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LUCAS HENRIQUES PUTINATO
DAMIÃO DE GÓIS E OS NOVOS CAMINHOS DA HISTÓRIA
QUINHENTISTA
FRANCA
2007
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LUCAS HENRIQUES PUTINATO
DAMIÃO DE GÓIS E OS NOVOS CAMINHOS DA HISTÓRIA
QUINHENTISTA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de História,
Direito e Serviço Social, para obtenção do
Título de Mestre em História. Área de
Concentração: História Social
Orientadora: Profa. Dra. Susani Silveira Lemos
França
FRANCA
2007
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Putinato, Lucas Henriques
Damião de Góis e os novos caminhos da história quinhentista /
Lucas Henriques Putinato. –Franca : UNESP, 2007
Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História,
Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Damião de Góis – Crônicas. 2. Humanismo português.
3. Portugal – História, séc. 16.
CDD – 946.902
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LUCAS HENRIQUES PUTINATO
DAMIÃO DE GÓIS E OS NOVOS CAMINHOS DA HISTÓRIA
QUINHENTISTA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
para obtenção do Título de Mestre em História. Área de Concentração: História
Social.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: _________________________________________________________________
Profa. Dra. Susani Silveira Lemos França
1º Examinador:___________________________________________________
2º Examinador:___________________________________________________
Franca, _____ de ______________ de 2007.
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Dedico a minha família
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AGRADECIMENTOS
No decorrer da realização deste trabalho, muitos foram os momentos em que me senti
grandemente auxiliado. De tanta valia foi o amparo dessa gente querida, que eu não poderia
me furtar a registrar alguns de seus nomes, em sinal de gratidão e consideração.
Pela desmedida atenção e confiança, agradeço à Susani Lemos Fraa, que é
grandemente responsável por meu aprendizado e amadurecimento intelectual. Agradeço pela
sua imensa atenção, paciência e compreensão, pelas cuidadosas correções e pela amizade
dispensada desde o início da pesquisa.
Agradeço aos respectivos coordenadores e diretores das escolas pelas quais trabalhei e
trabalho, que desde o início desta pesquisa, colaboraram com a elaboração dos meus horários
de trabalho sempre compatíveis com minhas obrigações acadêmicas referentes ao mestrado
sendo elas: E.E.Alberto Santos Dumont, no município de Ribeirão Preto; E.E.Mário Pereira
Pinto, no município de Campo Limpo Paulista; e a E.E. Profª. Altimira Pinke, no município
de Leme.
Aos amigos da s-graduação: Elisa Verona, Ana Paula Andrade, Cláudia Francisco,
Luciana Parzewski e Michele, que demonstraram carinho, apoio e sincera amizade,
compartilhando os medos e as dificuldades com que me deparei ao longo dessa pesquisa.
Minha sincera amizade e gratidão por tudo.
Igualmente agradeço a minha eterna amiga Minisa Nogueira Napolitano, que sempre
me acompanhou em todos os momentos de minha vida dispondo-me apoio e incentivo ao
longo da minha jornada acadêmica. Igualmente agradeço a atenção dispensada ao amigo
Alexandre Marcelo Crispim.
Não poderia deixar de agradecer aos meus queridos pais, Dona Laura Regina
Henriques Putinato e o Sr. José Putinato e ao querido avô Agostinho dos Santos Henriques,
que sempre estiveram ao meu lado, apoiando e compartilhando meus medos e inseguranças,
conjuntamente ao meu lado onde disponho apreço e gratidão.
Também não posso deixar de agradecer ao meu caro amigo Venilton Carlos Querino,
que muito me ajudou, principalmente neste último ano de pesquisa, com seu apoio,
compreensão e ajuda indispensável, muito obrigado!
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Agradeço também ao Governo do Estado de São Paulo que através do Programa
Bolsa Mestrado, ajudou a financiar esta pesquisa e possibilitou o desenvolvimento da
mesma.Grato pela confiança.
E finalmente, agradeço a Jesus e Nossa Senhora Aparecida, que sempre me apararam
derramando sobre meu caminho muita força, saúde e perseverança para trilhar minha jornada
terrena até o presente momento.
Ao mesmo tempo peço desculpas aos nomes que porventura tenha esquecido de citar
aqui, pois muitos foram os que auxiliaram; sintam-se agradecidos em igual atenção.
Fica a sensação de uma etapa vencida e a certeza de que é ainda apenas o começo.
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RESUMO
As construções históricas no contexto do humanismo português são várias e significativas. A
história constituiu um elemento essencial do humanismo, pois o alargamento do
conhecimento da Antiidade e o crescente interesse dos quinhentistas por retomar os relatos
do passado, mas introduzindo novos temas ligados à expansão levaram a uma freqüente
explicitação das concepções que conduziram as práticas historiográficas do século XVI.
Nesse panorama, vemos Damião de is, guarda-mor do Tombo, dar continuidade à
crostica do reino lusitano. Por ter sido uma das figuras de destaque na consolidação de
certos valores europeus acerca da expansão ultramarina, sua obra, ao longo dos séculos,
transformou-se numa refencia entre os historiadores que descreveram os feitos portugueses
do além-mar, num período em que se nota uma laicização do discurso histórico e, ao mesmo
tempo, uma sobrecarga épica na descrão e fixação dos feitos lusitanos. São justamente essas
tendências na escrita da história do século XVI o alvo desta pesquisa. Tomaremos como
objeto de análise as duas crônicas escritas por Damião de Góis: A Crônica do Felicíssimo rei
D. Emanuel I e a Crônica do rei D. João, Rei que foi destes regnos segundo do nome, a partir
das quais procuraremos refletir sobre o seu fazer histórico, analisando a sua concepção de
história em relação à dos cronistas que o antecederam, bem como o seu critério de verdade
histórica.
Palavras-chave: Damião de Góis, humanismo português, crônicas - Portugal.
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ABSTRACT
The historical constructions in the Portuguese Humanism context are several and very
significant. The History constituted an essential element for the Humanism because the
enlargement of the Ancient Times knowledge and the rising interest in the writers of the 16
th
century of retaking the reports from the past but introducing new issues related to the
expansion took it to a frequent exploitation of the conceptions that conducted to the
historiographic practice from the XVI century. This way we can notice Damião de Góis, high-
guardian of the Tombo, to continue the chronicles from the Lusitanian kingdom. For it has
been one of the main characters in the consolidation of some European values about the
oversea expansion, his work over the centuries became a reference among the historians that
described the Portuguese deeds in overseas, in a period that we notice the laicity of the
historical speech and at the same time an epic overload about the description and the fixation
of the Lusitanian deeds. The focus of this research are these tendencies in writing the History
from the XVI century. We will have as aim the analysis of two chronicles written by Damo
de Góis: The chronicle of the most happy King Dom Emanuel I and the Chronicle of the King
Dom João, whose name was the second in this kingdom, from this chronicles we will reflect
about its historical work, analyzing its conception of History relating to the predecessor
chroniclers conceptions, as well as their decisive factor about the historical truth.
Key-words: Damião de Góis, portuguese humanism, chronicles - Portugal
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
UMA CRÔNICA VISTA E REVISTA
1.1 Damião de Góis e a tradição cronística
1.2 Leitura e autoria para Damião de Góis
1.3 Damião de Góis e um leitor insatisfeito
CAPÍTULO 2
DIÁLOGOS DE DAMIÃO DE GÓIS COM SEUS ANTECESSORES
2.1 A cronística de Rui de Pina
2.2 Oposições e aproximações entre dois cronistas
CAPÍTULO 3
DAMIÃO DE GÓIS: HISTÓRIA E VERDADE
3.1 Breve apresentação das crônicas goisianas
3.2 A construção de história e verdade nas crônicas de Damião Góis
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
A cronística portuguesa dos séculos XV e XVI constitui um modelo de narrativa que,
segundo críticos e historiadores, divide-se em duas correntes: a crônica de expansão e a
crônica régia. Em ambas as correntes são comuns os excertos pelos cronistas de passagens em
que delimitam as fronteiras do seu objeto, bem como em que apresentam os traços e as regras
que conduzem seus textos e os enquadram como crosticos, ou seja, excertos que definem
um gênero e uma prática escrita comprometida com o registro do passado.
Assim, para se distinguir uma crônica da expansão portuguesa é fundamental
confrontá-la com as crônicas régias coetâneas, pois o eixo de cada uma é diferente. As
crônicas régias têm como alvo os monarcas e seus espaços temporais cobrem a duração dos
respectivos reinados narrados. Já, na crostica da expansão, o enfoque é outro, ela assume-se
como discurso de um poder ou donio mais amplo que vai para além do rei e começa a
envolver a nação recém-criada –, fazendo uso das crônicas régias como fonte e deslocando o
eixo da figura dos monarcas para todo um povo, o povo português, como sintetiza João de
Barros:
E a gente Portugues cathólica per fe e verdadeira adoraçam do culto que se
deue a deos, aruorando aquella diuina bandeira de Christo sinal de nóssa
redempçam, de que a jgreja canta Vexilla regis prodeunt, nam sómente a
vista dos mouros de Africa, Pérsia, e India, perfidos a ella, mas diante de
todo o pagaismo destas pártes que della nunca teueram noticia, e jsto
nauegando per tantas mil leguoas que vem a ser antipodas de sua própria
patria, cousa tam nóua e marauilhósa na opiniam das gentes, que ate doctos
e muy gráues barões em suas escripturas pusseram em duuida de os auer,
nas quáes pártes elle ouueram victorias de todas estas nações, contendendo
com os perigos do már trabálhos de fóme e séde, dóres de nóuas
enfermidades, e finalmente com as malicias traições e enganos dos hóme s
que he mais duro de sofrer[...]
1
Se a crostica pode ser lida como o discurso de um poder, interessa observar quais as
imagens construídas e transmitidas de um determinado espaço ao longo dos tempos. Os
cronistas recolhem informações várias, provenientes de fontes orais e escritas, e procuram
ordenar, segundo eles, essas informações de modo a elaborar um discurso que se pretende
uma espécie de espelho do passado. A escrita é, portanto, tomada por eles como o elemento
chave da preservação da memória, da transmissão e da construção de uma imagem através de
1
BARROS, João de. Ásia: dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e
terras do Oriente. Lisboa: Imprensa Nacional : Casa da Moeda, 1988. p. 160.
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um tempo e um espaço. Contudo, no século XVI, com a consolidação da imprensa, os
escritores vêem-se, de forma mais contundente, obrigados a contemplar seus prováveis
leitores, o quais, como exploraremos no primeiro capítulo, começam inclusive a tentar intervir
no resultado do texto final que ganhará a prensa. No caso de Damião de is, pensador
quinhentista português que nos legou uma vasta e importante obra não apenas cronística, essa
intervenção foi da parte de um nobre insatisfeito com o que, na sua Crônica de D. Manuel, o
cronista disse sobre sua família e insatisfeito com determinados assuntos que ele julgava
serem inapropriados para ganharem a forma cronística. As implicações dessa intervenção são
o alvo do primeiro capítulo desta dissertação.
Dado que o veículo por excelência de transmissão do passado expansionista ou régio
português no século XVI é assumidamente a cnica, nossa ênfase, neste trabalho, será
sobretudo a análise do conjunto dos textos cronísticos portugueses quinhentistas,
especialmente aqueles de Damião de is, por seu destaque no período e pela referida
intervenção que sofreu na versão final. Tentaremos perceber como a escrita da história se
configurou no século XVI em Portugal, período em que a língua portuguesa é já a língua
oficial de preservação do passado. Para tanto, o segundo capítulo dedicar-se-á ao cotejo entre
as crônicas de is e aquelas do seu antecessor Rui de Pina cujas crônicas foram
profundamente criticadas pelo quinhentista –, procurando observar mudanças e permanências
entre umas e outras. Em tal perspectiva, as asserções dos cronistas funcionarão como
norteadoras do nosso objetivo.
Essa opção justifica-se na medida em que o objetivo desta pesquisa é perceber os
conceitos de história e verdade de is, com a finalidade de notar se eles podem ser pensados
como opostos aos valores correntes na prática cronística do século anterior à grande expansão.
No terceiro capítulo, é justamente a sua definição do que é história, ou do que é fazer história,
que será explorada, a partir do que Damião de Góis explicita no prólogo da Crônica do
Felicíssimo Rey D. Emanuel e da Crônica do Príncipe D. João, que foram escritas pelo então
cronista e guarda-mor do Tombo, entre 1550 e 1570. Mesmo que nem sempre o que os
cronistas colocam ou se propõem a fazer nos seus prólogos consigam efetivar ao longo dos
textos, vale examiná-los detidamente a fim de notar como esses historiadores projetaram ou
idealizaram o seu fazer histórico.
Inúmeras outras questões, entretanto, trazem os textos cronísticos goisianos, além de
seu conceito de história e verdade. A noção de autoria, a preocupação com o bem escrever e
uma velada preocupação como a recepção de seus escritos são os pontos que também nos
preocuparam ao longo desta pesquisa. Todas essas questões estão ligadas à da
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responsabilidade e dos direitos do autor que, em grande parte devido ao fortalecimento da
censura inquisitorial sobre os escritos, trouxeram novos problemas para o fazer história,
problemas não pensados pelos cronistas medievais, mas que serviram a is
demasiadamente convicto dos valores do seu tempo para analisar esses seus antecessores.
Nosso trabalho foi dividido em três capítulos, que culminam com o desdobramento
dos conceitos de história e verdade de Damião de is. Na realização do trabalho, optamos
por recorrer inúmeras vezes a citações dos próprios cronistas, confrontando-as entre si e
amparando as leituras na historiografia recente dedicada ao século XVI e aos cronistas;
historiografia esta que nos ajudou a definir o percurso de análise dos documentos escolhidos.
Resumidamente, o estudo que se segue procura apontar como Góis, imbuído de seus
conceitos e influências, construiu uma história que ajudou a fixar o que os portugueses
entenderam que era seu passado merecedor de lembrança.
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CAPÍTULO 1
UMA CRÔNICA VISTA E REVISTA
Muitos têm sido os historiadores que destacaram como o século XVI, em Portugal, é
marcado por um clima de epopéia e exaltação glorificativa, um clima de exaltação dos reis
que tinham dirigido a expansão ao mundo africano e oriental.
A presença do homem português repartido pelo mundo foi objeto de atenção dos
historiadores desde o século XVI e cumpriu importante papel na modelação das formas de
pensar do homem quinhentista português. Destacam-se aqui duas correntes distintas no que
tange ao labor dos escritores quinhentistas. Segundo Joaquim Veríssimo Serrão
2
, têm-se uma
corrente tradicional, que faz da crônica meio de relatar os feitos do reino; e uma corrente
que o autor denomina de ultramarina, que procura criar um novo tipo de história, valorizando
os feitos portugueses no mundo afro-indiano e brasílico .
Mudanças também ocorrem na linguagem escrita, oferecendo à disciplina histórica o
que Serrão chamou de “uma nova roupagem verbal
3
, bem como novos meios de expressão
cultural, a partir do momento em que a língua atinge a modernidade do idioma .
4
Esse
historiador aponta que o sentido histórico dos acontecimentos, os quadros de elevação moral,
a tendência glorificativa do passado, trouxeram à tona a leitura e o estudo de autores clássicos
como Plutarco, César, Cícero e outros que, nas suas palavras, “passam a constituir modelos
literários para cultores da disciplina histórica”
5
.
Essa volta à Antigüidade clássica através da difusão da literatura da Antiidade faz
com que a tradição cultural portuguesa de Quinhentos receba novos contributos, contributos
que podem ser resumidos sob o rótulo de Humanismo. A esse respeito, a análise feita por
Joaquim de Carvalho
6
parte da perspectiva de que as inovações científicas e intelectuais,
ocorridas na Europa moderna, teriam propiciado as transformações nos valores, nas ciências e
nas artes portuguesas. O ambiente europeu da época é apontado como responsável pelas
modificações em Portugal. Dessa maneira, o humanismo português provém de um movimento
mais amplo, sendo posteriormente incorporado à cultura, às artes e ao ensino portugueses.
Apesar de considerar esse movimento como desenvolvido “fora” de Portugal, o autor enfatiza
2
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A historiografia portuguesa. Lisboa: Verbo, 1972. v. 1.
3
Ibid., p 148.
4
Ibid.
5
Ibid.
6
CARVALHO, Joaquim de. Estudos sobre a cultura portuguesa do século XVI. Coimbra : Universidade de
Coimbra, 1978.
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que o sentimento patriótico dos portugueses o diminuiu, ao contrário, fez-se presente em
seus temas de inspiração nacional. Joaquim de Carvalho destaca ainda o apoio da Coroa
portuguesa e os incentivos concedidos aos jovens portugueses para estudarem no exterior,
através de bolsas de estudo concedidas pelo rei D. João III; fato que teria permitido a entrada
de novas idéias em Portugal.
Os contatos que assim se criaram com as escolas do estrangeiro, englobando os
maiores nomes do pensamento europeu, tinham forçosamente de impor os mestres que, pela
docência ou pela obra, haviam se destacado na vida intelectual do tempo
7
. O latim tornou-se o
veículo de aproximação dos homens que comungavam no mesmo ideal e a quem a aurora do
renascimento oferece as condições de intercâmbios para a sua valorização. Pôde-se colocar
em relevo aqui o fluxo e refluxo de escolares portugueses que, desde os finais do século XV,
freqüentaram universidades estrangeiras, sobretudo italianas. Tal fato pode ser explicado
através do “investimento na cultura”, tanto quantitativa quanto qualitativamente, sob comando
de D. João III. A propósito disso, Antônio Rosa Mendes
8
destaca que o “investimento na
cultura, sobre ser um imperativo das circunstâncias históricas, a prazo relativamente largo
poderia surtir”. Sendo assim, o autor que, com os recursos existentes na coroa portuguesa
para promover uma “modernização”
9
da cultura em Portugal, a primeira iniciativa do governo
joanino foi a “importação de eruditos” ou a manutenção de bolseiros, estudantes portugueses,
em centros intelectuais de relevância no momento, como a Universidade de Paris, por
exemplo.
Era pelo estudo das bonae litterae que se abria o caminho da humanitas, ou seja, o
admirável campo do saber onde o homem recebia a nobilitação da cultura. Sem ter em conta a
origem social ou o privilégio da fortuna, o humanismo contribuiu para a irradiação de figuras
notáveis, incluindo muitos oriundos de Portugal. Mas aqui de se ressaltar uma questão a
respeito desse supracitado humanismo: segundo alguns autores, como José de Pina Martins
10
e Antônio Rosa Mendes
11
, o humanismo cristão de Erasmo de Roterdão cativou muitos
escolares lusitanos que freqüentaram os gerais do estrangeiro. Isso conduz a levantar um
problema fundamental relacionado ao tema e assinado por Antônio Rosa Mendes no seu
texto, no qual propõe que, no contexto dos anos 30 do século XVI português, quem diz
7
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal (1580). Portugal: Verbo, 1978. p. 173.
8
MENDES, Antônio Rosa. A vida cultural. In. MAGALHÃES, Joaquim Romero (Coord.). História de
Portugal: no alvorecer da modernidade. Coimbra: Estampa, 1973. v. 3. p. 375–421.
9
Termo utilizado por vários autores, inclusive Annio Rosa Mendes na obra: MENDES, 1973, op. cit., p. 380.
10
MARTINS, José V. De Pina. Humanismo e erasmismo na cultura portuguesa do século XVI. Paris:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1973.
11
SERRÃO, 1978, op. cit.
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humanismo diz necessariamente erasmismo. O autor coloca que o prestígio do sábio de
Rotero estava no seu auge e, por conseqüência, sua doutrina, que associava conteúdos
humanísticos como um método histórico filológico, defesa das belas-letras em confronto
com a escolástica, aspirações de um cristianismo ético e evangélico, suscitou a adesão de
inúmeros intelectuais portugueses, como João de Barros, Duarte de Resende, Diogo de
Gouveia, Damião de is, André de Resende, entre outros. Esses, examinando o pensamento
erasmiano, “agenciaram a modernização da cultura portuguesa”
12
, daí a associação
humanismo erasmismo. Jo de Pina Martins, no seu texto, trata do controverso tema do
erasmismo”. A razão principal para a dificuldade em defini-lo estaria na inevitável
aproximação entre o conceito de erasmismo e o conceito de “humanismo”. Os dois mais
importantes aspectos do “erasmismo método e doutrina são quase inseparáveis do
conceito de humanismo. Sendo assim, Pina Martins aponta a impossibilidade de se destacar
um único tema da obra de Erasmo de Roterdão que não seja detectado em obras de Petrarca e
de seus discípulos. Martins critica a análise anti-científica de muitos pesquisadores que
chamam erasmita um autor, sem que perguntem se o erasmismo não seria antes derivado do
humanismo de Quatrocentos, do qual Erasmo foi herdeiro.
Seguindo essa linha de raciocínio, o texto de A. Costa Ramalho
13
procura elucidar a
introdução do humanismo em Portugal. O autor traça o caminho da “entrada” do dito
humanismo em Portugal por meio dos estudos da cultura grega e latina e, sobretudo, por esta
última, já no final do século XV Português. Ele considera como marco inicial do Humanismo
Português a chegada de Cataldo Sículo, no supracitado país, em 1485. O autor, discorrendo
sobre a passagem de Sículo nas terras portuguesas, demonstra-nos a evolução ao longo do
século XVI do Humanismo português e seus conceitos.
Muitas são as dificuldades que se em a uma abordagem desse tipo, mas conhecer
algumas maneiras pelas quais é abordado o controverso tema é incontornável. Aqui pretende-
se tão somente reconhecer que existem essas diversidades de compreensão e essa
multiplicidade de formas de se atentar para o tema do humanismo, para assim melhor se poder
analisar como se situam as crônicas de Damo de Góis, nosso objeto de pesquisa, nesse
ambiente de valorização da Antigüidade e de diálogos com letrados de outras partes da
Europa.
A tradição cultural portuguesa recebeu a nova seiva do humanismo, enriquecida pela
mensagem clássica do Renascimento. E é aqui que se atém este trabalho, ao abordar a obra de
12
SERRÃO, 1978, op. cit., p. 384.
13
RAMALHO, Américo da Costa. Estudos sobre o século XVI. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
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Damião de Góis, mais especificamente suas duas únicas crônicas, Chronica do Felicíssimo
Rei Dom Emmanuel e a Chronica do Príncipe Dom João, Rey que foi destes regnos segundo
do nome. Esses deslocamentos culturais, levantam problemas quanto ao gênero literário da
crônica, na medida em que as experiências quinhentistas procuram romper com convenções
narrativas herdadas de um certo tipo de discurso medieval, que implica em uma outra
concepção de história. Quanto a isso, a principal razão que justifica a escolha deste autor,
frente a muitos outros, é a sua definição do que é a história, ou do que é fazer história, e da
importância que tem o autor nessa tarefa, como Góis explicita ao seu leitor já no prólogo de
sua Chronica de D. Manuel:
Muitos, e graves authores nos principios de suas chronicas trabalharam em
louvar ha historia, da qual tudo ho que dixeram foi sempre muito menos do
que se devia dizer, porque assi quomo ella he infinita, assi seus louvores
nam tem fim, nem termo a que se possam reduzir, e pois tudo o tratado nesta
parte, he quasi nada em comparaçom do que deve ser, [...]
14
.
Na referida crônica, além dos pontos acima apontados, encontramos referidos os
inúmeros dissabores do seu autor, pois, no decorrer da narrativa, são levantadas pelo cronista
importantes questões, como por exemplo a noção de autoria e leitura de uma obra que
analisaremos no decorrer desse capítulo.
Antes, porém, de nos atermos às questões que o texto cronístico goisiano nos traz, faz-
se necessário analisarmos ou ao menos apontarmos um dos pontos que, segundo alguns
historiadores, como Jorge A. Orio, Joaquim de Carvalho, entre outros, auxiliaram Portugal
a participar do movimento geral do Renascimento europeu: o humanismo. Isso se justifica,
pois a par de várias outras personalidades do seu tempo, Damião de is é considerado pela
historiografia uma figura de referência indispensável para se conhecer o pensamento
humanista, em Portugal e na Europa.
O humanismo exerceu grande influência no conceito de história, até fins do século
XVI e influencia diretamente nos ambientes culturais e cortesãos portugueses de
Quinhentos. Segundo essa linha de pensamento, Elisabeth Feist Hirsh
15
aponta que o clima
que reinava na corte de D. Manuel era propício ao pensamento científico”, mas a autora não
afirma categoricamente que esse pensamento científico” seja fruto do humanismo. O fato é
que, segundo Hirsh, além do apoio real às ciências, houve também o imenso volume de dados
14
GÓIS, Damião de. Chronica do Felicíssimo Rei D. Manuel. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis,
1949a. pte 1, prólogo, sem paginação
15
HIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
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novos que afluíam à corte portuguesa, provenientes das navegações e dos contatos com outras
cortes.
Mas de qualquer maneira, vale destacar as influências que os valores do humanismo
ou erasmismo” renascentista ganhavam nos setores das elites letradas. Um círculo cortesão
que, em linhas gerais, durante o final da Idade Média, se esforçará no sentido de aumentar o
patrimônio escrito, visando a organização do reino, a formação dos nobres e a construção do
passado a serviço dos reis portugueses que protagonizaram o alargamento do mundo.
Quanto ao primeiro desses objetivos, diversas foram as ações no sentido de ordenar os
documentos existentes e de não deixar sem registro escrito as decisões administrativas, os
dissídios individuais ou coletivos e outras ocorrências jurídicas e poticas; o que concorreu
para a valorização dos homens que dominavam a arte de escrever e para o enriquecimento dos
arquivos públicos.
