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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
BIONOMADOLOGIA
Carmen Jacques
Orientador: Prof. Dr. Tomaz Tadeu
Porto Alegre, 2007.
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Carmen Jacques
BIONOMADOLOGIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Faculdade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para obtenção do
titulo de Mestre em Educação.
Orientador:
Prof. Dr. Tomaz Tadeu
Porto Alegre, 2007.
Carmen Jacques
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Bionomadologia
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Aprovada em.........................
_________________________________________________________________
Prof. Dr. ........................................................................................– Orientador.
_________________________________________________________________
Prof. Dr. ......................................................................................
(Professor da FACED)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. .......................................................................................
(Professor Visitante)
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A erva é mortal
Os homens são mortais
Os homens são ervas.
Gregory Bateson
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho contou com conectores. Sua força surgiu de outras forças que
compuseram esse caminhar. Agradeço especialmente a confiança do Tomaz nesta caminhada.
Esse trabalho também contou com a conexão dos meus colegas da linha nove aos
quais agradeço, pois sei que cada pensamento deles estava voltado para que este trabalho
proliferasse.
Agradeço a todos que sabem que estão do meu lado e que por isso fazem parte desta
produção.
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SUMÁRIO
I. Pensando sobre o Pensar... ___________________________________ 6
II. Nós e Entre-nós (acerca da individuação) ______________________ 27
III. Energia e Metaestabilidade ___________________________ 37
IV. Mundos – Próprios _______________________________________ 45
V. Uma vida não-orgânica ______________________________ 55
VI. Fantásticas _________________________________________ 61
VII. Metamorfociência __________________________________ 72
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RESUMO
Esta dissertação explora as possibilidades de uma bionomadologia: uma ciência
situada entre as ciências duras ou de Estado e as ciências nômades, nos termos em que esses
conceitos são formulados por Gilles Deleuze e Félix Guattari no livro Mil platôs.
Estendem-se, assim, os fios de uma bionomadologia. De uma ciência que tente
desfazer as organizações e desarranjar os organismos. De uma ciência das metamorfoses e dos
devires.
Esses fios buscam entrelaçar ciência e filosofia. É ali, no ponto em que se encontram
uma ciência nômade e uma filosofia da diferença, que se desenvolve uma bionomadologia.
Uma ciência da vida. Uma ciência de uma vida. Uma ciência cujos fios se desenrolam num
plano de imanência.
Uma bionomadologia tende a arrastar consigo novidades. Prefere misturar o que
aparentemente parece determinado, embrenhar-se num emaranhado de intensidades. Uma
experimentação propriamente viva.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Ciência. Bionomadologia. Deleuze.
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ABSTRACT
This dissertation explores the possibilities of a bionomadology: a science located
between the hard sciences, or State sciences, and the nomadic sciences, concepts which are
understood in the way they are developed by Gilles Deleuze and Félix Guattari in the book A
Thousand Plateaus.
The threads of a bionomadology are, thus, spread out. The threads of a science that
tries to undo the organizations and to unsettle the organisms. The threads of a science of
metamorphoses and becomings.
These threads work to interweave science with philosophy. It is there, in the point in
which a nomadic science meets a philosophy of difference, that a bionomadology is
developed. It is a science of life. A science of a life. The threads of this science are unfolded
in a plane of immanence.
A bionomadology tends to drag new things with it. It prefers to mingle what,
apparently, is determined, to get mixed in a tangle of intensities. A truly living experience.
KEY-WORDS: Philosophy. Science. Bionomadology. Deleuze.
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LISTA DE FIGURAS
Fig. 1: Cérebro estilizado. P.6
Fig. 2: Neurônio. P.17 Retirado do site: www.afh.bio.br em 15/05/2006.
Fig. 3: Gato no telhado. P. 48
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I. PENSANDO SOBRE O PENSAR...
...tudo o que posso te dizer é que nós somos
fluidos, seres luminosos, feitos de fibras.
Carlos Castañeda
As intensidades seriam como conjuntos neuronais. Estes agindo como populações de
células. O que teriam os neurônios a ver com o pensar? Células e corpo. Mente e pensamento.
Modos de pensar são formas tão distintas de abordar esses assuntos? Corpo e conhecimento
são afirmativos e andam juntos. Assim, pode-se pedir emprestadas noções simples tais como
comunicações itinerantes que levariam nosso pensamento a uma ou outra ação.
Insólitos pensamentos.
Não se quer, necessariamente, uma única direção. Podem-se perceber tantas
possibilidades de pensamentos e idéias e ações que nem a ciência mais precisa poderia
contabilizar. Para o cérebro ou para o pensamento não há limites, justamente porque não se
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sabe quais são os mistérios que rondam o pensar, a constituição do pensamento. Longe de
restringir esta porção do corpo a um órgão com funções específicas, muitos tentam ajustar o
cérebro às modificações vividas numa vida ou no contexto atual do indivíduo. Outros tentam
demonstrar como as formas mais rígidas de controle podem estar nessa região específica do
organismo. Pode-se chegar, assim, a uma questão: como se explica que uma região dotada de
mistérios inomináveis, quanto mais é desnudada, mais misteriosa se torna?
Os primeiros estudiosos da craneometria (Broca, Gall, Cuvier) estavam muito
interessados em comparar o cérebro dos homens e mulheres a ancestrais para provar a
superioridade do ser humano em relação às outras espécies e, junto a isso, encontrar o tão
procurado elo perdido entre os demais primatas e o ser humano. Talvez com a intenção de
resolver definitivamente esse impasse e retirar do ser humano um peso e um constrangimento
que aproximam o ser humano de um primata qualquer. Todas as especulações deixavam o ser
humano cada vez mais próximos de espécies com características muito semelhantes à nossa.
Ao mesmo tempo os cientistas do final do século XIX estavam preocupados principalmente
com a anatomia desses ancestrais. Para isso as descobertas do microscópio, as seções de
anatomia, as dissecações faziam parte de um novo ritual estabelecido na época. Era tudo
novidade. Os estudiosos da época valiam-se dos novos instrumentos para validar suas
pesquisas a fim de desvendar esse enigma que rondava suas mentes: afinal o ser humano é
parente dos macacos?
Os estudos de Cuvier e seus contemporâneos preocupavam-se com a análise e o
desmembramento do corpo: dividi-lo em partes, separar seu pedaços, nomear tudo. É pouco
aceitável comparar seres humanos a animais! Macacos! Disso podem-se suportar algumas
coisas. Outras ainda seriam muito fortes. Discussões intensas, inesgotáveis, bárbaras! Muitas
coisas estavam em jogo nessas demonstrações, nesses debates, nessas aulas de anatomia
comparada: “O senhor não pode comparar o cérebro humano ao de um chimpanzé, o senhor
nunca chegará a um ser humano partindo de um chimpanzé! Isso é um absurdo!” Como
chegaríamos a um entendimento sem debates intermináveis? Não se está bem certo de que
haja algum entendimento. As ciências no final do século XIX se valeram das inúmeras
discussões que cercavam esse paradoxo relacionado à vida que, a partir daí, voltar-se-ia para
seu principal fundamento: o ser humano.
Em meados do século XX os estudos levavam em conta o cérebro humano e sua
comparação com os computadores. Poderíamos comandar nosso cérebro, assim como
comandamos nossos computadores! Com isso, pôde-se chegar a algumas conclusões tais
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como as de que o cérebro humano estaria limitado a algumas respostas-padrão que, com
alguns estudos científicos poderiam ser previstos e programados. Com isso não se abandona
um pensamento centralizado: “vê-se bem isso nos problemas atuais de informática e de
máquinas eletrônicas, que conservam ainda o mais arcaico pensamento, dado que eles
conferem o poder a uma memória ou a um órgão central” (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p.26). Deleuze e Guattari (1995) ponderam que estudos epistemológicos ou neuronais não
abandonam ideais hierárquicos, reguladores do cérebro. Este órgão, destacado, aliás, do resto
do organismo, daria as respostas isoladamente, ou seja, desvendando os mistérios do cérebro
estaríamos desvendando automaticamente o mistério da vida. A caixa-preta do organismo
seria o cérebro.
Fica sempre a pergunta invariável, morta já ao nascer: Quem imita quem? O
computador imita o homem ou o homem imita o computador? Isso também ronda os estudos
sobre a vida artificial, sobre nossas fronteiras misteriosas com a cibernética. Onde começa o
artificial e onde inicia o natural? Onde a máquina atravessa o humano (próteses) e o humano
atravessa a máquina (automóveis)? As fronteiras se tornam indeterminadas com essas formas
de transbordamento entre o natural e o artificial. Tantas fronteiras imaginárias da existência
que convidam a uma passagem, um deslizamento, sem que com isso cheguemos a um ponto
definido qualquer, sem que com isso estejamos atingindo a verdade da existência, pois o que
mais aproxima agora o natural do artificial são exatamente seus encontros, suas
convergências, seus ajustes. Mais tarde, talvez possamos nos aproximar desses pontos
convergentes que insinuam um limiar entre os atravessamentos homem-máquina.
Não se está bem certo dos caminhos. Não se chega a uma noção clara sobre vida
artificial. Os protótipos não mudam suas estruturas. Continuam a fazer cópia da cópia. A
imitar e comparar. Uma vida artificial não depende de nada. Existe somente. Não se chega a
nada se do nada se parte. É como uma ciranda interminável, rodando em círculos. A idéia de
vida artificial é toda uma outra concepção que guarda contornos com a vida orgânica. O vivo
e o não-vivo carregam consigo as mesmas moléculas. Seria possível perguntar o que cada um
faz ou fez com suas moléculas? Quais seus arranjos, seus mistérios? Um dos caminhos seria
seguir suas moléculas e ver até onde elas podem ir, o que elas podem suportar. É possível que
uma corrida nos esteja esperando. Correr atrás dessas moléculas que permeiam as ondas entre
o natural e o artificial. Não se pergunta o que é um ou outro. O que quer dizer natural e
artificial. Buscam-se os interstícios, os intervalos de ação que compõem essa dinâmica do
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vivente junto com o sistema físico. Perguntas dessa natureza talvez exijam uma vida para
serem respondidas. Uma não-vida ou uma “vida não-orgânica”.
O conhecimento acerca das inúmeras reações humanas no campo comportamental e do
pensamento nos convida a inúmeras formas de pensar sobre um pensar. Poder-se-ia apontar
uma convergência de estudos neurológicos e do comportamento, com o qual talvez se
pudessem distinguir pontos de convergência, aproximações, encontros. Fios que se
distinguem num emaranhado entre temas tão diversos: neurônios e pensamento. Visto de
perto diríamos que nem tão diversos assim. Muito já se disse sobre o cérebro, como em alguns
ramos da neurologia, os quais, muitas vezes estão preocupados em definir certas instâncias de
ação e do pensamento como separadas ou localizáveis. Mas isso não diz tudo sobre as
diferenças observadas na realidade. As possibilidades do pensar são incontáveis ou talvez
incomensuráveis. Se os encontros possibilitam uma aproximação acerca desses níveis ativos
do comportamento e do pensamento, buscam-se suas atividades, aquilo que faz com que a
força possa ser vivida e extraída desses encontros. Da corda bamba. Dos fios. Força da ação e
força do pensamento. Nesse caminho se pode sugerir um encontro com uma ciência nômade,
imprecisa, mas que precisa da ciência dita régia, pois, como veremos, as duas compartilham
modos e momentos. Poderíamos chamá-la de bionomadologia.
Uma descrição dessas formas de ver as ciências é feita por Jacob Von Uexküll (1934)
que, ao abordar o conceito de “mundos próprios”, realça as passagens, as quais sugerem que
indivíduos de reinos totalmente diferentes se encontram não por uma ordem classificatória,
mas por aproximações de todo tipo, que têm a ver com essa idéia que nos interessa: a idéia de
compor uma vida. Nesse estudo, coisas tais como mundos invisíveis fazem parte da formação
do tempo e do espaço e também da ação e do pensamento, sem que com isso se tenha que
apontar modos e momentos, estruturas e funções. Em vez de mundos constituídos de seres
separados, a esses mundos juntam-se forças, comunicações de outra ordem. Entre estruturas e
funções, nada a definir. Entre a formiga e o carvalho, uma das inter-relações estudadas por
Uexküll, muitos mundos. Os “mundos-próprios”, além de ligarem heterogêneos e conectarem
vidas, fazem com que esses encontros sejam consistentes, o que não significa que sejam
identificáveis ou definíveis já que podem variar ao longo do tempo. Uma palavra chama a
atenção: “entre”. O mundo da formiga que se junta ao mundo do carvalho e disso nasce uma
composição, alguma coisa diferente da interdependência. Poderíamos marcar esse encontro
como uma novidade entre reinos, e não defini-lo com uma necessidade de sobrevivência.
Entre a formiga e o carvalho, entre os dois, um mundo de indiscernibilidade.
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Parece que o tempo está mais leve, indeterminado.
Parece. Veremos.
O tempo, o rigoroso, o cronológico, muitas vezes se apresenta decisivo, a impor
modos e momentos, exigindo certas ações e reações, ordem mais que desordem, acertos mais
que erros. Mas não se fica restrito a um e outro. Assim, a criação escapa disso e o pensamento
e o comportamento estão mais longe, indeterminados, despreocupados, inventando outros
mundos. Comportamento e pensamento: não há como parar esse contágio. Se essas ações e
reações estão mais próximas podemos nos arriscar a dizer que alguns pontos de
indiscernibilidade podem despontar: são os mesmos que contagiam, mas que não se sabe
muito bem definir, pois não se está atrás de definições. A indiscernibilidade não se limita a
pontos definidos, ela estará sempre escapando de uma definição ideal ou de uma localização
pontual. Como que um instante parado, um elétron com seu orbital desocupado, um momento
inominável. Aí, nesse tempo, vamos partir. Imóveis. Saturados. Sem ar.
O tempo das conexões neuronais, diz Varela (2003), compõe-se de mundos:
“micromundos emergentes”. Além disso, é “através de rápidas oscilações entre populações de
neurônios capazes de dar origem a padrões coerentes” (ibidem, p. 82) que as conexões se
estabelecem. Varela aposta numa destruição das simetrias e aponta uma bifurcação em forma
de “dinâmica caótica”, onde um conjunto neuronal torna-se predominante e “converte-se no
modo comportamental para o momento cognitivo seguinte” (ibid., p.82). Alguns pontos em
comum podem desencadear um sucesso tanto pontual quanto evolutivo. Mas não quer dizer
que estejamos frente a determinismos e condições pré-estabelecidas. Numa dinâmica caótica
tudo passa, não temos como prever tal ou qual comportamento ou pensamento. Muitas
possibilidades se insinuam, fazendo com que as conexões neuronais produzam novidades, em
vez de demarcarem uma função. Função de órgão ou comando de ações. Pode-se interrogar
como uma população de neurônios é selecionada num conjunto que dura, ou seja, existe não
no tempo ou no espaço, mas na contingência? E verificar se há consistência. Nessa seleção se
levaria em conta outros sabores, outras distâncias que levariam os neurônios para outros
rumos, outras ligas. Isso pode ocorrer, mas será difícil definir instâncias ou medidas para tais
eventos.
Observa-se que na perspectiva da consistência o cérebro não pode ser comparado
àquele órgão ligado à cognição ou ser um órgão modulador, responsável pelo “comando” de
ações ou reações humanas. O interesse em nomear o cérebro como órgão supremo ou
desvelador, que possuísse os segredos da existência, não produz novidades, já que limitam as
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análises, tanto do ponto de vista do conhecimento quanto das possibilidades que surgem de
um estudo sobre as atividades do cérebro. Esta atividade muitas vezes pode estar relacionada
aos mundos imaginários da existência, formando labirintos que podem deixar novidades
adormecidas, presas a análises duras e que deixam o cérebro diante de repetições infantis que
já estariam de antemão determinadas. Tenta-se um caminho mais suave: uma paisagem ou
mapa.
Mesmo os estudos científicos mais tradicionais, dentro das neurociências, por
exemplo, podem apontar caminhos novos, pois nada na ciência é definitivo. Se realmente se
está num mundo cósmico, algumas possibilidades se insinuam. Não é uma viagem fácil. Vê-
se mais um “mundo sem volta”. As idéias andam soltas. Só estamos querendo saber o que faz
delas idéias consistentes ou não. O que está no meio delas? O que faz com que nossas idéias
permaneçam juntas?
Algumas hipóteses para pensar sobre o pensar.
As idéias mais belas podem aparecer aqui, ali.
Será necessário escavar.
Transformar as idéias em visíveis.
Nesse sentido, verificar um “atraso relativo” da consciência é, para Damásio (1999),
aquilo que deixaria todos num mesmo nível de ação, no sentido de uma aproximação das
percepções, colocando categorias temporais e da consciência num mesmo patamar, quer dizer:
o tempo apresenta-se relativo. Para o autor:
Os neurônios são ativados em apenas alguns milionésimos de segundos, enquanto que
os acontecimentos de que temos consciência na nossa mente ocorrem na ordem de
dezenas, centenas e milhares de milésimos de segundos...estamos sempre atrasados
para a consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso, ninguém repara
(
ibid., p.154) .
Uma idéia de consciência poderia levar a uma noção estanque das percepções pelas
quais estamos submetidos, mas, sob essa perspectiva, Damásio prefere uma conexão mais
próxima do imprevisível, já que há liberação das noções de tempo a que se está normalmente
associado. Além disso, aproxima o cérebro de uma idéia de fluxo. Vê-se isso, pois, “é preciso
ter em conta que o fluxo do pensamento se move para frente no tempo, depressa ou devagar,
de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa seqüência, mas
em várias” (DAMÁSIO, 1999, p.154). Os atrasos e as velocidades admitem mais de um
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estado, possuem várias formas. Não se limitam a tempos cronológicos. Consideram-se as
velocidades e os atrasos como componentes de um estado espacial e temporal, como um
conjunto que contempla o presente; experimentam-se, com isso, inúmeras formas de ação.
