campo do cinema e, mais, de analisar um conjunto
de imagens, no caso as de criança, na medida em que são ou se tornam arte, era, de fato,
desafiador. Isso implicaria não apenas em tramar conceitos, pensar formas de dizer ou
mostrar de que arte, de que acontecimento e de que criança, afinal, estaria falando, mas
também averiguar histórias, filmes, materiais pungentes que o produzidos tanto hoje,
como, especialmente, materiais que acompanham nada menos do que a história do cinema.
Significava, então, dar conta, modestamente, de um percurso, de um trajeto, orientada pela
seguinte questão: em termos significativos, de destaque e de grande alcance, o que foi
produzido no âmbito desta arte, nestes seus pouco mais de cem anos, quando se trata de
criança?
À medida que a pesquisa ia se desenvolvendo, fui acompanhada não apenas pela minha
fascinação de pesquisadora, mas, da mesma forma, pela fascinação de tantas outras pessoas
que, das mais variadas áreas de conhecimento e atuação, sempre tinham algo a dizer sobre o
assunto ou, pelo menos, mais um filme a acrescentar à minha tão extensa lista. Tratava-se
de algo muito além do mero comentário, do mero sempre ter algo a dizer. E isso me
198
intrigava por dois motivos: um, primeiro, porque sentia que estava tocando num assunto
caro, num assunto que convocava não apenas meus amigos e colegas de pesquisa, como
também outras pessoas, de campos tão diversos e distantes do meu. Por outro, essas
participações me faziam crer que aquele (este) era (é) um tema não apenas de grande
interesse, como também um tema que invoca memórias, que invoca tempos, invoca
atravessamentos e invoca um pouco da própria vida das pessoas.
Ao adotar esse posicionamento frente aos materiais e àquilo que eles compõem
imageticamente, algumas dúvidas e obstáculos se apresentaram. Como passar da dimensão do
acontecimento para a sua “descrição”, sem que aí, nessa “transposição”, corresse o risco de
perder algo? Ou, ainda, como dar conta dessa descrição sem macular, no caminho, a
vivacidade, o fulgor, daquilo que é da ordem do acontecimento? – embora, claro, não
pretendi apontar e assinalar, peremptoriamente, o momento exato de um acontecimento.
Antes disso, a partir dessa maneira de ver os materiais, pretendi tão-somente mostrar como
certos elementos se uniram, se encontraram, dentro de uma determinada multiplicidade, de
forma a dar a ver outra criança que não a de uma vontade de saber. No trabalho, em grande
parte das vezes, solitário do pesquisador, uma outra dúvida pairava: como falar daquilo que
nos emociona? Como mostrar por que e como as imagens e as crianças nos convocam, nos
sensibilizam? Como falar de criança e cinema sem recorrer a simplificações ou a noções das
quais tanto buscava escapar? Talvez tenha sido este o meu grande desafio ou, pelo menos, o
grande desafio desta tese.
Obviamente que o aprofundamento de conceitos, bem como o estudo de uma
linguagem e de um campo que me era a então desconhecido ajudaram nesta tarefa. No
entanto, mais do que apontar o dedo para as imagens e mostrar os conceitos ipsis litteris, eles
me serviram como espécie de ressonâncias, de vibrações; serviram, sobretudo, para o
movimento de meu próprio pensamento e para a conversão do meu olhar. O envolvimento
conceitual foi o que, de fato, auxiliou-me a selecionar o que dizer de cada filme, o que
destacar em relação a esta ou àquela seqüência, e talvez principalmente tenha me auxiliado a
decidir quais seqüências pontuar; significou, portanto, sustentar minhas próprias escolhas,
199
mesmo que indiretamente, em relação àquilo a que dei visibilidade e àquilo a que tive que
abandonar quanto a cada um dos materiais que compunham o corpus.
Tese-tríptica. Foi deste modo que preferi nomear o conjunto de três eixos
estruturadores desta pesquisa. Tese-tríptica, que encontra sua sustentação sobre os conceitos
de criança, autoria e imagem.
Pensar a criança como vontade afirmativa de potência foi um dos caminhos adotados
aqui para as análises feitas no âmbito do cinema. Pensar a criança não para agir sobre ela, mas
no intuito de verificar as formas pelas quais ela age sobre s. Pensar a criança não como
ponto de encontro de uma identidade, como existência concreta e comprobatória de um
conjunto de características que lhe são anteriores, mas como elemento que justamente o
contradiz. Verificar como ela tensiona os diferentes modos de abarcá-la, escapando ora daqui,
ora dali mesmo que em alguns momentos, neste processo, ela volte ao que é da ordem do
mesmo. Tratou-se, portanto, de converter o olhar e apostar nos veículos, nas composições,
nos espaços que permitem mostrar a criança como acontecimento (traduzidos aqui sob a
forma de imagens cinematográficas). Veículos, composições e espaços que, antes de mais
nada, fazem vacilar o que correntemente pensamos sobre a criança, e não aqueles que nos
asseguram sua descrição.
No percurso, esta pesquisa empenhou-se em suspender o que de mais
característico na apreensão de saberes sobre a criança na contemporaneidade: “A vontade de
verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o
verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior” (MACHADO, 1999, p.
12). Vontade de verdade entendida como “expressão de uma vontade negativa de potência”
(Ibidem). Ao mesmo tempo, seria ingênuo supor que, de forma bastante objetiva, uma tese
não se proponha a algum tipo de conhecimento. Nesta, no caso, o esforço foi o de produzir,
na vertente de autores como Foucault e Nietzsche, um certo tipo de conhecimento cujas
características fossem aquelas ligadas à arte. Tratou-se, portanto, de pensar de que maneira a
imagem do cinema dá outros nomes para a criança, por vezes coincidentes, mas por vezes
também conflitantes com noções do “verdadeiro” ser infantil e do dever ser infantil. “A
200
‘verdade da arte é acreditar na imagem como imagem” e não como sua dissimulação
(MACHADO, 1999, p. 40).
Mergulhar a criança no conceito de infância (atar a criança a uma vontade de verdade
de seu tempo) significaria apostar na massa amorfa, enquanto que, o que quis, ao contrário,
era circular no meio de singularidades. Não as crianças, mas simplesmente aquela criança, na
relação específica que estabelece com aquela outra criança, com aquele adulto ou mesmo com
ela própria, simplesmente. Infância (vontade de verdade) foi entendida, provisoriamente,
como união, ao passo que criança e imagem no olhar sem corpo do cinema como dispersão,
conseqüentemente, avessa à possibilidade de chegarmos a uma acepção categórica do tipo “as
crianças são”. Se ela são algo, esse algo se manifesta sob a forma de vontade afirmativa de
potência, que, por sua vez, só ganha existência quando um conjunto específico de forças entra
em relação.
A partir dessas premissas, o esforço deu-se em verificar de que maneira essa vontade
afirmativa de potência se expressa. Neste sentido, a amizade foi entendida como elemento de
afirmação positiva da vontade: não da vontade um sujeito, soberano, mas de uma conjugação
de forças que se materializa no exercício estético de uma relação ainda não inteiramente
institucionalizada. Afirmar a si mesmo é, paradoxalmente, abrir caminhos para se reinventar.
Na amizade, não há, portanto, fixação do vivido, mas prioritariamente receptividade ao
novo. Vontade afirmativa de potência é sinônimo também de vontade de superação, é querer-
se a si mesmo maior. A amizade torna-se assim, a um tempo, possibilidade de luta entre
forças e também de afirmação contínua de um novo começo. A criança no exercício da
amizade se esforça para transcender a si mesma e a outrem, ao invés de estar submetida à
transcendência.
Da mesma forma, outro elemento possibilitou-me pensar nas relações entre criança e
vontade afirmativa de potência: o encontro com o anômalo. Qual a diferença entre o conceito
de amizade e do encontro com o anômalo? Mais do que uma relação de autotransformação, o
encontro com o anômalo (seja quando o adulto é o anômalo ou quando a criança é o
anômalo), permitiu que fossem pensadas as formas pelas quais não mais a criança se faz
múltipla e variável, mas como ela atravessa tipos de multiplicidade (intensivas e extensivas) e
201
campos de variabilidade. Isso significou não mais enfatizar a característica de a criança fazer-se
novo começo, mas, sobretudo, a de ela fazer-se esquecimento: no encontro com o “indivíduo
excepcional” (anômalo), o que se faz precípuo é o choque contra a fixidez, uma vez que, na
diagonal estabelecida pelo anômalo, cada elemento em jogo varia sem cessar (DELEUZE e
GUATTARI, 2002). O que aproxima e por que aproximar os conceitos de encontro (com o
anômalo) e de amizade nesta tese? O fato de que ambos permitem com que as crianças se
tornem irredutíveis umas em relação às outras.
