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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE CIÊNCIAS BÁSICAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS:
QUÍMICA DA VIDA E SAÚDE
CORPOS FEMININOS SUPERFÍCIE DE INSCRIÇÃO DE DISCURSOS:
MÍDIA, BELEZA, SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA,
EDUCAÇÃO ESCOLARIZADA...
Fabiane Ferreira da Silva
Orientadora:
Profa. Dra. Paula Regina Costa Ribeiro
PORTO ALEGRE
2007
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FABIANE FERREIRA DA SILVA
CORPOS FEMININOS SUPERFÍCIE DE INSCRIÇÃO DE DISCURSOS:
MÍDIA, BELEZA, SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA,
EDUCAÇÃO ESCOLARIZADA...
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências: Química
da Vida e Saúde, Instituto de Ciências Básicas da
Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Educação em Ciências.
Orientadora: Profa. Dra. Paula Regina Costa
Ribeiro
PORTO ALEGRE
2007
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECÁRIA
SIMONE GODINHO MAISONAVE – CRB10/1733
S586c Silva, Fabiane Ferreira da
Corpos femininos superfície de inscrição de discursos: mídia,
beleza, saúde sexual e reprodutiva, educação escolarizada.../ Fabiane
Ferreira da Silva. Orientação da Profa. Dra Paula Regina Costa
Ribeiro. Porto Alegre: UFRGS/PPGEC, 2007.
135 f.: il.
Dissertação (Mestrado). Instituto de Ciências Básicas da Saúde.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde.
1. Educação - Ciências 2. Educação - Química 3. Saúde Sexual
4. Estudos Culturais 5. Estudos de Gênero 6. Corpos femininos
aspectos sociais I. Título.
CDU 37:316.7
À minha mãe pela coragem e exemplo de vida.
Ao Vagner por todo amor, companheirismo e incentivo.
AGRADECIMENTOS
Para finalizar este estudo, quero deixar registrado o meu agradecimento a todos
aqueles e aquelas que, de algum modo, contribuíram para a realização desta dissertação.
Inicialmente, de modo muito especial, agradeço a minha orientadora, Paula Ribeiro
por me introduzir no campo dos Estudos Culturais e de Gênero. Agradeço as idéias e
sugestões, o empréstimo de textos e livros; a forma carinhosa como me recebeu em sua vida;
a paciência, a exigência, a dedicação, a disponibilidade, o respeito, o conhecimento e a
humildade. Agradeço por ter acreditado em mim; por segurar a minha mão e me ensinar a dar
os primeiros passos.
Aos/às colegas do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola Guiomar, Teresa,
Kellen, Joaninha, Eduardo, Rose, Estela, Felipe, Carlos, Liane –, pelas leituras e produtivas
discussões, pelas sugestões e, principalmente, pela amizade e carinho.
À Raquel, com muito carinho, por acompanhar de perto minha caminhada, pela leitura
de meus escritos, pela crítica produtiva, por todas as vezes em que viajamos juntas, pelas
caronas e cafés, enfim, pela oportunidade da convivência.
À Ju, pela amizade e disponibilidade, por ser incansável, abrindo mão das tardes de
verão para me auxiliar na transcrição das fitas desta dissertação.
À Márcia, colega de mestrado, pela cumplicidade, amizade e carinho.
À Tássia, pela amizade e por estar sempre pronta para ajudar. Agradeço a capa e as
ilustrações desta dissertação.
Às professoras Nádia Souza e Meri Rosane, pela leitura atenta e pelas importantes
observações e contribuições com que aprimoraram e enriqueceram esta pesquisa.
À Rosa, pela cuidadosa revisão e pelas sugestões.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde
pela acolhida e possibilidade de pesquisa, por fazer das minhas idas a Porto Alegre momentos
tão prazerosos e significativos. À CAPES, pela bolsa concedida, possibilitando que eu me
dedicasse exclusivamente a este estudo.
À minha família, meu porto seguro, agradeço o carinho mesmo a distância.
Às voluntárias da Associação Movimento Solidário Colméia, pelo importante trabalho
que desenvolvem junto à comunidade rio-grandina e pelas valiosas contribuições para a
finalização desta dissertação.
Por fim, agradeço às mulheres da Colméia, por compartilharem suas histórias de vida,
resultando na elaboração desta dissertação.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS......................................................................................................
8
LISTA DE SIGLAS.........................................................................................................
9
RESUMO..........................................................................................................................
10
ABSTRACT......................................................................................................................
11
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................... 12
1.1 A PERSPECTIVA TEÓRICA.....................................................................................
15
1.2 APRESENTANDO OS CAPÍTULOS........................................................................
18
2. ASSOCIAÇÃO MOVIMENTO SOLIDÁRIO COLMÉIA 21
3. CAMINHOS METODOLÓGICOS...........................................................................
26
3.1 A INVESTIGAÇÃO NARRATIVA...........................................................................
28
3.2 (RE)VISITANTO OS ENCONTROS DO CURSO MULHER E
CIDADANIA.....................................................................................................................
32
3.2.1 O primeiro dia do curso, a apresentação...................................................................
33
3.2.2 Segundo encontro: Conhecendo e problematizando o corpo feminino....................
39
3.2.3 Terceiro encontro: Conhecendo e discutindo sobre as DST e a AIDS.....................
41
3.2.4 Quarto encontro: Sexualidades.................................................................................
43
3.2.5 Quinto encontro: Ai que saudades da Amélia..........................................................
44
3.2.6 Sexto encontro: Contando histórias de mulheres......................................................
47
3.2.7 Sétimo encontro: Problematizando as feminilidades e masculinidades a partir do
filme Mulan.......................................................................................................................
50
3.2.8 Último encontro: Os significados do curso para as mulheres da Colméia...............
53
4. APRESENTANDO OS ARTIGOS............................................................................ 55
4.1 Artigo I: O GOVERNO DOS CORPOS FEMININOS: (RE)PENSANDO
ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE.........................................
56
4.1.1 Resumo.....................................................................................................................
56
4.1.2 Abstract.....................................................................................................................
56
4.1.3 Introdução.................................................................................................................
57
4.1.4 O poder sobre a vida e as políticas em saúde...........................................................
58
4.1.5 Caminhos metodológicos: a investigação narrativa e o grupo focal .......................
62
4.1.6 Analisando as narrativas das mulheres da Colméia..................................................
66
7
4.1.7 Tecendo algumas considerações...............................................................................
73
4.1.8 Referências Bibliográficas........................................................................................
74
4.2 Artigo II: CORPOS EM EVIDÊNCIA: PROBLEMATIZANDO
REPRESENTAÇÕES DE CORPOS FEMININOS..........................................................
78
4.2.1 Resumo.....................................................................................................................
78
4.2.2 Apresentação.............................................................................................................
78
4.2.3 Corpo: órgãos, sexualidade, beleza, saúde, geração, adornos..................................
80
4.2.4 Problematizando as representações de corpo feminino............................................
83
4.2.5 Referências Bibliográficas........................................................................................
90
4.3 ARTIGO III: CONTANDO E OUVINDO HISTÓRIAS SOBRE GÊNERO E
EDUCAÇÃO ESCOLARIZADA.....................................................................................
93
4.3.1 Resumo.....................................................................................................................
93
4.3.2 Abstract.....................................................................................................................
93
4.3.3 Introdução.................................................................................................................
94
4.3.4 Tecendo algumas considerações sobre os Estudos Culturais...................................
94
4.3.5 Tecendo os caminhos metodológicos.......................................................................
96
4.3.6 Tecendo narrativas sobre educação escolarizada.....................................................
99
4.3.7 Referências Bibliográficas........................................................................................
108
5. ENTÃO......................................................................................................................... 111
6. ALGUNS APONTAMENTOS E PERSPECTIVAS................................................ 115
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 117
8. ANEXOS....................................................................................................................... 123
ANEXO A – Entrevista semi-estruturada..........................................................................
124
ANEXO B – Questionário.................................................................................................
125
ANEXO C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.............................................
126
ANEXO D – Música Mulher – Sexo Frágil (Erasmo Carlos)...........................................
127
ANEXO E – Texto “Afinal o que é menstruação?”..........................................................
128
ANEXO F – Responda sim ou não....................................................................................
130
ANEXO G – Texto “Cuidados com o corpo, sexualidade e relação sexual”....................
131
ANEXO H – Música Mania de Você (Rita Lee)...............................................................
134
ANEXO I – Música Ai que saudades da Amélia (Mário Lago e Ataulfo Alves).............
135
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Neco e Belinha p. 37
Figura 2 – Construção do corpo feminino p. 41
Figura 3 – Construção do corpo masculino e feminino p. 42
Figura 4 – Painel “Representando os corpos” p. 46
Figura 5 – Vênus de Willendorf p. 47
Figura 6 – Painel “O que é ser mulher hoje?” p. 49
Figura 7 – Filme Mulan p. 52
Figura 8 – Avaliação do curso “Mulher e Cidadania” p. 53
LISTA DE SIGLAS
AIDS Sigla original da expressão em inglês Acquired Immune Deficiency Syndrome. Em
francês, português e espanhol, a sigla correspondente é SIDA. No Brasil, o mais comum é o
termo AIDS.
CEAMECIM – Centro de Educação Ambiental, Ciências e Matemática
CNPq – Conselho Nacional de Pesquisa
DIU – Dispositivo Intra-uterino
DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis
EVA – Etileno Acetato de Vinila (folha de borracha para manualidades)
FaE – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas
FAPERGS – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
FURG – Fundação Universidade Federal do Rio Grande.
GAPA – Grupo de Apoio e Prevenção à Aids.
GESE – Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola
HIV – Do inglês Human Immuno Deficiency Vírus . Esta sigla identifica a expressão Vírus da
Imunodeficiência Humana, o vírus causador da AIDS.
HPV – Papiloma Vírus Humano
ICBS – Instituto de Ciências Básicas da Saúde
PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
PBF – Programa Bolsa Família
PNPM – Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
SBECE – Seminário Brasileiro de Estudos Culturais
SUS – Sistema Único de Saúde
TPM – Tensão Pré-menstrual
UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFPel – Universidade Federal de Pelotas
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
ULBRA – Universidade Luterana do Brasil
RESUMO
Nesta dissertação investigo a rede de discursos que inscrevem os corpos femininos de
mulheres integrantes do Movimento Solidário Colméia, do município do Rio Grande/RS,
quando participaram do curso “Mulher e Cidadania”. Neste estudo, tomo o corpo e o gênero
como invenções produzidas no âmbito cultural, social e histórico, implicados em sistemas de
significação e relações de poder. Na perspectiva de discutir e problematizar como
determinados discursos e práticas inscrevem diferentes marcas nos corpos, ensinando
costumes, valores, crenças, maneiras de perceber a si, de ser e de agir como mulheres e de
pensar e atuar com relação aos seus corpos, estabeleço algumas conexões com os Estudos
Culturais e de Gênero, nas suas vertentes pós-estruturalistas, e com proposições de Michel
Foucault. O curso funcionou como um espaço narrativo, no qual as mulheres participaram de
um processo de contar e ouvir algumas histórias a respeito de suas vidas. Essa estratégia
também teve como objetivo desestabilizar e desnaturalizar as histórias narradas e,
eventualmente, modificar os significados atribuídos ao corpo, ao gênero e à sexualidade por
essas mulheres. Dele participaram 20 mulheres, com idades entre 18 e 60 anos, as quais estão
em processo de escolarização e qualificação profissional. Essas mulheres vivem abaixo da
linha de pobreza, desconhecem os seus direitos sociais, muitas delas oprimidas dentro do
contexto familiar, convivendo com situações de violência física e/ou sexual. A estratégia de
análise consistiu em “olhar” nas narrativas das mulheres o que elas contam sobre suas vidas,
sobre suas relações familiares e sociais, sobre seus corpos, sobre a sua saúde reprodutiva e
sexual, seus sentimentos, suas crenças, valores. A análise das narrativas possibilitou-me
entender o sujeito como constituído a partir de diversas instâncias sociais como a família, a
escola, a mídia, a igreja, o hospital – e artefatos culturais – os programas de TV, as novelas, as
revistas, os anúncios publicitários, as campanhas de saúde, as músicas. Ficou evidenciado
neste estudo que as representações de corpo feminino produzidas e veiculadas nos meios de
comunicação de massa interpelam e produzem nas mulheres pesquisadas, o desejo de ser de
determinada maneira, de reconhecer-se e de pensar de determinado jeito e ter vontade de
“consumir” certos produtos. Elas também estão sendo inscritas por significados que circulam
nas campanhas voltadas à prevenção de doenças e promoção da saúde, que interferem nas
suas escolhas pessoais, estabelecendo como podem ou devem agir para viver suas vidas de
forma mais saudável. Também foi possível problematizar as representações naturalizadas de
gênero, por exemplo, o pressuposto de que a função “natural” da mulher é ser mãe, esposa,
cuidar da casa, dos filhos e marido. Tais representações estiveram implicadas nos motivos
pelos quais algumas dessas mulheres não tiveram acesso à escola ou nos motivos que
impossibilitaram a continuação dos seus estudos.
PALAVRAS-CHAVE: corpo, gênero, narrativas, Estudos Culturais e de Gênero.
ABSTRACT
In this dissertation I investigate the net of discourses that inscribe the feminine bodies of
women of the Solidary Movement Beehive, in the city of Rio Grande/RS, when they attended
the course “Woman and Citizenship.” In this study, I take the body and the gender as
inventions produced in the cultural, social and historical range, implicated in systems of
significance and relationships of power. In the perspective of discussing and problematizing
how certain discourses and practices inscribe different marks in the bodies, teaching habits,
values, faiths, ways of self-perceiving, of being and acting as women and thinking and acting
towards their own bodies, I establish some connections with the Cultural Studies and of
Gender, in their post-structuralists, and with propositions of Michel Foucault. The course
worked as a narrative space, in which the women participated of a process of telling and
listening to accounts regarding their own lives. That strategy also aimed at destabilizing and
denaturalizing the accounts told, and, eventually, to modify the meanings attributed to the
body, to the gender and the sexuality for those women. Twenty women attended the course,
ages ranging from 18 and 60 years old, who are in schooling process and professional
qualification. Those women live below the poverty line; they ignore their social rights, many
of whom oppressed within the family context, living situations of physical and/or sexual
violence. The strategy of analysis consisted of “pondering” over the women's narratives about
their lives, families and social relationships, their bodies, their reproductive and sexual health,
their feelings, faiths and values. The analysis of the narratives made possible to understand
the subject as having constituted of several social instances–as the family, the school, the
media, the church, the hospital–and cultural artifacts–the TV programs, the soap operas, the
magazines, the advertisements, the health campaigns, the music. It was clear in this study that
the representations of feminine body produced and broadcast question and produce in the
women on research, the desire to be certain way, of recognizing and of thinking in a certain
way and wanting “to consume” certain products. They are also being inscribed by meanings
that circulate in the campaigns focused on the prevention of diseases and promotion of health,
which interfere with their personal choices, establishing how they can or they should act to
live their lives in a healthier way. It was also possible to problematize the naturalized
representations of gender, for instance, the presupposition that the “natural’ role of the woman
is to be mother, to get married, to take care of the house, of the children and husband. Such
representations were implicated in the reasons by which some of those women didn't have
access to instruction or in the reasons that disabled the continuation of their instruction.
KEY WORDS: body, gender, narratives, Cultural Studies and of Gender.
1. INTRODUÇÃO
13
“É preciso continuar, eu não posso
continuar, é preciso continuar, é preciso
pronunciar palavras enquanto as há, é
preciso dizê-las até que elas me encontrem,
até que me digam – estranho castigo,
estranha falta, é preciso continuar, talvez já
tenha acontecido, talvez já me tenham dito,
talvez me tenham levado ao limiar de minha
história, diante da porta que se abre sobre
minha história, eu me surpreenderia se ela se
abrisse” (FOUCAULT, 2004, p. 6).
Escrever esta dissertação significa superar a dificuldade de começar, enfrentar o medo
de ser traída pelas armadilhas da linguagem e, assim, obedecer/desobedecer às formas
ritualizadas que nos são impostas. É preciso enfrentar a sensação de falta de tempo e o
cansaço. A sensação de que tudo poderia ter sido diferente. Agora, aqui, é hora de debruçar-
me sobre os livros e sobre o teclado do computador, companheiros de longas horas, e ir
adiante. Afinal, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as e não
outro caminho...
Nesse sentido, busco compartilhar com o/a leitor/a os caminhos trilhados que
possibilitaram a construção desta pesquisa. Para tanto, é preciso começar a narrar essa
história, recordar as experiências passadas, narrar como foi o processo de escolha do objeto de
pesquisa, dos sujeitos, da perspectiva teórica, da estratégia de investigação e análise, não
buscando a origem desses movimentos, mas, sim, no sentido de ir compreendendo como fui
construindo esta dissertação e ao mesmo tempo me constituindo como pesquisadora. Assim,
inicio este texto narrativo entendendo-o como um mecanismo implicado na produção e
reconstrução da minha subjetividade, uma vez que “é contando histórias, nossas próprias
histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós
próprios uma identidade no tempo” (LARROSA, 2002, p. 69).
A trajetória percorrida foi tanto escolha própria como também foi resultado de alguns
acontecimentos. Um desses acontecimentos foi a possibilidade de integrar o Grupo de
Pesquisa Sexualidade e Escola (GESE), na Fundação Universidade Federal do Rio Grande,
que desde a sua criação, em 2000, vem buscando investigar práticas relacionadas à
sexualidade nos diversos espaços, na tentativa de compreender como as mesmas atuam na
constituição das identidades de gênero e sexuais, das configurações familiares, do prazer, do
desejo, das DST/AIDS... Nesse grupo me vi envolvida em leituras e discussões, iniciando
14
meus estudos com autores do campo dos Estudos Culturais, Estudos de Gênero, nas vertentes
pós-estruturalistas e, também, com as leituras de Michel Foucault. Ao integrar esse grupo de
estudos, tinha como objetivo aprofundar e compartilhar conhecimentos e, também, aprender
como eram realizadas as pesquisas nesse campo de estudos que eu passava a conhecer, e que
inicialmente se apresentava como instigante e desestabilizador das minhas “verdades”. Ao
recordar a minha inserção no grupo de estudos, percebo que foi nesse espaço que construí um
“outro” modo de pensar a pesquisa, uma vez que durante a minha formação em Química
1
, eu
me imaginava realizando experimentos e pesquisas na área de Química, tendo como espaço
de trabalho e investigação o laboratório.
A partir daí, acontecimentos, escolhas feitas, idéias, desejos...
No segundo semestre de 2004 surgiu a oportunidade de participar da organização e
desenvolvimento do curso de extensão “Mulher e Cidadania”, destinado às mulheres
integrantes da Associação Movimento Solidário Colméia, no município do Rio Grande/RS,
com o objetivo de oportunizar espaços de discussão e reflexão acerca de temáticas que
envolvem corpo, gênero e sexualidade. Ao longo dos encontros fui me fazendo muitos
questionamentos: Por que muitas mulheres têm vergonha e desconhecem o seu corpo? Por
que existem tantos tabus envolvendo o corpo e a sexualidade? Por que a mulher é
discriminada e inferiorizada socialmente? Por que a maternidade e os cuidados com a casa se
configuram como o “verdadeiro” destino da mulher? Por que o acesso à educação
escolarizada é muitas vezes negado às mulheres? Aos poucos essas questões foram
interpelando-me e foram constituindo-se, para mim, em um objeto de estudo.
Entretanto, destaco que a escolha de um objeto de pesquisa não se ao acaso, como
se o objeto de estudo “emergisse” em determinado momento de nossas vidas, nem tampouco
de forma fácil e simples, sem sofrimento, angústias, suor, exigências. Optar por um tema de
estudo é aprender a “olhar” de outro modo o que entendíamos como familiar, é suspeitar o
que parecia tão “natural”, ou seja, na mesma direção apontada por Corazza (2002, p. 111),
entendo que “toda e qualquer pesquisa nasce precisamente da insatisfação com o já-sabido”.
Enfim, a escolha do objeto de pesquisa não se deu sem um desdobramento sobre mim mesma
e sobre as coisas a minha volta. Lembro que, muitas vezes, ouvi de vários professores, na
faculdade, que os problemas para uma investigação já estão “dados” nos locais em que
transitamos e que bastaria “olhar” atentamente para estabelecer o objeto de pesquisa.
Contudo, entendo que não é qualquer tema que nos interpela. É preciso capturar-se ou deixar-
1
Fiz o curso de Química Licenciatura, habilitação em Ciências na FURG.
15
se capturar. É preciso que haja paixão, sentimento. Deste modo, é a partir de tais
entendimentos que percebo como fui interpelada pelas histórias narradas pelas mulheres da
Colméia, que, de certa maneira, possibilitaram-me pensar e repensar a minha história, as
minhas relações familiares, a minha identidade de filha... Nesse processo passei a
problematizar aquilo que eu havia aprendido a tomar como “dado”, da ordem do “natural”,
passei a interrogar as minhas práticas cotidianas como, por exemplo, os tratamentos
diferenciados entre as mulheres e os homens da minha família, o que era permitido e/ou
proibido para ambos, porque as pessoas próximas a mim agiam desta ou daquela maneira,
entre outras indagações que a cada passo dado eu ia me fazendo. De certa forma, questões
como as que busquei apresentar aqui, eu vinha me fazendo; porém, à medida que fui
conhecendo os Estudos Culturais e de Gênero, na vertente pós-estruturalista, bem como
algumas contribuições de Foucault, e aprofundando as minhas leituras e discussões no GESE,
tais questões não representavam somente indagações, uma vez que agora, ancorada nesses
campos teóricos, eu já estava conseguindo respondê-las e/ou compreendê-las.
Nesse sentido, tais questões, tendo como suporte os campos teóricos referidos
anteriormente, moveram-me na direção de investigar a rede de discursos que inscrevem os
corpos femininos constituindo as mulheres da Colméia e suas identidades.
1.1 A perspectiva teórica
O entendimento de corpo e gênero como invenções produzidas no âmbito cultural,
social e histórico, implicadas em sistemas de significação e relações de poder levou-me a
estabelecer algumas conexões com os Estudos Culturais e de Gênero, pelo viés de suas
vertentes pós-estruturalistas. A seguir, apresento brevemente algumas considerações desses
campos de estudos que foram fundamentais para a realização desta pesquisa.
Os Estudos Culturais constituem um campo de teorização, investigação e intervenção,
não-homogêneo, de caráter interdisciplinar, transdisciplinar, ou “antidisciplinar”, que estuda
os aspectos culturais da sociedade, sem fazer distinção entre a “alta cultura” – cinema,
pintura, clássicos da música e da literatura e a “baixa cultura” programas de televisão,
publicidade, música popular, atividades de lazer (SILVA, 2004; VEIGA-NETO, 2004).
No contexto desta discussão, cabe referir o que se entende por cultura, uma vez que é
na e pela cultura que corpo e gênero são significados. Na perspectiva dos Estudos Culturais, a
cultura “tem a ver com a produção e o intercâmbio de significados o ‘dar e receber de
significados’ – entre os membros de uma sociedade ou grupo” (HALL, 1997, p. 2). Para Silva
16
(2004, p. 133-134), a cultura é “um campo de produção de significados no qual os diferentes
grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus
significados à sociedade mais ampla”.
No entendimento de cultura, é importante destacar o papel dos significados uma vez
que “eles organizam e regulam as práticas sociais, influenciam nossas condutas e
conseqüentemente têm efeitos reais, práticos” (HALL, 1997, p. 3). Os significados são
produzidos por diversas instâncias sociais família, mídia, escola, igreja, hospital e
artefatos culturais programas de TV, novelas, revistas, jornais, anúncios publicitários,
campanhas de saúde, e músicas, por exemplo –, e circulam através de diferentes processos ou
práticas culturais; portanto, os significados não são constantes e fixos, nem preexistentes; são
fluidos, múltiplos, transitórios e incertos (HALL, 1997; SILVA, 2004). Tais sistemas de
significação ensinam costumes, valores, hábitos, atitudes, crenças, maneiras de perceber a si,
de ser e de agir como mulheres e homens, entre outros atributos sociais que, ao serem
inscritos nos corpos, constituem as pessoas e as identidades de gênero, sexuais, raciais,
religiosas, profissionais, de classe social, de mãe/pai, filha/o, esposa/o, entre outras.
Nessa perspectiva, é nas práticas culturais engendradas em relações de poder
2
que os
sujeitos, a partir das suas representações, instituem os modos de compreender a si mesmos e o
mundo que os cerca. Na perspectiva dos Estudos Culturais, em suas vertentes pós-
estruturalistas, as representações não espelham a realidade, ou seja, o mundo “real” tal como
ele é em sua “essência”. Representação, neste contexto, é o modo de produção de significados
através da linguagem sons, palavras escritas, linguagem oral, imagens eletrônicas, imagens
impressas, notas musicais, objetos, gestos, expressões corporais que, ao representarem os
signos modelos, objetos, desenhos, sons, símbolos, imagens –, dão sentido aos nossos
pensamentos, sentimentos, ações, valores, a nossa identidade quem somos e a que grupo
pertencemos (HALL, 1997).
Mulheres e homens aprendem desde muito cedo a ocupar e/ou a reconhecer seus
lugares na sociedade, e para tanto um investimento significativo é posto em ação, uma vez
que a família, a escola, a mídia, a igreja, o hospital, entre outras instâncias sociais, atuam
nesse processo, desempenhando papel importante nessa complexa rede que (con)forma e
governa nossos corpos e nossas vidas. Segundo Louro,
todas essas instâncias realizam uma pedagogia, fazem um investimento que,
freqüentemente, aparece de forma articulada, reiterando identidades e
2
Utilizo poder numa perspectiva foucaultiana, ou seja, como uma relação de ações sobre ações algo que se
exerce, que se efetua e funciona em rede. Nessa rede, os indivíduos não circulam, mas estão em posição de
exercer o poder e de sofrer sua ação e, conseqüentemente, de resistir a ele (FOUCAULT, 2003a; 2006a).
17
práticas hegemônicas enquanto subordina, nega ou recusa outras
identidades e práticas; outras vezes, contudo, essas instâncias
disponibilizam representações divergentes, alternativas e contraditórias. A
produção dos sujeitos é um processo plural e permanente (2001a, p. 25).
No contexto desta discussão cabe referir o que estou entendendo por gênero, uma vez
que tal entendimento tornou-se fundamental no desenvolvimento do trabalho. Gênero,
associado às perspectivas teóricas citadas anteriormente, refere-se a um conceito elaborado
inicialmente por feministas anglo-saxãs, a partir do início da década de 70, que “queriam
enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (SCOTT, 1995,
p. 72). A utilização dessa expressão tinha como proposta uma negação ao determinismo
biológico presente no termo sexo. De acordo com Louro (2001b, p. 70), o que as feministas
buscaram fazer “é demonstrar que a feminilidade e a masculinidade não são constituídas
propriamente pelas características biológicas. Mas, sim, por tudo que se diz ou representa a
respeito destas características”. Cabe ressaltar aqui que “enfatizar o caráter fundamentalmente
histórico, social, cultural, e lingüístico do gênero não significa negar que ele se constrói com –
e através de corpos que passam a ser reconhecidos e nomeados como corpos sexuados”
(MEYER, 2003a, p. 19). Com tais considerações não estou negando a materialidade biológica
do corpo, nem dizendo que ela não é importante, mas direcionando as discussões para os
processos que possibilitam que as características biológicas passem a funcionar como
justificativa para diferenças, desigualdades e posicionamentos sociais. Para exemplificar esse
entendimento, posso citar o pressuposto de que a mulher, por apresentar determinadas
características biológicas, possui um instinto materno, estando, na sua essência, a condição de
ser mãe. Outro exemplo que posso citar refere-se à menstruação que, embora seja um
fenômeno biológico, o que se diz dela é construído culturalmente, “não podemos lavar a
cabeça, não podemos andar de pés descalços, tomar banho de mar, fazer bolos...”. Pensar
assim é perceber os corpos e os gêneros não apenas vinculados a sua natureza biológica, mas
sim que esses entendimentos são inteiramente construídos na e pela cultura. Portanto, a
feminilidade e a masculinidade não são constituídas propriamente pelas características
biológicas, mas por tudo o que se diz ou se representa a respeito dessas características. Desse
modo, os Estudos Culturais e de Gênero, fundamentados nos pressupostos pós-estruturalistas,
permitem-nos problematizar as origens dessas invenções e os processos pelos quais elas se
tornaram naturalizadas.
18
1.2 Apresentando os capítulos
No primeiro capítulo, apresento a Associação Movimento Solidário Colméia,
buscando compartilhar com o/a leitor/a o trabalho desenvolvido por essa instituição, os
desejos e sonhos das voluntárias, as atividades que possuem como objetivo a educação e
geração de renda, os obstáculos, enfim, apresento a Colméia caracterizada por uma das
voluntárias como “um teimoso projeto de inclusão social”.
No capítulo que segue, apresento a metodologia utilizada na produção desta
dissertação a investigação narrativa. Para a utilização da narrativa como metodologia de
investigação tive como suporte teórico às contribuições de Connelly e Clandinin (1995) e de
Jorge Larrosa (1996, 2002). Apoiada em tais autores passei a entender a narrativa como uma
modalidade discursiva através da qual os sujeitos vão construindo os sentidos tanto de si,
quanto dos outros e das coisas que os cercam no processo de contar e ouvir histórias. Para a
produção dos dados narrativos utilizei a metodologia de grupo focal (GATTI, 2005;
GONDIM, 2003), que se caracteriza como uma técnica qualitativa, muito utilizada quando se
pretende conhecer e problematizar representações, valores, hábitos, atitudes, crenças,
linguagens e códigos predominantes em determinado grupo social. Nesse mesmo capítulo
percorro os encontros do curso “Mulher e Cidadania”, que constitui o grupo focal, buscando
apresentar os objetivos e as atividades desenvolvidas a cada encontro, como estratégias de
produção das narrativas.
No capítulo subseqüente, apresento os três artigos que configuram esta dissertação. No
primeiro artigo, intitulado
O governo dos corpos femininos: (re)pensando algumas
implicações da educação em saúde, examinei, nas narrativas das mulheres da Colméia, o
que elas contavam acerca da sua saúde sexual e reprodutiva, buscando compreender em que
medida elas são interpeladas pelos discursos referentes à Educação em Saúde, em especial, as
políticas e campanhas direcionadas aos corpos femininos. Para tanto, estabeleci algumas
aproximações com Michel Foucault, especialmente com os conceitos encontrados em Vigiar e
Punir, História da sexualidade I, e Em defesa da sociedade, em que o autor discute e define
duas formas de poder: o “poder disciplinar”, dirigido ao corpo individual por meio de técnicas
de vigilância, punitivas que, por exemplo, regulam a sexualidade através do controle do
mesmo, nos gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos; e a outra tecnologia, que
vai atuar conjuntamente com o poder disciplinar, o “biopoder”, que se exerce sobre a
população, e centra suas ações nos fenômenos biológicos como a natalidade, a AIDS, as
doenças sexualmente transmissíveis, etc. A partir de tais entendimentos, argumento que as
19
práticas educativas, desenvolvidas com o objetivo de promover a saúde e prevenir doenças,
atuam como mecanismos que governam a população e disciplinam os corpos dos indivíduos,
uma vez que se trata de um processo educativo que interfere nas escolhas pessoais de
mulheres e homens sobre como podem ou devem agir para viver suas vidas de forma
saudável.
No segundo artigo, intitulado Corpos em evidência: problematizando
representações de corpos femininos, analiso, nas narrativas das mulheres da Colméia, as
representações de corpo feminino a fim de problematizar alguns discursos, tais como, de
beleza, saúde, feminilidade, moda, gênero, que são produzidos e circulam em diversas
instâncias socioculturais e, ao se inscreverem no corpo, constituem os sujeitos e as
identidades. Nesse artigo não tenho como propósito analisar as representações de corpo
feminino veiculadas pelos meios de comunicação de massa, mas, sim, busco, através da
análise das narrativas das mulheres da Colméia, tornar visível como as nossas experiências se
encontram, atualmente, impregnadas por essas práticas discursivas, e com isso chamar a
atenção para os seus efeitos na constituição dos sujeitos. A partir de tais entendimentos
discuto que as representações de corpo feminino produzidas e propagadas pela mídia vêm
interpelando as mulheres pesquisadas, que buscam de alguma maneira se incluir nesse
discurso, uma vez que elas não estão satisfeitas com o corpo e investem nele de acordo com
suas condições financeiras, que as identificam como pertencentes a determinada cultura,
constituindo-se assim em artefatos culturais importantes para a regulação social.
