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MARILENE DA CUNHA RIBEIRO
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Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do título de Doutora em História do Programa de Pós-
Graduação do Curso de História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Moacyr Flores
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Porto Alegre
2008
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Bibliotecário Responsável
Ginamara Lima Jacques Pinto
CRB 10/1204
R484c Ribeiro,. Marilene da Cunha
A construção do imaginário da mulher brasileira na fronteira oeste
do Rio Grande do Sul : o que revelam os jornais do período de 1890 a
1910 / Marilene da Cunha . - Porto Alegre, 2008.
XXX f. 136
Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Programa de Pós-Graduação em História. PUCRS, 2008.
Orientador: Dr. Moacyr Flores
1. Imaginário. 2. Mulheres - Rio Grande do Sul -
História. 3. Jornalismo - Rio Grande do Sul - História.
4. Modernidade. I. Título.
CDD : 981.6505
MARILENE DA CUNHA RIBEIRO
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Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do título de Doutora em História do Programa de Pós-
Graduação do Curso de História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em 31 de março de 2008
Banca Examinadora:
Orientador: Prof. Dr. Moacyr Flores
PUCRS
Profª Drª. Margaret Marchiori Bakos
PUCRS
Profª Drª. Janete Abrão
PUCRS
Prof. Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos
UFSM
Prof. Dr. Teófilo Otoni Vasconcelos Torronteguy
UFSM
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AGRADECIMENTO
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À Universidade Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul PUCRS,
especialmente ao seu programa de Pós-Graduação Doutorado
em História pelo incentivo a pesquisa Histórica.
Ao meu Orientador, Dr. Moacyr Flores, pelo muito que me acrescentou em
aprendizagem e afeto, exemplo de educador e pesquisador.
A minha família, que sempre me apoiou e incentivou, com amor minha paixão pela pesquisa.
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“As mulheres são mais imaginadas do que descritas ou contadas, e fazer a sua
história é, antes de tudo, inevitavelmente, chocar-se contra esse bloco de
representações que as cobre e que é preciso necessariamente analisar,
sem saber como elas mesma as viam e as viviam...”
Michelle Perrot (2005).
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Pesquisar sobre a construção do imaginário da mulher brasileira na fronteira oeste do Rio
Grande do Sul, a partir do que revelam os jornais do período de 1890 a 1910, era um trabalho
que se revestia de relevância social ao contribuir para a reflexão e os estudos que se realizam
sobre a constituição da subjetividade do feminino no Brasil. No final do século XIX e início
do Século XX, o Brasil passou por uma série de transformações que implantaram
modificações arquitetônicas, mudanças nas relações de trabalho e até no lazer das pessoas.
Essas transformações vão desde a abertura de avenidas, destruição de cortiços, até o
asilamento cientifico e a cobrança de valores éticos e de posturas morais, principalmente do
sexo feminino. Ao investigar o imaginário feminino, pude comprovar que as mulheres
gaúchas da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, foram alvos de preconceitos e que, mesmo
assim, muitas lutaram pelo seu espaço, não se deixando moldar pelos padrões de moralidade
vigente na sociedade. Tenho por tese, que a mulher da fronteira oeste do Rio Grande do Sul
aprendeu, pela necessidade contextual da época, a desenvolver estratégias próprias de
construção de sua subjetividade que não a reduzem à representação apresentada pelo
imaginário popular, enunciada nos escritos da historiografia tradicional e cantada em verso e
prosa de maneira idealizada. Nesse sentido, sustento com base em Michel Foucault, que a
ação dos micropoderes de sujeição e de docilidade dos corpos pelo exercício do poder
disciplinador e moralizador é mais notável do que os efeitos negativos do poder de coerção,
repressão, exclusão, e de violência física ou simbólica do Estado.
Rcncxtcu/ejcxg<"Modernidade. Imaginário. Mulheres. Fronteira. Jornais.
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To research about the construction of the imagination of the brazilian woman in the west
frontier of Rio Grande do Sul from what was revealed by the newspapers of the period that
goes from 1890 to 1910, was a task that filled itself of social relevance by intending to
contribute in the reflexion and studies made about the constitution of the feminine’s
subjectivity in Brazil. At the end of the XIX century and the beggining of the XX, Brazil went
through a series of transformations that implied in architectural modifications, changes on the
work relations and even on people’s leisure. This transformations go from the opening of
avenues, destruction of tenements, even scientific isolation and the charge for ethical values
and moral postures, specially from women. By investigating the feminine imaginary I could
prove that the women from the west frontier of Rio Grande do Sul were discriminated against
and, even so, many of them fought for their space, not letting themselves to be moulded by
the morality standards current on the society. I have as thesis, that the woman form the west
frontier of Rio Grande do Sul learnt, by the contextual need of the time, to develop her own
subjectivity construction strategies, that does not reduce her to the representation shown by
popular imaginary, enunciated in the documents of traditional historiography and sung in
verse and prose in an idealized way. In that sense, I hold based in Michael Foucalt, that the
action of the micropowers of subjetcion and docility of the bodies by the exercise of the
moralizer and disciplinating power is more noticeable than the negative effects of the powers
of coertion, repression, exclusion, physic and symbolic violence from the State.
Mg{yqtfu: Modenity. Imaginary. Women. Frontier. Newspapers.
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Figura 1 - Ilustrações dos jornais que serviram como fontes de pesquisa ................................ 09
Figura 2 - Notícias que retratam o mundo feminino ................................................................ 22
Figura 3 - Sabonete Belladona invenção resguardada .............................................................. 44
Figura 4 – Sabonete Belladona ................................................................................................. 55
Figura 5 - Os cuidados com a saúde feminina .......................................................................... 60
Figura 6 - Notícias que ressaltam a organização familiar ........................................................ 70
Figura 7 - A mulher e a formação religiosa .............................................................................. 84
Figura 8 - A mulher e a cultura ................................................................................................ 93
Figura 9 - A mulher e a profissão ........................................................................................... 107
Figura 10 - Notícias do mundo feminino .............................................................................. 125
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Figura 1 - Ilustrações dos jornais que serviram como fontes de pesquisa
A importância de se investigar o contexto histórico e, nesse, as condições que
possibilitaram o surgimento de determinadas formas de discurso e de comportamento em
detrimento de outras, a partir de aspectos da cotidianidade retratada na literatura jornalística
de época, justifica-se pela necessidade de entendimento de discursos e de comportamentos
atuais que podem ter sua explicação de gênese naqueles tempos.
Tais subsídios podem proporcionar elementos que contribuem no entendimento e na
escrita da história pelo pesquisador. Isso porque, mesmo que, em alguns casos, não
constituam fontes para análise e compreensão de documentos históricos na perspectiva da
historiografia tradicional, podem ser, sim, fontes de sentimentos e emoções que denotam um
contexto por sua vez revelador de estruturas, de pensamentos e de comportamentos.
A linguagem literária, por exemplo, é mais leve, porque, mesmo utilizando-se de
dados de época, não é carregada do compromisso com um retrato exato daquilo de que trata.
Então, mesmo com uma linguagem mais leve e sem os requintes da cientificidade tradicional,
a literatura consegue falar de fatos ocorridos, registrados ou não, ou que poderiam ter ocorrido
em algum lugar; e poderá, por isso mesmo, ajudar o pesquisador em história na formação de
10
um imaginário sobre a época que ele estuda. O que entendo por história do imaginário é
referente a representações simbólicas aqui especificamente sobre as mulheres no período da
implantação da modernidade no Brasil, particularmente da fronteira oeste do Rio Grande do
Sul - cidade de Uruguaiana. Conforme afirma Leoni Serpa, na obra “A Máscara da
Modernidade”, as notícias, as diferentes colunas, a propaganda revelam o modo da construção
e da mentalidade sobre a modernidade, período no qual estão inseridas as mulheres.
Tal imaginário pode-se constituir no cenário em que ele, pesquisador, poderá situar
fatos circunstanciados a um tempo e a um espaço.
Na trama vivida pelas personagens literárias, verifica-se, ainda, toda a possibilidade
que um autor tem de fazer a denúncia de uma época, desnudando uma estrutura social. Assim,
protegido pelas personagens, o autor pode expor sua visão de circunstâncias, de mundo,
enfim, sua concepção de ideologia e da própria sociedade.
Numa perspectiva de conhecimento contrária à sua fragmentação e redução a ramos do
saber humano, é possível promover um diálogo entre a história e a literatura, em que se inclui
a jornalística. Isso não significa negar as especificidades de suas naturezas, em que é preciso
reconhecer e respeitar essa variável.
Significa entender que elas não são antagônicas nem superiores uma em relação à
outra. Significa, ainda, que estão em condições de interação, podendo influenciar-se
mutuamente e criar a possibilidade do surgimento de saberes menos fragmentados, menos
afetos a essa ou àquela disciplina ou área, mais abrangentes, mais fortalecidos e mais
inteligíveis, capazes de entrar em novas relações e ir aprimorando-se.
História e literatura, portanto, não são antagônicas e sim, complementares, necessárias
para, em relação recíproca de permuta de conhecimentos e de métodos de sua produção, gerar
novos conhecimentos que já não pertençam mais especificamente a uma ou a outra.
A literatura jornalística de época constitui uma importante fonte de consulta para uma
pesquisa histórica que pretenda compreender um determinado contexto, o qual se entende
como possível solo que permitiu a emergência de certos imaginários.
A leitura atenta não só das grandes manchetes, mas também a observação de reclames
e de pequenas notas sociais ou de informação geral permitem que se recrie, no imaginário, o
contexto que se quer compreender.
Por isso, tudo o que está escrito nos jornais de maneira estampada e também aquilo
que não está escrito, mas que se distinguem como possíveis enunciados, é precioso para o tipo
de trabalho investigativo de natureza histórica. Tais enunciados são reveladores de uma
sociedade que existe, mas que não está estampada nos textos de maneira explícita. Uma
11
sociedade que se oculta e não se quer revelar, ou, ainda, que se revela por máscaras e
maquiagens lingüísticas.
A chamada nova história, sendo mais fácil compreendê-la pelo que ela nega (BURKE,
1992, p. 10), mostra-se como uma reação à forma de fazer história e de escrever em história
pelo paradigma determinista ou tradicional que alimentou e ainda continua a alimentar certa
cientificidade.
Na pesquisa fundamentada no paradigma científico tradicional, há uma separação
entre sujeito e objeto, em que o pesquisador tem a pretensão de ficar neutro em relação à parte
da realidade por ele investigada. Busca-se, ainda, o isolamento dessa parte em relação ao
todo, muitas vezes descontextualizando-a. A objetividade no trato com o objeto e na produção
dos resultados do processo de pesquisa firma-se como marcas que devem ser a garantia de que
a pesquisa foi científica e que, por isso, são passíveis seus resultados de ser generalizados.
Na perspectiva de um outro paradigma, mais holístico, a realidade é muito complexa e
a pesquisa não pode carecer de considerar a subjetividade do pesquisador. Sujeito e objeto não
existem mais como nos modelos da investigação tradicional. O pesquisador interfere na
realidade e é por esta interferido. A parte não se separa do todo, mas também não se perde
nesse todo e o todo não é descaracterizado pela parte.
Não se trata aqui de generalização de resultados, mas de probabilidades. A
comunicabilidade entre os conhecimentos é fundamental e as teorias têm permissão para
serem, inclusive, aproveitadas em outros momentos e contextos diferentes daqueles em que
foram produzidas.
A nova história surge, assim, contextualizada num tempo em que o paradigma
dominante já dá sinais de esgotamento ao não conseguir responder adequadamente às
perguntas que são colocadas por uma realidade que se mostra cada vez mais complexa.
Segundo Burke (1992, p. 11), é possível entender que a história, conforme o paradigma
tradicional, referencia-se, sobretudo, à política passada. Num novo paradigma, emergente, é
possível entender que a nova história não se reduz à política, mas compreende o interesse por tudo
o que diz respeito à atividade humana. Em outras palavras, tudo é história: “tudo tem um passado
que pode, em princípio, ser reconstruído e relacionado ao restante do passado”.
De acordo com seu raciocínio, “a base filosófica da nova história é a idéia de que a
realidade é social ou culturalmente constituída” (BURKE, 1992, p. 11).
A nova história tem, também, uma dimensão narrativa, mas não se reduz a ela.
Também reconhece feitos que se transformaram em fatos históricos, mas entende que tudo é
construído e reconstruído coletivamente num jogo de interesses.
12
Sobre a importância dos documentos, não a nega, mas reconhece e previne-se, pois os
registros ditos oficiais também são frutos de uma construção e expressam somente “o ponto
de vista oficial”, pois, segundo Burke (1992, p. 13), “para reconstruir as atitudes dos hereges e
dos rebeldes, tais registros necessitam ser suplementados por outros tipos de fontes”. Para
esse autor, na nova história, o tipo de pergunta que o historiador faz é outro: não mais
personaliza o endereçário, mas estende o questionamento a um endereçário coletivo.
Também, na perspectiva desse autor, a nova história discute a objetividade, na
apresentação dos fatos, tal qual eles deveriam ter acontecido. Enfim, ainda é possível
compreender sobre a nova história e os novos pesquisadores que, conforme Burke (1992,
p. 16):
Sua preocupação com toda a abrangência da atividade humana os encoraja a ser
interdisciplinar, no sentido de aprenderem a colaborar com antropólogos sociais,
economistas, críticos literários, psicólogos, sociólogos, etc.. Os historiadores de arte,
literatura e ciência, que costumavam buscar seus interesses mais ou menos isolados
no corpo principal de historiadores, estão, agora, mantendo com eles um contato
mais regular. O movimento da história vista-de-baixo também reflete uma nova
determinação para considerar mais seriamente a opinião das pessoas comuns sobre
seu próprio passado do que costumavam fazer os historiadores profissionais. O
mesmo acontece com algumas formas de história oral. Neste sentido, também a
heteroglossia é essencial à nova história.
Michel Foucault também foi autor que nos ensinou a olhar a História e a Filosofia da
História com outros modos. Para entender a forma de discursos e comportamentos sociais nas
questões da loucura, da Medicina, do sistema prisional e, ultimamente, da ética, ele remontou
a épocas históricas determinadas, por entender que o solo epistemológico onde se poderiam
encontrar explicações para nossa atualidade, ali se verificava.
Em “Vigiar e Punir”, por exemplo, em que apresentou o poder disciplinar como
tecnologia capaz de promover, no aspecto da positividade do poder, indivíduos dóceis com
comportamentos previsíveis, pelo esquadrinhamento dos corpos e das atitudes em tempos e
espaços minuciosamente definidos, faz-nos entender que o sistema de aprisionamento previsto
para reintegrar, depois de um tempo, os indivíduos ao convívio social falhou. A explicação
para essa falha e para a atual mentalidade do sistema carcerário ocidental ele vai buscar no
entendimento das estruturas sociais do campo epistemológico, que proporcionaram a
emergência desse sistema.
De minha parte, no que tange à pesquisa que realizei, penso que uma possível
explicação para a constituição de um imaginário feminino brasileiro, que se verifica na
13
fronteira oeste do Rio Grande do Sul, pode ter suas raízes no solo em que se construíram as
primeiras bases de modernidade no País.
Tive, para mim, que pesquisar sobre a construção do imaginário da mulher brasileira na
fronteira oeste do Rio Grande do Sul, a partir do que revelam os jornais do período de 1890 a
1910, era um trabalho que se revestia de relevância social ao pretender contribuir para a reflexão e
os estudos que se realizam sobre a constituição da subjetividade do feminino no Brasil.
No final do século XIX e início do século XX, o Brasil passou por uma série de
transformações que implantaram modificações arquitetônicas, mudanças nas relações de
trabalho e até no lazer das pessoas. Essas transformações vão desde a abertura de avenidas,
destruição de cortiços, até o asilamento científico e a cobrança de valores éticos e de posturas
morais, principalmente do sexo feminino.
Devemos, contudo, entendê-las dentro de um contexto mais amplo, ou seja, dentro da
implantação da modernidade no Brasil e de sua nova ordem moral, não desconhecendo o fato
de que reproduzia o fenômeno burguês europeu.
A análise de textos encontrados em jornais da época pode contribuir para o
entendimento do solo em que foi possível a constituição de uma determinada subjetividade
feminina no país. Incluem-se, aqui, as condições de surgimento dos traços identitários da
mulher da fronteira oeste do Rio Grande do Sul.
Pretendi, ao investigar sobre o imaginário feminino, demonstrar que as mulheres
gaúchas da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, foram alvos de preconceitos e que, mesmo
assim, muitas lutaram pelo seu espaço, não se deixando moldar pelos padrões de moralidade
vigente na sociedade.
Situei, então, a geografia de minha pesquisa na tgikçq"fc"Htqpvgktc"Q guvg" fq" Tkq"
Itcpfg" fq" Uwn, mais precisamente na cidade de Uruguaiana, durante a última década do
século XIX e a primeira do século XX.
Justifico minha opção histórico-geográfica por aceitar que, à época, Uruguaiana tinha
características que a diferenciavam no cenário gaúcho e nacional: foi a única cidade fundada
pelo governo Farrapo, como uma importante estratégia da revolução no combate ao império -
porque sua localização geográfica permitia fácil intercâmbio com outros países do Prata; foi
elevada à categoria de cidade somente em 1874, constituindo-se em marco fundamental na
história brasileira quando do cerco das tropas paraguaias à então pequena vila de Uruguaiana;
desde 1870 funcionou em Uruguaiana, até 1908, um colégio misto de rapazes e moças, de
inspiração huguenote, dirigido por um mestre-escola francês oriundo de Lyon, na França, mas
que na vila chegara via Uruguai, e que educava na sociedade uruguaianense com métodos e
14
conteúdos que estudara no seu país de origem; o constante e notável intercâmbio com a
Argentina, o Uruguai e o Paraguai, fazendo muitas expressões em espanhol e português, a
maneira de vestir, de se alimentar, de cantar e de dançar, e tipos de comportamento social/
moral, transitarem livremente entre cidades vizinhas nesses países e em solo brasileiro; a
situação geográfica privilegiada, que permitia à cidade o reconhecimento de ser um ponto de
estratégia militar fronteiriça; entre tantas outras características.
Digno de registro, também, é o fato de que, na época, Uruguaiana tinha a influência de
imigrantes e viajantes europeus, como franceses e alemães que a ela chegavam muitas vezes
indiretamente, oriundos de outros países do Prata, além de latino-americanos, oriundos
especialmente da Argentina e do Uruguai.
Acrescente-se, ainda, que missionários metodistas norte-americanos começam a
chegar na cidade na primeira década do século XX, com o objetivo de fundar uma Igreja e de
desenvolver trabalhos também na área da educação. Nessa área, os missionários metodistas
norte-americanos adquiriram o colégio do professor francês - que o dirigia há mais de trinta
anos -, e passaram do método francês ao método americano de ensino.
Ora, isso tudo, de forma inegável, teria contribuído na construção de uma nova
sociedade e, nela, de uma nova mulher.
Nesse contexto, de passagem de um século para o outro, penso que foi inevitável que
surgissem variáveis significativas de subjetivação na constituição do imaginário feminino
brasileiro, na região da fronteira oeste do sul do país.
Por essas razões até aqui expostas, justifico a importância desse estudo, na perspectiva
de contribuir com a teorização sobre a história das mulheres em nosso país, apoiando-me em
referencial foucaultiano.
Procurei, então, pelas condições de surgimento da construção do imaginário da mulher
brasileira na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, acreditando que circunstâncias geográficas
e históricas específicas dessa região podem ter-lhe conferido traços específicos no contexto
gaúcho e, por extensão, no contexto brasileiro.
Com minha pesquisa pretendi compreender, pela leitura de jornais de época,
fundamentos do imaginário das mulheres brasileiras na fronteira oeste do Rio Grande do Sul,
analisando como se retrata a condição feminina num contexto histórico que impunha valores
morais rígidos dentro de uma visão burguesa nascente no País.
Para tanto, tratei de construir conhecimentos necessários não só para compreender
criticamente uma condição feminina circunstanciada a uma época, mas principalmente, para
encontrar indicativos que pudessem contribuir no estudo do processo histórico de
15
emancipação feminina no Brasil. Nesse sentido, é que busquei, nos jornais da época,
impressões da vida do universo feminino, próprias do contexto histórico que eles
noticiavam , que evidenciassem as formas como eram feitas as descrições desse universo.
Também me preocupei em verificar que compreensões sobre a condição do feminino
brasileiro foram construídas à época, a partir da análise do solo histórico que favoreceu o
surgimento de determinados discursos e práticas de comportamento social em detrimento
de outras, noticiadas em jornais.
Busquei, ainda, constatar a possibilidade do uso do texto jornalístico de época como
uma possível fonte para compreender o retrato da condição feminina e, com isso, demonstrar
a importância do diálogo entre a história e o texto jornalístico no âmbito da pesquisa histórica.
Isso, na perspectiva de fundamentar minha idéia da necessidade de, em história, muitas vezes,
se estudar a realidade social expressa nas notícias e reclames dos jornais, que evidenciam
indicativos sobre a condição feminina à época. Tudo isso na perspectiva de, ao ler os jornais
de época, buscar indicativos que permitissem produzir um conhecimento sobre a constituição
do imaginário da mulher da fronteira.
Caracterizo minha pesquisa como sendo de natureza qualitativa. A pesquisa
qualitativa, por permitir um comportamento mais holístico pelo pesquisador, amplia a
possibilidade de achados durante a sua realização. Ela permite que o pesquisador não se sinta
afetado pelo condicionante da neutralidade científica imposto pelo paradigma positivista.
Sentindo-se mais à vontade para lidar, descrever, fazer suas inferências e interpretar
seus achados, o pesquisador vai construindo, por assim dizer, o seu objeto de pesquisa, ao
mesmo tempo que também vai sendo construído por esse objeto, à medida que as suas
percepções vão sendo modificadas ou, até mesmo, confirmadas.
A postura do investigador que se vale da abordagem qualitativa em sua pesquisa não
significa, no entanto, que esteja isenta de uma metodologia cuidadosa que lhe permita tratar
cientificamente de seu campo de estudo. Pelo contrário, o investigador que faz tal opção está
ciente de que a objetividade, mesmo que não aquela defendida pelo paradigma da ciência
positivista, precisa ser observada embora reinterpretada.
Os resultados alcançados com esse tipo de pesquisa, embora possam sofrer a crítica de
apresentarem dificuldades para serem generalizados, na perspectiva tradicional de se fazer
pesquisa, são tratados no prisma de probabilidades.
Por fim, na opção que fiz pela pesquisa de natureza qualitativa, num paradigma
diferente daquele que tradicionalmente dá as diretrizes da pesquisa positivista, tive
oportunidade de movimentar-me mais à vontade, não ficando reclusa a certos procedimentos
16
dito científicos que impedem a criatividade do pesquisador na lida com sua pesquisa.
Pensando assim, foi possível, então, tratar meu objeto de apreciação numa perspectiva
foucaultiana, que permitiu olhá-lo não apenas como um documento, mas como um
monumento, isto é, sob ângulos diversos, rodeando-o, cercando-o por todos os lados e de
diferentes distâncias - assim como fazemos diante de uma obra de arte, por exemplo.
Meus estudos focalizaram a tgikçq fc" htqpvgktc" qguvg" fq" Tkq" Itcpfg" fq" Uwn,
precisamente a ekfcfg"fg"Wtwiwckcpc.
Uruguaiana é uma cidade fundada na segunda metade do século XIX, às margens do
Rio Uruguai que faz divisa entre Brasil e Argentina.
Do outro lado do rio, em território argentino, encontra-se a cidade de Paso de Los
Libres, também cidade de grande relevância na história do país vizinho. As duas cidades,
Uruguaiana e Paso de Los Libres, ligam seus dois países pela Ponte Internacional, construída
em meio ao século XX.
As influências são recíprocas entre as duas cidades. O gaúcho argentino e o gaúcho
brasileiro têm muitos traços em comum, o que é possível de se compreender quando se estuda a
história da composição das fronteiras dos países do Prata. Vestuário, expressões típicas do
linguajar, culinária, música, dança, folclore, lidas campeiras de pecuária e de agricultura
conservam alguns traços comuns, embora possuam em cada país algo que as diferencia entre si.
Penso que essa influência recíproca, encontrada nesses aspectos, entre outros que se
poderiam listar, contribuiu, também, na construção do imaginário da mulher gaúcha brasileira,
o que permite pensar suas características como dotadas de algumas singularidades em relação
às outras mulheres gaúchas e brasileiras em geral. Por esse entendimento é que tenho como
campo de estudo a cidade de Uruguaiana, na fronteira oeste gaúcha.
Organizei a bibliografia necessária para a redação do meu referencial teórico, valendo-
me de obras que tratassem direta ou indiretamente de tematizar a história das mulheres
brasileiras e de obras que servissem de subsídio histórico para situar a temática. No decorrer
da pesquisa, naturalmente, poderiam surgir questões que precisariam ser tratadas a luz de
outras leituras, de outras obras. Não desconheci essa possibilidade.
A fonte específica da literatura jornalística para coletar os dados necessários à minha
pesquisa, focalizando a região da fronteira oeste do Rio grande do Sul, foi constituída,
primordialmente, dos jornais, que circulavam a época na cidade de Uruguaiana, como “C"
17
Pqvîekc."Q"Iwctcp{"g"C"Pcèçq”.
1
Através da leitura desses jornais procurei por indicativos da questão que sistematizei
em separatas de trechos e as submeti à uma Análise de Conteúdo, desenvolvendo categorias
que me permitiram teorizar sobre o que os jornais locais revelavam sobre a mulher no período
de 1890 a 1910 que contribuísse para a compreensão da formação do imaginário regional da
ownjgt"dtcukngktc"pc"htqpvgktc"qguvg"fq"Tkq"Itcpfg"fq"Uwn.
Tenho, por tese, que c"ownjgt"fc"htqpvgktc"qguvg"fq"Tkq"Itcpfg"fq"Uwn aprendeu,
pela necessidade contextual da época, a desenvolver estratégias próprias de construção de sua
subjetividade que não á reduzem à representação apresentada pelo imaginário popular,
enunciada nos escritos da historiografia tradicional e cantada em verso e prosa de maneira
idealizada. A mulher que surgiu da leitura dos jornais não se reduz à figura que é cantada em
verso e prosa pelo cancioneiro popular rio-grandense. A mulher da fronteira oeste não é tão
somente a mulher campesina, acostumada às lidas do campo, seja na qualidade de mulher do
peão, do capataz ou do estancieiro. Nem apenas a viúva que teve que administrar, sozinha, o
campo, a família e os peões e suas mulheres. A mulher da fronteira também se revelou
negociante no comércio local, professora nos vários estabelecimentos de ensino urbano ou na
zona rural, mulher com formação especializada em área médica e não apenas parteira por
formação vivencial, mulher religiosa, mulher que participava intensamente da vida social
tentando acompanhar as últimas tendências que lhe chegavam da Europa via Buenos Aires, po
meio das companhias teatrais e de outras apresentações artísticas que na cidade eram
realizadas. Com isso, procurei desmistificar a imagem de que a mulher fronteiriça seria a
mulher do campo somente, reduzindo essa imagem à figura da mulher do peão ou do
fazendeiro. Havia, sim, mulheres no campo tal como são descritas no imaginário tradicional
poético de algumas músicas e da literatura mais tradicional rio-grandense dos romances. Mas
os jornais pesquisados revelam também uma mulher que desfila com roupas de moda na
igreja e nos salões sociais, que se mostra, participando da vida social. Revelam, ainda, uma
mulher marginalizada, atuando em companhia masculina e sendo alvo da moral e da lei com
seu olhar implacável. Aparecem, também, mulheres que desenvolvem formas estratégicas de
enfrentamento da moral burguesa vigente, optando, algumas vezes, pelo próprio suicídio. Os
jornais revelam não apenas a mulher campeira, evocada na música “Campesina”, mas
1
Realizei minha pesquisa, coletando dados primordialmente nos jornais A Nação, A Notícia e O Guarani, da
cidade de Uruguaiana, no período compreendido de 1890 a 1910. Tais jornais se encontram nas coleções
organizadas e guardadas pelo Centro Cultural Dr. Pedro Marini, nessa cidade.
São coleções que precisaram ser manejadas com grande cuidado, porque o seu estado de conservação assim o
exigia, não só pelo fato de que o papel ficara bastante prejudicado com o passar do tempo e manuseio, como
pela sua importância histórica ao se encontrar poucos exemplares ainda hoje.
18
apresenta mulheres. Por isso, não se trata de a mulher da fronteira, mas de ownjgtgu" fc"
htqpvgktc.
Nessa problemática, entendi que a submissão e a reação feminina brasileira aos
valores da moralidade burguesa, que são perceptíveis em enunciados ainda hoje existentes,
contidos nos discursos e práticas das mulheres e sobre elas, encontram as condições que
permitiram o seu surgimento em detrimento de outros durante a implantação da modernidade
no País, com a derrocada da monarquia e o advento da República.
Nesse sentido, sustento, com base em Michel Foucault, que a ação dos micropoderes
de sujeição e de docilidade dos corpos pelo exercício do poder disciplinador e normalizador é
mais notável do que os efeitos negativos do poder de coerção, repressão, exclusão, e de
violência física e simbólica do Estado.
Tais condições foram analisadas a partir de enunciados contidos em ocvêtkcu"
lqtpcnîuvkecu"fq"rgtîqfq"fg"3:;2"c"3;32.
Procuro, então, demonstrar que os enunciados contidos nos discursos e nas práticas
sociais sobre a condição feminina brasileira, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, de
submissão e reação aos valores morais burgueses da atualidade podem ter sua origem e
condição de surgimento no solo da implantação da modernidade no País.
Baseando-me em reflexões inferidas das leituras analíticas e interpretativas dos jornais
da época
2
e cruzando-as com a bibliografia consultada, busquei compreender a construção do
imaginário do universo de mulheres no Rio Grande do Sul, especificamente da região da
fronteira oeste. Para apresentar minha compreensão, construí seis textos, na forma de
capítulos.
No primeiro capítulo, intitulado “C" Ownjgt" g" c" Xkqnípekc" Hîukec" qw" Ukodônkec”,
analisando aspectos constituintes do imaginário sobre o universo feminino na fronteira oeste
do Rio Grande do Sul, por meio de jornais que contemplam, aproximadamente, os anos de
1890 a 1910, foi possível conhecer aspectos importantes da condição de mulheres na cidade
de Uruguaiana e região, no que diz respeito à dimensão da violência nessa época.
Nesse capítulo destaquei notícias de três jornais (C"Pcèçq."C"Pqvîekc"g"Q"Iwctcp{)
que retrataram uma realidade que me pareceu muito comum numa sociedade que impunha
seus valores machistas e que se utilizava, para tais fins, não raramente, da força física ou
simbólica no tratamento dado às suas mulheres.
2
Os três jornais consultados foram: O Guarany, A Nação, e A Notícia, publicados na cidade de Uruguaiana.
19
As matérias sistematizadas para estudo não esgotam o que se pode dizer a respeito da
questão da violência sofrida por mulheres, seja ela praticada direta ou indiretamente sobre a
sua pessoa. Mas, no entanto, ilustram como a partir dessas notícias veiculadas pelos jornais se
ia construindo todo um imaginário a respeito da condição feminina na fronteira oeste do Rio
Grande do Sul.
O recorte geográfico para análise em que tais fatos se deram não significa a
desconsideração do contexto maior do país. Pelo contrário, serve, inclusive, para perceber
como, apesar das peculiaridades locais, a mulher fronteiriça era alcançada de alguma forma
ou de outra pela violência que também sofriam outras mulheres no país.
Nas notícias jornalísticas analisadas foi possível verificar a violência sofrida por
mulheres da fronteira na forma de tentativa de suicídio ou de efetivo suicídio, por motivos
pouco detalhados e esclarecidos pela imprensa local. São cinco casos, que falam de amor não
correspondido, calúnia sofrida, motivos não explicitados, até uma situação em que não se
distingue se trata de um desastre ou crime praticado por outrem. Os meios utilizados nos
casos coletados da publicação pela imprensa local envolvem o envenenamento e o incêndio.
Podemos destacar, ainda, que da análise feita sobre esses casos, constituindo o
primeiro capítulo, reflete toda uma condição discriminatória na apresentação das notícias.
No segundo capítulo, “Ucûfg" g" Dgng|c" Hgokpkpc0" C" swg" rtgèqA”, observando a
forma como se publicavam notícias referentes aos aniversários de mulheres, casadas ou
solteiras, foi possível perceber a presença de muitos enunciados que ainda hoje persistem no
imaginário da dimensão do feminino. Nesse capítulo, evidencio toda a questão do cuidado
feminino com a manutenção da saúde e beleza de seu corpo na perspectiva da mulher
necessária aos novos tempos republicanos no País, em que se buscava mostrar a mulher como
importante corpo saudável, preparado para gerar outros corpos saudáveis aos novos tempos
pela manutenção de uma família saudável, como evidencio no capítulo seguinte.
Nesse capítulo, denominado “A Condição do Feminino na Organização da Família”,
procuro mostrar o lugar ideológico ocupado pela mulher na perspectiva do ideário
republicano de modernização do País. Para tanto, apresento como a figura da mulher era
utilizada para reforço da ideologia dominante de europeização do País. Nela, o seu papel bem
definido de responsável pela organização da casa, da família e da manutenção da saúde do
marido e filhos era peça fundamental. Afinal, a ela era atribuída a função de mãe dos filhos
necessários à nova ordem do capital.
No quarto capítulo, “C"Tgnkikçq" pc"Hqtocèçq" fc" Ownjgt”, a sua participação nas
práticas religiosas constituía-se aprendizado muito valorizado para sua formação social. A
20
importância de ser ligada ou vista em eventos, que vão desde a celebração de festas até as
cerimônias fúnebres, estava na composição do estatuto de sua boa educação. Mostra a mulher
como aquela que se dedica ao outro, pois faz parte de sua essência feminina o caráter
solidário, já que sua vida deve ser compartilhada, mas também abnegada e submissa à
vontade das outras pessoas. Assim, não tendo muito tempo para se perceber como uma
mulher que tem desejo, e necessidades próprias, dava menos trabalho aos familiares.
Aproximando-se dos santos e santas, assimila uma vida sem malícia ou pecados, segundos os
preceitos religiosos.
No quinto capítulo, “Ewnvwtc"g"hgokpknkfcfg”, a vida cultural uruguaianense pode-
se inferir pelas matérias analisadas dos jornais da época , era muito ativa. Não são raras as
notícias que divulgam e convidam as pessoas que vivem nessa cidade para se fazer presentes,
prestigiando os artistas que se apresentavam a um público que lhes era muito assíduo. O
capítulo todo é contextualizado na dimensão da Belle Époque, um período que compreende o
espaço de 1890 até 1920. Nesse contexto, era preciso apresentar o país como novo, um país
que seria viável à aplicação do capital estrangeiro. Para tanto, nas estratégias de mostrar um
país que se modernizava e se desejava apto a acompanhar os passos da modernidade européia,
encontrava-se aquela de transmitir aos homens e mulheres brasileiros não só teorias e
ideologias que lá transitavam, mas também a moda e os modos de comportamentos de um
dito “mundo mais avançado”.
No sexto capítulo, “C"Ownjgt"g"Owpfq"fq"Vtcdcnjq”, finalizo mostrando como a
mulher era vista pela sociedade nessa questão. A mulher da fronteira-oeste não se distanciava
do contexto brasileiro à época de modernização, pois o padrão referencial para atividades
comerciais, por exemplo, era o oferecimento de produtos em lojas trazidos da Europa.
Mulheres tinham atividades comerciais herdadas por viuvez ou por herança; mas também
outras mulheres, por não terem uma família construída nos moldes do ideário religioso,
positivista e republicano da época , poderiam ser tidas como de comportamento suspeito,
aumentando assim a discriminação sobre as mulheres pobres.
Cabe dizer, finalmente, que havia, ainda, mulheres tanto as das estâncias como as
que herdaram o comércio do marido , que, para manter a família e exigir o respeito dos
outros, rompiam com a imagem frágil das mulheres, e mostravam força e coragem para
enfrentar uma sociedade machista, elitista e católica que às mulheres reservava um papel
passivo, de aceitação. Essa conduta diferencia-se assim das mulheres que se suicidaram, por
21
não conseguir viver numa sociedade tão esquadrinhada e que limitava sua vida a regras de
disciplinarização e docilização, que iam do convívio familiar ao social e à negação do desejo.
Os jornais da época revelaram, também uma mulher forte, guerreira, nada passiva, ou
dócil e obediente como muito se exaltou. O que não nega a presença muito grande de
mulheres que usufruíram de uma vida rodeada de cuidados e sem autonomia, vivendo só para
a família e o marido.
Grupos teatrais, oriundos de países como a Argentina, que pela região passavam em
direção ao centro do País, também influenciaram, acredito na construção da imagem que a
mulher e a sociedade em geral iam fazendo da condição feminina na implantação da
modernidade no País.
22
4"C"OWNJGT"G"C"XKQNÙPEKC"H¯UKEC"QW"UKODłNKEC"
"
"
"
Figura 2 - Notícias que retratam o mundo feminino
Analisando aspectos constituintes do imaginário
3
sobre o universo feminino na
fronteira oeste do Rio Grande do Sul, por meio de jornais que contemplam aproximadamente
os anos de 1890 a 1910, foi possível conhecer aspectos importantes da condição de mulheres
na cidade de Uruguaiana e região, no que diz respeito à dimensão da violência nessa época.
Contextualizando a questão em tela, é possível visualizá-la melhor na dimensão da
Belle Époque.
Durante a Belle Époque (1890-1920), com a plena instauração da ordem
burguesa, a modernização e a higienização do país despontaram como lema dos
grupos ascendentes, que se preocupavam em transformar suas capitais em
metrópoles com hábitos civilizados, similares ao modelo parisiense. Os hábitos
populares se tornaram alvo de especial atenção no momento em que o trabalho
compulsório passava a ser trabalho livre. Nesse sentido, medidas foram
tomadas para adequar homens e mulheres dos segmentos populares ao novo
estado de coisas, inculcando-lhes valores e formas de comportamentos que
3
Entendo, relativamente à noção de imaginário, os sistemas simbólicos, as visões de mundo, os discursos e
representações adquiridas, defendidas, valorizadas, na construção da compreensão e da expressão de uma
realidade.
