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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Cassiano Pamplona Lisboa
(RE)CONTANDO HISTÓRIAS:
o ambiente tematizado a partir dos itinerários de vida
Porto Alegre
2007
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2
CASSIANO PAMPLONA LISBOA
(RE)CONTANDO HISTÓRIAS:
O AMBIENTE TEMATIZADO A PARTIR DOS ITINERÁRIOS DE VIDA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Educação - linha de pesquisa
Educação, Culturas, Memórias, Ações Coletivas e
Estado.
Orientador: Prof. Dr. Nilton Bueno Fischer
Porto Alegre
2007
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3
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO-CIP
_________________________________________________________________________
L769r Lisboa, Cassiano Pamplona
(Re)contando histórias : o ambiente tematizado a
partir dos itinerários de vida [manuscrito] / Cassiano
Pamplona Lisboa. – Porto Alegre : UFRGS, 2007.
180 f.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-
Graduação em Educação, Porto Alegre, BR-RS, 2007.
Orientação: Nilton Bueno Fischer
1. Espaço – Migrante – Esteio, RS. 2. Espaço – Tempo
– Memória – Ambiente – Migrante. 3. Educação ambiental.
4. Processo migratório – Memória. I. Fischer, Nilton Bueno.
II. Título.
CDU: 37:574.3:325.11
_________________________________________________________________________
Bibliotecária responsável: Jacira Gil Bernardes CRB 10/463
4
Para meus pais, Ligia e Marco Aurélio (pólos
opostos, mas complementares no meu
desenvolvimento), pelo amor incondicional e
constante incentivo, e para minha filha Ananda (que
se prepara para perder o primeiro dente de leite),
por desacelerar o mundo com seus sorrisos.
5
AGRADECIMENTOS
Ao término desta etapa, quero agradecer...
...à Laís, com quem tenho compartilhado alegrias e enfrentado desafios, pela paciência,
compreensão, apoio, amor e habilidade em me trazer ao “chão”;
...ao professor Nilton Bueno Fischer, meu orientador nessa empreitada, pela acolhida,
generosidade, incentivo e pelos profícuos ensinamentos (para muito além daqueles restritos ao
campo da educação...);
...à professora Eunice Aita Isaia Kindel, pelo exemplo, amizade e incentivo desde os tempos
da graduação; também pela leitura criteriosa e pelas sugestões agregadas ao projeto;
...à professora Carmem Maria Craidy, pelas aulas do seminário Introdução à Metodologia de
Pesquisa em Educação e Ciências Sociais, fundamentais para a transformação de um
conjunto de inspirações iniciais numa proposta de trabalho; também pela leitura criteriosa e
sugestões agregadas ao projeto;
...à professora Isabel Cristina de Moura Carvalho, pela inspiração conferida ao presente
trabalho através dos seus escritos; também pela leitura criteriosa e pelas sugestões agregadas
ao projeto;
...à professora Maria Stephanou, pelas aulas do seminário Narrativas de Memórias, História
Oral e Escrituras Ordinárias na História da Educação, fundamentais para a construção
metodológica do trabalho;
... à Jacimara Machado Heckler, pela atenção dispensada durante o processo de seleção e
início do curso (meu ingresso no mestrado);
...aos colegas do grupo de orientação, pelos saberes e sabores compartilhados;
...ao Leonardo e à Aline, membros da equipe diretiva da Escola Estadual Dyonélio Machado,
pela receptividade à proposta de trabalho; e também à Elenita, pela alegria e disposição com
que sempre nos recebeu;
...à ONG ARQVIVE, nas pessoas de Érico e Yuri, pela digitalização das gravações realizadas,
tarefa essa que em muito agilizou os trabalhos de transcrição e análise das informações
construídas;
...ao CNPq, pela concessão da bolsa que viabilizou a realização do presente trabalho;
... e, principalmente, aos prezados participantes dessa investigação, Angela, Demoestenes,
Luiz Armando, Manoel, Maria Clair, Maria Santa, Márcia, Paulo, Osvaldo e Rejane, sem os
quais nada disso teria sido possível.
6
RESUMO
Esta dissertação aborda os modos através dos quais o espaço é (re)significado em
função do deslocamento de um lugar para o outro e da passagem do tempo (experimentada
em um mesmo lugar). É o resultado de uma investigação empírica realizada junto a um grupo
de migrantes homens e mulheres atuais moradores de uma região localizada na periferia
do município de Esteio e que se fundamentou nas reminiscências narradas em encontros
coletivos e individuais (pesquisador-pesquisado). Dessa forma, para compreender como o
processo de migração foi experimentado pelos sujeitos entrevistados e, nele, como se deu a
atualização das relações com os lugares (de onde saem, por onde passam e nos quais se
radicam), recorreu-se, em primeira instância, a um conjunto de memórias individuais.
Enquanto parte de um processo educativo mais amplo – educação ambiental –, o
presente trabalho pretendeu fornecer subsídios para se (re)pensar a dinâmica dos processos
migratórios e de expansão das cidades (constituição de periferias urbanas). Além disso,
objetivou conferir às discussões que nos constituíam como grupo uma profundidade histórica
particular (relacionada com o lugar) a partir da qual pudéssemos tematizar as relações entre
sociedade, cultura e os demais elementos físicos e biológicos do meio, isto é, o ambiente
enquanto campo relacional.
Os estudos empreendidos sugerem a migração enquanto um processo contínuo, que se
estende para além do deslocamento físico entre lugares e se prolonga por toda a vida do
migrante. Entre suas principais condições de possibilidade aparecem as redes de
sociabilidade/solidariedade e os deslocamentos anteriormente efetuados. A (re)construção do
espaço, por sua vez, dá-se a partir do encontro entre “velhos e novos mundos”: novos mundos
que se constroem a partir dos velhos e velhos mundos que se reconstroem a partir dos novos.
Envolve a transformação material da paisagem e uma constante (re)construção de significados
através das quais não o meio é modificado, mas também aqueles seus habitantes e sujeitos.
Por fim, o trabalho de rememoração realizado em grupo, para além dos seus objetivos
imediatos e circunscritos, revelou-se um profícuo espaço educativo, permitindo não apenas a
emergência de um rico conjunto de informações, mas principalmente a ampliação e
reformulação da compreensão dos participantes sobre si mesmos, uns sobre os outros e
também sobre o espaço de vida compartilhado.
PALAVRAS-CHAVE: Educação ambiental – Memória. Migração. Espaço.
7
ABSTRACT
This dissertation approaches the means by which space is (re)signified due to
relocation and to time passing (experienced in a single place). It is the result of an empirical
investigation carried out within a group of migrants men and women currently residing in
a region in the outskirts of the city of Esteio. Such investigation was based on memories
narrated in group and individual meetings (researcher researched). Therefore, in order to
understand how the migration process was experienced by the interviewed subjects and how
the relationships with places (where they come from, where they pass by and where they
settle) were updated, we have resorted to a gathering of individual memories.
Having parted from a wider educational process environmental education –, this
paper intends to furnish subsidies to (re)think the dynamic of migration processes as well as
the expansion of cities (constitution of urban outskirts). In addition, it was aimed at giving a
particular historical depth (related to the place) to the discussions we have had within the
group, from which we could approach the relationships between society, culture and the
remaining physical and biological elements of the area, or better, the environment as a
relationship field.
The studies thus conducted suggest that migration is a continuous process, which
extends beyond the physical relocation from place to place and stretches itself for the
migrant’s lifetime. Among its main conditions of possibility there are the sociability/solidarity
networks and the relocations that happened previously. The (re)building of space happens
from the moment that “old and new worlds” meet: new worlds that are built from the old and
old worlds that are rebuilt from the new. It also involves the material transformation of the
landscape and a constant (re)construction of meanings, through which not only is the
environment modified, but also its inhabitants and subjects. Finally, the work of remembering
carried out in group, beyond its immediate and restricted aims, has been revealed a proficuous
educational space, allowing not only the emergence of a rich amount of information, but also
the enlarging and reformulation of the participants’ comprehension of themselves, of one
another and of the space they share.
KEYWORDS: Environmental education – Memory. Migration. Space.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO (OS TEMPOS E OS ESPAÇOS)........................................................ 10
1. ANTECEDENTES (O LUGAR DE ONDE FALO)................................................... 17
A EMERGÊNCIA DO AMBIENTAL................................................................... 19
A EMERGÊNCIA DO EDUCATIVO.................................................................... 20
O ENCONTRO ENTRE OS DOIS CAMPOS: EDUCAÇÃO AMBIENTAL?..... 21
2. PRINCÍPIOS (A DIMENSÃO DO ENCONTRO: ESCUTA E AFETIVIDADE).. 24
3. EDUCAÇÃO AMBIENTAL (CONCEITUAÇÃO E PERSPECTIVAS)................ 27
NATUREZA E AMBIENTE .................................................................................. 28
O TEMPO E O ESPAÇO NAS PRÁTICAS EDUCATIVAS AMBIENTAIS....... 31
O Tempo...................................................................................................... 32
O Espaço...................................................................................................... 34
4. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS................................................................ 38
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA........................................................................... 39
Pesquisa qualitativa e cultura ...................................................................... 39
Memória, composição, narrativas e reminiscências.................................... 41
Método biográfico, histórias de vida e depoimentos orais.......................... 47
Grupos focais e grupos de discussão........................................................... 53
Grupo de rememoração................................................................................ 58
DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES........................................................................ 63
A seleção dos participantes.......................................................................... 64
Os participantes........................................................................................... 68
Os encontros coletivos (grupo de rememoração)........................................ 71
A escolha do lugar........................................................................... 72
Convocatória.................................................................................... 73
A dinâmica de trabalho e o uso da filmadora.................................. 74
O caminho percorrido ...................................................................... 76
As entrevistas individuais (visitas domiciliares).......................................... 85
5. MIGRAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO ESPAÇO................................................... 90
MIGRAÇÃO........................................................................................................... 91
O processo da migração: contextualização.................................................. 94
‘Natureza’ do lugar de origem..................................................................... 95
Motivações................................................................................................... 98
Condições de possibilidade.......................................................................... 103
Itinerários (de vida)...................................................................................... 107
‘Natureza’ do lugar de destino..................................................................... 110
A experiência da migração (mais algumas considerações)......................... 116
(RE)CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO ...................................................................... 120
Espaço geográfico, objetos, ações e paisagens............................................ 120
Lugar ........................................................................................................... 125
(Re)construção do espaço: o encontro entre “velhos e novos mundos”
(dois exemplos)............................................................................................ 127
(Re)construção do espaço: a passagem do tempo e as transformações do
lugar de destino............................................................................................ 134
O arroio
............................................................................................ 135
9
O “mato”.......................................................................................... 142
O “banhado” ................................................................................... 147
6. A DIMENSÃO EDUCATIVA (AMBIENTAL) DA INVESTIGAÇÃO.................. 155
A DIMENSÃO DO ENCONTRO: INTERPRETAÇÃO, PRODUÇÃO DE
SENTIDOS, AUTO-RECONHECIMENTO.......................................................... 156
EDUCAÇÃO AMBIENTAL SOB A PERSPECTIVA DE UMA
SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS.............................. 161
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 171
ANEXO 1 – TERMO DE CONSENTIMENTO PÓS-INFORMADO......................... 175
ANEXO 2- IMAGENS...................................................................................................... 176
IMAGEM 1 (vista aérea)......................................................................................... 176
IMAGEM 2 (bairros - perpendicular)...................................................................... 176
IMAGEM 3 (bairros – diagonal)............................................................................. 177
IMAGEM 4 (ruas)................................................................................................... 177
IMAGEM 5 (Escola Estadual Dyonélio Machado)................................................. 178
IMAGEM 6 (ocupação “irregular”)........................................................................ 178
IMAGEM 7 (ocupação “irregular” - detalhe).......................................................... 179
IMAGEM 8 (Bairro São José – “banhado”)............................................................ 179
IMAGEM 9 (gravura).............................................................................................. 180
IMAGEM 10 (gravura – detalhe)............................................................................ 180
10
INTRODUÇÃO (OS TEMPOS E OS ESPAÇOS)
Alberto Melucci, no livro O jogo do eu (2004), fala a respeito das dificuldades que
encontramos para definir a experiência do tempo. Segundo ele, as referências que fazemos ao
tempo nos remetem imediatamente a uma noção experiencial deste; remetem-nos aquilo que,
por nossas próprias experiências, sabemos ser o tempo: “todos sabemos do que falamos
quando dizemos ‘tempo’” (MELUCCI, 2004, p.17). Contudo, é quando tentamos defini-lo
que as dificuldades se apresentam. Este antigo problema tem produzido, ao longo dos séculos,
diferentes estratégias para sua superação, dentre as quais, possivelmente a mais freqüente
tenha sido o uso de metáforas e mitos. Desde as culturas mais antigas, nas quais a referência
ao tempo vinha acompanhada de imagens divinas aquáticas (fluidas) ou cíclicas a
experiência do tempo vem sendo traduzida através de suas utilizações. A partir da análise de
três diferentes figuras o círculo, a flecha e o ponto - utilizadas para este fim, o de
“representar simbolicamente a dimensão indescritível do tempo” (MELUCCI, 2004, p.18), o
autor constrói um quadro que nos permite vislumbrar as principais transformações ocorridas
nas formas de se perceber o tempo ao longo da história.
Na figura do círculo o tempo é representado como um eterno retornar de todas as
coisas; “as coisas repetem-se e nada é definitivamente adquirido ou perdido” (MELUCCI,
2004, p.18). Essa metáfora, que encontra na natureza, nos seus ciclos e ritmos, suporte
material e inspiração, foi (e ainda é) utilizada por diversas culturas. A alternância entre os dias
e as noites, entre as estações do ano, as fases da lua, a vida e a morte, revelam a existência de
um tempo cíclico onde início e final tornam-se relativos; onde todo o início implica um final
que, por sua vez, implica um (re)início.
Esse tempo cíclico, representado pela figura do círculo, é resignificado pelo
cristianismo. A partir da idéia de gênese e de fim do mundo são instituídos os limites de um
percurso, agora, linear. O tempo, ainda que continue apresentando-se à experiência imediata
como uma sucessão de ciclos, ganha agora uma dimensão profunda (linear) onde tudo isso
acontece. O tempo da vida sobre este planeta é um tempo marcado entre sua origem e seu
anunciado final; o tempo da experiência passa também a ser o caminho que percorremos entre
o nascimento e a morte, um percurso progressivo e irreversível no qual a possibilidade de
salvação confere ao seu final o derradeiro sentido.
Com o advento da modernidade, essa idéia - a de uma redenção final -, resignificada,
ganha força e projeção:
11
A figura do círculo é substituída pela flecha, e o tempo, assim, segue um
rumo, tem uma finalidade que é também o seu fim, ou seja, é o ponto final
que sentido a todo o percurso precedente e ilumina as passagens
intermediárias. (...) A figura linear do tempo como flecha, seja ela
interpretada no que implica salvação ou progresso, impregna as raízes
profundas da cultura ocidental e alimenta, ainda hoje, nossa representação
do tempo. (MELUCCI, 2004, p.19)
Conforme destaca Melucci, a noção de tempo na modernidade assenta-se sobre duas
referências essenciais: a máquina e a meta. O tempo passa a ser medido por máquinas: é
dividido em unidades estáveis e equivalentes que permitem a atribuição de valores precisos a
cada uma delas. A partir daí, mais do que nunca, time is money”. Os ritmos e cadências que
governam a vida moderna deixam de ser ditados pelos ciclos naturais e passam a ser
marcados pelo “tic-tac” dos relógios. As experiências do tempo são forçosamente
homogeneizadas: o tempo social desencontra-se cada vez mais dos tempos internos
individuais. Pode-se falar, conforme Bauman (2001), em uma rotinização do tempo. Além
disso, a figura da meta faz referência à orientação do tempo para um fim, um objetivo a ser
alcançado que justifica todos os sacrifícios e esforços empreendidos na sua busca:
A ênfase que a cultura industrial incorporou à própria idéia de história
usando os mitos do progresso e da revolução, pressupõe o direcionamento
do tempo para um fim: todas as passagens intermediárias são iluminadas por
um farol colocado no término do percurso, apto a dar sentido às ações
cumpridas durante o caminho. (MELUCCI, 2004, p.26)
Sob essa óptica, a linearidade das relações entre passado presente e futuro - onde o
presente decorre do passado na mesma medida em que o futuro decorre do presente- é
atravessada por um jogo retroativo: é do futuro que partem os sentidos para a interpretação do
passado e para a promoção do presente. O objetivo final para onde aponta a flecha justifica e
condiciona os meios que se utilizarão para sua consecução.
Contemporaneamente, entretanto, assistimos “o ocaso dos grandes mitos da
modernidade, de todos os contos de salvação que prometiam êxito no final do tempo”
(MELUCCI, 2004, p.19/20). O futuro se torna cada vez menos provável e o passado cada vez
mais distante. O presente consolida-se como o tempo próprio e único para a satisfação e o
gozo. A metáfora da flecha, não serve para representar a experiência atual do tempo; agora
o ponto expressa com maior precisão uma experiência de tempo fragmentada, descontínua e
concentrada no presente. Vivemos, conforme sustenta Bauman (2001), a era da
instantaneidade, onde “‘instantaneidade’ significa realização imediata, ‘no ato’ mas
também exaustão e desaparecimento do interesse” (BAUMAN, 2001, p.137). A
12
instantaneidade confere a cada momento valor inestimável e sentido em si mesmo. É nesse
sentido que o autor dirá que “a ‘escolha racional’ na era da instantaneidade significa buscar a
gratificação evitando as conseqüências, e particularmente as responsabilidades que essas
conseqüências podem implicar” (BAUMAN, 2001, p.148).
Em tempos de pós-modernidade
1
(modernidade tardia? modernidade líquida?), a
supervalorização do tempo presente se dá em detrimento das dimensões passada e futura de
nossas experiências. A busca pela “gratificação evitando as conseqüências” desconsidera os
saberes produzidos no passado e ignora os possíveis e inevitáveis desdobramentos de suas
ações; também pressupõe uma desvinculação cada vez maior com o espaço, com tudo aquilo
que impeça ou dificulte o movimento. Na era da instantaneidade, o “movimento no espaço
torna-se um fim em si mesmo” (MELUCCI, 2004, p30/31). O espaço, assim como o tempo é
experimentado como uma construção multidimensional, sem referências estáveis. Nesse
contexto, onde o ritmo da mudança dilacera nossas referências espaciais, onde o passado,
cada vez mais distante, nos falta enquanto substrato e o futuro se rarefaz com a ausência do
projeto, a desorientação é um claro risco que temos de assumir. Contudo, se por uma lado a
experiência pontual do tempo representa o “esfacelamento da tradição” de que nos fala
Hannah Arendt (2005)
2
, por outro lado “na dimensão puntiforme existe também uma riqueza,
a possibilidade de reativar o horizonte da presença como capacidade de viver momento a
momento, tecendo a trama da continuidade (...). (MELUCCI, 2004, p.36)
O estabelecimento de relações entre passado, presente e futuro, entre as diferentes
formas com que experimentamos o tempo, apresenta-se hoje como condição necessária para a
reabilitação daquelas referências essenciais que nos permitam decidir e discernir (orientar-
nos) justamente o que nos desafia o atual momento. E é no presente que encontramos “o
único horizonte possível para essa ligação: a presença é o lugar em que passado e futuro
podem estar em uma relação circular” (MELUCCI, 2004, p.23). Memória e projeto se
influenciam reciprocamente a partir do presente; o passado é resignificado pelo que “está
sendo” e pelo que ainda “está por virao mesmo tempo em que engendra as condições de
possibilidade atuais.
***
1
Frederic Jameson, em seu livro Pós-modenismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, contudo, alerta-nos:
Pós-modernismo não é algo que se possa estabelecer de uma vez por todas e, então, usá-lo com a consciência
tranqüila. O conceito, se existe um, tem que surgir no fim, e não no começo de nossas discussões do tema. Essas
são as condições as únicas, penso, que evitam os danos de uma clarificação prematura em que o termo pode
continuar a ser usado de forma produtiva.” (JAMESON, 2000, p.25)
2
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005 (Debates; 64).
13
O presente trabalho, em alguma medida, projetou-se nessa direção: a construção de
uma experiência complexa do tempo capaz de reabilitar aquelas nossas capacidades de
orientação, discernimento. É o testemunho de um encontro entre diferentes histórias de vida
(percursos), concepções de mundo, projetos; resultado provisório e inacabado do cruzamento
entre passado, presente e futuro que teve como referência básica as relações com os espaços
de vida. São as minhas lembranças (e os meus esquecimentos também) sobre o processo de
pesquisa engendrado: “narrativa de narrativas”, nas palavras de Melucci
3
, ou “interpretação de
interpretações”, segundo Geertz
4
.
***
A investigação desenvolvida e recapitulada nas linhas que seguem tem seu início
atrelado à minha inserção, como professor de Ciências e Biologia, na escola estadual
Dyonélio Machado, localizada num bairro de periferia do município de Esteio (RS). Lá,
inspirado pelos escritos de Mauro Grün e Isabel Carvalho, que ressaltam a idéia e a
necessidade do desenvolvimento de uma educação ambiental interpretativa, e tendo como
parceria um grupo de estudantes (muitos dos quais vieram a se tornar os sujeitos entrevistados
no presente empreendimento), iniciei uma incursão às histórias do lugar. Essa busca por
conhecer, que num primeiro momento ficou restrita aos tempos e espaços institucionais, num
segundo momento deu origem a uma série de encontro informais; uma ação investigativa com
propósitos educativos a qual intitulamos “(Re)contando histórias”.
Ao longo dessas incursões ao passado, através das histórias narradas por cada um dos
participantes, algumas características do lugar puderam começar a ser apreendidas e
repensadas. Entre elas, a rápida e radical transformação a que foi submetida a paisagem, as
múltiplas origens dos seus habitantes (na sua maioria migrantes provenientes de diferentes
localidades do interior do estado) e os distintos significados atribuídos a alguns dos seus
‘espaços’ (entre os quais se destacavam o Arroio Sapucaia, o “mato” da Refap e o
“banhado”), acabaram constituindo o substrato sobre o qual foi construída a presente
investigação.
3
MELUCCI, A. Busca de qualidade, ação social e cultura: por uma sociologia reflexiva. In: MELUCCI, A. Por
uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005. p.25-42.
4
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, c1989.
14
A pesquisa empreendida, dessa forma, teve como foco de sua atenção dois fenômenos
distintos, mas intimamente relacionados: a migração e a (re)construção do espaço.
A migração procurou ser caracterizada enquanto processo e experiência.
Primeiramente, foi analisada a partir de cinco eixos: natureza’ do lugar de origem,
motivações, condições de possibilidade, itinerários e ‘natureza’ do lugar de destino. A partir
daí, procurou-se compreender como os sujeitos entrevistados a experimentaram; ou, dito de
outro modo, como eles e elas vivenciaram esse processo.
A atualização das relações dos sujeitos entrevistados com o espaço, por sua vez, foi
analisada sob duas perspectivas distintas: a) em função do deslocamento físico entre lugares
(denominado aqui encontro entre velhos e novos mundos); e b) em função da passagem do
tempo no lugar de destino. Nesta última, procurou-se também conhecer quais os significados
atribuídos (assim como os modos de relação derivados destes) pelos sujeitos pesquisados aos
três mais referidos elementos da paisagem: o Arroio Sapucaia, o “mato” da Refinaria Alberto
Pasqualini (Refap) e o “banhado” (Vila São José).
Por fim, esses dois fenômenos (migração e reconstrução do espaço), nas suas
distinções e entrecruzamentos, procuraram ser conhecidos a partir de um conjunto de histórias
narradas em encontros coletivos (grupo de rememoração) e entrevistas individuais (visitas
domiciliares) por um grupo de dez migrantes (cinco homens e cinco mulheres), atuais
moradores da região objetivada e ex-alunos meus. Foram realizados nove encontros coletivos
e quatro entrevistas individuais, totalizando pouco mais de 15h de gravações
5
. Nos dois casos,
a trajetória de vida de cada um dos participantes constituiu o eixo sobre o qual foram
construídas as narrativas. Desse modo, para compreender como o processo de migração foi
experimentado pelos sujeitos entrevistados e, nele, como se deu a atualização das relações
com o espaço, recorreu-se, em primeira instância, a um conjunto de memórias individuais.
***
O presente texto encontra-se organizado em pelo menos dois momentos. O primeiro,
correspondente aos três capítulos iniciais, é o resultado de uma escrita “pré-empírica”, isto é,
foi quase todo elaborado antes do início formal dos trabalhos de campo. Objetiva
fundamentalmente justificar os esforços empreendidos, assim como situá-los num contexto
mais amplo (neste caso, representado pela minha trajetória pessoal e pelo conjunto da
produção teórica apresentada). O segundo momento, por sua vez, correspondente aos três
5
Os registros foram realizados através de gravações em áudio e/ou vídeo (filmagem).
15
capítulos seguintes, constituí-se numa revisão dos caminhos percorridos, das escolhas feitas e
dos principais achados ao longo do processo investigativo, principalmente daquela sua
dimensão empírica. É, sem dúvidas, o cerne do presente trabalho. Foi construído, quase na
íntegra, após o término das atividades de campo.
No primeiro capítulo, tendo como referência o trabalho de Isabel Carvalho (2002),
apresento sucintamente minha trajetória pessoal, destacando nela momentos que, aos olhos de
hoje, parecem-me significativos para a compreensão de meu envolvimento com o campo
educativo, com o campo ambiental e, de uma forma mais específica, com uma educação
ambiental.
No capítulo seguinte, situados ainda em relação a minha trajetória pessoal, apresento
alguns princípios que têm orientado o meu fazer educativo e que foram resignificados no
contexto de realização da presente pesquisa. Além disso, relacionam-se diretamente as
escolhas metodológicas operadas, a construção do “objeto” de pesquisa e a seleção dos
sujeitos a serem escutados.
No terceiro capítulo apresento e discuto, em linhas bastante gerais, a temática na qual
se inscreve este trabalho educação ambiental. Primeiramente apresento uma definição para
o conceito de ambiente (construída a partir da sua comparação com o de natureza). A seguir,
tomando como referências o tempo e o espaço (eixos em torno dos quais se organizou a
presente pesquisa) apresento algumas das perspectivas teóricas adotadas e que serviram de
inspiração para a construção da proposta inicial de trabalho. Tanto a definição para o conceito
de ambiente quanto algumas das referidas perspectivas teóricas serão retomados no capítulo
seis, no qual discuto e procuro caracterizar a dimensão educativa assumida pela pesquisa.
No quarto capítulo, discorro longamente sobre o processo de pesquisa engendrado.
Primeiramente apresento e procuro relacionar os diferentes referenciais teóricos que foram
utilizados para a construção do método de abordagem. Em seguida, passo a descrever e
analisar (sob um ponto de vista metodológico) os diferentes momentos através dos quais a
investigação foi desenvolvida: discuto os critérios utilizados para a seleção dos participantes,
apresento-os e reviso o trabalho desenvolvido durante os encontros coletivos (grupo de
rememoração) assim como aquele realizado ao longo das entrevistas individuais (visitas
domiciliares)
No quinto capítulo, os processos alvo da presente investigação - a migração e a
(re)construção do espaço - são considerados. Nos dois casos, a forma de proceder foi
basicamente a mesma: inicio cada uma das subseções apresentando alguns dos referenciais
16
teóricos utilizados para a análise das informações construídas; em seguida passo a
caracterização de cada um desses processos, num diálogo intenso com os sujeitos
entrevistados; e, por fim, apresento uma breve síntese sobre a caracterização e análise
operada.
No sexto capítulo, a título de integração dos diferentes momentos do texto, procuro
discutir a dimensão educativa (educação ambiental) assumida pela presente investigação.
Conforme dito acima, retomo nessa discussão alguns dos conceitos e idéias apresentadas
anteriormente, ao longo dos demais capítulos.
No sétimo capítulo, a título de finalização, apresento um breve apanhado de
considerações para as quais não encontrei outro lugar no texto.
Por fim, coloquei em anexo algumas imagens que julguei importantes para a
compreensão das histórias recontadas nesta dissertação.
***
17
1. ANTECEDENTES (O LUGAR DE ONDE FALO)
O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto.
(Alberto Caeiro
6
)
É difícil precisar como tudo começou: no intuito de fazê-lo, a cada novo olhar sobre o
passado, o que se evidencia, cada vez mais, é o caráter dinâmico dos processos através dos
quais nos constituímos e a partir dos quais constituímos, para nós, um “objeto” de pesquisa. A
cada novo olhar, o que foi’ é resignificado pelo que ‘está sendo’; os limites, as marcas, se
tornam difusos, mudam de lugar, adquirem maior ou menor relevância; as certezas se diluem
e as dúvidas se multiplicam. A mudança cria possibilidades ao mesmo tempo em que as torna
provisórias.
***
O caminho que percorri – e que me trouxe até aqui – constituiu-se a partir das escolhas
que fiz e das que não fiz; a partir de necessidades e contingências. Caminho improvável,
duvidoso, mas que, entre outros tantos possíveis, foi o efetivamente provado, experimentado,
saboreado. Nele, a emergência do pesquisador e do seu objeto de pesquisa – da relação que os
caracteriza se atrelada a outras dimensões de minha experiência (pai, estudante,
professor,...) e é temperada pelos diversos encontros que tive: impessoalmente, através dos
livros, e pessoalmente, através de palavras, gestos, abraços, olhares... É um caminho, sem
dúvidas, coletivo, mas que neste momento se re-visita a partir de minhas lembranças.
***
Isabel Cristina de Moura Carvalho, num texto intitulado A invenção do sujeito
ecológico: identidade e subjetividade na formação dos educadores ambientais (2005), retoma
alguns pontos importantes de outro trabalho seu, A invenção ecológica (2002), no qual analisa
6
PESSOA, F. Poesia / Alberto Caeiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.26.
18
trajetórias biográficas de educadores e educadoras ambientais. Dois conceitos presentes
nesses trabalhos são fundamentais para a compreensão do pensamento da autora: o conceito
de campo ambiental e o de sujeito ecológico. O campo ambiental aparece em seu trabalho
definido como “certo conjunto de relações sociais, sentidos e experiências que configuram um
universo social particular” (CARVALHO, 2005, p.53). Nesse campo, organizado em torno da
preocupação ambiental, duas dimensões podem ser distinguidas, apesar do seu
entrelaçamento: uma mais estruturada, mais estável (instituída), e outra mais dinâmica,
estruturante (instituinte). À primeira dimensão, correspondem, por exemplo, as políticas e leis
ambientais, bem como os diferentes tipos de movimentos ecológicos. A segunda, por sua vez,
diz respeito às trajetórias dos profissionais ambientais, de uma maneira geral, e dos
educadores ambientais, em particular. Essas trajetórias inscrevem-se nesse campo ao mesmo
tempo em que, também, o constituem. A partir da idéia de um campo ambiental - mais
especificamente do atravessamento entre suas duas dimensões - pode-se pensar a noção de um
sujeito ecológico. O sujeito ecológico aparece, simultaneamente, como um tipo ideal e como
uma identidade narrativa. No primeiro caso, apresenta-se “como um subtexto presente na
narrativa ambiental contemporânea, configurando o horizonte simbólico do profissional
ambiental de um modo geral e, particularmente, do educador ambiental” (CARVALHO,
2005, p.54). A partir da associação com o conceito de identidade narrativa, por sua vez, é
tomado “como um projeto identitário, apoiado em uma matriz de traços e tendências
supostamente capazes de traduzir os ideais do campo” (CARVALHO, 2005, p.54). O
educador ambiental, nesse contexto, constituiria um caso particular do sujeito ecológico; ou
seja, integraria esse projeto identitário maior atualizando-o em algumas de suas
possibilidades” (CARVALHO, 2005, p.55). Os caminhos que conduzem à educação
ambiental, contudo, nem sempre passam pela prévia identificação com o campo; por vezes
são percorridos justamente no seu sentido inverso. Nesses caminhos, a partir das idéias de
campo ambiental e de sujeito ecológico, a autora procura ainda identificar momentos-chave
nos processos de identificação e construção da identidade de educador ambiental. Isso é feito
a partir de três cortes analíticos: os mitos de origem, as vias de acesso e os ritos de entrada.
Os mitos de origem referem-se aos processos de ressignificação operados sobre os conteúdos
da memória, isto é, “a instauração de uma raiz remota da sensibilidade para o ambiental,
reencontrada e ressignificada a posteriori” (CARVALHO, 2005, p.55). As vias de acesso, por
sua vez, referem-se aos “caminhos de aproximação e à ultrapassagem de certa fronteira de
conversão pessoal e reconversão profissional” (CARVALHO, 2005, p.57). Enfim, os ritos
dizem respeito “as maneiras de entrar no campo e construir uma identidade ambiental”
19
(CARVALHO, 2005, p.57).
Nos trechos que seguem, valho-me de alguns desses conceitos e idéias para repensar
minha própria trajetória e nela situar a emergência do ambiental, do educativo e, de forma
ainda mais específica, meu encontro com uma educação ambiental.
A EMERGÊNCIA DO AMBIENTAL
Conforme dito anteriormente, é difícil precisar como as coisas começaram. Em
primeiro lugar porque um início sempre decorre de situações que lhe são anteriores, que por
sua vez decorrem, cada uma, de outras e a assim sucessivamente, até os limites (onde
residirão?) aos quais possa nos levar uma reflexão especulativa; no intuito de “fixar” um
início, este se nos escapa em direção aos acontecimentos que o precederam. Especificamente,
quando remonto ao passado na busca pelas origens de minha interação com uma educação
ambiental ou, de um modo mais abrangente, com o campo ambiental, inevitavelmente sou
levado a situações que lhes são anteriores. Em segundo lugar, devido à complexidade inerente
às formas com que experimentamos nossas vidas, torna-se difícil (e necessariamente
simplificador) traduzir a multiplicidade de sentidos que algumas experiências assumem para
nós, bem como as mudanças que sofrem com o decorrer do tempo na estrutura “quase linear”
de um texto. Dito de outro modo, uma seqüência, mais ou menos linear, do tipo “causa e
efeito”, não traduz com precisão os múltiplos atravessamentos que caracterizam os diferentes
momentos de nossas trajetórias. As motivações que hoje me parecem ter sido determinantes
para minha conversão ao ambiental, na sua origem confundem-se com diversas outras, de tal
forma que fica difícil apontá-las separadamente. Dessa necessidade de simplificação - operada
através do destaque de alguns pontos em detrimento de outros - decorre a emergência de todo
um campo de invisibilidades; ou seja, ao mesmo tempo em que “permitimos ver”,
“ocultamos” (assunto que será melhor discutido quando da revisão sobre os conceitos de
natureza e ambiente – na seqüência do texto).
Ainda que decorra de situações que lhe são anteriores, a emergência do ambiental
7
,
enquanto campo “de relações sociais, sentidos e experiências que configuram um universo
social particular” (CARVALHO, 2005, p.53), em minha trajetória biográfica e profissional
(mais biográfica do que profissional, num primeiro momento) dá-se a partir do meu ingresso
no curso de Ciências Biológicas da UFRGS. Foi durante a graduação, a partir do contato com
7
O termo ambiental assume também outros significados no presente trabalho, conforme será discutido mais
adiante.
20
professores e colegas que, paulatinamente, os elementos constitutivos desse campo, seus
significados, crenças, limitações e possibilidades, puderam ser conhecidos e apropriados; ou
melhor, puderam começar a ser conhecidos e apropriados. Ao ingresso no campo ambiental
seguiu-se um processo ininterrupto de identificação com ele - de conhecimento e
apropriação. Durante minha graduação este processo deu-se, essencialmente, a partir de duas
frentes: a primeira, representada pelo estudo da biologia, revelava-me a faceta técnico-
científica do campo ambiental, um corpo de conhecimentos que fundamentavam os discursos
e as ações dos seus sujeitos; a segunda, representada pela convivência com outros
estudantes, dentre os quais se incluíam militantes de diferentes tipos de movimentos
ambientalistas, revelava-me, através de suas ações, elementos de crítica social que, também,
faziam parte desse campo. Essas duas frentes, entretanto, coexistiram de fato somente nos
últimos anos da graduação; durante toda a primeira metade de minha formação acadêmica, a
faceta técnico-científica foi a que se me apresentou com maior preponderância. Nesse mesmo
período, coincidindo com a emergência do ambiental em minha vida, deu-se, por caminhos
completamente distintos, a emergência do educativo, enquanto campo de atuação profissional.
A EMERGÊNCIA DO EDUCATIVO
Antes de adentrar-me no universo das ciências biológicas, era estudante, na mesma
universidade, do curso de Engenharia Civil. Por motivos bastante difíceis de precisar, com os
olhos de hoje, três anos antes de iniciar minha graduação na Biologia, ingressava na UFRGS
com o intuito de tornar-me engenheiro. A partir do primeiro ano, entretanto, as dúvidas
começaram a povoar meus pensamentos; com o passar do tempo elas se acumulavam na
mesma proporção em que uma mudança se tornava mais difícil. O desperdício desses anos de
estudo representava uma dolorosa perda; sua continuidade, um doloroso prosseguir. No
balanço das dores, acabei optando pela assunção dos riscos de um futuro incerto. Ao final do
terceiro ano de engenharia, submeti-me a outro concurso vestibular, a fim de mudar o curso
de minha vida
8
.
Essa (nem tão) breve passagem pelo universo das engenharias, pelo mundo das
ciências ditas “exatas”, contudo, foi determinante para a emergência, em minha trajetória, do
educativo - neste primeiro momento enquanto campo de atuação profissional. Ainda no
8
Analisado sob este ângulo, a emergência do ambiental em minha trajetória pode ser atribuída, antes, a uma
necessidade de mudança. Em outras palavras, ao que me parece hoje, não foi a opção pelo ambiental que
promoveu a mudança em minha vida, mas sim a necessidade de mudança que promoveu (possibilitou) a
emergência do ambiental.
21
último ano do curso, escrevi-me como candidato a uma vaga de professor contratado na rede
pública estadual. Dois anos mais tarde, quando estudava biologia, fui chamado para
lecionar física num bairro da periferia do município de São Leopoldo. Este inesperado
chamamento, numa hora de dificuldades financeiras, representou uma possibilidade de
trabalho remunerado ainda que impossibilitada pelos novos vínculos institucionais (ao menos
era assim que eu percebia); representou a reemergência daquele passado que se perdia no
horizonte do esquecimento. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre as condições específicas
através das quais se deu minha contratação emergencial, mas fato é que fui aceito, na situação
que me encontrava (cursando biologia), ao mesmo tempo em que aceitei o trabalho a despeito
das contradições éticas que se me apresentavam. Ainda hoje repenso essa situação, suas
condições e desdobramentos posteriores; não sei se me submeteria a ela outra vez, mas sei
que se não o tivesse feito, naquele momento, muito possivelmente, não estaria hoje
escrevendo estas linhas. A emergência do educativo, dessa forma, deu-se por caminhos
tortuosos, em condições peculiares
9
. Temporalmente coincidiu com o início do processo de
conhecimento e apropriação de um campo ambiental. Esses dois campos, entretanto, apesar de
terem emergido quase ao mesmo tempo, praticamente não dialogaram durante todo o início
dos processos através dos quais se instituíam em minha trajetória. Foi somente a partir da
idéia de uma educação ambiental que algum diálogo começou a ser estabelecido.
O ENCONTRO ENTRE OS DOIS CAMPOS: EDUCAÇÃO AMBIENTAL?
Meu encontro com uma educação ambiental foi precedido e possibilitado pelas
emergências do ambiental e do educativo. De certa forma, eles constituíram as “vias de
acesso” a ela. Foi a partir dos elementos e experiências colhidos nesses dois campos que pude
pretender candidatar-me a uma vaga, como estagiário, no grupo de educação ambiental do
Departamento municipal de Habitação (DEMHAB), de Porto Alegre. No sentido inverso, esse
encontro marca o início de um processo de intensa ressignificação do ambiental e do
9
Trabalhei durante um ano como professor de física na Escola Estadual Olindo Flores da Silva, localizada na
Scharlau - município de o Leopoldo. Durante esse ano, a maior parte das minhas preocupações concentrou-se
em encontrar formas de tornar as aulas compreensíveis e, se possível, agradáveis. Não lembro de ter
desenvolvido uma reflexão crítica a respeito dos conteúdos ministrados ou sobre a função social dos professores,
por exemplo. Faltaram-me referenciais teóricos e/ou encontros significativos (com outros professores). Essa
postura, até certo ponto acrítica, entretanto, não me furtou de obter valiosos aprendizados nesta experiência: a
relevância que o estabelecimento de laços afetivos possui para o desenvolvimento de um processo educativo, de
um processo comunicativo, destaca-se entre eles. Além disso, as dificuldades e limitações com as quais me
deparei suscitaram a busca por referenciais, por fundamentação teórica, por caminhos alternativos; instigaram-
me a prosseguir.
22
educativo, operado a partir da idéia de uma educação ambiental e desencadeado pela
emergência do social, enquanto dimensão constitutiva e condicionante de uma “realidade
ambiental”, campo das relações humanas onde se cruzam e encontram diferentes interesses,
necessidades e saberes.
A equipe de educação ambiental do DEMHAB era composta por uma bióloga
(coordenadora dos trabalhos), uma pedagoga e por uma secretária administrativa. Tinha como
atribuição o desenvolvimento de ações educativas (educação ambiental) junto aos grupos
reassentados, nos loteamentos construídos pelo poder público para esse fim. Durante o
período em que acompanhei os trabalhos da equipe, concentramos nossos esforços em quatro
desses loteamentos: Chapéu do Sol e Monte Cristo, ambos localizados na zona sul da capital,
Vila Lupicínio Rodrigues, no bairro Menino Deus, e Vila Tecnológica, localizada no Bairro
Navegantes, numa região conhecida como “entrada da cidade”. Apesar de nunca ter
trabalhado com educação ambiental antes, sentia-me bastante a vontade em minha nova
atribuição. O campo de atuação no qual adentrara, parecia-me, à época, formar-se pela
simples fusão dos dois outros aquele próprio da educação e o campo ambiental,
representado por sua faceta técnico-científica. O conhecimento técnico de fundamentos da
ecologia, botânica, zoologia, parasitologia, entre outros (advindos do universo das ciências
biológicas) pareciam-se não apenas importantes, mas fundamentais. A autoridade conferida à
biologia a mesma que me autorizava a prosseguir e desautorizava outros a começar
marcava de modo significativo minha compreensão do que fosse uma educação ambiental e
do fazer educativo a partir dela. E foi baseado nessas percepções, a partir desses quadros
referenciais, que procurei organizar-me e organizar o mundo ao meu redor; a bagagem
técnico-científica que trazia da biologia, marcada, entre outras coisas, por um
antropocentrismo desconectado do social, pelo reducionismo, pela fragmentação dos saberes,
embasava o meu discurso diagnosticar, alertar, conscientizar, desmistificar, prescrever; a
outra, trazida do campo da educação, mais especificamente de minha experiência prática
como professor, mediava a interação entre o referido discurso e seus interlocutores me
indicava as melhores maneiras de fazê-lo e, assim, fazer-me entender. Essa perspectiva
interpretativa e postura frente à educação ambiental, contudo, teve curta duração.
A transformação se deu de maneira radical: a concretude das situações com as quais
me deparei desacomodaram, em um nível profundo, minhas “verdades”, minhas “certezas”.
As pessoas com as quais tive contato durante este período, além do histórico de privações
pessoais, acabavam de passar por um violento processo de reassentamento (reordenamento,
higienização pública) caracterizado por um forte componente desagregador (perda dos
23
referenciais espacio-temporais, isolamento, mistura). Diante da inegável presença do outro, de
sua condição, meu discurso perdeu completamente o sentido, a coerência, a urgência, a
relevância; esvaziou-se. A emergência do social o “outro” da biologia pôs em cheque o
sistema hierárquico de autorizações/desautorizações, revelando a complexidade dos
problemas ambientais ao mesmo tempo em que a incompletude inerente às diferentes áreas do
saber. O encontro com os saberes populares relativizou, significativamente, os saberes
científicos que trazia na bagagem e que, até então, gozavam um estatuto de verdade.
Da completa impossibilidade de falar, pus-me a escutar. A escuta que posteriormente
assumiria um importante papel na compreensão do que para mim seja uma educação
ambiental, neste momento emergiu de forma impensada, a partir da interação com aquela
peculiar situação. Nasceu da insignificância e incoerência relativas da minha fala (da minha,
então, impossibilidade de falar algo significativo e coerente naquele contexto); também como
decorrência de uma ‘necessidade orgânica à expressão’ dos atores sociais interpelados. A
nossa presença (equipe de EA), enquanto representantes do poder público, dava vazão a um
fluxo - historicamente interditado, desqualificado e intermediado - de vozes que, antes de
tudo, se faziam escutar.
***
De para cá, meu olhar se modificou bastante, sem, no entanto, se descaracterizar. A
partir da escuta, minhas sensibilidades também se transformaram. A abertura ao outro, a seu
mundo, suas histórias, seus afetos, diminuíram em mim alguma coisa que poderia ser descrita
como um ‘ideal militante’ (caracterizado pela combatividade), uma certa propensão ao
enfrentamento (em defesa de um ideal), ainda que não o tenha eliminado por completo. O
conceito ambiente foi (vem sendo) substancialmente ampliado em sua significação,
resignificando, também substancialmente, o que entendo por educação ambiental. Os
constrangimentos conceituais se tornaram mais evidentes; as ambivalências também, ao ponto
de, hoje, por vezes, ser-me difícil utilizar essa terminologia. Os limites daquilo que entendia
ser EA se diluíram e, consequentemente, seu campo de aplicação e fundamentação teórico-
prática, significativamente, se ampliaram exigindo maior esforço compreensivo,
sensibilidade, criatividade; limitando e, com isso (a partir disso), criando outras, talvez
inéditas, possibilidades.
***
24
2. PRINCÍPIOS (A DIMENSÃO DO ENCONTRO: ESCUTA E AFETIVIDADE)
Dessas vivências, experimentadas em diferentes tempos e espaços, tenho podido
apreender alguns elementos, constituindo-os, para mim, em princípios do meu fazer educativo
ou daquilo que tenho entendido como educação ambiental.
A escuta emerge, inicialmente, como atitude possível frente ao outro. Num contexto
que tornava vazio de sentidos meu discurso eco-pedagógico, a escuta surge em resposta a uma
impossibilidade a minha de falar. Sua escolha, entretanto, não se restringe a isso; passa,
também, pelo reconhecimento do outro como sujeito de saberes e da incompletude enquanto
característica inerente aos espíritos humanos. Nesse sentido, configura-se como uma atitude
de respeito em relação ao outro, em relação aos seus saberes e as suas vivências. Pressupõe
certa abertura (receptividade) ao mesmo tempo em que fechamento (auto-reconhecimento).
Aquele que escuta, assim como quem fala, o faz de algum lugar. Conforme destaca Melucci
(2004), o “desafio da alteridade reside na capacidade de assumir o ponto de vista do outro
sem se perder” (MELUCCI, 2004, p.128). Além disso, é importante tomar a escuta, aqui, em
sua acepção mais ampla, significando não atitude frente ao outro, mas também, atitude em
relação a si mesmo. No terceiro Simpósio gaúcho de Educação Ambiental, realizado no
município de Erechim (RS), Nancy Mangabeira Unger referiu-se a isso. Em sua palestra,
intitulada A morte da bailarina, a pesquisadora falou sobre a necessidade e importância de
assumirmos uma postura de obediência frente ao mundo. Segundo ela, o termo obediência,
que hoje é associado prontamente à idéia de submissão, origina-se a partir da fusão entre os
dois elementos de composição: ob, significando estar voltado à, e audident, significando
escuta. Tornar-se obediente, dessa forma, é voltar-se a escuta atenta dos sinais que nos são
dados a perceber; sensibilizar-se em nossa relação com o outro e consigo mesmo.
A escuta, enquanto atitude frente ao outro, à sua alteridade, não apenas revela-nos os
seus muitos mundos constitutivos, mas também, a partir dessa abertura, dessa acolhida,
potencializa (possibilita) o estabelecimento de laços afetivos. De certa forma, pode-se
considerar que o próprio processo educativo seja constituído por este exercício; inicia nele e,
inexoravelmente, a ele retorna, significando-o ao mesmo tempo em que é por ele
(re)significado.
25
A afetividade, enquanto princípio de uma educação ambiental deve ser compreendida
a partir das relações intersubjetivas constituídas/constituintes nesse/desse processo. Tem aqui
um sentido muito próximo ao de amizade
10
, referindo-se a uma atitude respeitosa em relação
aos outros, ou ainda à noção existencialista de amor, conforme descrita por Robert Olson,
(...)a condição humana faculta o amor pessoal. Pois o amor não é uma fusão
de personalidades ou um hábito tranqüilo. É uma intensa relação entre duas
pessoas, isto é, dois agentes humanos livres. E o mútuo reconhecimento da
liberdade própria e da do outro é não somente sua condição necessária como
também sua condição suficiente. (...) O mútuo reconhecimento da liberdade
do outro separa duas pessoas e garante sua individualidade, mas, ao mesmo
tempo, os revela um ao outro como indivíduos e salvaguarda a possibilidade
de comunicação e intercâmbio genuínos. (OLSON, 1970, p. 196/197)
Refere-se à certa cumplicidade que potencializa, não só o diálogo, mas também todo o
processo coletivo de criação (construção de saberes, superação de dificuldades, etc.). O
estabelecimento de laços afetivos, fundamentados no respeito recíproco, na amizade e na
cumplicidade, penso, é condição fundamental para o desenvolvimento de um processo
educativo, de um modo geral, e para o estabelecimento de vias comunicativas efetivas,
especificamente; foram eles (os laços afetivos) que viabilizaram o nosso trabalho, garantindo
sua continuidade apesar dos muitos obstáculos que se nos apresentaram. Barcelos e Noal
(1998), em seu artigo intitulado A temática ambiental e a educação: uma aproximação
necessária, dizem acreditar “que a educação ambiental precisa de um envolvimento afetivo,
lúdico, de todos aqueles que a ela se dedicam, sob pena de a transformarmos em mais uma
tarefa a ser cumprida” (BARCELOS e NOAL, 1998, p.106/107).
A afetividade viabiliza o processo de escuta, ao mesmo tempo em que é por ele
potencializada; ambos constituem um terreno fértil a produção de sentidos. Escutar implica
respeito ao outro, aos saberes do outro, as vivências do outro; escutar nos aproxima do outro.
É a partir desse encontro, dessa aproximação, que o estabelecimento de laços afetivos surge
como possibilidade. A afetividade emerge, também, desta atitude: a atitude respeitosa daquele
que escuta.
Tanto a escuta quanto a afetividade assentam-se sobre o reconhecimento da diferença.
A existência do outro, sua presença e, além disso, o encontro com ele são as condições de
possibilidade tanto para o conflito e a mútua aniquilação quanto para o estabelecimento de um
10
“Compreendida como inserção do homem no mundo, como postura existencial, a amizade, fundamento da
liberdade, passa por uma abertura fundamental ao dinamismo do real. É conhecimento como co-nascimento:
nascer com o Outro nesta mutualidade do “nós” que fundamos em cada relação.” (UNGER, 2001, p.43)
26
processo comunicativo baseado no respeito recíproco. Conforme destaca Alberto Melucci
(2004),
a relação com o outro torna-se para nós possibilidade de reconhecer e de
escolher a diferença. Existe relação se e quando aquilo que nos distingue
dos outros é aceito e torna-se a base para a comunicação. Comunicar é
sempre contar com os pontos em comum para descobrir e afirmar a
diversidade. A possibilidade de escolha introduz em nossas relações com os
outros (afetivas, familiares e de amizade) a contingência e o risco,
transformando-as num campo de investimento e auto-reflexão. (MELUCCI,
2004, p.127)
O encontro com o outro comporta, portanto, risco e possibilidade. A afetividade,
como possibilidade, emerge a partir da assunção dos riscos inerentes ao encontro, permitindo
a comunicação e a compreensão assim como a emergência de novos riscos. É neste jogo onde
os riscos se entrelaçam às possibilidades que uma educação ambiental pode encontrar e de
fato encontra – um campo fértil para a reflexão sobre o mundo (os muitos mundos existentes)
e a construção coletiva de saberes.
***
Esses princípios, que no seu conjunto fundamentam como que uma ética da alteridade,
foram determinantes para a operação das escolhas metodológicas desta pesquisa. Eles dizem
respeito a minha relação, enquanto pesquisador, como os estudantes, atores sociais
pesquisados; relação esta que, em última análise, é a responsável não pela viabilidade do
trabalho em si, mas também, pela emergência de uma pesquisa a partir dele.
***
27
3. EDUCAÇÃO AMBIENTAL (CONCEITUAÇÃO E PERSPECTIVAS)
Os sentidos assumidos por uma educação ambiental decorrem, em boa medida, dos
significados atribuídos ao conceito de ambiente. Dessa forma, antes de circunscrever,
contextualizar, a educação ambiental a partir dos sentidos que aqui assume (rapidamente
anunciados até aqui) e, para tanto, faz-se necessário apresentar uma revisão do conceito de
ambiente, à luz dos objetivos e afinidades teóricas deste trabalho. Essa revisão será operada a
partir de uma análise comparativa, na qual o conceito de ambiente, seus significados,
limitações e possibilidades, serão apresentados a partir de semelhanças e distinções com o
conceito de natureza.
Nesse movimento, que não se pretende exaustivo, o conceito de natureza será tratado
em sua acepção moderna, destacando momentos e elementos dos processos a partir dos quais
vem sendo construído. Essa escolha é pautada no reconhecimento de que os significados
desse conceito, da forma com que eles são construídos na modernidade, subjazem em
diferentes veis e de formas variadas a muitas das percepções e representações existentes
sobre natureza; perpassam, de modo subliminar, o imaginário social construído durante a
modernidade. Com isso é importante ressaltar não se objetiva defender ou promover essa
perspectiva de interpretação do conceito de natureza. Apenas, dada a relevância e abrangência
de sua influência sobre os modos de se perceber e “criar” o mundo, oferecê-la à reflexão.
Uma possível superação (relativização) da dicotomia que fundamenta a noção moderna de
natureza será apontada e brevemente discutida na seqüência do texto. O conceito de ambiente,
por sua vez, será tratado, fundamentalmente, à luz de uma
11
das interpretações apresentadas
por Enrique Leff (2001, 2003) e que o toma enquanto um objeto complexo, integrado por
processos de diferentes ordens ontológicas e que emerge das margens de uma racionalidade
dominante. Essa perspectiva de interpretação, conforme destaca Leff, “abre um diálogo de
saberes e reflete um processo onde o real se entretece com o simbólico em diferentes visões,
racionalidades e perspectivas históricas mobilizadas por interesses diversos” (LEFF, 2001,
p.394). Sua escolha foi operada em função dos princípios e objetivos que orientam este
trabalho.
Uma breve ressalva, entretanto, deve ser feita. Ela diz respeito às limitações inerentes
a este tipo de esforço o de nomear com precisão, classificar, separar, eliminar as
ambivalências, tornar nítidos os sentidos de conceitos complexos como estes. Segundo
Zygmunt Bauman (1999), uma relação positiva e proporcional entre as ambivalências e os
11
Diferentes interpretações ao conceito de ambiente podem ser apreendidas na obra do Enrique Leff.