Por fim, no último artigo que compõe esta dissertação, intitulado Contando e ouvindo
histórias sobre gênero e educação escolarizada, analiso as narrativas das mulheres da
Colméia acerca da educação escolarizada, buscando discutir os discursos e as práticas que
impossibilitaram o acesso à educação escolarizada de algumas mulheres e a continuação dos
estudos de outras, como também os significados que atualmente são atribuídos à educação por
essas mulheres. No artigo, discuto as representações naturalizadas de gênero, que partem do
pressuposto de que a função “natural” da mulher é cuidar da casa, filhos e marido, e que para
tanto, estudar se torna inviável e/ou não é necessário. Procuro mostrar as implicações da
Colméia, do Programa Bolsa Família e da escola no disciplinamento e governo das mulheres
que integram a Colméia e de seus familiares, entendendo que tais instâncias colocam em ação
distintas estratégias de poder que, ao acessarem os sujeitos, conformam e regulam os corpos
de acordo com determinadas regras e convenções estabelecidas social e culturalmente. Ao
proceder de tal forma, discuto como essas mulheres vêm sendo interpeladas pelos recorrentes
discursos que enfatizam a educação escolarizada como fundamental para transformar a vida
20
das pessoas através do conhecimento adquirido e da inserção social. Nesse sentido, através da
analise das narrativas, busco discutir e problematizar alguns discursos e práticas
socioculturais que, ao transitarem e se correlacionarem no âmbito social, estiveram e estão
implicados na constituição das mulheres da Colméia, ensinando-lhes modos de ser, agir e
interpretar as coisas do mundo.
Ao finalizar este estudo percebo que ele funcionou como um mecanismo ao mesmo
tempo desestabilizador de antigas “verdades” e motivador de outros estudos na busca de
vários caminhos para pensar e atuar, não só no que se refere a minha identidade de professora
e pesquisadora, como também em relação às minhas outras identidades, de filha, mulher,
amiga, gaúcha... É movida por esses entendimentos que desejo iniciar outros projetos,
buscando adicionar a minha vivência pessoal e profissional outros modos de fazer, outros
modos de olhar, outros modos de viver e de vir a ser.
2. ASSOCIAÇÃO MOVIMENTO SOLIDÁRIO COLMÉIA
22
Para apresentar a Associação Movimento Solidário Colméia é preciso narrar os
movimentos que precederem a organização dessa instituição.
muitos anos, um grupo de mulheres que participavam da Sociedade Kardecista no
município do Rio Grande/RS, hoje voluntárias da Colméia, distribuíam sacolas com alimentos
às famílias carentes do município. Entretanto, para as voluntárias, naquela ocasião as sacolas
eram distribuídas de forma pouco criteriosa, uma vez que elas as entregavam a quem
solicitasse ou a quem fosse indicado pelos vizinhos como mais necessitado. Tais questões
moveram as voluntárias a (re)pensar a estratégia de distribuição das sacolas. Nessa direção,
um acontecimento mudou o rumo das ações desenvolvidas por esse grupo de mulheres.
Muitas delas tinham uma participação sistemática junto ao natal das crianças carentes da
Escola Municipal de Ensino Fundamental João de Oliveira Martins, localizada em um bairro
extremamente carente do Rio Grande. Essas mulheres eram consideradas “as madrinhas”
dessas crianças, pois doavam roupas, sapatos e brinquedos nas festas natalinas. Tais
acontecimentos possibilitaram que essas mulheres se aproximassem dessa escola, o que as
levou a conhecer as dificuldades das famílias que tinham seus/suas filhos/as estudando na
escola. Nesse sentido, essas mulheres entraram em contato com a direção da escola e
manifestaram interesse em ajudar essas famílias. Após a indicação por parte da direção da
escola das 20 famílias mais carentes, o grupo de mulheres começou a atuar. Entretanto,
decidiram não somente distribuir as sacolas de alimentos, mas também oferecer às famílias a
possibilidade de freqüentar cursos e oficinas, cuja freqüência se constituiria na contrapartida
para o recebimento das sacolas. Assim, começaram a dar os primeiros passos, através da
criação da “Roda de Leituras e Conversas” e das “Oficinas de Trabalhos Artesanais”.
Instigadas por essas ações que as possibilitavam atuar junto à comunidade, foram construindo
a identidade da Colméia. Cabe destacar que esse nome foi escolhido pelas voluntárias em
função de identificarem uma relação entre as ações que estavam desenvolvendo e as
atividades das abelhas em uma colméia; nesse sentido, as voluntárias utilizam tal metáfora
para caracterizar o movimento, que busca criar vários favos (oficinas, cursos de qualificação
profissional e alfabetização) para a produção de bastante mel (geração de renda, melhoria da
qualidade de vida e inserção social).
Atualmente a Associação Movimento Solidário Colméia caracteriza-se como uma
sociedade civil, sem fins lucrativos, que tem como principal objetivo possibilitar o resgate da
cidadania e a melhoria da qualidade de vida das famílias que a integram. Atualmente
compõem a Colméia trinta e seis famílias, num total de cento e setenta pessoas, as quais
residem no bairro Castelo Branco e arredores, no município do Rio Grande/RS. Essas famílias
23
vivem em situação de extrema pobreza, sobrevivendo muitas vezes do que catam do lixo. As
necessidades dessas pessoas exigem ações que foram condicionando o perfil da Associação
Movimento Solidário Colméia.
Nesse sentido, para atingir os objetivos, vários projetos que têm a educação como eixo
norteador são realizados com mulheres, jovens e crianças, e se constituem de cursos, oficinas
e encontros. Dentre as principais atividades desenvolvidas destacamos: a Alfabetização de
Jovens e Adultos, o Reforço Escolar em Alfabetização e Matemática, o Encontro com Jovens,
a Roda de Conversa e Leitura (oferecido para as mulheres que já foram alfabetizadas), o curso
Mulher e Cidadania, o Gabinete de Leitura e a Brinquedoteca. Também são desenvolvidas
atividades que têm como principal objetivo proporcionar o auto-sustento e a qualificação
profissional das mulheres integrantes da Associação, que são a oficina de costura, tear, papel
reciclado, sabão e reciclagem de garrafas PET para confecção de pufes, entre outras
atividades. Tais projetos são coordenados por professoras da Fundação Universidade Federal
do Rio Grande e da rede estadual de ensino muitas delas aposentadas –, por psicólogas e
uma enfermeira, todas voluntárias, e atualmente conta com um voluntário que é responsável
pelas aulas de iniciação ao violão. Para a realização das atividades a Colméia conta com a
parceria da direção e professoras da Escola Municipal João de Oliveira Martins e da escola de
Orientação Profissional Assis Brasil, que disponibilizam o espaço físico para a realização das
atividades, condição fundamental para que os projetos sejam desenvolvidos. Contudo, o
pressuposto para que as famílias integrem a Colméia e participem dos projetos é que os/as
filhos/as em idade escolar estejam regularmente matriculados/as e freqüentando a escola.
Ao posicionarem-se em relação à filosofia que embasa a Colméia as voluntárias
destacam:
É preciso salientar que fugimos de propostas assistencialistas. No entanto,
necessidades básicas devem ser satisfeitas para que as pessoas tenham
condições mínimas de participar, com proveito das atividades. Chico Xavier
citava Madre Tereza de Calcutá, que, quando lhe perguntavam se não era
melhor pescar em vez de dar o peixe, dizia: ‘Muita gente não tem força para
segurar a vara’. Por esta razão, até que tenham a força suficiente para
segurar a vara, todos os participantes de cada atividade recebem,
mensalmente, uma sacola de alimentos, brinquedos, roupas, calçados
também são distribuídos. Mas, concomitantemente, procuramos ensinar a
pescar
1
.
Além disso, as famílias recebem doações de móveis e utensílios para a casa, cobertores
no início do inverno, medicamentos (mediante receitas), e são encaminhadas para médicos,
1
Excerto retirado do Plano de Atividades de 2006 da Associação Movimento Solidário Colméia.
24
dentistas e psicólogos, de acordo com os recursos de que a Colméia dispõe e de acordo com
as necessidades das famílias.
Entretanto, para que as mulheres recebam mensalmente a sacola de alimentos, elas têm
que freqüentar no mínimo duas oficinas, uma teórica e uma prática, sendo que, se tiverem três
faltas consecutivas na mesma oficina, elas estão sujeitas ao não-recebimento da sacola no mês
em que obtiveram as faltas. A Roda de Conversa e Leitura ou a Alfabetização de Jovens e
Adultos são atividades obrigatórias. Já a escolha das outras atividades fica a critério da
participante.
As crianças e jovens que participam dos projetos e oficinas recebem o que as
coordenadoras da Colméia chamam de reforço: uma caixinha de leite por freqüência. De
acordo com as coordenadoras, também a necessidade de distribuição de lanche durante os
encontros, considerado uma das grandes atrações dos mesmos.
Nessa direção, segundo uma das voluntárias muitas famílias foram saindo da Colméia
em função de não conseguirem se enquadrar nas regras e obedecerem aos critérios
estabelecidos pela Associação. Assim, das vinte e cinco famílias que foram as primeiras a
participarem da Associação, continuam apenas doze.
Para a distribuição dos benefícios, a Colméia não recebe auxílio financeiro, apenas
conta com doações de pessoas físicas e com a venda de camisetas. Segundo uma das
voluntárias, as camisetas dão visibilidade ao projeto e vendem porque são atrativas. Outra
fonte de renda é o brechó, em que algumas das participantes trabalham vendendo roupas e
acessórios que são arrecadados pelas voluntárias e disponibilizados a partir de um real. Para a
arrecadação de recursos as voluntárias também organizam almoços, chás e rifas, entre outras
promoções que visem à obtenção de recursos financeiros.
Em virtude das condições econômicas das famílias integrantes da Colméia, um dos
principais objetivos refere-se à geração de renda. De acordo com a coordenação, a Colméia
persegue uma geração de renda, e esta tem que ocorrer no bairro em que as mulheres residem,
em função do contexto em que elas estão inseridas; para as voluntárias, as mulheres não têm
condições de conseguir emprego fora do bairro. Nesse sentido, também contam com o que
conseguem vender a partir do que produzem nas oficinas de trabalho artesanal, o que é
colocado à venda no próprio bairro, em eventos ou em outros centros comerciais. Entretanto,
as voluntárias salientam que o trabalho manual dessas mulheres, embora seja realizado com
capricho e dedicação, ainda não é muito valorizado e consumido pela comunidade rio-
grandina.
25
Para finalizar esta breve descrição da Associação Movimento Solidário Colméia,
apresento o comentário de umas das voluntárias, que ao ser questionada sobre a importância
da Colméia para as famílias que a integram, argumentou que a Associação traz um
crescimento para todos os envolvidos e que, embora o trabalho das voluntárias seja árduo e
difícil, ela pode citar bons exemplos, entre eles, destacou a história de vida da Laura. Segundo
ela, a Laura, que é carroceira, passou a integrar a Colméia através da Claudia, que é sua
parenta e já fazia parte da Colméia. Assim, a Laura entrou para a alfabetização e se acomodou
para ficar na Colméia, mas tinha concluído até a sexta série do Ensino Fundamental. Em
função de ter sido alfabetizada, foi encaminhada para a Roda de Leituras e Conversas, e
nesse contexto a Laura começou a demonstrar interesse e voltou a estudar. Hoje ela
completou o Ensino Fundamental e está matriculada no Ensino Médio. Segundo a
voluntária que forneceu este relato, a Laura tem o sonho de fazer o Curso Técnico em
Enfermagem e quer ser voluntária na Colméia, mas somente depois de concluir o curso
técnico porque entende que é necessário se “formar” para ser voluntária na Associação.
3. CAMINHOS METODOLÓGICOS
27
Inicio este capítulo destacando que os Estudos Culturais, campo no qual ancoro este
estudo, não possuem nenhuma metodologia especial que possam reivindicar como sua. De
acordo com Nelson, Treichler e Grossberg (2005), a metodologia dos Estudos Culturais pode
ser entendida como uma bricolage. Isto é, sua escolha da prática é pragmática, estratégica ou
auto-reflexiva” (id., p. 9). Nesse sentido, pelo fato de não existir uma metodologia distinta
dentro deste campo de estudos, abre-se a possibilidade de serem utilizadas distintas estratégias
metodológicas dependendo dos objetivos estabelecidos, do contexto e das problematizações
que forem ocorrendo ao longo da pesquisa, a fim de produzir conhecimentos referentes às
práticas sociais, no que diz respeito à constituição dos sujeitos. Assim, neste estudo utilizo a
investigação narrativa como estratégia metodológica a fim de conhecer os discursos e as
práticas sociais que inscrevem os corpos femininos, constituindo as mulheres da Colméia e
suas identidades.
Assim, penso que não escolhi a investigação narrativa como uma metodologia de
pesquisa, mas, sim, entendo que fui “escolhida” por essa metodologia, no sentido de que fui
interpelada pelas narrativas das mulheres da Colméia quando comecei a participar como
pesquisadora, em 2004, do curso “Mulher e Cidadania”. Para Corazza,
uma prática de pesquisa é um modo de pensar, sentir, desejar, amar, odiar;
uma forma de interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a
capacidade de resistência e de submissão ao controle; uma maneira de fazer
amigas/os e cultivar inimigas/os; de merecer ter tal vontade de verdade e não
outra(s); de nos enfrentar com aqueles procedimentos de saber e com tais
mecanismos de poder; de estar inseridas/os em particulares processos de
subjetivação e individuação. Portanto, uma prática de pesquisa é implicada
em nossa própria vida. A “escolha” de uma prática de pesquisa, dentre outras,
diz respeito ao modo como fomos subjetivadas/os, como entramos no jogo de
saberes e como nos relacionamos com o poder
(2002, p. 124).
Nessa direção é que empreendo a escrita deste capítulo, sem a pretensão de apresentar
os caminhos percorridos como um método a ser seguido, mas buscando apontar algumas
“pistas” que possibilitem “olhar” o caminho trilhado como uma das possibilidades possíveis
de uma prática de pesquisa significativa para o/a pesquisador/a, e neste estudo, para o campo
dos Estudos Culturais e Estudos Feministas.
28
3.1 A investigação narrativa
1
Segundo Connelly e Clandinin (1995, p. 16), a narrativa situa-se em uma abordagem
de investigação qualitativa, “pois está baseada na experiência vivida e nas qualidades de vida
e da educação”. Para esses autores o uso da narrativa como método de investigação justifica-
se no entendimento de que somos seres contadores de histórias, somos seres que, tanto
individual como socialmente, vivemos vidas narradas.
Nesse sentido, entendo a narrativa como uma prática social que constitui os sujeitos,
ou seja, é no processo de narrar e ouvir histórias que os sujeitos vão construindo tanto os
sentidos de si, de suas experiências, dos outros e do contexto em que estão inseridos.
Para Larrosa (1996), a narrativa é uma modalidade discursiva, na qual as histórias que
contamos e as histórias que ouvimos, produzidas e mediadas no interior de determinadas
práticas sociais, passam a construir a nossa história, a dar sentido a quem somos e a quem são
os outros, constituindo assim as identidades – de gênero, sexual, racial, religiosa, profissional,
de classe social, de mãe/pai, filha/o, esposa/o, entre outras. Desse modo, construímos e
expressamos a nossa subjetividade a partir das formas lingüísticas e discursivas que
empregamos nas nossas narrativas. De acordo com o autor,
cada um de nós se encontra já imerso em estruturas narrativas que lhe
preexistem e que organizam de um modo particular a experiência, que
impõem um significado à experiência. Por isso, a história de nossas vidas
depende do conjunto de histórias que temos ouvido, em relação às quais
temos aprendido a construir a nossa. A narrativa não é lugar de irrupção da
subjetividade, senão a modalidade discursiva que estabelece a posição do
sujeito e das regras de sua construção em uma trama. Nesse mesmo sentido,
o desenvolvimento da nossa autocompreensão dependerá de nossa
participação em redes de comunicação onde se produzem, se interpretam e
se mediam histórias. A construção do sentido da história de nossas vidas e
de nós mesmos nessa história é, fundamentalmente, um processo
interminável de ouvir e ler histórias, de mesclar histórias, de contrapor umas
histórias a outras, de viver como seres que interpretam e se interpretam em
tanto que estão se constituindo nesse gigantesco e agitado conjunto de
histórias que é a cultura (id., p. 471-472).
Nesse sentido, a história de nossas vidas é constituída por muitas histórias, “nossa
história é sempre uma história polifônica” (id., p. 475). É nesse complexo jogo narrativo que
aprendemos a construir a nossa identidade, a dar sentido a quem somos. Dessa forma, a
1
Neste capítulo apresento sucintamente o meu entendimento acerca da investigação narrativa, visto que
apresento essa metodologia nos artigos que compõem esta dissertação.
29
identidade (quem sou), não é algo que encontro ou descubro, como se fizesse parte da minha
essência, mas é algo que fabrico, que invento, construo e modifico nessa gigantesca e
polifônica conversação de narrativas que é a vida e essa conversação inclui as pessoas com
quem me relaciono e cujas histórias me relaciono (LARROSA, 1996).
Partindo do pressuposto de que a investigação narrativa permite a utilização de
diversos instrumentos para a produção dos dados, elegemos como metodologia o grupo focal,
porque se caracteriza como uma técnica de pesquisa qualitativa, muito utilizada quando se
tem como objetivo conhecer e problematizar “representações, percepções, crenças, hábitos,
valores, restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no trato de uma dada
questão por pessoas que partilham alguns traços em comum” (GATTI, 2005, p. 11).
Neste estudo, o grupo focal constituiu-se a partir de um curso de extensão intitulado
“Mulher e Cidadania”, oferecido às mulheres integrantes da Associação Movimento Solidário
Colméia, com o propósito de estabelecer um espaço de discussão e reflexão sobre questões
referentes ao corpo, gênero e sexualidade.
O curso funcionou como um dispositivo pedagógico, um espaço em que as mulheres
contaram, ouviram e contrapuseram algumas histórias a respeito de suas vidas, do que
pensavam em relação ao seu corpo, a sua sexualidade, de suas relações sociais, de suas
identidades, de suas crenças, mitos, valores, atitudes e sentimentos, ou seja, um “lugar no qual
se constitui ou se transforma a experiência de si” (LARROSA, 2002, p. 57). Essa estratégia
também tinha como objetivo problematizar, desestabilizar e desnaturalizar as histórias
narradas por essas mulheres e, eventualmente, modificar os significados atribuídos por elas ao
corpo, ao gênero e à sexualidade. Outro objetivo do curso foi a possibilidade de dar
visibilidade à história de vida dessas mulheres, escutar o que tinham a dizer, não no sentido de
verificar opiniões freqüentes, nem mesmo chegar a um consenso, mas com a finalidade de
fazê-las falar e escutar suas vozes, e assim constituir um espaço em que significados são
compartilhados, construídos e reconstruídos.
Na utilização do grupo focal como metodologia de pesquisa, reúne-se um conjunto de
pessoas com o objetivo de discutir e comentar um tema específico, que é objeto de pesquisa.
Nesse sentido, a composição do grupo focal deve obedecer a algumas características comuns
aos participantes de acordo com o propósito da pesquisa, como, por exemplo, relativas a
gênero, à idade, às condições socioeconômicas, ao tipo de trabalho, ao estado civil, à
escolaridade, ao lugar de residência.
As mulheres que participaram do curso apresentam idades entre 18 e 60 anos, são
mães, donas de casa, a maioria delas com companheiros/esposos e com muitos filhos. Tais
30
mulheres vivem abaixo da linha de pobreza, desconhecem os seus direitos sociais, muitas
delas oprimidas dentro do contexto familiar, convivendo com situações de violência física
e/ou sexual, que não atinge somente essas mulheres, mas também os/as filhos/as. Além disso,
em suas famílias existe a utilização freqüente do álcool e do cigarro. Cabe destacar também
que as participantes desta pesquisa estão em processo de escolarização e qualificação
profissional, ações proporcionadas pela Colméia.
As discussões no grupo focal são geradas a partir de um assunto específico (foco)
previamente estabelecido pelos/as pesquisadores/as, de acordo com os objetivos da pesquisa,
e devem ocorrer de forma que propicie a interação de todos os participantes do grupo. Para
tanto, os/as pesquisadores/as representam um papel importante no grupo, pois atuam como
mediadores/as, coordenando as discussões e as atividades referentes à proposta de produzir e
obter as informações. A proposta do grupo focal não é estabelecer o consenso, mas criar
condições para que os participantes explicitem seus pontos de vista, interagindo entre si. Ao
utilizarmos o grupo focal como estratégia metodológica tínhamos como propósitos conhecer,
compreender e problematizar o que as mulheres da Colméia pensavam e expressavam acerca
do corpo, gênero e sexualidade. Para desencadear as discussões, utilizamos diversos artefatos
culturais; por exemplo, assistimos a um filme e discutimos sobre ele, escutamos algumas
músicas e conversamos sobre os significados de suas letras, utilizamos revistas e jornais a fim
de discutir sobre o corpo feminino, produzimos painéis, cartazes, desenhos, entre outros
recursos, que fizeram parte do
corpus de análise.
Visando a abordar as questões com maior profundidade, é aconselhável que o grupo
seja formado por no mínimo seis e no máximo doze participantes, a fim de possibilitar a
todos/as a manifestação de suas idéias, conceitos, opiniões e sentimentos. Gondim (2003)
aponta que a dimensão do grupo depende do nível de envolvimento dos/as participantes com
as temáticas a serem discutidas, pois as pessoas terão mais o que falar quando o assunto for
mais polêmico e/ou mais significativo para o grupo. Por outro lado, ao constituir um grupo
com poucos participantes, os/as pesquisadores/as correm o risco de que as pessoas falem
pouco, o que poderia prejudicar as discussões e a dinâmica de trabalho. Portanto, é importante
que os/as pesquisadores/as estejam atentos/as a esses aspectos no momento de estabelecer o
grupo focal. Destacamos que o grupo focal foi constituído por um número maior de
participantes 20 mulheres – do que o indicado na bibliografia, pois o grupo já estava
organizado desta forma para a participação nos projetos desenvolvidos pela Colméia.
Também ressaltamos que nem todas as mulheres estavam presentes em todos os encontros em
conseqüência de alguns aspectos, tais como, não ter com quem deixar os filhos no momento
31
do curso, doenças na família, ou envolvimento com outras atividades proporcionadas pela
Colméia, que ocorreram no período do curso.
Os encontros são previamente planejados pelos/as pesquisadores/as, que elaboram um
roteiro de trabalho contendo questões e atividades como forma de orientar e desencadear a
discussão. De acordo com Gatti (2005, p. 17), o roteiro elaborado “deve ser utilizado com
flexibilidade, de modo que ajustes durante o decorrer do trabalho podem ser feitos, com
abordagem de tópicos não previstos, ou deixando-se de lado esta ou aquela questão do roteiro,
em função do processo interativo concretizado”. Segundo a autora, o próprio processo grupal
deve ser flexível, mas sem perder de vista os objetivos da pesquisa. Assim, os encontros do
curso “Mulher e Cidadania” foram previamente planejados e organizados pela equipe de
pesquisa do Grupo Sexualidade e Escola (coordenadora do curso, mestranda, bolsista de
iniciação científica/FAPERGS e outros participantes), que elaborou questões flexíveis e
atividades a fim de gerar as discussões no grupo, em função dos eixos norteadores do curso.
Assim, é importante que se preste atenção ao local dos encontros, pois o mesmo deve
favorecer a interação entre os participantes. Nesse sentido, o ambiente precisa ser agradável e
confortável, com o mínimo de ruídos externos, que possibilite trabalhar com as cadeiras
dispostas em círculo, para que todos os/as participantes possam olhar, ver e conhecer.
Também é importante que o local seja de fácil acesso aos/às participantes e sem que se tenha
que dispor de recursos financeiros para a locomoção. Dessa forma, todos os encontros do
curso foram realizados na Escola Municipal de Ensino Fundamental João de Oliveira Martins,
localizada no bairro Castelo Branco. Essa escola, além de disponibilizar o espaço físico para a
realização das ações da Colméia, também é o lugar em que estudam os filhos das mulheres
que integram essa Associação, aspecto este que facilitou a participação delas no curso, pois,
ao levarem os filhos/as à escola, lá permaneciam para participar das atividades do curso.
As várias maneiras de se registrarem as interações do grupo, dentre elas, a gravação
em áudio e em vídeo durante as discussões, possibilitaram uma análise mais detalhada dos
dados produzidos. Assim, alguns encontros do curso “Mulher e Cidadania” foram filmados e
outros momentos, como as discussões em pequenos grupos, foram gravadas em fitas cassete,
a fim de que as falas ficassem registradas, o que seria difícil obter apenas com a filmagem.
Também foram utilizadas outras estratégias para complementar a produção dos dados
narrativos, como a realização de entrevistas individuais semi-estruturadas (ANEXO A) e o
preenchimento de um questionário (ANEXO B), com o objetivo de conhecer um pouco mais
sobre as participantes do curso, através de algumas informações, tais como, nível de
32
escolaridade, idade, número de filhos/as, tipos de partos, doenças que teve, estado civil,
condições socioeconômicas, profissão, moradia, entre outras.
As questões éticas não podem ser esquecidas e merecem atenção especial na utilização
do grupo focal como metodologia: trata-se da não-identificação dos/as participantes no
momento em que os dados narrativos forem apresentados. Para tanto, a fim de preservar os
nomes das participantes do curso, solicitamos que cada uma escolhesse um codinome.
Também elaboramos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO C),
informando aos/às participantes os objetivos e procedimentos adotados ao longo dos
encontros, esclarecendo os compromissos a serem assumidos por ambas as partes.
Ao optar por esse tipo de metodologia de investigação, é importante que os/as
pesquisadores/as compreendam que os/as participantes de um grupo focal “estão se
expressando num contexto específico, em interações que são próprias daquele conjunto de
participantes e, por isso, os pontos de vista de cada um deles não podem ser tomados como
posições definitivas” (GATTI, 2005, p. 68). Nesse sentido, as narrativas produzidas se
configuraram como contingentes, provisórias, limitadas ao contexto em que transcorreram.
Conforme argumenta Larrosa (1996, p. 461-462), “as narrativas pessoais se produzem e se
medeiam em diferentes contextos sociais e com diferentes propósitos”.
A estratégia de análise consistiu em “olhar” as narrativas das mulheres da Colméia
falas, cartazes, desenhos, ações, expressões o que elas contam sobre suas vidas, sobre suas
relações familiares, sobre seus corpos, sobre a sua saúde reprodutiva e sexual, buscando
compreender e discutir os discursos e as práticas sociais que estiveram e estão implicados na
produção dessas mulheres.
3.2 (RE)VISITANDO OS ENCONTROS DO CURSO MULHER E CIDADANIA
Neste capítulo, percorro os encontros do curso “Mulher e Cidadania” buscando
apresentar os objetivos e as múltiplas estratégias presentes em cada encontro, as quais
possibilitaram a produção das narrativas analisadas nesta dissertação. O curso foi estruturado
em oito encontros, desenvolvidos durante os anos de 2004 e 2005, com duração de duas horas
cada. Cada encontro foi previamente planejado, e as temáticas foram escolhidas em função
dos eixos norteadores do curso – corpo, gênero e sexualidade.
33
3.2.1 O primeiro dia do curso, a apresentação...
Inicialmente, apresentamos a proposta e os objetivos do curso, esclarecendo as
participantes que buscávamos estabelecer um espaço de discussão e reflexão sobre o corpo,
gênero e sexualidade, no qual elas poderiam manifestar suas idéias, opiniões e sentimentos
sem medo ou vergonha. Assim, pretendíamos criar um clima de confiança entre as
pesquisadoras e as participantes do curso, condição fundamental para a produção dos dados
narrativos. Também nesse momento aproveitamos para distribuir o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, informando que elas estavam sendo convidadas a participar dos
encontros, e que todos os encontros do curso seriam gravados em fitas VHS e cassete para
fins de análises. Esclarecemos às participantes que os registros e o material produzido durante
os encontros seriam utilizados para a elaboração de uma dissertação de mestrado, enfatizando
que o nome delas seria preservado na divulgação da referida pesquisa, bem como somente as
pesquisadoras teriam acesso aos “dados” produzidos.
Após essa apresentação, distribuímos uma pasta contendo folhas, caneta, um
calendário, salientando as datas dos encontros, e duas camisinhas uma feminina e outra
masculina. Nesse momento, aproveitamos para conversar a respeito da importância da
camisinha, seja ela masculina ou feminina, não somente para evitar a gravidez, mas também
para a prevenção das DST e da AIDS. Ao discutirmos sobre esse assunto percebemos que
poucas mulheres conheciam e/ou tinham usado a camisinha feminina nas relações sexuais.
Tais manifestações nos impulsionaram a obter junto ao GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção
à AIDS) preservativos femininos e masculinos, para que fossem distribuídos a cada encontro.
A seguir, propusemos uma atividade de apresentação do grupo de trabalho
(participantes e pesquisadoras). Com essa atividade tínhamos como objetivo discutir o nome
pessoal como uma das primeiras marcas identitárias e refletir sobre os mecanismos sociais
que estão implicados na produção das identidades. Além disso, essa atividade possibilitou que
cada uma das participantes escolhesse um nome fictício pelos quais elas gostariam de ser
identificadas na pesquisa. A atividade de apresentação abrangia dois momentos. No primeiro
momento, em duplas, conversamos sobre a história dos nossos nomes – como foi a escolha do
nome, quem escolheu e por quê –, aquilo que consideramos importante apresentar de si para o
grupo e os motivos que levaram cada uma das mulheres a participar do curso. No segundo
momento, a parceira da dupla apresentou a colega para o grande grupo e comentou sobre o
que tinham conversado.
34
Ao olhar as apresentações, percebi que muitas desconheciam a história de seu nome, e
entre as que relataram, os nomes tinham sido escolhidos pelos pais ou mães, a partir de
artistas famosos, santos religiosos ou amigos. Nesse sentido, Souza (2005, p. 175), ao discutir
a escolha do nome como uma das primeiras práticas sociais de inscrição do corpo, argumenta
que a essa prática corriqueira “integram-se diversos elementos e tipos de relações, como os
desejos, os sentimentos, as relações de poder e de gênero entre o pai e a mãe, as tradições nos
nomes dos antepassados, a posição dos ícones religiosos ou artísticos”. Apresento, a seguir, as
histórias dos nomes das participantes do curso e das pesquisadoras
2
:
G: Eu vou apresentar pra vocês a ML, que é um nome bem musical, quando ela me disse eu já
senti assim um nome bem musical. O nome dela realmente não foi tirado de uma música, mas
de uma pessoa que cantava, que é a Mary Teresinha, do Teixeirinha. Ela disse que a mãe
gostava muito do Teixeirinha na época, mas passou para ML que é um nome bem mais
musical que Mary Teresinha.
ML: Ai! Será que eu vou saber explicar? O nome da minha colega é G, e agora o resto é
que... (risos) O nome dela veio... G interfere: Do meu pai. ML: Do seu pai, do pai dela né,
escolheu o nome dela. A mãe dela queria botá Teresinha né, por causa da Santa Teresinha.
Li: Vou apresentar a minha colega pra vocês que se chama GM. Ela tem um problema com o
nome dela que são dois nomes, ela prefere que a chamem de G. As colegas aqui a chamam de
G, mas em casa todos a chamam de M.
GM: (Risos). O nome da minha colega é Li, o nome veio dos ciganos, a mãe dela que
escolheu né, tem uma filhinha de oito meses, casada há dois anos, o resto eu esqueci (risos).