Cada ser vivo age conforme seu tempo e seu espaço, e não estariam determinados por ordens
cronológicas, pelo envelhecimento de suas células; mas como suas moléculas já não se
encontram como antes, perderam contatos decisivos para que ali fosse possível uma
consistência. E, com isso, apresentam diferenças de toda ordem.
Num cecidomídio, o tempo que a larva leva para comer sua mãe por dentro representa
toda sua existência. Só isso já ajustaria o tempo a uma outra dimensão que talvez esteja
próxima dos confins do cosmo. Por que definir nos seres uma ordem fixa se o que mais
aparece são as aproximações experimentadas por eles. Uma larva acelera seu crescimento em
relação a outras espécies. Mas ela própria não vive numa ordem cronológica. Seu tempo se
mede mais pelas velocidades do que por uma seqüência ovo-larva-adulto. Pode ser que a
noção de tempo esteja ligada ao intelecto e à consciência. Mas o tempo é universal.
Contempla a todos. O vivente carrega consigo o tempo do universo. Carregará para sempre
em suas moléculas essa existência colapsada, única, atemporal.
Existiria um concreto a assombrar a mente? Esse concreto real, atual das nossas vidas,
essa mesmo, a que vivemos? Heterogêneos, circunstanciais, longe de determinar um padrão, a
realidade estaria próxima do que Minsky (1986) sugere:
a mente surge como uma espécie de sociedade com “agentes” que operam em escalas
circunscritas e se organizam em “agências” eficientes e maiores. Estas escalas de
organização reproduzidas nas sociedades estariam dadas já na mente, ‘não como
entidade unificada, homogênea, nem mesmo como grupo de entidades, mas sim como
um grupo desunificado, heterogêneo, de processos’. (
Apud VARELA, 2003, p.74).
Vê-se, nesse contexto, uma aproximação dos ideais contemporâneos de sociedades
heterogêneas, contendo um vasto número de possibilidades. Nesse sentido, a cognição pode
ser comparada à idéia de sociedades heterogêneas, tal como são qualificadas, de modo geral,
as sociedades atuais. Heterogêneas e contingentes. Nossas ações estão em busca de soluções
para determinados contextos que, de antemão, não poderiam ser previstas. Para Minsky
(1986), a mente aproxima-se dessa noção de sociedade, pois a cada ação corresponderia uma
situação que dificilmente estaria dada a priori, mas dependeria de uma série de circunstâncias.
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Algum sociólogo arriscaria dizer que pertencemos a uma totalidade? O que caracteriza as
sociedades atuais é uma variedade imensa de formas e maneiras de organização. Varela
(2003) apresenta, nesse sentido, uma novidade ao dizer que nosso cérebro é composto de
redes, que “o sistema todo lembra mais uma colcha de retalhos, formada por sub-redes
reunidas através de um intrincado histórico de remendos, do que um sistema otimizado
resultante de um projeto claro e unificado” (ibid., p.73). Sofremos diariamente um colapso
atrás do outro. Não sabemos bem de onde vêm nem para onde vão nossas decisões. Sabemos
que possuímos um repertório de atitudes que está prestes a ser acionado em algum momento.
Mas essas ações ou “prontidões-para-ação”, segundo Varela, nos levariam a “micromundos
típicos”, com os quais corporificamos nossas ações. As redes formam, nesse caso, nós
provisórios, prontos para distribuir novas conexões, pois as redes seriam distributivas,
formando a cada vez uma novidade. Longe de determinar um limite, a distribuição das redes
neuronais comporta possibilidades. Conexões novas. Distribuições incontroláveis. Os
inúmeros colapsos que se vivem formariam uma dinâmica própria do vivente. Alguns fios
distribuídos ao seu redor. Os neurônios estão envoltos nesse caldo dinâmico cerebral e os nós
não são somente pontos de atividade ou inatividade, que possam ser ativados ou desativados à
maneira de um sistema físico. Não se saberá quantas vezes nossos impulsos podem ser
ativados, desativados ou até mesmo controlados externamente.
Se comparados aos sistemas físicos, um vivente apresentaria outras conformações. Um
e outro refletindo situações de ordens distintas. O vivo e os sistemas físicos usam maneiras
distintas de apresentar suas características. No entanto, como veremos, o vivente é um ser
“problemático”, que possui a capacidade de resolver seus problemas, diferentemente dos
sistemas físicos, já que “o problemático substitui o negativo. A individuação, portanto, é a
organização de uma solução, de uma ‘resolução’ para um sistema objetivamente
problemático” (DELEUZE, 2003, p.122). Nesse caso se verifica uma dualidade apenas de
ordem passageira pois tanto o vivente como os sistemas físicos possuem seus próprios
códigos, suas próprias determinações. Não implicam dinâmicas opostas, mas sim
comparáveis.
Para resolver seus problemas atuais e reais o vivente dispõe de uma gama imensa de
ações a serem tomadas. A pergunta seria então: por que tomamos tal decisão e abandonamos
outra, num dado momento? A simplicidade pode ser a maneira mais comum de resolver
assuntos difíceis, usar a menor energia possível. Essa estratégia de sobrevivência que
acompanha o comportamento dos seres vivos em geral pode acionar fenômenos muitas vezes
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difíceis de serem previstos. Poucos humanos se arriscariam a ficar sozinhos numa floresta
sabendo que a presença do predador é iminente. No mínimo haveria uma companhia ou
maneiras de comunicação para pedido de socorro num caso de ataque. Mas como se chega a
uma estratégia semelhante? Apontamos determinadas atitudes como as mais corretas, pois
esquivam a morte, nos deixam vivos por mais tempo, somos mais espertos que os
concorrentes, etc. Isso não desfaz os estados hierárquicos, de comando, do mais forte ao mais
fraco. Seria preciso perguntar então: o que pode um vivente? Quais são seus mapas? Como
ele traça suas conexões? Para Henry Miller (Apud DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.26) as
características variam dependendo das condições. Para ele, “a erva existe exclusivamente
entre grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre, e no meio das
outras coisas. A flor é bela., o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é
transbordamento...” (Apud DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.30).
“Qual é a função?” “Para que serve?” Por que se insiste nessas perguntas? Nestes
casos a tradição parece imperar. Hierarquia, subserviência, inconsciente. São vários nomes
para dizer o mesmo. Fica-se parado num mesmo lugar. Mas essas perguntas podem levar, sim,
a um lugar: aparentemente tranqüilo, recompensador e apaziguador. Nossas mentes
hierarquizadas, controladas e em paz.
Agora não se quer paz.
Nossas mentes já estão povoadas de outras ervas, ervas daninhas, claro. Por que ervas?
Porque pensar em ervas retira um ideal ou um objetivo do centro da questão, assim como
retira do sujeito seu lugar privilegiado. Pode-se considerar que num corpo ou num organismo
existem alguns componentes celulares com um destaque maior em relação às demais células.
Isso pode estabelecer uma hierarquia aparente que qualifica certos componentes celulares em
detrimento de outros. Algumas vezes as células nervosas podem ser elevadas a essa categoria
privilegiada já que faz parte de um órgão igualmente considerado melhor. Assim, encarar os
neurônios como ervas daninhas pode dissipar as categorias estabelecidas no corpo ou o
organismo. Os neurônios estão crescendo indistintamente. Para cá. Para lá. Sem precisão, sem
rumo. Assim nascem ervas. Assim nascem neurônios. Neurônios são ativados em n
dimensões. Não há uma resposta ideal para uma situação específica. Por que as ervas são
daninhas? Porque há uma liberação da sexualidade. A flor, o repolho e a papoula submetem a
sexualidade à reprodução. Não há reprodução nas ervas? Há sim, ainda mais disseminada,
contagiosa, uma sexualidade explosiva! Ser “daninha” pode levar a um conceito negativo,
associado àqueles seres cuja existência limita-se a apavorar e a devorar outros seres. Mas o
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caráter “daninho” também pode remeter aos modos mais explosivos da existência, onde a
fixidez das ordens não faz sentido. Não se vê as ervas daninhas sendo postas na mesma ordem
das demais plantas, elas normalmente são desqualificadas devido ao prejuízo que causam.
Elas estão sempre na dependência de outras plantas, crescendo entre, desfazendo as ordens
taxonômicas e estruturais. Fazendo com que novos venenos sejam produzidos, escapando
sempre dessa natureza classificatória e sistematizadora.
Ervas não crescem, espalham-se; não possuem medidas, chegam e tomam conta. As
ervas rasteiras ou aéreas produzem uma corrida que mobiliza muitas espécies e à causam uma
grande desordem. Como nascem sem uma mediação linear, sua natureza é considerada
rizomática. Para Deleuze e Guattari (1995) “o rizoma conecta um ponto qualquer com um
outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma
natureza” (ibid., p.32). Sem hierarquia, primazia taxonômica ou ordem cerebral. Suas
conexões não são necessariamente certas ou exatas. Trata-se de expressões anexatas, pois
“são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo exatamente” (ibid.,
p.32). Estas são maneiras de desfazer as primazias de órgãos e funções. Pensar num rizoma
possibilita desfazer-se de conceitos acabados ou pré-determinados. Atribuir ao pensamento
um caráter rizomático possibilita ou facilita um ponto de vista destituído de classificações
prévias, limitantes e hierarquizados.
Estar solto não significa valer-se de qualquer conceito ou desfazer-se de tudo.
Encontrar um caminho novo produz certos delírios que, muitas vezes, podem assustar. As
raízes pedem preservação a qualquer preço: cuidado para que não se percam as sensações
mais limitantes. Como pensar distante da forma enraizada, pré-estabelecida, pré-fundada?
Talvez uma possibilidade seja aquela que Deleuze e Guattari (1995) experimentam, ao
dizerem que “o pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem
ramificada... Muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é
muito mais uma erva do que uma árvore” (ibid., p.25). Para deslizar nas zonas do pensamento
sem uma perspectiva arborescente seriam necesrias descobertas, aproximações com formas
desconectadas de uma realidade pré-estabelecida. Seriam necessárias aproximações com um
inusitado. Aproximações com um indeterminado.
Propor novas dualidades, tais como trocar árvore por rizoma, não mudaria nem criaria
novas formas de pensar. Sabe-se que os dois coexistem, são contemporâneos e que os
próprios rizomas podem também suscitar hierarquias. Um processo, uma passagem, é disso
que estamos tratando. Os rizomas ou ervas que invadem um pensamento podem produzir
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tantas novidades que não se pode determinar nada. Isso pertence à potência da invenção. E
novas conexões podem surgir.
A comunicação entre os neurônios, seus contatos, são, para Damásio (1999), um
acontecimento, já que “a vida faz com que os neurônios se comportem de modo diferente ao
alterar, por exemplo, o modo com que eles se conectam a outros” (ibid., p.80), pois, as
conexões podem alterar substancialmente os parâmetros da existência, da vida. Não será
possível determinar quantas ligações são possíveis numa vida. Talvez as conexões estejam,
sim, diante apenas de parâmetros circunstanciais, que as células vão atravessar, juntamente
com suas moléculas. Mas nada garante um padrão de ordem do comportamento e do
pensamento. Uma conexão entre neurônios dispara um conjunto complexo de inter-relação
entre alguns componentes especiais. Moléculas suficientemente elegantes para compor uma
dança, carregando consigo uma mensagem. São mensageiras nesse caldo químico que emerge
segundo velocidades e atrasos, segundo acasos e necessidades, tais como vistas por Monod
(1989), para quem é difícil, ainda hoje, se acreditar “que, de uma fonte de ruído, a seleção
tenha podido por si mesma tirar todas as músicas da biosfera” (ibid., p.137).
Monod pensa nas conexões entre as moléculas partindo das análises localizadas nas
interações bioquímicas que ocorrem dentro das células. Talvez pudéssemos considerar um
acontecimento como algo inusitado, que pudesse alterar definitivamente um conjunto de
elementos. O aparecimento da vida seria um acontecimento que, de algum modo, pode ser
encarado sob o ponto de vista do acaso. Não seria possível afirmar com toda certeza quantas
vezes os dados foram jogados até que a primeira forma de vida surgiu na terra. Podem ter sido
várias as tentativas para que a atual estrutura da biosfera propiciasse a vida, mas isso pertence
às probabilidades. Não é certo que, de outro modo, a vida tenha surgido de um acontecimento
único e decisivo. Em nível molecular, diferentes tipos de alterações acidentais podem ocorrer,
numa proteína, por exemplo, o que modifica as futuras ligações com outras proteínas ou com
um substrato. Com isso Monod propõe que uma expressão pode alterar-se. Uma característica
física pode mudar, e que isso, na maioria das vezes, pode acontecer ao acaso, e “segue-se que
apenas o acaso está na fonte de toda novidade, de toda criação na biosfera” (ibid., p. 129-130).
Isso permite um deslocamento da idéia de que a realidade das coisas e do universo seja algo
necessário desde sempre. E Monod (1989) destaca, ainda, uma tendência humana em acreditar
que tudo seja fruto da necessidade, o que se choca com muitas correntes científicas, pois "a
ciência moderna ignora toda imanência. O destino se inscreve à medida que se cumpre, não
20
21
antes. O nosso não estava escrito antes que surgisse a espécie humana... O universo não estava
grávido da vida, nem a biosfera, do homem.” (ibid., p. 163).
Mas a necessidade também compõe isso que Monod atribui ao seres vivos, vistos
como estruturas químicas modificáveis a cada vez. Às vezes o acaso, nas ligações entre
polipeptídios, às vezes a necessidade, como na regulação alostérica. Muitos sons são captados
numa mensagem bioquímica. A vida passa nesses conjuntos de moléculas, nesse canto, nessa
composição.
O pensamento busca outros horizontes. Apontar a necessidade e o acaso como
circunstanciais talvez possa aproximar-se disso que Monod procura: a música das moléculas.
Acaso e necessidade não se oporiam, mas, sim, se distribuiriam em fenômenos de
ordem distinta num e noutro: ora o acaso, ora a necessidade. Se as mensagens bioquímicas
não revelam ou propõem uma função ou hierarquia, destacam-se outras fontes de atividade.
Maneiras de alcançar novas fronteiras do pensamento. Assim, o vivo pode compor-se de
fontes potenciais, permitindo que novas conexões sejam realizadas. Uma mensagem
bioquímica não reproduz nada, não determina uma estrutura. A vida passa por alguns
elementos químicos e retira deles seu potencial, dando forma a estruturas tão novas e atuais
quanto uma bactéria.
Surge, nessa perspectiva, um pensamento que carrega consigo um tratamento novo da
idéia da vida, a vida como movimento. Deleuze e Guattari (1997a) entendem esse conceito
como paisagem. Compreendem a vida do ponto de vista das novidades surgidas num
agenciamento. Nesse caso, num agenciamento vital. Tentar vislumbrar os elementos contidos
nesse agenciamento e seguir seus componentes. Como esses elementos fazem consistência,
permanecem juntos? Compondo um potencial diferente dos demais e tido como vital, tido
como vivo.
Seria necessário um estudo que levasse à idéia de agenciamento. Um agenciamento
neuronal já que os neurônios em seu conjunto realizam juntos uma atividade. Os neurônios
nessa atividade realizam num conjunto de ações que são reconhecidas num determinado ser
vivo (o ser humano, por exemplo) e determina algumas ações num plano que pode ser
encarado junto a uma perspectiva que leva em conta um agenciamento vital, no sentido de que
“todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a,
p.218), que a vida requer um território, um lugar: “dentro de uma lata de lixo ou sobre o
banco, os personagens de Beckett criam para si um território” (ibid, p. 218). Um território
propriamente neuronal, onde os agentes realizam seus contatos e suas contigüidades
21
22
distinguindo das conexões neuronais uma estrutura consistente e diferenciada. Nesse sentido,
pode-se dizer que os neurônios compõem um plano de composição neuronal.
No entanto, uma analise conjuntural de um agenciamento levaria em conta também
outros aspectos. Um sistema pragmático, das ações e paixões junto com um sistema
semiótico, da expressão são retirados os agentes que formam os agenciamentos, seus estratos
(células neuronais) e seus regimes de signos são transpassados pelo agenciamento vital.
Distribuir os agenciamentos maquínicos de um lado e o agenciamento de enunciação
de outro. Nestas condições sobressaem as circunstâncias para que os agenciamentos possam
ser vistos desta maneira, tal como sugerem Deleuze e Guattari (1997a):
Nos agenciamentos, há estados de coisas, de corpos, misturas de corpos, ligas, há
também enunciados, modos de enunciação, regimes de signos. As relações entre os
dois são muito complexas. Por exemplo, uma sociedade não se define por suas forças
produtivas e por sua ideologia, mas, antes, por suas “ligas” e seus “veredictos” (ibid,
p. 219).
Como se juntam determinadas células que tomarão algumas decisões, enquanto outras
serão deixadas de lado? Haveria uma distribuição, conforme as novidades que povoam a
mente? Existiriam contingências a nos cercar, inventando e reinventando as possibilidades?
Os agenciamentos funcionando num e noutro nível, fazendo as conexões possíveis. Muitas
moléculas participam desta dança. Destacar-se-iam aquelas que consistem ou não, as que, por
afectos, mais do que por função, estão em evidência, naquele estado, naquele momento,
naquelas condições. Não se trata apenas de encontros possíveis, mas sim da consistência e do
agenciamento produzido nessas condições.
Assim como no agenciamento-vital:
O agenciamento vital, o agenciamento-vida, é teoricamente ou logicamente possível
com toda espécie de moléculas, por exemplo, o silício. Mas acontece que esse
agenciamento não é maquinicamente possível com o silício: a máquina abstrata não o
deixa passar, porque ela não distribui as zonas de vizinhança que constrói o plano de
consistência (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.81).
Por que não há consistência do agenciamento vital com o silício? Seria necessária uma
consistência, um plano de consistência, cujo agenciamento agiria nos estratos revelando essa
22
23
consistência, “mas, se o agenciamento não se reduz aos estratos, é porque nele a expressão
torna-se um sistema semiótico” (DELEUZE; GUATTARI, 1997 (a), p.218). Já o carbono é
diferente, produz um agenciamento maquínico viável com o orgânico, atravessando o
agenciamento-vida (orgânica). É também por isso que toda literatura disponível sobre essa
molécula conduz aos mais diversos sonhos humanos, dos faraós à tentativa de achar vida em
Marte. Esse carbono é realmente irresistível!