23
passavam pela rígida disciplinarização do espaço e do trabalho e do tempo do
trabalho, estendendo-se às demais esferas da vida.
As imposições da nova ordem tinham o respaldo da ciência, o paradigma do
momento. A medicina social assegurava como características femininas, por razões
biológicas: a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as
intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal. Em oposição, o
homem conjugava à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora,
racional e uma sexualidade sem freios. As características atribuídas às mulheres
eram suficientes para justificar que se exigisse delas uma atitude de submissão, um
comportamento que não maculasse sua honra (SOIHET, 2002, p. 362).
No presente capítulo, destaco notícias de três jornais (C" Pcèçq." C" Pqvîekc" g" Q"
Iwctcp{)
4
, que retrataram uma realidade que me pareceu muito comum numa sociedade que
impunha seus valores machistas e que se utilizava, para tais fins, não raramente, da força
física ou simbólica no tratamento dado às suas mulheres.
As matérias aqui sistematizadas para estudo não esgotam o que se pode dizer a
respeito da questão da violência sofrida por mulheres, seja ela dada direta ou indiretamente
sobre a sua pessoa. Mas, no entanto, ilustram como a partir dessas notícias veiculadas pelos
jornais se ia construindo todo um imaginário a respeito da condição feminina na fronteira
oeste do Rio Grande do Sul.
O recorte geográfico para análise em que tais fatos se deram não significa a
desconsideração do contexto maior do país. Pelo contrário, serve, inclusive, para perceber
como, apesar das peculiaridades locais, a mulher fronteiriça era alcançada de alguma forma
ou de outra pela violência que também sofriam outras mulheres no país.
Nas notícias jornalísticas analisadas foi possível verificar a violência sofrida por
mulheres da fronteira na forma de tentativa de suicídio ou de efetivo suicídio, por motivos
pouco detalhados e esclarecidos pela imprensa local. São cinco casos, que falam de amor não
correspondido, calúnia sofrida, motivos não explicitados, até uma situação em que não se
distingue se trata de um desastre ou um crime praticado por outrem. Os meios utilizados nos
casos coletados da publicação pela imprensa local envolvem o envenenamento e o incêndio.
O que podemos destacar da análise feita sobre esses casos reflete toda uma condição
discriminatória na apresentação das notícias. O fato é praticamente o mesmo: o crime de
atentar contra a própria vida. Ora, numa sociedade fortemente enraizada na tradição judaico-
4
Segundo VILLELA, Urbano Lago. Wtwiwckcpc."cvcnckc"fc"râvtkc: o homem, o meio e a história. 2. ed.
Canoas: La Salle, 1971, p. 208, em 1879 surge o jornal “Guarany” de Luiz Xavier da França e Abel Pires de
Oliveira, aparecendo, ainda um “Guarany” de Prado Wensty e Eustáquio Durant no ano de 1891. O autor
registra também “A Noticia” (sic) de Antonio Augusto de Azevedo, datado de 1899, e ainda a edição de
Aristides Pereira da Silva em 1901. Por sua vez, “A Nação”, do Dr. Antonio Augusto de Carvalho, é
apresentada com data de 1905.
24
cristã, esse crime, levado a efeito ou não, significa um pecado muito grave, porque o seu autor
chama para si algo que é privilégio do Criador: dar e tirar a vida. Ao Criador cabe o
julgamento de quando tirar a vida e os meios para que isso seja feito. É um direito exclusivo
do Criador e não da criatura. Portanto, contrariando todos os princípios contidos nas sagradas
escrituras dessa tradição, seja nos textos do Antigo quanto do Novo Testamento, a pessoa que
o pratica está envolta em pecado que, segundo os ensinamentos religiosos, implica a
condenação de sua alma ao inferno: porque chamou para si algo que não lhe pertencia na
ordem natural dos acontecimentos. A pessoa usurpou um direito que não lhe pertencia, isto é,
exerceu um poder sobre si mesmo que não poderia, em hipótese, alguma exercer.
Ora, o que se percebe é que, mesmo sendo esse o fundamento ético-religioso da
condenação de tal ato de suicídio levado a efeito ou não, o tratamento dispensado pela
sociedade ao publicá-lo pela imprensa escrita era diferenciado. Se não, vejamos: “Hoje em
Uruguayana, foi medicada a parda Francisca Pereira de 14 annos de idade, que por motivo de
amores mal correspondidos tentou contra a própria existência ingerindo forte doze de Lysol”
(A Nação, de 30 de abril de 1920).
Nessa notícia da menina de 14 anos de idade, que, por “amores mal correspondidos”
atentou contra a própria vida, a informação é superficial, sem referência à sua família e sem
maiores preocupações com os detalhes, pois se refere a uma parda. Ora, o que representava
uma mulher parda numa sociedade elitista, senão uma pessoa de pouquíssimo poder
econômico?
Mesmo tendo um sobrenome, a menina, por ser parda, não foi poupada pela
jocosidade da imprensa ao publicar a notícia: “por motivo de amores mal correspondidos”. O
que significava esse “mal correspondido?” O jornal não dá detalhes. Poderia ser o caso
simplesmente de ela estar apaixonada por alguém, quem sabe um branco, que não lhe
correspondia? Mas, quem sabe, também, poderia ser o caso de ter sido iludida - por esse
mesmo branco - com promessas de uma vida melhor - cedendo seu corpo a esse amor que
teria que ser escondido? E se, cedendo, tivesse engravidado e, diante da impossibilidade de
ser assumida resolveu acabar com sua “desgraça” para não aumentar sua miséria? A
imprensa, na nota publicada, não dá detalhes, apenas a jocosa afirmação - até mesmo como
uma punição; porque a imprensa ao publicar se dá o direito de assim punir - de que ela não
mereceu o amor de quem esperava ser correspondida.
A imprensa se torna mais discriminatória e elitista nessa questão, repito, em que a
condenação da tentativa ou do ato efetivo desfruta da mesma fundamentação e inapelabilidade
25
judaico-cristã da época, quando publica outras duas notícias de moças que também incorreram
nessa condição:
Suicidou-se em S. Borja, em dia do corrente mez, uma distinta senhorita que era um
dos ornamentos da sociedade S. Borjense. Esse fato causou ali grande consternação,
pois a suicida pertencia a distinta família daquella localidade. (
A Nação, 30 de
setembro de 1905: Suicídio).
“Ahi para as imediações do quartel, informam-nos, uma menina de família, tentou
suicidar-se ingerindo dose de veneno. Não sabemos qual o motivo da tentativa” (A Nação,
1905).
A primeira dessas notícias registra o suicídio de uma “distinta senhorita que era um
dos ornamentos da sociedade S. Borjense”, o que causou “grande consternação, pois a suicida
pertencia a distinta família daquella localidade” (A Nação, 1905). Na segunda, informa-se que
nas imediações do quartel “uma menina de família” tentou o suicídio. Comparando, percebe-
se que à parda não foi dignada a condição de menina (tinha 14 anos de idade apenas) e,
mesmo possuindo um sobrenome, não lhe foi feita consideração à família. À parda foi
atribuído o preconceituoso motivo de “amores mal correspondidos”; às outras duas nem se
cogita o porquê. À parda foi acentuada a expressão “tentou contra a própria existência”; às
outras duas usou-se apenas a palavra suicídio. Também daquela foi dito que ingeriu “forte
doze de Lysol”, enquanto da primeira das outras duas nem se disse como foi realizado o
suicídio, e da segunda apenas que ingeriu “doze de veneno”.
Três mulheres moças, uma parda e pobre, uma que era um dos ornamentos da
sociedade e uma menina de família, na comparação das notícias, revela-se, com seus casos
noticiados, o tratamento desigual e preconceituoso a influir na construção do imaginário sobre
a condição feminina na época.
A discriminação à condição econômica e social por parte da imprensa continua a ser
facilmente percebida quando se lê e se compara com outras duas notícias a nota “Necrologia”
do jornal C" Pcèçq, de 11 de outubro de 1905, que informa o suicídio de uma senhora da
sociedade dizendo que ela “poz termo à existência”, ao ingerir “uma substância tóxica”. A
notícia, após esse impacto, usa os qualificativos “excelentíssima” e “digna esposa” do
“laborioso artista Sr”, o que imediatamente desqualifica um primeiro julgamento por parte de
quem lesse a matéria de que se trataria de alguém desequilibrado:
26
Amanda M. Ferreira. Em o dia 7 do corrente poz termo à existência, ingerindo uma
substância tóxica a Exmª Sª Amanda Marinho Ferreira dos Santos. Digna esposa do
Laborioso artista Sr. Angelo Ferreira dos Santos.
Ignoram-se os motivos que levaram-na a prática de tal acto de desespero.
O corpo da inditosa senhora foi acompanhado até a Igreja Matriz por grande número
de pessoas. Após os ritos estabelecidos pela Igreja Cattolica foi o féretro conduzido
a mão até o lugar onde achava-se o coche fúnebre, que foi acompanhado ao
cemitério por vários carros replecto de pessoas da amizade da extincta. As pessoas
da família da desventurada senhora enviamos sentidos pezames (A Nação de 11 de
outubro de 1905: Necrologia).
Nota-se, aqui, que não se fala em suicídio, mas de pôr termo à existência - nas
matérias anteriores se tratava de dizer que era suicídio ou atentado contra a própria vida.
Também não se diz que foi envenenamento, mas que se tratava da ingestão de uma
“substância tóxica”. Os cuidadosos requintes utilizados na produção da notícia chegam ao
ponto de qualificar o fato como um “acto de desespero”, levando ao entendimento de que os
motivos não poderiam ser julgados porque “ignoram-se”. Mas a redação do texto não quer
condenação, ela quer compadecimento, quer compaixão e absolvição para a “inditosa
senhora”, haja vista que seu corpo foi ritualizado na Igreja Matriz com acompanhamento de
um “grande número de pessoas”, sendo levado até os últimos atos no cemitério por “vários
carros replectos de pessoas da amizade da extincta” (extinta, não suicida). Ao jornal, zeloso
da transmissão dessa notícia, coube juntar ainda o envio dos “sentidos pezames” às pessoas da
família da “desventurada senhora”.
No que diz respeito, portanto, à “Exmª Srª Amanda Marinho Ferreira dos Santos”, que
pôs fim à sua existência, a situação é tratada como uma “fatalidade”, sem motivos aparentes,
comovendo grande parte dos habitantes dessa cidade.
Na expressão utilizada para apresentar esse acontecimento, “pôs termo à existência”,
as palavras suicídio e atentado contra a vida são substituídos por termos menos pecaminosos,
pois uma senhora casada, de família, certamente religiosa, não pecaria contra a Madre Igreja.
Geralmente, justificava-se nesses casos, alguma doença que assolou sua existência e que num
ato de fraqueza entregou-se à morte. Seria essa a situação?
Por sua vez, C"Pcèçq, de 7 de outubro de 1910, publica também como sendo um “acto
de desespero”, mas sem os requintes de redação que transformaram a primeira mulher em
alguém digno de pena, que uma “Joana de Tal” em rixa com uma outra mulher, parda, de
nome Maria da Glória, xingou-a de ladra e que esta, sentindo-se moralmente ofendida em sua
dignidade “num momento de desespero, embebeu as vestes com Kerozene, ateou fogo” em si
27
mesma vindo a falecer horas após. Não houve uma única palavra sobre o sentimento de
ofensa sofrida pela mulher parda, apenas o informe lacônico do acontecido.
Joana de Tal, em uma rixa que teve com a parda Maria da Glória, residente em um
rancho situado na costa do Uruguay chamou-a de ladra. Maria, num momento de
desespero, embebeu as vestes com kerozene, ateou fogo; fallecendo horas depois (A
Nação, de 7 de outubro de 1910: Acto de Desespero).
À mulher da notícia anteriormente mencionada, excelentíssima e digna esposa de um
laborioso artista, foram concedidos qualificativos que aliviariam o julgamento de seu também
“acto de desespero”. Mas, e a esta, que também sentiu-se desesperada, que não se valeu, quem
sabe, de uma “substância tóxica” por não ter dinheiro para adquiri-la, talvez, e assim suicidar-se
com requinte, mas apenas de uma lata de “Kerozene” que era mais barata, o que se disse? Nada.
Numa leitura superficial, não faltaria à época quem pudesse exclamar: “que bobagem,
só por isso alguém se matar [...]”. Ou, dizer: “Ah! Deve ser por outro motivo [...]”. Mas, se
levarmos em conta quem era essa mulher - uma parda, pobre, sem estudo, na maioria das
vezes sem família que, quem sabe, quantas vezes teve que enfrentar ou fingir não perceber
olhares desconfiados a seu respeito só por ser parda e pobre - é possível imaginá-la tendo que
enfrentar mais uma discriminação: parda e ladra; numa sociedade que não perdoa gente
pobre, parda e mulher. Era muito para uma só pessoa agüentar e, nesse caso, a saída que
Maria da Glória achou foi a morte. De uma foi dito apenas que se chamava Joana “de Tal” e,
da outra, Maria “da Glória”, sem sobrenomes importantes que as ligassem a um também
importante nome masculino.
Pior, ainda, a condição da notícia sobre a mulher encontrada carbonizada em seu
“pequeno rancho”:
Hontem as 11 horas da noite, mais ou menos, ali para os lados do velodromo, foi
chamada a attenção da polícia, pelos signaes de incêndio que d’aquelles lados
partiam. Alli chegada a patrulha que mais próxima se achava, encontrou, de facto,
um pequeno rancho que estava preso em chamas.
No interior delle um dos moradores, uma mulher, que tinha-se deixado ficar ou a
isso fora forçada, encontrava-se em estado de completa carbonização. A policia
efectuou uma prisão no local. Ficam-nos as notas colhidas pelo repórter dessa folha
que acompanhou todos os passos da autoridade, para ser amanha fornecida
minuciosa noticia aos nossos leitores (A Notícia, de 17 de outubro de 1905: Desastre
ou Crime).
28
Diz a notícia que fora encontrada “no interior delle um dos moradores, uma mulher,
que tinha-se deixado ficar ou a isso fora forçada”. Não se identifica a mulher e nem a pessoa
que fora presa. Mas, como o fato é chamativo da atenção pública, o jornal finaliza que no dia
seguinte será fornecida “minuciosa notícia” aos seus leitores, afinal, tratar-se ia de um
“desastre ou crime”?
O que é possível perceber nessas notícias aqui elencadas, é que se tratam de atitudes
discriminatórias. São mulheres, de uma mesma região, que atentam contra sua própria vida.
A divulgação, via jornal, aconteceu, porém, com cuidados diferenciados. A redação
não é a mesma. Embora tenham sido fatos semelhantes, as justificativas, escritas nos
periódicos, apresentam diferentes formas de organizações de idéias, visto que são mulheres
que não pertencem ao mesmo grupo social e que, portanto, não partilham dos mesmos
direitos, mesmo sabendo que às mulheres os direitos são restritos e controlados pela Igreja,
pela família, pelo marido, pelo Estado, e também pela própria imprensa escrita - basta
observar as notícias redigidas.
Mas não é somente a violência física ou simbólica que é possível perceber nesses
jornais. Compreendo que o suicídio, nesse período pesquisado, pode ser visto como um dos
instrumentos que algumas mulheres da fronteira também utilizaram como estratégias de
enfretamento contra restrições impostas as suas atuações e desejos tantas vezes negados a
elas, seja de forma simbólica ou não, até mesmo assimilado, mas nem por isso aceito.
Os valores éticos e morais, que foram criados para organizar critérios de convivência,
à época são tão fortes e interiorizados pelas mulheres, a ponto de levar ao desespero,
principalmente pessoas que vivem tão pressionadas por grupos que ditam as regras, que não
poucas vezes, por medo, pavor e desprotegidos de direitos , agridem a si mesmos tirando
sua própria vida.
Nessa temática da violência, seja física ou simbólica, analisei também a apresentação
de notas policiais do período que dizem respeito a prisões e a registros de mulheres, por
motivos que vão desde a desavença com vizinhos até estados de embriaguez, quase sempre
acompanhadas de parceiros do sexo masculino, ou de furtos, de desordens e atos de ofensa à
moral e aos bons costumes da época. Também encontrado, nessas notas policiais, o registro de
um apelo às autoridades para a segurança em via pública quanto ao assédio sexual. Foram
notas coletadas que contribuíram de maneira significativa para a compreensão da questão da
violência da qual as mulheres eram alvo na sociedade de então.
Vale lembrar, aqui, a observação feita por Soihet (1999, p. 363), ao analisar processos
criminais sobre mulheres, quando nos possibilita ver que uma das fontes para encontrar
29
informações sobre os marginalizados pela sociedade são as páginas policiais. Nelas,
encontramos muitas referentes às mulheres.
Mas como penetrar no passado dessas mulheres que praticamente não deixaram
vestígios de seu cotidiano? Durante largo tempo, somente os feitos dos heróis e as
grandes decisões políticas eram considerados dignos de interesse para a história. A
partir de 1960, juntamente com outros subalternos como camponeses, os escravos e
as pessoas comuns, as mulheres foram alçadas à condição de objeto e sujeito da
história. Porém, a dificuldade em se obter fontes para buscar reconstruir a atuação
das mulheres é desalentadora. Não existem registros organizados. No tocante às
mulheres pobres, analfabetas em sua maioria, a situação se agrava. Entretanto, no
meio dessa aridez, a documentação policial e judiciária revela-se material
privilegiado na tarefa de fazer vir à tona a contribuição feminina no processo
histórico. Dessa forma, embora buscando informações em jornais, periódicos e
escritos literários, elegemos os processos criminais como fonte principal. A sua
utilização revela-se fundamental para podermos nos aproximar do cotidiano de
homens e mulheres das classes populares. Constituem uma das poucas alternativas
nesse esforço de desvendar as preocupações e táticas relativas à sobrevivência,
crenças, às aspirações, aos conflitos e solidariedades entre familiares, amigos,
vizinhos; às expectativas e exigências quanto ao relacionamento afetivo, enfim, às
regras que norteavam sua existência e conformavam sua cultura.
As páginas policiais dos jornais C"Pcèç q"g"C"Pqvîekc, na época, registram vários fatos
ocorridos que culminaram ou na prisão ou no registro de mulheres por atos considerados ilegais.
Na análise das notícias colecionadas, em que se diz dos registros policiais sobre
mulheres, encontram-se referências generalizadas àquelas pobres e de comportamento
moralmente condenável pelos costumes da época.
Nessa perspectiva, a análise pode-se valer da contextualização do que era visto
também em outras partes do País:
O Código Penal, o complexo judiciário e a ação policial eram os recursos utilizados
pelo sistema vigente a fim de disciplinar, controlar e estabelecer normas para as
mulheres dos segmentos populares. Nesse sentido, tal ação procurava se fazer sentir
na moderação da linguagem dessas mulheres, estimulando seus “hábitos sadios e as
boas maneiras”, reprimindo seus excessos verbais.
A violência seria presença marcante nesse processo. A análise do caráter multiforme
da violência que incidia sobre as mulheres pobres e das respostas por ela
encontradas é fundamental. Cabe considerar não só a violência estrutural que incidia
sobre as mulheres, mas também aquelas formas específicas decorrentes de sua
condição de gênero; esses aspectos se cruzam na maioria das situações (SOIHET,
2002, p. 363).
30
O jornal C" Pqvîekc, em fins do século XIX, publicou o caso da prisão de quatro
mulheres por motivo de embriaguez e desordem social. No primeiro informe, ambos de
mesma data, jocosamente comunica que “passaram mal acomodadas em noite do dia [...]”
Roza Francisca e Clara Rodrigues, pelo motivo de andarem em “grossa pandega
aguardentada” e, no segundo, que “foram recolhidas ao Quartel da Guarda Municipal”, pelo
motivo de “desordem no becco”, as “ilustríssimas Maria Ciria e Maria da Conceição”:
Também passaram mal acomodados em noite do dia 12 do corrente, no mesmo
ponto acima, Roza Francisca e Clara Rodrigues por andarem em grossa pandega
aguardentada.
(A Notícia, de 19 de outubro de 1899)
Foram recolhidas ao Quartel de Guarda Municipal no dia 4 do corrente, por
desordem no becco as illustríssimas Maria Ciria e Maria da Conceição (A Notícia,
de 19 de outubro de 1899).
No jornal, ao se referir às duas mulheres como “illustríssimas”, além de denunciar que
foram recolhidas pela polícia e declarar o motivo, ou seja, desordem no beco, é possível,
talvez, entender-se que a expressão “ilustríssimas” esteja aqui se referindo a duas mulheres já
bastante conhecidas da comunidade, o que não significa que sejam de um nível social mais
alto, visto que este tipo de postura não poderia ser comum nas mulheres consideradas de
comportamento invejável e modelo a ser seguido.
Ofensa à moral e aos bons costumes, embriaguez e desordem parece ser o trio de
motivos de vários recolhimentos ao cárcere de mulheres que se encontravam fora do circuito
social dominante, acompanhadas de homens nessa época. É o caso dos registros encontrados
em várias publicações dessa época.
Por ordem do sr. Subtenente do 1º distrito, foram recolhidos a correcional:
Conceição Cordeiro, Gabriel de Araújo, Francisco Estupa, por embriaguez; Ramão
Lemos, por embriaguez e desordem; Mafalda Prado e Ubaldina de Freitas, por
desordens (A Notícia, de 25 de setembro de 1905).
Foram recolhidos a sub-intendencia do 1º Distrito. Dia 20. Maria Olibia, Conceição
Neves e Rosa Rodrigues Neves, por ofensa a Moral e desordem” (A Nação, de 21 de
dezembro de Notas Policiaes).
Os registros mostram mulheres tendo atitudes bem opostas, a de uma figura delicada e
frágil que fica perdida frente a qualquer situação que fuja a seu enquadramento familiar.
31
Percebemos, por essas notícias, mulheres sendo autuadas ou presas por atentar contra o pudor e a
moral, desequilibrando a ordem estabelecida com motivos como embriaguez, briga de rua e furto:
Foram recolhidos a Sub-intendencia do 1º distrito: Dia 9 - Victorino Nóbrega -
dia 10 - Mauricia da Rosa - dia 11- Camões Taborda de Nicolau Cardozo, dia
12- Dorothea Fernandes d`Oliveira, Estevão da Silva, Felix Maria Menson,
Cezar Brauqui, Laudelino Lama, João Aguirre, Florêncio Rodrigues, Victalino
Soares, Paula Gomes, Ângelo Maydana e Victalina Aguirre (A Notícia, de 13 de
janeiro de 1906).
Movimento da sub-Intendencia de 5 a8 do corrente: presos por embreagadez, Izidro
Silva, Manoel Leal, Joaquim Candido de Oliveira e Ambrozio Carvalho.
Preso por furto, Santiago Losmo. Chamados para averiguações: Luiz Ferreira, Joana
Soares, Ozoriolina C. de Carvalho, Sophia Rodrigues Bianchi, Izidoro Mara e
Severino Soares. Pagou a multa de 10$ por infração do art. 86 das Posturas Urbanas,
Manoel Leal (A Nação, de 1º de maio de 1911: Notas Policiaes).
"
"
Ursula de Menezes e João Rugerio, presos por furto e entregues ao Snr. Dr.
Delegado de polícia; João de Deus Souza e Manuel Rodrigues, presos por
embriaguez e desordem... Foram chamados para averiguações: Faustina Larré,
Alcibíades de Oliveira, Silvestre Nunes, Julio Cunha, Maria Rita, Maia Joanna
Barbosa, Maria Pires, Solomé e Francisco Gick (A Nação, de 11 de maio de 1911).
À vista da população, tanto masculina como feminina, isso tudo era um escândalo
quando são as mulheres suas protagonistas ou acompanhando homens nessas empreitadas.
Por outro lado, quanto às outras mulheres, consideradas “de sociedade” evidencia-se
outra atitude: a preocupação dos homens de imprensa que acreditavam que as mulheres
eram tão indefesas quanto as crianças , mobilizava e chamava a atenção dos poderes legais
da sociedade para que se recolhesse um indivíduo de apelido “pianinho”, que estaria a
desrespeitar as moças e senhoras da cidade, antes que fosse tarde, porque mulheres indefesas
não podiam se defender sozinhas.
Pediram-nos chamássemos a especial atenção da policia para o individuo conhecido
pelo alcunha de “pianinho” que, fazendo-se de louco deu para abraçar, na rua, às
pessoas que vai encontrando, logo que sejam do sexo frágil.
Nestes últimos dias, nas proximidades do porto o “pianinho” tem tomado o dinheiro
das crianças que encontra, caminho das vendas conforme nos relatou para passar
bem e que a polícia precisa dar-lhe um sério corretivo. (A Nação, de 7 de outubro de
1919: Vistas à Policia).
32
Isso parece mostrar que essa imagem tão frágil e abnegada de mulher foi criada para
convencer e impor um modelo de comportamento ao universo feminino, mas que não pode ser
absorvido por todas as mulheres, por diferentes motivos. Por isso, constato que não podemos
falar em mulher, mas, sim, em mulheres.
Suas atitudes e comportamentos disciplinados ou não dependem dos níveis sociais a
que pertencem ou pretendem compartilhar ou viver, pois as regras de convivência de um
grupo social para o outro são diferentes. Os valores morais e os princípios éticos são mais
fortes dependendo do nível social, intelectual ou econômico, e isso não é difícil de perceber.
Acho que é isso que nos encanta ao estudarmos o comportamento social, porque nos
possibilita desvendar um leque de normas que são criadas para a convivência em sociedade.
Quero destacar aqui, ainda, que as transformações nas atitudes disciplinares e de
posturas impostas à sociedade não são flexíveis apenas no que diz respeito aos aspectos
econômicos e sociais, mas, também, fortemente impulsionadas a mudanças, dependendo das
necessidades humanas da época; ou seja, com o tempo essas regras variam, modificam-se,
podendo haver uma flexibilização ou uma maior rigidez.
Geralmente as mulheres de comportamento “irregular” estão acompanhadas numa lista
em que aparecem denúncias masculinas, porém, não se destaca uma linhagem de parentesco,
pois os sobrenomes são diferentes, o que não descarta a possibilidade de serem companheiros,
visto que pessoas que possuíam pouco ou nenhum poder aquisitivo não casavam legalmente,
apenas moravam juntos (“ajuntados”). Para tanto, não devia ser comum assumir o nome do
companheiro, uma vez que essa exigência de sobrenome fazia parte do código do mundo das
camadas mais ricas da sociedade, que assim colocava a mulher sob os cuidados e proteção de
seu marido. Por outro lado, as “Marias de Tal” não desfrutavam muito da proteção econômica
de seus homens, pois tinham que “batalhar” junto deles para sobreviver.
Mas, também, poderia ser possível observar, segundo Soihet (1999, p. 368) nos faz ver
no contexto do projeto republicano de modernização acelerada do País, que a violência
doméstica podia-se fazer presente sobre a mulher pobre:
O homem pobre, por suas condições de vida, estava longe de poder assumir o papel
de mantenedor da família previsto pela ideologia dominante, tampouco o papel de
dominador, típico desses padrões. Ele sofria a influência dos referidos padrões
culturais e, na medida em que sua prática de vida revelava uma situação bem diversa
em termos de resistência de sua companheira a seus laivos de tirania, era acometido
de insegurança. A violência surgia, assim, de sua incapacidade de exercer o poder
irrestrito sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de fraqueza e impotência
do que de força e poder.
33
Essa explicação se completa pelo fato de que a tais homens, desprovidos de
poder e de autoridade no espaço público no trabalho e na política, seria
assegurado o exercício no espaço privado, ou seja, na casa e sobre a família.
Nesse sentido, qualquer ameaça à sua autoridade na família lhes provocava forte
reação, pois perdiam os substitutos compensatórios para sua falta de poder no
espaço mais amplo.
Assim, defender-se sozinha era o mínimo que faziam em qualquer situação que viesse
a se apresentar no seu cotidiano, o que não significa que também não tivessem suas normas e
regras de convivência e de respeito. Seria o caso da mulher noticiada pela imprensa como
apedrejadora da casa do seu vizinho?
Desde o 1º do corrente que o comerciante desta praça Sr. João Manoel Mussi,
notava que eram jogadas, a horas tardias da noite, grande quantidade de pedras sobre
as portas e sobre o telhado de sua casa.
Depois de uma enorme vigilância, pode descobrir que a autoridade dessa
“innocente”, brincadeira era uma mulher!
Immediatamente o Sr. Mussi deu parte do ocorrido ao sub-intendente municipal. (A
Nação, Locaes, de 6 de janeiro de 1906).
O diferencial, no entanto, é que elas tinham que enfrentar de frente os problemas,
impondo com uma postura própria um respeito para viver num mundo tão desigual e tão
injusto, o que não é difícil de perceber, quando lemos as notícias expostas dos jornais dessa
época, pois o furto poderia ser uma forma de sobrevivência pela prática de atitudes que, após
a ingestão de álcool, realizassem não pelo simples prazer de desafiar a lei e querer, sem
compromisso, correr riscos.
Um dos motivos mais comuns na prisão ou recolhimento de mulheres pelas
autoridades policiais da época era a bebida alcoólica. Se nos detivermos na análise das notas,
podemos confirmar que tanto tais homens quanto essas mulheres bebiam muito e que sempre
acabavam tendo problemas com a polícia, o que não era comum com as mulheres das classes
média e alta da sociedade, pois se tinha muito “cuidado com a aparência”, porque dela
dependia um bom casamento - o que nem sempre preocupava as mulheres que não nasceram
numa família de posses.
Mas não só problemas de amor ou policiais as mulheres da fronteira oeste do Rio
Grande do Sul, à época, enfrentaram.
As páginas jornalísticas trazem, em seus artigos, alguns destaques de mulheres
escravas, que aos poucos conquistavam sua liberdade por meio das cartas de alforria que
34
recebiam ou compravam de seus senhores. Existem notícias sobre mulheres negras ou pardas
que são libertas por seus senhores:
Carta de Liberdade. Justiniano Belarmino Ribeiro, 1º suplente do juizo de órfãos
desta cidade Uruguayana.
Faz saber que, em observância ao disposto na última parte do art.42 do regulamento
a que se refere o decreto, nº 5: 135 de 13 de novembro de 1872 foram entregues, em
publica audiência do dia 6 do corrente, as cartas de liberdade, pelo fundo de
emancipação à preta Silvana e à parda Maria, por intermédio do seus senhores (O
Guarany, 1883: Editais).
Liberdade concedida pelo fundo de emancipação ou sem ônus algum, mas também, às
vezes, sob o compromisso de continuarem prestando serviço na antiga casa de servidão por
mais algum tempo, ou, duramente conquistada por economias de anos que lhes permitiam
comprar sua liberdade. Também se verifica que, às vezes, tal concessão era feita em conjunto
com a alforria dada a um escravo do sexo masculino ou à prole.
A carta de alforria era concedida tanto pelo homem proprietário de escravos quanto
pela mulher que os tinha nessa condição, mas também por herdeiros abolicionistas de antigos
senhores de escravos.
Justiniano Berlamino Ribeiro supplente do juízo de [...] os faz saber que de
conformidade com o disposto na ultima parte do art. 42 do regulamento a que se
refere o dec. n
o
5153 de 13 de novembro de 1872, foram entregues em publica
audiência do dia 17 do corrente mez, por intermédio do seus senhores, as cartas de
liberdade pelo fundo de emancipação, à parda Thomazia, escrava de José Caetano
da Silva, à parda Mathilde, escrava de d. Egracia Alves da Conceição; à preta
Belmira, escrava de d. Jeronyma Monjardim, e ao preto Antonio, escravo de Manoel
Doria da Luz. E para constar se afixou o presente e outros iguais nos lugares do
costume e publica-se pela imprensa. Eu João Adalberto de Oliveira, escrivão o
escrevi. Uruguayana, 20 de abril de 1883 - Justiniano Berlamino Ribeiro (O
Guarany, de 6 de maio de 1883: Cartas de Liberdade).
No inventário a que se procedeu ultimamente pelo fallecimento de d. Felizarda
Jacques de Almeida, foram, pelos herdeiros, declarados libertas as pretas Luiza de
24 annos de idade, e Bernarda de 52.
O Sr. Venâncio Luiz da Silva deu carta de Liberdade a sua escrava Maria Ignez, de
34 annos, com a condicção de acompanha-o um anno na sua estância, libertando na
mesma occasião, sem onus algum a escrava Luiza, de 4 annos, filha d’aquela (O
Guarany, de 6 de maio de 1883: Manumissões).
35
O Sr. Antonio Rodrigues de Freitas libertou, sem ônus algum, a seus escravos Valerio
de 35 e Thereza, de 27 annos de idade. O Sr. Domingos Vieira do Amaral também praticou a
mesma ação com sua escrava Vicência, de 23 annos de idade” (O Guarany, de 31 de maio de
1883: Manumissões).
Em todos esses casos de liberdade a escravas, mais uma vez, vemos as mulheres como
propriedade de alguém. Se não do marido e senhor, do senhor dono de escravos. Mas qual era
a condição da escravidão em Uruguaiana? Pont (1986) narra sobre os escravos naquela que é
considerada entre as primeiras cidades gaúchas na libertação de homens e mulheres negros.
5
Aqui se nota, também, a influência franco-hispânica na região, uma vez que interessava ao
capital um outro tipo de mão-de-obra que não a escrava.
Existia, segundo o autor, em Uruguaiana, um movimento abolicionista que
desenvolvia suas atividades na região desde 1861. Conta-se que, para homenagear o
brigadeiro Bento Martins de Menezes, após o término dos combates com Solano Lopes
(1870), a Vila preparara várias festividades. Entre elas, escreve Pont (p. 505), a libertação de
escravos incentivada pelo Grupo Abolicionista 18 de Abril; ressaltando-se, nesse episódio,
que um cidadão, chamado Frederico Fabricio Filho, endereçou uma carta ao Gen-Brigadeiro,
pedindo que fosse ele o padrinho de uma escrava, uma menina, juntamente com sua filha
Elvira”. Outros exemplos se foram secundando espontaneamente, e muitos foram os cativos
libertos nessa ocasião.
Sobre o envolvimento de religiosos na campanha abolicionista na Vila de Uruguaiana,
o autor registra além dos discursos do cônego Jean Pierre Gay aconselhando “aos homens o
amor à liberdade dos homens escravizados”, que:
5
Segundo ele observa, “o Brasão de Uruguaiana, em seu ângulo esquerdo, no campo inferior destaca o símbolo
da libertação dada aos cativos, muito antes da Lei Áurea, representando-o por uma corrente quebrada, com os
grilhões partidos, marcando a data em que nosso município passou à cidade - 1874. No Rio Grande do Sul,
em quatro cidades foram libertados os escravos, antes da legislação: Porto Alegre, Viamão, São Borja e
Uruguaiana. [...] Mas a data de 1884, que se apregoou como sendo de antecipo à Lei por quatro anos, não foi
entretanto, a que deu início ao movimento libertário. Já em datas muito anteriores,encontramos eloqüentes
manifestações em favor da libertação dos escravos, em nossa terra (PONT, Raul. Ecorqu" tgcngpiqu: a
formação da fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIGAL, 1986, v. II, p. 504-505).
36
Para concretizar a homenagem a Bento Martins e outros Oficiais veteranos, foi
criada uma comissão que se encarregou de estudar a questão e fazer o alistamento de
espontâneos compromissos por parte dos Senhores proprietários de escravos. O
presidente dessa comissão especial, encarregado da libertação, foi o Padre Francisco
Alves Barroso, então pároco de Uruguaiana.
6
É interessante o registro encontrado nessa obra, sobre a concessão de liberdade e
registro de marcas de gados para escravos, destacando-se nisso, o episódio referente a uma
escrava parteira: “Joaquim Genro e os Rillo, registraram também, tendo o primeiro feito
registro para a escrava Eufrásia. Deram-lhe liberdade, por ser parteira e atendia aos moradores
de léguas entre Touro Passo, Caiboaté e Pindaí. Quando a declararam livre, os Genro ou Rillo
lhe deram 2 quadras de sesmaria. Tia Eufrásia era estimadíssima” (p. 508).
Bastante ilustrativo, também, do fato de algumas mulheres escravas com idade
avançada gozarem de notável estima junto a famílias da Vila de Uruguaiana, é a narrativa
encontrada, aqui, sobre uma escrava de nome “Tia Engrácia”, que serviu na casa de um
uruguaio nessa localidade radicado, de nome Dom Inácio Ochotorena e de sua esposa Dona
Modesta. Conta o autor estudado que fora concedida alforria à escrava, para que se ocupasse
com os “afazeres de lavadeira, inclusive atendendo a família”. Ocorria, no entanto, que,
muitas vezes, a escrava em seu trabalho achava nos bolsos das bombachas do patrão moedas,
que ela pacientemente recolhia e guardava para, no primeiro momento de contato com os
patrões, honestamente lhes entregar “uma trouchinha onde estavam recolhidas as dispersas
moedas do patrão e entre as de cobre, luziam algumas valiosas libras”, quando, então,
comentava: “To achando que o Patrão ‘Chotoren’ ta querendo me esprementá. Não se faiz
ansim cá nega veia!”
7
.
Os Jornais da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, na cidade de Uruguaiana, à época
estudada, ao publicarem suas notícias sobre cartas de alforria, nos levam a pensar sobre quem
eram as mulheres que possuíam escravas: donas de fazendas, talvez viúvas que sem herdeiros
tiveram que assumir a administração das estâncias que nesta região eram muitas?
6
PONT (1986, p. 506), obra citada, registra: “afirma-se que já em setembro de 1870, dezoito anos antes da
promulgação da Lei Áurea, na Vila de Uruguaiana, se promoveram várias emancipações com doações de
cartas de alforria [...] foram muitos os estancieiros que registraram marcas de gado em nome de seus escravos,
para que estes marcassem seus próprios animais [...] estavam eles em condições de pagar suas próprias cartas-
de-alforria, se o desejassem. Muitos escravos, nesta fronteira compraram dessa forma, sua própria liberdade”;
conforme consta no Livro n. 1 de Registro de Marcas e Sinais, no Arquivo Municipal de Uruguaiana, citado
pelo autor.