C: O nome dela é A, ela não sabe por quê.
A: O nome da minha colega é C, ela nasceu aqui, também não sabe por que colocaram esse
nome nela.
J: A minha colega D, ela veio aprender com as professoras a aula e ela é prima do meu guri e
a gente se conheceu mais tempo aqui no grupo da dona Olga. Pesquisadora: Ela sabe a
origem do nome dela? J: Ela sabe, D por causa de um doce né?! D interfere: O meu nome é
D, a dona Olga fala que eu sou uma doçura. ela me botou esse apelido né, que esse nome
vem de um doce, que eu sou uma doçura.
J: (Não deixa a D apresentá-la conforme a dinâmica). Meu nome é J, tenho três filhos e uma
enteada, sou casada nove anos pela segunda vez. Minha mãe, diz ela, que escolheu meu
nome por causa de uma professora dela, por isso que ela botou meu nome J.
2
A fim de facilitar ao/a leitor/a o entendimento da história dos nomes identificamos as falas pela inicial do nome
das participantes e pesquisadoras.
35
G: (Também se apresenta) Meu nome é G. Fui casada, separada, criei sete filhos, oito com
uma menina de criação. Depois do segundo casamento eu enviuvei. Agora a minha neta me
encaminhou pra cá, pra professora Graça eu adoro as minhas colegas, adoro a professora,
quero dar nas minhas colegas às vezes (risos). Fizemos uma... Como é que se diz... Um
circulo de camaradagem umas com as outras, umas conversando com as outras, e sempre eu
serei a pessoa que eu sou. Também sou natural de Bagé, adoro a minha família, como
também agora gosto muito das minhas colegas. Pesquisadora: E a origem do teu nome? Tu
sabes de onde é que veio o teu nome?
G: Sei, por causa da Gilda mulher do Lampião. Risos.
Pesquisadora: Quem é que botou? G: Meu pai. Por isso que eu sou braba (risos).
Ir: Meu nome é Ir, eu vim de Canguçu, meu nome foi meu pai que escolheu, uma amiga dele
de colégio, sou aluna da dona Olga, sou meio tímida (colocando a mão na boca e baixando a
cabeça). Tenho três filhos, um com dezessete, outro com doze e outro com seis.
B: Risos. Se vocês começarem a rir eu não falo nada, (esconde o rosto com a bolsa). O que
eu tenho que fazer, eu tenho que apresentar ela! Bom essa é a minha colega M, também é
minha vizinha. De vez em quando a gente ta juntinho uma com a outra. Ela tem quatro
filhos, ai não, é cinco filhos (risos). Que mais que eu tenho que fala... J: A origem do nome
dela. M interfere justificando: Ah, não sei a minha mãe não me disse (risos), mas ela não
disse mesmo, ué, o que eu vou fazer.
M: Ela é a B, moramos na mesma rua, perto da minha casa, ela tem quatro filhos, eu conheci
ela no grupo.
PR: Então eu vou apresentar a minha colega L. A L a mãe dela queria que fosse Luzia e o pai
Luciana, o pai foi até no cartório... L enfatiza: Meio “mamado”... PR: É meio
“mamado”. Ele como não queria que fosse Luzia e tava meio brigado com a mãe dela, então
ele resolveu botar L, que não era nem Luzia e nem Luciana, que era o que ele queria. que
eu perguntei pra L se ela gostava do nome dela e ela disse que não gostava muito, ela disse
que tinha outros nomes muito mais bonitos como Sofia e Sara, que Sara ela adora.
L: É isso, certíssimo, que eu não vou falar tanto assim (risos na sala). Essa simpatia
aqui, minha colega é PR. Ela é a quinta irmã do casal, e sendo a quinta, antes dela sair pra
esse mundo maravilhoso, estavam esperando que fosse um menino. como não veio, eles
tinham escolhido só nome pra menino, não tinham escolhido um nome pra ela... Aí através de
um boneco... PR: meu pai chegou em casa e perguntou pra minha irmã que nome iam dar
pra mim. vem a história do boneco. L: Sim. tiraram o nome do boneco pra dar pra ela
(risos na sala).
36
Q: Essa é a minha colega L, tem trinta e cinco anos, ela tem seis filhos, tem um netinho de um
ano. Quem colocou esse nome foi o pai dela, ela veio aqui porque ela quer saber sobre abuso
sexual, mais ou menos assim, saber essa coisa de molestar.
L: Essa minha amiga é a Q, estuda na FURG, me esqueci o que tu fazes? (risos) Q:
Pedagogia. L justifica: É tanta coisa na minha cabeça...
F: O nome dela é I, o pai foi quem escolheu, porque ele foi numa casa e tinha uma pessoa que
se chamava I, e ele achou bonito.
I: F. O pai dela foi numa casa e tinha uma guria que se chamava F, o pai dela gostou e
botou. I continua falando de sua vida: Tenho doze filhos, eu perdi quatro gurias e quatro
guris, pra ficar com os que eu tenho hoje. Eu tenho quarenta e cinco anos. Vivos são quatro,
eu tenho três gurias e um guri, o guri com dezesseis, a guria com quatorze, uma de
dezessete, vai fazer dezoito e uma que mora na Querência, vai fazer doze anos.
Jo: Eu posso falar de mim e ela dela, porque ela não entendeu muito bem a história. Meu
coração tá acelerado... O meu nome veio de um guri que se chamava Jo, porque a minha mãe
gostou desse nome.
K: Meu nome é K. Tenho dezessete anos, sou casada, faz um ano, meu nome eu não sei da
onde vem.
Nesse sentido, entendo que a história de como esses nomes foram escolhidos, mais do
que um simples contar histórias de suas vidas, constitui esses sujeitos, inscrevendo seus
corpos e suas identidades.
A estratégia de contar a história do nome pessoal possibilitou a emergência de uma
multiplicidade de histórias. As mulheres falaram dos filhos, maridos, das dificuldades vividas,
onde nasceram, sobre violências que sofreram na infância e na adolescência. Falaram sobre a
vergonha e as dúvidas acerca da sexualidade e do corpo, sobre os significados da primeira
menstruação, a respeito do que sabiam sobre o corpo e a sexualidade ou gostariam de saber,
enfim, relembraram fatos marcantes, fizeram-se ver e conhecer. Além disso, percebemos que
elas estavam entendendo o curso como um espaço de aprendizagem, o que pode ser observado
nas seguintes falas:
Joseane: Vim aprender várias coisas. Com vocês eu vou aprender o que é sexo, saúde da
mulher, coisas que a gente não sabe. A minha mãe não explicava o que era menstruação pra
gente. A minha mãe era muito tapada, era daquelas que também não sabia o que era a
primeira menstruação da gente.
Renata: Eu vim pra aprender sobre sexo (fala bem baixinho). Porque tem muitas coisas que a
gente não sabe.
37
Fernanda: E vim aqui pra aprender sobre o... sexo. Como se cuidar, esses troços de não
engravidar, só.
Cíntia: Eu vim à reunião também pra aprender, aprender mais pra passar para os meus
filhos. Pra poder ensinar os meus filhos.
No segundo momento do encontro, propusemos às mulheres que se organizassem em
dois grupos e criassem dois corpos, um feminino e um masculino. Com essa atividade
tínhamos como propósito conhecer o que essas mulheres sabiam a respeito dos seus corpos.
Para tanto, na dinâmica da atividade os corpos deveriam apresentar tanto as características e
os órgãos externos quanto os internos. Além disso, solicitamos que construíssem uma
identidade para cada corpo nome, idade, estado civil, escolaridade, se tinha filhos ou não,
lazer, etc. Assim, buscávamos romper com a visão de corpo fragmentado e dissociado do
ambiente em que vive, proporcionando a essas mulheres que se reconhecessem nesse corpo,
de modo a promover o entendimento do corpo como produzido por inúmeros discursos: das
ciências, da medicina, família, saúde, religião, beleza, entre outros (SANTOS, 2002a).
A atividade de produção dos corpos resultou na criação do Neco e da Belinha, nomes
dos personagens da novela Cabocla, em exibição pela Rede Globo de televisão no período em
que ocorreu o primeiro encontro do curso (Ver figura 1).
Figura 1– Neco e Belinha
38
História produzida a partir da construção do corpo feminino e masculino
3
: Belinha tem
trinta e dois anos, é amigada com o Neco, tem quatro filhos, três meninos e uma menina, os
meninos são os mais velhos e a menina é a caçula. Os filhos têm entre três e doze anos. Os
meninos que já estão em idade escolar, estudam na Escola Municipal João de Oliveira
Martins. Belinha mora com sua família no Bairro Castelo Branco. Participa da Associação
Movimento Solidário Colméia. O que ela mais gosta de fazer é ir para as oficinas da Colméia
e encontrar as colegas. O seu maior desejo é ver os filhos se formar, trabalhando e com
saúde. E o seu objetivo é continuar estudando e arrumar um emprego. O Neco tem trinta e
três anos, é catador de lixo, e às vezes é auxiliar de pedreiro. Parou de estudar na quarta
série para ajudar no sustento da família. O que mais gosta é de ver a família com saúde e
feliz. E o seu maior desejo é terminar de construir a sua casa. Trabalha muito o dia todo para
conseguir sustentar a família.
Com o propósito de continuarmos a discussão relativa ao fato de que os corpos são
significados na e pela cultura, propiciamos um debate tendo como suporte as seguintes
questões: o que mais gosta no corpo e o que menos gosta?; a parte do corpo que tem mais
vergonha e a que não tem?; a parte do corpo que gostaria de mudar e a que não gostaria de
mudar e, por fim, o que companheiro/marido mais gosta em seu corpo?. Com essa discussão
pretendíamos problematizar que a aparência dos corpos tem múltiplos significados
dependendo da cultura, uma vez que é na cultura que atribuímos significados a determinadas
partes do corpo e aprendemos a valorizá-las. Com relação ao que as mulheres menos gostam
em seus corpos surgiram a barriga e os seis flácidos, o rosto com rugas e o cabelo crespo ou
curto. Ao comentarem sobre o que gostavam em seu corpo, citaram as pernas, os olhos, os
dentes e as mãos. No que se refere à parte do corpo de que sentiam vergonha, mencionaram
novamente o rosto marcado pelas rugas e a barriga, a vagina, o bumbum e os cabelos brancos.
Porém, algumas mencionaram que não mudariam o bumbum, os seios, a barriga, os olhos, o
nariz e o jeito de ser. Por fim, quando discutimos acerca do que os homens mais gostam no
corpo da mulher, enfatizaram as pernas à mostra, o bumbum avantajado, o corpo “perfeito”,
os seios fartos, o rosto bonito, o cabelo comprido e o corpo da mulher da cintura pra baixo. De
acordo com Louro (2003, sp.), “a determinação das posições dos sujeitos no interior de uma
cultura remete-se, usualmente, à aparência de seus corpos [...]. A aparência é, pois, algo que
se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se mostra, o que aparece; e ao que se se
atribui significados”. Assim, barriga, bumbum, nariz, seios, cabelos brancos, rosto com rugas,
3
Excerto retirado das anotações feitas no diário de campo de uma das pesquisadoras.
39
vagina, etc., são significados culturalmente. Tais significados não são fixos, nem
preexistentes, eles variam de acordo com os contextos históricos, culturais e sociais (HALL,
1997; SILVA, 2004). Nessa perspectiva, determinadas características corporais podem ser
extremamente relevantes no interior de um grupo social “e, então, podem vir a se constituir
em marcas definidoras dos sujeitos marcas de raça, de gênero, de etnia, de classe ou de
nacionalidade, decisivas para dizer do lugar social de cada um” (LOURO, 2003, sp.). Para
outros grupos essas mesmas marcas podem ser totalmente insignificantes. Nesse sentido, é
importante compreender que no interior de uma cultura existem marcas menos valorizadas e
marcas que são mais valorizadas. “Possuir (ou não possuir) uma marca valorizada permite
antecipar as possibilidades e os limites de um sujeito; em outras palavras, pode servir para
dizer até onde alguém pode ir, no contexto de uma cultura” (id., sp.).
Ao olhar as falas produzidas a partir da discussão, percebemos que elas apontam
alguns marcadores que vêm sendo representados, principalmente em alguns meios de
comunicação de massa, tais como, televisão, revistas, jornais, etc., como tipicamente
femininos e bastante valorizados pelos homens. Imagens de corpos circulam em tais artefatos
culturais, que desenvolvem determinadas “pedagogias culturais” (STEINBERG, 1997),
produzindo significados, veiculando saberes, transmitindo valores que interpelam e produzem
nessas mulheres o desejo de querer ser de determinada maneira, valorizar certas
características corporais, reconhecer-se e pensar-se de determinado jeito. Nesse sentido, as
representações de corpo veiculadas pelas diversas instâncias sociais produzem e instituem
certos significados com os quais as mulheres da Colméia aprendem a se identificar,
constituindo-se em artefatos culturais importantes nessa complexa rede que governa nossos
corpos e nossas vidas.
Assim, com essas discussões encerramos o primeiro dia de encontro. Ao rever esse
primeiro encontro, percebi que ao longo das discussões as participantes demonstravam cada
vez mais interesse e motivação em discutir as questões que estávamos propondo. Antes de
dispensá-las salientamos a data do nosso próximo encontro e reforçamos que a presença delas
era de fundamental importância para a continuidade do curso.
3.2.2 Segundo encontro: Conhecendo e problematizando o corpo feminino
O segundo encontro do curso foi estruturado em dois momentos. Inicialmente
tínhamos como propósito discutir as questões de gênero a partir da leitura da música Mulher –
Sexo Frágil de Erasmo Carlos (ANEXO D). Com essa estratégia buscamos discutir o gênero
40
como uma construção social, cultural, histórica e lingüística, produto e efeito das relações de
poder incluindo os processos que produzem, distinguem e separam os corpos dotados de sexo,
gênero e sexualidade (MEYER, 2003a, 2003b). Também procuramos discutir que a
feminilidade não depende propriamente das características biológicas, mas sim dos discursos
sobre elas instituídos e colocados em circulação em diferentes contextos socioculturais. Assim
pretendíamos problematizar o entendimento de que existe uma “essência” feminina, um modo
“natural” de ser mulher, isto é, um modo de ser da mulher que seja próprio e inato às
mulheres por fazer parte de sua natureza.
No segundo momento, buscamos complementar a atividade de construção dos corpos
desenvolvida no primeiro encontro. Para tanto, montamos um corpo feminino, similar ao
corpo de uma mulher adulta, confeccionado em EVA
4
(Ver figura 2). Utilizamos esse recurso
com a finalidade de auxiliar na explicação dos órgãos internos e externos do corpo da mulher
e no funcionamento dos mesmos, que muitas delas manifestaram desconhecimento acerca
desse assunto. Além disso, utilizamos outros recursos para auxiliar na discussão sobre o corpo
feminino como, por exemplo, um modelo anatômico em borracha e um modelo do sistema
reprodutor feminino em acrílico, para auxiliar na explicação desse sistema e na utilização da
camisinha feminina. Surgiram também muitas dúvidas com relação ao funcionamento da
tabelinha, o que tinha sido solicitado por uma das mulheres no primeiro encontro. Com
essas estratégias buscávamos possibilitar às mulheres da Colméia conhecer alguns aspectos do
corpo feminino. Nesse encontro emergiram discussões a respeito dos órgãos sexuais
femininos, câncer de mama, leite materno e a importância da amamentação, prazeres e
desejos, higiene e cuidados com o corpo feminino, sexo seguro e dúvidas sobre a
menstruação. Para as discussões relacionadas à menstruação utilizamos também como
estratégia, a leitura do texto Afinal, o que é menstruação? (ANEXO E).
4
A sigla EVA (Etileno Acetato de Vinila) refere-se a uma folha de borracha para manualidades.
41
Figura 2 – Construção do corpo feminino
3.2.3 Terceiro encontro: Conhecendo e discutindo sobre as DST e a AIDS
Nesse encontro tínhamos como objetivo possibilitar às mulheres a discussão e o
conhecimento de alguns aspectos relacionados ao corpo do homem. Para tanto, montamos um
corpo masculino, confeccionado em EVA. Também montamos novamente o corpo feminino,
a fim de identificar e discutir as diferenças biológicas entre os sexos
5
, buscando problematizar
que os significados dados a essas diferenças também são sociais e culturalmente construídos
como, por exemplo, o pênis um dos símbolos da diferença entre os sexos, como símbolo da
virilidade e da ostentação (Ver figura 3). Cabe destacar que com isso não estamos negando a
biologia dos corpos, mas considerando que são construções culturais historicamente
produzidas a partir das características de natureza biológica dos corpos, neste caso em relação
às características dos sexos (RIBEIRO, 2002).
A partir do corpo masculino, discutimos sobre os órgãos sexuais masculinos, o câncer
de próstata, a importância dos exames médicos para os homens. Ao comentarmos sobre os
5
Estamos utilizando o termo sexo para nomear as características anatômicas (internas e externas ao corpo),
diferenciando homens e mulheres (WEEKS, 2001).
42
pulmões, aproveitamos para enfatizar e debater sobre as conseqüências do tabagismo, uma
vez que o cigarro é bastante utilizado por esse grupo de mulheres e seus familiares.
Figura 3 – Construção do corpo masculino e feminino
A seguir, realizamos uma atividade com figuras geométricas variadas, com o objetivo
de discutir sobre as DST e HIV/AIDS, suas formas de contágio e prevenção, a importância de
realizar exames preventivos com freqüência e utilizar a camisinha nas relações sexuais. A
dinâmica da atividade ocorreu da seguinte forma: inicialmente cada uma das participantes
recebeu uma figura geométrica e uma folha de papel em branco; a participante desenhou ou
escreveu o nome da figura na folha e a seguir passou a figura para a colega que estava ao seu
lado; depois de proceder dessa forma mais algumas vezes, iniciamos a discussão. Feito isso,
comunicamos às mulheres que cada uma das figuras que haviam recebido representava uma
das DST ou a AIDS. Ao discutirmos sobre as DST percebemos que muitas das doenças
apresentadas não eram conhecidas por essas mulheres, porém todas as mulheres conheciam a
AIDS e suas vias de infecção, informação amplamente divulgada através das instâncias
midiáticas e campanhas de saúde. Com essa atividade também pretendíamos discutir com elas
sobre a importância de usar o preservativo, seja ele feminino ou masculino, nas relações
sexuais, em função de não saber se o parceiro possui alguma DST e/ou AIDS.
Apresentamos nesse encontro alguns métodos contraceptivos reversíveis ou
irreversíveis (camisinha feminina e masculina, comprimido oral, esterilização feminina e
masculina, DIU, diafragma, anel vaginal, pílula do dia seguinte). Os métodos contraceptivos
43
mais utilizados por essas mulheres são o comprimido oral e a esterilização feminina. Com
relação à camisinha feminina, algumas mulheres argumentaram que nunca a tinham usado por
medo de machucar o corpo. Ao conversarmos sobre a camisinha masculina, disseram que não
a usam com freqüência devido ao fato de o marido não sentir prazer ou por não considerarem
necessário no caso de terem um relacionamento estável. No que se refere à realização do
papanicolau, apenas quatro das vinte mulheres que estavam participando do curso disseram
ter feito pelo menos uma vez esse exame.
3.2.4 Quarto encontro: Sexualidades
Nesse dia tínhamos como objetivo dar continuidade às discussões realizadas no último
encontro, buscando perceber os conhecimentos que elas estavam adquirindo a partir das
discussões feitas até aquele momento. Também pretendíamos propor uma discussão acerca
dos exames ginecológicos, da sexualidade e relação sexual. Para atingir os objetivos
propostos para o encontro utilizamos como estratégias a atividade “Responda sim ou não”
(ANEXO F) em pequenos grupos, posterior leitura e discussão das respostas e a leitura e
discussão do texto “Cuidados com o corpo, sexualidade e relação sexual” (ANEXO G).
Inicialmente utilizamos como estratégia a música Mania de Você, da cantora Rita Lee
(ANEXO H). Com essa música pretendíamos desencadear a discussão acerca da sexualidade e
da importância da prevenção nas relações sexuais. Entendemos que falar sobre sexualidade
nem sempre é uma tarefa fácil, pois geralmente acabamos falando sobre relações sexuais,
funções dos órgãos do corpo, métodos anticoncepcionais e prevenção das DST e AIDS. Falar
da sexualidade não como uma questão pessoal e privada, mas como uma construção histórica,
uma questão social e política, na qual se exercem relações de poder, foi a perspectiva que
assumimos nesse dia do curso (RIBEIRO, 2002).
Nesse sentido, problematizamos o discurso da família-reprodução, em que a
sexualidade é vinculada à reprodução, à formação de uma família. Nesse modelo, a
sexualidade encontra-se relacionada à procriação, sendo esta uma razão justificável para as
relações sexuais e para a formação de uma família constituída por um casal heterossexual e
seus filhos (RIBEIRO, 2002). A partir de tais entendimentos problematizamos que a
sexualidade não está relacionada somente ao ato sexual, mas buscamos discutir o
entendimento de que a sexualidade “tem a ver com a forma como ‘socialmente’ vivemos
nossos prazeres e nossos desejos, com a forma como usamos nossos corpos, com o que
dizemos sobre eles” (LOURO, 2001b, p. 71). Assim, discutimos sobre as diferentes
44
possibilidades de se viver a sexualidade com parceiros/as do sexo oposto, do mesmo sexo, ou
sozinho.
No encontro discutimos também sobre o exame ginecológico, sua importância e forma
como é realizado, em virtude de muitas mulheres manifestarem que não realizam o exame
com freqüência por medo ou vergonha. Conversamos sobre a importância de a mulher
conhecer o seu corpo e da necessidade de fazer freqüentemente o auto-exame de mamas.
Discutimos sobre sexualidade, desejos e prazeres, e orgasmo. Ao conversarmos sobre tais
questões algumas mulheres argumentaram que não sentiam desejo nem prazer nas relações
sexuais e que desconheciam o significado do orgasmo.
As analises referentes às discussões que emergiram no segundo, terceiro e quarto
encontros do curso “Mulher e Cidadania” compõem o artigo intitulado O governo dos corpos
femininos: (re)pensando algumas implicações da educação em saúde
6
(Ver capítulo 4 -
Apresentando os Artigos).
3.2.5 Quinto encontro: Ai que saudades da Amélia
No primeiro momento do encontro problematizamos a letra da música “Ai que
saudades da Amélia”, composta na década de quarenta por Mário Lago e Ataulfo Alves
(ANEXO I). Com esse artefato cultural pretendíamos discutir as representações de gênero
destacadas na letra dessa música. Essa escolha se justifica porque identificamos na letra da
música a existência de uma pedagogia que, de alguma forma, está educando mulheres no que
diz respeito à construção de suas identidades. Ao iniciarmos as discussões, transcorreu o
seguinte diálogo
7
:
Pesquisadora: Vocês acham que os homens gostam de quais dos dois tipos de mulheres que
apareceu?
Gabriela: Eu acho que eles gostam mais de uma mulher mais simples...
Adriana: Eles gostam da Amélia, porque a Amélia é uma trouxa. Risos na sala.
Pesquisadora: Por que eles gostam mais da Amélia?
Adriana: Porque ela fica na beira do fogão, dentro de casa, lavando roupa, cuidando dos
filhos, cuidando da roupa do marido. E a outra não, a outra já é diferente.
6
As narrativas que emergiram nesses encontros foram apresentadas e analisadas no artigo intitulado “Mulheres e
saúde reprodutiva/sexual: (re)pensando algumas questões”, apresentado no SBECE Seminário Brasileiro de
Estudos Culturais e Educação, realizado na ULBRA Canoas/RS, no período de 2 a 4 de agosto de 2006. Também
foram publicadas nos Anais do III Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação, Foucault 80 anos,
realizado de 9 a 11 de outubro, no Rio de Janeiro (UERJ, Maracanã), sob o título de “Educação em saúde e o
governo dos corpos femininos”.
7
As falas produzidas a partir da música “Ai que saudades da Amélia” foram analisadas no artigo Discutindo o
gênero a partir da música “Ai que saudades da Amélia”,
apresentado no Seminário Internacional Fazendo
Gênero 7, gênero e preconceitos, realizado em Florianópolis/SC de 28 a 30 de agosto de 2006.
45
Pesquisadora: A outra é diferente por quê?
Adriana: Porque a outra gosta de passear, gosta de se cuidar a si mesma.
Pesquisadora: Alguém aqui se acha Amélia?
Gabriela: Eu não me acho muito, porque eu sou vaidosa e a Amélia não é vaidosa.
Paula: Eu já fui.
Pesquisadora: Por que tu já foste Amélia?
Paula: Ah! Passei muito trabalho com ele, passei necessidade, passei fome...
Pesquisadora: Por amor?
Paula: Era amor sim.
Pesquisadora: Vocês acham que a gente às vezes passa por Amélia por amor?
Paula: Pelos filhos também.
Raquel: Pelos meus filhos eu fui, eu acho que mais até que Amélia. Porque eu tive dois filhos
deficientes, e a minha vida foi toda para eles, enquanto eles existiam. Eu passei
necessidade, eu passei fome, passei frio, passei de tudo na vida...
Helena: Assim passá fome, não comer por causa dos filhos, eu já não acho certo, vai
trabalhar... Porque toda a minha vida eu trabalhei para sustentar meus filhos, não dependi
de homem. Ah, um homem na cama, pra dizer que tenho homem. O homem tem que
ser companheiro em tudo.
Raquel: Quando eu não podia, os outros me ajudavam. Eu levei a vida, nunca dependi de
homem...
Helena: Viveu a vida para os filhos. Aliás, todas nós aqui vivemos a vida para os filhos, qual
mãe que não vive para os filhos.
Ao olhar esses falas, percebo que elas apontam alguns aspectos referentes aos
significados que vêm sendo atribuídos à feminilidade e à masculinidade por essas mulheres,
centrados nas representações hegemônicas de mulher e mãe, como se tais atributos fizessem
parte da “essência” da mulher, por exemplo, o pressuposto de que as mulheres estariam
destinadas ao cuidado dos/as filhos/as, aos afazeres domésticos, à sensibilidade e às emoções.
Tais representações, que fazem parte do senso comum de muitas pessoas, circulam e são
produzidas, cotidiana e recorrentemente, em diversas instâncias e artefatos de nossa cultura.
Além disso, elas “norteiam muitos dos processos educativos no interior dos quais nos
tornamos mulheres e homens e/ou mães e pais de determinados tipos e sua força reside,
justamente, nas múltiplas, sutis e sempre renovadas possibilidades de sua repetição” (MEYER
2003b, p. 34).
Nesse sentido, procuramos problematizar e desestabilizar as representações de gênero
que circulam em diversas instâncias e artefatos culturais, discutindo as redes de poder e os
interesses envolvidos na sua construção, questionando o modo como são significadas, e como
os significados instituídos e colocados em circulação produzem efeitos sobre as pessoas.
Nessa perspectiva, a letra de uma música pode ser pensada como uma pedagogia, ensinando
conceitos sobre diversos aspectos sociais, produzindo formas de pensar e agir, de estar no
mundo e de relacionar-se com ele.
46
No segundo momento, realizamos a atividade denominada “Representando os
corpos”. Com essa atividade, tínhamos como objetivo conhecer e problematizar as
representações de corpo feminino na perspectiva dessas mulheres. Para tanto, propusemos às
mulheres que confeccionassem painéis a partir de colagem de imagens de corpos femininos
com os quais se identificassem. Para a realização dessa atividade disponibilizamos material
para a produção dos painéis, como revistas e jornais de circulação nacional, papel pardo, cola
e tesoura. Posteriormente à escolha, cada uma das participantes fixava a figura escolhida em
um pedaço de papel para, a seguir, apresentar e justificar a escolha da mesma às demais
participantes do grupo. O resultado dessa atividade foi a produção de painéis que tornaram
visíveis corpos magros, altos, felizes, sorridentes, jovens, expressivos, com cabelos lisos, em
pose sensual, corpo despido, famoso, inserido na família, no grupo de amigos, em relações
afetivas, caminhando na praia, nas passarelas da moda, usando roupas da moda, enfim, no
cotidiano, conforme podemos perceber na figura abaixo, que apresenta os corpos escolhidos
pelas participantes:
Figura 4 – Painel “Representando os corpos”
47
As análises referentes a essa atividade compõem o artigo intitulado Corpos em
evidência: problematizando representações de corpos femininos
8
(Ver capítulo 4 -
Apresentando os artigos).
3.2.6 Sexto encontro: Contando histórias de mulheres
Nesse encontro, inicialmente apresentamos alguns aspectos referentes à História das
Mulheres
9
, com o objetivo de conhecer e problematizar fatos importantes sobre a trajetória de
mulheres, desde tempos mais remotos até os dias atuais.
Iniciamos a apresentação fazendo referência à representação materna na mitologia e na
organização de povos que viveram na Europa entre 300.000 e 21.000 a.C., época em que a
mulher era vista como sagrada por ter o “dom” de dar origem a novas vidas. Tais povos
produziram inúmeras estatuetas que representavam as mulheres. Essas estatuetas possuíam o
corpo roliço e amplo para dar abrigo ao nascimento dos filhos e alimentá-los com os seios
grandes e fartos, conforme podemos perceber na figura 5.
Figura 5 – Vênus de Willendorf
8
As narrativas que emergiram a partir da atividade Representando os Corpos também foram analisadas no artigo
intitulado
Refletindo sobre a produção cultural dos corpos femininos, apresentado no II Seminário Corpo,
Gênero e Sexualidade, Problematizando as Práticas Educativas e Culturais, realizado na Fundação Universidade
Federal do Rio Grande, no período de 24 a 26 de outubro de 2005.
9
Fundamentamos a apresentação da história das mulheres nos seguintes autores: Dubby e Perrot, 1991; Del
Priore, 2004; Haddad & Di Pierro, 2000; Moraes, 2002; Murano, 1992; Ribeiro, 2000.
48
Na seqüência discutimos o mito judaico-cristão, de acordo com o qual a mulher teve
origem da costela de Adão e foi culpabilizada pela expulsão do paraíso pelo fato de ambos
terem comido o fruto proibido da árvore do conhecimento e do pecado. Discutimos a mulher
na antiguidade, período em que a ela restava a obediência, primeiro ao pai e depois ao marido,
e seu valor estava em ficar confinada ao lar, ser esposa e responsável pelo cuidado e educação
dos filhos; na Idade Média, época em que muitas foram queimadas ou enforcadas por serem
consideradas bruxas e feiticeiras; na da Idade Moderna, principalmente enfatizando a saída
das mulheres do espaço privado para o público como, por exemplo, a inserção das mulheres
no mercado de trabalho, embora exercendo tarefas de menos status e menor remuneração em
relação aos homens quando desempenhavam as mesmas funções. Também discutimos a
mulher no Brasil colonial, principalmente enfatizando o acesso à educação escolarizada,
período em que as mulheres eram excluídas desse processo educacional, uma vez que a
educação formal era reservada somente aos homens.
Por fim, apresentamos e discutimos a trajetória de lutas e conquistas das mulheres na
atualidade, enfatizando os movimentos das mulheres que defendiam e defendem intensamente
a igualdade nas oportunidades de trabalho e de salário, o direito ao voto, o fim do assédio e
violência sexual, o direito e acesso à educação em todos os níveis, os direitos sexuais e
reprodutivos, a obtenção de cargos políticos, as mudanças jurídicas, entre outros aspectos.
Apesar de não querermos traçar generalizações, ficaria difícil, em um único encontro,
expor também todas as exceções em relação às múltiplas e diferentes histórias das mulheres
através dos tempos. Nesse sentido, com as questões discutidas no encontro, sucintamente
apresentadas aqui, não pretendíamos tecer uma história que enfatizasse a concepção “de um
homem dominante versus uma mulher dominada” (LOURO, 2004, p. 37), como se a mulher
fosse a vítima ou a culpada por sua condição social hierarquicamente subordinada. Nem
tampouco pretendíamos traçar uma história linear e “progressiva”, que mostrasse o alcance de
um mundo melhor em função das inúmeras lutas e batalhas realizadas pelas mulheres. Ao
proceder de tal forma, buscávamos criar condições para fazê-las falar e escutar o que tinham a
dizer, buscando assim compartilhar, problematizar e reconstruir os significados atribuídos ao
gênero.