Daí que, sem encontro não haverá possibilidade de juntar elementos heterogêneos e
com isso formar o que, no caso do agenciamento vital, ocorre com a molécula de carbono.
Consideramos, também, a importância do silício nos agenciamentos maquínicos tecnológicos
atuais, tais como os acoplamentos dos chips dos computadores. Nestas condições o silício
constitui uma molécula consistente, já que compõe maquinicamente um plano de composição
tecnológico e todo o conjunto de enunciações ligado às tecnologias da computação, por
exemplo, já que este agenciamento maquínico tecnológico modificou completamente os
padrões comportamentais das sociedades atuais. O silício como molécula que também auxilia
a medicina a conectar cada vez mais células às máquinas.
Para compor o agenciamento vital não se procuram respostas a partir das reações ou
funções dos organismos, nem se busca reconhecer no carbono uma molécula-chave que
regularia as rações metabólicas dos organismos. Esta molécula não consegue nada sozinha,
são necessárias inúmeras rotas metabólicas para denominar esse complexo conjunto de
elementos que se encontram no vivente. Buscam-se, isso sim, as afecções produzidas no
encontro entre moléculas que compõe o vivo e o que disto resulta consistente.
Uma idéia presa às circunstâncias duras da existência leva a um pensamento
demasiado limitado do existir. Com isso perdem-se as perspectivas inovadoras, diferenciadas.
Para que a idéia de comportamento seja trocada pela de agenciamento deve-se levar
em conta outros aspectos, tais como o que se faz e o que se diz sobre as ciências e seus atores,
os cientistas. Podem-se considerar diversos aspectos da vida: se ela foi um acontecimento
único, se ela apareceu uma única vez ou ocorreram acontecimentos múltiplos que puderam
construir isso que conhecemos como vida. Os cientistas procuram com afinco essas respostas
nos diversos ramos do conhecimento. E a vida não está restrita a argumentações limitantes,
deste ou daquele ramo do conhecimento. Mesmo as ciências mais duras podem,
eventualmente, ser atravessadas por diversos aspectos das culturas humanas, bastando para
isso uma aproximação com os diversos níveis de organização das sociedades de modo geral.
Quantas vezes vêem-se esses aspectos atravessando as ciências ditas cultas, novos
23
24
cruzamentos com etnografias e culturas distantes desses níveis “cultos” do saber. As ciências
atravessadas pelos enunciados sociais. Ver também quanto de preocupação científica há nos
casos em que se estabelece aqui e ali comportamentos, modas, modos de vida. Quando um
cientista é chamado para responder sobre uma nova forma de agir por reação a uma nova
tecnologia, por exemplo. Estamos de alguma forma ligados por essas novidades produzidas
nos diversos saberes, em qualquer nível, seja na ciência culta, seja na ciência itinerante.
Seguir um átomo, uma molécula...
Seria o caso de acompanhar as moléculas, acompanhar seus ritmos. Mas até as
moléculas querem um território (melhor: um substrato). Ligações de ligações. Freqüências.
Algumas consistentes, outras desastrosas. Ligar moléculas não é fácil. A incerteza
probabilística está por toda parte. Fugir é a regra. Parece que as moléculas foram mais longe
hoje. Não foram encontradas em parte alguma. Às vezes, são vistas em algumas montanhas à
espera de uma boa brisa. No mar, gostam de refrescar-se, pois a beleza das manhãs é bem
aproveitada por elas.
Não precisaríamos definir as moléculas como constituintes decisivos numa reação de
biossíntese, sem antes lhes atribuir um deleite próprio ao compor essas reações nos diferentes
organismos. Uma enzima não está determinada de antemão ao próximo substrato; isso só
ocorrerá se houver coincidência e encontro. Não haverá ligações em função de órgãos ou
sistemas, mas por velocidades e atrasos nas reações. As afecções entre enzimas-substratos
estão longe de demarcar uma função ou determinar uma reação em cascata.
Num caldo intenso estão as conexões neuronais. Os axônios possuem um papel
extraordinário: ligar neurônios, fazer sinapses, transmitir mensagens. Que mensagens
carregam? Quais impulsos são transmitidos? Que diferenças de potenciais circundam as
vizinhanças de neurônios? Há transmissão “comandada” por uma espécie de molécula
particular: um neurotransmissor.
Esse elemento é selecionado de uma gama intensa e posto em funcionamento com o
propósito de transmitir impulso nervoso. Mas essa mensagem passa como que por dois
estados: um elétrico e o outro químico. Essas transformações modificam um sinal, produzem
uma mensagem, tal como é descrito por Alberts (1999): “para que a mensagem seja
transmitida de um neurônio a outro, o sinal elétrico é convertido em sinal químico, sob a
forma de uma pequena molécula sinalizadora conhecida como neurotransmissor” (ibid.,
p.404). Os neurotransmissores entram em cena. Estão entre um sinal neuronal e outro.
Dependem deles as sinapses.
24
25
m encontro entre um neurônio e outro possui uma propriedade fantástica! Nesta
altura
acasos. Os
canais
U
trocas e descargas iônicas comunicam entre si mensagens que devem passar. Passar
adiante. O impulso nervoso é uma dança. A descarga dos íons, a polarização e inversão da
polaridade. E, nisso, um axônio possui um papel novo, transmitindo as mensagens. Não são
mais os dendritos que ocupam um papel central nas ligações entre neurônios ou entre as
demais células, mas sim todo um novelo formado nos axônios, o papel das bainhas
transmissoras de impulsos nervosos. Aquilo que conecta axônios, ou seja, que possibilita uma
descarga interativa entre as células. Nesse caso, não se atribuiria aos neurotransmissores duas
e apenas duas possibilidades (excitação ou inibição). No entanto, neste ponto entram em jogo
também moléculas fundamentais situadas exatamente entre as membranas e, num rompante
químico, algo pouco previsível acontece. São interações inusitadas que ocorrem.
Neste ponto já se pode dizer que para as moléculas o que importa são os
iônicos poderiam apontar essa incerteza? Num canal iônico podem-se observar
passagens que, ao juntar íons adequados para o momento, fazem uma nova conexão. Algo
novo se anuncia nessa conexão que acaba de ocorrer entre o Na
+
, o K
+
e a membrana. Os
axônios precisam transmitir logo o impulso nervoso. Esta informação é de natureza
estratégica. Como irá fazê-lo? Que caminho seria o mais eficiente? O que fizeram de fato os
neurônios? Criaram para si mecanismos de transmissão eficientes, tais como redobrar a
membrana várias vezes. Redobrar a membrana sobrepô-las, aumenta a velocidade da
propagação nervosa. Isso ocorre com a bainha de mielina em volta do axônio. Pode-se atribuir
25
26
várias funções a essa bainha. Pode-se dizer também que ela é uma novidade evolutiva ou
adaptativa. Com algumas características próprias, essa bainha, essa dobra, torna mais eficaz
uma comunicação entre os neurotransmissores. E percebem-se essas associações como fontes
de conexões apropriadas nesses níveis celulares. Assim, Deleuze e Guattari (1995) destacam a
importância dos axônios e das sinapses nas conexões, nas mensagens que estes produzem.
Tudo o que se efetua nesta célula mais do que determinar uma ou outra ação, produz uma
multiplicidade. Para os autores:
A descontinuidade das células, o papel dos axônios, o funcionamento dos
Não se está frente a centros arborescentes ou eixos de inibição-desencadeamentos.
Perceb
os, pois é deles que se pode esperar algo. Não somente
uma es
am
no cam
omo tudo está misturado
axônios, o funcionamento das sinapses, a existência de microfendas sinapticas,
o salto de cada mensagem por cima destas fendas faz do cérebro uma
multiplicidade que, no seu plano de consistência ou em sua articulação, banha
todo um sistema, probabilístico incerto (
ibid., p.25).
e-se mais uma rede, uma população de neurônios que, ao serem selecionados, fazem
consistência. Acoplamento. Nessa rede contínua pode haver tantas condições que estão longe
de serem previstas e, portanto, as novidades podem estar em toda parte, onde inicialmente
haveria um vazio aparente. Nas fendas, nos intervalos, no infinito que separa e afirma as
fendas. E não se sabe quantas novidades podem ser inscritas, inventadas e reinventadas nos
interstícios onde se dão as ligações.
Pode-se observar os encontr
pera passiva, mas sim tentar inscrever novos códigos ou novos procedimentos. Novas
maneiras de encarar a realidade já que partimos das multiplicidades e não há apenas uma
realidade a ser revelada. E a ciência, mesmo a mais tradicional, interfere nesses interstícios,
propondo sua matéria. Uma ciência conta com inúmeras possibilidades de encarar seus
desafios. Será válido constatar sua abrangência nos diversos campos em que atua, será válido
também constatar o quanto disso pode ser uma fonte de novidades para um cientista. Por isso
podem-se esperar muitas novidades de um cientista, já que seu campo é misto, misturado.
Uma ciência nunca é determinada, mesmo que muitas vezes as novidades permaneç
po das especulações e que muitas novidades não possam ser ditas, ou ainda que muitas
mentiras sejam contadas em nome de uma instituição ou de uma vaidade pessoal.
C
Tudo está dissolvido
26
27
Tudo está nebuloso
O dia cinza
À tarde também
eia-noite...
ovidades logo ali.
E o sol surgiu à m
N
Mais adiante.
27
28
II. NÓS E ENTRE-NÓS (ACERCA DA INDIVIDUAÇÃO)
alhos formam nós. Destes brotam novos ramos ou folhas. No meio dos nós: entre-
nós. Pa
re.
a à porta.
ssão acerca da origem do indivíduo. Simondon (2003) se distancia
das du
realçar a
questão
lgo que é pouco considerado: o indivíduo carrega consigo
forças.
tervalos existentes entre o ser e o
desenvolvimento. Os indivíduos são vistos como estados sem fim. Um indivíduo, nesse caso,
G
ra surgirem novos galhos com folhas precisa-se de um nó, uma região que suportará
um novo conjunto anatômico: galhos, folhas, flores. Mas entre os nós observa-se um
intervalo.
Ent
Não bat
Houve muita discu
as direções pela qual a individuação foi pensada na história da filosofia: uma visão
substancialista, “que considera o ser como consistindo em sua unidade, dado por si próprio,
fundado sobre si mesmo, inegendrado, resistente ao que não é ele próprio” e uma visão
hilemórfica, “que considera o indivíduo como engendrado pelo encontro entre forma e
matéria”. Para Simondon, no entanto, a individuação requer “conhecer o indivíduo pela
individuação muito mais do que a individuação a partir do indivíduo” (ibid., p.100).
Para abordar a individuação seria preciso abandonar as questões da essência e
da existência. A existência de qualquer ser, de qualquer individuação. Com isso “a
ênfase recai não sobre o que é? (pergunta sobre a essência), mas sobre este (pergunta sobre a
existência)” (ANTONELLO, s/d).
Parece razoável considerar a
Parece também abstrato demais. Como não é fácil medi-las, muitas vezes não parece
fácil considerá-las. Um espírito científico buscaria as quantidades reais. Mas as realidades
também são virtuais, são da ordem do inusitado. Não parece fácil prever uma reação tal como
acontece no crescimento de um organismo. As forças podem distinguir aquilo que não está
dado, aquilo que não é observado na realidade cotidiana.
O que importa, para Simondon (1999), são os in
28
29
está em
ção. O foco está nos meios, nas mediações, nas forças que compõe o vivo e os
sistema
Aristóteles, por causa do modo pelo qual pensa a diferença, faz da individuação um
evento secundário, um processo não diferenciante, mas particularizante: o indivíduo
está pressuposto na espécie; o seu aparecer é indiferente, porque a verdadeira
Com a ontogênese tradiciona
problema: o indivíduo não está dado. Ele não é nem pré-indivíduo que, por conseguinte,
chegar
formação não acabado. Este é considerado relativo, parcial, em formação contínua. E
Simondon (1999) lança algumas questões. Ele prefere dizer que “a palavra ontogênese ganha
outro sentido se, em vez de lhe atribuirmos o sentido, restrito e derivado, de gênese do
indivíduo (em oposição a uma gênese mais vasta, por exemplo, a da espécie), fazemo-la
designar o caráter de devir do ser, aquilo por que o ser devém enquanto é, como ser” (ibid.,
p.101).
Com base em Simondon, Deleuze (1988) desenvolve uma nova perspectiva sobre a
individua
s fisicos, os átomos e as moléculas. O indivíduo não é resultado, finalidade. Para
Deleuze (1988) “a individuação não supõe qualquer diferenciação, mas provoca. As
qualidades e os extensos, as formas e as matérias, as espécies e as partes não são primeiras;
elas estão aprisionadas nos indivíduos como nos cristais” (ibid., p.393 – 394).
Até então, a individuação do ser era vista sob a perspectiva aristotélica:
diferença lhe é preexistente, uma diferença – inscrita na identidade do gênero – que é
alguma coisa de determinado e não evento, acontecer. (ANTONELLO, s/d)
l, a procura do Ser, do eu verdadeiro, esbarra num
á, após algumas transformações, até um indivíduo formado. Nem tampouco indivíduo
acabado, fruto da união entre matéria e forma. Procurar uma substância fundamental torna-se
limitado demais, assim como juntar matéria e formas pré-concebidas. As matérias e as
formas, as substâncias, passarão por outras afecções. Serão vistas desde um ponto de vista
relativo. Longe de demarcar identidades fundamentais, estarão perto do acontecimento, como
instância em formação das novidades que acompanham a individuação do ser. Não se percebe
nessa ótica, saídas ou chegadas, objetivos ou procura por sujeitos determinados. O que se
percebe são mais estes caminhos que permeiam uma existência contingente, próximas dos
devires inusitados.
Sem partidas, sem chegadas.
29
30
O meio, o intervalo parece apontar para essa formação aproximada das coisas que
conhec
omo poderá ligar-se a
outro, n
átomo ao cosmo.
ações que não são somente químicas ou que logo à frente
formar
não se limitam às probabilidades ou
aos su
emos, dos indivíduos, em particular. “O ovo é um universo”, ele nos carrega para
intensidades de outra ordem. Num ovo só se observam possibilidades, o ovo não é. Apenas
existe. Mas como se chega a tal estado, um estado intenso? Isso de ovo parece duro de
engolir! Nós sabemos que um ser não é um ovo. O ovo é mais um estágio, passagem. Por que
isso parece aceitável e quando se trata da espécie já se perde essa perspectiva? Quando se está
frente a um indivíduo o consideramos como acabado, pronto, no limite. É bem difícil atribuir
a uma espécie sua condição de passagem. Não que ela vá se transformar em pó depois de sua
morte. Não é bem dessa passagem que se trata. Enquanto indivíduos em formação carregam-
se todas as forças da terra, do cosmo. Com isso as potências e os encontros parecem infinitos.
Não se sabe quantas ligações pode-se fazer numa vida. Ligações químicas, forças cósmicas,
ligações físicas, energias livres. Misteriosas conexões entre moléculas.
A procura por discernir ligações, determinar se este ou aquele át
ão desfaz os mistérios imanentes aos elementos químicos. Estes não estão só descritos
numa tabela de seqüência de aparecimento e propriedades comuns. E os elementos químicos
não existem somente porque foram descobertos ou descritos. Não se sabe tudo a respeito das
ligações promovidas entre as moléculas, domina-se apenas parte do que um elemento é capaz.
De resto a Química ainda lançará muitos outros elementos nos lugares vazios que esperam por
um nome.
Do
Verificam-se transform
iam matérias discerníveis, mas passagens, transformações de corpos, ações entre esses
corpos, provocando, com isso, transformações, mudança de natureza, já que “o indivíduo de
modo algum é indivisível, ele não pára de dividir-se, mudando de natureza” (Deleuze, 1988,
p.409). E de uma poeira cósmica não se sabe o que poderá surgir. E nem mesmo as medidas
respondem às possibilidades. Este planeta é minúsculo!
As inúmeras maneiras de discernir uma ligação
bstratos que serão ativados ou não pelas enzimas alostéricas, nem mesmo haveria
limites em sua conformação dita mutável. As ligações descritas por Jacques Monod (1989)
potencializam as conexões por afecções; “as enzimas alostéricas constituem ao mesmo tempo
a unidade de função química e um elemento mediador de interações reguladoras” (ibid., p.85).
Elas podem formar outros níveis de organização de moléculas. Ligações pouco localizáveis
no sentido de que estariam produzindo algo e não indo na direção de um produto
30
31
anteriormente determinado. Idéias parecidas estão presentes também em Deleuze e Guattati
(1987):
as forças internas intramoleculares, que conferem a um conjunto molecular, podem ser
Os mistérios são possivelmente aquilo que move um encontro entre elementos, pois é
disso q
ptar as capacidades de um corpo e do encontro entre corpos, as regiões
imperc
“Encontro” é a palavra-chave. É só num encontro que um corpo se define. Por isso,
de dois tipos: ou relações localizáveis, lineares, mecânicas, arborescentes, covalentes,
submetidas às condições químicas de ação e reação, de reações em cadeia, ou então
ligações não localizáveis, sobrelineares, maquínicas e não mecânicas, não covalentes,
indiretas, que operam por discernimento ou discriminação estereoespecífica mais do
que por encadeamento (ibid., p, 149).
ue as ligações se valem. Sabe-se, contudo, quais encontros são mais consistentes,
porque mantêm uma freqüência regular. Mas uma seqüência química, uma probabilidade
estatística será desfeita logo ali, pois um elétron não ocupou seu orbital, e disso pode resultar
outra coisa. Não há possibilidade de definir nada se essa nova conformação não mantiver a
consistência suficiente para aparecer como uma novidade surpreendente. Esta-se, com isso,
frente a outras possibilidades já que os eixos de centralidade, as reações dependentes de regras
fixas, não respondem a toda conformidade estudada pela Química ou pela Bioquímica.