7
Lembrando do fato de que “cada família tinha uma preta que fora filha ou neta de escravos” e que “estas
mesmo libertas, não desejavam abandonar os antigos patrões”, Pont (1986, p. 513-14) registra: “Quantas
famílias de Uruguaiana se recordam saudosas das velhas Tias pretas, queridas, fiéis e abnegadas, que foram
verdadeiras mães, não somente babás, mas até mesmo amamentando aos sinhosinhos [...]’.
37
A história nos mostra que nas regiões de fronteira não eram raras as revoluções, o que
afastava os homens das suas casas, porque tinham que defender esse território e durante esses
períodos que levavam meses ou anos quem tomava o controle da casa, dos escravos e da
criação ou da produção agrícola eram as mulheres, sempre à espera que a guerra acabasse e de
que seu marido voltasse para casa, o que nem sempre acontecia, pois muitos morriam na
guerra e elas tinham que tomar para sempre a administração e defesa da estância: “mulheres
valentes e bravas companheiras”.
Flores (2002, p. 221), quando se refere à violência na área da campanha do século
XIX, afirma que a produção historiográfica de matriz positivista justifica a violência desse
período como resultado do grande consumo de carne, ou porque a criança, ao presenciar os
abates de animais acostumavam-se à violência estendendo essas práticas nas relações com os
indivíduos como uma ação comum, normal no seu cotidiano, criando uma imagem de homem
que é homem não teme frente a uma situação de violência. Outro fator seria a solidão em que
vivia o campeiro, que o familiarizava com a morte.
Mas nem só de problemas policiais viviam mulheres pobres de bens materiais. Havia
também aquelas que foram buscar, fora de sua cidade de origem, uma oportunidade para uma
vida melhor, mesmo que para isso fosse preciso deixar sua família.
No jornal C"Pcèçq, numa de suas edições de setembro de 1906, a notícia publicada por
uma mãe, pedindo informações sobre o paradeiro de sua filha, ilustra um outro tipo de violência: a
condição feminina de ser entregue aos cuidados de uma família e de nunca mais ser vista.
Marcelina Maria da Conceição deseja saber noticia de sua filha Eleonora Marcelina
da Conceição, que fora há tempo para o lado Oriental, em companhia de uma família. Quem
souber o paradeiro de Elenor queira informar nesta redação. Aos collegas pede-se a
transcrição desta notícia”.
Aqui se vê o apelo da mãe que utiliza o jornal para reaver a filha. Mulheres sofridas,
mas que batalham e não desistem de viver e nem atentam contra a vida e nem se entregam à
bebida, mas que levam sua vida procurando sempre manter uma postura para que ninguém
teça comentários maldosos a seu respeito: era preciso ser “pobre, porém de confiança” e saber
se “comportar”. Por outro lado, na figura da filha que foi embora e que não mais manteve
contato fica implícita a indagação: o que impediu a aproximação com a mãe, numa distância
que não era assim tão grande?
Nas notícias coletadas e aqui apresentadas sobre a dimensão da violência como
constitutivo importante de ser considerado quando se trata de buscar compreender aspectos da
construção do imaginário do universo feminino, observa-se que a imprensa local registra
38
alguns casos ocorridos em outros lugares que não aconteceram na região e que são dados,
talvez, como exemplares à sociedade, de crimes praticados e de castigos infligidos
envolvendo as mulheres.
Além das notícias que são alinhadas como de violência explícita ou simbólica
perceptíveis na época, também os jornais da fronteira oeste no período aqui trabalhado
publicaram matérias de outros lugares. Como Uruguaiana teve muita influência francesa
8
,
devido ao processo de imigração do início do século passado, divulgavam-se notas com
notícias sobre a França.
As três notícias apresentadas a seguir demonstram como casos acontecidos em lugares
distantes eram noticiados pela imprensa local, servindo ideologicamente à sociedade da época
como casos exemplares de punição às mulheres. Comecemos com o jornal C"Pcèçq, de 11 de
outubro de 1905, onde aparece o ciúme como o motivo de um crime passional: “Um Drama:
Em Nantes (França) o tenente Thomaza matou a tiros de revolver a artista Rosa Noel, em
ocasião que representava no Theatro d’alli. O móvel deste crime foi o ciúme”.
O que chama a atenção nesta notícia é o fato de que nos jornais em que pesquisei não
encontrei nenhuma notícia desse porte referente a assassinato de mulheres em Uruguaiana, é
claro que não posso afirmar que esse tipo de morte não acontecia nessa cidade. Então, por que
não encontrei entre tantas que analisei?
Talvez a resposta esteja no fato de que a imprensa jornalística de Uruguaiana não
divulgasse, para evitar possíveis influências ou para resguardar pessoas envolvidas em uma
situação que sabemos ser muito constrangedora para a época, pois mexia com valores quase
invioláveis numa sociedade tão conservadora.
C"Pqvîekc, de 19 de abril de 1902, publica:
8
Ver o texto de PONT, Raul: Franceses na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. In: BEUX, A. Franceses no
Rio Grande do Sul (p.123-132); de onde se destaca: “Sua particularidade nos destinos de Uruguaiana, como
em municípios vizinhos, ficou indelevelmente evidenciada nestas fronteiras do Oeste do Rio Grande, forjando
forte delineamento étnico e deixando contribuição não pequena nas ilustres descendências, através dos nomes
de famílias que aqui ainda residem e marcada nas obras deixadas pelos franceses do século passado” (p. 126).
Lembra, ainda, o autor, nessa questão, de que “em 29 de maio de 1975, o Município de Uruguaiana instituiu
sua bandeira. Na sinopse heráldica de seu signa ressaltam as nítidas influências gaulesas: As três cores,
vermelho-vinho, branco e azul, tendo ao centro o brasão municipal, cujos suportes são os dois leões: um de
prata, o de Castela e outro de ouro, o dos Luízes, fazem as expressões mais destacadas de sua ‘bandeira real’,
simbolizando em cores e figuras, a lembrança perene da passagem dos franceses, nas plagas distantes do
pampa rio-grandense” (p. 130-31).
39
Uma correspondência de Belgado refere que uma velha chamada Singelia Nitohes
condenada à pena ultima por envenenar seu marido, foi fuzilada. Na Sevilla onde a
guilhotina e a forca são igualmente desconhecidas, os condenados a morte são
fuzilados. Esse espectaculo caríssimo naquelle paiz, atrahiu uma grande multidão de
curiosos. A pobre mulher morreu corajosamente. As suas ultimas palavras, dirigidas
aos soldados executores foram estas: “Façam boa pontaria, rapazes, mas não me
desfigurem a cara”. A vaidade Trágica! (d’O Denver).
É possível analisar nesse episódio a imagem do feminino, muito bem assimilado pela
sociedade no que diz respeito à vaidade feminina: mesmo frente à morte, existe a preocupação
com a beleza.
Mas será que é só essa a leitura que se pode fazer nesse noticiário? Será que a frase
recitada pela mulher não retratava sua valentia e coragem frente à morte, ou, quem sabe,
queria afirmar que não se arrependia do crime por ela cometido?
Essa nota pode ser analisada da seguinte forma: não são só os homens que matam suas
mulheres, as mulheres também usam as mesmas armas que os homens utilizam contra elas.
C"Pcèçq, de 30 de abril de 1920, publica “Condenação”:
O Almirante Baptista Franco, que matou o amante de sua esposa à saída do Treatro
Phenix, no Rio de Janeiro, e que entrou no dia 27 do corrente, em 3º julgamento,
conforme noticiou o nosso boletim telegraphico, foi condenado a 6 annos de prisão
celular. O almirante Baptista Franco já esta há muito preso, faltando-lhe muito
pouco para cumprir a pena que agora se lhe impôs.
Mais uma vez o ciúme, carregado de sentimento de posse, leva à morte de um e à
prisão de outro.
Fica nas entrelinhas a mulher como causa motivadora da desgraça de dois homens:
um, por desfrutar de seu amor perde o direito à vida; outro, por sentimento de pertença, perde
o direito à liberdade; e à mulher cabe conviver com o peso da responsabilidade da desgraça
da sina da vida de dois homens.
É possível verificar, até o momento, que mulheres que viviam na fronteira oeste do
Rio Grande do Sul, na cidade de Uruguaiana, adotaram posturas diferenciadas em suas
estratégias de enfrentamento e que essa diversidade está ligada ao nível social e intelectual ao
qual elas pertenciam.
As mulheres que pertenciam a um grupo mais favorável economicamente tinham
compromisso de seguir algumas normas de condutas, para serem aceitas pela “sociedade”, tais
40
como a maneira de se vestir, sentar, de conversar, de escolher leituras adequadas à sua condição
feminina, de usar pouca maquiagem e perfume para não serem confundidas com as cortesãs, de
apresentar gestos delicados para aparentar fragilidade, indicando que estariam precisando de uma
figura masculina para sua proteção, proteção que significava levá-las até o altar.
Essas constatações sobre a condição feminina e suas estratégias de enfrentamento a
um poder que, além de subjugá-las à dominação, quer ainda docilizar e normalizar seu
comportamento, evocam algumas idéias de Michel Foucault que podem ajudar no
entendimento dessa questão.
A exclusão feminina, numa visão perspectivada em Foucault, é mais uma das relações
de poder existentes na sociedade, localizadas acerca do indivíduo seu corpo, seu
comportamento - e que visam, principalmente, a seu comportamento sexual.
A exclusão apresenta-se em proibições encontradas em enunciações, quando se
censuram a fala e as expressões. Mas não se limita a isso. Essas relações de poder não apenas
negam, restringem, proíbem, interditam falas e comportamentos. Essas relações estimulam
outras falas e outros comportamentos. Nesse caso, refiro-me em especial à mulher que é
subjugada a um plano secundário, dentro das tramas do poder, não apenas do poder
institucionalizado como os marxistas afirmam, mas naquele que não é declarado, ou seja, nas
relações de indivíduos que vivem numa mesma sociedade e que nem se conscientizam das
relações de poder que estabelecem na sua convivência com o outro.
O que confirma essa conduta são os preconceitos aos quais as mulheres são expostas
cotidianamente em sociedade. Mulheres, estas, sempre mantinham sua existência a servir o
sexo oposto, seja organizando a casa e dedicando-se à educação dos filhos (se meninos,
idealizando o caminho do pai; se meninas, aprendendo a ser uma mulher abnegada e
obediente), seja subjugando-se para que seu marido ou companheiro possa obter sucesso
intelectual e profissional. Para isso, elas não deverão disputar com o homem um lugar de
destaque na sociedade e, quando isso ocorre, sua capacidade é colocada em dúvida, sendo
julgada na sua honestidade e integridade de pessoa merecedora de respeito. Isso é uma
violência, representada nos micropoderes, nas células internas das relações interpessoais.
A exclusão, pode-se entender, segundo Foucault, é apenas um dos efeitos do poder.
Um dos efeitos negativos. A concepção foucaultiana do poder é mais ampla. Ele tem, ainda,
uma dimensão de positividade, no sentido de que também constrói algo nas relações em que
se verifica.
Nessa compreensão, Foucault (2003, p. 79) nos previne em “Vigiar e punir” de que
precisamos parar de falar sempre em termos negativos do poder: que ele proíbe, exclui, reprime,
41
recalca, censura, abstrai, mascara, esconde. Segundo ele, o poder produz realidades e rituais da
verdade, ou, ainda, como ele taxativamente escreve em “A vontade de saber”, primeiro volume de
sua História da Sexualidade: “Já repeti cem vezes que a história dos últimos séculos nas
sociedades ocidentais não mostrava a atuação de um poder essencialmente repressivo”.
É preciso, então, deixar o modelo do poder em que o Estado concentraria o poder e o
emanaria às diferentes instâncias a ele socialmente relacionadas. É preciso superar a tradição da
concepção de poder que utiliza o Direito como modelo, ensina Foucault, se quisermos bem
compreender o funcionamento do poder. O melhor, diz ele, é pensarmos em termos de relações.
Mas é importante não confundir essa perspectiva com a falsa idéia de que essas
instâncias de poder estariam projetando o poder do Estado. Foucault não menospreza a
dimensão estatal, mas considera insuficiente para dar conta da realidade.
É especialmente nessa perspectiva de propor um outro modelo para entender o
funcionamento do poder na complexidade do real , que Foucault escreve superando a
concepção de que o poder é algo que alguma classe obtém, mantém e utiliza em termos de
negatividade (exclusão, repressão, escondimento, etc.) contra uma outra classe, minorando
sua capacidade de resistência. Diz Foucault (2003, p. 26), em “Vigiar e punir”:
[...] o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido
como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação
não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas,
a técnicas, a funcionamentos; [...] esse poder se exerce mais que se possui, que não é
um “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito conjunto
de suas posições estratégicas - efeito manifestado e às vezes reconduzido pela
posição dos que são dominados.
Nessa perspectiva, o poder se apresenta como “um feixe de relações”, explica-nos
Foucault (2003, p. 248) em sua “Microfísica do poder”.
Por essas e outras razões demonstradas por Foucault em seus textos, é que, penso, não
se poderá compreender a exclusão da mulher valendo-se tão-somente do referencial
tradicional ou marxista.
É preciso, coerente com o seu entendimento, perguntar pelas condições que
possibilitaram o surgimento de certas práticas sociais e não de outras. Em outras palavras: o
que fez com que essas e não outras práticas sociais surgissem?
Recordando seu entendimento da dimensão de positividade do poder, em que este
também constrói comportamentos e modos de pensar, é preciso considerar que os
42
micropoderes vão-se relacionando e alcançando níveis mais amplos e gerais. Como diz
Foucault (2003, p. 143) em “Vigiar e Punir”, trata-se de “humildes modalidades,
procedimentos menores”, e que “são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas
formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos”.
Por aí já é possível se perceber a importância de entender a dimensão normalizadora e
disciplinadora do poder, que gera mais do que exclusão no sentido de afastamento. Gera,
também, positividade, no sentido de que produz comportamentos de auto-exclusão, em que
certos espaços é a própria mulher que os introjeta como proibitivos ou inadequados à sua
participação.
O poder normalizador e disciplinar produz corpos dóceis e atitudes de
comportamentos que o reforçam. Como diz Foucault (2003, p. 143), em “Vigiar e punir”: “O
poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como
função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor.
Concluindo esse capítulo, percebe-se, ainda, na época em estudo por meio das notícias
selecionadas com relação à violência sofrida por mulheres, que o código de postura daquelas
não privilegiadas economicamente fazia serem confundidas, muitas vezes, como meretrizes.
Por necessidade de sustento, trabalhavam fora, saíam sozinhas às ruas, muitas vezes tendo que
se defender do assédio masculino. Para estas, era difícil manter atitudes de delicadeza e, para
se defender, agrediam fisicamente. Também, não lhes sobrava muitas alternativas.
Pelas notícias analisadas, foi possível perceber que toda a cobrança implícita nos
termos utilizados para a redação das matérias a elas referentes, na questão da violência, se
fundamentava no ideário republicano de uma mulher necessária aos novos tempos. Uma
mulher que pudesse, assumindo sua fragilidade feminina, ser também forte na organização e
manutenção da harmonia do lar - lar em que deveriam ser gerados e cuidados os filhos
necessários ao novo país.
Aquelas que, manifestavam toda uma contrariedade às normas de conduta dominantes
eram punidas com o rigor do olhar da sociedade e da autoridade policial. Nesses casos não se
discutia a causa da desobediência da norma, apenas se apresentava a sua transgressão e a
conseqüente punição sofrida. Dupla punição: a primeira, pela ação policial; e a segunda, pela
estampa na imprensa permitindo a vexação pública. E, ainda, talvez, uma terceira e mais
forte: o sentir-se como um exemplo que não deveria ser seguido.
Todas aquelas que não se enquadrassem nos itens desse ideário moderno eram tidas
como suspeitas. Não se discutiam as condições de que dispunham para cumprir com tal
43
ideário, mas se lhes atribuíam as conseqüências pela sua inobservância. Algumas delas
chegavam mesmo a atitudes extremadas como o suicídio.
Às mulheres que, tendo enviuvado, restava, muitas vezes, tomar em suas próprias
mãos a condução dos negócios, mandar nos empregados, cuidar e castigar os escravos,
pegar em armas para defender suas terras de invasores, e defender suas filhas de
forasteiros, que seguidamente pediam pouso. São mulheres, tanto as das estâncias como as
que herdaram o comércio do marido, que para manter a família e exigir o respeito dos
outros , rompiam com a imagem frágil das mulheres e mostravam força e coragem para
enfrentar uma sociedade machista, elitista e católica que às mulheres reservava um papel
passivo, de aceitação.
Grupos teatrais, oriundos de países como a Argentina, que por aqui passavam em
direção ao centro do País, também influenciaram, acredito, na construção da imagem que a
mulher e a sociedade em geral iam fazendo da condição feminina. Uma imagem que a mulher ia
construindo para si: desde a questão de cosméticos até as de manutenção da saúde propriamente
dita. É do que trato no capítulo seguinte, quando o olhar nos jornais revelou-me um pouco da vida
em sociedade de mulheres na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, na perspectiva de dimensionar
a construção do imaginário do universo feminino à época nessa região.
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44
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Figura 3 - Sabonete Belladona invenção resguardada
No processo de modernização do País, nos moldes europeus, como convinha aos
interesses da recém-implantada República, retratar uma disposição nacional nessa perspectiva
era fundamental para atrair investimentos estrangeiros.
45
Por um lado era preciso mostrar ao capital estrangeiro que o Brasil era viável para seus
investimentos, porque já dava passos em direção a sua redefinição urbana e de produção nos
moldes europeus.
Por meio de fotografias em cartões postais, por exemplo, apresentava-se sob ângulos
bem cuidados novas edificações, largas avenidas e ruas espaçosas, praças e locais públicos,
que aqui era um lugar bom para se morar e investir, mesmo que para isso fosse preciso, como
de fato aconteceu, a destruição de cortiços e um novo esquadrinhamento dos espaços com
intenção disciplinadora, moralizadora, higienizadora e sanitarista da vida pública e privada.
No entanto, a história registra que houve resistência à demolição de tudo o que pudesse
representar um elo com o passado ou uma medida de invasão da privacidade, como a
resistência popular conhecida como a “Revolta da Vacina” em 1904.
Mas, por outro, era preciso mostrar aos brasileiros como se apresentar ao estrangeiro.
Nessa perspectiva, de instruir aos brasileiros sobre como bem proceder segundo o modo de
comportamento europeu, todas as iniciativas que se somassem a esse propósito eram bem
vistas. Era preciso mostrar ao homem e à mulher, principalmente, como ser um brasileiro-
europeu. Um exemplo disso, embora em época posterior ao período analisado por esta
pesquisa, pode ser encontrado em Serpa (2003, p. 30), que estudou a condição feminina
retratada pela revista Cruzeiro no período de 1928 a 1945)
9
:
Observamos, então, as mudanças do país apresentadas pela revista em temas que
aparecem em diversos espaços e momentos históricos do período, que se concentram
mais no final da década de 1930 e início da de 1940, especialmente com a variedade
de produtos de utilidade doméstica e de higiene e beleza. Vários textos deixam
transparecer as reais intenções de mostrar que a sociedade brasileira estava
alcançando a modernidade através das transformações das cidades e do surgimento
de uma nova forma de vida, agora mais urbanizada, moldando comportamentos [...].
9
O Cruzeiro foi um veículo de comunicação que contribuiu com mudanças: na parte gráfica, adotou técnicas
pouco conhecidas no país, especialmente com a rotogravura; no fazer jornalístico, implementou a reportagem.
Intencionalmente criado para ser porta-voz de uma nova ordem - a modernidade nacional -, surgiu para atingir
todo o território brasileiro e dar uma idéia de Brasil-único e atual, numa correspondência de intenções entre o
seu fundador e proprietário, Assis Chateaubriand, e o presidente Getúlio Vargas, que, com propósitos políticos
definidos, concedeu empréstimos para a criação do magazine. Interessava então, politicamente, a Getúlio
mostrar que o Brasil estava se modernizando.
A revista teve também toda essa tecnologia a serviço da construção da “nova mulher”, mas que não
representava a realidade da maioria das brasileiras que viviam em condições sociais precárias e eram
analfabetas. Ela mostrava uma imagem relacionada às mudanças de um país que despia suas mulheres das
saias longas e as urbanizava com biquínis, blush e pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar o comportamento
feminino com novas formas de vestir e de se mostrar para a sociedade. Essa imagem, que incluía a utilização
da maquiagem e de produtos femininos de beleza como símbolo de moderno e novo, ilustrava as capas desde
a primeira edição. Apresentava-se, então apenas a primeira revista moderna do país, mas um novo meio de
retratar o universo feminino, objeto de estudo por nós delimitado nesta obra (SERPA,
Leoni. C"oâuectc"fc"
oqfgtpkfcfg"fc"ownjgt"pc"Tgxkuvc"q"Etw|gktq"fg"3;4:"ä"3;670"Passo Fundo: UPF, 2003, p. 20).
46
É no contexto de implantação da modernidade no País que analisei as matérias
encontradas nos jornais da época delimitada para minha pesquisa e que agrupei sob a
questão do custo da saúde e da beleza feminina na fronteira oeste do Rio Grande do Sul.
Observando a forma como se publicavam notícias referentes aos aniversários de
mulheres, casadas ou solteiras, é possível perceber a presença de muitos enunciados que ainda
hoje persistem no imaginário da dimensão do feminino.
Na redação de notas sobre aniversários de mulheres, o nome destas é geralmente
acompanhado do nome de uma figura masculina a emprestar-lhe o reconhecimento pela
sociedade. O nome masculino, quando acompanha o da aniversariante, sendo esta uma mulher
casada, é o do marido, destacando-se algumas vezes a posição dele na sociedade. Notável,
ainda, na apresentação destas notas na literatura jornalística da época, é a preocupação em
acentuar também a ligação do jornal com a figura masculina:
Parabéns. Faz annos amanhã a Exmª. Srnª. D. Veranisia M. V. de Corso, esposa do
nosso favorecedor e amigo Corso, estancieiro em Corrientes” (A Notícia, de 22 de outubro de
1899).
“Fazem annos hoje. A exma. Snra. D. Ambrozina de Souza Soares, digna esposa do
Dr. Erasmo F. Soares” (A Notícia, de 24 de outubro de 1899).
Mesmo em publicações coletivas, quando se informava do aniversário de várias
pessoas na mesma nota, alguma delas podia ter o destaque em tela:
Fazem annos hoje. A exm. Señorita Aguida; a virtuosa senhora d. Firmina B. da
Silveira, digna consorte do nosso amigo João Antão da Silveira; o nosso excellente amigo
Olegário Lisboa, empregado na Caixa da Amortização, na capital e a Sra. D. Leonor Cardozo
Cupello” (A Notícia, de 17 de outubro de 1905).
Interessante, ainda, é o fato de que se encontra também publicação de notas sobre
comemoração de aniversário de mulheres em que o seu nome não é citado, apenas o do
marido:
Baile - Na residência do digno official do exercito Sr. Cap. Antonio da Cunha
Mesquita, realizou-se no dia 3 do corrente, em regozijo ao aniversário de sua exma.
Consorte, um explendido Baile que, animado por crescido numero de gentis
senhoritas e jovens, durou até às 4 horas da manhã. Tanto o Cap. Mesquita como as
demais pessoas de sua exma. Família foram infatigáveis em ministrar toda a classe
de cortezias e obséquios aos convivas (A Nação, de 7 de setembro de 1906).
47
Observa-se, também, a expressão “consorte”, para referir-se a cônjuge. Ora, essa
palavra, segundo o entendimento que o dicionário
10
apresenta, diz que se trata de um
“companheiro na mesma sorte”. Mas de que “mesma sorte” se trata, nesse caso, em que o
nome daquela, que deveria ser a homenageada com a festa, nem é mencionado pelo jornal que
cita por duas vezes na mesma nota o nome do marido precedido de sua patente militar?
As características acima observadas na redação das notícias de aniversários de
mulheres casadas também se fazem presentes de alguma forma quando se trata de mulheres
solteiras. Agora, o nome da figura masculina, quando aparece nesses moldes, é o do pai,
significando, com isso, que se trata de uma “senhorita”, moça de família:
Faz annos hoje a interessante senhorita Clara Pereira filha do sr. Ricardo Pereira” (A
Notícia, de 1 de novembro de 1899).
Fez annos hontem a interessante menina Anna Sylvia Corso, filha do nosso
favorecedor e amigo Florentino Corso” (A Notícia, de 16 de novembro de 1899).
Fez annos hontem a galante senhorita Sarah Mena Barreto filha do Major Mena
Barreto” (A Notícia, de 4 de dezembro de 1899).
Observa-se, ainda, por essas notas, que o nome da mãe não aparece, havendo, no
entanto, sempre uma preocupação em destacar no nome masculino, quando aparece, a sua
posição social, a conferir que se trata de uma moça que teve condições de receber uma
educação esmerada e o conforto de um lar bem estruturado economicamente - o que poderia
representar um forte atrativo para quem estivesse procurando por uma esposa:
Faz annos, hoje, a senhorita Setembrina Bailet, filha do Sr. Sabino Bailet, construtor.
Completa a manhã, mais um anniversário, o Sr. Coronel João Peró, forte capitalista” (A
Nação, numa de suas edições do ano de 1919).
Quando o nome do pai não aparece, secundando o da mulher e, em se tratando de uma
mulher solteira, a condição “senhorita” aparece precedida por algum qualificativo que a
distingue na sociedade do trabalho, não se tratando, então, apenas de uma “interessante”,
“gentil” ou “galante” senhorita, mas de uma mulher que, tendo esses qualificativos, é vista
também em função de sua atuação na sociedade-trabalhadora:
Parabéns. Fazem annos hoje. O interessante menino Antonio Carlos de Carvalho e
laboriosa senhorita Carlota Ferrua” (A Notícia, de 4 de novembro de 1899).
10
Dicionário Aurélio Século XXI.
48
Encontram-se, nas notícias sobre aniversários de mulheres casadas, alguns enunciados
na constituição do imaginário do feminino à época, que são passíveis de serem percebidos, ao
menos em parte ou com algumas variantes, ainda hoje:
a) é importante e necessário ligar o nome da mulher ao do homem que lhe assegura
reconhecimento social pelo casamento, mesmo que para isso o nome dela seja
minimizado;
b) é desejável que se saiba a posição social e a popularidade do nome masculino ao
qual o feminino se liga;
c) mulher é consorte do marido e deve, sempre, ser apresentada em relação a ele.
No caso de mulheres solteiras, destacam-se estes enunciados das notas selecionadas:
a) moça solteira precisa ser apresentada como “senhorita”, de família, para ser bem-
vista;
b) mais importante do que o nome da mãe, ao lado do nome da filha, é o nome do pai;
c) o nome do pai ao lado do nome da filha impõe respeito;
d) de moça de família espera-se que tenha usufruído de uma esmerada educação, em
que se incluem as condições morais para ser levada ao altar;
e) pode a mulher se esforçar e trabalhar tanto quanto o homem, que as condições de
reconhecimento e valorização social são diferentes.
A participação feminina nas atividades promocionais sociais parece ter sido um
importante aspecto na constituição do imaginário feminino à época. É fácil ver nos jornais a
publicação de notas que dão conta de publicar sobre acontecimentos sociais promovidos por
associações em que se percebe, inclusive, mulheres atuando em sua diretoria:
"
A Sympathica “Soirée Uruguayanense” em o dia 7 do corrente, no salão superior do
Club Commercial realizarão partida correspondente ao mez vigente, sob a
presidência do Sr. Jordão de Freitas Leão.
São diretoras Exmas. Senhoritas, Irene Moreau, Francisca Amaral, Maria Austran,
Chlory Ulrich e os distintos cavalheiros João Pedro Arreguy, João Ribeiro sobrinho,
Nicolau Portella e José Rebés Sobrinho (A Nação, de 30 de outubro de 1905).
Mas, por outro lado, a existência de clubes de senhoras permite ver que a organização
é presidida por uma delas:
"
Clube de Senhoras.
49
Convida-se as Exmas. Socias d’esta agremiação, para a reunião da assembléia geral
ordinária, que terá lugar a 24 do corrente, às 4 horas p. m. na residência da
Presidente, a Exma. snra. D. Lisbella Soares Paz, a fim de eleger-se a nova
directoria, que deverá reger os destinos d’este club no anno social de 1905 a 1906.
Uruguayana, 15 de novembro de 1905. A secretaria: Manoela Domingues (A Nação,
de 15 de novembro de 1905).
Na promoção de “suntuosos bailes”, todo o cuidado para que a festa pudesse ser bem
aproveitada por todos era zelosamente observado. Nesse sentido, chegava-se a ponto de solicitar
às famílias que não se permitissem levar crianças porque estas serviam “unicamente para
incômodos” dos adultos em festas. Então, enquanto as mulheres da alta sociedade bailavam,
outras mulheres que trabalhavam em suas residências ficavam “tomando conta” das crianças:
Sumptuoso baile. “Hoje, a noite, realisar-se-há no salão superior do Club
Commercial, um esplendido baile offerecido às pessoas que vierem a esta cidade
visitar a exposição feira. A comissão de recepção é composta dos distinctos moços:
Honório Vasques, Celso Sá Brito, Tenente Pará da Silveira, José Majó, Mariano do
Prado Barcellos, José Câmara Sobrinho, João Belloc, Álvaro Garcia, Luiz Codoniz e
Pedro Belloc.
É de esperar que esse baile revista-se do máximo brilhantismo, attendendo aos esforços
dos seus dignos iniciadores. A comissão por nosso intermédio, pede que previnamos às
Exmas. Famílias quas seria conveniente não levar crianças ao baile.
Achamos que esse pedido é justo, pois, as criancinhas nada aproveitam da festa,
servem unicamente para incômodos. Fica aí o pedido (A Nação, de 15 de novembro
de 1905).
Datas cívicas se prestavam a grandes comemorações. Uma delas, a data de Independência
do Brasil, poderia ser motivo para a promoção de um “concorridíssimo” baile, organizada por
alguma agremiação social em que participam da diretoria “senhoritas” e “distinctos jovens”. É
interessante notar, neste informe, que, em se tratando da organização de um evento social dessa
natureza, o nome das diretoras apareça citado antes do nome dos diretores:
Soirée Uruguayanense - Esta sympathica associação, afim de comemorar o dia 7 de
setembro Independência do Brasil realizará hoje à noite, no salão do Club Commercial,
um explendido baile que promette estar concorridíssimo.
São directoras as exmas. Senhoritas: senhorinha Menezes, Lavignia Dantas, Esther
Saldanha e Helena Cartell, e directores, os distinctos jovens: José Rebès Sobrinho, Izaac
Palma, Carlos Desessard Junior e Cyro Villela (A Nação, de 7 de setembro de 1906).
50
Também na promoção de festivais, em que o “theatro” ocupava um lugar de destaque,
inclusive com apresentação de compainhas oriundas de países do Prata, que pela região
passavam em direção ao centro do País, se percebe o envolvimento de grupos beneficentes de
mulheres em sua organização e também operacionalização. A nota apresentada a seguir é
explícita: o evento será promovido “em benefício do ‘O Club Beneficente de Senhoras”. Seria
razoável que um clube dessa natureza, beneficente, promovesse um evento assim para
angariar fundos em razão de alguma atividade comunitária, mas não como informou o jornal
em benefício de si. Jogo de palavras? Descuido na redação do texto? No mínimo, curiosa se
mostra esta nota:
"
Vai amanhã a secna o espedido dra. O DEVER, em beneficio do “O Club
Beneficente de Senhoras”. Informam-nos de que na bilheteria do Theatro estarão
expostas à venda durante todo o dia 5, as localidades plátea e camarotes.
Sabemos que não serão vendidas as entradas de galeria, por pedido dos amadores
que estão encarregados da execussão da peça.
As pessoas que desejarem assistir ao citado festival, poderão obter camarotes e
cadeiras em mãos das exma. senhoritas: Regina Lago, Zaida Dantas, Edwiges
Machado e Ignez Gay (A Notícia, de 4 de janeiro de 1902).
Curiosa, mas também elucidativa dos valores de uma época, é a confiança publicada
expressa na forma de um pedido de devolução de jóias perdidas. Os lugares em que foram
perdidas, um importante clube da cidade e a igreja matriz, supõe-se pelo tom da nota, que são
freqüentados por pessoas capazes de proceder, em achando os tais objetos, a sua devolução:
porque se imagina que sejam freqüentados por “pessoas de bem” que não ousariam,
encontrando-os, ficar para si e mesmo usá-los nesses mesmos lugares sob o risco de ser
envergonhados num encontro com os legítimos donos. Também fica aberta a possibilidade de
os objetos preciosos serem achados por pessoas que não estiveram nessa data nos eventos ali
produzidos, mas que, por conta de prestarem serviços de limpeza, terem tido a oportunidade
de se depararem com eles; então, a estas, uma gratificação em que, na nota, não se especifica
o valor talvez até para não dizer do quanto valem as jóias achadas:
Perdeu-se. No Clube Comercial de 7 do corrente um pregador cravejado de brilhantes
e na Igreja Matriz um brinco de ouro. Quem encontrar pode trazer a esta redação que será
gratificado” (A Nação, de 20 de setembro de 1910).
As notas sociais não se limitavam ao informe de eventos promocionais de bailes ou
aniversários. Quando, por exemplo, da passagem de alguém ilustre pela cidade também se
noticiava. Na matéria colhida em jornal da época, trata-se da viúva de um eminente cidadão.
51
O que fica bastante claro, novamente, é a importância que se dava à época, de ligar o nome da
mulher ao do marido e, nesse caso, indo além, ligando, por extensão, o seu nome ao do sogro
importante. Dessa forma, garantia-se a respeitabilidade ao ler o nome da mulher. A esta,
limitava-se o tratamento de “excelentíssima senhora” - importante sim, mas por ter seu nome
ligado aos nomes de dois homens, um o marido e o outro o sogro, de destaque. A questão de
se dar ênfase ao nome masculino em detrimento do nome feminino também fica clara quando
se observa que também não foram citados os nomes das filhas:
D. Adelaide Gama. É esperada hoje nesta cidade de passagem para a Republica
Oriental em visita as suas filhas, ali residentes a exma. sra. D. Adelaide Gama, viúva
do nosso sempre saudoso amigo dr.Alfredo Gama filho do emério brasileiro
Marechal Barão do Batouy, ambos victimas dos luctosos e sangrentos sucessos de S.
Catharina no ano de 1894. Apresentamos a exma. Senhora di Adelaide Gama nossas
sinceras e respeitosas saudações (A Nação, de 15 de novembro de 1905).
Por outro lado, também a imprensa publica, sob o tom de algum favor concedido, notícias
de mudanças de localidade. No caso selecionado é possível perceber que se tratava de uma mulher
estancieira, que se transferia para sua estância localizada no Uruguai. Não aparece o nome do
marido e nem se diz dela se era viúva, mas, por ser alguém de influência no mundo feminino, haja
vista a expressão “suas numerosas amigas”, a imprensa lhe dá atenção:
D. Maria Gonçalvez Borges tendo que retirar-se para sua estância em três Cruzes, na
R. Oriental e não podendo despedir-se pessoalmente de suas numerosas amigas faz por este
meio offerecendo seus limitados préstimos naquelle lugar” (A Nação, de 10 de janeiro de
1907).
Ter bom relacionamento com pessoas notáveis da sociedade era muito importante e
dava status, assim como estar vestido conforme a moda. Curiosa nota mostra não tanto o fato
de uma certa mulher ser conhecida pela família real, mas de ser conhecida pela imprensa:
Portugal. Família Real. Rio de Janeiro, 11 - A Família Real Portuguesa que se acha
na Inglaterra, irá fixar residência na França. Ao seu embarque compareceram apenas
40 pessoas. Uma mulher que fora a bordo, despedir-se dos reis, aproximando-se da
rainha Amélia beijou-lhe a mão, extraordinariamente comovida. D. Amélia, cheia de
magoa, disse nunca supor ser tratada com tanta indiferença pelos portugueses que
mostram-lhe sempre amizade. D. Amélia desfalleceu ao concluir essa phrase. D.
Maria Pia estava bastante abatida, por ocasião do embarque. O rei D. Manoel o
infante D. Affonso estavam bastante animados (A Nação, de 7 de outubro de 1910).
52
Essa notícia evidencia que as amizades davam notabilidade. Não é à toa que a senhora
que vai-se despedir da família real passa mal quando as atenções à sua pessoa foram formais
sem cumprimentos de intimidades, fazendo a se sentir desvalorizada e pouco reconhecida na
sua angústia pela mudança da família real para a França.
Dessa seleção de notas apresentadas, decorrem alguns enunciados:
a) Mulher também pode participar de diretoria de clube social, desde que a
presidência seja masculina, exceção para agremiações só de senhoras;
b) Criança em festa de gente grande só atrapalha.
O universo feminino sempre teve, na questão da moda, uma ênfase muito grande. No
imaginário feminino e também no masculino, cabia à mulher zelar não só pela sua adequada
apresentação no vestuário rigorosamente dentro dos ditames da moral, quanto ao cuidado pelo
bom gosto em escolher aquilo que se considerava na moda à época. Desta sorte, os anúncios
que se encontram nos jornais deram conta de oferecer artigos considerados indispensáveis
para o bem trajar de senhoras e senhoritas:
Casa de modas em chapeos. Para Senhoras. Rua Duque de Caxias ao lado do Hotel
Nacional (13 de novembro, 16 de novembro, 17 de novembro e 18 de novembro).
Avisamos à nuestra numerosa y distinguida clientela, señoras e señoritas, que
acabamos de recibir um esplendido surtido em formas y adornos de los mas
modernos, creado em la moda, lo que ponemos à su disposicion. Izabel y M. Ferrua
(A Notícia, de 14 de novembro de 1899).