Nesse sentido, ao dar historicidade ao gênero, procurávamos problematizar e
desnaturalizar o que aprendemos a tomar como “dado”, por exemplo, o pressuposto de que
todas as mulheres são idênticas entre si, que devem ser submissa ao marido e que sua
condição “natural” é ser mãe e esposa, responsável pelo cuidado dos filhos, marido e afazeres
domésticos.
49
As narrativas e as falas produzidas a partir da apresentação da História das Mulheres,
referentes ao gênero e à educação escolarizada, são analisadas no artigo intitulado Contando
e ouvindo histórias sobre gênero e educação escolarizada
(Ver capítulo 4 - Apresentando
os Artigos).
No segundo momento do encontro propusemos às mulheres que construíssem um
painel acerca do que significava para elas ser mulher hoje (figura 6). Na construção do painel
O que é ser mulher hoje?” emergiram: lutadora; ser mandada pelo marido; escrava da casa;
esposa; dona de casa; mãe; ser uma pessoa feliz; saber conversar com as pessoas;
principalmente ser feliz no seu lar; amiga; ser responsável; além de ser mãe ser amiga dos
filhos; cuidar dos filhos e do marido; serviço; quintal; galpão para o marido; trabalhar; ser
mulher é ser rainha de alguma maneira. A figura abaixo é um excerto do painel produzido por
essas mulheres:
Figura 6 – Painel “O que é ser mulher hoje?”
Fala do canto superior direito: cuidar dos filhos, do marido, serviço, quintal, galpão para
marido;
50
Fala do centro: ser mulher é ser rainha de alguma maneira;
Fala do canto inferior esquerdo: mãe, dona-de-casa.
3.2.7 Sétimo encontro: Problematizando as feminilidades e masculinidades a partir do
filme Mulan
Nesse encontro assistimos ao filme Mulan, produzido pelos Estúdios Disney (Ver
figura 7), com o objetivo de analisar e discutir acerca das representações hegemônicas de
feminilidade e masculinidade. No filme, o pai da heroína Mulan, é convocado a se alistar no
exército que vai lutar contra os Hunos. Contudo, o pai de Mulan está velho e doente e não
possui condições de lutar. Com o objetivo de preservar a honra da família, Mulan disfarça-se
de homem e vai para a batalha.
Ao reportar-me a esse encontro, relembro que as mulheres gostaram de assistir ao
filme e demonstraram interesse em discutir sobre o mesmo. Ao olhar as falas que emergiram
percebo que essas mulheres foram interpeladas pelas representações de gênero veiculadas
pelo filme, o que podemos perceber nas seguintes falas:
Carolina: eu gostei da Mulan porque ela é corajosa.
Julia: ela usou a coragem e a sabedoria.
Sara: eu acho que tudo o que o homem faz a mulher pode fazer. Dificilmente uma casa
sobrevive sem ter uma mulher. A mulher mantém a calma nas piores horas.
Paula: eu também me identifiquei porque eu criei os meus filhos sozinha.
Gabriela: eu criei sete filhos, a gente é uma guerreira.
Adriana: o filme é um ensino pra gente.
Nesse sentido, entendo o filme Mulan, como um artefato cultural que opera com
determinadas representações de gênero, como forma de educar e governar sujeitos (SABAT,
2003). Embora entenda que filmes como o que utilizamos no encontro são dirigidos mais
especificamente a uma determinada faixa etária, as falas apresentadas evidenciam que as
mulheres foram interpeladas pelo filme.
Nesse filme observamos uma série de narrativas em torno de comportamentos e
valores que, entre outras coisas, estão produzindo determinados sujeitos de gênero. No início
do filme, Mulan, ao preparar-se para encontrar a casamenteira, relembra quais as
características desejáveis para uma esposa: calma, reservada, graciosa, delicada, educada,
refinada, equilibrada e pontual. Além disso, sua mãe e sua avó, ao cantarem, reforçam o
“papel” de uma mulher: A moça vai trazer a grande honra ao seu lar achando um bom par e
51
com ele se casar. Mas terá que ser bem calma, obediente, com bons modos e com muito amor.
Traz mais honra a todas nós. Tais entendimentos possibilitaram a discussão do pressuposto
de que as mulheres estariam destinadas por “natureza” ao casamento, ao cuidado dos filhos e
marido e às atividades domésticas. Também discutimos e problematizamos algumas
características que culturalmente são atribuídas às mulheres como, por exemplo, ser refinadas,
delicadas, graciosas e sensíveis. Mulan possibilitou a discussão do entendimento que a mulher
ao casar deve ser submissa ao marido, por exemplo, no momento em que a casamenteira
ensina a Mulan que a mulher deve dobrar a língua na presença de homens, deve falar pouco,
ser “silenciosa”.
As representações de masculinidade também são reforçadas quando Mulan é ensinada
pelo dragão Mushu (um ser enviado pelos ancestrais para proteger Mulan) a andar como um
homem, levantar o queixo, colocar o ombro pra trás, separar os pés. Nessa direção,
problematizamos as representações de masculinidade veiculadas pelo filme, as quais, além
disso, reforçam que os homens são “machões”, fortes, valentes, brutos, grosseiros e sujos.
No filme fica implícito um “final feliz”, uma vez que Mulan, ao voltar para casa,
depois de ter sido vitoriosa na batalha, encontra com Shang, seu candidato a futuro marido.
Por fim, as atitudes de Mulan ao desobedecer às regras servem para que ela alcance o seu
objetivo: casar e honrar sua família.
A análise do filme e as falas produzidas reforçam a importância de estarmos atentas/os
para as formas através das quais as representações de gênero têm sido produzidas,
reproduzidas e colocadas em circulação na nossa sociedade, pois tais representações
contribuem para educar os sujeitos, ensinando modos de ser, agir e pensar.
52
Figura 7 – Filme Mulan
3.2.8 Último encontro: Os significados do curso para as mulheres da Colméia
No último encontro solicitamos às mulheres que fizessem a avaliação do curso
“Mulher e Cidadania”, registrando individualmente, através de desenhos ou falas, suas
impressões, sentimentos e significados do curso. Também enfatizamos que ao comentarem
sobre o curso poderiam destacar sugestões de temáticas que tinham interesse em discutir nos
próximos encontros.
As narrativas produzidas evidenciam o quanto o curso foi significativo para essas
mulheres, uma vez que nesse contexto elas tiveram a oportunidade de discutir assuntos do seu
interesse, falar e serem ouvidas, expressando suas vivências, sentimentos e opiniões, sem
medo ou vergonha, bem como tiveram a possibilidade de estabelecer e estreitar laços de
amizade. As mulheres deixaram recados, escreveram suas impressões, desenharam e sugeriam
questões que gostariam de discutir, conforme destaco na figura e nas transcrições abaixo:
53
Figura 8 – Avaliação do curso “Mulher e Cidadania”
A
B
C
D
E
F
G
H
I J
L
M
N
O
54
Transcrições:
A Dos encontros eu acho que pra mim é porque estou aprendendo muito com vocês
e com as colegas;
B – Eu amo todas vocês e queria saber mais sobre doenças transmissíveis;
C Eu estou achando muito importante porque eu estou aprendendo a conhecer meu
corpo e as doenças transmissíveis, é muito importante aprender. Eu gostaria de saber mais
sobre ferida no útero;
D – Gostaria de saber mais sobre DST;
E – Muito bom pra primeiro dia, eu quero saber sobre as doenças;
F To amando gostei muito de vocês. To tendo liberdade de perguntar e de ter
resposta. Deus abençoe vocês pelo o que vocês são pessoas especiais.
G – Eu estou gostando de vocês. Obrigado por existir na nossa vida. Nós agradecemos
existir. Obrigado por tudo;
H Eu acho muito bom porque tem muitas coisas que eu não sei estou aprendendo
agora, porque eu tenho três filhas mulher ai eu ensino o que eu poder;
I – Estou achando muito importante. Está esclarecendo muitas dúvidas. Pretendo
continuar aprendendo e aproveitando esta oportunidade;
J – Eu gostaria de saber se eu poderia engravidar depois de fazer o ligamento;
L – Gostei do corpo da boneca;
M O que eu estou achando do encontro muito bom, muito legal e relaxante. Gostei
muito da palestra das professoras das colegas;
N – Eu gosto muito dos encontros é muito importante para a mulher. A mulher é muito
especial;
O – Eu estou achando legal, pois estou aprendendo muito e quero continuar.
Nas falas as mulheres manifestaram o desejo da continuidade do curso, destacando que
o curso era importante para elas, pois estavam aprendendo a conhecer o corpo e as doenças
sexualmente transmissíveis e a compartilhar saberes e conhecimentos. A atividade criou
condições às mulheres, ao expressarem suas idéias e opiniões sobre o curso, (re)significarem
suas experiências nesse contexto. Nesse sentido, percebo o curso como um espaço narrativo
que possibilitou às mulheres da Colméia compartilhar, problematizar, produzir e (re)construir
alguns significados a respeito do corpo, gênero e sexualidade.
4. APRESENTADO OS ARTIGOS
56
4.1 O GOVERNO DOS CORPOS FEMININOS: (RE)PENSANDO ALGUMAS
IMPLICAÇÕES DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE
1
Submetido à Revista Estudos Feministas – UFSC
4.1.1 Resumo
No presente trabalho buscamos analisar os discursos acerca da saúde sexual e reprodutiva das
mulheres que participam da Associação Movimento Solidário Colméia, buscando
compreender em que medida essas mulheres vão sendo interpeladas pelos discursos referentes
à Educação em Saúde, em especial, as políticas e campanhas direcionadas aos corpos
femininos. Para tanto, analisamos as narrativas dessas mulheres produzidas durante os
encontros do curso Mulher e Cidadania. No estudo, problematizamos como esses discursos
inscrevem diferentes marcas nos corpos, ensinando costumes, valores, crenças, maneiras de
perceber a si, de ser e de agir como mulheres e de pensar e atuar com relação aos seus corpos.
Nesse sentido, estabelecemos conexões com os Estudos Culturais e de Gênero, nas suas
vertentes pós-estruturalistas, e com algumas proposições de Michel Foucault.
Palavras-chave: mulheres, saúde sexual e reprodutiva, biopolíticas, Educação em Saúde.
4.1.2 Abstract
In this present work, we aimed at analyzing the discourses on sexual and reproductive health
of women who join the Solidary Moviment Association Beehive, in order to understand to
what extent these women have been focused by the discourses of education in health, more
specifically, the policies and campaigns towards female bodies. To do so, we analyzed the
womens´narratives produced along the meetings of the course Women and Citizenship. In this
study, we problematized how such discourses inscribe different signs in the bodies, teaching
habits, values, beliefs, ways of perceiving, being and acing as women as well as thinking and
acting towards their bodies. In this sense, we established connections with the cultural and
gender studies in its post-structuralist verges, and with some propositions of Michel Foucault.
Key-words: women, sexual and reproductive health, biopolicies, education in health.
1
Parte deste artigo foi inscrito no Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero - Concurso de Redações e
Artigos Científicos na área das Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos, promovido pela Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres/Presidência da República, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia,
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Ministério da Educação, e Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, ocorrido no período de 28 de agosto a 31 de outubro de
2006. Este artigo mantém as normas exigidas para envio de textos para a revista Estudos Feministas.
57
4.1.3 Introdução
Neste artigo buscamos analisar a rede de discursos
2
acerca da saúde sexual e
reprodutiva das mulheres que participam da Associação Movimento Solidário Colméia,
3
buscando compreender em que medida essas mulheres vão sendo interpeladas pelos discursos
referentes à Educação em Saúde,
4
em especial, as políticas e campanhas direcionadas aos
corpos femininos. Para tanto, analisamos as narrativas das mulheres da Colméia, produzidas
durante os encontros do curso Mulher e Cidadania.
5
Na perspectiva de discutir e
problematizar como esses discursos inscrevem diferentes marcas nos corpos, ensinando
costumes, valores, crenças, maneiras de perceber a si, de ser e de agir como mulheres e de
pensar e atuar com relação aos seus corpos, estabelecemos algumas conexões com os Estudos
Culturais
6
e de Gênero,
7
nas suas vertentes pós-estruturalistas,
8
e com algumas proposições de
Michel Foucault.
Nesse sentido, entendemos que as proposições e os discursos, que normatizam as
políticas de Educação em Saúde, vêm atuando como uma estratégia regulamentadora da saúde
sexual e reprodutiva, a qual tem como matriz a biopolítica.
9
Essa tecnologia de poder regula a
sexualidade da população, através de mecanismos de controle e intervenção centrados nos
fenômenos biológicos como: a natalidade, a AIDS, as doenças sexualmente transmissíveis,
2
Para Foucault, os discursos, mais do que conjuntos de signos que remetem a conteúdos ou representações, são
“práticas que formam, sistematicamente, os objetos de que falam” (Michel FOUCAULT, 1995a, p.56).
3
A Associação Movimento Solidário Colméia tem como principal objetivo possibilitar o resgate da cidadania e a
melhoria da qualidade de vida das famílias que integram essa associação. Essas famílias residem no bairro
Castelo Branco e arredores, vivendo em situação de extrema pobreza, no município do Rio Grande-RS-Brasil.
4
Neste texto utilizamos o conceito “Educação em Saúde” para designar as práticas educativas realizadas no
âmbito da promoção da saúde (Denise GASTALDO, 1997).
5
Este curso foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola – FURG e teve como objetivo
oportunizar espaços de reflexão e discussão acerca de temáticas que envolvem corpo, gênero e sexualidade.
6
Os Estudos Culturais constituem-se em um campo de teorização, investigação e intervenção que estuda os
aspectos culturais da sociedade, que têm sua origem a partir da fundação do Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra, em 1964. Sobre este tema ver: Tomaz SILVA,
2004; Marisa COSTA, 2004; Alfredo VEIGA-NETO, 2004.
7
Neste estudo estabelecemos conexões com os Estudos de Gênero, pelo viés de suas vertentes pós-
estruturalistas. “As abordagens feministas pós-estruturalistas se afastam daquelas vertentes que tratam o corpo
como uma entidade biológica universal (apresentada como origem das diferenças entre homens e mulheres, ou
como superfície sobre a qual a cultura opera para produzir desigualdades) para teorizá-lo como um construto
sociocultural e lingüístico, produto e efeito de relações de poder” (Dagmar MEYER, 2003, p. 16). Para
discussões sobre esse tema, ver: Guacira LOURO, 2004; MEYER, 2003; Linda NICHOLSON, 2000; Joan
SCOTT, 1995.
8
Para discussões sobre o pós-estruturalismo, ver VEIGA-NETO (1995; 1996; 2004), SILVA (1994; 2005),
Michael PETERS (2000).
9
Segundo Foucault, biopolítica é “a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os
problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos
constituídos em população: saúde, higiene, natalidades, raças...” (1997, p. 89).
58
etc. Integrando tal tecnologia existe outra, a disciplinar,
10
dirigida ao corpo individual,
regulando a sexualidade através do controle do mesmo, nos gestos, atitudes, comportamentos,
hábitos e discursos.
11
A partir de tais entendimentos, argumentamos que as práticas educativas,
desenvolvidas com o objetivo de promover a saúde e prevenir doenças, atuam como
mecanismos que governam a população e disciplinam os corpos dos indivíduos. Trata-se de
um processo educativo que, ao interferir nas escolhas pessoais de mulheres e homens sobre
como podem ou devem agir para viver suas vidas de forma saudável, agencia
comportamentos a serem seguidos pela população.
Organizamos a escrita deste artigo em três momentos. Inicialmente, buscamos discutir
as políticas em saúde articulando os conceitos de biopoder e poder disciplinar. Num segundo
momento, apresentamos as estratégias metodológicas utilizadas na produção dos dados
narrativos. Por fim, apresentamos e analisamos as narrativas das mulheres da Colméia sobre
os discursos acerca das doenças sexualmente transmissíveis, HIV/AIDS, métodos
contraceptivos, exames preventivos, cuidados com o corpo, entre outros.
4.1.4 O poder sobre a vida e as políticas em saúde
Questões referentes à saúde, aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres têm
ocasionado um crescente interesse no cenário nacional, gerando a elaboração das políticas
públicas em saúde. Essas políticas são propostas e desenvolvidas pelo Ministério da Saúde
por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que as mulheres representam 50,77% da
população brasileira e são as principais freqüentadoras e/ou usuárias do SUS.
12
O Governo Federal instituiu 2004 como o Ano da Mulher, no Brasil, marcado
principalmente pela realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres e pela
elaboração e lançamento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres PNPM.
13
De
acordo com o Relatório de Implementação do PNPM, essa política engloba uma série de
objetivos, metas, prioridades e ações voltadas para
a melhoria da saúde, garantia de direitos e ampliação do acesso aos
serviços; direitos sexuais e direitos reprodutivos; redução da morbidade e
mortalidade; ampliação, qualificação e humanização da atenção integral à
saúde da mulher; garantia do acesso a anticoncepção e a exames; ampliação
10
Essa outra tecnologia de poder “é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como
foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 2005, p. 297).
11
FOUCAULT, 2003, 2005, 2006b.
12
Ministério da Saúde BRASIL, 2006a.
13
Presidência da República BRASIL, 2006b.
59
regional dos programas existentes; prevenção e controle do HIV/Aids e
outras doenças sexualmente transmissíveis; atenção obstétrica; e finalmente,
a legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez.
14
Nesse sentido, no âmbito da saúde sexual e reprodutiva são produzidas políticas e
programas voltados para a população feminina, assumindo determinadas configurações de
acordo com contextos históricos e culturais específicos, bem como com interesses
econômicos e políticos. Entendemos que problematizar as questões relacionadas à saúde é
importante na medida em que compreendemos que os sujeitos são subjetivados e objetivados
através de diversos discursos e práticas socioculturais que se instituem no cotidiano,
ensinando determinados modos de perceber o corpo e exercer a sexualidade.
Foucault, ao analisar a história da sexualidade,
15
não em “termos de repressão ou de
lei, mas em termos de poder”,
16
mostra os mecanismos de poder criados na modernidade para
se falar intensamente da sexualidade e através dela vigiar, gerenciar e normalizar os corpos
dos indivíduos. Nesse sentido, uma contribuição que merece destaque nos estudos do autor,
diz respeito ao entendimento de poder na medida em que ele problematiza a noção tradicional
de poder:
Dizendo poder, não quero significar “o poder”, como conjunto de
instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um
Estado determinado. Também não entendo poder como modo de sujeição
que, por oposição à violência, tenha a forma de regra. Enfim, não o entendo
como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo
sobre outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessam o corpo
social inteiro
.
17
Para o autor, o poder não emana de um centro – o Estado –, mas o poder atua como se
fosse uma rede “a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis”.
18
Nessa rede, os indivíduos não circulam, mas estão em posição de exercer o poder e de
sofrer sua ação.
19
Ao tomar o poder como uma relação de ações sobre ações algo que se
exerce, que se efetua e funciona em rede, Foucault chama a atenção para o papel que uns
exercem sobre os outros e para a multiplicidade de mecanismos de poder e resistência que
funcionam no corpo social. Outro aspecto consiste em entender o poder não como coercitivo,
14
BRASIL, 2006b, p. 56.
15
Segundo Foucault, a sexualidade é um dispositivo histórico em forma de rede “em que a estimulação dos
corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos
controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e de poder”
(2003, p. 100).
16
FOUCAULT, 2003, p. 88.
17
FOUCAULT, 2003, p. 88.
18
FOUCAULT, 2003, p. 90.
19
FOUCAULT, 2006a.
60
repressivo e negativo, mas como produtivo: “ele inventa estratégias que o potencializam; ele
engendra saberes que o justificam e encobrem; ele nos desobriga da violência e, assim, ele
economiza os custos da dominação”.
20
Uma preocupação do autor será compreender como os procedimentos de poder
produzem sujeitos dóceis, disciplinados, governáveis. Para Foucault, na época moderna
apareceram duas tecnologias de poder que centram suas ações sobre a vida dos indivíduos: o
poder disciplinar, que atua sobre os corpos dos indivíduos, e o biopoder, que atua sobre a
população.
21
Embora o poder disciplinar venha atuando desde o século XVII, Foucault nos
aponta que, no final do século XVIII e início do XIX, outra tecnologia, o biopoder, vem atuar
juntamente com aquela, porém “não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de
desenvolvimento interligados por um feixe intermediário de relações”.
22
O poder disciplinar, enquanto um conjunto de minúsculas invenções/técnicas
direcionadas aos corpos, possibilita o crescimento da utilidade das multiplicidades e o
controle dos indivíduos
23
. Segundo o autor,
24
o indivíduo é uma fabricação dessa tecnologia
que se denomina disciplina.
De acordo com o autor, biopoder, refere-se aos mecanismos empregados para
controlar os fenômenos da população enquanto espécie. Na visão de Foucault, a vida
biológica tornou-se um evento político, passando o biopoder a se ocupar com os fenômenos
coletivos da população (a proporção de nascimentos e óbitos, a reprodução da população, a
longevidade, a ocorrência de doenças, etc.), centrais aos problemas econômicos e políticos de
governo. Assim, a biopolítica lida com um novo corpo, um corpo múltiplo, “lida com a
população, e a população como problema político, como problema a um tempo científico e
político, como problema biológico e como problema de poder”.
25
Os mecanismos implantados
pela biopolítica têm como objetivo a regulamentação da população, buscando controlar
através de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais a série de eventos
fortuitos que podem ocorrer na população e, eventualmente, modificar a probabilidade desses
fenômenos.
26
20
VEIGA-NETO, 2000, p. 63.
21
FOUCAULT, 2003; 2005.
22
FOUCAULT, 2003, p. 131.
23
FOUCAULT, 2005, 2006b.
24
FOUCAULT, 2006b.
25
FOUCAULT, 2005, p. 292-293.
26
FOUCAULT, 2005, p. 292-293.
61
Segundo Foucault,
27
a sexualidade encontra-se na articulação entre essas duas
tecnologias o poder disciplinar e o biopoder na medida em que é direcionada aos sujeitos
uma série de procedimentos, tais como, a vigilância, os controles constantes, as disposições
espaciais, os exames médicos ou psicológicos, enfim, uma série de micropoderes sobre o
corpo; como também as medidas massivas, as estimativas estatísticas, as intervenções e as
campanhas que visam todo o corpo social. Portanto, a sexualidade é acesso tanto à vida do
corpo quanto à vida da espécie.
De acordo com Foucault,
28
a partir do século XIX, a sexualidade adquiriu extrema
valorização médica. Emergiu o entendimento segundo o qual a sexualidade, quando não é
disciplinada e regulada, tem efeitos sobre o corpo, “sobre o corpo indisciplinado que é
imediatamente punido por todas as doenças individuais que o devasso sexual atrai sobre si”
29
e sobre a população, “uma vez que se supõe que aquele que foi devasso sexualmente tem uma
hereditariedade, uma descendência que, ela também, vai ser perturbada, e isso durante
gerações e gerações”.
30
Desde então, a medicina configura-se como uma estratégia política de intervenção,
cujas ações se voltam aos problemas de saúde pública como, por exemplo, o controle da
reprodução, das doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. Conforme argumenta
Foucault, “a medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a
população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos
disciplinares e efeitos regulamentadores”.
31
Nesse sentido, percebemos o funcionamento de tecnologias direcionadas ao controle
da sexualidade da população, através de mecanismos de saber-poder
32
como as políticas, as
campanhas, os programas televisivos voltados à prevenção de doenças e promoção da saúde.
Tais mecanismos, legitimados pelo saber-poder científico, apresentam como objetivo
promover a saúde da população, bem como promover uma sociedade disciplinada.
Desse modo, pensamos que a Educação em Saúde direcionada aos corpos femininos
vem atuando no sentido de que as mulheres passem a ser responsáveis pela própria vida, pela
vida dos filhos e do parceiro, fazendo uso dos conhecimentos médicos disponíveis,
gerenciando seus corpos através da realização de exames preventivos de DST e HIV/AIDS,
27
FOUCAULT, 2003.
28
FOUCAULT, 2005.
29
FOUCAULT, 2005, p. 301.
30
FOUCAULT, 2005, p. 301.
31
FOUCAULT, 2005, p. 302.
32
A expressão saber-poder é utilizada num sentido foucaultiano em que poder e saber estão diretamente
implicados, ou seja, “não relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 2006b, p. 27).
62
de câncer do colo uterino, de câncer de mama, usando preservativo nas relações sexuais,
usando métodos contraceptivos, etc.
Assim, as doenças ou atitudes não-saudáveis passam a estar relacionadas ao estilo de
vida que cada pessoa mantém, aos “comportamentos de risco”
33
mantidos pelo sujeito, e são
entendidas muitas vezes como resultado de resistência e/ou negligência à prevenção e ao
cuidado com o corpo, bem como desconhecimento e falta de informação. Esse entendimento
justifica-se pelo fato de já se ter à disposição várias prescrições apoiadas em saberes da
medicina indicando atitudes, hábitos, regras, normas e estilos que dizem como o indivíduo,
neste caso a mulher, deve proceder para viver de forma cada vez mais saudável e prevenir o
seu corpo de doenças.
Assim, entendemos as políticas voltadas à promoção da saúde e à prevenção de
doenças e campanhas delas decorrentes como instâncias de produção dos corpos e das
identidades sexuais e de gênero.
34
Considerando as proposições apresentadas até aqui acerca de alguns mecanismos de
poder que atuam sobre o corpo e sobre a população é que buscamos, neste artigo,
problematizar e compreender como e quais os discursos acerca das DST e do HIV/AIDS, das
práticas de prevenção e cuidados com o corpo são significados e compartilhados pelas
mulheres da Colméia.
4.1.5 Caminhos metodológicos: a investigação narrativa e o grupo focal
As pesquisas no âmbito educacional, inseridas na abordagem qualitativa, podem
apresentar como um dos objetivos a interação social, na qual ocorre uma colaboração entre
pesquisadores/as e sujeitos pesquisados, ao longo de um período, em um determinado
contexto sócio-histórico. Essas abordagens qualitativas argumentam a respeito da
contingência dos dados produzidos, que o sujeito não pode ser compreendido fora do seu
contexto social, cultural e histórico. Dentre as abordagens qualitativas, optamos neste estudo,
pela investigação narrativa como estratégia metodológica.
33
Estamos utilizando o conceito “comportamento de risco” associado às condutas adotadas pelos indivíduos,
como a prática de sexo com vários parceiros/as, prática do sexo anal, uso de drogas, etc. (Paula RIBEIRO e
Mirian DAZZI, 2000).
34
Os sujeitos podem exercer sua sexualidade de diversas maneiras, ou seja, podem viver seus desejos e prazeres
corporais de diferentes modos. Nesse sentido, “suas
identidades sexuais se constituíram, pois, através das formas
como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem
parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos ou
femininos e assim constroem suas
identidades de gênero” (LOURO, 2004, p. 26).
63
De acordo com Connelly e Clandinin,
35
a narrativa situa-se em uma abordagem de
investigação qualitativa, “pois está baseada na experiência vivida e nas qualidades de vida e
da educação”. Para esses autores o uso da narrativa como método de investigação possibilita
que as experiências vividas, tanto as pessoais como sociais, sejam reproduzidas de formas
relevantes e impregnadas de significados.
Nessa direção, Larrosa
36
afirma que “cada pessoa se encontra imersa em estruturas
que lhe pré-existem e em função das quais constrói e organiza de um modo particular sua
experiência, impõe-lhe um significado”. Para Larrosa,
37
a narrativa é uma modalidade
discursiva, na qual as histórias de nossas vidas dependem de um conjunto de histórias que
temos ouvido, através das quais passamos a construir a nossa história, a dar sentido a quem
somos. Portanto, a pesquisa narrativa é um modo de compreender a experiência, é uma forma
de viver, é um modo de vida.
Ao optar por esse tipo de investigação, é importante que o/a pesquisador/a compreenda
que as histórias que narramos dependem de vários fatores, entre eles, o contexto no qual
estamos inseridos e os interlocutores. Nesse sentido, entendemos que as histórias que
contamos e os seus significados vão sendo construídos e reconstruídos ao longo do tempo, a
partir de distintas formas de interpretá-los e construir-lhes sentido.
Partindo do pressuposto de que a investigação narrativa permite a utilização de
diversos instrumentos para a produção dos dados narrativos, elegemos como metodologia o
grupo focal, que se caracteriza como uma técnica de pesquisa qualitativa, muito utilizada
quando se tem como objetivo conhecer “representações, percepções, crenças, hábitos, valores,
restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no trato de uma dada questão
por pessoas que partilham alguns traços em comum”.
38
As discussões no grupo focal são geradas a partir de um assunto específico (foco)
previamente estabelecido pelo/a pesquisador/a, de acordo com os objetivos da pesquisa, e
devem ocorrer de forma dialogada, propiciando a interação de todos os participantes do
grupo. O/a pesquisador/a representa um papel importante no grupo, pois atua como
mediador/a, coordenando as discussões e as atividades, referentes à proposta de produzir e
obter as informações. Para desencadear as discussões, diversos artefatos culturais podem ser
utilizados, tais como, assistir a um filme, escutar uma música, analisar revistas, produzir
painéis, cartazes, desenhos, entre outros, que podem fazer parte do corpus de análise.
35
Michael CONNELLY e Jean CLANDININ, 1995, p. 16.
36
Jorge LARROSA, 2002, p. 70.
37
LARROSA, 1996.
38
Bernardete GATTI, 2005, p. 11.
64
A composição do grupo focal deve obedecer a algumas características comuns aos
participantes de acordo com o propósito da pesquisa, como, por exemplo, relativas a gênero, à
idade, às condições socioeconômicas, ao tipo de trabalho, ao estado civil, à escolaridade, ao
lugar de residência.
Visando a abordar as questões com maior profundidade, é aconselhável que o grupo
seja formado por no mínimo seis e no máximo doze participantes, a fim de possibilitar a
todos/as a manifestação de suas idéias, conceitos, opiniões e sentimentos. Gondim
39
aponta
que a dimensão do grupo depende do nível de envolvimento dos/as participantes com as
temáticas a serem discutidas, pois as pessoas terão mais o que falar quando o assunto for mais
polêmico e/ou mais significativo para o grupo. Por outro lado, ao selecionar um número
pequeno de participantes, o/a pesquisador/a corre o risco de que as pessoas falem pouco, o
que poderia prejudicar as discussões e a dinâmica de trabalho. Portanto, é importante que o/a
pesquisador/a esteja atento/a a esses aspectos no momento de estabelecer o grupo focal.
Neste estudo, o grupo focal constituiu-se a partir do curso “Mulher e Cidadania”,
oferecido às mulheres integrantes da Associação Movimento Solidário Colméia.
Essa Associação é uma sociedade civil que tem como principal objetivo possibilitar o
resgate da cidadania e a melhoria da qualidade de vida das famílias que a integram.
Atualmente compõem a Colméia trinta e seis famílias, num total de cento e setenta pessoas,
vivendo em situação de extrema pobreza, as quais residem no bairro Castelo Branco e
arredores, no município do Rio Grande/RS. A comunidade à qual estão direcionadas as ações
da Colméia é composta por mulheres, homens e crianças que sobrevivem do lixão, catando ali
desde alimentos até roupas, móveis e eletrodomésticos. As necessidades destas pessoas
exigem ações que foram condicionando o perfil da Associação Movimento Solidário Colméia.
O pressuposto para que as famílias participem dos projetos é que os filhos/as em idade escolar
estejam regulamente matriculados e freqüentando a escola. Outro importante objetivo da
Colméia é propiciar situações que proporcionem o auto-sustento dessas famílias. Para atingir
os objetivos, vários projetos são desenvolvidos com mulheres, jovens e crianças, e se
constituem de cursos, oficinas e encontros. Com a Fundação Universidade Federal do Rio
Grande, através do Departamento de Educação e Ciências do Comportamento, foi
implementado o curso “Mulher e Cidadania”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Sexualidade
e Escola, desenvolvido em oito encontros, durante os anos de 2004 e 2005, com duração de
duas horas cada.