Todos esses dados são relevantes, na medida em que nos fazem pensar que é nesse
ambiente que cresce Damião de is, pois, segundo Elisabeth Hirsth, “o tom da corte tornou-
se parte da atitude e do modo de vida de is”
16
. Damião de is insere-se em um momento
em que o fortalecimento do saber escrito no reino oferece à história novos meios de expressão
cultural, juntamente com a difusão da imprensa, abrindo novas perspectivas para o labor
histórico. Esse último reordena-se a partir da organização dos Arquivos Nacionais, a mando
de D. Manuel; tarefa que tinha sido iniciada pelos guardas-mores quatrocentistas e que seria
continuada pelo próprio Góis a partir de sua nomeação a título interino como guarda-mor do
Aquivo Régio. Nas palavras de Elisabeth Hirsh, no trabalho no Arquivo Régio Damião de
Góis aprendeu um pouco da disciplina a que mais tarde iria dedicar-se, e por tal motivo
começou a ter uma concepção da historiografia como ciência
17
.
Sobre o pensamento humanístico de is, pode-se lembrar que, em 1544, Rutger
Rescius publica em Lovaiana um volume de autoria de Damião de is, intitulado Aliquot
Opuscula. Este, além de vários escritos, incluía a correspondência trocada com ilustres
personagens da época. Esta obra continha todas as obras de is publicadas até a data
18
.
Segundo Hirsh
19
, só não estão inclusos os textos Cato Major e Legatio. A tradução de
cero, segundo Tavares
20
e Hirsh,
21
não teria interesse para o público português, mas como
16
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 14.
17
Ibid., p. 15 – 16.
18
Ibid., p. 159.
19
Ibid., p. 159.
20
TAVARES, José Fernando. Damião de Góis: um paradigma erasmiano no humanismo português. Lisboa,
Universitária Editora, 1999. p. 79.
21
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 159.
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Cato Major e De Senectute são livros característicos deste período humanístico, segundo os
autores acima citados, ambos concordam em afirmam que se trata da única contribuição de
Góis para a difusão da literatura da Antiidade Clássica. No De Senectute, is aplica
diretamente os ensinamentos de Erasmo de Roterdã acerca da ngua do Vernácula
22
. Nesse
texto, Damião de is mostra sua preocupação com a morte e um sentimento de insegurança
frente à mesma. Dedicou a tradução dos supracitados textos ao Conde de Vimoso segundo
Tavares
23
, fidalgo culto da corte de D. Manoel –, desejando dar ao Conde alguma “defensa”
contra a velhice
24
. Talvez a tradução de tal texto também se explique segundo a análise de
Hirsh
25
, pelo que se nota na correspondência goisiana deste período primeira metade do
século XVI –, na qual Damião de Góis revela um profundo medo da morte.
Mas o livro Aliquot Opuscula, que segundo Hirsh
26
e Tavares
27
, se comparado com outros
livros humanistas deseu tempo, é um livro modesto.Mas ainda assim, apesar da dita modéstia, Góis
deve ser considerado como uma figura de destaque do Humanismo portugs. Segundo os autores
acima citados, entre outros estudiosos do tema, o teor das suas obras vai de encontro com o
pensamento humanístico do próprio Erasmo de Roterdã. Nas palavras de Hirsh
28
, alguns de seus
escritos em latim exemplificam métodos inovadores e outros encarnam causas significativas da
época,
29
revelando três caractesticas: uma concepção do patriotismo de Góis; uma tentativa de
contribuição para novos métodos cienficos; e uma certa tolencia religiosa.
Sobre a primeira das características acima, os textos mais significativos que a
exemplificam são Hispania e De Rebus Eti Imperio Lusitanorum, publicados em 1539.
acerca da segunda característica, segundo Hirsh,
30
a obra Hispania “é um documento
humanístico marcado por traços como, por exemplo, a riqueza de detalhes na narrativa, bem
como a experiência pessoal do autor, que podem ser consideradas maneiras escolhidas por
esse de elaborar um texto para que pudesse ser considerado científico. Sobre esse ponto, a
autora acrescenta que a importância dada à experiência pessoal deve-se em parte ao desejo do
autor de demonstrar que o todo empírico oferece melhores resultados do que o
conhecimento em “segunda mão”.
31
a respeito da terceira característica, temos o texto
22
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 159.
23
TAVARES, 1999, op. cit., p. 79.
24
A esse respeito ver VASCONCELOS, Joaquim de Damiao de Goes: novos estudos. Porto, 1897. p.124.
25
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 160.
26
Ibid., p. 160 e 161.
27
TAVARES, 1999, op. cit., p. 80.
28
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 160.
29
Ibid., p. 160.
30
Ibid., p. 162.
31
Ibid., p. 163.
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Fides, Religio Moresque Aethiopum cujo tema central é a questão religiosa –, onde são
expostos os princípios da religo etíope assim como os rituais que os regiam. Segundo
Tavares
32
, Damião de is sempre revelou insatisfão com a vida religiosa do mundo
ocidental e, talvez devido a esse fato, is encarava a religião etíope de uma forma
idealizada. Esse é apontado como um ponto fundamental no pensamento goisiano, pois
consiste na sua capacidade em aceitar as diferenças religiosas, desejando a unificação das
igrejas cristãs do oriente e ocidente e defendendo em todas as religiões uma certa contribuição
para o pensamento e vivência humana.
Estamos, pois, diante de um homem oriundo de uma família da pequena e antiga
nobreza rural, educada na corte, um homem que confia na sabedoria dos antigos e na
experimentação dos “modernos”. Teve moradia na corte e as funções que aí desempenhou não
se restringiram à atividades econômicas, mas também envolveram a representação
diplomática. As atividades fiscais de alto funcionário levaram Góis a viajar por regiões menos
conhecidas dos seus contemporâneos, fato que o fez familiarizar-se com alguns dos homens
mais eminentes do seu tempo, como: Erasmo, os cardeais Bembo e Sadoleto, Lutero e
Melanchton. Se tais o influenciaram diretamente, não podemos afirmar categoricamente.
Sabe-se de uma forte amizade entre is e Erasmo, explicitada na historiografia goisiana,
através das cartas que ambos trocaram e pelo conhecimento de cinco meses em que Góis ficou
como hóspede de Erasmo em Friburgo. Não se sabe grande coisa acerca da influência que
Góis possa ter recebido do seu anfitrião no campo religioso, mas, segundo Elisabeth Hirsh
33
,
todas as propensões de realizar uma síntese de objetivos seculares e espirituais, que serão
tema de inúmeras obras goisianas, foram encorajadas “pelo profundo conhecimento que Góis
tinha do pensamento erasmista”
34
.
Talvez seja por essa forte influência que o pensamento erasmista teve em is que
muitos autores optam por apresentá-lo como humanista e daí as associações às influências em
suas obras. Nas palavras de Luís de Sousa Rebelo:
[...] o contraste entre o esplendor, que rodeia a vida do Humanista no norte
da Europa, onde conviveu com alguns dos homens mais eminentes do seu
tempo, e o apagado fim dos seus últimos anos, tornara-se modelo do
intelectual português que se abria às correntes do pensamento europeu.
35
32
TAVARES, 1999, op. cit., p. 95.
33
HIRSCH, 2002, op. cit.
34
Ibid., p. 99.
35
REBELO, Luís de Sousa. Damião de Góis e os chamamentos do humanismo. In. DAMIÃO de Góis:
humanismo português na Europa do renascimento. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002. p. 26.
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Assim, quando se trata de Damião de is, cumpre situar o problema da relação entre
Portugal e o centro de produção intelectual no resto da Europa. O estado da marginalidade
cultural suscitado pelo distanciamento geográfico de Portugal dos grandes centros da cultura
européia e o próprio desenvolvimento de uma história, que se faz entre a terra e o mar, são
elementos que participam decisivamente do mundo de interesses das primeiras manifestações
humanísticas em Portugal.
De acordo com Sousa Rebelo, reatualizada por uma elite cortesã, que centraliza na
educação latinista o seu empenhamento humanístico, a herança clássica não podia ignorar a
obra dos descobrimentos e os novos desafios que esses punham à própria percepção do
homem sobre si. O autor explicita que a preocupação dos humanistas portugueses era de se
imiscuírem no processo cultural europeu com obras de mérito literário, que se aproximassem
dos modelos da Antiidade. Portanto, Damião de is, pode ser visto como o humanista
português que revela uma consciência mais aguçada deste fenômeno da marginalização
européia e dos riscos que ele comporta”
36
. Damião de is estava, para ele, situado no centro
desse chamamento humanístico e, por isso mesmo, cumpria entendê-lo como figura integrada
na cultura européia, em luta contra a marginalidade cultural e desejando um desenvolvimento
ecumênico.
Góis, nas biografias que lhe são dedicadas, é na maioria das vezes apresentado a partir
do problema do humanismo. Uma outra maneira de apresentá-lo, além de humanista, é como
cosmopolita. is foi um homem que, representando a coroa portuguesa, viajou a inúmeros
locais, como por exemplo Louvaina, Antuérpia, França, Inglaterra e Países Bálticos. Nesse
sentido, a qualificação é recorrente especialmente porque, às relações cosmopolitas de
Damião de Góis, se associa seu papel na definição do rumo cultural português. A esse
respeito, podemos citar Marcel Bataillon
37
, que considera que “sem vida o seu valor
espiritual reside no seu próprio cosmopolitismo, nas ligações que ele soube estabelecer entre o
Portugal dos descobrimentos e a Europa do Humanismo, da Renascença e da Reforma.”
38
O
autor ainda adianta que se faz útil estudá-lo como cosmopolita, para se tentar compreender de
que forma atingiu ele uma tão elevada cotação no mercado dos valores europeus”
39
. Todo
esse cosmopolitismo, como definiu Marcel Bataillon, faz de is um fino observador, o que
se pode notar pelos temas abordados em suas várias obras: Urbis Olisiponis Discriptio; Fides
36
REBELO, 2002, op. cit., p. 31
37
BATAILLON, Marcel. O cosmopolitismo de Damião de Góis. Lisboa: Seara Nova, 1938.
38
Ibid., p. 17.
39
Ibid., p. 18.
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religio moresque Aethiopium e inúmeros Opúsculos, escritos em língua latina, nos quais
podemos notar a diversidade de temas observados por Góis, que apontamos anteriormente.
Esses textos, assim como sua vasta bibliografia, acham-se largamente estudados, porém, o
tão numerosos são aqueles considerando is como um escritor, seja da língua latina, seja da
portuguesa. Marcel Bataillon
40
afirma que “até hoje ninguém pensou em considerá-lo um
escritor brilhante”, tarefa que também aqui não é a nossa, já que é o seu fazer histórico que
nos interessa e não propriamente suas habilidades estéticas. Damo de is insere-se em um
momento em que o fortalecimento do saber escrito no reino lusitano oferece à história novos
meios de expressão cultural, sendo assim, a partir da análise das duas crônicas deixadas pelo
“humanista-cosmopolita”crônicas, que permitem notar seu percurso como historiador e
escritor, pretendemos perceber os rumos da escrita da história portuguesa no século XVI,
partindo dos diálogos que estabelece com seus antecessores e seus contemporâneos.
1.1 Damião de Góis e a tradição cronística
Para levar adiante a abordagem desse processo em que a escrita se torna instrumento
indispensável na apreensão do mundo, recorremos, sobretudo, ao discurso das autoridades que
promoveram o saber em Portugal e dos escritores envolvidos em tal processo: os cronistas.
A partir da nomeação de Damião de is, a título interino, como guarda-mor do
Arquivo Régio, veremos nosso “humanista” encarregado, a pedido do Cardeal D. Henrique,
de redigir e continuar a narração e a exaltação dos reis lusitanos e as glórias da pátria
portuguesa. Góis iniciará essa tarefa redigindo uma crônica dos feitos de D. Manuel,
publicada em 1566, e ainda a Crônica do rei D. João II, publicada no ano de 1567. Nas
palavras de Joaquim Veríssimo Serrão, de “estilo renascentista de formação, com vocábulos
de pura fonte clássica e uma prosa que revela a ossatura do português moderno [[...]],
apresentando uma serenidade na forma e de visão objetiva dos fatos”
41
, está Góis ligado à
feição tradicional da crônica, procurando exaltar as glórias da sua pátria.
Para essa tarefa , is se impôs um critério de verdade na narração, como esclarece
no prólogo da Crônica do Felicíssimo D. Manuel, obra que provocou um ressentimento em
certas famílias nobres que se julgaram diminuídas no relato do cronista. Esse ressentimento
lança-nos uma interrogação sobre o valor que no século XVI se atribuiu às crônicas, ou
melhor, vale interrogar até que ponto uma produção destinada a um número restrito de leitores
40
BATAILLON, 1938, op. cit., p. 18.
41
Ibid., p. 174.
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poderia causar desconforto naqueles que se julgavam mal retratados. Seria possível cogitar
que, mesmo antes da disseminação dos escritos históricos através da imprensa, havia a
preocupação dos nobres sobre a imagem deles registrada? Somadas a essas questões, vemos
ainda questões como a leitura e a autoria de uma obra, já que se vê evidente a preocupação de
Góis com a escrita de suas duas crônicas.
No que diz respeito às críticas da nobreza, algumas passagens da parte 1 da Crônica
do Felicíssimo Rei D. Manuel são ilustrativas. As críticas partiram de um conde, o Conde de
Tentúgal, e foram incorporadas a uma das edições do primeiro volume da supracitada crônica,
o se restringindo a apenas um tema. Diversos são os assuntos narrados que sofreram
pesadas críticas proferidas pelo Conde de Tentúgal. A maioria dos trechos criticados
possuem, na maioria das vezes, citações a pessoas ou acontecimentos envolvendo algum
personagem da nobreza, ora um nobre qualquer, ora um familiar do próprio censor, ora, em
alguns casos, acontecimentos que envolveram o próprio rei a quem a crônica é dedicada.
Vejamos algumas dessas críticas.
Logo no icio do primeiro capítulo, no qualGóis trata do falecimento do ReiD. Jo II e da
declaração de algumas cláusulas do seu testamento, há uma frase do cronista queteve de ser retirada
antes de ser impressa: “Sua morte nam foi sem nella haver suspeita de lhe terem dado peçonha
42
frase que se encontra na nota de rodapé da edição crítica utilizada como base deste trabalho. Essas
palavras foram retiradas da edição definitiva em virtude da censura do Conde de Tengal, que
qualificara a idéia da morte de D. Jo II por envenenamento de opinyão o fallça e inhoramte
que puderya ter alguma a gemte baxa da morte dell Rey Dom João, porque a alta nunca tal cuydou
[...]
43
. O conde completa, dizendo que tal afirmão “o convem pôr se em chronica doutro Rey,
pois não cerve se o de o desomrar [...]
44
. Vemos aqui uma clara preocupão coma honra do rei
a quem a Crônica é dedicada, e o censor afirma que, se talacontecimento foi verídico, não partiu da
gemte alta, ou seja, resguarda a honra da nobreza.
Um outro curioso fato criticado, que nos permite notar as preocupações do Conde de
Tentúgal, é referente à imagem ou à honra real e encontra-se no Capítulo V da crônica em
questão, no qual o cronista narra a criação que D. Manuel teve logo ao nascer. Aqui, o nosso
crítico aponta que Góis não deveria insinuar “particularydades da ama d El Rey Dom
Manoel”, pois, segundo o conde, tais assuntos poderiam turvar a pureza do leite que D.
Manuel bebera quando recém-nascido. Uma preocupação direta com a imagem do rei.
42
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 3-4 (edição conforme a primeira de 1566).
43
Ibid., p. 3-4.
44
Ibid.
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Uma outra crítica elaborada por Tentúgal mostra-nos agora uma preocupação do
censor em sair em defesa de algumas famílias cortesãs, sobre as quais Góis narra alguns fatos
que as envolveram, como é o caso da linhagem dos “Bragança”. A esse respeito, no Capítulo
XIII, escreve Damião de Góis:
Neste tempo quomo atrás fica dicto tinha el Rei mãndado chamar
Jaimes, e Dinis filhos do Duque de Bragança dom Fernãdo e outras
pessoas que andavã fora destes Regnos pello caso das treições, hos quaes
chegaram a setuval depois da Páscoa, e elles Álvaro seu tio irmão do
duque seu pai e dõ Sancho [...]
45
.
Aqui o censor protestou contra as refencias às “traições” dos de Bragança,
considerando como consta nas notas de rodapé da edição utilizada as acusações que lhes
faziam como sem valor e o uso palavra traição injusto e desonroso à citada família, obrigando
a mudança do termo e da maneira com que se apresentou a família Bragança. O termo
sugerido e alterado na crônica era “desterrados”, como observou Joaquim Serrão.
Esses são alguns dos inúmeros trechos criticados pelo homem da corte que, além de
censurar e impor mudanças na escrita da crônica, lança sérias acusações a is, como de falta
com a verdade dos fatos, de ter fé, de narrar fatos que, segundo o conde, não deveriam ser
revelados e tratar de temas que não se colocam em crônicas. Estaria o conde ensinando Góis
lições de como fazer história? Afinal, o crítico chega ao ponto de condenar certas palavras
utilizadas pelo cronista que não seriam apropriadas, tais como: “não ter respeito”;
“blasfêmia”, “grande atrevimento”, “traição”, entre outras.
Algo que também se deve destacar no tocante à defesa que Tentúgal faz da Casa dos
Bragança, é que ele não estaria preocupado apenas com a imagem da nobreza em geral, mas
com a sua própria imagem, já que ele era neto de D. Álvaro, irmão do duque de Bragança, D.
Fernando, que se exilara em Castela com seus sobrinhos, D. Jaime e D. Dinis. Portanto,
chegamos aqui à questão da preocupação com a imagem de cada um relatada na crônica.
Diante disso, de todas essas questões evidenciadas no momento em que nos
deparamos com as críticas ao texto e mais ainda ao conteúdo do texto de Góis, não cabe julgar
se essas críticas são justas ou injustas, mais importa considerar que esta crônica foi lida e
causou incômodo. Se o podemos dizer como e quando foi lido pelos nobres em questão, se
foi lido em público ou individualmente, dados os limites deste trabalho, ao menos tentaremos
perceber em que medida o texto passou por uma leitura que posteriormente levou à sua
45
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 28-29.
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alteração pelo cronista para que viesse a ser impresso. Enfim, os cortesãos parecem ter
vencido Damião de Góis, impondo seus interesses privados na versão impressa da crônica,
pondo em risco, assim, a proposta de imparcialidade declarada pelo historiador e os critérios
de verdade pretendidos pelo cronista e explicitados no prólogo dessa crônica. Segundo
palavras de Serrão a partir de David Lopes:
O conde escreve com paixão. A leitura da crônica irritou-o. A sua prosápia
de grande fidalgo, que privava com reis, sentiu-se ofendida, por si e pelos
seus amigos, com a sobriedade serena do cronista. A sua concepção de
história não é a mesma. O conde quer que ela olhe para os grandes da terra e
deixe na sombra os pequenos; o cronista, porém, quer para uns e outros a
mesma medida; os homens são apenas função dos seus actos e o seu
julgamento há de fazer-se só por eles. Não podiam pois estender-se.
46
Se o citado conde de Tentúgal possuía muita ou pouca influência, por hora, pouco podemos
dizer. O dado incontornável de que dispomos é o de que, na verdade, a Crônica de D. Manuel
foi reimpressa com várias alterações realizadas pelo próprio Góis, mas a partir dessas
sugestões/imposições que lhe foram feitas.
Vemos, então, na edição que foi impressa, o confronto de duas verdades, a do
conde e a de is, e vemos igualmente explicitadas duas diferentes relações com a
história: de um lado, temos um nobre cortesão que se preocupado com a escrita dos
feitos de seu país e preocupa-se em intervir nesta escrita. Seria esta uma preocupação
com os efeitos da escrita para a imagem de uma família ou de um indivíduo e seus papéis
na história da nação?
Diante dessas considerações e pelo fato de termos aqui um problema que envolve um
documento escrito, um autor que teve significativo protagonismo no momento em que viveu e
um leitor incomodado com aquilo que sobre ele e sua família é dito, cabe agora refletir um
pouco sobre o lugar e o papel dos autores e, depois, o papel da leitura na sociedade
portuguesa de meados do século XVI.
1.2 Leitura e autoria para Damião de Góis
Muitas são as dificuldades que se em a uma abordagem deste tema, uma vez que as
obras não eram escritas especificamente para um determinado público, sendo assim, não se
pode conhecer as maneiras pelas quais os diversos grupos de leitores, cada um com suas
46
SERRÃO, 1972. v. 1, op. cit., p. 164.
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especificidades, tiveram acesso aos textos. Uma das dificuldades que se colocam ao
historiador, dentre muitas outras, é a de reconhecer as várias formas de leitura que se fazia de
um texto, devido à escassez de vestígios deixados pelos leitores
47
. De qualquer modo, tendo
em conta que são reconhecíveis no período diversas formas de leitura e compreensão de um
texto, cabe mais adiante interrogar pelo menos algumas dessas formas que são mais
fundamentais para o problema aqui tratado.
Por agora, uma outra questão merece ser desdobrada, a de que Damião de is,
criticado pelo leitor cortesão, foi tamm ele o crítico de um cronista que o antecedeu, Rui
de Pina. Sua crítica é especialmente relevante, porque introduz a questão da autoria como
um problema relevante para este homem do século XVI. is, como lembra Susani
França
48
, acusa o quatrocentista Rui de Pina "de ter se apropriado das crônicas de Fernão
Lopes dos primeiros reis de Portugal e lhe ter roubado o reconhecimento pelo trabalho de
elaborão", o que nos traz uma questão quando o que está em jogo é a produção escrita
quinhentista: o problema da originalidade e da autoria. No cerne da sua acusão, vemos
uma forte preocupação com a autoria dos textos, ou seja, da criação e responsabilidade
pelos escritos.
o importa julgar a veracidade ou a falsidade da tese de Damião de is de que
houve uma apropriação dos textos de Fernão Lopes por Rui de Pina, mas sim pensar como
o uso que Pina faz de textos anteriores, uso que is julgou ilegítimo, deve ser
contemplado frente aos valores quinhentistas. Como ressalta a referida autora, é preciso,
antes de tudo, deixar claro que "a idéia de pia era de certa forma legitimada na Idade
dia", época em que Rui de Pina escreveu. Até mesmo Fero Lopes se refere ao seu
trabalho como o de ajuntador do que os seus antecessores deixaram escrito. Roger
Chartier, ao refletir sobre a questão da função do autor, coloca que, na Idade dia, a
originalidade o era fundamental, fosse porque o que era visado era a transmiso da
Palavra Divina, fosse pelo apego à tradição
49
. Ou seja, uma tal concepção do fazer
histórico, que não descarta o uso de textos alheios, era aceitável ou ao menos o
despertava incômodo nos homens medievais.
47
GRAFTOM, Antony. O leitor humanista. In: CAVALLO, G.; CHARTIER, Roger (Dir.). História da leitura
do mundo ocidental. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Ática, 1999. p. 5-32.
48
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. O problema da originalidade e da autoria nas crônicas medievais. In:
ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 4., 2003, Belo Horizonte. Anais .... Belo
Horizonte: PUC Minas, 2003. p. 381–387.
49
CHARTIER, Roger. Aaventuradolivro. TraduçãodeReginaldoCarmellodeMoraes. SãoPaulo: Ed. UNESP, 1999.
p.31.
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Se, portanto, Fernão Lopes não teve a originalidade como principal meta e se
o uso da pia era algo quase legitimado no tempo dos escritores em
questão, por que razão teria Damião de Góis sido o severo com o fato de
Rui de Pina ter-se utilizado de uma prática consentida no seu tempo?
50
Podemos justificar, levando em conta que, no tempo de is, com o advento da
imprensa, já se esboçava alguma consciência do benefício ou não dos escritos para a memória
nacional ou de particulares, o que é evidenciado nas referidas críticas e acusações violentas do
Conde de Tentúgal, presentes na primeira parte da Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel.
Tais críticas obrigaram is a realizar algumas correções/alterações nesse volume,
respondendo a várias acusações recebidas, assim, ele se viu obrigado a reformular passagens
inteiras da redação original, antes que fosse impressa.
Essas acusações fazem-nos lembrar que Michel Foucault
51
e Roger Chartier
52
apontam
que o primeiro momento da afirmação da identidade do autor estaria ligado ao fortalecimento
da censura ao texto escrito. Diante disso, França aventa a hipótese de que não é arriscado
supor que as responsabilidades e conseqüentemente os direitos de autor fossem bem mais
claros para o quinhentista Damião de Góis, do que para os cronistas quatrocentistas”
53
. O que
se pode perceber na seguinte afirmação: [...] que nos screver das chronicas se requere, que
he com verdade dar a cada hu ho louvor, ou reprehensam que merece”
54
; ou seja, o autor é
aqui contemplado como proprietário de sua obra e das idéias que ela expõe, bem como
responsável por elas.
A inquietão de is diante da apropriação de escritos traz à tona uma questão que
está ligada diretamente à da originalidade de um texto: vínculo entre propriedade literária e
autoria. A idéia de direito do historiador sobre seus escritos, pressuposta na crítica de is a
Pina, coloca-nos a hipótese de uma suposta alteração nas relações entre autores e escritos na
passagem do século XV para o XVI, pois os cronistas quatrocentistas não demonstram a
mesma preocupação que is. Porque esses historiadores ocupavam um cargo, concedido e
remunerado pelo rei, destinado à escrita da história dos feitos dos reis e fatos dos seus
reinados, e que lhes permitia o uso de documentos arquivísticos para a elaboração de suas
crônicas, sua intenção declarada era, segundo Susani Fraa, "fazer da história um
50
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. O problema da originalidade e da autoria nas crônicas medievais. In:
ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 4, 2003, Belo Horizonte. Anais.... Belo
Horizonte: PUC Minas, 2003. p. 382.
51
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antonio F. Casacais e Edmundo Cordeiro. Lisboa:
Vega, 1992.
52
CHARTIER, 1999, op. cit.
53
FRANÇA, 2003, op. cit., p. 386.
54
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 2.