28
esforços empreendidos a fim de se eliminá-las. Dito de outro modo, quanto mais elaborados
forem os esforços classificadores, tanto maiores serão, as ambivalências produzidas. E isso
porque,
a ambivalência não é produto da patologia da linguagem ou do discurso. É,
antes, um aspecto normal da prática lingüística. Decorre de uma das
principais funções da linguagem: a de nomear e classificar. Seu volume
aumenta dependendo da eficiência com que essa função é desempenhada. A
ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua companheira
permanente – com efeito sua condição normal. (BAUMAN, 1999, p.9)
Dessa forma, a apresentação que segue objetiva, antes, otimizar a comunicação das
idéias e intenções deste trabalho e não estabelecer limites precisos e diferenciações absolutas;
alguma indefinição, a despeito dos esforços empreendidos, permanecerá. A ambivalência que
o termo ambiental comporta, pode ser, antes, sua própria essência e, por isso, portadora de
significados e possibilidades.
NATUREZA E AMBIENTE
É comum, em alguma medida, a confusão entre os conceitos de natureza e ambiente.
Pelo que me foi possível perceber ao longo dos últimos seis anos, trabalhando como professor
de biologia em uma escola pública, isso ocorre de um modo mais ou menos generalizado,
tanto entre os estudantes quanto entre os professores. Contudo, mais do que simples
constrangimentos conceituais, decorrentes das limitações intrínsecas à linguagem, essa,
muitas vezes, sobreposição dos dois conceitos tem conseqüências relevantes sobre como uma
educação ambiental será compreendida e proposta e, consequentemente, sobre seus horizontes
de sentidos e ação.
Michel Foucault, em seu livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas apresenta algumas das principais transformações ocorridas no campo
epistemológico desde o Renascimento até o início do século XX. Neste movimento, é
possível acompanhar a evolução (significando neste caso apenas mudança e não
aprimoramento, aperfeiçoamento) do conceito de natureza. Conforme o autor, a natureza
durante o século, XVII e boa parte do século XVIII, “não existiu primeiramente como ‘tema’,
como ‘idéia’, como fonte indefinida do saber, mas como espaço homogêneo das identidades e
das diferenças ordenáveis” (FOUCAULT, 1981, p.284). Apresenta-se à imaginação como
descritível e ordenável porque contínua e contínua porque descritível e ordenável. É através
da linguagem, da nomeação, que essa natureza se torna visível e é oferecida ao saber:
29
(...) a natureza se através do crivo das denominações e ela que, sem
tais nomes, permaneceria muda e invisível, cintila ao longe, por trás deles,
continuamente presente para além desse quadriculado que, no entanto, a
oferece ao saber e a torna visível quando inteiramente atravessada pela
linguagem. (FOUCAULT, 1981, p.175)
A natureza, esse espaço homogêneo das identidades e diferenças ordenáveis, é,
durante esse período, simultaneamente objeto e condição de possibilidade de uma história
natural. “Os documentos dessa história nova não são outras palavras, textos ou arquivos, mas
espaços claros onde as coisas se justapõem” (FOUCAULT, 1981, p145). A história natural,
assim entendida,
(...) existe como tarefa, na medida em que coisas e linguagem se acham
separadas. Deverá, pois, reduzir essa distância, para conduzir a linguagem o
mais próximo possível do olhar e, as coisas olhadas, o mais próximo
possível das palavras. A história natural não é nada mais do que a nomeação
do visível. (FOUCAULT, 1981, p.146)
Pautada no reconhecimento da diferença, a classificação, este esforço da linguagem,
“cria” a natureza a partir de um complexo processo onde são operadas distinções, oposições,
inclusões e exclusões. Ainda que, de acordo com Foucault, este quadro tenha se modificado
substancialmente já no final do século XVIII – a partir dos trabalhos de Cuvier
12
-, os
significados do conceito de natureza continuam relacionados ao reconhecimento de diferenças
e à operação de distinções/oposições (em alguns casos, até mesmo dissociações). Conforme
Zygmunt Bauman, “o conceito de Natureza, na sua acepção moderna, opõe-se ao conceito de
humanidade pelo qual foi gerado. Representa o outro da humanidade” (BAUMAN, 1999,
p.48). Essa oposição fundamental humanidade/natureza é a própria base sobre a qual se
constrói e afirma o projeto moderno de sociedade. Nas palavras de Bauman:
A existência pura, livre de intervenção, a existência não ordenada, ou a
margem da existência ordenada, torna-se agora natureza: algo
singularmente inadequado para a vida humana, algo em que não se deve
confiar e que não deve ser deixado por sua própria conta – algo a ser
dominado, subordinado, remodelado de forma a se reajustar às necessidades
humanas. Algo a ser reprimido, refreado e contido, a resgatar do estado
informe e a dar forma através do esforço e à força. (BAUMAN, 1999, p.15)
12
A partir de Cuvier, é a vida, no que tem de não-perceptível, de puramente funcional, que funda a
possibilidade exterior de uma classificação. (...) Assim desaparece a “natureza” entendendo-se que, ao longo
de toda a idade clássica, ela não existiu primeiramente como “tema”, como “idéia”, como fonte indefinida do
saber, mas como espaço homogêneo das identidades e das diferenças ordenáveis.” (FOUCAULT, 1981,
p.283/284)
30
A natureza é (re)criada para que a humanidade possa se afirmar. É, novamente, a
condição de possibilidade de uma linguagem preocupada com o ordenamento do mundo.
Representa o “silêncio do homem” ao mesmo tempo em que possibilita a sua voz. E, que
não fala, faz-se necessário fazê-la falar. A natureza torna-se, dessa forma, objeto de análise
freqüente de uma racionalidade científica e fazê-la falar significa, justamente, produzir
saberes sobre ela, tornando-a assim mais controlável, manipulável.
E aí, talvez resida uma distinção fundamental entre os conceitos de natureza e de
ambiente: no tocante aos processos de construção de conhecimentos, em relação aos quais a
“natureza”, muitas vezes, constitui-se em um objeto e dentre os quais o método científico
assume um lugar de destaque. Conforme referido anteriormente, a natureza enquanto
conceito emerge em oposição à humanidade a partir de um esforço nomeador, classificador.
Esse esforço “nomeador” é, em essência, a própria base dos processos de construção de
conhecimentos, de um modo geral, e da ciência, especificamente. Ao constituir para si um
objeto, esses processos acabam gerando todo um campo de externalidades; todo um “resto”,
silenciado porque desconsiderado. Também a esse respeito Bauman tece algumas
considerações:
Cada ato nomeador divide o mundo em dois: entidades que respondem ao
nome e todo o resto que não. Certas entidades podem ser incluídas numa
classe tornar-se uma classe apenas na medida em que outras entidades
são excluídas, deixadas de fora. (BAUMAN, 1999, p.11)
É desse “resto”, desse campo de externalidades que emerge uma possível interpretação
para o conceito de ambiente. Conforme sustenta Enrique Leff (2001, 2003), o conceito de
ambiente encontra seus significados e potencialidades em tudo aquilo que não vem sendo
dito, considerado, mensurado, quantificado, ordenado. Assim como o conceito de natureza,
também o conceito de ambiente se legitima a partir de uma relação de outridade: da mesma
forma como a natureza representa o outro diante da humanidade, o ambiente é “o outro o
absolutamente outro – diante do espírito totalitário da racionalidade dominante” (LEFF, 2003,
p.38). Essa característica comum, entretanto, é também o que os diferencia: o conceito de
natureza foi (re)construído em oposição à noção de humanidade para que a própria noção de
humanidade pudesse emergir; o conceito de ambiente surge do “vácuo” produzido pelo
desenrolar de um processo hegemônico de construção de conhecimentos, de construção do
“real”. O ambiente (do latim, amb-, girar, andar em torno para todos os lados; e ent-,
31
entidade)
13
está em volta do olhar de quem nomeia; por todos os lados, fora de foco,
invisível, desconsiderado. A natureza enquanto outro da humanidade está ora em foco, ora
fora dele. A humanidade está, também, para si mesma, ora em foco, ora fora dele. Dessa
forma, o conceito de ambiente comporta aquela natureza externalizada, desconsiderada, pelo
processo de desenvolvimento econômico-científico ao mesmo tempo em que toda uma
dimensão humana “silenciada”, também desconsiderada, pelo desenrolar dos mesmos
processos.
O conceito de ambiente, nesse sentido, relativiza a oposição natureza-humanidade uma
vez que considera ambas (pelo menos em parte) externalidades para uma racionalidade
dominante, enfatizando sua interdependência e buscando, a partir disso, construir saberes que
possibilitem a emergência de outras racionalidades e processos de desenvolvimento e
apropriação da natureza inclusive de outras perspectivas interpretativas que possam dar
conta da complexidade inerente a esses conceitos. É interessante observar que essa noção de
ambiente – que torna relativa a dicotomia natureza-humanidade – emerge do vácuo produzido
pelo desenrolar daqueles processos hegemônicos de invenção e destruição do mundo
fundamentados, justamente, na oposição entre o natural e o humano. Dito de outro modo:
como que em uma relação dialética, ainda que não se fale em síntese, a noção de ambiente
emerge a partir do movimento criado pela contradição entre o natural e o humano,
reintegrando-os (pelo menos em parte). O ambiente remete aquela natureza que também
somos negada e esquecida no bojo de um pensamento antropocêntrico; remete às outras
muitas naturezas possíveis, percebidas e vivenciadas, que não se fundamentam numa relação
do tipo sujeito-objeto; remete às percepções, às subjetividades ao mesmo tempo em que ao
real no qual elas se ancoram; enfim, remete ao desafio que temos pela frente, a saber, o “de
existir na continuidade e na descontinuidade que ligam natureza e cultura: no paradoxo de nos
transformarmos conscientemente, ou seja, culturalmente, em natureza” (MELUCCI, 2004,
p.89).
O TEMPO E O ESPAÇO NAS PRÁTICAS EDUCATIVAS AMBIENTAIS
Tomando como ponto de partida a noção de ambiente apresentada acima, a busca
pelos contextos silenciados dos textos tornados públicos (tornados verdadeiros, naturais),
constituí-se em um possível talvez necessário – caminho a ser percorrido por uma educação
ambiental. O resgate daquelas histórias relegadas a um segundo plano, silenciadas pelo
13
HECKLER, E., BACK, S., MASSING, E. Estrutura das palavras: famílias, morfologia, análise, origem. São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994. 416p.
32
estabelecimento de um estatuto que confere lugar de destaque a uma versão -, pode nos
permitir conhecer os contextos negados a partir dos quais se deu, entre outras coisas, a
emergência dos próprios estatutos e, a partir deles, das versões “oficiais”, “verdadeiras”. Ao
lançar um olhar circunstanciado
14
para o passado, ao estabelecer relações entre os textos e
seus contextos, criamos condições de transformação do presente; daquilo que por motivos
diversos se nos apresenta como dado. A instituição de um horizonte histórico de tematização
à prática educativa ambiental remete, pois, aos tempos; remete aquela dimensão temporal da
realidade (dos muitos reais existentes), ao seu caráter processual. Por meio dela, os diferentes
sentidos da ação humana, produzidos ao longo do tempo e que estiveram na base dos
processos sócio-culturais (ambientais), aqueles mesmos processos que engendraram a
situação presente, podem ser conhecidos e oferecidos à reflexão.
O Tempo
A dimensão de historicidade das questões ambientais é tratada por Mauro Grün, no
livro Ética e educação ambiental: a conexão necessária (1996). Neste trabalho, o autor
caracteriza o quadro de impossibilidades que o pensamento científico moderno
“cartesianismo” impõe à educação ambiental e apresenta as principais estratégias
epistemológicas conjuntamente designadas pelo termo “arcaísmo” que vêm sendo
adotadas a fim de superá-lo. Para Grün, uma educação ambiental inscrita no cartesianismo
acaba por se tornar inviável, devido às contradições fundamentais entre necessidades –
colocadas pela problemática ambiental e possibilidades “ferramentas” das quais se dispõe
para pensá-la. Limitações de diferentes ordens como aquelas lingüísticas, por exemplo
impõem-se à prática educativa ambiental no seio do cartesianismo. A fim de superá-las, as
diferentes estratégias que vêm sendo adotadas caracterizam-se, ora por uma tendência a
idealização do passado, à nostalgia, ora por uma aposta na tecnologia como solução futura
para os problemas ambientais presentes. Entretanto, conforme destaca Grün,
Tanto o cartesianismo como o arcaísmo partilham do mesmo ponto de
partida problemático que praticamente anula as pretensões da educação
ambiental em sua própria base a eliminação do horizonte histórico de
tematização. O cartesianismo elimina a história como condição necessária
de sua afirmação como pensamento autônomo, livre de valores inscritos na
história. O arcaísmo ao idealizar as origens como condição perfeita
simplesmente põe de lado a história e o processo que nos liga “às origens”.
(GRÜN, 1996, p.99)
14
Porque operado desde um contexto específico e provisório.
33
A presença de um horizonte histórico de tematização é, nesse contexto, condição sine
qua non para o desenvolvimento de uma educação ambiental ou ao menos, para o
desenvolvimento de sua dimensão ética. Pode-se apreender, então, que uma possível
superação do impasse criado pela tensão entre cartesianismo e arcaísmo, denominado pelo
autor limiar epistemológico, reside, justamente, na “recuperação das possibilidades de
tematizar a dimensão histórica dos valores que regem as relações entre as sociedades e o meio
ambiente” (GRÜN, 1996, p.100). A partir de um olhar circunstanciado para o passado e, nele,
da “busca dos sentidos da ação humana que estiveram na origem dos processos sócio-
ambientais” (CARVALHO, 2003, p.107), uma educação ambiental é, não apenas viabilizada,
como profundamente ressignificada: desvincula-se de uma moral normativa, que prescreve
valores e comportamentos a serem reproduzidos e impostos a diferentes configurações
espaciais (GARCIA, 2001), e assume um caráter essencialmente interpretativo. O educador
ambiental, sob essa perspectiva, também tem a sua posição ressignificada: deixa de ser um
sujeito-observador para tornar-se um sujeito-intérprete, conforme os caracteriza Carvalho
(2003),
O sujeito-observador, situado fora do tempo histórico, estaria perseguindo
sentidos verdadeiros, reais, permanentes e seguros. O sujeito-intérprete, por
sua vez, estaria diante de um mundo-texto, submerso na polissemia e na
aventura de produzir sentidos, a partir de um horizonte histórico.
(CARVALHO, 2003, p.106)
O tempo apresenta-se a uma educação ambiental, dessa forma, como uma necessidade.
Desconsiderar essa dimensão do real em prol de um intervencionismo “presentista”, se não
resulta ineficaz, é uma atitude ao menos questionável. Deve-se buscar, sim, trabalhar e agir
sobre o presente, afinal de contas, este é o único horizonte onde isso se torna, de fato,
possível; contudo, o diálogo entre as diferentes temporalidades que o atravessam tem muitas
contribuições a prestar. A necessidade de se considerar o tempo, através da instituição de um
horizonte histórico de tematização, pode ser aliada à necessidade que se impõe, a partir da
reconstrução do conceito de ambiente, de se voltar à escuta, ao resgate daquelas dimensões
esquecidas e silenciadas pela sobreposição de uma lógica, de uma forma de pensar, sobre as
demais. Nesse sentido, uma educação ambiental pode constituir-se em um espaço privilegiado
para o resgate e a construção de uma “história ambiental” (LEFF, 2001). Pautada na escuta,
esta perspectiva educativa se abre à fala do outro, a incentiva e acolhe. Ao mesmo tempo, a
tenciona por meio de uma reflexão crítica, do diálogo e da troca de idéias. Neste movimento
são criadas condições, não somente para a construção de narrativas sobre o passado, como
34
também, a partir delas, para a compreensão dos “processos mediante os quais se atualizam as
identidades que acarretam, ao longo da história, formas de ser no mundo; identidades que se
inscrevem na natureza e que escrevem sua história” (LEFF, 2001, p.401). A partir do olhar
para o passado – mediado pelas vozes e lembranças silenciadas – são evidenciados
15
e
produzidos sentidos que nos permitem compreender e agir sobre o presente; compreender e
agir sobre nós mesmos.
Essa construção, entretanto, também passa pelo conhecimento e consideração das
múltiplas formas através das quais nos relacionamos com os diferentes espaços físicos e dos
significados que construímos nessas relações. O tempo, nesse sentido, encontra no espaço o
fundamento concreto através do qual não apenas se torna visível, mas também pode ser
problematizado.
O Espaço
O espaço, tal qual o experimentamos, vem sendo submetido a velozes transformações.
O espaço físico, no qual residem e com o qual interagem as diferentes formas de vida que
habitam este planeta e os espaços simbólicos, sobre os quais construímos os sentidos de nossa
existência, têm sido objeto de contínua e, cada vez mais, intensa exploração. Orientada,
predominantemente (nos últimos séculos), por uma racionalidade econômica, essa exploração
do espaço resulta em sua destruição, tanto no sentido físico-químico-biológico, quanto no
sentido anímico (UNGER, 2001). Como exemplo deste tipo de destruição dos espaços,
podemos tomar a complexa e emblemática questão das barragens, a exploração predatória de
madeira e de minérios, o avanço da fronteira agrícola e pecuária (principalmente no que se
refere às monoculturas de espécies exóticas), entre outros tantos. A destruição do espaço,
entretanto, dá-se também em uma escala bastante mais reduzida, mas nem por isso menos
significativa. O advento urbano, por exemplo, em sua expansão desmedida, promove a
transformação (destruição e reconstrução) do espaço. Essa transformação, dependendo da
forma e da velocidade com que é conduzida (ou não é, se for o caso), abala os vínculos que
estabelecemos com ele; priva-nos do contato com aqueles referenciais a partir dos quais nos
orientamos. Éclea Bosi em seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos (1994) tece
algumas considerações a esse respeito:
algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no
mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa
15
Porque reconstruídos.
35
ligação com a natureza. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças
abalam, mas que persistem em nós como uma carência.
Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar
sol. Os que voltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra
do renque de árvores. A casa demolida abala os hábitos familiares e para os
vizinhos que a viam há anos aquele canto de rua ganhará uma face estranha
ou adversa. (BOSI, 1994, p.451)
É importante destacar que essa discussão não visa o desenvolvimento de uma postura
conservacionista, no sentido estrito de manter as coisas como elas estão; até mesmo por que, a
mudança, inexorável em sua marcha, a tudo e a todos atinge “tudo muda o tempo todo”. O
que se pretende é conhecer os sentidos que nos relacionam ao espaço e apresentá-los a
reflexão; trazer à tona o espaço enquanto realidade complexa atravessada por múltiplos
interesses e sentimentos. Faz-se importante, como nunca, restituir ao espaço sua
complexidade, seus múltiplos sentidos, para que esse possa ser pensado e apreendido de
outras formas. O que se discute, também, é a velocidade com que são operadas as
transformações sobre o espaço: essa sim se apresenta hoje como uma das principais
responsáveis pelo solapamento dos esteios e referenciais sobre os/ a partir dos quais nos
orientamos. Novamente um excerto do trabalho de Bosi exemplifica essa questão:
A memória das sociedades antigas apoiava-se na estabilidade espacial e na
confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam, não se
afastariam. Constituíam-se valores ligados à práxis coletiva como a
vizinhança (versus mobilidade), família larga, extensa (versus ilhamento da
família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográficos (versus
objetos de consumo). Eis aí alguns arrimos em que sua memória se apoiava.
(BOSI, 1994, p.447)
Também não é o retorno ao passado, a um lugar idílico que foi perdido e, portanto,
precisa se recuperado, que se pretende defender; mas antes, apenas um diálogo entre o que
“foi” e o que “está sendo”, de modo que ambos possam ser resignificados. O que se propõe é,
entre outras coisas, a instituição um horizonte histórico – a partir das histórias locais, narradas
pelos seus habitantes por meio do qual a situação presente possa ser tematizada, discutida e
repensada. Wladimir Antônio da Costa Garcia, em um artigo intitulado Éticas
contemporâneas e meio ambiente (2003), sustenta a necessidade de se “abrir” o conceito de
espaço para a vida social, “a fim de compreendermos essa mesma vida social e atuarmos
nela” (GARCIA, 2003, p.41). De acordo com o autor, essa necessidade “permanece”,
principalmente quando consideramos as velozes transformações a que o espaço foi submetido,
as violentas operações culturais realizadas sobre a natureza e as catástrofes e ruínas herdadas
da história. Nesse contexto, o conceito de espaço aparece referido, não a um espaço filosófico
36
ou meramente empírico, mas sim a um “híbrido entre pensamento e matéria, entre abstração a
concretude” (GARCIA, 2003, p. 41). É sobre esse espaço que se propõe a flexão do
pensamento: um espaço complexo e multifacetado, integrado por processos físico, químicos,
biológicos e sociais. O autor destaca, nesse sentido, a importância de cada espaço habitado
formular o seu próprio pensamento. O desenvolvimento de uma práxis responsável sobre o
espaço, dessa forma, estaria relacionado não a uma ética geral – “ética conservadora do bem e
do mal do qual é indissociável” (GARCIA, 2003, p.46) -, sobre a qual repousam muitas das
ações educativas sobre o meio ambiente, mas sim a “éticas comprometidas com os processos
singulares, ou seja, éticas contemporâneas, onde o modificador (o contemporâneo) é
modificado, deixando de indicar o tempo para indicar o espaço” (GARCIA, 2003, p.47).
Desde um ponto de partida distinto, mas que permite aproximações, Enrique Leff
(2001) trabalha com a idéia de habitat. Para o autor,
O habitat é suporte e condição, ao mesmo tempo que é espaço
ressignificado e reconstruído pela cultura. Diante do espaço anônimo gerado
pela massificação de presenças, sem identidade e sem sentido, o habitat
habitado é o lugar significado por experiências subjetivas, lugar de
vivências construídas com a matéria da vida” (LEFF, 2001, p.286)
É associado a essa idéia que o autor desenvolve a noção de um habitar, entendido não
apenas como a forma de inscrição da cultura num espaço geográfico, mas como “um processo
de apropriação social das condições de habitabilidade do planeta, regido pelos princípios de
racionalidade ambiental
16
, sustentabilidade ecológica
17
, diversidade cultural e eqüidade
social” (LEFF, 2001, p.295). Habitar um habitat, dessa forma, pressupõe o reconhecimento e
produção de conhecimentos sobre o espaço; pressupõe também, em algum nível, cuidado e
planejamento. Pressupõe, enfim, reconhecimento e respeito às diferenças; às especificidades
ecológicas e culturais. Nesse sentido, não posso deixar de perceber a correspondência entre a
idéia de habitar um habitat, conforme é apresentada por Leff, com o que propõe Garcia
16
A categoria de racionalidade ambiental é um dos pilares centrais do pensamento de Enrique Leff. Sua
adequada explicitação exigiria um capítulo a parte no presente trabalho. Dessa forma, objetivando apenas de
situar o leitor na discussão apresentada, destaco a seguir dois pequenos trechos do capítulo 9 do livro Saber
ambiental (LEFF, 2001. p.133-144), onde o autor discute essa categoria:
“(...) a racionalidade ambiental não é a expressão de uma lógica, mas o efeito de um conjunto de interesses e de
práticas sociais que articulam ordens materiais diversas que dão sentido e organizam processos sociais através de
regras, meios e fins socialmente construídos.” (LEFF, 2001, p.134)
“A categoria de racionalidade ambiental integra os princípios éticos, as bases materiais, os instrumentos
técnicos e jurídicos e as ações orientadas para a gestão democrática e sustentável do desenvolvimento.” (LEFF,
2001, p.135)
17
“A sustentabilidade ecológica aparece assim como um critério normativo para a reconstrução da ordem
econômica, como condição para a sobrevivência humana e um suporte para chegar a um desenvolvimento
duradouro, questionando as próprias bases da produção.” (LEFF, 2001, p.15)
37
(2001), isto é, o desenvolvimento de uma práxis responsável sobre o espaço. Dito de outro
modo, o habitar de Leff pode ser entendido, também, como o desenvolvimento de uma práxis
responsável sobre o espaço.
***
As diferentes perspectivas teóricas apresentadas acima, em alguma medida, estiveram
presentes (e, em alguns casos, a dialogar) na investigação desenvolvida. Em um primeiro
nível, tomando como referência aquelas versões oficiais sobre a história de ocupação do
município de Esteio e, de forma mais específica, daquela sua porção do território considerada
no presente estudo, porque evidenciou um conjunto de personagens e histórias
tradicionalmente relegados a um plano de inexistência por uma racionalidade hegemônica
(LEFF, 2003). Em um segundo nível, porque a incursão às histórias de vida dos sujeitos
entrevistados, às histórias do lugar, viabilizou a instituição de um horizonte histórico de
tematização (GRÜN, 1996) a partir do qual suas relações com o meio puderam ser
repensadas. Em um terceiro nível, porque dentre os muitos elementos presentes nas histórias
de vida dos sujeitos entrevistados focalizou sua atenção às relações estabelecidas com os
espaços. Nesse sentido, a busca pelos significados atribuídos aos diferentes ‘espaços’ do
lugar, assim como aos diferentes lugares por onde passaram ao longo de suas caminhadas,
conferiu a ação investigativa um caráter interpretativo (CARVALHO, 2003) ao mesmo tempo
em que abriu caminhos para o desenvolvimento de uma práxis responsável sobre o espaço
(GARCIA, 2001) e/ou de um habitar genuíno (LEFF, 2001).
No último capítulo do texto, após as considerações de caráter metodológico, a
descrição das atividades e análise das informações construídas, retomo alguns aspectos
apresentados acima numa tentativa de integração entre os diferentes momentos do texto.
***
38
4. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Perguntamo-nos: o que foi terá sido
mesmo?Os fatos tiveram o valor que lhes dá
a memória? A memória distante não se
lembra deles se não dando-lhes um valor,
uma auréola de felicidade. Apagado o valor,
os fatos já não se sustentam. Existiram?
Uma irrealidade se infiltra na realidade
entre nossa história pessoal e uma pré-
história indefinida (...).
(Gaston Bachelard
18
)
Conforme apresentado no resumo, o presente trabalho, na sua quase totalidade,
fundou-se nas reminiscências narradas em encontros coletivos e individuais (pesquisador-
pesquisado) por um grupo de migrantes – homens e mulheres – atuais moradores de um bairro
de periferia do município de Esteio. Dessa forma, para compreender como o processo de
migração foi experimentado pelos sujeitos entrevistados e, nele, como se deu a atualização
das relações com os lugares (de onde saem, por onde passam e nos quais se radicam),
recorreu-se, em primeira instância, a um conjunto de memórias individuais.
Tem-se, a partir dessa estruturação, o atravessamento de dois conjuntos de processos:
o primeiro, condição de possibilidade para o conhecimento do segundo, diz respeito aos
modos através dos quais compomos nossas reminiscências: relações entre reminiscências
individuais e memória coletiva, entre contextos narrativos e conteúdos da narração e entre
pesquisador-pesquisado; o segundo, ‘objeto’ específico da presente investigação, refere-se
aos significados atribuídos (ou não) aos diferentes constituintes materiais do meio e aos
modos de relação com estes derivados daqueles.
Neste capítulo, será tratado o primeiro conjunto de processos referido acima. As
principais idéias, conceitos e categorias relacionados à dimensão metodológica e operacional
da pesquisa empreendida serão apresentados e discutidos. Será também realizada, ao final,
uma descrição dos principais procedimentos adotados em campo (sua dimensão empírica)
numa tentativa de integrar as diferentes perspectivas teórico-metodológicas apresentadas.
18
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos). p.72.
39
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Pesquisa qualitativa e cultura
A opção pela utilização de abordagens qualitativas de pesquisa, ao invés de
quantitativas (ou ainda da utilização de ambas), diz respeito a aspectos tanto de ordem
particular - referentes à minha relação com os sujeitos pesquisados - quanto de ordem geral -
representados por tendências mais abrangentes no que concerne a pesquisa em Ciências
Sociais. O primeiro grupo de aspectos, os de ordem particular, condiciona o desenvolvimento
de uma pesquisa qualitativa quase que como uma necessidade: a partir da relação de amizade
construída com os sujeitos pesquisados, a utilização de instrumentos quantitativos de
pesquisa, ao que me parece, não apresentaria nenhuma vantagem significativa que pudesse
justificar a sua opção; pelo contrário, resultaria estranho e até certo ponto “artificial”.
Acrescento a isso, ainda, minha falta de familiaridade com as abordagens quantitativas
(principalmente com os instrumentos estatísticos utilizados para a análise dos dados) e a
natureza do “objeto” a ser pesquisado melhor apreensível pelos métodos qualitativos de
investigação. O segundo grupo de aspectos, por sua vez, relaciona-se às transformações
ocorridas (predominantemente nas últimas três décadas) nas formas de se fazer e conceber a
pesquisa social e que estão vinculadas ao desenrolar de processos sociais mais amplos
(MELUCCI, 2005). Aqueles processos de individualização, através dos quais são criadas
condições de autonomia para os sujeitos individuais, constituem um exemplo disso. De
acordo com Melucci, o papel e o valor concedidos à experiência individual e à vida cotidiana,
enquanto “espaço no qual os sujeitos constroem o sentido do seu agir e no qual experimentam
as oportunidades e os limites para ação” (MELUCCI, 2005, p.29), uma vez que deslocam o
foco de atenção das estruturas sociais para a particularidade dos detalhes e a unidade dos
acontecimentos, acentuam o interesse e a importância da pesquisa de tipo qualitativo.
Conforme destaca o autor, o interesse dos atores sociais por uma pesquisa do tipo qualitativa,
nesse contexto (engendrado pelos processos sociais que oferecem maiores recursos de
individualização), talvez não seja casual:
Mais sensíveis à sua individualidade e mais sintonizados com a vida
cotidiana, eles exigem uma prática de pesquisa mais próxima de sua
experiência, mais presente no campo do seu agir, como aquela que a
pesquisa qualitativa coloca à disposição. (MELUCCI, 2005, p.30)
40
Melucci faz referência, ainda, a alguns outros processos sociais que estariam
relacionados a esse maior interesse pela pesquisa qualitativa: os processos de diferenciação,
culturalização da natureza e naturalização da cultura. Segundo ele, os métodos qualitativos
de investigação, por tenderem menos à estandardização, melhor se prestariam a captar os
aspectos relacionados a cada um desses processos. Especificamente no que se refere aos dois
últimos, vale acompanhar com maior atenção o raciocínio apresentado pelo autor:
No mundo contemporâneo, a natureza não é mais separável de modo claro
da cultura porque a sociedade intervém de modo mais massivo sobre as
bases mesmas da realidade natural (...). A natureza externa e a nossa mesma
natureza biológica se tornam objeto de intervenção social, dependem das
nossas decisões e das nossas escolhas. A natureza à qual nos referimos está
sempre mais inscrita nas nossas definições culturais, enquanto
contemporaneamente a nossa vida cultural é atingida de modo crescente
pelos fatores biológicos e ambientais (...): também, deste ponto de vista, é
sobre os instrumentos de análise qualitativa que se move a busca de
conhecimento. (MELUCCI, 2005, p.30)
O aumento pelo interesse na pesquisa qualitativa, entretanto, corresponde a apenas um
movimento dentro de um conjunto mais amplo (e profundo) de modificações a que vem sendo
submetido o campo da pesquisa social. Nesse sentido, “é como se as práticas de tipo
qualitativo tivessem aberto a estrada para uma redefinição do campo no seu conjunto e
começassem a produzir uma mudança dos velhos limites que separavam quantidade e
qualidade” (MELUCCI, 2005, p.32). Melucci chega mesmo a falar em uma verdadeira
“virada epistemológica”. Segundo ele, essas mudanças estariam colocando em questão alguns
dos pressupostos fundamentais sobre os quais se edificou a ciência moderna, principalmente a
partir de dois eixos: um primeiro referente à noção de sistema, e um segundo relacionado à
linguagem. A partir do primeiro eixo, põe-se em questão a dicotomia entre res cogitans e res
extensa: uma vez que a definição de sistema somente se viabiliza a partir da instituição do
ponto de vista do observador, a relação deste com aquele não pode mais ser tratada em
termos permanência, estabilidade e neutralidade. A implicação do observador com a
realidade observada é patente: “a realidade social inclui o observador, é processual e interage
com ele” (MELUCCI, 2001, p.318). E nesse sentido, toda a observação passa a ser também
uma intervenção. O segundo eixo, por sua vez, põe em questão o suposto isomorfismo entre
as estruturas cognitivas, de um lado, e a realidade, de outro, a partir do qual seria possível
garantir o êxito da empresa cognocitiva e chegar a níveis mais ou menos satisfatórios de
desvelamento da realidade (MELUCCI, 2005) A partir da posição central assumida pela
linguagem, isto é, a admissão de que “tudo o que é dito é dito para alguém em algum”
41
(MELUCCI, 2005, p.33), a pesquisa social abdica à pretensão de produzir conhecimentos
absolutos e se entrega a construção de interpretações plausíveis. Desde os pontos de tensão
introduzidos pelas mudanças sociais anteriormente referidas e, também, pela reflexão
produzida no âmbito da pesquisa qualitativa, a pesquisa social como um todo vem tendo, pois,
seus limites e horizontes redefinidos; de modo inverso, essa redefinição a que o campo da
investigação social vem sendo submetido, impulsiona não apenas o desenvolvimento e
redescoberta de abordagens qualitativas de pesquisa, mas também daqueles processos sociais
mais amplos aos quais se vincula.
O objetivo da pesquisa social não tem mais a pretensão de explicar uma
realidade em si, independente do observador, mas se transforma em uma
forma de tradução do sentido produzido pelo interior de um certo sistema de
relações sobre um outro sistema de relações que é aquele da comunidade
científica ou do público. O pesquisador é alguém que traduz uma linguagem
para outra. (MELUCCI, 2005, p. 34)
Na esteira dessas modificações mais amplas, conforme dito, algumas abordagens
metodológicas específicas vem sendo redescobertas e resignificadas. Entre elas destacam-se
aquelas ditas biográficas enfoque escolhido para a realização do presente trabalho. Tendo
como eixo comum a história de vida de um ou mais indivíduos, essas abordagens se
caracterizam entre outras coisas por fazer da memória o foco central da auto-reflexão do
sujeito entrevistado e pela construção interativa de narrativas (MELUCCI, 2005). Nesse
sentido, antes de tudo, faz-se necessário explicitar e discutir os significados que assumem
aqui os conceitos de memória, narrativas e histórias de vida.
Memória, composição, narrativas e reminiscências
Ecléa Bosi, no primeiro capítulo do seu célebre trabalho Memórias de velhos, a partir
das contribuições de Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Frederic Charles Barlett e Willian
Stern, discute o conceito de memória. Ao mesmo em tempo em que apresenta as principais
concepções presentes nos trabalhos de cada um dos autores supracitados, Bosi as relaciona
(aproxima e contrapõe) dando relevância ao nexo entre memória e vida social. À noção de
memória como conservação espiritual do passado, em Bergson, são incorporadas as
concepções sociológica de Halbwachs e psicossocial de Barlett. As influências do ambiente
(sócio-cultural) sobre o curso da memória individual ganham, dessa forma, lugar de destaque:
mais do que uma “ressurreição” do passado, “a lembrança é uma imagem construída pelos
42
materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam
nossa consciência atual” (BOSI, 1994, p.55). A memória do indivíduo encontra-se ligada às
demais dimensões de sua existência atual: aos amigos, à família e aos outros grupos de
pertencimento. O presente ressignificando o passado. Sob essa perspectiva, todo o trabalho
com a memória esta suposta capacidade de ‘reter’ o passado - remete inevitavelmente ao
presente vivenciado pelo sujeito que lembra; remete, pois, também aos contextos específicos
(circunstanciais) nos quais se dá rememoração
19
.
Essa influência que o meio (seja ele o social, seja o contexto específico no qual se dá a
rememoração) exerce sobre a memória individual, é considerada também por Antoinette
Errante (2000). Num texto revelador, no qual narra parte do seu percurso como historiadora
oral, Errante enfatiza a influência do “como” nós rememoramos sobre o “que” rememoramos.
Segundo a autora, modos particulares de rememoração exigem contextos particulares de
rememoração. Na sua experiência em Moçambique, a pesquisadora pôde perceber que a
emergência e verbalização de alguns tipos de lembrança requeriam uma experiência de
compartilhamento-grupal; isto é, exigiam um contexto específico, em geral coletivo, no qual
os envolvidos davam vazão não a suas vozes individuais, mas a uma “voz coletiva”. Sobre
essa narrativa particular a autora diz o seguinte:
Ocorreu-me que todos os contextos que tinham gerado esse tipo de
lembranças e eventos relembrados o tipo que eu estava procurando
tinham acontecido em ocasiões através das quais as pessoas pudessem
fortalecer as ligações entre elas. (...) A narrativa “amizade-na-miséria”
requeria um grupo no qual as pessoas pudessem lançar suas narrativas
dentro de um quadro de memórias; tendo uma estória assinalado seu
pertencimento ao grupo. (...) A “voz” narrada nessas histórias era uma voz
coletiva; era uma experiência “do nós”, e, talvez, por essa razão, requeria
um contexto “do nós” para as pessoas narrarem. (ERRANTE, 2000, p.167)
A memória individual, pelo que foi exposto até então, encontra-se sujeita às
influências do meio social, das circunstâncias específicas na qual é ativada. Essas influências
dizem respeito aos modos através dos quais acessamos (ou não) nossas experiências passadas
e às formas com que interagimos com elas: lembramos algumas, esquecemos outras;
modificamos (consciente ou inconscientemente) a maior parte delas. Nesse mesmo trabalho,
Antoinette Errante apresenta, a partir de Teski e Climo (1995), cinco diferentes categorias
19
“Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora, que, em vez de repetir aquilo que se
lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos,
incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também
significa uma atenção precisa ao presente, particularmente a estas estranhas ressurgências do passado no
presente, pois não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A
fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.” (GAGNEBIN, 2001, p.91)
43
etnográficas de memória, entre as quais se incluem, além da lembrança (em geral a única que
associamos a noção de memória), o esquecimento, a reconstrução, a metamorfose e a
memória vicária. De acordo com essa classificação, aquilo que esquecemos é tão relevante
quanto aquilo que é lembrado. Lembrança e esquecimento possuem o mesmo estatuto. Além
disso, as categorias de reconstrução e metamorfose se referem às alterações (reinterpretações)
a que nossas experiências passadas estão sujeitas, sob a influência do meio social e das
circunstâncias específicas nas quais se a rememoração. A distinção entre lembranças,
reconstruções e metamorfoses, ao que parece, sugere a existência de uma escala ou ‘graus’ de
alteração: das lembranças às metamorfoses, as influências do presente se fariam sentir cada
vez com maior intensidade; ou ainda, de modo mais radical, sugere a existência de um tipo de
memória as lembranças fiel aos acontecimentos passados (verdadeiras “ressurreições” do
passado, conforme postulado por Bergson). A última categoria etnográfica de memória, a
memória vicária, diz respeito às lembranças de outras pessoas (ou grupos) que incorporamos
e tornamos nossas. São imagens que construímos a partir da narração de outrem e que
retomamos como se fossem nossas próprias lembranças, isto é, como se tivéssemos de fato
vivenciado os acontecimentos aos quais essas imagens remetem.
Essas cinco categorias, ainda que não dêem conta da complexidade que é o fenômeno
da memória uma vez que, por exemplo, não consideram a especificidade dos processos
neurológicos ou psicológicos relacionados à capacidade (necessidade) de lembrar e de
esquecer -, são úteis para que possamos tornar mais abrangente o seu entendimento. Nesse
sentido, quando falamos em memória não estamos nos referindo a uma maior ou menor
capacidade de “retenção” dos eventos ocorridos e presenciados no passado; estamos, sim,
referindo-nos aos modos através dos quais as imagens de eventos passados, experimentados
ou não, são acionadas (ou não) e retrabalhadas (com maior ou menor intensidade) em função
das solicitações do presente, representado pelos contextos sócio-culturais (abrangentes e
específicos) nos quais nos inserimos e onde a rememoração se dá.
Alistair Thomson, historiador oral australiano, agrega em seu trabalho os principais
pontos destacados até então. Numa competente sistematização
20
, que tem como base suas
pesquisas junto a veteranos de guerra australianos (Anzacs), Thomson explora três interações
chaves: as relações entre reminiscências pessoais e memória coletiva, entre memória e
identidade e entre entrevistador e entrevistado. De acordo com o autor, “compomos nossas
reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente” (THOMSON, 1997, p.56). A
20
THOMSON, A. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias.
Projeto História, São Paulo, n° 15, p. 51-71, abril 1997.
44
utilização do termo composição, nesse contexto, faz referência aos processos de reconstrução
a que submetemos as imagens do passado a partir das solicitações atuais. Para tanto, são
utilizados as linguagens e significados conhecidos e socialmente aceitos de nossa cultura
(THOMSON, 1997). Os nculos entre memória e vida social ressaltados por Ecléa Bosi
são, dessa forma, contemplados a partir da noção de composição. Entretanto, conforme
salienta Thomson, nem sempre as imagens e linguagens disponíveis e socialmente aceitas,
num determinado espaço-tempo, encaixam-se às experiências pessoais.
Portanto, os relatos coletivos que usamos para narrar e relembrar
experiências não necessariamente apagam experiências que não fazem
sentido para a coletividade. Incoerentes, desestruturadas e, na verdade,
“não-lembradas”, essas experiências podem permanecer na memória e se
manifestar em outras épocas e lugares – sustentadas talvez por relatos
alternativos – ou através de imagens menos conscientes. Experiências novas
ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram
novas formas de compreensão. (...) Que memórias escolhemos para recordar
e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas
que mudam com o passar do tempo. (THOMSON, 1997, p.56/57)
Essa passagem me é especialmente reveladora. Podemos situar nela algumas das cinco
categorias etnográficas de memória referidas anteriormente e avançar na compreensão sobre
os modos através dos quais meio e memória se inter-relacionam. No esquema de Thomson, os
esquecimentos uma das cinco categorias etnográficas de memória, segundo Teski e Climo
(1995) seriam aquelas imagens que não encontraram “lugar” ou meios de expressão nos
contextos onde a rememoração ocorre. Nesse sentido, os esquecimentos são circunstanciais;
as imagens “não-lembradas” podem permanecer na memória (observe-se o sentido que o
conceito assume aqui o de “depositório” de imagens do passado, muito semelhante ao
proposto por Bergson) e emergir, sempre transformadas, em contextos distintos. As
reconstruções e metamorfoses a que são submetidas essas imagens, por sua vez, podem ser
atribuídas aos necessários e inevitáveis ajustes das experiências pessoais às linguagens e aos
significados conhecidos e aceitos dos grupos e culturas de pertencimento. As contínuas
transformações sofridas por esses códigos culturais, dessa forma, são uma das responsáveis
pela provisoriedade de nossas composições. Sim, de acordo com Thomson, nossas
composições são provisórias: alteram-se com o passar do tempo e também de acordo com as
alterações sofridas por nossa identidade. Disso decorre um segundo sentido, mais psicológico,
do termo composição: “a necessidade de compor um passado com o qual possamos conviver”
(THOMSON, 1997, p.57). Para o autor, esse sentido se fundamenta numa relação de
reciprocidade entre identidade e memória. Nossas identidades influenciam o processo de
45
construção de reminiscências na mesma medida em que são influenciadas por elas.
“Construímos nossa identidade através do processo de contar histórias para nós mesmos
como histórias secretas ou fantasias ou para outras pessoas, no convívio social”
(THOMSON, 1997, p.57). Entra em jogo, neste momento, a ação narrativa:
Ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no
passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser.
As histórias que relembramos não são representações exatas de nosso
passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se
ajustem às nossas identidades e aspirações atuais. (THOMSON, 1997, p.57)
Através da ação narrativa
21
, isto é, do processo de composição (num sentido lato) e
expressão de reminiscências processo este influenciado por nossas identidades, assim como
pelos contextos nos quais nos inserimos –, resignificamos nosso passado, reatualizamos o
presente e nos projetamos em direção ao futuro (futuros possíveis e/ou desejados). Futuro,
presente e passado se entrecruzam, encontram-se em nossas narrativas. Identidade e memória
também. E é do entrecruzamento, do encontro entre identidade e memória que o significado
do termo reminiscência é evocado por Thomson: “reminiscências são passados importantes
que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo
passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes”
(THOMSON, 1997, p.57).
Antes de seguir adiante, proponho uma primeira retomada. A memória individual, pelo
que foi visto até o momento, é ativamente influenciada pelas circunstâncias atuais. Mais do
que um simples depositório de imagens do passado - que ressurgiriam intactas durante os
eventos de rememoração , a memória é também ação (consciente ou inconsciente) sobre
essas imagens. Essa ação se faz sentir de diferentes modos: desde a seleção daquilo que será
relembrado (e, conseqüentemente, de tudo o mais que será ‘esquecido’), passando pelas
formas através das quais justapomos (compomos) e narramos acontecimentos passados, até
reformulações e metamorfoses a que submetemos determinadas imagens. Além disso, dá-se
sempre em função das exigências do presente, ou seja, é circunstanciada. Entre as principais
circunstâncias que determinam ações sobre o conteúdo da memória (se é que podemos falar
em ‘um’), destacaria os diferentes grupos de pertencimento dos indivíduos - desde aqueles
21
“(...) forma de contrução e organização do discurso (aí compreendidos tanto o estilo, na acepção de Peter Gay,
quanto aquilo que Paul Veyne chamou de ‘trama’ e Hayden White de ‘urdidura do enredo’) (...)” (AMADO;
FERREIRA, 1996, p.XV). É importante salientar ainda que a construção de uma narrativa pressupõe a existência
de um ouvinte ou de um leitor, ou seja, é sempre o resultado de uma interação (direta ou indireta).
46
mais restritos, como a família, por exemplo, até os mais abrangentes, representados pela
linguagem e demais códigos culturais compartilhados assim como os contextos específicos
nos quais o trabalho da memória é solicitado. Entram e jogo, neste momento, as interações
entre reminiscências individuais e memória coletiva, entre memória e identidade e entre
entrevistador e entrevistado (assim como dos entrevistados entre si). Compomos nossas
reminiscências a partir das imagens do passado (nossas ou de outrem memória vicária), de
modo a que se “ajustem às histórias ou mitos normalmente aceitos (memória coletiva), à
consciência construída e cambiante do eu (identidades) e aos contextos relacionais específicos
nos quais a memória é evocada (nas relações com aqueles que escutam).
***
O quadro desenhado até o momento procurou evidenciar a natureza cambiante e
circunstancial da memória. Nesse sentido, poderíamos nos questionar quanto aos limites e
possibilidades de um trabalho fundamentado em reminiscências pessoais. As informações
construídas
22
são confiáveis? Em que medida elas nos permitem compreender os processos
que descrevem? E, a que tipo e nível de generalizações podemos chegar partindo de um
terreno tão instável?
Quando questionamos a confiabilidade dos conteúdos da memória, o fazemos desde
uma perspectiva que admite a existência de um passado ‘estático’ e, portanto, ‘recuperável’.
Nesse sentido, para saber “como aconteceu realmente”, uma fotografia ou um documento
escrito, por exemplo, seriam “fontesde informações mais confiáveis do que os depoimentos
orais registrados a posteriori; mais confiáveis porque menos sujeitos às influências de uma
subjetividade cambiante. Por outro lado, se reconhecermos os múltiplos atravessamentos entre
passado, presente e futuro e a natureza sempre interpretativa do fazer científico, a noção do
que é ou não confiável passa a ser construída sobre outros referenciais. Sob essa perspectiva,
não um passado “estático” a ser “recuperado”, mas apenas interpretações possíveis. Além
disso, assim como os depoimentos orais, os documentos escritos (por exemplo) também
representam uma interpretação pessoal acerca de fatos (vivenciados ou não); ou seja, estão
sujeitos, se não às mesmas, a um nível semelhante de influências (internas e externas). A
confiabilidade das informações, dessa forma, passa a ser avaliada em função dos objetivos e
22
De acordo com Danièle Voldman, em função da natureza da relação entre pesquisador-pesquisado e das
escolhas procedidas por aquele sobre os o depoimento deste, faz-se necessário “estudar o documento oral não
somente como fonte, mas também do ponto de vista de sua construção pelo historiador que, ao solicitar uma
testemunha, procede a uma ‘invenção de fontes”. (VOLDMAN, 2000, p.250/251)
47
do ambiente relacional no qual se desenrola a investigação e não mais em relação às noções
de “estabilidade” e “neutralidade”.
Retorno agora aos questionamentos colocados acima. As informações construídas a
partir do trabalho com reminiscências pessoais são confiáveis não por que correspondem mais
ou menos ao que de fato aconteceu, mas por que expressam o pensamento e a vida de homens
e mulheres; são confiáveis como expressões do vivido reinterpretado à luz do presente e não
na qualidade de imagens de um passado estático que se deseja recuperar. Seu valor reside
nisso e é desde esta perspectiva a de reinterpretação e expressão do vivido - que devemos
tentar compreender os processos que elas descrevem. Além disso, os limites das
generalizações possíveis em um trabalho com reminiscências pessoais, assim como em
qualquer outro tipo de pesquisa científica, serão dados mais pelo contexto específico de
realização do processo investigativo do que pela natureza instável e circunstancial da
memória. As conclusões a que podemos chegar, independente dos pontos de partida, são
sempre parciais.
É importante ressaltar ainda que as questões específicas relacionadas aos modos
através dos quais compomos nossas reminiscências e que acabam de ser superficialmente
apresentadas nesta seção, foram apenas tangenciadas no presente trabalho. A maior parte da
análise foi realizada sobre os conteúdos das narrativas, isto é, sobre aquilo que foi escolhido
para ser narrado. Os atravessamentos envolvidos nessas escolhas, somente em alguns
momentos foram aventados. Isso se deve, essencialmente, a alternância de momentos que
constituiu o processo de construção do presente ‘objeto de pesquisa’: o contato com boa parte
dos referenciais teóricos aqui apresentados ocorreu num momento posterior à definição dos
caminhos e direções gerais da pesquisa. Ainda assim, o “alargamento” sofrido pelo conceito
de memória foi de fundamental importância para a condução e rearranjos durante a construção
dos dados (de modo ainda mais decisivo nos encontros coletivos conforme será relatado a
seguir).
Método biográfico, histórias de vida e depoimentos orais
Conforme dito, todas as nuances do trabalho fundamentado na memória e, mais
especificamente, em reminiscências pessoais emergiram no contexto da presente investigação
num momento posterior às delimitações de caráter mais geral (e, por isso, decisivo). Pode-se
dizer, inclusive, que a busca e o encontro com este campo de práticas e teorias decorreram
dessas delimitações gerais. Foi em função do que propus no projeto de pesquisa o trabalho
48
com histórias de vida – que a necessidade de mais subsídios se me apresentou. Contudo, ainda
que tenha sido consideravelmente resignificada pelos aportes referidos e que não tenha sido
aplicada como método ou técnica, essa inspiração inicial balisou todo o trabalho desenvolvido
e continua produzindo ressonâncias em meus pensamentos. Apresento a seguir alguns dos
pontos fundamentais do trabalho com histórias de vida e suas relações com a presente
pesquisa, a partir do trabalho de dois autores: Jacques Leon Marre e Maria Isaura Pereira de
Queiroz.
Jacques Marre, em um artigo intitulado Histórias de vida e método biográfico (1991),
apresenta e discute essa modalidade de pesquisa a partir de sua relação com um método mais
abrangente, no qual se inscreve e constituí parte fundamental: um método biográfico. O texto
é dividido em duas partes principais: na primeira, a história de vida é apresentada em seu
primeiro uso, dado nas décadas de 20 e 30; na segunda, são discutidas suas tendências atuais e
sua relação com um método biográfico.
De acordo com o autor, as histórias de vida, nas décadas de 20 e 30, foram utilizadas,
essencialmente, como uma técnica de coleta de informações. Não houve, nesse período, uma
preocupação em relacionar as histórias de vida singulares com uma história mais abrangente
ou com aspectos sociais estruturantes. O que se pretendia, de um modo geral, era “conservar
certas características originais e específicas do passado, através de relatos exemplares; ou,
segundo a ‘Escola de Chicago’, descrever os efeitos realistas de uma vida marginalizada”
(MARRE, 1991, p.90).
Somente a partir da década de 70, com o crescente desencantamento relacionado aos
métodos quantitativos e às grandes teorias, é que a história de vida aparece relacionada a um
método mais abrangente através do qual a análise dos seus conteúdos pôde ser aprofundada.
Orientado por uma filosofia bachelardiana que vem substituir o
pensamento positivista anterior -, o método biográfico, em via de
elaboração permite reconstruir, em cada história de vida, a presença de
relações básicas e complexas, que dizem respeito às categorias sociedade,
grupo e indivíduo, expressas no relato oral. (MARRE, 1991, p.91)
Nesse novo contexto, a análise dos relatos passa a ser realizada, essencialmente, sob a
perspectiva da descontinuidade, isto é, levando em conta “a descontinuidade e as rupturas
ocorridas tanto ao nível da vida individual como coletiva” (MARRE, 1991, p.91). Essa
descontinuidade também se refere a ruptura operada “entre um significado imediato e um
significado reconstruído” (MARRE, 1991, p.134). Além disso, a unidade básica de pesquisa,
49
que nas décadas de 20 e 30 foi o indivíduo, passa a ser o grupo social. . De acordo com o
autor, ao se tomar o grupo e não o indivíduo como unidade heurística de pesquisa introduz-se
no fundamento da pesquisa um conjunto de relações sociais.
Colocando a problemática do uso da história de vida nessa perspectiva,
encaminha-se, assim, uma forma de iniciar a construção de um objeto
científico, cujo fundamento é um conjunto real e histórico de relações
sociológicas e empíricas vividas por um grupo, mas captadas através das
histórias de vida. Essas são totalidades sintéticas. Cada uma forma um todo.
Mas, entre elas, não elos de continuidade, mas muito mais
descontinuidades. (MARRE, 1991, p.110)
Outra diferença importante pode ser pensada em relação às modalidades de coleta de
dados. De um modo geral, no seu primeiro uso, a trabalho com as histórias de vida se
preocupou com a integridade do relato, seja durante a coleta, seja por ocasião de sua
apresentação. A utilização do gravador por Oscar Lewis, por exemplo, reflete o desejo de
apresentar, da forma mais fiel e rigorosa possível, o relato tal qual foi captado pelo
pesquisador. Essa tendência, décadas mais tarde (nos anos 50), sob forte influência de uma
filosofia positivista, é decodificada e chega ao ponto de exigir que o pesquisador se comporte
como um verdadeiro “presente-ausente”; uma espécie de “anexo do instrumento de gravação”
(MARRE, 1991, p.114).