Investir no cinema significou também problematizar os conceitos advindos desse
campo e tentar recolocá-lo no interior das discussões sobre criança, imagem e educação. Por
esta razão, o conceito de autoria constituiu-se como um dos eixos que sustentam a tese.
Neste sentido, meu esforço foi o de destacar um tema que acompanha não apenas a história
do cinema, mas também um murmúrio mais amplo a respeito do modo como, no senso
comum, as pessoas se relacionam com os filmes. Mostrei de que maneira, antes de dizer
respeito a uma unidade totalizadora, tal noção é atravessada, especialmente, pela criação de
personagens (personae). Os personagens-crianças criados pelas imagens e a vida que ganham
são dados pela sua composição estética específica. Eles ganham vida e são vida não porque
escritos num roteiro, mas pelo close, pela luz que emana de sua apresentação, pelas
composições a que dizem respeito, enfim, por um processo que consiste em deixar e serem
marcas, rastros, sinais e que ultrapassam seja a superfície da tela, seja aqueles que nela as
projetou (no caso, a figura do diretor).
Aliada ao pensamento de Rosa Fischer (2005), que se inquieta com a produção de
textos acadêmicos que muitas vezes parecem não ter autor, penso que fui tomada por um
desconforto na tentativa de resumir o cinema como uma arte coletiva, e, igualmente, pela
pergunta feita por George Steiner, expressa da seguinte forma: “as teorias desconstrucionistas
e ‘pós-modernas’ estariam subvertendo o [conceito] de ‘criador’” (STEINER 2003, p. 24)?
Onde fica o espaço para a mais genuína criação quando resumimos tudo a uma espécie de
suposta assepsia? Foi em função desta pergunta que busquei elaborar outras bases para a
questão da autoria no cinema. Entendo que o ato de criação envolve um processo de
composição de personagens (personae), mas não sem antes ser composto de uma marca, de
202
uma assinatura (FISCHER, 2005): uma concentração turbulenta, incongruente, entre a
criança que vemos e o diretor que a tornou visível; uma assinatura, portanto, impossível de
demarcar onde uma começa e outro termina; uma assinatura que lida com ausência e com o
apagamento de seu criador, mas que também é atravessada por elementos singulares que a
diferenciam de outras assinaturas. Ausência, presença; visibilidade e apagamento, pares tido
como opostos, mas que aqui caracterizam o ato de assinar como contrário à idéia de uma
unidade totalizadora: “a obra perdura na medida em que carrega consigo as marcas e as
cicatrizes vulcânicas deixadas por uma incandescência interna e por uma superfície que muitas
vezes se destrói a si mesma” (STEINER, 2003, p. 236). Obras que perduram por meio das
vidas que as atravessam, pela escrita que as assina e que, justamente por isso, excedem o “eu”
pessoalizado que as criou.
Por meio do desenvolvimento específico das noções de autoria e de assinatura, passei
a questionar-me como era possível falar em criação, em apagamento do autor, em filmes
compostos a partir da memória da infância de seus diretores. Aliada ao conceito de “escrita de
si” extraído de Michel Foucault, articulei a noção de imagem de si”, tratando-a como um
exercício de pensar sobre o próprio pensamento, de composição de uma imagem para si, mas
especialmente para outrem. Não uma escrita de si, portanto, mas uma imagem de si, que
ultrapassa a noção de pessoalidade para sua transformação. Se para Foucault a escrita de si
esteve sempre ligada a um ato de se auto-transfomar, a imagem de si no cinema está mais
ligada à transformação da criança como resultado da vontade de verdade.
Contudo, por mais que tente personalizar, remodelar e modificar a linguagem, o
escritor é herdeiro de um instrumento que não é seu” (STEINER, 2003, p. 327). De fato,
isso se dá, para Steiner, não apenas para o escritor, mas também para o músico, para o pintor
e, por que não dizer aqui?, também para o diretor. Os esconderijos agora abertos da sua
memória transformam-se, sofrem variações em busca de uma outra imagem da criança para
além daquela que efetivamente ele foi. Mas não isso, rompendo com qualquer teoria
originária e a-histórica, sabe-se que “o legado de tudo o que foi herdado, e num grau maior
ou menor, da própria contemporaneidade, é capaz de congestionar a mais cuidadosamente
resguardada das reclusões” (Ibidem).
203
No que diz respeito ao terceiro conceito que compõe esta tese tríptica, ao invés de
dizer o que é uma imagem, busquei responder ou dar conta de duas discussões. A primeira
diz respeito à relação da imagem com o dito real”. Para tanto, a análise de documentários
foi-me essencial, pois neles se encerra uma das grandes dualidades que o tema da imagem
carrega: o real versus o ficcional. Pelas tramas de crianças indianas, árabes e judias, mostrei de
que forma, antes de mais nada, real não é o fato dado na tela, não é o resultado, mas uma
relação que estabelecemos com a imagem. Isso quer dizer que aquilo que dizemos ser “real”
o é por forjar (o que não quer dizer manipular) as relações entre o que vemos e o que nos
olha. O real não está lá, na imagem, mas na operação em torno de um “regime de veracidade”
que é dado pela imagem, mas também pelo resultado da relação que com ela estabelecemos.
Ainda assim, os documentários analisados permitiram-me pensar acerca da criança-
camelo, que suporta os pesos de uma guerra, da criança que se faz corpo-memória, corpo-
finalidade, mas também que irrompe, que transgride e que foge aos processos que buscam
fixar sua identidade. A criança que não se deixa adestrar é, assim, vontade afirmativa de
potência, que entra em choque com vontade de verdade sobre a infância. A criança, nesta
perspectiva, abre pequenos espaços, pequenos vazios no disputado jogo de forças estabelecido
para fixar seu sentido e seu significado em torno da máxima “a criança é”.
A segunda discussão que busquei empreender sobre o conceito de imagem diz
respeito a alguns elementos que tanto me intrigavam no decorrer do trabalho, especialmente
em relação a filmes produzidos fora do contexto ocidental. Desde o início desta pesquisa,
sentia-me sempre alertada por uma espécie de impossibilidade da leitura da imagem da
criança dita “oriental”. Ao mesmo tempo, qual seria o ponto de encontro imagético para que
estas crianças não apenas se fizessem reconhecíveis a nossos olhos, como nos tocassem de
forma tão intensa? Ao descrever os conceitos de pureza e impureza da imagem e, a partir
deles, criar outras categorias de análise, busquei organizar formas que não levassem a um
entendimento acerca de uma universalidade da imagem, mas de um entendimento por parte
desta, que se faz imediato justamente porque tecido por diferenças que, para s, talvez
sejam impossíveis de capturar em sua totalidade. A criança e a adesão ao mundo em sua
imediatez seriam, assim, outra forma de dizer a criança como esquecimento.
204
Durante o percurso da realização desta pesquisa, como se pode observar, a tríade
criança, autoria e imagem esteve presente do começo ao fim. Do encontro destes conceitos
com uma linguagem específica ou, mais amplamente, com uma estética cinematográfica, foi
possível cruzar elementos e, com isso, dar conta de um conjunto de “categorias de análise”.
Tais categorias não estão separadas entre si e puderam ser elaboradas na medida em que
conceitos teóricos foram diretamente atravessados por uma linguagem específica, pelo modus
operandi de análise e, especialmente, pela inseparabilidade entre o teórico e o metodológico.