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instrumento de preservação e atestação do passado, bem como uma fonte de informação e
esclarecimento. Objetivos que insinuam como o sentido do dever de escrever era mais forte
do que o do direito sobre o escrito
55
.
Acerca dessa pouca relevância do nome do autor, Pedro Cardim
56
, num estudo sobre
João de Barros, contemporâneo de Damião de is, chama a atenção para o fato de que até
o culo XVI as obras sofriam inúmeras intervenções, que iam desde o aperfeiçoamento até
a supressão de partes tendo em vista interesses específicos, passando, em alguns casos, pela
seleção apenas de excertos textuais, como o caso presente do nosso cronista. O estudo de
Pedro Cardim ainda acrescenta que a relação entre o autor e o seu texto era muito diferente:
tratava-se de uma ligação mais distante e mediatizada. O autor tinha uma função que
“consistia em revisitar os “topoi”, mas devia ser uma revisitão que transformasse que
acrescentasse algo a esses mesmos dados da tradição
57
.
Nesse sentido, vemos que, segundo o referido autor, as questões da autoria e da
originalidade estão intrinsecamente ligadas à recepção e manipulação dos textos recebidos
pelo autor. Como vemos, essa questão da relação obra/autor coloca-se como problemática
no século em que escreve Damião de is, idéia que ainda era difusa no tempo de seus
antecessores, como vimos anteriormente. Assim, Pedro Cardim, ao se referir a esse
problema no tempo de João de Barros, que é o mesmo de is, nota a existência, ainda que
um tanto difusa, de uma relação do autor com seu texto. Segundo ele, a autoria, portanto, da
maioria dos textos quinhentistas, “acabaria por compreender muitos interventores, situando-
se no âmbito da coletividade
58
, e a individualidade do autor ficava relegada a um plano
menos importante.
No caso de Damo de is, no entanto, isso não se verifica. is assina em suas
obras tanto seu nome quanto suas opiniões, e sente pesarem as já referidas críticas,
relacionadas às opiniões que nelas enuncia. O caso indubitavelmente mais conhecido e
comentado é o da Crônica do Felicíssimo Rei Dom Manuel, obra que, como foi adiantado,
provocou ressentimento em certas famílias nobres que se julgaram diminuídas no relato do
cronista. Especialmente a Casa de Bragança se sentiu lesada pela apreciação feita da figura
do terceiro duque D. Fernando. O referido duque foi justiçado em Évora, no ano de 1483, e
os seus familiares exilados em Castela, foram reabilitados pela “graça de D. Manuel.
55
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 386.
56
CARDIM, Pedro. Livros e literatura e homens de letras de letras no tempo de João de Barros. Oceanos, n. 27,
p. 27–47, jul./set. 1996.
57
Ibid., p. 28.
58
Ibid., p. 45.
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Damião de is elogiou o gesto do monarca, mas não mostrou qualquer “sentimento pela
família do duque D. Fernando. Daí as críticas elaboradas por D. Francisco de Melo a is,
censurando-lhe a maneira parcial como desvendara certas matérias: os benefícios
concedidos por D. Manuel à casa de Bragança e seu questionamento do ambiente de fausto
perdulário da corte manuelina. O conde respondeu às críticas do cronista rebatendo com:
censuras à maneira como is coloca na crônica a morte do rei D. João II; condenações por
ter colocado no seu texto trechos do testamento de D. João II; críticas por ter colocado
dados sobre a ama de leite do rei D. Manuel; acusações de não escrever a verdade de alguns
fatos narrados ou acusações de utilizar algumas informações suspeitas, entre outras.
A pomica gerada pela Crônica do Felicíssimo rei D. Manuel foi tal que a obra foi
reestruturada pelo cronista antes de impressa, modificações que nos fazem pensar nos
limites da autoria dos textos no culo XVI. As várias intervenções sofridas pela crônica de
is e a postura do cronista de, muitas vezes, acatá-las, levam-nos a pensar que o século
XVI vem apresentar um autor mais preocupado com o que escreve e que não negligencia
que o faz para um leitor. As críticas à referida crônica remetem-nos à questão da
responsabilidade do autor sobre seus escritos, noção que não é perceptível nos séculos
antecedentes. De um modo específico, na Crônica de D. Manuel, is parece não
negligenciar que o que escreve pode lhe trazer conseqüências, e conseqüências nem sempre
positivas. Pode-se mesmo salientar que nas páginas de Damião de is, uma pincelada
de crítica social, quase apagada nos escritores da época, como em João de Barros e Fernão
Lopes de Castanheda.
Diante dessas considerações, cabe a nós notar um fato curioso a respeito das críticas
recebidas por Damião de is e seu texto, a saber, a postura de is frente a essas críticas:
ora as acata, e neste caso, altera por completo o trecho criticado, ora não as acata e não
altera uma vírgula ao texto criticado. Essa questão leva-nos a pensar se a afirmação da
identidade e da individualidade do autor que vem a se fortalecer no culo XVI, adquirindo
maior solidez nos séculos seguintes, poderia não ser apenas associada à difusão e
desenvolvimento da imprensa no referido século, mas também à maior atenção ou
preocupão conferida pelas autoridades ao perigo que significava a ampla circulação
desses textos e idéias. A Inquisição censurou e retirou de circulação várias obras e
perseguiu muitos autores que foram acusados de heterodoxia. Antes de serem publicadas, as
obras passavam pelo Tribunal do Santo Ofício a fim de que fossem aprovadas ou não e,
após serem impressas, voltavam a passar pelo crivo inquisitorial para certificação de que a
obra havia sido alterada. Isso faz pensar em is e sua acusação e condenação no Tribunal
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da Inquisição (1545 1571), e também nos outros autores contemporâneos ao nosso
cronista, que já denunciavam essa individualidade e pontos de vista associados ao seu nome
de autor; o que, segundo Foucault
59
, revela um peso e uma significação mais complexos
que os de um nome próprio. Ainda segundo Michel Foucault, quando se interroga sobre o
que é um autor”, sobre o processo de “individualização de um texto proporcionados pela
noção de autoria de um texto, nota-se que se tornam relevantes quando o autor se tornou
passível de ser punido, ou seja, quando o nome do autor caracteriza o tipo ou forma do
discurso.
Assim, podemos compreender a marca do nome que identifica o autor e a
significação que este autor vem adquirir no decorrer do século XVI. Entretanto, é aos
poucos, e com o decorrer do surgimento da imprensa, que a identidade do autor vai tomando
forma e se constituindo enquanto tal. Mas voltemos agora ao leitor, pom, atentando mais
especificamente para um leitor que não se limitou a ler e quis também participar de alguma
forma da versão final da crônica a ser lançada na forma impressa.
1.3 Damião de Góis e um leitor insatisfeito
Como foi mencionado, se o autor se impôs um critério de verdade na narração nos
moldes do que seus antecessores fizeram e como esclarece no prólogo de sua crônica do
Felicíssimo D. Manuel, vale interrogar se esse critério sofre alguma alteração, tendo em
vista que o cronista quinhentista tem no seu horizonte qualquer leitor, ou seja, tendo em
vista que ele parece se preocupar com seus futuros leitores. Vejamos, pois, como ele
demonstra preocupação com a recepção ou leitura de sua obra. Uma questão que e em
cena, em tempos do advento da imprensa, a relação obra/leitor.
Na crônica do rei D. Manuel, por exemplo, ao mesmo tempo vemos no prólogo um
autor preocupado em definir seu critério de verdade e no mesmo texto, o vemos criticado
por um leitor contemponeo à obra: o citado Conde de Tentúgal. Dessa forma, a questão
central está em como e de que forma os diferentes grupos, como por exemplo, o dos
cortesãos, de que faz parte o conde, se apropriam dos textos que chegam às suas os.
Os historiadores têm considerado que, durante todo o século XVI, e talvez para am
dele, podem ser destacadas duas maneiras de alcance de uma obra: uma são os textos
adaptados, ou mesmo simplificados, para serem adequados a um público menos apto à
59
FOUCAULT, 1992, op. cit.
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leitura; a outra é o acesso ao texto através de leituras em voz alta diante de um auditório. De
que maneira o leitor referido conheceu a crônica de is não se pode afirmar ao certo,
todavia, é certo que teve acesso a ele e, diga-se de passagem, entendeu que deveria intervir
nele, visto os ataques que empreendeu.
De acordo com Grafton, a compreensão de um texto por leitores do século XVI se
dava de várias formas
60
, mas não é fácil conhecer a maneira pela qual os diversos grupos de
leitores, em suas diferentes formações culturais, tiveram acesso aos textos, se foi através dos
originais, de livros simplificados, de pias, ou de impressos. Tampouco se pode afirmar
como ocorreu a leitura do texto direta ou intermediada. Chartier
61
, por exemplo, nota que
os livros não serão mais objeto raro em ambientes populares ou iletrados de muitas cidades
euroias na primeira metade do século XVI, através das leituras coletivas.
É possível adiantar que, ao longo de todo o século XVI, apenas uma pequena parcela
da população européia estava familiarizada com a leitura. Entre os nobres, muitos eram
letrados ou semi-letrados, os camponeses, esses permaneceram analfabetos por muito
além disso. Esses dados são referidos tanto por historiadores como Roger Chartier e Antony
Grafton, que se dedicam a outras regiões da Europa, como por estudiosos que abordam a
mesma problemática da leitura em Portugal do século XVI, como Pedro Cardim e Antônio
José Saraiva.
Todas essas questões importam ser pensadas quando, am da família de Tentúgal,
também as dores da Casa de Bragaa são tomadas pelo conde no que diz respeito à
apreciação feita à figura do duque D. Fernando na crônica do rei D. Manuel. Se as críticas
são justas ou injustas não nos cabe aqui julgar, o que importa é simplesmente o fato de que
temos um leitor um nobre cortesão que interfere diretamente na escrita de um texto, a
partir da leitura do mesmo. Ou seja, sua leitura lança o confronto entre duas verdades, a do
conde e a de is, e ao mesmo tempo e em cena o problema dos limites da verdade a que
estavam sujeitos os cronistas quinhentistas, bem como os limites da verdade que lhe são
impostos.
Para concluir esta primeira parte, devemos deixar claro um problema que envolve o
cronista em questão: um autor que se julga “superior aos seus antecessores, mas que, por
uma interferência de um leitor ou mais de um que a obra não desagradou apenas a um
nobre –, realiza alterações em seu próprio texto de acordo com alguns interesses desses
60
GRAFTOM, 1999, op. cit., p. 5–39.
61
CAVALLO, G. e CHARTIER, Roger (Dir.). História da leitura do mundo ocidental. Tradução de Cláudia
Cavalcanti et al. São Paulo: Ática, 1999.
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leitores/personagens. Diante disso, cabe-nos agora desdobrar até que ponto Damião de is,
que quis afirmar sua peculiaridade em relação a seus antecessores, pode ser diferenciado
dos outros cronistas quatrocentistas, especialmente de Rui de Pina cronista da virada do
século XV para o século XVI. É sobre o que pretendemos discorrer no capítulo seguinte.
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2 CAPÍTULO
DIÁLOGOS DE DAMIÃO DE GÓIS COM SEUS ANTECESSORES
2.1 A cronística de Rui de Pina
Diante dos pontos que destacamos, no capítulo anterior, a respeito de Damião de is
e sua crostica, cabe a nós agora desdobrar até que ponto ele pode ser diferenciado dos outros
cronistas que o antecederam. Para tal tarefa, escolhemos confrontá-lo com um de seus
antecessores, Rui de Pina, por ser esse cronista tima de inúmeras acusações vindas por parte
de Damião de is, como foi adiantado no capítulo anterior. A partir desse exemplo,
explorado ao longo deste capítulo, tentaremos perceber a oscilação de Góis entre a tradição
medieval da crônica e as novas perspectivas de escrita já no século XVI. Antes disso, porém,
vejamos quem foi Rui de Pina, como foi considerado pela historiografia e quais suas obras.
Nascido acerca de 1440 e falecido em 1552, é encarregado, a partir de 1490, de ajuntar
material para a história do reinado de D. João II, mas assume a cadeira de cronista-mor do
reino, apenas em 1497. Sua obra é constituída pelas crônicas dos reis portugueses da primeira
dinastia: Crônicas de D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis e
D.Afonso IV e pelas crônicas dos reis da dinastia de Avis: Crônicas de D. Duarte, D. Afonso
V e D. João II. Além de cronista-mor, Rui de Pina foi escrivão, notário público, agente
diplomático, guarda-mor do Tombo.
No que diz respeito às suas crônicas, ele foi um dos poucos cronistas portugueses a
sofrer críticas diretas e duras ao seu registro do passado, ao ponto de o seu valor histórico ser
posto em causa e estilo, considerado menor. É acusado, sobretudo, de plagiário das obras de
Fernão Lopes (cronista anterior a Pina) nas suas crônicas de D. Sancho I a D. Afonso IV.
Apesar das restrições ao seu valor histórico, não se pode negar que Pina e sua obra servem
como um bom apoio documental para analisarmos a escrita da história portuguesa de meados
do século XV e início do século XVI. No que diz respeito ao problema do estilo, alguns
historiadores, como Serrão
62
, por exemplo, colocam que quando se comparam as crônicas de
D. Sancho I a D. Afonso IV escritas por Rui de Pina e as crônicas dos mesmos reis, escritas
por Fernão Lopes, pode-se encontrar muitas afinidades e grandes semelhanças de estilo. Crê-
se que Rui de Pina copiou Fernão Lopes, alternando ou emendando alguns trechos ao dito
original e, ao findar, assumiu o texto como seu. Isso o significa que o termo plágio deva ser
62
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A historiografia portuguesa. Lisboa, 1972. v. 1. p. 105.
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usado para se referir a essa forma de aproprião, ao menos não no sentido que a palavra tem em
nossos dias. Um cronista medieval era um compilador que ordenava cronologicamente, punha
em crônicas” as narrativas, memórias ou histórias já feitas. Como compilador, Rui de Pina ordena
e põe em crônica as histórias dos reis de Portugal, desde os reis da primeira dinastia (Crônicas de
D.Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D.Afonso III, D. Denis e D.Afonso IV) até os reis da
dinastia de Avis (Crônicas de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II.).
Esta queso do suposto plágio só se faz pertinente nesta pesquisa, portanto, devido à
explícita acusação de Damião de Góis a Rui de Pina de que o segundo teria se apropriado das
crônicas de Fernão Lopes dos primeiros reis de Portugal. Segundo Serrão
63
, foi Damião de Góis, ao
publicar, em 1566, a sua Crônica do Felissimo Rei D. Manuel, quem trouxe à tona a acusão de
plágio a Rui de Pina, colocando emcena as nões de propriedade do escrito no campo da prodão
cronística; questão que anteriormente não se tinha colocado ou o tinha sido explicitada.
Damião de is, ao acusar seu antecessor, procura fundamentar o que diz e escreve.
Fundamentações que o encontrados na supracitada crônica, no capítulo XXXVIII, todo
dedicado a essa questão. O próprio título do capítulo, em primeira pessoa, deixa claro ao
leitor de Góis que ali se declarado o seu ponto de vista sobre o tema: Em que ho author
declara quaes foram hos scriptores, que cõposerã has chronicas dos reis destes regnos
64
.
Góis discorrerá, nesse capítulo, sobre a autoria das crônicas escritas por Rui de Pina.
O cronista inicia esse capítulo declarando que abordará tal assunto pela obrigação”
com seu leitor de oferecer esclarecimentos em um rápido discurso, por se tratar de um tema de
anos de estudo, sobre o qual, segundo ele, o leitor sozinho não poderia saber. Sendo assim,
como escritor e historiador, Góis vê-se obrigado a tal tarefa,
Pois ia tenho dito a quem coube ho trabalho desta Chronica delrei
Emanuel, razão he que declare ho que passa açerca das dos outros reis
destes Regnos, ho que nam alcançei tão façilmente que me nam pareça
sereme hos que levam gosto de lerem taes livros em muita obrigaçam, por
lhes dar a entender neste breve discurso, ho que lhes por ventura nam
poderam alcaçar senã com muitos annos destudo.
65
No decorrer do capítulo, podemos perceber que Damião de Góis leu e estudou
minuciosamente as crônicas de seus antecessores: Fero Lopes, Gomes Eanes de Zurara e
Rui de Pina. Por essas leituras, Góis chega à conclusão do plágio de Pina nas crônicas de D.
Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV:
63
SERRÃO, 1972, v. 1, op. cit., p. 105.
64
Ibid., p. 100.
65
Ibid.
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[...] temos à Fernam lopes, Chronista destes Regnos, e guardemor da Torre
Do tombo, scrivão da puridade que foi do Infante dom Fernando que morreo
captivo em Féz, ho qual Gomezeãnes de Zurara” [...]na Chronica que fez da
tomada de Septa no capitu IIJ, diz que compos per mandado delrei
Duarte sendo Infante , há chronica do dito Rei dom Joam seu pai [...].
66
Entre os fatores que Góis diz terem-no auxiliado a provar” a veracidade do dito
plágio, está a comparação entre os estilos e escrita em cada crônica, dadas as diferenças e
semelhanças de acordo com o autor de cada crônica:
[...] e pois isto assi he, quem bem entender ho stylo da chronica del rei
Joam primeiro façilmente conheçera que he ho mesmo ho das Chronicas dos
Reis dom Pedro, e dom Fernando, das quaes três crônicas trattarei algu
lugares de que se verá mui claramente que compos Fernam Lopes todalas
do Regno, começando do Conde dom Henrique, at elRei dom duarte, ho
qual Fernã Lopes no prologo da del Rei dom Pedro diz assi.
67
Assim, Damião de is quer “provar” a legítima autoria de cada crônica,
transcrevendo trechos das crônicas que comprovam seu argumento de plágio. Utiliza palavras
como claro se mostra deste lugar
68
, manifestamente se deste passo
69
; Deste lugar se
vê claro como o sol
70
para dar um tom de certeza absoluta ao que ele está afirmando. A única
crônica a que is estabelece algumas ressalvas, por não ter conhecimento, notícia” sobre o
tema, é a parte relativa ao conde D. Henrique. A respeito dessa parte, mesmo estando entre os
textos que Góis julga serem plagiados, o autor não diz muito, pois dentro da sua linha de
análise comparação da escrita e do estilo dos textos não é possível dizer nada sobre o
tema. Isso se deve ao fato – explicitado pelo próprio Góis – de ele não conhecer outro texto de
Duarte Galvão, para que pudesse fazer comparações de escrita, estilo, etc. , como ele afirma
no seguinte trecho da Crônica de D. Manuel:
[...] não posso dizer nada, pois della nam notiçia, que à delRei dom
Afonso anriquez, que Duarte galvã diz que fez de novo, faltão muitas cousas
que não vieram sua notiçia, de cujo stylo não posso julgar nada, porque
nunca vi outro volume per elle scripto que desta Chronica[...]
71
66
SERRÃO, 1972, v. 1, op. cit., p. 101.
67
Ibid., p. 102.
68
Ibid.
69
Ibid., p. 103.
70
Ibid., p. 104.
71
Ibid.
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Quanto às crônicas dos reis D. Sancho I, D. Afonso II, D. Afonso III, D. Dinis, D.
Afonso IV, o cronista é categórico em afirmar que não são de Rui de Pina: "ho stylo dellas he
muim differente do de Rui de Pina, e façilmente dira ser isto assi, quem per ho studo das boas
letras e artes alcaçou ho dom de poder julguar antre stylo, e stylo".
72
Já as crônicas dos reis D.
Pedro, D. Fernando e D. João I, afirma terem sido compostas por Fernão Lopes, pois, segundo
Góis, são todas iguais: [...]ho stylo dellas he todo igual, sem ter mistura[...]
73
Por outro lado, a respeito da Crônica de D. Duarte, Góis, perseguindo sua tese ou idéia
de plágio, considera que o texto substancial é de Fernão Lopes e os razoamentos” da ida a
Tanger serem de Zurara. Este, talvez por ter achado de pouco volume a crônica, fez alguns
acréscimos ao texto original. is considera, pois, esta crônica, obra de três autores: “[...] se
muim claro do stylo que he tocada de tres pinçes, ho primeiro de Fernam Lopes, ho
segundo de Gomezeanes de Zurara, ho terçeiro de Rui de Pina.”
74
Não nega, portanto, o trabalho de Rui de Pina, apenas deixa evidente, através de
inúmeros indícios, o que pode e o que não pode ser considerado obra de Pina; tese que tenta
provar e que pesa ainda hoje sobre a memória de Rui de Pina como escritor e historiador.
Além da análise de estilo, Góis deixa explícito, em sua crônica de D. Manuel, que também
busca fontes documentais para auxiliá-lo na prova de sua afirmação:
E pera que se se nam tenha nhua duvida que fez Fernam lopez todallas
chronicas do Regno, atté ho regnado delRei dom Afonso quinto porei aqui
de verbo, a verbo ho treslado de hum registro que achei em hum livro da
Portagem da çidade de Lisboa que diz assi.
75
Apreende-se da leitura do supracitado capítulo XXXVIII, da quarta parte da Crônica
de D. Manuel, que Damião de is explicita ao seu leitor seu compromisso de
“imparcialidade” como escritor e historiador o que trataremos com mais detalhes no
próximo capítulo e mostra essa imparcialidade, apresentando “provas” (documentos) ou
fatos que vão de encontro ao que ele propõe. É necessário esclarecer que essa noção de
imparcialidade não é a mesma que utilizamos nos dias atuais. Segundo Helder Macedo
76
, na
formação do discurso histórico dos descobrimentos, no Quinhentos português, historiadores
de feição humanista, como João de Barros, Duarte Galvão e Damião de is, procuram não
72
SERRÃO, 1972, v. 1, op. cit., p. 104.
73
Ibid., p. 104.
74
Ibid., p. 105.
75
Ibid., p. 107.
76
MACEDO, Helder. Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no renascimento português. Porto: CIA
das Letras, 1998.
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emitir juízos de valor, limitando-se simplesmente a descrever, sendo rigorosos no exame dos
fatos e no registro de algumas ações, mesmo que essas sejam indignas, e dando um caráter
funcional à narrativa: “distinguir a fábula da verdade”.
77
Segundo a historiografia portuguesa
a Crônica de D. Manuel foi iniciada por Rui de Pina e, com sua morte, deveria ser continuada
por seu filho, Fernão de Pina, por ter sido este nomeado cronista-mor do Tombo, porém, este
nada escreveu a respeito. Góis, contudo, encerra o referido capítulo e a discussão ressaltando
que apenas utilizou os papéis ordenados pelo seu antecessor como lembranças que poderiam
servir para a escrita da crônica, por que, segundo ele, ho que nella screveu Rui de Pina era
tam desordenado, que fui constrangido a começar tudo de novo.
78
De todas as polêmicas que envolvem a extensa obra de Rui de Pina, desde o seu
mérito como historiador até os problemas que decorrem da estrutura e fontes das suas
crônicas, depreende-se que o título de plagiário é o que mais pesa sobre a pessoa e a obra.
Entretanto, Rui de Pina, à parte a crítica goisiana, tem sido visto como um escritor de tipo
medieval que, nomeado cronista-mor do reino por D. João II, se viu obrigado a escrepver e
assentar os feitos famosos asy nossos como de nossos Regnos que em nossos dias sam
passados [...]”
79
. É sobre essa ótica, portanto, que deve ser estudado e que tentaremos
apresentá-lo, deixando de lado, por hora, as polêmicas que giram ao redor do cronista para
que possamos estabelecer uma comparação entre ele e Damião de Góis.
Rui de Pina, conquanto escreva num período de transição, em que a expansão
ultramarina começava a mudar e a modelar a forma como os portugueses se percebiam no
mundo, e como percebiam esse mesmo mundo, não se distingue de seus antecessores como
escritor e historiador. Recebendo a tença de 12.000 réis, Rui de Pina, como coloca Rita Costa
Gomes
80
, assumiu o ideário da crostica medieval, que era o de recapitular a história dos reis
portugueses. Ou seja, enquadra-se no projeto régio de preservação do passado por meio da
escrita, dedicando-se à recapitulação dos feitos dos reis portugueses, o que, segundo França
81
era o que se esperava do historiador e da história no final da Idade Média.
Homem medieval, Pina entende a disciplina histórica como uma função de exaltação
do poder real. Ao cronista se impõe a dívida obrigatória de enaltecer esse fato, com função
77
MACEDO, 1998, op. cit., p. 194.
78
PINA, Rui de. Crônica del Rei D. Duarte: introdução. In: ______. Crônicas. Ed. M. Lopes de Almeida. Porto:
Lello & Irmão, 1977b. p. 482.
79
Ibid., p. 483
80
GOMES, R. C. Rui de Pina. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da literatura medieval
galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.
81
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Concepções de História dos primeiros cronistas régios portugueses. In:
História, São Paulo, v. 20, p. 122, 2001.
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altamente moralizante, ou seja, a história como lição ética. Uma história susceptível de
auxiliar os homens a se aperfeiçoarem, segundo o exemplo dos reis e príncipes que levaram a
cabo ações valorosas. Isso fica bem evidente no prólogo da Crônica do Senhor Rey D.
Duarte de Rui de Pina:
[...] por que a doutrina hystorial, polo grande provimento dos verdadeiros
enxemplos passados que consigo teem, he assi doce e conforme a toda a
humanidade, que atem os maaos que per lição ou per ouvida com elle
partecipam torna logo bõos [...].
82
Nesse trecho, pode-se apreender que Rui de Pina fala de uma história escrita, deixando
transparecer que contou com inúmeras testemunhas históricas. Aqui também se clara a tal
função moralizante de suas crônicas, tendo o rei como exemplo a ser seguido. Por vezes,
podemos até notar que o valor dado a esses escritos crosticos são inclusive de fundo
religioso, pois possuem o poder” de mudar os “maoos” em “boõs”.