"
Casa da Moda para Chapéus de Senhoras.
Margarita e Izabel Ferrua. “Avisamos as exmas. senhoras e senhoritas desta cidade,
que durante todos os dias da corrente semana fazemos exposições nas vitrines de
nossa casa de chapeus e todas as classes e feitios. Grande sortimento de flores,
plumas e demais enfeites da ultima moda que se vendem com 50% de abatimento
por liquidação de negócios. Uruguayana - Rua Duque de Caxias até 31 -12 - 1901
(A Notícia, de 4 de dezembro de 1901).
Observa-se, nessas duas notícias, que são duas as mulheres proprietárias do
estabelecimento que comercializa chapéus e outros artigos femininos. Por ser localizada na
fronteira, cidade de Uruguaiana, uma das notícias, inclusive, fora redigida em espanhol. A
língua espanhola era de fácil entendimento entre as cidades vizinhas naquela região do
Estado, sendo facilmente encontradas algumas expressões em uso no lado brasileiro.
53
Sabendo-se que o interesse por artigos de moda é tido geralmente como prioritário
para o universo feminino e secundário até certo ponto para o masculino, é facilmente
compreensível o anúncio que dispõe do oferecimento começando pelas mulheres:
Preço Fixo de Tancredo Fontoura.
Casa commercial recentemente fundada na cidade do Itaqui tem um excellente
sortimento de fazendas de todas as classes objetos de moda próprios a senhoras,
finíssimo surtido para o sexo masculino e um grande Armazém de Molhados capaz
de satifazer ao mais exigente dos fregueses. É a mais barateira das casas do Itaqui (A
Notícia, de 3 de março de 1900).
Nota-se, ainda, que se aposta na novidade: trata-se de uma “Casa commercial
recentemente fundada na cidade do Itaqui”. As casas tradicionais contavam com o
reconhecimento da comunidade, pelos longos anos dedicados a bem servir às famílias locais.
Mas o novo é sempre visto como sinal de algo inesperado. Daí, a aposta na novidade como
estratégia comercial para lidar com a concorrência do tradicional: a novidade chama a
atenção, ainda mais em se tratando de moda.
O destaque dado à palavra moda nos reclames e a garantia da qualidade dos produtos
oferecidos constituem-se num atrativo capaz de chamar a atenção dos olhos e de instigar o
interesse pelo que se anuncia:
Gravatas de pelle para senhoras e artigos de excellente qualidade de 2.500- 900 -
3.500 - 4.000 - 5.000 e - 6.000 cada uma. Venda a Dinheiro” (A Notícia, de 17 de novembro
de 1905).
“Casa da Moda. Tem sempre da ultima moda sortimento completo de artigos.
Fazendas finíssimas para toilettes de bailes, concertos e etc.” (A Notícia, de 17 de outubro).
“Moda - inicia amanhã sabbado 24 de abril a exposição de chapeos de senhoras
modelo inverno. Casa Del Priore” (A Nação, de 27 de abril de 1920).
Destaca-se, nesse conjunto de reclames que apelam à vaidade feminina, alguns
enunciados facilmente perceptíveis que colaboram para a constituição do imaginário
feminino:
a) mulher precisa sempre andar bem vestida, o que significa entender de moda;
b) é um “pecado” a mulher não acompanhar o que a moda dita;
c) é preciso estar atenta para as últimas novidades;
d) não basta à mulher vestir-se adequadamente, é preciso que se vista com a
qualidade que está na moda.
54
Mas a vaidade feminina nunca foi explorada apenas no quesito vestuário. Também os
produtos de embelezamento concorrem para que a mulher possa ser vista como “bem
apresentada” socialmente:
Mocidade e Beleza. Uma moça formosa que não possuir um cabello abundante,
lustroso e sedoso perde todo o explendor de sua Belleza: ao contrário uma moça
feita que possuir um cabello bastante sedozo e brilhante torna-se elegante e
admiravel, pois o cabello é o primordial elemento para o adorno.
O Cabello, pois deve merecer muito cuidado. Todos devem usar a água de Quina -
Moura, que é um preparado hygienico, de aroma delicioso, estimula o crescimento
do cabello torna-o brilhante e sedozo.
A Água de Quintina A Moura é o cosmético mais recommendavel e o único
preparado que destrói rapidamente as caspas.
A Água de Quintina A Moura não é preciso fazer apologia, pois o seu renome é
espalhado pela trombeta retumbante da fama e decantado pela voz altisonante do
povo.
A Água de Quintina A Moura vende-se em todas as bem sortidas casas de modas,
livrarias, barbearias e todas as boas pharmacias e drogarias (A Notícia, de 4 de
dezembro de 1901).
A beleza, aqui, aparece associada à condição da mocidade. Mas não basta ser jovem e
formosa, se não houver o cuidado necessário para com os cabelos. Aqui, no imaginário
feminino e também masculino, o cabelo - que é tido como “o primordial elemento para o
adorno”, se não for “abundante, lustroso e sedoso” faz a beleza feminina perder todo o seu
“explendor”.
Observa-se, até aqui, que está sendo tratado do cabelo das mulheres brancas da época,
mesmo que no anúncio o produto seja apresentado como renomado e “espalhado pela
trombeta retumbante da fama e decantado pela voz altisonante do povo”, que, naturalmente,
não era composto apenas de pessoas brancas. Mesmo assim, contraditoriamente, o anúncio diz
que “todos devem usar”, sendo de fácil achado em estabelecimentos de “casas de modas,
livrarias, barbearias e todas as boas pharmacias e drogarias”.
Tornar-se “elegante e admirável” implica ter cabelos da natureza prometida pelo
produto anunciado. A mulher que não tivesse cabelos que pudessem ficar “abundante”,
“sedoso”, “lustroso” e “sedoso”, não teria, então, “boa aparência”, não podendo tornar-se,
portanto, “elegante e admirável”.
O apelo à inteligência feminina na hora de escolher seus produtos de beleza soa como
um sinal de respeito à sua cognição, mas, contraditoriamente, se apela fortemente para o
componente da vaidade, mesmo que para isso se distraia sua atenção com boa parte da
55
argumentação envolvendo assunto complementar, mas de forte atrativo ao ponto de a notícia
principal não ser concluída no texto:
Figura 4 - Sabonete Belladona
Sabonete Belladona. Invenção Resguardada. Este maravilhoso Sabonete embelleza,
amacia e restabelece de novo a pelle estragada pelas doenças cutâneas e pelo uso de
sabonetes e pós de má qualidade. Estingue as caspas, espinhas e outras moléstias da
pelle. A grande fama que gosa, o Sabonete Belladona, não tem a sua origem em
pomposos annuncios, nem consiste em luxuosos empacotamentos, mas sim: da sua
superior qualidade, como sabonete delicado e de effeitos poderosos, que com o uso
delle produz sobre o corpo humano. Composto com azeites finos e vegetais, e outros
materiais de valor, este sabonete acciona sobre a pelle a maior limpesa, abrindo
56
sempre os poros cutâneos, para a própria ventilação externa de nosso sangue. Além
destas vantagens physicas, o fabricante concede aos seus consumidores, em uma
série de 100.000 sabonetes 100 premios no valor total de 5.600$00. São
acompanhados os sabonetes com cupons numerados de 1 a 100.000 dos quaes
números, todos que findar com 3 zeros tem o premio de 20$000, os que findar com 4
zeros, o premio de 200$000 e o que tem 5 zeros finaes recebe o premio grande ao
final de 2.000$000. São portanto distribuídos 100 premios sendo: 90 de 20$,9 de
200$ e 1 de....2.000$000.
Água Juvenil, extingue as sardas, manchas e pannos, por completo, usando esta
essência absoluta, algumas gottas em banhos, embellezam extraordinariamente a
pelle, dando a mesma cor natural.
Essência Formosa, com algumas gottas desta maravilhosa essência, curam-se as
dores mais revoltosas dos doentes (dentes?), não dói mais, nem apodrecem, como
acontece com os remédios venenosos.
Óleo de coco, retificado e perfumado para evitar a queda dos cabellos e augmentar o
crescimento dos mesmos.
Nesta cidade, vende-se em todas as lojas, perfumarias, pharmacias e outras que
vendem sabonetes. Fabricantes - Carlos de Monteverde. Depositarios em
Uruguayana- Kramer Leaes & Comp (A Nação, 11 de setembro de 1909).
Anúncios de produtos são feitos e endereçados para quem possa consumi-los. No caso
dos quatro produtos listados no reclame, o destinatário são as mulheres. Mas não todas. Nota-
se, por exemplo, que a “Água juvenil” faz referência a “sardas”, que somente são encontradas
em mulheres brancas. Aqui, mais uma vez, como no anúncio do produto para cabelos do
reclame anterior, está-se pensando nas mulheres, mas não em todas, apenas nas brancas que,
supostamente, teriam as condições econômicas para adquiri-los.
A vaidade feminina deve seguir algumas normas de comportamento e postura, para
evitar a vulgaridade, ou, até mesmo, para não ser confundida com as cortesãs. Para tanto,
deve-se ter todo o cuidado, que vai desde a escolha dos cosméticos, das vestimentas, do uso
do perfume que deve por regra ser suave , assim como a maquiagem muito leve - quase
imperceptível; a escolha dos lugares a ser freqüentados, as pessoas com as quais se convive, a
freqüência aos cultos religiosos aos domingos com a família também passam por todo um
controle. Todos esses cuidados lhe dão uma condição feminina aceita e valorizada na época.
Também os produtos indicados para a promoção da saúde feminina são colocados em
anúncios que disputam a preferência das mulheres por suas marcas. É interessante perceber
nestes reclames a existência, por exemplo, de duas marcas de medicamentos à base de óleo de
bacalhau que evidenciam a relevância de se ter a preferência das mulheres na hora da compra:
"
57
Emulsion Martinez. O melhor reconstituinte para os enfraquecidos! O poderoso
fortificante para as crianças de tenra idade e para mães que amamentam seus filhos.
Não repugna ao paladar, apezar de ser preparado com poderoso óleo de fígado de
bacalhau. Este poderoso remédio está recomendado pelas principaes notabilidades
medicas da América do Sul, como o melhor dos reconstituintes no gênero. Agrada
ao paladar e não contem substancias nocivas (A Notícia, de 12 de janeiro de 1902).
Emulsion de Escott. Compuesta de aceite puro de hígado de bacalhau de Noruega,
com Hipofoffitos de cal y de soda. Es la cura más rápida, más permanente y más
positiva de la ANEMIA.
Esta confermidad ataca com más frecuencia à las mujeres, debido à que la sangre
de las mujeres contiene más águas menos sustaneo mineral que la del hombre. La
Elmulsión de Scott es el. Regenerador de La Sagre. Por excelência, la purifica, la
nutre la enriquecce, restituy as cuerpo lãs carnes y lãs fuerzas, y dá al rostro el
color resado de la buena salud. Es el reconstituyente más poderoso y más eficaz,
tanto para la nina que va à la escuela, como para la madre que cria. Muy superiora
todos los vinos tônicos, píldoras y preparaciones de hierro que se recomiendan, los
cuales ennegrecen los dientes; enferman el estómago; causam estrñimiento y no
curan la Anemia. Nuestra marca de fabrica representada por um “hombre llevando
à cuesta um gran bacalao” se encontrará adherida à lãs cubiertas de papel color
salmón que envuelven los frascos de la Emulsion de Scott Legítima. Emulisiones que
carecen de ésta marca deben rechazarse como producto inferiores que no tienen
más semejanza com la Emulsión de Scott Legítima que la que hay entre uma
moneda buena y outra falsa. La de Scott cura. Las imitaciones empeoran. Scott &
Bowne. Químicos. Nueva York (A Noticia, de 27 de julho de 1906).
O primeiro anúncio apresenta um produto sul-americano, feito à base do óleo de
bacalhau, e, apelando ao sentimento da nacionalidade, ampara-se na autoridade médica sul-
americana e enfatiza que não possui substâncias nocivas à saúde:
Este poderoso remédio está recomendado pelas principaes notabilidades medicas da
América do Sul, como o melhor dos reconstituintes no gênero. Agrada ao paladar e não
contem substancias nocivas”.
Trata-se, nesses dois anúncios, de dois produtos que se apresentam como fortificantes
da saúde para crianças e mulheres. O segundo, de fabricação estrangeira, invoca no seu
anúncio a condição de ser o produto legítimo, fazendo um apelo a que o público saiba
distinguir e recusar imitações. Redigido em espanhol, pelo motivo de que visava a alcançar
também argentinos ali residentes ou do outro lado daquela fronteira, mas, também, pela
proximidade da cidade de Uruguaiana com outras cidades uruguaias de língua espanhola:
"
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Nuestra marca de fabrica representada por um “hombre llevando à cuesta um gran
bacalao” se encontrará adherida à lãs cubiertas de papel color salmón que
envuelven los frascos de la Emulsion de Scott Legítima. Emulisiones que carecen de
ésta marca deben rechazarse como producto inferiores que no tienen más
semejanza com la Emulsión de Scott Legítima que la que hay entre uma moneda
buena y outra falsa. La de Scott cura. Las imitaciones empeoran.
A importância do testemunho de uma autoridade médica nacional no reconhecimento
de um produto de origem estrangeira também foi estratégia utilizada pelo segundo produto,
visanda conquistar a simpatia das mulheres no momento da compra de medicamentos
fortificantes para si e para sua família:
Cada vez mais me convenço. O distincto especialista das moléstias das senhoras e
das crianças, o dr. Victor David, do Rio de Janeiro, doutor em medicina pela
Faculdade do Rio de Janeiro, numa delicada carta dirigida aos senhores Scott &
Bowne, afamados chimicos de New York, diz em parte o seguinte: “Tendo
empregado a Emulsão de Escott com os maiores resultados em diversas moléstias,
taes como na tuberculose, no rachitismo das creanças, nos longos annos cada vez
mais me convenço que é um produto pharmaceutico, de composição racional e de
fácil assimilação, pois já vae preparado para ser absorvido pelos vasos chyleferos,
entrando no organismo para reparar os seus prejuízos, o que vem provar o juízo
seguro que fazemos de sua aplicação nas moléstias debilitantes”. Terminando direi
que a Emulsão Escott é um alimento reparador para as pessoas enfraquecidas,
principalmente para as senhoras no estado de gravidez e durante o aleitamento (A
Nação, de 9 de dezembro de 1905).
No anúncio de um outro produto, agora destinado especificamente à saúde feminina,
percebe-se o interesse pelos produtos estrangeiros. Interessante é notar, que neste anúncio o
medicamento concorrente é citado nominalmente, afirmando-se, inclusive, que possui
“inconvenientes”.
La Salud de la Mujer. Na Drogaria e pharmacia de Roch, Capdecill John & Comp.
Montevideo. “Cura as hemoragias, as Leucorreas as Flores brancas, Transtornos na
Menstruação, Inchação do Ventre, Catharro Cervical e todas as demais enfermidades
do Útero, por mais antigas que sejam. Este poderoso remédio, é superior à
Argentina, Apiolina e etc. pois que além de resumir todas as propriedades desses
medicamentos não possue os inconvenientes dos mesmos (A Notícia, de 4 de
dezembro de 1901).
Na constituição do imaginário feminino à época, percebe-se a existência na hora da
escolha de ter que se decidir por um produto nacional ou de origem estrangeira, de um forte apelo
59
à sensibilidade e responsabilidade da mulher para consigo mesma e para com a sua família.
Produtos estrangeiros são vistos com o mérito de serem usados, acredita-se, também em outros
países considerados mais desenvolvidos, como é o caso da Emulsão de Scott fabricada por
químicos de Nova Yorque. Por sua vez, os produtos fabricados no próprio país levam ao crédito
de serem feitos em função das necessidades desse próprio país, o que sugere que foram fabricados
em função de toda uma realidade que se conhece muito bem. Dessa forma, se o produto
estrangeiro apresenta a fama de ser utilizado por pessoas de outras partes do mundo considerado
mais desenvolvido, os produtos medicamentosos nacionais amparam-se no fato de que procuram
atender naquilo que se faz sentir de mais imediato da realidade nacional.
O forte apelo aos testemunhos de autoridades médicas, para a promoção de
medicamentos, é corroborado também pela presença de testemunhos de pessoas que possuem
autoridade em outra área que não a médica na comunidade. Nesse caso, o depoimento adquire
maior valor porque seu autor faz referência a acontecimentos em sua própria família: sua
mulher e sua filha. Para não limitar a eficácia do medicamento a duas situações específicas, o
autor faz, ainda, referência à extensão dos bons resultados colhidos com o seu uso em muitas
pessoas pobres da região em que vive:
A Nova Medicina. Não posso deixar de felicitar-me pela feliz hora em que tive em
mãos o livrinho “O Novo Médico”, de Souza Soares. Minha senhora, há muitos
annos em tratamento medico em Uruguayana, sem colher resultado, acha-se hoje
completamente boa, com os específicos do Novo Médico do Visconde de Souza
Soares. Minha filha que abortou doze vezes, com a Uteririna nº 2 conseguiu corrigir
esse mal e hoje está criando um filho, uma criança robusta e bem disposta.
Applicando aqui em campanha os Específicos de Souza Soares gratuitamente em
muitas pessoas pobres, tendo colhido muito bons resultados, em molestias do fígado,
estomago, partos, febres diversas, delirium tremens e muitas outras. Annibal Antão
Proisco Servolo, Official reformado do exercito e coronel da Guarda Nacional.
Cayboathé, Município de Uruguayana, Rio Grande do Sul. A venda nas principais
drogarias e pharmacias (A Nação, de 14 de dezembro de 1905).
Também chamava a atenção da leitura feminina, à época, anúncios de remédios
apresentados como infalíveis para diversas moléstias, atestados pela autoridade de algum
“pharmacêutico” de renome:
Saúde da Mulher. Preparado pelo pharmaceutico Joaquim Lagunilla. O remédio
infallivel. Contra as hemorragias do útero, contra a irregularidade da menstruação,
cura a Leucorrhêa, flores brancas, e o catarro cervical etc., etc. A venda no único
deposito de Uruguayana casa de Miguel Vieira (A Notícia, de 3 março de 1900).
60
Saúde da Mulher. A vida das senhoras, preparado por Joaquim Lagunilla, procurem
na - Pharmacia Moura- Rua Duque de Caxias nº 83. 955” (A Notícia, de 6 de julho de 1902).
Mulheres portadoras de enfermidades há algum tempo e que se reconhecem curadas
pelo uso de um determinado medicamento, são utilizadas por fabricantes ou comerciantes
para a promoção de seus produtos:
Figura 5 - Os cuidados com a saúde feminina
61
Kisto no Útero [Foto feminina]. Leonor Siqueira Aragão. Leonor Nunes Siqueira
Aragão, residente na cidade de Pesqueiras, à rua 15 de Novembro, declara que se
achando sofrendo durante o espaço de 3 anos, dois dos quais esteve em Recife,
tratando-se com diversos médicos, sem conseguir melhoras, os quais diagnosticaram
sofrer eu de um kisto no útero e ser preciso fazer uma operação. Recolhendo-me ao
hospital Pedro 2º não quis sujeitar-me a intervenção cirúrgica, porque julgava
sucumbir na operação, obtendo alta deixei o hospital. Ao regressar a casa resolvi
usar o Santo Remédio: Elixir de Nogueira do Phamaceutico chimico (químico) João
da Silva Silveira e com o uso de 6 vidros apenas, consegui ficar curada de tão
terrível moléstia. Como prova de reconhecimento, auctoriso a publicação do
presente - Leonor Siqueira Aragão. Pesqueira, 26 de abril de 1913 (A Nação, de 7
de setembro de 1919).
O depoimento feminino acerca de alguma enfermidade própria de mulheres curadas
pelo uso de um medicamento específico, quando diversas tentativas de intervenção médica
não deram resultado, por certo iria provocar o imaginário de mulheres em situação
semelhante, contribuindo, assim, para a venda do produto: “com o uso de 6 vidros apenas,
consegui ficar curada de tão terrível moléstia”.
No que tange à legitimidade da publicação de tais depoimentos, os anunciantes zelam
para que eles sejam considerados como autorizados e de livre e espontânea vontade feito por
mulheres que foram pelo seu uso reconhecidas como curadas. No caso a seguir, o depoimento
busca notoriedade junto ao público feminino, amparando-se, ainda, no fato de que se trata de
uma mulher de outro Estado:
A Saúde da Mulher. Cura incômmodos de senhoras. “Srs. D. Olga Ferreira Esteves.
Srs. Daudi & Oliveira - cura, radicalmente, com A Saúde da Mulher, de alguns
incommodos próprios do meu sexo, venho expontaneamente attestar a elficacia de
tal medicamento, que aconselho a todas as senhoras”. Laboratório - Daudt &
Oliveira - Rio. Olga Ferreira Esteves (Rio de Janeiro) (A Nação, de 7 de setembro de
1919).
O importante seria não só a venda direta desses produtos, mas garantir o investimento
do público feminino na sua divulgação. Isto é, não bastaria que os produtos fossem adquiridos
pelas mulheres, era necessário que estas, além de adquiri-los para casos específicos de
enfermidades suas, pudessem promovê-los em suas conversas domésticas ou sociais para
outras mulheres portadoras dessas moléstias. Então, a divulgação seria, por um lado, pelo fato
de alguma mulher portadora de tais moléstias ter sido curada e, por isso, estar recomendando
como milagrosos para outras que ainda estejam sofrendo desse mal. Por outro lado, se não
fossem portadoras de moléstias da natureza anunciada, pelo simples fato de terem lido em
62
jornais o depoimento de outras mulheres que do medicamento fizeram uso e se dizem curadas,
poderiam bem informar conhecidas suas que sofressem de moléstias iguais ou que
conhecessem alguém que estivesse sofrendo para retransmitir a informação.
O comércio dos medicamentos visava a mulheres não só como possíveis consumidoras
desses produtos, como também como suas promotoras. Ao jornal, por sua vez, interessava tais
anúncios, pois que a atenção feminina não se limitava aos reclames de notícias sociais e de
ofertas de vestuário e adereços de moda.
Também a oferta de serviços médicos são objeto da leitura de mulheres nos jornais.
Haja vista que, neles, se anuncia o tratamento de moléstias e de doenças específicas da
condição feminina:
Dr. Pedro Armando Lartigau. Diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro - Ex-interno, na mesma capital, do Hospital geral da Santa Casa de
Misericórdia e do Hospital particular - Casa de saúde Dr. Eiras. Especialidade: -
Cirurgia, vias urinarias, partos, moléstias de senhoras, moléstias nervosas e mentaes.
Consultas e chamadas a qualquer hora em sua residência Rua Duque de Caxias nº
37. Assistência gratuita aos pobres (A Notícia, de 20 de outubro de 1899).
Dr. Rego Lins. Diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Acceita
chamados para esta cidade, campanha e municípios visinhos. Consultas grátis aos pobres.
Residência: rua 13 de Maio nº 56 Uruguayana” (A Nação, de 13 de setembro de 1906).
Destaca-se nos reclames a ênfase dada à formação do médico, apresentando-o como
diplomado por uma faculdade de Medicina, estando, portanto, apto, à época, para o exercício
dessa profissão. Também chama a atenção o oferecimento de consulta gratuita às pessoas pobres.
Por meio dos pobres, o médico, também pode-se tornar conhecido das famílias
abastadas, pois só irá chamar o médico, o pobre doente que está sob a guarda de alguma
família de posses. Na verdade, o quem chama não é o doente, e sim o seu patrão ou a sua
patroa que leu o anúncio no jornal. Pobre poderia, afinal, gastar dinheiro comprando jornal?
Só assim os de poucas posses teriam um atendimento médico, do contrário eram cuidados
com remédios e chás caseiros.
Também o oferecimento de tratamento em sanatório estrangeiro, para “epidemias
próprias de las mujeres”, são objeto da atenção das mulheres quando da leitura dos jornais
locais. Neste reclame a redação foi feita em espanhol: trata-se de uma clínica em Montevidéo,
no Uruguai, próximo da região em que o jornal que o publicava era produzido. Os motivos
63
são os de alcançar também pessoas de outras nacionalidades que residiam ali naquela região.
Como se sabe, o idioma espanhol sempre foi de fácil entendimento na região.
Sanatório - 25 de janeiro. “Del Doctor Poney. Calle Cuareyn 86 Montevidéo.
Tratamento de las Epidemias próprias de las mujeres. Pension diária $ 4. Operaciones
sirurjicas precios convencionales”.
Notícias referentes ao estado de saúde de mulheres da região também são visíveis nos
noticiários da época, importando perceber, aqui, como a sociedade se solidarizava com tais
comunicações, em função da matéria muitas vezes publicada apelativamente, nesse sentido,
pela imprensa local. Em algumas vezes o nome feminino é suprimido, bastando que
aparecesse o nome do “consorte”:
Esteve ligeiramente enferma a exma. esposa do nosso bom amigo Nicolau Ugarte.
Esteve ligeiramente enferma em dias da semana passada a senhorita Clotildes Marenco.
Aparecida enferma está, porém, já livre de perigo, motivo pelo qual felicitamos (A Notícia, de
4 de dezembro de 1901).
Noutras vezes, mesmo quando aparece o nome feminino, esse se fazia acompanhar do
nome masculino que lhe conferia reconhecimento de consorte na comunidade:
“Tem estado enferma, a respeitável senhora de Gregório Thevenet, modelar consorte
do nosso bom amigo Lorenço Thevenet” (A Nação, de 9 de dezembro de 1905).
Hontem á noite acommetida de uma congestão pulmonar a Exma. Sra. D. Odila
Carvalho Teixeira, digna consorte do nosso companheiro de trabalho Dr. Rafael B.
Teixeira. O estado da distincta enferma é grave. Fazemos votos pelo seu pronto
restabelecimento (A Nação, de 8 de maio de 1911).
Também quando se trata de senhoritas, o nome masculino do pai acompanhava na
comunicação jornalística:
Tem estado enferma, guardado o leito, a senhorita Flora de Oliveira Tavares, dilecta
filha do nosso distinto correligionário e amigo Sr. Francisco Nunes da Silva Tavares. Que
pronto se restabeleça são os votos que ardentemente fazemos” (A Nação, de 30 de setembro
de 1905).
Em todos esses casos, é possível perceber a presença masculina dando respaldo à
mulher, como que sem o nome e o sobrenome da figura masculina, à qual ela se liga por
matrimônio ou filiação, não teria identidade. No entanto, quando se trata de senhoras, talvez
viúvas, o tratamento dado a elas na notícia não dispensa o qualificativo de excelentíssima:
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Tem obtido sensíveis melhoras em seu estado de saúde, que já bastante animador, a
exma. Sra. D. Elvira B. Ferrari” (A Nação, de 9 de dezembro de 1905).
“Em a madrugada de 25 do corrente foi victimada de um desastre a exma. Sra. D.
Palmira Palma. É o caso que incendiando-se o cortinado do seu leito, ficou aquella senhora,
que está há muito enferma, bastante maltratada” (A Nação, de 28 de dezembro de 1905).
Nota-se, em todos esses casos, um enunciado já identificado nas notícias festivas: é
importante para a mulher ter seu nome ligado a um forte nome masculino. Tal enunciado se
verifica também em casos de se contar com a solidariedade da comunidade na expectativa do
restabelecimento da saúde.
As notícias de morte de mulheres também revelam alguns aspectos interessantes para a
análise da constituição do imaginário sobre o feminino à época, evidenciando enunciados que,
mesmo sofrendo alguma metamorfose do tempo e das idéias, costumam surgir ainda hoje.
Destaca-se, numa dessas notícias, a longevidade alcançada por uma mulher: 120 anos; fato
que nos dias de hoje seria matéria de grande destaque:
Foram sepultados no cemitério d’esta cidade, no mez de janeiro do corrente anno: 2-
soldado Gabriel da Cunha, 23 annos, solteiro; bronquite. 6-Helena Elisa Preis Leães,
nesta cidade, 28 annos, casada; febre typhoide. 9-Maria Antonia, viúva, d’esta
província, 120 annos; enteralgia. 10-José 14 mezes, filho de Antonio Francisco da
Silva; gastro-enterite. 14-Catharine Romero, Correntina, 90 annos; Velhice (O
Guarany, de 1883).
A necessidade de ligar o nome da mulher ao de alguma figura masculina, que dê
amparo ao seu na sociedade, também nos casos de notícias sobre morte aparecem:
Noticias do Rio de Janeiro, dizem haver alli fallecido no dia 21 do corrente a
respeitável Snr D. Maria Valls de Almeida. A finada era filha do Snr. Frederico Valls antigo
commerciante desta praça e natural desta cidade. Aos seus numerosos parentes aqui residentes
os nossos pezames” (A Notícia, de 27 de outubro de 1899).
Em alguns casos, nem mesmo o nome da falecida era mencionado, bastando que se
dissesse o nome masculino, fosse do pai ou do marido, ao qual ela estava ligada:
Victimadas pelo sarampo, falleceram, em dias da semana passada, duas
virtuosas senhoritas, filhas do finado Manoel Bento de Almeida, e cunhadas do
snr. Severo Luzardo. Este facto produziu profunda magoa nos corações de todas
as pessoas que conheceram as inditosas victimas. Uma dellas era noiva do Snr.
Manoel Martins de Oliveira. Paz aos seus restos e pezames à sua família (A
Notícia, de 4 de janeiro de 1902).
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No caso dessa notícia, verifica-se que o pai das duas mulheres já é falecido, mas é,
mesmo assim, citado o seu nome. O nome de um cunhado é citado. Cita-se, ainda, o nome do
noivo de uma delas. Ou seja, três nomes masculinos, aos quais elas estão ligadas, são citados,
e nenhuma vez o nome delas.
A notícia da morte de uma “venerada rio-grandense” permite perceber que, em alguns
casos, o nome feminino também poderia ocupar em primeiro plano a redação da matéria, o
que não dispensava, mesmo assim, a menção de sua ligação a um importante nome
masculino:
D. Maria V. Caldas.
O telegrapho acaba de transmitir nos a infausta nova do passamento da respeitável
matrona cujo nome encima estas linhas. Não é simplesmente diante da dor de um
colega estimável, que nos curvamos cheios de respeito condoído. Fazemol-o
também diante de esquife mortuario de uma patrícia de educação esmerada que
soube impor se pelo seu talento não vulgar, à estima e a consideração de quantos a
conheceram.
D. Maroca, pois que assim era ella designada por aquelles que tiveram a ventura de
conquistar-lhe a intimidade sympathica, manejava com facilidade o idioma pátrio
quer fallando quer escrevendo. Ouvimol-a por diversas vezes orar sobre assuntos
diversos e a palavra fluente correta e burilada, conseguia sempre prender a atenção
dos circunstantes. Prosadora e poetisa inspirada, o seu gênio folgazão e alegre
ageitava-se mais com a satyra que foi sempre o seu forte.
A revolução federalista trouxelhe como resultado a morte do esposo amado que,
fazendo parte do governo provisório de S. Catharina, cahiu em poder do Coronel
Moreira Cezar que o mandou fuzilar. O animo da infeliz senhora abateu-se desde
então e nunca mais lhe vimos pendente d’aquelles lábios a satyra ferina com que tão
bem sabia fulminar quelles a quem ridicularizava. Coberta do lucto da viuvez,
chorosa e minada pela dor, acabada de transpor os humbraes da ecternidade essa
venerada Rio Grandense!
Que durma em paz enquanto nós rendemos, daqui deste recanto, neste rápido
bosqueijo uma homenagem sincera: ao mérito da patrícia illustre, da esposa
dedicada e da maiternissima.
Aos seus parentes e filhos e com especialidade ao nosso velho amigo Caldas junies
as nossas mais sinceras condolências (A Notícia, de 22 de outubro de 1899).
Necrologia. “D. Mimosa Caldas, victimada de uma febre typhoide, falleceu no dia
19 do corrente, na capital do Estado, a Exma s. d. Mimosa Porto Alegre Caldas,
disctinta e modellar consorte do nosso intellegente collega Senhor Caldas Junior,
operoso director e co-proprietário do “correio do Povo” e dilecta filha também,
nosso collega Senhor Apelle Porto Alegre. Com abundancia de coração, enviamos
aos inconsolaveis esposo e pâe, os nossos sentimentos (A Nação, de 30 de setembro
de 1906).
A notícia termina com o entendimento de que a morte é um sono, um sono em que
aqueles, que foram justos e bem queridos em vida, dormem em paz. A religião católica,
naquela época, enfatizava em sua doutrinação que, enquanto não chegava a hora própria da
ressurreição, os justos descansavam em paz até a sua completa redenção naquele tempo
propício prometido. Era essa a noção da morte que era formada na constituição do imaginário
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feminino à época e que contribuía, de alguma maneira, para que, se não fosse de um todo
aceitável o que humanamente parece ser impossível , fosse ao menos suportável da parte
dos que ficavam.
A notícia jornalística sobre a morte de mulheres permite que se perceba a necessidade,
para dar vulto à matéria, de citar-se nomes masculinos, o que não se verifica no caso da
redação legal, publicada no mesmo meio de comunicação à época:
Faço público que estando se procedendo por este juízo e primeiro Cartório de
orphãos ao inventário dos bens deixados por Amabilia Joaquina de Freitas e
achando-se ausente os herdeiros Antonio Teixeira de Farias e Inocência Penha e
Ataliba Teixeira de Farias, o primeiro em lugar incerto e os últimos em Concórdia,
Republica Argentina, cita-se os pelo presente com o prazo de 30 dias para virem
assistir a todos os termos do referido inventário sob pena de revelia. E para os fins
de direito passa-se o presente que será publicado na forma da lei. Uruguayana vinte
e um de junho de mil novecentos e dois. Eu Franklin Pedroso de Albuquerque
escrivão, o escrevi, João da Câmara Vasques. Esta devidamente sellada, conforme F.
Pedroso. Uruguayana 21 de junho de 1902. O Escrivão. Franklin Pedroso (A
Noticia, de 6 de junho de 1902).
Também a necessidade de ligar o nome ao de uma figura masculina de notabilidade
na comunidade aparece no caso em que na notícia aparece o nome de um rapaz falecido e de
sua mãe, não aparecendo o nome do pai. A menção de ligação a um importante nome
masculino, no caso, se dá com a citação de nome dos patrões do filho:
Deixou de existir no dia 17 do corrente, o inditoso jovem Diogens de Oliveira, filho
da respeitavel senhora Malvina de Oliveira. O finado que contava 18 annos de idade,
era muito considerado em nosso meio pela sua contracção ao trabalho. Diogens foi,
desde a fundação da casa filial dos snrs. Bárbara & Filhos, empregado honesto e
laborioso, havendo conquistado de todo o pessoal da casa, merecida consideração (A
Noticia, de 21 de dezembro de 1902).
De igual necessidade se reveste a notícia da morte de uma mulher, tragicamente
acontecida. No caso, não é citado o nome do marido, mas o do irmão:
67
Depois de prolongada agonia de mais de 5 dias, falleceu hoje, a 1 hora da tarde a
desventurada senhora d. Idalina Palma. Infrutíferos iam sendo todos os recursos da
sciencia para debellar o mal que, aos poucos, lhe consummia a existência, quando
um casual incêndio ateado nas cortinas do seu leito, veio accelerar-lhe a marcha para
o tumulo. D. Idalina deixa dois filhinhos menores, órfãos do seu carinho affecto.
Aos seus irmãos João Palma e D. Palmira Palma, apresentamos as nossas mais
sinceras condolências (A Notícia, de 13 de janeiro de 1906).
Campanhas de vacinação contaram com a participação de mulheres à época. Mesmo
sendo presididas por homens, nota-se a participação efetiva de algumas mulheres da
comunidade, contribuindo com alguma soma em dinheiro.
Pela Família
Termina hoje o prazo para o recebimento das quantias subscritas na lista que
organizamos para se mandar vir o Serum contra a Peste Bubônica.
Como é natural devemos nesta questão proceder com Maximo escrúpulo pois que
devido ao facto de não sermos bastante conhecidos, poderão, sobre nós, recahir
suspeitas diante de qualquer falta.
Assim ficam todos avisados de que publicaremos quarta-feira os nomes d’aquelles
que assignaram e não pagaram, no Balancete ligeiro que também nesse dia
publicaremos.
Fazemos esta declaração para que não haja razões de queixas por essa falta de
delicadeza que redundaria em deshonra para nós e para si a omittissemos.
Quarta-Feira providenciaremos no sentido de obter Serum.
De todas as transações que fizemos, daremos conta aos nossos leitores.
Constituem a comissão Provisória os seguintes cidadãos: Baldomero Bárbara.
Eleázar de La Linde e Antonio Azevedo (A Notícia, de 20 de novembro de 1899).
Subscrição publica. Promovida pela A Noticia para se mandar vir serum Anti-
Pestífero contra Peste Bubônica. Quantia angariada no dia 26 do corrente em meia
hora. Quantia já publicada 410.000. Intendente Portugal (para indigentes) 200.000,
Jose Affonso Wamosy 10.000, Leôncio Lago 20$000, Carolina Carvalho 30$000,
Urbano Villella 50$000, Theobaldo De Souza 20$000 (A Notícia de 28 de 1899).
Subscrição publica. “Promovida pela A Noticia para se mandar vir o Serum Anti-
Pestifero contra a Peste Bubônica. Quantias já publicadas, 1.310:000. Intendência
Municipal 1.000:000, Cristiano Koeler 10.000, José Pedro Machado 10.000,
Francisco M. da Silva 10.000, Major Balbuno de Castro 10$000, Gasparina Dantas
20$000, Josephina Gonçalves 10$000, Alcides Silva & C. 10$000, João Jacques
Valença 10$000, Maximo R. Machado 20$000. Soma Rs 2:420$000 (A Notícia, de
1 de novembro de 1899).
A preocupação com a saúde em nível regional se faz presente nas notícias jornalísticas
da época, meio pelo qual chamavam a atenção de toda a comunidade, solicitando o auxílio de
todos os cidadãos uruguaianenses para algum problema muito sério naquele momento. O que
68
não estava limitado à participação masculina; e foi possível perceber, quando apareceram
nomes de mulheres que assinaram lista de contribuição e também a quantia por elas doadas.