A partir deste conjunto, podemos pensar em algumas conclusões, mesmo que não
universais, nem fixas, acerca das perguntas que me incumbi de dar conta. Parafraseando Rosa
Fischer, que fala sobre uma “televisibilidade”, percebi, de forma mais circunscrita (qual seja,
no cotejo entre criança, autoria e imagem), que também uma “cinebilidade” em jogo e que
coloca em movimento grande parte destas categorias: “regime de veracidade”
, que diz
respeito às formas de a imagem se construir; imagem de si”
, que tem a ver com as formas
pelas quais se imprime na película o movimento de uma vida, para além da memória, do
manter e do fixar, mas que margem ao paradoxo da mais pura criação daquilo que
existe; o predomínio do gesto
e a “adesão ao mundo em sua imediatez”, que diz respeito à
organização de uma linguagem que atesta o que de mais específico no cinema em sua
relação com a criança. Tem a ver com temas, sim, mas tem a ver, especialmente, com a
constituição de uma estética do olhar que, hoje, talvez o cinema seja capaz de fazer: dar
supremacia à captura do gesto. Um movimento marcado por universalidades éticas
e
singularidades mobilizadoras
que, ao dar predominância ao tempo, à duração, convoca a
olharmos as imagens diferentemente, talvez de um modo oposto àquele da atribulação de
imagens de que somos alvo por parte dos mais variados meios de comunicação; não
universalidades per se, mas tramadas no interior de uma ética do olhar que as caracteriza e que
nos mobiliza. Ainda assim, para além da “cinebilidade”, as demais categorias buscaram, sob
diferentes aspectos, integrar os conceitos-chave desta pesquisa: no que diz respeito à criação
de personae, verificou-se que este é, em grande parte, o modo pelo qual as crianças fazem-se
vivas neste meio; é o modo pelo qual elas ultrapassam a superfície na tela e ficam impregnadas
no tempo e é daí que possuem a capacidade de nos convocar; a organização de uma assinatura
,
que tem a ver com o modo como os diretores constroem a imagem da criança como
205
singularidade em torno de marcas que excedem a unidade totalizadora do autor; por fim, a
amizade
, bem como o encontro com o anômalo foram as formas pelas quais tornou-se
possível descrever a criança como vontade afirmativa de potência e como, a partir das
relações que estabelecem entre si e com os adultos, ela se faz também esquecimento e novo
começo.
Assim, penso que poderíamos sistematizar tais categorias da seguinte forma:
Esquema geral das
categorias de
análise
CRIANÇA
IMAGEM
AUTORIA
CRIANÇA
Encontro/amizade
Universalidade ética
e singularidade
mobilizadora
Imagem de si
IMAGEM
Adesão ao mundo em
sua imediatez;
predomínio do gesto
“Regime de
veracidade”;
“fazer crer”
Memória e invenção
do já-existente
AUTORIA
Criança/anômalo
Assinatura
Criação de personae
O estudo sobre o campo do cinema e sobre sua relação com a criança, levou-me a
quer mais: querer mais do cinema e da criança, a querer (saber) mais sobre filmes e sobre
imagens, a querer fazer mais com as imagens a que assistimos cotidianamente (e talvez com
aquelas a que não assistimos). Creio que, acima de tudo, levou-me a querer mais, fazer mais e
pensar mais sobre uma questão, aparentemente, tão simples: “e agora?”. Talvez, no ato
mesmo de descrever esse “querer mais”, eu esteja querendo mostrar um pouco (e lidar com)
a idéia de ter me deparado com um mundo novo e vasto, absurdamente vasto.
206
Talvez tenha me deparado com um sentimento próximo àquele que tão bem Godard
expressa ao relacionar o cinema a um país, a um país a mais sobre um (o) mapa: “O cinema é
o país que faltava no meu mapa de geografia” e, a esse respeito, se questionava: “atualmente,
nos perguntamos se se trata de um império, de uma nação ou de uma província”. Se para
Godard, como cineasta, a questão pungente dizia respeito ao ato de fazer cinema, para mim,
neste caso, ela se relaciona com um verdadeiro universo que se apresenta agora no meu
mapa. Assim, mais do que apresentar certezas e dados prontos, finalizo este texto talvez com
a proposta de um novo trabalho a ser feito e que aqui não estaria separado do que justamente
seria a marca maior da pesquisa que ora concluo: a renovada confrontação com novos trajetos
a serem percorridos. Trajetos, que dizem respeito, sobretudo, a esse universo, ao qual não
cabe exatamente desbravar, mas a ele entregar-se totalmente.
207
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1.2 CRIANÇA E ANÔMALO: MULTIPLICIDADES EM JOGO NA ESTÉTICA
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Filmes citados
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_____. Tempos Modernos [Modern Times] Estados Unidos, 87 min., 1936.
_____ . Luzes da Cidade [City Lights]. Estados Unidos, 87 min., 1931
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_____. Uma Vida de Cão [A Dog’s Life]. Estados Unidos, 88 min., 1918
FEYDER, Jacques. Visages d’Enfants. Bélgica, 90 min., 1925.
HALLSTRÖM, Lasse. Minha Vida de Cachorro [Mitt Liv Som Hund]. Suécia, 101 min., 1985.
HERZOG, Werner. O Enigma de Kaspar Hauser [Jeder für Sich und Gott Gegen Alle]. Alemanha,
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2.0 A AUTORIA QUE NOS ESCREVE
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BOORMAN, John. Esperança e Glória [Hope and Glory]. Inglaterra, 102 min., 1987.
CHAPLIN, Charles. O Garoto [The Kid]. Estados Unidos, 79 min., 1921.
KIAROSTAMI, Abbas. Onde Fica a Casa do Meu Amigo? [Khaneh-Ye Dust Kojast?]. Irã, 90
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MEIRELLES, Fernando. Cidade de Deus. Brasil, 130 min., 2002.
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ROSSELLINI, Roberto. Alemanha, Ano Zero [Germania, Anno Zero]. Itália, 80 min.,1947.
SAURA, Carlos. Cría Cuervos. Espanha, 107 min.,1976.
VAJDA, Ladislao. Marcelino, Pão e Vinho [Marcelino Pan Y Vino]. Itália/Espanha, 91 min., 1954.
VIGO, Jean. Zero de Conduta [Zéro de Conduite – Jeunes Diables au Collège]. França, 41
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214
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MEIRELLES, Fernando. Cidade de Deus. Brasil, 130 min., 2002.
TRUFFAUT, François. Os Incompreendidos [Les 400 Coups]. França, 100 min., 1959.
2.2 CINEMA E LEMBRANÇAS INFANTIS: PARADOXOS DA CRIAÇÃO NO
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Filmes citados
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BERGMAN, Ingmar. Fanny e Alexander [Fanny & Alexander]. Suíça/França/Alemanha,1982, 182
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CARO, Niki. Encantadora de Baleias [Whale Rider]. Nova Zelândia, 105 min., 2003.
216
BOORMAN, John. Esperança e Glória [Hope and Glory]. Inglaterra, 107 min., 1987.
DAYTON, Jonathan; FARIS, Valerie. Pequena Miss Sunshine [Little Miss Sunshine]. Estados
Unidos, 101 min., 2006.
FELLINI, Frederico. Amarcord. Itália, 127 min., 1973.
GRAVAS, Julie. A Culpa é de Fidel [La faute à Fidel] França, 99 min, 2005.
MALLE, Louis. Adeus, Meninos [Au Revoir, Les Enfants]. França, 102 min., 1987.
_____. Zazie no Metrô [Zazie Dans le Métro]. França, 92 min., 1959.
OLIVEIRA, Manoel de. O Porto da Minha Infância. Portugal, 61 min., 2001.
PANAHI, Jafar. O Espelho [Ayeneh]. Irã, 80 min., 1997.
_____. O Balão Branco [Badkonake Sefid]. Irã, 90 min., 1995.
SAURA, Carlos. Cría Cuervos. Espanha, 107 min., 1976.
TRUFFAUT, François. Os Incompreendidos [Les 400 Coups]. França, 100 min., 1949.
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Filmes citados
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_____. Encouraçado Potemkin [Bronenosets Potymkin]. Rússia, 74 min., 1925.
TRUFFAUT, François. Os Incompreendidos [Les 400 Coups]. França, 100 min., 1949.
FEYDER, Jacques. Visages d’Enfants. França, 124 min., 1925.
3.1 REAL VERSUS FICÇÃO: CRIANÇA E IMAGEM NO LIMITE DOS REGIMES DE
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NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas: Papirus, 2005.
RABIGER, Michael. Uma conversa com professores e alunos sobre a realização de
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Filmes citados
COUTINHO, Eduardo. Jogo de Cena. Brasil, 105 min., 2007.
SHAPIRO, Justine e GOLDBERG, B. Z. Promessas de um Novo Mundo [Promises]. Estados
Unidos/Israel, 106 min., 2001.
KAUFFMAN, Ross e BRISKI, Zana. Nascidos em Bordéis [Born Into Brothels: Calcutta’s Red Light
Kids]. Estados Unidos, Índia, 85 min., 2004.