39
Sônia GODIM, 2003.
65
Dele participaram vinte mulheres com idades entre 18 e 60 anos, as quais estão em
processo de escolarização (Educação de Jovens e Adultos) e qualificação profissional (cursos
e oficinas com o objetivo de proporcionar o auto-sustento dessas mulheres). As mulheres que
participaram dos encontros são donas-de-casa, mães, com 5 filhos em média, a maioria com
companheiros/esposos e apenas uma delas exerce atividade remunerada. No que se refere à
educação escolarizada, a maioria delas parou de estudar após concluir a e/ou série do
Ensino Fundamental, duas mulheres pararam de estudar na série, uma parou de estudar na
série e duas delas não vivenciaram o processo de escolarização. Tais mulheres apresentam
extrema carência socioeconômica, desconhecem os seus direitos sociais, sofrem ou foram
vítimas de abusos sexuais, violência e maus-tratos por parte dos maridos ou companheiros e,
na maioria de suas famílias, a ocorrência do alcoolismo e tabagismo, entre tantas outras
questões que fazem parte da atual crise sócio-ambiental.
Os encontros do curso foram previamente planejados e organizados pela equipe de
trabalho (coordenadora do curso, mestranda, bolsista de iniciação científica/FAPERGS) que
elaborou questões flexíveis e atividades a fim de gerar as discussões no grupo, em função dos
eixos norteadores do curso, corpo, gênero e sexualidade.
É importante que se preste atenção ao local dos encontros, pois o mesmo deve
favorecer a interação entre os participantes. Nesse sentido, o ambiente precisa ser agradável e
confortável, com o mínimo de ruídos externos, que possibilite trabalhar com as cadeiras
dispostas em círculo, para que todos os/as participantes possam olhar, ver e conhecer.
Também é importante que o local seja de fácil acesso aos/às participantes. Dessa forma, todos
os encontros do curso “Mulher e Cidadania” foram realizados na escola municipal de Ensino
Fundamental João de Oliveira Martins, localizada no bairro Castelo Branco. Nessa escola
estudam os filhos dessas mulheres e também é que elas participam do projeto de Educação
de Jovens e Adultos, desenvolvido em parceria com a Fundação Universidade Federal do Rio
Grande (FURG).
As questões éticas não podem ser esquecidas e merecem atenção especial na utilização
do grupo focal como metodologia: trata-se da não-identificação dos/as participantes no
momento em que os dados narrativos forem apresentados. Para tanto, a fim de preservar os
nomes das participantes do curso, solicitamos que cada uma escolhesse um codinome.
Também, elaboramos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, informando aos/às
participantes os objetivos e procedimentos adotados ao longo dos encontros, esclarecendo os
compromissos que devem ser assumidos por ambas as partes.
66
várias maneiras de se registrarem as interações do grupo, dentre elas, a gravação
em áudio e em vídeo durante as discussões, possibilitando uma análise mais detalhada dos
dados produzidos. Assim, alguns encontros foram filmados e outros momentos, como as
discussões em pequenos grupos foram gravados, a fim de que as falas ficassem registradas, o
que seria difícil obter apenas com a filmagem. Também foram utilizadas outras estratégias
para complementar a produção dos dados narrativos, como a realização de entrevistas
individuais semi-estruturadas e o preenchimento de um questionário, com o objetivo de obter
informações adicionais. As gravações e as entrevistas foram transcritas para posterior análise.
A estratégia de análise compreendeu em “olhar” nas narrativas dessas mulheres – falas,
cartazes, desenhos, ações, expressões – o que elas contam sobre suas vidas, sobre seus corpos,
sobre a sua saúde reprodutiva e sexual.
A seguir, apresentamos algumas análises feitas a partir das narrativas geradas no
contexto do curso Mulher e Cidadania, constituído a partir da metodologia de grupo focal.
4.1.6 Analisando as narrativas das mulheres da Colméia
Este estudo iniciou com a realização do curso “Mulher e Cidadania” para as mulheres
que integram a Colméia. Com ele tínhamos como propósitos: estabelecer um espaço de
discussão e reflexão sobre questões referentes ao corpo, gênero e sexualidade; trabalhar com
as mulheres no sentido de sensibilizá-las para que percebessem a necessidade da melhoria das
suas condições sociais, econômicas, políticas e sanitárias e, ao mesmo tempo, apontar
caminhos possíveis no sentido de lutar por políticas e ações que garantam a igualdade de
gênero, o acesso à educação, à informação, a salários dignos, a condições de trabalho seguro e
às políticas públicas em saúde. Além disso, estimulá-las para que elas mesmas buscassem o
conhecimento necessário ao exercício desses direitos, que incluem a ampla atenção à sua
saúde reprodutora e sexual, à assistência pré-natal, à utilização de contraceptivos voluntários,
seguros e legais, o acesso à informação sexual e à prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis e aos exames preventivos.
O curso funcionou como um espaço narrativo, em que as mulheres vivenciaram um
processo de contar e ouvir histórias a respeito de suas vidas, de suas experiências, do que
pensam em relação ao seu corpo, a sua sexualidade, de suas crenças, mitos, valores, atitudes e
sentimentos, ou seja, um “lugar no qual se constitui ou se transforma a experiência de si”.
40
40
LARROSA, 2002, p. 57.
67
Conforme anunciamos anteriormente, buscamos neste artigo investigar e
compreender a rede de discursos acerca da saúde sexual e reprodutiva das mulheres da
Colméia, com o propósito de compreender em que medida elas vão sendo interpeladas pelos
discursos referentes à Educação em Saúde, em especial as políticas e campanhas direcionadas
ao corpo feminino. As narrativas analisadas a seguir trazem alguns aspectos referentes à saúde
reprodutiva e sexual, às práticas de prevenção e cuidados com o corpo e ao modo como são
significadas e compartilhadas por essas mulheres.
No que se refere à saúde reprodutiva dessas mulheres, observamos que a maioria delas
utiliza o comprimido oral ou fizeram a esterilização feminina, o que podemos verificar nas
seguintes narrativas: Eu tomo pílula, não esqueço de tomar a pílula (Maria); O primeiro foi
normal, e o segundo, o terceiro eu tive que fazer cesária, porque eu ia fazer ligamento, então
eu tinha que fazer cesária (Júlia); Eu tomei uma vez, mas eu menstruava, três, quatro vezes
no mês. O médico mandou eu parar de tomar e disse pra mim: o único método que tem de tu
evitar família é tu usando a camisinha e depois, que eu era casada né, depois conforme
for passando os anos se tu quiser fazer ligamento, e assim mesmo usa camisinha né por causa
das doenças, porque não é só filho hoje em dia (Laura).
De acordo com Arilha,
41
a utilização de métodos contraceptivos têm atingido no Brasil
níveis consideráveis comparados aos dos países desenvolvidos. Assim como ocorreu em
outros países da América Latina, o desenvolvimento econômico e as diversas “intervenções”
do Estado afetaram os padrões reprodutivos no Brasil, especialmente considerando as
mudanças nos padrões ocupacionais das mulheres. Além desses aspectos contribuíram
também a existência de uma ativa rede de organizações não-governamentais voltadas para
ações de planejamento familiar, o desenvolvimento de programas de saúde pelo Ministério da
Saúde, bem como a disseminação de canais de televisão nacionais promovendo a utilização de
anticoncepcionais. Segundo a autora acima citada, a redução da fecundidade fez com que as
taxas passassem da média de 4,5 filhos, na década de oitenta, para 2,5 na década de noventa.
Contudo, a autora adverte que essa redução foi obtida pelo elevado uso da esterilização
feminina e da pílula, utilizados no Brasil, respectivamente por 44% e 41% das mulheres, com
idades entre 15 e 54 anos.
O corpo da mulher encontra-se atravessado por uma rede de estratégias de governo do
seu corpo, da sua sexualidade; nele articulam-se procedimentos direcionados aos fenômenos
da vida como as campanhas de esterilização ou de contracepção. De acordo com Foucault,
42
41
Margareth ARILHA, 2006.
42
FOUCAULT, 2003; 2005.
68
diversas estratégias vão difundir-se no tecido social buscando disciplinar o corpo dos
indivíduos e regular a vida da população. Além das estratégias acima citadas, percebemos em
funcionamento o discurso médico, que ao investir no corpo da mulher, gerencia, por exemplo,
o número de filhos que uma mãe pode ou deve ter. Nessa perspectiva, entendemos que a
biopolítica vem atuando no controle da natalidade, que, através de diversas ações como o
incentivo ao uso dos métodos contraceptivos, principalmente o comprimido oral e a camisinha
ou a adesão a métodos irreversíveis como a esterilização feminina busca controlar e
governar os corpos femininos.
Também é pertinente, considerar que, a partir da perspectiva teórica que adotamos
neste estudo, dados estatísticos, como os acima citados, não refletem seguramente a realidade,
mas estão implicados com sua produção, uma vez que é através desses dados que algumas
estratégias e mecanismos de controle são desenvolvidos.
43
Dentre eles, destacamos o
Planejamento Familiar, implementado pelo Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher PAISM,
44
lançado na década de 80 pelo Ministério da Saúde, que incentivava o uso
e propiciava a oferta de métodos contraceptivos aliados ao acompanhamento médico como
garantia da efetividade do programa.
Ainda no que se refere ao programa de Planejamento Familiar, de acordo com dados
publicados pelo Ministério da Saúde,
45
desde agosto de 2005 novas estratégias vêm sendo
adotadas para a efetividade do programa, que resumidamente apontam: a compra de 100%
dos métodos anticoncepcionais para as usuárias do SUS e a disponibilização dos
contraceptivos a serem efetivamente encontrados nas unidades básicas de saúde e nas equipes
do Programa Saúde da Família; e ainda a ampliação e o acesso aos procedimentos de
laqueadura e vasectomia no SUS. Conforme mostram os dados publicados pelo Ministério da
Saúde
46
de julho a dezembro de 2005, foram distribuídas 12 milhões de cartelas de pílula
combinada, 787 mil cartelas de minipílula (que podem ser usadas por mulheres em fase de
amamentação) e 311 mil ampolas de anticoncepcional injetável mensal e foram realizadas
16.842 laqueaduras e 6.298 vasectomias nas aproximadamente 570 instituições de saúde
habilitadas a realizar estas cirurgias pelo SUS, de acordo com a Lei do Planejamento Familiar.
Um outro mecanismo dessa tecnologia de poder está presente hoje de uma forma
intensificada na mídia, trata-se das campanhas governamentais destinadas ao controle e à
prevenção do HIV/AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, que enfatizam, entre
43
FOUCAULT, 2005.
44
BRASIL, 1984.
45
BRASIL, 2006a.
46
BRASIL, 2006a.
69
outros aspectos, a utilização da camisinha, geralmente a masculina, em todas as relações
sexuais.
Com relação ao uso da camisinha masculina nas relações sexuais com seus parceiros,
algumas mulheres manifestaram que não utilizam o preservativo. O não-uso da camisinha
aparece justificado, ora pela insatisfação do companheiro em utilizá-la, ora por não ser
necessário nas práticas sexuais estáveis. As falas das mulheres sugerem que elas se encontram
em condições submissas em relação ao parceiro, e que não conseguem se impor em suas
relações afetivas e sexuais, ficando a critério do parceiro determinar a utilização do
preservativo. Isso é possível perceber nas seguintes falas, nas quais as mulheres destacam os
argumentos dos homens, que se encontram associados ao prazer corporal: às vezes, não é
sempre, ele não gosta muito. Ele diz que é ruim, que não sente prazer, ta eu deixo, tudo
bem (Fernanda); Nem vou usar, só se eu usar a feminina porque ele não usa de jeito nenhum.
Ele diz que tem horror daquilo. Ele diz que não vai andar ensacado com aquele troço (risos)
(Claudia); Não nunca usou assim, dizia que não gostava, que sentia como se tivesse sufocado
(risos). É brincando ele falou assim entendesse? Pra que, se eu não ando com ninguém? É só
nós. (fala do marido) Mas eu tentei explicar um monte de vez pra ele... (Paula).
Essas falas sobre os motivos que pretendem justificar a não utilização do preservativo
masculino nas relações sexuais tornam possível perceber elementos das relações de poder que
atravessam as práticas sociais, ou seja, as formas de resistência que essas relações de poder
produzem. Para Foucault,
47
“não relação de poder sem resistência, sem escapatória ou
fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo
virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se superpor”. Assim percebemos
nas falas dessas mulheres a resistência dos seus parceiros para o exercício de práticas
consideradas “ideais”, que nos são impostas na sociedade.
Na narrativa que segue, a mulher toma a iniciativa de propor ao parceiro a introdução
do preservativo na relação, como refere:
ele disse: ai eu não gosto disso aí. Aí eu disse pra ele
vai ter que ser assim, ele usou (Júlia). Ou ainda, pede que, pelo menos na rua, com
outras mulheres, ele use o preservativo, para não trazer nenhuma doença pra dentro de casa,
como conta outra: Uso com o meu parceiro, porque eu tenho medo que ele anda pra e pra
cá, apesar de eu saber que ele diz que se cuida né, que ele carrega camisinha que eu mando
ele carregar e usar... (Gabriela). Nesse sentido, podemos perceber que essas mulheres têm
sido interpeladas pelos discursos do “sexo seguro” e da “negociação do sexo seguro”, que têm
47
FOUCAULT, 1995b, p. 248.
70
sido enfatizados com freqüência nas campanhas de prevenção às DST e ao HIV/AIDS.
48
Tais
campanhas endereçam discursos aos sujeitos, especialmente às mulheres, com um forte apelo
ao uso da camisinha masculina nas relações sexuais, mostrando a mulher como condutora do
processo de negociação, na tentativa de incentivar que as mulheres se tornem sujeitos
disciplinados e autônomos. Assim, consideramos que as integrantes da Colméia estão sendo
convocadas pelos discursos preventivos das DST e do HIV/AIDS na direção de que são
responsáveis pela sua própria proteção e pela proteção do parceiro, assim como também a
noção de que os homens por “natureza” traem.
Na vida cotidiana dessas mulheres, a essencialização de que o homem, por natureza, é
dotado de um impulso sexual que não consegue controlar, parece funcionar como um
mecanismo que explica a infidelidade masculina.
49
As narrativas apresentadas a seguir
ilustram esses entendimentos: me cuido porque homem é homem né. Porque homem a
gente não sabe pode andar com outras mulheres, vai pro serviço e a gente não sabe o que
fazem na rua, a gente fica em casa cuidando os filhos né, eu uso a camisinha. Que homem
é homem (Letícia); Eu me cuido por causa da sífilis, das outras coisas todas, ele viaja, ele
sai. Eu sei se ele anda com alguém? Eu sei se ele vai me trazer alguma coisa? (Gabriela).
De acordo com Oliveira et al,
50
a partir da constatação da feminização da AIDS a
negociação sexual passa a ter uma maior importância na proteção das mulheres contra a
infecção pelo HIV/AIDS, como estratégia para a diminuição da transmissão heterossexual.
Segundo os autores, “nas análises das causas do avanço da epidemia entre mulheres enfatiza-
se, cada vez mais, que tal avanço tem a ver com as desigualdades de poder que,
tradicionalmente, organizam as relações mulheres/homens em todas as dimensões do
social”.
51
Nesse contexto, uma das questões usualmente enfocadas, que assume nova
importância a partir da percepção de que as mulheres são vulneráveis ao vírus, é a dificuldade
que elas têm de negociar com seus parceiros a adoção de medidas preventivas, pois a
camisinha masculina é um método controlado pelos homens. Tal fator levou ao
reposicionamento das mulheres no contexto da prevenção ao HIV/AIDS, no sentido de que é
preciso promover a capacitação das mulheres para a negociação do sexo seguro, capacitação
que tem sido, freqüentemente, buscada através das campanhas governamentais direcionadas à
48
Dora OLIVEIRA et al, 2004.
49
MEYER et al, 2004.
50
Oliveira et al, 2004.
51
Oliveira et al, 2004, p. 3.
71
saúde sexual e reprodutiva da mulher, veiculadas em diversas instâncias, entre elas a
televisão.
Nessa direção, Santos,
52
ao analisar um conjunto de anúncios televisivos das
campanhas oficiais de prevenção ao HIV/AIDS apresentados pelo Ministério da Saúde, no
período de 1986 a 2000, estabeleceu que entre os anos de 1994 e 2000, a “descoberta” das
mulheres como um dos segmentos da população em que mais crescia a infecção pelo HIV
teve como conseqüência um maior número de anúncios de prevenção voltados às mulheres,
enfatizando a auto-estima e o empowerment feminino. Essas campanhas de prevenção operam
com “representações que posicionam e definem ações de promoção de saúde e prevenção de
doenças como atribuições femininas, as quais são produzidas ou assumidas e reforçadas pelos
próprios conhecimentos e políticas que norteiam e legitimam tais ações”.
53
No contexto
educativo dessas campanhas, o fortalecimento da auto-estima das mulheres e a capacidade de
negociação do uso do preservativo em todas as relações sexuais, geralmente o masculino, são
estratégias importantes para garantir a efetividade dessas campanhas.
Ainda no que se refere à prevenção das DST e do HIV/AIDS através do uso da
camisinha, destacamos, como ilustração, a análise de um diálogo que emergiu no grupo com
relação ao uso da camisinha feminina, no qual as mulheres argumentaram que a camisinha
feminina “machuca” o corpo da mulher ou que não sentiam prazer ao usá-la.
Joana: A camisinha da mulher é mais diferente de usar...
Pesquisadora: Tu usa?
Joana: Eu uso.
Pesquisadora: E tu gosta?
Joana: Sinceramente não.
Pesquisadora: Por que tu não gosta?
Joana: Ah, porque... Eu não sinto vontade de nada...
Pesquisadora: Ela não te dá prazer?
Joana: É isso aí.
Pesquisadora: Alguém aqui que já usou também acha isso?
Paula: Eu dei pra minha irmã usar e ela não gostou, ela disse que machuca.
Pesquisadora: E tu nunca tentaste usar a camisinha feminina?
Maria: Não porque eu não sei, todo mundo fala que dói né...
Pesquisadora: E a feminina tu já tentaste usar?
Letícia: Ah já usei, mas não gostei. Preferia mais essas…
Pesquisadora: Por que tu não gostaste?
Letícia: Ah porque machucou. Só essa aí (referindo-se à camisinha feminina) eu não
gostei, eu porque me machucou né, e ele não gostou também.
52
Luis Henrique SANTOS, 2002.
53
MEYER et al, 2004, p. 57.
72
Essas narrativas nos levam a pensar que, na nossa cultura, desde muito cedo, os
sujeitos aprendem a vergonha, a culpa, o que é permitido ou proibido, quem pode fazer o quê,
o que é permitido mostrar ou esconder; experimentam a censura, o controle e a vigilância.
Aprendem que as questões da sexualidade são assuntos privados e que conhecer seu corpo
não é permitido, aspectos que são importantes para que a mulher consiga introduzir a
camisinha feminina na relação sexual. Nesse sentido, as mulheres apresentam determinados
comportamentos, modos de perceber a si e de agir que parecem ter sido “gravados” em suas
histórias pessoais. Nessa direção, diversas instâncias sociais família, escola, mídia, igreja,
hospital encontram-se implicadas na produção dos sujeitos, governando os corpos e a vida
das pessoas. Tais instâncias exercem uma pedagogia, que produz significados, veicula
saberes, transmite valores que interagem com os indivíduos e coloca em ação várias
estratégias de governo da população; essas ações prosseguem e se articulam as estratégias de
autodisciplinamento e autogoverno que os sujeitos exercem sobre si mesmos.
54
Outra questão importante que foi abordada com as mulheres diz respeito à realização
do exame que previne o câncer de colo uterino. Das vinte mulheres que participaram do curso,
apenas quatro delas disseram ter feito pelo menos uma vez o exame. Quando comentávamos
no grupo acerca dos exames preventivos e os sentimentos associados aos mesmos e aos seus
corpos, emergiram as seguintes narrativas: Não. Vou ter que fazer, ta marcado já. To com
pânico de fazer porque umas dizem que é horrível. Outras dizem que não, não sei (Claudia);
Eu não, eu tenho medo (Helena); Ah, eu já fiz e não gostei, eu até tava dizendo pra ela que eu
tenho que fazer de novo, mas eu to pensando. Dói muito guria!
(Maria); Eu nunca fiz nenhum
exame. Tinha que fazer o colo do útero, não fiz também, não fiz nenhum desses (Fernanda);
Eu tinha vergonha, a maioria aqui tem vergonha. Eu não sei explicar, era vergonha mesmo.
Podiam até dizer: ah com um monte de filho que ela tem e a idade que ela tem, ela ter
vergonha. Mas até o médico quando eu tava grávida dos meus filhos que eu tinha que fazer o
exame que chamam de toque né, eu tinha vergonha igual (risos) né, a gente não ta
acostumada sei lá... (Paula). O papanicolau é um dos mais importantes exames de prevenção
das doenças relacionadas ao sistema reprodutor feminino, além de ser simples e acessível.
Porém, essas narrativas demonstram que muitas mulheres ainda resistem em fazer esse
exame, por medo, vergonha, desconhecimento do próprio corpo, falta de informações, entre
outros motivos que as deixam vulneráveis e suscetíveis, não somente ao câncer do colo do
útero, como também às DST e ao HIV/AIDS.
54
FOUCAULT, 2003, 2005, 2006b.
73
Nessa perspectiva, entendemos que o papanicolau constitui-se como uma estratégia
política de controle da saúde, cujas ações pautadas em um saber-poder científico pretende
prevenir e controlar possíveis doenças da mulher vista como universal. As estratégias
lançadas pelas políticas públicas em saúde objetivam que o sujeito seja responsável pela sua
saúde, tomando a iniciativa de realizar os exames preventivos, gerindo assim a sua própria
vida. No entanto, ao desconsiderarem os sentimentos e os motivos particulares das pessoas,
deixam a “margem” um número significativo de mulheres, neste caso.
4.1.7 Tecendo algumas considerações
Transitar nas narrativas dessas mulheres implica entender que os comportamentos e as
atitudes delas e de seus parceiros não podem ser compreendidos fora dos contextos sociais e
culturais em que estão inseridos.
Entendemos que, os discursos produzidos pela Educação em Saúde educam,
disciplinam, regulam e conformam os corpos das mulheres de acordo com as “normas”
estabelecidas na sociedade. Tais discursos participam da produção dos corpos femininos,
daquilo que somos e de como nos reconhecemos como pessoas.
Dentre as instâncias que atuam no governo da população e no disciplinamento dos
corpos dos indivíduos, destacamos as recorrentes políticas e campanhas voltadas à prevenção
de doenças e promoção da saúde, em especial aquelas destinadas ao corpo da mulher. Essas
políticas e campanhas, através dos discursos biológico e médico direcionados ao corpo os
conhecimentos anatomo-fisiológicos, os mecanismos das doenças e as formas de prevenção e
de controle –, pretendem assegurar proteção contra as DST e o HIV/AIDS, melhorar a escolha
dos métodos contraceptivos, diminuir a taxa de natalidade, disciplinar os indivíduos, etc.,
regulando a vida das pessoas e, assim, regulando o corpo social. Tais políticas e campanhas se
utilizam de dados e discursos médicos para prescrever comportamentos estabelecidos como
“ideais”. Essas instâncias, enquanto estratégias pedagógicas, apresentam comportamentos que
devem ser seguidos pela população e que interferem nas escolhas pessoais, estabelecendo
como mulheres e homens podem ou devem ser para viver suas vidas de forma mais saudável.
Essas instâncias, além de ensinarem como se prevenir das DST e do HIV/AIDS, também
encontram-se implicadas na produção das identidades de gênero e sexuais.
Nessa perspectiva, esses espaços parecem operar com o pressuposto de que todas as
mulheres são iguais, o que significa a existência de uma mulher “universal”, a quem cabe a
iniciativa e a responsabilidade pela negociação do uso do preservativo, bem como a
74
responsabilidade em proteger a saúde do parceiro, dos filhos e delas próprias, representações
que os discursos de saúde, entre outros, produzem, reforçam e colocam em circulação. No
contexto desta discussão, entendemos que ser mulher se define não de modo relacional ao
ser homem, em um determinado contexto histórico, cultural e social, mas também em relação
às diferentes possibilidades de se estabelecer e viver o corpo e a sexualidade nos mesmos
contextos.
55
Portanto, precisamos, desestabilizar e desconstruir a existência de uma “natureza” ou
“essência” que conduza a determinados tipos de comportamentos ou preferências por essas
mulheres e por seus parceiros, ressaltando o quanto de investimento, na nossa sociedade,
para que tais comportamentos se efetivem como uma prática comum e aceitável. Assim,
consideramos que é nessa multiplicidade de comportamentos, desejos, sentimentos e
preferências que as campanhas e os programas em Educação em Saúde devem ser pensados,
para que as mudanças sejam efetivadas.
Na cultura transitam relações de poder que produzem os significados daquilo que será
ou não relevante culturalmente para os grupos sociais. Contudo, cabe ressaltar que “nem a
cultura é um ente abstrato a nos governar nem somos meros receptáculos a sucumbir às
diferentes ações que sobre nós se operam”.
56
Assim, inferimos que os discursos veiculados
pelas campanhas de prevenção em saúde, entre outros, não atuam meramente como instâncias
a interpelar e a governar os corpos das mulheres, pois elas reagem a eles, aceitam, negociam,
resistem, transgridem...
Para finalizar, acreditamos que realizar pesquisas na perspectiva de gênero pode
contribuir com outras formas de compreender o corpo e a vida, não somente no sentido de
discutir e (re)pensar nossa inserção social como mulheres e homens, mas no sentido de que
pode contribuir, para a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária, no que se
refere ao gênero em todas as suas relações.
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55
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56
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75
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78
4.2 CORPOS EM EVIDÊNCIA: PROBLEMATIZANDO REPRESENTAÇÕES DE
CORPOS FEMININOS
57
Revista Labrys Estudos Feministas, n. 10, jul./dez. de 2006.
58
4.2.1 Resumo
Neste artigo, problematizamos as representações de corpo feminino das mulheres da
Associação Movimento Solidário Colméia. Tais representações são produzidas por inúmeros
discursos de beleza, saúde, feminilidade, moda, gênero, entre outros. O entendimento de
corpo como superfície de inscrição de acontecimentos biológicos, sociais e culturais tem nos
possibilitado pensar e discutir algumas questões, tais como gênero, sexualidade, mídia,
beleza, saúde e moda
. Tal entendimento nos oportuniza pensar o corpo como construção
híbrida biológica, histórica e cultural. Nesse estudo, estabelecemos algumas conexões com
os Estudos Culturais e de Gênero, nas suas vertentes pós-estruturalistas.
Palavras-chave: corpo feminino, representações, pedagogias culturais.
4.2.2 Apresentação
Neste artigo, buscamos problematizar o corpo como construção a partir da intersecção
entre o biológico e o cultural o que nos é dado pelo legado biológico, e o que nos é dado
como cultural (Santos, 2002). É nessa direção, compreendendo o corpo como híbrido, que
empreendemos a escrita deste texto, no sentido de problematizar alguns discursos e práticas
socioculturais que transitam no tecido social, produzindo e (re)significando o corpo. Nesse
sentido, temos analisado as narrativas
59
das mulheres que integram a Associação Movimento
Solidário Colméia
60
, no município do Rio Grande-RS, produzidas durante os encontros do
57
Este artigo mantém as normas exigidas pela revista para a publicação.
58
Disponível no site: www.unb.br/ih/his/gefem.
59
Estamos entendendo a narrativa como uma modalidade discursiva em que as pessoas constroem os sentidos
tanto de si quanto de suas experiências no processo de contar e ouvir histórias (Larrosa, 1994).
60
A Associação Movimento Solidário Colméia tem como principal objetivo possibilitar o resgate da cidadania e
a melhoria da qualidade de vida das famílias que integram essa Associação. Essas famílias residem no bairro
Castelo Branco, vivendo em situação de extrema pobreza, no município do Rio Grande-RS-Brasil.
79
curso de extensão Mulher e Cidadania
61
. O referido curso utilizou-se da metodologia de grupo
focal (Gatti, 2005) com o objetivo de conhecer e problematizar, a partir da interação grupal,
representações, experiências, valores, hábitos, atitudes e crenças das mulheres da Colméia
acerca do corpo, gênero e sexualidade. Dele participaram vinte mulheres, com idades entre 18
e 60 anos, que estavam em processo de escolarização (Educação de Jovens e Adultos) e
qualificação profissional. As mulheres que participaram dos encontros são donas-de-casa, a
maioria com companheiros/esposos e com 5 filhos em média. Tais mulheres apresentam
extrema carência socioeconômica, sofrem ou sofreram abusos sexuais e maus tratos por parte
dos maridos ou companheiros e, na maioria de suas famílias, há a ocorrência do alcoolismo e
tabagismo, entre tantas outras questões.
O curso funcionou como um espaço narrativo, em que as mulheres participaram de um
processo de contar e ouvir histórias a respeito de suas vidas, de suas experiências, do que
pensam em relação aos seus corpos, à sua sexualidade, de suas crenças, conceitos, mitos,
valores e atitudes, ou seja, um espaço no qual se aprende ou se transforma a experiência de si
(Larrosa, 1994). Cabe destacar que os encontros do curso Mulher e Cidadania foram gravados
em fitas VHS que foram transcritas e analisadas. Para tanto, elaboramos um Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, informando às participantes os objetivos e procedimentos
adotados ao longo dos encontros, esclarecendo os compromissos a serem assumidos por
ambas as partes. A estratégia de análise consistiu em examinar as narrativas dessas mulheres –
falas, cartazes, desenhos o que elas contam sobre suas vidas, sobre suas relações familiares
e de gênero, o que pensam sobre seus corpos e sobre sua sexualidade.
Organizamos a escrita deste texto em dois momentos. Primeiramente, buscamos
discutir o corpo como invenção processada historicamente no âmbito de diversas práticas
culturais e sociais, estabelecendo conexões com os Estudos Culturais
62
e de Gênero
63
, pelo
viés de suas vertentes pós-estruturalistas. A seguir, focalizamos uma das atividades realizadas
com as mulheres da Colméia, buscando analisar as representações de corpo feminino dessas
61
Este curso foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola, da Fundação Universidade Federal do
Rio Grande/FURG e teve como objetivo oportunizar espaços de reflexão e discussão acerca de temáticas que
envolvem corpo, gênero e sexualidade.
62
Os Estudos Culturais constituem-se em um campo de teorização, investigação e intervenção que estuda os
aspectos culturais da sociedade. Sobre este tema, ver: Silva, 2004; Costa, 2004; Veiga-Neto, 2004.
63
Neste estudo, estabelecemos conexões com os Estudos de Gênero, pelo viés de suas vertentes pós-
estruturalistas. “As abordagens feministas pós-estruturalistas se afastam daquelas vertentes que tratam o corpo
como uma entidade biológica universal (apresentada como origem das diferenças entre homens e mulheres, ou
como superfície sobre a qual a cultura opera para produzir desigualdades) para teorizá-lo como um construto
sociocultural e lingüístico, produto e efeito de relações de poder” (Meyer, 2003a:16). Para discussões sobre esse
tema, ver: Louro, 2004; Meyer, 2003a; 2003b; Nicholson, 2000; Scott, 1995.
80
mulheres a fim de problematizar os discursos que inscrevem o corpo e que circulam em
diversas instâncias socioculturais.
4.2.3 Corpo: órgãos, sexualidade, beleza, saúde, geração, adornos...
Entender o corpo como “superfície de inscrição dos acontecimentos” biológicos,
sociais e culturais têm nos possibilitado pensar e discutir muitas questões que estão presentes
na nossa sociedade, tais como gênero, sexualidade, mídia, beleza, saúde, moda, entre outros
(Foucault, 2006:22)
. Tal entendimento nos oportuniza pensar e discutir o corpo como
construção híbrida – biológica, cultural e histórica.
Para Goellner (2003), não são as características biológicas que definem o corpo, mas,
fundamentalmente, os significados construídos no contexto cultural e social.