Este capítulo, em que tratei da saúde e da beleza feminina, evidenciou alguns
enunciados que ajudaram a compreender um pouco do que constituía o imaginário feminino
nessas questões no contexto da implantação da modernidade no país, em que era preciso
mostrar ao mundo que o processo de europeização aqui era possível.
Nestes enunciados, destacou-se a preocupação em ter o nome da mulher ligado a um
forte nome masculino, seja do pai ou do marido, mostrando à sociedade que se tratava de uma
mulher de família. Bem casada ou, no caso de ser solteira, uma senhorita, pelo sobrenome
ligado ao seu nome, deveria ter tido uma esmerada educação e preparação para a constituição
de uma nova família pelo casamento.
No caso de mulheres cujo nome ou sobrenome não estivessem fortemente ligados pela
presença de uma figura masculina de reconhecimento na sociedade, e que precisassem
trabalhar e amparar-se apenas na sua própria figura, o esforço pelo reconhecimento social
parece que deveria ser redobrado. Até mesmo para, no caso de precisarem estar fora de casa
por muito tempo, não serem confundidas com meretrizes.
Quanto à moda feminina, no vestuário, nos adornos e nos produtos de beleza, a oferta
comercial fazia um forte apelo à vaidade feminina, dentro do requisito de que as mulheres
precisavam estar bem vestidas para serem vistas como mulheres respeitáveis, porque de boa
família. O exagero poderia fazer serem malvistas. Uma mulher bem apresentada, nesses
termos, também servia para que a figura masculina fosse prestigiada, pois demonstrava que
estava sendo bem-sucedido em sua responsabilidade de sustentar com qualidade e conforto a
sua casa e com isso evidenciar cuidados com a família, em especial com a esposa.
Também a oferta comercial de produtos, para que a mulher tivesse uma boa saúde,
apelam para esse requisito social necessário à mulher que era apresentada à sociedade como
digna de ser uma boa esposa e de bem cuidar da família. A mulher, além de ter que se
apresentar como zelosa de sua aparência física, precisava ser saudável, capaz de procriar. Nos
reclames comerciais, era valorizada a voz feminina para veicular esse enunciado, pelos
testemunhos que davam da eficácia de determinado produto farmacêutico, dando legitimidade
à publicação.
A oferta de tais produtos para a saúde feminina, de forma freqüente na imprensa,
evidencia a preocupação da sociedade em bem cuidar do sexo, à época considerado frágil e
dependente.
69
Mas essa preocupação pode ser compreendida em um duplo sentido de significado.
Primeiro, evidenciando uma preocupação com o corpo feminino, apto à procriação,
disciplinarizado e normalizado não só pelos ambientes que elas poderiam freqüentar sem
medo de serem malvistas, mas também com saúde e encantos necessários para docilizar,
disciplinar e normalizar o lar. Uma outra possibilidade de sentido estaria na preocupação
social com a boa imagem masculina: era preciso que o homem demonstrasse à sociedade que
tinha condições de bem cuidar de sua família, não só pela provisão do teto, da roupa, da
alimentação, mas também do conforto e dos tratamentos médicos necessários à promoção da
saúde da família.
Com isso, apresento que a saúde e a beleza feminina tinham um preço a ser pago pelas
mulheres, o preço de serem dóceis, submissas, disciplinadas e normalizadas dentro de regras e
princípios de recatamento e práticas sociais e religiosas que as faziam bem-vistas pela
sociedade. Um preço majorado pelo acréscimo dos juros do poder masculino que tinha, entre
seu orgulho, o fato de poder apresentar à sociedade uma mulher bem vestida, bem cuidada,
bela, com saúde, mas habilmente dependente do sustento masculino, seja pelo nome do pai ou
do marido. Um preço que mulheres que não se enquadravam nessa condição feminina,
considerada ideal ao período tinham duplamente a pagar, pois que, mesmo sem a ostentação do
masculino formal na figura do pai ou do marido protetor, elas precisavam pagar de outra forma,
mostrando que também poderiam ser mulheres de bem para a época, apesar de terem que se
dividir entre o trabalho para o sustento de si ou de sua família e o cuidado da própria casa.
A preocupação em evidenciar duplamente sua honestidade, pelo trabalho e pelo recato,
por outro lado, as dispensava de certas obrigações que tinham as mulheres dependentes do
nome masculino consideradas ideais - como, por exemplo, a obrigação de se mostrar dócil,
dependente e eternamente agradecida à proteção masculina do pai ou do marido. Foram
mulheres que, pela sua conduta de honestidade e de enfrentamento a valores considerados
próprios à mulher considerada ideal, mostraram outras possibilidades de se viver o feminino.
Assumiram sua própria vida, independentemente da presença real da figura masculina, muito
embora as condições de trabalho e de tratamento dispensados a elas se dessem também na
mesma forma de cobrança da sociedade, do ponto de vista de uma sociedade estritamente
masculinizada em seus ditames e valores. O fato de não terem seu nome ligado a um forte
nome masculino não significava que fossem liberadas da condição de submissão feminina,
senão cobrada pela presença real de um pai ou de um marido, pela presença invisível da
sociedade que era organizada em ideais masculinos.
70
6"C"EQPFKÑ’Q"FQ"HGOKPKPQ"PC"QTICPK\CÑ’Q"FC"HCO¯NKC"
"
"
Figura 6 - Notícias que ressaltam a organização familiar
No contexto da Belle Époque, Soihet (2002, p. 363) nos permite ver que as mulheres
“estavam impedidas do exercício da sexualidade antes de se casarem e, depois, deviam
restringi-la ao âmbito desse casamento”. Segundo ele,
Cesare Lombroso, médico italiano e nome conceituado da criminologia no final do
século XIX, com base nesses pressupostos, argumentava que as leis contra o
adultério só deveriam atingir a mulher não predisposta pela natureza para esse tipo
de comportamento. Aquelas dotadas de erotismo intenso e forte inteligência, seriam
despidas do sentimento de maternidade, características inata da mulher normal, e
consideradas extremamente perigosas. Constituíam-se nas criminosas natas, nas
prostitutas e nas loucas que deveriam ser afastadas do convívio social.
Flores (1988, p. 105) registra a questão da organização da estrutura familiar no Rio
Grande do Sul, à época, dizendo que “as famílias dos estancieiros classificavam-se como famílias
extensas [...] por terem elementos patriarcais, onde o homem era a cabeça do casal e vivia com
diferentes tipos de parentes na mesma casa”. Na continuidade, o autor apresenta que:
71
O capataz, por sua condição econômica e por ser administrador da estância, formava
família estável, tendo como base o matrimônio. Os agregados, peões e escravos, por
sua pobreza, constituíam famílias instáveis, gerando filhos que muitas vezes eram
abandonados junto com a mãe, na nova gravidez.
“A ‘pureza’ era fundamental para a mulher, num contexto em que a imagem da
Virgem Maria era o exemplo a seguir”. Segundo Soihet (2002, p. 363), que assim escreveu,
retratando a condição feminina no contexto do final do século XIX e nas duas primeiras
décadas do século XX:
“Ser virgem e ser mãe” constituía-se no supremo ideal dessa cultura, em contraposição à
“mãe puta”. E, assim, mulheres abandonadas expunham suas vidas em práticas abortivas
toscas e apressadas, outras se desfaziam do recém-nascido nas situações mais trágicas.
Transformavam-se em monstros, numa cultura alimentada pelo estereótipo do amor de mãe
como instintivo, “porquanto as feras indomáveis, essas mesmas, com sua asperidade, têm
amor”. Outras que arriscaram viver sua sexualidade, com outro parceiro que não seu
marido, foram assassinadas em nome da “legitima defesa da honra”
No que se refere ao matrimônio, Flores (2006, p. 108-11) apresenta que “católica por
tradição e por imposição do governo, a sociedade do século XIX no Rio Grande do Sul
considerava a virgindade um símbolo de pureza”. Neste sentido,
o próprio casamento, dentro dos princípios de santo Agostinho, era meio de
procriação, sendo condenada como pecado venial qualquer relação sexual que não
fosse para aumentar a prole, por estar envolvida no prazer. As leis previam a
anulação do matrimônio se a noiva não fosse virgem. [...] A facilidade com que a
negra e a índia se entregavam a qualquer um, conforme depoimentos de viajantes,
também contribuía para a condescendência das uniões ilícitas, geradora dos
chamados “filhos das macegas”.
Algumas mães, pressionadas pela miséria, ou pelas convenções sociais por
pertenceram aos segmentos médio e superior da sociedade, abandonavam os recém-
nascidos à caridade pública.
Sobre a dimensão educativa considerada inerente à condição feminina na família,
Flores (2005, p. 113) destaca que “na dimensão espacial da vida social, cujo núcleo era
formado pela família, destacava-se a mulher com sua tendência educacional e moralizadora
dos filhos, preparando-os para formar nova família, conforme os preceitos da Cristandade
latina ocidental”. Tais considerações de Flores (2005) mostram-se importantes aqui, porque
neste capítulo trato da condição do feminino na organização da família.
72
A união de um casal, para ser reconhecida socialmente e assim valorizada na
perspectiva da constituição de uma nova família nos parâmetros da religião, precisava
percorrer antes de sua consumação os trâmites legais. O principal desses atos era a
publicação, na imprensa local, do edital de casamento.
No texto que compunha o edital ficava bastante claro, de forma objetiva, o
entendimento de que os documentos necessários para solicitar o enlace reconhecido pela lei
foram apresentados, estando, portanto, os consortes “habilitados” para estabelecer o
“contrato” matrimonial. Mesmo assim, em sua declaração, o edital abria a possibilidade de
que em alguém “conhecendo algum impedimento, acuse-o para fins de direito”.
Os editais, coerentes com a objetividade perseguida pela redação legal, não usam
adjetivos esmerados, como acontece nas notas da imprensa que noticiam casamentos, para
qualificar os pretendentes ao matrimônio. Deixam também claro que, nos termos da lei, o
enlace romântico trata-se, verdadeiramente, de um contrato firmado em bases legais, como se
vê nestes dois textos, um no início e outro no fim da primeira década do século XX
11
:
Editais.
Juízo de casamento do 3º districto do termo de Uruguaiana.
Contrataram casar-se o cidadão Leonardo Ferreira da Costa e d. Senhorita Dias
Ferreira, ambos naturaes deste Estado e residentes neste 8º districto.
Apresentaram os documentos em forma legal.
Se alguém conhecer algum impedimento, acuseo para os fins de direito.
Cayboathé, 8 de janeiro de 1902.
O escrivão - Clarimundo Leal (A Notícia, de 12 de janeiro de 1902).
Edital.
Antônio Pereira do Conto, Escrivão da Provedoria e Casamentos de Uruguaiana.
Faço publico que por este Cartório habilitam-se para casar Gaspar Vieira do Amaral
e dona Octacilia Marques Ferreira, solteiros, naturaes deste Estado e residentes neste
distrito. Se alguém conhecer impedimento, acuse-o para os fins de direito.
Uruguayana, 19 de outubro de 1910 (A Nação, de 18 de outubro de 1910).
Firma-se, com isso, na constituição do imaginário feminino à época, a importância do
ato perante a legalidade da sociedade: estabelece-se um contrato entre duas famílias. Se ao
homem caberá providenciar o sustento da nova família, honrando sua parte nesse contrato, à
mulher caberá a responsabilidade, por sua vez, de desempenhar-se a contento no seu mister de
servir ao marido, de cuidar da educação dos futuros filhos e de zelar pela administração
11
Os destaques em negrito, nestas e em outras citações dos jornais que aparecem a seguir, são meus.
73
doméstica do lar. Isso tudo, na verdade, não está escrito nesse contrato com tais palavras. Mas
são enunciados potentes que são firmados nesse momento em função da concepção
tradicional de família. Nessa concepção, as responsabilidades estão muito bem divididas. O
“contrato de casamento” firma, entre outros enunciados desses decorrentes, o domínio do
homem por ser o “chefe” da nova família e à mulher a “submissão natural” para que o novo
lar se constitua e seja bem-visto pela sociedade que o reconheceu legalmente.
No contexto da modernização acelerada da sociedade brasileira, nos moldes da
implantação do Capitalismo, “a preocupação com o casamento crescia na proporção dos
interesses patrimoniais a zelar. No Brasil do século XIX, o casamento era boa opção para uma
parcela ínfima da população que procurava unir os interesses da elite branca. O alto custo das
despesas matrimoniais era um dos fatores que levavam as camadas mais pobres da população
a viver em regime de concubinato” (SOIHET, 2002, p. 368).
Conforme se observa em Pedro (2002, p. 303), quando cita a influência das idéias
positivistas na disciplinarização da sociedade gaúcha,
A ditadura da República Científica, implantada no Rio Grande do Sul através da
Constituição de 14 de julho de 1891 e influenciada por Júlio de Castilhos, previa o
casamento monogâmico como forma de manutenção da ordem, através da
disciplinarização dos indivíduos. Fazia parte desse projeto político a moralização da
sociedade. O casamento civil era o destino desejado aos homens e especialmente às
mulheres. Em 1893, o Jornal Exemplo lembrava a todos que:
O casamento civil é hoje a instituição que lança os fundamentos da família.
O casamento religioso, na época monárquica, teve seu papel importante; mas, após a
vinda da República, seu efeito tem sido considerado apenas de crença [...].
Para boa marcha da sociedade, para garantia dos bens e felicidade da família, os pais
sempre devem casar civilmente, embora unam-se por laços compatíveis com suas
crenças religiosas.
A exigência do casamento civil, além de figurar na constituição e ser divulgado
pelos jornais, era cobrada das camadas populares, num claro descompasso com a
vivência dos mais pobres. Em Porto Alegre, no final do Século XIX e início do XX,
“amaciar-se” envolvia responsabilidades e era considerado como equivalente ao
casamento civil pelas camadas populares. Entretanto, para o aparato jurídico-
policial, esse tipo de relação não era considerado como casamento.
Mas um grande evento como o casamento exigia uma apresentação impecável, tanto
da noiva como dos convidados. A cidade parava para ver esse acontecimento e analisava
todos os convidados. Esse evento era como um desfile de moda e elegância. A noiva, o noivo,
seus pais e padrinhos, seus convidados, todos se preocupavam com a imagem no bem vestir e
trajar, refletindo sua condição e suas posses na sociedade. Receber um convite para uma festa
dessas, em se tratando de famílias ricas, já era sinal de um status, motivo até para esnobar os que
74
não foram convidados, e uma boa oportunidade de se relacionar com a classe poderosa. O povo se
divertia assistindo de longe, ficando na praça e dela a olhar todos os convidados que chegavam.
Comentavam sobre as roupas e os calçados dos presentes, contavam em detalhes o vestido da
noiva, tiravam modelos para depois copiar mesmo com tecidos sem qualidade. Era uma diversão,
um acontecimento na cidade, em que, mesmo não sendo convidado, o povo participava.
A imprensa também é utilizada para a oferta de tudo aquilo que se considera pela
sociedade como indispensável ao conforto do casal no início da constituição da nova vida
familiar. Destaque se dá à oferta comercial de “enxovaes completos” para as noivas,
especificando o mínimo necessário a elas, de forma que, ao conferir sua lista, não esteja
faltando nada. Um reclame, encontrado na metade da primeira década do século XX, assim
apresenta esses “detalhes” que fazem parte do imaginário feminino quando se trata de sua
preparação para o casamento:
Enxovaes Completos Para Noivas. “Luvas de película e de seda especialidade em
seda para vestidos por preços baratissimos. Alpacas, cambraias, piquets, zephir
nansut, etc. Rendas, tiras bordadas e fitas o que há de mais moderno e chic. Lenços
de seda, linho e algodão, completo sortimento de perfumarias (A Noticia, de 17 de
outubro de 1905).
A imprensa, que publica os editais em sua redação objetiva, também escreve notas sobre a
efetivação do ato legal de firmar o contrato do matrimônio. Nessas notas a linguagem é esmerada
em adjetivos, com algumas particularidades interessantes de evidenciar na análise feita.
Quatro notas extraídas do jornal C" Pqvîekc, publicadas no ano de 1899, dão uma
amostra de como a imprensa acrescentava valor à matéria do matrimônio enfatizando os
nomes não só dos nubentes, mas também daqueles que estavam diretamente envolvidos em tal
“consórcio”:
Consorciaram-se hontem conforme noticiamos a Exmª. Snrª. D. Tiloca Carrilho e o
Snr C. M. Curiós Mariano de Campos.
Paranimpharam o acto. Por parte do noivo tanto no civil como no religioso os Snrs.
Coronel Maciel com sua Exmª. Snrª. E o Coronel Portugal com D. Amália Fabrício e
por parte da noiva os Snrs: Fausto Martins Ribeiro e Chatinha Carvalho e Frederico
Peró com sua Exmª. Snrª. (A Notícia, de 22 de de outubro de 1899).
75
Observa-se que o tratamento, tanto para os noivos como para os padrinhos, a dois
homens acrescentou-se a sua função na sociedade, coronel, ou seja, militar de alta patente.
Das mulheres citadas entre as pessoas que “paranimpharam” o “acto”, faltou o nome de uma
delas. Numa sociedade em que geralmente se fazia referência ao nome do homem não sendo
obrigatório citar o nome da esposa, é, no mínimo, curioso que, quando todas são citadas, se
deixe de mencionar uma delas. Esquecimento da imprensa? Como essa mulher e as outras da
sociedade viram esse fato? Um lapso na redação jornalística? Teria sido corrigido, se assim
fosse entendido?
Dois dias após essa publicação, o mesmo jornal noticia um outro “consórcio
acontecido dez dias antes “no lugar chamado Cayboaté”, em que um “estimado moço”
compromissa-se com uma “galante senhorita’ que é “filha do fazendeiro d’aquelle distrito”.
Observa-se nessa nota que o nome do fazendeiro é citado, mas não o de sua esposa:
"
Consorciaram-se também no 3º Distrito deste termo, no lugar denominado
Cayboathé, no dia 14 de outubro, o estimado moço Francisco Rosses com a galante
senhorita Maria José Nunes filha do fazendeiro d’aquelle distrito o Snr. José Nunes.
Testemunharam o acto por parte da noiva, Snr. Ventura Rosses e sua cunhada Zola
Rosses e por parte do noivo o Snr. Pedro Nessi e D. Engracia B. de Moura.
O jovem par chegou no dia 20 do corrente a esta cidade, seguindo em breve, o Snr.
Francisco Rosses a negócios particulares, para Possadas. Aos Recém casados,
muitas felicidades (A Notícia, de 24 de outubro de 1899).
Quando a redação legal do edital fala de contrato, a redação jornalística na
apresentação de notas sociais permite-se dizer que se trata romanticamente de um “enlace’ em
que um “estimado moço” une-se “pelos indissolúveis laços do matrimônio” com uma “gentil
senhorita”. Novamente a citação de nomes considerados de destaque na alta sociedade dão o
relevo ao evento.
Uma notícia publicada na mesma data daquela anterior é apresentada como um
complemento a uma notícia divulgada sobre um casamento, em que se justifica o fato pela
necessidade de acrescentar que as duas cerimônias, civil e religiosa, realizaram-se na casa da
família da noiva. Com detalhes da festividade, o jornal destaca a presença de pessoas
“altamente colocadas d’esta cidade, citando algumas delas, todas masculinas, sendo duas de
alta patente militar:
76
Locaes.
Como complemento a noticia dada em nosso ultimo numero sobre o enlace
matrimonial capitão Marcos Curius e D. Tiloca Carvalho acrescentamos agora, que
as cerimônias civil e religiosa realizaram-se em casa da família da noiva.
Tocaram durante a realização das cerimônias matrimoniaes, as duas bandas militares
dos corpos aqui estacionados.
Entre as pessoas altamente collocadas d’esta cidade que alli se achavam, notamos a
presença dos Snrs. Sergio de Oliveira, Felisberto Leão, Emilio Giralt, Commandante
da Guarnição Tte. Coronel Maciel e Major Távaro. Findas as cerimônias religiosas,
foi servida uma mesa de finíssimos doces regada por deliciosos líquidos.
As 11 ½ da noite os noivos retiraram-se, acompanhados dos respectivos
paranimphos até a sua nova residência.
Ao novel mel [...] (A Notícia de 24 de outubro de 1899).
Essa publicação mostra que o casamento que se realizou é de pessoas importantes na
cidade (foi realizado, em suas duas cerimônias na casa da família da noiva) que ocupam cargos de
alta patente no exército de Uruguaiana, o que fica evidenciado, por exemplo, pela presença das
duas bandas do exército animando a festa. Destacam os convidados como pessoas altamente
colocadas socialmente, ou cidadãos enriquecidos, e, por isso, importantes na sociedade.
Ela ressalta que o casamento foi realizado “no civil e no religioso”, ou seja, dentro das
normas da lei dos homens e da Santa Igreja, como um exemplo a ser seguido por todas as
famílias que almejam ser respeitadas como modelos de estrutura familiar bem-sucedida.
No entanto, sabe-se que, no contexto geral de um país, que desejava acelerar sua
modernização tendo os olhos fitos na Europa, essa premissa de que a organização familiar
começa com um bom casamento não era possível muitas vezes na prática das pessoas
marginalizadas pela condição econômica:
As moças brancas, mas pobres “sem dotes e sem casamento, abandonavam os
sobrenomes de família para viver em concubinatos discretos, usando apenas os
primeiros nomes”. Assim, concubinas, mães solteiras ou filhas legítimas viviam em
sua maioria no anonimato.
A vida familiar destinava-se, especialmente, às mulheres das camadas mais elevadas
da sociedade, para as quais se fomentavam as aspirações ao casamento e filhos,
cabendo-lhes desempenhar um papel tradicional e restrito. Quanto àquelas dos
segmentos mais baixos, mestiças, negras e mesmo brancas, viviam menos protegidas
e sujeitas à exploração sexual. Suas relações tendiam a se desenvolver dentro de um
outro padrão de moralidade que, relacionado principalmente às dificuldades
econômicas e de raça, contrapunha-se ao ideal de castidade. Esse comportamento,
no entanto, não chegava a transformar a maneira pela qual a cultura dominante
encarava a questão da virgindade, nem a posição privilegiada do sexo oposto
(SOIHET, 1999, p. 368).
77
O anúncio da realização de um casamento, publicado pela imprensa uruguaianense à
época, não registra o nome da mãe da noiva. Apenas o nome de seu pai, militar de alta
patente. Também não faz referência aos pais do moço:
Unem-se amanhã, pelos indissolúveis laços matrimoniaes, o estimado moço Antonio
Carvalho e a gentil senhorita Bárbara Ortiz Portugal extremecida filha do Coronel Portugal”
(A Notícia, de 3 de novembro de 1899).
Ao dizer que se unirão “amanhã, pelos indissolúveis laços matrimoniaes”, a
informação mostra que se trata de um casamento legal e, principalmente religioso, primeiro
porque para a Igreja Católica o casamento é indissolúvel e não é permitido casar novamente e,
segundo, porque dificilmente os jornais publicariam com grande ênfase um casamento que
não fosse formalizado por ato religioso.
É notável, nas informações apresentadas pela redação jornalística ao noticiar
casamentos, menção à condição da mulher: senhorita - ligando o nome desta ao do pai,
citando-o por extenso. Isso indica que se trata de uma moça “de família”, que tem no amparo
a figura paterna que lhe dá ao nome o reconhecimento de que está sendo levada ao altar
segundo os preceitos morais mais rígidos da família estabelecidos pela Igreja, para
“consorciar-se” com alguém considerado socialmente “digno”.
Pelos Lares. Consorcio - Consorciou-se, hontem o digno moço Sr. Alcino de Castro
com a gentil senhorita Verônica Pessano. Ao distincto par auguramos as mais residentes
felicidades” (A Nação, de 18 de outubro de 1910).
Interessante de se notar, nessas notícias, também, é que o nome do noivo vem sempre
citado primeiro. O da noiva, se faz acompanhar do nome do pai. O de pessoas que, com seu
nome socialmente reconhecido, podem prestar relevância ao evento, também são citados, e os
adjetivos utilizados dão conta de que se trata de “pessoas de bem” (estimado, digno, gentil,
galante [...]).
Contraído o matrimônio nos moldes religiosos e segundo a legislação, a cada parte
contratante cabia o cumprimento de enunciados que lhe diziam de suas obrigações. Uma
delas, atribuída à mulher, era a de “dar filhos ao seu marido”. Nessa concepção, cabia a ela
acolher a semente masculina, gerar o desenvolvimento em seu ventre de algo que era do
homem e, no tempo certo, “devolver-lhe”: “deu à luz um seu filho”. Essa mentalidade
constitutiva do imaginário feminino da época fica bastante evidente quando se lê em uma nota
jornalística: “O sympatico artista Arthur Lerena teve a" amabilidade de avisar-nos, muito
contente, que sua esposa deu à luz um seu filho brasileiro. O intelligente actor mostra muito
contentamento por esse facto. Parabéns e obrigado (A Notícia, de 3 novembro de 1899).
78
Nessa nota observa-se, também, que apenas o nome do marido é citado, o da mãe não,
resume-se sua apresentação à condição de “sua esposa”. O mesmo fato ocorre nesta outra
nota: “Deu a luz a uma interessante criança, em a noite de 28 do passado, a exma. esposa do
nosso amigo José Telechêa. Parabéns (A Notícia, de 2 de julho de 1902).
A maternidade era muito importante para as mulheres casadas e vista quase como uma
obrigação. A cobrança não se limitava ao marido ou à família no geral; o apelo social era
muito grande. A imagem criada era de que as mulheres que não conseguiam dar à luz um
herdeiro ou herdeira estavam condenadas à infelicidade eterna e seu casamento fadado ao
fracasso. Na maioria das vezes elas podiam ser vistas como mulheres doentes e
impossibilitadas, como se essas mulheres nunca fossem conseguir realizar-se como pessoas. A
realização feminina se limitava à maternidade. Acredito que isso esteja muito mais ligado à
preocupação masculina, pois o homem mostrava sua virilidade por meio da gravidez feminina
- motivo de tanto orgulho para os homens. É só prestarmos atenção aos anúncios sobre
nascimentos, de bebês: os nomes dos pais são os mais citados. A mulher dá à luz, mas é o pai
o mais parabenizado.
Pedro (2002, p. 298), registra que “diferente do contexto nacional da Proclamação da
República, no qual predominaram as idéias liberais, no Rio Grande do Sul prevaleceram as
idéias positivistas de Augusto Comte, influenciando os governantes e a intelectualidade local
por várias décadas”. No que se refere à condição feminina, segundo a autora,
A predominância das idéias positivistas significou a repetição, nessa região, dos
mesmos discursos homogeneizadores dos papéis femininos: identificou a mulher
como tendo uma natureza complementar à do homem, apresentando uma diferença
que justifica sua educação específica.
Mesmo assim, significaram um certo avanço, “ homens de amanhã” - coisa rara até
então.
Para o pensamento positivista, divulgado em Porto Alegre pelo Centro
Positivista, ser mãe era o papel mais sublime que uma mulher poderia desejar.
Assim, os papéis familiares de filha, irmã e esposa eram uma espécie de
preparação para a função de mãe. Nesses escritos, a autoridade masculina e a
submissão feminina eram compreendidos no binômio “obediência e amor”.
Nesse caso as mulheres obedeciam, porque eram delicadas e meigas (PEDRO,
2002, p. 298).
Sabe-se, no entanto, que, de maneira geral, um dos mais notáveis enunciados inferidos
do contrato de casamento é aquele que diz que cabe à mulher zelar pelo crescimento forte e
saudável dos filhos. Nesse aspecto, o cuidado com a alimentação deles deve ser sua
79
preocupação constante. O conceito de saúde, por essa época, ainda estava ligado à robustez
física, muitas vezes entendida como sinônimo de gordura.
Conforme observa Pedro (2002, p. 299), quanto às principais tarefas destinadas à
mulher,
para os positivistas a função feminina consistia em “aperfeiçoar a natureza humana”.
Ela então deveria “agir mais especialmente sobre seus filhos, seu esposo, seus pais.
Precisa ter deles um conhecimento profundo. É por isso que sua inteligência é mais
sintética: tem mais contemplação concreta, mais meditação indutiva, mais aptidão
para generalizar”.
Diretamente de outras doutrinas, o positivismo não afirmava a inferioridade
intelectual das mulheres, mas sim que sua inteligência era completa à do homem.
O aleitamento materno era uma das obrigações da mulher para com os recém-
nascidos. Porém, era"comum algumas mulheres,"após dar à"luz, não terem leite o suficiente
para alimentar seus filhos e, assim, recorriam às amas-de-leite: negras fortes e de confiança
das famílias locais, que recomendavam para quem delas precisasse.
Mas esse não podia não ser o único motivo para dispor dos serviços da ama-de-leite. A
vaidade também poderia ser um fator relevante na procura desta “profissional”. Alguns
homens acabavam rejeitando suas mulheres nesse período de amamentação. O seio, um órgão
feminino muito sensual, agora servia para alimentar uma criança; então, como poderia ser
acariciado como um desejo sexual? Chegava a ser repugnante para alguns e pecado para os
mais católicos. Muitas mulheres, com medo ou receio de perder seu marido, ou querendo
impedi-los de buscar amantes, lançavam mão das amas-de-leite.
Os anúncios de procura ou de oferecimento destes serviços de amamentação deixavam
claro que a ama-de-leite devia ser limpa e com boas recomendações: havia toda uma
preocupação com os hábitos, caráter e formação desta mulher-ama-de-leite, porque havia a
crença de que por meio do leite materno pudessem ser transmitidas doenças ou, até mesmo,
ocorrer influência na formação do caráter daquela criança em formação: “Ama. Nesta
typographia se indica, a quem precise uma ama de leite aceiada e com optimas
recomendações” (O Guarany, de 9 de maio de 1880).
Também o trabalho da mulher-parteira era necessário e muito valorizado na
comunidade, principalmente no interior, em que os serviços de um médico fossem de difícil
acesso, fosse por distâncias geográficas, fosse por condições de oferta desse profissional
diplomado ou também por questões de ordem econômica:
80
Parteira. Recém chegada a esta cidade onde vem estabelecer-se, fica à disposição
das pessoas que carecem dos seus serviços profissionais dentro e fora da cidade.
Reside inteiramente à Praça de Paysan casa de João Zacouteguey. Chamados a
qualquer hora. Assistência grátis aos pobres [...] (O Guarany, de 9 de maio de 1883).
Até a chegada do médico, quando havia este por perto, era à mulher-parteira que cabia
os preparativos da gestante no trabalho de parto - uma espécie de enfermeira, forjada pela
própria experiência de vida. Acontecia, também, de que tardando o médico ou na sua não
vinda, era ela quem efetivamente ajudava a mulher a dar à luz. Um informativo encontrado
sobre uma peça teatral, publicado na imprensa local, ilustra esse fato:
Drama Instar tanee
Personagens
Uma senhora
Uma parteira
Um médico
Uma criança recém-nascida.
O Theatro representa um quarto de cama. Um jarro com tisana e uma chávena sobre
a mesinha de cabeceira. Alguns vidros de pharmacia.
Cena I
A Senhora (deitada na cama ao fundo do theatro), a parteira (mexendo um remédio
em um copo com uma colher)
Parteira - Tome minha senhora, beba isso.
Senhora - Sinto que o momento fatal se aproxima. Padeço horrivelmente.
Parteira - O doutor não pode tardar e além disto estou eu aqui
Senhora - Ah! Ah! Meu Deus! (recahe sobre o travesseiro)
O doutor chega a tempo. A situação é renovada de Aristophanes. Mas a continuação
pertence exclusivamente a de I’ Isle d’ Adam.
O doutor (vindo à bocca da scena, com um recém-nascido ao collo)
É um rapaz
Parteira - É magnífico (A Notícia, de 4 de novembro de 1899).
Também se encontra, por outro lado, notas na imprensa que dão conta de
desajustamentos familiares provocados por descumprimento masculino de sua parte do
contrato matrimonial:
A Pedido. “Um marido injusto e pae desnaturado. Há procedimentos tão revoltantes,
offendem a moralidade publica e o dever natural. É desse quilate aquelle de que
vamos tratar, e que o publico sensato e morigerado repele. Existia no município da
cidade de Alegre, um casal que vivia na melhor e mais amistosa união e
intelligencia, estimulando-se e respeitando-se reciprocamente.
A esposa como extremosa consorte e carinhosa, mãe, adorava e idolatrava a seus
filhos e esposo. Este, não sabendo apreciar essas bellas qualidades, e desconfiado de
si próprio, tornou-se zeloso.
81
E sem que procurasse convencer-se de seu injusto pensar, nelle continuou, não
obstante as constantes provas que de sua esposa.
Dessa imprudente e infundada desconfiança resultou que, esse injusto marido e
desnaturado pae concebe-se a idéia de procurar um meio de reduzir sua mulher e
filhos a completa miséria. Envelado por esse tresloucado e bárbaro pensamento o
levou affeito, abandonando [...] (O Guarany, de 9 de maio de 1880).
A nota é “a pedido”, sem assinatura. O desprezo pelo feito é tanto que nem o nome de
“aquelle de que vamos tratar” é citado. Trata-se do rompimento de um “dever natural” que
resulta num importante enunciado contido no contrato do matrimônio: ao homem cabe zelar
pelo sustento e conforto de sua mulher e prole. Isso ofende a “moralidade pública”.
A causa atribuída à descontinuidade da harmonia que reinava no lar é dada a ciúmes
do marido, que, apesar das provas de honestidade dadas a ele pela sua mulher, o levaram a
abandonar o lar, reduzindo “sua mulher e filhos a completa miséria”.
A nota é escrita num tom que provoca o repúdio nos leitores pelo acontecido, porque
trata-se do rompimento unilateral de um contrato sagrado: “o consórcio”. Trata-se, ainda, do
rompimento “dos laços sagrados do matrimônio”, o pecado cometido contra um dos
sacramentos da Santa Igreja. Isso leva à lembrança de que um “público sensato” deve repelir
tais acontecimentos, julgando pelo exposto na nota e solidarizando-se não apenas na dor
sentida pela família abandonada, mas também na repulsa ao seu protagonista.
Mais do que noticiar um fato, a matéria é um alerta às duas partes consorciadas: à
parte masculina, o lembrete de que sua função nesse contrato é mais do que legal, é moral e
religiosa, porque “um homem deve deixar seu pai e sua mãe para compor nova família com
sua mulher” e repetir o gesto do Pai Criador, gerando e criando com todo cuidado seus
próprios filhos; e, à feminina, para que se lembre sempre, de que nenhum cuidado é por si só
suficiente e que deverá estar sempre atenta para evitar tais acontecimentos:
A esposa como extremosa consorte e carinhosa, mãe, adorava e idolatrava a seus
filhos e esposo. Este, não sabendo apreciar essas bellas qualidades [...]”.
Nessa notícia é possível perceber a preocupação social com a manutenção da família.
A atitude do marido injusto, do pai que abandona a família, deixando sua esposa e filhos na
miséria, num período histórico no qual a família se torna um importante pilar para manter a
ordem e garantir uma moralidade, precisava ser condenada socialmente. Atitudes como essa
não deveriam ser aceitas como algo comum ou banal, mas, sim, negadas e recriminadas, pois
tratava-se de uma postura indigna e desonrosa: o homem que deixa sua família passar
necessidades não deveria ser merecedor do respeito do outro.
82
Expressões como: “ofende a moralidade”, “tresloucado e bárbaro”, mostram o quanto
essa sociedade reprova e condena o homem que abandona sua família: [...] “o publico sensato
e morigerado repele”.
Mas a idéia de indissolubilidade do casamento, apesar de majoritária na sociedade
católica, não é unanimidade. Notícia de localidade vizinha dá conta de debates sobre a
possibilidade do divórcio: “Continua na Câmara de Montevidéo, a discussão sobre a lei do
divorcio, tendo a esse respeito pronunciado eloqüentes discursos o deputado Paullier” (A
Nação, de 18 de novembro de 1905).
O divórcio devia ser assunto de preocupação das famílias nessa região fronteiriça,
principalmente por se tratar de algo tão atacado pela Igreja e que afetava e tirava a
tranqüilidade, em especial das famílias que eram tidas como modelos. O casamento, além de
indissolúvel para a Igreja, era a forma de se manter uma certa ordem na sociedade: todo
homem e mulher bem-casados, trabalham e zelam pela sua família, devendo ser exemplos de
pai e de mãe. A família contribuía para a manutenção da organização social vigente.
Mas, no contexto geral da Belle Époque, em que procurei analisar a situação específica
retratada pelos jornais pesquisados, é necessário compreender com Soihet (2002, p. 368), que,
no país que desejava alinhar seus passos à modernidade européia, “embora o casamento para a
classe dominante fosse a única via legítima de união entre um homem e um mulher,
constituindo-se para a última no ideal mais elevado de realização, era proporcionalmente
pequeno o número de pessoas casadas em relação ao total da população”. E a autora explica:
O fato é que no seio dos populares o casamento formal não preponderava. Isso se
explica não só pelo desinteresse decorrente da ausência de propriedades, mas pelos
entraves burocráticos. A dificuldade do homem pobre em assumir o papel de
mantenedor, típico das relações burguesas, é outro fator, ao que se soma, em alguns
casos, a pretensão de algumas mulheres de garantir sua autonomia (SOIHET, 2002,
p. 368).
Muitos enunciados que constituem parte do imaginário feminino à época, mas que
ainda hoje se verificam ao menos em parte, destacaram-se da leitura atenta das notas
selecionadas para a composição deste terceiro capítulo, e podem ser transcritos com as
seguintes expressões:
83
a) a união de um casal só tem reconhecimento social se for legal e religiosa;
b) o casamento é um contrato, em que as duas partes sabem muito bem o que lhes
cabe no consórcio;
c) ao homem cabe o sustento da família, por isso é ele o chefe da casa;
d) à mulher cabe servir ao marido, cuidar da casa dele e dos filhos dele;
e) quem casa quer casa;
f) os laços do matrimônio são indissolúveis;
g) é preciso casar perante os homens e perante Deus;
h) para casar é preciso ser virgem;
i) é preciso contrair casamento para se ter filhos;
j) a mulher deve dar filhos fortes e saudáveis ao seu marido;
k) a mulher deve zelar para bem atender ao marido, pois é ele quem lhe dá sustento;
l) o abandono do lar significa o rompimento dos laços sagrados do matrimônio;
m) o que Deus uniu os homens não podem separar.