As questões que as crônicas de Pina nos trazem são recorrentes nos cronistas
quatrocentistas e cabe perguntar se ressurgem também em is, dado nosso intuito de
perceber mudanças e permanências no conceito de história entre os séculos XV e XVI. Se a
definição de história de Pina e is é explicitamente diferente, como se nota nos prólogos de
suas crônicas, cabe interrogar se, na prática, são é verdadeiramente antagônica. É o que ao
menos tentaremos perceber ao longo dessa pesquisa. À partida, no prólogo, Pina confere à
história um função ética, como vimos na citação anterior. Sobre este ponto diz de Reinhart
Koselleck
83
que, ao longo de dois mil anos, a história teve o papel de ensinar a ser prudente,
oferecendo ao historiador a opção de não cometer grandes erros, afirmando o papel da história
como a de mestra da vida. Um papel que, segundo o supracitado autor, perdurou quase ileso
até o século XVIII. Diante dessa consideração, torna-se mais difícil perceber a diferença do
conceito de história dos dois cronistas em questão, uma vez que ambos se encaixam no arco
cronológico proposto por esse historiador.
Pina é funciorio de confiança régia e a ele cabe glorificar os feitos portugueses. Para
tal tarefa, e dada sua ligação com o monarca, o cronista utiliza o rei como centro da narrativa,
enunciando que o bem do povo portugs estava no coração dos príncipes e nos seus feitos. Tal
colocação pode ser exemplificada já no prólogo da Cnica Del Rei D. Sancho I:
82
PINA, Rui de. Crônica del Rei D. Duarte: prólogo. In: ______. Crônicas .Edições de Manuel Lopes de
Almeida.Porto: Lello & Irmão, 1977c. sem paginação.
83
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de
Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. cap. 2. p. 41-60.
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[...] cuidado deste Officio d’ escrepver de huma onestidade, e razam a
quaaesquer bõos, e vertuosos por seu galardam se possa atribuyr, ainda por
huã outra spicialidade d’ obrigatórios exemplos, e singulares merecimentos,
aos Reys, e Principes mais propriamente se deve.
84
A partir deste e outros trechos da crônica, pode-se dizer que a história de Rui de Pina é
pragmática e providencial ao mesmo tempo, e mais, é uma narrativa de devoção ao rei. De
acordo com suas concepções, procurou engrandecer o rei, cumprir fielmente sua função e não
faltar com a verdade. Declara ter tido como principal ajuda e fonte inspiradora a divina
provincia para realização da sua obrigação de ofício, pois assi grande deligencia, que
para esta composiçam se requere, espero prazendo Deos, quanto hum homem nom
sufficiente for possível.”
85
Nos prólogos de suas crônicas, Rui de Pina não declara nenhuma intenção de criticar os
documentos que possuía como fizeram outros cronistas, incluindo Damião de Góis pois seus
escritos deveriam manifestar sua total fidelidade ao monarca ao qual prestava serviço. Neste ponto,
notamos uma diferença entre os dois cronistas: vemos Damião de Góis analisar os documentos a
que tem acesso, elaborando algumas críticas e introduzindo notas pessoais à sua narrativa. Se para
Pina a condição indispensável da hisria era o enaltecimento da figura do monarca, no texto
goisiano, o sujeito da narrativa também é o rei, mas nem sempre esse é o centro. Nota-se, por
exemplo, que apenas no final da quarta parte da Crônica de D. Manuel é que o rei se torna assunto
de maneira mais direta, pois nesse momento da narrativa o rei já tinha morrido. No prólogo da
supracitada crônica, Damião de Góis refere que tanto distriba louvores como censuras em seu
texto, sempre que o julgasse necessário. É essa uma das caractesticas em que, segundo Tavares,
86
Damo de Góis contrariava o que era comum aos cronistas, que viam como tarefa sempre louvar
reis, pncipes e outras figuras de importância, semlevar em conta seusdefeitos.
De volta a Rui de Pina, sua função era fazer uma história memorativa e moralizadora.
Memorativa no sentido de que seus escritos serviriam para guardar as memórias dos feitos e
reis lusitanos. Moralizadora, porque Pina narra as boas ações dos reis portugueses para que
essas servissem de exemplos a serem seguidos, fator que está diretamente ligado ao que
podemos denominar ser a sua concepção da função da escrita, bem como a de seus
antecessores: a noção da escrita do passado como escola da vida, como lição para os tempos
84
PINA, Rui de. Crônica del Rei D.Sancho I: prólogo. In: ______. Crônicas. Edição de Manuel Lopes de
Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1977d. p. 11.
85
Ibid., sem paginação.
86
TAVARES, José Fernando. Damo de is: um paradigmanohumanismoportuguês. Lisboa: Universiria, 1999.
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que se sucederiam. Isso fica notório nos prólogos da Crônica de ElRei D. Sancho I e da
Crônica de D. Affonso V. Na primeira delas, encontra-se um exemplo característico, que será
recorrente nas outras citadas:
[...].tomey emprestado para esta obra, que toda hee vossa, alguma ouzadia,
ainda que receosa, com que no cansaço deste grande serviço, por ventura
nom conhecido, esforçasse fraqueza de minhas forças, e favorecesse
rudeza de meu engenho, para que aho menos por minha piquena
possibilidade mostre primeyramente, que de vossa muita bondade, e esforço,
e grandeza de animo nom foy sóomente descobrir novos Regnos, novos
maares, novas regiões, com que aho mundo mayor, e mais riquo que nas
terras nom conhecidas, de Deos nunqua conhecedoras, seu muy santo nome,
como outro Apostolo fizesseis conhecer, e pubriquar sua verdadeyra e,
mas que ainda para mayor acrecentamento do preciozo thesouro de vossas
virtudes descobristes esta vosa propria, e muy louvada virtude de tam
perfeyta piedade, de que àcerqua dos gloriosos Reys, e Rainhas de Portugal
de que descendeis, tam prefeytamente uzais, com qual resucitando vossa
muy Real Senhoria seus nomes muy dinas memorias, e memorandas
façanhas[...].dandolhe estas suas verdadeyras lembranças huma tam segura
maneyra para vida eterna[...].e nellas V.A. mostre aho mundo hos Reaes, e
limpos originaes de que foy, e my por sua grandesa, e humanidade,
perdoe estes cometimentos, que fiz de vos querer louvar, pois verdadeyra
necessidade aqui hos inxerio, porque em cazo que seja regra, e principio
myu dino,que bem faz quem sempre vée bem outras
87
Rui de Pina viveu numa época em que o labor histórico começava a ser um cargo de
exaltação do poder real. Serrão
88
nota uma mudança da função da história desde Fernão Lopes
até Rui de Pina. Segundo o autor: em Fernão Lopes, a clara certidão da verdade; em Zurara,
uma exaltação do infante D. Henrique e da nobreza senhorial; e em Pina, um ocio ao serviço
da vontade do monarca.”
89
Para finalizar essa discussão a respeito da concepção de história de Rui de Pina,
podemos destacar um outro conceito que o próprio cronista utiliza para definir o que para ele
é a história: [...] no conhecimento dos bõos enxemplos, e das cousas passadas, de que a
Estoria he hum vivo espelho [...]
90
. Ou seja, Pina vê os escritos históricos como uma fiel cópia
da realidade que, com função moralizante, guarda para a eternidade a memória dos bons
exemplos a serem seguidos. Atrelada a essa concepção, encontra-se a sua noção de verdade.
Segundo França,
91
“Rui de Pina é, dos três cronistas, o que menos estabelece ligações entre o
seu desejo de escrever a verdade e os caminhos que escolhe para fazê-lo”.
87
PINA, 1977d, op. cit., p. 11.
88
SERRÃO, 1972, v. 1, op. cit., p 117
89
Ibid., p.117
90
PINA, 1977d, op. cit., p. 12.
91
LEMOS, 2001, op. cit., p. 129.
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O fato curioso, que vai de encontro com essa afirmação de França é que, mesmo por
vezes duvidando ou julgando os documentos como incompletos, Rui de Pina utiliza-os como
fonte da verdade, não questionando qualquer afirmação, ou seja, para escrever a verdade dos
fatos, Pina não possui um critério delineado, como por algumas vezes se nota em Damião de
Góis, que estabelece uma certa crítica diante de alguns fatos e documentos que usa para
compor sua narrativa.
No prólogo da Crônica delRei Sancho II, Rui de Pina escreve:
[...] acho Rey poderoso, e muy excellente, que delRey D. Afonso Anriques
deste nome, e dos Reys de Portugal ho primeyro, atée El Rey D. Afonso
deste nome ho quarto inclusive, que são sete Reys, nom parece de suas
vidas, nem de seus feytos se acha nos vossos Reynos Estoria ordenada, e
composta, como fora rezam, e se merecia, mas háa sóomente por Luguares
muy ocultos algumas lembranças, cartas confuzas, e muy duvidozas, cuja
verdade quanto for possível, ainda que seja com muito estudo de grande
trabalho, hee necessário que se busque, e se apure.
92
Nesse trecho, não explica como i possivelmente fazer para resolver o problema das
coisas muy duvidozas”, apenas mostra que, para algumas lembranças, recorre às crônicas
de seus antecessores, para auxiliá-lo na elaboração de sua narrativa. Tal afirmação pode ser
observada no trecho que se segue: “[...] has coronicas dos muy excellentes Reys vossos
mayores, que atraz apontey, nom serem como sam de todo apaguadas, e que podem em
alguma boa maneyra alumiarem este por mim.”
93
Também não nega o auxílio e a utilização de textos que não sejam de escritores
portugueses. O cronista explicita uma possível utilização de registros pontifícios, crônicas
espanholas e até textos dos povos considerados bárbaros ou infiéis como se observa no
prólogo de sua Crônica de D. Sancho I:
De que se segue que quanto hos Reys de Portugal foram catholicos, devotos,
e obedientes Deos, e à Santa Sée Apostoliqua nas vidas, e registos dos
Summos Pontífices poe seus grandes merecimentos, e louvores, claramente
se nota[...] e de seus próprios Reynos e senhorios verdadeyros Augusto nom
sóomente Coronicas da Espanha, e dos Reys nossos vezinhos, sem dúvida ho
testemunham mas has dos barbaros infieis, ainda que seja com grandes seus
estraguos, e cativeyros, muito milhor pubricam[...] e quantos Infantes
Princepes, e senhores sayrão desta Real Caza de Portugal[...] nas
Coronicas de suas vidas e feytos,[...] cuja vista, e leytura, e bom exame amy,
para esta obra, nom se escuzam.
94
92
PINA, 1977d, op. cit., p. 124.
93
Ibid., p 129.
94
Ibid., p 125-126.
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Uma ressalva, entretanto, deve ser feita aqui, Pina explica que o motivo de utilizar
textos eclesiásticos em sua narrativa é atestar o quão católicos e obedientes a Deus e à Igreja
eram os reis portugueses. Estes, a propósito, são os únicos tipos de texto cuja utilização é
explicada pelo autor; provavelmente em razão de esse uso estar diretamente ligado à função
moralizante que seus escritos explicitam.
Outro exemplo prático da utilização que Pina faz de outros textos e autores que não
são cronistas encontra-se no início do prólogo da Crônica de D. Sancho II (quarto de
Portugal): O Doutor Fr. Antonio Brandão na Quarta parte da Monarchia Lusitana
desggrava em muitas acções a este Principe das injurias dos seus Chronistas [...]”
95
E dessa maneira vemos Rui de Pina, nos prólogos das crônicas dos reis mais remotos
(D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV e D. Duarte.),
explicitar pouco os seus mecanismos de averiguação da veracidade dos fatos. O que de fato
percebe-se da leitura de seus prólogos é que ele utiliza sobretudo escritos alheios para buscar
a maior parte dos dados por ele apontados na sua narrativa histórica. Segundo França
96
,
apenas em alguns casos, como nas crônicas de D. Afonso V e de D. João II, Pina utiliza sua
própria memória para atestar a veracidade dos acontecimentos. Segundo a autora, em ambas
as crônicas, pode-se notar, em alguns pontos da narrativa, que o cronista participou do fato
narrado ou como testemunha ou como atuante nos eventos narrados. Examinando essa busca
da verdade em Pina, Fraa
97
aponta que o cronista em questão procura persegui-la, evitando
os excessos na escrita, pois, segundo a autora, Pina declara seu objetivo de “brevidade”,
isentando-se de escrever muitas particularidades para não se tornar prolixo. Podemos
exemplificar tal afirmação, citando os prólogos das crônicas dos reis D. Afonso III, D. Sancho
II e D. Afonso II, nos quais o autor discorre sobre a necessidade de ser breve em suas
narrativas históricas. Vejamos as palavras do próprio Pina na primeira das crônicas citadas:
Não me podes accuzar de falto de palavra, pois ves que te dou agora a
Chronica delRei D. Afonso III[...] De serem breves as narrações das suas
vidas, e summamente compentiadas as notícias dos seus governos, não tenho
eu culpa[...]Tudo podia ser, porque a falta em semelhante materia procede
humas vezes de não haver quem informe, e outras de não escreverem, o que
todos sabem.
98
95
PINA, 1977d, op. cit., p. 124.
96
LEMOS, 2001, op. cit., p. 129.
97
Ibid., p. 130.
98
PINA, Rui de. Crônica del Rei D. Afonso III: prólogo. In: ______. Crônicas. Edição de Manuel Lopes de
Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1977e. p. 165.
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na segunda crônica citada, vemos Pina escrever: “Aqui temos Amigo Leitor a brevissima
Chronica do desgraçado Rey de Portugal D. Sancho II, deste nome.
99
E, finalmente, na
terceira crônica citada, lê-se: Nam te admires vendo uma Chronica tão pequena de hum Rey
tão grande. Em oyto capítulos a deo acabada o seu chronista[...] de estimar o livro pelo
pezo, e não pelo volume.
100
Nesses trechos, podemos observar que, para Rui de Pina, ser breve era uma maneira de
o próprio autor se isentar de possíveis culpas ou acusações que poderiam vir de seus leitores.
E mesmo no último dos trechos, o autor estabelece que o valor da obra está diretamente ligado
ao seu conteúdo e não ao seu número de páginas.
Portanto, podemos concluir esta primeira reflexão deste capítulo, destacando que Rui
de Pina, à recolha de dados em fontes escritas, acrescenta a observação direta dos
acontecimentos para tornar mais verdadeiras as suas crônicas. Rui de Pina, é possível dizer, é
um técnico, um homem de “officio”, que trabalhou cumprindo suas funções com lealdade,
ocupando cargos de confiança régia, baseando-se em informações e documentos que de
alcançar para relatar uma história, ou seja, para exercer sua função de historiador dos feitos
portugueses.
2.2 Oposições e aproximações entre dois cronistas
A historiografia que aborda a crostica portuguesa aceita ou ao menos admite que
essa recebeu um grande impulso no início do século XV, após a “refundição” da “Crônica
Geral de 1344”, o que provocou uma nova forma ou um novo ciclo na leitura da memória do
reino. Fernando Gil e Helder Macedo
101
, analisando os inúmeros olhares sobre os discursos
históricos da expansão portuguesa e tendo como fio condutor o gênero literário da crônica,
percebem mudanças na maneira como é tratada a realidade dos Descobrimentos. Afirmam
eles que, na concepção dos cronistas do Quinhentos, o gênero literário da crônica levanta
alguns problemas devido ao escol de inspiração humanista, que procurará dispersar
convenções narrativas herdadas do discurso medieval. Tal escol humanístico português,
segundo os autores, trabalhava por vincular a história dos feitos marítimos às tradições da
Roma antiga, abrindo uma nova perspectiva sobre a construção da memória e do tempo
99
PINA, Rui de. Crônica del Rei D. Sancho II: prólogo. In: ______. Crônicas. Edição de Manuel Lopes de
Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1977f. p. 124.
100
Id. Crônica del Rei D. Afonso II: prólogo. In: ______. Crônicas. Edição de Manuel Lopes de Almeida. Porto:
Lello & Irmão, 1977g. p. 173
101
MACEDO; GIL, 1998, op. cit.
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histórico português. Tentaremos aqui perceber ao menos um desses olhares da memória do
reino Lusitano a partir do confronto com alguns pontos e características da cronística de Rui
de Pina, cronista português do século XV. Se levarmos em conta a consideração de Krus,
102
ao pensar o século XV e sua cronística como outra etapa na leitura da memória do reino” ou
a de Helder Macedo,
103
ao perceber mudanças no discurso histórico ao longo do culo XV e
início do século XVI, podemos pensar os escritos de Rui de Pina como apenas uma das
manifestações da memória portuguesa. E, seguindo essa mesma linha de raciocínio, pode-se
dizer que os escritos do cronista central dessa pesquisa, Damião de Góis, são apenas um dos
olhares da memória lusitana.
Tal colocação é intrigante, pois nos leva a pensar na cronística portuguesa como
composta de módulos bem definidos e delimitados de escrita, leitura, etc., minimizando-se,
desse modo, as permanências e enfatizando-se apenas rupturas. Nesta segunda parte do
capítulo, propomo-nos ver Damião de is e sua cronística não tanto pelas rupturas em
relação aos seus antecessores, mas a partir de duas características e concepções que o ligam a
esses: preservação do passado e a busca da verdade, que serão desdobradas no próximo
capítulo.
Para já, o que nos interessa de fato é cotejar a obra de Góis em confronto com a de
Rui de Pina, através de comparações, seja de estilos, seja de temas abordados em suas
narrativas, para tentarmos apontar como Damião de is tenta se distinguir dos cronistas que
o antecederam, mas nem sempre se distingue. Tal atenção faz-se pertinente, pois is é
considerado, pela historiografia, uma figura ímpar do cenário europeu da Expansão
Ultramarina, e cabe examinar as possíveis características que fizeram com que merecesse tal
destaque se é que este destaque se justifica. Confrontá-lo com Rui de Pina, a quem atacou,
permite reconhecer alguns alvos de sua escrita cronística e pontuar até que ponto efetivamente
se diferencia dos seus antecessores.
Para iniciar nosso contraponto, cabe destacar uma das diferenças mais evidentes, entre
os dois: a abertura. Rui de Pina começa seu prólogo pedindo desculpas ao monarca, a quem é
dedicada a narrativa, pelos seus limites como escritor diante da grandeza dos feitos a serem
narrados. Atualizando o tópico da humildade que caracteriza crônicas quatrocentistas e
anteriores, coloca-se em posição de “inferioridade” e anuncia sua “incapacidade” para
cumprir a tarefa de narrar os feitos régios, especialmente de reis tão merecedores de louvor
102
KRUS, L. Cronistas. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da Literatura medieval
galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.
103
MACEDO; GIL, 1998, op. cit..
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como eram os portugueses. Chega mesmo a demorar-se enumerando vários adjetivos da
figura real, como no prólogo da Crônica de D. Sancho I: Justa disculpa poderá ser para
mim Rey poderoso, e Príncipe muy excellente nom emprender obra tam árdua, e tam difícil
como esta, há que ho esteyto mandado de V.A[...].
104
Outro exemplo que as opções de Pina ou imposições do seu tempo e do próprio gênero
em que se inscreve é que consta do prólogo da Crônica de D. Diniz:
Aqui te dou na Chronica do sereníssimo Rey D, Diniz de Portugal outro
argumento da palavra, que te empenhey quando te prometi dar impressas
todas as Chronicas manuscritas dos Reys deste Reyno. Entre ellas era muito
digna deste benefício a del Rey D. Diniz, porque sem duvida entre os
Soberanos desta Monarchia mereceo elle hum lugar de mayor distinção.
105
Esses exemplos demonstram ao mesmo tempo dois objetivos de Pina: o de manter por escrito
os feitos régios e afirmar uma certa concepção de história, a de preservar e glorificar a
memória dos antepassados, procurando minimizar sua intervenção e seus limites de
historiador.
Já em Damião de is, nos prólogos das suas duas únicas crônicas, a de D. Manuel e a
de D. João, vemos algo totalmente diferente. Góis inicia seus dois prólogos descrevendo o
fazer histórico e o louvando:
Muitos, & graves authores nos princípios de suas Chronicas trabalaram em
louvar há história, da qual tudo que dixeram foi sempre muito menos do que
devia dizer, porque assi quomo ella he infinita, assi seus louvores nam tem
fim, nem termo a que se possam reduzir [...]
106
Ou ainda, no prólogo da Crônica de D. João:
Grave negocio comette, sereníssimo Rei, quem ou por obrigaçam, ou por lhe
ser mandado, se dispõe a dar novo testemunho dos feitos. E proezas de Reis
e Príncipes cujos merecimentos sam taes que razom obriga a louvalos, e
industria a trabalhar pêra, com arte e prudência, se encomendarem à
scriptura, mãe da eterna memória.
107
104
PINA, 1977d, op. cit., p 126
105
PINA, Rui de. Crônica del Rei D. Diniz: prólogo. In: ______. Crônicas. Edição de Manuel Lopes de
Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1977h. sem paginação.
106
GÓIS, Damião de. Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel: prólogo. Coimbra: Acta Conimbrigensis,
Coimbra, 1949a. sem paginação.
107
Id. Crônica do príncipe D. João: prólogo. Coimbra: Acta Conimbrigensis, 1949b, sem paginação
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A proposta laada pelo autor aqui é a de revisitar o passado, tendo como principal
preocupação o como fazer, com arte e prudência”. Anuncia, assim, sua preocupação com a
elaboração, uma vez que essa serviria para narrar a memória de uma nação. Da mesma
maneira, se voltarmos ao conceito ciceroniano de história como mestra da vida, analisado por
Koselleck
108
, vemos que is dá aos escritos o título de mãe da memória”, mostrando sua
herança ciceroniana.
De qualquer forma, percebe-se que os dois cronistas, a despeito dessas diferenças,
concebem a história a partir do modelo ciceroniano, ainda que um pareça preocupar-se mais
diretamente com a figura régia e o outro com a maneira de se escrever a respeito desse
monarca e de seus feitos. E mais, como apontamos no início deste capítulo, Rui de Pina
prefere destacar a história como um “vivo espelho” dos bons exemplos a serem seguidos,
Góis enfatiza a história como disciplina memorativa, dependente da maneira como se escreve
e do que se escreve, que a qualidade dos escritos para ele está ligada diretamente à
veracidade dos fatos narrados. Além disso, na narrativa goisiana, nota-se que o povo
português é participante e atuante na história da nação, tanto quanto os reis, ao contrário do
que acontece com Pina, que vê o rei como centro da narrativa. Assim, o que podemos notar é
que, mesmo conduzidos pela noção de história como fonte de exemplos, Rui de Pina e
Damião de Góis encontram caminhos diferentes para conduzir seu registro do passado.
Uma outra diferença que podemos perceber, ao confrontarmos os dois autores refere-
se à própria atualização da referida função moralizadora do texto. Rui de Pina, ao exaltar os
feitos régios, o faz visando os exemplos a serem seguidos e apresentando uma aura religiosa.
Dirigindo-se a D. Manuel no prólogo geral das suas crônicas, Pina diz que
[...] ainda para mayor acrecentamento do preciozo thezouro de vossas
virtudes descobristes essa vossa propria, e muy louvada virtude de tam
prefeyta piedade, de que àcerqua dos gloriosos Reys, e Rainhas de
Portugual de que descendeis, tam prefeytamente uzais, com ha qual
resucitando vossa muy Real Senhoria ha seus nomes muy dinas memorias, e
memorandas façanhas, cujo juizo ho esquecimento tinha jáa assi
mortifiquadas de todo, e dandolhe estas suas verdadeyras lembranças huma
tam segura maneyra para vida eterna, ellas juntas por immortal interesse de
mais vosso louvor, se tornem todas ha ver em vós, com mayor resplandor,
renovadas, e nellas V. A. mostre aho mundo hos Reaes, e limpos originaes
de que foy [...].
109
.
108
KOSELLECK, 2006, cap. 2, op. cit., p. 41-60.
109
apud FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os reinos dos cronistas medievais: século XV. São Paulo:
Annablume, 2007. p. 135-136.
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Esse toque religioso da moralidade de Pina é minimizado em is. Segundo Tavares
110
, uma
nova concepção de moralidade se anuncia nas crônicas goisianas, dado que sua abordagem
histórica mostra-se independente da religião, o que o autor denomina de um “realismo
humanista”, ligando a história a uma função científica. De acordo com essa linha de
raciocínio, is diferencia-se de Pina, devido à influência trica que possui, se assim
podemos dizer, do humanismo.
O autor citado, no entanto, não desdobra ou problematiza o conceito de realismo
humanista que propõe e, pelo que conseguimos apreender, uma das características desse
realismo humanista estaria relacionada às descrições geográficas ou de aspectos psicológicos
feitas por Damião de is em suas crônicas e tamm na descrição feita do retrato de Dom
Manuel, no qual descreve tanto seu aspecto sico quanto seu aspecto moral. Podemos
exemplificar esse realismo com o trecho que segue onde o autor realiza uma descrição de um
espaço físico, procedimento que se repeti inúmeras vezes durante suas crônicas;
[...] & eu seguindo ho que toca aho meu direi alguas particularidades desta
prouínçia de S. Cruz, & dos costumes da gete de que he habitada. Ha terra
he muito viçosa, muito temperada, & de muito bõs aros, muito sadia, tato
que mor parte da gete q morre he de velhice, mais que de doenças: te
muitas, & grandes ribeiras, & muito bõs portos, & muitas fontes de muito
boas aguoas: mais da terra he de montes, & valles, chea de bosques, em
que aruores de desuairadas sortes, entre hás quaes he aruore do
balsamo, & ho pão brasil: hai muitas heruas odoríferas, & medeçinaes,
dellas diferentes das nossas, entre hás quaes he q chamamos do fumo, &
eu chamaria herua Sãcta, ha quem dizem que elles chama Betum, de cuja
virtude poderia aqui poer cousas milagrosas, [...].