Um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do
que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o
corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as
intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as
máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os
silêncios que por ele falam, os vestígios que nele se exibem, a educação
de seus gestos... enfim, é um sem limite de possibilidades sempre
reinventadas e a serem descobertas (idem:29).
O corpo, portanto, adquire sentido socialmente. Assim, as inscrições de gênero e
sexuais no corpo são feitas, sempre no âmbito de uma determinada cultura e, logo, com as
marcas dessa cultura (Louro, 2001). Nesse sentido, passamos a compreender o corpo como
construção, sobre a qual são inscritas diferentes marcas em diversos contextos culturais,
tempos, espaços, grupos sociais, étnicos, raciais, entre outros. O corpo, assim entendido, não é
algo dado a priori, “como se ele fosse dotado de essência(s) – biológica, histórica e/ou
transcendental” (Souza, 2001:120-121).
O corpo é temporário, mutável e transitório. “O corpo se altera com a passagem do
tempo, com a doença, com mudanças de hábitos alimentares e de vida, com possibilidades
distintas de prazer ou com novas formas de intervenção médica e tecnológica” (Louro,
2001:14). O corpo está continuamente sendo reinventado e alterado de acordo com as
inúmeras intervenções e opções presentes em cada cultura como, por exemplo, os produtos e
serviços destinados ao corpo, ao seu cuidado, ao seu embelezamento, a sua saúde, como
também, ao seu disciplinamento e governo.
No contexto desta discussão, cabe referir o que se entende por cultura, uma vez que o
corpo é significado na e pela cultura. Na perspectiva dos Estudos Culturais, a cultura “tem a
81
ver com a produção e o intercâmbio de significados – o ‘dar e receber de significados’ – entre
os membros de uma sociedade ou grupo” (Hall, 1997:2). Para Silva (2004:133-134), a cultura
é “um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em
posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais
ampla”.
Tais significados não são constantes e fixos, nem preexistentes eles são fluidos,
múltiplos, transitórios e incertos (Hall, 1997; Silva, 2004), sendo produzidos por diversas
instâncias sociais família, mídia, escola, igreja, hospital e campos de saberes biologia,
psicologia, medicina, pedagogia, por exemplo – e circulam através de diferentes processos ou
práticas culturais.
Essas instâncias e saberes desenvolvem determinadas “pedagogias culturais”
(Steinberg, 1997) que produzem significados, veiculam saberes, transmitem valores que
interpelam os indivíduos. Nessa perspectiva, existe pedagogia em qualquer lugar/tempo em
que se ensinem aos sujeitos modos de ser, de pensar, de agir, de consumir, de comer, de
vestir, de falar, etc., ou seja, onde se ensinem formas de estar no mundo e de relacionar-se
com ele. Atualmente, os meios de comunicação de massa (jornais, revistas, rádio, televisão,
etc.) constituem-se em importantes pedagogias culturais. Esses artefatos culturais têm o poder
de nomear, classificar, transformar e definir o corpo, estabelecer, por exemplo, o que é
considerado um corpo bonito, jovem, saudável, moderno e feminino (Goellner, 2003).
Contudo, as representações de beleza, juventude, saúde, entre outras não são universais,
nem mesmo fixas, são sempre provisórias, instáveis e variam conforme o local, o tempo, o
contexto onde o corpo transita, vive, se expressa, se produz e é produzido.
Neste texto, centramos a discussão em torno das representações culturais de corpo
(re)produzidas e (re)significadas em diversos espaços sociais e culturais. Portanto, é
importante destacar o que estamos entendendo por representação. Na perspectiva dos Estudos
Culturais, em suas vertentes pós-estruturalistas, as representações não espelham a realidade,
ou seja, o mundo “real” tal como ele é em sua “essência”, mas sim são construídas
discursivamente, a partir de redes de significados, instituídos e colocados em circulação
através das linguagens – sons, palavras escritas, linguagem oral, imagens eletrônicas, imagens
impressas, notas musicais, objetos, gestos, expressões e implicam relações de poder
64
(Hall,
1997). Nesse sentido, a maneira como falamos das coisas não somente fala sobre elas, mas as
64
Utilizamos o conceito de poder num sentido foucaultiano, poder não como algo que se detém, não como algo
fixo, nem como partindo de um centro, mas como uma relação que se exerce, um poder “capilar” que está
infiltrado e fluido no tecido social (Foucault, 2006).
82
produz. Portanto, devemos prestar atenção nas formas como o corpo tem sido representado
nas diversas instâncias, pois essas representações constituem/produzem as identidades e as
diferenças, posicionando os sujeitos.
Por esse viés, é a produção de significados por meio da linguagem em torno de
diversos marcadores sociais, como gênero, classe, sexualidade, aparência física, etnia,
geração, que vai constituir as identidades. Para Hall, o sujeito é “composto não de uma única,
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (2005:12). Os
sujeitos são muitas coisas ao mesmo tempo, possuem diversas identidades, que não são fixas,
essenciais ou permanentes, como, por exemplo, sua identidade de gênero, sexual, racial,
religiosa, profissional, de classe social, de mãe/pai, filha/o, esposa/o, entre outras. Segundo
Hall, na medida em que os sistemas de significação e representações culturais são produzidos
e transformados, “somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos
temporariamente” (idem:13). Nesse sentido, essas múltiplas identidades constituem os
sujeitos, na medida em que esses vão sendo interpelados e posicionados a partir de diferentes
situações e discursos que circulam nos diversos espaços sociais. Louro destaca:
Reconhecer-se numa identidade supõe, pois, responder
afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de
pertencimento a um grupo social de referência. Nada de simples
ou de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem
cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até
contraditórias. [...] Essas muitas identidades sociais podem ser,
também, provisoriamente atraentes e, depois, nos parecem
descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas.
Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes (2001:12).
Além disso, é interessante salientar que as identidades são construídas por meio da
atribuição de diferenças marcadas por relações de poder. Para Silva (2005), a diferença é
estabelecida por processos lingüísticos e discursivos no interior de uma determinada cultura,
em um determinado contexto histórico; do mesmo modo, a significação das diferenças
também pode variar de acordo com a sociedade. A diferença é entendida de forma relacional,
a partir do reconhecimento do “outro”, daquele ou daquela que não partilha dos atributos que
possuímos. De acordo com Louro (2001:15), as sociedades “constroem os contornos
demarcadores das fronteiras entre aqueles que representam a norma (que estão em
consonância com seus padrões culturais) e aqueles que ficam fora dela, às suas margens”.
Sabemos que, na nossa sociedade, a norma estabelecida e colocada como referência com
relação ao corpo, refere-se ao corpo magro, jovem, saudável, belo e moderno. Assim, aqueles
83
e aquelas que não compartilham desses atributos têm sido nomeados e nomeadas como
“diferentes”
65
.
Considerando as proposições apresentadas até aqui acerca de alguns processos de
construção do corpo e da identidade é que buscamos discutir, a seguir, as representações de
corpo feminino em trabalho desenvolvido junto às mulheres da Colméia.
4.2.4 Problematizando as representações de corpo feminino
Dentre as muitas atividades desenvolvidas ao longo dos encontros do curso Mulher e
Cidadania, passamos, neste momento, a “olhar”, narrar e pensar a respeito da atividade
denominada
“Representando os corpos” realizada durante um dos encontros com as
mulheres da Colméia. Com essa atividade, tínhamos como objetivo conhecer e problematizar
as representações de corpo feminino na perspectiva dessas mulheres. Para tanto, propusemos
às mulheres que confeccionassem painéis a partir de colagem de imagens de corpos femininos
com os quais se identificassem
66
.
Reportando-nos ao momento inicial da atividade, relembramos os movimentos
produzidos: a escolha das revistas e jornais, o folhar das páginas desses artefatos à procura de
corpos significativos para recortar, os murmurinhos e os comentários que as imagens e as
revistas suscitavam. Após um tempo considerável de interação com as revistas e os jornais,
iniciou-se a produção dos painéis. Pouco a pouco, muitos corpos em diferentes situações
começaram a surgir. Risos, muitas conversas paralelas e discussões; naquele momento de
colagem das imagens as justificativas das escolhas começaram a acontecer. Concluídas as
colagens, fixamos os painéis na parede para que todas pudessem visualizar os corpos ali
apresentados. Silêncio... Todas observaram atentamente as imagens que ali estavam dispostas.
Corpos magros, altos, felizes, sorridentes, jovens, expressivos, com feições delicadas, com
cabelos lisos, em pose sensual, corpo despido, famoso, inserido na família, no grupo de
amigos, em relações afetivas, caminhando na praia, nas passarelas da moda, usando roupas da
moda, enfim, no cotidiano. Corpos que narram uma história “imposta” por uma determinada
cultura e que interpelam essas mulheres produzindo identidades.
Esses corpos que se tornaram visíveis nos levaram a pensar no modelo de corpo que
está em “evidência” na nossa cultura: corpos jovens, ativos, magros, “sarados”, bonitos,
65
Nesse estudo, não estamos tomando diferença e desigualdade como sinônimos, pois entendemos que não
necessariamente o reconhecimento da diferença produz desigualdade.
66
Para a realização dessa atividade disponibilizamos material para a produção dos painéis, como revistas e
jornais de circulação nacional, papel pardo, cola e tesoura.
84
felizes... Tais representações nos levam a pensar que somos constantemente “bombardeadas”
por informações que nos chegam principalmente através dos meios de comunicação de massa,
os quais veiculam significados que representam os corpos considerados “perfeitos”, que
atendem aos “padrões” e aos novos estilos de vida impostos pela sociedade de consumo.
Nessa direção, Souza argumenta que as diversas tecnologias/dispositivos as imagens, os
sons, os textos, as cores – utilizadas pelos meios de comunicação de massa “vêm regulando e
governando as maneiras das pessoas pensarem e atuarem em relação aos seus corpos, às suas
vidas e aos/às demais” (2001:131). Nesse sentido, as representações de corpo feminino
veiculadas em revistas e jornais, produzem e instituem certos significados com os quais as
mulheres da Colméia aprendem a se identificar, constituindo-se em artefatos culturais
importantes para a regulação social.
Nessa perspectiva, consideramos importante pensar e analisar as representações de
corpo que circulam em diferentes espaços sociais, na tentativa de conhecer os efeitos de
representações hegemônicas de corpo feminino engendradas em relações de poder, como
interpelam essas mulheres, produzindo o desejo de querer ser de determinada maneira, se
reconhecer e se pensar de determinado jeito e ter vontade de “consumir” determinados
produtos. Nessa direção, entendemos que tais espaços estão implicados na produção das
identidades, na fabricação de determinados tipos de sujeito, (con)formando e governando os
corpos de acordo com os códigos, regras e convenções estabelecidos social e culturalmente.
Feitas essas breves considerações a respeito dos significados que cada corpo escolhido
pelas mulheres da Colméia suscitou, retomamos o momento em que cada uma das
participantes do grupo justificava a sua escolha. Quem quer começar? Olhares... Quem vai
falar primeiro... Neste momento interviemos dirigindo a pergunta para uma das participantes
do grupo. Pesquisadora - O que tu escolheste? Qual é a tua imagem ou representação de
corpo? Solene
67
, então responde, iniciando o diálogo: Eu recortei o corpo e depois botei
outra cabeça. E por que tu botaste outra cabeça? Porque essa daí só tinha o corpo, não tinha
cabeça... P - Por que tu achas que essa mulher se identifica contigo, tu te identificas com ela?
Ah, ela é bonita de corpo, acho que é só... a altura, o cabelo, o rosto... P - Tu te identificaste
pelos traços físicos? Ah! Achei bonita. E o diálogo continua... P - Por que tu escolheste essa,
Raquel? Não sei, eu achei essa perfeita, o corpo dela... o modo de se vestir eu também gostei.
P - Que mais que tinha nela que tu te interessaste, que tu colocaste como se fosse tu? O
cabelo... eu queria ter o cabelo assim. P - E por que tu não tens o cabelo comprido? Ah, não
67
Os nomes apresentados nas narrativas são codinomes que foram escolhidos por cada uma das participantes.
Adotamos essa estratégia a fim de preservar os nomes das participantes do curso.
85
sei, eu tinha cabelo comprido mais daí eu comecei a cortar e estraguei o meu cabelo, ele
cresce pra cima... Risos na sala. E Cláudia intervém dizendo: É bom alisar, alisa menina!
Raquel faz gesto de que é preciso dinheiro para alisar o cabelo. Fernanda continua
justificando a sua escolha:
Eu gosto de tá assim fresquinha. Eu gostei do corpo dela, é
bonito... a roupa, é porque eu gosto muito de tá assim, e os cabelos, eu gostei do cabelo dela,
eu queria ter o cabelo assim... P - E por que tu não corta o teu cabelo assim? Fernanda
justifica: Não, porque eu queria alisar ele também, porque se não fica feio. Na seqüência
Adriana justifica sua escolha:
Ah, eu sou aquela de vermelhinho lá. Eu gostei por causa do
jeito do cabelo dela, eu vou deixar o meu cabelo crescer e eu quero fazer um corte assim, um
corte pantera.
Algumas dessas narrativas que emergiram criam condições para pensarmos e
discutirmos o cabelo como um marca identitária. De acordo com Louro (2000:61), “as marcas
devem nos ‘falar’ dos sujeitos. Esperamos que elas nos indiquem sem ambigüidade suas
identidades”. Assim, bastaria ler ou interpretar as marcas corporais para deduzir as
identidades. Por vezes, a identificação não se apenas pela cor da pele, mas também pelo
cabelo crespo que muitas vezes é visto como marca de inferioridade pelo próprio sujeito
(Gomes, 2003). Nesse sentido, muitas mulheres utilizam diversas estratégias com a finalidade
de atingir a norma estabelecida, no caso das mulheres da Colméia deixar o cabelo crescer,
alisar, utilizar produtos de beleza, etc. Entretanto, entendemos que as marcas corporais assim
como as identidades não são estáveis, são produzidas culturalmente, podendo ser significada
de forma diferente em outro contexto social.
As falas produzidas durante a atividade nos possibilitaram discutir, com as
participantes do curso, acerca do crescente mercado de produtos e serviços destinados ao
corpo, com o objetivo de atingir o “padrão” exigido ou, pelo menos, chegar ao mais próximo
possível. Buscamos discutir com elas no sentido de que pensassem nos investimentos e no
desenvolvimento da indústria da beleza, que inúmeros artefatos adornos, acessórios,
roupas, cosméticos, próteses, revistas etc. com variados preços, pretendendo atingir um
público cada vez maior, são lançados diariamente no mercado de consumo, destinados a
investir no corpo, na sua construção e no seu embelezamento.
De acordo com Sant’Anna (1995), a partir da década de 50 o embelezamento do corpo
feminino tem tomado como referência belas aparências das musas do cinema nacional e de
Hollywood, vedetes do teatro de revista e do rádio e todas elas ensinam dicas e conselhos de
beleza. Desde então, os produtos de beleza têm adquirido, na publicidade, o atributo de
produzir cada mulher, “tornando-a não somente mais bela como também mais feliz e satisfeita
86
com ela mesma” (idem:128). Segundo a autora, nessa época, as artistas de Hollywood
forneciam, através das revistas femininas brasileiras, centenas de receitas de beleza. Tais
revistas, influenciadas pela cultura norte-americana, apresentavam a beleza como um direito
acessível a todas as mulheres, independentemente da classe social, tudo dependendo apenas
do aprendizado de algumas técnicas, resultado de um disciplinamento pessoal e cotidiano.
Desde a década de 50, nessas revistas torna-se freqüente a imagem de uma mulher bela e
jovem, que desfruta o prazer de cuidar do próprio corpo e utilizar os produtos de beleza.
Esses ensinamentos veiculados pelos meios de comunicação de massa conformam
determinados tipos de corpo como “ideais”. Assim, as pessoas almejam alcançar este corpo
“padrão”, mas ele sempre “escapa” porque nunca é o mesmo, que “os significados de suas
marcas não apenas deslizam e escapam, mas são também múltiplos e mutantes” (Louro,
2003:1). Isso porque as representações de corpo não são fixas e imutáveis, elas variam de
acordo com os contextos históricos, culturais e sociais. Da mesma forma, as informações que
a mídia apresenta como “verdadeiras” e “únicas” também são alteradas de acordo com
interesses econômicos, sociais e políticos.
Nessa direção, emagrecer, atualmente, parece ser uma das grandes preocupações da
humanidade, impondo-se, sobretudo, às mulheres, mas não somente a elas, pois envolve
também os homens, independentemente dos marcadores sociais idade, classe social, raça
etc. A produção da boa forma, ou seja, de um corpo de acordo com os padrões estéticos que
estão em vigor é promessa de uma maior auto-estima, de mais energia e “felicidade”. Ao
analisarmos as narrativas das participantes da Colméia percebemos que esse discurso do
corpo magro vem interpelando essas mulheres, pois observamos em suas falas e
comportamentos uma preocupação com a “boa” aparência, vinculando-a a um corpo magro,
mais de acordo com a “norma” exigida.
O culto ao corpo magro, que hoje vivenciamos, nem sempre foi assim. Conforme
lembra Andrade (2002:32), “em séculos anteriores, a gordura foi sinônimo de saúde, beleza,
sedução”. Contudo, de acordo com essa autora, na segunda metade do século XX essa
representação sofreu modificações; a magreza passou a ser o novo “ideal” de beleza, e a
gordura passou a ser associada à doença e à falta de cuidado com o corpo. Nessa direção,
Soares (2003:4) argumenta que “a gordura, hoje, converteu-se no grande mal a ser combatido,
um mal que, aliado ao sedentarismo, outro vilão contemporâneo, torna-se objeto de combate
incessante desde a mídia até programas e políticas de saúde pública”.
A partir desses argumentos, compreendemos que as representações de corpo
transformam-se e mudam de acordo com o tempo. Portanto, ser gordo ou magro, bonito ou
87
feio, estar na moda ou não, ter um corpo “perfeito”, ter cabelo curto ou comprido, são
representações que foram e são produzidas em determinados contextos históricos e culturais,
de acordo com interesses sociais, políticos, econômicos e tecnológicos no interior de práticas
de significação engendradas por relações de poder.
Retomando as discussões que foram realizadas, notamos que algumas participantes
identificaram-se com corpos inseridos no contexto familiar. Helena, ao justificar sua escolha,
comenta: O meu eu botei uma mulher com as crianças e um homem, porque eu tô sempre com
as crianças... eu já botei as crianças junto. Mas eu procurei uma assim, com o meu corpo,
com a minha... com o meu cabelo (risos), eu falando sincera, eu gosto de mim do jeito que
eu sou, não precisaria trocar nada, mudar nada, bom assim. P - Tu te junto com a
tua família? É por causa só... que o único lugar que eu venho, que eu saio de casa e não vou
com eles é quando eu venho pra cá, ao contrário eu tô sempre... eu sempre se eu vou aqui,
se eu vou ali, sempre com eles. Nessa mesma direção Gabriela comenta: Aquela com a
família. Eu gosto muito... sempre tem gente assim eu não gosto muito de muito sozinha e
achei bonito eu acho que é uma mãe, uma esposa ali, filhos e... P - Vocês vêem que as duas se
identificaram com a família, as outras se identificaram com o corpo, com o cabelo, com o que
gosta de vestir... E Gabriela continua dizendo: Eu gosto... não precisa nem ser da família,
sendo pessoas boas eu gosto de junto, por isso que eu gosto muito das minhas colegas,
aqui por enquanto eu ainda não briguei com nenhuma (risos).
Essas narrativas que emergiram explicitam a forte representação da mulher como mãe
e o modelo familiar que circulam freqüentemente em múltiplas instâncias e artefatos de nossa
cultura. Nesses espaços, as mulheres são constantemente apresentadas como mães, donas-de-
casa, responsáveis pelo cuidado dos filhos e do marido. Da mesma forma, o modelo
hegemônico de família, composto de pai, mãe e filhos, pode ser observado nos anúncios
publicitários, nas revistas, nas novelas, nos filmes, entre outros. Essas representações
apresentadas como se fizessem parte da “natureza” dos sujeitos, “norteiam muitos dos
processos educativos no interior dos quais nos tornamos mulheres e homens e/ou mães e pais
de determinados tipos e sua força reside, justamente, nas múltiplas, sutis e sempre renovadas
possibilidades de sua repetição” (Meyer, 2003b:34).
Nesse sentido, entendemos os gêneros como invenções produzidas no âmbito social,
cultural, histórico e lingüístico, produto e efeito de relações de poder, incluindo os processos
que produzem, distinguem e separam os corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade
(Meyer, 2003a). Tal entendimento nos afasta daquelas vertentes que abordam “o corpo como
uma entidade biológica universal (apresentada como origem das diferenças entre homens e
88
mulheres, ou como superfície sobre a qual a cultura opera para produzir desigualdades)”
(idem:16). Cabe ressaltar que não estamos negando a materialidade biológica do corpo, nem
dizendo que ela não é importante, mas direcionando as discussões para os processos que
possibilitam que as características biológicas passem a funcionar como justificativa para as
desigualdades e posicionamentos sociais. De acordo com Louro, “teorias foram construídas e
utilizadas para ‘provar’ distinções físicas, psíquicas, comportamentais; para indicar diferentes
habilidades sociais, talentos ou aptidões; para justificar os lugares sociais, as possibilidades e
os destinos ‘próprios’ de cada gênero” (2004:45). Para exemplificar esse entendimento,
podemos citar o pressuposto de que as mulheres estariam destinadas à maternidade, ao
cuidado dos filhos, ao mundo doméstico, à sensibilidade e às emoções. E os homens, à esfera
pública, ao domínio, às grandes decisões. Portanto, entendemos que a feminilidade e a
masculinidade não são constituídas propriamente pelas características biológicas, mas por
tudo o que se diz ou se representa a respeito dessas características.
Nessa direção, percebemos nas falas das mulheres a emergência de algumas
características culturalmente atribuídas às mulheres, tais como a mulher “romântica”, “séria”,
“quieta” e “carente”. Joseane selecionou uma mulher e um homem, ambos abraçados na
chuva, atribuindo a escolha ao romantismo da cena, ao justificar ela argumentou: geralmente
quando eu em casa é assim. P - Tu te identificaste então pela relação e não pelos aspectos
físicos? E só. É loira, eu sou loira (risos). Letícia justificou a sua escolha da seguinte
maneira:
Ah, eu achei ela bonita, o corpo dela assim, e o cabelo também, e o jeito de ser meio
quieta, meio calada. P - Ah, o jeito dela é meio quieta!? É séria. P - É verdade, a Cátia quase
não fala.
E a Letícia continua dizendo: É, e porque é bonito né, o cabelo dela, eu não tenho
né, mais ali é bonito. Já a Julia identificou-se com uma mulher que estava sendo acariciada no
rosto, dizendo estar carente e acrescentou: carinho é ótimo, eu me sinto carente, eu sou
sozinha, mas é bom a gente ter um calor, carinho especial, enfatizando que esse carinho
especial seria de um homem. É pertinente destacar, também, que uma das mulheres
identificou-se com uma mulher que estava ao lado de um policial; ao explicar a sua escolha,
Cíntia disse o seguinte: O meu marido gostaria de ser brigada, é o sonho dele, mas nunca foi.
Cabe acrescentar que a Cíntia, sempre que narrava as suas vivências, enfatizava a importância
do marido na sua vida, dizendo que ele era muito “bom” e que estava muito feliz com ele,
pois não brigava em casa e ajudava nos afazeres domésticos e no cuidado com os filhos. Essa
narrativa nos propõe pensar conforme argumenta Swain (2000:48), que “estes traços
desenhados por valores históricos, transitórios, naturalizam-se na repetição e reaparecem
89
fundamentados em sua própria afirmação: as representações da ‘verdadeira mulher’ e do ‘o
verdadeiro homem’ atualizam-se no murmúrio do discurso social”.
Também emergiu nas narrativas a presença de uma mulher “famosa”, reforçando a
forte influência das artistas na vida das pessoas, sejam elas nacionais ou internacionais. Laura
identificou-se com a Madonna, cantora conhecida mundialmente por suas músicas e por suas
atitudes sempre “polêmicas” e “irreverentes”. Apresentou a escolha comentando: Eu escolhi a
loirinha, a Madonna, não pela aparência dela, porque a aparência ela é muito bonita,
qualquer uma delas são bonitas, mas quem as entrevistas dela... ela é bem impulsiva,
[...] se ela sendo entrevistada ela responde o que ela quer, ela não é de pensar, e eu sou
assim, eu falo, eu às vezes até me arrependo do que eu falo, mas eu sou assim.
Ao consideramos o gênero como um construto sociocultural e lingüístico, entendemos
que não existe uma única forma de viver a feminilidade, assim como não existe “a mulher”,
mas várias e diferentes mulheres que não são idênticas entre si, que aprenderam a ser de
determinado jeito, a apresentar e a valorizar determinadas características no interior de um
grupo social, características que em outro grupo podem ser totalmente insignificantes.
Nessa perspectiva, as diferentes instituições, os discursos, os códigos, os símbolos, as
práticas educativas, as leis e as políticas de uma sociedade são espaços “generificados”,
constituídos e atravessados pelas representações de gênero e, ao mesmo tempo, produzem,
expressam e/ou (re)significam as referidas representações (Louro, 2004; Scott, 1995). Esses
espaços e práticas sociais constituem os sujeitos, inscrevendo diferentes marcas nos corpos,
moldando e regulando as percepções, os gestos, os sentimentos, os valores, as crenças, os
hábitos, as maneiras de ser, de se perceber e de agir como mulher ou homem de um grupo
específico, em uma dada sociedade, em um determinado contexto.
Entretanto, Louro adverte que embora a produção dos sujeitos seja um processo plural
e permanente, não é “um processo do qual os sujeitos participem como meros receptores,
atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias. Ao invés disso, os
sujeitos estão implicados e são participantes ativos na construção de suas identidades”
(2001:25). Assim, entendemos que, embora as múltiplas instâncias sociais coloquem em ação
diversas estratégias de governo, as mulheres da Colméia podem resistir a elas, produzindo e
determinando suas formas de ser, de agir e pensar.
Ao longo deste texto não tivemos como propósito analisar as representações de corpo
feminino veiculadas nos meios de comunicação de massa, mas, sim, buscamos, através da
análise das narrativas das mulheres da Colméia, tornar visível como as nossas experiências se
encontram, atualmente, impregnadas por essas práticas discursivas, e com isso “chamar a
90
atenção para os seus efeitos na constituição daquilo que nos tornamos ou do que, geralmente,
referimos como ‘o meu corpo’ ou ‘a minha vida’” (Souza, 2001:134).
Nesse sentido, entendemos que problematizar as representações e os discursos que
falam sobre o corpo feminino, os quais estão engendrados em relações de poder, têm nos
possibilitado compreender, de alguma maneira, as formas pelas quais muitas mulheres não
estão satisfeitas com o seu corpo e, portanto, consomem produtos e investem no corpo, um
corpo que deve ser belo, saudável, magro, jovem, estar de acordo com a moda atual e
apresentar determinadas atitudes, valores e comportamentos. Percebemos que esses
significados vêm interpelando as mulheres da Colméia, que buscam de alguma maneira se
incluir nesse discurso, uma vez que elas investem no corpo de acordo com suas condições
financeiras, que as identifica como pertencentes à determinada cultura. Assim, entendemos
ser importante pensar acerca dos discursos que inscrevem nosso corpo e constituem nossas
identidades. Afinal, como não deixar de pensar e falar sobre o corpo em uma sociedade na
qual ele adquiriu tamanha “evidência”?
4.2.5 Referências Bibliográficas
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93
4.3 CONTANDO E OUVINDO HISTÓRIAS SOBRE GÊNERO E EDUCAÇÃO
ESCOLARIZADA
68
Submetido aos Cadernos de Educação da FaE – UFPel.
4.3.1 Resumo
Neste artigo buscamos analisar a rede de discursos acerca da educação escolarizada das
mulheres integrantes da Associação Movimento Solidário Colméia - Rio Grande/RS. Para
tanto, examinamos suas narrativas, que emergiram durante o desenvolvimento do curso
Mulher e Cidadania. No estudo, problematizamos os motivos que impossibilitaram tanto o
acesso à educação escolarizada, quanto a continuação dos estudos dessas mulheres, como
também os significados que elas atribuem à educação. Nesse sentido, procuramos discutir as
implicações de alguns discursos e práticas sociais na constituição das mulheres da Colméia.
Ao proceder de tal forma estabelecemos conexões com os Estudos Culturais e de Gênero, nas
vertentes pós-estruturalistas, e com algumas proposições de Michel Foucault.
Palavras-chave: narrativas, gênero e educação escolarizada.
4.3.2 Abstract
In this article we aimed at analyzing the net of narratives concerning the whole school
education of women in the Association Solidary Movement Beehive - Rio Grande/RS. To do
so, we examined their narratives that emerged during the development of the course Woman
and Citizenship. In the study, we problematized the reasons that hindered their access to
education from school, concerning to the continuation of the women's studies, as well as the
meanings they attribute to education. In that sense, we tried to discuss the implications of
some narratives and social practices in the constitution of the women at the Beehive. When
proceeding in such a way we established connections with the Cultural Studies and of Gender,
in the post –structuralist verges, and with some propositions of Michel Foucault.
Key words: narratives, gender and school education.
68
Este artigo mantém as normas exigidas pelo periódico Cadernos de Educação para o envio de texto.
94
4.3.3 Introdução
Neste artigo buscamos analisar a rede de discursos
69
acerca da educação escolarizada
de mulheres integrantes da Associação Movimento Solidário Colméia, buscando
problematizar os motivos pelos quais algumas mulheres não tiveram acesso à escola, o que
lhes impossibilitou a continuação dos estudos, e os significados que, atualmente, são
atribuídos à educação por essas mulheres. Para tanto, analisamos as narrativas que elas
produziram durante os encontros do curso “Mulher e Cidadania”.
Nesse sentido, procuramos chamar a atenção para alguns discursos e práticas sociais
que, ao inscreverem nos corpos hábitos, valores, sentimentos, comportamentos, etc.,
produzem determinados tipos de pessoas – neste estudo, as mulheres da Colméia.
Na escrita deste artigo, num primeiro momento, apresentamos o aporte teórico que
subsidia esta pesquisa, no que se refere ao papel da cultura, dos sistemas de significação e das
relações de poder na constituição dos sujeitos, na perspectiva dos Estudos Culturais e de
Gênero, nas vertentes pós-estruturalistas. Em seguida, explicitamos a metodologia utilizada na
produção e análise dos dados narrativos. No terceiro momento, analisamos as narrativas das
mulheres da Colméia, no que se refere ao gênero e à educação escolarizada.
4.3.4 Tecendo algumas considerações sobre os Estudos Culturais
O entendimento do sujeito como inscrito ou fabricado na cultura levou-nos a
estabelecer algumas aproximações com os Estudos Culturais, nas suas vertentes pós-
estruturalistas. Esse campo de estudos enfatiza o papel das culturas, dos significados e das
relações de poder, uma vez que esses elementos se encontram implicados na constituição dos
sujeitos.
Os Estudos Culturais caracterizam-se como um campo de estudos e intervenção, não-
homogêneo, de caráter interdisciplinar, transdisciplinar, ou, como outros comumente têm
mencionado, “antidisciplinar”, que estuda os aspectos culturais da sociedade (SILVA, 2004;
NELSON et al, 2005). Para Costa (2004, p. 13), os Estudos Culturais podem ser definidos
como “saberes nômades, que migram de uma disciplina para outra, de uma cultura para outra,
que percorrem países, grupos, práticas, tradições, e que não são capturados pelas cartografias
consagradas que têm ordenado a produção do pensamento humano”.
69
Para Foucault, os discursos, mais do que conjuntos de signos que remetem a conteúdos ou representações, são
“práticas que formam, sistematicamente, os objetos de que falam” (1995a, p.56).