A esse modo de coleta de dados contrapõe-se outro, descrito pelo autor como
investigação participativa. Baseado numa filosofia bachelardiana, na qual a participação ativa
do pesquisador é prerrogativa para a construção de um objeto de pesquisa e para o seu
desenvolvimento, essa modalidade de coleta de dados propõe “que a coleta das histórias de
vida seja feita mediante a relação de diálogos e trocas comunicativas entre pesquisador e
pesquisado” (MARRE, 1991, p.115). Sob essa perspectiva, melhor seria falar em
(re)construção do que coleta. Pesquisador e pesquisado devem, a partir de um clima de
empatia e confiança, trabalhar juntos na reconstrução das diversas instâncias que unem as
dimensões individuais e coletivas presentes em uma história de vida. Marre destaca quatro
características fundamentais dessa modalidade: o direito à palavra, onde o pesquisado tem o
direito a dizer ‘tudo’; a igualdade substancial, referente à ausência do desejo de subordinação
do outro ao próprio discurso; a empatia, relacionada à relação entre pesquisador-pesquisado,
onde se afirma a necessidade de “vivenciar, de um modo ativo, os diversos níveis da
verbalização em ato e toda a riqueza da experiência humana” (MARRE, 1991, p.116); e, por
fim, o fato de que o pesquisador, inevitavelmente, correr riscos o que, por seu turno, lhe
permitiria aprofundar dialeticamente a coleta das histórias de vida. Essas quatro
50
características, no seu conjunto, reafirmam uma postura ativa no processo de reconstrução das
histórias de vida por parte do pesquisador. Conforme sintetiza o autor:
Em suma, nesse método de coletar histórias de vida, o básico não é a
neutralidade, mas a cooperação empática, a igualdade substancial frente à
verdade e o risco corrido pelo pesquisador, para levar o sujeito à plena
expressão de sua experiência humana, no campo constitutivo de sua relação
em um grupo social e, através dela, com a sociedade global. (MARRE,
1991, p.117)
Essas modificações todas nas formas de trabalho com as histórias de vida, dadas pelo
desenvolvimento de um método biográfico, refletem o desejo - ao mesmo tempo em que
criam a possibilidade - de capturar toda a riqueza dos seus conteúdos; pautam-se no
reconhecimento de sua singularidade, isto é, sua capacidade de, apesar de ser sempre relativa
a um único sujeito, expressar tendências gerais comuns a todo um grupo social. As histórias
de vida possibilitam e como elas, poucas outras “fontes” de informações a captura, ao
mesmo tempo, do geral e do particular; da “face externa da vida, com seus acontecimentos
objetivos” e da “face interna, o vivido, o provado” (MARRE, 1991, p.102). As histórias de
vida, através daquilo que de mais particular isto é, a trajetória singular de cada sujeito -,
tornam um geral, referente aos diversos grupos de pertencimento e/ou de relação do
indivíduo, acessível, apreensível. Nesse sentido, cada história de vida singular é também uma
totalidade sintética. “Ela é um pequeno universo, uma totalização do sistema social, ou seja,
uma maneira sintetizada de cada indivíduo apreender o social, narrá-lo e reconstruí-lo”
(MARRE, 1991, p.132).
***
Desde uma perspectiva distinta, que toma a história de vida como uma técnica para
coleta (construção) de dados e não como um método (conforme postula Marre), Maria Isaura
pereira de Queiroz (1988) enfatiza (ao mesmo tempo em que marca) as diferenças existentes
entre o trabalho com histórias de vida, por um lado, e com entrevistas, depoimentos,
autobiografias e biografias, de outro. Entretanto, no que tange ao contexto de realização do
presente trabalho, uma distinção se torna especialmente relevante: aquela entre histórias de
vida e depoimentos.
De acordo com Queiroz, a entrevista é a forma mais antiga e difundida de coleta de
relatos orais no âmbito das Ciências Sociais. Pautada numa “conversação continuada entre o
51
informante e o pesquisador” (QUEIROZ, 1988, p.20), onde este último é quem determina o
rumo do diálogo (assim como o assunto a ser tratado), esse procedimento permeia todas as
demais formas de coleta de relatos orais – uma vez que “estes implicam sempre num colóquio
entre pesquisador e narrador” (QUEIROZ, 1988, p.20). É importante observar que, ao mesmo
tempo em que caracteriza (e, portanto, define) a entrevista como uma técnica (conjunto de
procedimentos específicos), a autora também a toma como um procedimento nesse caso,
incorporado às demais técnicas. Da mesma forma, também o termo depoimento assume dupla
significação no texto: se refere “ao relato de algo que o informante efetivamente presenciou,
experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim certificar” (QUEIROZ, 1988,
p.21) ao mesmo tempo em que designa um conjunto de procedimentos específicos (uma
técnica), adotados frente a uma situação que se deseja investigar. É no primeiro sentido do
termo que a autora vai dizer, por exemplo, que “toda a história de vida encerra um conjunto
de depoimentos” (QUEIROZ, 1988, p.21); por outro lado, a diferenciação entre histórias de
vida e depoimentos será operada a partir de sua segunda acepção.
Para a autora, a principal diferença entre as duas técnicas (histórias de vida e
depoimentos), reside na postura do pesquisador diante do informante; frente àquilo que ele
tem para dizer. No trabalho com depoimentos, a postura do pesquisador durante a entrevista é
mais ativa, mais diretiva; “da ‘vida’ de seu informante lhe interessam os acontecimentos
que venham se inserir diretamente no trabalho, e a escolha é unicamente efetuada com este
critério” (QUEIROZ, 1988, p.21). Toda a vez que o narrador se afasta dos “eixos” que
compõem o roteiro da entrevista, o pesquisador intervém de modo a trazê-lo de volta ao
“centro” dos seus interesses. no que tange ao trabalho com histórias de vida, a postura do
pesquisador caracterizar-se-ia pela relativa ‘passividade’. Os dados e informações que lhe
interessam são buscados de modo indireto. Nesse tipo de trabalho, é o narrador quem decide
sobre o que irá falar; ou, pelo menos em que ordem irá organizar os diferentes momentos de
sua narrativa. O pesquisador, interessado “em captar algo que ultrapassa o caráter individual
do que é transmitido” (QUEIROZ, 1988, p.20), mantém-se atento ao que lhe é narrado e
intervém o nimo possível. Outra diferença, decorrente das anteriores, refere-se aos tempos
necessários para a consecução de cada uma das técnicas. Enquanto o trabalho com histórias de
vida demanda longo tempo para sua execução, afinal “não é em uma ou duas entrevistas que
se esgota o que um informante pode contar de si mesmo (...)”(QUEIROZ, 1988, p.20), no
trabalho com depoimentos “a entrevista pode se esgotar num encontro (...)”(QUEIROZ,
1988, p.21).
52
A autora ainda destaca que, a despeito dessas diferenças e em última análise, é sempre
o pesquisador quem tem as “rédeas” da situação; seja quando intervém ativamente durante a
entrevista, seja por ter escolhido o tema, formulado as questões e proposto os problemas. A
igualdade substancial de que nos fala Marre (1991), desde este ponto de vista, seria apenas
aparente. Nesse sentido, a escolha entre uma ou outra deve ser orientada pelos objetivos da
pesquisa que se quer realizar; “pesquisa esta que, na sua especificidade, deverá requerer a
aplicação da história de vida, ou da coleta por meio de depoimentos” (QUEIROZ, 1988,
p.22).
***
A partir da contribuição desses dois autores e ao término das atividades de campo,
repenso o trabalho realizado. É certo que não desenvolvi a rigor nenhuma das técnicas ou
método acima referidos; contudo, inspirei-me profundamente em alguns dos seus
pressupostos e orientações. A possibilidade de capturar um geral a partir do particular
representado por cada história de vida, isto é, a admissão de que o individual é atravessado
pelo social (e vice-versa), foi um desses pressupostos. O foco das narrativas construídas e
coletadas em nosso trabalho foi sempre autobiográfico; os sujeitos foram convidados, em
grupo ou individualmente, a contar a sua história, a história de sua vida. Nelas, procurei
encontrar elementos que me auxiliassem a compreender alguns processos mais abrangentes,
nos quais estava particularmente interessado; ao mesmo tempo, deixei-me envolver pelos
detalhes, pelo pitoresco de cada imagem construída e expressada. Durante os encontros
coletivos, ao mesmo tempo em que direcionei seus relatos, indicando-lhes um tema acerca do
qual discorrer, permiti que desenvolvessem seu próprio caminho narrativo. As intervenções,
quando ocorreram, foram operadas muito mais em função da dinâmica de trabalho trabalho
em grupo - do que em função dos meus objetivos específicos; isto é, da “vida” dos
informantes não me interessaram apenas os acontecimentos diretamente relacionados aos
objetivos específicos da investigação. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a forma de
proceder junto aos entrevistados se aproximou mais daquela utilizada para a coleta das
histórias de vida. Por outro lado, em alguns outros momentos, vi-me enredado numa dinâmica
do tipo “pergunta e resposta”, inclusive em uma das entrevistas individuais. Nesses casos,
certamente estive a coletar depoimentos e não histórias de vida (ainda que os sujeitos
estivessem falando sobre elas).
53
Também no que se refere à relação entrevistador-entrevistado, procurei desenvolver o
trabalho de campo sob as orientações que são apresentadas por Marre, quando fala na
investigação participativa. A empatia, a busca por uma igualdade substancial (nunca
plenamente obtida), o direito à palavra que tiveram os entrevistados, foram alguns dos esteios
sobre os quais se assentou a construção dos dados. Uma relação que me permitiu correr
riscos, dentre os quais o principal talvez tenha sido o próprio envolvimento: um envolvimento
que gera expectativas e, portanto frustrações; que induz a ocultação de alguns aspectos e a
exposição de outros; que viabiliza o compartilhamento vicário de memórias (e, dessa forma, a
difícil distinção entre o que são lembranças minhas e o que são lembranças deles); enfim, um
envolvimento que restringe ao mesmo tempo em que potencializa. Estive sim, nesse sentido,
mais próximo de um trabalho com histórias de vida do que de uma coleta “menos implicada”
de depoimentos; se não, pelo menos ‘sob a inspiração de uma “filosofia bachelardiana”, na
qual a participação ativa do pesquisador é prerrogativa para a construção de um objeto de
pesquisa e para o seu desenvolvimento.
Assim como o trabalho com histórias de vida, que ocupa “o ponto de intersecção das
relações entre o que é exterior ao indivíduo e o que ele traz em seu íntimo” (QUEIROZ, 1988,
p.40), estive num ponto intermediário (e por isso de intersecção) entre essas duas técnicas.
Mas estive também - e talvez, sobretudo - sob a inspiração de um método. É desde esse ponto
de ‘vida’ que a investigação foi arrolada.
Grupos focais e grupos de discussão
A proposta inicial de trabalho, conforme a apresentei acima, foi a coleta de histórias de
vida em entrevistas individuais (pesquisador-pesquisado) e, também, durante encontros
coletivos (entre todos os sujeitos participantes). A idéia do trabalho em grupo (encontros
coletivos) emergiu, num primeiro momento, a partir dos vínculos pré-estabelecidos com os
sujeitos a serem pesquisados . Nossa convivência que no início do processo investigativo
contava já com três anos foi, desde o início, uma convivência coletiva. Além disso,
vínhamos nos encontrando com alguma periodicidade para debater temas relacionados às
histórias do lugar num esforço de fundamentação de uma ação educativa mais ampla a que
chamávamos educação ambiental. Na proposta inicial de pesquisa os encontros coletivos se
justapunham de modo complementar às entrevistas individuais; eram elas e não eles que
constituíam o cerne do processo investigativo (construção de dados). A idéia, naquele
momento, era que o trabalho com o grupo servisse ao aprofundamento de algumas questões
54
específicas, surgidas durante a coleta das histórias de vida; tal como é apresentado
23
por
Jacques Marre (1991). Contudo, em função do pouco tempo disponível para a realização de
um trabalho com histórias de vida pelo menos nos moldes com que ele é apresentado pelos
autores supracitados -, foi-me sugerido (pela banca avaliadora do projeto, quando da sua
qualificação) enfatizar os encontros coletivos ao invés das entrevistas individuais. Em função
disso, precisei recorrer a novos aportes teóricos, entre os quais se destacam aqueles que
prescrevem procedimentos para o trabalho com grupos focais e grupos de discussão.
***
A realização de entrevistas em grupo tem seu início e desenvolvimento associados à
investigação de mercados: “como o ato do consumo é um ato grupal que serve para marcar
socialmente os diferentes grupos sociais de consumidores -, para a análise motivacional do
consumo se tem que recriar situações grupais” (AGUILAR, 1998, p.10 tradução minha).
Nas últimas décadas, entretanto, as diferentes técnicas utilizadas para essa investigação
motivacional entre as quais se encontram os trabalhos com grupos de discussão e grupos
focais - tiveram sua aplicação estendida e adaptada ao campo mais amplo da pesquisa social
(AGUILAR, 1998; CRUZ NETO; MOREIRA; SUCENA, 2002). É desde essa perspectiva,
ou melhor, desde essa transposição de objetivos e contextos, que os autores consultados
tratarão as duas técnicas.
A principal característica destas técnicas de investigação reside no tipo de depoimento
(ou narrativa) construído. Tanto nos grupos de discussão quanto nos grupos focais, o
depoimento construído é uma “fala em debate” (CRUZ NETO; MOREIRA; SUCENA, 2002),
isto é, uma fala construída nas relações com os demais participantes. É importante salientar
que as relações referidas são aquelas diretas, dadas pelas circunstâncias imediatas nas quais se
a construção dos depoimentos. Nesse tipo de trabalho, aquilo que é dito, é dito para e no
grupo e a fala de um, inevitavelmente, repercute na fala dos demais. O objetivo por trás disso
é o de reproduzir, no pequeno grupo – focal ou de discussão –, o debate social (ou de um tipo
social) a respeito de temas específicos. Especificamente no que concerne ao trabalho com
grupos de discussão, essa reprodução (ou simulação) do discurso social é buscada através de
suas diferentes variantes discursivas (AGUILAR, 1998). Cada grupo de discussão, nesse
23
Associado a modalidade de coleta de dados, denominada Investigação participativa, Marre (1991, p.117-119)
apresenta duas variantes etnobiográficas. Nas duas há uma espécie de avaliação coletiva de pontos específicos do
conteúdo de uma ou de varias histórias de vida. O grupo avaliador, em ambos casos, é formado por pessoas
mencionadas nos relatos.
55
sentido, representa (através das relações entre os seus integrantes) uma dessas variantes, ou
seja “reproduz o discurso ideológico cotidiano (argumentos idéias, motivações) do grupo
social a que pertencem os participantes (...)” (AGUILAR, 1998, p.11 tradução minha). Para
que o discurso social acerca de um determinado tema seja então conhecido, faz-se necessário
que todas as variantes discursivas que o compõe estejam representadas; ou seja, o número de
grupos de discussão deverá ser o mesmo que o número de variantes discursivas existentes.
o número de integrantes em cada um dos grupos, será dado em ambas as técnicas
em função de outros critérios. O principal deles talvez seja o que se refere a formação de
canais comunicativos (AGUILAR, 1998). De acordo com o autor, para que a comunicação
seja fluida, o número de canais (conexões possíveis entre os elementos) deve superar o
número de elementos. Por exemplo, num grupo formado por três participantes a quantidade
de conexões possíveis é igual ao número de elementos (três); num grupo com quatro
participantes, serão seis os canais possíveis; e assim por diante. Por outro lado, “como o
número de conexões possíveis cresce em progressão geométrica com dez membros existem
quarenta e cinco possíveis canais -, chegará um momento em que o grupo se fragmentará em
subgrupos (...)” (AGUILAR, 1998, p. 19). A partir daí, e conforme consta nos demais
trabalhos consultados (GOMES; BARBOSA, 1999; CRUZ NETO; MOREIRA; SUCENA,
2002), o número ideal de participantes se situa entre sete e oito, com limites que variam entre
quatro e doze participantes.
A dinâmica de trabalho com os grupos constitui um capítulo a parte no conjunto de
orientações e procedimentos que compõem as duas técnicas em questão. Desde a seleção dos
participantes, passando pela escolha do local, até a dinâmica de trabalho propriamente dita (e
as diferentes funções a serem exercidas durante ela), as especificidades se multiplicam.
Assim, a fim de não me alongar numa apresentação exaustiva das duas técnicas, ater-me-ei
àqueles pontos que encontraram correspondência no trabalho realizado: seja em função das
semelhanças, seja pelas diferenças e necessidade de adaptação.
A seleção dos participantes obedece a critérios semelhantes àqueles utilizados em
outros âmbitos da pesquisa em Ciências Sociais, como por exemplo, os de diversificação e
saturação. No caso do trabalho com grupos de discussão, esses dois critérios são utilizados
para a definição do número total de grupos; o primeiro diversificação implica que não se
possa recorrer a apenas uma das variantes discursivas que compõe o discurso social como um
todo; a saturação por sua vez, será obtida quando todas as variantes discursivas existentes
estiverem representadas nesse caso, a adição de mais grupos resultaria ineficaz pois a
informação seria redundante. Para a composição de cada grupo, outros dois critérios são
56
propostos: homogeneidade e heterogeneidade. De acordo com Aguilar, “os membros de um
grupo de discussão devem possuir um mínimo de características comuns (...)” (AGUILAR,
1998, p.15 tradução minha). Por outro lado, “os integrantes de um grupo de discussão
também deverão ter algumas diferenças entre si para que se possa produzir a discussão”
(AGUILAR, 1998, p.16 tradução minha). É numa relação equânime entre homogeneidade e
heterogeneidade que a seleção dos integrantes de grupo de discussão (ou focal) deverá
assentar-se. Um último aspecto ainda, não mencionado anteriormente, diz respeito ao critério
de pertinência. Ele se refere à identificação prévia dos “tipossociais existentes num dado
contexto que um trabalho nos moldes daquele com grupos de discussão exige.
A escolha do lugar para a realização dos encontros é um segundo ponto que merece
especial atenção no conjunto dos procedimentos a serem adotados. Para Aguilar (1998), o
lugar no qual se ocorrem as reuniões é um elemento a mais do próprio grupo de discussão
(uma vez que afeta a produção dos discursos). De acordo com ele, as características do lugar
devem ser escolhidas com base em dois aspectos: “o ambiente e o conteúdo simbólico do
espaço” (AGUILAR, 1998, p.19 tradução minha). O primeiro deles diz respeito às
condições ‘técnicas’ que o lugar deve dispor para a realização das reuniões e para o seu
registro (audiovisual): sonoridade (nível mínimo de ruídos), iluminação adequada,
temperatura agradável, tamanho adequado ao número de participantes, etc. O segundo
aspecto, por sua vez, refere-se às influências de ordem simbólica a que o discurso produzido
está submetido: “(...) não se pode esquecer que qualquer espaço social está marcado com um
conteúdo simbólico, e essa carga simbólica afeta, inevitavelmente, aos discursos ali
produzidos” (AGUILAR, 1998, p.20 tradução minha). O autor defende ainda, como
estratégia para superação dos problemas relacionados à carga simbólica do espaço, a escolha
de “lugares neutros”. É importante frisar que a neutralidade de que nos fala Aguilar não
significa ausência de uma carga simbólica - afinal todos os espaços a possuem -, mas antes,
“que o valor dessa marca, com relação ao tema que estamos investigando, seja zero”
(AGUILAR, 1998, p.21 – tradução minha). Ou seja, trata-se de uma neutralidade relacional.
Por fim, a dinâmica de trabalho propriamente dita. Cruz Neto e seus colaboradores
(2002) dividem o trabalho com grupos focais em dois macro-momentos: o de realização dos
grupos e aquele posterior a ela – pós-grupo. Segundo eles, para que a técnica de grupos focais
atinja pleno êxito, seis funções devem ser exercidas na totalidade dos dois macro-momentos:
Mediador, Relator, Observador, Operador de Gravação, Transcritor de Fitas e Digitador. As
duas últimas funções comuns a quase todos os tipos de pesquisa qualitativa -, conforme é
possível supor, somente são desempenhadas após a realização dos grupos. As quatro
57
primeiras, entretanto, são desempenhadas simultaneamente durante os encontros coletivos. Ao
mediador cabe a formalização do início, a condução e a conclusão de cada uma das seções,
assim como o favorecimento da integração entre os participantes, o controle do tempo de fala
de cada um e de duração do grupo focal. O relator, nesse esquema, é o responsável por
realizar anotações acerca do que vem sendo debatido como, por exemplo, algumas falas,
expressões corporais dos participantes, etc. o observador, é o encarregado de acompanhar e
realizar anotações referentes ao desenvolvimento do trabalho com o grupo; suas observações
visam, sobretudo, o aprimoramento da técnica. O operador de gravação, como o próprio nome
diz, é o técnico responsável pela operação dos instrumentos de registro (áudio e/ou vídeo)
(CRUZ NETO; MOREIRA; SUCENA, 2002). Para o desempenho dessas seis funções os
autores sugerem um mínimo de dois pesquisadores sendo que no primeiro macro-momento,
o relator acumularia as funções de observador e operador de gravação. Aguilar (1998), por
seu turno, sugere que o desenvolvimento dos grupos de discussão pode ser realizado por
apenas um pesquisador - o prescriptor. Suas principais funções, a semelhança do que é
prescrito ao moderador, são: introduzir o tema a ser discutido, promover e conduzir o debate,
assim como encerrar formalmente cada uma das seções. O autor sugere um trabalho em
equipe apenas quando da análise dos dados.
***
Ressalte-se, entretanto, que as particularidades do trabalho proposto (aquelas
referentes à memória, por exemplo, e aquelas relacionadas ao contexto e aos objetivos
específicos da pesquisa) exigiram modificações mais ou menos substanciais no conjunto dos
procedimentos descrito acima. Afinal, é no espaço existente entre os “contornos” delineados
pelas técnicas e as “formas” que o mundo assume em suas diferentes manifestações, neste
domínio onde as possibilidades e necessidades se atravessam e a criatividade “sobrevoa”, que
o trabalho de pesquisa efetivamente se dá. Dessa forma, a exemplo do que ocorreu com as
histórias de vida e com os depoimentos, nenhuma das duas técnicas foi aplica a rigor; pelo
contrário, o que ‘de fato’ ocorreu foi a emergência de um ‘hibrido’, resultado do
entrecruzamento das diferentes (mas complementares) perspectivas de trabalho adotadas com
o contexto específico no qual se deu a realização do trabalho. Por falta de uma denominação
mais precisa, ele será aqui chamado grupo de rememoração. Nas linhas que seguem
procurarei caracterizá-lo, tornando mais evidentes suas diferenças e semelhanças em relação
aos trabalhos com grupos de discussão e grupos focais. Para tanto, são cinco os pontos de
58
justaposição: dinâmica de interação entre os participantes (discussão/debate X rememoração
coletiva), abrangência da pesquisa (aprofundamento horizontal X aprofundamento vertical),
relação dos pesquisados com a pesquisa (contraprestação buscada X contraprestação
assumida), preparação dos encontros (tema oculto X tema revelado) e transcrição das falas
(reprodução integral dos discursos X “copidesque”).
Grupo de rememoração
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a despeito das minhas intenções iniciais,
o trabalho em grupo que desenvolvemos se aproximou muito mais de um ‘relembrar juntos’
do que de algum tipo de debate ou discussão. Poucas vezes estivemos envolvidos em trocas
desse tipo; na maior parte do tempo, enquanto um dos participantes falava, os demais se
mantinham atentos e em silêncio. Poder-se-ia colocar em questão, nesse sentido, a coerência
entre os princípios que orientam a realização de entrevistas grupais mais especificamente o
trabalho com grupos de discussão e grupos focais e os objetivos específicos da pesquisa
realizada: se a principal característica do trabalho realizado em grupo é a produção de uma
“fala em debate”, qual seria o sentido de promover encontros coletivos nos quais o debate não
ocorre, ou ocorre de modo esporádico? Contudo, o que esse questionamento desconsidera são
aqueles aspectos mencionados por Antoinette Errante (apresentados na primeira parte deste
capítulo) e que se referem às influências dos contextos específicos nos quais se a
rememoração sobre os conteúdos das narrativas. Dessa forma, o fato de estar rememorando
em grupo configura uma situação bastante distinta de outras como, por exemplo, quando
rememoramos sozinhos ou quando o fazemos numa entrevista (pesquisador-pesquisado). De
acordo com a autora,
Se o que nós lembramos e contamos, e os modos pólos quais fazemos isso,
são expressões de construções locais de pessoa e de voz, então algumas
memórias compartilhadas por comunidades específicas podem requerer uma
experiência de compartilhamento-grupal para relembrar e contar.
(ERRANTE, 2000, p.168)
Além disso, mesmo no caso de experiências comuns, mas que não foram
compartilhadas - isto é, vivenciadas em tempos e espaços distintos -, o fato de estar
rememorando em grupo constitui um diferencial (e por isso se justifica) em relação aos
demais formatos de entrevistas. Nesse caso (que foi também o nosso), a narrativa de cada um
dos participantes evoca uma série de lembranças em todos os demais; ainda que não haja
59
discussão, no sentido de uma dinâmica fundamentada na argumentação e contra-
argumentação, troca e mútua afetação. Ao silêncio durante a fala do outro corresponde
uma intensa atividade mental de idas e vindas, reformulações, acessos e bloqueios,
lembranças e esquecimentos desde os conteúdos da memória. A narrativa produzida em grupo
difere, sem dúvidas, daquela produzida em outros contextos específicos da pesquisa; e, ainda
que não possa ser considerada a rigor uma “fala em debate”, é certamente uma fala construída
“nas relações” diretas com as outras narrativas.
Em segundo lugar, uma vez que o objetivo do trabalho não foi resgatar o discurso
social na sua totalidade – mas antes, compreender alguns processos desde a perspectiva
daqueles que os vivenciaram -, não houve preocupação em identificar e garantir
representatividade a suas diferentes variantes. Não se trabalhou, portanto, com diferentes
grupos (cada um representando uma das variantes discursivas em jogo), mas com apenas um
(isto é, apenas uma das variantes) que procurou ser mantido ao longo do tempo. A essa opção
de trabalho, admitida por Cruz Neto e seus colaboradores (2002) no que concerne aos grupos
focais, correspondem simultaneamente uma perda horizontal e um ganho vertical de
informações. Nesse sentido, não me foi possível levantar na sua totalidade a ‘rede’ de relações
nas quais se inserem os sujeitos pesquisados (como também teria sido necessário num
trabalho com histórias de vida, nos moldes propostos por Jacques Marre); por outro lado, foi-
me possível aprofundar alguns pontos específicos relacionados aos processos estudados,
como por exemplo, a importância dos vínculos familiares e de amizade no processo de
migração e o ‘papel’ desempenhado por alguns elementos do lugar no cotidiano dos seus
habitantes. Perdas que, em função dos recursos e tempo disponíveis para a realização da
pesquisa, foram compensadas pelos ganhos. O trabalho com as demais variantes discursivas,
nesse contexto, pode acabar se constituindo num projeto para trabalhos posteriores. Por
exemplo, no que se refere ao processo de migração, poderiam ser agregados aos dados que
compõem o presente trabalho, os depoimentos daqueles que ‘ficam’ e vêem os ‘seus
(parentes e amigos) partirem, assim como daqueles que ‘já estavam’ (nativos) e vêem ‘sua
terra’ ser ‘invadida’. Essas duas variantes discursivas, acredito, agregariam muito à
compreensão dos fenômenos aqui focalizados.
Um outro ponto merecedor de reflexão, e que acabei não apresentando acima, refere-
se àquilo que Aguilar (1998) chama contraprestação. De acordo com o autor, ela consiste no
intercâmbio de objetos que caracteriza a relação entre as partes (pesquisadores-pesquisados):
A relação entre os participantes de grupos de discussão e o pesquisador é
uma relação de contraprestação: os participantes produzem um discurso
60
que entregam, como objeto, ao investigador, e o investigador também tem
que dar algo em troca a esses participantes. (AGUILAR, 1998, p.32
tradução minha)
Aguilar ressalta ainda que, em grupos nos quais essa relação não seja estabelecida (isto
é, quando os participantes realizam a “doação gratuita do seu discurso”), corre-se “dois
importante perigos”: 1) a ausência, entre os participantes, de um sentimento de obrigação
(envolvimento) para com o trabalho desenvolvido; 2) o estabelecimento de uma relação de
dependência entre o pesquisador (“mendigo”) e os pesquisados - o que levaria aquele a
conformar-se com o pouco que estes lhe oferecem. (AGUILAR, 1998). Diante desses
“perigos”, sugere-se efetuar, de alguma forma (em dinheiro, presentes, cheques-presentes ou
comida), o pagamento dos participantes. Por outro lado, pode-se pensar, conforme Janaína
Amado (1997), que nenhum participante entrega seu depoimento constrói seu discurso
gratuitamente. Segundo a autora,
a grande maioria dos indivíduos concorda em conceder entrevistas por um
motivo principal: a oportunidade de ter a própria história registrada,
podendo transmiti-la, por meio da fita e da tese/livro do historiador, a outras
pessoas, contemporâneas e futuras, em especial às pertencentes a círculos
diversos dos alcançados pelo próprio informante. (Amado, 1997, p.
152/153)
Nesse sentido, o informante, ao aceitar participar do trabalho de pesquisa a ser
empreendido, vislumbra possíveis benefícios pessoais; isto é, o faz, não gratuitamente, mas
motivado por interesses pessoais mais ou menos claros. Sob essa perspectiva, a relação entre
pesquisador e pesquisado é sempre uma relação de contraprestação.
Em nosso caso, penso que não tenha sido diferente. Ainda que o grau de
comprometimento para com a pesquisa tenha variado significativamente entre os integrantes
do grupo e, em alguns momentos, eu tenha me sentido de fato um pouco “mendigo” -
principalmente durante os telefonemas que precediam a cada um dos encontros (aspecto que
será melhor detalhado a seguir) -, acredito que nossa relação foi desde o início uma relação de
contraprestação. Em primeiro lugar pelo desejo expresso de visibilidade: seja verbalmente,
seja pelo modo com que se vestiram e posicionaram diante da câmera. A contraprestação se
efetivou também em função do próprio encontro: a pesquisa viabilizou não apenas um espaço,
mas um momento legítimo (aceito pelos demais familiares) para o reencontro com os amigos.
Um tempo-espaço de sociabilidade, mas que também possuiu uma dimensão educativa, digna
61
de ser referida enquanto movimento de troca. A esse respeito, seu Luiz Armando
24
diz o
seguinte:
(...) até este momento [refere-se à pesquisa] que a gente vivendo hoje em dia, pra mim é
muito importante. De o senhor escolher o nosso grupo, da gente poder vir... Ninguém é
obrigado a participar, ninguém é obrigado a vir, mas eu me sinto bem em vir aqui. Eu acho
que todo o momento que eu venho aqui... eu aprendo com a história de vida do seu Paulo
[aponta para cada um dos participantes], com a história de vida dela [Maria Santa], da
Maria Clair, da... Márcia... entende? De repente eles pegam alguma coisa que eu falo que
seja útil também... Então eu acho que tudo isso é uma troca de idéias. Quer dizer, a gente
lhe ajudando na sua pesquisa, mas a gente ganhando muito com isso também... é o meu
ponto de vista, entende?(5° encontro)
O quarto ponto de justaposição diz respeito à preparação de cada um dos encontros.
Conforme Aguilar, após a seleção dos participantes e antes do início das atividades
presenciais se a convocatória. Essa etapa do processo investigativo consiste, segundo o
autor, na localização dos participantes e no convite para que participem de uma reunião.
Contudo, a fim de garantir alguma “neutralidade”, deve-se evitar fornecer aos participantes
maiores detalhes e informações acerca dos temas que serão debatidos. Não me é possível
avaliar até que ponto uma medida como essa de fato evita interferências (nem mesmo a que
tipo de interferências se refere) no processo de construção de dados desenvolvido junto a um
grupo de discussão; o que posso afirmar apenas é que, num trabalho assentado sobre os
conteúdos da memória, esse tipo de “precaução” não se justifica, podendo inclusive mitigar as
possibilidades de construção de informações. O processo de rememoração, isto é, de
construção de reminiscências, uma vez desencadeado, segue seu próprio rumo; constitui-se
através de idas e vindas desde os conteúdos da memória e as solicitações do presente, num
movimento que, antes de tudo, demanda ‘tempo’. Muitas vezes as lembranças que
procurávamos se nos apresentam dias após a solicitação inicial. Em função disso, procedi de
modo diverso aquele sugerido por Aguilar: objetivando potencializar a construção de
informações durante nossas reuniões, tive o cuidado de antecipar sempre o tema a ser
debatido. Distribuí também a cada participante uma caderneta para que registrassem de forma
esquemática, ao longo da semana ou quinzena que separava dois encontros, as lembranças que
se lhes apresentassem. Dessa forma, às narrativas construídas e expressadas em cada encontro
correspondeu um processo prévio de rememoração. Em alguns casos, inclusive, os
participantes foram procurar parentes e amigos a fim de buscar confirmação acerca de alguns
24
Um dos participantes da presente investigação; apresentado, junto aos demais, a seguir.
62
pontos específicos – fato este que sugere a amplificação (complexificação) da rede de relações
nas qual o processo de pesquisa se insere.
O último aspecto a ser considerado nesta seção, refere-se ao trabalho de transcrição
dos discursos construídos. Um dos principais dilemas que acompanham os pesquisadores
quando da transcrição dos depoimentos gira em torna da seguinte questão: mantê-los tal qual
são verbalizados pelos atores sociais ou adaptá-los às configurações e exigências da
linguagem escrita? Tanto Aguilar (1998) quanto Cruz Neto e seus colaboradores (2002)
recomendam que se faça a transcrição de forma a manter o mais fiel possível os relatos, isto é,
reproduzindo dentro do possível os erros de linguagem, pausas, gestos (entre parênteses), etc.,
sob pena de inviabilizar “a correta análise das informações obtidas” (CRUZ NETO;
MOREIRA; SUCENA, 2002, p.8). Por outro lado há os que advoguem justamente o contrário
e recomendem um maior ou menor nível de “limpeza do texto”
25
. Antes de tomar partido por
uma ou outra forma de proceder, gostaria de tecer algumas considerações a esse respeito.
Ao que parece, por trás dessa polêmica duas concepções distintas: uma que admite
em maior ou menor grau a equivalência da linguagem oral e escrita e outra que as considera
coisas distintas. Na primeira concepção, o trabalho de transcrição corresponde quase que a
uma transferência direta; busca-se assim “materializar” a fala dos atores, na estrutura de um
texto, conservando-lhe o máximo possível sua estrutura (relação entre os diferentes
elementos) e forma (procurando-se reproduzir fielmente cada um dos seus elementos). A
arbitrariedade do pesquisador sobre os relatos ficaria, dessa forma, restrita a ao mínimo
necessário. Na segunda concepção, ao contrário, a equivalência das linguagens oral e escrita
não é admitida. Transcrever, nesse sentido, é sempre um ato de tradução; e como tal, exige
daquele que o faz (tradutor) proceder a escolhas. A arbitrariedade do pesquisador é condição
sine qua non do trabalho de transcrição. Assim, uma vez que se admita a não equivalência
entre a palavra falada e a escrita, deve-se, também, admitir a impossibilidade de um trabalho
de transcrição neutro. As escolhas fazem parte dessa atividade e, para que a cientificidade do
trabalho seja mantida, faz-se necessário explicitá-las.
Para a tradução das falas construídas ao longo do processo investigativo, de uma
linguagem falada para uma linguagem escrita, procedi as seguintes escolhas, fundamentadas
nos seguintes critérios (objetivos). Em primeiro lugar, procurei adaptar o discurso oral à
linguagem escrita através da correção de erros de português, principalmente aqueles
25
Regina Weber (1996, p.176), no texto Relatos de quem colhe relatos: pesquisa em História Oral e Ciências
Sociais, apresenta algumas dessas recomendações: aquela presente no manual de história oral elaborado pela
Universidade Federal de Santa Catarina (1978) e também a elaborada pelo Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc).
63
relacionados à concordância verbal. Essa escolha, que visou tornar mais fluida” a leitura, se
justifica em função dos objetivos do trabalho: uma vez que a análise não se daria sobre a
linguagem em si (relação entre os elementos e a estrutura que os contém), mas sobre seu
conteúdo, modificações dessa natureza não comprometeriam o trabalho interpretativo. A
correção dos erros, também, foi operada em função de uma solicitação (desejo) expressa dos
participantes: quando tiveram acesso às primeiras transcrições - nas quais procurei ser o mais
“fiel” possível ao discurso oral –, surpreenderam-se e, em algum nível, decepcionaram-se com
a forma final assumida pelos seus relatos. Comprometi-me, então a adaptá-los a linguagem
escrita, contanto que essa adaptação não implicasse modificações significativas nos conteúdos
das narrativas. Em segundo lugar, na direção inversa, procurei adequar a linguagem escrita ao
discurso oral, através da pontuação (vírgulas, reticências, pontos, etc.) e da introdução de
comentários explicativos [entre colchetes]
26
. Essa escolha, por sua vez, objetivou transmitir
(dentro das limitações inerentes a esse tipo de tradução) um pouco da “vida” de cada um dos
relatos. Além disso, uma vez que se admita conforme Errante (2000) que a maior parte do
conteúdo das narrativas reside na sua “porção não falada”, o esforço em complexificar o texto
a partir da introdução de elementos do contexto (gestos, pausas, etc.) não apenas justifica-se
como se torna necessário ao bom desenvolvimento do trabalho de análise.
O trabalho de tradução, dentro do quadro que acabo de desenhar, foi realizado em
duas etapas: na primeira, diretamente a partir das gravações (áudio e vídeo) foi realizada uma
transcrição “bruta” (o mais “fiel” possível) dos relatos; na segunda etapa, que teve como
ponto de partida o resultado da primeira (um caderno manuscrito), a transcrição de trechos
selecionados (numa pré-análise) foi realizada já nos moldes descritos acima.
DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES
O escopo da presente pesquisa fundou-se nas reminiscências narradas em encontros
coletivos e individuais (pesquisador-pesquisado) por um grupo de migrantes – cinco homens e
cinco mulheres atuais moradores de um bairro de periferia do município de Esteio. No total
foram realizados nove encontros coletivos e quatro entrevistas (“visitas domiciliares”)
individuais (dois homens e duas mulheres). Cada um dos encontros coletivos, a exceção do
primeiro e do último, tiveram duração aproximada de 90 minutos. As entrevistas individuais,
26
De um modo geral, os sinais foram utilizados da seguinte maneira: as vírgulas representam pequenas pausas;
as reticências, por sua vez, pausas maiores (também mudanças de assunto numa mesma frase); as reticências
entre parênteses indicam, assim como nas citações, os cortes efetuados; e, por fim, entre colchetes, foram
acrescentados aos seus discursos comentários explicativos e/ou descrição de gestos.
64
por sua vez, acabaram ocupando relativamente mais tempo; estenderam-se ao sabor da
ocasião, das trocas e dos afetos. O número de participantes nos encontros coletivos, que
variou de quatro a oito pessoas (número adequado de acordo com o critério de
estabelecimento de canais comunicativos, apresentado anteriormente) se mostrou também
adequado em relação à dinâmica de trabalho proposta. Todos os encontros (coletivos e
individuais) foram registrados através de gravações de áudio e/ou vídeo, além de notas em
diário de campo. Dos encontros coletivos, apenas dois não foram filmados: o primeiro, no
qual o uso da câmera foi negociado, e o terceiro, em função de problemas técnicos (esqueci de
levar a fita junto aos demais equipamentos). A filmagem das entrevistas individuais
restringiu-se ao tempo de duração das fitas 90 minutos; as demais trocas e conversas foram
registradas, dentro do possível, no diário de campo.
A proposta inicial de intercalar aos encontros coletivos as entrevistas individuais, por
motivos diversos, não foi levada a cabo; ao invés disso, primeiro foi realizado todo o trabalho
em grupo e somente depois as entrevistas individuais. Dessa forma, o trabalho de campo
desenvolveu-se em dois momentos: o primeiro, de junho a outubro de 2006, no qual foram
realizados os encontros coletivos; e o segundo, em dezembro do mesmo ano, no qual se
deram as entrevistas individuais domiciliares. Todos os encontros, nesse primeiro momento,
ocorreram na escola (ponto de referência comum e lócus de convivência entre os integrantes
do grupo), no período da noite (tempo “livre” compartilhado) e em dias da semana (em geral
na terça-feira). As entrevistas individuais, ao contrário, foram realizadas nas casas dos sujeitos
entrevistados, no período da tarde (escolha convergente) e aos finais de semana.
A seleção dos participantes
O principal critério para a seleção dos sujeitos foi a livre adesão. Essa livre adesão se
refere ao desejo de participar, não apenas de uma pesquisa, mas também do trabalho
educativo mais amplo na qual se inscreve e do qual emerge
27
. Assim, o antigo grupo de
trabalho (primeiro como uma turma regular e depois como grupo de discussão informal)
acabou se constituindo, também, no grupo de pesquisa. A utilização desse critério se justifica
em função daquilo que foi, certamente, o principal esteio do método de abordagem utilizado
(a semelhança do que descreve Bosi, 1994, na apresentação do seu trabalho): o forte vínculo
27
O trabalho educativo que desenvolvíamos, desde 2003, prosseguiu mesmo com meu desligamento da rede
pública estadual (em função do início do mestrado), no ano de 2005. Nossos encontros continuaram ocorrendo
na escola, em dias e/ou horários alternativos aos das aulas. No ano seguinte, 2006, foi em função da pesquisa que
nos (re)encontramos e, em alguma medida, demos prosseguimento ao trabalho iniciado algum tempo antes.
65
de amizade e confiança existente entre todos os envolvidos. Essa relação empática entre
pesquisador e pesquisados, conforme destacado anteriormente, está na base daquilo que
Marre (1991) chama de investigação participativa - modalidade de coleta (construção) de
dados que inspirou as delineações gerais da pesquisa. Os demais critérios utilizados, por sua
vez, decorreram dos objetivos específicos em torno do qual foi construída a presente
investigação (relacionados a dois processos-chaves: migração e a reconstrução do espaço) e
das particularidades do trabalho com a memória, sucintamente apresentadas acima
28
. Todos
os participantes, nesse sentido, deveriam necessariamente ter empreendido algum tipo de
migração e viver (ou ter vivido) na região “alvo” da pesquisa experiências sobre as quais
dariam seu testemunho
29
. Além disso, no intuito de explorar a dimensão evocativa de cada
uma das narrativas – o fato de estarmos rememorando e narrando em grupo – fazia-se
necessário que ao menos em parte, as experiências fossem não apenas semelhantes, mas
também compartilhadas; isto é, que os fatos narrados por um dos integrantes do grupo
pudessem evocar lembranças nos demais. Outras características do grupo (não condicionadas
- contingentes) contribuíram ainda para uma melhor cobertura do campo de investigação
delimitado pelos objetivos da pesquisa: diversidade de origens (dez participantes dez
localidades de origem diferentes), diversidade de tempos (deslocamentos que iniciam entre
1953 e 1984), diversidade de percursos (diretos e indiretos, com até 11 localidades
intermediárias), distribuição eqüitativa entre os gêneros (dez participantes cinco homens e
cinco mulheres), diversidade na distribuição dentro da região “alvo”. Sob essa perspectiva,
poder-se-ia evocar os critérios de homogeneidade e heterogeneidade sugeridos por Aguilar
(1998) e apresentados anteriormente.
Jacques Marre (1991), quando discute a unidade social de pesquisa que pode ser
considerada básica para o desenvolvimento de um método biográfico (que são os grupos
sociais, conforme referido anteriormente), apresenta dois critérios para guiar a seleção do
grupo a ser pesquisado: efervescência e descontinuidade. O primeiro critério se relaciona a
presença e a intensidade de interações históricas e tensões sociais no interior do grupo a ser
selecionado. O segundo, por sua vez, como o próprio termo utilizado para designá-lo diz,
refere-se à noção de descontinuidade. Nas palavras de Marre,
28
Tendo a acreditar, inclusive, que a proposição dos objetivos e as orientações metodológicas adotadas é que
decorrem dos sujeitos (de suas experiências e características) e não o contrário.
29
“(...) definiremos o testemunho oral como um depoimento, solicitado por profissionais (...), visando a prestar
contas, a uma posteridade mediada pela técnica histórica, da ação da testemunha, tomando-se a palavra ‘ação’
num sentido muito amplo que engloba o fato, o acontecimento, o sentimento e a opinião, o comentário e a
lembrança do passado”. (VOLDMAN, 2000, p.256)
66
O que marca a história dos grupos sociais não é a continuidade, mas a
descontinuidade. Ela não existe sem rupturas grandes ou pequenas.
Consequentemente, emerge a diferenciação entre aquilo que existia ontem
e aquilo que existe depois. (MARRE, 1991, p.110)
Ainda que não possa ser considerado efervescente”, no que pese suas formas de
articulação e mobilização coletivas, o grupo constituído é, sem dúvidas, um grupo atravessado
por tensões sociais (reside aí, quem sabe, o embrião de sua efervescência). Satisfaz, dessa
forma, ao menos em parte, o primeiro critério proposto por Marre. De modo análogo, ainda
que na trajetória do grupo (tomado como um todo) não possam ser identificadas rupturas
significativas, cada uma das trajetórias individuais é marcada pela descontinuidade. Todos os
integrantes do nosso grupo vivenciaram rupturas em suas vidas. Suas diferentes trajetórias se
encontram num determinado momento e num determinado espaço. Antes disso, muitas vezes,
pouco tinham em comum: alguns dos sujeitos viviam em áreas rurais enquanto outros
cresceram em pequenos ou grandes centros urbanos. Pode-se pensar, inclusive, conforme
destaca Bosi (1994) ao se referir ao trabalho de Jacques Loew, na idéia de uma comunidade
de destino; a ruptura, a descontinuidade que caracteriza suas vidas tem como ponto comum,
lugar para onde convergem suas distintas trajetórias, um determinado lugar no espaço-tempo.
Outros dois critérios, ainda, são apresentados pelo autor a fim de que se garanta a
cobertura do campo delimitado pela pesquisa: o de diversificação da amostra e o de
saturação. Conforme já referido, a diversidade característica do grupo que se constituiu
garantiu, em alguma medida, a diversificação da amostra. A saturação, por sua vez, foi
buscada a partir da retomada (a cada encontro e nas entrevistas individuais) de pontos e
questões que me pareciam ‘chave’ para a compreensão dos processos investigados. Nesse
sentido a saturação foi buscada por aprofundamento vertical e não horizontal. No que
concerne ao trabalho com histórias de vida insisto, inspiração para o desenvolvimento da
presente investigação – Jacques Marre resume da seguinte forma a idéia de saturação:
Após cada história de vida coletada, abre-se a mesma; listam-se os fatos,
estratégias, conexões importantes, nomes, etc. Tudo isso servirá de base
para a próxima entrevista. A partir de um certo número de entrevistas
coletadas, as posteriores não acrescentam praticamente nada ao que as
outras têm expresso. (MARRE, 1991. p.113)
Dos dez integrantes do grupo que participou da pesquisa, apenas quatro – dois homens
e duas mulheres foram entrevistados individualmente. Os critérios que orientaram, agora, a
seleção desse pequeno grupo foram outros. Para a seleção dos homens, utilizei como critério o
67
número de participações nos encontros coletivos. Esse critério aparentemente quantitativo
oculta outros, de caráter qualitativo, relacionados ao interesse demonstrado pela pesquisa. Seu
Paulo e seu Luiz Armando foram os únicos (entre todos os envolvidos) a participar dos nove
encontros coletivos. Demonstraram, desde os primeiros contatos e ao longo de todo o
processo investigativo, grande interesse e motivação. Além disso, é claro, revelaram-se
ótimos informantes; suas narrativas contiveram elementos de suma importância para a
elucidação e compreensão dos eventos investigados. Entre as mulheres, por sua vez, a
situação foi um pouco distinta: entre as quatro que dispuseram a participar desta etapa da
pesquisa, nenhuma se destacou significativamente quanto ao interesse e envolvimento pelo
menos não como entre os homens. O critério utilizado, então, foi o nível de envolvimento
com dois dos seus espaços: o arroio e o “banhado”. Maria Santa é dentre todos os integrantes
do nosso grupo aquela que vive mais próxima ao arroio; Maria Clair, por sua vez, ainda que
atualmente more numa região mais afastada, viveu mais de dez anos no atual Bairro São José,
local pejorativamente denominado, entre os moradores locais, de “banhado”. Ambas
acompanharam de perto a dinâmica de ocupação dessas duas áreas verdes contíguas ao arroio
(matas ciliares e campos alagados). Além disso, tiveram (ainda têm) uma relação íntima com
um outro elemento formador da paisagem o “mato” da Refap. Enquanto a mãe de Clair
participou do seu plantio, Maria Santa vive 21 anos à sua sombra. Nesse caso, os
objetivos específicos da investigação falaram mais alto.
A escolha de apenas quatro sujeitos para a realização das entrevistas individuais esteve
condicionada, também, à relação entre os tempos dos quais (não) se dispunha e a quantidade
de dados construídos na primeira etapa da pesquisa (aproximadamente 11 horas de
gravações), isto é, à capacidade real de análise. Contudo, em função dos retornos obtidos
nessas entrevistas, penso que um número maior de pessoas ou, pelo menos, uma quantidade
maior de entrevistas (repetidas com os mesmos sujeitos) seja recomendável. A seguir
apresento brevemente cada um dos participantes
30
e, em seguida, descrevo e analiso, com
mais detalhes, os procedimentos adotados durante a investigação, em cada um dos seus
momentos (contextos específicos).
30
Na apresentação que segue e ao longo do restante do texto, foram utilizados, para a identificação dos sujeitos
participantes, seus nomes verdadeiros. Fruto de uma negociação prévia, essa opção metodológica corresponde
também ao desejo de visibilidade expresso por cada um deles/cada uma delas.
68
Os participantes
Angela (37) é natural de Porto Alegre. A capital do estado foi o primeiro pouso de seus pais
desde a saída de Barreiros, interior de Santa Catarina, em 1968. Passou seus primeiros anos de
vida na Vila Conceição, brincando com os irmãos (três) no pequeno pátio “cercado por
compensados” da casa onde moravam. O pai, preocupado com a violência circundante,
compra um terreno no município de Esteio e constrói uma casa para onde se mudam em
1973/1974. O contraste entre o “antes” e o “depois” nas suas lembranças é bastante
significativo. Experimenta, pois, ainda criança, os “encantos” do lugar: o mato, o arroio, a
liberdade de poder correr ‘solta’ por aí. Presencia também a sua transformação ao longo do
tempo: da rua com apenas sete casas à constituição de uma periferia urbana onde atualmente
vivem milhares de pessoas. Vive ainda hoje no mesmo local para onde vieram 33 anos
atrás. Casada, e de dois filhos (um casal), acaba de concluir o curso técnico em
enfermagem.
Demoestenes (24) é natural de Gravataí. Apesar de jovem, circulou bastante pela região sul
do país, junto dos pais e irmãos. Além da terra natal e do atual lugar de destino Esteio
conheceu de perto o cotidiano de vida em cidades como Joinvile (SC), São Fransisco do Sul
(SC), Alvorada e Gramado. Após essa significativa peregrinação, chega à Esteio em 1991 ,
pela segunda vez (a cidade havia se lhe constituído num pouso, o primeiro depois da saída
de Gravataí), local onde vivia sua avó materna. Demoestenes, assim como os demais
integrantes do nosso grupo que chegaram jovens à cidade, experimenta o lugar de um modo
intenso, corporal. Conhece o arroio e o seu “lado de lá” através de “trilhas” abertas no mato;
as mesmas que, paulatinamente, serem obstruídas pelo crescimento da cidade.
Demoestenes, o “caçula do nosso grupo, atualmente trabalha no setor de caldeiras da
Refinaria Alberto Pasqualine e deseja prosseguir seus estudos sob a forma de uma
especialização técnica.
Luiz Armando (41) é natural de Uruguaiana. Experimentou a vida na campanha, a lida com
os animais e a peregrinação constante da mãe de um terreno para outro, levando sempre a casa
“nas costas” (lavavam-na de caminhão). Aos 17 anos de idade, após um dia inteiro “andando"
à procura de emprego, “resolve” ir para Esteio, onde morava um primo, irmão seu de criação.
Em agosto de 1983 embarca no trem rumo à capital. Passa três dias na casa de uma irmã, em
Porto Alegre antes de chegar, num domingo, dia dos pais, ao destino que havia escolhido. Seu
69
Luiz chega a Esteio para ficar: após apenas seis meses trabalhando na região, constrói uma
“meia água” no terreno cedido pelo primo e traz de Uruguaiana a mãe, duas irmãs (uma
grávida), dois sobrinhos e um irmão de criação. Algum tempo depois, se juntam à família
outro seu irmão e sua nora. Casado e sem filhos, seu Luiz atualmente vive da produção e
venda de produtos de limpeza.
Manoel (44) é natural de Mostardas. Antes de vir para esta região do estado, trabalhava junto
à família na lavoura de cebolas. Chega a Novo Hamburgo, na casa de uma tia, em 1976, com
14 anos de idade e o desejo de estudar mecânica de automóveis. Dois anos depois conclui o
curso de mecânica de ajustagem no SENAI e se muda para Esteio, para a casa de um outro
tio. Casa-se, constitui família (três filhos) e se muda diversas vezes, sempre dentro do próprio
município. Atualmente, próximo da aposentadoria, seu Manoel alimenta o sonho (conforme
ele mesmo diz: “seu desejo de consumo”) de retornar à terra natal.
Maria Clair (42) é natural de Candelária. Vai para Sapucaia do Sul ainda criança, junto da
mãe a das duas irmãs, acompanhando o pai que de agricultor passa a operário de uma fábrica
de cimento (antigo Cimento Gaúcho). Chega à Sapucaia em 1970, com seis anos de idade.
Nove anos depois, a família se muda para um terreno e uma casa próprios, adquiridos no
município vizinho de Esteio (local onde o pai trabalhava). Desde os onze anos trabalhando,
Maria Clair viu neste meio tempo, além da chegada de outros parentes vindos de Candelária,
o nascimento de mais cinco irmãos. Também foi testemunha do rápido crescimento da cidade,
dado pela construção de grandes loteamentos (Vila Olímpica, Parque Santo Inácio, Jardim
Planalto) e pela “invasão” das áreas verdes junto ao arroio. Casada, mãe de três filhos,
recentemente se tornou também avó (de um menino, com um ano e meio).
Maria Santa (40) é natural de Camaquã. Sai da terra natal, casada, em 1983 para morar em
Sapucaia do Sul. Um ano depois, ela e o marido adquirem parte de um terreno junto à
margem do arroio Sapucaia, que neste ponto do seu percurso divide os municípios de Esteio e
Canoas. Construída a casa, passa a viver em Esteio. Em 1985 se muda com o marido para
Guaíba, mas em função de dificuldades financeiras acaba voltando para Esteio. Dois anos
mais tarde é a vez de tentar a vida em Camaquã: novamente, a exemplo do que acontecera
antes, acaba retornando para a casa e para a vida próximas ao arroio. Desde então tem se
mantido mais ou menos firme, ligada ao lugar. Entre o trabalho e a criação dos filhos (um
casal), pôde acompanhar ao longo desse tempo, desde uma perspectiva singular, o avanço da
70
área urbana sobre às margens do arroio e a sua transformação. Esta outra jovem avó (duas
netas, uma com dois anos e meio e a outra com um) trabalha atualmente num dos
supermercados da cidade.
Márcia (35) é natural de Santa Cruz do Sul. Após a morte do pai, em 1984, vai com a mãe
(costureira) e mais duas irmãs para Esteio, viver com os irmãos (dois). Casa-se três anos mais
tarde, aos 16, e com 18 tem sua primeira filha. Daí em diante vive quase que exclusivamente
em função da família (que aumenta com a chegada de mais uma menina e um menino). No
início dos anos 2000, resolve retornar aos estudos onde, além das novas amizades, redescobre
um tempo seu. Márcia, que atualmente está freqüentando um curso técnico em
administração, diz pretender seguir em frente nos seus estudos.