Um traço em comum aparece ligando todos esses enunciados: a união entre o homem
e a mulher deveria ser geradora de filhos, num lar em que, amparado ou não pela legislação e
pela religião, cada um tem um papel definido. O papel dito próprio da mulher, de “rainha do
lar”, fosse num ambiente miserável ou não, se enquadrava na política republicana de
modernização do país. Nessa política, cabia à mulher o zelo pela geração e criação de filhos
fortes e saudáveis, que pudessem ser disciplinados para a nova sociedade que surgia. O País, à
época, era arrancado de uma estrutura agrária muito forte, deixando recentemente o trabalho
escravo e substituindo-o pelo trabalho assalariado, contando para tanto com a força de
trabalho do imigrante. Mas, fosse no campo ou na cidade, era preciso que desenvolvesse sua
própria mão-de-obra para construir um novo país que caminhasse na marcha da modernidade
européia. Ordem e disciplina eram palavras que se esperava que fossem aprendidas desde o
berço, ensinadas pela mulher-mãe. Bons costumes, vida regrada e moralizada, saúde e
educação suficiente para lidar com o capital e seus reflexos também no campo eram
indispensáveis aprendizados desde o lar. Era, portanto, nessa perspectiva, politicamente
“fundamental” o papel da mulher, observado nos moldes dos enunciados acima, encontrados
na análise da condição do feminino na organização da família.
84
7"C"TGNKIK’Q"PC"HQTOCÑ’Q"FC"OWNJGT"
"
"
Figura 7 - A mulher e a formação religiosa
Plutarco
12
já havia escrito que poderemos encontrar uma cidade sem muralhas e sem o
uso do dinheiro, mas que jamais encontraremos uma cidade ou um povo que não tenha seus
deuses, seus ritos e práticas religiosas. Uruguaiana não fugiu à regra.
Segundo Villela (1971, p. 185), “o ato primeiro da vida religiosa de Uruguaiana,
indiscutivelmente assenta no Decreto nº 21, datado de Alegrete a 24 de fevereiro de 1843,
pelo qual o general Bento Gonçalves da Silva criava uma Capela Curada, com a denominação
de Capela do Uruguai”,
13
passando, posteriormente, à designação de Capela de Sant’Ana do
Uruguai.
12
Plutarco (66-120 d.C.), autor grego de “Vidas dos homens ilustres”, em que biografa personagens que foram
líderes na história grega e romana passadas.
13
Segundo esse autor, [...] “ao tempo do Império a Igreja estava vinculada ao Estado e consequentemente este
tinha atribuições para criar circunscrições religiosas, como era o caso das capelas curadas, que criadas pelo
govêrno, eram após entregues à curatela de um sacerdote que também podia ser indicado pela autoridade civil,
de quem recebia um ordenado mensal para suas despesas” (p. 185). Conforme ele escreve, “a Catedral de
Uruguaiana cuja construção teve início na segunda década dêste século, somente foi inaugurada com uma
missa em sua cripta no dia 4 de fevereiro de 1943” (Sic, p. 192).
85
A vida religiosa de matriz católica em Uruguaiana girava em torno da Igreja Matriz no
século XIX. Villela (1971, p. 186) registra um documento em que o Imperador Dom Pedro II
e a Imperatriz do Brasil eram apresentados como protetores do templo:
Sua Magestade o Imperador, atendendo ao que representarão os membros da
Comissão encarregada pelo povo da Parochia de Santa Anna do Uruguay, Bispado
de São Pedro do Rio Grande do Sul, de dirigir a edificação de um Templo que sirva
de Matriz na mesma Parochia: - Há por bem permitir que sejão inscriptos o seu
Augusto Nome, e o da Sua Magestade a Imperatriz, como Protectores da referida
Matriz. E para sua resalva se passa o presente. Palácio do Rio de Janeiro em 12 de
Novembro de 1861.
(Assignado) José Idelfonso de Souza Ramos - (Está colado o sello com o escudo e
armas do Império). (Sic)
14
A participação da mulher nas práticas religiosas constituía-se aprendizado muito
valorizado para sua formação social. A importância de ser ligada ou vista em eventos que vão
desde celebração de festas até cerimônias fúnebres, estava na composição do estatuto de sua
boa educação, mostrando a mulher como aquela que se dedica ao outro, pois faz parte de sua
essência feminina o caráter solidário, pois sua vida deve ser compartilhada abnegada, e
submissa à vontade das outras pessoas. Assim, não tendo muito tempo para se perceber como
uma mulher que tem desejo, e necessidades próprias, dava menos trabalho aos familiares.
Aproximando-se dos santos e santas, assimila uma vida sem malícia ou pecados, segundo os
preceitos religiosos.
Numa tradição da igreja católica, na promoção das festas religiosas é marcante a
presença feminina:
As Festas do Espirito Santo
Realizaram-se com todo o esplendor sagrado e profano que requerem, as festas do
Espirito Santo.
O festeiro Sr. Conego Gay, esforçou-se por dar-lhe o maior brilho possível e a
população secundou tão louváveis esforços animando com a sua presença todos os
actos da festa.
No domingo, 16 dia da solenidade religiosa, o templo encheu-se literalmente com os
fiéis, offerecendo conjunto de cores das “toilettes, que esmaltavam o recinto
sagrado algumas das quais não seriam desdenhadas pela mais orgulhosa odalisca.
14
Segundo registra o autor, “sòmente em 15 de agôsto de 1910, pela Bula “Praedecessorum Nostrorum” é que a
Diocese do Rio Grande do Sul foi elevada à dignidade de Arquidiocese, quando foram, então, criadas as
seguintes Dioceses a ela subordinadas: PELOTAS - SANTA MARIA - URUGUAIANA e
FLORIANÓPOLIS” (sic). Uruguaiana, conforme escreve Villela (1971, p. 188), teve sua primeira paróquia
(Paróquia de Uruguaiana) criada pela lei de 29 de Maio de 1846; e a segunda, a Paróquia de Nossa Senhora
do Carmo, fundada em 8 de maio de 1928.
86
A missa foi acompanhada a vocal e instrumental, sendo a musica escripta pelo Sr.
Toribio Guerra e executada pelas senhoras e cavaleiros que seguem:
Solos pelas exmas Sr. as e Srs.
- Lauda Mus D. Aldina Noronha,
- Domine Deus D. Julia Mendes,
- Que Tollis, D. Josephina Moraes,
- Quisedes e quoniam, J. Penaforte,
- Ao Pregador, D. Julia Barbosa
- Et Encarnatus D.Joseph.
Moraes, Benedictus, Jayme Curtoy, e o Agnus Dei (duo), por D. Josephina Moraes e
Penaforte.
As mesmas senhoras cantaram nos coros em que também tomaram parte os Srs.
Penaforte, Grivot, Dr. Jayme e Curtoy.
Os alumnos da 1ª aula publica cantaram o “Tamtum ergo”.
A exma. Sra. D. Corina do Nascimento acompanhou todos no orgam.
A execução foi em geral excelente, sendo para sentir que as péssimas condições
acústicas da egreja e a elevação do coro, nos roubasse o praser de apreciarmos
melhor os dotes vocaes das distintas executantes.
Todos os outros actos da festa correram bem, tendo sido brilhante a parte
pyrotchnica, que nada deixou a desejar.
As cavalhadas estiveram a altura da reputação dos corretores, mostrando-se, uns,
dignos descendentes dos antigos sectários da reputação dos corredores, mostrando-
se, uns, dignos descendentes dos antigos sectários do Islam e os outros filhos dos
guerreiros que lhe conquistaram palmo a palmo a península onde arvoraram para
sempre o estandarte da cruz. Se algum por acaso rodou do ginete, foi para dar razão
ao nosso folhetinista, e por culpa da perícia na arte de equitação.
O Sr. Cônego Gay deve estar satisfeito pelo esplendido êxito de que vio coroados os
seus esforços e pelo qual felicitamos.
Rei morto, rei posto, sahi o eleito fosteiro para o anno o Sr. Luiz Manoel de Souza,
de quem muito espera a população, bem como dos cavaleiros eleitos para os outros
cargos (O Guarany, de 23 de maio de 1880).
Pelo teor dessa notícia é possível perceber que festas religiosas, como essa do
Espírito Santo,
15
eram motivo de muito entusiasmo e se constituíam num especial
momento para senhoritas e senhoras, porque poderiam servir como uma oportunidade para
mostrar seus talentos artísticos, tocando alguns instrumentos musicais, dessa forma
animando a festa religiosa.
15
A Festa do Espírito Santo.
87
Por sua vez, na matriz cristã protestante
16
, verifica-se na igreja que também a
participação em cerimônias e grupos sociais religiosos evangélicos, na qualidade de
organizadoras ou, até mesmo, dirigentes, era uma das ocupações femininas “inatas”, talvez,
por servir como um remédio para as mais inquietas, aquelas que desejavam muito mais que
um casamento e filhos, estudar, ter uma profissão e uma vida mais ativa, com deveres sim,
porém, com direitos respeitados. E, por não poderem enfrentar a família, encontravam na
religião a aceitação do papel que lhe reservaram dentro dessa sociedade: o da aceitação à
submissão, primeiro ao pai, depois ao marido.
Nos anos de implantação do metodismo em Uruguaiana, na primeira década do século
XX, encontra-se, além do nome do Dr. João C. Corrêa que aqui já havia estado bem antes, o
nome de Thomaz Carey, segundo registra Pont (1985, p. 7):
“Um outro missionário [...] cidadão inglês, ligado aos Diretores da Cia Brasil Great
Southern, que aqui faziam os projetos e assentamento da estrada de ferro. Juntamente com
Eduardo Joiner, iniciaram uma Escola Dominical, com assistência regular”.
16
Villela (1971, p. 192) registra entre as igrejas de matriz protestante, todas datadas do século XX, a igreja
metodista como a única datada do século anterior a esse: 1875; atribuindo ao dr. João da Costa Corrêa a sua
fundação. Pont (1985, p. 7) também escreve que em data anterior a 1905 o reverendo João Corrêa já havia
estado na localidade; informando, ainda, que residia em Montevideu e que “periodicamente fazia viagens por
esta fronteira, desempenhando funções de médico itinerante e comerciava medicamentos homeopáticos,
aviados pelo próprio facultativo”, sendo que, conforme o autor, “o mais das vezes o Dr. Corrêa os ministrava
sem receber pagamentos, conforme os casos” (p. 7). Grande era o prestígio da igreja metodista na cidade, em
que vários de seus pastores de origem norte-americana também trabalhavam no “Collégio União” adquirido
do huguenote francês Aleixo Vurlod ainda na primeira década do século XX. Aleixo Vurlod e suas filhas
tornam-se membros da igreja metodista e continuaram trabalhando no colégio então sob a administração dos
religiosos metodistas norte-americanos. Villela (p. 193) cita uma nota publicada no jornal “O Comércio”, de
25/4/1905, em que se lê: “Domingo, 23 de abril, às 7:30 horas, da noite, no salão onde celebra o culto
evangélico, professaram publicamente sua fé em Cristo, unindo-se à Igreja Metodista, as seguintes senhoras,
senhoritas e cavalheiros: Adelaide Wurlod - Clotilde Marenco - Tereza Wurlod - Danieta Owel - Luiza
Wurlod - Amélia Delacoste - Ana Cardona - Ernestina Cardona - Conceição Cardona - Carmem Cardona -
Ana Silva Corso - Maria Corso - Helena Corso - Hercília Romaguera Corrêa - Joana Couto Canto - Mathilde
Lagisquet - Rosa Winckler - Eduardo Mena Barreto - Fernando Wurlod - Fernando Kruger e Augusto Eliseu
de Freitas”. Pont (1985, p. 7), fazendo referência a essa notícia, lembra que o jornal acrescentava: “O ritual
era o mais simples, sem ostentação de luxo. Após aquela cerimônia, fez-se a coleta destinada à caridade,
seguida da celebração da Santa Ceia, segundo o ritual metodista, da qual participaram os comungantes. É
digno de notar a ordem, o respeito mais austero durante os atos religiosos, pelo seleto e numeroso auditório. O
movimento evangélico está prosperando notavelmente [...]”. O primeiro pastor metodista listado por Villela,
na obra em referência, é Eduardo Everett Joiner (1903). Os reverendos J.W. Price (1913) que junto com o
bispo W. Lambuth adquiriu o colégio União de Aleixo Vurlod, e G.D. Parker (1915) também aparecem na
lista dos reitores norte-americanos que dirigiram o colégio. Em Uruguaiana, a igreja metodista conta com o
templo central e o templo São Paulo, além de suas capelas.
88
O recinto de reuniões era no Salão da Sociedade Italiana, gentilmente cedido e
muitas reuniões se realizaram no salão da Loja Maçônica Cruzeiro do Sul 2ª à rua
Monte Caseros.
Muito ajudou, nos primeiros tempos, a Sra. Maria Joana Laffite. Era uma senhora de
nacionalidade franceza, que lecionava em cursos particulares, diversas matérias;
orientada pelo Prof. Aleixo Vurlod que há muitos anos mantinha aqui o antigo
Colégio União, à rua Bento Martins, antes chamada Rua Direita, desde o ano 1870.
Mais tarde esta senhora desposou ao Sr. Lagisquet, há pouco chegado de Pelotas,
juntamente com Carlos Desessards e outros jovens de nacionalidade franceza. [...]
Todos os filhos do Prof. Aleixo Vurlod receberam comunhão e se tornaram
membros ativos da Escola Dominical e dos cultos. Foram também, os primeiros
professores do antigo colégio União, logo que o Prof. Aleixo cedeu o nome e o
acervo material do União ao Professor Revdo. Johan Price.
Desse ambiente favorável e alicerçado em firme base moral, surgiria a idéia de
construção do Templo. Teve sua pedra fundamental lançada em 1907. O reverendo
Johan Price, missionário itinerante, então chamado “cavaleiro da Cruzada de
Cristo”, percorria o Estado do Rio Grande do Sul, à cavalo e foi um dos mais fortes
esteios do cristianismo [...].
A presença feminina em celebração ou ensino religioso de natureza protestante,
mesmo que num papel desempenhado secundário ao principal do pastor, pode ser notada
como revestida de importância na sociedade uruguaianense à época:
Culto Evangélico
Esta agremiação religiosa reuniu-se na noite de domingo no salão da sociedade
Italiana, onde funciona a liga Epworth
Às 7 ½ horas teve commeço o culto da liga, sendo competentemente dirigido pela
intelligente Senhorita Anna Sylvia Corso.
Às 8 horas recebeu água baptismal a menina Julia, filha do Sr. Augusto Elizeu de
Freitas e de D. Doraliza Canto Freitas.
Apresentaram-a a gentil Senhorita Amanda do Couto canto e Snr. Adélia Castilhos.
Seguiu-se o culto regular, que terminou às 9 horas sendo dirigido pelo respectivo
pastor Mtr. E Joinier que dissertou sobre o caracter de pregação de São Paulo em
Corintho (Cap. 9)
(A Nação, de 11 de outubro de 1905).
O culto, observa-se pela notícia divulgada, é metodista e realiza-se nas dependências
da sociedade italiana, uma vez que o templo dessa igreja evangélica em Uruguaiana ainda não
estava construído. Eduardo Joinier era o pastor local.
O que chama a atenção nessa matéria não é o fato de as crianças receberem a água
batismal, referindo-se ao batismo, sacramento obrigatório para todas as crianças filhas das
famílias católicas, nem o fato de que o culto das 7 horas e trinta minutos ter sido dirigido por
uma mulher e pela forma como a matéria se refere a ela, como senhorita, o que nos indica que
é solteira. O que se destaca, isto sim, são os atributos, como inteligente.
89
Díspare no contexto das práticas religiosas na cidade mostrava-se a de natureza
metodista. O metodismo, sabe-se por sua história, chega ao Rio Grande do Sul, não
diretamente dos Estados Unidos da América, mas pelo Uruguai; - por intermédio de um
missionário de nome João Correa.
A Igreja Metodista, desde suas origens na Inglaterra do século XVIII, sempre teve
uma grande preocupação com a educação e com a fé esclarecida das pessoas. Em seus
registros históricos é possível perceber que para ser ministro não bastava a eloqüência ou a
emoção, era preciso muito estudo, leitura e dedicação à prática reflexiva para bem poder
orientar os fiéis.
A atenção especial dedicada às mulheres distinguia o metodismo no contexto das
demais igrejas cristãs, pois que a elas não se reservava tão-somente o papel de bem cuidar do
lar. Isso é possível inferir pela própria história de seu mentor, o inglês John Wesley que,
juntamente com seu irmão e amigos universitários, desencadeiam em Oxford todo um
movimento de renovação espiritual dentro da Igreja Anglicana - que, por sua vez, como
verificamos na história, já foi um movimento de reação com Henrique VIII.
O lar da família Wesley tinha na mãe, Suzana, a figura da educadora. A ela cabia
alfabetizar os filhos utilizando-se da Bíblia. John, de brilhante inteligência desde moço, foi
rigorosamente letrado pela mãe, nutrindo por ela grande respeito e admiração pela capacidade
feminina de educar pela palavra divina. Assim, no Metodismo, desde suas origens históricas e
distribuição pelo mundo, as mulheres que acompanhavam os missionários norte-americanos
sempre desempenhavam um papel lado a lado com o marido, não ficando restritas à condição
de dona-de-casa. A elas cabia, muitas vezes, o desempenho da função do ensino, da
alfabetização e da música entre as crianças dos fiéis.
Especificamente na cidade de Uruguaiana, é possível perceber pelos registros do
Colégio União a participação de mulheres metodistas nas práticas escolares. Esse colégio não
foi fundado pelos metodistas, estes o adquiriram, na primeira década do século XX, de seu
fundador - um velho mestre-escola francês, de nome Aleixo Vurlod, que o fundara em 1870:
No rol de antigos professores destaca-se a presença significativa de mulheres que atuavam
tanto no ensino formal do colégio quanto nas classes da Escola Dominical e nas sociedades da
Igreja Metodista. Já à época de Vurlod, o colégio era misto - o que consistia inovação para a
época -, e, além do velho professor, suas filhas também ministravam o ensino para meninos e
meninas. Com a chegada dos missionários na cidade, o velho huguenote e suas filhas tornam-
se membros da Igreja Metodista.
90
Nas práticas celebrativas dessa Igreja, não só em Uruguaiana, mas em geral, é comum
ver a participação bastante ativa das mulheres, não se restringindo apenas a acompanhar o
marido e os filhos nos cultos.
É claro que não se pode deixar de falar sobre o papel social que os cultos evangélicos
ou a missa católica também desempenhavam: eram momentos de encontros, por isso tão
esperados; como os domingos na missa, onde muitos namoros poderiam iniciar a partir das
trocas de olhares e, onde, também, se ficava por dentro da moda e dos acontecimentos.
Na história do Metodismo no sul do Brasil, encontramos a fundação de importantes
colégios que existem até hoje por mulheres de: no século XIX, o colégio Americano, na
capital gaúcha, fundado pela professora Carmen Chacon, que chegara ao Rio Grande do Sul
acompanhando a família do reverendo João Correa, proveniente do Uruguai; e, no século XX,
em Santa Maria, o colégio Centenário, por missionárias norte-americanas.
Até hoje, em prosseguimento a essa tradição histórica, tanto no sul quanto nas demais
regiões do país em que o Metodismo possui templos, é significativa a existência de escolas de
ensino dominical religioso ou formal secular, desde a educação básica até a universitária.
Destaca-se o número significativo de mulheres, não só na prática do ensino como também da
administração de tais estabelecimentos de ensino.
A Igreja, tanto na matriz católica quanto na protestante, sempre procurou colocar em
evidência na justificativa do zelo para com a família, para com os filhos -, o que está escrito
nos Dez Mandamentos no Antigo Testamento: “Honrar pai e mãe afim de que se prolongue
sobre a face da terra a tua existência”.
17
Nesse sentido, também a condição da mulher não era
isenta da cobrança:
Locaes.
Referente à necrologia do nº 782 da notícia, recebemos e publicamos, a seguinte
carta:
Cidadão
Antonio Augusto
Deparei com a notícia de fallecimento de meu desaventurado pae Fidellis Martins,
em vosso conceituado jornal e não estando conforme em sua ultima parte, o seu
sepultamento, que mesmo com bastante sacrifício como filha estremosa dei caixão e
carro fúnebre e se nem um acompanhamento teve foi por ter sido marcado as 9 horas
do dia e fizeram seguir as 7 horas por não estar presente nem uma de suas filhas; o
que bastante sinto.
Portanto, tendo dado essa notícia mal informado, peço-lhe ratifica-la, a para que o
público fique sciente que não foi indiferente com quem por um dever sagrado me é
imposto.
Pelo que lhe ficarei eternamente grata.
17
No livro de Êxodo, capítulo 20, versículo 12.
91
Da criada
Antoninha Martins
Uruguayana, 26 de junho
É caso para bendizermos a sorte toda vez que d’estas questões comnosco se
suscitam, há sempre alguém, pelo geral a aparte mais interessada, que se encarrega
de confirmar, precisamente, aquilo que levamos dito.
Neste caso o ponto que melindrou a Srta. Missivista, foi o referente ao modo porque
fora feito o sepultamento de seu pae, o inditoso Fidellis, e, nesse sentido, pede
retificação deixando, entretanto claro que elle não tem lugar pelo facto de serem
verificadas as nossas afirmações.
Sentimos não poder satisfazer, com a nossa habitual delicadeza, o pedido que nos
dirige a assignataria da missiva acima, porque, de suas próprias palavras, inverdade
alguma existente à corrigir (A Notícia, de 28 de 1905).
Pelo teor da notícia, observa-se uma espécie de censura à família pelo fato de não
haver acompanhamento desta ao sepultamento - o que não ficou sem a devida resposta de uma
de suas filhas, mostrando que a culpa não cabia nem a ela nem a suas irmãs, mas sim à
mudança, sem autorização da família, de horário. Fica a observação da cobrança que a
sociedade sempre faz ao zelo dos filhos para com a memória dos pais.
Uma das práticas religiosas da Igreja Cristã Católica à época e ainda hoje, consiste na
celebração da missa, onde, em algum momento se diz da intenção de realizá-la em favor da
alma de alguém falecido.
18
Missa
Agélica Valença Goularte aos parentes e pessoas de amizade para assistirem a missa por
alma de seu inesquecível esposo: Polydoro Silveira Goularte que mandei celebrar
sabbado 18 do corrente na
matriz d’esta cidade, às 9 horas antecipando sinceros agradecimentos
a todos quantos se dignaram comparecer""(A Nação, de 7 de outubro de 1919)."
No costume católico de mandar rezar missa para os falecidos, reside a intenção de
iluminar as almas, o que serve como um conforto, principalmente, aos parentes mais
próximos. Divulgar em notas de jornais a celebração de missas dessa natureza justificava a
todos que a família do falecido era instruída nos ditames dos dogmas católicos, como, por
exemplo, da crença na existência do purgatório. Na matriz protestante, o que se fazia era um
18
Observe-se que a intercessão pelas almas dos mortos, por meio da celebração de missas e de preces
individuais, é uma prática eminentemente católica, não se verificando em Igrejas Cristãs Evangélicas, sejam
estas do ramo do protestantismo histórico (Luterana, Calvinista, Anglicana) ou de seus desdobramentos
diretos (metodista) ou mais recentes como as pentecostais e neo-pentecostais. O purgatório, local onde as
almas arrependidas de seus pecados devem permanecer ainda algum tempo em expiação, para sua purificação
e, assim, obterem condições para sua ascenção ao céu, é um dogma da Igreja Católica Apostólica Romana;
não aparecendo, inclusive na Igreja Ortodoxa.
92
culto em ação de graças pela vida da pessoa, uma vez que essa Igreja não tem o dogma do
purgatório.
Este capítulo evidenciou formas de exercício de poder amparado pela justificativa
religiosa de maneira a contribuir na operacionalização de valores considerados ideais na
constituição do universo feminino, que se elaborava sempre em função de um fim maior: a
constituição da família - pelo casamento, pela procriação e pelo cuidado do lar.
Pode-se, também, afirmar que a religião na formação da mulher para o casamento e o
cuidado da família colaborou fortemente para o desenvolvimento dos enunciados encontrados
e trabalhados nos capítulos precedentes, quando, inequivocadamente, acentuavam o papel a
ser desempenhado pela mulher na sociedade à época: constituir-se em mulher de família,
casada, saudável, capaz de gerar filhos e zelosa nos cuidados do lar.
Dessa forma, amparado em fortes bases religiosas dominantes à época, o discurso
sobre a mulher e seu corpo promovia a exclusão ou, no mínimo, restringia a sua presença e
participação em outros âmbitos da sociedade. Mas, principalmente a excluía da sexualidade,
em nome da maternidade, como se fossem inconciliáveis.
A exclusão feminina, convém lembrar novamente, numa visão perspectivada em
Foucault, evidencia-se como uma das relações de poder que existem na sociedade, que
trabalham o corpo do indivíduo e seu comportamento, principalmente o sexual. A exclusão se
verifica não só de maneira a negar falas e comportamentos, mas de modo a estimular outras
falas e outros comportamentos.
É nessa perspectiva, então, que finalizo este capítulo, afirmando que na questão da
religião na formação da mulher da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, no período
pesquisado, as relações de poder precisam ser compreendidas. Não se trata, em analogia ao
entendimento foucaultiano, de entender que existia de um lado um poder centralizado - a
Igreja - que proibia censurando e punindo comportamentos femininos por ela ditos como
indesejáveis à condição da mulher cristã. Porém, entender que, conforme explicou Foucault, o
poder não só tem a dimensão negativa da interdição, mas induz, ainda, a formas de construção
de comportamentos e de saberes.
"
93
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"
"
Figura 8 - A mulher e a cultura
Neste capítulo, trato da relação entre a cultura e a condição feminina na região da fronteira
oeste do Rio Grande do Sul, contextualizando o período analisado ao restante do país, que se
perspectiva politicamente nos ideais republicanos de mostrar que nascia um novo tempo - um
novo país que tinha tudo para modernizar-se e acompanhar o que acontecia na Europa.
94
Nessa contextualização, é possível compreender como o esquadrinhamento dos
espaços urbanos e locais públicos ou restritos demonstram a percepção de Foucault ao
escrever sobre a disciplinarização e docilização dos corpos, tendo como uma das estratégias a
delimitação de seus espaços de convívio e aceitação social.
No discurso e na prática dos políticos que se respaldavam na visão dos médicos
higienistas e sanitaristas, percebia-se claramente a intenção de romper com tudo o que tivesse
ares de antigo e, em seu lugar, apresentar amplas avenidas e ruas, praças e parques que
dificultassem a aglomeração pública. Isso estendeu-se também à intimidade das moradias
populares. Era preciso dizer ao povo como se trabalhar higienicamente, a fim de se adquirir,
pela prática, bons hábitos para aquisição e manutenção da saúde necessária ao capital.
Também uma forte ideologia de moralização pública, aliada a uma forte vigilância
policial dos indivíduos e de seu corpo, desde as suas habitações até os lugares freqüentados
em horário de lazer, tudo era metricamente controlado na perspectiva de que se arejasse o
ambiente de tudo o que era sinal de passado e de possibilidade de entrave a um olhar desejoso
de ver no novo país uma oportunidade de investimento, como o olhar dos estrangeiros -
avidamente desejado pelos políticos locais.
O corpo feminino era extremamente controlado pela autoridade pública, pois, na
possibilidade de uma sua manifestação considerada inadequada, a ordem estaria
comprometida. Era preciso controlá-lo, torná-lo adequado às exigências dos novos tempos. A
mulher considerada de “boa família”, solteira ou casada, devia cumprir zelosamente o que
dela se esperava em termos de conduta pública ou privada, tendo bem esquadrinhado seu
espaço de aparição e atuação social. À mulher pobre, que não tivesse a dita sorte de ter
encontrado um bom casamento e que precisasse ir à rua para trabalhar ou mesmo por ela
transitar ao encontro de outras de sua condição social - para visitas ou momentos de lazer em
locais públicos, mas fortemente controlados para se evitar a desordem e a imoralidade, a
situação se agravava.
Por um lado, todo um ideário de mulher-perfeita para a época. Uma mulher preparada
para, casando-se, gerar com saúde os filhos do novo país que surgia. Uma mulher com
educação digna de se portar em ambientes sociais em que acompanhava o marido, dando
mostras de ser uma digna consorte. O mesmo ideário era apresentado à mulher pobre e dela
cobrado em termos de atuação. Dessa também se exigia que se preparasse para bem gerar
filhos fortes e sadios. A semelhança, entre elas, está no fato de que se pedia para ambas a
geração e a criação de filhos fortes e sadios, necessários ao capital dos novos tempos. A
diferença, no entanto, implícita no pedido que a elas se fazia em nome da organização do lar,
95
residia no fato de que às primeiras a condição de gerar filhos fortes e sadios era na
perspectiva de que eles estariam substituindo, algum dia, os dirigentes atuais do País,
ocupando o lugar, muitas vezes, dos pais na administração dos negócios privados e na
política. Às segundas, por sua vez, filhos úteis ao trabalho manual na fábrica.
Soihet (2002, p. 365) mostra o quanto a preocupação com a condição feminina, nessa
perspectiva, mesmo extremada, era justificada pela autoridade moral da época que
esquadrinhava os lugares vistos com bons olhos para a mulher ser vista ou, ao contrário, ser
tida como suspeita
19
:
Com base no comportamento feminino dos segmentos médicos e elevados, acresce
em relação às mulheres as prescrições dos juristas acerca da impropriedade de uma
mulher honesta sair só. Coadunava-se tal norma com a proposta burguesa,
referendada pelos médicos, sobre a divisão de esferas que destinava às mulheres o
domínio da órbita privada e aos homens, o da pública. Embora as mulheres mais
ricas fossem estimuladas a freqüentar as ruas em determinadas ocasiões, nos teatros,
casas de chá, ou mesmo passeando nas novas avenidas, deveriam estar sempre
acompanhadas.
A rua simbolizava o espaço do desvio, das tensões, devendo as mães pobres,
segundo os médicos e juristas, exercer vigilância constantes sobre suas filhas, nesses
novos tempos de preocupação com a moralidade como indicação de progresso e
civilização. Essa exigência afigurava-se impossível de ser cumprida pelas mulheres
pobres que precisavam trabalhar e que para isso deviam sair às ruas à procura de
possibilidades de sobrevivência; implicava liberdade de circulação pela cidade, pois
dependiam de um circuito ativo de informações, bate-papos, leva-e-traz, contratos
verbais.
Com o advento da República, tudo o que pudesse significar um entrave ao olhar
investidor de estrangeiros no País era visto com maus olhos e extremamente desclassificado,
ou, melhor, classificado como anti-moderno, como um entrave ao desenvolvimento do País,
prejudicando sua marcha para acompanhar o ritmo da nova ordem do capital na perspectiva
19
Nesse contexto, acentuou-se a repressão contra as mulheres, como foi vivenciada pela jovem Lídia , presa sob
a alegação de estar proferindo “palavras ofensivas, na Praça da República, à moral pública”, tendo resistido
tenazmente à prisão e produzido lesões corporais nos guardas que buscavam efetivá-la.
Na delegacia são das mais ásperas as referências ao comportamento da acusada, chamada de “mulher
vagabunda” por um dos guardas-civis. O delegado em seu relatório reforça a imagem moralmente negativa de
Lídia. Qualifica-a de “mulher prostituta, desordeira e ébria” que “à Praça da República ofendia a moral
pública proferindo obscenidade e levantando as roupas, ficando desnuda”.
Lídia, porém, teria reagido com “garra”, agredindo a dentadas os guardas. E, no seu depoimento, diz que nada
fez para ser presa. Voltava da Festa da Penha e estava se divertindo no Campo de Santana, quando foi
maltratada pelos guardas-civis, que a trouxeram e lhe deram pancadas. Era lavadeira e nunca estivera em
delegacia.
Na pretória, uma das testemunhas, o guarda-civil Reginaldo de Oliveira, deixa escapar o verdadeiro motivo de
toda a questão, ou seja, de que Lídia, na Praça da República, fora: “convidada a retirar-se dali, porque existe
ordem do delegado de não permitir a permanência de mulheres ali, não atendeu a essa ordem e começou a
dizer palavras obscenas” (p. 365).
96
européia. Por outro lado, tudo o que pudesse sinalizar como possibilidade de somar-se ao
empreendimento republicano de modernização do país era visto com bons olhos.
Nesse sentido, o controle social era mais do que necessário, segundo a ideologia da
época. Era preciso colocar tudo sob controle, o que era presente e o que podia significar
futuro, incluindo-se, aqui, a formação de um novo brasileiro, sob uma ideologia marcadamente
eugenista de melhoramento da raça. Nisso tudo, a preocupação em definir socialmente o que cabia
à mulher, seu perfil de reprodutora desse novo brasileiro e sua nobre função de zeladora da
harmonia do lar, era imprescindível. Era preciso educá-la nessa perspectiva, tanto a mulher rica
quanto a pobre. Quanto à rica, era considerado “normal” que apresentasse todos os predicados
idealizados pelo ideário republicano para sua atuação na nova sociedade. Quanto à pobre, dela se
cobrava o que perpassava todo o ideário, descontando-se, naturalmente, aquilo que podia ser
específico àquelas que tivessem condições familiares que as sustentasse. Mas, o que era comum, a
todas, era a auto-vigilância de seu corpo em todos os sentidos. Uma auto-vigilância reforçada pelo
controle da própria sociedade, da Igreja e, para casos considerados extremados de transgressão,
pela autoridade policial.
O que fica claro é o empenho das autoridades em impedir a presença dos pobres em
certos locais, no esforço de afrancesar a cidade para o desfrute das camadas mais
elevadas da população e para dar mostras de “civilização” aos capitais e homens
estrangeiros que pretendiam atrair. No caso das mulheres, acrescentavam-se os
preconceitos relativos ao seu comportamento; sua condição de classe e de gênero
acentuava a incidência da violência. O desrespeito às suas condições existenciais
traduzia-se em agressões físicas e morais. Foi o que ocorreu, na situação em pauta,
através da imputação à Lídia do exercício da prostituição, a mais infamante pecha
para uma mulher na época.
Em Florianópolis, no início do século XX, além das tentativas de “reajuste social”
das mulheres dos segmentos populares, havia a preocupação de que adquirissem um
comportamento “próprio para mulheres”, marcado pela presença das características
já nomeadas de recato, passividade, delicadeza etc. Fato que facilitava a repressão e
a arbitrariedade policial, pois, não se enquadrando nesse esquema, fugiam às normas
próprias de sua “natureza”.
Ocorre que esse processo não se desenrolou sem uma efetiva resistência dos
membros das camadas populares, inclusive da parcela feminina, que disputava,
palmo a palmo, o seu direito ao espaço urbano. Deve-se ter em mente que para
muitos a rua assumia ares de lar onde comiam, dormiam e extraíam o seu sustento.
Também era nos largos que as (p. 367) mulheres costumavam reunir-se para
conversar, discutir ou se divertir, da mesma forma que se aglomeravam nas bicas e
chafarizes, não raro, brigando pela sua vez. Em grande proporção responsável pela
manutenção da família, a liberdade de locomoção e de permanência nas ruas e
praças era vital para as mulheres pobres, que cotidianamente improvisavam papéis
informais e forjavam laços de sociabilidade (SOIHET, 2002, p. 365).
97
A vida cultural uruguaianense, perspectivada nesse contexto do País, pode-se inferir
pelas matérias analisadas dos jornais da época, era muito ativa. Não são raras as notícias que
divulgam e convidam as pessoas que vivem nessa cidade para se fazer presentes, prestigiando
os artistas que se apresentavam a um público que lhes era muito assíduo.
Hoje no “Carlos Gomes” será levado a scena o magnífico drama - O sonho de um
Malvado. Auguramos esplendido desempenho dessa peça, pois, basta dizer se que ella está a
muito destinada para ser levada a beneficio de exímio artista sr. Bonaplata que conforme está
annunciado, será hoje” (A Notícia, de 25/10/1889).
Pelo texto dessa matéria, é possível ver que o teatro, além de tramas e comédias,
apresentava concertos de altíssima qualidade, e não faltava platéia, pois todos queriam fazer
parte de grupos intelectualizados e de bom gosto.
O que facilitava tais apresentações era, observa-se, a posição geográfica de
Uruguaiana
20
, que, sendo vizinha da Argentina, possibilitava que esses grupos teatrais e
artistas diversos que se dirigissem à capital do Estado, ao chegar a Uruguaiana fizessem uma
parada para descanso, e, dessa forma, organizassem suas apresentações - o que se tornou
quase que obrigatório a todas as companhias que aqui passavam. Essas apresentações
aconteciam, também, quando voltavam da capital (Porto Alegre) ou de outros locais mais para
o centro do país, para seu país de origem. Assim, ganhavam todos, a população por
acompanhar o que de mais novo estava-se produzindo no teatro; e as companhias e artistas
diversos que, antes de chegar a seu destino ou de retornar a seu país, lucravam
financeiramente e também divulgavam seus trabalhos.
Theatro.
Realiza-se hoje no Theatro “Carlos Gomes” um concerto do qual faz parte o eximio
violonista Dalmau, que tanto sucesso tem obtido nas principaes captaes onde se tem
exibido.
Dalmau será acompanhado ao piano pela repautada professora Stª Thereza Oliveira.
Os artistas que ora nos visitam vem procedidos de grande nomeada. (A Nação, de
15/11/1905)
Locaes.
20
Uruguaiana limita-se “ao Oeste com a República Argentina; ao Norte, com o município de Itaquí; ao Leste
com o município de Alegrete e Quarai e ao Sul com a República Oriental do Uruguai” (Soares, 1942, p. 160).