111
Não apenas diferenças são notáveis quando comparamos Rui de Pina e Damião de
Góis. Esses aproximam-se quando se trata de narrar os feitos portugueses no além-mar. Uma
primeira semelhança que podemos destacar é a de ambos julgarem os portugueses credores da
proteção divina, por serem cristãos. Maria Leonor Carvalhão Buescu
112
nota que será muito
mais como cristãos do que como portugueses que os lusos se identificaram com os povos com
as quais entram em contato no além-mar. Ou seja, segundo a autora, vê-se uma tendência
para ver Deus, como uma divindade guerreira, que garante aos seus a vitória”. Tal aspecto
110
TAVARES, 1999, op. cit.
111
GÓIS, Damião de. Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel: prólogo. Coimbra: Acta Conimbrigensis,
Coimbra, 1949. p.
112
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Língua portuguesa: o bem de nossa sucessão. In: BITHENCOURT,
Francisco; CURTO, Diogo Ramada (Org.). A memória da não. Lisboa: Sá Da Costa, 1991.
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pode ser notado em imeras passagens das crônicas em questão, assim como a presença da
providência divina” ao lado dos cristãos ou portugueses. Vejamos um exemplo:
Naquela noite lhe lançaram outras balsas de fogo [...] pelo que vendo dom
joam quam pouco fructo aali podia fazer, mandou aho outro dia dar a
vela caminho do estreito de Gibraltar, & parece que foi tudo isto guiado per
Deos, por q se elle nam fezera este caminho, aho tempo que ho fez, Arzila
fora tomada de Mouros, quomo se logo dira.
113
Outro traço comum aos dois cronistas é a narrativa dos fatos vivenciados por eles
próprios, por exemplo, a descrição da morte de D. João II por Pina no capítulo LXXX da
crônica dedicado ao reinado deste rei e que, segundo Serrão
114
, teria sido presenciada por ele.
Alguns trechos como o que segue o autor cita maiores detalhes de modo a permitir a
percepção de que realmente o autor vivenciou o evento narrado:
[...] Esteve asy El Rey esta sesta feira com algum melhoramento; e logo ao
sábado tornou a recair e dobrouse o fruxo, com que lhe sobrevieram
descmaios, e acidentes mortaes, porque ElRey craramente conheceo sua
morte. Da qual pelos Fizicos, e Senhores que heram presentes, quis como
prudente, e boõ Christão, ser bem desenganado, apontadolhes com muito
tento, e esforço, as causas, e sinaes per que lhe parecia, e se julgava ser
mortal.Mas porque poderia ser maginaçam sua, queria deles saber a
verdade, que por algua maneira, ou causa lha nom encobrissem; porque
pera o corpo, e principalmente pera a alma era muy necessária [...]. E
ElRey com a cara segura lhes respondeo: Essa embaixada que me daaes he
azzas triste, e amargoza, mas co ella dou muitas graças a Deos, porque pêra
mym he muy necessarea [...].
115
Coincidentemente, no capítulo XIX da quarta parte da Crônica de D. Manuel, de
Damião de is, o autor relata o falecimento da rainha dona Leonor. Aqui, como em Pina,
Góis demonstra ter participado do fato narrado:
Quomo atrás tenho dito, Rainha donna Maria ficou tom mal trattada do
parto do Infante dom Antonio que atté hora da morte nunca mais se
achou bem [...] pelo que proçedeo esta disposiçam, com que se lhe
acrescentavam de dia em dia gravíssimas dores, faleçeo em Lisboa [...].
116
113
GÓIS, Damião de.Crônica do Felicíssimo rei D. Manuel. Coimbra: Acta Conimbrigensis, Coimbra, 1949.
pte. 2. p. 126-128.
114
SERRÃO, 1972, v.1, op. cit.
115
PINA, Rui de. Crônica del Rei D. João II: prólogo. In: ______. Crônicas. Edição de Manuel Lopes de
Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1977i.
116
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 55.
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O “ter participado”, ou seja, a experiência direta, ganha importância no século XVI
como uma das formas de atestação da verdade, especialmente em razão dos deslocamentos
expansionistas, dado que os letrados de então entenderam que os portugueses ocuparam-se em
verificar com os próprios olhos o que os geógrafos antigos e medievais afirmavam a respeito
do “mundo”. Foram, pois, comuns no período demonstrações por escrito de uma certa
satisfação por parte dos descobridores, que acreditavam que por uma simples observação
puderam desmentir grandes pensadores da Antiidade, graças à oportunidade de ver com os
próprios olhos.
Segundo Hooykaas
117
, nota-se que ao mesmo tempo que os portugueses podiam
considerar-se “superiores” aos antigos, a grande busca para a introdução da língua vernácula
na ciência e nas letras relacionava-se diretamente com os Descobrimentos, uma vez que os
portugueses introduziam a sua língua em todas as terras por eles conquistadas, ou seja, uma
clara imitação dos antigos. Desafiando essa idéia da “superioridade” lusa, os humanistas mais
radicais apontavam que as viagens dos descobrimentos teriam sido impossíveis sem a
geometria, a astronomia, a cosmografia e outras atribuições dos antigos. Mas ao mesmo
tempo, segundo o autor, ignoravam a participação dos seus antecessores medievais.
Dentro desse princípio, as investigações do desconhecido, do novo, vindo com as
viagens marítimas, segundo Hooykaas, trouxeram “uma nova era da história intelectual da
humanidade”.
118
Nesse contexto, o humanismo se destaca. O humanismo encerrou um
conflito entre a razão e a experiência, na medida em que se confrontaram a teoria da
intelectualidade e a vivência dos navegantes iletrados. Ainda de acordo com Hooykaas, tal
fato significava a introdução de uma nova abordagem a respeito da verdade: “não seria nem a
razão nem a autoridade, mas sim a experiência.”
119
Tais considerações são pertinentes aqui, porque Damião de is acreditava que os
antigos conheciam por tradição ou por experiência própria, mas sustentava que os portugueses
foram os primeiros a empreender viagens perigosas. Ou seja, os feitos marítimos portugueses
ultrapassavam os dos antigos, mas, para is, “nenhum escritor moderno era capaz de
descrevê-los tão bem como os autores antigos.”
120
Tal consideração não é de se estranhar,
pois, como adiantamos no primeiro capítulo desta dissertação, essa valorização da
Antiidade é uma característica dos autores que beberam na fonte do humanismo.
117
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 32.
118
Ibid., p. 35
119
Ibid.
120
Ibid. p. 44
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Voltando ao nosso confronto entre os dois cronistas aqui em questão, outra aproximação
que podemos fazer entre Góis e Pina é a constante citação de textos da denominada Antigüidade,
seja apenas através da citação de nomes de grandes personagens, como cero, Heródoto,
Aristóteles, etc., seja utilizando alguns textos antigos como fonte literia para a narrativa das
crônicas. Segundo Serrão
121
, já se pode notar uma forte influência dos escritores da Antigüidade
na própria conceão de história de Rui de Pina, inspirado em cero; influência que Serrão
percebe a partir do que ele denomina uma “tendência glorificativa e ética da história”. Além disso,
é evidente a referência aos antigos como modelo de fazer história, se atentarmos ao prólogo da
Crônica de D. Jo II, no qual o cronista escreve que:
[...] pelo qual os Estoricos antiguos sentindo em algum Prícipe passado hua só
vertude singular, elles per sua memória, e bom eixemplo dos futuros sumamente
lha louvavam, e por ella avendo ho de mortal por immortal; e de umano por
divinohoalevantavam atéhoo: [...].
122
Por vezes também, vemos Rui de Pina colocar-se em grau de inferioridade
relativamente aos escritores antigos: “[...] e porque ainda que esforre meu entendimento, e
me ponha em necessidade de saber mais do que posso, sempre vejo que per isso fiquo muito á
quem do que devo aos cronistas Romanos [...].”
123
na narrativa de Damião de is, essa refencia à Antiidade também se faz
presente, mas o faz de modo diferente de Rui de Pina. Tal diferea pode ser por vezes
explicada por Góis ter estudado as nguas e literaturas clássicas. Ou seja, o cronista faz
referência aos textos que leu, mas ao contrário de Pina não se julga nem inferior aos antigos
nem superior. Damião de is, grande parte das vezes, utiliza-se dos clássicos como fontes
complementares para justificar algum fato que esteja narrando. Por exemplo, no capítulo
XXXVIII, da parte 2 da Crônica de D. Manuel, Góis lembra um trecho de Heródoto para falar
de como o vice-rei partiu de Cananor:
[...] ho que querendo sabe lhe foi dito pelos da terra, q alli houvera ho que
grande Hercules duas batalhas co ho Rei que entam regnava [...] & q por
memória se poseram aqullas cabeceiras: ho que parece concordar com
Heródoto, que diz, que Hércules escapou da Índia de todo desbaratado.
124
121
SERRÃO, 1972, v. 1, op. cit.
122
PINA, 1977i, op. cit..
123
Ibid., sem paginação.
124
GÓIS, 1949a, op. cit., p. 132.
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Da leitura de todo o capítulo, percebe-se que is quer ao menos demonstrar que os
lusitanos estão descobrindo”, “vendo” o que os escritores clássicos mencionavam em seus
escritos, como adiantamos anteriormente.
Um outro capítulo elucidativo dessa “aproximação ou referência aos antigos”, é o
capítulo XVIII da parte 4 da Crônica de D. Manuel, onde is narra a entrada de elefantes e
rinocerontes em Lisboa, a mando do rei. Aqui, o autor lembra os romanos e o que estes falam
sobre esse comportamento, entre outras características desses dois animais: Plínio, & outros
scriptores dizem que na lua nova se vem das montanhas em trpes ahos campos, & terras
chãs, & que alli se lava nas ribeiras.[...]
125
. Ou seja, is utilizou um texto clássico como
fonte de dados para sua narrativa.
Ainda no que diz respeito às semelhanças, podemos destacar que ambos narram os feitos
portugueses na forma cronística, ambos são funcionários gios, ambos ocupamcargos de confiança
gia, ambos participam da empresa ultramarina, ambos escrevem em um ambiente de corte e
fazem parte da nobreza lusitana. Além disso, uma caractestica semelhante nos dois cronistas
merece uma atenção especial: a crítica a uma família da nobreza portuguesa, os Bragança – aquela
mesma família do conde de Tengal que citamos no primeiro catulo desta dissertação e que foi
criticada por Damião de Góis. Joaquim Veríssimo Sero
126
é o único a chamar atenção para a
coincidência. Portanto, da mesma forma que Damião de Góis realizou críticas a algumas famílias
nobres, em sua Crônica de D. Manuel, cticas que lhe renderam alguns dissabores, como já adianta
o primeiro capítulo, Ruide Pina tamm realizou cticas à nobreza lusitana, mas parece não ter tido
a mesma repercuso negativa que seu sucessor.
Rui de Pina, segundo o autor, critica o segundo duque de Bragança, D. Fernando, ao
acusá-lo de desrespeitar a ordem de menagem do monarca D. João II. Tal crítica encontra-se
explicitada na Crônica de D.João II de Pina, no capítulo XIV:
[...] E o que se comprio com tam grande trigança, e espanto como a novidade do
caso requeria.E como a nova foy pela Cidade derramada, porque tocava em
deslealdade contra ElRey, foy tam contraria nos ouvidos, e coraçoens leaes dos
portugueses, que gente toda da cidade, nom soomente aquella que ra as armas
era desposta, mas ainda, a outra que per grande velhice, ou poucos annos pêra
tal exercício era escusada, se veeo trigosamente ao po atee nom caber, acesos
todos em muitta era braadando por crua clencia, esquecidos por o crime ser
tal, de toda clemência, e piedade, e desejosos e despostos ra socorro, e
defensamdavida. E rela pessoa d`ElRey como sefora a própria decada hum.
127
125
GÓIS, 1949a, pte. 4, op. cit., p.49
126
SERRÃO, 1972, v.1. op. cit.
127
PINA, 1977i, op. cit., p. 117-118.
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Rui de Pina, de acordo com Serrão, não recua na defesa da verdade dos fatos, ainda que tal lhe
pudesse trazer dissabores no ambiente da corte. Pina chega mesmo a definir a casa de
Bragança como sendo a grande culpada de todos os males do reino lusitano.
Vemos em ambos, pois, a mesma família ser acusada de faltas contra o reino lusitano.
Uma aproximação no mínimo curiosa, que nos leva a pensar se realmente is pode ser
destacado entre seus antecessores, pois as diferenças existem como apontamos há pouco, mas
as semelhanças também são muitas. Ambos os cronista, em busca da verdade dos fatos, como
afirmam, não parecem temer atingir alguém, mesmo que seja uma família poderosa. Todavia,
as conseqüências para cada um, nas suas buscas da verdade, foram diferentes. Para as crônicas
de Pina, pelo que se sabe, não foram impostas mudanças ou cortes no texto original, nem
mesmo algum tipo de retratação, como aconteceu com Damião de is. E aqui, apesar de não
podermos generalizar, podemos propor que os momentos históricos diferentes trazem
mudanças de mentalidade ou mudanças de expectativas em relação às crônicas.
A primeira hipótese sobre esses deslocamentos é de que Rui de Pina estava mais
seguro para realizar críticas, pois, como cronista-mor, era nomeado pelo rei, encontrava-se a
seu serviço e tinha como uma de suas funções e concepções exaltar a figura régia e seus
feitos. Ou seja, a figura régia não devia ser abalada e se necessário fosse criticar algumas
ações de nobres ou não, Pina as faria, pois como foi dito, na sua narrativa, o monarca é o
centro do texto. Seguindo essa linha, colocamos Góis em uma posição um tanto diferente: é
nomeado, a título interino, guarda-mor da Torre do Tombo, mas não cronista régio, pois para
tal cargo foi provido Antônio Pinheiro. Apenas mais tarde, a pedido do cardeal D. Henrique, é
que começou a redigir a crônica dos feitos do reinado de D. Manuel. Portanto, Góis é
funcionário régio, mas nomeado em outra função e, dessa maneira, não tinha o rei como
centro de sua narrativa e, sim, os portugueses.
A segunda hipótese diz respeito à censura aos seus escritos. No momento histórico em
que Rui de Pina escreve, não vemos tal censura, o que já se nota no tempo de Góis, devido à
forte presença inquisitorial; daí que Damião de is tenha sido levado a mudar
significativamente trechos inteiros de seus textos, na crônica de D. Manuel, como trabalhamos
no primeiro capítulo.
A terceira e última hipótese está ligada ao advento do impresso. Se os escritos
crosticos estão ligados à preservação da memória, seja de um povo ou de uma nação, o
impresso vem de encontro com essa função do escrito. A passagem do livro manuscrito ao
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livro impresso, em meados do século XV, provocou, nas palavras de Anselmo
128
, uma
revolução de proporções gigantescas”. Ora, no momento em que Rui de Pina escreve, temos
um Portugal pré-tipográfico, mesmo em obras para divulgação, como é o caso das crônicas,
segundo o supracitado autor. Nos scriptoria”, que eram oficinas particulares, os manuscritos
tinham um papel na transmissão do saber, mas aí o livro, além da função de transmissão do
saber, era objeto de alto valor, e sua reprodução era restrita, devido à demora de sua
preparação; o que deixava limitada a circulação desses textos.
129
com a invenção do
impresso, essa realidade começa a mudar. Importa lembrar que, segundo o referido autor, o
impresso se espalha em uma época em que os Descobrimentos Ultramarinos ocasionam uma
forte mobilidade de contingente humano e consequentemente de cultura. Portanto, é esse fato
que nos leva a pensar que, para Damião de is, as conseqüências de seus escritos, digamos,
foram mais pesadas do que para Rui de Pina.
Aparentemente, trata-se de uma ingênua colocação, mas o fato é que Rui de Pina,
mesmo elaborando críticas a uma família nobre, não se viu obrigado a alterar ou cortar uma
linha de seu texto, detalhe que para Góis foi totalmente oposto. Além disso, mais tarde veio
a receber a acusação de plágio. De acordo com o mesmo Anselmo, no século XVI, tempo de
Góis, tal como os homens, também as idéias viajam, embarcadas nas páginas de centenas de
livros. É por isso que vemos a Inquisição, em 1536, procurar já estabelecer inúmeras regras
para a edição do material impresso, não podendo nenhum texto ser impresso sem autorização
inquisitorial.
Em suma, o que temos são dois cronistas que estão ligados, devido à crítica de um,
Góis, ao outro, Pina. Crítica que nos levou a tentar perceber diferenças e continuidades entre
eles. Até aqui, podemos dizer que, salvo as diferenças que explicitamos pouco,
enxergamos mais continuidades, entre um e outro, do que rupturas. A historiografia goisiana
denomina Damião de is figura ímpar do Renascimento português, mas deve-se salientar
que quase todos os estudos dedicados a ele o estudam apenas como um homem que se
destacou como estudioso das idéias humanísticas, propagadas por Erasmo de Roterdão, e
como grande diplomata e cosmopolita. E aí, sem dúvida, is pode ser considerado uma
figura ímpar. Esta pesquisa, no entanto, centra-se no Damião de Góis, cronista do reino
lusitano, e nesse âmbito da sua atuação, não lhe cabe o título de figura tão ímpar assim. E vale
agora interrogar mais diretamente sua obra para tentarmos perceber em que medida a história
escrita no século XVI se distanciou daquela realizada no século anterior.
128
ANSELMO, Artur. As origens da imprensa em Portugal. Lisboa: INCM, 1974. p. 13.
129
Ibid., p. 12.
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CAPÍTULO 3
DAMIÃO DE GÓIS: HISTÓRIA E VERDADE
3.1 Breve apresentação das crônicas goisianas
Antes de partir para nosso objeto principal neste capítulo, a tentativa de perceber a
construção dos conceitos de história e verdade de Damião de is, julgamos oportuno
apresentar brevemente os dois textos que nos servirão de base e centro para tal objetivo: a
Crônica do Felicíssimo rei D. Manuel e a Crônica do Príncipe D. João, ambas de Damião de
Góis. A primeira saiu do prelo português de Francisco Correia em 1566, contando com um
total de 326 capítulos, divididos em quatro livros. O Primeiro desses livros abrange 103
capítulos e dedica-se a descrever pouco mais de uma década, desde a morte de D. João III, em
1495, até o levante do povo lusitano em Lisboa contra os cristãos-novos, em 1506. Dentre os
acontecimentos aos quais podemos dar mais destaques estão a expulsão dos judeus e mouros,
a armada de Vasco da Gama, a descoberta do caminho marítimo para a Índia, a armada de
Pedro Álvares Cabral e a descoberta do Brasil. Foi a este livro que is recebeu críticas
violentas do conde de Tentúgal, sobretudo quanto ao enaltecimento de D. João II, e foi nele
que viu-se obrigado a algumas correções, mas respondendo a quase todas as acusações e
mantendo outras passagens que julgou não dever alterar na redação original.
O Segundo livro conta com 57 capítulos, dos quais 46 abarcam os acontecimentos que
o desde a partida de D. Francisco de Almeida, a 25 de março de 1505, para exercer a função
de governador da Índia, até a sua morte no Cabo da Boa Esperança, cinco anos depois, em
1510. Esse volume traz também as histórias de D. Lourenço, Tristão da Cunha, Diogo Lopes
de Sequeira e, em especial, Afonso de Albuquerque. Os feitos desses ocupam a maior parte
do volume, incluindo a descoberta e tomada de Ormuz, Ceilão e Malaca, bem como a
descoberta da Ilha de São Lourenço Madagascar por Tristão da Cunha. Ao contrário do
que aconteceu ao primeiro volume, os assuntos relatados pelo cronista não mereceram
nenhuma crítica.
O Terceiro livro apresenta 80 capítulos que abordam cerca de sete anos, desde a
largada da armada de Diogo Lopes de Sequeira, em 1508, até a morte de Afonso de
Albuquerque, em 1515. Desses 80, os que merecem mais destaque são aqueles contestados
pelo conde de Tentúgal, os capítulos XXIII e XXVII os quais Damião de is foi obrigado
a reformular. A alteração no primeiro deles ocorreu porque o cronista tinha acentuado o
procedimento pouco leal do rei católico D. Fernando, avô de D. Catarina, com D. Manuel nos
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necios de Marrocos. Já, no XXVII, tinham incomodado o excesso de elogios ao cardeal D.
Henrique.
Por fim, o Quarto livro é constituído por 86 capítulos iniciados com a morte de D.
Fernando de Castela, em 1516, e finalizados com o falecimento do rei D. Manuel, em 1521,
narrada no capítulo LXXXIII. Nos demais capítulos, o cronista descreve as feões, virtudes e
modo de viver do rei Venturoso, conta acerca dos mosteiros e lugares que ganhou aos mouros,
bem como menciona as instituições, ordenações, regimentos ocios, cidades e vilas
descobertas. Além disso, vemos contemplados, nesse último livro da crônica, o continente
africano e as terras do Oriente, como Ormuz, Goa, Malaca e Sumatra, assim como a
embaixada à China. Da mesma maneira que o segundo volume, este também não sofreu
nenhum tipo de contestação aos temas abordados.
No intervalo de aproximadamente seis meses que decorrem entre a terceira e a quarta
partes da Crônica do Felicíssimo rei D. Manuel, saiu do mesmo prelo de Francisco Correia o
quinto volume publicado por Damião de is, que na historiografia portuguesa merece
devido destaque, a Crônica do Príncipe D. João. Publicada em 1567, essa conta com 104
capítulos, distribuídos em apenas um único volume, que narram desde o nascimento do futuro
D. João II, 1455, terminando com a morte de D. Afonso V em 1481, um espaço breve de 26
anos. is, porém, nos capítulos VI e IX, faz um recuo no tempo e fornece ao seu leitor um
sumário das descobertas desde a conquista de Ceuta, em 1415, até 1455, ano em que o autor
inicia a crônica propriamente.
Dos 104 capítulos que constituem a crônica, apenas 12 dizem respeito a assuntos
internos portugueses. Embora Góis se apóie substancialmente na Crônica de D. Afonso V, de
Rui de Pina, da qual Garcia de Resende também se serve, a sua narrativa diverge das desses
cronistas em alguns aspectos fundamentais. Primeiramente, na sua utilização de fontes
estrangeiras e no registro de acontecimentos internacionais. Em segundo lugar, pelas duas
preocupações básicas quanto ao que se refere à política interna: compilar uma lista das
doações e privilégios concedidos por D. Afonso V, ano a ano, e mostrar o papel
preponderante desempenhado por D. João II quando ainda era príncipe. Nessa parte relativa
aos assuntos internos, Damião de is é extremamente seletivo nos temas, a fim de preparar
os seus argumentos. Quando os acontecimentos o são estritamente relacionados com o
príncipe D. João, ele próprio aconselha o leitor a ler o cronista que escreveu a Crônica de D.
Afonso V , onde mais especificamente é tratado o reinado do dito rei.
Intervenções reais em Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger; translado das ossadas do
infante santo para a Batalha; desentendimentos com a Inglaterra e com Castela; narrativas de
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rias lutas e confrontos; concessão do governo do reino ao príncipe D. João; o infante D.
Henrique e os Descobrimentos; a transladação do infante D. Pedro; a paz estabelecida
posteriormente com Castela, são esses alguns dos assuntos abordados nessa crônica. Nela, o
cronista queixa-se da escassez dos escritos portugueses acerca das navegações durante os
dezoito anos que se seguiram à descoberta de Ceuta, em 1415, até a morte de D. João I, em
1433. Sendo assim, nessa crônica, o autor propõe-se escrever um sumário desse período,
como explicitamos no início.
Também nessa crônica, à política marroquina de D. Afonso V, o autor dedica vinte
capítulos, que tratam exclusivamente da conquista das terras norte-africanas, dado que Góis se
ocupa de D. Afonso V, o Africano. Finalmente, é interessante apontar que, na Crônica do
Príncipe D. João, Damião de is revela uma verdadeira preocupação em completar a
narrativa dos cronistas que o antecederam, que também se dedicaram ao reinado do Africano,
nomeadamente Rui de Pina e Garcia de Resende parte que não sofreu intervenções ou
críticas de terceiros.
Dessa forma, através de suas duas crônicas aqui mencionadas, percebemos que as
figuras de D. Afonso e de D. Manuel servem de contraste à figura de D. João. O primeiro
deixou escapar sua riqueza e poder e permitiu que em seu próprio reinado surgissem grandes
potentados; o segundo obteve o título de rei e preparou o terrenos para seu predecessor; e o
último, D. João, aparece na narrativa como um protótipo dos monarcas do século XVI.
3.2 A construção de história e verdade nas crônicas de Damião de Góis
Estudar a crostica portuguesa significa examinar um modelo de narrativa que
subscreve uma tipologia própria, um modelo que, nos séculos XV e XVI, divide-se em dois
tipos: a cronística régia e a da expansão ultramarina. Os seus elementos constitutivos
evidenciam-se quer no modo como cada um dos cronistas come sua obra, quer na maneira
com que cada um se relaciona com os textos, relatos, que utilizam para a construção de suas
narrativas.
Obras dotadas de uma coerência interna, as crônicas podem ser consideradas como um
gênero textual. Teresa Amado
130
, diante dessa questão e analisando o conceito de gênero
textual, observa dois possíveis caminhos para tratar o conceito de gênero. Um deles é tê-lo
como “uma categoria de classificação retrospectiva”
131
, o outro como “pertença a uma
130
AMADO, Teresa. Os gêneros e o trabalho textual. Lisboa: Cosmos, 1997.
131
Ibid., p. 10.
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classe
132
. A autora não os aceita como sendo uma coisa e estabelece uma ligação de
gênero com a história, citando Jean-Marie Sheffer
133
, pois esta, segundo Amado, distingue
entre o gênero, noção que apenas pretende classificar, estática e alheia à história, e a
generacidade, ou seja, o nível dinâmico de funcionamento do texto, que é afetado pela
história.”
134
Tal colocação mostra-se pertinente nesta pesquisa, pois a questão dos gêneros,
segundo Teresa Amado, “é um dos melhores campos de observação para o estudo da
crônica
135
. A autora analisa os textos de Fernão Lopes, cronista português que escreveu três
crônicas régias, notando que ele utilizou em cada uma delas uma escrita e uma técnica
diferentes, criando assim várias formas e dificultando que alguma delas chegasse a ser tida
como o modelo principal a ser seguido.