Osvaldo (67) é natural de Lageado, mas se criou em Bom Retiro do Sul. Em 1953, aos 13
anos de idade foge de casa e vai para Porto Alegre a procura de seus tios maternos (a mãe
falecera sete meses após o seu nascimento). Vive na capital, com os tios, até os 18 anos,
quando ingressa no serviço militar (serve em o Gabriel). Em 1960, após deixar as forças
armadas, retorna à Bom Retiro, para junto do pai (trabalhava “embarcado” e tinha um
armazém) e de duas irmãs. Nos oito anos seguintes se muda pelo menos três vezes, numa
triangulação entre os municípios de Lageado, Encantado e Bom Retiro, até que, por indicação
de um amigo, consegue um emprego na Companhia Siderúrgica de Sapucaia do Sul. Em
Sapucaia se casa e nascem suas duas primeiras filhas. Após nove anos em Sapucaia, parte
com a família rumo à Charqueadas para trabalhar na Aços Finos Piratini. Em 1979, demite-se
da empresa e se muda para Estrela, onde “para terminar de criar a família” trabalha primeiro
numa fábrica de cerveja e depois na obra do porto da cidade. No mesmo ano, retorna pela
segunda vez à Bom Retiro, onde passa algum tempo trabalhando com o primo, num posto de
gasolina (e também onde nascem seus dois outros filhos – uma menina e um menino).
Finalmente, em 1983, após uma rápida passagem por Sapucaia do Sul, chega com a família
em Esteio. Aposentado, avô de oito netos, no final de 2005 seu Osvaldo concluiu o Ensino
Médio junto aos demais participantes dessa pesquisa.
Paulo (54) é natural de Cachoeira do Sul. Quando criança além dos estudos, ajudava o pai na
roça e a mãe na venda de “quitanda”. Após o serviço militar, em 1973, vai com o irmão para o
Rio de Janeiro trabalhar como “apontador” em uma obra, empreendimento de uma empresa
gaúcha. conhece Lúcia, empregada doméstica natural de Belém do Pará e, um ano depois,
71
parte com ela rumo ao norte do país. De lá, retorna sozinho à Cachoeira, para junto dos seus.
Alguns meses depois recebe a visita de Lúcia: reencontro que se torna casamento e que
persiste a despeito das dificuldades. Em 1974 parte junto da esposa em direção à Porto
Alegre, “tentar a vida”. Quatro anos depois, após o nascimento do primeiro filho e
esperando o segundo, o casal volta à Cachoeira. Ficam por dois anos e, em 1980, seguem
caminho até Canoas onde são acolhidos por uma família. Nessa época, seu Paulo consegue
um serviço no Pólo Petroquímico de Triunfo e adquire uma casa no recém construído
Loteamento Parque Santo Inácio, em Esteio. Mudam-se, definitivamente, em 1982.
Atualmente trabalhando na prefeitura de Esteio (após muitos anos vivendo de “bico”), seu
Paulo tem por perto, além da esposa, os filhos, a nora e a neta (dez anos). E como ele mesmo
diz, o sentimento de estar “junto aos seus” é o que fortalece o vínculo com o lugar.
Rejane (36) é natural de Canoas, cidade vizinha ao município de Esteio. Sua família,
entretanto, vem de Carlos Barbosa (onde a mãe trabalhava na “roça” e o pai era motorista).
Aos doze anos de idade, em 1982, muda-se pela primeira vez para Esteio. Seis anos depois
segue rumo à Carlos Barbosa, em função de uma possibilidade de emprego. De lá, no ano
seguinte, para Venâncio Aires e, quatro anos mais tarde, de volta à Esteio. Essa segunda
mudança faz casada e com dois filhos (um menino e uma menina). Em Esteio, cidade onde
nascem suas duas outras filhas, experimenta já o terceiro endereço. Ao longo dessa sua
caminhada, Rejane acompanhou o crescimento da cidade desde pontos de vista distintos; o
arroio, por exemplo, viu-o minguar e ser sobrecarregado com os resíduos de uma população
cada vez maior e cada vez mais próxima. Disposta a permanecer na cidade a despeito de suas
pequenas contradições, Rejane atualmente trabalha com comércio no município vizinho,
Sapucaia do Sul.
Os encontros coletivos (grupo de rememoração)
A realização dos encontros coletivos foi, de certa forma, o momento síntese do
processo de pesquisa; “ponto” de convergência das distintas perspectivas teóricas adotadas e
das singulares trajetórias de vida dos seus sujeitos. Espaço de reencontro, sociabilidade, de
fala e de escuta. Momento de reflexão silenciosa e verbalização reflexiva; momento de
repensar a si e de revelar-se aos outros. Instância onde se encontram e atravessam passado
presente e futuro; onde o que ‘foi’ ressignifica o que ‘está sendo’ e projeta o ‘ainda não’.
72
A história de vida de cada um isto é, suas trajetórias e experiências - foi o eixo em
torno do qual edificamos, além das entrevistas individuais, os encontros coletivos. Através
delas foi possível apreender, não apenas os modos particulares através dos quais cada um dos
entrevistados vivenciou a saída da terra natal e o início de uma peregrinação mais ou menos
longa até a chegada e radicação no município de Esteio -, mas também aqueles aspectos de
caráter mais geral, relacionados aos diferentes grupos de pertencimento e aos códigos e
valores socialmente aceitos. Estivemos, dessa forma, trabalhando com o conteúdo da
memória: de uma memória individual, representada pelas reminiscências de cada participante
e de uma memória coletiva, constituída (em constituição) nas relações (com o / no espaço de
vida compartilhado). Além disso, o fato da narrativa ter sido construída e expressada no grupo
(na presença de outras pessoas que não apenas o pesquisador) exigiu que considerássemos
(ainda que tangencialmente) os atravessamentos entre memória e identidade e as influências
dos contextos específicos nos quais se dá a rememoração. Por fim, a dinâmica de trabalho
utilizada decorreu de uma necessária adaptação da técnica de trabalho com grupos focais e
grupos de discussão, assumindo o aspecto de um grupo de rememoração.
A escolha do lugar
O início dos encontros presenciais foi precedido por uma etapa de preparação –
consulta por telefone a cada um dos integrantes do grupo - na qual foram definidos o local, a
data e o horário para o início dos trabalhos. A sugestão da escola como espaço de encontro foi
uma unanimidade entre todos os consultados, sugerindo que, de fato, para eles e elas a
pesquisa a ser empreendida representava uma continuidade do trabalho que nhamos
desenvolvendo. Nesse sentido, a escolha do lugar foi operada mais em função das
necessidades e desejos dos participantes do que em consideração às necessidades e objetivos
específicos da pesquisa. De qualquer forma, uma análise do local pautada nos dois conjuntos
de características (o ambiente e o conteúdo simbólico) apresentados por Aguilar (1998)
quando se refere ao espaço de realização do trabalho com grupos de discussão, revela que a
escolha não foi de todo equivocada.
No que tange ao primeiro grupo de características isto é, às condições ‘técnicas’ para a
realização do trabalho, a escola revelou-se um local bastante adequado aos nossos objetivos:
além de sua posição estratégica (de fácil acesso a todos os participantes), tivemos sempre a
nossa disposição uma sala de aula suficientemente grande, bem iluminada e silenciosa.
Apenas este último quesito a sonoridade do local talvez tenha deixado a desejar; não
73
quando da realização das discussões, pois nos entendíamos com perfeição, mas por ocasião do
registro em áudio. Em pelo menos uma das gravações o nível dos ruídos ‘ambientais’
(principalmente aqueles produzidos durante o período do recreio) atingiu patamares que
prejudicam (e por vezes inviabilizam) a compreensão de trechos da gravação. Será certamente
um aspecto melhor observado por mim em trabalhos posteriores. Quanto aos conteúdos
simbólicos do espaço e suas influências sobre os discursos produzidos, certamente a escola
não foi um lugar “neutro”; nem mesmo na acepção a partir da qual o termo é tomado por
Aguilar (1998)
31
, isto é, “neutro” em relação ao tema investigado. Contudo, em função da
relação bastante ‘positiva’ dos estudantes com esse espaço (essa instituição em particular),
acredito que as influências foram também favoráveis aos objetivos específicos perseguidos:
por exemplo, a familiaridade com o lugar (construída em três anos de convivência) fez com
que todos estivessem bastante à vontade durante os encontros. É certo, também, que em
alguns momentos essa convivência pretérita fundamentada na relação entre professor (eu)-
alunos (eles e elas) ameaçou “ressurgir”, descaracterizando o contexto no qual se dava o
trabalho investigativo; nesses casos, atento aos alertas de Yves Winkin (1998)
32
, incumbi-me
de reafirmar os novos papéis e relações que a pesquisa exigia
Um outro aspecto relevante relacionado à escolha do local diz respeito à receptividade
com que a proposta de realização do trabalho foi acolhida pela equipe diretiva da escola.
Desde as primeiras negociações até o término das atividades, fomos todos muito bem
recebidos e tratados. Essa acolhida e receptividade, ao que pude perceber, decorreram dos
vínculos e relações pré-estabelecidos com os membros da equipe diretiva (em especial dois
deles); isto é, deveram-se muito mais a decisões e escolhas pessoais do que a uma política
institucional. De qualquer forma, foi em função delas (ou melhor, ‘deles’ dos membros da
equipe diretiva) que o trabalho se viabilizou.
Convocatória
Uma vez definido o lugar, os melhores dias e horários, demos início ao trabalho de
campo, propriamente dito. Os encontros ocorreram na sua maior parte às terças-feiras (mas às
31
Em função dos conteúdos simbólicos dos espaços e de suas influências sobre os discursos produzidos,
“recomenda-se a utilização de lugares ‘neutros’ (...). Isto não quer dizer que se trate de espaços sem alguma
marca social simbólica, mas sim que o valor dessa marca, com relação ao tema que estamos investigando, seja
zero”. (AGUILAR, 1998, p.21 – tradução minha)
32
Yves Winkin, no livro A nova comunicação: da teoria ao trabalho de campo (1998), quando fala sobre as
primeiras dificuldades inerentes ao trabalho etnográfico, destaca a sedução que os papeis situacionais dos
lugares pesquisados podem exercer sobre os pesquisadores. De acordo com ele, durante o contato com o campo a
ser investigado, por vezes, somos tentados a assumir outros papeis (dados pelas circunstâncias) que não aquele
de pesquisador. (WINKIN, 1998)
74
segundas e quintas também), com uma periodicidade bastante variável: entre cinco e quinze
dias, sendo que a maior parte deles foi intercalado por intervalos de sete dias. Além disso,
entre o sexto e o sétimo encontro realizamos um ‘recesso’ de 27 dias. A preparação e
articulação das reuniões respeitou a seguinte dinâmica: ao final de cada encontro marcávamos
o próximo e acordávamos o tema geral a ser debatido; dois dias antes da data marcada eu
ligava a todos a fim de relembrar os que estiveram presentes (averiguando possíveis
desistências) e informar aos que não haviam participado sobre as combinações vigentes.
Particularmente os telefonemas, revelaram-se um procedimento ao mesmo tempo decisivo e
constrangedor: decisivo porque condicionou algumas presenças – imprescindíveis no contexto
geral de um trabalho em grupo; constrangedor pelo mesmo motivo. O desconforto não foi
maior em função da ajuda que tive para o desempenho dessa tarefa. Conforme destaca Aguilar
(1998), a primeira e fundamental etapa do trabalho de campo, no que concerne a grupos de
discussão, é a chamada convocatória. Para essa tarefa, que consiste na localização e convite
dos potenciais integrantes do grupo, o autor diz que devemos contar com o auxílio de um
“contactador”, isto é, “de uma pessoa (...) que, por sua boa localização na rede de relações
sociais, pode convocar a um elevado número de pessoas” (AGUILAR, 1998, p.30 tradução
minha). Pude contar, pois, com a ajuda de dois “contactadores”: seu Paulo e seu Luiz
Armando. Sem nenhum tipo de negociação explícita, eles tomaram para si essa tarefa e a
desempenharam com maestria. Foram os grandes articuladores dos encontros. Utilizando as
redes sociais nas quais se inserem, mantiveram atualizados e em contato os diferentes
integrantes do grupo.
A dinâmica de trabalho e o uso da filmadora
Quanto às diferentes funções identificadas e sugeridas por Cruz Neto e seus
colaboradores (2002) para o desenvolvimento de grupos focais, devo admitir que, a despeito
de suas advertências, acumulei-as todas. Não porque as considere desnecessárias ou por
acreditar ser essa a melhor forma de conduzir os trabalhos; pelo contrário, acumulei-as porque
não pude contar com (nem pagar por) o apoio de outras pessoas: seja na fase de levantamento
inicial de informações, seja durante o trabalho com o grupo, seja durante a etapa de
transcrição e análise dos dados. Também é importante salientar que o acúmulo de funções
somente foi possível devido ao uso da filmadora. Esse dispositivo permitiu que aquelas
funções “chave”, que não podem ser desempenhadas simultaneamente por uma mesma pessoa
– como, por exemplo, as de mediador e relator -, pudessem ser exercidas por mim em
75
momentos distintos. Durante a realização dos encontros, além de operador de gravação
(função esta que apenas me exigia alguns minutos antes do início formal dos trabalhos
montagem e posicionamento do equipamento de gravação) procurei desempenhar apenas o
papel de mediador (“prescriptor”). Os olhares do relator e do observador, por sua vez,
emergiam durante a escrita do diário de campo (que foi realizada sempre imediatamente
após cada um dos encontros) – prova de que, a despeito de assumirmos a responsabilidade por
‘esta’ ou ‘aquela’ função, nossa consciência mantém-se atenta às demais facetas do
fenômeno. Essa emergência do relator e do observador se materializou no diário de campo
através de notas acerca do conteúdo específico das suas narrativas e referentes à dinâmica de
trabalho (com vistas ao seu aprimoramento), respectivamente. Mais tarde, essas notas
(impressões iniciais) foram retomadas enquanto assistia às fitas, configurando o momento no
qual pude, então, exercer de fato as funções de relator e observador.
A utilização da filmadora, ao invés de apenas um gravador de áudio, contribuiu
sobremaneira também durante o trabalho de transcrição. Isso porque, apesar de não termos
nos envolvido em discussões calorosas, estivemos a falar juntos em diversos momentos. E,
nessas horas, o registro em vídeo permitiu não apenas distinguir os autores de determinadas
falas (associar os sujeitos às palavras), mas também decifrar o que era dito em certos
momentos (associando à escuta uma espécie de ‘leitura labial’). Além disso, boa parte da
expressão corporal que acompanha cada um dos depoimentos pôde ser retomada e (uma
pequeníssima parte) “inserida” nas transcrições. Antoinette Errante (2000), quando fala sobre
os sentimentos de dor e luto entre os moçambicanos, diz que eles apareciam de modo
subliminar no curso das narrativas, através de “mudanças lingüísticas, paralingüísticas e
comportamentais; e na dissonância múltipla criada entre frases e entonações, cadências e
gestos específicos dos narradores com os quais eles estavam se expressando” (ERRANTE,
2000, p.159). Para a autora, a dinamicidade própria dos processos através dos quais
rememoramos, construímos narrativas e as expressamos se perde quando centralizamos
nossas análises aos seus conteúdos “transcritíveis”, uma vez que “a maior parte disso
permanece na porção “não falada” das histórias orais nos gestos e pausas, naquilo que o
historiador e o narrador sabem que está sendo dito e o quanto que o narrador e o historiador
sabem que o outro sabe que o outro sabe...” (ERRANTE, 2000, p.168).
Também naquilo que poderia constituir um dos seus empecilhos a inibição e
desvirtuação das narrativas em função da presença da câmera -, os ganhos advindos da
utilização da filmadora se sobrepuseram às perdas. Numa primeira instância porque a
inibição, se houve alguma, passou despercebida. Exceto no caso da Márcia que, durante os
76
primeiros encontros, solicitou que eu posicionasse o equipamento de gravação de modo a
deixá-la “de fora”. Os demais, ao contrário, encontraram alguma motivação no fato de
estarem sendo filmados. Isso pôde ser observado, por exemplo, nos lugares escolhidos para
sentar (preferencialmente aqueles centrais diretamente em frente à filmadora). Também o
fato de se conhecerem bem, de se sentirem à vontade uns diante dos outros, acredito, tenha
facilitado a desinibição diante da câmera. Um exemplo que talvez corrobore o que estou
dizendo aconteceu no último de nossos encontros. Nessa ocasião, minha iresteve conosco
fotografando a reunião. Durante o tempo em que ela esteve na sala, a inibição do grupo foi
tanta que inviabilizou qualquer tipo de conversa. Não foi possível “fazer de conta que ela não
estava ali”. Nesse sentido, a presença de uma pessoa estranha produziu uma interferência
bastante mais significativa (perceptível) do que aquela ocasionada pela filmadora. Finalmente,
numa segunda instância porque a presença da filmadora (e do gravador) conferiu aos nossos
encontros um ‘tom’ distinto daqueles das aulas. Poder-se-ia inclusive falar em uma maior ou
menor ‘seriedade’ da ocasião que, ao que parece, evitou a ressurgência dos antigos ‘papéis’
situacionais alunos e professor que nos caracterizavam enquanto grupo. Além disso, a
materialização do registro (seja em fita, seja em DVD), possibilitou um tipo de
“contraprestação” que eu não havia previsto
33
.
O caminho percorrido
A seqüência das temáticas foi pensada de forma linear, indo das lembranças mais
remotas - associadas à terra natal - até chegar às mais recentes - relacionadas ao cotidiano de
vida e às projeções para o futuro. Esse desenho, no seu cruzamento com as características do
grupo, cindiu o trabalho de rememoração coletiva em dois momentos: um primeiro, onde
foram rememoradas experiências comuns, mas vivenciadas em espaços-tempos distintos, e
um segundo, no qual as lembranças evocadas remetiam a uma experiência compartilhada, a
um espaço comum. Nem todos os encontros, entretanto, compuseram essa seqüência: o
primeiro encontro foi utilizado para a apresentação formal da pesquisa - seus objetivos,
metodologia de trabalho, possíveis desdobramentos e para negociações e informes diversos
- melhores dias e horários para a realização da pesquisa, local (se manteríamos ou não a
escola como ponto de referência), tipo de registro (somente em áudio ou em áudio e vídeo),
utilidade e forma de utilização das cadernetas, etc.; no sétimo e no oitavo encontros
aprofundamos questões diversas surgidas nos anteriores; e, o último foi utilizado para a
33
Ao final do processo investigativo dos encontros e entrevistas -, muitos dos participantes mostraram-se
interessados em fazer cópias das filmagens.
77
realização de um ‘fechamento’ - avaliação geral dos trabalhos, assinatura dos termos de
consentimento pós-informado
34
e avaliação preliminar das transcrições.
Assim, partindo do exposto acima, a seqüência geral de temas trabalhados, do segundo
ao sexto encontro, foi a seguinte: a) “Conversando sobre a terra natal: a vida, o lugar e a
saída”; b) “A saída da terra natal: motivações, percursos e a chegada em Esteio”; c) “A
chegada em Esteio: os primeiros dias na cidade e os espaços de vida”; d) “Os espaços de vida
e as mudanças na cidade”; e) “A cidade de hoje e projeções para o futuro”. O primeiro
momento do trabalho de rememoração, anteriormente referido, correspondeu às temáticas “a”
e “b”; o segundo momento, por sua vez, desenvolveu-se a partir da temática “c”.
Na primeira etapa do trabalho, como era de se esperar, o nível de interação entre os
participantes da pesquisa foi pequeno. Cada um, a partir dos seus próprios quadros de
memória, descreveu aos demais a vida e o lugar correspondentes à terra natal
35
. Enquanto um
dos participantes contava sua história, os demais se mantinham em silêncio e, na maior parte
do tempo, atentos ao que era dito. Nessa etapa da pesquisa, as diferenças de idade entre os
participantes se evidenciaram: menos pelos conteúdos dos relatos do que pelas suas formas. O
ritmo de fala, o nível de detalhamento, as “emendas e fendas” tecidas e também as
alinhavadas, todos juntos, compunham a forma de cada uma das narrativas. De um modo
geral, a narrativa dos mais velhos se caracterizou pelo ritmo cadenciado, pelo alto nível de
detalhamento e pelas idas e vindas constantes, mas bem articuladas - próprias de quem tem
alguma experiência na arte de contar histórias. A narrativa dos mais jovens, por sua vez,
caracterizou-se pela objetividade, pelo ritmo constante e veloz (o que dificultou
significativamente o trabalho de transcrição) e por uma relativa linearidade. Ecléa Bosi, no
texto anteriormente referido, aborda essas diferenças a partir do trabalho de Maurice
Halbwachs. Para o autor, as exigências da vida cotidiana, aquelas exigências práticas
relacionadas ao trabalho e à família, acometem mais aos adultos do que aos idosos. Em
função disso, para aqueles a rememoração acabaria se dando apenas nas horas de repouso,
relaxamento, isto é, consistir-se-ia numa atividade esporádica e, em alguma medida, de fuga.
O velho, ao contrário, quando lembra do passado “não está descansando, por um instante, das
lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se
ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida”
(BOSI, 1994, p.60). A liberação das atividades profissionais e familiares, associada à redução
34
Modelo em anexo.
35
A expressão “terra natal” é utilizada aqui para designar, além do local de nascimento dos entrevistados,
aqueles espaços de vida nos quais experimentaram um convívio familiar (com os pais e irmãos) mais intenso e
duradouro.
78
das perspectivas futuras (o caminho percorrido é bastante mais extenso do que aquele a
percorrer), promove nos velhos o deslocamento dos interesses e das reflexões. De acordo com
Bosi,
Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências significativas,
empurrando-o para a margem, a lembrança de tempos melhores se converte
num sucedâneo da vida. E a vida atual parece significar se ela colher de
outra época o alento. O vínculo com outra época, a consciência de ter
suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião a alegria e uma
ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se
encontrar ouvidos atentos, ressonância. (BOSI, 1994, p.82)
Essa maior disponibilidade e inclinação à rememoração, contudo, somente adquirem
sentido, resignificando a vida do idoso, quando encontram “ouvidos atentos”. É na relação
com o outro, com aquele que escuta (ou lê), que a rememoração se faz narrativa; e é também
na relação com o outro, com o mundo, que a atividade mnêmica adquire para o idoso caráter
de função social. Nesse sentido, o espaço de escuta instituído pela pesquisa, além de revelar
diferenças entre as narrativas de adultos e idosos, permitiu a estes o exercício de uma função
social para a qual estão maduros: “a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranqüilizar
as águas revoltas do presente alargando as suas margens” (BOSI, 1994, p.82).
Uma tendência dessa primeira etapa da pesquisa, em parte decorrente do que acabo de
dizer, foi o monopólio da palavra. Alguns participantes, especialmente os mais velhos,
estenderam seus relatos conforme a situação (a existência de “ouvidos atentos”) lhes permitiu;
ou melhor, conforme eu (enquanto mediador do grupo) lhes permiti. Devo confessar que neste
primeiro momento, em respeito a suas histórias, permiti-lhes estender seus relatos até o “fim”.
No intuito de respeitar seus diferentes ritmos e necessidades, acabei negligenciando a
dinâmica de trabalho prevista e inicialmente proposta.
Advieram disso, pelo menos duas conseqüências concretas para a investigação. A
primeira delas foi que o encontro se tornou bastante cansativo, colocando em risco sua
continuidade ao longo do tempo (a seqüência de encontros subseqüentes). Num trabalho
coletivo onde o vínculo dos participantes com a pesquisa é informal e reversível, resultado de
um desejo e não de uma obrigação, e que, além disso, pretende-se manter ao longo do tempo,
a preocupação com o bem estar dos participantes (traduzido pela manutenção do interesse no
trabalho desenvolvido) é justa e se faz necessária. Essa preocupação, por sua vez, implica
garantir fluidez e dinamicidade às ações, evitando a todo o custo o monopólio da palavra;
remete, pois, às atribuições do mediador do grupo e às funções desempenhadas pelo roteiro
de trabalho. A segunda conseqüência da falta de direcionamento sobre os relatos foi que boa
79
parte dos pontos específicos que compunham o roteiro de trabalho deixaram de ser abordados.
É certo que, por contrapartida, alguns pontos não previstos e pertinentes aos objetivos
específicos da investigação emergiram em suas narrativas; contudo, considerando o acima
exposto, os benefícios dessa forma de proceder junto ao grupo foram suplantados pelos
prejuízos. A boa elaboração e utilização do roteiro de trabalho, nesse sentido, não apenas
tornam o trabalho de pesquisa mais interressante aos participantes, pela distribuição eqüitativa
e dinâmica das falas, como também potencializam a construção de informações pertinentes
aos objetivos específicos da investigação. Em ntese, poder-se-ia dizer que, no trabalho com
um grupo de rememoração, ainda que não se pretenda desencadear uma discussão ou um
debate entre os participantes, deve-se procurar garantir que todos se expressem e gozem de
tempos semelhantes para fazê-lo; isto torna o trabalho não apenas mais dinâmico e
interessante viabilizando sua continuidade (recorrência) ao longo do tempo -, mas também
potencializa a ação investigativa, propriamente dita.
Por outro lado, essa forma de proceder na primeira etapa da investigação e suas
conseqüências, no conjunto dos procedimentos que compuseram o presente trabalho,
assumem um valor positivo. Em primeiro lugar, pelo aprendizado proporcionado.
Aprendizado esse que se deu num momento ótimo para a operação de rearranjos no desenho
dos encontros. Em segundo, porque a despeito de seus prejuízos imediatos para o trabalho
investigativo, a opção por acolher as narrativas na sua (in)completude, “do jeito que vinham”,
que precisavam vir, contribuiu para a consolidação de uma relação respeitosa entre nós. Uma
relação baseada no respeito recíproco: o meu pelas suas histórias, por aquilo que tinham, se
dispunham e precisavam contar, e o deles pelo trabalho realizado, pelas suas solicitações
36
. E
talvez nesse sentido, estive também a coletar histórias de vida e não apenas depoimentos,
conforme discuti anteriormente. Enfim, em terceiro lugar, porque possibilitou ao mesmo
tempo em que exigiu o exercício da escuta. Novamente evoco as contribuições de Ecléa Bosi.
Na tentativa de responder a questão “por que decaiu a arte de contar histórias?”, a autora
estabelece uma interessante distinção entre a narrativa e a informação. Segundo ela, enquanto
a narração comporta a interpretação do ouvinte, a informação, “ingurgitada de explicações,
não permite que o receptor tire dela alguma lição” (BOSI, 1994, p.86). Nesse sentido, a
narração exige um tipo de escuta distinto daquele que a informação exige e ao qual estamos
tão habituados. “A informação nos interessa enquanto novidade e só tem valor no instante
36
É importante salientar que a relação estabelecida esteve também baseada em interesses recíprocos: o meu nas
suas histórias, naquilo que me permitiram compreender dos processos objetivados e o deles no trabalho
desenvolvido (naquilo que ele lhes possibilitava ou poderia possibilitar o reencontro, a troca de idéias, alguma
visibilidade, etc.).
80
que surge. Ela se esgota no instante em que se e se deteriora” (BOSI, 1994, p.87). A
narração, por outro lado, justamente naquilo que omite (não informa) abre espaço para a ação
do ouvinte; exige deste, pois, além de tempo, envolvimento. Um tempo do qual, em geral, não
dispomos e um envolvimento para o qual, a priori, nos indispomos. É nesse sentido que o
exercício da escuta, ao mesmo tempo possibilitado e exigido nessa primeira etapa da
pesquisa, assume um valor positivo: enquanto contribuição para a superação do conflito entre
nossas (in)disposições iniciais e as exigências da situação.
As narrativas construídas nessa primeira etapa do processo investigativo, a despeito de
suas diferenças quanto à forma, deixaram entrever também algumas outras nuances dos
processos através dos quais compomos nossas reminiscências. Uma vez que estivemos
percorrendo aqueles “recantos” mais longínquos da memória, alguns tipos de esquecimentos
e, principalmente, a memória vicária puderam ser detectados entre o conjunto das lembranças
narradas. E, se admitimos em cada uma delas (principalmente nas duas últimas) algum nível
de reconstrução, essas três categorias (lembranças, esquecimentos e memórias vicárias)
representam bem o universo constitutivo daquilo a que temos denominamos memória.
Antes de prosseguir, entretanto, faz-se necessário especificar os significados que o
termo esquecimento assume aqui; afinal, como detectar um esquecimento em uma narrativa
sobre acontecimentos que não presenciamos? Por esquecimento tenho entendido aqueles
temas ou acontecimentos que, a despeito de sua importância relativa no contexto específico
daquilo que é narrado, acabam não sendo mencionados. São temas e acontecimentos que eu
esperava encontrar nos seus relatos. Nesse sentido, talvez melhor do que falar em
esquecimentos fosse falar em ausências. Seja como for, esse critério bastante arbitrário e
parcial, admito possibilitou comparações interessantes entre os seus depoimentos. Por
exemplo, a maioria das narrativas sobre a migração foi construída em torno de três eixos: a
família, os lugares (por onde passaram), e as relações sociais e de trabalho (empregos,
desempregos, etc.). Num dos relatos, entretanto, o mais extenso e detalhado de todos, as
referências a própria família estiveram ausentes. Toda a narrativa foi construída tendo como
referenciais os lugares e as relações de trabalho. O casamento e o nascimento dos filhos, por
exemplo, não foram mencionados (ainda que tenham ocorrido durante o lapso de tempo
considerado).
Exemplos como este não foram raros ao longo de nossos encontros. Contudo, não me
aventurei a investigar as possíveis causas dessas ausências; exceto em um caso específico
(relacionado à percepção dos entrevistados sobre a refinaria), que será tratado no capítulo
81
seguinte. De um modo geral, contentei-me em detectá-las
37
. De forma semelhante procedi
quanto às memórias vicárias
38
. Essas lembranças de outros que tornamos nossas puderam ser
detectadas ao longo do processo investigativo, principalmente no seu primeiro momento,
quando estivemos envolvidos com aquelas lembranças mais remotas. Um exemplo claro de
como as fronteiras entre aquilo que é próprio e o que é alheio podem se tornar confusas,
permitindo o intercâmbio e a apropriação ‘devida’, pode ser observado no seguinte relato:
E eu fui me criando lá... os outros morreram, mas eu fiquei. Mas se vocês observarem vão ver
feridas que eu tenho na cabeça [mostra a cabeça], de piolhos, essas coisas... mal cuidado,
entendeu? O meu pai viu que ia perder os filhos tudo e resolveu ir atrás da mãe dele.
Encontrou minha avó, tava nos campos de São Jerônimo. Ela era escrava lá. Então,
encontrou ela... Bah! Chorou e pegou lá... pro senhor dela. A mulher do senhor esse, era
muito humanística... disse: “bah, deixa ela ir”. Ai minha avó agarrou e vendeu lá os
porquinhos que ela tinha, que criava lá, a vaquinha, mais isso, mais aquilo... Vendeu próprio
senhor lá. Era honestidade, mas era escrava, né? [risos] Eu me lembro... Veio a véia, minha
avó, chegou... Aí, baaahhh! Chegou em casa... ela era bugra, né? Chegou em casa,
coisa e tal - morávamos em uma casa boa, de material -, e ela disse: “Não! Aqui eu não
moro!” Assim me contaram, né?(...) (seu Osvaldo, narrando seus primeiros anos de vida)
Nesse relato, seu Osvaldo narra, com riqueza de detalhes alguns acontecimentos que,
em função da sua pouca idade (menos de um ano), não poderia ter presenciado (ou, pelo
menos, se recordado). De um modo geral, as memórias vicárias são lembranças de narrativas;
coisas que ouvimos contar e que passam a integrar o conteúdo de nossas recordações. A
memória individual, nesse sentido, pode abarcar vicariamente um período de tempo superior
ao da existência daquele que recorda.
Em determinado bosque que conheço, meu avô se perdeu. Contaram-me
isso, não o esqueci. Foi num outrora em que eu não vivia. Minhas
lembranças mais antigas têm cem anos ou pouco mais. (BACHELARD,
1993, p.194)
Um último aspecto, ou nuance, relacionado a essa primeira etapa da pesquisa e ao
trabalho coletivo de rememoração, diz respeito às lembranças de sofrimentos. A dinâmica dos
processos através dos quais compomos nossas reminiscências, da mesma forma que viabiliza
37
É importante salientar que, além de detectá-las (e até mesmo para detectá-las), optei por tratá-las enquanto
ausências; pelo menos num primeiro momento. Dessa forma, quando identificava algum desses “esquecimentos”
apenas tomava nota e não questionava os entrevistados a respeito. Nesse sentido, a não referência a determinados
assuntos é tão ou mais significativa do que aquilo que eles possam dizer sobre estes mesmos assuntos quando
solicitados.
38
“Memórias vicárias (...) acontecem quando as memórias de outros se tornam parte da realidade para aqueles
que ouvem as memórias mas não tinham experimentado os eventos aos quais as memórias se referem (...)”.
(Teski & Climo, 1995, p.9 apud Errante, 2000, p.165)
82
(ou torna inviável) o acesso a determinados conteúdos, lembranças que buscamos, pode levar-
nos ao encontro daquelas recordações indesejadas. E, nessas situações, a relativa autonomia
do processo de rememoração, aquela parcela dele que nos escapa e ao mesmo tempo nos
captura, pode tornar-se ameaçadora. São lembranças que não encontram acolhida, tanto em
nós quanto nos outros, naqueles que (não) nos escutam. Jeanne Marie Gagnebin (2001), num
texto intitulado Memória, história, testemunho, fala-nos sobre a ausência de um espaço, fora
do círculo fixação (doentia no passado) e identificação (por indivíduos), onde esse tipo de
lembranças possa encontrar ouvintes e produzir ressonâncias, repercussões. Uma das
integrantes do nosso grupo, no último encontro, deu o seguinte depoimento:
Eu, na segunda reunião, até eu não fiz questão de participar porque - lembra? - tu propôs...
Porque realmente... mexeu bem onde, às vezes... tem coisas que é melhor ficar lá, bem do
jeitinho que elas estavam, né? Então (...) eu particularmente, assim... eu não fiquei bem. Daí
eu decidi não vir naquela reunião. Então, foi uma coisa boa mas ao mesmo tempo... Foi
muito bom, todo esse período, apesar de eu não participar de todas [refere-se às reuniões],
mas, o fato de se reunir, saber que a gente vai sair de casa para ver de novo o pessoal, é
muito bom, né?Mas aquela primeira parte, assim, foi... não, não me fez bem aquilo, o que eu
tive que pensar, o que eu tive que lembrar. Mesmo que eu não quisesse, eu tive que lembrar
(...).
A dinamicidade do processo de rememoração, assim como sua relativa autonomia,
podem ser percebidas na sua fala. As lembranças buscadas trouxeram consigo outras, num
fluxo que não pôde ser contido. Lembranças indesejadas que não servem para compor as
reminiscências, isto é, aqueles passados importantes com os quais possamos conviver. Além
disso, ao que parece, essas recordações não seriam bem aceitas pelo grupo. Para essa
participante, os encontros coletivos não se constituíram num espaço de acolhida, no sentido
pleno da palavra. Os vínculos de amizade pré-estabelecidos não foram suficientes para criar
aquele espaço de escuta sobre o qual nos fala Jeanne Marie; ou, pelo contrário, justamente por
causa desses vínculos e das identidades construídas neles é que as lembranças dolorosas do
passado não encontraram meios de expressão. Existem coisas sobre as quais é mais fácil falar
perante a um grupo de desconhecidos. De acordo com Alistair Thomson, “o processo
aparentemente pessoal de compor reminiscências seguras é, na verdade, um processo
inteiramente público” (THOMSON, 1997, p.58). Nesse sentido, assim como buscamos
afirmar nossas identidades no interior dos grupos aos quais pertencemos, buscamos também a
afirmação de nossas reminiscências (THOMSON, 1997). Aquilo que talvez não seja aceito
pelo grupo ou que coloque em xeque nossa identidade pessoal construída nessas relações,
acaba por não encontrar meios de expressão (acolhida).
83
A busca por reconhecimento
39
, dessa forma, pode levar-nos a omitir em nossas
narrativas aquelas experiências dolorosas. Por outro lado, no processo de afirmação pública
de nossas identidades e reminiscências, essas mesmas experiências podem acabar encontrando
vias de expressão. Isso porque a dor nem sempre se enquadra na categoria das experiências
socialmente não aceitas. Um passado de sofrimento pode resignificar o presente; pode
valorizá-lo. Desde um presente vitorioso (estável, confortável), as vivências passadas
inclusive as dolorosas assumem outra “coloração”. A experiência da dor nesse sentido,
ainda que tenha deixado marcas profundas e indeléveis, é uma experiência superada. O lócus
de sua existência é o passado e não o presente. Foi desde essa perspectiva que a dor emergiu
nas narrativas dos demais participantes. A distância da família, o desemprego, a falta de
moradia, enfim, as dificuldades e os medos enfrentados ao longo de suas jornadas tornaram
mais valorosos seus esforços e suas conquistas; ou melhor, suas conquistas, em alguma
medida, representam a superação desse passado difícil e de sofrimento. É interessante
perceber que, nesses casos, a superação, ao invés de relegar a experiência ao esquecimento, é
justamente o que viabiliza sua lembrança e sua exposição pública. A identidade atual é
afirmada em função das reminiscências (do modo como o passado é reinterpretado à luz do
presente) na mesma medida em que as reminiscências são afirmadas em função da identidade
atual.
***
O potencial do trabalho de rememoração realizado em grupo (grupos de
rememoração), entretanto, pôde ser melhor explorado no segundo momento da pesquisa. Isso
porque as experiências sobre as quais nos debruçamos nessa etapa do processo investigativo
remetiam a um mesmo espaço de vida, a um destino compartilhado. Os atravessamentos entre
as lembranças dos participantes se tornaram mais numerosos e freqüentes, dinamizando
significativamente nossas reuniões. Além disso, os efeitos de uma memória coletiva sobre as
memórias individuais, assim como o inverso (a constituição de uma memória coletiva a partir
das reminiscências individuais), puderam, em alguma medida, ser percebidos. O contexto
específico no qual a rememoração se deu, de um modo geral, levou as lembranças particulares
mais ao encontro do que ao confronto; na sua maior parte, elas se complementaram por
justaposição o que faltava num relato era complementado pelos demais - ou então
39
“‘Reconhecimento’ é um termo apropriado para descrever o processo de afirmação pública de identidades e
reminiscências. O reconhecimento é essencial para a sobrevivência social e emocional; a alienação e a exclusão
como alternativa podem ser algo psicologicamente devastador.” (THOMSON, 1997, p.58)
84
coincidiram (reafirmaram-se). Talvez a amizade e o respeito recíproco tenham inibido a
emergência das contradições; ou talvez, quem sabe, a convergência dos seus relatos
corresponda à expressão daquela “voz coletiva” de que nos fala Errante (2000) quando
caracteriza a narrativa que é construída durante eventos de rememoração coletivos. Seja como
for, o fato é que estivemos a montar um grande mosaico
40
a partir de suas reminiscências
individuais e, na maior parte do tempo, as “peças” se justapuseram permitindo a construção
de imagens mais ou menos nítidas. É certo também que o “rejunte” desse mosaico, sob minha
responsabilidade, foi moldado em função daqueles objetivos inicialmente delineados; ou seja,
ao mesmo tempo em que permitiu a construção de um arranjo (tornando visível), impediu a
reorganização das “peças” e a elaboração de outras combinações (tornando invisível, opaco).
E foi a presença de um espaço comum, mais do que a experiência de um tempo
compartilhado, quem permitiu mais facilmente o estabelecimento de relações entre suas
histórias. Isto porque, seus depoimentos vinham sempre acompanhados de referências
espaciais: verbais - “lá”, “aqui”, “ali embaixo”, “depois da casa do fulano”, “pra trás do
arroio” – e gesticulares (apontavam as direções e reproduziam com as mãos os “caminhos”, os
“contornos”, os “formatos” de suas histórias). As referências a datas, anos, períodos foram
escassas e, na maior parte dos casos, emergiram em função de solicitações minhas. Além
disso, as poucas que foram feitas caracterizaram-se pela imprecisão, conforme pode ser
observado nos seguintes exemplos: ... eu tina estado em Esteio antes, quando eu era mais
jovenzinho, assim, com uns 13/14 anos...”, “...eu tinha uns quatro pra cinco anos...”, “... aí,
no outro dia... é, uns dois/três dias depois...”. Ao que parece, conforme aponta Bachelard
(1993), “o calendário de nossa vida pode ser estabelecido em seu processo produtor de
imagens” (BACHELARD, 1993, p.28). É aos espaços que retornamos em nossos sonhos,
devaneios e recordações; experimentamo-los de forma mais “vívida”, mais pungente, do que
as “durações abolidas”. Nossas lembranças são imagens que recriam os lugares, os espaços de
nossas vidas, permitindo que nos situemos com mais precisão em relação a eles do que ao
tempo. Uma peculiar forma de registro, assim caracterizada pelo autor:
A memória – que coisa estranha! – não registra a duração concreta, a
duração no sentido bergsoniano. Não podemos reviver as durações abolidas.
podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de
qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço, que encontramos os belos
fósseis de duração concretizados por longas permanências. (BACHELARD,
1993, p.29)
40
Metáfora utilizada pela professora Maria Stephanou durante aula do seminário Narrativas de memórias,
história oral e escrituras ordinárias na história da educação (primeiro semestre de 2006 – PPGEDU/ FACED
UFRGS).
85
Em função disso, a reconstrução do espaço através de suas histórias foi uma tarefa
mais fácil do que a reconstrução do tempo, isto é, o estabelecimento de uma cronologia que
permitisse inter-relacionar os eventos descritos (o que, acredito, não tenha prejudicado a
compreensão dos processos em foco). Além do mais, uma vez que o objetivo do trabalho com
a memória não foi “resgatar” um passado estático e, portanto, recuperável - mas ao contrário,
trabalhar com as reinterpretações sobre o vivido -, as implicações dessa dificuldade acabaram
minimizadas.
Os encontros coletivos, conforme dito no início desta seção, foram o momento ntese
do processo de pesquisa. Neles, entre idas e vindas, lembranças e esquecimentos, estivemos a
exercitar a escuta, a obediência ao outro. Além disso, em função das diferenças nas formas e
nos conteúdos de seus relatos, estivemos também a ampliar nossos repertórios e horizontes de
conhecimento: conhecimento do mundo, conhecimento da região, conhecimento uns dos
outros. Estivemos, de fato (e hoje isso se torna ainda mais evidente para mim),
compartilhando vicariamente nossas lembranças, nossas histórias, constituindo uma memória
coletiva a partir do entrelaçamento das muitas memórias individuais e resignificando nossas
identidades.
As entrevistas individuais (visitas domiciliares)
Carlos Rodrigues Brandão, num artigo intitulado Escrito com o olho anotações de
um itinerário sobre imagens e fotos entre palavras e idéias
41
, diz o seguinte: “em
antropologia, de onde quer que se parta, sempre em algum momento se deve chegar ao rosto”
(BRANDÃO, 2005, p.166). O rosto, nesse sentido, representa aquilo que de mais particular
naqueles com os quais interagimos durante a realização de uma pesquisa; remete a uma
aproximação substancial, a um ‘olho no olho’, a uma troca que revela tanto quanto expõe. É o
signo do vínculo e da proximidade, possibilitados e, talvez, exigidos pela pesquisa. Para
chegar ao rosto, necessariamente, precisamos oferecer o nosso em troca.
De forma análoga, a casa pode ser utilizada como signo de uma intimidade; representa
aquilo que de mais ‘reservado’, particular e específico em cada um dos sujeitos com os
quais interagimos ao mesmo tempo em que, para ser conhecida, exige o estabelecimento de
um vínculo, uma aproximação substancial que revela ao mesmo tempo em que expõe. Assim,
41
In: MARTINS, J. S.; ECKERT, C.; NOVAES, S. C. (orgs). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais.
Bauru: Edusc, 2005. (Coleção Ciências Sociais)
86
parafraseando Brandão poderíamos dizer que “em antropologia, de onde quer que se parta,
sempre em algum momento se deve chegar” a casa.
A casa, este “nosso canto do mundo”
42
, este ponto de vista através do qual
apreendemo-lo e dele nos refugiamos, pode ser considerada também uma extensão de nós
mesmos; uma extensão daquele que o habita. E, na condição de extensão, se não fala por nós,
ao menos fala conosco. Ao longo dessa segunda etapa da investigação empírica, os sujeitos
entrevistados falaram no interior de suas casas, isto é, no interior de um contexto narrativo
mais amplo que também fala por si. Do encontro entre a narrativa individual e seu contexto
material, representado pela casa, pois, emerge uma narrativa mais densa, mais profunda.
Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que o sujeito que narra se expande no interior da sua casa.
Num primeiro nível porque nela, mais do que em qualquer outro lugar, sente-se à vontade;
mais “dono” da situação do que dominado por ela. Sente-se livre para dizer determinadas
coisas que não diria em outros lugares, na presença de outras pessoas. Num segundo nível,
expande-se através da própria materialidade que é a casa: sua configuração, seus móveis e
objetos. Em cada um dos seus cantos, a casa, tem uma história para contar: revela um pouco
daqueles seus habitantes que, assim, passam a existir e a “falar” também através dela. Uma
intimidade que expande e complexifica o campo de investigação.
Ao longo das entrevistas individuais, por exemplo, tive acesso a todo um repertório de
documentos - desde os quadros nas paredes até os álbuns de fotografias guardados nos
armários - complementares a suas narrativas. Um repertório intimo e, por isso, restrito. Digo
isso porque ao longo dos encontros coletivos, apesar de minha insistência, apenas o seu Luiz
trouxe fotos para compartilhar com os colegas. Ao que parece, e isso me ficou mais claro após
as entrevistas individuais, os demais participantes não se sentiram seguros em compartilhar
também essas imagens do seu passado. A narrativa, diferente da fotografia, lhes assegurava o
domínio sobre as imagens do próprio passado; um domínio que, conforme nos fala Thomson
(1997), expressa a necessidade de “ajustar” o passado às identidades atuais. Uma coisa é falar
sobre um passado mais ou menos distante, sobre um modo de vida superado; outra coisa é
mostrar uma fotografia daquele tempo.
O campo de investigação foi estendido e complexificado também em função da
participação de outras pessoas, especificamente familiares, que estavam presentes nas casas
nos dias das entrevistas. Assim, por exemplo, quando entrevistei seu Luiz, acabei coletando
depoimentos também de sua mãe; a conversa com Maria Santa foi também uma conversa com
o seu marido; e, na casa de seu Paulo, quem de fato prestou o depoimento foi sua esposa.
42
“Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um
verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.” (BACHELARD, 1993, p.24)
87
Somente na entrevista de Maria Clair isso não ocorreu, apesar da presença atenta e curiosa de
seu filho mais novo (sete anos). É interessante perceber que, nesse sentido, a fala construída
foi outra vez uma fala em debate, ou melhor, uma fala construída na presença de outros (ainda
que num contexto distinto).
No que concerne às informações construídas, entretanto, essa ampliação do campo de
investigação não implicou a emergência de elementos novos, diferentes. Dito em outras
palavras, à ampliação do campo de investigação dada pelo acesso a documentos restritos e
pela participação de alguns familiares, não correspondeu uma ampliação (resignificação) do
conjunto de informações anteriormente construídas (ao longo dos encontros coletivos). De um
modo geral, as histórias e os relatos de repetiram, ou pelo menos se sobrepuseram
concordantemente. Algumas hipóteses poderiam ser levantadas a fim de explicar esse
acontecimento. Uma primeira seria admitir que, neste ponto do processo investigativo,
alguma suficiência amostral tivesse sido atingida. A repetição ou sobreposição dos relatos,
nesse sentido, representaria aquilo a que Marre se refere como saturação. Uma outra
interpretação possível seria admitir que os sujeitos entrevistados tivessem compreendido esta
segunda etapa da investigação não como um aprofundamento da primeira, mas uma busca por
confirmação. Dessa forma, para além da intenção de contribuir com a pesquisa contando suas
histórias ou falando sobre aquilo que lhes era proposto, os entrevistados estiveram ativamente
preocupados em reafirmar o que havia sido dito; isto é, apresentarem-se coerentes. O uso
recorrente de expressões como que nem eu falei antes”, “conforme eu havia dito”,
demonstram, além da sobreposição (repetição) dos assuntos tratados, também que eles e elas
recorriam constantemente aos seus próprios depoimentos. Uma terceira hipótese, por suas
vez, seria admitir que os diferentes contextos nos quais se deram a produção dos discursos
não se apresentaram, para os sujeitos entrevistados, tão distintos assim. Em outras palavras,
seria admitir que o contexto no qual se deu a primeira etapa da pesquisa (o trabalho em grupo)
se constituiu para os participantes, de fato, num ambiente algo familiar. Bom, seja como
for, o fato é que foram pequenas as diferenças entre os conteúdos das narrativas construídas
na escola, na presença do grupo, e aquelas construídas em suas casas, na presença de alguns
outros familiares. Assim, minha hipótese inicial de que os dois momentos da pesquisa
constituir-se-iam em campos de investigação distintos (mas complementares), ainda que não
possa ser refutada, não pôde ser confirmada.
As entrevistas individuais, em função do que acaba de ser dito, tiveram talvez uma
repercussão maior em mim do que no próprio trabalho, ao menos no que se refere aos dados
88
construídos. Nesse sentido, se os encontros coletivos foram o momento síntese do processo
investigativo, as entrevistas individuais foram para mim o seu momento chave. Foi ao longo
das conversas que tive com estes quatro integrantes do nosso grupo que acabei me dando
conta de várias coisas; não pelo conteúdo daquilo que era dito, mas pelo contexto no qual se
“encaixavam” agora suas narrativas. Também as andanças que tive de fazer para chegar às
suas casas, proporcionaram-me raros momentos de reflexão dinâmica, isto é, movimentando-
me pelo lugar (o lugar do qual me ocupava e sobre o qual tanto falávamos). Em função delas,
pois, estive circulando por regiões desconhecidas, não habituais; estive experimentando o
lugar desde os pontos de vista (espaços de vida) dos sujeitos da presente pesquisa. Posso
afirmar que essas entrevistas individuais, apenas quatro num universo de nove encontros
coletivos e dez participantes, (re)significaram minhas escutas anteriores, meu “conhecimento”
desses sujeitos, ratificando algumas impressões e retificando outras. Acima de tudo,
consolidaram os laços de amizade pré-estabelecidos, reafirmando meus compromissos para
com eles e elas e minha responsabilidade sobre os desdobramentos possíveis da presente
investigação. Indiretamente, portanto, exigira-me muito mais cuidado e seriedade no
tratamento de suas declarações.
Em alguma medida, o seguinte excerto do meu diário de campo, escrito logo após a
última entrevista individual, expressa o valor que elas assumem no conjunto da obra que foi
(tem sido) a realização da presente pesquisa:
“Ao término desta última etapa do trabalho empírico, a despeito de todas as
provações vindouras, sinto-me feliz em saber que conquistei ótimos amigos. O que quer que
possa acontecer daqui para diante, as pequenas conquistas e os inestimáveis aprendizados
que tive ao longo desses encontros não serão apagados. E isso, em alguma medida,
tranqüiliza-me. Se o trabalho acabar não expressando tudo aquilo que, de fato, foi
experimentado, trocado, vivenciado (e certamente não poderá fazê-lo), os caminhos
percorridos terão me bastado. Caminhos que me levaram ao encontro de um mundo novo.
Sinto hoje que conheço aquele espaço da cidade melhor do este no qual me encontro e no
qual cresci. E nesse sentido, se comigo aconteceu dessa forma, sou levado a acreditar (e no
fundo esta foi uma das minhas apostas) que o mesmo tenha ocorrido com cada um dos
participantes. Acredito que o espaço de vida, ou melhor, seus espaços de vida tenham se
complexificado e estendido a partir das trocas que tivemos. Reside o valor da pesquisa e
também a sua dimensão educativa. Sim, acredito que estivemos nos educando reciprocamente
e ampliando nossas compreensões sobre o meio, uns sobre os outros. Enfim, é muito bom
89
poder sair de casa num sábado à tarde, atravessar a cidade de bicicleta e ser recebido com
alegria e satisfação em suas casas; e, entre um chimarrão e outro, conversar sobre a vida,
sobre as histórias do lugar ou sobre o que andou acontecendo dois dias atrás” (Cassiano
– diário de campo).
***
90
5. MIGRAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO ESPAÇO
Levai-me, caminhos!...
(MarcelineDesbordes-Valomore
43
)
Toda a pessoa (...) deveria falar de suas
estradas, de suas encruzilhadas, de seus
bancos. Toda a pessoa deveria fazer o
cadastro de seus campos perdidos.
(Gaston Bachelard
44
)
(...) o homem, ele não vive sozinho... então,
ele não pode ficar e ele não fica dentro de
casa trancado. Ela sai para contatar com os
amigos, renovar as amizades, conquistar
novas amizades... revisar os caminhos já
percorridos e abrir espaço em outros
caminhos, em outras ‘picadas’, para novas
descobertas...
(Seu Osvaldo)
Nem de esperança é feita a vida daqueles que se permitem errar, perder-se, por
caminhos novos. Ela também é feita de medos, de angústias, de desafios e de pequenos e
grandes eventos de superação; ela é feita de sonhos e lembranças, desejos e saudades. Vida
que se faz no atravessamento entre passado, presente e futuro; que se projeta para o vazio
daquilo que ainda está por vir e o preenche com a substância mesma da qual é feita. Vida que
se faz no caminho e que se faz caminho; que liga espaços de vida, aproxima e distancia sem
jamais perder de vista. Vida que se faz história e histórias que se fazem vida.
***
Errar é humano”. Esse velho dito popular é utilizado com freqüência para mitigar a
sensação de culpa nossa ou alheia experimentada diante de um erro, de uma escolha não
acertada. Sugere, pois, o “erro” como conseqüência até certo ponto inevitável (e por isso
aceitável) da ação humana; sugere-o como característica própria do ser humano. É certo que
essa característica não pode ser utilizada para diferenciá-lo dos demais seres, uma vez que
estes se encontram também sujeitos ao erro. De qualquer forma, dada a dinamicidade dos
contextos sócio-culturais e a particularidade dos significados assumidos pelo erro no interior
43
Apud BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos). p.30.
44
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos). p.31.
91
deles, não deixa de ser uma boa aproximação. Nesse sentido, o erro aparece como uma
característica própria do ser humano não porque exclusiva, mas porque experimentada de
modo particular.
Outra interpretação possível para o ditado acima, decorre da dupla conotação que
assume o verbo “errar”. Ao mesmo tempo em que remete ao equívoco, ao erro, “errar” evoca
a noção de movimento. “Errar é humano”, sob essa perspectiva, sugere o movimento como
condição mesma de nossa existência; sugere-o enquanto característica própria do ser humano.
E, a semelhança do que acontece com o erro, o estar em trânsito’ não pode ser considerada
uma característica distintiva do ser humano; sua propriedade advém não do fato de ser
exclusiva, mas em função do modo particular através do qual é experimentada.