3.2 UNIVERSALIDADE ÉTICA, SINGULARIDADE MOBILIZADORA:
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BERGALA, Alain. L’Hypothèse Cinéma. Petit traité de transmission du cinéma à l’école et ailleurs.
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YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Filmes citados
KIAROSTAMI, Abbas. Onde Fica a Casa do Meu Amigo? [Khaneh-Ye Dust Kojast?]. Irã, 90 min.,
1987.
MAJIDI, Majid. Filhos do Paraíso [Bacheha-Ye Aseman]. Irã, 88 min., 1997.
PANAHI, Jafar. O Balão Branco [Badkonake Sefid]. Irã, 85 min., 1995.
OZU, Yasujiro. Bom Dia [Ohayô]. Japão, 93 min., 1959.
CONCLUSÃO
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1730 Devir-intenso, devir-animal, devir-
imperceptível... In: _____. Mil Platôs capitalismo e esquizofrenia – Vol. 4. São Paulo: Ed. 34,
2002. p. 11-113.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Escrita acadêmica: a arte de assinar o que se lê. In: COSTA,
Marisa Vorraber; BUJES, Maria Isabel (Orgs.). Caminhos Investigativos III riscos e possibilidades
de se pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. P. 117-140.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
STEINER, George. Gramáticas da Criação. São Paulo: Editora Globo, 2003.
POST SCRIPTUM
BADIOU, Alain. El cine como experimentación filosófica. In: YOEL, Gerardo (Org.). Pensar el
Cinema I: imagem, ética y filosofia. Buenos Aires: Manantial, 2004. P. 23-81.
220
BERGALA, Alain. L’Hypothèse Cinéma. Petit traité de transmission du cinéma à l’école et ailleurs.
Paris: Petite Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 2002.
DELEUZE, Gilles. Os intelectuais e o poder. Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze.
In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000. P. 69-78.
LA CINEMATHEQUE FRANÇAISE. Programme septembre-octobre. Paris, Ministère de la
Culture et de la Communication, 2006a.
_____. Programme – juin-août. Paris, Ministère de la Culture et de la Communication, 2006b.
FOUCAULT, Michel. As meninas. In: _____. As Palavras e as Coisas uma arqueologia das
ciências humanas. Lisboa: Edições 70, 1998.
221
ANEXO 1
Súmulas dos filmes analisados
222
BOM DIA
Título original: Oha
Direção: Yasujiro Ozu
Gênero: drama
Ano: 1959
País de origem: Japão
Duração: 93 min.
SINOPSE: Uma novidade vem abalar um tranqüilo bairro da periferia de Tóquio: um jovem casal
comprou uma TV e todos os garotos do bairro vão à sua casa assistir ao torneio nacional de
"sumo", ao invés de estudar. Dois destes garotos, os irmãos Isamu e Minoru pedem aos pais que
comprem uma TV. Os pais recusam, e em represália os dois fazem uma greve de silêncio.
Recusando-se a falar com os pais e com os outros colegas do bairro, os irmãos acabam
provocando uma série de situações embaraçosas. Bom Dia é um retrato satírico da vida familiar
suburbana japonesa.
CENTRAL DO BRASIL
Título original: Central do Brasil
Direção: Walter Salles
Gênero: drama
Ano: 1998
País de origem: Brasil
Duração: 112 min.
SINOPSE: Dora (Fernanda Montenegro) escreve cartas para analfabetos na estação Central do
Brasil. Uma das clientes de Dora é Ana, que vem escrever uma carta com seu filho, Josué, um
garoto de nove anos, que sonha encontrar o pai que nunca conheceu. Na saída da estação, Ana é
atropelada e Josfica abandonado. Mesmo a contragosto, Dora acaba acolhendo o menino e
envolvendo-se com ele. Termina por levar Josué para o interior do nordeste, à procura do pai. À
medida que vão entrando país adentro, esses dois personagens, tão diferentes, vão se
aproximando.
FANNY E ALEXANDER
Título original: Fanny & Alexander
Direção: Ingmar Bergman
Gênero: drama
Ano: 1982
País de origem: Suíça/França/Alemanha
Duração: 182 min.
SINOPSE: Fanny e Alexander, netos da matriarcal família de Helena Ekdhal, convivem com o
fantasma do recém-falecido pai e os conflitos de parentes e empregados da casa. A obra é mais
que uma belíssima e comovente declaração de amor à vida. É também a obra-prima de Ingmar
Bergman, o Grande Mestre da Sétima Arte. “Fanny e Alexander” é a soma total da minha vida
como diretor de cinema, disse ele. De fato, este é um Bergman perfeccionista, humanista,
sensual e inventivo como sempre, com geniais pinceladas de humor e realismo fantástico, que
substituem o clima denso de suas obras anteriores. “A imaginação tece a sua teia e cria novos
desenhos... e novos destinos...”
223
O GAROTO
Título original: The Kid
Direção: Charles Chaplin
Gênero: drama
Ano: 1921
País de origem: EUA
Duração: 79 min.
SINOPSE: O garoto, feito em 1921, conta a história de uma mãe solteira que pela
impossibilidade de poder criar o filho recém-nascido o deixa em um banco de um automóvel
luxuoso para que alguém o ache e cuide dele, mas o automóvel é roubado e os ladrões
abandonam o bebê em uma viela. O vagabundo Carlitos encontra a criança e tenta primeiramente
a todo custo se livrar dela, mas não consegue devido a circunstâncias adversas, com o passar do
tempo vai se afeiçoando à criança e passa a criá-la. Ao mesmo tempo a mãe do bebê se arrepende
e começa a procurá-lo até que descobre que o carro foi roubado e que nunca mais irá encontrar
seu filho. O garoto foi o primeiro grande sucesso da carreira de Chaplin Chaplin que época
ainda estava contratado do estúdio First National, apesar de atrelado ao estúdio o diretor
consegui dirigir e atuar, também escrever e montar o filme. A trilha sonora também composta
por Chaplin foi feita apenas em 1971. Considerado uma das muitas obras-primas de Chaplin, O
garoto trouxe para a época a utilização do sonho como uma inovação. O filme traz o primeiro
ator mirim que ficou lebre, Jackie Coogan que rouba a cena de Chaplin em alguns momentos
do filme.
O GAROTO SELVAGEM
Título original: L’Enfant Sauvage
Direção: François Truffaut
Gênero: drama
Ano: 1969
País de origem: França
Duração: 88 min.
SINOPSE: Em 1797, um menino foi encontrado floresta de Aveyron, o qual vivia como selvagem
sem saber andar, falar ou se expressar como s. Ele então fica sob os cuidados do médico Jean
Itard, que acredita poder sociabilizá-lo. Itard conta com a ajuda de Madame Guérin, sua
governanta, para educar o menino e ajudá-lo a se comunicar através de sinais. O menino tenta
escapar, mas acaba se envolvendo numa relação filial com o jovem doutor. História baseada em
fatos reais que ocorreram nos fins do século XVIII.
OS INCOMPREENDIDOS
Título original: Les 400 Coups
Direção: François Truffaut
Gênero: drama
Ano: 1959
País de origem: França
Duração: 100 min.
SINOPSE: Nesse filme, Jean-Pierre Leáud (Antoine) é o desprezado filho de Mme (Claire
Maurier), que parece ter tempo para tudo, menos para o bem-estar do seu filho. “M” é o suposto
pai (Albert Remy), que cria o menino como seu próprio. Antoine é um péssimo estudante e
224
odeia seu professor (Guy Decombie). Ele e seu amigo Re(Patrick Auffay) faltam a escola e
decidem visitar um parque de diversão. Surpreendido, Antoine sua mãe beijando seu amante
na rua. No dia seguinte, Antoine deve explicar ao seu professor o porquê de sua falta. Ele se
comporta de maneira esnobe e afirma que faltou devido à morte de sua mãe. Quando seus pais
aparecem na escola, a mentira é revelada e Antoine foge, passando a noite fora de casa. Apesar de
seu mau comportamento, Mme acaba aceitando o garoto de volta. O professor acusa Antoine de
plagiar Balzac, sendo este o estopim para o garoto abandonar sua casa e escola. Antoine esconde-
se na casa de René por certo tempo, descobrindo que a vida longe de casa necessita de dinheiro.