Villela (1971, p. 61-62) registra que, “já ao tempo da pacificação da Revolução Farroupilha a nova povoação
contava com mais de cem casas, achando-se então em grande desenvolvimento pelo fácil acesso às capitais
platinas, Buenos Aires e Montevidéu. [...] Grandes foram os trabalhos e sacrifícios arrostados pelos
moradores da nova povoação e posteriormente Vila de Uruguaiana, dadas as dificuldades de contato com os
centros fornecedores de gêneros da Província, contudo, aos poucos foram os comerciantes percebendo que
Montevidéu e Buenos Aires estavam mais ao alcance de suas ordens e o contrabando que já se fazia em
pequena escala passou a ser realizado de tal maneira que aos poucos anos de vida, Uruguaiana podia se dizer
que vivia quase que exclusivamente em função daquelas duas grandes capitais platinas”.
98
Estréia por estes dias no Theatro Carlos Gomes uma companhia de Zarzuelas que
está trabalhando em Libres (A Notícia, em sua edição de número 328).
Theatro e Artistas.
Fez a sua estréia, Domingo, com <<O Prólogo de um drama - La Chinalera e com
permisso Del Marido >> >> a Campainha Dramática e de Zarzuela Comica dirigida
pelo intelligente artista Arthur Lerena.
A pouca concurrencia contribuiu muito para que o espectaculo desmerecesse do que
devia ser.
Em todo caso, pelo que vimos, podemos afirmar que Lerena, Dias e Carreteroo
artistas que podem ser ouvidos em qualquer parte. A sympathica Munhoz que já é
bastante conhecida de nosso publico, apresentou-se nos como sempre, sympathica e
graciosa (A Nação, de 29/10/1899).
Alguns adjetivos são, parece-me, escolhidos com bastante cuidado para se referir às
atrizes. As palavras são de simplicidade para não despertar nem uma interpretação maliciosa,
ou, até mesmo, para não ofender as senhoras e senhoritas da sociedade, que, na sua maioria,
são chamadas por excelentíssimas senhoras, elegantes, ou senhoritas de belos modos e muito
recatadas.
Estréia hoje a campainha Dramática e de Zarzuelas Cômicas dirigida pelo artista
Arthur Lerena.
A distinta actriz Munhoz, foi já contractada para fazer parte da nova Campainha” (A
Notícia, de 29/10/1899).
Nesse texto verifica-se que o adjetivo dispensado à artista é de “distinta atriz”; o que
significa que a comunidade tem muito respeito pela artista que se apresenta e que é conhecida
de todos, pois devia conviver nos salões de recepções, em saraus - muito comum, nos
encontros de intelectuais, a presença de artistas de teatro, em especial daqueles ou daquelas
que conquistaram um certo status e respeito, por meio da admiração que conseguiam
despertar em seu público, fosse pela beleza, talento, inteligência, postura, nível intelectual e
comportamento invejável, muitas vezes servindo até mesmo de modelo.
Silva (2001, p. 35), mesmo que se reportando a período posterior ao compreendido por
esta coleta de matérias de jornais que apresento neste capítulo, permite-nos visualizar um
pouco do que era Uruguaiana nas décadas iniciais do século XX: “Pelo rescenseamento
executado em 1920, verificou-se que a população da cidade era de 14.868 e o número de
prédios de 2.644. Existiam 29 fábricas, dois saladeiros e algumas oficinas”. Diz a autora, que
nesse contexto fronteiriço “[...] a vida cultural [...] era extremamente ativa. As pessoas tinham
opções de lazer, o teatro era uma arte extremamente presente. Num único fim de semana três
peças chegavam a desfilar no palco do Cine Teatro Carlos Gomes”.
99
Silva (2001, p. 35), apresenta uma interessante matéria sobre uma peça encenada e sua
repercussão na opinião jornalística que nos possibilita perceber um pouco dessa atmosfera
cultural em que a sociedade uruguaianense também se movimentava à época:
No verão de 1920, a ‘Nação’ noticiava: “Sábado, com fraca concorrência, a troupe
Cancella e Zaparoli, levou à ribalta o conhecido drama - As Duas Órfãs. O
espetáculo começou pelas 10 horas e foi até 1 hora e tanto. A peça foi bem
representada. Apenas o vestuário daquela gente nobre estava [...] assim [...] pouco
condizente com a época em que se passa a ação do lindo drama. Tivemos, então,
saudade das duas noites que nos deu a campainha Francisco Campos, com essa bela
peça [...].
21
A autora apresenta ainda em sua análise sobre essa matéria veiculada na imprensa
escrita que “a despreocupação com o registro correto de detalhes como a hora certa, não se
mantinha ao desenvolver uma crítica”. Segundo observa,
Nada escapava aos cronistas da cidade, com pretensões de vanguarda intelectual, por
constituir-se em parada obrigatória das companhias de teatro em trânsito entre
Argentina e Brasil. Implacavelmente, uma a uma as “apresentações eram duramente
julgadas: “[...] Domingo, com boa concorrência, tivemos a revista “A Espanhola em
Pelotas”, que diga-se de passagem, não agradou a assistência. Trata-se de fato, de
uma peça banal, que, a fora duas ou três cenas, não vale coisa alguma [...]”. Às
vezes, uma ou outra das inúmeras companhias acertava em cheio com o gosto dos
fronteiriços: “[...] Ontem em récita extraordinária, subiu à cena a burleta “A
Roceirinha”, que teve bom desempenho pelos artistas, principalmente por Clotilde
Duarte, Correa Leal e Ribeiro Cancella, que trouxeram a platéia em constante
hilaridade. A concorrência, que era bastante grande, muito aplaudiu esses artistas.
22
O cinema era um outro atrativo cultural para a vida das famílias uruguaianenses em
seções que ocorriam aos sábados e domingos; momentos esses em que os maridos dispunham
de mais tempo para desfrutar com suas esposas e filhos.
Lembrando, como a notícia afirma, de que o evento era familiar, é possível interpretar
que os filmes que passavam nas telas do cinema não expunham as senhoras a
constrangimentos frente a seu marido:
21
No texto da autora, a citação de que ela faz uso aparece em tamanho de fonte menor. Na sua transcrição optei
por manter o tamanho de fonte que estou utilizando para as citações em bloco.
22
Registro aqui a mesma observação que fiz à nota anterior.
100
“Cynema. Diante de numerosa assistência o Cynema Familiar, tem dado suas secções
de sabbado e domingo. As fitas expostas foram magníficas” (A Nação, em 18/10/1910).
Digno de observação é esse registro sobre a existência do cinema na vida cultural da
cidade, datado de 1910. Uma cidade do interior recém-nascida de uma vila, elevada à
categoria de cidade somente em 1874, já desfrutando dessa “modernidade” para a época.
Outra atividade artística extremamente valorizada eram os concertos. A presença
feminina era muito respeitada no desempenho da execução do concerto; apesar do tenor ser
muito elogiado, as senhoritas foram um destaque à parte segundo a notícia. As mulheres, na
sua educação, principalmente as que pertenciam a famílias mais abastadas, aprendiam música
e a tocar instrumentos como pianos e outros, pois nas tardes de saraus eram elas, as mulheres,
que divertiam os convidados tocando ao piano - tipo de conhecimento que era muito
valorizado na época.
Diversões.
Concerto Lyrico.
Efectuou-se sabbado último, o concerto realizado pelo tenor portuguez Almeida
Cruz, auxiliado pelas Exmª senhorinhas Julieta e Joaquina Botafogo.
As partes do concerto foram executadas e muitíssimo aplaudidas.
O tenor Almeida Cruz possui Bella Voz: extensa e harmoniosa.
Cantou admiravelmente, salientando-se, pelos aplausos recebidos no recitativo ed.
Arioso di Canio, da Opera Pagliacci.
As senhorinhas Julieta e Joaquina Botafogo foram prolongadamente victoriadas pela
brilhante execução que deram à parte de piano e bandolim.
O sympathico tenor Almeida dará o 2º Concerto e o publico Uruguayanense terá
ensejo, mais uma vez, de ouvir a sua bella voz e apllaudi-lo como bem merece (A
Nação, de 18/10/1910).
Os concertos eram, entre tantas outras atividades culturais, uma das muito apreciadas
pelas pessoas de bom gosto e de uma elevada cultura. Neles, a figura feminina é muito
comum, pois o conhecimento musical fazia parte de sua esmerada educação, já que cabia às
mulheres saber receber convidados em suas casas nos encontros de negócios e nas
festividades oferecidas pelos maridos. Era de bom tom as senhoras ou senhoritas recitar ou
tocar ao piano ou ao violino.
"
"
101
Concerto
Consta-nos que no dia 8 de setembro realizou-se no Theatro Carlos Gomes um sarau
musical, em beneficio das obras da Matriz que, ha pouco, foi destruida pelas chammas.
Applaudindo e louvando a piedosa conduta das Exmas Senhoras e Senhoritas que
levaram a effeitos essa delicada festa, nos é grato mencionar-lhes os nomes
acompanhando-os das impressões que produziu o desempenho de suas respectivas
partes.
A Estudantina Ondinas do Uruguay,” regida pela distincta professora Senhorita Maria
Autran, composta das Ilustres jovens Eremita Corrêa e Silva, Tula Ochotorena, Julieta
Botafogo, Virginia Braz, Joaquina Botafogo, Emma Saldanha, Eponina Corrêa e Silva,
Clory Ulrich, Alice Saldanha, Emilia Autran, Virginia Mary e Candida Autran, executou
com perfeição as bonitas produções musicaes; En Consultant les Fav vetes, e a Walsa, de
Francia.
A Senhorita Sarah Guimarães cantou com expressão e sentimento a romanza <<Livro
Santo>> de Pinsutti e a conhecida Walsa da Bohemia de Puccini, revelando notaveis
qualidades e modulações de sua voz de soprano, exstensa, firme e, sobretudo, sonora.
- A Exma. Sra. D. Maria Vasques interpretou conscienciosamente com sua voz atraenthe
e educada os belos trechos das Operas Fosca e Bohemia <<Vissi d’Arte>>, Walsa de
Leoncavallo.
- A Exma. Sra. Ambler executou ao piano a grande Polka de concerto, <<Polka de la
Reina>> vencendo com maestria as suas difficuldades.
- A Senhorita Esther Barboza, na grande Phantasia de concerto para piano, de J. Asuher,
<<Festa Napolitana>> conseguiu traduzir e expressar o sentimento e o pensamento do
autor; revelando apreciaveis dotes de pianista.
- A Senhorita, Julieta Botafogo na exexução do <<Tannhauser>> para bandolim,
instrumento de sua predilecção, teve mais uma vez, opportunidade de provar a sua
pericia e gosto em maneja-lo; arrancando-lhe as notas mais nitidas e suaves.
- A Senhorita Candido Autran executou no violíno, o delicado solo <<Cantabile e
bolero>> fazendo vibrar o magico instrumento de forma a arrancar geraes applausos.
- As Senhoritas Tula Ochotorena, Julieta Botafogo, Virginia Braz, Joaquina Botafogo,
Emma Saldanha, Clory Ulrich, Alice Saldanha, Eremita Correa e Silva e Candida
Autran, ao bandolim, executaram a Havaneira de <<Pantierno>>, com perfeição.
- A Senhorita Maria Autran regente da Estudantina <<Ondinas do Uruguay>>, obteve
sucesso verdadeiro, nosso difficil posto, confirmando assim as foros de maestra habil e
competente de que goza.
- Os acompanhamentos ao piano foram executados com a maxima correcção pelas
Exmas. Senhora Ambler e Senhoritas Maria Autran e Joaquina Botafogo.
- Emfim o programa escolhido e adaptado foi precisamente realizado, segundo as
informações que nos foram ministradas por diversos amigos que concorreram à
sympathica função.
- A Exma. Sra. D. Amalia Fabricio Leão, Presidente da Commissão organizadora d’esse
festival, apresentamos as nossas felicitações pelo exito da util e encantadora festa que
proporcionou aos que assistiram-na, agradaveis momentos (A NAÇÃO, de 13/9/1906) .
Silva (2001, p. 36) também observou que a atividade artística dos concertos e dos recitais
era do agrado dos uruguaianenses e que “vez por outra algum morador da própria cidade
destacava-se nesse campo de atividade, normalmente exercido em paralelo com outras atividades
profissionais, principalmente no caso de imigrantes italianos, acostumados a estudar música no
país de origem, quando pertenciam a setores urbanos da sociedade de onde provinham”. Fazendo
referência ao jornal a “Nação”, numa de suas edições do verão de 1920, a autora registra a
seguinte notícia:
102
O nosso jovem conterrâneo Vicente Fittipaldi, que ainda adolescente já é um artista
consagrado, arrancando expansões de sentimento da alma do seu violino,
provavelmente realizará o seu concerto, entre nós, na próxima terça-feira.
Acompanhá-lo-á, ao piano, o maestro Donizzeti, que anda partilhando das glórias do
conspícuo uruguaianense, através de sua excursão de arte pelo Estado Gaúcho.
Vamos ter, pois, o prazer de ouvir o jovem conterrâneo na interpretação das
melhores músicas clássicas.
23
Pelas matérias analisadas dos jornais e pela leitura atenta do que se registra sobre a história
de Uruguaiana, seja pela literatura existente, seja pela tradição oral, evidencia-se também a
presença de espanhóis e franceses que aqui fixaram residência - muitos deles vindos de sua pátria
não diretamente ao Brasil, mas por outros países, como pelo Uruguai, por exemplo.
É o caso notável do jovem Aleixo Vurlod, vindo de Lyon, na França, para
Montevidéo, capital uruguaia, no início da segunda metade do século XIX, juntamente com
outros jovens para trabalhar em atividade bancária. Não voltou para sua pátria quando cessou
seu trabalho no novo país que o acolhia, mas veio para o Brasil, precisamente para a então
Vila de Uruguaiana, a convite de franceses que aqui residiam a fim de educar os filhos destas
famílias acostumadas à tradição das letras de sua pátria. Jovem culto, de notável erudição,
logo mereceu a melhor acolhida de outras famílias locais que reivindicavam também, para
seus filhos um pouco da cultura daquele país. Sua influência na educação dos jovens das
famílias uruguaianenses é tanta que pode-se encontrar em notícias jornalísticas, ainda do
século XIX, referências a ele como “provecto educacionista”.
Digno, portanto, da observação atenta do historiador deve ser essa presença de pessoas
cultas na cidade, provenientes inclusive de outras pátrias, fato que, conforme se percebe na
história da cidade em seus primeiros passos no final do século XIX, teria sido considerável em seu
desenvolvimento, uma vez que somente foi elevada à categoria de cidade no ano de 1874.
A cidade, bem localizada por orientação do próprio ministro do governo farrapo,
Domingos José de Almeida, privilegiada estrategicamente por ser porta de entrada e também
de saída para acesso a Buenos Aires e Montevidéo, era no final do século XIX e início do
século XX, local notável de passagem tanto de comerciantes quanto de compainhas culturais,
teatro, por exemplo, que não raro também faziam nela suas apresentações.
23
A autora informa em seu texto, referindo-se à questão de que artistas locais também tinham seu desempenho
em outras profissões, que “o jovem Vicente trabalhava com a família” no estabelecimento comercial, a “Casa
Fittipaldi’, que, segundo ela observou “assumiria grande importância no comércio e na política locais nos
anos subseqüentes”: “Vendia as melhores e mais modernas confecções e reunia, durante décadas, em torno de
seus balcões, políticos e empresários da cidade que ali planejavam o seu desenvolvimento”. (p. 36)
103
A influência recíproca nos costumes alimentares, no vestuário, nas músicas e nas
danças, no linguajar, na lida campeira e nas práticas comerciais urbanas, na cultura em geral,
é facilmente notável nas cidades fronteiras de Brasil e Argentina - Uruguaiana e Paso de los
Libres, respectivamente.
Tudo isso, inevitavelmente, teria também influenciado na construção do imaginário
feminino brasileiro na fronteira oeste do Rio Grande do Sul: a cultura trazida pelos imigrantes que
em Uruguaiana chegavam diretamente de seu país de origem ou indiretamente via outros países
do Prata, de passagem ou para aqui ficar; a cultura das pessoas que compunham as companhias de
espetáculo que vinham da Argentina, passando por ela, para excursionar pelo resto do Brasil, ou
as que vinham de outras regiões brasileiras para se apresentarem nos países vizinhos,
principalmente na Argentina; as práticas campeiras e urbanas dos homens em seus negócios
lícitos ou do contrabando em que muitas mulheres, de alguma forma, também participavam.
Portanto, falar sobre cultura e feminilidade no interesse investigativo da condição da
construção das representações que nutrem o imaginário popular sobre a mulher da fronteira
oeste do Rio Grande do Sul, no contexto das transformações pelas quais o país passava no
período da Primeira República, não pode ignorar essa particularidade local que singularizava
Uruguaiana em relação às demais cidades gaúchas.
Tal peculiaridade, constituída por sua condição geográfica, histórica e cultural, de
proximidade física e de costumes com outros países do Prata, contribuiu de forma
significativa na constituição da formação da mulher gaúcha da fronteira e do imaginário que
dela se construiu.
Cabe, ainda, entender nesse contexto que a condição feminina na fronteira oeste do
Rio Grande do Sul, no que se refere à sexualidade, também precisa ser compreendida no
contexto maior do país.
Foucault verifica que, a partir do século XVIII, aumentam, no ocidente, os discursos
sobre o sexo, não objetivando diminuir a freqüência de sua prática ou a sua inibição. Pelo
contrário, com o aumento dos discursos tinha-se o propósito claro de se exercer um poder
disciplinador de controle da pessoa e do povo e de produzir verdades sobre o sexo. O poder
não quer reprimir a sexualidade, mas aproveitar-se dos discursos sobre ela para a produção de
comportamentos dóceis e disciplinados.
A higienização e a disciplinarização da prática sexual tornou a mulher objeto dos
discursos médicos, que se apresentam como os que sabem falar verdadeiramente sobre o sexo.
Até então, sexo e sexualidade não eram objetos que necessitassem de discurso científico
capaz de produzir verdades.
104
Segundo Foucault, admitir a idéia repressiva como finalidade dos discursos sobre o
sexo não explica a proliferação dessas falas e nem nos ajuda a entender de que forma a
sexualidade produz saberes necessários ao exercício do poder disciplinador.
É importante lembrar aqui a noção de poder de Foucault, como disciplinar e como bio-
poder. No primeiro caso, verifica-se a ação disciplinar e normalizadora sobre os corpos
individuais das pessoas e, no segundo, sobre o corpo global, molar da população. Em “Vigiar
e Punir”, Foucault (1977, p. 127) escreve que:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Formam-se então uma
política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder, que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está
nascendo; ela define como se consegue ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que se faça o que se quer, mas para que se operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina
fabrica corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças
(em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo;
faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar: e
inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição escrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do
trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo
entre uma aptidão e uma dominação acentuada.
Foucault em seus estudos sobre a sexualidade, buscou compreender como se explica,
em uma sociedade como a nossa, que a sexualidade não seja simplesmente aquilo que permita
a reprodução da espécie, da família, dos indivíduos, mas que também não seja apenas um ato
que dê prazer e gozo. Em que campo epistemológico ela foi considerada como o lugar
privilegiado em que nossa “verdade” profunda é lida e dita?
É importante lembrar, nesse ponto, que a verdade em Foucault tem um significado
bem diferente daquele que comumente lhe é atribuído. No texto “Verdade e Poder”,
apresentado na obra “Microfísica do poder” (2003, p. 12-3), ele explica-nos que:
105
[...] a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...] A verdade é deste
mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentadores do poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns
aos outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro. [...] por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a
descobrir ou a fazer a aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder’.
Para Foucault, a partir do Cristianismo, o Ocidente não parou de dizer “Para saber
quem és, conhece teu sexo”. “O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja, juntamente com o
devir de nossa espécie, nossa ‘verdade’ de sujeito humano”.
Apresentando toda uma existência, na confissão, o exame de consciência, os
segredos e a importância da carne não foram apenas uma estratégia de proibir o sexo ou de
afastá-lo. Foram, sim, formas de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a
salvação ao domínio de seus movimentos obscuros.
Nas sociedades cristãs, o sexo era algo que deveria ser examinado, vigiado,
confessado e transformado em discurso. Isso significa, que nossa sociedade permitia a
discussão livre sobre sexualidade, mas sempre com o intuito de controle e disciplina. O
esclarecimento da sexualidade não se limitou aos discursos, abrangendo a realidade das
instituições e das práticas.
Desde os meados do século passado o saber médico por meio da valorização do
papel materno, tenta persuadir as mulheres de que a maternidade e a educação da criança
realizam “sua vocação”.
Segundo Margaret Rago, na obra “Do cabaré ao lar”, a mulher que se negasse ao
casamento, a ter filhos e a amamentar, estava agindo contra a natureza, colocando em risco
o futuro da nação, entrando no campo da anormalidade, do pecado e do crime. Além disso,
não teria como recompensa o amor do marido, numa relação sólida elevada à sua condição
de figura central do lar.
Finalizo este capítulo em que apresentei matérias dos jornais sobre a questão da
cultura e a feminilidade, afirmando que as peças constitutivas do imaginário das e sobre as
mulheres da fronteira oeste do Rio Grande do Sul precisa ser compreendido no contexto
maior da dimensão da Primeira República.
Afirmar isso não significa negar a condição específica do regional ou do local. Mas,
reconhecê-las, afirmando sua singularidade histórica e geográfica como importantes em tal
106
constituição, porém nunca desvinculadas do que acontecia no restante do país e do mundo,
quando se tratam de questões sobre o controle do comportamento feminino, incluindo seu
corpo e seu imaginário em cultura e feminilidade.
107
9"C"OWNJGT"G"Q"OWPFQ"FQ"VTCDCNJQ"
"
"
"
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Figura 9 - A mulher e a profissão
Neste capítulo final, pretendo apresentar minha compreensão construída a partir da
análise da questão da mulher no mundo do trabalho. São apresentadas várias matérias
publicadas pela imprensa local, em que mulheres são notícias por sua atuação profissional.
Contextualizando a condição da fronteira oeste no que se via no período em
observação para a pesquisa, é preciso compreender a questão a partir do entendimento de que
108
não se trata de uma figura universalizada de mulher, aqui. Havia uma diferença entre a mulher
pobre que precisava sair à rua e trabalhar e a mulher que tinha como destino o cuidar do lar,
isto é, que não precisava trabalhar. Havia, ainda, aquelas que, tendo enviuvado ou recebido de
herança um patrimônio e, estando na condição de solteiras, precisavam administrar os
negócios da família.
Soihet (2002, p. 365) apresenta que, no contexto da Belle Époque, por ela estudado (1890
a 1920), a questão do trabalho feminino pode ser vista na dimensão da questão da violência
sofrida por mulheres, num contexto desenfreado de europeização do País com a vinda da
República:
No Tocante às formas de violência específicas da condição feminina, aquela relativa
ao relacionamento homem/mulher revestia-se de caráter especial. Apesar da
existência de muitas semelhanças entre mulheres de classes sociais diferentes,
aquelas das camadas populares possuíam características próprias, padrões
específicos, ligados às suas condições concretas de existência. Como era grande sua
participação no “mundo do trabalho”, embora mantidas numa posição subalterna, as
mulheres populares, em grande parte, não se adaptavam às características dadas
como universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza, fragilidade. Eram
mulheres que trabalhavam e muito, em sua maioria não eram formalmente casadas,
brigavam na rua, pronunciavam palavrões, fugindo, em grande escala, aos
estereótipos atribuídos ao sexo frágil.
As atividades das mulheres populares desdobravam-se em sua própria maneira de
pensar e de viver, contribuindo para que procedessem de forma menos inibida que as
de outra classe social, o que se configurava através de um linguajar “mais solto”,
maior liberdade de locomoção e iniciativa nas decisões. Seus ganhos estavam na
última escala, já que persistia a ideologia dominante de que “a mulher trabalha
apenas para seus botões”, desdobramento das concepções relativas à inferioridade
feminina, incapaz de competir em situação de igualdade com os homens. E, apesar
de todas precariedades de seu cotidiano, assumiam a responsabilidade integral pelos
filhos, pois “maternidade era assunto de mulher”.
Essas dificuldades se agravavam, pois muitas das idéias das mulheres dos segmentos
dominantes se apresentavam fortemente às mulheres populares. Mantinham, por
exemplo, a aspiração ao casamento formal, sentindo-se inferiorizadas quando não
casavam; embora muitas vezes reagissem, aceitavam o predomínio masculino;
acreditavam ser de sua total responsabilidade as tarefas domésticas, ainda que
tivessem que dividir com o homem o ganho cotidiano.
No final do século XIX e início do século XX, no Rio Grande do Sul, uma das
profissões toleradas às mulheres era a do magistério. Mulheres que adquiriram pelo estudo
alguma cultura ou tiveram formação inicial para o magistério, eram bem-vistas na
comunidade e seu trabalho reconhecido, mesmo que sob a tutela de um professor masculino,
como se verifica no seguinte anúncio:
109
Collegio Cunha
O abaixo assignado declara ao Srs. Paes de seus alumnos particulares e pensionistas, que por
afluencia de trabalho em sua aula contratou o Sr. Augusto de Almeida Tito para o auxiliar no
ensino de seus discipulos, ficando as materias divididas do modo seguinte.
Portuguez, Geometria, história e Geographia.
Professor Manuel Jacintho F. da Cunha.
Musica
Professor o Sr. Toribio Guerra.
A aula primaria continua a da respectiva professora, que nesse trabalho será auxiliada pelo
abaixo assignado.
Uruguayana, 1º de Abril 1880
M. I. Ferreira da Cunha (O Guarany, 8 de abril de 1880).
Mas também é curioso, no mínimo, para a época, o fato de uma mulher
24
estar na
direção de um importante colégio católico e publicar na imprensa local uma nota utilizando-se
da primeira pessoa para a sua redação:
Collegio “Santana”
As aulas d’este collegio reabrem se na dia 8 de Janeiro p. f.
Nota - Nunca se descontarão os mezes de Dezembro e Janeiro nem parte de mez.
Outrosim - Participo aos Srs. Pais de familia que não acceito mais alumnos do sexo masculino
salvo os que tiverem 6 annos de idade.
A Directora
Rosa Lagisquet.
Uruguayana, 26 de Dezembro de 1899 (A Notícia, de 26 de dezembro de 1899).
Num outro colégio, na primeira metade da década que inicia o século XX, uma nota
publicada na imprensa local felicita uma professora pelos resultados alcançados nos exames
realizados por suas alunas. O adjetivo a ela utilizado na matéria demonstra o apreço pelo seu
trabalho, aliás, o que fica bastante evidente quando se reconhece o nível das alunas que
“demonstraram grande adiantamento”:
Exames
Realizaram-se em o dia 11 do corrente os exames, no collegio dirigido pela talentosa
educacionista Exma. Srª Dª Anna Candida Alvim.
As alunnas d’esse collegio demonstraram grande adiantamento e por cujo motivo
felicitamos a sua Ilustre directora, agradecendo a gentileza do convite (A Nação, de
15 de novembro de 1905).
24
Além do nome de Rosa Lagisquet, na direção do “Colégio Sant’Anna, da Igreja Católica, à época, é possível
encontrar o nome de Mathilde Lagisquet, como “Directora do curso primário”, no “Corpo docente para o anno
de 1912” de um outro colégio administrado por igreja cristã: o “Collegio União”, da Igreja Metodista, em
Uruguaiana em “O annuario d’O União” 1911-1912.
110
Já o “Collegio Sant’Anna, ao qual já se fez referência, aludindo ao nome de sua
diretora de raízes francesas, vamos encontrá-lo novamente nas páginas da imprensa local,
com uma comunicação de sua mesma diretora sobre o início das suas aulas para o ano de
1906. Observa-se que, no mínimo, Rosa Lagisquet esteve em sua direção desde 1899 até a
data em evidência no comunicado.
Aviso
Collegio Sant’Anna
As aulas d’este collegio reabrir-se-a ão no dia 10 de Janeiro p. f.
Uruguayana, 31 de Dezembro de 1905.
A diretora - Rosa Lagisquet
11-1-1906
(A Nação, de 6 de janeiro de 1906)."
C" Pqvîekc, de 26 de dezembro de 1899, informa sobre o início das aulas em um
importante colégio católico na comunidade, dirigido, conforme será possível perceber, por uma
professora de sobrenome francês - o que nos lembra da significativa presença dos franceses na
fronteira oeste do Rio Grande do Sul, especialmente em Uruguaiana - fato ilustrado, também,
pela atuação marcante na sociedade à época do huguenote Aleixo Wurlod, educador que dirigia,
desde 1870, um outro importante colégio particular na cidade: o colégio União.
Note-se, então, a presença de dois fortes estabelecimentos de ensino à época: um de
natureza evangélica, porém laico, o colégio União; e o outro, de natureza católica, o colégio
Santana. Em comum, a presença significativa, à época, de um homem oriundo da França e de
uma mulher em cuja origem se percebia, pelo sobrenome, parentesco com uma tradicional
família francesa (PONT, 1976, p. 126). Sobre a presença, aqui, dos franceses, especificamente
na região de Uruguaiana, o texto “Franceses na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul”,
publicado por Raul Pont em 1976, é de suma importância. Aliás, Raul Pont é neto do
educador francês Aleixo Wurlod.
25
Este anúncio mostra uma escola que tem na sua direção uma mulher, o que leva a
refletir que já se começa a ganhar um espaço maior visto que até o momento só encontrava
25
PONT, ([1976], p. 123-132). Raul Pont cita Robert Avelallemant, quando este esteve por aqui no sul, por
volta de 1858, e registrou em “Viagens ao Sul do Brasil”, que [...]”vivia aquela gente em tendas e barracas de
todos os tipos, até que do caos surgiu um lugarejo. Depois da queda de Rosas (1852) regressaram muitos
deles; mas ficaram muitas forças ativas, a que se reuniram novos elementos, de modo que Uruguaiana é hoje
uma vila de pelo menos 2.000 habitantes, onde se manifesta, em todos os recantos, a mais viva atividade
comercial. Só franceses existem mais de cem no lugar, entre eles gente de muito boa educação e de
irrepreensível conduta. Wtwiwckcpc." swcug" pçq" ug" tgeqpjgeg" eqoq" woc" ekfcfg" dtcukngktc." ocu" woc"
jkurcpq/htcpeguc"swg"rctgeg"crqkct/ug"go"uwcu"tgncèùgu"fg"xkfc"g"fg"eqoêtekq."ocku"go"Dwgpqu"Cktgu"g"
go"Oqpvgxkfêq."fq"swg"go"Rqtvq"Cngitg"qw"Tkq"fg"Lcpgktq” (O grifo é meu).
111
nas notícias, escolas dirigidas e aulas ministradas pela figura masculina.
Aulas particulares, tanto para a aquisição de alguma habilidade particular como no
caso do aprendizado de música ou de pintura, quanto no caso de “matérias” de conteúdo
escolar específico, eram oferecidas à comunidade, notadamente, por professoras:
Professora de Música
A professora de Música Theorica e Instrumental Senhorita Balbina Caraciolo
participa aos Senhores, paes de familia que aceita discipulos, devendo os
pretendentes dirigir as suas indicações a esta redação
Até 2ª ord. nº 357
(A Nação, de 10 de janeiro de 1907).
"
"
Professora de Pintura
Carmen V. Llistar professora de pintura, leciona as terças e quintas-feiras e
sabbados.
As pessoas que desejarem de seus serviços devem dirigir-se em casa do Sr. Pedro
Rebés.
A mesma professora tem exposto, na casa Cadorniz variados trabalhos (A Nação, de
7 de outubro de 1910).
Com esse anúncio é possível perceber que, à mulher que teve uma boa formação, que
foi bem-educada, cabe a conquista de um certo espaço, espaço esse que lhe permitiria atuar
como professora, seja de música, pintura, bordado, idiomas, etc.. Não podemos nos iludir,
porque essas atividade são vigiadas e controladas em toda a sua praticidade, quando não pelos
pais dos alunos, pela sociedade em geral: sua postura é analisada, sua conduta é estudada, sua
forma de vestir, aonde vai, com quem vai, o que ensina, que tipo de modelo pode esta
professora ser. Seu convívio é com crianças e moças, sempre zelando pela harmonia da
família e dos bons costumes. Faz-se desses encontros uma extensão da casa.
Ensino Particular
A professora Anna Alvim lecciona particularmente, das 2 às 5 horas da tarde,
Portuguez, Francez, Arithmetica, Geografia, história, etc. - Rua Tiradentes (A
Nação, de 11 de setembro de 1909).
É possível perceber que nem todas as mulheres se submeteram a ficar só cuidando da
casa e dos filhos. Os exemplos estão presentes nos anúncios que mostram aquelas que
desenvolveram algumas habilidades especiais e as transformaram numa profissão, como
112
professoras de pintura, desenho, música, etiquetas, etc., inserido-se assim no mundo do trabalho e
ganhando um pouco mais de espaço.
É notável a atenção que a redação dos jornais, à época, davam a esses profissionais,
disponibilizando, inclusive, seus escritório de atendimento ao público para receber as inscrições
de candidatos às aulas, como se vê na primeira notícia: “devendo os pretendentes dirigir as suas
indicações a esta redação”.
Assim como na terceira das três matérias anteriormente referidas, a seguinte também faz
referência a aulas particulares, ministradas por uma professora. Destaca-se de comum, nessas duas
matérias, o oferecimento do aprendizado de francês, o que ilustra o que Pont (1976) escreve sobre
a presença expressiva de franceses nessa região da fronteira.
Esse anúncio permite ver que as mulheres cada vez mais entram no espaço educacional e
começam a trabalhar, se não em escolas, ao menos com aulas de apoio em casa - e cobram por
esse serviço. Segundo o imaginário da época, a felicidade feminina reside no bem-estar do outro,
da sua família.
Mais uma vez observamos que a oferta no ensino da língua francesa era muito comum em
Uruguaiana, o que já foi destacado em outro anúncio de préstimos de serviços referentes à
educação, principalmente feminina, fato que se justifica, talvez, pela grande presença de franceses
nesse território. Acredito que deveria ser muito forte, pois o espanhol quase nem se fala quando se
oferece ensino particular, o que chama a atenção, pois é o idioma da cidade vizinha - Paso de Los
Libres. Quem sabe pelo fato de que, na região da fronteira, o espanhol constituir-se, naturalmente,
como uma espécie de uma segunda língua:
Professora
A professora normalista, Rosa de Bittencourt Fontana, participa aos Srs. paes de familia
desta cidade, que abriu um curso particular de ensino primario e secundario, com aulas
de francez, desenho e pintura annexas ao mesmo curso.
Acceita também lições em domicilio particular - e tendo pratica de vinte e um annos de
magistério, acha-se habilitada a satisfazer as exigencias dos Srs. Paes de familia no bom
desempenho de sua missão.
Para mais informações à rua 15 de Novembro nº 85.
A professora
Rosa B. Fontana
2. ord. N. 1141
(A Nação, de 15 de março de 1910).
O nível de qualificação para o ensino dessa professora parece ser elevado,. Uma vez que,
mesmo sem fazer referência à sua escola de formação para o magistério, alude à sua “pratica de
vinte e um annos de magistério”, o que, no entendimento da notícia, a recomendaria junto à
113
comunidade de forma a vê-la como “habilitada a satisfazer as exigências dos Srs. Paes de
família no bom desempenho de sua missão”.
Com essa informação constatamos mais uma vez a preponderância de homens no
magistério. Outro fator importante de analisar é o fato de que fica a cargo de professora a
formação primária. Por quê? Será pelo fato de protegê-la do contato com os rapazes? Ou por
acreditar que por ser mulher terá mais competência para ensinar as crianças? Acredito que
ambas as questões têm suas afirmativas.
Se pensarmos que, numa sociedade que exige uma postura muito rígida em relação as suas
mulheres, e que vê que sua educação deve ser voltada para o lar - no cuidado com a criação dos
filhos, talvez justifique-se o fato de a escola acima citada escolher uma professora para dar aulas
no primário. Assim evitaria qualquer constrangimento para as moças, no convívio e no trato com
os rapazes; e a afetividade das mulheres se estenderia aos alunos pequenos.
Destaca-se, no final dessa notícia, a compreensão do magistério como uma “missão”; e
a assinatura, com a designação, por extenso, de “A professora”. O entendimento da profissão
do magistério como um sacerdócio que se realiza em missão, parece ser comum à época.
Nessa outra matéria, publicada pela imprensa local, encontra-se um manifesto assinado por
vários professores que se auto-designam" “os sacerdotes dessa religião grandiosa” que é o
magistério. Pelo teor da manifesto, vê-se a indignação dos signatários com a possibilidade de
aviltamento da profissão. O manifesto é também uma conclamação, para que os professores
não se deixem envolver por “todos aquelles que lhes fizerem propostas indignas, que tenham
por fim o aviltamento do Professorado Rio-Grandense”. "
"
"
"
Os sacerdotes dessa religião grandiosa, que nos ensina o caminho por onde se chega ao
conhecimento de todas as outras religiões, merecem um pouco mais de respeito, quando
revestidos das honrosas e dignificantes prerrogativas do ensinar!!
Offerecemos, publicamente, o nosso apoio a todos os collegas que souberem, com altivez e
independencia, despedir com o seu mais amesquinhador sorriso, a todos aquelles que lhes
fizerem propostas indignas, que tenham por fim o aviltamento do Professorado Rio-
Grandense.
Uruguayana 13 de Novembro de 1899.
Aleixo V. Wurlod; João Batista Marchado; Thomaz Luiz de Souza; Garcindo Silva Marttns;
Augusto de Almeida; TitoArsenio; Lydio de Oliveira (A Notícia, de 14 de novembro de
1899).
