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Essa morte que se anuncia não poderia ser repentina, nem inesperada, ou
seria considerada uma morte terrível, pois deixaria de ser anunciada; isso porque,
num mundo familiarizado com a morte, a sua repentinidade a tornava infame,
monstruosa e vergonhosa como a peste ou a morte súbita, que deveriam ser
apresentadas como excepcionais, não sendo nem mesmo mencionadas; afinal,
eram uma maldição (Ariès, 2003, Kovács, 2003a). Mortes desonrosas eram
também as mortes tidas como clandestinas – que não tinham testemunhas ou
cerimônias – e as causadas por assassinatos ou acidentes; nestes dois últimos
casos, proibia-se a sepultura cristã, já que não havia tido tempo para o
arrependimento (Kovács, 2003a).
A clássica cena da morte era representada pelo moribundo reunindo os
familiares em torno do leito para as suas últimas recomendações e despedidas. O
moribundo tinha que cumprir os últimos atos do cerimonial tradicional. O primeiro
era referente ao lamento da vida, uma recordação triste, mas muito discreta,
direcionada aos seres e às coisas amadas (Ariès, 2003). Após o lamento
nostálgico da vida, vem o segundo ato, que corresponde ao perdão dos
companheiros, dos assistentes, sempre numerosos, que rodeavam o leito do
moribundo, a prece; por fim, havia o último ato, a absolvição sacramental. Esta
era dada pelo padre, que lia os salmos; a extrema-unção era reservada aos
clérigos e dada solenemente aos monges na igreja (idem). Após a última prece,
ao moribundo restava apenas a espera pela morte. Caso ela demorasse a chegar,
o moribundo deveria esperá-la em silêncio (idem).
Podemos perceber que a morte fazia parte da vida das pessoas. Todos
admitiam a morte. Quando a pessoa percebia que iria morrer, a morte era
esperada no leito de sua casa
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. O enfermo não a retardava, preparando-se
calmamente para esse momento e, antecipadamente, designando quem ficaria
com seus bens materiais. A morte era uma cerimônia pública e organizada pelo
próprio moribundo. O quarto do moribundo tornava-se um lugar público, onde se
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Elias (2001) critica essa descrição da morte, em que não se morre sozinho, mas rodeado por
amigos e familiares. O autor refere que, nesse período, a morte era violenta, ocasionada pelas
guerras, ou se dava na infância, por causas diversas, entre elas as epidemias, a desnutrição, as
infecções e a falta de medicamentos, o que tornava as mortes muito dolorosas. Nesse sentido, ele
se opõe à visão de Ariès (2003). Ao trazer esses dois pontos de vista, não pretendo, tal como
Áries, idealizar a morte, mas me utilizei de sua descrição para mostrar cenas que também existiam
naquela época, com a intenção de apontar as diferentes atitudes perante a morte no decorrer do
tempo, nas diferentes sociedades e culturas.