Ele rouba uma máquina de escrever do escritório de seu pai, mas depois é impedido de penhorá-
la. Ele tenta devolver o objeto, mas é surpreendido pelo vigia (Henri Virlojeux). Antoine é
levado à delegacia, onde seu pai diz ao chefe de polícia que ele e sua mulher não podem lidar com
um filho tão incorrigível. O garoto de dez anos é então mandado para a prisão, junto com uma
horda de perigosos criminosos. Depois, ele é mandado para um centro de recuperação para
delinqüentes juvenis e é examinado por um psiquiatra. Ele abre sua alma e conta a história de sua
família para o especialista. Sua mãe visita-o e diz que ainda o ama, porém seu pai não o quer mais.
Enquanto jogava futebol, Antoine escapa e segue rumo à Normandia, para o mar, que sempre
representou a liberdade para ele. Em uma das seqüências mais famosas do cinema, o garoto pára
no limite do Atlântico e vira-se para a câmera, com sua face refletindo toda a confusão da
juventude e o castigo imposto pelas mãos da sociedade.
A LÍNGUA DAS MARIPOSAS
Título original: La Lengua de las Mariposas
Direção: José Luis Cuerda
Gênero: drama
Ano: 1999
País de origem: Espanha
Duração: 95 min.
SINOPSE: Don Gregorio é um velho professor de uma pequena cidade espanhola. Moncho, um
garoto de sete anos que inicia sua vida escolar meses antes da ditadura se instalar no país. Com o
velho mestre, ele descobre o prazer de aprender, de admirar e explorar a natureza, de viver com
os sentidos e os sentimentos. A nobreza do mestre é demonstrada logo no início do filme,
quando ele vai até a casa no novo aluno pedir desculpas, pois, mesmo sem intenção, humilhou-o
frente aos colegas em seu primeiro dia de aula. A história singela, triste e profunda do
relacionamento entre aluno e mestre é cenário para mostrar a ascensão do regime militar
espanhol, e como a força militar mexeu com a moral e a ética da população, inclusive em relação
a Don Gregorio, que fazia parte da resistência ao regime repressor.
ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO?
Título original: Khaneh-Ye Dust Kojast?
Direção: Abbas Kiarostami
Gênero: drama
Ano: 1987
País de origem: Irã
Duração: 90 min.
SINOPSE: Ao fazer o seu dever de casa, Ahmad descobre que pegou o caderno do seu amigo por
engano. Sabendo que o professor exige que as tarefas sejam feitas no caderno, ele vai a vila
225
vizinha com o intuito de encontrar o amigo e então devolver o caderno. Ahmad não consegue
encontrar seu amigo, pois não sabe onde ele mora. Ele decide então, voltar para casa e fazer a
lição de casa do seu amigo.
PIXOTE, A LEI DO MAIS FRACO
Título original: Pixote, a Lei do Mais Fraco
Direção: Hector Babenco
Gênero: drama
Ano: 1981
País de origem: Brasil
Duração: 127 min.
SINOPSE: Pixote (Fernando Ramos da Silva) foi abandonado por seus pais e rouba para viver nas
ruas. Ele esteve internado em reformatórios e isto ajudou na sua "educação", pois conviveu
com todo o tipo de criminoso e jovens delinqüentes que seguem o mesmo caminho. Ele
sobrevive se tornando um pequeno traficante de drogas, cafetão e assassino, mesmo tendo apenas
onze anos.
PROMESSAS DE UM NOVO MUNDO
Título original: Promises
Direção: Justine Arlin, Carlos Bolado e B.Z. Goldberg
Gênero: documentário
Ano: 2001
País de origem: EUA/Palestina/Israel
Duração: 166 min.
SINOPSE: Retrata a história de sete crianças israelenses e palestinas em Jerusalém que, apesar de
morarem no mesmo lugar vivem em mundos completamente distintos, separados por diferenças
religiosas. Com idades entre 8 e 13 anos, raramente elas falam por si mesmas e estão isoladas
pelo medo. Neste filme, suas histórias oferecem uma nova e emocionante perspectiva sobre o
conflito no Oriente Médio.
NASCIDOS EM BORDÉIS
Título original: Born Into Brothels: Calcutta’s Red Light Kids
Direção: Ross Kauffman e Zana Briski
Gênero: documentário
Ano: 2004
País de origem: Estados Unidos
Duração: 85 min.
SINOPSE: Vencedor de um Oscar e do Prêmio do blico no Festival de Sundance em 2005,
lançado em DVD no Brasil, o documentário encontra uma forma hábil, mas não exploratória, de
revelar os intestinos de um dos lugares mais dantescos do planeta. A zona de prostituição de
Calcutá é um inferno inacessível às câmeras. Para ali penetrar, as norte-americanas Zana Briski e
Ross Kauffman pediram às crianças que fotografassem o seu bairro. Mas o filme acabou sendo
bem mais que o registro desse processo. Nascidos em Bordéis é um documentário de intervenção
social. Através da oficina de fotografia, uma saída se apresentava para as crianças mais talentosas.
A salvação, portanto, estava limitada pela necessidade de selecionar. E ainda pela incompreensão
dos pais e os absurdos da burocracia indiana. Quando se detém sobre as dificuldades do projeto, o
226
filme traz para o primeiro plano a persistência da fotógrafa Zana Briski e perde um pouco de sua
força. Melhor é quando cumpre sua agenda principal: deixar-se guiar pelas crianças, ali onde a
inocência se mescla à sordidez, num ciclo contínuo de gerações dedicadas à prostituição.
VÍTIMAS DA TORMENTA
Título original: Sciuscia
Direção: Vittorio De Sica
Gênero: drama
Ano: 1946
País de origem: Itália
Duração: 95 min.
SINOPSE: Vítimas da Tormenta é uma obra-prima emocionante concebida pelo cineasta Vittorio
de Sica e pelo roteirista Cesare Zavattini, a dupla responsável por grandes clássicos do neo-
realismo, como Ladrões de Bicicleta, Milagre em Milão e Umberto D. Roma, logo após o fim da
Segunda Guerra. Giuseppe e Pasquale são garotos pobres que vivem de engraxar sapatos,
cultivando o sonho de comprar um cavalo branco. Depois de se envolverem em um furto,
acabam presos num reformatório. É o começo de muitos problemas que os dois amigos têm pela
frente.
ZERO DE CONDUTA
Título original: Zéro de conduite. Jeunes Diables au Collège
Direção: Jean Vigo
Gênero: drama
Ano: 1933
País de origem: França
Duração: 41 min.
SINOPSE: Numa escola interna, quatro garotos rebeldes dão início a uma verdadeira revolução,
que começa com uma inofensiva guerra de travesseiros. Clássico filme anarquista do diretor que
se tornou uma lenda ao morrer, aos 29 anos, deixando quatro jóias de cinemateca para a
posteridade.
227
ANEXO 2
Post scriptum
228
Post scriptum
A aluna chega à casa de sua professora. o para uma visita cordial, mas simplesmente porque
suas aulas são assim, particulares. A aluna se desloca e, nesse espaço pedagógico da aprendizagem, acaba
por ser deslocada para questões outras, que ultrapassam o objetivo mesmo da sua ida àquela casa; acaba
por aprender coisas outras, que não somente ligada às aulas que ali são dadas. Naquele dia, a professora,
também mãe, está às voltas da filha pequena, de oito anos, que teve que ficar em casa porque estava com
febre. A menina ora e outra invade a sala (agora não mais a sua “sala de estar”, mas território temporário
de aprendizagem de outrem e onde, em função disso, ela não pode mais entrar e sair como quiser).
Incansável, a menina vem, mostra a boneca nova, o desenho que acabou de fazer, a roupa da
apresentação de ballet, que ocorrerá dali a um mês. A mãe (que agora é também a professora que procura
dar conta das dúvidas da aluna), se inquieta com as interrupções. Amorosamente, ela pergunta à menina:
“queres ver um filme?”. A menina, por sua vez, sorri e prontamente aceita. A mãe dirige-se a um armário
baixo, abre uma imensa gaveta, onde encontram-se filmes de todas as categorias. Ali, naquele “gavetão”
organizado, não separação entre filmes ditos “de adulto” e “de criança”: simplesmente filmes, de
todos os tipos, de todos os gêneros. Entre Bergman, Truffaut e Lars Von Trier, também Winx , O Rei
Leão e a Bela Adormecida. A menina olha, analisa com calma, aponta o dedo e diz: “esse!”. “Esse” é
O Grande Ditador, de Charles Chaplin. A mãe, fechando a gaveta com a perna, responde: “boa
escolha!”. A menina, então, segue para a sala de televisão e a professora volta para sua aula.