Uma terceira interpretação, enfim, emerge a partir da conjugação duas anteriores. Ela
remete à experiência do errante: este ser em trânsito, que se permite perder, errar, vaguear
por aí. Experiência que se constrói ao longo de um caminho, um caminho de vida, a na qual o
erro deixa de ser apenas uma inevitável conseqüência da ação humana, para se tornar sua
condição de possibilidade. É apenas quando abdicam a algumas de suas pequenas certezas,
“quando se esvaziam das respostas que lhes dão a ilusão de segurança”
45
, quando se abrem
ao devir, somente então, é que homens e mulheres se tornam errantes: iniciam suas jornadas –
mais ou menos longas, sempre significativas - tendo como horizonte aquilo que ainda não é.
Em alguma medida, é sobre essa experiência que trata o presente capítulo.
Primeiramente serão apresentadas algumas considerações acerca da migração: uma proposta
de definição, algumas características e significados assumidos no contexto de realização da
pesquisa. Em seguida, passa-se ao tratamento das relações estabelecidas com o espaço, numa
tentativa de caracterizar o processo através do qual se dá a sua contínua (re)construção.
MIGRAÇÃO
As idéias apresentadas acima ressaltam o fato de que a experiência do errante não se
reduz a sua movimentação pelo mundo, ou melhor, de que o movimento não abarca a
complexidade que é a experiência do errante. De modo análogo, podemos pensar o processo
de migração. A experiência do migrante não se reduz ao um deslocamento entre lugares; pelo
contrário, ela o ultrapassa em ambas as extremidades (o antecipa e o sucede). O conceito de
migração, sob essa perspectiva, tem sua significação ampliada, ou talvez, ainda melhor,
45
Conforme expressão utilizada por Nacy Mangabeira Unger, no livro Da foz à nascente: o recado do rio. São
Paulo, Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 2001 p.154.
92
deslocada: é a partir da experiência do migrante que o deslocamento físico entre lugares será
considerado e não o contrário. É nesse sentido que Alistair Thomson (2002), num artigo que
revê a contribuição dada pela história oral aos estudos da migração
46
, diz enxergar “a
passagem física da migração de um lugar para outro como apenas um evento em uma
experiência migratória que abarca velhos e novos mundos e que continua por toda a vida do
migrante e pelas gerações subseqüentes” (THOMSON, 2002, p.341/342). A referência que
Thomson faz a velhos e novos mundos dá bem a entender a amplificação sofrida pelo
conceito: o lugar de origem e o lugar de destino, mais do que meros pontos geográficos,
correspondem para o migrante à mundos distintos. Uma diferença e amplitude que somente se
manifestam para o migrante e, em função disso, exigem o seu olhar (um olhar autóctone) para
poderem ser apreendidas. Também a referência feita ao fato da migração “prosseguir por toda
a vida do migrante e pelas gerações subseqüentes” ressalta sua natureza processual e sua
existência para além do evento físico que é o deslocamento.
Para fins de análise, entretanto, procurei distinguir a migração enquanto processo
(evento) da migração enquanto experiência. Por evento tenho entendido a dinâmica própria
através da qual se o deslocamento de grupos e/ou indivíduos de um lugar para outro. Essa
dinâmica, que assume configurações variadas de acordo com os contextos nos quais ocorre,
procurou ser caracterizada a partir dos seguintes pontos: ‘natureza’ do lugar de origem,
motivações, condições de possibilidade, itinerários e ‘natureza’ do lugar de destino. A
migração enquanto experiência, por sua vez, diz respeito aos modos através dos quais o
processo da migração é vivenciado pelos seus sujeitos. Corresponde, nesse sentido, ao olhar
do migrante sobre sua própria experiência; corresponde a uma reinterpretação do vivido.
Especificamente no que se refere à experiência do migrante, interessou-me compreender suas
relações com o espaço (físico e simbólico), isto é, os modos através dos quais esse espaço é
resignificado, principalmente em função: a) do deslocamento de um lugar para outro e b) da
passagem do tempo (no lugar de destino).
É importante ressaltar também que o trabalho teve como base diferentes eventos
migratórios. O ponto comum entre os participantes, dessa forma, foi a experiência da
migração num sentido lato; isto é, a experiência daquele que opta ou é forçado a deixar sua
terra natal, seu espaço de vida conhecido e partir para outro lugar, reconstruí-lo. Os pontos de
partida, os itinerários, as motivações específicas, são os elementos particulares, distintos, que
compõem essa experiência comum. Em alguma medida, o esforço realizado correspondeu a
uma tentativa de caracterizar essa suposta experiência comum a partir de experiências
46
THOMSON, A. Histórias (co)movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de História.
São Paulo, v.22, n°44, pp. 341-364, 2002.
93
particulares vivenciadas em tempo-espaços distintos. Uma situação diferente daquela
observada em diversos outros trabalhos sobre a migração, nos quais os eventos considerados,
no seu conjunto, constituem como que um mesmo grande evento migratório. Como exemplos
poderiam ser citados alguns dos trabalhos analisados por Thomson (2002)
47
e o trabalho de
Maria Cecília Braun (1999)
48
sobre as representações de ambiente em comunidades de
imigrantes alemães. Neles, além da relativa homogeneidade do quadro no interior do qual se
dão os deslocamentos, há, nos lugares de destino, a experiência coletiva de reconstrução de
referenciais e manutenção dos traços culturais. No trabalho sobre a imigração alemã, por
exemplo, a autora descreve como os traços culturais - a língua, a religião, etc. constituíram,
aos recém chegados, eixos em torno dos quais reconstruíram suas identidades
49
.
Por fim, um outro ponto merecedor de destaque, refere-se à orientação metodológica
adotada. Conforme descrito no capítulo anterior, o trabalho foi construído a partir das
reminiscências de homens e mulheres, narradas em encontros coletivos e individuais. Essa
solução metodológica procurou ressaltar justamente aqueles aspectos relacionados à
experiência do migrante - tradicionalmente relegados a um segundo plano pelos estudos sobre
a migração que se desenvolvem desde uma perspectiva demográfica e/ou econômica. De um
modo geral, esses estudos tendem a enfatizar o processo da migração, aventando suas
principais motivações, desenhos e itinerários, em detrimento da experiência daqueles e
daquelas migrantes. É interessante perceber que, ao enfatizar a experiência do migrante, isto
é, ao tomá-la como ponto de partida, o processo da migração se torna também apreensível
claro, numa escala que não permite generalizações), o que parece não acontecer quando se
opera no sentido inverso (justamente o que fazem as referidas análises). De qualquer forma,
uma vez se tratam de olhares distintos sobre um mesmo fenômeno, as diferentes perspectivas
têm sempre contribuições a oferecer uma à outra.
47
Principalmente, em função de suas características: os estudos sobre a migração de judeus etíopes para Israel,
realizados por Gadi Bem-Ezer (1994), o trabalho de Mary Chamberlain (1996) sobre os emigrantes barbadianos
que se deslocam à Grã-Bretanha e o trabalho de Merfy Jones (1981) sobre o fluxo migratório do País de Gales
para as cidades do noroeste da Inglaterra. (THOMSON, 2002)
48
BRAUN, M. C. Do vale das matas nativas ao vale do progresso: um estudo sobre as representações de
ambiente em comunidades de imigrantes alemães. Porto Alegre: UFRGS, 1999. Dissertação (Mestrado em
Educação) Programa de s-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.
49
“Não mais voltar significava, pare eles/as, assumir uma identidade teuto-brasileira, isto é: sem negar as raízes
teuto (a língua, as tradições as culturas...) tinham que construir, a partir da ocupação das terras brasileiras, outras
identidades (...)”. (BRAUN, 1999, p.53)
94
O processo da migração: contextualização
Os diferentes eventos migratórios considerados neste trabalho podem ser inscritos num
conjunto mais amplo de movimentações internas
50
ocorridas na região sul
51
do país e que se
intensificam a partir da década de 70 (LISBOA, 1982). O “quadro” delineado por essas
movimentações é predominantemente um quadro de êxodo rural, isto é, caracterizado pelo
fluxo unidirecional ligando o meio rural ao meio urbano.
Os números dessa movimentação são reveladores. De acordo com Lisboa, a
população regional domiciliada no meio rural passou de 9,19 milhões em 1970 para 7,15
milhões em 1980, representando um decréscimo absoluto de aproximadamente 2,0 milhões de
pessoas” (LISBOA, 1982, p.18/19) Se acrescentarmos a esse contingente o resultado esperado
do crescimento vegetativo da população verificado no País como um todo durante o mesmo
período, a quantidade de retirantes aumenta para cerca de 4,6 milhões de pessoas.
Especificamente no que concerne ao estado do Rio Grande do Sul, o número estimado de
pessoas que tenham deixado o meio rural entre 1970 e 1980 é de aproximadamente 1,5 milhão
(LISBOA, 1982)
No mesmo período, observa-se um correspondente aumento da população urbana da
Região Sul, que passa de 7,3 milhões em 1970 para 11,9 milhões em 1980 (LISBOA, 1982).
Conforme o autor, dessa variação absoluta (4,6 milhões), 2,5 milhões corresponderiam a
migrações do meio urbano para o meio rural e apenas 2,1 milhões seriam devidos ao
crescimento populacional esperado. Especificamente no que concerne ao contexto de
realização do presente trabalho, é interessante observar que, dentre as principais áreas de
atração migratória da Região Sul entre as cadas de setenta e oitenta (período de tempo no
qual ocorreu boa parte dos eventos migratórios considerados), encontra-se a região
metropolitana de Porto Alegre, tendo absorvido cerca de 270 mil migrantes (LISBOA, 1982).
Entre as principais causas, responsáveis por essa intensificação do fluxo em direção às
regiões metropolitanas (liberação de mão de obra), o autor destaca o esgotamento da fronteira
agrícola, que na Região Sul ocorre por volta da década de 70, a concentração da posse de
terra, o declínio da agricultura intensiva em mão de obra, a política agrícola brasileira (no
período considerado), o crescimento demográfico no Brasil (também no período considerado)
e os fatores de atração gerados pela expansão da atividade industrial, entre os quais se
destacam as oportunidades de emprego e renda (LISBOA, 1982). De acordo com o autor,
essa sobreposição de fatores conferiu ao fenômeno características notadamente perversas:
50
Internas em relação ao contexto nacional.
51
Correspondente ao território dos três estados sulinos: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
95
Observa-se um desmesurado descompasso entre o intenso movimento de
liberação de mão-de-obra do meio rural, não forçosamente resultado de
maior produtividade agrícola, e o lento movimento de absorção dessa
mesma mão-de-obra pelos setores urbanos. Advém disso conseqüências
indesejáveis, como o aumento do desemprego nas cidades (aberto e oculto),
a pressão por maiores dispêndios em assistência social, a ociosidade da
terra, a escassez de mão-de-obra no meio rural, o crescimento desordenado
dos centros urbanos. (LISBOA, 1982, p.56)
É no interior desse “quadro” que os eventos migratórios considerados no presente
trabalho se inserem e se desenrolam. Em outras palavras, os deslocamentos efetuados pelos
participantes desta investigação, na sua maior parte, ocorreram no período considerado no
estudo acima e, vistos de “fora” (de longe), apresentam as características mais gerais
apresentadas. O desenho desse quadro, entretanto, ainda que permita apreender o fenômeno
como um todo, oculta uma série de outros elementos que também o compõe. Impede que se
perceba a migração enquanto experiência. Nesse sentido, com o intuito de complementar as
informações acima apresentadas, procurarei apresentar nas linhas que seguem o processo da
migração como ele é visto de “dentro” (de perto). Para tanto, conforme dito anteriormente,
tomo como ponto de partida relatos de experiência (reminiscências narradas em encontros
coletivos e individuais, por homens e mulheres migrantes) e organizo as informações
construídas em cinco itens (que no seu conjunto procuram caracterizar o processo de
migração): ‘natureza’ do lugar de origem, motivações, condições de possibilidade, itinerários
e ‘natureza’ do lugar de destino.
‘Natureza’ do lugar de origem
As recordações dos entrevistados sobre a terra natal remetem a outros tempos e
espaço, a modos de vida distintos daqueles experimentados atualmente. De modo pouco
nítido, deixam entrever uma possível distinção entre um meio rural e outro,
predominantemente urbano, ou ainda melhor, entre um modo de vida rural e outro mais
especificamente urbano. Nesse sentido, ao invés de uma categorização pautada em dados
objetivos (referentes aos municípios como, por exemplo, número de habitantes, atividade
econômica predominante, etc.), a ruralidade ou a urbanidade do local de origem procurou ser
caracterizada em função das informações prestadas ao longo dos seus depoimentos; isto é, foi
definida a posteriori. Dito de outro modo, ao invés de comparar os relatos a partir da
definição de uma distinção entre meio rural e urbano, procurei definir um critério que
possibilitasse tornar essa distinção mais nítida a partir da comparação dos seus relatos.
96
Num primeiro caso, independente das características mais gerais dos municípios de
onde vieram, os lugares descritos pelos migrantes sugerem um ambiente tipicamente rural.
Lugares amplos, presença de áreas verdes próxima às residências, criação de animais e cultivo
da terra (desde uma agricultura de subsistência praticada nos “fundos” da casa até aquela com
fins comerciais), a presença dos pais e famílias extensas, entre outros, são alguns dos
elementos presentes em suas narrativas. Seu Luiz, por exemplo, descreve da seguinte maneira
o “canto” de Uruguaiana onde passou seus primeiros anos de vida:
(...) E era cheio de angico
52
, que tem muito... Hoje em dia eu não sei porque desmataram
muito... destruíram tudo. Mas era assim, cercado de angico em volta [gesticula]. Então
(...) a gente tinha que buscar água e a gente caminhava uma distância assim, como daqui até
o fim da avenida [refere-se a avenida localizada na frente da escola], assim, aí bem defronte
à casa dos Telecheiros [donos das terras onde morava] tinha um poço onde a gente buscava
água de balde (...).
E quando perguntado sobre a ‘natureza’ do lugar de origem, se seria algum tipo de
área rural, assim responde:
(...) É... ainda era um tipo de área rural... porque não tinha muita casa em volta. Tinha casas,
mas eram bem distantes... entende? [aponta para perto mim], alí, alí... É a primeira fase
da minha infância que eu me lembro (...).
É interessante perceber que a ruralidade do lugar, para seu Luiz, procura ser definida
pela densidade de casas. Trata-se de uma ainda área rural porque pouco povoada. Contudo, a
ruralidade do lugar de origem é caracterizada também (e talvez principalmente), pelo
cotidiano descrito em seus relatos. Assim, enquanto seu Luiz “buscava água de balde” num
poço perto de casa, seu Osvaldo aprendia com a avó (mãe de criação) a tirar da terra o
sustento e seu Paulo ajudava os pais em suas lidas diárias:
(...) O arroz, ela [refere-se a avó] saía de casa três e meia, quatro da madrugada com as
gurias [refere-se às irmãs] e ia para o arrozal, lá, pegar aquela sobra do arroz. Ela pegava
aquilo, botava num saco... as duas gurias pegavam atrás, ela comigo aqui [indica a nuca]
na frente e vinha pra casa (...) e depois no pilão, né? (...) Perto de casa tinha... perto de onde
nós morávamos, tinha um arroiozinho e tinha inhame... você conhece inhame [aponta para
mim]. Aquele inhame ele servia para fazer o café... torrava ele e fazia o café. E o pão, era ele
também (...) Ai com o tempo, né? Ela plantou batata, aipim, bah! E ficou bonita a coisa! (...).
(Osvaldo)
(...) O pai... ele tinha uma chácara grande, onde ele plantava verdura, né? E levava para nós
vender numa feira, feira livre... levava de carrinho... carroça. Depois, então, os que
52
O Angico (Parapitadenia rigidauma árvore muito conhecida na região sul do país (Rio de Janeiro até o Rio
Grande do Sul), pelo grande porte, tronco de casca escamante e madeira vermelha. Propaga-se muito bem,
crescendo espontaneamente em beiras de rios, capoeiras ou
ao longo de estradas. A casaca é popularmente
utilizada contra diarréias, contra doenças venéreas e como cicatrizante (BACKES; IRGANG, 2002).
97
estudavam de tarde[refere-se aos irmão] tinham que ajudar ele na feira e os que estudavam
de manhã tinham serviço na roça: capinar, cuidar dos bichos... sempre tinha serviço...
sempre, sempre e bastante. Além disso nós ajudava muito na casa, também, vendendo
quitanda que... sempre tinha um balaiozinho vendendo, rapadurinha, vendendo verdura...
Tinha que ajudar(...). (Paulo)
À semelhança de seu Luiz, seu Osvaldo e seu Paulo, também Maria Clair e Manoel
experimentaram quando crianças a vida em um meio rural. Acompanharam de perto ele
mais do que ela - a atividade dos pais agricultores: o serviço na lavoura, o cansaço ao final do
dia, a alternância entre períodos mais ou menos estáveis. Seu Manoel, por exemplo, quando
perguntado sobre o que a família fazia em Mostardas, responde da seguinte forma:
(...) Plantava cebola. Agricultor... Lá é a terra da cebola e do arroz. tem aquela imagem
da terra da cebola, mas não é tanto cebola. Cebola quem planta é o pobre... aí, a riqueza
mesmo, o arroz, aí é o rico quem planta (...).
Lembranças de lugares e de cotidianos, se não rurais, ao menos distintos daqueles
experimentados atualmente, no seio de uma urbanidade; lembranças que caracterizam lugares
ao mesmo tempo em que denunciam uma condição sócio-econômica específica para a
maioria dos entrevistados, um dos fatores envolvidos na decisão de partir (conforme será visto
a seguir).
Num segundo caso, as lembranças remetem mais às periferias de ambientes urbanos,
onde se entrecruzam diferentes modos de vida. Predominantemente, esse segundo caso
emerge a partir das narrativas daqueles e daquelas participantes mais jovens de nosso grupo;
isto é, em boa parte, os lugares de origem descritos correspondem aos lugares de destino dos
pais retirantes. Tratam-se de espaços de vida constituídos ao longo de trajetórias mais amplas
do que as dos próprios sujeitos. De qualquer forma, seus relatos descrevem casas e pátios
pequenos, famílias reduzidas e/ou em trânsito e uma vizinhança típica de zonas urbanas. É
nesse sentido, por exemplo, que Angela conta sobre as brincadeiras com os irmãos no
pequeno pátio cercado por tapumes de compensado:
(...)Então assim, o que eu me lembro, era uma casa comprida, feia... é... para poder todos nós
morar, com o pátio pequeno e assim, a nossa cerca era de tábua de compensado alto... Então
meu pai e minha mãe saíam para trabalhar e ficávamos nós quatro, eu e meus três irmãos,
chaveados com um correntão... Eu me lembro, assim, que gravou muito... que a corrente
grande para fora com um cadeado e a vizinha da frente chamava: Maria, ta tudo bem?
Como é que vocês tão?” Para minha irmã mais velha, para saber como nós estávamos(...).
(Angela)
98
Poder-se-ia, talvez, propor a partir dos seus relatos, a diferenciação entre dois
movimentos migratórios: um que tem em ambientes rurais seu ponto de partida e outro que
inicia predominantemente em pequenos centros urbanos. Neste caso, considerando apenas
uma geração de migrantes, talvez fosse possível em falar num movimento tipicamente de
êxodo rural e outro que poderia ser caracterizado como “interior-capital”. Essa diferenciação,
entretanto, deixa de fazer sentido quando incluímos nas considerações também os pais dos
participantes: nessas circunstâncias, tem-se mais nitidamente caracterizado um conjunto de
movimentações que partem do campo em direção às regiões mais urbanizadas.
Assim, em maior ou menor proporção, direta ou indiretamente, seus relatos remetem a
um ambiente singular, onde uma ruralidade pode ser caracterizada principalmente em função
do tipo de vida que se levava; uma ruralidade que se justifica em oposição a urbanidade de
suas vidas atuais. É nesse sentido que o lugar de origem pode ser considerado, sim, um
ambiente rural. E desde esse ponto de vista, que os eventos migratórios considerados na
presente investigação se inserem (ou podem ser inseridos) num contexto mais amplo de
movimentações internas caracterizadas pelo sentido predominante “campo-cidade”.
Motivações
Pelo menos desde os clássicos estudos de Ravestein
53
, datados do final do século XIX,
aceita-se que o motivo dominante nas decisões de migrar é de natureza econômica (MATA,
M.; CARVALHO, E. W. R.; CASTRO E SILVA, M. T. L.L. 1973). Essa preponderância da
questão econômica, entretanto, oculta uma série de outros fatores concorrentes, mais ou
menos decisivos. São eles que, em última análise, irão diferenciar entre os membros de uma
mesma família (supostamente sujeitos a pressões “externas” semelhantes) aqueles que saem
daqueles que ficam. Esses fatores, ou melhor, essas outras motivações, remetem aos modos
através dos quais essas pressões “externas” o sentidas e suportadas pelos indivíduos;
remetem também a imaginários culturais e a desejos alternativos, direta ou indiretamente
relacionados à busca por melhores condições (que não apenas materiais) de vida.
Nas narrativas construídas ao longo de nossos encontros foi possível apreender uma
motivação de natureza econômica por trás de praticamente todas as partidas. A busca por
condições materiais de vida mais dignas, por uma melhor “sorte” financeira, talvez tenha sido
o principal motivo de suas empresas, individuais e familiares. Contudo, algumas outras
53
RAVESTEIN, The Laws of Migration. Journal of the Royal Statistical Society, v.48, n°2, 1885 (apud MATA,
M.; CARVALHO, E. W. R.; CASTRO E SILVA, M. T. L.L. Migrações internas noBrasil: aspectos econômicos
e demográficos. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1973) (coleção relatórios de pesquisa, n° 19).
99
motivações (ou, pelo menos, variações) puderam também ser aventadas. Entre elas se
destacam o imaginário sobre a cidade grande, o desejo de estudar (acesso à educação), o
medo da violência e o desejo de conhecer o mundo. É interessante perceber que, enquanto três
delas remetem à busca (em função de uma ausência percebida e desejada), a outra remete à
fuga (em função de uma presença percebida e indesejada).
A primeira dessas motivações diz respeito às imagens dos lugares de destino
(prováveis e improváveis) construídas e disseminadas num processo coletivo e que são
reapropriadas individualmente. De acordo com Alistair Thomson, “as narrativas dos
migrantes evocam os ‘imaginários culturais’ sobre os futuros locais de destino” (THOMSON,
2002, p.345). Entre esses “imaginários culturais”, certamente, podem ser incluídas as
expectativas alimentadas acerca da vida na cidade, especialmente numa cidade grande.
Carlos Fortuna (1997), num artigo que analisa as relações entre as identidades e o patrimônio
histórico e cultural das cidades
54
, caracteriza assim essa “imagem” e as expectativas a ela
associadas:
(...)a cidade, entendida como espaço libertador e promessa de salvação, era
uma aspiração radical. Nela estariam contidas uma ambiciosa autonomia
individual e a livre afirmação pessoal. Por ela se garantia e dava forma ao
desejo de se tornar outro. Antecipava-se o tempo, mudava-se de lugar,
enfim, construía-se uma nova identidade. (FORTUNA, 1997, p.127)
Conquanto o autor esteja se referindo ao imaginário cultural dos camponeses da
Alemanha pré-moderna (FORTUNA, 1997), algum paralelo pode ser estabelecido com as
imagens da cidade grande, construídas e disseminadas entre os moradores do “interior”
algumas décadas atrás. E foi uma dessas imagens, a cidade grande sobre a qual todos
falavam, que passou a povoar os pensamentos do garoto Osvaldo, atiçando sua curiosidade:
(...) Eu agarrava, ajudava a cuidar do armazém. Às vezes de noite eu parava na janela,
assim... olhava as estrelas, olhava para o pasto, olhava assim... [aponta para o alto] Quando
é que eu vou estar numa cidade grande? Aquela... aquela ilusão, aquela perspectiva de ver
dias melhores, entende?(...)
Certamente as motivações de um garoto de 13 anos de idade que foge de casa para
conhecer a cidade grande (iniciando ai, ainda que acidentalmente, sua longa caminhada) não
podem ser reduzidas a um componente de natureza econômica. Seu Manoel, de modo
54
FORTUNA, C. As cidades e as identidades: narrativas, patrimônios e memórias. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v.12, n°33, fev. 1997. pp. 127-141.
100
semelhante, nutria determinadas expectativas a respeito da vida na cidade grande;
expectativas que foram frustradas quando da sua chegada:
(...) Meu pai sempre me apoiou... se eu tivesse que estudar, que eu não precisasse estar
trabalhando na roça... que quando eu cheguei aqui e vi o que era a cidade, me
decepcionei muito, né? Não era o que eu pensava. E mesmo em 76 era... havia muita
competição na época. Não era aquele mar de rosas que a gente imaginava. Que a gente
idealizava uma coisa assim, que vai para a cidade, tudo legal, vai ganhar o seu dinheiro, vai
ter uma vidinha estável, e na realidade não é. (...)
Imagens que se desfazem no duro confronto com a realidade. A frustração das
expectativas alimentadas, as mesmas que motivam a saída, entretanto, não condicionam o
retorno à terra natal. Pelo contrário, ao que parece, acabam se constituindo em elementos
mobilizadores da permanência. Admitir o equívoco, “dar o braço a torcer”; isto é, frustrar ou
confirmar as expectativas daqueles que ficaram, não é uma coisa fácil. Alistair Thomson
(2002), quando se refere à imagem idealizada de “pátria” que atraiu os emigrantes
barbadianos à Grã-Bretanha, relata que “mesmo quando este sonho foi ‘perfurado’ pelas
realidades da discriminação e do trabalho mal remunerado, as cartas dos migrantes
mantinham essa imagem para evitar frustrar as famílias que haviam emprestado dinheiro para
a viagem” (THOMSON, 2002, p.345). De modo inverso, seu Manoel ocultou as suas
frustrações a fim de não confirmar as expectativas do avô. Assim ele complementa o relato
acima:
(...)Eu não voltei pra fora [refere-se ao município de Mostardas], de novo, eu não voltei
embora, para eu não dar o gosto pro meu avô, que na época disse pro pai: “esse guri vai
pra lá pra ti botar dinheiro fora”. Que se não, eu teria voltado embora... Muitas noites assim,
ó, pensando assim... lá fora... Eu tinha vontade de ir embora, mas eu digo: “não, não vou dar
esse gosto pra ele, isso aí não, jamais”. Agüentei no tranco (...).
Assim, se as expectativas alimentadas acerca dos lugares de destino se constituem em
motivações para a saída, de modo análogo, as expectativas depositadas sobre aqueles que
saem e o desejo de corresponder ou não a elas acabam se constituindo em motivações para a
permanência. O processo de migração, dessa forma, acaba se ampliando substancialmente:
envolve além dos migrantes (aqueles que partem), também aqueles que ficam. É um processo
que se nas relações e por isso, por mais subjetivas que possam ser suas motivações, elas
dizem respeito sempre a uma coletividade.
Seu Osvaldo e seu Manoel, conforme dão a entender nos seus relatos, saem do
“interior” atraídos por uma imagem romântica da cidade grande, sinônimo de melhores
condições de vida. Aliado a isso, entretanto, encontram-se outras motivações. Seu Manoel,
por exemplo, vem para Novo Hamburgo com o desejo explícito de estudar. Almejava formar-
101
se técnico em mecânica de automóveis, curso que na época somente era oferecido nos grandes
centros urbanos:
(...)Bom, a minha expectativa... não teve muita coisa assim. Eu tive... sempre tive aquela
idéia... que é uma idéia fixa de fazer o curso, de querer estudar, fazer mecânica. E daí, a
única possibilidade de fazer isso daí era vir embora. Não tinha outra chance. (...)
A facilidade de acesso à educação (ensino profissionalizante e regular), dessa forma,
aparece como um dos fatores determinantes, se não da saída, ao menos para a escolha do
lugar de destino. Em mais de um caso, os participantes explicitaram suas preocupações
quanto à educação formal dos filhos, no caso dos adultos, ou alegrias, no caso das crianças, de
ir para um lugar onde poderiam estudar. Os fragmentos abaixo exemplificam esses dois
pontos de vista, nos quais o acesso à educação pode ser considerado, junto com outros fatores,
uma das motivações envolvidas na decisão de deixar um lugar e se dirigir para outro:
(...) Eu, por exemplo, vim para cá devido aos meus filhos... que lá onde eles estavam, nós não
tínhamos como educar os nossos filhos (...). O único colégio de segundo grau mais perto era
18Km (...). (Osvaldo)
(...) Eu gostei, gostei... Gostei porque eu senti, assim, na época, eu era pequena, bem
pequena, mas eu lembro assim do meu pai chegar muito cansado do serviço, porque ele
trabalhava muito, trabalhava na roça, a minha mãe também, então... Pra mim vir para
escola, eu tinha muita vontade de estudar... pra mim, foi muito bom. (...) (Maria Clair,
falando sobre a saída de Candelária)
Além dos imaginários culturais e do acesso à educação, outra motivação relacionada à
decisão de partir e presente em um dos relatos foi o medo da violência. Especificamente nesse
caso, a partida se desde um lugar provisório e não da terra natal; isto é, não se trata de uma
motivação inicial, mas sim secundária. De qualquer forma, implica movimentação,
deslocamento, perda e reconstrução de referenciais. Angela, quando fala sobre a vinda da
família de Porto Alegre para Esteio, descreve uma situação cada vez mais freqüente nas
grandes cidades: um medo que, mais do que qualquer motivação de ordem econômica (ainda
que estejam relacionadas), impele a busca por outras localidades, a continuidade da
caminhada:
(...)O pai vem de Santa Catarina, ficou em vários lugares em Porto Alegre e o último foi a
Vila da Conceição... e a finalidade de vir para foi que assim, estava com cinco filhos, a
minha irmã mais velha estava com 12 pra 13 anos, estava virando mocinha, e o meu irmão
com uns dois anos de diferença... e como era uma vila, tinha droga, tinha bandido, tinha
gente assim... de qualidades horríveis, né? Ai o pai disse pra mãe assim: “nós temos que tirar
as crianças daqui porque não é um bom lugar pra gente criar os nossos filhos” (...).
102
Uma última motivação, enfim, presente nos seus relatos poderia ser caracterizada pelo
desejo de conhecer o mundo, ou melhor, outros mundos. Diretamente relacionada à questão
dos imaginários culturais, essa outra motivação se diferencia da primeira pela pluralidade dos
destinos possíveis. Mais do que idealizar e desejar conhecer um destino em particular, como a
cidade grande por exemplo, o desejo de conhecer o mundo remete a uma certa fugacidade,
obsolescência dos lugares de destino (neste caso, sempre lugares provisórios). O que está em
jogo aqui não é a busca por estabilidade (seja ela de que natureza for), mas sim por
instabilidade, pelo movimento, pelo novo; busca-se a ampliação dos horizontes de vida
através do mais ou menos livre trânsito entre lugares. O desejo de conhecer o mundo, ao que
parece, emerge como reação à fatalidade de uma vida inteira vivida num mesmo lugar, numa
cidade pequena. A noção da amplitude do mundo em oposição à estreiteza do lugar de
origem, espaço de vida dos pais, parece impelir alguns dos participantes a uma busca por
expansão.
Seu Paulo se refere ao início de sua jornada como entrada no mundo: “mas a minha
história é assim... eu tinha contado para vocês como é que eu entrei no mundo (...)”. De
Cachoeira do Sul, seu Paulo estende seus horizontes até Belém do Pará, num impulso de vida
onde a experimentação falou mais alto e se sobrepôs às preocupações de ordem financeira:
“Ai eu tava no Rio (...) eu era meio malandrinho... ganhei um bom dinheiro, mas botei
tudo fora em besteiras (...)”. Também seu Luiz Armando, nesse surpreendente depoimento,
revela a sua inquietude, um desejo “adormecido” de seguir em frente, de buscar o novo:
(...) eu acho que o que me prende dentro de Esteio é Esteio, é a terra. (...)É claro, o carinho
dos parentes, tu estar perto dos amigos, de ter pessoas que gostam de ti, que tu goste delas,
que tu compartilhe o teu dia-a-dia é muito importante no lugar onde tu vive... mas eu sou
muito apegado à terra. Assim como eu era apegado à Uruguaiana, lá... minha terra... Eu,
para mim, hoje em dia, eu vivo em Esteio e Esteio é o meu lar, Esteio é a minha cidade... Não
trocaria sair de Esteio para voltar para Uruguaiana. Entre Uruguaiana e Esteio eu ficaria
em Esteio até morrer. A minha única perspectiva, assim, de mudar de Esteio é eu for para
outra cidade diferente. Aquela coisa que o senhor falou no começo de desafio, sabe? Por
exemplo, eu antes de casar, eu ia embora pro Acre... de ir com dinheiro junto pra comprar
passagem, fazer vacina... para me sumir pra lá. Ia deixar a minha mãe aqui... a minha mãe a
pouco tempo tinha vindo para cá. conheci a minha esposa, a minha vida mudou toda,
acabei casando... Então, eu, se tiver que sair de Esteio, não é para voltar para Uruguaiana.
E não me chama a atenção voltar para lá, porque eu conheço lá, eu sei como é lá, entende?
Então pra mim sair de Esteio só se fosse para ir embora para outro lugar, para outro estado,
para outra cidade, outro município... como a vida me levasse (...).
Seja por deslumbramento, seja por medo, a decisão da saída é sempre uma escolha
complexa, isto é, que se no interior de um conjunto de relações. Envolve além daqueles
que migram também aqueles que ficam. É pensada a partir de si, a partir do meio e em função
103
dos outros; das possibilidades e limitações inerentes aos diferentes lugares entre os quais o
deslocamento se efetiva. É fruto, conforme destacado anteriormente, do entrecruzamento de
diversos fatores, entre os quais a busca por melhores condições materiais de vida constitui
apenas mais um. Enfim, é uma decisão que envolve a contraposição de lugares: lugares
significados, conhecidos e lugares imaginados, desconhecidos, a conhecer; lugares que se
tornam mundos lugares-mundos entre os quais a vida do migrante se faz.
Condições de possibilidade
Tim Ingold (2005), num artigo
55
que discute os diferentes modos através dos quais nos
movimentamos (e, por conseguinte, nos orientamos) em territórios conhecidos e
desconhecidos, dá bem a entender essa transformação que o conceito de lugar sofre no
interior de uma matriz de movimento. De acordo com o autor, o nosso senso de localização
decorre menos do estabelecimento de relações entre posições específicas num sistema de
coordenadas do que da possibilidade de acessar um conjunto de lembranças. Sabemos onde
estamos (e, por conseguinte, para onde ir e como ir) não porque utilizamos algum tipo de
mapa, mas porque recorremos a um contexto histórico-narrativo, construído a partir das
inúmeras jornadas efetuadas anteriormente. Para Ingold, “os lugares não têm posições e sim
histórias” (INGOLD, 2005, p.77).
(...) todo lugar guarda dentro de si lembranças de chegadas e partidas
anteriores, assim como expectativas de como uma pessoa pode chegar a
ele, ou de como chegar a outros lugares a partir dele. Assim, lugares
envolvem a passagem do tempo: não são do passado, nem do presente, e
nem do futuro, mas todos os três unidos em um só. Eternamente gerados
pelas idas e vindas dos seus habitantes, figuram não como posições no
espaço, mas como vórtices específicos numa corrente de movimento, de
inúmeras jornadas realmente efetuadas. (INGOLD, 2005, p.101)
Nesse sentido, os deslocamentos anteriores aparecem como uma das principais
condições de possibilidade para as empresas individuais e familiares: é seguindo os passos de
seus ancestrais e/ou as orientações daqueles que partiram antes, que o migrante constrói o seu
próprio caminho. Além disso, conforme destaca Thomson, “nas narrativas dos migrantes, as
redes de sociabilidade o mostradas como um aspecto crucial da experiência da migração”
(THOMSON, 2002, p.346). É por meio dessas redes que o compartilhamento de informações
e saberes “recapitulação das jornadas anteriormente efetuadas”, nas palavras de Ingold se
55
INGOLD, Tim. Jornada ao longo de um caminho de vida – mapas, descobridor-caminho (wayfinder) e
navegação. In: Religião & Sociedade. Rio de Janeiro, 25 (1): 76-110, 2005.
104
viabiliza; também é por meio delas que o migrante recebe todo o tipo de apoio indispensável a
sua jornada (as redes de sociabilidade, sob essa perspectiva, transfiguram-se em redes de
solidariedade).
No que concerne aos eventos migratórios considerados na presente investigação, pode-
se afirmar que, de fato, os deslocamentos anteriores e o auxílio de amigos e parentes (redes
de solidariedade) foram suas principais condições de possibilidades. A posse de bens
materiais ou uma situação financeira favorável não se constituíram em pré-requisitos à saída -
o que parece óbvio, uma vez que, na maioria dos casos, foram justamente elas os horizontes
almejados. Em alguns casos, inclusive, esse componente material acabou sendo reduzido ao
extremo, ao mínimo indispensável.
Por exemplo, quando saem do interior de Santa Catarina, os pais de Angela carregam
consigo, além dos filhos, “um saco de panelas e um saco de roupas”. Vêm tentar a vida na
cidade grande contando apenas uns com os outros, seguindo os passos daqueles que vieram
antes. Angela conta que durante os primeiros meses em Porto Alegre, a família ficou morando
“nos fundos” da casa de sua madrinha (irmã da mãe também retirante). Quando as
condições materiais para a existência se tornam escassas, é na solidariedade alheia que
encontram apoio, sustento. E nessas horas, pequenos gestos adquirem relevo; marcam suas
trajetórias transformando determinados acontecimentos ou objetos em signos de superação.
No seguinte relato, quando conta sobre sua segunda saída de Cachoeira do Sul (já casado),
seu Paulo deixa entrever alguns desses elementos:
(...) s resolvemos vir embora para Porto Alegre tentar a vida, né? (...) Mas aí, nós sem
nada... viemos só com a roupa do corpo, como dizem, né? Era frio... ea minha tia me deu
um cobertor, um acolchoado daqueles que... tem uma que cai, uma que desfia e cai...
fica aquele colchão assim [gesticula mostrando o formato com as mãos], tipo, aquelas pontas
maiores e não fica nada no meio, sabe? Aquele ali eu tenho até hoje. a gente deitava no
chão e se enrolava (...).
Nessa época seu Paulo e a esposa moravam no galpão de uma obra. A importância que
assume esse cobertor, esse pequeno gesto de solidariedade, na história de suas vidas é algo
difícil, talvez impossível de avaliar. Para se ter uma idéia, quando os estive entrevistando
individualmente, sua esposa me contou a mesma história; isto é, escolheu entre inúmeras
possibilidades justamente essa lembrança em particular. Um passado importante que, assim
como o objeto a que se refere, encontra-se guardado ainda hoje.
Em outros casos, ainda que não possam ser considerados pré-requisitos fundamentais,
pequenas quantias em dinheiro viabilizaram a saída (compra de passagens) e garantiram o
105
sustento durante os primeiros dias longe de casa. Seu Luiz e seu Osvaldo contam que usaram
pequenas “poupanças” quando de suas saídas:
(...)Então, ele [refere-se a um espanhol amigo seu], na época, quando eu trabalhei numa
firma, ele fez eu fazer uma poupança e eu nunca tirei... e eu nem me lembrava que tinha(...).
E naquele dia [refere-se ao dia que decidiu partir] eu lembrei que tinha aquele dinheiro
que eu tinha esquecido(...). (Luiz Armando)
(...) e eu também [aponta para seu Luiz], tinha um dinheirinho, que eu tinha trabalhado na
cooperativa, lá... lavando porco, para eles matar, né? E eu trabalhei uns seis meses, recebi
aquele dinheirinho... Tava na carteira de um banco, lá... que era carteira de menor [ de
idade]. Ficou aquele dinheirinho lá (...). (Osvaldo)
Esses valores, contudo, apenas ‘facilitaram’ as coisas; a ajuda de parentes e amigos
foram, de fato, as condições de possibilidade principais em suas trajetórias: seu Luiz sai de
Uruguaiana e vai morar com um primo; seu Osvaldo, chegando à Porto Alegre, encontra
acolhida na casa de um tio. Os deslocamentos anteriores, isto é, a presença de familiares e
amigos “espalhados” pelo mundo, adquire nessas circunstâncias um valor inestimável àqueles
que iniciam suas caminhadas: garantem-lhes não apenas um apoio material (lugar para ficar,
comida, etc.), mas também o acesso a informações e saberes. Aquele que migra, faz-lo no
interior de um contexto histórico narrativo construído a partir dos deslocamentos efetuados
anteriormente. Afinal, seja seguindo os passos de seus ancestrais, seja “abrindo” uma nova
picada, o migrante sempre constrói saberes ao longo de sua jornada; saberes que acabam
orientando jornadas subseqüentes.
Alistair Thomson, quando se refere ao trabalho de Isabelle Bertaux-Wiame, conta que
nas migrações das províncias francesas para Paris, ocorridas no período entre guerras, o
“caminho migratório” era iniciado por alguns indivíduos de uma determinada região e depois
promovido entre velhos amigos, vizinhos e familiares (THOMSON, 2002). “Promover”, nesse
sentido, implica fornecer informações e realizar a mediação entre aqueles que vêm e aqueles
que estão. A presença de um interlocutor aquele que migrou antes no futuro local de
destino viabiliza, inclusive, decisões de partidas mais radicais: por exemplo, aquelas
antecedidas pela venda de todos os bens materiais que não podem ser carregados. Nessas
circunstâncias, a partir das informações recebidas e da articulação de quem migrou antes, a
decisão da saída é operada no interior de um “quadro referencial” que permite avaliar melhor
os riscos e as possibilidades, ou seja, garante aos migrantes maior segurança. É dessa forma
que a família da Maria Clair sai de Candelária:
(...) Bom, eu lembro assim, que o meu pai tinha arrumado o emprego, já tava até
trabalhando, como eu falei, e eles tavam vendendo as terras, que ele tinha bastante terra,
106
ele plantava lá, ele e a minha mãe, né? Mais um outro tio meu... Eu lembro assim, que a
gente veio e... tava tudo decido. A gente vendeu tudo e veio embora (...).
A saída em “definitivo” de “lá” somente se após a materialização de um emprego
“aqui” - tudo arranjado por intermédio de um primo (do pai) que tempos havia
empreendido junto da família a mesma jornada. É interessante perceber que a radicalidade da
escolha reside justamente na sua relativa irreversibilidade, isto é, o migrante que parte nessas
condições acaba por se destituir, além dos bens matérias, também de um lugar para onde
voltar. Por outro lado, pelo que foi possível apreender em suas histórias, até mesmo nessas
circunstâncias o processo migratório se caracteriza pelas constantes idas e vindas: se não
para onde voltar, ao menos, há sempre para quem voltar.
Relacionado ao que acaba de ser dito, faz-se necessário ressaltar ainda que essas redes
de solidariedade e transmissão de informações se estabelecem predominantemente entre
parentes; somente num segundo plano é que envolvem amigos (preferencialmente, vizinhos).
Foi assim em todos os casos relatados. Tios, tias, primos, irmãos e irmãs, a partir dos seus
deslocamentos, abrem caminhos para aqueles que vêm depois. Todos os eventos migratórios
considerados nesse estudo foram antecedidos e sucedidos por deslocamentos de familiares.
Nesse sentido, a “promoção” de que nos fala Thomson também remete ao desejo de trazer
para perto de si aqueles que estão longe. E talvez não apenas ao desejo, mas também à
necessidade. É daí que deriva a idéia, postulada por John Bodnar
56
, do migrante como uma
pessoa “transplantada” ao invés de “desenraizada”. De acordo com Thomson (2002), o
trabalho de Bodnar revelou como as estratégias de sobrevivência centradas na família e na
comunidade foram fundamentais às comunidades migrantes nos Estados Unidos no final do
século XIX e início do século XX (THOMSON, 2002). Diferente de um “desenraizamento”,
neste caso, o migrante leva com sigo um pouco da sua “terra”: procura recriar (através da
promoção de um “caminho migratório”), no lugar de destino, parte do contexto relacional
vivenciado no lugar de origem. “Traz” aquelas pessoas que lhe são mais caras, sem as quais
dificilmente poderia suportar a radicalidade da mudança. O seguinte relato de seu Luiz, bem
traduz essa dinâmica:
(...) Bom, a princípio, bem antes de mim, eu era nenenzinho de colo, uma das minhas irmãs
mais velhas casou e veio para Porto Alegre. (...) morava pra cá, antes que a minha irmã
ou quase junto com ela esse meu falecido primo... que eu vim e morei na casa dele aqui em
Esteio. (...) Então eu sai, como eu lhe falei, na época, em agosto de 1983 [com dezessete anos
de idade], de Uruguaiana para cá, eu vim sozinho, vim eu, mas quando eu saí de eu saí
56
apud THOMSON, A. Histórias (co)movedoras: História Oral e estudos de migração. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.22, n°44, p.346/347.
107
com um propósito: “eu vou embora mãe, vou arrumar um canto para mim e mando te buscar
e se as manas quiserem ir, vão para comigo”. Esse foi o meu propósito. Então eu vim,
trabalhei seis meses para fazer uma casa no terreno do meu primo, que ele me cedeu... que é
na rua ali, onde mora a Maria Clair... E aí, seis meses eu mandei buscar a mãe. Então, fazia
seis meses que eu morava aqui, que eu tava trabalhando, eu fiz uma ‘meia-água’ no terreno
dele, botei água, botei luz... ele me cedeu para morar, na época... mandei buscar a minha
mãe, as minhas duas irmãs, dois sobrinhos, que hoje em dia já são homens adultos... a minha
irmã estava grávida, a mais nova a menina dela nasceu aqui -, e um irmão de criação que
veio junto com a minha mãe. Então, em seis meses, eu trouxe todo esse povo para cá (...).
Seja nos objetos que carrega, seja na companhia e convívio de outras pessoas, parentes
e amigos queridos, aquele que migra leva consigo um pouco do lugar de onde vem.
“Transplanta-se”, pois, ao invés de se “desenraizar”. Seguindo caminhos já trilhados ou
“abrindo” novas picadas, constrói saberes e se insere numa rede de
sociabilidade/solidariedade que é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade para o seu
deslocamento e resultado dele.
Itinerários (de vida)
Os caminhos percorridos ao longo do processo migratório, desde a saída do lugar de
origem até um reassentamento mais estável (de onde se projetarão, talvez, os filhos do
migrante), refletem um pouco das motivações que estivaram por trás da decisão de partir.
Assim, aqueles que partem motivados pelo desejo de conhecerem o mundo, ampliarem seus
horizontes, tendem a percorrerem caminhos mais longos e entrecortados do que aqueles que
migram para concluir seus estudos ou fascinados por um imaginário cultural específico. Por
outro lado, os caminhos percorridos são também os resultados de um processo, até certo
ponto, contingente: independente das motivações iniciais, alguns caminhos podem acabar se
tornando mais ou menos longos e entrecortados em função de acontecimentos particulares
durante os seus percursos. É nesse sentido, por exemplo, que a fuga de casa do jovem
Osvaldo acaba se transformando numa longa jornada: respondendo às solicitações do
presente, o jovem segue de um lugar para o outro e vai crescendo; casa-se, tem filhos (filhas),
netos, e segue em frente até chegar à Esteio. No total, seu Osvaldo passa por nove localidades
diferentes ao longo do seu percurso. É também nesse sentido que, de modo inverso, o desejo
de conhecer o mundo, ou melhor, a pré-disposição ao movimento expressa por seu Luiz acaba
resumida a um único deslocamento, de Uruguaiana para Esteio. Seus planos de seguir adiante
(sua ida para o Acre) são modificados em função do casamento. Mudança de planos,
ampliações ou reduções dos percursos que se dão ao longo dos próprios percursos. Itinerários
108
de vida através dos quais os migrantes se constituem enquanto migrantes, mas também
enquanto sujeitos: sujeitos do próprio caminho e sujeitos ao próprio caminho.
Os caminhos percorridos são também caminhos pré-corridos. De fato, conforme
destacado anteriormente, aquele que migra também o faz seguindo os passos de seus
ancestrais ou, mais simplesmente, daqueles que lhe antecederam. Nessas circunstâncias, os
deslocamentos se dão no interior de um contexto narrativo, isto é, no interior de um quadro de
pequenas referências construído a partir das histórias desses migrantes “pioneiros”. Assim, os
itinerários de vida se constroem sempre sobre territórios mais ou menos conhecidos (ainda
que fisicamente desconhecidos), num esquema onde “todo lugar guarda dentro de si
lembranças de chegadas e partidas anteriores, assim como expectativas de como uma pessoa
pode chegar até ele, ou de como chegar a outros lugares a partir dele” (INGOLD, 2005,
p.101). Seu Osvaldo, que se muda para Esteio somente em 1983, conta que começou a
conhecer a cidade bem antes:
(...)Daí eu comecei a conhecer Esteio lá pelo La Salle [refere-se ao colégio]; nós íamos jogar
futebol de salão no La Salle e Esteio terminava por ali... era a parada oito, lá por 1966 (...).
Enquanto seu Osvaldo constrói parte de seu itinerário no interior de um quadro
referencial composto por lembranças próprias, seu Paulo o faz contando apenas com as
indicações e referências de amigos:
(...)Eu nunca tinha vindo à Esteio, mas uns amigos meus falavam: agora ta abrindo um
loteamento lá... financiado, assim, assim...” Também quando eu adquiri... eu vim no escuro...
não sabia nada... Claro que a gente já tinha algumas recomendações, uma imagem da
cidade... porque a gente sempre ouvia falar (...).
Outra característica dos itinerários de migração são as constantes idas e vindas: os
lugares por onde passaram e a possibilidade de retorno são presenças constantes na vida dos
migrantes. Assim, às idas corresponderiam momentos expansivos, enquanto às vindas,
momentos de retração. De um modo geral, tende-se a representar a migração como um
processo predominantemente expansivo; relega-se a um segundo plano sua dimensão de
retração. Contudo, conforme revelam os itinerários dos sujeitos entrevistados, o retorno é um
elemento tão importante quanto à saída; arriscar-me-ia inclusive a dizer que são momentos
complementares de um mesmo processo. O retorno somente emerge como possibilidade após
a partida. Dessa forma, toda a partida comporta, em algum nível, a possibilidade de retorno;
inaugura-o como signo de uma ausência (que se manifesta através das saudades). A dialética
expansão-retração, nesse sentido, representa bem a dinâmica dos movimentos empreendidos
pelos sujeitos entrevistados enquanto desenham seus itinerários de vida. O retorno físico ao
109
lugar de origem correspondeu, de fato, a momentos de retração, isto é, de incerteza, crise,
falta na vida dos migrantes. Seu Paulo, por exemplo, ao longo de sua caminhada (uma das
mais longas e entrecortadas de todas), retorna duas vezes à Cachoeira do Sul: na primeira,
quatro anos longe dos familiares, volta à terra natal após um desentendimento com a então
namorada em Belém do Pará; na segunda, junto da esposa, com um filho nos braços e outro a
caminho, recorre ao lugar de origem novamente após quatro anos longe dos “seus”. De modo
semelhante, Maria Santa e o marido, após se radicarem em Esteio, partem e retornam duas
vezes à cidade; nas duas o retorno é condicionado pelo fracasso da tentativa (dificuldades
financeiras). Nessas circunstâncias, por vezes, o retorno pode representar para o migrante uma
derrota. É um retorno possível, mas indesejado. Por outro lado, nem sempre a metáfora
expansão-retração encontra correspondência com o que de fato ocorre. Em alguns casos, ao
que parece, o retorno à terra natal representa o próprio ápice de um processo expansivo
circular, que termina no mesmo lugar onde foi iniciado. Assim, ao invés de representar uma
derrota ou evidenciar algum tipo de fraqueza, o retorno assume um caráter de conquista. É
como se fosse a coroação ou o prêmio ao final de um longo caminho. Num dos excertos
apresentados anteriormente, seu Manuel revela que somente não voltou à Mostardas, para não
dar “o gosto” ao avô. Naquele momento, o retorno teria confirmado as expectativas do avô
assumindo um caráter de derrota para o neto. Contudo, uma vez vencidas as dificuldades
iniciais e a batalha ao longo dos anos subseqüentes, o retorno assume, para seu Manoel, outro
significado:
Na hora que eu me aposentar, quando eu parar, a primeira coisa que eu vou fazer é ir
embora para ‘fora’... É o meu sonho de consumo...
Um regresso que se faz prosseguir ou, nas palavras de Bachelard, que acontece “de
acordo com o grande ritmo da vida humana, ritmo que atravessa os anos, que luta pelo sonho
contra todas as ausências” (BACHELARD, 1993, p.111). Regressos que, assim como os
progressos, constituem aquilo a que temos nos referido por itinerários de vida ou, de modo
mais simples, por caminhos. E é ao longo desses caminhos, mais ou menos longos, mais ou
menos entrecortados, entre idas e vindas, que a vida do migrante se faz. Caminho contingente,
impreciso, incompleto, esconde-se sob os pés daquele que erra, exigindo-lhe sua constante
(re)descoberta. Afinal,
(...) todo ser vivo cresce e se estende no ambiente através da soma de seus
caminhos. Descobrir o caminho é avançar de acordo com uma linha de
crescimento, num mundo cuja configuração não é exatamente a mesma de
110
um momento para outro, e cuja configuração futura não pode ser
completamente prevista. Caminhos de vida não são, então, predeterminados
como rotas a serem seguidas, mas têm que ser continuamente elaborados
sob nova forma. E esses caminhos, antes de serem inscritos sobre a
superfície de um mundo inanimado, são os muitos fios a partir dos quais o
mundo vivo é tecido. (INGOLD, 2005, p.107/108)
‘Natureza’ do lugar de destino
A partir das idéias apresentadas acima e que evidenciam a natureza “dinâmica” dos
itinerários de homens e mulheres migrantes, pode-se questionar a noção de um lugar de
destino. Não faria sentido, por exemplo, considerar a existência de um ponto final pré-
determinado ou mesmo de um ponto final uma vez que, assim como o retorno, a possibilidade
de novas partidas acompanha os migrantes por toda a sua existência sendo, inclusive,
transmitidas às gerações posteriores como um signo da experiência da migração. De fato, a
idéia que se pretende evocar a partir da utilização dessa expressão é outra. Primeiramente, o
lugar de destino é aqui definido em oposição ao lugar de origem. Quando partem, homens e
mulheres migrantes deixam um lugar e se direcionam a outro. Esse direcionamento, conforme
descrito acima, dá-se através das redes de sociabilidade/solidariedade e, na maioria dos casos,
“recriando” jornadas anteriormente efetuadas; pode incluir um número considerável de pontos
intermediários e, inevitavelmente, está sujeito a modificações ao longo do caminho. O lugar
de destino, sob essa perspectiva, é qualquer lugar ao longo de um caminho de vida. Num
itinerário mais longo e entrecortado, por exemplo, poderíamos falar no primeiro destino,
segundo destino, terceiro destino... Essa definição procura ressaltar a dinamicidade do
processo da migração e a natureza simultaneamente contingente e arbitrária (não fatalista) do
lugar de destino. Além dela, uma segunda, mais específica procura delimitar no tempo a
noção de lugar de destino. Dessa forma, conquanto a idéia de “direcionamento” remeta a um
tempo futuro e a de “qualquer lugar ao longo de um caminho de vida” considere também o
passado, o que nos interessa quando utilizamos a expressão lugar de destino é localizar, no
interior de uma matriz de movimento mais ampla, a posição atual (e não necessariamente
final) daquele que migra. Em termos práticos, portanto, o lugar de destino corresponde ao
espaço de vida atual daqueles que migram.