Mas o fato é que, com os príncipes de Avis, reconhece-se pela primeira vez uma
atividade literária que se pode dizer regular em Portugal, especialmente no caso das crônicas
régias, pois essas constituem um nero representado por mais de um exemplar. Segundo
Bernard Guenée
136
, a concepção teórica e prática do gênero, que surgiu e triunfou nos séculos
XIII e XIV, combinou a narração com o registro minucioso de datas e fatos, tendo sido
chamada crônica.
De acordo com Amado, as crônicas configuram-se como um “gênero literário que tem
por objeto a representação do passado”.
137
Desta maneira, podemos assinalar que nasce um
gênero literário que, no caso português, incorpora a História como uma de suas modalidades,
ligando campos distintos: história e literatura. A esse respeito, Amado conclui que “se a
História é o gênero matricial de que a crônica será uma das modalidades, no trabalho da
escrita a crônica faz da História um dos gêneros que a comem”.
138
Tendo em conta essas
colocações, somos levados a levantar uma interrogação inicial: qual a concepção que o
cronista tem de crônica?
Essa indagação faz-se apropriada para abrirmos nossa análise, pois, enquadrando-se
nos princípios da narrativa factual, ou melhor, na crônica, e adotando a prosa como opção
técnico-compositiva, Gomes Eanes de Zurara, cronista oficial lusitano do século XV, ao
132
AMADO, 1997, op. cit., p. 10.
133
Ibid.
134
Ibid.
135
Ibid., p. 12.
136
GUENEE, Bernard. Histoire et chronique. Nouvelles reflexions sur les genres historiques au Moyen Âge. In:
POIRION, Daniel (Org.). La chronique et l’histoire au Moyen-Age. Paris: Presses de l’Université de Paris
Sorbonne, 1986. p. 3-12.
137
AMADO, 1997, op. cit., p. 18.
138
Ibid., p. 28.
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iniciar a narração da sua Crônica do Conde Dom Pedro de Meneses antes de partir para a
narrativa, propriamente dita, dos fatos e feitos do citado Conde, bem como dos fundamentos
do seu projeto crostico –, fornece uma etimologia da palavra crônica:
[...] chronica principalmente ouve o seu origem, e fundamento da Saturno,
que quer dizer Tempo, esto porque em Grego se chama este Planeta Chrono,
ou Chronos, que sinifica Tempo, assy como no Latim este nome quer dizer
Tempus. E d’hy se deriva Chronica, que quer dizer Istoria, em que se
screpvem os feitos temporaes.
139
Aqui, Zurara revela sua consciência da gênese da crônica, ou seja, a idéia de que esta
estabelecia uma íntima relação entre o ato da escrita e a rememoração dos feitos, num tempo e
num determinado local específicos. Ao explicar a origem da palavra crônica, Zurara evidencia
que seu fundamento é o registro do tempo decorrido. De acordo com França
140
, é o registro
daquilo que é efêmero e por isso mesmo sujeito ao esquecimento”. Figueredo
141
caracteriza o
conceito de crônica zurariano como sendo o “relato e a exaltação de feitos exemplares, ou
mesmo heróico, protagonizado por uma determinada elite que corporiza um novo tempo, que
é o da expansão ultramarina”.
Considerar a concepção de Zurara de crônica importa aqui em razão de o nosso objeto
de análise ser um texto cronístico que, embora do século seguinte, também está inserido no
complexo problema da construção da memória escrita de um reino, neste caso específico, o
reino lusitano de Quinhentos. o se trata, pois, de transposição de conceitos e definões de
um cronista para outro. Esse ponto de partida serve apenas para entrarmos no problema do
complexo significado do termo crônica e a utilização deste tanto pelos cronistas portugueses
medievais, como Fernão Lopes, Zurara e Rui de Pina, quanto por Damião de Góis.
Damião de is, entretanto, não explicita em nenhuma de suas duas crônicas, como
fez Zurara, sua concepção de crônica, mas se o discurso escrito inscreve-se numa dimensão de
espaço e transcende os limites do temporal, como pensa Buescu,
142
relembrar o conceito
zurariano de crônica justifica-se, nesta pesquisa, em razão de os eixos que definem o gênero
139
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Conde D. Pedro de Menezes: reprodução fac-similada com nota e
apresentação de José de Freitas Carvalho. Porto: Programa Nacional de Edições Comemorativas dos
Descobrimentos Portugueses, 1988. cap. 1. p. 213-214.
140
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os reinos dos cronistas medievais: culo XV. São Paulo: Annablume,
2006. p. 118.
141
FIGUEREDO, Albano. A idéia de historiografia e sua materialização genológica em Gomes Eanes de
Zurara. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 221.
142
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. A memória da nação. Lisboa: Sá da Costa, 1991. p. 384.
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terem de alguma forma persistido também no tempo de Góis, que inscreve as suas crônicas no
filão dos relatos circunstanciados de verdades históricas.
Por outro lado, escolhemos evocar aqui o conceito zurariano de crônica, que
porventura pode induzir o leitor a ver em Damião de Góis um Zurara transposto ao século
XVI, pois ao assumir o papel de cronista dos reinados de D. Manuel e de D. João II, Góis
deixa clara sua preocupação com a história, criticando seus antecessores. Atentemos que, nas
comparações que realizamos no capítulo anterior entre Góis e Rui de Pina, foi possível notar
que Góis não se distancia significativamente do modelo cronístico medieval no qual estão
inseridos Rui de Pina, Fernão Lopes e Zurara, que são criticados pelo cronista quinhentista em
seus textos. Seguindo um modelo que se pode dizer clássico, Damião de Góis elabora um
discurso histórico para relatar a memória dos feitos portugueses, cujo vínculo de transmissão,
por excelência, é assumidamente a crônica.
Mas a crônica, no início do século XVI, como foi adiantado, dividiu-se em dois tipos
distintos: a dos reis e a dos feitos ultramarinos. Ana Paula Avelar
143
aponta que a primeira tem
como eixo narrativo a figura real, percorrendo e destacando o seu espaço temporal e a duração
dos respectivos reinados narrados. o segundo tipo, a autora entende ser um tipo um tanto
quanto diferente de texto. Segundo ela, este tipo de crônica a da Expansão Ultramarina
continua a ser o discurso sobre o poder e atendendo aos seus interesses, todavia,
acrescentando elementos que transcendem os limites da estrita governação e construindo
imagens de um espaço que inclui Portugal e o rei mas vai para além desses. Daí que façam
das próprias crônicas régias fontes de informação.
Damião de is, embora possa ser encaixado no primeiro tipo de texto (a crônica
régia), não deixa também de relatar os feitos expansionistas. O autor narra alguns eventos
referentes à presença lusitana no Oriente, ainda que o faça de forma subsidiária, como se nota
na leitura da Crônica do Rei D. Manuel. O termo subsidiária cabe aqui porque, mesmo sendo
considerada crônica régia, de acordo com Diogo Ramalho Curto
144
, essa crônica oferece à
Expansão uma importância esmagadora”. Ou seja, na análise do supracitado autor, não
podemos enquadrar o texto crostico goisiano em nenhum dos dois tipos apontados. Sendo
assim, sem mais delongas, resta-nos apontar que Damião de Góis foi um dos representantes
da construção do passado lusitano, cuja especificidade desde 1533, por exemplo, era difundir
143
AVELAR, Ana Paula Menino. Fernão Lopes de Castanheda: historiador dos portugueses na Índia ou
cronista do Governo de Nuno da Cunha? Lisboa: Cosmos, 1997.
144
CURTO, Diogo Ramada. Língua e memória. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (Coord.). História de
Portugal: no alvorecer da modernidade. Coimbra: Estampa, 1973. v. 3. p. 370.
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à Europa notícias e comentários sobre os feitos portugueses, feitos esses que, embora régios,
eram destacadamente ultramarinos.
145
Desse modo, para além de se constituir um modelo, as crônicas feitas no século XVI,
sendo as mais conhecidas as de Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros e Damião de
Góis, buscaram passar uma imagem do passado lusitano, sem ainda se livrar da herança da
história pedagógica que caracterizou os escritos dos seus antecessores. Para tal tarefa, os
quinhentistas definiram procedimentos e objetivos para os seus afazeres como historiadores,
retomando por vezes concepções de escrita do passado e redirecionando alguns dos seus
interesses.
No século XVI, vários historiadores têm notado inúmeras transformações,
principalmente no que se refere à relação homem/espaço. Os novos horizontes descobertos
com as viagens marítimas provocaram o confronto de concepções até então não pensadas. Da
mesma forma, podemos notar, de acordo com Avelar
146
, uma mudança na mentalidade ou
maneira de se pensar o mundo, pois muito do que era imaginado torna-se, a partir dos
Descobrimentos, ao alcance dos homens. Segue-se a isso, o aparecimento de uma literatura
épica, destinada a relatar os “novos mundos” e os homens que os descobriram. Portanto,
narrar os feitos portugueses, para além de uma necessidade, nas palavras da mesma
historiadora
147
, tornou-se “um desejo e uma constante, não por parte dos reis como dos
homens de letras”.
Inspirado pelas navegações portuguesas, acrescentando todo um pensamento patriótico
e cosmopolita
148
, encontramos Damião de Góis envolvido com a escrita de duas crônicas
régias: Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel e Crônica do Príncipe D. João II. Destacando-
se entre os autores do seu tempo, pode-se dizer que a obra historiográfica de Damião de is
é contemporânea ao grupo dos cronistas que começaram a publicar seus escritos no começo
das explorações marítimas, testemunhando junto com João de Barros e Fernão Lopes de
Castanheda um processo histórico que marcou a trajetória portuguesa.
No que respeita estritamente à sua obra, Tavares
149
aponta que suas crônicas
representam a parte mais amadurecida de toda ela. Essas baseiam-se sobretudo em
documentos escritos, fator que os críticos e historiadores posteriores tomaram como
145
FARIA, Francisco Leite de. Estudos bibliográficos sobre Damião de is e a sua época. Lisboa: Secretaria de
Estado da Cultura, 1977.
146
AVELAR, 1997, op. cit., p. 7.
147
Ibid., p.7.
148
A esserespeito ver BATAILLON, Marcel. O cosmopolitismo de Damiãode is. Lisboa: Seara Nova, 1938.
149
TAVARES, José Fernando. Damião de Góis: um paradigma erasmiano no humanismo português. Lisboa: ,
1999. p. 106.
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abonatório de seus escritos, juntamente com seu assumido compromisso de escrever a verdade
– compromisso esse que o liga ao pensamento ou à teoria humanista, pois, para os pensadores
humanistas, a verdade era o principal apánagio da matéria histórica.
150
Segundo também Tavares
151
, Damião de is procura seguir essa regra, a partir do
momento em que tenta seguir os fatos com maior exatidão possível. No decorrer da narrativa,
o cronista cita numerosos testemunhos documentais que atestam essa procura da verdade. O
autor insere em alguns capítulos de suas crônicas, por exemplo, trechos ou textos integrais de
cartas, regimentos, ordenações, entre outros. Além disso, um outro fator a se destacar na obra
de Damião de is é o conhecimento que possuía dos textos cronísticos do seu tempo e que
ajudavam igualmente na busca da verdade. Ele refere-se, por exemplo, às Décadas de João de
Barros, bem como à História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, de
Fernão Lopes de Castanheda. Tais referências são perceptíveis principalmente no capítulo
XXXVI da quarta parte da Crônica de D. Manuel, no qual o autor trata de uma armada
portuguesa à Índia. is pede a seu leitor que, para maiores detalhes, “q por sere taes
diguo, remettido ho lector aho q disso contam Jam de barros, & Fernam lopes de Castanheda
nas suas historias da Índia.”
152
Damião de Góis, pelo que indicam as referências nas crônicas, fez uma leitura apurada
dos cronistas que lhe antecederam, familiarizando-se com os trabalhos daqueles
contemporâneos que tinham alguma relação com as temáticas que desenvolve. Sem
especificar exatamente quais eram os elementos que aproveitava desses textos, indica que os
utilizava como fontes de pesquisa. Por exemplo, no que diz respeito à África, Góis serve-se de
“ João Leão” que, segundo o próprio cronista, era
[...] scriptor Arabigo, home mui docto, & de muita authoridade, q se fez
Crhistão em Roma, no tempo do papa Leão décimo, & compôs muitos livros
em Arabigo, entre hos quaes fez hum que intitulou da discripção Dafrica, &
cousas notáveis dela [...].
153
Quanto à referência aos autores da Antigüidade, alguns dos nomes mais freqüentes do
decorrer de toda a narrativa de suas duas crônicas são: Heródoto, Ptolomeu, Diodoro, entre
outros. Sobre esse ponto, Hirsch
154
aponta que a utilização ou mesmo a simples menção de
150
Sobre tal assunto ver OSÓRIO, Jorge Alves. Humanismo e história. Coimbra: Faculdade de Letras, 1993.
151
TAVARES, 1999, op. cit., p. 109.
152
GÓIS, Damião de. Chronica do felicíssimo Rey D. Emanuel da gloriosa memória. Coimbra: Acta
Universitatis Conimbrigensis, 1949a. pte. 4. p. 93 (edição conforme a primeira de 1556).
153
Ibid., pte 3, p. 63
154
HIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 235.
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autores clássicos por parte de Damião de is pode se dever ao fato de seguir o costume de
muitos humanistas que queriam exibir o seu conhecimento de textos antigos, uma vez que,
como evidenciamos no primeiro capítulo, nosso cronista bebe na fonte da teoria humanista.
Nessa linha de raciocínio, Tavares
155
coloca que é possível que Damião de is não tenha
lido no original todos aqueles autores que menciona, aspecto que, segundo a mesma Hirsch
156
,
o é de causar estranheza, uma vez que é sabido que os humanistas satisfaziam suas
curiosidades pela literatura clássica com “noções de segunda mão”.
157
Um exemplo dessa utilização que Góis faz de alguns autores clássicos, pode ser o
encontrado no capítulo X da segunda parte da Crônica de D. Manuel, onde autor trata da terra
de Sofala e seus costumes. Lê-se o seguinte trecho:
Diz Diodoro Sículo, que foram hos Ethiopes hos primeiros homens que
tiverão conhecimento de Deos, & primeiro usaram religiam, & çeremonias
no culto devino, & foram hos primeiros que acharam ho modo de screver,
& que delles veo ho conhecimento destas cousas ahos Egypcios, donde diz
que elles descendem[...].
158
Ou ainda, podemos ver Damião de Góis citando Heródoto, como na passagem a seguir:
Screve Heródoto, que querendo Cambyses Rei da Pérsia, filho de Cyro,
fazer guerra em hum mesmo tempo ahos Carthaginenses, & ahos Ammonios,
& ahos Ethiopes, que a estes Orientaes mandou seus embaixadores, pêra
por amizade hos sobmeter a seu Império, [...].
159
Muitos mais são os autores da Antigüidade citados por Damião de Góis, mas interessa-
nos aqui perceber sobretudo as leituras realizadas por Góis dos cronistas que o antecederam,
pois são esses textos que contribuíram para a construção do seu discurso histórico. A esse
propósito, considera Hirsch
160
que Góis fez um sério estudo de crônicas anteriores,
procurando aí inspiração para seu trabalho de historiador. Exemplo claro é o capítulo
XXXVIII da Crônica do rei D. Manuel, onde ele afirma que fará um breve discurso” sobre
aquilo a que cada um de seus antecessores se dedicou. A autora
161
ressalta que Damião de
Góis foi o primeiro cronista a identificar Fernão Lopes como sendo o autor de uma História
155
TAVARES, 1999, op. cit.
156
HIRSCH, 2002, op. cit.
157
Ibid., p. 235
158
GÓIS, 1949a, pte. 2, p. 33.
159
Ibid., p. 33.
160
Ibid., pte. 4., p. 100.
161
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 236.
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Geral dos Reis Portugueses, livro que vai até ao reinado de D. João I. Segundo Tavares
162
, tal
identificação pode ser considerada um grande feito intelectual, um trabalho empírico de
Damião de is, como vimos no capítulo anterior em que tentamos mostrar que Damião de
Góis anuncia uma espécie de método de pesquisa para fundamentar sua tese sobre a autoria de
Fernão Lopes das crônicas que comem a História Geral dos Reis Portugueses. Nota-se que
o cronista baseia-se em uma análise de fatores internos ao texto, ou seja, sua organização,
bem como no seu estilo. is observa que Fernão Lopes começa todos os seus prólogos da
mesma maneira: [...]Fernam Lopes tinha era descrever nos príncipios das Chronicas que
compôs, hos custumes & ordem da vida dos Reis de que tractara, & pareçe que este Prólogo
de que aqui faz menção era geral em todas hás Chonicas”[...]
163
Revela-se aqui o que podemos denominar uma possível característica de Damião de
Góis como historiador, pois propõe uma certa maneira de analisar um documento, texto, a ser
utilizado como fonte de pesquisa.
Não a Fernão Lopes se refere Damião de is, o autor toca também em Gomes
Eanes de Zurara, citando, na sua Crônica do Príncipe Dom Joam, as censuras ao seu
antecessor ao uso excessivo das metáforas, elementos que segundo Damião de Góis eram
inadequados para a forma cronística ou para aqueles que estavam compromissados com a
verdade. Segundo Damião de is: “stylo e ordem acustomado do mesmo Gomezeanes posto
que algumas palavras e termos antigos que ele usava no o screvia com razoamentos prolixos
e cheos d metaphoras ou figuras quem no stylo histórico não tem lugar[...]
164
De igual maneira, vemos Damião de is criticar Rui de Pina, seu predecessor, por
este exibir na Crônica de D. Afonso V e na Crônica de D. João II, um estilo “afetado”,
carregado de adjetivos: “[...] que ho stylo de rui de Pina pólos muitos adiectivos e epithetos
que se usavam naquelle tempo he muito afeitado”.
165
Sob Rui de Pina, além dessa crítica,
pesa a citada acusação de plagiário de Fernão Lopes.
Essas críticas ao estilo dos seus antecessores podem anunciar de alguma maneira o seu
próprio modo ou estilo de trabalhar ou fazer história. Estilo que, segundo Antônio Mendes
166
,
pode estar ligado à preocupação de Damião de Góis de definir o rumo da “modernização
cultural portuguesa”. Sendo assim, abandona de certa maneira o estilo floreado, “afeitado” de
162
TAVARES, 1999, op. cit., p. 109.
163
GÓIS, 1949a, pte. 4, p. 101.
164
Ibid., p. 105.
165
Ibid., p. 107.
166
MENDES, Antônio Rosa. A vida cultural. In: MAGALHÂES, Joaquim Romero (Coord.). História de
Portugal: no alvorecer da modernidade. Coimbra: Estampa, 1973. v. 3. p. 384.
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seus predecessores e mostra-se disposto a renovar a escrita das crônicas, como se nota nos
seus prólogos.
Acerca dos prólogos, é interessante salientar a importância que desempenharam nos
exemplares do gênero, sejam eles do século XIV ou XV. Ana Paula Avelar
167
aponta que os
prólogos constituem o lugar onde se expressa o saber e a cultura do autor. Ou seja, segundo
essa análise, é a partir da leitura dos prólogos que podemos perceber como o cronista define o
seu próprio fazer, bem como quais são os seus ideais de uma boa história. Nesse sentido, não
podemos deixar de examinar mais minuciosamente os dois prólogos das crônicas de Góis.
De início, Góis refere-se à majestade da história no prólogo de sua Crônica do
Príncipe D. João: “[...]que historia tem em si tanta magestade, que nella se nam pode
sofrer palavra nenhuma, que no lugar em que se põe nam traga consigo gravidade,
honestidade, e authoridade[...]”
168
Da mesma maneira, vemos o cronista louvar a história no
prólogo da sua Crônica de D. Manuel:
Muitos, & graves authores nos princípios de suas chronicas trabalaram em
louvar ha história, da qual tudo ho que dixeram foi sempre muito menos do
que se devia ssi quomo ella he infinita, assim seus louvores nam tem fim,
nem termo a que se possam reduzir[...]
169
Ambos os prólogos, antes de nos levar ao problema ou evidência do que seria a
definição de história do autor, colocam-nos frente à necessidade que os cronistas do século
XVI viram em transmitir a memória dos fatos portugueses. Para tal tarefa, colocava-se a
questão do como fazer uma narrativa histórica, pois em face de uma narrativa histórica, de um
texto narrativo-memorativo, colocam-se, segundo Avelar
170
, algumas questões incontornáveis.
Primeiramente, os cronistas indagavam-se a respeito da documentação disponível para o
conhecimento dos acontecimentos a serem narrados e, em segundo lugar, nota-se certa
preocupação com o modelo a ser seguido para se realizar tal texto narrativo.
Diretamente ligada a essa questão, tanto a supracitada autora quanto Jorge Osório
171
percebem a existência de duas correntes historiográficas no universo português quinhentista:
os petrarquistas e os ciceronianos. Os primeiros estariam preocupados com os fatos dados,
estabelecendo diferenças entre o presente e o passado, oferecendo à história um caráter
167
AVELAR, 1997, op. cit., p. 71-72.
168
GÓIS, Damião de. Crônica do Príncipe D. João II: prólogo. Coimbra: Acta Universitates. Conimbrigensis,
1949b, sem paginação.
169
GÓIS, 1949a, op. cit., sem paginação.
170
AVELAR, 1997, op. cit., p. 70.
171
Sobre tal assunto ver OSÓRIO, 1993, op. cit.
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didático. o segundo grupo colocava toda a atenção no homem, pois, segundo essa linha, é
esse homem quem elabora o pensamento e a compreensão dos fatos históricos. Damião de
Góis, ao que tudo indica, pode ser colocado no segundo grupo.
De início, a classificação justifica-se pelo fato de Damião de is compartilhar das
idéias de Erasmo de Rotero, um reconhecido adepto da obra de Cícero. Diga-se de
passagem, Erasmo tinha especial afinidade com o ensaio ciceroniano intitulado De Senectute.
E além do mais, Erasmo disserta sobre o pensamento ciceroniano, especialmente o religioso,
no seu Ciceronianus.
Seguindo Erasmo, conforme se pode notar na bibliografia goisiana, o cronista
publicou uma tradução em português do texto de Cícero, De Senectute, em 1538
172
. Ainda
podemos somar a isso o fato de Damião de Góis ter simpatizado com alguns humanistas
italianos (como Bembo e Buonamico), que consideravam Cícero o grande modelo de escrita
em latim.
173
Segundo Elisabeth Hisch, Damião de Góis chega a insistir com Erasmo para que
esse aperfeiçoasse o seu estilo de escrita, a fim de que pudesse se aproximar do estilo de
escrita de Cícero.
174
Portanto, podemos denominar Góis como um cronista ciceroniano, se
levarmos em conta esses e outros dados de sua obra.
O importante a ser destacado é que estamos diante de um escritor que está inserido em
um contexto, mas que também ajuda a construir esse contexto no qual se insere. Na análise de
Avelar, se pensarmos a questão cronologicamante, notamos que novas imposições se colocam
ao historiador do século XVI, no momento que se atenta para o fato de que trabalhar com a
busca do passado traz consigo a necessidade de se procurar objetivos, causas e efeitos, ou
mesmo conseqüências dos acontecimentos e articulações. Segundo Macedo
175
, a partir daí a
história começou a se impor regras de construção e surgiu a necessidade de se definir um
conceito e uma função para ela. Também Avelar
176
afirma que, nesse contexto, em que vemos
Góis inserido, torna-se importante para o cronista definir um modelo de transmissão da
história, juntamente com a elaboração dos princípios condutores da mesma, que serviriam de
orientadores de suas narrativas. No prólogo da Crônica do Príncipe D. João, acha-se uma
passagem interessante a esse propósito:
172
Esta informação nos é dada por HIRSCH, 2002, op. cit., p. 100.
173
TAVARES, 1999, op. cit., p. 156.
174
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 102.
175
MACEDO, Borges de. Damião de Góis et l´historiographie portugaise. Paris: Centro Cultural Português,
1982. p. 12-13.
176
AVELAR, 1997, op. cit., p. 71.
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Porque he cousa clara poersse a mais juízos quem de vontade screve
história, que ho que tem obrigaçam de ho fazer, e muitos mais se tratta de
feitos de Reis e grandes senhores, porque nestes se requere alto stylo
d’screver, grande ornamento de lingoagem, sotil, e discreto artifício
rhetorico, e isto tam temperado , que ho discuido do scriptor nam cegue
gloria do que trata[...].
177
Esse trecho sugere que estamos diante de um escritor que, ao colocar grande
importância na necessidade do bem escrever – já que escreve por vontade e não por obrigação
julga destacar-se dos seus antecessores. Se analisarmos tal trecho aos olhos do pensamento
de Avelar, citada pouco, vemos que Damião de is apenas cumpre uma necessidade que
se coloca ao seu tempo. o queremos aqui apontar is como o inaugurador de um novo
estilo de escrita, mas sim queremos perceber onde estaria a suposta diferença, já que o mesmo
sai criticando seus pares em seus textos, como já mencionamos.
Nota-se, no trecho citado acima, que de maneira direta o cronista encara o processo de
escrita da história, com uma explícita preocupação com a maneira de se escrever, pois Góis
o aceita como apropriado para se escrever a história o que ele denomina de maneira
floreada de escrita. É importante deixar claro que, inicialmente, vemos a preocupação do
cronista com a maneira de se escrever um fato que se pode denominar de histórico e não em
definir o que para ele seria seu conceito de história. De certa maneira, is já está definindo o
que acredita ser história, a partir do momento que se preocupa com o como escrever. Segundo
Hisch,
178
essa ênfase na escrita sem adornos é uma característica que o distingue de outros
autores, especialmente os humanistas, que enfatizam a retórica.