Poderíamos questionar as possibilidades que circundam as ligações, as conexões entre os
elementos. Poderão atingir outras regiões, outros universos? Não se está muito longe disso.
Parece que a arte dos encontros permeia até as faces mais duras de uma freqüência estatística,
aquela que regularia tal ou qual ligação química. A arte dos encontros proporciona até mesmo
essas passagens entre moléculas ou átomos tão diferentes. Esta arte dos encontros produz
outras possibilidades de ligações inusitadas, com o cosmo, com a terra, com outros seres.
Devires.
Ca
eptíveis das ligações que ocorrem entre esses corpos:
não interessa saber qual a sua forma ou inspecionar seus órgãos e funções.
Individualmente, isoladamente, um corpo tem pouco interesse. É na intersecção das
linhas dos movimentos e dos afectos que ficamos sabendo daquilo de que um corpo é
capaz. Sua capacidade, e não sua essência, é o que importa, a não ser que por
“essência” entendamos justamente sua “capacidade” (
Tadeu, 2003, p.68).
31
32
seria uma das maneiras de atingir devires-imperceptíveis? Sabe-se quA arte e há uma
medida arbitrária para um átomo, para uma molécula ou para um corpo qualquer. Mas um
átomo
idades. Um esperando. Vivo. Aguardando. Lentidão.
sa. Imensa.
m isso, seria possível vislumbrar novas formas da existência, pensar que a
vida se orienta nos fios, ou se desorienta, pois os caminhos são intensidades. Que o ovo são só
dispara
gens. Para Deleuze (1988), a atualização se dá pela
individ
é um acontecimento, se entendermos que os encontros são primeiros relativamente ao
que deles pode-se distinguir. Nesta perspectiva um corpo se define por suas afecções, pelo
que ele é capaz. E define assim os diferentes seres e suas composições. Pode-se arriscar uma
nova e inusitada maneira de analisar o que pensávamos estar pronto e definido. Pensar, por
exemplo, numa conexão entre heterogêneos: um carrapato esperando o boi.
Um esporo para germinar.
Uma bactéria encistada.
Um cisticerco.
Não são vidas. São intens
Mas volta. Inten
Bastaria uma passagem: do boi.
Uma boa terra.
Uma pele.
Um intestino.
Contando co
tes! E as linhas se processam nas disparidades presentes no ovo, as linhas inomináveis.
Não se vê o ovo crescendo, o contrário da criança. Mas ele cresce por diferença de potenciais,
o mesmo que a criança. O crescimento é uma diferença. A partir disso pode-se conceber o
indivíduo como diferença. A espécie é a mesma; no entanto seus componentes (individuais)
diferem uns dos outros. Mas a espécie, essa união aparente de entes, qualifica o indivíduo, faz
com que ele se torne único, individual, dentro da espécie, que é geral. O indivíduo está na
espécie que unifica as características.
Como definir essas instâncias fixas, os estágios vistos como prontos ou acabados?
Para isso deveríamos avistar as passa
uação, pelos dramas vividos pelos seres vivos: “o embrião é uma espécie de fantasma
de seus pais; todo embrião é uma quimera, apto para funcionar como esboço e para viver o
que é inviável para todo adulto especificado” (ibid., p.398). Mas isso não pára nem quando o
indivíduo já parece velho demais.
32
33
Essa polêmica sobre gênero, espécie e indivíduo rondou a mente de muitos dos mais
famosos cientistas do século XIX. Entre características e formas, muitas discussões. Entre
transfo
ributo dos vegetais os coloca numa
categor
H
2
O, CO
2
e luz para transformar-se em Glicose e O
2
. Como isso funciona?
Perman
nergética, pois
haverá
rmações e teleonomia, um sem-fim de discursos. Estariam essas mentes preocupadas
com origem? É bem provável. Mas a origem é propriamente do que nos afastamos. Gostamos
mais das trilhas, sem rumo certo. De onde viemos? Alguém arrisca aqui, outro arrisca ali. O
que mais importa agora não é mais de onde viemos, para onde vamos, por quais caminhos
podemos seguir. Passagem. Carregamos todo mistério conosco. Se é que ele existe! Como não
há início, também não nos preocupamos com finais. Portanto estamos no caminho, entre, no
meio, entre-nós. Se o mais criativo está no meio, tentamos percorrer esses interstícios que
logo ali podem deslizar. No entanto, percebemos que as limitações também fazem parte disto
pelo qual estamos esperando: um encontro, uma vida.
Por exemplo, na fotossíntese observa-se uma passagem mais do que determinação de
uma característica própria da planta. Claro, esse at
ia distinta de outros seres vivos, mas nem por isso retira essa condição atribuída à
passagem luminosa sobre a folha verde que, após algumas reações se transforma em energia
orgânica. A fotossíntese pode ser percebida como um fenômeno que une o vivo e o não-vivo,
que está entre o sistema orgânico e o sistema físico. Pode ser vista como uma reação que
carrega consigo moléculas operantes, energias saltitantes e células especializadas. Somente
uma parte da luz (alguns fótons) é absorvida. A folha possui uma maquinaria própria para
começar a reação. O que no início era um fóton transforma-se em energia. Esta energia não
pode ser desperdiçada. Ficará, portanto, armazenada em estruturas especiais, que no momento
certo, serão solicitadas. Isso: uma passagem. Isso é toda a fotossíntese. Não haverá marcas ou
identidades. Plantas participam de uma troca intensa de reações que irão juntar heterogêneos:
luz, moléculas, cloroplastos, amido, parênquima, sem que isto seja uma seqüência
hierárquica.
Como tudo isso permanece junto? Compõe uma reação de síntese? Juntam-se
moléculas de
ece? Faz uma vida? Parece que as vibrações estão por toda parte, juntando moléculas
para serem utilizadas mais tarde ou distribuindo proteínas para o crescimento.
As plantas não possuem por função servirem de alimento ou de ornamentação. Aliás,
não se definem por funções, mas por afectos. Fazem toda uma distribuição e
uma passagem de energia desde a fotossíntese até sua degradação bioquímica. O uso e
o desuso ou a utilidade do ser não definem uma transformação dos organismos. Parecem mais
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evidentes as transformações de corpos, as passagens de incorporais, fazendo transbordamento.
E as funções atribuídas aos seres perdem seu status de definição ou ordenamento. Uma função
de folha, galho ou árvore. É todo um corpo por trás do organismo, que se modifica à medida
que muda de natureza. Cada molécula transformada não marca uma identidade, mas, sim,
compõe formas infinitas. As plantas possuem semelhanças evidentes, mas isso não restringe
esses seres como que finitos no seu mundo. Não há mundo vegetal separado das estrelas, dos
mares, de todo o universo. É uma vida em movimento, com suas manifestações, seus efeitos
próprios, mas conectada aos demais seres.
Simondon (2003) vê esses fenômenos vitais mais como uma mediação do que como
uma função da planta ou como uma função do ser vivo. Essa abordagem diz respeito à própria
individ
Essa operação é paralela à individuação vital: um vegetal institui uma mediação, pelo
emprego da energia luminosa recebida na fotossíntese, entre uma ordem cósmica e
uma ordem infra-molecular, classificando e repartindo as espécies químicas contidas
É toda eta os indivíduos, os viventes. Não se está
pronto ou mesmo acabado enquanto espécie. Não há maneira de parar esse contato cósmico
visto n
si formas de todo
tipo. Is
uação:
no solo e na atmosfera (
ibid., p.115).
uma concepção de mediação que af
a fotossíntese. Um acontecimento. Os indivíduos estão em suas trocas constantes,
fazendo contágio. Na contigüidade com outros seres. Nas plantas isso é constante, em toda
parte. Nos seres vivos de um modo geral. As trocas são como novidades.
Por isso Deleuze e Guattari (1997) vêem um mundo comunicante comparando um ser
vivo qualquer àquele estado de coisas embreantes que comunicam entre
so é posto num contexto novo, novas maneiras de ver o mundo. Assim, “se é como o
capim: se fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se fez um mundo necessariamente
comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que impedia de deslizar entre as coisas, de
irromper no meio das coisas” (ibid., pág.74). Por isso não há fases fixas ou mesmo estágios de
transformações definidas num ser. A uma passagem prefere-se denominar ou chamar
metamorfoses já que o ser vivo será contagiado pelo seu entorno, fazendo comunicações em
todas as direções. Não será dependente de outros seres, mas terá um papel fundamental na
conformação de uma vizinhança.
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O desenvolvimento de um indivíduo não se confunde com sua última formação, com
estágios pré-estabelecidos de fases que deverão ser ultrapassadas, mas com uma distribuição
de linh
fases seriam como um conjunto de
heterog
) arrisca mais. Produz outras análises, para caracterizar essas
maneir e distribuir suas forças e forjar outros caminhos. Para ele,
entram
as entre esses fenômenos visíveis, tais como o crescimento. O crescimento carrega
consigo todas as fases passadas e futuras do indivíduo, pois não se confundirá o estagio
posterior a um objetivo com formas pré-fundadas da existência. Carrega-se um código pronto
para ser expresso, mas não se está certo de que esse código não vá sofrer modificações tão
grandes que farão com que certa espécie modifique profundamente sua forma de agir na
natureza. Se aproximarmos isso de uma visão sobre o crescimento do ovo, verifica-se que
esse crescimento se dá por fases (as fases de Simondon).
Não é propriamente um acúmulo de uma matéria sobre outra que origina um todo. As
coisas estão mais próximas de um caminho, passagem. As
êneos que, num primeiro momento, não possui comunicação e que logo a seguir
juntam-se por ação de forças.
As forças unem heterogêneos e compõem uma novidade.
Assim como no ovo.
Assim como no indivíduo.
Mas Simondon (2003
as que a individuação tem d
em jogo as energias responsáveis pelas modificações das forças atuantes no momento
da individuação. Junto a isso são analisadas as maneiras de distribuição das energias e dos
equilíbrios que, nestas condições são pouco comuns. Os equilíbrios não estão apenas ligados
ao estável e ao instável. Os equilíbrios não se limitam a duas forças somente. Há entre eles,
entre o estável e o instável, o metaestável. Com o auxílio dos avanços científicos de sua
época, Simondon valeu-se do conceito de metaestabilidade para desfazer, de certa forma, uma
idéia que limitava a individuação dos seres e dos sistemas a duas e somente duas maneiras de
equilíbrio (a estabilidade e a instabilidade). Nesse sentido, Antonello tenta desfazer o
dualismo ser-devir presentes nas análises filosóficas da individuação do ser:
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a individuação pode ser adequadamente pensada apenas se reforma em profundidade o
aparato conceitual da filosofia, utilizando noções que fujam das tradicionais categorias
do pensamento e, em particular, superando o preconceito que quer ver o ser preso no
A part a individuação dos sistemas, pois este
conjunto comporta outros possíveis. Esse equilíbrio metaestável se dá por “saltos quânticos” e
“equilí
on (1999) pôde valer-se de outros meios para abordar o fenômeno da individuação.
Sob es
e para
dividuação não é vista sob a
ótica d
seus vizinhos. Não seria possível prever uma reação antes de esta
acontec
dualismo estabilidade – instabilidade – outra forma da dicotomia ser-devir quando, em
vez disso é perfeitamente adequada a noção de equilíbrio metaestável. Apenas se um
sistema se encontra em tal estado problemático, pode “resolver-se” com a
individuação. (Apud ANTONELLO, s/d)
ir disso, pode-se ir além na análise d
brios sucessivos” no sistema considerado, o que coloca em jogo outras capacidades: a
probabilidade estatística nesses fenômenos poderá ocupar um lugar mais decisivo, pois não se
sabe o que pode ocorrer na individuação de um sistema até se saber do que esse sistema é
capaz.
Quando a energia metaestável foi introduzida na teoria da individuação do ser,
Simond
sa perspectiva o “ser vivo conserva uma atividade (devir) além da individuação física
(no cristal, por exemplo)” (ibid, p. 104-105) e, com isso, consegue resolver seus problemas.
Outra é a abordagem dos sistemas físicos, pois, como veremos mais adiante, as
diferenças entre os sistemas vivos e os sistemas físicos são vistos de modo particular para um
outro, pois a individuação não é vista pela formação do indivíduo, o indivíduo como
forma final da individuação e sim o indivíduo pela individuação.
A individuação não será associada ao indivíduo ou a um ente discernível: ela é feita de
forças. Para Simondon (1999), será necessário um plano. Uma in
a forma ou pelos sujeitos formados, pois um plano requer um outro jogo de forças.
Retira-se dos meios o que futuramente poderá ser associado a uma coisa ou sujeito. Não que
eles estejam desde sempre dados ou prontos. Muito das concepções científicas vêem os seres
como prontos ou acabados e estes ligados a funções já distribuídas desde sempre na natureza.
Determinado muitas vezes por uma taxonomia que determina as espécies segundo uma ordem
arbitrária de classificação.
Sabe-se que os indivíduos, vivos ou não, fazem parte de um conjunto que se altera ou
que compõe novidades com
er. Não seria também viável atribuir um conjunto de circunstâncias que envolvem o
vivente a uma propriedade inata, desde sempre programada, já que a necessidade não poderá
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determinar uma ação ou reação sem as conjunturas em que este ser se encontra, junto com seu
meio e junto com seus semelhantes e, ainda junto à sua vizinhança.
As reações podem ser comparadas a dinâmicas do ser. Seus devires, sons,
conjugações, necessidade de associação. Aproximações.
As contigüidades entre os seres. O quê disso pode resultar. Na Natureza haveria tantos
encontros possíveis quanto as espécies que compõem esse repertório infinito. Não se sabe
quantas espécies deixaram de ser catalogadas e viveram em épocas remotas. Também não
será possível determinar quantas espécies estão vivendo sem que a ciências tenha
conhecimento de sua existência.
Poder-se-ia afirmar que a Natureza como um todo se acerca desse conceito de
individuação infinita e constante. Pois a Natureza possui um plano que conta com forças que,
conjugadas, resultam nas diferenças observáveis.
Deixe a porta aberta ao sair.
Outros podem chegar ....
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III. SOBRE ENERGIA E METAESTABILIDADE
Sobre a energia: um passo a frente.
Sobre a metaestabelidade: que energia é essa?
Algumas vezes os equilíbrios são mais perceptíveis. Noutras vezes são os
desequilíbrios. Mas as binaridades resultantes destas duas possibilidades restringem e limitam
uma análise mais ampla, tal como é proposto por Simondon (2003). Ele foi além. Preferiu
contornar outras fronteiras. Fazer contra-movimentos. Paradas inusitadas. Simondon vive
numa época de novidades e conta que “os antigos só conheciam a instabilidade e a
estabilidade, o movimento e o repouso, não conheciam clara e objetivamente a
metaestabilidade” (SIMONDON, 2003, p. 102). Tentar compor com este autor o que ele
propõe será uma questão de devir?
Simondon (2003) produz uma diferença, inventa um componente novo, para estudar a
individuação do ser, já que o indivíduo “não é somente resultado, porém meio de
individuação” (ibid., p.102). A individuação contém o que ele chama de “pré-individual”,
“individuação” e por fim “o indivíduo”. Mas, para ele, essas qualidades do ser não possuem
uma lógica formal, ou seja, não ocorre sucessivamente como uma ordem a ser seguida. Como
o indivíduo é considerado “meio” e não resultado de um processo, Deleuze (1988) tenta uma
composição com Simondon e atribui a ele essa maneira nova de pensar a individuação como
sendo uma passagem, relativa e parcial, um acontecimento. Sob a perspectiva da mediação, o
indivíduo pode ser pensado como carregando sempre consigo uma novidade, pois nestes
termos, o indivíduo estará livre para compor outras inovações. Uma individuação, deste ponto
de vista, vislumbra forças que podem atravessar os indivíduos em formação, e disso podem-se
retirar as inovações. Assim, como num jogo, do qual se podem esperar-se vários resultados,
contando-se com algumas regras, Deleuze e Guattari (1997) destacam essas novidades
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produzidas numa individuação que carrega consigo forças e é produzida nos interstícios,
meios e intervalos. Assim:
... entre as formas e substâncias e os sujeitos determinados, entre os dois, não há
somente todo um exercício de transportes locais demoníacos, mas um jogo natural de
hecceidades, graus, intensidades, acontecimentos, acidentes, que compõem
individuações, inteiramente diferentes daquelas dos sujeitos bem formados que as
recebem (
ibid., p.38).
No entanto, existe uma diferença entre a individuação nos sistemas vivos e nos
sistemas físicos. No caso do vivo, é o ser ou o indivíduo a própria fonte de individuação, pois
para Simondon (2003), este possui uma condição interior, “conserva em si uma atividade
permanente” (Ibidem, p. 104). Há também uma “ressonância interna” que garantiria a
perpétua individuação, nunca dada, final ou projetiva. A “atividade do vivo”, que é própria do
ser vivo, proporciona uma possibilidade a esse sistema de renovar-se ou reinventar-se, o que
não é visto nos sistemas físicos. Simondon diz que essa atividade relaciona-se a campos de
interação de forças e que, análises tais como a da física quântica e a teoria dos campos de
forças ajudam a compreender o que não podia ser apreendido até então, já que estas teorias
eram desconhecidas. Pois, pela teoria dos saltos quânticos e equilíbrios sucessivos, pode-se
considerar o ser como um processo, já que “forma, matéria e energia preexistem no sistema”
(SIMONDON, 2003, p. 104). Estas inicialmente não possuem comunicação entre si. Somente
haverá ordem e estabilização quando a comunicação se estabelecer entre os componentes.
Mas para o vivo isto não se encerra no indivíduo, pronto e acabado. O indivíduo, ele mesmo
um meio, detém as forças que poderão condensar forma e matéria de maneira perpétua,
contínua e inusitada e, portanto, em permanente devir.