95
Na perspectiva de tais estudos, torna-se fundamental discutir a concepção de cultura,
uma vez que uma das questões centrais nos Estudos Culturais são as transformações do
entendimento de cultura. A cultura pode ser entendida
tanto como uma forma de vida
compreendendo idéias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder –
quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias
produzidas em massa, e assim por diante” (NELSON et al, 2005, p. 14). Essa visão possibilita
questionar as concepções elitistas de cultura que distinguem a “alta cultura” – cinema, pintura,
clássicos da música e da literatura, conhecimentos científicos e a “baixa cultura”
programas de televisão, publicidade, música popular, saberes populares (HALL, 1997;
COSTA, 2004). Para Silva (2004, p. 133-134), a cultura é “um campo de produção de
significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder,
lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla”. Tal entendimento nos
possibilita compreender a cultura não como o modo de vida de cada grupo social, mas
como produtora de significados com os quais um grupo social se identifica, num constante
movimento de luta e contestação em relação a outros grupos sociais.
Dessa forma, os significados não são constantes e fixos, nem pré-existem como coisas
no mundo social, eles são criados, são fluidos, múltiplos, transitórios e contingentes (HALL,
1997; SILVA, 2004) sendo produzidos nas diversas instâncias sociais – família, mídia, escola,
igreja, hospital e campos de saberes biologia, psicologia, medicina, pedagogia, por
exemplo e circulam através de diferentes processos ou práticas culturais. Tais significados
inscrevem diferentes marcas nos corpos, moldam e regulam as percepções, os gestos, os
sentimentos, os valores, as crenças, os hábitos, as maneiras de ser, de perceber a si e aos
demais, e de agir como mulher ou homem de um grupo específico, em uma determinada
sociedade e contexto. Cabe destacar que não estamos negando a materialidade biológica do
corpo, nem dizendo que ela não é importante, mas direcionando a discussão para o
entendimento de que o sujeito é constituído nas práticas culturais que experiencia
cotidianamente.
Nesse sentido, é nas práticas culturais implicadas em relações de poder
70
que os
sujeitos, a partir das suas representações, instituem os modos de compreender a si mesmos e o
mundo que os cerca. De acordo com Hall (1997), a representação é o modo de produção de
significados através da linguagem sons, palavras escritas, linguagem oral, imagens
70
Utilizamos poder numa perspectiva foucaultiana, ou seja, como uma rede de relações de forças desiguais e
móveis. Nessa rede, os indivíduos nãocirculam, mas estão em posição de exercer o poder e de sofrer sua ação
(FOUCAULT, 2003a; 2006a).
96
eletrônicas, imagens impressas, notas musicais, objetos, gestos, expressões corporais que,
ao representarem os signos modelos, objetos, desenhos, sons, símbolos, imagens –, dão
sentido aos nossos pensamentos, sentimentos, ações, valores, a nossa identidade (quem somos
e a que grupo pertencemos).
Nessa perspectiva, tornar-se sujeito de uma cultura, ou seja, partilhar significados e
interpretar o mundo de forma semelhante, envolve uma gama de processos de aprendizagem
articulados a relações de poder que, atualmente, vai além da família e da instituição escolar,
uma vez que os meios de comunicação de massa, as instituições não-governamentais, as
políticas públicas, entre outros fatores, desempenham papel importante nessa complexa rede
que governa nossos corpos e nossas vidas.
É a partir de tais proposições apresentadas até aqui que estamos pensando e
problematizando os discursos e as práticas que impossibilitaram o acesso à educação
escolarizada de algumas mulheres e a continuação dos estudos de outras, como também os
significados que atualmente são atribuídos à educação por essas mulheres.
4.3.5 Tecendo os caminhos metodológicos
No estudo, estamos utilizando a investigação narrativa como estratégia metodológica.
Entendemos a narrativa como formações discursivas em que os sujeitos constroem os sentidos
tanto de si quanto de suas experiências no processo de contar e ouvir histórias.
Para Larrosa (1996), a narrativa é uma modalidade discursiva, na qual as histórias que
contamos e as histórias que ouvimos, produzidas e mediadas no interior de determinadas
práticas sociais, passam a construir a nossa história, a dar sentido a quem somos. Desse modo,
construímos e expressamos a nossa subjetividade a partir das formas lingüísticas e discursivas
que empregamos nas nossas narrativas. De acordo com o autor (1996, p. 471), “cada um de
nós se encontra imerso em estruturas narrativas que lhe preexistem e que organizam de um
modo particular a experiência, que impõem um significado a experiência”. Assim, o processo
de ouvir e contar histórias, de contrapor e mesclar umas histórias a outras passa a construir a
história de nossas vidas.
Partindo do pressuposto de que a investigação narrativa permite a utilização de
diversos instrumentos para a produção dos dados narrativos, elegemos como metodologia o
grupo focal, que se caracteriza como uma técnica de pesquisa qualitativa, muito utilizada
quando se tem como objetivo conhecer “representações, percepções, crenças, hábitos, valores,
97
restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no trato de uma dada questão
por pessoas que partilham alguns traços em comum” (GATTI, 2005, p. 11).
Neste estudo, o grupo focal constituiu-se a partir do curso de extensão “Mulher e
Cidadania”, oferecido às mulheres integrantes da Associação Movimento Solidário Colméia.
Essa Associação é uma sociedade civil que tem como principal objetivo possibilitar o
resgate da cidadania e a melhoria da qualidade de vida das famílias que a integram.
Atualmente compõem a Colméia trinta e seis famílias, num total de cento e setenta pessoas,
vivendo em situação de extrema pobreza, as quais residem no bairro Castelo Branco e
arredores, no município do Rio Grande/RS. A comunidade à qual estão direcionadas as ações
da Colméia é composta por mulheres, homens e crianças que sobrevivem do lixo, catando ali
desde alimentos até roupas, móveis e eletrodomésticos. As famílias integrantes recebem
mensalmente uma cesta básica. Também contam com doações de roupas, móveis, utensílios
para a casa e auxílio na compra de remédios e encaminhamentos para médicos, dentistas e
psicólogos, entre outros, conforme com os recursos de que a Colméia dispõe e de acordo com
as necessidades das famílias. Contudo, o pressuposto para que as famílias participem da
Colméia é que os/as filhos/as em idade escolar estejam regularmente matriculados/as e
freqüentando a escola. Outro importante objetivo da Colméia é propiciar situações que
proporcionem o auto-sustento dessas famílias; para tanto, vários projetos são desenvolvidos
como oficinas de papel reciclado, sabão e detergente, corte e costura, reciclagem de garrafas
PET para confecção de pufes, entre outras atividades.
O curso “Mulher e cidadania” foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Sexualidade e
Escola, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), e teve como objetivo
oportunizar espaços de discussão e reflexão acerca de temáticas que envolvem corpo, gênero
e sexualidade. O curso foi estruturado em oito encontros com duração de duas horas cada e
desenvolvido durante os anos de 2004 e 2005. Os encontros do curso “Mulher e Cidadania”
foram previamente planejados e as temáticas foram escolhidas a partir dos eixos norteadores
do curso. Cabe destacar que os encontros foram gravados em fitas VHS, que foram transcritas
e analisadas. Também foram utilizadas outras estratégias para complementar a produção dos
dados narrativos, como a realização de entrevistas individuais semi-estruturadas e o
preenchimento de um questionário, com o objetivo de obter algumas informações, tais como:
escolaridade, número de filhos, tipo de parto, doenças, condições socioeconômicas, etc. Para
tanto, elaboramos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, informando às
participantes os objetivos e procedimentos adotados ao longo dos encontros, esclarecendo os
compromissos a serem assumidos por ambas as partes.
98
Dele participaram vinte mulheres com idades entre 18 e 60 anos, que estão em
processo de escolarização (Educação de Jovens e Adultos) e qualificação profissional. Essas
mulheres são donas-de-casa, mães, com cinco filhos em média, a maioria com
companheiros/esposos; não exercem atividade remunerada fixa e, para auxiliar no sustento da
casa, elas contam com o que conseguem vender a partir da produção nas oficinas de trabalhos
artesanais. Essas mulheres caracterizam-se como não-escolarizadas ou pouco escolarizadas,
sendo que somente uma delas concluiu o Ensino Fundamental. Tais mulheres apresentam
extrema carência socioeconômica, desconhecem os seus direitos sociais, sofrem ou foram
vítimas de abusos sexuais, violência e maus-tratos por parte dos maridos ou companheiros e,
na maioria de suas famílias, a ocorrência do alcoolismo e tabagismo, entre tantas outras
questões.
O curso funcionou como um espaço narrativo, em que as mulheres participaram de um
processo de contar, ouvir e contrapor algumas histórias a respeito de suas vidas. Essa
estratégia tinha como objetivo problematizar as histórias narradas por essas mulheres; neste
caso, sobre suas vivências escolares e sobre os sentidos atribuídos à educação escolarizada.
Outro objetivo do curso foi a possibilidade de dar visibilidade à história de vida dessas
mulheres, escutar o que tinham a dizer, não no sentido de verificar opiniões freqüentes, nem
mesmo de estabelecer a verdade
71
, mas com a finalidade de escutar suas vozes, e assim
constituir um espaço em que significados são (re)construídos e compartilhados.
Ao optar por esse tipo de investigação, é importante que o/a pesquisador/a compreenda
que as histórias que narramos dependem de vários fatores, entre eles, os interlocutores e o
contexto no qual as narrativas são produzidas. Portanto, as narrativas produzidas são sempre
contingentes, locais e provisórias, uma vez que o sujeito não pode ser compreendido fora do
seu contexto social, cultural e histórico. Nesse sentido, entendemos que as histórias que
contamos e os seus significados vão sendo construídos e reconstruídos ao longo do tempo, a
partir de distintas formas de interpretá-los e construir-lhes sentido.
As narrativas apresentadas e analisadas a seguir são excertos de um dos encontros do
curso “Mulher e Cidadania”, no qual emergiram os motivos que impossibilitaram tanto o
acesso à escola quanto a continuação do processo de escolarização das mulheres da Colméia,
como também os significados que hoje são atribuídos à educação por essas mulheres.
71
Para Foucault (2006a, p. 12), “a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e
nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de
verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que
têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”.
99
4.3.6 Tecendo narrativas sobre educação escolarizada
Neste estudo buscamos analisar as narrativas das mulheres da Colméia, tomando como
referência as questões de gênero e educação escolarizada, em sua articulação com outros
“marcadores sociais”, como classe, geração, raça, etnia, entre outros. Para tanto, (re)visitamos
um dos encontros do curso “Mulher e Cidadania” no qual apresentamos alguns aspectos
referentes à
História das Mulheres
72
, com o objetivo de possibilitar às participantes do curso
o conhecimento de fatos importantes sobre a trajetória de mulheres, desde tempos mais
remotos até os dias atuais. Com essa estratégia, não tínhamos como objetivo traçar uma
história “progressiva”, que mostrasse o alcance de um mundo melhor, no qual as mulheres,
através de muitas “batalhas”, alcançaram inúmeras conquistas, mas buscávamos, assim,
focalizar alguns aspectos referentes à trajetória das mulheres que, naquele momento,
considerávamos importante discutir com as mulheres da Colméia. Ao proceder de tal forma,
pretendíamos criar condições para fazê-las falar e escutar o que tinham a dizer, buscando
compartilhar e problematizar os significados atribuídos ao gênero e à educação.
Embora não seja nosso propósito relatar detalhadamente as questões que foram
discutidas no encontro e seus desdobramentos, procuramos mostrar ao/a leitor/a quais foram
as condições de possibilidade para a emergência das narrativas sobre a temática em que
centramos a discussão neste texto.
No encontro, buscamos apresentar e discutir o mito da mulher deusa, quando era
considerada símbolo de fertilidade e força; o mito judaico-cristão, de acordo com o qual a
mulher teve origem da costela de Adão e foi culpabilizada pela expulsão do paraíso pelo fato
de ambos terem comido o fruto proibido da árvore do conhecimento e do pecado; a mulher na
antiguidade, considerada praticamente propriedade do marido e valorizada por ser esposa e
gerar herdeiros legítimos, principalmente homens; a mulher na idade média, época em que
muitas foram mortas por serem consideradas bruxas e feiticeiras; a da idade moderna, fase
considerada de grandes transformações, tais como a revolução industrial e científica, a
invenção da imprensa e a inserção das mulheres em indústrias.
Também discutimos a mulher no Brasil colonial, principalmente enfatizando o acesso
à educação escolarizada. No Brasil Colônia, as mulheres ficavam praticamente confinadas ao
lar, saíam de casa para ir à missa e, mesmo assim, estavam sempre acompanhadas. Desde
muito cedo as meninas começavam a aprender as prendas domésticas, com o objetivo de
72
Fundamentamos a apresentação da história das mulheres nos seguintes autores: Dubby e Perrot, 1991; Del
Priore, 2004; Haddad & Di Pierro, 2000; Moraes, 2002; Murano, 1992; Ribeiro, 2000.
100
tornar-se uma “boa” dona-de-casa, mãe e esposa. Nesse período, os religiosos exerciam a
ação educativa missionária direcionada à grande parte dos adultos, transmitiam regras de
comportamentos e ensinavam os ofícios indispensáveis ao funcionamento da economia
colonial (HADDAD & DI PIERRO, 2000). Contudo, as mulheres eram excluídas desse
processo educacional, uma vez que a educação era reservada somente aos homens.
Por fim, buscamos apresentar e discutir a trajetória de lutas e conquistas das mulheres
na atualidade, enfatizando o direito ao voto, o acesso à educação em todos os níveis, os
direitos sexuais e reprodutivos, a obtenção de cargos políticos, o acesso ao trabalho público,
as mudanças jurídicas, entre outros aspectos.
Nesse sentido, ao dar historicidade à mulher, procurávamos problematizar e
desnaturalizar o que aprendemos a tomar como “dado”, da ordem do “natural”, por exemplo,
o pressuposto de que a mulher deve ser “submissa” ao homem, que o lugar “natural” da
mulher é a casa e sua função “natural” é cuidar dos filhos e do marido.
Com essas considerações não estamos enfatizando a concepção “de um homem
dominante versus uma mulher dominada” (LOURO, 2004, p. 37), como se a mulher fosse a
vítima ou a culpada por sua condição social hierarquicamente subordinada. Os pressupostos
teóricos em que ancoramos nossa pesquisa problematizam esses entendimentos na medida em
que as relações sociais são engendradas por relações de poder, e que essas relações de forças,
lutas, embates produzem resistências
73
. Segundo Foucault (2006a), não podemos tomar o
poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os
outros; neste caso, do homem sobre a mulher. Para Foucault,
o poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que
funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em
rede. Nas suas malhas os indivíduos não circulam mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão (2006a, p. 183).
Assim, torna-se importante pensar no exercício do poder, uma vez que o homem não
detém o poder sobre a mulher, mas ambos exercem e sofrem os efeitos de suas ações.
Portanto, os sujeitos não são alvos inertes do poder, os mesmos podem resistir, contestar,
transgredir ou negociar nas relações sociais. Contudo, é importante destacar que para
Foucault, o exercício do poder sempre se entre indivíduos livres, pois somente o indivíduo
73
Para Foucault (1995b, p. 248), “não relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem
inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem
que para tanto venham a se superpor”.
101
livre é que tem possibilidade de resistir; caso contrário, o que se verifica, segundo o autor, não
é uma relação de poder, mas sim uma relação de violência.
Embora em alguns momentos tivéssemos nos referido a “mulher”, no singular,
entendemos que não existe a identidade mulher universalizada, mas várias e diferentes
mulheres, que não são idênticas entre si, que aprenderam a ser de determinado jeito, a
apresentar e a valorizar determinadas características no interior de um grupo social,
características que em outro grupo podem ser totalmente insignificantes (LOURO, 2004).
Feitas essas considerações acerca das questões discutidas no encontro e de como
estamos pensando e entendendo as relações sociais, passamos, a seguir, a apresentar e analisar
as narrativas das mulheres da Colméia, que trazem alguns aspectos referentes ao gênero e à
educação escolarizada.
Ao analisarmos as narrativas das integrantes do grupo percebemos que um dos
discursos que impossibilitou a continuidade dos estudos refere-se à representação das
mulheres como responsáveis “naturais” pelo espaço doméstico, pelo cuidado da casa, filhos e
marido. O que podemos verificar nas seguintes falas: Parei na quinta série para casar, o meu
esposo não gosta que eu estude (Fernanda
74
, 18 anos); Parei com quinze anos pra casar
(Adriana, 43 anos); Parei por causa das crianças (Helena, 33 anos); Eu fiz o primeiro grau,
daí engravidei e não pude continuar... Eu queria ser uma boa mãe, eu queria ser tudo pro
meu filho, ser a mãe que eu não tive... Aí não dava pra estudar (Patrícia, 21 anos); Eu fui até
a terceira. Eu tinha dez anos quando os meus pais de criação morreram. Aí a minha mãe me
deu de novo. Comecei a trabalhar com doze anos. Casei com quinze anos e ganhei meu filho
com dezesseis. Coisas da vida né... Voltei a estudar na terceira série, mas como eu era
casada o meu marido não me deixou estudar mais, porque ele era muito ciumento, daí eu
parei (Lúcia, 23 anos).
Narrativas como essa nos levaram a pensar nos recorrentes discursos sobre mulher e
mãe que circulam em múltiplas instâncias e artefatos de nossa cultura. Os atributos e valores
que esses discursos estabelecem, apresentados como se fizessem parte da “natureza” das
mulheres, estão inscritos no senso comum de muitas pessoas como por exemplo, o
pressuposto de que as mulheres estariam destinadas à maternidade, ao cuidado dos filhos e ao
mundo doméstico. Para Swain,
a imagem da mãe resgatando um ‘pecado original’ do feminino fez um longo
caminho no seio do cristianismo desde o paraíso. Permanece, entretanto, a garantia,
o selo de qualidade que distingue as mulheres entre elas e lhes atribui um lugar
74
Os nomes apresentados nas narrativas são codinomes que foram escolhidos por cada uma das participantes.
Adotamos essa estratégia a fim de preservar os nomes das integrantes do curso.
102
social. A reprodução, assim, é um dos signos e uma das marcas que criam as
mulheres e o feminino em um sistema de poder e de hierarquia, subordinando-as ao
masculino (2000, p. 49-50).
Nossa proposta é argumentar que não há nada de natural nisso tudo, e para isso
tomamos o conceito de gênero apresentado por estudiosas feministas pós-estruturalistas que
abordam o gênero como invenção produzida no âmbito social, cultural, histórico e lingüístico,
produto e efeito de relações de poder, incluindo os processos que produzem, distinguem e
separam os corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade (MEYER, 2003a; 2003b). Com isso
não estamos negando a materialidade biológica do corpo, mas desestabilizando a noção da
existência de um determinismo biológico, ou seja, que homens e mulheres constroem-se como
masculinos e femininos pelas diferenças corporais, e que essas diferenças justificam
determinadas desigualdades, atribuem funções sociais, determinam “papéis” a serem
desempenhados por um ou outro sexo.
Tal concepção nos possibilita compreender que existe um investimento continuado e
geralmente muito sutil, quase invisível nesse processo de “fabricação” de mulheres e homens.
Aprender a ser homem e aprender a ser mulher são construções que se dão desde o
nascimento, através de múltiplos processos, estratégias e práticas culturais estabelecidas pela
família, e depois pelas diferentes instâncias sociais como a escola, clube, mídia, igreja, entre
outras.
Assim, nas mais diferentes práticas sociais, homens e mulheres não se constituem
apenas através de mecanismos de repressão ou submissão, mas também através de relações de
poder que ensinam os modos de ser e estar no mundo, as formas de falar, agir, compreender a
si e aos outros; no caso desta pesquisa, tais práticas instituem, entre outras coisas, o que uma
mulher ao tornar-se mãe deve fazer, o que significa ser uma “boa” mãe e quais são suas
responsabilidades com relação à casa, filhos e marido.
Outras narrativas que emergiram apontam a responsabilidade dos pais pelo processo
de educação dos/as filhos/as. A seguir apresentamos a fala de uma das mulheres que não
freqüentou a escola quando criança, como refere: Nunca estive na escola, minha mãe nunca
me colocou (Cláudia, 38 anos). A fala de Cláudia nos levou a pensar no difícil acesso à
educação escolarizada para as mulheres. Ao “olharmos” a história das mulheres no Brasil,
percebemos que a ação educativa inicialmente era reservada somente aos homens, ficando as
mulheres excluídas desse processo. Segundo Ribeiro (2000, p. 79), “tanto as mulheres
brancas, ricas ou empobrecidas, como as negras escravas e as indígenas não tinham acesso à
arte de ler e escrever”. Nesse período, a educação feminina ficou geralmente restrita aos
103
cuidados com o “lar”, marido e filhos, uma vez que estudar significava não ser “boa” mãe,
como podemos observar num versinho popular do final do século XIX que dizia: “menina que
sabe muito é menina atrapalhada, para ser mãe de família, saiba pouco ou saiba nada”
(COSTA apud MORAES, 2002, p. 35). Aprender a ler e a escrever representava um perigo,
no sentido de que poderia travar conhecimentos amorosos sem a permissão da figura paterna,
por exemplo, através da leitura de livros, ou estar apta a receber bilhetes e cartas de amor.
Além disso, ao (re)visitarmos a história das mulheres no Brasil, notamos que a saída das
meninas de casa para ir à escola também representava um perigo no sentido de que elas
ficavam “livres” para possíveis flertes e namoricos como podemos perceber na narrativa da
Solene: Eu tava estudando, mas parei, o meu pai me tirou da escola, porque eu tava
namorando (17 anos).
Nessa direção, a narrativa da Cíntia também aponta a presença do pai como
responsável pela interrupção dos seus estudos: Meu pai me tirou quando eu ia pra segunda
série com onze anos, ele dizia que eu era burra que eu não aprendia nada (45 anos). Cabe
destacar que a Cíntia, assim como outras participantes do curso, estão em processo de
escolarização, contudo, ao comentar sobre suas vivências nas aulas de alfabetização, ela
sempre justificava que não conseguia aprender porque era “burra”. Assim, no nosso entender,
a Cíntia constituiu-se nessa identidade atribuída pelo seu pai, tomando para si a
responsabilidade pelo processo de aprendizagem em função da autopercepção que a coloca no
lugar de não-aprender.
Nesse sentido, podemos pensar “a família como um locus social onde se marcam,
posicionam e constituem as pessoas” (SOUZA, 2001, p. 57). Na instituição familiar transitam
relações de poder que produzem determinados tipos de sujeitos ao inscreverem nos corpos
identidades, gestos, hábitos, valores, sentimentos, comportamentos, etc. Portanto, transitar nas
narrativas das mulheres da Colméia nos permitiu compreender a maneira como determinados
discursos e práticas sociais, dentre eles, os experenciados na família, posicionaram e/ou
posicionam e constituíram e/ou constituem essas mulheres.
Algumas das mulheres da Colméia que tiveram acesso à educação escolarizada
argumentaram que pararam de estudar em função das condições econômicas, o que podemos
perceber na seguinte narrativa: Eu fui pra escola com seis anos e sai na quarta série, a mãe
não tinha dinheiro para comprar o uniforme e daí eu fui trabalhar. Eu chorava para ir à
escola, mas com doze anos eu fui trabalhar, parei de estudar pra trabalhar. (Cristina, 43
anos). A partir dessa narrativa, não temos como propósito discutir que ainda persiste o
elevado índice de crianças e adolescentes em idade escolar, que, muitas vezes, em virtude da
104
necessidade de auxiliar os pais no sustento da casa, são afastados da escola, também, não
buscamos discutir a relação existente entre trabalho e gênero como por exemplo, as
conseqüências do trabalho doméstico para a escolarização das meninas. Contudo, o que nos
propomos discutir é que, se por um lado a narrativa da Cristina nos possibilita pensar no
funcionamento da escola como um dos mecanismos de exclusão social, ao estabelecer
determinadas regras e exigências, tais como, o uso do uniforme, o material escolar, o
transporte, entre outros fatores que desconsideravam/am e não atendiam/em as múltiplas
necessidades presentes na escola –, por outro, leva-nos a pensar, por exemplo, nas estratégias
inventadas atualmente como, por exemplo, o Programa Bolsa Família (PBF)
75
, que busca
minimizar os elevados índices de trabalho infantil e evasão escolar através do fornecimento de
um subsídio mensal de renda às famílias que vivem em situação de extrema pobreza para que
mantenham seus/suas filhos/as freqüentando a escola.
Seguindo essa linha de pensamento, é possível afirmar que é na trama de distintas
estratégias de poder que atuam em diversas instâncias sociais, tais como na família, na escola,
na mídia, que ao acessarem os sujeitos, conformam e regulam os corpos de acordo com
determinadas regras e convenções estabelecidas social e culturalmente. Nesse sentido,
procuramos mostrar as implicações da Colméia, do Programa Bolsa Família e da escola no
disciplinamento e governo das mulheres que integram a Colméia e de seus familiares.
No que se refere à Colméia, é pertinente destacar, conforme anunciamos em outro
momento, que uma das condições fundamentais para que as mulheres e suas famílias integrem
essa Associação é que seus/as filhos/as em idade escolar estejam matriculados e freqüentando
regularmente a escola. Caso não cumpram com a condição estabelecida, essas famílias são
afastadas do cadastro da Colméia. Outra regra que deve ser cumprida por essas mulheres
refere-se à freqüência, uma vez que três faltas consecutivas na mesma oficina ou projeto,
implica o não-recebimento da cesta básica no mês em que ocorreram as faltas. Também é
importante destacar que as crianças, quando participam das oficinas, recebem uma caixa de
leite por freqüência, o que totaliza quatro caixas de leite por mês em cada oficina; logo, cada
falta corresponde a uma caixa de leite a menos no final do mês.
Essas constatações nos possibilitam estabelecer algumas aproximações com as
contribuições de Foucault, especialmente com as encontradas em
Vigiar e Punir, em que a
partir das relações de poder o autor analisa e discute os processos sociohistóricos pelos quais
75
O Bolsa Família refere-se ao atual programa do Governo Federal que integra os programas remanescentes
Auxílio-Gás, Bolsa Escola, Cartão Alimentação e Bolsa. Alimentação Atualmente o programa atende 11 milhões
de famílias, com benefícios entre R$ 15 e R$ 95 (BRASIL, 2006).
105
os indivíduos se tornam corpos dóceis e úteis. De acordo com Foucault (2006b), vivemos em
uma sociedade disciplinar, o que significa dizer que vivemos sob uma rede quase
imperceptível de normas, “verdades”, valores, proibições, etc., em que um dos objetivos é
fazer com que cada indivíduo seja capaz de se autogovernar, tornando-se assim útil, produtivo
e socialmente econômico. Nesse sentido, no nosso entender, a Colméia configura-se como
uma instância disciplinar que, ao dispor de determinadas técnicas como, por exemplo, o
registro da freqüência das mulheres e de seus/as filhos/as, busca controlar e eventualmente
punir caso ambos não se enquadrem nas regras estabelecidas pela Associação.
Nessa perspectiva, é novamente em Foucault que encontramos subsídios para pensar e
discutir o funcionamento do Programa Bolsa Família como um dispositivo
76
de governo
77
dos
pobres. O PBF é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades que
beneficia famílias pobres, e tem por objetivo “o desenvolvimento das famílias, de modo que
os beneficiários do Bolsa Família consigam superar a situação de vulnerabilidade e pobreza”
(BRASIL, 2006). Entre as condicionalidades estabelecidas, a família, ao entrar no programa
tem que assumir o compromisso de “manter suas crianças e adolescentes em idade escolar
freqüentando a escola e a cumprir os cuidados básicos em saúde: o calendário de vacinação,
para as crianças entre 0 e 6 anos, e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em
amamentação” (BRASIL, 2006).
Nesse sentido, o Bolsa Família configura-se como um outro dispositivo que vem
atuando através de determinadas estratégias; simultaneamente, ao afastar as crianças do
trabalho infantil inserindo-as na escola, contribui para a diminuição das taxas de
analfabetismo e evasão escolar, obtendo assim o controle de determinado segmento da
população. Para tanto, a escola é convocada a atuar conjuntamente nesse processo de governo
dos indivíduos, através do controle da freqüência dos estudantes para a concessão do
benefício, uma vez que as crianças devem ter no mínimo 85% de freqüência.
O Programa também pretende assegurar o compromisso familiar acionado pela
interpelação dos pais, que devem ser capazes de garantir que todas as crianças em idade
escolar estejam freqüentando a escola. Nesse sentido, entendemos que as mulheres da
Colméia estão sendo interpeladas pelos discursos veiculados por tais instâncias, como
podemos perceber na fala da Helena, que, ao ser questionada sobre a educação e estudo dos
76
Tomamos dispositivo como um mecanismo de saber/poder com a função estratégica de governar o corpo e a
vida das pessoas (FOUCAULT, 2006a).
77
Utilizamos a palavra “governo” não num sentido de estruturas políticas ou administrativas do Estado, mas
num sentido foucaultiano de gerenciamento da conduta dos indivíduos ou grupos: o governo de si, das almas, das
crianças, das famílias,... (FOUCAULT, 2006a).
106
filhos, ela comenta: Estudam, todos estudam, têm que estudar, pra isso existe uma lei que
obriga (Helena, 35 anos). Cabe destacar que a “lei” referida por Helena engloba tanto o Bolsa
Família quanto o Conselho Tutelar.
O entendimento de que cabe à família cumprir com o papel de manter as crianças na
escola não é novo, uma vez que, segundo Foucault (2003b), desde a metade do século XVIII é
pela família, segmento privilegiado da população, que os mecanismos de governo devem
passar, porque “quando se quiser obter alguma coisa da população quanto ao comportamento
sexual, quanto à demografia, ao número de filhos, quanto ao consumo, é bem através da
família que isso deverá passar” (id., p. 299).
Com tais comentários, não estamos “olhando” de modo negativo para a Colméia, o
Bolsa Família e a escola, suas estratégias, normas e punições, mas sim estamos procurando
chamar a atenção para os seus efeitos na constituição das pessoas.
Entretanto, é importante destacar que a produção dos sujeitos é um processo que se
opera simultaneamente no individual e no coletivo. Segundo Louro, não é “um processo do
qual os sujeitos participem como meros receptores, atingidos por instâncias externas e
manipulados por estratégias alheias. Ao invés disso, os sujeitos estão implicados e são
participantes ativos na construção de suas identidades” (2001, p. 25). Assim, entendemos que,
embora as múltiplas instâncias sociais coloquem em ação diversas estratégias de governo e
disciplinamento dos sujeitos, as mulheres da Colméia podem resistir a elas, produzindo e
determinando outras formas de ser, de agir e pensar.
Também emergiram narrativas que enfatizaram o discurso de que a educação propicia
maiores possibilidades de emprego. As narrativas apresentadas a seguir ilustram esse
entendimento: O estudo é importante para conhecer os direitos daqui pra frente; eu posso
estudar até uma certa idade, mas pra arrumar uma profissão não adianta... dão emprego
até uma certa idade. Eu não tenho condições de sair mais de casa, eu leio jornal, eu vejo
jornal, estudo junto com meus filhos, eu faço qualquer coisa para dar o melhor para os meus
filhos... (Sara, 40 anos); A educação é para o futuro deles (Helena, 35 anos).
Na população, em geral, é bastante difundido a idéia de que a educação escolarizada é
capaz de transformar a vida das pessoas, uma vez que se construiu socialmente a concepção
de que quanto maior a escolarização do indivíduo, maior serão suas chances de inserção
profissional. Para Tuppy e Arruda (2005), essa idéia faz, em certo sentido, um paralelo com
os pressupostos da Teoria do Capital Humano, que difundem a correlação entre o crescimento
econômico e os níveis educacionais de uma determinada sociedade, que sem dúvida tem,
sistematicamente, permeado os discursos de lideranças políticas, empresariais e
107
governamentais. Tal entendimento pode ser observado nos discursos veiculados em diversas
instâncias, especialmente nos meios de comunicação de massa, que enfatizam a educação,
como fator de desenvolvimento econômico e de mudanças sociais. Nessa perspectiva, a
educação é concebida como um “passaporte” para o ingresso e manutenção no mercado de
trabalho, para elevação da renda nacional e familiar, enfim para a superação dos problemas
sociais (TUPPY e ARRUDA, 2005).