Narro esse episódio o sem antes destacar que se trata de um contexto muito específico: trata-se
de uma criança e de uma família de classe média alta. Contudo, somado a ele, outras duas experiências
tornaram possível eu pensar, mais concretamente, sobre as escolhas da criança em relação ao cinema: o
trabalho desenvolvido por Alain Bergala, no ano de 2000, na França (resumidamente, que propunha a
exposição sistemática de um conjunto de 100 filmes nas escolas públicas francesas, desde o maternal) e as
propostas pedagógicas lançadas trimestralmente pela Cinemateca Francesa. Creio que, por mais diferentes
que sejam entre si, tais experiências (que aqui serão retomadas), trazem elementos comuns e importantes
para pensarmos nas possibilidades que apontam, quais sejam, nas possibilidades de pensarmos a relação
entre cinema e escola, cinema na escola ou, mais diretamente, importância de se efetivar um trabalho
pedagógico de cinema na escola. De início, vale salientar que a proposta que apresento o tem como
229
objetivo efetivar uma separação radical entre os filmes de grande distribuição e aqueles ditos “de arte”,
mas sim de afirmar a possibilidade de ampliar o espaço de escolha de tulos que são pouco ou nada
acessíveis às crianças e jovens que freqüentam escola, e mesmo a nós, professores. Acredito que escolhas
geralmente só podem ser feitas na medida em que o conhecidas, dominadas e, neste caso, quando se
tornam de fácil acesso. E é sobre essa prerrogativa que se baseia este trabalho: da crença de que há algo a
ser feito na escola, no espaço pedagógico stricto sensu em termos de educação para a imagem, educação
para a arte, educação para o cinema.
Deste modo, este texto final versará sobre dois pontos principais. Primeiramente, delineio
algumas idéias acerca da relação geral entre cinema e escola. Apresento, portanto, algumas questões sobre
a importância de pensarmos no encontro entre cinema (arte) e escola, ao mesmo tempo em que apresento
os conceitos sobre os quais este encontro estará baseado. Em seguida, aponto algumas propostas de um
trabalho a ser considerado em relação ao cinema na escola. Procuro traçar alguns caminhos de forma a
que possamos, mesmo que num nível inicial, responder às seguintes questões: como podemos pensar na
efetivação desse encontro? Que estratégias adotar? Enfim, lanço algumas idéias acerca da questão: afinal,
como podemos fazer?
Cinema e escola: encontros possíveis
Certamente não é nenhuma novidade a presença do cinema na escola. Lidamos, cotidianamente,
com os comentários das crianças sobre os filmes vistos na TV, sobre o último desenho animado lançado
pela Pixar e mesmo com os desenhos estampados em estojos, camisetas, lápis e cadernos. Por vezes,
sabemos de uma ou outra experiência de uma professora que utilizou este ou aquele filme para tematizar
ou para ampliar a discussão deste ou daquele assunto.
Contudo, se a proposta é lidar com cinema e encará-lo seriamente, como arte, como possibilidade
e como criação, penso que uma das primeiras medidas a serem consideradas é tomar o objeto (o filme)
enquanto tal, apresentá-lo por si mesmo, sem receio ou busca por “adaptações” e muito menos como
“exemplos”, como “muletas” ou objetos-apêndice para desenvolver (ou meramente ilustrar”) este ou aquele
assunto “da matéria”, do “conteúdo”. Falo, ainda, de adaptações, cortes realizados tendo em vista uma
230
possível censura (“a criança vai ter medo desta cena”, “eles o chorar nesta”). Obviamente que o
proponho uma pedagogia do terror na escola. Ao contrário, ao fazermos a escolha deste ou daquele filme
levaremos em conta o público a que ele se destinará: trata-se de crianças de Ensino Fundamental? E,
dentro deste, de ou de série? Obviamente que diferenças nada tênues entre estas faixas etárias, e
elas devem ser respeitadas. Ao dizer “adaptações” forçadas, refiro-me especialmente ao medo ainda
presente na escola do velho preconceito com as crianças, que muitas vezes não faz senão as subestimar:
“elas o vão gostar”, “elas vão ter medo”, “elas não estão acostumadas com isso”, “isso é chato para elas”
e, por isso, “melhor não mostrarmos” (ou mostrarmos um filme, por exemplo, numa versão “suavizada”,
muitas vezes caricaturizada)
26
.
Falo, portanto, de ir contra a idéia de falarmos pela criança, em nome da criança. Ou, ainda,
de ir contra a tentação de procedermos na posição de quem efetivamente, do alto de um saber, diz o que e
do que elas gostam e do que elas o gostam (ou gostariam), do que elas têm medo e do não têm (ou
teriam). Como diria Deleuze, entrevistado por Foucault, sabemos que corremos esse risco na medida em
que “as crianças sofrem uma infantilização que o é a delas (DELEUZE, 2000, p. 73). Mais do que
isso, Deleuze nos lembra que Foucault “foi o primeiro a nos ensinar (...) algo de fundamental: a
indignidade de falar pelos outros” (Idem, p. 72) tarefa não indigna, mas também perigosa. Não se
trata de propor uma suposta liberação fictícia e propor que as crianças simplesmente “falem”. Em relação
ao cinema, provavelmente elas falarão da mesma coisa, pois, geralmente, elas em as mesmas coisas.
Trata-se, antes, de o deixar(mos) de viabilizar propostas, de oferecer(mos) materiais e obras para que
rol daquilo que gostam e não gostam se amplie – ao invés de se restringir.
Um trabalho deste tipo na escola seria importante, pelo menos, por dois motivos. Primeiro, e
talvez o mais pertinente, porque penso que o acesso à arte, o encontro com a arte deve se dar via escola,
que o espaço escolar, para um grande contingente de crianças e jovens, provavelmente seja o único no
qual esse encontro é possível. Refiro-me, portanto, a uma atuação, acima de tudo, política, qual seja, a
26
Lembro, em relação a isso, a coleção de 12 fitas de videocassete (ou DVD) produzida pela Disney chamada Baby Einstein
(das quais destaco títulos de alguns exemplares dessa coleção: Baby Van Gogh, Baby Shakespeare”, Baby
Beethoven”, Baby Mozart”, Baby Newton”). Destinada a um público de crianças de 0 a 3 anos, Baby Einstein
utiliza objetos do cotidiano, música, arte, linguagem, poesia, ciência e natureza para introduzir as crianças pequenas ao
mundo em sua volta através de maneiras divertidas e fascinantes”. Um dos exemplos dessas fitas/DVDs é Baby Mozart:
Baby Mozart é uma fascinante experiência que apresenta para os bebês o esplendor e o encanto da música clássica
enquanto as deslumbra com estimulantes e coloridas imagens. Você e seu filho irão adorar as versões encantadoras das
composições clássicas de Wolfgang Amadeus Mozart”. Contudo, os vídeos são “musicalmente adaptados e reorquestrados para
estas orelhinhas” (trad. minha) (informação disponível em www.babyeinstein.com), último acesso out. de 2007.
231
de pelo menos pensarmos na possibilidade de que crianças e jovens de classes populares possam ser
mobilizados pela arte (e, no caso, especialmente, pelo cinema). Ao promover o encontro entre crianças e
cinema, a escola faria muito mais do que meramente “ensinar”, que “arte não se ensina, ela se
encontra, se experimenta, se transmite por outras vias que não a do discurso do saber único e, às vezes,
mesmo sem nenhum discurso” (BERGALA, 2002, p. 30, trad. minha).
Muitas das experiências de inserção das novas tecnologias na escola, especialmente em se
tratando de televisão, jornais e revistas vão, em grande parte, na direção de desmontar este ou aquele
programa ou filme, nomeando-os por vezes de “violentos”, “machistas”, etc.. Acho que todas essas
experiências, de uma forma ou de outra, são válidas, desde que o tenhamos em mente o intuito de, a
partir delas, fazer com que as crianças “deixem de ver o programa tal”, “passem a não gostar mais desenho
tal”. Penso, ao contrário, que seria uma grande ingenuidade da escola imaginar que, ao mostrar os
“problemas” deste ou daquele programa (desenho ou filme), faríamos com que as crianças os apreciassem
menos. A proposta de trabalho que começo aqui a tecer entende que é mais produtivo despendermos tempo
e esforço mostrando e apresentando materiais de uma complexidade mais apurada do que criticando e
repreendendo Bob Esponjas, Bay Blades, Powers Rangers. Assim, tal proposta preconiza que “fazemos
mais para uma criança mostrando-lhe um plano de Kiarostami do que desmontando, durante duas horas,
qualquer um dos produtos da ‘sopa televisual’” (BERGALA, 2002, p. 56, trad. minha).