A energia metaestável conduz, assim, a esses processos de devir do ser como forma de
comunicar entre si componentes pré-individuais, componentes que podem entrar em contato e
reinventar o indivíduo, produzir diferenças. Já as energias estáveis e instáveis determinam
condições muito limitadas das atividades do ser, dos seus potenciais. Pode-se considerar a
energia metaestável como um caminho novo pelo qual os indivíduos passam. Dessa energia
retiram seus potenciais e formulam novos estados. Foi o que se viu antes no caso da
fotossíntese. O vegetal como meio, o vivente como um elo que inventa e reinventa uma nova
condição de existência. Já que o vivo não conta somente com energias do tipo estáveis e
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instáveis, o vegetal passa a ser considerado um intermediário. E, com isso, pode-se distinguir
no ser vivo a capacidade de resolver seus problemas, diferente dos sistemas físicos, cuja
individuação está limitada à unidade. Simondon (2003) chama isso de realidade, a qual se
distingue no vivente e faz dele um ser problemático.
esse vivo, que, simultaneamente, é mais e menos que a unidade, comporta uma
problemática interior e pode entrar como elemento em uma problemática mais vasta
que seu próprio ser... por intermédio de carga de realidade pré-individual que o
indivíduo contém, isto é, graças aos potenciais que detém. (SIMONDON, 2003, p.
106).
Os potenciais, nesse caso, dizem respeito à energia potencial de um sistema, uma
energia que não se perde e, sim, sofre transformações. O indivíduo não é, entretanto, apenas o
resultado de um processo linear de transformações, mas, ao contrário, é a própria fonte de
transformações.
Para o sistema físico, no entanto, vê-se uma condição um pouco diferenciada, já que
ele não carrega consigo o pré-individual referido por Simondon (2003) e é, portanto, limitado
em relação aos sistemas vivos. Entre os sistemas físicos e os sistemas vivos vêem-se algumas
diferenças de ordens que, num dado momento separam esses dois estratos. Nos sistemas
físicos, no cristal, por exemplo, há individuação sem haver permanência pré-individual,
enquanto nos sistemas vivos, este se mantém. O sistema físico é resultado da individuação,
uma individuação quântica, instantânea, brusca e definitiva. O físico, portanto, não resolve os
problemas. Após a individuação, separam-se meio e indivíduo. Já o sistema vivo é
considerado problemático. Conserva uma atividade (devir) além da individuação física e,
nesse caso, o meio não se separa do indivíduo, mas há uma realidade pré-individual que se
introduz a cada vez no interior do vivo.
As moléculas que compõem o vivo eram consideradas como aquelas que, tais como
nos sistemas físicos, estariam numa perpétua busca pelo equilíbrio. Antes do advento da teoria
quântica essa análise ainda fazia sentido. Tanto que um dos tipos de equilíbrio mais
conhecidos e estudados pelos cientistas era conhecido como equilíbrio estável. A estabilidade
ou a busca pelo equilíbrio nas reações físicas, químicas ou biológicas era considerada como
sendo central para os sistemas. Com a teoria quântica ganhando força no meio científico, uma
nova análise tornou-se possível. As reações químicas, por exemplo, passaram a ser
consideradas probabilísticas, ou seja, mais prováveis e não definitivas. Com isso, essas
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abordagens puderam ser também compartilhadas até mesmo com a filosofia, tal como fez
Simondon (2003), que se aproximou das novidades que eram produzidas no meio científico
de sua época.
A estabilidade num meio químico pode mostrar uma conformação química próxima
das condições de equilíbrio, nas ligações entre moléculas, e terá como resultado um estado
pouco problemático e, “um sistema em equilíbrio estável, encontrando-se no nível mais baixo
de energia potencial, tem, de fato, já realizada, e, portanto exauridas, todas as suas
possibilidades intrínsecas e não está mais em condições de evoluir e devir” (ANTONELLO,
s/d).
Se os equilíbrios perderam a centralidade que tinham até então, com isso, outras
abordagens puderam ser consideradas num sistema. Surge uma nova possibilidade de ver essa
situação: nem equilíbrio estável nem equilíbrio dinâmico, mas um equilíbrio menos
determinado, mais difícil de ser encontrado. Para Stiegler (1994), esse equilíbrio chamado de
metaestável possibilita uma abordagem geral da individuação do ser:
vivemos hoje um processo de transformação muito poderoso, que impede uma
estabilização e não nos deixa mais o tempo de nos acostumarmos a um estado de
equilíbrio simples. Isto posto, Gilbert Simondon tem um conceito para pensar isso,
que é precisamente a ‘individuação como equilíbrio metaestável’ (Ibid., p.3).
Essas novas teorias procuravam, assim, novas visões e distanciavam-se cada vez mais
dos equilíbrios que eram encarados como metas a serem atingidas nos diversos estados da
matéria. As ligações químicas, as moléculas e as conexões estão proporcionando outras
vibrações, novos transbordamentos.
Na Termodinâmica vê-se essa vibração, essa novidade. Na segunda Lei é proposto que
“quanto maior a desordem de um sistema, maior a sua entropia". Como isso atinge moléculas
e sistemas? Conforme essa Lei, as ligações entre as moléculas estão indo, na maior parte do
tempo, em direção ao caos. Por exemplo, pode-se pensar quanto tempo permanece ordenado
um quarto de uma criança após uma limpeza e arrumação. Esse exemplo mostra a tendência
universal em direção à desordem. Inicialmente a entropia é baixa, mas à medida que o tempo
passa e a desordem aumenta, a entropia torna-se alta. Num sistema biológico, a tendência é
andar contra a entropia, pois os sistemas evoluem para sistemas cada vez mais complexos e
organizados e, neste caso, pode-se dizer que a morte ocorre quando o grau de entropia (grau
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de desordem) chega a um patamar irreversível. Ao mesmo tempo, não se pode determinar
com certeza até que ponto as misturas irão produzir uma novidade. Pode-se prever, em certa
medida, até que ponto uma ligação produz seus resultados. No entanto, muitas coisas podem
estar no meio: possíveis excitações eletrônicas, quedas bruscas de elétrons, novas ocupações
de orbitais, etc. A entropia nas diversas ligações químicas possui essa potência do
desequilíbrio caótico que pode levar a diversas possibilidades. Voltando aos sistemas vivos,
percebe-se essa potência intrínseca do vivo para resolver seus problemas.
Simondon (2003) ressalta essa capacidade, já que “o vivo resolve problemas, não só
adaptando-se, isto é, modificando sua relação como o meio, mas também se modificando,
inventando estruturas internas, introduzindo-se completamente na axiomática dos problemas
vitais” (SIMONDON, 2003, p.105). Vemos, portanto, que Simondon atribui ao vivo, além da
possibilidade de resolver seus problemas, a condição de ele mesmo ser um meio de
comunicação, coletando ou tirando desse meio a resolução dos seus problemas. Essa condição
do vivo, que carrega o pré-individual, produz e possibilita um devir do ser. Esse pré-
individual seria a possibilidade do ser vivo de refazer, a cada vez, novas possibilidades e, com
isso, resolver seus problemas.
Os equilíbrios podem guardar algumas expectativas, ser considerado, muitas vezes,
um ideal a ser atingido, tanto nos organismos vivos quanto na natureza em geral; até mesmo
na vida social esse caráter pode ser bem importante. Viver em equilíbrio é visto, muitas vezes,
como uma finalidade ou situação ideal.
Considerando alguns equilíbrios tais como a hoemostase para o organismo, vê-se que
ainda não há uma resposta única que levaria em conta todas as circunstâncias relativas aos
equilíbrios. A homeostase, como regente de uma orquestra molecular no organismo, não diz
tudo sobre as possibilidades e novidades que ocorrem no vivente. A homeostase, como forma
de manutenção do equilíbrio do organismo, está sempre ameaçada por diversas manifestações
tanto locais (do próprio organismo), quanto externas (do meio). Essas ameaças mantêm os
viventes prestes a encontrar novas maneiras de resolver seus problemas. O que cerca a vida
não são somente os equilíbrios constantes. Diríamos que as ameaças são até mais constantes.
Para isso, alguns mecanismos de adaptação são desenvolvidos no próprio corpo não para
livrar-se da ameaça, mas para compartilhar novidades com ela.
Algumas fronteiras podem tornar-se mais elásticas à medida que se encontram com
desequilíbrios. Mas desequilíbrios também não poderiam ser vistos como rumos ou metas a
serem alcançados. Pode-se verificar que limitando as análises ao campo dos desequilíbrios ou
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dos equilíbrios permanece-se preso às faces da mesma binaridade (estabilidade-instabilidade).
Os intervalos, no entanto, escapam às medidas, às marcas entre os equilíbrios e os
desequilíbrios. Toda uma perturbação a rondar as ligações. Transformações de toda ordem.
Capra (1980) distingue esses aspectos delicados que não afirmam objetivos ou destacam
formas, mas distribuem sensações numa série. Produzem dança e movimento, folguedos e
distorções, já que muitas palavras podem ser ditas sem ser necessariamente entendidas.
Os átomos consistem em partículas e estas partículas não são feitas de qualquer
substância material. Quando as observamos, nunca vemos qualquer substância; o que
vemos são modelos dinâmicos que se convertem continuamente uns nos outros – a
contínua dança da energia...Há movimento, mas não existem em ultima análise,
objetos moventes; há atividade, mas não existem atores; e não há dançarinos, somente
dança. (Ibid., p.85).
Formas de visualizar o invisível, tocar o intocável, viver por outras vias. Tenta-se, com
isso, saídas, caminhos novos. Ver o invisível, ver forças, atividades ou dança. Para isso seriam
necessárias formas inumanas de visão. Captar as formas não humanas, demoníacas, furiosas
da existência. Estamos em constante contato com essas formas de desmanche, limiares ou
bordas. Ultrapassando estas: novos contornos, novas conexões. Uma via, uma saída, um
percurso. Os fios sendo trançados, confundidos numa vida cambaleante, uma
bionomadologia.
Para o indivíduo, a formação ainda está em curso. As novidades que envolvem sua
existência são conduzidas por agenciamentos maquínico, agenciamentos maquínicos de
corpos novos. Energias livres e metaestabilidades, estas fazendo fronteira com as
estabilidades e as instabilidades constituintes dos indivíduos. Afirmar que os indivíduos não
contêm em si equilíbrios seria limitado. Estes, aliás, são constatados em várias reações
químicas nos organismos; afirmar a ausência dos desequilíbrios igualmente limita as reações
percebidas entre o encontro dos corpos. Seria necessário acrescentar um nível ou um desnível
nestas binaridades. A metaestabilidade ora desfaz os equilíbrios, pois acrescenta uma
novidade nas ligações, ora retira um elétron que estava sobrando.
Este ajuste não está dado antes de ocorrer. Ele já ocorreu. É real. Junções de corpos.
Como no poema chamado Desígnio de Robert Frost (Apud GOULD, 1996, p.49).
Encontrei uma aranha-de-covinha, gorda e branca,
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44
Sobre uma branca panacéia, segurando uma mariposa
Qual um branco pedaço de rígido tecido de cetim
Agrupados personagens de morte e desgraça
Mistura feita para bem começar a manhã
Qual os ingredientes de um caldo de bruxa
- Aranha pingo de neve, flor qual espuma
E mortas asas levadas como um papagaio de papel.
Que tinha a flor de ser branca
Azulada na beirada, e inocente panacéia?
O que trouxe assemelhada aranha até aquele alto,
E depois dirigiu a mariposa branca para lá, naquela noite?
O que, se não o desígnio da escuridão de apavorar?
- Se é que o desígnio tem a ver com uma coisa tão pequena.
.
Na medida do corpo, dos limites que este produz. Só que um corpo não se define
sozinho. Ele depende da união que será feita, da união que se produzirá no encontro com
outros corpos. Muitas vezes procura-se definir um corpo pelos limites do visível, do ouvido
ou da sensibilidade. É que o corpo só se afirma no encontro com outros corpos. Sabe-se,
assim, do que esse corpo é capaz naquele momento. Capaz de fazer armadilhas, de vigiar na
escuridão, propor caminhos novos para resolver problemas antigos. As espécies produzem
novidades ao sabor do vento, ao sentir seus semelhantes. Mas a sensação aqui não é um
atributo conduzido, que tivesse uma função pré-concebida, como se cada movimento pudesse
ser medido e esperado, proposto e executado. Os objetivos não estão presentes nesses seres de
encontro. Produtos de novidades. Seres preocupados com um continuum de sensações, com
uma diversão que os ataca, que pede passagem.
Como se pode afirmar que uma função orgânica esteja pré-estabelecida antes dos
corpos juntarem-se em alguma medida? Antes de experimentarem uma união por vezes
inevitável? E ela é inevitável por afecção, por desejo, não por função ou projeto, objetivo de
viver mais ou sobreviver por mais tempo. Nem mesmo a descendência cai nesses
emaranhados a não ser por desejo. O desejo move esses seres de fuga. Uma ligação de corpos
fazendo emaranhados, criando teias existenciais, momentos novos, jogando no mundo
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45
desmedidas e desacertos. Distribuindo a energia de outras maneiras. Corpos carregados de
força, vibrantes, pulsantes.
Os corpos numa teia são bem pintados num quadro. Quando uma sensação pode ser
descrita é que ela já passou...
Parecem belas as telas porque o próprio meio é belo.
Numa rede tudo pode. Os passos possuem outras combinações.
A energia não é para ser acumulada, é para ser utilizada, de preferência em algo que
não leve a lugar algum. Que seja numa brincadeira, num divertimento.
Que uma vida é intrincada e cada vez que se descobre uma novidade, já foi...
É esse mesmo o divertimento.
Uma ciência disputa com o tempo uma novidade.
Logo em seguida será outra coisa. Outros horizontes. Outras estórias.
Brincadeira de esconde-esconde.
Não há medida nem mesmo ponto de chegada. Será pura brincadeira?
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IV. MUNDOS – PRÓPRIOS
Antes mesmo de fazer mundo se está no mundo. Mundos em todos os sentidos, todas
as direções. O mundo pertence aos seres que produzem esse mundo. Isso se arranja com
contatos, contágios, parcerias. Muitas vezes perdas. Aquelas que quase sempre geram
dúvidas. Mas também com dúvidas vive-se.
Segue-se.
Em frente.
Quase toda vida assim.
Sem medo, com medo.
Fazendo mundo, desfazendo mundos.
Formando mundos.
Mundos próprios.
Para o inventor do termo “mundos–próprios” na Biologia Jacob Von Uexkül (1934), o
problema passa pela “organização segundo um plano”. Não haveria motivo para separarmos o
mundo dos animais e das plantas do mundo do ser humano. Esses mundos simplesmente
coexistem, e formam, como assinala o autor, “mundos associados”. O autor se preocupa com
os planos, deixando de lado as funções que podem ser atribuídas aos seres vivos. Sua
abordagem foi pouco aceita pelo meio científico da época, que estava centrado nas ciências da
anatomia e a fisiologia. Mas foi também um tempo de grandes descobertas científicas, que
iam desde as análises microscópicas até o desenvolvimento embrionário.
Para Uexkül (1934), no entanto, as descobertas científicas do século XIX,
especialmente na anatomia, apontavam para uma comparação entre o corpo humano e o corpo
dos seres em geral e as máquinas, a cibernética, que também influenciava o meio científico.
Para ele, isso não era muito consistente, já que os diversos organismos possuem mundos
independentes da vontade do homem ou até mesmo da vontade divina. Os animais e as
plantas possuem ação própria; são definidos mais pelos encontros que realizam. Não há
dissociação ou uma vida independente dos diversos seres, mas o que pode haver é uma
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criação própria das diversas formas de viver. Associa-se a isso não somente a uma busca
incansável pela sobrevivência e reprodução, mas também a uma criação constante, própria às
condições dos seres vivos, às suas interações, às novidades que eles podem criar. Não estão
em jogo apenas os órgãos e as funções, mas os “mundos de percepção” e os “mundos de
ação”.
Entre a formiga e o carvalho, um mundo associado: “no mundo próprio da formiga
tudo que não é casca com as suas anfractuosidades desaparece, tornando-se aquelas o seu
campo de pinhagem” (UEXKÜLL, 1934, p. 131). A formiga forma tanto “sinais
característicos como os de marcas de ação dos seus ciclos-de-função”. (Ibid., p.132). Mundos
incríveis esses que se formam com o carvalho. Diversos habitantes com seus diversos
mundos. Percebe-se um gosto pelas estórias, descrições de diversas ordens, sem, no entanto,
importar as ordens que possam aparecer aqui ou ali. Assim como num causo, num conto,
desfazer toda idéia pré-estabelecida, pré-fundada. Então se buscam os colapsos que rodeiam
as diversas formas de viver que, por vezes podem ser desprezados. Buscam-se as pequenas
coisas.
Essas associações que levariam as espécies a ordens distintas de organização. E elas
não se limitariam a uma ordem de parentesco ou filiação, mas serem produzidas por afectos e
interações. Encontro entre heterogêneos. Nesses encontros pode-se observar mais do que
funções ou objetivos de sobrevivência, por exemplo, mas a formação de mundos associados,
onde duas ou mais espécies compõem seus caminhos em conjunto. São inúmeros os exemplos
dessas interações. Como o mundo associado do carrapato, formado por três fatores:
Características energéticas Î energia gravítica do carrapato (queda)
Características perceptivas Î seu caráter olfativo de suor
Característica ativa Î caráter ativo de picada.
Como aponta Uexkül (1934), existiria um mundo associado. Mundo do carrapato que,
ao nascer, já pode atacar animais de temperatura variável. Finalizando seu desenvolvimento
depois de sofrer algumas mudas, começa, então, a atacar animais de temperatura constante,
como os mamíferos. O carrapato pode esperar pendurado em arbustos até que passe um
mamífero despercebido e que exale substância característica que será percebida pelo
carrapato. Este se joga em direção aos pelos do animal. A fêmea normalmente grávida realiza
este processo fazendo com que sua prole possa encontrar alimento suficiente para o
47
48
desenvolvimento. Estudos em laboratório demonstraram que certas espécies de carrapatos
podem “jejuar” por até dezoito anos à espera da passagem de um mamífero, ou melhor, da
presença olfativa do ácido butírico exalado por esses animais. E “o carrapato é organicamente
constituído de modo a encontrar seu contraponto no mamífero qualquer que passa sob seu
galho...Não é uma concepção finalista, mas melódica, em que não mais sabemos o que é arte
ou natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.239).