Segundo Tanguy (apud TUPPY E ARRUDA, 2005, p. 191), “há uma crença que
converge para mostrar que, dentro de uma faixa etária, os mais expostos ao desemprego são
os menos diplomados, colocando o diploma como um fator de proteção contra o
desemprego”. Para a autora, embora o diploma seja necessário ele não é o suficiente para
proteger do desemprego, pois se verifica que o aumento nos níveis de formação não exclui a
diminuição das taxas de desemprego.
Nessa direção, Costa (2003) coloca em evidência os sentimentos que a escola desperta
ainda hoje, fazendo uma análise do papel significativo da mesma em nossas vidas e na
sociedade. De acordo com a autora,
a idéia de que ela (a escola) tem poder para mudar a vida das pessoas e pode
contribuir para que a sociedade e o mundo se tornem melhores parece que ainda
persiste com muita vitalidade. Talvez seja daí, desse nicho de representação da
escola como detentora de um saber-fazer que habilita para a sociedade, para o
mundo e para a vida, que emerge a maior proliferação discursiva sobre ela (idem, p.
21-22).
Tais formas de pensar nos possibilitam compreender os motivos que levaram as
mulheres da Colméia a participar do curso “Mulher e Cidadania”. Nas falas dessas mulheres
tornou-se presente à necessidade de aprender, adquirir saberes e conhecimentos ou aprofundá-
los, o que podemos perceber nas seguintes falas:
Vim pra aprender várias coisas (Ana); Eu
vim pra aprender, porque têm muitas coisas que a gente não sabe (Adriana); Vim pra
aprender pra ensinar as minhas colegas (Gabriela); Vim pra aprender pra ensinar para os
meus filhos (Vera). A partir dessas falas, é possível perceber que elas entendem a escola como
um espaço de novas aprendizagens, de diferentes conhecimentos e saberes pertinentes para
suas vidas, saberes esses que são validados e legitimados social e culturalmente. Além disso,
percebemos o desejo e a necessidade de aprender, como se esses aspectos lhes conferissem o
status de pertencimento a determinado grupo social. Também emergiu de forma unânime nas
falas e comentários a concepção do curso como um espaço de socialização, onde elas
encontram as amigas e esquecem os problemas do dia-a-dia, como refere uma das integrantes:
A gente encontra com as amigas, ri, se diverte e aprende (Roberta).
108
O curso “Mulher e Cidadania” propiciou a constituição de um grupo de interlocutores,
que através das suas narrativas compartilharam, problematizaram e (re)construíram alguns
significados a respeito de suas histórias de vida. As narrativas apresentadas evidenciam o
quanto o curso foi significativo para essas mulheres, uma vez que elas tiveram a oportunidade
de expressar suas vivências, sentimentos e opiniões, bem como estreitar os laços de amizade.
Por fim, este estudo nos possibilitou perceber que os motivos pelos quais algumas
mulheres não tiveram acesso à escola ou os motivos que impossibilitaram a continuação dos
seus estudos foram atravessados pelas representações naturalizadas de gênero, que partem do
pressuposto de que a função “natural” da mulher é cuidar da casa, filhos e marido, e que para
tanto, estudar se torna inviável e/ou não é necessário. Também evidenciou que essas mulheres
estão sendo interpeladas pelos discursos que enfatizam a educação escolarizada como capaz
de transformar a vida das pessoas através do conhecimento adquirido e da inserção social.
Nesse sentido, ao analisar as narrativas apresentadas, buscamos discutir e
problematizar alguns discursos e práticas socioculturais que, ao transitarem e se
correlacionarem no âmbito social, estiveram e estão implicados na constituição das mulheres
da Colméia, ensinando-lhes modos de ser, agir e interpretar as coisas do mundo.
Para finalizar, talvez o processo de contar e ouvir histórias tenha criado condições para
essas mulheres (re)pensarem as suas vivências escolares ou a ausência delas, como também os
sentidos atribuídos à educação, possibilitando desnaturalizar os significados atribuídos tanto
às experiências vividas quanto aos entendimentos acerca da educação. Assim, se por um lado,
ao contarmos e ouvirmos histórias, corremos o risco de fixar os significados e as identidades
hegemônicas; por outro, ao tomarmos as histórias como textos abertos que podem ser
modificados, quando se tornam objetos de nossas análises, criamos condições para que elas
sejam contestadas, questionadas e, talvez, desconstruídas e subvertidas (RIBEIRO, 2002).
4.3.7 Referências Bibliográficas
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5. ENTÃO...
112
Ao (re)visitar os encontros do curso “Mulher e Cidadania”, fui (re)construindo e
(re)significando as narrativas produzidas pelas mulheres da Colméia. Nesse sentido, busquei
discutir como as diversas instâncias sociais como a família, a escola, a mídia, a igreja, o
hospital e artefatos culturais os programas de TV, as novelas, as revistas, os jornais, os
anúncios publicitários, as campanhas de saúde, as músicas, entre outros –, através de
discursos e práticas sociais, estão implicados na produção das identidades, na fabricação de
determinados tipos de sujeito, (con)formando e governando os corpos e a vida das pessoas, de
acordo com códigos, regras e convenções estabelecidos social e culturalmente.
Assim, procurei perceber e problematizar alguns discursos – do corpo saudável e ideal,
da educação escolarizada, da mídia, da educação em saúde, da mulher como mãe e dona-de-
casa – e práticas sociais – o casamento, a maternidade, os cuidados com o corpo, as atividades
domésticas, etc. Tais discursos e práticas participaram e participam da constituição dos
sujeitos, especialmente, neste estudo, da mulher, da mãe, da esposa, da dona de casa, do corpo
feminino. Assim, busco chamar a atenção para determinadas representações que precedem e
atravessam os corpos, fabricando as mulheres da Colméia. Ao proceder de tal forma, procurei
destacar como tais elementos inscrevem diferentes marcas nos corpos, ensinando costumes,
valores, crenças, maneiras de perceber-se, de ser e de agir como mulheres e de pensar e atuar
com relação aos seus corpos.
Ao analisar as narrativas das mulheres da Colméia, percebi que as representações de
corpo feminino produzidas e veiculadas especialmente na mídia, nas revistas e jornais, vêm
produzindo e instituindo certos significados com os quais elas aprendem a se identificar.
Nessa perspectiva, considero importante pensar e analisar sobre essas representações, na
tentativa de compreender que circulam representações hegemônicas de corpo feminino
engendrados em relações de poder, que interpelam e produzem nas mulheres pesquisadas o
desejo de querer ser de determinada maneira, se reconhecer e se pensar de determinado jeito e
ter vontade de “consumir” certos produtos. Tais entendimentos possibilitaram-me
compreender, de alguma maneira, as razões pelas quais muitas mulheres não estão satisfeitas
com o seu corpo e, portanto, consomem produtos e investem no corpo, um corpo que deve ser
“perfeito”, belo, saudável, magro, jovem, estar de acordo com a moda atual e apresentar
determinadas atitudes, valores e comportamentos. Pude perceber que esses significados vêm
interpelando as mulheres da Colméia, que buscam de alguma maneira se incluir nesse
discurso, uma vez que elas investem no corpo de acordo com suas condições financeiras, que
as identificam como pertencentes a determinada cultura.
113
As mulheres desta pesquisa também estão sendo inscritas por significados que
circulam nas recorrentes políticas e campanhas voltadas à prevenção de doenças e promoção
da saúde sexual. Essas instâncias, enquanto estratégias pedagógicas, instituem
comportamentos que devem ser seguidos pela população e que interferem nas escolhas
pessoais, estabelecendo principalmente, como, as mulheres e os homens podem ou devem agir
para viverem suas vidas de forma mais saudável. Portanto, tais instâncias exercem uma
pedagogia, que além de ensinar como se prevenir das DST, do HIV/AIDS, do câncer de
mama, do HPV, também atua na produção dos corpos e das identidades de gênero e sexuais.
Pude perceber nas narrativas dessas mulheres que, se por um lado, elas são interpeladas por
essas estratégias como, por exemplo, a utilização de preservativos, da pílula, a realização do
auto-exame da mama, a adesão à laqueadura, por outro, elas resistem não realizando os
exames preventivos de câncer de colo uterino, não utilizando a camisinha (feminina e
masculina) nas relações sexuais, não realizando o teste anti-HIV.
Este estudo, também me possibilitou problematizar as representações naturalizadas de
gênero; por exemplo, o pressuposto de que a função “natural” da mulher é ser mãe, esposa,
cuidar da casa, dos filhos e marido, que posicionaram e/ou posicionam e constituíram e/ou
constituem as mulheres da Colméia. Tais representações estiveram implicadas nos motivos
pelos quais algumas dessas mulheres não tiveram acesso à escola ou nos motivos que
impossibilitaram a continuação dos seus estudos. No que se refere à educação escolarizada, a
presente pesquisa também evidenciou que essas mulheres estão sendo capturadas pelos
discursos que enfatizam a educação escolarizada como capaz de transformar a vida das
pessoas através dos conhecimentos adquiridos para a inserção no mercado de trabalho.
Transitar nas narrativas das mulheres da Colméia acerca de suas vivências
possibilitou-me entender: o sujeito como produzido nos acontecimentos que experiencia
cotidianamente como, por exemplo, no casamento, na maternidade, na moda, nos anúncios
publicitários, nos cuidados com o corpo, no embelezamento feminino, nas campanhas de
saúde, dentre outros; e, o corpo como superfície de inscrição de acontecimentos biológicos,
sociais e culturais e não como algo dado a priori, como se ele fosse dotado de essências
biológica, histórica e/ou transcendental.
Nesse sentido, as discussões e questões, sucintamente apresentadas aqui, não têm a
pretensão de ser afirmações definitivas e inquestionáveis, mas ao contrário, a partir da
perspectiva teórica que assumi neste estudo, elas representam apenas algumas reflexões
relativas aos processos de produção dos sujeitos e das identidades, contribuindo, talvez, com
outras formas de pensar e compreender o corpo e a vida, não como acontecimentos inevitáveis
114
ou “verdades” cristalizadas na história, mas como profundamente implicados na cultura,
podendo, assim, ser desnaturalizados, desestabilizados e reinventados.
Para finalizar, acredito que o processo de contar, ouvir e contrapor algumas histórias a
outras tenha criado condições para as mulheres da Colméia (re)pensarem e interrogarem as
suas histórias de vida e, eventualmente, modificarem os significados atribuídos ao corpo, ao
gênero e à sexualidade, entendendo-os não como resultados “naturais”, mas como
profundamente implicados na cultura e na história.
6. ALGUNS APONTAMENTOS E PERSPECTIVAS...
116
A minha participação no curso “Mulher e Cidadania” não encerrou com a produção
desta dissertação, que resultou dos primeiros encontros realizados com as mulheres da
Colméia, desenvolvidos durante os anos de 2004 e 2005. Nesse sentido, continuamos a nos
encontrar sistematicamente com essas mulheres, com o objetivo de discutir, aprofundar e
compartilhar conhecimentos acerca do corpo, gênero e sexualidade, bem como problematizar
e desnaturalizar os significados atribuídos a essas questões. Assim, o curso “Mulher e
Cidadania” que teve início caracterizado como um curso de extensão da FURG, hoje se
constitui em um projeto de pesquisa e conta com o apoio do CNPq.
Nesse período algumas ações se multiplicaram...
Estimulado pelo trabalho desenvolvido junto às mulheres da Colméia, o Grupo de
Pesquisa Sexualidade e Escola desenvolveu, no ano de 2006, o projeto “Para começo de
conversa: ficar, namorar, transar, amor, prazer, desejo, responsabilidade, sexo seguro...”, com
o objetivo de estender as ações do curso “Mulher e Cidadania” aos/as filhos/as adolescentes
dessas mulheres. Nesse mesmo ano, com o apoio do GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção à
AIDS), conseguimos que as mulheres da Colméia realizassem exames ginecológicos e de
anti-HIV. Para tanto, foram acompanhadas ao Posto 4 do Rio Grande/RS para que fizessem os
exames, bem como foram disponibilizadas passagens para que pudessem se deslocar do bairro
onde residem ao Posto 4, e, posteriormente, pudessem retirar os resultados dos exames.
Ao olhar agora para tais acontecimentos penso nos efeitos que produzi pela minha
prática enquanto pesquisadora, seja por minha interação com as mulheres da Colméia seja por
aquilo que produzi na minha escrita, o que me levou a pensar na importância de o pesquisador
problematizar constantemente suas práticas. É movida por tais acontecimentos e pelo
entendimento de que o meu papel enquanto pesquisadora é desestabilizar, é provocar
mudanças, é fazer alguma diferença na minha vida e na vida das pessoas com quem me
relaciono, é buscar uma nova política de verdade (FOUCAULT, 2006), que desejo iniciar
outros projetos e, principalmente, dar continuidade ao trabalho realizado com as mulheres da
Colméia. Enfim, penso que colocar um “ponto final” neste estudo foi difícil, porém
necessário; entretanto, não significa o seu fim, mas o início de uma outra caminhada, sonhos,
desejos, projetos, perspectivas...
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2004. p. 37-69.
WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira L. et al. O corpo educado:
pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 35-82.
8. ANEXOS
124
ANEXO A – ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA
Questões:
1) Qual o nome, idade, estado civil...?
2) Qual o nome dos filhos, quantos são, idade, escolaridade...?
3) Qual a ocupação?
4) Qual o nível de escolaridade?
5) Quando e como foi a primeira menstruação?
6) Quando e como foi a primeira relação sexual?
7) Quais os métodos contraceptivos que conhece, já utilizou e utiliza?
8) Quantos partos fez, como foram e onde ocorreram?
9) Quantos companheiros já teve e como eram os relacionamentos?
10) Conhece alguma DST? Já adquiriu alguma?
11) Com que freqüência vai ao ginecologista?
12) Fez algum aborto? O que pensa sobre?
125
ANEXO B – QUESTIONÁRIO
1. Nome:
2. Idade: Data de nascimento: Local onde nasceu:
3. Escolaridade:
4. Estado civil:
5. Tendo companheiro/a: Há quanto tempo está com o/a atual?
6. É a 1ª união? Única? Quantas? Qual o tempo de duração de cada uma delas?
7. Que idade tem em média seu/sua companheiro/a?
8. Qual a profissão dele/a?
9. Têm filhos? Quantos? Qual é a idade, o sexo e a escolaridade de cada um deles?
10. Você tem algum filho que não está na escola?Por quê?
11. Como foram os partos? ( ) normal quantos? ( ) cesárea quantos? Você já provocou ou
teve aborto espontâneo? Quantos?
12. Você tem enteados? Quantos? Qual é a idade, o sexo e a escolaridade de cada um
deles?
13. Você trabalha fora? Em quê? Onde?
14. Qual turno? Fica longe de sua casa? Precisa usar ônibus? Quem cuida da casa ou dos
filhos enquanto trabalhas?
15. Qual é o seu endereço?
16. A sua casa é própria? Paga aluguel? Divide o terreno com outros? Com quem?
17. De que material é construída a sua casa? ( ) madeira ( ) alvenaria ( ) outros
18. Quantos cômodos (peças) têm sua casa? Quantas pessoas vivem nela? Qual é a renda
da sua família?
19. Na sua casa tem: ( ) água encanada ( ) luz ( ) televisão ( ) geladeira ( ) fogão ( ) camas
individuais ( ) banheiro ( ) chuveiro quente ou frio ( ) ferro de passar ( ) celular ( )
máquina de lavar ( ) livros e revistas
20. Você e sua família têm alguma religião? Qual?
126
ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Objetivos do projeto: Criar espaço de reflexão e discussão acerca da sexualidade e
das questões pertinentes à temática, buscando esclarecer dúvidas e desconstruir mitos a
respeito do assunto.
Informações gerais sobre os encontros, gravações e a utilização das produções (textos,
desenhos, falas, cartazes).
Você está sendo convidada para participar de encontros semanais de aproximadamente
2 h. Para melhor compreensão das informações, estes encontros serão gravados e as
produções fotocopiadas.
Confidencialidade
A sua participação nestes encontros é totalmente confidencial e voluntária. Ninguém
além dos pesquisadores terá acesso ao que você disser aqui. Seu verdadeiro nome não será
escrito ou publicado em nenhum local. Toda informação será guardada com número de
identificação.
Sua participação
Caso você deseja obter alguma informação relacionada ao projeto, contate as
coordenadoras Paula Regina Costa Ribeiro e Guiomar Freitas Soares, através do telefone 53-
3233 66 74 (CEAMECIM FURG). Sua participação é voluntária podendo recusar-se
inclusive a responder qualquer pergunta, bem como, deixar de participar dos encontros.
Você tem alguma pergunta a fazer?
VERIFICAÇÃO DO CONSENTIMENTO
Declaro que li ou leram para mim o consentimento acima e aceito participar da
pesquisa.
______________________ ______________________
Assinatura da participante Assinatura da pesquisadora
________________
Data
127
ANEXO D – MÚSICA MULHER – SEXO FRÁGIL (ERASMO CARLOS)
Dizem que a mulher é o sexo frágil
Mas que mentira absurda
Eu que faço parte da rotina de uma delas
Sei que a força está com elas
Veja como é forte a que eu conheço
Sua sapiência não tem preço
Satisfaz meu ego se fingindo submissa
Mas no fundo me enfeitiça
Quando eu chego em casa à noitinha
Quero uma mulher só minha
Mas pra quem deu luz não tem mais jeito
Porque um filho quer seu peito
O outro já reclama sua mão
E o outro quer o amor que ela tiver
Quatro homens dependentes e carentes
Da força da mulher
Mulher, mulher
Do barro de que você foi gerada
Me veio inspiração
Pra decantar você nesta canção
Mulher, mulher
Na escola em que você foi ensinada
Jamais tirei um 10
Sou forte, mas não chego aos seus pés.
128
ANEXO 5 – TEXTO AFINAL O QUE É MENSTRUAÇÃO?
O que é menstruação?
A explicação científica para a menstruação é: descamação cíclica do útero. Isso quer dizer
que, de tempos em tempos, o útero órgão do corpo feminino que abriga o bebê durante a
gravidez – se prepara para recebê-lo. Caso não haja fecundação, ou seja, se nenhum óvulo for
fecundado por um espermatozóide, uma espécie de ninho, preparado para acolher o feto, se
desfaz e é eliminado através da menstruação.
Mulher menstruada tem mais desejo?
Durante o mês ocorrem mudanças hormonais e que pode influir no desejo de parte das
mulheres. Algumas têm mais desejo antes da menstruação, outras durante e outras depois.
Dá para eu fazer sexo oral se eu estiver menstruada?
É uma prática que depende da preferência de cada um. Uma saída para isso é usar camisinha
feminina. Vale repetir: contato direto com sangue (ou esperma) não é legal. Isso pode
transmitir uma série de doenças sexualmente transmissíveis. Portanto, camisinha é
fundamental!
De quanto em quanto tempo fico menstruada?
Em média, os ciclos variam de 28 a 31 dias. No entanto, nos dois primeiros anos da
menstruação, esse ciclo em geral é irregular. Algumas mulheres podem ter o ciclo irregular
durante quase toda a vida, precisando conversar com seu ginecologista para ter certeza de que
tudo está normal.
Quantos dias fico menstruada?
Normalmente, a menstruação dura de 3 a 5 dias, mas pode variar de mulher pra mulher.
Com que idade paro de menstruar?
Não é para sempre. Por volta dos 48 anos, a mulher deixa de menstruar. Ela entra no período
da menopausa, quando pára de produzir os hormônios estrogênio e progesterona.
Por que e quando fico menstruada?
Enquanto os homens passam a maior parte da vida produzindo testosterona (o hormônio
masculino) regularmente, a mulher passa a produzir o estrogênio e a progesterona a partir de
uma certa fase da vida e é a partir dessa produção de hormônios que ela menstrua. A idade
mais comum para a primeira menstruação é entre 11 e 13 anos. No entanto, é normal que esse
período varie dos 9 aos 16 anos.
129
O que é a cólica?
A menstruação vem e, junto com ela, uma danada de uma dorzinha no baixo-ventre. A cólica
é comum a 40% das mulheres, variando apenas na intensidade, pois a dor pode se irradiar
para a região lombar e par a as coxas, ser mais ou menos passageira. Geralmente a cólica,
acompanha os ciclos menstruais normais e ocorre logo após as primeiras menstruações,
cessando ou diminuindo de intensidade em torno dos 20 e poucos anos ou com a gravidez. É
devida ao aumento da produção de algumas substâncias pelo útero, que promovem contrações
uterinas dolorosas. A cólica também está associada a alterações do sistema reprodutivo, como
endometriose, miomas uterinos, infecção pélvica, anormalidades congênitas da anatomia do
útero ou da vagina, uso de DIU (dispositivo intra-uterino) como método anticoncepcional.
De onde vem a dor?
As cólicas começam a aparecer quando o ciclo menstrual fica regular, o que pode levar em
média dois anos. Quando isso acontece, significa que a mulher está produzindo óvulos e seu
útero se reveste todos os meses de uma camada protetora, o endométrio. Quando o óvulo não
é fecundado, será eliminado junto com essa camada, o que resulta na menstruação. Para que
isso ocorra, o útero passa por contrações provocadas por ação hormonal. Em algumas
mulheres as contrações são mais fortes. Quanto maior o fluxo menstrual, maior a tendência de
cólica.
O que é colo fechado?
Outra teoria sobre a causa da cólica está no útero cujo colo é muito fechado. Isso resulta num
aumento de contrações para facilitar a saída da menstruação. Os desequilíbrios hormonais
podem aumentar a dor e as pesquisas já mostraram que ela é mais forte nos períodos extremos
da vida fértil. Segundo os médicos, a cólica não passa de mãe para filha, mas é comum ver
ambas sofrerem do mesmo desconforto. Acredita-se que os hábitos familiares possam ter
influência. Às vezes, a mãe trata a menstruação como algo tão negativo que esse período
passa a ser visto pela filha do mesmo modo, com reflexos como a dor. Nesses casos, pode
acontecer de a cólica vir acompanhada até de vômitos, desmaios e alterações intestinais.
O que é TPM?
Mesmo sem se saber direitinho o que causa a TPM (tensão pré-menstrual), quase todo mundo
sabe o quanto os sintomas dela podem atrapalhar a vida da mulher. Os sintomas, porém,
variam de uma pessoa para outra. Algumas mulheres sentem dores nas costas, outras nas
pernas e outras chegam a ficar inchadas, devido à retenção de líquidos. Depressão, carência,
sono e cólicas são os sintomas mais comuns. O que fazer para combater a TPM? Isso só o seu
ginecologista pode dizer, já que cada caso é um caso!
130
ANEXO F – RESPONDA SIM OU NÃO
1) Você sabe quais doenças sexualmente transmissíveis não têm cura?
( ) Sim
( ) Não
2) Você sabe qual a idade mínima para se usar o DIU?
( ) Sim
( ) Não
3) A camisinha pode ficar no corpo da mulher depois da relação sexual?
( ) Sim
( ) Não
4) Sexo anal sem camisinha pode engravidar?
( ) Sim
( ) Não
5) Quando uma mulher transa com outra é preciso usar camisinha feminina?
( ) Sim
( ) Não
6) Você acha que as drogas podem influenciar na relação na relação sexual?
( ) Sim
( ) Não
7) É possível chegar ao orgasmo só fazendo carícias?
( ) Sim
( ) Não
8) Você acha que é necessário fazer sexo oral usando camisinha?
( ) Sim
( ) Não
9) Jogar jatos de água dentro da vagina pode ser prejudicial?
( ) Sim
( ) Não
10) Se a camisinha estourar antes que o seu parceiro goze, você acha que pode engravidar?
( ) Sim
( ) Não
11) Se uma mulher transar com um cara que tenha o vírus HIV, sem camisinha, ela tem como
saber se foi contaminada ou não, uma semana depois?
( ) Sim
( ) Não
131
ANEXO G – TEXTO CUIDADOS COM O CORPO, SEXUALIDADE E RELAÇÃO
SEXUAL
O exame ginecológico
Não é do exame ginecológico que a mulher tem medo, mas sim de todo o
imaginário dos mitos e lendas que envolvem os seus órgãos sexuais (a vagina é feia, é suja, a
mulher deve se envergonhar dela). Além, é claro, da dificuldade de lidar com o corpo,
causada pela cultura sexual de que participamos. A relação dos profissionais de saúde
(médicos, enfermeiras etc.) com as mulheres também dificulta o exame, principalmente
porque a relação médico-paciente é muito desigual em termos de saber e poder, ou seja,
muitas mulheres e muitos profissionais acreditam que só o profissional de saúde sabe e decide
sobre o corpo feminino.
O auto-exame de mamas
O auto-exame de mamas pode ser feito na hora do banho ou deitada, sem travesseiro.
Com o braço atrás da cabeça, apalpa-se toda mama de fora para dentro, de maneira circular e
no sentido anti-horário, fazendo uma suave compressão. O que se busca são os caroços e/ou
saída de líquidos pelo mamilo (sangue, soro, soro com sangue) após suave compressão.
Mulheres acima de 35 anos devem fazer também a mamografia.
O exame dos genitais feminino
O exame dos genitais é feito a partir da inspeção da vulva pelo médico, que depois
coloca o especulo (bico de pato) para examinar a vagina e o colo do útero. O exame com
especulo, geralmente é feito somente em mulheres que já tiveram relação sexual. As mulheres
que nunca tiveram coito (relação sexual vaginal), excepcionalmente, necessitam desse exame.
É no colo do útero que é colhido o material para o exame preventivo de câncer de colo
uterino, que deve ser feito uma vez por ano. Para esse exame, não se tira pedaço ou líquido, e
sim apenas algumas células. Com um pedaço de pau (parecido com palito de picolé),
chamado espátula, faz-se uma raspagem em torno do colo (vagina). Colhe-se também material
do canal do colo com uma pequena escova arredondada. É nesse material colhido que se faz o
exame de Papanicolau para descobrir células com potencial de se tornarem malignas
(cancerosas), ou que já se tornaram.
132
Uma importante recomendação para as mulheres
É muito importante que cada mulher possa conhecer sua vulva. Diferente do homem,
que tem seu genital para fora, o da mulher está para dentro. Sabemos que é difícil para a
mulher tocar e explorar sua vulva, devido à grande “repressão sexual” que vivemos nos
últimos séculos. Entretanto, recomendamos que, com a ajuda de um espelho na direção de sua
vulva; examine a cor, um rosa avermelhado, e a forma. Conheça sua vulva, pois assim como a
forma do rosto é diferente em cada mulher, a nossa vulva também é individual e única.
Sexualidade e relação sexual
O que muda no corpo quando a pessoa faz sexo? Primeiro, antes de fazer sexo, a
pessoa sente vontade. Nem todas as vezes que se sente vontade de fazer sexo é possível
concretizar a relação. E, às vezes, também pode acontecer de se fazer sexo sem estar com
vontade.
A vontade de fazer sexo se chama desejo ou apetite sexual. Várias coisas podem
estimular o desejo sexual: um perfume, uma música, uma lembrança, olhar ou ser tocada pela
pessoa que amamos, ver uma cena erótica na TV, etc. Pessoas diferentes sentem desejo sexual
por motivos diferentes.
Forças físicas e psicológicas podem afetar o tesão. Se a pessoa estiver cansada, doente,
triste ou ansiosa, se acreditar que o sexo é mau, ou se tiver sido magoada ou rejeitada, é
provável que não sinta muito desejo sexual.
Quando se faz sexo, o corpo sofre mudanças devido à excitação sexual. A excitação é
resultado da troca de carinhos, toques, beijos e palavras entre o casal. Mamas, orelhas, barriga
e clitóris são pontos onde a mulher sente muito prazer sexual. Mas o corpo é um vasto
território a ser explorado, por isso a mulher/casal deve buscar sempre novos pontos de prazer.
Algumas mudanças acontecem no corpo durante a excitação sexual: o rosto fica
avermelhado, a respiração fica mais rápida, o coração bate mais depressa, e uma grande
quantidade de sangue vai para a região da vulva.
O sangue que chega à vulva faz a vagina “suar”. É por isso que se diz que a mulher
fica “molhada” quando está com tesão. Algumas mulheres ficam mais molhadas do que
outras, e a mesma mulher pode ficar mais molhada em uma situação e menos em outra.
Mulheres depois da menopausa tendem a ficar menos molhadas do que antes. Estar
“molhada” facilita que o pênis entre na vagina. Quem já teve uma relação sem estar excitada e
molhada sabe como dói quando o pênis entra “a seco”. No homem, o sangue que chega ao
pênis faz o pinto ficar duro (ereção).
133
A vagina também se alarga, durante a excitação sexual, para a entrada do pênis. Para
perceber essa mudança, a mulher pode fazer um exercício: colocar o dedo dentro da vagina
quando não estiver excitada e colocar de novo quando estiver excitada (observe a diferença).
Se a relação sexual estiver gostosa, a excitação sexual vai crescendo até a pessoa
chegar ao orgasmo, que é o ponto máximo de prazer, depois do qual se sente um grande
relaxamento e satisfação. Algumas mulheres têm o orgasmo apenas com o pênis dentro da
vagina. Outras precisam que o clitóris seja tocado com a mão ou com a boca do parceiro.
Algumas mulheres têm vários orgasmos de uma vez, enquanto outras têm um de cada
vez. O importante é saber que a quantidade de orgasmos não tem relação com a satisfação
sexual.
Depois do orgasmo, a mulher pode continuar excitada e com vontade de descansar e
dormir. Às vezes, entre o casal, um quer continuar e o outro quer dormir. É conversando que o
casal vai entrando em um acordo. O importante é falar (e ouvir) com sinceridade sobre os
sentimentos, as satisfações e insatisfações.
Algumas mulheres demoram para sentir o orgasmo depois que começam sua vida
sexual, às vezes anos. Outras podem nunca chegar a tê-lo. A ausência do prazer sexual pode
ser resultado de um bloqueio na educação das mulheres, que é muito repressora quando o
assunto é sexo. Pode também ser devida a um momento desfavorável: ou porque o casal não
tem muita privacidade (divide a casa com parentes ou divide o quarto com os filhos), ou
porque está em uma fase ruim do relacionamento. Mas a mulher que não tem prazer não é
menos mulher; entretanto, seria bom para ela, e para sua satisfação sexual, procurar se
informar mais sobre o assunto com um profissional.
Mas a sexualidade do casal não é só a relação sexual. Conversas, carinhos e afagos são
tão ou mais importantes do que o sexo. Às vezes, a correria do dia a dia, o trabalho em casa
com os filhos e a falta de dinheiro dificultam que o casal tenha tempo para namorar. Essa
situação é compreensível e comum, mas o casal deve tentar solucioná-la através do diálogo.
É importante lembrar que nem de quantidade vive o sexo. Pode acontecer de um
casal que não está muito bem ter mais relação sexual do que um casal ajustado. O importante
não é quantas vezes fazemos sexo com nosso parceiro, mas se é um sexo bom e gostoso. Cada
casal tem um ritmo, e uma vez por mês pode ser melhor do que todo dia.
134
ANEXO H – MÚSICA MANIA DE VOCÊ (RITA LEE)
Meu bem você me dá água na boca,
Vestindo fantasia, tirando a roupa,
Molhada de suor
De tanto a gente se beijar,
De tanto imaginar loucuras!
A gente faz amor por telepatia,
No chão, no mar, na lua, na melodia.
Mania de você,
De tanto a gente se beijar,
De tanto imaginar loucuras!
Nada melhor do que não fazer nada,
Só pra deitar e rolar com você!
Meu bem você me dá água na boca,
Vestindo fantasia, tirando a roupa,
Molhada de suor
De tanto a gente se beijar,
De tanto imaginar loucuras!
A gente faz amor por telepatia,
No chão, no mar, na lua, na melodia.
Mania de você,
De tanto a gente se beijar,
De tanto imaginar loucuras!
Nada melhor do que não fazer nada,
Só pra deitar e rolar com você!
135
ANEXO I – MÚSICA AI QUE SAUDADES DA AMÉLIA (MÁRIO LAGO E
ATAULFO ALVES)
Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: "benzinho, o que se há de fazer"
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
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