Ao dizer que não caberia à escola ensinar” cinema, refiro-me ao segundo motivo que, acredito,
torna a inserção do cinema na escola importante: o encontro com emoções, sentimentos e realidades que só
nos são dadas pelo cinema (e por nenhum outro meio). Assim, a idéia o é a de que venhamos a
apresentar filmes (ou fragmentos) de filmes com o objetivo de desenvolver o “espírito crítico” ou que, a
partir da análise de “bons” produtos eles venham a o gostar mais deste ou daquele produto fílmico ou
televisivo. O que importa é favorecer o contato das crianças com obras que não aquelas das grandes salas
e mecanismos de distribuição (e que justamente por isso, elas provavelmente têm pouco contato). O
trabalho, neste sentido, não seria o de “ensino”, mas o de iniciação, o de exposição (num duplo
entendimento); exposição de filmes (ou fragmentos de filmes) específicos às crianças e exposição das
crianças à arte, em seu sentido mais genuíno:
A aridez de Rossellini ou de Bresson. O rigor implacável e preciso de um Hitchcock e
de um Lang. É a limpidez de Howard Hawks, a clareza nua dos filmes de
Kiarostami. A vida que transborda cada plano de Renoir ou de Fellini. Cada vez que
232
a emoção e o pensamento nascem de uma forma, de um ritmo, que não poderiam
existir senão pelo cinema (BERGALA, 2002, p. 48, trad. minha).
Ao pensar que a circulação deste tipo de imagem pode ser possível na escola, assumimos o risco e
também a tarefa de reconhecer que se trata de um material que não é, de modo algum, de “fácil digestão”,
passível de, dele, serem retiradas “mensagenslineares, ou mesmo que a imersão em sua linguagem seja
algo de fácil instrumentalização ou entendimento. Trata-se, antes disso, de assumir que adentrar nesse
campo ainda pouco conhecido por nós significauma tarefa por vezes árdua e difícil, mas que tem como
objetivo buscar na e pela imagem cinematográfica, a vida que pulsa em cada plano, a presença
enigmática e mesmo singular de homens, mulheres, crianças – tantas vezes mostrados para nós por este ou
por aquele filme, por esta ou aquela seqüência. “A única experiência real possível do encontro com a obra
de arte passa pelo sentimento de ser expulso do conforto de seus hábitos de consumo e das idéias recebidas”
(Ibidem, p. 98).
Isso porque toda a questão de “entender” um filme ou uma seqüência sofre, nesta perspectiva, um
choque. Uma vez fendido, “entender” não tem mais a ver com estabelecer relações entre estruturas lineares
de começo, meio e fim da história. Ora, o cinema é mais do que isso: o cinema não trata simplesmente de
narrar, de contar histórias. “Entendertalvez tenha mais um sentido de observar que, antes de mais nada
lidamos com imagem na qualidade de fruto e de gesto criacional. Algo que não busca se contentar com
respostas (porque “entender”, de fato, geralmente tem a ver com respostas), mas, antes, trata-se de um
“entenderque passe pelo questionamento, sem respostas previsíveis ou dadas, mas contingentes e sempre
conjunturais. “Entender”, portanto, tem uma relação mais direta com o fato de que na imagem, na
seqüência e/ou no filme, algo a mais que se impõe ao que é da ordem do imediatamente visível ou
narrável e que nem por isso estaria escondido, à espera de um olhar mais acurado. O olhar mais
acurado estaria ali, certamente, mas para perseguir algo que, de antemão, sabe-se que o seria jamais
capturado (embora tão singelo): a superfície mesma da imagem.
A idéia que proponho é tão-somente a de que se possibilite justamente isso: o encontro com o
cinema, um encontro que não será feito “de qualquer maneira”, mas com elementos e propostas concretas
de trabalho, das quais falo a seguir.
233
Cinema na escola: possibilidades de um encontro
Para iniciar este pequeno rol de propostas sobre as possibilidades de efetivar o encontro entre
crianças e cinema, reproduzo duas experiências desenvolvidas pela Cinemateca Francesa durante o ano de
2006 e relativas à programação específica para crianças e jovens
27
: Grand/petit (Grande/pequeno) e
La peur au cinéma (O medo no cinema).
Grande ou pequeno? Isso é relativo. Sobretudo no cinema, onde as coisas e as pessoas
raramente são representadas em seu tamanho real. Qual o ponto em comum entre um
Grand Canyon, um gênio liberado de uma lâmpada, o olho de um filhote de cavalo-
marinho e um gorila gigante no alto do prédio do Empire State? Como contar a
história de um homem que encolhe? De Microcosmos a Metrópolis, o cinema tem o
poder vertiginoso de filmar o infinitamente pequeno, de fazer com que o espectador
entre em imensos panoramas, de reinventar o mundo com maquetes, de reunir, na
tela, gigantes e liliputeanos (CINEMATHEQUE FRANÇAISE, 2006a, p. 76, trad.
minha).
O som de portas batendo, uma sombra que passa ao longo de uma parede, uma voz
inquietante no escuro: quando o cinema joga com nossos medos, sejam eles íntimos
ou coletivos, é para provocar mais o nosso prazer... até certo ponto! Como cineasta
se prende a nossos mesmo para fazê-los aumentar em nós, durante o filme, as
emoções que vão da inquietude vaga ao verdadeiro medo? Como ele faz para que
uma seqüência de imagens e sons consiga fazer com que os espectadores gritem?
Exploração de nossos limites pessoais, imersão em um mundo saturado de
“armadilhas”, confrontações com o outro... o filme pode fazer com que a gente viva
tudo isso, no momento em que, amontoados em nossas cadeiras, a gente se arrepie
prazerosamente (CINEMATHEQUE FRANÇAISE, 2006b, trad. minha).
O que vemos aqui é a exposição de temáticas gerais, amplas e, pode-se até pensar, simples: as
noções de grandeza (grande/pequeno) e o medo no cinema. Dentre os filmes escolhidos para as
programações, destaco, no primeiro caso, As aventuras de Aladin, de Jack Jinney (1959), Godzilla
(de Honda), de Inoshiro Honda (1955), King Kong, de Ernest Schoedsack e Merian C.
Cooper (1933), O Fabuloso Doutor Dolittle, de Richard Fleischer (1967), O Colosso de Rhodes,
de Sergio Leone (1960), Viagem ao Centro da Terra, de Henry Levin (1959), As Aventuras de
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A Cinemateca Francesa organiza, a cada trimestre, uma programação diferente para crianças e jovens. Toda
a programação, bem como os materiais que dela derivam (geralmente livros), é organizada por uma equipe
pedagógica, em permanente exercício na Cinemateca.
234
Guliver, de Dave Fleisher e Max Fleisher (1939). Não há muito o que discutir: não precisamos, ao final
do filme, sobrecarregar as crianças de perguntas, ou mesmo pedir que elas desenhem algo grande” ou
“pequeno”. aqui, vemos, por exemplo, que boa possibilidade de as crianças assistirem a filmes cujos
chamados remakes muitas delas devem ter visto recentemente (ou seja, exercício de confrontação, sem
que haja a necessidade de forçá-lo: certamente ele virá). Refiro-me especialmente a Godzilla, King
Kong e Dr. Dolittle.
No segundo caso (O medo no cinema), destaco, em termos dos filmes apresentados: Nosferatu, o
Vampiro, de Friedrich Wilhelm Murnau (1922), Metropolis, de Fritz Lang (1926), ícones do
expressionismo alemão. Trata-se de não apenas lidar com elementos tão característicos do universo
infantil (o medo, o vampiro, o escuro/claro), como, igualmente, ao fato de dar visibilidade, para as
crianças, a outra forma de fazer cinema e de assisti-lo: o cinema mudo; ou, ainda, de levar ao limite
umas das grandes problemáticas do cinema, qual seja, o de ser “ao mesmo tempo, a possibilidade de uma
cópia da realidade e a dimensão artificial dessa cópia. Isso equivale a dizer que o cinema é um paradoxo,
que gira em torno da questão das relações entre o ‘ser’ e o ‘aparecer’” (BADIOU, 2004, p. 28). Ou seja,
filmes como estes podem suscitar senão discussões, pelo menos possibilidades de pensar o cinemao como
mero veículo de cópia da dita “realidade”, nem mesmo de distorção, mas como meio que se situa no espaço
entre uma e outra e, portanto, no espaço das relações estabelecidas a partir daí.