O espaço de vida atual dos homens e mulheres entrevistados é também um espaço de
vida compartilhado. Por caminhos e itinerários distintos, em tempos e ritmos diversos, todos
111
os participantes da presente pesquisa acabaram se encontrando num mesmo lugar, um lugar
de destino. Para alguns, como Seu Paulo e seu Osvaldo, apenas mais um lugar para o qual se
dirigiram ao longo de suas jornadas; para outros, como seu Luiz, Angela e Márcia, o primeiro
e único até então na história dos seus deslocamentos. Enquanto lugar de destino, isto é, numa
comparação direta com seus lugares de origem, a cidade de Esteio pode ser caracterizada pela
sua urbanidade; uma urbanidade que, neste caso, remete não apenas aos modos de vida
vigentes, mas também às suas características estruturais e demográficas
57
. Além disso, a
urbanidade do lugar de destino é dada também (e talvez principalmente) em função de sua
localização no interior de uma região
58
mais abrangente a região metropolitana de Porto
Alegre. Nesse sentido, a comparação direta entre os lugares de origem e o lugar de destino,
quanto a sua ‘natureza’ corrobora a hipótese da existência de uma direção predominante em
seus deslocamentos ligando um ambiente (modo de vida) rural a um (ambiente modo de vida)
urbano, com sentido predominante daquele para este.
Essa caracterização, entretanto, fundamentada em dados objetivos, apenas deixa
entrever os significados que o lugar de destino, em relação ao lugar de origem, assume para os
seus sujeitos. Sim, o lugar de destino, antes de tudo é um lugar ativamente construído. Daí
falar-se em sujeitos ao invés de habitantes. Para o migrante, o lugar de destino, antes de se
tornar espaço de vida, habitat, é uma escolha a ser feita. Nesse sentido, assim como foi feito
em relação aos lugares de origem e para compreendê-lo enquanto processo, faz-se necessário
mergulhar mais fundo nas experiências de vida daqueles seus sujeitos; averiguar os desejos
por traz das escolhas e os critérios que as orientaram; enfim, procurar compreender os
significados que o atual espaço de vida assume para os homens e mulheres, seus atuais
habitantes.
De um modo geral, pode-se dizer que por trás da escolha de um lugar de destino, ou
melhor, de um próximo lugar ao longo de um caminho de vida existe, mais ou menos velado,
um desejo sincero de (re)assentamento (ainda que provisório). Exceto naqueles casos em que
a migração é motivada por um desejo de conhecer o mundo, aquele que migra direciona-se a
57
Como exemplo de características estruturais, pode-se citar o abastecimento de água (em 2000, 95,24% de
domicílios com acesso à rede geral) e o serviço de coleta de lixo (em 1991, 94,39% de domicílios atendidos).
Quanto aos dados demográficos, de um total de 80.048 habitantes no ano 2000, apenas 87 compunham a
população rural. (Fonte: METEROPLAN Disponível em
<http://www.metroplan.rs.gov.br/mapas_estatisticas/au_rmpa.htm> Acesso em 02/09/2006).
58
A partir dos estudos de Casey, Tim Ingold (2005) define a região como uma rede de movimento entre lugares.
112
um outro lugar para habitá-lo, torná-lo habitat
59
. A escolha de um lugar de destino, dessa
forma, dá-se a partir de critérios bastante específicos e particulares, que refletem em parte os
desejos e necessidades daqueles seus sujeitos. No que concerne aos eventos migratórios
considerados, a escolha da cidade de Esteio enquanto lugar de destino parece ter sido
operada, principalmente, em função das redes de sociabilidade, das características próprias
do município (físicas, estruturais, econômicas, etc.) e da possibilidade/facilidade de acesso a
um terreno e/ou casa próprios.
Seu Osvaldo, que muito andou antes de radicar-se em Esteio, relata que a escolha da
cidade se deu predominantemente em função do seu círculo de amizades:
(...) Bem, a minha vinda para Esteio... escolha para me radicar em Esteio, prendeu-se ao fato
de que eu trabalhava na siderúrgica em Sapucaia antes de eu vir para cá... e os meus
colegas, noventa por cento deles, moravam aqui em Esteio. E nós fizemos um... um
clubezinho de futebol de salão... Então, semanalmente (...) nós fazíamos uma partida (...).
Então... a gente começou a se habituar com o sistema aqui de Esteio, né?(...)
Além da existência de uma rede de sociabilidade pré-estabelecida, seu Osvaldo
também conta que algumas características, não apenas do município como um todo em
relação aos municípios vizinhos, mas também específicas aos bairros ou às ruas de moradia,
foram decisivas para sua escolha:
E quando eu vim de fora pela segunda vez, já tava casado, para me radicar em algum lugar...
primeiro lugar, eu vim para Sapucaia e em Sapucaia não deu certo. Comprei uma casa
(...) e quando eu vi tava no meio de um bando lá, né? viemos para [refere-se à Esteio],
compramos uma casa na rua que o Paulo mora, 325... (...)também nos demos mal... que a
casa era geminada... então o meu lado dava para a porta da outra casa lá, e era um centro
de umbanda. (...)Aí, viemos ligeiro parar aqui, na... onde eu moro agora (...).
É importante ressaltar que este processo de constituição de um lugar de destino não
ocorre de uma hora para outra; pelo contrário, na maioria dos casos dá-se em etapas, a partir
de uma aproximação sucessiva. Também é importante ter em mente que a maior parte dos
entrevistados chega a esta região da cidade no início da década de oitenta, isto é, num estágio
ainda inicial do seu processo de ocupação. Dessa forma, as características próprias do
município que “atraíram” esses migrantes nem sempre correspondem às atuais. Por exemplo,
aproximadamente 30 anos atrás, a região da cidade na qual vivem atualmente
caracterizava-se pelo relativo isolamento. Nessa época, inclusive, era comum a utilização da
expressão “Esteio interior” para se referir a ela. Um lugar “tranqüilo”, com “ares
59
“Mas, num mundo do movimento, a realidade e a noção de residência (...) do homem não se esvaem. O
homem mora talvez menos, ou mora muito menos tempo, mas ele mora: mesmo que ele seja desempregado ou
migrante.” (SANTOS, 2006, p.328)
113
interioranos”, então, foi o que atraiu alguns dos sujeitos entrevistados. Ao longo de sua
narrativa, seu Luiz faz referência a esse lugar:
(...) eu queria ficar num lugar, assim, meio “interiorano” como era... que nem era
Uruguaiana, uma cidade mais tranqüila, mais pacata. Foi o que me trouxe... e o apoio que eu
sabia que ia ter dele [refere-se ao primo]aqui, né?
Um lugar como a terra natal e um apoio como o do lugar de origem. O lugar de
destino, em alguma medida, se o entendemos como uma escolha, procura também recriar o
lugar de origem. Note-se que os “ares interioranossobre os quais fala seu Luiz estabelecem
uma correspondência direta com a terra natal, conectando diferentes tempos e espaços. Em
alguma medida, evidenciam uma dimensão de fatalidade presente no caminho daquele que
migra: o eterno retorno ao lugar de origem. Mesmo que fisicamente não retorne jamais à terra
natal, o migrante o faz eternamente” em seus sonhos e pensamentos. Esse eterno retorno”,
conforme será visto a seguir, é um dos elementos presentes no processo de (re)construção do
espaço, pelo menos conforme ele pôde ser apreendido através das narrativas analisadas.
Um outro aspecto, enfim, relacionado à escolha de (ou, ao direcionamento a) um
determinado lugar, refere-se ao acesso à terra. Conforme destacado acima, paradoxalmente,
aquele que se movimenta, muitas vezes, deseja justamente o (re)assentamento, o repouso
(idealmente em melhores condições do que as experimentadas nos lugares de onde saíram).
Entre os entrevistados, ao que parece, o principal fator de “atração” responsável pelo seu
direcionamento à cidade foi justamente a possibilidade de adquirirem um terreno e/ou casa
próprios, isto é, (re)assentarem-se de forma mais definitiva e estruturada. E, se não foi
determinante para os seus direcionamentos, pelo menos o foi para a suas permanências na
cidade. O acesso à terra nesta região da cidade pode ser considerado, inclusive, um dos
principais fatores motivadores não da permanência como também da transformação do
lugar de destino em derradeiro lugar de destino. Assim seu Paulo conta sobre suas
motivações e chegada em Esteio:
(...) Quando eu tava em Canoas, nós morávamos lá, mas de aluguel, né? E aí, a última casa
que nós estivemos lá... um casal, muito bom para nós... e eles sempre diziam que nós
saíamos de quando fosse para a nossa casa. Então... que Deus o tenha... o velhinho
morreu. Mas cumpriu-se o que ele falou, né? E, realmente, por isso que eu vim parar aqui em
Esteio. Nós adquirimos a casa que era nossa, paramos de pagar aluguel. Pagamos aluguel
durante muitos anos (...).
A liberdade conquistada em decorrência da aquisição da casa própria, paradoxalmente,
“prende” à terra, ou melhor, possibilita o enraizamento. Em alguns casos, talvez seja possível
dizer que o vínculo material com o lugar, estabelecido por meio da compra de um terreno e/ou
114
casa, é o ponto de partida para sua significação ‘positiva’. Em outras palavras, em algumas
situações talvez não seja o estabelecimento de uma relação positiva com o lugar que
condicione a aquisição dos imóveis, mas justamente o contrário, isto é, a aquisição de
imóveis, em alguma medida, condiciona o estabelecimento de uma relação ‘positiva’ com o
lugar. Seja como for, o importante de se reter nessa relação é que atualmente os migrantes
entrevistados experimentam um (re)assentamento estável na cidade (todos vivem em casas
próprias), em alguns casos, inclusive, mais duradouro do que aquele vivenciado em suas
terras natais. Seu Osvaldo, assim se refere à aquisição de suas casas:
(...) Estamos aqui... aqui eu adquiri a minha casa própria. Consegui mais uma casa para a
minha filha. O meu filho está comprando uma casa também... Quer dizer, a gente ta
crescendo, ta se colocando, ta sendo aquilo que a gente planificou, né?Então, o meu
segundo... a minha segunda cidade é Esteio(...).
Um próximo lugar que por motivos diversos, circunstanciais, acaba se tornando um
lugar de destino; lugar para onde se dirigem e projetam seus sonhos, desejos. Uma cidade
“tranqüila”, “pacata”, localizada próximo a um grande centro urbano e que, aos poucos,
devido às conquistas e aquisições, ao estabelecimento de redes de sociabilidade e
solidariedade, enfim, a um processo de reconstrução do espaço que o significa positivamente,
vai se tornando também, o derradeiro lugar de destino.
***
O processo da migração, conforme procurou ser caracterizado acima, revela-se
significativamente mais complexo do que um mero deslocamento físico entre lugares.
Primeiramente ele envolve um lugar de origem que é muito mais do que um mero local de
partida: é o espaço de vida significado, conhecido, a partir do qual o migrante se projeta para
o futuro mesmo antes de iniciar seu movimento; é também o lugar para onde retorna,
inevitavelmente, durante o resto de sua jornada. A partida, nessas circunstâncias, envolve
perda e destruição de referenciais, separações, distanciamentos; envolve, pois, o
“desfiamento” e a necessária “retecitura” das redes de sociabilidade.
Em segundo lugar, para além das motivações de natureza econômica, a decisão de
partir se no interior de um conjunto mais amplo de atravessamentos: entram em “jogo” os
imaginários culturais sobre os lugares de destino e os desejos alternativos àqueles meramente
econômicos, como por exemplo, o desejo de estudar ou “ampliar horizontes”. Também
aquelas motivações situadas no plano das presenças, isto é, aquelas coisas das quais se deseja
115
fugir (ao invés de buscar) como a violência, por exemplo -, concorrem para a tomada dessa
decisão.
No que concerne às condições de possibilidade para as empresas individuais e
familiares, as redes de sociabilidade (que se tornam, nessas circunstâncias, redes de
solidariedade) e os deslocamentos anteriores, parecem ser as mais importantes. De um modo
geral, aquele que migra segue os passos de amigos ou parentes; insere-se numa rede de
sociabilidade/solidariedade através da qual recebe não apenas informações valiosas a sua
empreitada, como também todo o tipo de apoio necessário. Ao mesmo tempo, enquanto trilha
um caminho percorrido, “abre” novas picadas e constrói saberes que acabarão orientando a
vinda de outros e outras. Nesse processo, o que se percebe é que muitas vezes o migrante não
apenas disponibiliza os seus saberes e a sua ajuda àqueles que desejam seguir o seu caminho,
mas também o promove ativamente entre amigos e familiares; em alguma medida, procura
recriar (e de fato consegue) no lugar de destino parte do contexto relacional vivenciado no
lugar de origem. É em função disso que a metáfora do “transplante”, ao invés do
“desenraizamento”, talvez represente melhor a experiência daquele que migra.
Constituindo um próximo ponto de análise, os itinerários da migração, mais do que
meras rotas pré-determinadas, constituem-se para os migrantes apenas ao longo de suas
jornadas. Ativamente construídos pelos seus sujeitos, esses itinerários respondem
simultaneamente a desejos e a necessidades; transformam-se e se reajustam em função das
solicitações do presente, das lembranças do passado e das imagens de um futuro.
Caracterizam-se também pelas constantes idas e vindas; não apenas aquelas físicas,
interligando lugares novos a lugares conhecidos, mas principalmente aquelas mnêmicas,
evocadas constantemente ao longo de seus caminhos.
Por fim, o lugar de destino, antes de representar um ponto final ao longo de uma
jornada de vida, ou ainda, um ponto final pré-determinado, é ativamente construído assim
como o são os itinerários de vida: ainda que não possa ser considerado o resultado exclusivo
dela, envolve sempre alguma parcela de escolha, de ação dos sujeitos sobre os seus próprios
caminhos. Representando a posição atual dos migrantes no interior de uma matriz de
movimento mais ampla, a qual Ingold (2005) denomina região, o lugar de destino também
responde a alguns desejos daqueles seus sujeitos. Concorrem para a sua escolha, portanto, a
presença e a extensão das redes de sociabilidade/solidariedade, suas características estruturais
básicas e também aquelas características que, de alguma maneira, evocam lembranças dos
lugares de origem. Nesse sentido, retoma-se o desejo de recriar no lugar de destino algumas
das instâncias vivenciadas nos lugares de origem: desta vez não o contexto relacional, mas
116
alguns elementos da própria paisagem. Poder-se-ia dizer, talvez, que o destino do migrante é
o eterno retorno ao lugar de origem, à terra natal que procura ser reconstruída a cada ponto do
seu caminho. Ou talvez, de forma complementar, que o seu destino é a eterna migração, o
deslocamento de um lugar para outros e destes, sempre de volta aos lugares por onde passou.
Um processo que se faz experiência; uma experiência que se faz processo. Duas
dimensões de um mesmo fenômeno e que, por isso mesmo, dificilmente podem ser tratadas,
consideradas, separadamente. Daí talvez seu constante e inevitável entrelaçamento nas linhas
anteriores; daí também seu constante e inevitável entrelaçamento nas linhas que seguem.
A experiência da migração (mais algumas considerações)
A experiência da migração, para os sujeitos entrevistados, aparece como parte
constitutiva de suas vidas; em alguns casos, inclusive, como parte constitutiva de suas
próprias personalidades. A decisão de deixar a família, a terra natal é interpretada pelo
migrante como uma decisão pessoal. A despeito das pressões externas, das estruturas e
conjunturas mais ou menos determinantes, a decisão de partir é, em última análise, uma
decisão pessoal. E é assim que o migrante interpreta sua saída. Ele sai porque escolheu sair. E
se a escolha foi sua, é a si mesmo que cabem as responsabilidades por significar
positivamente sua jornada. Se o migrante experimentasse a saída de modo diferente, como o
resultado inexorável das pressões externas, isto é, como uma imposição e não como uma
escolha, talvez não se preocupasse tanto em tornar positiva sua experiências, em se identificar
com elas.
Parte-se, dessa forma, rumo ao desconhecido (nem tão desconhecido assim) certo de
que todos os desdobramentos possíveis dessa atitude serão responsabilidades próprias. Por
isso a lembrança sempre resignificada; por isso a manutenção do mito mesmo quando a
frustração os desfaz. Aquele que migra carrega consigo as dores e as glórias do seu
empreendimento; ou melhor, transforma suas dores em glórias num processo contínuo de
(re)contar histórias. É nesse sentido que Thomson irá dizer que,
Além de obter apoio para uma causa, os narradores desses projetos podem
conseguir benefícios terapêuticos e confirmação pública contando suas
histórias. Dessa forma, o processo de “dar testemunho”— dos migrantes,
refugiados e de outras vítimas de opressão social e política capacita os
narradores individuais e pode gerar o reconhecimento público de
experiências coletivas que têm sido ignoradas ou silenciadas. A história oral
pode proporcionar uma afirmação positiva de identidade para o narrador,
117
para os membros de uma comunidade particular e para o mundo fora.
(THOMSON, 2002, p.351)
Esse reconhecimento de que nos fala Thomson também faz parte da experiência da
migração. Ao longo do trabalho com o grupo, conforme explicitado anteriormente, um dos
temas centrais entorno do qual se deu a construção das narrativas (ou mais especificamente, o
relato daquelas lembranças de sofrimento) foi justamente o da superação. O processo da
migração, conforme aparece em suas narrativas, é experimentado como um grande evento de
superação. A condição de vida atual de cada um dos entrevistados, nesse caso, foi o elemento
chave que lhes permitiu falar sobre um passado difícil, de luta e sofrimento. Contudo, é
somente quando consideramos também o contexto de acolhida (ou não) dos seus
depoimentos, isto é, o grupo frente ao qual cada um expôs e buscou reconhecimento para suas
lembranças, é que podemos falar em vidas que se tornam histórias e histórias que se tornam
vida. Em última análise, é somente através da exposição pública e do reconhecimento perante
a um grupo (grupo de pertencimento) que a migração passa a fazer parte, legitimamente, de
suas identidades atuais. A migração enquanto experiência, dessa forma, exige algum tipo de
reconhecimento para que possa emergir e se fazer presente na vida dos seus sujeitos. Ao que
parece, inclusive, esse reconhecimento, essa possibilidade de expressar um passado em
trânsito e compartilhar vivências (relacionadas à migração), não vinham sendo logrados entre
alguns dos participantes:
(...) Na questão da pesquisa, em si, assim... de falar da cidade de Esteio, falar de onde eu vim,
o que me motivou a sair da minha terra... foi muito bom pelo seguinte: esse é o tipo de
assunto que tu não comenta em casa. Por exemplo, tu não senta com um sobrinho teu, com
um amigo, ou até mesmo com a tua esposa e fala esse tipo de assunto... Fala sobre ‘n’ coisas
do dia e na realidade tu não lembra quase nunca de falar das tuas origens; de onde tu saiu,
de como é que tu te criou lá, dos valores que tu aprendeu com as pessoas com que tu te criou
(...). (Luiz Armando)
A fala de seu Luiz evidencia uma necessidade de reconhecimento; uma necessidade de
(re)conciliação com um passado que se faz presente, com uma identidade por construir, em
construção. Ao mesmo tempo, sugere que o espaço de encontro e fala, viabilizado pela
investigação, tenha permitido-lhe avançar nesse sentido. Revela, pois, uma dimensão que a
pesquisa assume para além daquelas previstas e/ou propostas; uma dimensão relacionada aos
processos coletivos através dos quais (re)construímos nossas identidades e através dos quais a
experiência da migração também é feita. Experiências que se fazem histórias (num processo
118
que exige a presença do outro); histórias que se fazem experiências (num processo que
permite a reconstrução do eu).
Em função disso, a experiência da migração se revelou aos poucos ao longo de suas
narrativas: houve toda uma negociação implícita, velada, realizada através de olhares,
expressões, pequenos comentários, antecedendo e acompanhando cada um dos relatos. A
exposição de determinadas lembranças e sua receptividade pelo grupo, em alguma medida,
viabilizaram/estimularam a emergência de um fluxo narrativo na mesma direção. Nesse
sentido, a fala de um não apenas evocou lembranças nos demais, como também os
“autorizou” a falar sobre o mesmo assunto. E assim, num jogo onde se alternaram ocultação e
desvelamento, algumas particularidades relacionadas à experiência da migração se deixaram
apreender.
Uma delas se refere às diferenças observadas entre as narrativas dos homens e das
mulheres. Na revisão que faz dos estudos sobre a migração desenvolvidos desde uma
perspectiva da história oral, Thomson (2002) conta que Isabelle Bertaux-Wiame (1979), em
seu trabalho sobre as migrações no período entre guerras, descobriu que apesar das
motivações econômicas similares, homens e mulheres interpretavam e se punham em
movimento de modos distintos: enquanto os homens movimentavam-se através das redes
familiares em busca de trabalho, as mulheres se movimentavam através do trabalho em busca
de uma família (BERTAUX-WIAME, 1979 apud THOMSON, 2002). No que concerne aos
eventos migratórios considerados, poder-se-ia dizer que as considerações de Bertaux-Wiame
descrevem com precisão o que aconteceu com os homens, contudo não pode ser utilizada para
explicar a dinâmica de movimentação das mulheres. Enquanto os homens entrevistados
partem todos sós (a exceção de um que acompanha a família porque criança), utilizando as
redes familiares para encontrar um emprego e, posteriormente (ao longo de seus caminhos)
constituírem eles próprios uma família, as mulheres que compunham o nosso grupo partem
todas acompanhadas: seja pelos pais (no caso das crianças), seja pelo marido e/ou outros
familiares. Se considerarmos também os deslocamentos dos pais dos entrevistados, é possível
afirmar que as mulheres, na sua grande maioria, partem casadas e muitas vezes também
com filhos. Contudo, seria forçoso e desmerecedor dizer que elas partem acompanhando seus
maridos; ao que pôde ser apreendido, é o casal que parte junto em busca de melhores
condições de vida. Ambos dividem as tarefas domésticas (dividem-nas também com outros
familiares redes de solidariedade) e trabalham nos lugares por onde passam. Ainda
relacionado às diferentes formas através das quais a migração é experimentada por homens e
mulheres, Thomson (2002) destaca que no trabalho de Dorothy Zinn (1994), sobre os
119
migrantes senegaleses em Bari, a afirmação da masculinidade (entendida como busca por
autonomia e crescimento pessoal) aparece como uma das principais motivadoras para as
empresas individuais entre os homens (THOMSON, 2002). Nesse sentido, mesmo
discordando de Zinn quanto a relação entre masculinidade e autonomia, poderíamos dizer que
entre a maior parte dos homens que compunham o nosso grupo a migração foi experimentada,
num primeiro momento, como expressão de uma autonomia crescente, ou pelo menos, de um
desejo de autonomia. Todos os participantes deixaram a casa dos pais jovens e, conforme dito
anteriormente, partiram sós. A migração, nesse sentido, representa para eles um momento
chave nesse processo de auto-afirmação e conquista de autonomia; ao menos de uma forma
mais marcada, mais nítida, do que ocorre com as mulheres.
Um outro recorte possível procura diferenciar as experiências da migração entre os
adultos e as crianças. Entre os integrantes do nosso grupo alguns experimentaram a migração
ainda crianças, acompanhando os pais e outros familiares. Para elas (as crianças) a migração
assume um caráter de fatalidade; não no sentido daquilo que é funesto, mas significando
inevitabilidade. A criança, diferente do adulto, não se envolve com a tomada de decisão para
a partida; de um modo geral, em seus relatos, os preparativos para a saída se lhes apresentam
envoltos numa “nuvem” de mistério:
Eu só sei é que a mãe... o pai, todo o final de semana o pai sumia e a mãe dizia assim: “olha,
ele ta fazendo uma casa pra gente se mudar”. Aí eu lembro que quando a gente veio de Porto
Alegre... a gente subiu num caminhão, andou, andou, andou... não parava mais de andar. Ai
chegamos aqui, né?Num dia de chuva... assim, eu lembro a minha irmã pequena, os outros
irmãos mais velhos ajudando a carregar os negócios (...). (Angela)
Além disso, para a criança, os pontos de partida e de chegada, assim como as
estratégias que adota na (re)construção deste “novo mundo” que é o lugar de destino são
outros em relação aos dos adultos. Enquanto as crianças o (re)constroem fundamentalmente
através da experimentação, através do próprio corpo, num envolvimento direto com sua
materialidade, os adultos, ao que parece, fazem-no de maneira mais mediata, a partir de um
conjunto distinto de significados e valores
60
.
Neste ponto, entretanto, a experiência da migração passa a ser considerada a partir das
relações estabelecidas (ou não) com um espaço (físico e simbólico), no processo contínuo de
sua (re)construção. Aquele que migra, seja homem ou mulher, adulto ou criança, sai de um
lugar e se dirige à outro, um lugar de destino no qual experimentará, efetivamente, a condição
de migrante. Dito de outro modo, a experiência da migração, para além do deslocamento
físico entre lugares, faz-se também nos próprios lugares, principalmente naqueles para os
60
Assunto que será mais bem detalhado na seção seguinte deste capítulo.
120
quais se dirigem os migrantes e nos quais experimentam reassentamentos mais ou menos
duradouros. Ela envolve, pois além daquilo que foi destacado até então, o estranhamento
vivenciado quando do encontro com este “novo mundo” que é o lugar de destino, um sentir-se
sem lugar que, através da ação sobre o espaço, será ou não convertido em um sentir-se no
lugar, sentir-se em casa. Uma experiência complexa que, conforme bem destaca Thomson,
“abarca velhos e novos mundos e que continua por toda a vida do migrante e pelas gerações
subseqüentes” (THOMSON, 2002, p.341/342).
(RE)CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO
Tomando a experiência da migração como ponto de partida, a presente seção tratará
especificamente dos modos através dos quais os migrantes estabeleceram relações com o
espaço, particularmente com aquele espaço que é o lugar de destino. Essas relações, conforme
será sugerido, constituem um processo contínuo de (re)construção física e simbólica dos
lugares por onde passam os migrantes ao longo de suas jornadas de vida - com ênfase nos
lugares de origem e de destino (entendido aqui como atual espaço de vida). Dito de outro
modo, o processo de (re)construção do espaço se refere às ações envolvidas na transformação
de uma “terra desconhecida” (um não-lugar) em “minha terra” (um lugar); um processo que,
conforme será visto, envolve sempre aqueles “velhos mundos”, dentre os quais o principal
parece ser a terra natal. Primeiramente será realizada uma sucinta apresentação dos principais
conceitos e categorias envolvidos na presente análise. Em seguida, conforme dito
anteriormente, procurar-se-á caracterizar essas relações a partir de dois eixos fundamentais: o
deslocamento físico de um lugar para o outro (o encontro entre “velhos e novos mundos”) e a
passagem do tempo num mesmo lugar (as transformações do lugar de destino neste caso, a
cidade de Esteio). No que concerne a este último eixo, ainda, uma atenção especial será dada
a três elementos constituintes do espaço: o arroio, o “mato” e o “banhado”.
Espaço geográfico, objetos, ações e paisagens
Nilton Santos, no seu livro A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção
61
,
a exemplo do que fez Jean Brunhes (1947) em relação ao conceito de geografia, propõe uma
definição de espaço geográfico mediante um exercício de aproximações sucessivas. Convida-
61
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4° ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2006. (Coleção Milton Santos; 1)
121
nos, dessa forma, a acompanhar a evolução do seu processo de elaboração (a partir da
apresentação das definições que propôs ao longo do tempo), em andamento pelo menos desde
a segunda metade da década de setenta.
Numa primeira hipótese de trabalho (1978), Santos define o espaço geográfico como
um conjunto de fluxos e fixos (SANTOS, 2005). Sob essa perspectiva, o espaço apresenta-se
composto por elementos “fixos” a partir (através) dos quais as ações desenvolvidas
constituirão os “fluxos”. Nesse esquema, “fixos” e “fluxos” interagem e se modificam
continuamente, num movimento caracteristicamente dialético. Nas palavras do autor:
Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam
o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições
ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um
resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos,
modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que
também, se modificam. (SANTOS, 2006, p.61/62).
nessa sua primeira definição, Santos ressalta que as modificações sobre os “fixos”,
para além daquelas materiais, são mudanças na ordem dos significados e valores. Além disso,
como bem destaca o autor, essas modificações, ao mesmo tempo em que são produzidas pelos
“fluxos”, transformam-nos.
Numa segunda proposta de definição (1988), Santos recorre a outro par de categorias:
“de um lado a configuração territorial e, de outro, as relações sociais” (SANTOS, 2006, p.62).
Por configuração social, o autor idefinir o conjunto dos sistemas naturais existentes em
determinado lugar mais os acréscimos frutos das atividades sócio-culturais humanas
(SANTOS, 2006). É a partir dessa noção de configuração social que o autor irá, por exemplo,
referir-se às obras humanas como “verdadeiras próteses”. as relações sociais, aparecem
neste esquema como a vida que anima a configuração territorial, transformando-a, dessa
forma, em espaço. Santos se refere a essas relações nos seguintes termos:
A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem de sua
materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que o
anima. A configuração territorial ou a configuração geográfica, tem, pois,
uma existência material própria, mas sua existência social, isto é, sua
existência real, somente lhe é dada pelo fato das relações sociais.
(SANTOS, 2006, p.62)
Seja através dos “fixos” e “fluxos”, seja por meio do par “configuração territorial” e
“relações sociais”, Santos opera uma distinção entre aqueles constituintes materiais do espaço
122
e o conjunto de forças e relações imateriais que também o constituem. É interessante observar
que, para o autor, a existência real dessa parcela material do espaço somente advém quando
do seu atravessamento pelas relações sociais. Novamente teremos, neste esquema, uma
relação dialética entre os pares que compõem o espaço: tanto as configurações territoriais se
modificam em função das relações sociais que as atravessam, como essas relações são
modificadas pelas (dão-se em função das) configurações territoriais locais. Como
conseqüência dessa contradição fundamental, o espaço como um todo se transforma
continuamente.
Enfim, numa terceira hipótese de trabalho, Santos define o espaço como um “conjunto
indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações,
não considerados isoladamente, mas como um quadro único no qual a história se dá”
(SANTOS, 2006, p.63). Novamente a partir de um par de categorias que interagem de forma
“contraditória”, mas também “solidária”, o autor ressalta a natureza processual e dinâmica do
espaço. A referência que faz a sistema de objetos o leva a uma extensa revisão dos
significados assumidos por esse conceito ao longo do tempo e em diversos âmbitos do
conhecimento, ao final da qual, irá defini-los da seguinte maneira:
Para o geógrafo, os objetos são tudo o que existe na superfície da Terra,
toda a herança da história natural e todo resultado da ação humana que se
objetivou. Os objetos são esse extenso, essa objetividade, isso que se cria
fora do homem e se torna instrumento material de sua vida, em ambos os
casos uma exterioridade. (SANTOS, 2006, p.72/73)
o sistema de ações, por sua vez, será definido como aquilo que é próprio do ser
humano. É ao conjunto das ações humanas sobre os objetos e sobre si mesmos, assim como às
suas motivações e conseqüências, que Santos se refere quando fala em um sistema de ações.
Segundo ele, “as ações resultam de necessidades, naturais ou criadas. Essas necessidades:
materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais, morais, afetivas, é que conduzem os
homens a agir e levam a funções. Essas funções, de uma forma ou de outra, vão desembocar
nos objetos” (SANTOS, 2006, p.82/83)
Nos três esquemas propostos por Santos, o espaço é definido a partir da interação
dialética (mas também solidária) entre pares de categorias que procuram representar, de um
lado uma materialidade (natural e cultural)
62
e de outro, a vida humana simbolizada por suas
(inter)ações. Sob essa perspectiva, não há espaço fora de um quadro sócio-cultural, da
62
Não pretendo sustentar aqui essa distinção. Sua apresentação se em conformidade (e não concordância) ao
texto consultado. O próprio autor, num capítulo seguinte, problematiza essa distinção a partir da noção de
hibridismo proposta por Michel Serres.
123
mesma forma que não há ação sem objetos e objetos (significados) sem as ações. O espaço de
que nos fala Santos não é um espaço empírico meramente material nem tampouco um
espaço filosófico meramente abstrato; ele é antes e para além um híbrido que resulta da
inseparabilidade entre sistemas de objetos e sistemas de ações. Os sistemas de objetos não
apenas viabilizam o “fluxo” das ações como também as modificam ao mesmo tempo em que
são por elas modificados. É importante destacar ainda que quando se fala em ‘objetos que se
modificam’, mais do que simplesmente transformações materiais, está-se também (e, talvez,
principalmente) referindo aquelas alterações substantivas, operadas ao vel dos significados
e valores. É nesse sentido que Milton Santos, ao interpretar a frase de Kant “(...) os objetos
mudam e criam diferentes geografias (...)”, irá dizer que,
(...)o mesmo objeto, ao longo do tempo, varia de significação. Se as suas
proporções internas podem ser as mesmas, as relações externas estão
sempre mudando. uma alteração no valor do objeto, ainda que
materialmente seja o mesmo, porque a teia de relações em que esinscrito
opera sua metamorfose, fazendo com que seja substancialmente outro.
(SANTOS, 2006, p.96/97)
Uma outra distinção que assume especial importância no contexto de realização da
presente pesquisa é aquela entre paisagem e espaço. Frequentemente tomados como
sinônimos esses dois conceitos, no esquema apresentado por Santos (2006), referem-se a
“coisas” diferentes. De um modo simples, partindo da definição de configuração territorial
apresentada acima, poder-se-ia dizer que a paisagem corresponde àquela porção da
configuração territorial abarcada pela visão (SANTOS, 2006). A paisagem, dessa forma,
corresponde também ao conjunto de objetos “reais-concretos” (sistemas naturais mais
superimposições humanas) presentes em um dado lugar. De acordo com Santos, “a paisagem
é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as
sucessivas relações localizadas entre homem e natureza” (SANTOS, 2006, p.103). Note-se
que o autor introduz um elemento temporal na definição de paisagem quando fala em
“sucessivas relações”. Para Santos, a paisagem, diferentemente do espaço, caracteriza-se
como uma composição transtemporal”, isto é, uma construção transversal na qual coexistem
objetos oriundos de diferentes tempos (objetos passados e presentes). O espaço, por sua vez,
“é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única” (SANTOS, 2006,
p.103). Em outras palavras,
A paisagem existe através de suas formas, criadas em momentos históricos
diferentes, porém coexistindo no momento atual. No espaço, as formas de
124
que se compõe a paisagem preenchem, no momento atual, uma função
atual, como resposta às necessidades atuais da sociedade. (SANTOS, 2006,
p.104)
A paisagem assume neste esquema um caráter de “história congelada” ou ainda
“resultado histórico acumulado”. O espaço, ao contrário, emerge a cada instante, a partir dos
modos através dos quais essa materialidade é (re)significada e das funções que desempenha
no presente. Em função disso, “quando a sociedade age sobre o espaço, ela não o faz sobre
objetos como realidade física, mas como realidade social, formas-conteúdo” (SANTOS, 2006,
p.109), num processo contínuo de (re)construção. Para Santos, não existe dialética possível
entre formas enquanto formas, nem, a rigor, entre sociedade e paisagem; a dialética é sempre
entre sociedade e espaço, “entre um presente invasor e ubíquo que nunca se realiza
completamente, e um presente localizado, que também é passado objetivado nas formas
sociais (...) e geográficas encontradas” (SANTOS, 2006, p.109) e futuro anunciado nas
possibilidades que elas apresentam.
***
É nesse sentido que o conceito de espaço será aqui tratado: enquanto um híbrido
formado pela interação contraditória, mas também solidária, de sistemas de objetos e sistemas
de ações. Num sentido mais restrito (relacionado aos lugares), entretanto, ao invés de falar em
sistemas de objetos e sistemas de ações, falar-se-á em paisagens e relações sociais. São as
interações entre essas duas categorias que procurarão ser analisadas. Além disso, a referência
a paisagens ao invés de configurações territoriais, procura enfatizar o fato de se tratarem, o
tempo inteiro, de descrições e relatos sobre as fisionomias dos lugares, isto é, tratam-se
sempre de porções da configuração territorial abarcadas pela vista daquele ou daquela que
narra.
a utilização da expressão (re)construção do espaço pretende evidenciar a natureza
dinâmica e cíclica (portanto contínua) dos processos através dos quais as paisagens são
significadas (isto é, transformadas em espaço) e resignificadas quando do deslocamento físico
para outro lugar ou em função da passagem do tempo. Refere-se, pois, a um processo amplo
que envolve além de transformações físicas, todo um conjunto de modificações (atribuições e
reformulações) simbólicas a que estão submetidos não apenas os elementos materiais que
constituem o meio, mas também os seres e as ações que o animam; um processo de
125
“destruição criadora”
63
de objetos, paisagens, ações e identidades. Refere-se, enfim, ao
processo através do qual um “não-lugar”
64
(que é o lugar de destino) é transformado pelos
seus sujeitos em um “lugar”.
Lugar
Dessa forma, um outro conceito que se torna fundamental no contexto da presente
investigação é aquele de lugar. Conforme definido anteriormente, a partir da obra de Tim
Ingold (2005), o lugar aparece não como uma posição no espaço (um espaço físico) dada em
relação a um sistema independente de coordenadas, mas como um “nóno interior de uma
rede de movimentação mais ampla, denominada região. Sua existência é dada, portanto, em
função do movimento: é através das constantes idas e vindas dos seus habitantes que os
lugares são constituídos, da mesma forma que as regiões são delimitadas. Além disso, ou
melhor, relacionado a isso, o autor irá dizer que “os lugares não têm posições e sim histórias”
(INGOLD, 2005, p.77), uma vez que guardam sempre lembranças de chegadas e partidas
anteriores (sejam elas próprias ou alheias).
Esse seu argumento advém da comparação entre dois diferentes modos de integração
através dos quais os indivíduos supostamente tomariam conhecimento do seu entorno e se
situariam nele. O primeiro deles, denominado modo vertical de integração, sugere que as
particularidades locais apreendidas através da observação no chão, “são encaixadas numa
concepção abstrata do espaço para formar uma representação do mundo como se estivéssemos
olhando para ele de ‘cima para baixo’” (INGOLD, 2005, p.87). O segundo, contrapondo-se ao
primeiro, propõe que o modo lateral de integração seja realizado pelo organismo como um
todo, enquanto se move atentamente e intencionalmente de um lugar para o outro (INGOLD,
2005). Nesse esquema, as constantes idas e vindas, chegadas e partidas, transformam os
lugares, para os seus habitantes, em “nós” no interior de uma matriz de movimentação mais
ampla a região. Para o autor, é remetendo-se a ela (às lembranças de chegadas e partidas
anteriores) e não a algum tipo de mapa cognitivo (uma visão do mundo obtida do alto) que
nos situamos no mundo e orientamos nossos deslocamentos no seu interior. Daí a relevância
assumida pelo movimento; daí a idéia de que os lugares têm histórias e não posições.
Contudo, o interessante de se reter dessa comparação, ou melhor, deste último esquema (o do
63
Para utilizar a expressão presente no trabalho de Carlos Fortuna (1997) - FORTUNA, C. As cidades e as
identidades: narrativas, patrimônios e memórias. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.12, n°33, fev. 1997.
64
Um não-lugar “é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história (...)”
(BENKO, 1997, apud BAUMAN, 2001, p.120).
126
modo lateral de integração) é a noção de como conhecemos que advém dele (ou, da qual ele
advém). Assim Ingold se refere a ela:
O que eu quero dizer é que conhecer, como a percepção do meio em geral,
prossegue ao longo de trilhas de observação. É impossível conhecer nos
lugares, assim como não se pode viajar neles. Ao invés disso, o
conhecimento é regional: deve ser cultivado movendo-se por trilhas que
conduzem em torno de, na direção de ou saindo de lugares para outros
lugares. (...) À luz das considerações anteriores, preferiria dizer que nós
conhecemos enquanto caminhamos, de lugar para lugar. (INGOLD, 2005,
p.90)
Essa noção processual e dinâmica (porque pressupõe/exige o movimento) de como
conhecemos, permitirá algumas inferências quanto aos modos através dos quais os migrantes
(re)constroem o espaço ao longo de suas jornadas de vida. Além disso, tomando-a como
ponto de partida, é possível repensar aquele conjunto de argumentos que atribuem justamente
ao movimento, ou melhor, à atual intensificação dos fluxos entre lugares a emergência de uma
práxis irresponsável sobre o espaço
65
.
Nesse sentido, a referência que se faz aqui ao conceito de lugar pretende evocar
justamente a noção de movimento: o movimento entre lugares, através do qual conhecemos e
o movimento a que estão sujeitos os próprios lugares, sendo continuamente (re)construídos a
partir das idas e vindas dos seus habitantes. Dito de outro modo, o lugar comporta
movimento: encontra-se inserido num conjunto de movimentos mais amplo e se encontra em
movimento (constante transformação). Essa transformação, conforme destacado
anteriormente, para além daquela material (que se encontra em curso), dá-se também ao nível
dos significados e valores que se modificam com o passar do tempo e em função dos
deslocamentos dos seus habitantes.
Relacionado a isso, o lugar aparece também como portador de uma história. Assim, ao
mesmo tempo em que se inserem no interior de uma matriz de movimento, o lugar também se
insere no interior de um contexto narrativo familiar aos seus sujeitos. Daí a diferenciação
entre um não-lugar aquela porção do espaço destituída de “expressões simbólicas de
identidade, relações e história”, para um determinado indivíduo – e um lugar. O encontro com
um “novo mundo” (um lugar de destino), para os migrantes, envolve sempre, em alguma
medida, a transformação de um não-lugar em um lugar (ou pelo menos de um lugar pouco
familiar em um lugar para si e para os outros).
65
Utilizando aqui, de forma inversa, a expressão proposta por Garcia (2003), quando fala sobre a necessidade do
desenvolvimento de uma práxis responsável sobre o espaço (conforme apresentado no capítulo 3).
127
Por outro lado, a referência ao conceito de lugar procura evocar também a idéia de
particularidade ou, ainda, de proximidade. Nesse contexto, o conceito de lugar, conforme o
apresentam Garcia (2003) “enquanto singularização do espaço” (GARCIA, 2003, p.43) - e
Leff (2001) “território onde a sustentabilidade se enraíza em bases ecológicas e identidades
culturais” (LEFF, 2001, p.340) –, remete ao nível local da experiência social que se afirma
em contraposição (mas não dissociação) ao nível global, caracterizado, entre outras coisas,
pela homogeneização das diferenças e pela crescente desvinculação com o espaço físico. De
acordo com Santos (2006),
A localidade se opõe à globalidade, mas também se confunde com ela. O
mundo, todavia é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência, ele pode
esconder-se, não pode fazê-lo pela sua existência, que se nos lugares. No
lugar, nosso Próximo, se superpõe, dialeticamente, o eixo das sucessões (...)
e o eixo dos tempos internos, que é o eixo das coexistências (...). (SANTOS,
2006, p.321/322)
O lugar, dessa forma, aparece referido ao espaço particular com o qual encontramo-
nos envolvidos: aquele espaço singular porque único, próximo porque conhecido e “território”
porque significado.
(Re)construção do espaço: o encontro entre “velhos e novos mundos” (dois exemplos)
Entre todos os integrantes do nosso grupo, Angela foi quem chegou primeiro a Esteio
lugar de destino e espaço de vida compartilhado por todos os envolvidos e sobre o qual
recaem as atenções da presente investigação. A família de Angela, conforme dito
anteriormente, sai do interior de Santa Catarina, município de Barreiros, e vem para Porto
Alegre tentar a vida. Passam cerca de cinco anos na capital, o pai (que trabalhava em uma
mina de carvão em Santa Catarina) trabalhando em obras e a mãe (que além de cuidar dos
filhos, trabalhava também na lavoura) fazendo limpeza em pequenas e médias empresas. De
lá, em função da violência circundante, vêm todos para Esteio, para a casa construída aos
finais de semana pelo pai. Chegam à cidade por volta de 1974. Nessa época, de acordo com
Angela, a expressão utilizada para se referir à região para a qual se mudam era “Esteio
interior”: um lugar ermo, afastado do centro da cidade, com pouca infra-estrutura e casas
quase nenhuma. Para se ter uma idéia (ver imagem 4), a Rua Santana, uma das principais
vias de acesso a esta região, tinha apenas sete casas à época. Assim Angela o descreve:
128
(...)Então, nessa rua da Santana tinham sete casas e o resto disso aqui [refere-se a região na
qual fica localizada a escola] era mato, não tinha nada (...).
Essa primeira parte da sua descrição, entretanto, não permite apreender o significado
que este novo mundo” assumia para a criança de quatro anos que até então havia passado
seus dias brincando com os irmãos trancada em um pequeno pátio do qual a recordação mais
viva é a imagem da corrente grande e do cadeado no portão. Este “nada” a que se refere
Angela, à época lhe significou um “tudo”. Dessa forma, é na parte intencionalmente
suprimida do relato acima que sua experiência se revela:
(...) Então, nessa rua da Santana tinham sete casas e o resto disso aqui [refere-se a região na
qual fica localizada a escola] era mato, não tinha nada. A princípio nós nos assustamos, mas
depois, assim, foi maravilhoso, porque nós corria mato a dentro, andava de cavalo, né? Para
nós... a gente não tinha cerca, a gente não tinha portão... para quem vivia numa parede, né?
Para nós, as crianças, assim... a minha mãe chorava muito (...). No princípio a mãe chorava
muito, porque era muito longe de tudo (...). Quer dizer, pra minha mãe foi um começo
difícil... mas depois... pra nós foi muito bom. Realmente, a liberdade que a gente tinha para
brincar (...).
Um primeiro aspecto, então, relacionado ao processo de (re)construção do espaço,
refere-se ao encontro com o “novo mundo” que é o lugar de destino. Esse encontro,
inevitavelmente, envolve sempre a comparação com o lugar de origem, ou os lugares por
onde passaram os migrantes - aqueles seus “velhos mundos”. Daí o título desta seção referir-
se ao encontro entre “velhos e novos mundos”. Daí também, a exposição anterior e mais
detalhada acerca dos significados que o conceito de lugar assume no presente texto. A idéia
de lugares que se constituem a partir das constantes idas e vindas, chegadas e partidas dos
seus habitantes, de que eles possuem histórias e não posições e a noção de que conhecemos
entre lugares e não nos lugares, presentes na obra de Ingold (2005), podem ser evocados aqui
para tentar compreender, por exemplo, as nuances presentes no relato acima apresentado.
O encontro com um mundo novo, sob essa perspectiva, é sempre mediado pela
imagem e pelas histórias de um mundo velho, conhecido e significado. É a partir deste que
aquele será, por suas vez, conhecido e significado. De forma análoga, poder-se-ia dizer que a
resignificação de um “velho mundo” é mediada pela imagem pelas histórias (ainda que de
outrem) de um “novo mundo” com o qual se tenha entrado em contato, ou em direção ao qual
se empreenda uma jornada. É nesse sentido que para Angela e seus irmãos (todos crianças),
em uma comparação direta com o lugar de origem e com a vida que levavam nele, o lugar de
destino apresentou-se como um “admirável mundo novo”. A liberdade experimentada, a
ausência de “cercas e portões” e a paisagem do lugar de destino assumiram rapidamente um
valor bastante positivo para elas. No sentido inverso, a partir de uma comparação direta com o
129
lugar de destino e a vida que puderam nele experimentar, o lugar de origem foi
profundamente ressignificado, assumindo valores negativos que, possivelmente, ainda não
tinha. Um “velho” lugar que se torna “novo”; neste caso, pior. Assim ele aparece representado
em sua narrativa:
(...) Se eu voltar no passado, como assim... eu (...) nasci lá, eu vivi 4 anos lá, nesse lugar em
Porto Alegre, na Vila da Conceição, era horroroso, feio... uma prisão (...). Eu me lembro que
a gente passava o dia brincando dentro do pátio... mas era assim um lugar bem velho e a rua
a gente não via... final de semana que o pai abria e não era rua assim [aponta para fora
da sala]... era a nossa casa, era um bequinho, realmente, pra gente passar, assim (...).
Neste relato, para além da descrição do ambiente físico, Angela deixa entrever alguns
dos significados assumidos pelo lugar. O que é importante de se reter, entretanto, não são os
significados em si, mas o fato de que eles somente emergem após seu encontro com um “novo
mundo”; após uma comparação direta com a vida que experimentou no lugar de destino. O
lugar de origem, nessas circunstâncias, somente passa a ser horroroso, feio e representar uma
prisão após o deslocamento e a chegada em Esteio; ele somente pôde ser considerado
horroroso, feio, uma prisão quando comparado a beleza e a liberdade conhecidas no lugar de
destino. É nesse sentido que Ingold (2005) fala que conhecemos enquanto caminhamos e que
essa movimentação no interior de uma região não apenas liga lugares, mas também os
constitui.
Resumindo o acima exposto, poder-se-ia dizer que o deslocamento entre um lugar de
origem e outro de destino implica, necessariamente, a (re)significação de ambos: o primeiro,
por comparação ao segundo, passa a ser mais ou menos valorizado; o segundo, em
comparação ao primeiro, recebe uma carga simbólica inicial (mais ou menos positiva). Este
esquema, por exemplo, permitiria compreender também a aparente diferença entre a
experiência das crianças (Angela e seus irmãos) e dos adultos (neste caso, sua mãe) quanto ao
início do processo de (re)construção do espaço. Assim, a mãe chora porque o novo lugar, em
comparação com o antigo, apresenta-se ermo e isolado (talvez justamente o que ela deixou
para trás quando saiu do interior de SC); ao mesmo tempo, chora porque o lugar antigo,
somente agora, se lhe apresenta revitalizado, iluminado desde um ângulo que ressalta suas
qualidades.
Para as crianças, talvez mais do que para os adultos, é a materialidade do lugar (e não
as suas histórias) que encanta (ou não) e que permite (ou dificulta) o estabelecimento de
vínculos afetivos (ao menos num primeiro momento). É com ela, em primeira instância, que
irão interagir; e será mediante essas interações que irão construir suas próprias histórias,
atribuir aos diferentes elementos que constituem a paisagem seus próprios significados,
130
transformando-os em espaço. Para os adultos, ao contrário, mesmo aqueles lugares
fisicamente desconhecidos inserem-se num contexto narrativo construído a partir de jornadas
anteriormente efetuadas. Na situação descrita por Angela, ao que parece, a materialidade do
lugar de destino em comparação a do lugar de origem representou para ambos a mesma coisa:
maiores distâncias a serem percorridas. Contudo, enquanto que para os adultos essas
distâncias adquiriram um caráter de resistência (resistência ao movimento), para ela e seus
irmãos significaram liberdade (convite ao movimento). Uma liberdade e um convite ao
movimento, à experimentação, que, conforme pode ser percebido em sua narrativa, se lhes
apresentaram irresistíveis:
(...) a minha rua, a Santana, (...) da descida da lomba até o final da lomba era rua, depois era
trilho... que nem pra chegar perto da minha casa era um trilho assim... o resto era mato. (...)
Era assim, amaricá
66
, tinha muito amaricá, fechado... a gente corria no meio, andava à
cavalo... tanto é que eu comentei muitas vezes que eu tomei muuuiiito banho no arroio...
porque era água pura... marrom, né? Mas é por causa do barro (...) Na frente da casa do
meu pai, eu disse pra mãe: “Mãe, imagina! A gente caçava... pereá
67
e perereca!” Rã, né?
Meus irmão matavam a rã, eu limpava e a gente fritava em casa (...).
Tomando agora como referência o esquema proposto por Milton Santos (2006), poder-
se-ia talvez dizer que para as crianças o encontro com o “novo mundo” é essencialmente um
encontro com a paisagem enquanto que para os adultos o encontro é sempre com um espaço
(uma paisagem já significada – a ser resignificada). Ou pelo menos que a carga simbólica e as
relações sociais existentes num dado lugar, assim como a materialidade, assumem um “peso”
diferente para adultos e crianças. Em boa medida, porque são os adultos e não as crianças os
responsáveis pela tomada das decisões e pela escolha do lugar. Pesam sobre eles, portanto, as
responsabilidades sobre essas escolhas e as expectativas daqueles parentes e amigos mais
próximos, muitas vezes contrários a suas partidas. Por exemplo, em muitos relatos, são feitas
referências às imagens construídas no interior das redes de sociabilidade sobre a cidade de
Esteio à época dos seus deslocamentos. Expressões como fim do mundo” ou “interior” eram
usadas para se referir pejorativamente a esta região da cidade. Dessa forma, além das
dificuldades estruturais e financeiras, os migrantes adultos tiveram que enfrentar ainda o
preconceito e/ou a desaprovação de seus pares:
66
Os maricazais (formação vegetal composta de Maricá - Mimosa bimucronata) são muito comuns em terra de
várzea. Com ampla distribuição no território brasileiro (de Pernambuco ao Rio Grande do Sul), o maricá é
frequentemente utilizado como cerca-viva, forrageira e medicinalmente (brotos) contra asma, bronquite e febre.
Por ser uma espécie pioneira, desempenha uma importante função na recuperação de áreas degradadas,
principalmente aquelas alagadas. (BACKES; IRGANG, 2002)
67
“Outro roedor muito freqüente [nos capões e matos da Depressão Central] é o preá, animalzinho mido e
inofensivo, que em bandos de 6 a 12 indivíduos prefere a beira das matinhas e capoeiras, de cujas gramas se
nutre.” (RAMBO, 2000, p. 188)
131
(...) “Ah! Meu Deus! vocês vão para o interior de Esteio!(...). (Angela, referindo-se a
surpresa de amigos e parentes frente a decisão da família em deixar Porto Alegre)
(...)Claro que a gente tinha algumas recomendações, uma imagem da cidade... porque a
gente sempre ouvia falar... que os caras falavam assim: “olha, é no fim do mundo...”
(...). (Seu Paulo, referindo-se as indicações que recebeu para chegar à cidade)
Toda essa carga simbólica ‘projetada’ sobre o lugar, junto aos seus demais elementos,
constituiu o espaço com o qual se encontraram, talvez mais os adultos do que as crianças.
Nesse sentido, o processo de (re)construção do espaço envolve não apenas a transformação de
um não-lugar em um lugar, mas também a transformação de um lugar como é visto pelos
outros em um lugar para nós e daí, novamente, num lugar para os outros verem. Dito em
outras palavras, o processo de (re)construção do espaço, nessas circunstâncias, exige o manejo
daquelas imagens, expectativas e desconfianças alheias e a resignificação do lugar não apenas
para si, mas também para os outros. É como se os migrantes, nessas circunstâncias, tivessem
que convencer além de si mesmos, também aos outros quanto a habitabilidade do lugar.
Um outro contraste interessante entre o lugar de origem e o lugar de destino, ou
melhor, entre a condição de vida experimentada no lugar de origem e aquela conquistada no
lugar de destino, aparece no relato de seu Luiz Armando. Seu Luiz, conforme já dito, é natural
de Uruguaiana. Viveu por lá, entre banhos e pescarias no rio Uruguai, até os 17 anos de idade
quando, desiludido pela falta de perspectivas de trabalho, em 1983, vem para Esteio (para a
casa de um primo). Chega à cidade, portanto, aproximadamente dez anos após a chegada de
Angela e sua família. E, coincidentemente, vem se estabelecer na mesma região agora não
mais denominada “Esteio interior”.