Comportamentos de vários tipos no mundo animal foram estudados e comprovam a
grande quantidade de associações inusitadas e sofisticadas que várias espécies realizam entre
si. As associações foram sempre formas de realizações que, tanto nossos ancestrais como o
homem atual, investem para a sobrevivência. Mas não somente a sobrevivência. Parece haver
um prazer na associação em grupos já que o ser humano, tal como outras espécies, possui um
forte caráter gregário. Possui também um conjunto de características próprias dos seres
voltados para realizar seus propósitos no e para o grupo. Isso parece ser razoável, se
considerarmos a história da humanidade, centrada num núcleo definido de indivíduos, muitos
deles com papéis bem definidos. Sob esse ponto de vista uma sociedade humana não se
distingue de vários grupos animais com comportamento parental aguçado. Prefere-se, no
entanto, atribuir ao ser humano uma condição diferenciada do resto dos animais já que sua
condição humana o levaria a tomar outras decisões numa gama imensa de possibilidades.
Do ponto de vista biológico não faria sentido afirmar que o homem, em função de sua
“humanidade”, possuísse atributos melhores do que outros animais, o que já foi comprovado
na observação de sociedades humanas comparadas com algumas sociedades de gorilas, por
exemplo. O que há de diferente nas duas sociedades não são suas habilidades, mas sim os
problemas que se dispõe a enfrentar. Essa comparação, por outro lado, faz pouco sentido
atualmente, pois não se sabe quantas vezes os genes humanos foram modificados até
atingirem uma propriedade que hoje nos parece comum. Quantas modificações foram
necessárias para que uma expressão fosse possível? Quantas vezes nossos ancestrais
depararam-se com problemas tão estranhos e complicados que, numa gama de possibilidades,
algumas coisas puderam ser resolvidas e outras não?
Os estudos científicos voltados para o comportamento animal, a etologia em especial,
apontam para condutas de várias ordens nas diversas espécies de seres vivos. Ao mesmo
tempo não temos condições de determinar nada. Ao longo dos séculos, nossos genes carregam
informações valiosas sobre o organismo e o comportamento. Mas não quer dizer que sejam
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imutáveis ou invariáveis. O comportamento está sempre em variação, assim como o conteúdo
genético que, na reprodução sexual, mistura-se ao infinito.
Mundos em várias direções. Nossas idéias foram parar bem longe, onde nenhuma
civilização pode alterar o rumo dos fatos. Os fatos mudam à medida que se criam novos fatos.
Estes não têm por objetivo algo melhor, como tantas interpretações darwinianas da evolução,
que tendiam a limitar nossos melhores rumos a um ganho ou melhora. Não há certeza de
melhora. Não há certeza de conquistas de territórios. Nem mesmo de comportamentos
salvacionistas de espécies ou civilizações, condutas ou ações.
Por que individualizar os animais? Desfazer sua capacidade de reinvenção, de
individuação criativa. Dizer que possuem família, até mesmo sentimentos. Animais com
características abstratas, animais de gênero, de classificação, animais de Estado. É possível
interpretar os seres de forma acabada e restrita. Restringir o conhecimento. Fazer do
conhecimento algo apropriado. Fazer-se proprietário do conhecimento.
Os animais, no entanto, parecem mais demoníacos, de matilha, de afectos. Deleuze e
Guattari (1997) atribuem às espécies outras possibilidades de encontro, pois “o afecto não é
um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de
matilha, que subleva e faz vacilar o eu” (Ibid., p.21). Assim, perguntam Deleuze e Guattari:
“como conceber um povoamento, uma propagação, um devir, sem filiação nem reprodução
hereditária? Uma multiplicidade, sem unidade de um ancestral?” (Ibid., p. 22). A
ancestralidade permeia o imaginário e contagia até mesmo aqueles que muito pouco se
preocupam com as moralidades comuns às sociedades humanas. Tratar animais domésticos
como um ser humano seria uma dessas manifestações que reproduzem as noções fundadas na
filiação, na família e no eu. O caráter filiativo e familiar reduz uma propriedade comum a
todos os seres vivos. Seria necessário considerar, também, os encontros dos quais os seres são
capazes de realizar numa vida.
Parece, com isso, ainda remanescer em nós filiações e hereditariedades. Nós que
adoramos família. Gritamos constantemente por papai-mamãe! Queremos colo. Presentes de
Natal. Natal. Natal... Vamos e voltamos para a infância várias vezes na vida. Retornamos
mais duros a cada vez. Mas parece que é assim mesmo. Essa dureza nos protege.
Encontramos finalmente nosso EU. Nós. Eu. Vós...
Até quando?
Todo o século?
Mais um século? Dois?...
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Quanto tempo ainda será preciso para desfazer a pergunta: “Quem sou eu?”
Quanto, Senhor Freud?
Ficaremos reféns de incontáveis seções analíticas? Esforçando-nos para juntar cacos
passados, segredos de infância? Todos a nos dizer: “Bem você possui um trauma e deve falar
sobre ele. Reconheça seu trauma. Você certamente possui um. Volte a papai-mamãe. Fale,
fale mais!” Até nos sentirmos culpados o suficiente para desfalecer e dar-nos conta de que
fomos derrotados outra vez. Todo esforço então, terá valido a pena. Já que a conformidade
plantou-se nos corações dos fracos. Desfazendo a cada vez suas mais potentes sensações.
Fazendo com que os sentimentos sejam “enquadrados” outra vez. Diagnosticados mais uma
vez. Assim, quem sabe, seguiremos sem preocupações, já que a “confissão” foi feita. Sim,
Senhor Freud, parece que o senhor venceu mais uma vez! Será?
Precisaríamos mais uma vez de fundamentos?
Fomos salvos finalmente! A criança em nós.
Mas qual criança?
Os pais em nós? Os filhos em nós?
Teremos alguma saída?
Alguma novidade?
Propõe-se uma troca:
FILIAÇÃO por EPIDEMIA
HEREDITARIEDADE por CONTÁGIO
REPRODUÇÃO SEXUADA por POVOAMENTO
Essas trocas perturbariam alguém? Não seria essa a intenção. Não haveria necessidade
de perturbação alguma. Não há por que fundar novas verdades.
Trocas. Fazer trocas. Experimentos apenas, sem necessidade de fundamento e
promoção de uma verdade, pois trocando, misturando as perspectivas dos seres vivos, pode-se
chegar a estados diferentes daqueles programados para a filiação: por parentesco, para a
hereditariedade; por aproximação genética e reprodução sexuada, por gametas.
Se as trocas possibilitam novas associações, talvez seja porque os seres vivos estão
mais próximos daquilo que Deleuze e Guattari (1997) gostam de chamar de devires do ser,
suas inusitadas formas: devir animal, devir vegetal, sem que com isso se deva transformar-se
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um animal ou vegetal. Trocar apenas, ver no que vai dar. As trocas, as permutas, os
intercâmbios que colocam em jogo outras possibilidades. Para Deleuze e Guattari (1997) a
“liga” entre heterogêneos é o que importa. Suas produções e sua consistência, as novidades
surgidas disso. Produções oriundas das misturas que não dependem de outras, mas estão
agindo com, junto a essas novas condições. Disso podem-se perceber novas conexões:
A diferença é que o contágio, a epidemia coloca em jogo termos inteiramente
heterogêneos: por exemplo, um homem, um animal e uma bactéria, um vírus, uma
molécula, um microorganismo... Combinações que não são genéticas nem estruturais,
inter-reinos, participações anti-natureza, mas a natureza só procede assim, contra si
mesma (Ibid., p.23).
As três formas de fuga (filiação, hereditariedade, reprodução sexual) podem produzir
uma aparente desordem. Mas sabe-se quanto uma epidemia pode controlar populações que
estão em número tão elevado que poderão até mesmo levar a uma possível extinção de uma
outra espécie. Pode-se dizer que o contágio caracteriza uma das maneiras de propagação de
muitas espécies, uma contigüidade de indivíduos, com junção de elementos entre si, muitas
vezes em condições adversas. Uma erva rasteira precisa de contágio para sua propagação.
Haverá outras maneiras de conquistar o território; esta é apenas uma. E, por último, o
povoamento que propicia uma união de várias ordens distintas. Um povoamento se caracteriza
pela heterogeneidade das comunidades, pela união de diversas culturas e, muitas vezes com a
troca em condições adequadas. Uma cultura pode ser exterminada, mas se houver um só
indivíduo diferente, pode-se esperar uma resistência.
Têm-se, então, termos que, ao reunirem-se, produzem novidades. Esses componentes
heterogêneos podem ser de natureza diversa. Parece que a natureza sempre contou com esses
fenômenos limites, onde novas formas surgem a partir de combinações inusitadas. A natureza
não corre em direção a algo, não objetiva nada, simplesmente seus componentes entram em
contato, “colam” ou não. Talvez a teoria evolutiva proceda ainda por hereditariedade, mas
muito se sabe a respeito das novas combinações criadas por espécies que, ao se adaptarem a
novos ambientes ou adotarem ciclos sucessivos de dependência com outras espécies mudaram
suas constantes parentais. Modificaram seus encontros e produziram outros fenômenos, pois
as espécies não estão restritas a um contato sexual para dispersar suas sementes. Muitas vezes
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dependem de outras espécies para que seus genes cheguem ao destino certo. E isso ocorre sem
que seja necessário pertencer a uma mesma espécie, gênero ou família.
Não se pode afirmar com certeza se as trocas entre vivos funcionam para sua
sobrevivência. Sabe-se que essas trocas mantêm certas combinações que duram, permanecem
(mesmo que seja por segundos) e logo em seguida, desfazem-se, não retornando mais.
Podemos, aqui, evocar Deleuze e Guattari (1997) que entendem as espécies levando em conta
outras possibilidades. Para eles, as fronteiras são mais estendidas, as espécies menos
definidas, os encontros mais inventivos. Então “as participações, as núpcias anti-natureza, são
a verdadeira Natureza que atravessa os reinos” (Ibid., p.23). Combinação entre heterogêneos.
Nos casos em que se quer um possível atributo para um ser vivo, a necessidade de
sobrevivência, por exemplo, como sendo definitivo para uma afirmação do ser vivo,
percebem-se quantos limites são impostos numa análise como essa. Não há apenas um
atributo que levaria um ser a apostar tudo num contexto definido ou definitivo. Lutar contra a
Natureza requer um repertório criativo. Seriam necessárias outras combinações. Outras
criações. Diferenças inusitadas, criativas, encontros.
Uma classificação da Natureza e de seus componentes não diz tudo sobre suas
combinações, sobre devires que juntam as categorias do orgânico, do humano e do fantástico.
Os seres fantásticos atingem limiares que lançam esses seres para outras sensações. Dizer que
o “demônio ‘assume’ corpos reais, mesmo que tenha que transportar os acidentes e afectos
que lhes acontecem a outros corpos aparentes” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.,37) é uma
maneira de perceber-se o quanto esses devires-animais estão presentes nos “transportes locais
de toda espécie. O diabo é transportador, ele transporta humores, afectos ou mesmo corpos”.
(ibid., p.37). As categorias ora produzem uma novidade, um devir; ora se afastam para
formarem outras combinações. As classificações que se pode conferir à Natureza e seus
componentes apenas restringem sua potência, pois a hierarquia nunca deixará de ser corroída,
corrompida por dentro. Mesmo os animais de sociedade, aqueles cuja organização se faz por
castas, não deixarão de fazer contágio, desfazer sua organização (ou desorganização), para
conquistar novos territórios. Não é possível deter uma formiga, pois esta, muito mais do que
pertencer a uma casta, faz rizoma. Os devires de um ser estão mais próximos dos encontros
entre os diversos seres do que de classificações aplicáveis a eles. Toda ordem taxonômica
pouco diz a respeito das capacidades dos diferentes seres vivos.
Adotar uma ordem para limitar sua existência e programar reações só funcionou até
que se descobriram as interações entre genes e moléculas. Até que a transgenia pôde afirmar-
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se como nova possibilidade de trocas entre os viventes, natural ou feita em laboratório. Até
que os vírus começaram a incorporar-se a outros genes. Até que a genética começou a
restringir as enzimas e utilizar pedaços de genes bacterianos para ‘ler’ o genoma humano. São
transformações reais, já que os seres participam ativamente destas transformações. Como um
vírus poderia alterar a constituição genética de outro ser? Ele, tão minúsculo! É que os vírus
são somente genes envoltos por uma capa protéica. E sabe-se que são elementos genéticos
móveis, capazes de carregar consigo informações das células que parasitaram. Aonde vão
parar essas informações? Difícil saber. Não será possível parar esse contágio.
A organização pode privilegiar as linhas duras da existência, e que limitam as formas
às funções que podemos obter delas e podem, até mesmo, atribuir a um órgão do corpo uma
determinada função. Esse organismo existe e é real. Mas numa outra perspectiva, esse mesmo
órgão seria observado do ponto de vista da composição. Nem mesmo esse nome – órgão –
faria sentido. Num plano de composição, juntar-se-iam a esse órgão as afecções e as trocas
que ele realiza com sua vizinhança, pois ele sozinho não pode demonstrar tudo aquilo de que
é capaz. Esta concepção requer um plano. Um plano, não de organização ou desorganização,
mas de composição. Deixar de lado uma perspectiva que leva em conta o que é o órgão e
perguntar, em vez disso: o que esse órgão pode? A consistência seria a forma de se perceber
um corpo, seu plano de consistência, pois a função não é primeira em relação ao órgão. O
órgão não existe pela função que lhe é atribuída. Já o plano de composição conta com outros
fenômenos, não restringe um órgão à sua função, a existência a um objetivo ou sentido.
Perguntar-se: “para que serve esse ou aquele órgão?”. É uma pergunta que faz pouco
sentido nessa perspectiva. Em tal plano, o de composição, os componentes de um organismo
funcionam por atrasos, velocidades. Se houver encontro é porque seus tempos coincidiram.
Haverá também desencontros. Estes também fazem parte do Plano. Ele também contempla
fracassos, pois a natureza também é constituída de vazios, intervalos que não são
necessariamente atribuíveis, não se confundem com falta. Apenas não foram feitas conexões
que permitiriam uma consistência, mas de qualquer forma haverá de se constituir um plano.
Outras estórias são contadas por aí. Gente com cara de bicho, bicho com cara de gente.
Contos e canções que aproximam isso que se sabe: o homem do animal, o animal do homem.
Lobisomem. Toda a tradição dos contos populares restaura essa novidade que junta, aproxima
seres aparentemente tão diferentes. A chuva, o vento, outras combinações. Todas as sensações
não fundadas, que existem porque combinaram entre si. Um conto de fim de tarde, um
amanhecer, uma perfeita manhã. Porque um conto, uma literatura se diz arte e conta as coisas
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próprias da natureza. A Natureza de todos, do natural e do artificial, do homem, do animal, do
vegetal e de suas mesclas.
Nos mundos próprios dos viventes, há as vibrações que passam durante os encontros,
tais como as consideradas por Uexküll (1934), que fazem brotar uma melodia da natureza.
Importa uma forma complexa que envolve os inúmeros encontros verificados entre as
espécies. Quantos mundos imaginários podem ser atribuídos aos seres que, compondo um
encontro, podem criar novas maneiras de agir! Não se imputam às ações dos seres vivos
apenas a estímulos inatos ou adquiridos, prontos para serem usados nos casos em que forem
necessários ou em ações que puderem ser previstas. Uma proximidade entre as espécies
arranja uma conformação mais sujeita às afecções do que a uma necessidade de
sobrevivência. Os encontros são primeiros em relação aos seus objetivos. Seria preciso
cultivar um gosto pelo encontro antes que o de um instinto de sobrevivência. As espécies não
estão juntas apenas para sobreviver. Antes, elaboram uma união consistente que reúne tanto as
ações quanto as funções. Não se limitaria uma existência ao propósito último da
sobrevivência pela seleção, como uma corrida de genes ou a sobrevivência do mais apto ou do
mais forte. A aptidão expressa uma afirmação do vivente, mais do que uma corrida por
manter-se vivo por mais tempo. Separam-se as aptidões dos seres de uma possível finalidade
ou objetivo, permanecendo assim a perspectiva sob a qual os seres se aproximam mais por um
gosto pelo contágio do que pela necessidade reprodutiva. E seus genes serão distribuídos na
população mesmo que para isso usem rotas alternativas. As espécies compõem entre si muito
mais novidades, que trazem como efeito o mecanismo de sobrevivência, que é secundário em
relação aos encontros dos quais elas são capazes. Não será possível deter esses encontros,
nem tampouco saber quais serão seus resultados. Percorrer esses caminhos que unem espécies
e mundos tão diferentes pode afirmar uma condição inerente às soluções que os diversos seres
usam numa vida.
Assim, não se está preocupado com os objetivos que as espécies poderiam ter, com
suas finalidades, com uma possível definição de ações que colocariam as espécies num
patamar classificatório único ou limitado. Mais do que finalidades, os seres se envolvem para
compor uma vida como obra de arte, “mas se a natureza é como a arte, é porque ela conjuga
de todas as maneiras esses dois elementos vivos: a Casa e o Universo” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992, p. 240).
Nestes tempos sem hora, dia ou mês, vêm-se apenas as “horas do mundo” passando
por aí, não se sabe bem dizer aonde.
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A arte que revela os confins do cosmo, onde há muito se perdeu a determinação de
algo.
Quando se percebe: Mundo.
Mundos próprios.
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V. UMA VIDA NÃO – ORGÂNICA
Uma vida não necessita de folhetos ou manuais explicativos de “como viver bem” ou
como sobreviver por mais tempo, ou melhor, pois, a vida está sempre fugindo das
organizações. Fuga. Afirmam-se mais as metas sem rumo. Fios sem meadas. Pontos sem nós.
Tudo que beire ao abismo.
Os bandos, as folhas ao vento.
A música das folhas.