Ainda assim, no caso da escola, não precisaríamos mostrar o filme inteiro: não precisamos ter
receio de “recortarum filme, mostrar um fragmento deste, outro daquele; ou, quem sabe, 30 minutos
deste filme, 20 minutos daquele e/ou 10 daquele outro. O que, penso, não é produtivo é privar a criança
de ver um fragmento porque ela “não entenderáo filme inteiro. Se ela pode assistir mesmo que sejam 5
minutos de um bom filme, de uma seqüência interessante, por que ela haveria de esperar talvez os seus
14, 15 anos para assisti-lo, sim, em sua integralidade? E, neste sentido, volto a afirmar: é melhor
apresentar 5 minutos de Nosferatu, o vampiro do que 50 de uma obra “adaptada”. Tirar o filme (e o
cinema) de um pedestal e manuseá-lo como obra mundana certamente fará parte deste trabalho (tarefa
que nos é auxiliada e bastante facilitada hoje pelo aparelho de reprodução de DVD). Da mesma forma,
penso que filmes dublados seriam bem-vindos para as crianças que ainda não sabem ler. Na mesma
perspectiva, por que privar a criança de menos de 5 anos a assistir certos filmes de língua estrangeira?
235
Mostrar outras possibilidades de fazer cinema e de vê-lo, embora difícil, é enriquecedor. Por mais
que tenhamos receio lidar com formas diferenciadas de construção do tempo, de imagem, de luz, de cor,
de som, elas merecem ser expostas na escola. E merecem porque é justamente essa a questão principal da
relação entre cinema e escola: a propiciar, de promover, de facilitar o encontro com a alteridade (Cf.
BERGALA, 2002, p. 29, grifos meus). Essa tarefa diz respeito, diretamente, a uma pedagogia do
olhar; uma pedagogia que busca “aceitar olhar as coisas sua parte enigmática, antes de colocar as
palavras e o sentido sobre elas” (BERGALA, 2002, p. 98).
Ainda assim, lembremos que
não há que se desculpar pela lentidão de um filme de Abbas Kiarostami [...], é
preciso expor essa lentidão serenamente às crianças habituadas a outros filmes, a
outros ritmos, a outros roteiros. É preciso aceitar, da mesma forma, serenamente, as
primeiras reações, mesmo desagradáveis, provocadas pelo choque de serem
confrontadas com um cinema do qual, às vezes, elas não têm nem idéia (BERGALA,
2002, p. 98, trad. minha).
Romper com a mesmice do filme da quase invariável uma hora e dez minutos de duração (como,
em média, duram os filmes para as crianças) é também extremamente válido para a experiência de
exposição e de encontro (com o cinema, com a alteridade). Os filmes curta-metragens ou média-metragens
são um bom exemplo: exemplos de criação, de possibilidades de criação. Ressalto aqui o belo média-
metragem O Balão Vermelho, de Albert Lamorisse (1956): sem nenhuma fala (apenas sensivelmente
musicado), o filme nos mostra a amizade singela e fantasiosa entre um balão e um menino de oito anos.
Fala, ainda, de escola, de família, de casa, de lealdade, repito, sem nenhum diálogo. O filme tem
duração de 28 minutos e pode certamente ser apresentado a crianças a partir de 3 anos (fragmentado, por
que não?).
As possibilidades de efetivação de um trabalho como este se alargam na medida em que sabemos
que grande parte das escolas (públicas e privadas) possui uma televisão e um aparelho de reprodução de
DVD ou mesmo um deo-cassete, assim como muitas crianças de escolas (privadas e públicas), por sua
vez, também possuem um destes aparelhos em casa (embora não todas e também não em uma freqüência
desejada, mas, mais uma vez, haveríamos de negar, de antemão esta proposta sem antes averiguarmos a
possibilidade de sua efetivação?). Imagino, assim, a possibilidade de permitir o acesso a DVDs ou mesmo
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a fitas de videocassete na escola; imagino, mais do que isso, que a criança possa escolher, na biblioteca de
sua escola, livros, revistas e, por que não?, um DVD que lhe agrade para assistir no final de semana.
Considerações finais
Por mais que possamos considerar as inúmeras dificuldades pela qual a escola atravessa (e que de
forma alguma minimizo), pensar na relação entre cinema e escola é um dos grandes desafios a ser
enfrentados: desafios de efetivação e também de convicção de sua importância. Discordo radicalmente das
críticas que afirmam que, antes de um trabalho como este, deveríamos primeiro garantir alfabetização
formal às crianças. E discordo justamente afirmando este que é um dos principais direitos daqueles que
freqüentam a escola: temos, sim, que garantir a alfabetização formal das crianças, mas nem por isso
devemos esquecer de outros tipos, por que não dizer?, de alfabetização; ou, mais do que isso, não devemos
esquecer do papel social e ético da escola como lócus – muitas vezes exclusivo para um grande contingente
de crianças e jovens – de vivenciar experiências do universo da arte.
Um dos elementos de maior importância a serem ressaltados na proposta de trabalho que
apresento (e que, como disse, se baseiam, mais concretamente, nas experiências organizadas por Alain
Bergala e pela Cinemateca Francesa) é a de uma não separação entre filmes de adultos e filmes de
crianças (ou filmes para adultos, para crianças). Obviamente que lidaremos todo o tempo com
diferenças entre faixas etárias; lidaremos com diferenças de interesse e mesmo de fruição desta ou daquela
imagem, deste ou daquele filme. Mas o prazer de deixar-se capturar por imagens singulares, pelo ato
concreto e visível de/da criação, este não tem diferença de idade. Oferecer o filme não como mero objeto,
mas como “traço de um gesto de criação” (BERGALA, 2002, p. 33, trad. minha), isso não pode levar em
conta a idade.
Além disso, a relação entre cinema e escola pode colocar em jogo um certo pedagogismo (ou uma
pedagogia linear) que viemos fazendo quando o assunto é arte ou mesmo imagem (e que circula no senso
comum): ver aqui, naquela tela, naquela instalação, o que o artista quis dizer; entender o que aquela
imagem “representa” ou quer “representar”. A combinação entre imagem e escola acaba ficando muitas
vezes restrita à ânsia de tudo dizer e de tudo capturar – para que se possa, depois, fazer “uso” disso.
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A experiência tratada na proposta, ainda inicial, que descrevo toma a relação imagem e escola
num outro sentido: aquele que considera, de início, uma impotência primordial: “por mais que se tente
dizer o que se vê, o que se jamais reside no que se diz; por mais que se tente ver, por imagens, (...) o
que se diz, o lugar em que estas resplandecem não é aquele que os olhos projetam, mas sim aqueles que as
seqüências sintáticas definem” (FOUCAULT, 1998, p. 65). Para um trabalho que considere o cinema na
sua qualidade de produção artística, há que se dar conta da certa, mas também relativa independência
entre aquilo que se vê e aquilo que se diz, no sentido que a linguagem segue normas específicas, “que não
é uma proposição a designar um estado de coisas ou um objeto visível”; da mesma forma que aquilo que se
não carrega em si sentido mudo, um significado de força que se atualiza na linguagem(Ibidem).
Assim, a proposta é a de um trabalho não que contra essa idéia e que, portanto, insistiria na tarefa
acerca das significações, dos “ensinamentos”, das “mensagens” –, mas, antes, tratar-se-ia simplesmente de
expor os materiais considerando essa característica inelutável entre imagem e linguagem, ou seja, tratar-
se-ia de fazer um trabalho considerando essa incompatibilidade e considerando também todas as
frustrações que, num primeiro momento, isso pode trazer. Quando falamos de imagens (e de arte) não
“ensinamentosprevisíveis, no sentido de que não interferências possíveis naquilo que diz respeito à
fruição, ao deleite: pode-se até obrigar alguém a aprender algo, mas não se pode ensinar alguém a ser
tocado (BERGALA, 2002, p. 63).
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