"
C" Pqvîekc, de 14 de novembro de 1899, publica um manifesto de valorização da
educação pelo reconhecimento da importante profissão do magistério - um manifesto que,
embora seja assinado apenas por homens, entre eles o mestre-escola francês huguenote Aleixo
Vicente Wurlod, de quem já fiz referência em capítulo anterior, é uma luta que interessa e
114
inclui, mesmo que indiretamente, as mulheres, uma vez que sua presença em meio
educacional sempre se fez notar nessa época de fins do século XIX como também já fiz
comentário. Nessa publicação, observa-se que as lutas salariais e de reconhecimento de
dignidade e importância do professor é muito antiga. Com esta notícia é possível ver que a
escola não compunha a presença feminina, era dirigida por homen; e quem ministrava as aulas
eram professores, portanto do sexo masculino, os estudantes também eram homens - o que era
considerado muito normal para a época.
Entre os professores que assinam o manifesto apoiando a luta de seus colegas de
profissão, encontram-se Aleixo Vurlod, fundador do até hoje existente “Collegio União” e
Thomaz Luiz de Souza, de quem a notícia a seguir coletada dá mostras do reconhecimento
que lhe era dado pela comunidade. O primeiro, Vurlod, dirigia a escola particular; e o
segundo, Thomaz, uma escola municipal:
No dia 2 do corrente, foram encerradas, por ordem superior, as aulas
estadoaes aqui existentes. (A Notícia, de 4 de dezembro de 1901)
No mesmo dia no importante collegio municipal dirigido pelo provecto
educacionista Thomaz Luiz de Souza, teve lugar a ceremonia do
encerramento do ano lectivo. O acto foi presidido pelo dr. Romagueira
Corrêa, que teve como auxiliares os competentes cavalheiros Capitão
Olympio da C. Leite e Tenente Manoel Gomes Pereira. Lms. Os alumnos
examinados revellaram bastante aproveitamento, sendo o professor Thomaz
muito felicitado por esse facto, pela comissão.
Mas não só as mulheres, também professores do sexo masculino se prontificavam a
ministrar aulas particulares, não só em disciplinas escolares, mas também em aprendizagens
específicas para o desenvolvimento de alguma habilidade, como se pode verificar por estes
dois anúncios: “Professor: Na gerencia desta folha se dará informações de um professor que
deseja leccionar na campanha, e em casa particular” (A Nação, de 11 de setembro de 1909).
Com essa informação observa-se que a educação formal muitas vezes não chegava até
a zona rural. Muitos não tinham condições de mandar seus filhos estudar na cidade;
economicamente poderia não ser viável. Assim, contava-se com a disposição de alguns
profissionais da área, que se ofereciam para lecionar em casa - prática muito comum daqueles
que procuravam emprego e de pais que não queriam deixar suas filhas ou filhos saírem de
casa para a escola na cidade: como o lugar da filha é junto à família, lugar de mulher é em
casa; e a escola poderia desviá-la para outros caminhos que não pertenciam a uma moça
direita e de boa família. O anúncio chama a atenção porque mostra que não só as mulheres
115
trabalhavam como professoras particulares, mas também os homens: “professor que deseja
lecionar na campanha e em casa particular”. Talvez as mulheres se oferecessem para lecionar
na cidade por ser próximo de sua casa, e nas campanhas ficasse mais para os homens - não
que se ignorasse a presença de professoras nas fazendas.
Professor de Musica
O professor de musica João Hipolito Gutierrez, offerece-se para leccionar flauta,
clarinete, saxophone, bandolin, violino e mais instrumentos.
Conforme o instrumento, pagará de 15 $ a 20 $ 000.
Nº 87 (O Guarany, de 6 de maio de 1880).
Mas, além do magistério, tamm é possível observar o desempenho de algumas
mulheres no exercício de outras profissões, no comércio ou na prática de parteiras:
A Vencedora
Antiga e Acreditada Alfaiataria que nesta praça girava sob a firma de José Zacarro,
acaba de reabrir as suas officinas sob a direção da VIUVA ZACARO
Que dispõe de pessoal competente e habilitado no seu genero de negocio.
Tem à disposição da sua numerosa e antiga freguesia um explendido sortimento do
que de mais moderno e de mais chic existe, em objetos para sexo masculino.
Trabalha-se com rapidez perfeição e sobretudo muito barato. A VENCEDORA
continua no seu predio antigo da Rua Duque de Caxias (A Notícia, de 4 de
dezembro de 1901).
A Vencedora
Antiga e acreditada alfaiataria que nesta praça girava sob a firma de José Zacaro,
acaba de reabrir as suas officinas sob a direção da
VIUVA ZACARO
Que dispõe de pessoal competente e habilitado no seu genero de negocio.
Tem a disposição da sua numerosa e antiga freguesia um explendido surtimento do
que de mais moderno e de mais chic. existe em objectos para o sexo masculino.
Trabalha-se com rapides perfeição e sobretudo muito barato. - A Vencedora
continua no seu predio antigo da Rua Duque de Caxias. 939
Proprietário: Antonio Augusto de Azevedo (A notícia, de 6 julho 1902) MARIA
BOCOLI
Gran Bazar Brasileiro
Da
Viuva Leonor Codorniz
Attençao!! Attenção!!
116
Grande Liquidação
Preços sem competencia
Lãs para vestidos - enfestadas -
Metro: 800 I $ I $ 200; I $ 800, 2 $ 200, 2 $ 600, 2 $ 800, 3 $ 000 o metro.
Grande sortimento de casacos para senhoras, luvas de pellica e seda, lenções
bordados, roupa feita branca, para senhoras chales de lã e algodão perfumarias,
cobertores de lã e algodão, calçados para senhoras, ultima novidade e que vendo
tudo com extrarodinário abatimento (A Notícia, de 17 de novembro de 1905).
Chama muito a atenção o fato de que são duas viúvas que levam avante atividade
desenvolvida no comércio. A primeira, Zacaro, continua o trabalho do marido, reconhecido
pela qualidade dos serviços prestados nesse ramo à comunidade; e trabalha com artigos
masculinos. A segunda, Codorniz, trabalha com artigos para mulheres. Zacaro divulga que
tem, na condução dos trabalhos de alfaiataria agora sob sua direção “pessoal competente e
habilitado no seu gênero de negocio”.
Três mulheres parteira, oferecem seus serviços à comunidade. Era comum, à época
estudada, o nascimento sob os cuidados de mulheres parteiras, pois nem sempre o médico
estava perto naquele momento, ou chegava tarde. Também se verificavam casos de que, na
região da campanha, nem a própria parteira conseguir chegar a tempo, e o trabalho do parto
ter que ser feito pelo próprio marido.
Percebe-se, por este primeiro anúncio, encontrado em duas publicações, que a parteira
está a oferecer “seus serviços profissionais dentro e fora da cidade”. Pela característica da
profissão, prontificava-se a atender “chamados a qualquer hora”. Para ser mais conhecida na
comunidade, uma vez que recém-chegada à cidade, ela amplia seu atendimento aos pobres.
Parteira 1883
Recem chegada a esta cidade onde vem estabelecer-se, fica à disposição das pessoas
que carecerem dos seus serviços profissionais dentro e fora da cidade.
Reside interinamente à Praça de Paysandú casa de João Zacouteguey
Chamados a qualquer hora.
Assistência gratis aos pobres [...] (O Guarany, em sua edição de número 627).
"
Parteira
Recem chegada a esta cidade onde vem estabelecer-se, fica à disposição das pessoas
que carecerem dos seus serviços profissionaes dentro e fóra da cidade.
Reside interinamente à Praça de Paysandú, casa de João Zacoute Gay;
Chamados a qualquer hora.
Assistencia gratis aos pobres de solemnidade (Guarany, de 7 de junho de 1883).
Também uma outra parteira, recém-chegada à cidade, oferece seu pronto-atendimento,
pois que “acha-se pronta a acudir a qualquer chamado que lhe seja derigido”. Neste anúncio, o
117
que se destaca é a publicação do nome da mulher parteira e sua qualificação nos estudos: “parteira
de 1ª classe pela Faculdade de Medicina de Paris”. Ressalta-se, ainda, que a confiança em que se
baseia a recomendação do jornal está nos “honrosos attestados que ella apresenta, e da excellente
reputação de que gosa em Buenos Ayres, onde residiu por alguns annos”:
Parteira
Chegou a esta cidade e acha-se prompta a accudir a qualquer chamado que lhe seja
derigido, a srª Ernestina Prophilet, parteira de 1ª classe pela Faculdade de Medicina
de Paris. Recommenda nol-a com toda a confiança em vista dos honrosos attestados
que ella apresenta, e da excellente reputação de que gosa em Buenos Ayres, onde
residiu por alguns annos.
Para mais informações veja-se o annuncio (O Guarany, de 3 de maio de 1883).
Também o oferecimento de serviços de parteira em que se destaca a formação levada a
efeito pela mulher, como se viu no anúncio anterior, se verifica neste outro anúncio. Agora, a
formação apresentada, que qualifica para o atendimento de parteira, vem da Itália.
Novamente, para aumentar rapidez de ser reconhecido seu nome na comunidade, o
oferecimento se estende, gratuitamente, à comunidade pobre:
"
"
Parteira Brazileira, formada pala Universidade de Palmas - Itália - com muita pratica do
serviços relativos à sua profissão oferece os seus trabalhos ao publico em geral.
Consulta aos pobres gratis
Rua Duque de Caxias
nº 10 ao lado de M. Pibernat.
Ate. 30.2.902 (4 dez., 7 dez., 11 dez., 14 dez., 18 dez., 21 dez., 25 dez.) (Notícia, de
4 de dezembro de 1901).
Este capítulo, em que apresento o que investiguei na literatura jornalística da época em
estudo sobre a condição feminina frente ao mundo do trabalho, permite, valorizando os
capítulos anteriores, que indaguemos se, com tudo isso que foi constatado, não poderíamos
nos perguntar de que mulher se fala, quando se escreve sobre o mito da mulher gaúcha que
exalta suas qualidades de valentia e de companheirismo: a mulher do patrão ou a mulher do
peão? A mulher do campo ou a mulher da cidade? Incluída nos ditames morais burgueses da
época ou excluída socialmente?
E, ainda, por que, geralmente, quando se fala da mulher gaúcha, a tendência é
universalizar tais características, estendendo-as também, de certa forma, com algumas
118
adaptações a toda e qualquer mulher?
Não se trata de vê-las acordando cedo, lavando a roupa no rio, com as mãos e o rosto
marcados pelo sol e o cansaço da lida campeira, como são, muitas vezes, retratadas no
cancioneiro gaúcho. Mas os atributos de valentia e de companheirismo, por exemplo, são
atribuídos a todas.
Existiriam apenas as mulheres do peão, do patrão e a urbana? A primeira, a mulher do
peão, que faz toda a lida da casa; a segunda, aquela que estaria a dirigir a casa grande,
assumindo o comando de outras mulheres no cuidado do lar; e a terceira, a mulher da cidade,
que não vive no campo, mas que é também entendida nesse contexto que define as virtudes da
mulher gaúcha.
Mas, e a mulher revolucionária? Aquela que acompanhava o seu homem nas guerras e que
ficando viúva fazia o papel do marido para dar prosseguimento à vida cuidando dos filhos? E
aquela viúva, que perdendo o marido que era o patrão, vende as terras e vem para a cidade com os
filhos? A lista não se esgota aqui, certamente outras mais se destacam na história rio-grandense.
E, hoje, quantos são os jeitos de ser mulher gaúcha em nossa realidade urbana?
O que destaco é que não se pode entender que exista, em função do mito da mulher
gaúcha, um único feminino, quando se exaltam as virtudes da mulher gaúcha.
Mas a questão continua: Elas gostam disso? Mais: elas estão realmente auto-
convencidas de que são mesmo assim? Isto é, por que se insiste falar sobre “a” mulher
gaúcha, quando existiram no passado e existem hoje “as” mulheres gaúchas? Mulher no plural
e não no singular. O que faz se generalizar, adaptando e tornando mais amenas, para toda e
qualquer mulher gaúcha urbana, as virtudes campesinas?
Assim como nos filmes, nas imagens e também nas esculturas, as letras de músicas
também são documentos que merecem nossa atenção. Mais do que documentos, como quer
Foucault, são monumentos, que devem ser apreciados de diferentes lugares e visão.
Devido ao conteúdo que apresentam, por meio do texto escrito numa época ou numa
determinada situação, é possível valer-se da música como fonte para explicitar um período
histórico de uma sociedade ou grupo social. Muitas vezes se usa esse método para denunciar
acontecimentos, vividos ou experienciados por diferentes sujeitos.
Para tanto, se torna-se necessário levantar algumas questões, como essas que utilizo,
ao fazer a leitura de possíveis enunciados contidos no cancioneiro gaúcho. A música
Ecorgukpc
26
, clássico da Ecnkhôtpkc"fc"Ecpèçq"Pcvkxc"fq"Tkq"Itcpfg"fq"Uwn, pode servir
26
De autoria de Sérgio Napp e Mário Bárbara.
119
como exemplo.
Em meus estudos sobre a construção do imaginário da mulher gaúcha, especialmente
do imaginário da mulher de fronteira, tenho procurado entender as condições que
possibilitaram a emergência dos enunciados que estão presentes nos discursos sobre o
feminino gaúcho.
A música Campesina, retratando em seus versos a lida da mulher do campo na
constituição de sua identidade rio-grandense, contém enunciados sobre o universo feminino
gaúcho e sobre a imagem que dele se construiu ao longo da história, que possibilitou o
desenvolvimento de um imaginário, reforçado não só na prosa ou no verso, mas também nas
danças, nos artesanatos, no folclore, enfim, nas artes em geral do Rio Grande do Sul.
É possível perceber, por exemplo, o exercício de microformas de poder, se
analisarmos as relações que são exercidas no convívio familiar do campo, em que tal mulher
campesina existe com as características cantadas na música e que lhe conferem identidade.
Foucault nos chamou a atenção em suas análises sobre o poder para o fato de que é
preciso abandonar o modelo jurídico do poder Leviatã e tentar entendê-lo nas suas mais
ínfimas ramificações. Para ele, o poder não está concentrado num local, numa sociedade
dividida entre aqueles que o detêm e aqueles que lutam para tomá-lo.
Segundo Foucault, o poder está em toda parte. Mais do que posse, ele se encontra
também nas relações exercidas no interior de uma família no campo, em que são estabelecidos
papéis funcionais de convivência hierárquica.
A ukec" Ecorgukpc fala de uma mulher que cumpre fielmente aquilo que lhe é
configurado, pela tradição, como deve ser o seu destino: ser buena companheira. Aliás, nada
mais além disso, lhe importará, ou como disseram os autores: nada mais lhe cabe em seu
pequeno mundo.
Como se cumpre o papel de ser buena companheira? Na letra da canção fica retratado
aquilo que lhe confere o itinerário diário a ser cumprido de sol a sol, desde o levantar-se a
tempo de acordar o sol até o enfeitar a cama para o seu peão.
O companheirismo começa com seu habitual matinal, cedinho, do chimarrão. Preparar
a erva para o chimarrão, servir e sorver o mate com o seu peão, talvez seja o momento em que
eles podem sentar e conversar - ou mesmo compartilhar do momento da hora matutina -.
Mas o sol já vem chegando e as lidas não podem esperar: leite para os guaxos,
animaizinhos órfãos que ela cuida com zelo e carinho. É preciso aproveitar esse sol que
começa a mostrar o calor do dia e não perder tempo: a roupa, que foi batida e torcida, vai para
120
o varal.
Nessa manhã de trabalho são suas mãos que acariciam com suavidade e com
cuidado a noite , que agora, debaixo do sol quente, se transformam em garras de braços que
não mais enlaçam no amor o corpo do peão, mas a trouxa de roupa a ser lavada: foge o riso,
esfrega os olhos [...] bebe o sonho [...] torce a vida, bate o medo, esfola as mãos.
E, para completar a manhã, ainda prepara a comida quente para o seu peão. Assim, vai
sendo reconhecida com a exclamação: “Que mulher valente! Vai sendo certificada como
buena companheira, pois suas mãos são asas, seu olhar me guarda [...]” mãos que como
pássaros voam em rasantes pelo corpo do marido, acariciando, qual plumas a noite e
enfeitando a cama, mas tamm são mãos que, também como nos pássaros são garras para
reparar a casa.
Nesse reparar a casa, está incluído o preparo do pão, o cuidado com os pequenos
animais, a semeadura pequena e o lavar a roupa e mexer o tacho e socar pilão , e a
gurizada para reparar. Aos meninos, ensinar a observar o pai, para serem iguais; às meninas, a
aprender dela tudo o que precisarão para cumprir fielmente o seu destino de uma mulher
valente, buena companheira, e formar sua identidade de forma a não caber mais nada nesse
seu pequeno mundo.
A questão da educação dos filhos é pertinente, tanto na lida da mulher campesina
como na lida da mulher urbana, no universo do feminino gaúcho. Preparam-se crianças para
assumir papéis, tanto no campo quanto na cidade.
A problemática se torna ainda mais complexa quando a moderna mulher gaúcha se
divide entre o campo e a cidade, convivendo nesses dois ambientes em que o cultivo das
tradições se faz de maneiras diferenciadas. Como se educam seus filhos que convivem,
acompanhando os pais, por ambientes da vida campesina e da vida urbana? O que se lhes diz?
O campo aparece bem demarcado, identitariamente: tem donos, tem porteiras, tem aramado,
tem vizinhos, tem tradição respeitada. A cidade não: nessa se fala em globalização, em
cidadão do mundo, em fronteiras virtuais. As distâncias no campo podem ser percorridas a pé
ou a cavalo, são medidas; na cidade não existe o longe: tudo está virtualmente perto, tudo é
alcançável.
Se na música Q"Guswkncfqt
27
, outro clássico da Ecnkhôtpkc"fc"Ecpèçq"Pcvkxc"fq"TU,
a denúncia era a automação do campo a tirar a função do homem que se valia da tesoura para
sobreviver; hoje a virtualidade e as comodidades urbanas já se fazem presentes no campo a
27
Composição de Telmo de Lima Freitas.
121
modificar usos e costumes da vida campesina, na perspectiva da globalização: antenas
parabólicas, microcomputadores, videogames, DVDs [...].
Portanto, o pequeno mundo da mulher campesina, onde não cabia mais nada, vai-se
modificando e mais coisas nele cabendo.
Em meus estudos, ouvi de uma mulher gaúcha, que se divide entre o trabalho e o
cuidado da casa com o acompanhamento do marido no campo, observações que mostram
como se evidencia, hoje, parte da problemática da educação dos filhos da mulher que atende o
campo e a cidade:
[...] Tenho uma função dobrada na criação de meus filhos, ressaltando eu e todas as
mulheres que casaram com fazendeiros. Ora! Tenho que educá-los para conviver
com os peões, ouvindo as conversas de galpão [...] e educá-los para o convívio na
escola da cidade, lembrando-os a todo o momento que não podem se comportar
como um peão, lá na cidade, que precisam cuidar suas expressões e atitudes. Junto a
peonada podem relaxar, agora, na cidade, devem manter vigilância constante.
Fica evidente que existe uma grande preocupação com a educação dos filhos, que são
os meninos. Essa função, como ela diz, mostra que o papel da mulher gaúcha que se divide
entre o campo e a cidade é composto por diferentes funções. Uma delas é cuidar da criação
dos filhos.
Mas deixou bem claro que se trata de uma função dobrada. Ela sabe que é uma mulher
do campo e da cidade, e que nesses dois ambientes muitos valores educacionais se
diferenciam não só no seu ensino como na forma como são aprendidos. Mas não reclama,
sabe que não é a única a ter a função dobrada de cuidar os filhos, quando diz: eu e todas as
mulheres que casaram com fazendeiros.
Ela não é uma mulher campesina, nos moldes apresentados por Sérgio Napp e Mário
Dâtdctc"pc"oûukec"Ecorgukpc. Não precisa ter as mesmas lidas campeiras que são exigidas
do feminino que acompanha o seu peão no campo. Mas ela é herdeira, assim como todas as
mulheres gaúchas se sentem, desses valores adaptados à sua condição de senhora da casa
grande e de mulher gaúcha urbana. Dela também são esperadas a valentia e o ser buena
companheira, principalmente no cuidado da criação dos filhos.
Ela precisa ser valente e buena companheira na educação dos filhos, no campo e na
cidade: tenho que educá-los para conviver com os peões, ouvindo as conversas de galpão [...]
e educá-los para o convívio na escola da cidade. Sabe a diferença de contextos, por mais que
as distâncias estejam mais curtas atualmente.
122
O campo já não é visto tão distanciadamente da cidade, como há algum tempo atrás.
Muitos movimentos culturais fizeram e continuam a fazer o encurtamento dessa distância, ao
trazerem, por exemplo, para as letras de músicas nativistas, coisas da terra que desenvolveram
a identidade histórica dos gaúchos.
Nesse sentido, podemos lembrar o que diz Colmar Duarte
28
, um dos criadores na
década de 1970 do Hguvkxcn" fc" Ecnkhôtpkc" fc" Ecpèçq" Pcvkxc" fq" TU, que a Califórnia
significa, desde a sua criação, “o fim dos preconceitos para com a música regional dos
gaúchos e com as particularidades dos nossos usos e costumes”. Por isso, ele vê com orgulho,
hoje, que “passadas três décadas, podemos ostentar, sem pejo, nossa gauchidade”.
Claro que a Ecnkhôtpkc encurtou a distância entre o campo e a cidade; e ser gaúcho
não mais passou a designar apenas ao homem da lida do campo. Todos os rio-grandenses
tiveram despertos, mais uma vez, o desejo de orgulhar-se de suas raízes nativas.
O resgate de nossos valores nativos, desencadeados por Paixão Cortez e seus amigos
que a chama crioula - uma centelha do fogo simbólico de Sete de Setembro retirada por
cavalarianos para dar início às festividades farroupilhas do vinte de setembro gaúcho -, foi um
começo para se voltar a olhar para os valores de nossa história. A Ecnkhôtpkc é hoje a versão
mais moderna desse anseio de nossa gente de revalorizar sua natividade: são intelectuais,
historiadores, compositores e cantores a nos chamar a atenção não só para aspectos de nossas
raízes do campo, mas para sua relação cada vez mais intensa com a cidade. Por tudo isso,
podemos, mais claramente, entender as palavras de Julio Machado da Silva, presidente da 33ª
edição da Ecnkhôtpkc, quando disse em recente entrevista
29
: “Trinta e dois anos se passaram
desde que na sua origem foi sentida a necessidade de criar algo novo em termos de gêneros
musicais do Rio Grande do Sul, buscando novos rumos em relação àqueles que já existiam e
faziam sucesso, como os adotados por Teixeirinha e Gildo de Freitas”.
Mas, mesmo assim, existem distâncias que são vivenciadas por quem convive nos dois
contextos o rural e o urbano e, principalmente, quando se é mulher e se cuida da criação
dos filhos, “lembrando-os a todo momento que não podem se comportar como um peão, lá na
cidade, que precisam cuidar suas expressões e atitudes. Junto a peonada podem relaxar, agora,
na cidade, devem manter vigilância constante”.
Por todos os indicativos que apareceram até aqui, penso que não se pode mais olhar o
mito da mulher gaúcha apenas como um documento que lhe confere identidade. Na perspectiva
28
DUARTE, Colmar. Califórnia. In: Tgxkuv c"Htqpvgktc. Uruguaiana: Secretaria Municipal de Cultura, ano 1,
out.-nov.dez/2004, p. 14, texto de sua autoria publicado.
29
Publicado na Revista Fronteira, out.-nov.dez/2004, p. 15.
123
de Michel Foucault, proponho que seja apreciado tal mito como um monumento, com diferentes
ângulos e possibilidades de olhares diferentes para melhor apreciá-lo. A composição Ecorgukpc,
de Sergio Napp e Mario Barbará, falando-nos de um ângulo desse mito do feminino do universo
gaúcho - a mulher campesina -, é prova de que se pode fazer isso.
Os dois compositores mostraram a lida da mulher do peão, no campo, que, para ser
valente e buena companheira, tem um papel a cumprir, pormenorizadamente por eles descrito
na canção. Na análise de alguns de seus enunciados foi possível apreciar o mito da mulher
gaúcha por outros ângulos de observação.
O ângulo da criação dos filhos, papel atribuído majoritariamente à mulher, como um
dos possíveis ângulos de apreciação, ficou estampado na fala de uma moderna mulher gaúcha
que se divide hoje entre o campo e a cidade, lutando contra preconceitos para bem educar seus
filhos. Não é uma mulher campesina, mas lhe é também exigido, assim como de todas as
mulheres gaúchas, ser valente e buena companheira.
O que significa, tradicionalmente, tais atributos na mulher do peão a mulher
campesina Sergio Napp e Mário Barbará o disseram na canção. O que significa, hoje, esses
atributos que se dizem herdados pela moderna mulher gaúcha, seja do campo ou da cidade, ou
ainda de ambos, é questão que permanece aberta à discussão.
Na delimitação de minha pesquisa, não cumpre trabalhar essa questão. Apresento-a,
no entanto, como ilustrativa de minha compreensão de que não podemos reduzir a questão da
resposta sobre o que é a mulher gaúcha a uma única fonte de originalidade do mito, no caso, a
condição do campo - a mulher campesina.
Os jornais demonstraram, e isso foi apresentado neste capítulo sobre a mulher e o
mundo do trabalho, diferentes mulheres na prática de diferentes profissões: parteiras,
professoras e administradoras de estabelecimentos comerciais. Práticas que contribuíram
também na constituição de sua representação no imaginário popular e na conseqüente
mentalidade burguesa sobre elas.
Pela leitura atenta dos jornais, foi possível perceber que a mulher ali retratada também
trabalhava profissionalmente, fazendo parte ativamente do mundo do trabalho, não se
limitando tão-somente ao trabalho doméstico de cuidar do lar, dos filhos e do marido.
Neste capítulo, portanto, apresentei mulheres atuando em diversas profissões,
dividindo-se entre o trabalho profissional e o cuidado com o lar. Mulheres que, conforme os
ditames burgueses da época, deveriam ter uma atenção maior no que se refere a sua conduta,
porque estavam mais expostas aos comentários e às atenções de outras pessoas, já que não se
dedicavam exclusivamente ao lar. Na rua e no trabalho, conviviam com pessoas de diferentes
124
níveis sociais, culturais, econômicos; e com o sexo oposto - que ainda não assimilava bem
essa atuação feminina no mundo do trabalho, e que se achava, de diferentes formas, muitas
vezes, no direito de desrespeitá-la.
É o que mostram os jornais aqui analisados e interpretados, permitindo entender que as
mulheres gaúchas não estavam limitadas à vida do campo e da família ou à religiosa, como o
imaginário social desse período insiste em mostrar por meio do mito da mulher campesina.
Eram mulheres que, ao mesmo tempo em que eram valorizadas, até certo ponto, por seu
engajamento no mundo do trabalho, tinham também que lidar com a exigência crescente de
ter que cuidar do lar.
125
:"EQPENWU’Q"
"
"
Figura 10 - Notícias do mundo feminino
No imaginário, popular não é difícil constatar, pela observação atenta de suas mais
diversas formas de expressão, a condição concedida à mulher gaúcha e, especialmente, à
mulher da fronteira.
126
Tal imaginário, que se verifica de forma notável no cancioneiro gaúcho, várias vezes
dá conta da apresentação de uma mulher que é descrita e valorizada em sua relação com a
imagem que nele se tem do homem gaúcho.
Se na descrição do masculino a figura masculina é apresentada e descrita em função de
sua tradição histórica de guerras, guardas de fronteiras e de lidas do campo, na descrição do
feminino, por sua vez, zela-se por apresentar junto ao homem uma figura de mulher que lhe
corresponda de maneira a completar-lhe. Nesse completar, à mulher com sua candura,
beleza, e acentuado sentido de dever em relação à família e ao marido , cabe o desempenho
de tarefas ao alcance de suas forças na administração do lar.
Constata-se, assim, no imaginário tradicional gaúcho, a figura de uma mulher que é
“valente e buena companheira”
30
, e que está sempre pronta para acompanhar o seu homem,
aceitando sua condição dita de superioridade e de mando em relação a ela; uma mulher que “lhe
arruma a casa”, mas que também “lhe enfeita a cama”. Com tais expressões, uma canção
31
que
apresenta a mulher campesina, assim se expressa, descrevendo-a como uma mulher que tem
“graça de garça pra enfeitar a primavera” e “garra de fera pra lutar a vida inteira”.
São representações que povoam o imaginário popular gaúcho, notadamente na
fronteira, em que o culto às tradições locais em função da histórica guarda de áreas limítrofes,
contrabandos e demarcações de fronteiras são sempre lembrados e que colaboram para que se
“crie” uma imagem de mulher idealizada, que algum dia existiu - e que às mulheres de hoje
garante uma possibilidade de vínculo de identidade histórica.
Quis eu, com minha pesquisa, procurar num determinado período de tempo
justamente aquele que marcava uma bele èpoque , encontrar-me com esse tipo de mulher e
assim verificar condições de emergência de representações que ainda hoje povoam o imaginário
popular quando a ela se referem direta ou indiretamente ao falar do homem gaúcho.
Parti, para tanto, daquilo que é lugar comum no imaginário popular, expresso, como
ilustrei acima, em versos do cancioneiro mais popular ou mais elaborado intelectualmente.
Queria saber dessa mulher, tão cantada em verso e prosa, sempre em relação à figura
masculina. Queria saber se realmente, ao menos naquele tempo, à mulher correspondiam as
representações que historicamente dela tem-se construído. Desejava saber se a mulher de
fronteira constituía um tipo de mulher singular em relação às mulheres do restante do país.
Não me detive apenas na escuta do que diz o cancioneiro, nem coleta de expressões
em prosa ou nos ditos populares que expressam o enaltecimento desse tipo de mulher gaúcha.
30
Música “Campesina”, de Sérgio Napp e Mário Bárbara; Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul.
31
Ibid.
127
Digo tipo porque, referindo-se à região da fronteira, permitem entender que as qualidades
cantadas e proseadas sobre a mulher nessa região seriam sobremaneira enfatizadas, pois que
também o gaúcho na região da fronteira notavelmente na literatura e na memória popular
tem suas dimensões qualificativas notabilizadas pela dupla função que desempenhava
historicamente na região: cuidar da terra, produzindo as condições de sua própria existência;
e, até para que isso se tornasse possível, ser o fiel guardião das fronteiras da pátria contra a
possibilidade de novos demarques limítrofes, num jogo de fronteiras móveis.
O que fiz, então, tendo dado como ponto de partida que minha investigação não
precisaria reunir os ditos e os escritos que expressassem aberta ou implicitamente tais
representações em nossa poesia e em nossa prosa gaúcha, mais ou então menos elaboradas,
foi dispor-me a trabalhar por um outro caminho.
Optei por buscar, na imprensa escrita da época, matérias que fizessem referência às
mulheres, matérias que pudessem mostrar um pouco das representações que constituíam o
imaginário da época quando se tratava de dizer sobre a condição do feminino.
Não fiquei apenas interessada na análise das colunas sociais, em que aparecem notas
desde casamentos, festas, nascimentos e outras desse teor. Busquei também, nas páginas
policiais, nas páginas de anúncios fúnebres, nas páginas que traziam propagandas de produtos
de saúde e de beleza, palavras e frases que expressassem os modos como as mulheres naquela
região da fronteira eram vistas, apresentadas e mostradas como desejáveis pelas linhas da
imprensa à sociedade. Nessas páginas, constatei comportamentos que eram valorizados para
ser tida como uma mulher digna, e aqueles que eram mostrados como indignos de uma
postura feminina conforme os padrões da sociedade local.
Nas colunas sociais, encontrei a apresentação de mulheres que participavam de
encontros da sociedade local, elegantemente vestidas para esses eventos, mas que tamm,
pela participação na Igreja envolviam-se em campanhas beneficentes. Tais colunas, porém,
não davam conta da apresentação de todas as mulheres. Aqui apareciam notícias que
interessavam à imprensa dar domínio público pela possibilidade que continham de povoar o
imaginário com a apresentação de uma figura de mulher bem posicionada socialmente por
estar amparada pelo forte sobrenome de solteira do pai e, se casada, do marido. Mulheres
dignificadas socialmente pela sua vinculação a um forte sobrenome masculino.
As páginas policiais também foram importantes, porque me mostraram, num
contraponto, a figura da mulher excluída de todo esse mundo considerado “de respeito”,
invejado e tido como o ideal. Li sobre mulheres que também atuavam ao lado de seus
128
homens, sendo apresentadas nas notícias policiais com algum vínculo a uma figura masculina
do mesmo qualificativo de excluído socialmente.
Também encontrei mulheres apresentadas como laboriosas - mas que, por força da
viuvez ou por outra circunstância na vida assumiram a frente de negócios: desde a
administração de casa comercial, até o exercício de profissões como o magistério e o trabalho
de parteira, para ganhar a vida. Li e pensei sobre mulheres escravas e outras que, mesmo
libertas passaram a servir numa outra forma de exploração social que não a das correntes:
eram “negas véias”, “quase da família”. Mas eram também mulheres que, se não mais
estavam sob a ameaça do jugo das correntes, iniciavam-se num outro tipo de ameaça: a das
correntes da degradação, da miséria e da exclusão social por estarem entrando em um mundo
para o qual não dispunham do conhecimento das regras do jogo.
Os jornais me mostraram várias possibilidades de existência de modos de ser mulher
no final do século que terminava e de um século que se iniciava: o século XX.
Vi, nas linhas dos jornais, em anúncios oficiais, como editais, até notas explicativas,
diferentes mulheres. Em todas essas mulheres, desde aquelas descritas nas notas policiais
lidas com ares de reprovação pela sociedade à época até aquelas das notas sociais
valorizadas e desejadas pelas famílias de então, as exigências eram as mesmas: que se
soubessem mulheres que deveriam corresponder às expectativas masculinas geradas em
função da condição histórica de que ao feminino cabe o dever de acompanhar o masculino e
de fazer-se ser sempre em referência a ele. Não importa a condição que ele ocupe na
sociedade. É sempre em relação ao seu homem que a mulher vai ser sempre apresentada, seja
ele o pai, o marido ou o companheiro de desventuras.
Dessa forma, vi que não existiam apenas mulheres campesinas, com as qualidades já à
época apresentadas como enobrecedoras para a mulher gaúcha e, notadamente, para a mulher
da fronteira. Virtudes que permaneceram como as ideais e que até hoje são cantadas em verso
e prosa e continuam a povoar o imaginário popular.
Havia também outras mulheres. Trabalhadoras, religiosas, prostitutas, meretrizes,
violentadas, excluídas. Bem casadas, empreendedoras, submissas, altivas. Dentro da ordem e
da lei da sociedade e da Igreja. Mas, também, aquelas tidas como fora-da-lei dessa lógica que
comandava o modo de ser mulher gaúcha e fronteiriça àquela época. Muitas mulheres e não
apenas uma mulher.
Na análise de matérias veiculadas na imprensa escrita da época, pude constatar que
características de virtude apresentadas como originárias da mulher do campo, acostumada às
lidas campesinas, seja na administração do lar no campo como patroa ou mulher do peão,
129
foram originadas também pela mulher que não estava no campo, pela mulher que estava na
vila, que estava na cidade. A referência ao campo era, como não podia se esperar que fosse de
outra maneira à época, realmente vista como necessária na cobrança que o mundo masculino
fazia à ela sobre seu papel na organização hierárquica da sociedade e, nesta, do lar.
Mas observo ainda que, pela posição geográfica privilegiada que Uruguaiana possui,
facilitando-lhe contato e convívio com outros países do Prata, o que lhe permite maior
facilidade de acesso às capitais Buenos Aires e Montevidéo, contribuiu para que se ampliasse
o leque de referências da mulher fronteiriça.
As duras lidas do campo, fosse no comando da casa do fazendeiro ou da casa do peão,
eram uma grande fonte para que se referenciasse em termos de criação de valores próprios à
condição feminina: uma mulher “buena companheira” com “graça de garça” e “garra de fera”,
para enfrentar as intempéries da vida como a viuvez ou o cotidiano de cuidado dos filhos e da
casa por menor e mais simples que fosse.
Mas tais lidas não eram as únicas a contribuir para a composição do imaginário dessas
mulheres. A proximidade da região com outras realidades latinas, como no caso da Argentina,
fortemente influenciada pelas idéias européias, contribuiu para que elas incluíssem em sua
representação outras possibilidades de ser vistas.
Os jornais retrataram várias possibilidades de ser mulher à época. Mostraram não
apenas “a” mulher da fronteira gaúcha de Brasil-Argentina em Uruguaiana. Mostraram, isto
sim, mulheres fronteiriças retratadas em diferentes espaços e condições sociais.
Não pretendo negar, com isso, os fortes traços de virtude da mulher gaúcha de
fronteira que se encontra no imaginário popular. Mas, dizer que são originárias da mulher que
vivia no campo, fazendo com que as da cidade apenas tomarem delas de empréstimo tais
qualificativos de valentia, companheirismo e tantos outros valorizados pela historiografia
tradicional gaúcha expressa em verso e prosa, significa limitar as fontes de originalidade da
constituição do imaginário sobre o feminino na fronteira.
Com isso, estou afirmando que não se nega, com minha pesquisa, a possibilidade de as
virtudes tão enfaticamente apresentadas da mulher de fronteira terem fortes vínculos com a
constituição da mulher do campo. Mas me dou o direito de, pelo estudo que fiz de matérias
publicadas nos jornais de época, perceber que outras fontes também contribuíram para tal,
como essa da proximidade com outros países do Prata, por exemplo.
Para mim, também a mulher urbana, apresentada pelos jornais locais, contribuiu para a
constituição de tal imaginário, não se limitando apenas a “herdar” tais representações do
feminino vivido no campo e eufemizado em adaptações para a sua manifestação na cidade.
130
Defendo, portanto, que a mulher apresentada historicamente pelas representações da
historiografia tradicional, e que é cantada em prosa e verso, não pode ser entendida como o
protótipo da mulher gaúcha de fronteira. Tamm outras possibilidades de viver o feminino
na região da fronteira possibilitaram o surgimento de representações que ainda hoje fazem
parte desse imaginário.
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