Encontrar as inusitadas formas animais, vegetais, microscópicas. Os seres sabem até
onde podem ir. Haverá aqueles que nem sairão do lugar, ficarão imóveis: nômades no mesmo
lugar. Pois, para fazer matilha são necessários acoplamentos inusitados. Estes poderão ser de
várias ordens. As matilhas também se valem da ordem, mas de outro tipo: não um “líder” a
guiar os comandados, mas o anômalo, como o chamam Deleuze e Guattari (1997) que compõe
“o elemento preferencial da matilha” e “não tem nada a ver com o indivíduo preferido,
domesticado e psicanalítico” (Ibid., p.26-27). Um bando, uma matilha não é definida pela
quantidade de organismos que formam essas aglomerações, nem tampouco por um líder que
tivesse a capacidade de guiar outros indivíduos, mas sim pelas afecções nas quais estão
envolvidos os indivíduos que compõem esses bandos. Nem mesmo o animal que está no
comando é bem definido. Tampouco é definido o espaço que uma matilha vai ocupar. Assim:
“numa matilha de mosquitos onde cada indivíduo do grupo desloca-se aleatoriamente até que
vejam todos seus congêneres num mesmo semi-espaço, então, ele corre para modificar seu
movimento de maneira a entrar no grupo, sendo a estabilidade assegurada às pressas por uma
barreira” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.28). Se numa matilha valem mais os afectos do
que as ordens e as hierarquias, é possível desfazer essa maneira de ver os indivíduos como
particulares ou coletivos, passando-se a percebê-los a partir das conjugações que estes seres
são capazes de efetuar. Eles próprios carregam consigo maneiras de desfazer as organizações,
de criar mecanismos novos, de reinventar sua existência.
Não restringiríamos as maneiras de agir do humano somente às formas familiares
descritas pelo mito ou pela ciência. Muitos outros tipos de encontros são vistos por aí. Não
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haveremos de servirmo-nos de modelos, de como fazer bem e melhor, de críticas incansáveis
a esta ou àquela maneira de ver as organizações humanas. É que aí entram em jogo categorias
que compõem as diversas maneiras de encarar a existência, que juntam entre si fenômenos
mesclados. Não é possível separar tais categorias, dizer que se é somente orgânico, somente
humano ou somente fantástico. A união ou a mistura disto é que pode definir a capacidade dos
diversos seres, suas afecções, as capacidades dos corpos. Trata-se mais de fazer um mundo ou,
preferencialmente, de desaparecer no mundo. Assim como um bicho-pau, imperceptível.
Deleuze e Guattari (1997) juntam essas linhas que tecem o mundo de tantas formas:
A elegância animal, o peixe-camuflador, o clandestino: ele é percorrido por linhas
abstratas que não se parecem com nada, e que não seguem nem mesmo suas divisões
orgânicas, mas, assim desorganizado, desarticulado, ele faz mundo com as linhas de
um rochedo de areia e das plantas, para devir imperceptível. (Ibid., p.73)
Após uma vida de adaptações, será que duas ou mais espécies sofrem transformações
seguindo uma hierarquia, uma seqüência binária predador-presa, hospedeiro-parasita, por
exemplo? Não haveria no meio disso afectos, rizomas, conjunções que escapariam aos
códigos e às denominações científicas? Que escapariam a uma organização?
Por que definir os animais segundo uma ordem hierárquica? Como definir uma
evolução senão a partir das novidades produzidas pelos diversos seres? Quanto mais se tenta
defini-los ou limitá-los, mais escapam às ordens pré-estabelecidas. Deleuze e Guattari (1997)
percebem isso e atribuem à evolução uma condição nova. É que “se a evolução comporta
verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e
reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível” (Ibid., p.19). Não se diria que
a simbiose une os seres que aproveitam alguma coisa um do outro, que um retire algo do
outro. Nem que a evolução seguiria uma série com características fixas ou uma progressão. A
simbiose seria um bloco a unir heterogêneos, espécies que, mais do que se aproveitarem de
alguma propriedade do outro, fazem um bloco de devir que une, por exemplo, as raízes de
leguminosas e microorganismos. Não seriam somente formas de sobrevivência. Há nisso uma
elegância própria do vivente, daquilo que ele é capaz de realizar, antes mesmo de ser definido
como uma função. Por que ver os animais, as plantas, os outros organismos como estruturas
rígidas, pertencentes a tal ou qual nível de organização? Há moléculas que escorregam entre
os organismos e que fazem contágio. Não são as definições ou as classes a que pertencem os
animais que irão defini-los. Eles são definidos mais pelos encontros que efetuam. Por
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exemplo, as mimeses, os mimetismos, as imitações e as camuflagens são mais formas de
desfazer as organizações pré-estabelecidas, pois os animais que imitam, pintam o mundo com
suas cores. As potências produzidas nesses encontros com outras espécies produzem essa
novidade que carrega consigo novas qualidades, novos atributos. Esses encontros estão
próximos de uma potencialidade dos seres de produzirem a cada vez um novo caminho. Mais
do que sobrevivências, formam-se blocos de devir. Maneiras de discernir um devir entre os
indivíduos que transformam hierarquias em passagens, associações em afectos. Os animais
não querem imitar nada. Não querem transformar-se em nada.
O crocodilo não reproduz um tronco de árvore assim como o camaleão não reproduz
as cores de sua vizinhança. A Pantera-cor-de-rosa nada imita, nada reproduz; ela pinta
o mundo com sua cor, rosa sobre rosa, é o seu devir-mundo, de forma a tornar-se ela
mesma imperceptível, ela mesma a-significante, fazendo sua ruptura, sua linha de
fuga, levando até o fim sua evolução a-paralela (Deleuze; Guattari, 1995, p.20).
Pintar o mundo com as cores do universo, tornar-se imperceptível, traçar linhas são
procedimentos distantes da filiação e da genealogia. Fusões e transfusões virais, naturais ou
em laboratório, confirmam esses contágios diversos, pelos quais evoluem todas as espécies,
não mais sob um ponto de vista da reprodução, mas por comunicações transversais. Uma
evolução não reúne somente formas hierárquicas dispostas numa progressão, crescendo numa
série. A evolução, neste caso, é mais de contágio, levando em conta os seres que entram em
devir, comunicando-se entre si. Nesses termos, Deleuze e Guattari (1997) preferem chamar de
involução essa maneira de ver os organismos, organismos que independem de um ancestral,
mas que preferem os contágios. Assim:
Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em relação a esses
fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos diferenciado a um mais
diferenciado, e cessa de ser uma evolução filiativa para tornar-se antes comunicativa e
contagiosa. Preferimos então chamar de involução essa forma de evolução que se faz
entre heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução
com regressão. O devir é involutivo, a involução criadora. Regredir é ir em direção ao
menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria
linha, entre os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis (Ibid., p.19).
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Uma lógica que prefere hierarquias supõe uma organização segundo uma seqüência,
do mais geral ao mais específico, seguindo um manual, que conteria aquelas características
mais importantes até àquelas que não são tão importantes assim. Isso supõe também que a
evolução percorreria um trajeto estabelecido, que os seres estariam num estágio que pode ser
classificado ora como pouco evoluído, ora como evoluído. Mas essa não é a perspectiva da
involução. Mais do que atribuir ao neo-evolucionismo uma condição nova na perspectiva
evolucionista, percebe-se uma necessidade de cuidado para que não se chegue a uma nova
hierarquia, agora mais rígida, mais camuflada. Não queremos mais árvores, pois “toda lógica
da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.20).
A Pantera terá algum objetivo a não ser desaparecer? Os demais animais, plantas,
bactérias, vírus, terão algum objetivo a não ser esse? Desaparecer o mais rápido possível?
Percorrer aqueles caminhos mais diferenciados, aqueles que não estão preocupados com
chegadas programadas ou prontas e, entre estas possibilidades, desaparecer aliando-se com o
inesperado. O inesperado produz sensações de toda ordem, tais como as alianças propostas por
Deleuze e Guattari (1995): “buscar sempre o molecular, ou mesmo a partícula submolecular
com a qual fazemos aliança” (Ibid., p.20).
Essa partícula molecular pode estar envolta ora por séries ditas molares, ora por séries
moleculares, mas que não está necessariamente num ou noutro, mas no meio, entre o molar e
o molecular. Não que sejam binaridades que determinam alguma coisa. Não se trata
exatamente de cair num ou noutro estado e sim de atravessar tantos estratos quanto houver e,
nestes ou entre estes, encontrar uma molécula mais sutil. Um bionomadismo que perpassa
esses estados retirando deles seu maior potencial, sua maior potência.
O organismo, a prisão no organismo, mata o corpo, destrói suas potencialidades.
Prefere-se muitas vezes atribuir aos corpos uma condição própria das funções que estes
possuem, destruindo assim seus mais altos potenciais. Um corpo não se define pelos órgãos
que possui, mas pela capacidade de fazer conexões, de misturar-se a outros corpos, criando
uma potência, um potencial, uma energia maior, que desfaz as organizações e produz algo
novo, inusitado, que até aquele momento não se conhecia. Aí está a capacidade de um corpo,
aquela medida desconhecida, aquele virtual que depende da junção com outros corpos, o que
pode resultar numa novidade. Pode resultar em desastres também, mas só se sabe o que um
corpo pode se este experimentar. Um corpo sem órgãos não se limita ao organismo ao qual se
aprisiona. O organismo-escola, o organismo-prisão, o organismo-Estado, instituições diversas.
Dentro desses organismos funcionam corpos ativos, que a todo o momento podem ser
aprisionados, mas que também produzem intensidades.
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Se os estratos, as camadas, as cintas estão por toda parte, pode-se afirmar que eles
fazem parte da estrutura e da forma que atravessa os seres. Toda Terra é constituída por
estratos e camadas. Tantas paradas de fluxos compõem uma parte desta realidade que Deleuze
e Guattari (1995) distinguem: “sendo cada estrato um juízo de Deus, não apenas as plantas e
animais, as orquídeas e as vespas que cantam ou se exprimem, são também os rochedos e até
os rios, todas as coisas estratificadas da terra.” (Ibid., p. 58). Mas não são somente os estratos
que envolvem as coisas da terra. Os fluxos que atravessam esses estratos são, no momento,
justamente o que interessa. Essas passagens entre estratos, esses caminhos, que interferem
nessa realidade dura da terra, desfazem o organismo.
Como se perfura um estrato, uma organização e um organismo? Sabe-se que eles são
permeáveis, só não se sabe como atravessá-los. Seria fácil demais atribuir nossas limitações a
essas cintas ou às organizações que nos aprisionam. Também não é fácil cavar um buraco.
Aliás, normalmente cavar buracos é considerado um esforço menor. Sim, é necessário cavar
buracos agora! Escavar.
Sem rumo. Por nada!
Não haveremos de atribuir maldições à coisa alguma. A não ser que seja por diversão.
Deve-se, também, cuidar a qualidade dos buracos, pois as cintas ou camadas, ou seja, os
estratos são os verdadeiros “buracos negros” a roubar energia. Não se está atrás de buracos
sentimentais, emocionais ou familiares. Os buracos agora são de perfuração, de
desestratificação, microfendas, microfissuras, em direção a mundos diferenciados. Não se
procura esquecer estas características duras da existência. Elas são reais e estão em toda parte.
Também não se quer seu fim. Seria necessária uma visão de conjunto, uma abordagem real,
consistente, assignificante e sem fim. Para fugir são necessárias outras possibilidades, como
sugerem Deleuze e Guattari (1997a) quando se referem aos estratos não como limite ou
finalidades, mas como algo pelo qual se está sempre a deslizar, em fuga. Para os autores “um
estrato orgânico não esgota a vida: o organismo é sobretudo aquilo que a vida se opõe para
limitar-se, e existe vida tanto mais intensa, tanto mais poderosa quando é anorgânica” (ibid., p.
217).
A natureza não está limitada pelos organismos que ela produz ou expressa. Ela se
define por tudo aquilo que foge aos próprios códigos, que afirmam as novidades que não
param de corroer as organizações e desfazer as ordenações. Entre os organismos, os órgãos, às
funções juntam-se linhas inomináveis, fios que conduzem às novidades.
Uma bionomadologia tende a percorrer essas fissuras, microfendas, a deslizar e a
desfazer os códigos, sem rumo ou função definida. Como se fosse uma armadilha a toda forma
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pronta. A biologia será corroída por dentro, será atormentada até deixar de ser considerada “o
estudo da vida”.
As misturas estão por toda parte, do anorgânico ao orgânico, do animal ao vegetal, dos
vírus aos seres humanos. E, se é de misturas que estamos tratando, pode-se pensar numa
alternativa. As misturas podem revelar tantos mundos quanto aqueles das notas musicais.
Pode levar-nos a isso que se busca: uma vida com intensidades.
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VI. FANTÁSTICAS
Estávamos presos a essas crendices sem sentido, gatos pretos no telhado? Como? Isso
são só superstições...
Por que a ciência como regra? Será necessário desmanchar ditos populares, fábulas,
alucinações, poções mágicas? Os rituais na floresta...
Seria necessário produzir outros tipos de saberes, crenças ou conhecimento que
abandone os saberes fundados. As crendices e superstições não querem estabelecer nada. As
lendas usam os nomes da natureza. E não querem dizer nada. Não pretendem nada. Por que
atribuir a essas lendas uma importância sem sentido? Por que causam tanta preocupação? As
bruxas andam soltas? Em toda parte, parte alguma. O que há de perigoso em evocar as
bruxas? Os alquimistas? Seres Fantásticos! “Nós, feiticeiros, sabemos bem disso, desde
sempre” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.19).
Às vezes se ouve por aí: “Morreu antes mesmo de ter nascido.”
Quantas coisas estão por trás desta afirmação? Existe mesmo o momento da vida? O
momento da morte? Em certas circunstâncias, isso é um intempestivo. Os seres são guiados
mais por velocidades e paradas, do que por seqüências filiativas: pais, filhos, netos, etc... Não
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seria preciso utilizar-se de medidas prévias, de seres finitos, com afetos programados, matéria
programada.
Muitos afectos nem mesmo estão prontos para serem ativados, dependendo das
condições, dependendo das afecções das quais são capazes. Tínhamos visto que o carrapato
podia ficar jejuando por até dezoito anos. Mas não se limita apenas ao aspecto alimentar essa
espécie de “espera”, todo seu metabolismo fica parado, nem vivo, nem morto, num estado de
torpor, pois, ao entrar em contato com o pelo do mamífero, toda sua estrutura volta a
funcionar. Para o carrapato e outros seres minúsculos não haveria necessidade de uma
seqüência: ovo – larva – jovem – adulto. Há, bem verdade, uma diferença de velocidade no
seu desenvolvimento, até mesmo entre sexos. O desenvolvimento ocorre mais por paradas e
saltos do que por cronologia. Em muitas moscas, as circunstâncias permitem à fêmea produzir
uma descendência de um único tipo, por exemplo, só machos. A necessidade, as
circunstâncias, talvez. Alguns cecidomídios usam uma forma de reprodução pouco comum, a
neotenia. Esta pode ser associada a uma visão deleuziana de desenvolvimento, “terem criado
outros espaços com tempos contraídos ou descontraídos, segundo razões de aceleração ou de
retardamento. Mesmo a parada toma o aspecto de uma atualização criadora na neotenia”
(DELEUZE, 1988, p. 347). Pois nesse, e em outros casos, o crescimento acontece por
aceleração, por paradas inusitadas, velocidades, lentidões, que permitem ao ser comportar-se
de forma muitas vezes incomum. Mas o incomum parece ser a regra. Não uma regra a
comandar o crescimento, mas na maioria das espécies a maneira do crescimento passa mais
por intervalos, metamorfoses, modificações, mais do que por uma fase específica, ou por fases
a serem ultrapassadas. Até mesmo os adultos carregam consigo um passado e um futuro
simultâneos, a infância e a velhice da espécie.
Várias silhuetas, vários perfis inusitados formando os corpos dos diversos seres. Estes
seres estão longe de serem limitados à ação ou à função e produzem maneiras diferentes de
agir no mundo. Produzem encontros que funcionam entre várias espécies que, de forma
elegante, desfazem os conceitos prontos a limitar seus modos de viver. Não há melhor
maneira. Ela já existe. Cada espécie produz sua melhor maneira, a seu gosto, com suas
novidades. Em tantas espécies parece que isso funciona! Quantas estórias!
Outras tantas Fantásticas que se ouvem por aí. A Natureza, toda ela, está à espera
dessas novidades que são contadas por toda parte. É como num conto. Tantas estórias. Por que
separar a natureza da criação, da obra de arte?
Mas a Terra está grávida. Esta que carrega consigo os mundos, um pouco de tudo, um
pouco do universo. Engravidou ontem, uma nuvem de esperma precipitou-se sobre o oceano.
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A Terra, a redonda, cultivou esses seres de toda espécie, fantasmas que, dizem,
assombram aqui e ali. Mas a Terra, a inegendrada, contou que, certa vez, ao amanhecer,
estavam todos lá, esperando o nascimento do sol e este não veio. Foi aí que ela, a Terra, a
contadora de estórias, pediu ajuda às estrelas, seus filhos precisavam do sol, este não veio. Por
quê?
Naquele dia, contam, o sol estava muito aborrecido, pois a Terra, a disfarçada, não
havia contado que estava grávida. Os filhos não eram dele. Seus segredos, os da Terra, a
misteriosa, haviam se diluído no cosmo, as estrelas já sabiam o que ele, o sol, nem imaginava.
A Terra, a nova, já possuía outros segredos!
Seus filhos, os da Terra, a mãe, sabiam muitos de seus mistérios, não todos, claro. Os
que mais conheciam seus segredos se escondiam no deserto, atendiam pelo nome de Físicos.
Seres que recebiam recados da Terra, ela, a ditadora. Mandava suas mensagens, geralmente
por uma estrela. Era tudo por códigos, fórmulas mágicas, às vezes integrais, às vezes
derivadas, mas que somente os físicos podiam decifrar. Assim, eles, os filhos escolhidos da
Terra, recebiam ordens que acalmassem seus irmãos, ou outros. Pois, somente os físicos
podiam entender o que ela estava querendo dizer.