Também conforme já relatado, seu Luiz chega à cidade decido a ficar: em apenas seis
meses de trabalho, constrói uma pequena casa no terreno cedido pelo primo e traz de
Uruguaiana boa parte da família. Em seguida, adquire o seu primeiro terreno, onde amplia a
base estrutural (material) da família através da construção de mais três casas. Passado mais
algum tempo, em conjunto com a esposa, adquire o seu segundo terreno e nele constrói mais
uma casa, onde vive atualmente. Traduzindo em miúdos, seu Luiz “se fixa ao chão”, “enraíza-
se” por aqui. Vivencia no lugar de destino, portanto, uma situação bem distinta daquela
experimentada na terra natal:
(...) Eu me lembro assim da minha infância (...), o primeiro lugar de moradia nossa, onde nós
moramos, eu e minha mãe, era na chácara dos Telecheiros, isso em Uruguaiana. Porque
lá era assim, tu não tinha terreno mas tinha casa. Então tu alugava o terreno e mudava com a
tua casa... como uma tartaruga, com a casa nas costas (...).
132
Para seu Luiz, o contraste entre o lugar de origem e o lugar de destino foi aquele entre
uma vida nômade, instável e de constantes reconstruções, e uma vida sedentária, mais estável
e na qual o pouco construído permanece e serve de base para novas alçadas. Em alguma
medida, foi essa a sua busca e também a sua conquista. O lugar de destino, nesse sentido, em
comparação ao lugar de origem significou a possibilidade de realização do sonho; um sonho
que não se relacionava diretamente à paisagem do lugar, à sua configuração territorial, mas
que tinha na materialidade do “chão” seu fundamento; um sonho que, por isso, remetia às
relações sociais pré-existentes e também àquelas possíveis, através das quais pudesse se
concretizar. Do encontro entre os “velhos e novos mundos”, portanto, a realização de uma
busca:
(...) e o que eu mais queria na minha vida era terra, pra mim, terra minha que eu pudesse
dizer “é meu!”, “o chão é meu!”, justamente porque eu não queria a vida da minha mãe:
viver mudando com uma casa nas costas, entende? Vinha o dono da terra: “têm que me
entregar!” Lá tinha que desmanchar o que era teu: estábulo dos cavalos, cocheiro dos
bichos... carregar tudo de caminhão e sair (...).
(...) Eu aqui, eu consegui duas coisas que eu queria, os sonhos que eu tinha, de criança, de
pequenininho, de ter a minha casa, de ter o meu terreno, entende? De ver a minha mãe
dentro do que era dela... num terreninho dela, que não precisasse mudar... e isso eu consegui
dar para minha mãe (...).
A transformação do não-lugar em lugar, isto é, a (re)construção do espaço no lugar de
destino, para seu Luiz, deu-se através da “terra”, daquela parcela de chão tão sonhada e
honestamente conquistada. Ao “fincar aqui suas raízes”, ao encontrar no lugar de destino as
possibilidades de sobrevivência e consecução dos seus sonhos, justamente aquilo que lhe
faltava na terra natal, seu Luiz transforma o lugar de destino literalmente em “sua terra”:
(...) Eu, para mim, hoje em dia, eu vivo em Esteio e Esteio é o meu lar, Esteio é a minha
cidade... Não trocaria sair de Esteio para voltar para Uruguaiana. Entre Uruguaiana e
Esteio eu ficaria em Esteio até morrer. (...) Esteio realizou as minhas coisas e eu me realizo
com Esteio, entende? (...).
No quadro desenhado acima, o espaço (re)construído assume um valor positivo, isto é,
é resignificado por aquilo que possui e que faltava ao lugar de origem. O lugar de origem, por
sua vez, é resignificado em função do que foi encontrado ou obtido no lugar de destino, tendo
suas carências postas em relevo. Fica “guardado” na memória, então, mais por aquilo que não
tinha, do que pelo que lhe era próprio e característico; ou, na melhor das hipóteses, por um
conjunto equilibrado das duas coisas. Este último caso, ao que parece, caracteriza melhor a
relação de seu Luiz com “sua Uruguaiana”. Em suas lembranças, ao mesmo tempo em que ela
aparece representada, em diferentes tonalidades de verde, pelas imagens dos campos e dos
133
matos de “chirca”
68
, dos arroios e das margens do rio Uruguai, ela é a lembrança viva de uma
vida em trânsito (um trânsito imposto e não escolhido) e da falta de oportunidades, de
perspectivas de crescimento. A partir da definição de espaço proposta por Santos (2006),
poderíamos inclusive sugerir que, em relação ao lugar de destino, a paisagem do lugar de
origem assume um valor positivo, enquanto as relações sociais que a animam assumem um
valor negativo. Esse balanço entre positividade e negatividade, entre uma paisagem saudosa e
um modo de vida (resultado do conjunto das relações sociais) do qual não se sente falta, essa
“imagem” que a terra natal assume para seu Luiz, encontra-se belamente traduzida em uma
gravura
69
, afixada numa das paredes de sua casa (imagens n° 9 e 10).
Nela, inserida numa paisagem campestre, numa vasta planície que somente à linha do
horizonte (do lado direito) deixa entrever algumas elevações, jaz uma pequena casa, uma
choupana abandonada. Do telhado restaram apenas as estruturas; das portas e janelas apenas
os quadros vazios (encontram-se abertas). Atravessada, quase de lado, a casa tem sua frente
voltada para o lado esquerdo (inferior) do desenho, lugar para onde também apontam as
sombras representadas. Neste mesmo lado, à frente da velha casa portanto, em primeiro plano,
uma grande figueira se espalha” para o alto e para os lados, destacando sua copada escura
frente ao céu coalhado de nuvens. À sua sobra além de um cavalo pastando encontra-se,
encostada em seu troco, a roda de uma carroça. Do outro lado da gravura, mais próxima à
casa, uma outra árvore, esguia e desfolhada se destaca frente a outras muito mais distantes.
Mesmo sem nunca ter ido à Uruguaiana, quando vi a gravura pela primeira vez, de
imediato me remeti para lá. O campo, a figueira, a roda da carroça, o cavalo pastando e a
própria choupana, compõem, ao menos em meu imaginário, uma típica paisagem da
campanha gaúcha. Uma paisagem que encanta pelo pitoresco. Contudo, quando olhamos mais
de perto, justamente a casa, o símbolo da morada, da ligação do homem com o lugar, com a
terra, em função da porta e das janelas abertas (talvez arrancadas) e principalmente da
ausência das telhas
70
, não nos convida à permanência; pelo contrário, sugere um seguir
adiante, um seguir em frente que deixa para trás apenas vestígios daquilo que um dia foi.
68
O espinilho (Acacia caven) é uma das árvores mais características da campanha gaúcha. De porte médio com
tronco armado de espinhos é muito conhecido por sua madeira, utilizada para carvão e lenha e pela facilidade de
propagação. A área de dispersão natural compreende a região central do Chile, centro-leste da Argentina,
Paraguai e Uruguai e no Brasil somente na região oeste do Estado do Rio Grande do Sul. (MARCHIORI, J. N.
C. Anatomia da madeira e casca do espinilho, Acácia caven (Mol.) Mol. Ci Flor. Santa Maria, V.2, n. 1, p.27-
47, 1992)
69
As verdadeiras imagens são gravuras. A imaginação grava-as em nossa memória. Elas aprofundam
lembranças vividas, deslocam-nas para que se tornem lembranças da imaginação.” (BACHELARD, 1993, p.49)
70
“(...) Então, tu alugava o terreno e mudava com a tua casa... como uma tartaruga, com a casa nas costas (...)
Tiravam o telhado, tiravam as telhas... deixava a armação dela... aí vinham vinte, trinta homens alí, botavam
umas tábuas assim [gesticula indicando a direção] e empurravam para cima do caminhão... e levavam (...)”
(Seu Luiz, explicando como faziam para transportar as casas)
134
Complementando o quadro ao mesmo tempo belo e desolador, destacam-se o tronco esguio e
sem folhas ao lado da casa, sugerindo a iminência do inverno
71
, a luminosidade difusa e as
sombras projetadas, típicas das últimas (ou das primeiras) horas do dia, e, por fim, a ausência
de cores.
Quando perguntado sobre os significados do pequeno quadro, se Luiz diz o seguinte:
(...) Ele me lembra a minha terra natal, Uruguaiana... ele me lembra, assim, no caso, a
desilusão que a gente tinha lá... de não ter um progresso na vida, assim... a falta de
prosperidade. De ser um lugar... eu não vou dizer atrasado porque nada é atrasado na vida,
mas... um lugar parado no tempo (...). Alí [refere-se a gravura], no caso, alí simboliza uma
terra que foi abandonada... que foi desertificada pelos donos. Se tu for à Uruguaiana e
encontrar uma terra deserta é aquilo alí... a casa vai desabando, vai ficando um cavalo ou
outro na beira do rancho, os donos vão embora, as pessoas que trabalhavam alí... Até voltar
novos donos, fazer novas construções, voltar a criar alguma coisa em cima. [volta-se para a
gravura] Mas lembra bem a terra lá (...)
Lembranças que conectam passado, presente e futuro - memória, cotidiano e projeto -
e que, ressignificam constantemente tanto o lugar de origem (que vai perdendo suas cores,
ganhando outras tonalidades) quanto o lugar de destino (iluminado sempre desde outros
ângulos). Poder-se-ia dizer, então, que o processo de (re)construção do espaço, assim como a
experiência da migração, envolve sempre “velhos e novos mundos”: “velhos mundos” que se
tornam novos, diferentes, melhores ou piores, quando do encontro com um “novo mundo”;
“novos mundos” que se tornam lugares, melhores ou piores, em comparação com aqueles
“velhos mundos” e em função daquilo que neles se faz. Seja pelo contraste entre feiúra e
beleza, entre restrição e liberdade, entre movimento imposto e repouso conquistado, o
encontro entre passado e presente, entre “velhos e novos” mundos, projeta sempre algum
futuro; anuncia, ainda que nas ‘entrelinhas’, alguns dos seus possíveis desdobramentos.
(Re)construção do espaço: a passagem do tempo e as transformações do lugar de
destino.
O encontro entre “velhos e novos mundos” não se apenas mediante o deslocamento
físico no espaço. Ele se processa também em função da passagem do tempo, num mesmo
lugar que se transforma reconstruído) continuamente. Assim, tendo como referenciais a
seqüência dos “velhos mundos” efetivamente experimentados, defrontamo-nos sempre com
um mundo “novo”, a ser conhecido, significado e tornado ponto de partida para a
71
“De todas as estações, o inverno é a mais velha. Envelhece as lembranças. Remete a um passado longínquo.”
(BACHELARD, 1993, p.57)
135
continuidade da caminhada. Caminhamos, portanto, ainda que permaneçamos em um mesmo
lugar.
O lugar com o qual se encontraram (uns com os outros e consigo mesmo) os
integrantes do nosso grupo se transformou significativamente desde as suas chegadas. Num
processo contínuo de substituição do “velho” pelo “novo” e de transformação do “novo” em
“velho”, os sujeitos entrevistados foram recriando seus espaços de vida, suas relações com os
diferentes elementos do espaço, suas relações uns com os outros e com sigo mesmos;
ajustaram-se às formas pré-existentes ao mesmo tempo em que as ajustaram aos seus desejos
e necessidades; estiveram sujeitos ao espaço ao mesmo tempo em que foram os seus sujeitos.
Ao longo de suas histórias, um pouco de toda essa trama se deixa apreender, revelando o
lugar por trás das pessoas e as pessoas por trás do lugar; ou, talvez ainda melhor, o lugar
através das pessoas e as pessoas através do lugar.
Nas linhas que seguem, tomando como referência fundamental as histórias construídas
ao longo dos nossos encontros, procurarei explorar as relações estabelecidas (ou não) pelos
entrevistados com três ‘espaços’ do lugar: o arroio (arroio Sapucaia), o mato (horto florestal
da Refap) e o banhado (atual Bairro São José). Através delas, acredito, será possível
evidenciar como as relações com determinados elementos do espaço (ou ‘espaços’ do lugar)
se modificam com o passar do tempo e/ou os diferentes significados (dimensões) assumidos
por eles para os seus sujeitos.
O arroio
Gaston Bachelard (1993), quando nos fala sobre a experiência da imensidão - sobre
como muitas vezes é justamente uma imensidão interior que seu verdadeiro significado a
certas expressões que vemos no mundo exterior
72
-, tece algumas considerações acerca da
dimensão temporal da Floresta (entendida enquanto imagem). De acordo como ele, no vasto
mundo do não-eu, a floresta se apresenta como “um antes-de-mim, um antes-de-nós”
(BACHELARD, 1993, p.194). Sua temporalidade abarca sempre, no mundo da imaginação,
um período de tempo superior ao de qualquer história: “a floresta reina no antecedente”
(BACHELARD, 1993, p.194). De modo análogo, poder-se-ia repensar a presença do arroio
nas lembranças dos sujeitos entrevistados.
Dentre todos os atuais componentes da paisagem, o arroio é certamente o mais antigo.
Seja no que concerne à sua dimensão física e ecológica (neste caso uma presença que remonta
72
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos). p. 191.
136
aos tempos mais longínquos, anteriores a qualquer manifestação humana no local), seja à sua
história (uma presença constante nas lembranças e relatos dos habitantes do lugar), o arroio
“reina no antecedente”. É certo que quando falam sobre ele, as mulheres e os homens
integrantes do nosso grupo recorrem mais às próprias lembranças do que a algum tipo de
contexto narrativo mais abrangente, isto é, a lembranças de outros compartilhadas
vicariamente; contudo, por trás de todos os relatos a consciência implícita do arroio como
um “antes-de-mim”, um “antes-de-nós”. Mas o arroio também “reina no antecedente” em
função de sua situação atual: para muitos dos entrevistados é como se ele tivesse
desaparecido, mantendo-se vivo apenas em suas lembranças e recordações.
***
Para aqueles recém chegados, o lugar de destino sempre resguarda surpresas. Revela-
se surpreendente, portanto, seja em função dos seus encantos, seja devido às suas mazelas.
Entre os integrantes do nosso grupo, os primeiros a chegarem à cidade tiveram a oportunidade
de conhecer o arroio revestido de seu máximo encanto. Íntegro, protegido e circundado pelo
mato (sua mata ciliar) e por extensas áreas alagadas (banhados), este arroio “primordial
constituiu-se para os primeiros habitantes do lugar num espaço de lazer por excelência; em
alguns casos, ainda, numa extensão do ambiente doméstico (principalmente daquele destituído
de infra-estrutura básica). Assim, enquanto uns (de um modo geral, umas) procuravam as suas
águas para lavar roupa, a maioria o freqüentava nas horas vagas, em busca de diversão,
relaxamento ou “refresco” nas tardes quentes do verão:
(...) Bem aqui assim [indica um ponto mais ou menos na altura da atua avenida Padre
Antônio Vieira ver imagem ° 4], tinha uma poça, que eles chamavam, que os guris dava
ponto de cima do barranco, que era a parte mais funda... e mais aqui assim [indica uma
região à jusante da primeira, mais ou menos na altura do atual bairro São José – ver
imagens 2,3 e 8], era uma prainha assim (...).No final de semana meus pais iam todos
[Refere-se também aos pais dos amigos]; ficavam ali a tarde toda (...). (Angela)
(...) É, como ela [refere-se à Angela] falou... tinha o poço e a prainha. Eu mesmo tomei
banho ali, várias vezes... Tomava conta dos guris, mas tava de calção (...). (Paulo)
(...) O arroio era muito bom... eu não tomava banho na época, mas eu lavava roupa. Ia pra
lá, levava as crianças para brincar, cuidava das crianças, que eram os meus irmãos, né? A
gente ficava de tarde. No final de semana, o meu pai, a minha e, a gente ia tomar
chimarrão, final de semana, assim, detardezinha, nas folgas do meu pai (...). Era bem
fresquinho (...). Tinha gente que fazia piquenique, vinha gente de fora (...). (Maria Clair)
137
O arroio, nestes primeiros tempos, era um atrativo desta região da cidade.
Caracterizava-a para aqueles seus habitantes assim como para os que ‘vinham de fora’. Além
disso, aos recém chegados (chegados para ficar), constituía-se num ponto de ancoragem
através do qual iniciavam ou aprofundavam o estabelecimento de vínculos afetivos com o
lugar. Um ‘espaço’ estimado por todos, mas principalmente pelas crianças. Tamanho era o
fascínio exercido pelo arroio sobre estas que, a despeito dos alertas e castigos que recebiam
dos pais (no caso de desobediência às restrições impostas), arriscavam-se em “escapadas”
furtivas para lá. Para elas, o arroio mais do que um simples espaço de lazer, apresentava-se
também como um espaço de transgressão:
(...) Então assim ó, nós almoçávamos meio-dia e, era tudo verão, ninguém estudava, a
gente cuidava que a vizinha do lado, que ela sempre dormia, e saia correndo pelo meio dos
amaricá para ela não nos ver, né?Pra ir pro arroio. a gente ficava a taaaarde inteira.
(...) Aí, quando chegava de noite, o meu pai chamava a minha irmã [refere-se à caçula] e
conversava com ela: “Vem falar com o pai, menina do pai, vamos conversar. O que vocês
fizeram hoje?” [a irmã]: “tomamo banho de aloio, banho de aloio...”. o pai chamava e a
gente apanhava, todo mundo. Aí no outro dia a gente ia de novo (...). (Angela)
As restrições impostas pelos pais projetam sobre este espaço uma carga simbólica
específica, introduzindo na relação das crianças com ele um elemento de incerteza, de
insegurança. Dessa forma, além dos encantos, também os perigos (uma dimensão mais
sinistra) do arroio começam a se lhes apresentar (ainda que num primeiro momento de forma
pouco nítida). Esse quadro evidencia também uma alguma diferença entre os significados
assumidos pelo arroio para os adultos e para as crianças. Enquanto que para estas, apesar do
receio dos pais, ele continuava atraindo mais do que repelindo, para aqueles o arroio, ao
mesmo tempo em que se constituía num espaço de lazer (principalmente aos finais de
semana), era um elemento ameaçador por perto.
Todo esse quadro de insegurança e desconfiança possivelmente tenha emergido a
partir de acontecimentos concretos como o seguinte, relato por Angela e Maria Clair:
(...) Aí, quando morria alguém, eles passavam dois, três dias sem ir no arroio, de medo [gesto
de aversão]. (Maria Clair)
(...) Eu lembro que tinha um rapaz de 16 anos [Maria Clair fala: o filho da dona Chica”].
Ele veio. (...) a gente ficou na prainha... eles resolveram vir pro poço, esse poço que tinha
aqui, porque era realmente bem alto o barranco. E ele foi... nós tava tudo brincando na
prainha e ele foi, pulou... e... todo mundo pulando... Esperaram e um gritou: “cadê o
fulano?! cadê o fulano ?!E começou a dar aquele desespero... a minha irmã pegou eu e
a minha outra [irmã], contou nossos irmãos e “vamo embora! vamo embora!E começou
aquele desespero... (...)No outro dia os homem-rã vieram e eu lembro, porque eu fui na
época, o desespero daquela mãe gritando na beira do arroio pelo filho. acharam ele
[alguns dias depois] mais lá embaixo, nos amaricá(...). Aí nós ficava assim, um tempo sem ir,
138
né? Porque o meu pai dizia assim: “Meu Deus! Porque não pode, porque não sei o quê,...”.
(Angela)
Acidentes como esse, não apenas confirmavam (criavam condições para a emergência
de) os receios dos pais, como também tornavam nítidas (pungentes) para as crianças aquelas
dimensões menos atrativas (e bastante mais assustadoras) do arroio. E assim, aos poucos,
arroio deixava de ser o que era para se tornar outro, ainda que materialmente o mesmo. De
acordo com Santos (2006), um “novo padrão espacial pode dar-se sem que as coisas sejam
outras ou mudem de lugar” (SANTOS, 2006, p.96). Isso, conforme explicitado anteriormente,
justifica-se uma vez que cada padrão espacial é constituído, para além de sua materialidade,
pelo atravessamento de um conjunto de forças, relações sociais que o anima e (re)significam.
Neste esquema, o arroio aparece enquanto um padrão espacial, ou ainda uma forma-
conteúdo
73
, que tem seu valor alterado em função de acontecimentos específicos. Ele se
transforma significativamente sem que haja mudanças profundas em sua constituição física.
Nas palavras de Santos:
(...) o mesmo objeto, ao longo do tempo, varia de significação. Se as suas
proporções internas podem ser as mesmas, as relações externas estão
sempre mudando. uma alteração no valor do objeto, ainda que
materialmente seja o mesmo, porque a teia de relações em que esinscrito
opera sua metamorfose, fazendo com que seja substancialmente outro.
(SANTOS, 2006, p.97)
Mais ou menos no mesmo período – final da década de 70 – o processo de urbanização
da região se intensifica. Em um primeiro momento, além do avanço “regular” representado
pelo loteamento e venda de áreas privadas, a ocupação do território também se processa
mediante uma dinâmica de invasão e venda das áreas verdes contíguas ao arroio (ver imagens
6 e 7). Essa dinâmica, até certo ponto (até certo momento), artesanal” de ocupação das
terras do lugar implicou um aumento significativo do número de casas nas margens ou
cercanias do arroio, projetando sobre ele uma segunda carga simbólica: a incerteza quanto à
qualidade de suas águas. Os medos e receios que antes se assentavam apenas nas
73
“A cada evento, a forma se recria. Assim, a forma-conteúdo não pode ser considerada, apenas, como forma,
nem, apenas, como conteúdo. Ela significa que o evento, para se realizar, encaixa-se na forma disponível mais
adequada a que se realizem as funções de que é portador. Por outro lado, desde o momento em que o evento se
dá, a forma, o objeto que o acolhe ganha uma outra significação, provinda desse encontro. Em termos de
significação e de realidade, um não pode ser entendido sem o outro. (...) A idéia de forma-conteúdo une o
processo e o resultado, a função e forma, o passado e o futuro, o objeto e o sujeito, o natural e o social. Essa idéia
também supõe o tratamento analítico do espaço como um conjunto inseparável de sistemas de objetos e sistemas
de ações.” (SANTOS, 2006, p.102/103)
139
probabilidades de ocorrência de um acidente (afogamento) e que podiam ser minimizados
através da presença atenta e cuidadosa dos pais -, a partir de então passa a se assentar também
num terreno bem mais instável. Ao perigo “invisível” presente nas águas (agora impuras)
todos e todas estavam igualmente sujeitos, independente do quão cuidadosos fossem. O
arroio, pouco a pouco vai sendo destituído de sua condição de espaço de lazer:
(...) Por isso que eu digo: o arroio ficou, começou a ficar inviável. Por que eu lembro
que começou a fazer aqui [refere-se à construção da Vila Olímpica] e a gente continuava
tomando banho de vez em quando. Mas aí começaram essas casas que é bem na beirada ali...
Começou uma casa, e outra casa (...). O pai dizia assim: não quero mais vocês tomando
banho no arroio porque as pessoas estão largando as descargas do banheiro para dentro do
arroio e vocês vão ficar tudo cheio de pereba, feridas na pele...”. (Angela)
(...) O que aconteceu com alguns, né?(Maria Clair, referindo-se às doenças de pele)
A ocupação da mata ciliar do arroio, mais do que apenas a projeção de um conteúdo
simbólico desencadeia o início de sua desestruturação ecológica. Inicia-se, portanto, um
segundo estágio de alterações no arroio: para além daquelas mudanças ao nível dos
significados e valores, iniciam e se intensificam aquelas mudanças estruturais, cada vez mais
extensas e profundas. Tomando como referência o esquema proposto por Santos (2006),
poder-se-ia falar numa interação dialética entre a paisagem e as relações sociais. Num
primeiro momento as relações sociais se “ajustam” às formas pré-existentes, transformando-
as mais ao nível dos conteúdos simbólicos do que materialmente - transformação de formas-
objeto em formas-conteúdo (SANTOS, 2006). Já num segundo momento, essas relações
sociais transformadas passam a ajustar” as formas às suas necessidades, promovendo além
de alterações simbólicas também aquelas de ordem material.
Poder-se-ia ainda dizer que, neste momento de sua história, o arroio é atravessado pela
projeção de diferentes cargas simbólicas que promovem (exigem) modificações nos modos de
relação com ele: enquanto o medo de acidentes exige por parte dos seus freqüentadores um
desfrute comedido, cuidadoso, o medo de “contaminação” biológica desencoraja qualquer
tipo de desfrute. Para os que chegam depois, portanto, o lugar de destino passa a surpreender
também por suas mazelas. Contudo, a impureza das águas, conquanto trate-se de um “perigo
invisível”, emana de fontes visíveis e, portanto, “contornáveis”:
(...) Aí o que a gente fazia: tomava banho antes das casas (...). (Angela)
140
Uma solução, entretanto, que teve curta duração. Com a intensificação massiva da
urbanização do lugar, consolidada através do loteamento da maior parte das terras contíguas
ao arroio (atuais bairros: Vila Olímpica, Parque Santo Inácio e Jardim Planalto – ver imagens
2 e 3), também os ‘contornos’ se tornam inviáveis: o arroio enquanto espaço de lazer e/ou
transgressão deixa de ser, definitivamente.
(...) essa canalização todinha aqui da Olímpica, que era um monte de cano, desce nessa
rua que é a Taquara [ver imagem 4] direto e emboca no arroio, tudo! Toda a canalização
daqui, fazia assim [gesticula, indicando o ‘caminho’ dos canos] e saia para [em direção ao
arroio]. (...) foi ficando inviável, e foi... se perdeu tudo aquilo assim: o lugar para tomar
banho, o lugar para jogar bola, o lugar para brincar... Aí se acabou (...). (Angela)
Escondido atrás das casas, maculado por seus dejetos e detritos, o arroio, hoje, jaz
quase esquecido. A relação atual dos sujeitos entrevistados para com ele é, diretamente, a
mínima possível (inevitável): não mais o freqüentam, não mais o procuram, nem sequer o
vêem. Por não ser visto, o arroio acaba não sendo pensado. Sua situação atual, apesar de ser
conhecida por todos, somente é ‘vivenciada’ por aqueles que habitam as suas margens - em
última análise, os únicos diretamente envolvidos com ela (seja no que concerne a sua
produção, seja no que se refere à busca de soluções). Os demais, ao que parece, procuram
esquecê-la. Quando perguntados sobre as suas relações atuais com o arroio, seu Luiz e Maria
Clair dizem o seguinte:
(...) Hoje em dia muito pequena. Muito pequena porque não se tem mais acesso ao arroio
(...). Mas do arroio para o que ele era, hoje em dia ele corre como daqui alí à parede [indica
um espaço pequeno entre ele e a parede da sala]... é um varãozinho d’água... o espaço de
terra aberto é enorme, o senhor não consegue pular ele, nem com uma vara... entende? Se for
quere cruzar tem que botar uma escada de fora a fora, fazer uma ponte... ou descendo e
atravessando ele embaixo. Mas ir até em cima como o arroio ia... [gesticula
negativamente].(...) Mas , tu vai alí tu te decepciona, porque é muito lixo, é sovelho, é
pneu, tudo o que tu não usa (...). O arroio é tipo uma lixeira (...). (Luiz Armando)
(...) A última vez que eu fui ali embaixo [refere-se ao Bairro São José], que eu vi o arroio, foi
quando eu fui na casa dela [refere-se a irmã que morava na beira do arroio; três anos
atrás]. (...) Tem bastante gente que mora na beira do arroio, que a gente conhece de anos... e
então, quando eu ia ali embaixo, na casa da minha irmã, eu já ia na casa dos conhecidos, né?
Daí eu via o arroio, ia nos fundos da casa, daí dava pra ver... Mas como eu não tenho ido
mais lá pra baixo... Mas a última vez que eu vi achei feio, água escura, bastante lixo,
bastante coisa atirada (...). (Maria Clair)
Conforme é possível perceber nestes relatos, o arroio dificilmente é visto: por um lado
em função da barreira física que são as centenas de casas construídas às suas margens; por
141
outro, a paisagem que se revela a cada encontro acaba desestimulando o reencontro
constituí, pois, como que uma barreira simbólica; mais uma a separá-los. Uma separação
imposta, mas cada vez mais desejada.
O arroio, da maneira com que se apresenta hoje, assume para os sujeitos entrevistados
um valor de ruína. Uma ruína no sentido físico e ecológico de sua existência; um fragmento
do passado no presente. Carlos Fortuna (1997), no trabalho referido anteriormente, irá dizer
que existem, fundamentalmente, dois sentidos em que as ruínas podem ser interpretadas como
sinais do passado no presente: um primeiro, mais pessimista, onde “as ruínas ilustram
transitoriedade e decrepitude” (FORTUNA, 1997, p.132); e um segundo, mais otimista, no
qual “as ruínas são realmente fragmentos e sinais do passado” (FORTUNA, 1997, p.132).
Nesse primeiro sentido, as ruínas refletem a decadência (substituição) dos conjuntos de
relações sociais anteriores e dos modos de vida que lhe eram característicos; não representam,
pois, o passado, mas “ilustram antes um presente sem futuro, a ser vivido aqui e agora, ao
sabor da satisfação pessoal dos sujeitos” (FORTUNA, 1997, p.132). Já no segundo, seja em
função da beleza e harmonia de suas formas, seja devido a evasão do presente experimentada
a partir delas, as ruínas nos “reconfortam”, promovendo um sentimento de bem estar
(FORTUNA, 1997).
No que concerne ao quadro desenhado em seus relatos, é possível afirmar que, se o
arroio se lhes apresenta como uma ruína, certamente é interpretado desde o primeiro dos dois
sentidos apresentados acima. O arroio atual, de fato, ilustra “transitoriedade e decrepitude”;
representa mais um “presente sem futuro” do que o passado do qual decorre. Em alguma
medida, é como se existissem dois arroios distintos: aquele presente nas lembranças e
recordações e outro atual; ou, talvez ainda melhor, dois espaços distintos, separados na linha
do tempo por acontecimentos específicos: de um lado o “riacho
74
e do outro o “valão”.
Assim, mais do que nunca, o arroio “reina no antecedente”. Seu atual estágio de
degradação, ou melhor, a impossibilidade de suportar a imagem de sua agonia, remete os
habitantes do lugar àquele espaço de outrora, remanescente em suas lembranças. Em última
análise, é com este e não com aquele que se relacionam atualmente os integrantes do nosso
grupo. Dito em outras palavras, a relação atual com o arroio é cada vez menos uma relação
com o arroio atual (e cada vez mais uma relação nostálgica com um passado recente). Por um
lado, essa estratégia de sobrevivência, uma vez que se fundamenta no reencontro com aquele
‘espaço’ perdido, pode reavivar nos seus sujeitos alguns dos sentimentos que estiveram por
74
“(...) No começo a gente do Parque Santo Inácio vivia quase sem estruturas, sem coleta de lixo, sem ônibus ,
escolas poucas e longe, lazer para os guris apenas o riacho que passa ao lado da Refap (...).” (Seu Paulo
depoimento escrito – grifo meu)
142
trás das relações estabelecidas com ele e, quem sabe, acabar reaproximando os “dois arroios”.
Por outro lado, pode acabar restrita aquela sua dimensão de fuga e assim “selar” de vez o
afastamento. Justamente o alerta que nos faz Fortuna:
Recordar transporta-nos para outro tempo e, desse modo, para outro lugar.
É nisto que reside o perigo da memória. Se o tempo é um lugar, o passado é
uma terra distante e o nosso receio, uma fuga ao confronto com o outro.
Esta, por sua vez, uma fuga ao encontro conosco próprios. (FORTUNA,
1997, p.139).
O “mato”
Se dentre todos os atuais componentes da paisagem o arroio é o mais ‘antigo’, o
“mato” da Refap é certamente o mais imponente, o mais visível, aquele mais presente. Por
aproximadamente três quilômetros, milhares de eucaliptos acompanham o curso d’água,
edificando como que uma espécie de muralha do “lado de lá” do arroio (ver imagem 1).
Assim, enquanto o arroio “reina no antecedente” em função das transformações a que foi
submetido, o mato reina no presente, por aquilo que é na forma em que se apresenta. Para
aqueles que chegaram ao lugar após o início da década de oitenta, além disso, o mato se
apresenta como o elemento constante da paisagem. Sofreu pequenas modificações de para
cá, sendo a maioria delas resultado do próprio crescimento das árvores. Essa imensidão verde
sugere aos habitantes do lugar, e de modo particular aos sujeitos entrevistados, imagens
diversas às quais são atribuídos significados igualmente variados. Por outro lado, o mato é um
elemento histórico, isto é, tem uma história relativamente recente e da qual participaram
alguns dos integrantes do nosso grupo. É fruto do engenho humano e vem desempenhar no
lugar funções bastante específicas, a maior parte das quais, ao que parece, passa despercebida
pelos seus habitantes. Enfim, o mato simboliza um limite, uma zona proibida, raramente
acessada. É, pois, o símbolo de uma presença que se dissimula por trás de sua imponência;
uma verdadeira presente-ausente, conforme pode ser sugerido a partir dos seus relatos e
histórias.
143
De acordo com seus depoimentos, a constituição do mato remonta ao final da década
de setenta
75
. Conforme contam aqueles que já haviam se estabelecido na cidade nesse período,
o terreno do lado de lá do arroio, onde predominava o “mato comum” (assim como do lado de
cá), foi “devidamente” preparado para o plantio; além disso, foram os próprios moradores do
local a mão de obra empregada para sua implementação:
Tinha o arroio e depois amaricá, mato comum. a Petrobras veio, passou a máquina e
limpou, ficou limpo (...). Aí, eles começaram a pedir para nós, para a gurizada, convidando;
pagavam centavos para plantar mudinha [eucalipto]. Os meus irmãos plantaram muito (...).
O meu irmão apanhou muito por isso... Porque ele matava aula para ir plantar, para
ganhar dinheiro... Então assim, o meu irmão, os guris da rua ajudaram a plantar. depois
foram crescendo esses eucaliptos
76
, que antes não tinha (...). (Angela)
De acordo com Angela, essa “limpeza” teria ocorrido já no final da década de setenta,
mais ou menos no mesmo momento em que, do lado de cá, iniciavam as obras de
terraplanagem (derrubada do mato) para a construção da atual Vila Olímpica. Maria Clair que
chega a esta região da cidade em 1979, conta que antes do plantio (provavelmente após a
derrubada do mato nativo) os dois mundos (representados pelo lado de e o de do arroio)
se encontravam através da visão:
(...) Depois com o tempo a gente já não conseguia mais ver o outro lado que nem a gente via.
A gente via bem direitinho do outro lado, como é que era tudo, como é que não era... Depois
começou a crescer e aí a gente não via mais nada (...). (Maria Clair)
Num segundo momento, então, a “limpeza” do terreno lugar ao plantio de milhares
de mudas de eucalipto, trabalho esse realizado em “parceria” com os moradores locais.
Iniciava a consolidação da separação visual (e conforme pretendo argumentar, também
cognitiva) entre dois mundos: aquele representado pela atividade industrial (neste caso uma
refinaria de petróleo) e aquele representado pelo cotidiano experimentado numa periferia
urbana em expansão. Conforme contam, esse trabalho garantiu, por algum tempo, o sustento
75
Procurei no site da empresa informações que pudessem ser cruzadas àquelas construídas durante a pesquisa,
mas não encontrei nenhuma indicação precisa. A única referência existente e que neste caso corrobora os tempos
indicados em suas narrativas, é a de que “em 1977, a Refap pôde diversificar as atividades produtivas,
expandindo os excedentes de óleo combustível para derivados com maior valor agregado, como diesel, GLP e
gasolina. Paralelamente, se intensifica o compromisso ambiental da companhia, que passa a investir ainda mais
em ações que valorizam a vida e a natureza”. (Disponível em: <http://www.refap.com.br/refap_historico.asp>
Acesso em: 20/01/2007 )
76
O eucalipto (Eucalyptus sp.) espécie nativa da Austrália e Pacífico Sul, foi introduzida no Brasil por interesse
florestal e ornamental, tendo como uso econômico a produção de madeira serrada e celulose. Tem grande
capacidade de transformação de sistemas abertos em sistemas fechados (arbóreos), com perda de biodiversidade
por sombreamento, pode alterar regimes hídricos em ecossistemas abertos e também dominar gradativamente o
ambiente, contribuindo para alteração de paisagem e de valores culturais associados. (Fonte: Instituto Hórus de
Desenvolvimento e Conservação Ambiental / The Nature Conservancy. Disponível em:
<http://www.institutohorus.org.br/trabalhosa_fichas.htm
> Acesso em: 07/07/2006)
144
de muitos habitantes; principalmente daqueles recém chegados ao lugar e que vieram se
estabelecer nas áreas verdes contíguas ao arroio. O mato, dessa forma, pelo menos para esses
moradores mais antigos, remete não a um antes-de-mim ou a um antes-de-nós, conforme a
floresta descrita por Bachelard, mas é localizado no comigo, no conosco. Maria Clair, que
acompanhou de perto esse processo, revela algumas de suas dimensões:
(...) Eu lembro assim, da mãe plantando aquilo alí, de pessoas interessadas em plantar
também, para tirar o sustento, né? Porque estavam desempregadas, queriam ganhar dinheiro
e tal... e o orgulho de outras pessoas que ajudaram a fazer aquilo alí, da minha mãe mesmo,
de dizer: pô, eu ajudei a plantar aquele mato alí”. No caso da minha mãe, ela ajudou e ela
ainda fala e se lembra direitinho... Aquele mato ali é uma boa recordação que eu tenho,
porque eu estou sabendo que amigos meus e a minha mãe plantaram e dali a gente tirou o
sustento, por um bom tempo (...). (Maria Clair)
Para a mãe de Maria Clair, o mato, mais do que um elemento da paisagem, apresenta-
se como um resultado de sua ação. Através dele, ela não apenas garantiu o sustento da família
em tempos difíceis, como também se tornou um sujeito da paisagem, sujeito da história do
lugar. O mato é um ‘espaço’ do lugar que ajudou a construir. E hoje, em toda a sua extensão e
imponência ele se lhe apresenta como um signo desse vínculo: é o elemento do espaço no
qual se reconhece e com o qual se identifica.
Para além de sua dimensão histórica, entretanto, o mato possui também uma
dimensão funcional mais ou menos ampla. Isso significa que sua constituição se atrelada a
um conjunto de relações sociais e vem atender demandas bastante específicas. O mato tem
uma razão de ser. E essa razão encontra-se diretamente associada às atividades desenvolvidas
do “lado de lá”. A idéia de uma zona de amortecimento
77
, instituída com objetivo de mitigar
os efeitos nocivos inerentes a atividade de refino do petróleo e ou advindos de um possível
acidente, poderia ser aventada como uma dessas razões. Contudo, é certo que o
“amortecimento” objetivado diz respeito também ao movimento no sentido contrário, isto é, o
mato, em função de sua extensão e localização torna difusa a presença da refinaria para
aqueles seus vizinhos ao mesmo tempo em que evita que se encontrem direta e diariamente.
No que se refere a sua função como zona de amortecimento, ao que parece, poucos são os
sujeitos entrevistados que a identificam ou percebem. Por outro lado, a idéia do mato
enquanto limite (um dos significados que assume naquilo que se poderia dizer sua dimensão
77
O conceito de Zona de Amortecimento é análogo ao entendimento existente sobre zona de transição ou zona
tampão, “indicando as áreas vizinhas às unidades de conservação [e/ou áreas industriais] e que mantém com
estas relações de influência ambiental e social. Incluem também o sentido de mudança gradativa de uma situação
(...) para outra oposta (...).” (MARCO CONCEITUAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO FEDERAIS
DO BRASIL, 1997, p.27 – comentário entre colchetes meu)
145
simbólica), enquanto uma barreira imposta, essa sim se faz presente e viva no imaginário e
nas lembranças dos integrantes do nosso grupo:
(...) Pra mim é como se fosse... é uma zona proibida. (...) eu nunca fui... o meu irmão mais
velho nunca foi e o do meio que era mais tinhosos foi, tanto é que quando chegou em casa
‘tomou’ um ‘pau’ do pai, porque eles quase foram pegos pela... pela polícia deles [refere-se
aos guardas que fazem a segurança da refinaria]. Então, assim... o mato... Antes era liberdade
e aquele mato era como... um muro... Esse mato era o limite. (...)
Um limite a partir do qual o espaço de vida é (re)construído e significado. Poder-se-ia
pensar, nesse sentido, que a constituição/construção do espaço dá-se a partir, também, de
pontos de referência externos ao espaço vivido, experimentado. A demarcação de limites
permite a construção/significação dos espaços de vida, dos espaços de relacionamentos.
A noção do mato enquanto um limite, entretanto, se restringe a o plano físico de suas
existências; no “mundo da imaginação”, ao contrário, ele é intensamente explorado. Nessa sua
outra dimensão uma dimensão poética -, o mato se converte num convite ao devaneio, à
imaginação. O espaço, nesse sentido, “não pode ser o espaço indiferente, entregue à
mensuração e a reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade,
mas com todas as parcialidades da imaginação” (BACHELARD, 1993, p.19). Uma
experiência desencadeada, na maioria dos casos, através do olhar:
(...) Olha, a relação que eu tenho com o mato da Petrobrás, desde que eu vim para cá, é
uma relação platônica mesmo, de olhar o mato daqui, como eu olhava ali na outra casa,
porque eu nunca tive ali dentro... [peço-lhe então para que explique como é essa relação de
“olhar”] Ah, eu acho que se um dia eles tirarem esse mato daí, eu acho que eu me mudo
daqui... vai ser muito triste porque tu não vai mais ter o verde para ver, sabe? Porque eu
não enxergo daqui, mas eu tento imaginar, assim, o que mora de bicho ali dentro do mato, de
animais que precisam desse mato para sobreviver, pássaros, de repente até macaco tem
que a gente não saiba, bugio... e outras espécies de bichinhos que moram dentro do mato,
cobra, lagarto... Então, eu acho que se um dia eles derrubarem o mato, perde a vida do
bairro, sabe? Essa vida que tem aqui, que pelo menos eu curto (...).
A importância que o mato assume para seu Luiz não é pequena. Para se ter uma noção
aproximada, faz-se necessário considerar este seu depoimento à luz de outras declaração suas,
como, por exemplo, a seguinte:
Então, claro que o convívio familiar te prende no lugar... mas eu dizer assim, que fico preso
em Esteio pela família, não. Eu fico preso em Esteio pela terra, por que eu gosto de Esteio
(...). Que nem disse o seu Manuel, aqui a gente conseguiu as coisas... que nem ele diz: eu
consegui o meu emprego, consegui a minha casa, consegui a minha família...” Aqui, eu
consegui duas coisas que eu queria, os sonhos que eu tinha, de criança, de pequenininho: de
ter a minha casa, de ter o meu terreno... entende? De ver a minha mãe dentro do que era
146
dela... num terreninho dela, que não precisasse mudar... Isso eu consegui dar para minha
mãe; ela mora num terreno que ninguém vai tirar dela porque é meu, entende?(...) Então
para mim Esteio foi muito bom por isso...
Nesse contexto, a declaração de que talvez se mudasse da cidade em função da
derrubada do mato - esse espaço “proibido” e acessado apenas através da imaginação -
adquire relevo. Para seu Luiz, é justamente o mato que caracteriza e vida ao lugar. Em
alguma medida, ao longo do seu depoimento, é possível perceber a presença do mato
enquanto lócus de uma ‘natureza’. Mais do que o arroio, é o mato que o remete a ela.
Também é possível perceber, ao longo do restante de sua fala, a emergência de uma dimensão
estética, em relação à qual as demais sua dimensão histórica e, até mesmo, uma dimensão
ecológica – são postas em segundo plano:
Mas se um dia acabar tudo mesmo, que eles derrubem tudo, que eu acredito que eles não
possam fazer, deve ter uma legislação que proteja isso, mas se eles fizerem, acaba toda... a
beleza do lugar. Porque o que beleza aqui para nós... porque se o senhor olhar para
[vira-se para trás e aponta em direção ao norte], não tem mais, para o senhor vai ver
casa e rua... e o que dá uma beleza de se sentir num lugar, assim, mais ou menos conservado,
é tu olhar pro mato, mesmo que tu saiba que a maioria desse mato foi plantada, que a
maioria é eucalipto, que tem muita pouca árvore nativa, mas tu olha pra ele e tu te sente bem,
ele te dá um bem estar (...).
No mesmo artigo em que discute os diferentes significados atribuídos às ruínas, Carlos
Fortuna (1997), tomando como referencia o trabalho de Georg Simmel (1959, 1971), irá falar
justamente em uma esteticização do espaço que “apazigua” as consciências e que promove
entre os seus sujeitos como que uma evasão do presente. De acordo com ele, “a paz e a
harmonia que exalam da ruína se constituem em indispensável evasão do presente. Elas
podem projetar-nos para fora de nós próprios, para um lugar e um tempo fantásticos, sem
limites (...)” (FORTUNA, 1997, p.133). De modo análogo, poder-se-ia dizer que o mato,
embora não se apresente enquanto uma ruína pelo menos não da mesma forma com que o
arroio -, por sua beleza e harmonia, proporciona a seu Luiz um sentimento de bem estar
(paz). Além disso, conforme apresentado acima, convida-o ao devaneio, à imaginação
(evasão do presente). Nesse sentido, aquelas dimensões estética e poética assumidas pelo
mato se atravessam e complementam: o bem estar proporcionado pela primeira possui
“capacidade de suspender o (...) presente e nos fazer divagar” (FORTUNA, 1997, p.133),
constituindo-se, pois, em ponto de partida para a segunda.
Na fala de seu Luiz é o mato que dá vida ao lugar. Sua beleza, que passa a ser também
a beleza do lugar, “apazigua”, convida à imaginação e ao devaneio. Através dela faz-se
possível “viajar”: embrenhar-se no seu interior e conhecer a vida que abriga ou se projetar a
147
outros tempos e espaços. Num sentido figurado, poder-se-ia dizer que é para que fogem os
habitantes do lugar quando assolados por um presente sufocante ou quando acometidos por
uma saudade insuportável. Através do mato, pois, não apenas suspendem o presente, mas
também se reencontram com o passado; projetam-se, deslocalizam-se, ao mesmo tempo em
que se reencontram, fixam-se ao lugar. Nas palavras de Fortuna (1997):
Por via quer da sua dimensão estética e artística, quer da sua
materialidade arquitetônica, quer do seu simbolismo, esses lugares não se
limitam apenas a parecer templos, eles funcionam como tal. Implicam
estados de transitoriedade da condição social e, sobretudo, dos estados de
espírito e das emoções dos sujeitos. A arte, como a ciência moderna,
reconhece que entre o observador e o observado se estabelecem relações
complexas. Observar qualquer coisa é torná-la objeto dos nossos sentidos,
exercer uma influência sobre ela, transformá-la e consumi-la. Todavia
porque a transformação do objeto é sempre também a transformação do
sujeito, é este que, em última análise, se transfigura no ato da observação do
mundo exterior. (FORTUNA, 1997, p.134)
O “banhado”
O processo de (re)construção do espaço, isto é, de transformação de um não-lugar em
lugar, conforme procurou ser caracterizado até antão, envolve, além do encontro entre
“velhos e novos mundos, a transformação de formas-objetos em formas conteúdo (assim
como a sua constante resignificação). No que concerne à relação dos sujeitos entrevistados
com os ‘espaços’ do lugar, poder-se-ia falar que o arroio e o mato são significados, ao menos
inicialmente, de forma positiva. Por outro lado, a (re)construção do espaço envolve também a
atribuição de valores e significados “negativos” à paisagem. A interação dos primeiros
habitantes do lugar com os ainda presentes banhados, pode ser utilizada como um exemplo
disso. Posteriormente, a relação dos integrantes do nosso grupo com a “vila banhado”
(construída sobre eles) parece ser elucidativa dos modos através dos quais algumas cargas
simbólicas permanecem e/ou são aos poucos transformadas.
Nas histórias daqueles e daquelas habitantes mais antigos/antigas do lugar, as áreas de
banhado aparecem frequentemente referidas como “atoleiros” ou simplesmente “lodo”. Ao
que parece, essas áreas se lhes apresentavam essencialmente enquanto empecilhos, uma vez
que não encontravam nelas nenhum tipo de utilidade. Diferente da interação com os matos (na
qual além de um deleite estético, estava envolvida a sua utilização direta como fonte de
madeira – para construção e/ou combustível) ou com o arroio (espaço de lazer e fonte de água
para serviços diversos), a interação com os banhados foi sempre uma relação de
148
enfrentamento: era como se os banhados se interpusessem entre os habitantes e seus objetivos
como um obstáculo a ser superado. Assim, em dias de chuva, os “atoleiros” os desafiavam a
sair de casa e a chegarem “sãos e salvos” (entenda-se limpos) na escola, no baile ou no
trabalho:
(...) era tudo campo aqui, banhado, cavalo (...) E mesmo no verão não se podia entrar que
era... ficava o barro [indica com as mãos uma altura logo abaixo dos joelhos] lá... era
banhado mesmo (...). (Osvaldo, descrevendo a região no final da década de 60)
(...) Quando eu tinha 16/17 anos e eu ia pro La Salle porque era o único lugar que tinha
para dançar... Então dia de chuva, “aí, como é que eu vou chegar?” Daí a gente amarrava
umas sacolas nas pernas assim [mostra com as mãos] para poder subir a lomba... porque era
puro barro! (Angela)
Apesar da maior parte do barro sobre o qual falam ser proveniente das obras de
terraplanagem executadas no lugar, essa diferenciação não fica clara em seus depoimentos e o
“barro” é colocado junto ao “lodo” numa mesma categoria que procura se referir ao extenso
conjunto de áreas úmidas sob a influência do arroio: os famigerados “banhados”. Além de
constituírem-se, num primeiro momento em “obstáculos”, essas áreas, num segundo
momento, foram o palco de boa parte (possivelmente a maior parte) das “invasões” que
transformaram não apenas a paisagem do lugar, como também a sua vida. O atual Bairro São
José (ver imagens 2,3 e 8), por exemplo, desenvolveu-se inteiro sobre uma dessas áreas.
Num dos seus depoimentos, Angela descreve essa dinâmica de ocupação do espaço (neste
caso, dos campos úmidos e semi-alagados localizados à sudoeste da Rua Santana – ver
imagem n° 4):
(...) eu lembro, também, que foi se perdendo tudo... eu acho que eu tinha uns 15,16
anos, essa vila São José. Eu lembro da primeira senhora que chegou(...) Ela veio, marcou, fez
a casa... dois dias, no outro dia a gente acordava de manhã, olhava assim, cheio de casinha...
duas, três casinhas. E assim ó, em um mês, essa vila, assim, encheu, mas encheu de um jeito!
(...) Mas era uma coisa impressionante. Quando resolveram invadir, cada dia tu ia alí e tinha
mais casinha... eu disse “mãe do céu!” (Angela)
Ao longo dos seus relatos, principalmente daqueles entrevistados que vieram se
radicar nas áreas “regularmente” loteadas, é possível perceber uma clara associação entre a
ocupação dos banhados e a degradação do espaço de vida, no seu sentido físico e também no
que concerne aos modos de vida vigentes. A tranqüilidade antes experimentada lugar à
insegurança:
149
(...) [Refere-se a tranqüilidade do lugar] Tanto é que, assim, a minha mãe... a gente saía,
deixava a casa aberta... Pra tu ver, eu tinha seis [anos], a Rosinha [irmã] tinha três, o outro
tinha oito, o outro meu irmão tinha dois, a minha irmã mais velha (...) 13 anos... Então assim,
nós ficávamos sozinhos o dia todo, um cuidando do outro, brincando, correndo rua... A mãe
deixava a comida pronta, um aquecia... sabe? Era tudo assim, e não era os meus pais.
Tinha um outro casal que veio morar também e tinham as crianças soltas assim (...). Aí,
depois que começou a vir a vila, que começou a ter roubo, que o pai prendeu mais nós em
casa (...). (Angela)
(...) Então, ali na nossa rua também era assim... a gente deixava a casa aberta, saia, ninguém
te roubava nada, deixava roupa na rua, ninguém pegava... É que nem o negócio da droga,
dos ladrões, dessas coisas que vieram para Esteio: é o preço que a gente ta pagando pela
cidade ter crescido (...). (Luis Armando)
Nesse sentido, o antigo banhado “obstáculo” se transforma no atual banhado “vila”.
Passa a se apresentar enquanto lócus da criminalidade do lugar assim como foco e “fonte” de
sua degradação ambiental, principalmente aquela associada ao arroio. Projeta-se assim, sobre
ele, uma carga simbólica marcada pelo medo, por algum preconceito e pelo inconformismo.
Uma carga simbólica que, a despeito das intensas modificações ocorridas no lugar, mantém-se
ainda hoje. Principalmente para aqueles moradores de outras regiões da cidade, conforme é
possível perceber neste relato de seu Luiz:
(...) a relação que eu tenho de banhado, aqui, que o pessoal fala, é da vila. Que fala: “bah,
eu vou no banhado, tu vai no...”, se referindo ao bairro ali, ao pessoal que veio morar ali,
que se tornou a vila (...). Mas a relação do pessoal que mora mais pro centro, com a vila
banhado, é que a vila é de bandido, entende? Eles têm essa visão (...).
Entre os sujeitos entrevistados, entretanto, os significados que o banhado assume,
apresentam-se menos absolutos (mais ambivalentes). Na sua maior parte eles reconhecem e
atribuem à ocupação dessas áreas boa parte da degradação ambiental do lugar, conforme
mencionado acima e exemplificado quando da apresentação de suas relações com o arroio.
Reconhecem também que as condições nas quais se deu essa ocupação, associada às
condições sócio-econômicas dos seus habitantes, tenham resultado no aumento da incidência
de roubos, por exemplo. Por outro lado, enquanto moradores do “banhado” ou na condição de
freqüentadores do bairro (amigos ou parentes de moradores) compreendem o quão simplista
(reducionista) é a afirmação de que “a vila é vila de bandido”. Nesse sentido, o termo
“banhado”, ainda que continue assumindo uma conotação pejorativa, negativa, no interior dos
discursos produzidos localmente, quando posto em questão, permite a construção de outras
dimensões deste ‘espaço’ de vida. Um exemplo disso pode ser encontrado no seguinte
depoimento de seu Osvaldo:
150
(...) O que eu entendo por banhado é a recriação da natureza... [pausa] o banhado. Porque
tudo aquilo que está prestes a terminar, ele procura água, né? E ali, nós encontramos, no
banhado, diversas espécies... e também, na nossa humanística, nós encontramos ali gente de
todas as espécies, todos os tipos; tem tudo ali: o bom, o mau... E assim, eu não me detive
ainda no estudo da palavra banhado, em si - o banhado -, mas o que eu subentendo é isso aí:
ali é o local onde todos necessitam e onde todos vivem bem (...).