Uma outra característica que podemos destacar na maneira de construção da escrita de
Góis e da sua história, apreciada pela supracitada autora, é o fato de Góis fugir da criação de
imagens em seus textos, bem como de dar importância a pormenores em suas narrativas. Tal
consideração pode ao menos estar ligada à própria fala do cronista no momento que esse diz
fugir de tais características, pois essas poderiam afetar a “majestade da história” .
Isso não quer dizer que Damião de Góis não tivesse conhecimento de pormenores que
aconteciam no interior da corte de D. Manuel, uma vez que viveu desde seus nove anos de
idade na sua corte, onde inclusive inicia sua educação. Pormenores que dizem respeito, por
exemplo, às possíveis discussões ou incidentes ocorridos no ambiente dessa corte. Tais
aspectos, segundo Tavares
179
, não aparecem com freqüência nas crônicas de Damo de is,
177
GÓIS, 1949b, op. cit., sem paginação.
178
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 237.
179
TAVARES, 1999, op. cit., p. 110.
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pois o cronista não era dado a sensacionalismos. Este termo, entretanto, parece um tanto
inadequado para o tempo, e o único autor a utilizá-lo é Tavares.
Não descartamos, contudo, a discussão, pois se sensacionalismo não é uma questão
que parece ser do tempo de Damião de Góis, de qualquer forma ele preocupa-se em não se
mostrar excessivo no uso de detalhes que não pareçam importantes para serem colocados em
sua história. Pelo que pudemos perceber, tal preocupação está intimamente relacionada com o
impacto da recepção de seus textos. Diogo Ramada Curto
180
explicita que o processo de
construção de compilações ligadas à expansão permite perceber a influência que certos
assuntos tiveram na “reelaboração da memória oficial da monarquia”.
181
O autor nota que não
apenas a obra de Damião de is mas as diferentes crônicas reais do século XVI circulavam
em Portugal na forma manuscrita e na forma impressa. Sendo assim, a preocupação com a
recepção da obra já pode ser notada nesse contexto.
Especificamente no caso da obra cronística de Damião de Góis, Ramada Curto
182
diz que a
receão da Crônica do Felicíssimo rei D. Manuel oferece um quadro de conflitos e censuras.
Questões que são levantadas por levarem em conta os processos de influência de cada obra e as
relões que cada uma mantém com outros textos. Nesse ponto, seu trabalho empenha-se em situar
Portugal relativamente aos centros de prodão intelectualdo resto daEuropaquinhentista.
Na análise de Sousa Rebelo
183
, o escol humanístico não ignorou os descobrimentos
lusitanos e percebeu a necessidade da sua divulgação, a preocupação da maioria dos
humanistas portugueses era a inclusão no processo cultural europeu de obras de mérito
literário. Damião de Góis, considerado um humanista, ao preocupar-se com a maneira de
escrever e divulgar sua obra, parece estar preocupado igualmente com a circulação e aceitação
das mesmas. Não devemos esquecer de que ele foi tima de pesadas críticas vindas de
leitores da época, tendo sido o caso mais acalorado, as críticas do conde de Tentúgal, que
explicitamos em pormenores no início desta dissertação.
Como colocamos inicialmente, no seu processo de construção do discurso histórico,
Góis abomina a prática da utilização de pormenores em suas narrativas, pois, segundo ele, tais
pormenores poderiam levantar algumas polêmicas desnecessárias ao tipo de texto que se
propõe a escrever. Mas isso não quer dizer que não deparemos em nenhum momento com
alguma situação do tipo no decorrer da leitura das crônicas. Mas são esporádicos esses
180
CURTO, 1973, v. 3, op. cit., p. 357-373.
181
Ibid., p. 370.
182
Ibid.
183
REBELO, Luís de Sousa. Damião de Góis e os chamamentos do humanismo. In: DAMIÃO de Góis:
humanismo português na Europa do renascimento. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002.
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pormenores. Em determinada altura da narrativa da Crônica de D. Manuel, por exemplo,
temos descrito um fato envolvendo um funcionário do governo, Álvaro de Castro, que foi
repreendido pelo monarca D. Manuel por ter maltratado um criado. O assunto encontra-se
descrito no capítulo 40 da terceira parte da crônica do rei, como segue:
[...] ho quem sabendo dõ Álvaro pos nisso tal vigia, quem ho achou de noite
dentro em sua casa fallando co ella: pelo quem movido de sanha ho mãdou
açoutar per mouros de sua estrebaria, ta cruelmente, que em todo ho corpo
lhe não ficou lugar que nam fosse chagado dos açoutes [...].
184
Passagem que ilustra as sutis críticas lançadas por is, aquelas mesmas críticas que
fizeram com que sua história fosse questionada pelos nobres do seu tempo.
No que diz respeito a recursos estilísticos para tornar mais "verdadeiras" suas crônicas,
um deles merece destaque na elaboração de suas narrativas histórias: o uso que faz do
discurso direto. Um artifício, segundo Hirsch
185
, próprio do humanismo. Ou seja, temos aqui
uma influência direta dessa corrente na obra de is. A utilização do discurso direto, embora
fosse uma característica humanista, é, como destaca Hirsch
186
e igualmente Tavares
187
,
realizada de forma inventiva por is. Ambos concordam que Damião de is soube utilizar
desse artifício em suas crônicas para que pudesse tornar o texto mais factual e menos denso,
fazendo uso desse tipo de discurso para acrescentar suas opiniões sobre determinados fatos
que julgava merecerem suas análises.
Percebemos ao longo da leitura das suas crônicas, em especial a de D. Manuel, que é
ao interpolar as suas opiniões que o autor aproveita para poder narrar sobre temas variados,
como potica, economia e religião, ainda que sem perder de vista os temas militares
predominantes em suas duas crônicas. Sobre os temas poticos, vale lembrar os capítulos em
que o cronista destaca a nomeação do próprio rei D. Manuel, ou ainda as relações do poder
real com o papado, bem como as questões que envolviam os judeus ou mouros nos territórios
portugueses, ou ainda embaixadas portuguesas a outros reinos – como França e Espanha –, ou
mesmo com os chefes poticos das terras que estavam sendo descobertas e os possíveis
acordos realizados entre os monarcas portugueses e os dessas novas terras. Sobre os
econômicos, temos, por exemplo, as relações entre D. Manuel e os reis de Castela referentes
aos negócios de Marrocos, ou ainda as doações feitas pelo monarca a algumas famílias
184
GÓIS, 1949, op. cit., pte. 3, p. 156-159.
185
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 237-238.
186
Ibid., p. 238
187
TAVARES, 1999, op. cit., p. 110-111.
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nobres, como a dos Bragança, ou também as doações pias da monarquia. Sobre os religiosos,
temos as questões ligadas ao nascimento do próprio monarca ou ainda as referências às
religiões dos povos com que os portugueses se deparavam com as navegações. Quanto aos
militares, podemos enfatizar os feitos de Afonso de Albuquerque.
Voltando aos recursos de construção que caracterizam seu discurso histórico, um outro
é o menos decisivo na afirmação da verdade: a comparação. Hisch
188
destaca este recurso
como sendo um tipo de “modernidade”, pois, segundo ela, o cronista utilizará essa
comparação para estabelecer relação entre o que conhecia e o que presenciava. Em outras
palavras, a autora define esse tipo de comparação como reveladora de um empenho
etnográfico de Damião de is, especialmente no caso daquelas comparações feitas pelo
cronista da África com a Ásia. Comparações que corroboram o caráter cosmopolita da sua
obra, já destacado por Marcel Battailon
189
cosmopolitismo especialmente notável na sua
capacidade de observar. Tais comparações justificam, nas palavras de Hisch
190
, que seja
tomado como um escritor que cria uma “atmosfera de unidade planetária”, mas, na visão de
Battailon
191
, são interpretadas como uma forma de solidariedade humana, uma vez que em
suas crônicas todos os povos com que Damião de is teve contato “são chamados a depor e
a comprovar, sendo tratados num espírito de igualdade humana”
192
. Solidariedade que,
segundo este autor, o destaca entre os historiadores da época.
Alguns exemplos dessas comparações merecem nossa atenção. O primeiro refere-se às
danças dos indígenas brasileiros. O autor compara-as às danças da Flandres, como mostrao trecho a
seguir:
Tem hum certo genero de bailhar, em que andam todos aho redor, quase quomo
s rondas de Flandres, sem se mudarem do lugar em que começam, cantando
todos per hum tom cantigas, em que contam suas valentias, & feitos de guerra,
dando muitos asovios, &fazendo mui grandeestrondo comhos s.
193
Essa comparação foi posvel, pois Damião de Góis, dois anos apóso falecimento do reiD. Manuel
em 1521, foi enviado por D. Jo III para a Flandres, como escrivão da feitoria de Antuérpia.
194
É
interesse notar que o cronista não descreve a dança presenciada na Flandres, apenas ressalta a
188
HIRSCH, 2002, op. cit., p. 239.
189
BATAILLON, 1938, op. cit.
190
HIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis, 2ª ed, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pág. 239.
191
BATAILLON, 1938, op. cit., p. 7.
192
Ibid., p. 7.
193
GÓIS, 1949a, pte. 1, op. cit., p. 134.
194
Sobre esse assunto, ver TORRES, Amadeu. Noese e crise na epistolografia Latina Goisiana. Paris: Centro
Cultural Português, 1982.
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semelhança com a do Brasil, evitando assim os tais excessos descritivos que tanto temia, afinal seu
interesse neste momento da narrativa eramas novidades daterra de além-mar.
Um segundo exemplo dessas comparações de caráter etnográfico refere-se aos tipos de
bebidas dos etíopes, comparadas com as dos russos: [...]nam tem vinho, em lugar do qual
usam huma beveragem feita de mel, & aguoa, que he como que usam hos moscovitas,
roxos, Livonios, & Lituanos, a que chamão Mede[...]”.
195
Pela leitura, somos levados a
pensar no referido cosmopolitismo de Damião de is, que parece ter provado de ambas as
bebidas, como comenta no trecho que segue:
[...] muito suave de beber, & delle tem forte quomo malvasia de Candia, &
do mesmo sabor[...]& eu me achei em alguns lugares destas províncias, nos
anos de MDXXIX & XXXJ, de que hos moradores delles atte então nam
tinham notiçia daçucar, nem sabiam q cousa era.
196
O cronista estabelece também outras comparações entre povos europeus e asiáticos
que são ilustrativas das suas preocupações com as especificidades de cada povo com o qual
teve contato ou do qual teve notícia. Uma delas diz respeito à brancura da pele dos chineses,
equipavel à dos alemães, bem como seus modos de se vestir, próximo do dos Tártaros:
gente da China he bem disposta, alguma della he mais sobelo alvo, que
baço, outros que vivem mais aho norte sam alvos quomo Alemães, andam
vestidos quomo hos Tártaros, com roupetas estreitas de seda, brocados,
algodam, & pilitarias, do que há muito na terra [...].
197
Ao falar da religião dos chineses, Góis refere-se à pintura das imagens dos deuses
daquele povo, ressaltando que seus hábitos de pintar encontram um similar europeu, os
pintores flamengos: s figuras destas imagens todas trouxe Fernam perez dandrade,
pintadas em panos de paugagem, & arvoredos quase do mesmo modo que sam hos panos
pintados que fazem em Flandres, [...]”
198
Mas não apenas os hábitos e costumes asiáticos são contemplados pelo cronista
quinhentistas, como adiantamos anteriormente. Os africanos ganham do mesmo modo o seu
espaço. Um dos exemplos curiosos desse cotejo feito por is é aquele em que se refere ao
modo como os africanos cobriam suas genitálias, avizinhando-se à "bainha de pão" dos
marinheiros holandeses, como podemos ler no trecho que segue:
195
GÓIS, 1949a, pte 3, op. cit., p. 235.
196
Ibid., p. 235.
197
Ibid., pte 4, p. 65.
198
Ibid., pte 4, p. 66.
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Há gente desta província, he baça de cabello revolto, quomo hos da angra de
santa Helena, pequenos de corpo feos, quando fallam pareçe que soluçam, &
ano vestidos de pelles, e trazem suas naturas metidas em huãs bainhas de pão
muito bem obradas, que quase se parecem com as bainhas de o em que hos
martes holandeses e os trelins trazenas facas com que cortam vianda.
199
Esse trecho não consta na edição impressa utilizada nesta pesquisa e da qual foram
retiradas as referidas passagens trabalhadas no primeiro capítulo. Tivemos acesso a ele através de
uma edição comentada baseada no primeiro original impresso. Segundo consta na nota de roda
dessa edição comentada, a ctica do referido Tentúgal foi motivada pelo que ele definiu como
falta de pudor ou moralidade; razão pela qual acusa o cronista de colocar particularidades que não
deveriam estar presentes em um texto que muitos leriam. Ou seja, mais uma vez a questão da
recepção da obra vem à tona, pois assim escreve o conde ao cronista:
[...] no capítolo 35 soo ho que diz nele bastava pêra se não consentyr se esse
livro que am de ler rainhas e Princesas, e não se divera de sofrer por se
nelle particularidades tam sujas e desonestas, as quaes por nenhum caso do
mundo são necessaryas obra, e não servem senão de ofenderem com seu
maao termo has orelhas.
200
Além dessas comparações sobre costumes, Góis estabelece outras sobre as
especificidades de lugares não conhecidos dos seus leitores. Entre essas, é especialmente
relevante aquela em que trata de algumas cidades de grande importância mercantil,
conhecidas quando foi tesoureiro da Casa da Índia. Sua atenção recai sobre as condições dos
intelectuais e dos acadêmicos das cidades comparadas por ele:
[...] & quem parece que hos venezianos tomarão destes , ou estes delles,
porque em veneza, nam estando mais quem çinquo legoas de Pádua,
universidade çelebre, se faz ho mesmo , & se lem em casas publicas, duas
lições no diam huã em Philosophia, & outra em humanidade. & historias ,
das quaes lições eu ouvi muitas estando naquela cidade[...]
201
Ou também descrições feitas pelo cronista entre as cidades de Ormuz e cidades da
Pérsia e da Arábia:
[...] Da ilha chamãoOrmuz, cidade rasa, muito bem arruada, de muitas,&nobres
casas de pedra, gesso, & cal, cõ seus sobrados, & terrados, em que hos Reis tem
huns paços em modo de fortaleza, & por há terra ser muito quente, tem todolos
moradores no meo das casas huas chamis com cataventos, com que hás
199
GÒIS, 1949a, pte 1, p. 76.
200
Trecho extraído dos comentários de uma nota de rodapé da edição da crônica utilizada.
201
GÓIS, 1949a, pte. 2, p. 108-109.
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refrescam por dentro, & se defendem da calma: vem a ella califas, ou recouas de
muitas partes, quomo de maracãte, Tauriz, Caxem, & doutras cidades da Persia
& Arábia, que trazem muitas, &mui ricas mercadorias[...].
202
Da mesma forma, o cronista não se limita a descrever o local do ponto de vista
geográfico o arquitetônico, percebendo-se, em alguns casos, a descrição dos costumes dos
próprios habitantes da localidade, como se pode notar na continuidade da descrição da cidade
acima descrita:
Hos moradores desta cidade, pela mor parte sam Arabios, & Pérsios, dados
a viços,& muito çiosos das molheres, & co rezam, por ellas serem muito
fermosas, hás quaes quando vam fora de casa levão hos rostos cubertos, de
maneira que hás nam podem conhecer: hos homens sam bem dispostos, &
grandes cavalgadores: Haveria entam na cidade passãte de duzentos de
cavallo doa moradores della, hos quaes tem por exercício jugar choca a
cavallo, no que sam tam destros que espãtam hos estrangeiros que o vem
jugar: sam muito músicos, & dados a trovas, andam bem trattados de suas
pessoas, com pannos de seda, chamlotes, brocadilhos, & algodam.
203
Todos esses exemplos assinalam a interligação entre o conhecimento adquirido por
Damião de is a respeito dos descobrimentos portugueses com as suas leituras diversas,
portanto, uma interligação entre referentes culturais e experiência vivida, em outros termos, o
confronto entre o saber livresco, alimentado sobretudo pelos saberes dos povos da
Antiidade, e o conjunto de novos conhecimentos que se iam elaborando a partir da
observação e da experimentação proporcionadas pelas viagens marítimas portuguesas.
Tendência experimentalista que, no caso português, de acordo com Maria Fraga,
204
levará à
contestação de certos conhecimentos dos antigos frente a uma realidade que se pode
comprovar agora com as navegações. Segundo a supracitada autora, com os descobrimentos,
tem-se a elaboração do que se pode denominar de um “método experimental
205
, todo que
pode ser dividido em três fases: a primeira fase consiste no observar; a segunda fase refere-se
à elaboração de uma hipótese explicativa para o fato observado; e, finalmente, na terceira
fase, temos a comprovação da hitese através da verificação ou experimentação o que foi
proporcionado com as navegações portuguesas. Hooykaas
206
salienta que os portugueses, a
202
GÓIS, 1949a, pte. 2, p. 108
203
Ibid., p. 108
204
FRAGA, Maria Tereza de. Humanismo e experimentalismo na cultura do século XVI. Coimbra:
Almedina, 1976. p. 41-42.
205
Ibid., p. 23-24.
206
HOOYKAAS, Rever. Os descobrimentos e o humanismo na ciência e nas letras portuguesas doséculo
XVI. Lisboa: Gradativa, 1983. p. 125
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partir do momento em que saíam ao mar, viam suas indagações mais inquietantes
encontrarem respostas que antes pareciam improváveis.
Segundo o mesmo autor, também Damião de is defendeu que a experiência tornada
possível através dos feitos portugueses
207
vinha comprovar a superioridade portuguesa frente
aos povos da Antiidade. Pom, para o cronista, a questão que importava era menos a
superioridade portuguesa do que a maneira como se deveria descrever essas realizações
marítimas, pois, como humanista, para ele o talento literário dos pensadores antigos
continuava insuperável. Assim, vemos que a preocupação direta do cronista era com a
capacidade dos historiadores em transformar em letras os acontecimentos significativos, à
moda dos antigos. A maneira como os antigos escreviam ainda continua sendo referência
básica para is, contudo, a impossibilidade desses de comprovar suas elaborações podia
agora ser compensada pelos portugueses. Seguindo essa linha de análise, Tavares
208
aponta
que, para Damião de is, bem como para os outros cronistas da época, interessava menos
descobrir uma certa lógica para o processo histórico e mais conservar através de uma boa
escrita os fatos para a posteridade, pois, nas próprias palavras de Damião de is, a “arte da
scriptura
209
é “mãe da eterna memória”
210
. Talvez por isso o cronista procure elaborar uma
narrativa inteiramente descritiva, sem uma explícita análise e juízo dos eventos que aborda.
Apenas ocasionalmente são incluídas certas informações que o seriam tão neutras como ele
pretendia que fosse a sua história; informações essas condenadas pelo conde de Tentúgal.
Tal propensão pode ser notada já no primeiro capítulo de sua Crônica do Príncipe D.
João. Nessa altura, o autor, logo após citar brevemente os nomes dos pais, o lugar e a data de
nascimento do Príncipe D. João II, elabora uma lista dos privilégios conferidos por D. Afonso
V naquele ano de 1455. Ou ainda, no capítulo II da mesma crônica, o cronista acusa Rui de
Pina e Garcia de Resende de não terem sabido executar devidamente o trabalho como
cronistas que eram, pois nomeiam diferentes padrinhos para o príncipe D. João. Da mesma
maneira acontece na Crônica de D. Manuel, pois foram as opiniões de Damião de is,
lançadas no primeiro capítulo, que fizeram com que recebesse críticas ao seu texto.
Além desses aspectos ressaltados, convém mencionar, a propósito de sua construção
narrativa, que uma das maiores dificuldades para o leitor das crônicas goisianas são as
freqüentes mudanças de cerio empreendidas pelo cronista. Em contrapartida, consegue-se
207
HOOYKAAS, 1983, op. cit., p. 126-127.
208
TAVARES, 1999, op. cit., p. 112-113.
209
GÓIS, 1949b, op. cit., sem paginação.
210
Ibid.
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perceber que ele, mesmo mudando o cenário do texto, segue a ordem cronológica dos
acontecimentos, não permitindo uma clara distinção entre o que seria considerado fato
principal e fato secundário. Ou seja, ainda que se perceba que o seu alvo principal é a
expansão e seus atores, não ficam tão evidentes as prioridades dos diversos eventos. Dessa
maneira, segue-se em ambas as crônicas a descrição de inúmeros confrontos militares,
tornando a leitura do texto um tanto quanto cansativa e monótona. As descrições seguem na
maioria das vezes um mesmo esquema descritivo, no qual Damião de is elenca inúmeros
pormenores de cada intervenção militar portuguesa no ultramar, descrevendo várias
conquistas portuguesas na Índia, como por exemplo:
No ano de Mil, & Quinhentos, & sette, em que agora entramos, nam
socçedeo neste regno cousa que de contar seja atte ho mes Dabril, em
partiram pêra Índia quatorze naos, repartidas em quatro capitanias, de que
hos capitães era George de mello pereira, Phelipe de crasto, Fernão soarez
e Vasco gomez dabreu. E porque tudo ho demais que toqua a esta armada,
em comparaçam doutras cousas, que no mesmo tempo acnteçeram na Índia,
sam todas de pouca sustância,por nam quebrar ho fio as outras, depois de
começar a entar nellas procederei no conto desta, atté o faleçimeto de
Vasquo gómez dabreu, ho qual partindo de Bezeguiche, chegou aho porto de
Çofala, ahos oito dias de Septembro [...].
211
Elenca igualmente todas as conquistas de Afonso de Albuquerque na África, a
começar pela a tomada de Goa:
Feitos, e concluídos estes contratos, quem foi ahos XVJ de Fevereiro do
mesmo anno de M.D.X, logo aho dia seguinte entrou Afonso dalbuquerque
na cidade de Goa, onde foi recebido dos Regedores, & povo, muita
solenidade, & lhe foram entregues hás chaves, pêra della fazer quomo de
cousa que de todo sobmetia a obediência delrei Emmanuel, no qual dia
destribuio ha guarda da cidade per estâncias: ho que feito começou de
entender no modo que teria na governança della, & da ilha, ho que fezper
conselho, & parecer dos naturaes da terra.
212
O cronista, do mesmo modo, apresenta os descobrimentos portugueses no continente
americano, dos quais merece destaque, pela riqueza de detalhes, a descoberta do Brasil:
[...] & navegando aloeste, ahos dias XXIIIJ dias do s Dabril viram terra, do
que foo muim alegres,porquem plo rumoem quejazia, na ser nenhuma das que
atte em então eram descubertas, Pedralvares cabral fez rosto pera aquella da
& quomo foram bem a vista, mãdou aho seu mestre que no esquife fosse a terra,
ho qual tornou loguo, com novas de ser muito fresca, & viçosa, dizendo que vira
211
GÓIS, 1949a, pte. 2, p. 44.
212
Ibid., pte. 3, p. 14-15.
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gente ba, & nua pela praia de cabello comprido, & corridio, com arcos, &
frechas nas mãos, pelo que dou a algus dos capies que fossem com hos
bateis armados ver se era isto assi, hos quaes sem srem em terra, tornaram à
capitania afirmado ser verdade, ho que ho mestre dixera: Estado já sobrancora
se alevantou de noite hum temporal com que correram de longo da costa atte
tomarem hum porto muito , onde Pedralvarez surgiu co s outras naos & por
ser tal lhe pos nome PortoSeguro.
213
Damião de Góis considera que, para elaborar uma narrativa histórica, era de grande
importância realizar o registro mais completo possível dos acontecimentos. Daí que não se
descuide da ordem cronológica. Mesmo mudando de cenário, interrompendo a narrativa de
um assunto antes de concluí-lo, Damião de is demonstra, em seu texto, a importância de
o perder o fio condutor da hisria, como o trecho deixa transparecer:
[...] E, pois tenho dito ho que pude alcança dos caso, sitio, e Antigüidade
d’Arzilla, tempo he (ainda que em parte antecipasse ho fio, e ordem da
história) que torne aho que elrei dom Afonso fez depois de ter lançada
ancora diante desta villa.
214
Sendo assim, antes de iniciar sua narrativa, anuncia os passos que segui para que
sua narrativa possa ser considerada histórica. Além da linearidade, sua preocupação passa
também pela não inclusão do que seria supérfluo:
[...] que ho discuido do scriptor nam cegue gloria do que tratta, nem ho
desacostumado modo de dar cores desnecessárias aho que quer dizer faça
suspeita de pouca fé, e pareça ser tal scriptura mais imitaçam de
tragédias fabulosas, sob cor de verdade, que stylo histórico -- no qual se
requere certa noticia do que se tratta, e inteira no que se conta, e grande
prudência no que se screve.
215
.
A partir desses diferentes campos abordados pelo cronista para a elaboração de sua
obra histórica, podemos apontar que eles perpassam duas das principais características
formadoras da história de Damião de is e que amparam sua noção de verdade: a busca da
correspondência especular entre a escrita e os acontecimentos e o apelo ao testemunho
216
. A
primeira diz respeito à postura do cronista frente aos dados que levanta para construir seu
213
GÓIS, 1949a, pte. 1, p. 128.
214
Ibid., p. 65.
215
Ibid., sem paginação.
216
Acerca da questão da compreensão da verdade histórica como correspondendo à relação entre eventos e
narrativa antes das interpretações acerca da lingüisticidade da história, muitos autores já trataram. Sobre isso,
ver, entre outros, VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Tradução Antônio José da Silva Moreira. São
Paulo, 1971; KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. cap. 2.
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texto. Ele apenas fixa dados quando esses são adquiridos em fonte segura e podem ser
considerados como informação de confiança”. De certa forma, o autor é categórico, em seu
texto, ao afirmar que escolhe o que, segundo ele, é ou não próprio de se colocar na narrativa,
pois é dessa maneira que julga atingir a verdade no texto, isto é, a partir da escolha do que é
ou não importante de ser narrado. Tal preocupação do cronista fica evidente no trecho que se
segue: [...] & proseguindo eu nesta matéria per modo de compedio, escrevi no começo da
mesma Chronica, ho que achei ser mais importante a estas navegações, atte ho nascimemto
do Príncipe dom. Joam.