Seu Osvaldo, que quando criança aprendeu com a avó a tirar o sustento do banhado e
que depois de chegar à cidade fez muitos amigos entre os seus moradores, estabelece uma rica
comparação entre a diversidade biológica do ecossistema banhado e a diversidade sócio-
cultural da vila “banhado”, desenvolvida sobre o primeiro. Uma analogia utilizada também
por Milton Santos (2006), quando aborda a questão dos pobres na cidade:
Graças à sua configuração geográfica, a cidade, sobretudo a grande, aparece
como diversidade sócio-espacial a comparar (...) com a biodiversidade hoje
tão prezada pelo movimento ecológico. Palco da atividade de todos os
capitais e de todos os trabalhos ela pode atrair e acolher as multidões de
pobres expulsos do campo e das cidades médias pela modernização da
agricultura e dos serviços. E a presença dos pobres aumenta e enriquece a
diversidade sócio-espacial, que tanto se manifesta pela produção da
materialidade em bairros e sítios tão contrastantes, quanto pelas formas de
trabalho e de vida. (SANTOS, 2006, p.323)
Uma analogia que, em alguma medida, caracteriza bem não apenas o atual Bairro São
José, mas a região como um todo: espaço de vida no qual se encontram e hibridizam uma
diversidade de manifestações sócio-culturais, expressas nos diferentes modos de vida, nas
diferentes formas de interpretar e se relacionar com o mundo, com os outros. Características,
pois, que tornam não apenas o bairro único no interior da região estudada, mas que também
tornam a própria região única no interior da cidade.
Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que o “banhado”, enquanto ‘espaço de vida’, vem
lentamente conquistando legitimidade e se dissociando de uma carga simbólica inicial
predominantemente negativa. Desde a interação conflituosa com os antigos “atoleiros”,
passando pela relação de medo, desconfiança e preconceito para com os seus habitantes, até
um ainda tímido reconhecimento de suas potencialidades, a (re)construção deste espaço tem
revelado que a mudança, ao mesmo tempo em que afasta, também pode aproximar.
***
Conforme procurou ser evidenciado nas linhas acima, as relações dos sujeitos
entrevistados com o espaço, assim como ele, modificaram-se bastante ao longo do tempo.
151
Modificaram-se as relações e modificaram-se os espaços, num processo contínuo e recíproco
através do qual o lugar de destino foi (e permanece sendo) (re)construído. Dessa forma, a
(re)construção do espaço, além do encontro entre “velhos e novos mundos”, envolve também
o encontro e o desencontro (aproximação e afastamento) com os muitos ‘espaços’ do lugar.
A relação dos sujeitos entrevistados com o arroio, pode-se dizer, evoluí de uma
relação bastante positiva e direta (imediata), para outra menos positiva (em alguns casos, até,
bastante negativa) e cada vez mais indireta (mediada pelas imagens do passado). Poder-se-ia,
inclusive afirmar que a relação atual deles e delas com o arroio é menos uma relação com a
materialidade atual e mais uma relação com as próprias imagens evocadas em suas
lembranças e recordações. Nesse sentido, o arroio - espaço de lazer, de trabalho, de
transgressão se desestrutura física e simbolicamente assumindo aos seus antigos
freqüentadores um valor de ruína. Ao longo desse processo, no qual se transformam o arroio
e os seus sujeitos, é possível detectar alguns dos eventos envolvidos (condições de
possibilidade e/ou resultados) nessas transformações.
Num primeiro momento, então, teríamos um arroio íntegro sobre o qual começam a se
instalar um conjunto de relações sociais. Estas, por sua vez, no processo de sua “instalação”,
transformam-no mais ao nível dos significados e valores do que materialmente. Projetam,
pois, sobre ele uma seqüência de diferentes conteúdos simbólicos. Entre estes, poder-se-iam
destacar, num período inicial, os medos de acidentes e/ou contaminação. Esses medos,
conforme destacado acima, começam a transformar o arroio para os seus moradores - ainda
que materialmente (visualmente) ele se mantivesse o mesmo. Medos que possuem uma
ancoragem no mundo “real”, isto é, que emergem e são corroborados por acontecimentos
concretos, como os afogamentos relatados e o início da ocupação (e destruição) de suas
margens.
Especificamente relacionado a isso, é intrigante perceber que o medo de
contaminação, isto é, a incerteza quanto à qualidade de suas águas, é associado de forma
exclusiva ao avanço da urbanização. A presença da refinaria (anterior à chegada de todos os
integrantes do nosso grupo), por exemplo, parece não ser percebida pelos sujeitos
entrevistados; pelo menos não como um elemento poluidor das águas. Em nenhum momento
eles ou elas estabeleceram essa relação. Não seria um exagero dizer, pois, que a refinaria (e
não todo o “lado de lá”, como supunha no início da investigação) se lhes apresenta, de fato,
enquanto um grande espaço vazio, conforme é defino por Bauman (2001):
Os espaços vazios são antes de mais nada vazios de significados. Não que
sejam sem significado porque são vazios; é porque não têm significado,
152
nem se acredita que possam tê-lo, que são vistos como vazios (melhor seria
dizer não-vistos). (BAUMAN, 2001, p.120)
Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que ela foi a grande ausência em seus relatos e
histórias; ou, conforme dito no capítulo anterior, seu principal esquecimento”. A principal
hipótese que levanto para explicar (e tentar compreender) essa ausência é a presença
(interposição) do mato no local. Conforme apresentado anteriormente, o mato vem cumprir
funções bastante específicas no lugar, entre as quais, a de constituir-se numa zona de
amortecimento, talvez seja a principal. Sob este ponto de vista, o mato funciona como uma
espécie de “filtro” destinado a minimizar os impactos que as atividades exercidas do “lado de
lá” implicam (ou podem implicar) ao “lado de cá”, ao mesmo tempo em que minimiza a ação
cognitiva dos habitantes do “lado de cá” sobre o “mundo do lado de lá”. Enquanto “filtro”, o
mato dissimula a presença da refinaria; torna-a difusa, nebulosa, distante. Mas o mato,
conforme visto, também se apresenta enquanto um limite (neste caso físico e cognitivo),
enquanto uma barreira que se interpõe entre dois mundos distintos, impedindo que se vejam
(dificultando que se pensem) e se encontrem direta e diariamente aqueles seus habitantes e
sujeitos. Interposto, além disso, o mato não apenas “bloqueia”, como também “captura”,
“seduz” pela beleza, harmonia e imponência de suas formas.
Retornando ao quadro inicialmente delineado, o arroio, num segundo momento,
transformado pelas relações sociais que o atravessam e nele se instalaram, tem acelerada sua
degradação ecológica e destruição física. Deixa de ser, pois, um espaço de lazer para se tornar
num espaço a ser esquecido. Em seus relatos, a destruição do arroio neste segundo momento
continua associada quase que exclusivamente ao avanço da urbanização e à conseqüente
chegada de cada vez mais pessoas ao lugar. A destruição de sua mata ciliar, assim como o
descarte de dejetos e detritos em suas águas aparecem como as principais conseqüências da
urbanização e causas da transformação do arroio (antigo “riacho”) em valão. Praticamente
todos os participantes da pesquisa, em algum momento, utilizaram essa designação para se
referir ao arroio.
O mato por sua vez, é palco de uma relação mais ou menos constante entre a paisagem
e seus habitantes. É, apesar de toda a sua imponência e extensão, uma constituição recente no
lugar; uma constituição da qual participaram alguns dos sujeitos entrevistados (amigos,
familiares, etc.). Um ‘espaço’ através do qual se constituíram em sujeitos do lugar, sujeitos de
sua história. Para outros, entretanto, conforme apresentado acima, o mato representa uma
barreira, um limite físico que se torna também cognitivo. Esta sua dimensão, em alguma
medida, emerge entrelaçada às funções para as quais foi planejado e/ou acabou
153
desempenhado. Contudo, mais do que “filtrar”, “dissimular”, “distrair” e “bloquear”, o mato
também acolhe; permite que nele se percam e, assim, (re)encontrem-se aqueles seus
admiradores. Através dele se faz possível escapar para outros tempos-espaços de vida:
experimentá-los, revivê-los, reconstruí-los. Uma escapada que pressupõe retorno e que assim,
ao “deslocar”, “fixa” (sempre numa nova posição).
Por fim o banhado, ecossistema que se torna espaço sócio-cultural, espaço de vida
cheio de vida. Malogrado desde o início, quando ainda se apresentava sob a forma de
“atoleiros” ou simplesmente “lodo” (ao menos era assim que o via os primeiros habitantes do
lugar), o banhado recebe aqueles que não têm onde viver, nem como adquirir “regularmente”
um pedaço de chão. Recebe, pois, homens e mulheres diversos, provenientes das mais
diversas localidades e que chegam ao lugar atraídos pelas possibilidades de emprego (junto
aos extensos loteamentos “regulares” na construção de centenas de casas populares) e/ou
pela possibilidade de demarcar (conquistar) um (ainda que minúsculo) território (espaço de
vida). O banhado ecossistema, desprovido de utilidade para aqueles habitantes do lugar, acaba
dessa forma se tornando o “banhado vila”, lócus da pobreza e da criminalidade do lugar;
deixa de ser apenas um obstáculo físico para se tornar também um obstáculo simbólico. Por
outro lado, assim como fala seu Osvaldo, o “banhado vila” abriga hoje um rica diversidade
cultural: uma outra dimensão do banhado que vem relativizando, para aqueles que não o
conhecem de perto (como eu), as cargas simbólicas que lhe são projetadas, em geral de longe.
***
Ao longo desse processo contínuo de (re) construção do espaço, um processo que se
faz a partir de idas e vindas, aproximações e afastamentos; um processo que envolve sempre o
encontro entre “velhos e novos mundos” e que pressupõem a movimentação para que o
conhecimento (aprendizado) possa ocorrer; um processo no qual as relações sociais (expressas
através dos modos de vida e de toda uma carga simbólica) e as paisagens se atravessam e
modificam continuamente; um processo no qual a transformação material da paisagem é
acompanhada (precedida e sucedida) por alterações a ao nível dos significados e valores, ao
mesmo tempo em que as alterações ao nível dos significados e valores são, de um modo geral,
acompanhadas (precedidas e sucedidas) por transformações materiais; enfim, um processo
através do qual seus sujeitos se constituem como tal, o não-lugar que foi a cidade de Esteio
em algum momento ao longo de suas jornadas acabou transformado em um lugar - e mais do
que isso, para a maioria dos participantes da pesquisa, acabou tornando-se o seu lugar no
154
mundo, a sua terra. Gostaria, pois, de encerrar este capítulo com uma seqüência de
depoimentos que, melhor do que eu, dizem bem o significado que o lugar de hoje assume em
suas vidas.
(...) Estamos aqui... aqui eu adquiri a minha casa própria. Consegui mais uma casa para a
minha filha. O meu filho está comprando uma casa também... Quer dizer, a gente ta
crescendo, ta se colocando, ta sendo aquilo que a gente planificou, né?Então, o meu
segundo... a minha segunda cidade é Esteio. E eu me adaptei muito bem (...) E vendo que
todos estão dizendo: “quando eu me aposentar eu vou para lá...”. Eu já sou o contrário. Eu
acho que eu vim de lá para cá, consegui o que eu pretendia... eu vou tentar aqui melhorar
mais um pouquinho. Vou montar um programa onde a gente possa, alicerçado no que temos
hoje, chegar mais um pouquinho alto. Não, digamos, eu, mas a minha família, os meus filhos,
os meus netos (...). (Osvaldo)
(...) Para mim, antigamente, eu sempre achava que um dia eu ia voltar... Agora eu não faço
questão de voltar porque foi aqui que eu me realizei, me estabeleci, criei meus filhos,
eduquei, criei a minha neta... Então, é aqui o meu lar, a minha vida (...). (Paulo)
(...) Eu também, eu gosto muito daqui... e pretendo continuar porque gosto mesmo. Eu sei que
nasci lá, mas eu me sinto mais à vontade aqui (...). (Maria Clair)
(...) Então, claro que o convívio familiar te prende no lugar... mas eu dizer assim, que fico
preso em Esteio pela família, não. Eu fico preso em Esteio pela terra, por que eu gosto de
Esteio (...). Que nem disse o seu Manuel, aqui a gente conseguiu as coisas... que nem ele diz:
eu consegui o meu emprego, consegui a minha casa, consegui a minha família...” Aqui, eu
consegui duas coisas que eu queria, os sonhos que eu tinha, de criança, de pequenininho: de
ter a minha casa, de ter o meu terreno... entende? De ver a minha mãe dentro do que era
dela... num terreninho dela, que não precisasse mudar... Isso eu consegui dar para minha
mãe; ela mora num terreno que ninguém vai tirar dela porque é meu, entende?(...) Então
para mim Esteio foi muito bom por isso... É que nem, assim, que nem o meu amigo espanhol
dizia, quando ele veio embora lá da Espanha para cá. Um dia eu perguntei para ele qual era
a pátria dele; se a pátria dele era o Brasil ou era a Espanha. Ele disse: “não, a minha pátria,
onde eu nasci é a Espanha, mas a pátria, que é a minha pátria hoje em dia, é o Brasil;
porque é da pátria onde eu tiro o meu sustento, a minha vida, onde eu moro, onde eu realizo
os meus sonhos”. Então Esteio para mim é mais ou menos como ele dizia; Esteio realizou as
minhas coisas e eu me realizo com Esteio, entende?Só o que falta para eu me completar hoje
em dia é um filho. Não sei se vou conseguir ter, vamos ver... a vida vai levando (...). (Luiz
Armando)
***
155
6. A DIMENSÃO EDUCATIVA (AMBIENTAL) DA INVESTIGAÇÃO
Da escola onde estudei quando criança dava para ver o “mato” de eucaliptos da Refap.
Lembro do quanto distante se apresentava aquela imagem, aquele horizonte verde, retilíneo e
estranhamente presente. A distância, nesse caso, além daquela física (a imagem se confundia,
ou melhor, constituía o próprio horizonte) era também e, sobretudo, uma distância simbólica:
o fato de eu não freqüentar aquela região da cidade, de não conhecê-la de perto,
impossibilitava qualquer tentativa de associação com o meu até então mundo de vida. É
estranho, mas a impressão que tenho hoje (após a realização da pesquisa) é que, à época, o
mato se me apresentava, assim como a alguns dos sujeitos entrevistados, também como um
limite. Era o limite distante de minha compreensão da cidade. Desde esse passado remoto até
uns seis anos atrás, a distância permaneceu posta; esquecida é certo, mas (inter)posta. Foi
quando, por caminhos tortuosos, já estudante de biologia, pai e professor iniciante, instalei-me
à sua sombra, no seio de uma região desconhecida: um verdadeiro “mundo novo”. Aquele
velho horizonte de minhas lembranças foi sendo, aos poucos, transformado; aproximou-se na
mesma medida em que se projetou para o alto, para os lados e para fora de si mesmo. Cada
vez mais policromática, multiforme e próxima (complexa, “real” e pungente), aquela
imensidão vegetal e a cidade (a vida) que se estendia a partir dela me foram sendo
apresentadas desde pontos de vista distintos, de tal forma que hoje, ao término da investigação
empírica e de boa parte da análise dos dados construídos nela, parecerem-me tão familiar
quanto meu atual espaço de vida (região da cidade diametralmente oposta a ela). A sensação
que tenho é que, ao longo desses anos de convívio com os participantes da pesquisa, mas
principalmente durante este último ano (ao longo dos nossos encontros), pude adentrar e
percorrer o lugar desde pontos de partida únicos e caminhos variados; pude conhecê-lo desde
muitos ângulos diferentes através de suas histórias e relatos. É como se, através de suas
narrativas, tivesse podido experimentar também um pouco do lugar, um pouco de sua
transformação ao longo do tempo. Sinto que, em alguma medida, tornei-me com eles um
migrante e não apenas me defrontei com um “novo mundo”, mas, sobretudo, estive a
reconstruí-lo (para mim e para os outros).
A radicalidade da transformação operada em mim, acredito, evidencia uma dimensão
educativa (educação ambiental) ampla e profunda da pesquisa realizada: para além do
conjunto de informações construídas, o simples fato de estarmos escutando e falando em
grupo, viabiliza (promove) todo um conjunto de trocas e aprendizados. Terminamos o
trabalho diferentes de quando o iniciamos; e mais do que isso, acredito que o terminamos com
156
uma compreensão mais ampla (profunda, complexa) do lugar e uns dos outros. Pudemos
adicionar àquela materialidade que nos salta aos olhos (ou, em alguns casos se mantém
oculta) toda uma espessura simbólica, composta por muitas camadas, reentrâncias e
saliências; uma espessura através da qual os habitantes do lugar se tornam seus sujeitos e
(re)constroem, continuamente, seus espaços de vida.
A DIMENSÃO DO ENCONTRO: INTERPRETAÇÃO, PRODUÇÃO DE SENTIDOS,
AUTO-RECONHECIMENTO
De acordo com Melucci (2004), a questão ecológica, da forma com que se apresenta
na atualidade, traz para um primeiro plano a dimensão cultural da ação humana (MELUCCI,
2004). Tomando a cultura como capacidade de atribuição de significados e valores às
relações e objetos, o autor a projeta como “o horizonte insuperável no qual podem ser
colocadas as perguntas sobre o destino da humanidade” (MELUCCI, 2004, p.76/77). Sob essa
perspectiva, não possibilidade de modificação do rumo das coisas que não passe pela
intervenção nas relações sociais, nos sistemas simbólicos e na circulação das informações.
Conforme destaca Melucci:
Aqueles que se preocupam em governar a complexidade, agindo sobre as
coisas, arriscam-se a um erro prospectivo, uma espécie de miopia
substancial. A eficácia sobre as coisas depende, hoje, cada vez mais da
capacidade de agir sobre os códigos simbólicos que regem a vida cotidiana,
os sistemas políticos, as formas de produção e de consumo. (MELUCCI,
2004, p.77)
Nossas ações e reações - nossas relações com o mundo, com os outros e conosco
mesmo - aparecem, nesse esquema, intermediadas por sistemas simbólicos (a cultura,
caracterizada pela capacidade de atribuição de significados e valores). Toda a intervenção que
se pretenda sobre aquelas, passa, necessariamente, pelo conhecimento e transformação destes.
Para transformar, então, faz-se necessário primeiro conhecer. Um conhecimento que, por sua
vez, acaba se revelando possível somente através de uma aproximação significativa, isto é, do
estabelecimento de vínculos afetivos e o desenvolvimento de uma atitude obediente (voltada à
escuta). Somente a partir dessa aproximação é que algumas dimensões dos universos
simbólicos em questão poderão ser apreendidas e se constituir em objeto de ação por parte
daqueles que a buscam conhecer. Num primeiro momento, pois, a palavra de ordem parece
ser conhecer para transformar.
157
Contudo, quando nos envolvemos com a investigação, com este procurar conhecer,
acabamos nos dando conta de que a aproximação que se faz necessária implica, ela própria,
transformação. Isto porque não aproximação possível que não corresponda ao encontro e
hibridização entre os diferentes universos simbólicos em jogo (os objetivados e os
objetivantes). Todo encontro comporta em si alguma ressonância; quanto menores forem as
distâncias, contudo, tanto maiores serão as chances de que além das ressonâncias ele implique
também repercussões
78
. Em função disso, a sentença acima apresentada se inverte e passa a
ser conjugada da seguinte maneira: transformar para conhecer (pois não é possível conhecer
sem transformar).
A busca pelos sentidos e significados que estiveram na origem dos processos sócio-
culturais com os quais nos envolvemos (CARVALHO, 2003), nesse sentido, pressupõe
aproximação, encontro entre universos simbólicos distintos e, necessariamente,
(re)significação (transformação). Ao empreender uma busca com a que foi descrita no
presente trabalho, tendo ou não o objetivo de intervir sobre os sistemas simbólicos
objetivados, acaba-se sempre promovendo ressonâncias, produzindo modificações. Contudo,
enquanto no primeiro caso a intervenção procura ser direcionada (tendo como referenciais a
percepção e os desejos do pesquisador), no segundo é construída ao longo do caminho, de
forma individual e coletiva, tendo uma sempre nova configuração como horizonte. O
direcionamento que caracteriza o primeiro dos dois modos de proceder pressupõe um “fim”,
um ponto a ser atingido; além disso, de um modo geral, esse “fim” acaba sendo definido de
antemão, antes mesmo da aproximação e do encontro. Nesse sentido, estes (o encontro e a
aproximação) se apresentam meramente como condições de possibilidade para aquele. Na
segunda forma de proceder, ao contrário, não um “fim” a ser atingido, ao menos
inicialmente; todos os “pontos de chegada” são provisórios e construídos durante o desenrolar
da investigação
79
. Sob essa influência, o pesquisador deve abdicar de parte significativa do
controle sobre o desenrolar e os rumos seguidos pelo encontro que propõe.
A presente investigação, nesse sentido, tomando como referência o segundo dos dois
procedimentos apresentados acima, deixa de constituir-se em uma um etapa prévia a uma
ação educativa ambiental (neste caso como sua “fornecedora” de subsídios) e passa ela
própria a ser considerada educação ambiental.
78
“É neste ponto que deve ser sensibilizada a alotropia fenomenológica das ressonâncias e das repercussões. As
ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos de nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um
aprofundamento da nossa própria existência.” (BACHELARD, 1993, p.7)
79
Assim como os itinerários de vida construídos pelos sujeitos entrevistados no presente trabalho.
158
A educação ambiental, sob essa perspectiva, aparece como uma ação intencional, mas
não diretiva (pelo menos não no sentido de procurar determinar o curso das trocas e
aprendizados). Da necessidade de conhecer o universo simbólico através do qual um
determinado grupo interpreta, representa e interage com o mundo (uns com os outros e,
individualmente, consigo mesmos), emerge a necessidade de escuta, abertura e respeito por
aquilo que o outro tem a dizer e se disponibiliza a compartilhar. Essa escuta atenta do outro,
conforme anunciado anteriormente viabiliza/potencializa o estabelecimento de vínculos
afetivos através dos quais o diálogo e as trocas se apresentam como possibilidade
(potencializam-se na mesma medida em que as distâncias são diminuídas). Além disso,
conforme enunciado acima, a aproximação representada pelo estabelecimento de vínculos de
amizade e confiança implica encontro, ressonância e a hibridização de universos simbólicos
distintos aquele do pesquisador/educador ambiental e os dos sujeitos com os quais entra em
contato. Transformam-se os sujeitos entrevistados; transforma-se o pesquisador/educador.
De um modo mais simples, poder-se-ia dizer que essa perspectiva educativa tem seu
fundamento na pesquisa e na investigação; mais do que isso, dá-se nelas. O encontro
intersubjetivo possibilitado/exigido por essa necessidade de conhecer, é também a
possibilidade de transformar. Conforme destacado quando da apresentação dos princípios que
orientaram as escolhas operadas e procedimentos adotados ao longo do processo
investigativo, Melucci (2001) diz que o encontro, além de ser a possibilidade de aproximar
duas regiões de significado e fazê-las vibrar juntas, “é a possibilidade de descobrir que o
sentido não nos pertence e surge no encontro, mas, ao mesmo tempo, que nós podemos
produzi-lo” (MELUCCI, 2001, p.129).
Essa dimensão educativa inerente ao encontro, no contexto de realização da presente
pesquisa, foi potencializada devido a forma com que a investigação foi arrolada. O trabalho
em grupo, para além daqueles aspectos ressaltados ao longo das considerações metodológicas,
viabilizou a construção coletiva e individual de sentidos. Através da fala e da escuta, das
histórias e comentários verbalizados, os participantes estiveram (re)formulando suas redes de
significações. Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva (2000), quando discutem sua proposta
teórico-metodológica para análise do desenvolvimento humano, definem rede de
significações como “um conjunto de elementos orgânicos, físicos interacionais, sociais,
econômicos e ideológicos” (ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2000, p.282).
Juntos, a rede de significação e a ação do outro, delimitam, estruturam, recortam e interpretam
o conjunto das ações possíveis de serem realizadas e o fluxo dos comportamentos no interior
de um processo interativo (ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2000). De acordo
159
com as autoras, um sujeito em interação está continuamente “recortando e interpretando de
forma pessoal o contexto, o fluxo de eventos e os comportamentos de seus parceiros de
interação, a partir de sua própria rede de significações” (ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM;
SILVA, 2000, p.290). Nesse sentido, encontros como os que caracterizaram o processo
investigativo que desenvolvemos, além de permitirem o conhecimento e a apreensão de
algumas dimensões dos sistemas simbólicos objetivados, constituem-se em espaços de
(re)construção coletiva e individual de significações (objetivo primordial de toda a ação
educativa), conforme é sugerido pelas autoras:
(...) os parceiros de interação, através de suas ações, podem lançar um
recorte ou interpretação diversa, resultando no confronto e na necessidade
de negociação de novas significações as quais, por sua vez, irão reestruturar
o contexto e a rede de significações do sujeito e dos demais parceiros. Desta
forma, segundo esta visão de desenvolvimento, não cabe uma perspectiva
evolutiva num sentido sempre ascendente. A construção de significações
por parte do sujeito ocorre em negociações dinâmicas e permeadas por
crises, que determinam, sempre, a perda de outras possibilidades, por vezes
até então existentes, ou que não chegaram a se efetivar. (ROSSETTI-
FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2000, p.290)
Trata-se, pois, de um processo não linear, constituído através de idas e vindas,
destruições e reconstruções de significados operados ao sabor das circunstâncias, no interior
de um contexto relacional; um processo no qual se encontram e fundem ação investigativa e
ação educativa.
De forma semelhante, Isabel Carvalho (2003) propõe que se compreenda a experiência
do educador ambiental enquanto a de “um interprete de seu contexto, ao mesmo tempo em
que é um sujeito interpretado” (CARVALHO, 2003, p.30). Uma proposta que ressalta a
reciprocidade inerente ao encontro: interpretar e ser interpretado; conhecer e dar-se a
conhecer. Também aqui é o encontro, neste caso com um “mundo-texto”, a condição de
possibilidade para a produção de sentidos. E, uma vez que é através dos sentidos (desses
sentidos produzidos culturalmente) que interagimos com o mundo (com os outros, conosco
próprios), compreender, interpretar e agir apresentam-se enquanto ações que não podem
mais ser dissociadas. Nas palavras da autora:
Essa perspectiva implica ainda a recusa da dicotomia entre o plano do
pensamento e o da ação. Os sentidos produzidos por meio da linguagem são
a condição de possibilidade do agir no mundo. Não ação possível num
vácuo de sentido. Toda ação decorre de certa compreensão/interpretação, de
algo que faz sentido num universo habitado por inúmeras chaves de sentido.
Dessa forma, assim como interpretar não seria um ato póstumo e
complementar a compreensão, agir não corresponderia à conseqüência
160
como desdobramento, ato segundo ou posterior à reflexão -, mas a ação
estaria implicada no ato mesmo de compreender/interpretar. (CARVALHO,
2003, p.31)
Sob essa perspectiva, agir sobre histórias, sobre narrativas, é também agir sobre o
mundo, agir sobre (com) os outros, agir sobre si mesmo. Um agir que, pautado na
reciprocidade inerente ao encontro, é sempre interagir. Nesse sentido, a ão sobre o mundo
(fruto da interação com os outros), dá-se através da própria linguagem, conforme nos fala
Melucci (2004):
A cultura é o espaço dentro do qual, de forma intransponível, cada escolha
toma forma. Na sociedade planetária da informação, dar nome equivale a
fazer existir. A idéia ingênua de que a informação reflete uma “realidade em
si” é um resíduo do passado ao qual devemos renunciar. A informação é a
realidade, no sentido de que a nossa experiência atual é inteiramente
mediada pelas representações e pelas imagens que produzimos dela.
(MELUCCI, 2004, p.161)
Por outro lado, a ação sobre os outros e sobre si mesmo, emerge, dentre outras
possibilidades, sob a forma de auto-reconhecimento. Assim, conforme salientado
anteriormente, por exemplo, o espaço de encontro viabilizado pela pesquisa permitiu a alguns
dos participantes uma reconciliação com seu passado (especificamente com a experiência da
migração), num processo de reconstrução (atualização; afirmação) de identidades. E esse
auto-reconhecimento, que é também reconhecimento do outro, assim como os sentidos
produzidos por meio da linguagem, são nossa condição de possibilidade de agir no mundo. De
acordo com Reigota (2003), esse auto-reconhecimento pode ser vinculado a idéia de um
“sujeito da história”. Nas palavras do autor:
Para o indivíduo comum, um dos pressupostos da idéia de “sujeito da
história” passa necessariamente pelo seu auto-reconhecimento como sujeito
e reconhecimento da mesma condição no outro: reconhecer-se e reconhecer
o outro como sujeitos diferenciados de uma história comum. (REIGOTA,
2003, p.10)
Assim, em função do acima exposto, acredito que o trabalho investigativo
desenvolvido pode ser considerado também uma ação educativa e, mais especificamente, uma
ação educativa ambiental. O ambiente, entendido enquanto campo de interações entre a
sociedade, a cultura e a base física e biológica dos processos vitais (CARVALHO, 2004),
nesse sentido, além de ter sido tematizado em nossos encontros, acabou sendo também, em
alguma medida e em diferentes níveis (individuais e coletivos), reconstruído. Estivemos, pois
a contar e recontar histórias, mas também a agir uns sobre os outros e sobre o espaço de vida
161
compartilhado (ao menos sobre aquele simbólico, presente em suas lembranças e narrativas).
Mas estivemos também, e talvez principalmente, agindo sobre nós mesmos, reformulando
nossas redes de significações a partir do encontro com o outro; deixando-se afetar pela sua
fala, pelas suas histórias; enfim, permitindo-se errar por um mundo “novo” revelado através
de suas narrativas. “Mundos novos” que se justapõem transformando (ampliando) aqueles
nossos “velhos mundos”.
EDUCAÇÃO AMBIENTAL SOB A PERSPECTIVA DE UMA SOCIOLOGIA DAS
AUSÊNCIAS E DAS EMERGÊNCIAS
Num nível ainda mais abrangente, o presente trabalho investigativo poderia ser situado
na interface daquilo que Santos (2004) define como sociologia das emergências e sociologia
das ausências. Assim, uma breve incursão às principais idéias do autor relacionadas a essas
duas sociologias, acredito, permitirá retomar alguns dos pontos sucintamente abordados até
então e integrá-los na construção de uma proposta de interpretação a uma educação ambiental
(ou, pelo menos, enquanto caracterização do trabalho efetivamente empreendido,
principalmente ao longo dos dois últimos anos).
Num artigo intitulado Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências (2004)
80
, Boaventura de Souza Santos constrói sua argumentação assentada em
três pressupostos: primeiro, que a compreensão do mundo excede a compreensão ocidental do
mundo; segundo, que as concepções de tempo e de temporalidade encontram-se intimamente
relacionadas à compreensão do mundo e às formas através das quais ela cria e legitima o
poder social; e terceiro, o fato de a concepção ocidental de racionalidade contrair o presente e
expandir o futuro (SANTOS, 2004). De acordo com o autor, a contração do presente é
“ocasionada por uma peculiar concepção de totalidade, transformou o presente num instante
fugidio, entrincheirado entre o passado e o futuro” (SANTOS, 2004, p.779) Por outro lado,
como responsáveis pela expansão indefinida do futuro, encontram-se a concepção linear do
tempo e a planificação da história. É interessante notar a reatualização de alguns dos
elementos apresentados quando da introdução do presente trabalho. Nela, a partir das obras de
Melucci (2004), Bauman (2001) e de uma breve referência a Arendt (2005), procurou-se
caracterizar a atual experiência do tempo, cada vez mais instantânea e desligada do passado
(tradição) e cada vez mais distante de qualquer futuro (projeto).
80
SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, B. S.
(org) Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo:
Cortez, 2004. p.777-821.
162
A crítica de Santos é desferida, pois, contra uma concepção ocidental de racionalidade
à qual o autor definirá como razão indolente. Conforme o autor, essa razão se manifesta sob
quatro diferentes formas:
(...) a razão impotente, aquela que não se exerce porque pensa que nada
pode fazer contra uma necessidade concebida com exterior a ela própria; a
razão arrogante, que não sente a necessidade de exercer-se porque se
imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade
de demonstrar e sua própria liberdade; a razão metonímica, que se
reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se
aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas
para as tornar em matéria-prima; e a razão proléptica
81
, que não se aplica a
pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe
como uma superação linear, automática e infinita do presente. (SANTOS,
2004, p.779/780)
Especificamente às duas últimas, Santos contrapõe (propõe como alternativa),
respectivamente, uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
Retomando, então, o que foi dito até aqui, tem-se um esquema no qual uma razão hegemônica
(razão indolente), expressa sob diferentes formas - entre as quais se encontram a razão
metonímica (que se auto proclama única num universo caracterizado pela diversidade) e a
razão proléptica (que não se aplica a pensar no futuro) -, implica uma contração do presente e
uma expansão do futuro. A primeira das duas formas de razão criticada, a razão metonímica,
seria a responsável pela contração do presente, isto é, por um grande desperdício de
experiências (desconsideradas porque expressões de outras racionalidades). A segunda (razão
proléptica), por seu turno, uma vez que experimenta o tempo de forma linear, seria a principal
responsável pela expansão do futuro, isto é, o seu “esvaziamento” dado principalmente pela
convicção num horizonte redentor. Assim, a fim de fazer frente a essa razão indolente, Santos
irá propor o empreendimento de um movimento no sentido contrário (de acordo com o autor,
já em andamento; algo como um “refluxo” gerado pelo desenrolar dos processos hegemônicos
de construção e destruição do mundo): expandir o presente e contrair o futuro. Nas suas
palavras:
81
Poder-se-ia, inclusive (e talvez necessariamente), propor uma quinta forma de razão indolente: a razão
inconseqüente. A semelhança da razão proléptica, a razão inconseqüente não se aplica a pensar o futuro.
Contudo, não porque julgue conhecê-lo bem, mas ao contrário, porque não pode conhecê-lo - este se apresenta
demasiadamente incerto e nebuloso. Se o futuro se dilui, a ação no presente deve encontrar sentido em si mesma
e a preocupação com suas conseqüências deixa de fazer sentido.
163
Proponho uma racionalidade cosmopolita que, nesta fase de transição, terá
de seguir a trajectória inversa: expandir o presente e contrair o futuro.
assim será possível criar o espaço-tempo para conhecer e valorizar a
inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje. Por
outras palavras, assim será possível evitar o gigantesco desperdício da
experiência de que sofremos hoje em dia. Para expandir o presente,
proponho uma sociologia das ausências; para contrair o futuro, uma
sociologia das emergências. (SANTOS, 2004, p.779)
A sociologia das ausências, conforme é definida pelo autor, “trata-se de uma
investigação que visa demonstrar que o que existe é, na verdade, activamente produzido como
não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe” (SANTOS, 2004,
p.786). Dito de outro modo, essa perspectiva se assenta no reconhecimento da existência de
todo um campo de externalidades, ativamente produzido como tal; externalidades essas a
serem, em alguma medida, resgatadas” a fim de que se possa ampliar o presente. A
ampliação do presente se dá, dessa forma, através da “proliferação das totalidades”, ou seja,
da “entrada em cena” daqueles saberes, sentidos e experiências relegados a um segundo
plano; a um plano de inexistência.
É interessante perceber a afinidade entre essas idéias e aquela definição de ambiente
proposta por Enrique Leff e apresentada anteriormente. Conforme procurou ser ressaltado
naquele momento, Leff propõe que se compreenda o ambiente também enquanto uma
externalidade, ausência, engendrada (ativamente produzida como tal) pelo desenrolar dos
processos hegemônicos de “desenvolvimento” econômico e construção (científica) de saberes;
ou, talvez ainda melhor, enquanto uma “totalidade” que se revela a partir de um campo
ativamente produzido como não existente. A emergência do ambiental sobre a qual nos fala
Leff, pois, encontra-se intimamente relacionada à existência de um campo de externalidades
(experiências, saberes e sentidos desconsiderados), do qual emerge como que um movimento
de reação contra as forças que o produzem. Nesse sentido, o esforço de uma educação
ambiental (conforme procurou ser caracterizada aentão) poderia ser comparado ao de uma
sociologia das ausências, uma vez que ambas visam evidenciar, trazer ao debate, todo um
conjunto de experiências, saberes e sentidos desconsiderados. Além disso, conforme tem sido
possível acompanhar através do debate acerca daquelas questões ditas ambientais, seus
esforços acabam por promover uma ampliação do presente: complexificam-no pela
164
proliferação dos pontos de vista (inserção de novos elementos à constituição do “real”
existente)
82
.
Uma vez que o presente é expandido por uma sociologia das ausências, resta a uma
sociologia das emergências a tarefa de contrair o futuro. E contraí-lo, de acordo com Santos,
significa “torná-lo escasso e, como tal, objecto de cuidado” (SANTOS, 2004, p. 794).
Contrapondo-se a uma razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro por julgar
conhecê-lo demasiadamente bem, a sociologia das emergências busca identificar no presente
tendências a partir das quais o futuro possa apresentar-se menos distante e, por isso, mais
“concreto”. Para Santos,
A sociologia das emergências consiste em substituir o vazio do futuro
83
segundo o tempo linear (um vazio que tanto é tudo como é nada) por um
futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e
realistas, que se vão construindo no presente através das actividades de
cuidado”. (SANTOS, 2004, p.794 – grifo meu)
Tomando como ponto de partida o trabalho de Ernst Bloch (1995), Santos ainda
apresenta dois conceitos que assumem um lugar de destaque nesse esquema: o Não (Nicht) e
o Ainda-Não (Noch Nicht). Diferente do Nada, o Não “é a falta de algo e a expressão da
vontade de superar essa falta
84
” (SANTOS, 2004, p. 795). Representa uma carência percebida
e em direção a qual se empreende algum tipo de movimento uma busca pela sua superação.
O Ainda-Não, por sua vez, “exprime o que existe apenas como tendência, um movimento
latente no processo de se manifestar (...). É uma possibilidade e uma capacidade concretas que
nem existem no vácuo, nem estão completamente determinadas.” (SANTOS, 2004, p. 795).
Será em função deste último, por exemplo, que as atividades de cuidado referidas pelo autor
serão exercidas ou não. Afinal, se o futuro não se expande indefinidamente nem está
completamente definido, faz-se necessário construí-lo a partir do presente (único horizonte
82
De acordo com Santos, a sociologia das ausências “cria condições para ampliar o campo das experiências
credíveis neste mundo e neste tempo e, por essa razão, contribui para ampliar o mundo e dilatar o presente. A
ampliação do mundo ocorre não só porque aumenta o campo das experiências credíveis existentes, como
também porque, com elas, aumentam as possibilidades de experimentação social no futuro”. (SANTOS, 2004,
p.789). Da mesma forma, poder-se-ia pensar a educação ambiental conforme apresentada e caracterizada no
presente texto.
83
Seja dado pela sua expansão infinita (conseqüência da lógica do tempo linear), seja pela sua diluição e
desaparecimento/ indeterminação (conseqüência, por um lado, da queda dos grandes mitos e, por outro, das
múltiplas incertezas que se nos apresentam).
84
Note-se a relação existente entre esta idéia e o conceito de ambiente conforme propõe Leff: “O ambiente é
aquela falta insaciável de conhecimento onde se aninha o desejo de saber que gera uma tendência interminável
para a produção de conhecimentos, a fim de fundamentar uma nova racionalidade social sobre princípios de
sustentabilidade, justiça e democracia”. (Leff, 2001, p.225)
165
onde isso se torna possível). Nesse esquema, ainda, Santos ressalta toda a incerteza inerente
ao domínio do Ainda-Não, conforme consta a seguir:
“O Ainda-Não inscreve no presente uma possibilidade incerta, mas nunca
neutra; pode ser a possibilidade da utopia ou da salvação (Heil) ou a
possibilidade do desastre ou perdição (Unheil). Esta incerteza faz com que
toda a mudança tenha um elemento de acaso, de perigo. É esta incerteza
que, em meu entender, ao mesmo tempo em que dilata o presente, contrai o
futuro, tornando-o escasso e objecto de cuidado. (SANTOS, 2004, p.795)
O cuidado emerge, pois, como resultado: primeiro, da identificação de uma carência e
a busca por sua superação; segundo, da contração do futuro dada pela identificação, no
presente, de tendências mais ou menos gerais, mas sempre concretas; e, por fim, da incerteza
que se aninha no seio de cada tendência (sob a forma de latência) tornando-as passíveis de se
tornarem frustração ou esperança (SANTOS, 2004). E, ainda que se admita na atualidade a
superação de um tempo linear por um tempo puntiforme (MELUCCI, 2004) ou tempo
instantâneo (BAUMAN, 2001), isto é, a diluição do futuro
85
, uma sociologia das emergências
mantém seu valor atualizado por revelar futuros possíveis (de esperança ou frustração). Nesse
caso, mais do que “contrair”, o trabalho do sociólogo (educador, pesquisador) consistiria em
“evidenciar” a possibilidade de um futuro através da identificação de tendências no presente.
Assim, seja num contexto em que o futuro se apresenta inexorável ao mesmo tempo
em que infinitamente distante, seja num contexto no qual se apresente diluído, destituído de
contornos e cores (ou melhor, não se apresente), uma sociologia das emergências encontra seu
espaço e adquire um valor estratégico. Em ambos os casos, os esforços empreendidos no
sentido de tornar mais precisas e mais concretas as direções que se anunciam a partir do
presente justificam-se porque implicam a emergência de atividades de cuidado; a dupla
possibilidade (frustração ou esperança) contida na tendência nos exige cuidados. Nas palavras
do autor:
A sociologia das emergências consiste em proceder a uma ampliação
simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as
tendências de futuro (o Ainda-Não) sobre as quais é possível actuar para
maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade da
frustração. Tal ampliação simbólica é, no fundo, uma forma de imaginação
sociológica que visa um duplo objectivo: por um lado conhecer melhor as
condições de possibilidade da esperança; por outro, definir princípios de
acção que promovam a realização dessas condições. (SANTOS, 2004,
p.796)
85
Nesse esquema, diferentemente do que postula Santos (2004), o tempo presente é experimentado com máxima
intensidade sem, no entanto, ser expandido e o futuro se dilui ao invés de contrair-se (MELUCCI, 2004;
BAUMAN, 2001).
166
Note-se como o parágrafo a cima poderia ser utilizado para sintetizar os objetivos de
uma educação ambiental e, ainda mais especificamente, do trabalho investigativo descrito no
presente texto. Da mesma forma que uma sociologia das emergências, uma educação
ambiental interpretativa, voltada à escuta e pautada no encontro, acaba por proceder a uma
ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes (através do auto-reconhecimento e/ou
identificação, por exemplo), de modo a identificar neles tendências de futuro sobre as quais é
possível atuar a fim de maximizar a probabilidade de esperança em relação a de frustração.
Somado a isso, a essa “contração” do futuro (que pode ser também “revelação”), uma
educação ambiental se concretiza também a partir da busca e tematização daquilo ativamente
produzido como não existente (Não); uma busca e tematização que ampliam
significativamente o presente pela proliferação de totalidades, isto é, de pontos de vista.
Em alguma medida, ainda que num nível bastante mais elementar (microscópico), foi
isso que estivemos fazendo ao longo de nossos encontros. As incursões ao passado, às
histórias de vida e do lugar, representaram o esforço de ampliação do presente, daquelas
nossas redes de significações e dos modos através dos quais compreendíamos e nos
relacionávamos com o espaço, com o lugar, uns com os outros e conosco próprios. Além
disso, em alguma medida, a focalização do olhar sobre as relações estabelecidas com o espaço
(espaços de vida) exprimiu o desejo de compreender, não apenas os sistemas simbólicos
mediadores de suas relações com o lugar (passados e presentes) como também identificar
nelas possíveis tendências a partir das quais, quem sabe, alguma atividade de cuidado pudesse
(venha a) emergir.
***
167
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência, e não a verdade, é o que dá
sentido à escritura. Digamos, como Foucault,
que escrevemos para transformar o que
sabemos e não para transmitir o já sabido. Se
alguma coisa nos anima a escrever é a
possibilidade de que esse ato de escritura, essa
experiência em palavras, nos permita libertar-
nos de certas verdades, de modo a deixar de
ser o que somos para ser outra coisa, diferente
do que vimos sendo.
Também a experiência, e não a verdade, é
o que dá sentido à educação. Educamos para
transformar o que sabemos, não para
transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos
anima a educar é a possibilidade de que esse
ato de educação, essa experiência em gestos,
nos permita libertar-nos de certas verdades, de
modo a deixarmos de ser o que somos, para
ser outra coisa para além do que vimos sendo.
(Jorge Larrosa e Walter Kohan, 2005
86
)
Novamente (e exemplo do que fiz no projeto), a título de finalização, gostaria de tecer
algumas considerações a respeito do que não foi dito; três aspectos para os quais não
encontrei lugar (ou uma boa maneira de expressá-los) ao longo do texto. Esse esforço
reflexivo póstumo, até certo ponto subversivo, corresponde ao refluxo daquilo que foi dito;
corresponde a emergência daqueles aspectos subliminares, contidos, não expressados, mas
experimentados, presentes e, em boa medida, determinantes daquilo que foi dito.
Em primeiro lugar, algumas considerações acerca das dificuldades e aprendizados
inerentes ao ato de escrever. A tentativa de materializar, na estrutura de um texto, um fluxo
considerável de pensamentos, experiências e emoções, converte-se necessariamente em um
momento de significativos aprendizados. Vivenciamos com o texto que produzimos uma
relação dialética: da oposição entre o que pensamos (aquilo que gostaríamos de expressar) e o
que, de fato, conseguimos traduzir em palavras, emerge a possibilidade de aprendizado,
movimento, transformação. Da necessidade de escrever sobre o que se pensa, surge a
possibilidade de pensar sobre o que se escreve, isto é, o próprio pensamento. Repensamos a
86
Apresentação da coleção “Educação: Experiência e Sentido” In: RANCIÈRE. J. O mestre ignorante: cinco
lições sobre emancipação intelectual. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. (Educação: Experiência e Sentido)
168
nós mesmos a partir da escrita. Cada palavra, cada período construído, remete-nos de volta às
idéias que os originaram ao mesmo tempo em que suscitam (despertam) diversas outras. Os
caminhos da escrita são tortuosos e imprevisíveis: aquilo que gostaríamos de dizer nem
sempre acaba sendo dito. O texto, como se dialogasse com seu escritor, sugere, a cada ponto
do seu percurso, caminhos alternativos a serem seguidos. Por vezes, os desvios não alteram de
modo profundo os rumos inicialmente traçados; em outras, contudo, promovem verdadeiras
revoluções. Nessa dialética, caracterizada pelo movimento e pela mudança, algumas coisas se
perdem (deixam de ser ditas) ao mesmo tempo em que muitas outras são criadas.
Federico Neresini (2005), no terceiro capítulo do livro Por uma sociologia reflexiva:
pesquisa qualitativa e cultura, organizado por Alberto Melucci, diz que “uma boa prática de
pesquisa constrói (...) uma simulação do mundo social não porque o tenha compreendido, mas
para poder compreendê-lo” (NERESINI, 2005, p.83). De forma análoga, pode-se pensar o
mesmo em relação à comunicação das intenções e/ou resultados de uma pesquisa:
construímos uma representação do objeto e do processo de pesquisa (na estrutura de um texto)
não porque os tenhamos compreendido, mas para poder compreendê-los. O presente texto,
nesse sentido, possivelmente, tenha contribuído mais para que eu mesmo pudesse me
familiarizar com o processo de pesquisa engendrado, do que para comunicá-los com precisão.
O segundo aspecto a ser considerado diz respeito aos aprendizados acumulados ao
longo desse processo de pesquisa. Para além da ampliação simbólica que o lugar estudado
sofreu e das reformulações nas minhas redes de significação operadas ao longo de nossos
encontros, a investigação me possibilitou uma série de encontros significativos ao mesmo
tempo em que implicou alguns desencontros, igualmente significativos. Entre os encontros,
destacaria aqueles com os sujeitos entrevistados, que assumiram para mim o caráter de um
encontro com um modo de vida distinto, com um mundo diferente daquele meu. A alegria e a
disposição com que encaram a vida e a intensidade das relações sociais que caracterizam o
lugar me fizeram repensar, num nível profundo, meu próprio cotidiano, o próprio conjunto de
relações sociais no qual me insiro. As redes de sociabilidade e solidariedade descritas quando
das considerações acerca do processo de migração, nesse contexto, reatualizam-se e revelam a
verdadeira força dessa gente. Uma força que se não é capaz de mover montanhas, certamente
é capaz de fazê-los chegar até elas (empreender longas jornadas).
Entre os desencontros, por suas vez, aqueles com minha família (minha esposa e
minha filha) talvez tenham sido os principais. Em diferentes momentos, mas principalmente
durante as escritas, estive tão absorto no trabalho a ser realizado que acabei negligenciando-a.
169
Nos últimos três meses, por exemplo, apesar de ter passado praticamente todos os dias em
casa, foram raros os momentos de lazer a três (Laís, Ananda e eu). Um convívio do qual senti
falta e que acabou, por isso mesmo, revalorizado em função das exigências impostas pelo
trabalho.
Por fim, um aspecto que de alguma forma me parece ter passado subsumido na
estrutura do presente texto, refere-se às intenções que estiveram por traz dos argumentos,
discussões e planejamentos apresentados. Não me refiro aqui às intenções específicas ou
gerais de pesquisa, mas sim aquelas que nos motivam a seguir determinados caminhos e não
outros; aquelas nos movem enquanto seres que sentem e pensam; enfim, aquelas que de forma
mais imediata se relacionam às convicções e sentimentos que nos acompanham e
caracterizam. A pesquisa, ainda que represente um desdobramento “espontâneo” dessas
intenções, opera em um nível bastante mais restrito e específico: deve pretender pouco e
somente aquilo que estiver, de fato, ao seu alcance. Esse alcance, por sua vez, é determinado
pelos tempos e recursos dos quais se dispõem, que, de um modo geral, também são bastante
restritos. Mas por trás disso tudo existem desejos, vontades e esperanças; existe uma ética
latente e, acima de tudo, viva. Enrique Leff (2001)
87
, assim a define:
A ética é encarregada do projeto de recuperar a vontade de poder, de poder
viver, de poder querer viver, porque vale a pena viver a vida, pelo
encantamento com seus enigmas e surpresas, seus gostos e desgostos.
Porque diante do nada, da morte e da angústia do sem-sentido, o ser deve
afirmar-se na paixão de ser. E para isso se requer uma ética de preservação e
revalorização da natureza: de seus valores materiais, simbólicos e estéticos.
Mas, além da ética naturalista, necessita-se de uma ética da dignidade
humana; uma ética humanitária que reverta a dominação, a submissão, a
pobreza, a ignorância; uma ética que enalteça a autonomia de cada ser
humano, sua capacidade de pensar e gozar; uma ética da criatividade, da
erotização do mundo que, além do amor à natureza, exalte a paixão de viver.
E é essa paixão que é necessário recuperar na era do vazio, para torná-la
instinto de vida, de maneira que, diante do desespero que acossa a
existência, da vaidade e banalidade das coisas, e da certeza da morte, a vida
se incline para a vida. (p.469/470)
(...)
E essa ética exige tempo, porque não existe ternura sem tempo; porque
contemplar um entardecer toma o tempo do ocaso, e toma uma noite para
ver de novo o amanhecer; porque a maturação e o envelhecimento de um
bom vinho levam tempo, e ele não poderá ser degustado se se apura a taça,
que necessita de repouso para penetrar o corpo e subir à alma do tomador de
vinhos... que nisso se distancia do tomador de decisões guiadas pela
urgência e pelas razões de força maior. (p.474)
87
LEFF, E. Ética pela vida: elogio da vontade de poder In: LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade,
racionalidade, complexidade, poder. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p.446 – 474.
170
Dessa forma, ainda que o objetivo explícito da ação empreendida não tenha sido a
transformação da realidade observada (pelo menos não no sentido de adequá-la às minhas
verdades), a esperança de vê-la modificada pela ampliação dos pontos de vista em jogo, pela
troca operada entre os seus habitantes, foi (e continua sendo) uma das minhas principais
motivações. O desejo de que o arroio, em alguma medida, deixe de reinar no antecedente
para se tornar um presente compartilhado
88
, objeto de cuidado daqueles e daquelas seus
sujeitos; de que as histórias recontadas em nossos encontros, em alguma medida, possam
promover ressonâncias em outros círculos, com a escola, por exemplo; enfim, de que a tímida
(re)valorização do “banhado” observada entre os sujeitos entrevistados possa ser estendida a
outros espaços do lugar, restaurando àqueles seus habitantes alguma dignidade, motivam-me
a aprofundar ainda mais a escuta e o diálogo. Escuta e diálogo que, conforme apresentado
anteriormente, são também formas de agir sobre o mundo, agir sobre os outros e sobre nós
mesmos.
***
88
Não como foi um dia, mas de um modo novo; de um modo outro.
171
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1998.
175
ANEXO 1 – TERMO DE CONSENTIMENTO PÓS-INFORMADO
CONSENTIMENTO PÓS-INFORMADO
Eu, _____________________________ aceito participar da pesquisa intitulada
“(Re)contando histórias: o ambiente tematizado a partir das histórias de vida” (título
provisório), de autoria de Cassiano Pamplona Lisboa (pesquisador), aluno do Curso de
Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, orientado pelo professor Dr. Nilton Bueno Fischer, que, a partir das histórias
narradas por cada um dos participantes, tem como objetivos principais (mas não exclusivos):
a) compreender quais os sentidos e motivações envolvidos nos processos de migração;
b) compreender como se deu, localmente o processo de (re)construção do espaço, além de
tentar identificar algumas de suas tendências;
c) (re)construir uma história local que permita outros olhares sobre os problemas ecológicos e
sociais (problemas ambientais) experimentados pelos seus moradores.
Declaro ter sido devidamente informado pelo pesquisador dos objetivos da pesquisa,
das metodologias e dinâmicas que seriam empregadas durante a pesquisa e dos possíveis
desdobramentos da mesma.
( ) Autorizo o pesquisador a utilizar as informações que forneci (em encontros coletivos
e/ou entrevistas individuais, gravados) na elaboração de sua dissertação de mestrado e de
outras possíveis publicações (contanto que me sejam previamente informadas).
( ) Autorizo o pesquisador a utilizar minha imagem (registrada através de fotografias e
filmagem) na elaboração de sua dissertação de mestrado e de outras possíveis publicações
(contanto que me sejam previamente informadas).
( ) Autorizo o pesquisador a utilizar, em sua dissertação de mestrado e em outras possíveis
publicações, meu nome verdadeiro.
( ) Concordo que as filmagens das entrevistas coletivas (das quais participo) e/ou individuais
integrem o Banco de Dados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, podendo servir
para futuros estudos acadêmicos.
Nome completo: _____________________________________________________________
Endereço: ____________________________________Telefone: ______________________
___________________________________ _____________________________________
Cassiano Pamplona Lisboa (pesquisador) Assinatura (pesquisado)
176
IMAGEM 1 – Vista aérea
IMAGEM 2 – Bairros (perpendicular)
ANEXO 2
-
IMAGENS
177
IMAGEM 3 – Bairros (diagonal)
IMAGEM 4 – Ruas
178
IMAGEM 5 – Escola Estadual Dyonélio Machado
IMAGEM 6 – Ocupação “irregular”
179
IMAGEM 7 – Ocupação “irregular” (detalhe)
IMAGEM 8 – Bairro São José (“banhado”)
180
IMAGEM 9 e 10 – “Gravura” (abaixo detalhe)
IMAGEM 8 – Bairro São José (“banhado”)
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