217
Passagens como essas são freqüentes em ambas as crônicas de is e indicam que o
cronista está sempre empenhado em demonstrar sua preocupação com a seleção do que
escreve e com a forma como o faz.
Junto a essa preocupação do cronista de fazer com que a escrita seja o duplo dos
acontecimentos, surge o segundo pilar do seu conceito de história e verdade: o testemunho. A
afirmação da verdade por Góis recorre diversas vezes às certezas do visto ou testemunhado. O
que o autor deixa transparecer em seus textos é que ele, melhor que ninguém, podia “dar
testemunho” do que colocaria nas suas crônicas. Esse privilégio é notado pelo uso de
expressões como, “eu vi”, mas também pelo acesso que afirma ter tido a certos documentos
comprobatórios das suas considerações. Vários são os momentos em que podemos notar tais
disposições, como por exemplo: Guardei este negoçio de dom Álvaro pêra este capitulo,
pera se ajuntar a estas cousas, por me parecer lugar mais conveniente quem nenhum outro
pêra dar testimunho do quem verdadeiramente toca a sua honra [...]”
218
De modo semelhante, em alguns casos, quando não é testemunha do fato, ele se utiliza
da transcrição de cartas ou documentos que comprovem o que está sendo escrito na crônica.
Vejamos um dos inúmeros exemplos existentes:
[...] atte a paragem do rio de Lopo Infante, das quaes bullas me pareçeo
desnecessário poer aqui ho treslado, ha hua por conterem muita lectura, &
outra porque quem per coriosidade hás quiser ler, hás achara na torre
do Tombo destes regnos, onde ho presente estão em meu poder.
219
Se esses trechos são ilustrativos do recurso a documentos, outros permitem notar o
papel do seu testemunho direto dos fatos narrados, como é o caso da seguinte passagem:
217
GÓIS, 1949a, pte. 1, op. cit., p. 47.
218
Ibid., pte. 3, p. 179
219
Ibid., pte. 1, p. 107.
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[...] mui assinados feitos, por respeito dos quaes lhe elrei Emanuel fez
merçes, dignas de seus serviços, no quem também continuou elrei dom João
seu filho, do esforço do quel cavalleiro posso em parte dar testemunho:
porque eu passei no anno de mil quinhentos, & vintatres deste regno pêra
Flãdes, [...].
220
Outro excerto é também exemplar do empenho do cronista em ressaltar-se como
testemunha do fato narrado, atestando assim a veracidade do que se está sendo narrado:
Este Infante dom Fernando [...] depois de ser homem de bem parecer, &
bem disposto, muito inclinado a letras, & dado aho studo das Histórias
verdadeiras, & imigo das fabulosas, & por haver hás verdadeiras
trabalhava muito, do que eu sou testemunha: porque estando em Flãndes
[...] me mandou pedir todalas chronicas quem se podessem achar scriptas
de mão, ou imprimidas, [...] has quaes eu mandei todas.
221
A partir de trechos como o acima citado, nota-se que o cronista utiliza-se
frequentemente de documentos retirados do Tombo para atestar a veracidade dos fatos e
transcreve-os sempre que julga necessário, pois, em vários momentos do texto, temos a
transcrição de cartas ou outros documentos, os quais preenchem várias páginas das crônicas.
Um exemplo prático desse tipo de uso é o encontrado no capítulo XCIII da Crônica do D.
Manuel, onde o cronista coloca uma carta escrita por um soldado da Babilônia ao Papa Julio
III.
222
:
A Sanctidade do Papa excelentíssimo, sanctissimo,spiritual,temente a Deos,
bem feitor dos Romãos na seita ãtigua dos Chistãos antre hos fieis de Jesu,
rei dos nazarenos,ou christãos, conservador dos mares, & enseadas
marítimas, pai dos Patriarchas, & dos Bispos, & sabedor pelos que lem hos
Evangelhos na sua seita, das cousas liçitas, & inliçitas, agradável ahos Reis
[[...]]. E pera que vossa sanctidade seja certo do que vos quero fazer saber
vos mando esta carta, pela qual sabereis, que todolos Christãos, & frades
que vem a nosso famoso regno, religioso, & peregrinos, ou quaesquer
outros, todos sam guardados, & conservados de nossa exçellente justiça,&
sei certo que sabendo vos isto, sabeis bem que ho Rei dos Catalães faz guera
no regno Dandaluzia, senhoreando ha dita província, mattando muitos
Mouros, trazendohos a duro, & áspero captiveiro, constrangendo alguns
delles per força a serem Christãos,&entrar na Fé nazarena, ho que nam he
liçito, nem na sua ,nem em outra alguã, & disto sei quem vos fezeram
muitos mouros do Ocçidente queixume, [...]
223
220
GÓIS, 1949a, pte. 3, op. cit., p. 98.
221
Ibid., pte. 2, p. 65
222
Ibid., pte. 1, p. 222-224.
223
Ibid., p. 222-223
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Não desses tipos de documentos se utiliza Damião de is no decorrer de suas
crônicas. Da mesma maneira que se utiliza de cartas e documentos oficiais como fontes de
informação, bem como atestados de verdade, o cronista utiliza-se de crônicas escritas por
outros pensadores e cronistas oficiais do reino lusitano, como, por exemplo, Duarte Pacheco,
João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, entre outros. Ou seja, vemos nosso cronista ler e
utilizar textos de contemporâneos seus e, ao mesmo tempo, de escritores que o antecederam.
Nos momentos em que Damião de is cita outros cronistas, especialmente seus
contemporâneos, como João de Barros e Castanheda, não vemos surgir qualquer tipo de
crítica. Ao contrário, esses aparecem apenas como fontes de pesquisa, servindo para aumentar
a veracidade dos fatos narrados ou então oferecer mais detalhes ao seu leitor sobre o contexto
narrado. quanto aos cronistas que lhe antecederam, na maioria dos casos, Damião de is
estabelece algum tipo de crítica a seus textos ou mesmo aos autores, como o caso de Rui de
Pina, o mais evidente alvo de sua críticas.
Da utilização de textos de autores que lhe são contemporâneos, podemos citar o
capítulo XXXVI, da quarta parte da crônica de D. Manuel, no qual o cronista trata de uma
armada portuguesa à Índia e recomenda ao seu leitor que leia João de Barros e Castanheda
para obter mais detalhes do fato, por serem esses especialistas nas viagens marítimas
portuguesas ao oriente. Góis escreve:
[...] & dom Luis de Guzmã se alevantou co ho gálea, fazendosse cossario ,
no qual tratto fez muitas cousas indignas de homem nobre, quem por serem
taes na diguo, remettendo ho lector aho quem disso contam Jam de barros,
& Fernam lopes da castanheda nas suas historias da Índia.
224
Dos cronistas que lhe antecederam, um exemplo que deve ser destacado é o capítulo
LXXII
225
da quarta parte da crônica de D. Manuel, em que Damião de is fala sobre o que
ele julga ser a verdadeira linhagem do conde D. Anriques, pai do rei D. Afonso Anriques e
sobre a qual, segundo o cronista, seus antecessores Fernão Lopes e Eanes Zurara, escreveram
de maneira incompleta.O cronista escreve:
Hua das cousas que me mais espantou desno tempo que comecei a revolver
livros foi a demasiada negligençia dos Chronistas destes regnos,& dos que
screveram hos livros das linhagens no que toca a progenia do Reis, assi da
parte delrei dom Afonso anriques primeiro Rei de Portugal, quomo da
rainha donna Maphalda sua molher, & trabalhado nisto tempo vim a
224
GÓIS, 1949a, pte. 4, op. cit., p. 93.
225
Ibid., p. 195-199.
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descobrir ho erro em que todos andavão cuidando que era há rainha dona
Maphalda filha do infante dam Afonso conde de Molina, filho delrei dom
Afonso de Castella, ou de dom Anrique conde de Lara, há qual senhora tenho
declarado no capitulo atras,quem he filha do cõde Amadeu de Moriana,
segundo do nome.Isto feito, que he ho que toca na verdade á progenia dos reis
destes Regnos da parte de donna Maphalda [...] no que assi quomo achei
pareceres, & openes differentes achei tamm muito trabalho pera com
verdade poder dizer cousa em que se tanto requeria trattala porque ho conde
dom Anrique pai delrei dom Afonso Anriquez dixeram alguns scriptores que
fora natural de Constantinopla, & outros a quem seguem nossos Chronistas,
dizem que foi filho segundo de hum rei de Ungria, sem lhe dizerem ho nome,
outros que era da terra de Lorraina [...].
226
Essa tendência nas crônicas goisianas à crítica aos antecessores parece ligada ao fato
de que o cronista quinhentista considera as crônicas dos quatrocentistas dotadas de poucos
dados e, conseqüentemente, privadas de uma "real verdade" dos acontecimentos. E esses
poucos dados, por sua vez, pelo que tudo indica, podem estar ligados à falta de oportunidade
que esses tiveram de fazer uso da experiência para respaldar a verdade. Nesse sentido, somos
levados a pensar que is não critica seus contemporâneos, pois esses também contam na
maioria dos casos com essa louvada experiência do visto, presenciado e atestado. Dessa
maneira, uma característica se destaca na forma como Damião de is concebe sua história:
escrever apenas o que pode de algum modo provar.
Dessa relação estabelecida por Damião de is com suas fontes de pesquisa, o que se
pode propor é que Góis aceitava os documentos que tinha em os e não os criticava, as
críticas, quando surgiam, eram diretamente aos autores dos textos. Tavares
227
e Hirsch
228
concordam que Damião de is tentava ser “imparcial” na análise dos documentos.
229
Hirsch
aponta, como exemplo para afirmar sua tese da imparcialidade em Damião de is, o trecho
no qual is relata o conflito entre o rei D. Manuel e o rei D. Fernando da Espanha. No texto,
o cronista mostra o visível desagrado do segundo personagem em relação ao primeiro.
230
Todavia, o uso desse termo para o período pode ser tomado como um tanto problemático para
a época em que encontramos o cronista a escrever, uma vez que a concepção de que a escrita
deveria colar-se aos fatos levava a certa naturalização da suposta verdade das fontes
utilizadas. Em lugar de falar em imparcialidade, como os referidos historiadores consideram,
o que nos parece menos anacrônico é destacar a preocupação do autor em narrar os fatos tal
como eles aconteceram e sua convicção de que seu empenho e vontade tornariam isso
226
GÓIS, 1949a, pte. 4, op. cit., p. 195
227
TAVARES, 1999, op. cit., p. 111.
228
Ibid., p. 239-240.
229
Os autores supracitados utilizam a palavra imparcial em seus textos.
230
GÓIS, 1949a, pte. 3, op. cit., p 98-100.
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possível. Daí, ele afirmar: em louvar ha historia, da qual tudo ho que dixeram foi sempre
muito menos do que se devia dizer[...]’
231
Outra recorrência que encontramos na narrativa de Góis é a forte presença da intervenção
divina nos feitos narrados em suas duas crônicas. Tavares
232
e Hisch
233
consideram que a
narrativa de Damo de Góis é repleta de tendências seculares e que o cronista não se utilizava da
intervenção divina em sua narrativa, pois, nas próprias palavras de Tavares, o “que nele imperava
era o elemento humano”
234
. A observação parece-nos problemática, pois é posvel notar que, na
constrão da narrativa de Damião de Góis, o elemento humano exerce papel preponderante, uma
vez que encontramos o registro e citações diversas de diferentes nomes de homens que
participaram diretamente nos feitos militares e marítimos portugueses, porém, encontramos
diversas referências à intervenção divina. Em inúmeros trechos da narrativa, o cronista confere o
sucesso ou insucesso dos feitos portugueses à vontade divina. Dentre essas passagens,
destaquemos, por exemplo: Deuse este combate desde pela manhã atte ho meo dia, à qual hora
hos imigos se recolherão pêra suas esçias, ficando hos nossos dado muitas gras a Deos póla
grade mer que lhes fezera”.
235
Ou, ainda, percebemos momentos em que, ao invés de o cronista colocar a intervenção
direta de Deus no fato narrado, fala de inspiração dada por Deus aos deres dos feitos militares,
como, por exemplo, a inspiração para que os portugueses saíssem vitoriosos, ou algo do gênero. O
trecho que se segue é um bom exemplo: [...] foi noite seguinte em que Deos inspirou aho
doutor Pareia revelar a elrei dom Afonso há treão que a ele estava ordenada.
236
Também no que diz respeito à intervenção divina, podemos notar que, na construção
do texto, a ligação de Deus com os feitos portugueses se de maneira direta em vários
momentos, ao ponto de vermos o autor afirmar que os próprios reis portugueses que se
dedicaram à expansão portuguesa são eleitos de Deus. Essa propensão o aproxima da
crostica medieval
237
, que, diga-se de passagem, foi em muitos momentos criticada por
Damião de is. Até mesmo a leitura miraculosa de eventos poticos pode ser lembrada no
que diz respeito à presença divina nas crônicas quinhentistas portuguesa. Sobre a própria
231
GÓIS, 1949a, op. cit., sem paginação.
232
TAVARES, 1999, op;. cit., p. 111.
233
HIRSCH, 2002. op. cit.
234
TAVARES, 1999, op. cit.
235
GÓIS, 1949a, pte. 2, op. cit., p. 53.
236
GÓIS, 1949b. op. cit., p. 148.
237
FRANCA, Susani Silveira Lemos. A relação entre Deus e o homem na visão dos cronistas medievais
portugueses. Revista Brasil de Literatura. Internet, 1999.
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subida de D. Manuel ao trono, escreve Góis que tal fato foi resultado de circunstâncias
milagrosas, desde seu nascimento, pois parece que houve em seu nasçimemto mystério”
238
.
O que, entretanto, pode diferenciar Damião de Góis de seus antecessores, que também
conferiam a Deus muitos dos feitos narrados, é que o peso dessa intervenção divina não
minimiza o desempenho dos portugueses e, em alguns casos, os próprios reis estiveram
presentes e atuaram nos eventos, levando ao sucesso dos portugueses, como ilustra o trecho
que segue: [...] Assim chamou invencível a D. João II porque o foi em todos os feitos de
guerra em que tomou parte, na tomada de Arzila, como na batalha de Toro, onde ele ficou no
campo[...]”
239
Damião de is também atribui uma parte dos sucessos marítimos portugueses ao
próprio estudo realizado pelos monarcas da expansão, estudos de autores da Antiidade que
os auxiliaram, nas palavras do cronista, a dar “certeza pêra ho mandar fazer”.
240
Questão que
pode ser exemplificada também com a passagem em que trata dos feitos do infante D.
Henrique na descoberta de terras pela costa africana:
E porque alem delle ser muim arriscado cavalleiro, era muim dado aho
studo das letras[...]pera milhor exercitar tam virtuosas artes, [...]com
tençam de chegar ao fim de seus pensamentos, que era descobrir destas
partes ocçidentaes navegação pêra Índia !oriental, qual sabia por
certo que fora já em outros tempos achada. E esta certeza que assi alcançou
do trabalho de seu studo, lhe fez commeter tamanho negoçio, e nam per
inspirações divinas, quomo alguas pessoas dizem[...].
241
No decorrer desse mesmo capítulo, vemos que o estudo a que o cronista se refere é o
que ele mesmo nomeou ser dos verdadeiros authores
242
, tais como Heródoto, cero,
Pnio, etc[...], ou seja, uma clara referência ao conhecimento clássico.
Um outro significativo elemento ou característica da crostica goisiana é a presença
de certo realismo, visível principalmente nas inúmeras descrões geográficas das localidades
mencionadas no texto, que mostram ao leitor detalhes que sugerem o seu profundo
conhecimento do que narra no texto. É possível notar, como em outros cronistas do culo
XVI
243
, a importância da descrição dos detalhes sobre os costumes e características dos povos
238
Todo esse capitulo o autor narra de forma milagrosa o nascimento e a subida ao trono do rei D. Manuel.
239
GÓIS, 1949a, pte. 1, op. cit., p. XVII.
240
GÓIS, 1949b, op. cit., p. 20.
241
Ibid., p. 20.
242
Ibid., p. 21.
243
Podemos incluir aqui Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia
pelosPortugueses.
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descobertos, bem como sua oportunidade de testar algumas das notícias chegadas sobre os
costumes, por exemplo, do Brasil:
[...] hai muitas hervas odoríferas, & medeçinaes, dellas diferentes das
nossas, entre hás quaes he quem chamamos de fumo, & eu chamaria
herva Sãcta, quem dizem quem elles chama Betum, de cuja virtude
poderia aqui poer cousas milagrosas, de quem eu vi experiência,
principalmente em casos desesperados, de aposthemas ulçeradas,
fistolas[...].
244
Tal realismo, presente nas crônicas de Damião de is, não é tão visível no que diz
respeito à descrição de personagens. Um caso exemplar, no nosso modo de ver, é a descrição
do aspecto físico e do caráter do próprio rei D. Manuel, lançado na crônica:
Foi elrei dom Emanuel homem de boa statura, de corpo mais delicado que
grosso, cabeça sobelo redondo, hos cabelos castanhos, testa
alevãtada, & bem descuberta delles, hos olhos alegres, entre verdes &
brancos, alvo, risonho, bem asombrado, hos brancos carnudos, & ta
cõpridos[...]Tinha voz clara, & bem entrada, era mui attentado no falar,
& mui honesto & discreto em suas praticas.
245
Aqui, a descrição de Damião de is se mostra muito colada à que fizeram os
cronistas quatrocentistas sobre os reis que abordaram, mas em outras páginas percebemos a
grande admiração que o cronista nutria pelo monarca português, apesar de o lhe ter
poupado algumas críticas e de ter deixado claro sua opinião de que esse também possuía
falhas como qualquer outro ser humano. Um exemplo que podemos citar a esse respeito é
aquele presente no capítulo dedicado à descrição sica e dos costumes do monarca, na qual o
autor deixa transparecer um “defeito do rei D. Manuel, comer de maneira rápida: Quando
comia, posto que fosse apressado no comer, nem por isso deixava de praticar, & disputar
com letrados quem sempre stavã a sua mesa”. Um outro exemplo é a qualificação que lhe
lança de ser uma pessoa sofrida e mansa, sugerindo, assim, ao leitor uma certa fraqueza do rei
português: “[...] foi sofrido, mãso, & clemente, perdoava façilmente qualquer desgosto que
tevesse dos que tocavasm a sua fazenda. & pessoa[...]”. Tal pensamento já é explicitado pelo
autor nas primeiras linhas de suas crônicas ao escrever que distribuiria louvores e censuras
independentemente do que ou de quem estivesse falando.
246
Esse princípio, ao contrário do
que ocorre no caso dos retratos, mostra já certo distanciamento dos referidos cronistas do
244
GÓIS, ,1949a, pte. 1, op. cit., p. 130,
245
Ibid., pte. 4. op. cit., p. 223.
246
Ibid., sem paginação.
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século anterior, que se empenharam acima de tudo em louvar reis e príncipes e outras figuras
de destaque, não citando seus defeitos como acontece especialmente em Zurara e Rui de
Pina.
No que diz respeito a esses perfis traçados, apenas para um aspecto notamos que
Damião de is revelou mais atenção: os assuntos religiosos. O caso mais relevante é o do
cardeal D. Henrique, cujo capítulo a ele dedicado foi todo modificado antes de ser impresso.
Houve um aumento significativo de páginas, bem como dos elogios ao cardeal. não se
elogios à Santa Inquisição, nem menções aos interesses humanísticos do cardeal que, segundo
consta, obteve aulas de nguas clássicas de Clenardo
247
. Tavares considera que o fato de
Damião de Góis ter sido um tanto discreto nas descrições a respeito do Cardeal supracitado é
devido ao fato de esse ainda estar vivo no momento da escrita do texto, uma vez que foi a
pedido do mesmo cardeal que o cronista escreveu as duas crônicas que aqui analisamos.
Vale também notar que Damião de is, mais do que os outros cronistas que se
ocuparam da tarefa de narrar feitos reais, revela uma verdadeira preocupação em completar
sua narrativa com a utilização de fontes estrangeiras, uma vez que, para isso, o cronista teve
diversas oportunidades quando esteve na Flandres, dado que uma de suas tarefas era a de
reunir as crônicas que encontrasse em qualquer língua, a pedido do infante D. Fernando,
irmão de D. João III, que desejava reescrever as crônicas dos reis da Espanha. Assim, Damião
de Góis investigou os antecedentes dos reinados de D. João II e de D. Manuel, os quais em
larga medida nos fornecem dados do seu próprio tempo. Dessa maneira, a Crônica do
Príncipe D. João é uma grande introdução ao estudo do reinado de D. João II, uma vez que,
nesse texto, o autor trata do período que vai de 1455 a 1481, isto é, do nascimento do Príncipe
D. João à morte de D. Afonso V, data em que o primeiro torna-se rei de Portugal. is,
porém, faz um recuo no tempo e fornece um resumo das descobertas desde a conquista de
Ceuta, em 1415 até 1455, ano em que se inicia a crônica. Outros cronistas portugueses
também já haviam dedicado seus trabalhos ao mesmo período, como Gomes Eanes de Zurara,
que escreveu sobre a conquista e exploração do norte da África pelos lusos; Rui de Pina, que
escreve sobre o reinado de D. Afonso V; João de Barros, com sua Década primeira, que
continha os relatos dos descobrimentos portugueses de 1415 a 1447. Zurara e Pina haviam
sido guardas-mores do Tombo. Zurara escrevera de 1449 a 1450 a Crônica da tomada de
Ceuta e mais tarde as crônicas do Conde D. Pedro de Meneses e a de D. Duarte de Meneses e
também a Crônica dos Descobrimentos e Conquista da Guiné. Rui de Pina dedicou a Crônica
247
Tais informações tivemos acesso pois a crônica consultada é uma obra comentada, e tivemos contato com o
texto original sem cortes, e podemos estabelecer um tipo de comparação.
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do rei D. Afonso V a D. Manuel, pois a redigiu durante o seu reinado. João de Barros usa
alguns desses textos como fonte para as Décadas da Ásia. Damião de is reconhece e faz
considerações sobre os trabalhos destes escritores cuja obra propõe complementar.
De tudo que ficou dito, podemos considerar que Damião de is não duvidou que a
empresa marítima portuguesa trouxe mais no potencial do homem, permitindo que os
conhecimentos se tornassem mais concretos, dado que sustentados na experiência. Pode-se
dizer que os seres e as coisas do mundo foram interpretadas de forma diferente no tempo de
Góis, ganhando uma nova roupagem e um valor mais terreno. E é essa “nova roupagem teve
seu lugar também na história contada a partir de então. Conforme tentamos perceber, Góis foi
um homem de influências múltiplas, que se preocupou em encontrar uma maneira de deixar
para a posteridade os feitos e acontecimentos de dois monarcas portugueses, não deixando de
lado, em momento algum, um novo protagonista, muito relevante do que esses reis na
trajetória expansionista lusitana: o povo português.
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CONCLUSÃO
De tudo o que ficou dito, podemos considerar que, a partir do século XVI, surge uma
nova postura dos homens de letras que se dedicam a registrar a memória do rei e da nação.
Com o Humanismo e a Reforma foram lançadas as sementes de novas formas de pensar, de
que são exemplo os escritos de Damião de Góis. Nesse momento, o homem passou a
depositar em si mesmo uma maior confiança, notável nos trabalhos levados a cabo pelos
maiores pensadores do Quinhentos, bem como na própria empresa expansionista, que veio
trazer novas questões para os autores dos mais diversos gêneros. Damião de Góis esteve entre
aqueles que não duvidaram que os sucessos expansionistas portugueses se deram em grande
parte devido às capacidades humanas, porém, sem descartar que a essas capacidades se
juntava uma dose de intervenção divina.
Vários autores quinhentistas alardearam que foi a partir dos descobrimentos que se
conheceram as terras antes apenas pressupostas pelos pensadores da Antiidade. Damião de
Góis fez coro com esses seus contemporâneos, anunciando que o tempo que lhe era dado iria
permitir saciar e esclarecer pela experiência o que outros apenas haviam imaginado. Exemplo
disso é a curiosidade que demonstra por terras e culturas diferentes e distantes do Velho
Mundo.
Ilustre representante dos homens letrados do seu tempo, Góis foi um
humanista/erasmita que se empenhou em posicionar-se no centro das discussões e
controrsias que o encontro com os novos mundos trouxe. O cronista opõe-se a seus
antecessores por almejar remodelar os conceitos e concepções trabalhados por esses na
preservação do passado por meio da escrita crostica.
Através das inúmeras citações apresentadas e discussões levantadas nesta pesquisa,
tentamos perceber, por um lado, os aspectos comuns que aproximam Damião de Góis dos
cronistas medievais, por outro, os aspectos que o diferenciam, atentando para as
peculiaridades de cada tempo histórico e de cada escritor.
Essas difereas e aproximações foram sobretudo notadas através da comparação
direta com o cronista português Rui de Pina, cronista alvo de inúmeras críticas proferidas por
Damião de is e também cronista considerado pela historiografia como protótipo da
transição entre o homem medieval e o homem moderno. A partir daí, buscamos achegas às
condições do fazer histórico que foi trilhado no alvorecer da Idade Moderna.
No exame desse processo, um objetivo entre cronistas quatrocentistas e quinhentistas
se mostrou perene: o de preservar o passado e a memória dos portugueses por meio da escrita,
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mais especificamente da crônica, e fazê-lo tendo como parâmetro a verdade. Mas já é possível
notar que, no século XVI, a verdade documental base em Fernão Lopes e a verdade
testemunhal base em Zurara dividem espaço com a verdade experiencial. E é possível
também notar como um cronista, alimentado por um saber livresco até então não visto em
Portugal, construiu uma história em que tenta já alçar vôos que não o restringem aos feitos
bélicos e governativos portugueses.
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