Uns contam que ela, a Terra, a desterritorializada, mandava dizer como chegar às
estrelas, que outros seres já haviam habitado estas terras, as dela. Hoje os tempos são outros,
poucos conseguem entender que ela, a Terra, a territorializada, preferiu voltar-se para si
mesma, cuidando de seus habitantes e não permitindo invasões. Ela, a Terra, a dolente, sabe
que seus filhos vivem escapando, o que ela mesma havia ensinado como fazer. Agora, parece
inevitável segurar essa viagem, essa procura por outros mundos, não apenas os fora dela, os da
Terra, a rasgada, e dentro dela, os que ela mesma esconde.
Por que te escondes, Terra? Fica difícil ocultar teus mais íntimos segredos. A maioria
deles já foi revelado, falta-nos agora só juntar as informações.
Uns dizem que a Terra, a divertida, saía para dar voltas pelo universo, mas gostava de
andar só, solitária, desmedida, sem rumo. Foi quando se deparou com outras condições e
claro, preferiu as dela, as da terra, a segurança. Seus filhos estão dando voltas, porque ela, a
Terra, a que vacila, não se convenceu que deve ficar em casa. Mas acredita, como algumas
mães, que seus filhos ainda não estão preparados para deixar sua casa. Havia perdido muita
água na superfície da estratosfera e ficou mais positiva, já que a Terra, a molécula, liga-se com
outras moléculas no universo. E ela, a Terra, que é mais água, pingou.
De quantos mundos tu és feita, Terra? Achas mesmo que não haverá fuga? Que
poderás prender por muito tempo um povo?
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A Terra, a circular, pensa que estamos dando voltas, mas não! Se circulamos é porque
mais nos convém. A fórmula do disfarce. Fazemos de conta que és nossa mãe e que nos
proteges. Tu também contas com isso. Mas, nem tu, nem nós, estamos preocupados com
qualquer proteção. O que nos liga já são outros mundos, estes, os que não estão em ti, Terra, e
que nos ensinaste a carregar. Como haveríamos de estar em ti se não estivéssemos em fuga
constante? Tu, Terra, que és invisível. Não se pode encontrá-la em lugar algum e, como dizem
os físicos, resta uma fórmula a decifrar, a última, a derradeira...
E depois, não há depois. A Terra, pensa que é, mas ela já foi presa. Fugiu. Não foi
possível recuperá-la, nunca será. Ela possui um deslize superficial, uma tensão superficial que
permite esse deslize, de todos e de tudo. A Terra, a do tempo, atemporal, nem nasceu, nem
sabe o que é isso. Desconhece ciclos, não gosta de hábitos, prefere as repetições. Com isso
fica mais forte, junta alguns ingredientes num recipiente para usá-los depois, assim, adiciona
velocidades, acelerações, paradas, lentidões e mistura tudo. Quando precisa de força bebe num
só gole e se ouvem terremotos, furacões, tempestades, movimentos bruscos, as mudanças
inevitáveis.
Ela, a Terra, a furiosa, conseguiu, numa fórmula complicada, X
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- |(t-p)
3
|, desaparecer,
e usa essa fórmula quando as coisas ficam difíceis, quando precisa pensar nas soluções. Esta
fórmula, claro, foi revisada por seus filhos preferidos, os físicos, que, depois de muito pensar
decidiram: seria melhor que a Terra desaparecesse. Mesmo que seja por alguns momentos, o
que daria a sensação de estarmos livres. Livres do quê, Terra? Tu que nos carregas desde
sempre, não conseguirás livrar-te de nós, terás que levar-nos até o infinito do teu mundo.
Estamos querendo isso já faz algum tempo. Mas como já disseste que és misteriosa e que
gostas das charadas, continuamos tentando decifrar teus códigos, em vão, claro!
Será que guardas tantos mistérios assim, Terra? Será que tu, Terra, a charmosa, não
estarás mais uma vez de brincadeira, pois sabemos que és bem humorada; aliás, esse é teu
maior charme, teu sorriso. E será que é verdade que guardas a vida? A morte? Não será muito
peso atribuído a ti, Terra, a gravidade? Nós estamos presos a ti, mas isso não quer dizer que
não estejamos voando. Precisamos de ti nas quedas, e são muitas. Afastamos-nos de ti cada
vez que nascemos de novo, que inventamos uma brincadeira nova, que nos divertimos e que
tudo se torna mais leve. Nem por isso guardamos o peso da existência, aquele que podia exigir
a culpa por usar-te só nos momentos de queda, pois é pra isso que existes: segurar teus filhos
na queda. É que não passamos do chão, mesmo que pareça que nos desfizemos: haverá sempre
a terra para nos acolher, juntar nossos cacos, pedaços. Se não for ela, então alguém enviado
por ela. E também não nos preocupa a dívida, aquela que já nasce com teus filhos, Terra. Já
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pagamos essa dívida há tempos e fazemos de conta que estamos pendurados, sabe, é mais
divertido!
Esta Terra, a presente, está em nós. Presa em nós. Ah, já sei: acho que somos a Terra!
Ela, a inventada, pensa que é, mas “quem a terra pensa que é?” (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p.53).
A Terra, a que pensa, é.
Pensa pelo meio, na medida, no intervalo de seus buracos, entre os meios. No meio.
Entre Terra, entre nós. Entre os indivíduos em formação e seus encontros, entre as afecções
das quais esses seres são capazes de efetuar.
No meio das coisas julgávamos ter um vazio, um hiato imóvel, desprezível. Qual não
foi a surpresa quando a Terra, a mediadora, surgiu dos buracos das superfícies para descobrir
novos mundos. Disse em tom de mestre: “vocês agora podem criar, possuem as ferramentas
pra isso, todos os intervalos do mundo”.
Terra, sabe-se quantas moradas foram feitas e desfeitas nesses intervalos rugosos da
existência, quantos continuuns de intensidades jorram desses confins. Isso tudo, como bem
dizes, são acontecimentos. Ocorre que, por vezes, teus filhos se assustam com tanta novidade.
Pois sabes, buracos são buracos! E se forem negros, acrescentaremos, então, um problema a
mais. Como ficará esse distanciamento entre nós, Terra? Os intervalos nos lembram distâncias
e estas não costumam agradar a todos. Por que os buracos são tão detestáveis? Estávamos tão
habituados com a lisura, com os espaços lisos, com deslizamentos em teus platôs intensivos.
Acabamos de nos confundir e percebemos que os espaços lisos são como devires. Que
os espaços lisos nos proporcionam novidades. Como? Os buracos não?
Existiu certa vez, certo autor que adorava buracos. Muitos diziam que ele divertia-se
atrás desses infortúnios, esses assombros e fazia com que seus atores, nas peças que criava e
dirigia, repetissem tanto os movimentos que, às vezes, perfuravam o chão. Este autor
conhecido como Alemão insistia no assunto: buracos de distanciamento. Para ele a repetição
dos movimentos, a circularidade da voz, os gestos incansáveis, repetidos, mais uma vez,
repetidos, produziam buracos.
Buracos de novidades! Portanto, os buracos também podem produzir novas
descobertas!
Escritores assim, esses que cavam buracos, são vistos como loucos, desvalidos e
mortos-vivos. E, contam, havia um, creio que era alemão-tcheco, não se sabe muito bem, que
morava numa casa. Coisa esquisita, essa casa tinha um teto muito baixo, ele mal conseguia
levantar. Imaginou que a cabeça era um pêndulo, que podia cair a qualquer momento, e
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inventou uma escrita. Uma escrita conhecida como nômade. Termo, aliás, bem conhecido pela
terra, pois ela é riscada por esses seres a todo o momento. E estes moribundos, ambulantes,
riscam a terra, ora aqui, ora ali. Deixam apenas rastros, cheiros, trilhas que, ao mesmo tempo
em que rascunham, desfazem territórios. Os nômades da escrita, da música, da metalurgia, dos
corpos a cortar a superfície da terra.
Esse escritor, o tcheco-alemão, foi muito mal-dito. Não se sabe bem o queriam dele.
Apenas porque não concordava muito com a família, nem era bem isso, somente não
compartilhava dos mesmos ideais, das mesmas idéias, certa armadilha foi montada contra ele.
E por muito tempo suas novelas, cartas e contos foram lidos como uma falta, uma castração,
um choro, um lamento, enfim, do ponto de vista de certa ciência-guardiã: a Psicanálise.
Porém, sabia-se quanto esse escritor, agora vamos chamá-lo pelo nome, K., quanto ele
produziu sabores, linhas errantes, longe de ódios ou ressentimentos. Nada disso era parte de
seus escritos. Inacreditável que essas linhas puderam ser tão guiadas, já que K. escrevia por
rizoma, ou seja, por entre-meios, desmedidas e alucinações. Bem, pode ser que as alucinações
não agradem a todos, pois alguns seres podem chegar a estados negativos partindo de
alucinações. Mas não era o caso de nosso amigo, K. Dizia-se propenso a todo tipo de
transmutações, gostava das experimentações. Não gostava de imitar nada, preferia sentir-se
livre. Não é necessário atribuir algum perigo aos devires-animais, devires-coleopteros, pois
isso é parte de todas as sensações que são proporcionadas numa vida. Sabe-se que a medida é
restrita, que pouco se sabe até a experimentação, e sem conhecer o que pode um corpo, fica-se
restrito às opiniões e às análises psi.
Nestas alturas cabe uma pergunta: quem inventou a opinião? Contam alguns filósofos
diferentes, alguns filósofos da diferença, que existem basicamente duas lutas a proporcionar
calor: uma contra o caos e outra contra a opinião. Esses mesmos filósofos, vamos chamá-los
pelos nomes, D&G, propuseram uma escrita-captura, que não se valem das opiniões e dos
juízos. Dizem eles que do caos são retiradas as variações, as variáveis e as variedades, que
estas são escritas em planos chamados de imanência, de plano referência e de plano de
composição. Que nestes planos se inscrevem a filosofia, a ciência e a arte. E que os atores
disso tudo, os filósofos, os cientistas e os artistas traçam nas superfícies esses planos e quando
vêem produziram um conceito, uma função e uma obra de arte (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 260-264).
Mas a opinião ronda as mentes, o corpo pede passagem como se fosse um cantinho a
dar segurança a quem precisa. Isso se verifica na ciência, pois uma parte dela é atraída pelas
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opiniões, e a ciência “daria toda a unidade racional por um pedacinho de caos que pudesse
explorar” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.264).
Esta linha, que corta a superfície e divide em planos essa referência, retira do caos
esses gostos. É que a ciência retira do caos os fenômenos e a idéias mais lindas! Traça os
riscos e rabiscos no caos e apresenta uma novidade. Projeta planos secantes nas funções que
inventa. Esse é o procedimento do cientista: arriscar-se no caos. E é esse o risco do cientista.
O cientista, sendo um conector, avança em direção ao novo. Possui uma inspiração que o
acompanha. Muitas vezes suas invenções não são bem aceitas; no entanto podem, mais
adiante, tornarem-se tão importantes que passam a fazer parte do cotidiano. A ciência está
rodeada de mistérios, assim como os cientistas. São seres dúbios, pitorescos, podem causar
náusea, e podem ser também requisitados a explicar temas polêmicos ou pouco aceitos nas
sociedades de modo geral. Foi o que ocorreu em casos tais como as fertilizações assistidas, os
melhoramentos genéticos na melhoria do gado e de plantas, os transgênicos.
Como conector, o cientista está a procura dos mistérios oriundos do caos, já que este
ainda causa certos arrepios. No caos foram encontradas filhas. Filhas chamadas Caóides: a
filosofia, a ciência e a arte. E estas, juntas, compõem formas de pensamento e criação. Foram
descobertas simultaneamente, e agora é possível traçar planos no caos. E junto descobriu-se
um pacto da Terra com o Caos. Que o Caos ficava a embaralhar nossas idéias e que a Terra
queria nossa atenção total.
A Terra conseguiu pouco porque estamos bem adaptados a sua superfície, mas o Caos
parece ainda causar um pouco de espanto, um pouco mais de curiosidade. Na Terra atentamos
para os caminhos, no Caos para os descaminhos. Isso faz algum sentido? A tentativa de retirar
do Caos as novidades não faz dele um ser profundo, nem da Terra uma superfície constante?
A Terra também apresenta variações de toda ordem, que muitas vezes escapam às tentativas
de classificação e ordenamento. A Terra superficial é um descobrimento e o Caos profundo
um instante de inovação. Às vezes um, às vezes outro, alternam na mente esse paradigma, essa
infinita conversa que atravessa nosso universo.
Na mente, no corpo? Onde mora essa dúvida, esse encantamento pelo conhecimento?
Nem uma superfície, nem uma profundidade dariam respostas fáceis a temas
relacionados ao Caos e à Terra. Para que um prevaleça, o outro deveria ser pouco considerado,
o que ocorre com o cérebro, já que parece ter perdido sua primazia no corpo. Já não é mais o
órgão central. No entanto o cérebro acha que poderá recuperar seu status de órgão central. A
condição de órgão central ou periférico pouco importa agora, já que não há provas de que o
centro e a periferia são coisas tão diferentes assim.
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Sair do centro para a periferia: essa mania de preferir a profundidade à superfície. Por
quê? Michel Tournier confirma que tudo isso é um grande preconceito, pois para ele:
estranha prevenção essa que valoriza cegamente a profundidade à custa da superfície e
que pretende que ‘superficial’ signifique não de ‘vasta dimensão’, mas, sim, ‘de pouca
profundidade’, enquanto ‘profundo’ significa pelo contrário, ‘de grande profundidade’
e não de ‘fraca superfície’. E, no entanto, um sentimento como o amor mede-se bem
melhor – caso possa ser medido - pela importância de sua superfície do que de seu
grau de profundidade...(TOURNIER, 1991, p. 60-61).
E falamos pouco do Caos. Acredita-se que a Terra não contou tudo que sabe sobre ele.
Parece haver um hiato entre a terra e o caos. Alguns navegantes estão fazendo esse trajeto e
advertem que estão prestes a chegar ao exato ponto, à medida que liga, à linha que une o Caos
à Terra.
Não se trata de desvendar um mistério, de resolver um enigma, mas de inventar a cada
vez que a Terra escapa, já que sua superfície é lisa, a cada vez que ela foge, já que o caos está
por toda parte. Por que será que pouco se sabe sobre o caos? Por que ficou esquecido por tanto
tempo? Onde mora? Por que não tem medidas fixas? Parece que ele está em toda parte
assombrando e querendo passagem na mente, na imaginação, no pensamento e nas ligações
entre as células. Nas fendas sinápticas, onde se forma um fundo ou uma diferença, um espaço
do qual podem surgir novos possíveis.
A Terra precisa de uma ciência!
Será que ela suportaria uma ciência, uma biologia que a cortasse ao meio? Que
produzisse fendas, fissuras e abrisse nela crateras?
Pois é, estamos colados nesses caminhos intensos da superfície da terra, nesses traços
que são produzidos aqui e ali. Traçar planos, para logo em seguida vislumbrar platôs, terras
lisas. E quanta surpresa pode guardar uma ciência, um conhecimento que, nestas alturas, pode-
se perceber numa biologia, numa bionomadologia, caminhando na superfície da terra. E será
necessário contar também com as duas outras parceiras: a arte e a filosofia.
A ciência poderá ser aquela cujos padrões estão sempre escapando e quando alguém
quiser prendê-la, agarrá-la, essa ciência que não tem medida, deslizará através da Terra, e a
surpresa estará em ti mesma, Terra, já que uma bionomadologia encontrou novas trilhas, já
bem distantes, produzindo outra nova, esboçando um corpo novo, desfazendo o organismo,
corroendo a organização.
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Mas sabemos que teu corpo, Terra, teu imenso corpo está bem fundado. Aliás, guardas
reservas infinitas de energia, calor, surpresas cósmicas.
Capturas tudo que passa.
Não deixas passar nada!
Agrupas tudo em teu centro, olha teu universo!
A prova está nos depoimentos de antigos visitantes teus, o que comprova quanto és
diferente. Muitos nem agüentavam teu território. Como neste testemunho guardado há muito,
de um visitante futuro, de um tempo infinito:
Visitei a Terra, com minha mulher, há alguns anos atrás e passamos maus
bocados. Não conseguíamos aprender a andar na superfície do planeta, sem
uma máscara. Engasgava, realmente, engasgava. A luz do sol era brilhante
demais, o céu azul demais e a grama verde demais. E os prédios todos eram
acima da superfície. Nunca vou esquecer quando tentaram levar-me para
dormir num quarto, vinte andares no ar, com a janela escancarada e a lua
brilhando para dentro do aposento. Voltei na primeira nave espacial que
passou e espero nunca mais voltar. (ASIMOV, 1978)
Vês que estamos nesses caminhos, atrás de ti, percorrendo esse infinito circular que
remonta séculos; nem mesmo quando se pensava que eras quadrada nos deste trégua, Terra.
Naqueles tempos não circulávamos, mas o céu era o infinito. Agora o infinito és tu mesma, e
queremos estar contigo, cada vez mais. Acostumamo-nos a atravessar e reinventar esses
caminhos e achamos que ele é sempre novo quando na verdade é o mesmo, só que diferente,
pois não vemos sempre o mesmo tijolo, nem a mesma areia.
Um fio condutor está prestes a lançar-se sobre ti Terra, mas não para cercar-te. O
contrário, para riscar em ti um novo desenho, produzir em ti cócegas, outros sabores. Não será
uma tarefa fácil já que conhecemos tua fama de exigente, precisa e laboriosa. Gostas das mais
puras emoções e mergulhas na beleza como ninguém. Não será fácil oferecer-te um novo
estatuto, uma nova maneira de desenhar em ti uma vida. É grande nossa pretensão, mas não
esqueças, somos filhos teus e, como tu, também perseverantes. Não queremos nada simples
demais, nem mesmo algo que nos aborreça com facilidade.
Pretendemos muito, pretendemos riscar teu nome, borrar tua história e reinventar tua
geografia. Procurar, incessantes, por uma biologia produzida nas cavernas mais expostas, teus
vulcões, já que sabemos que quando queres uma ruptura, uma inovação, transbordas.
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Pensávamos, até agora, que a Terra não transbordava, mas não. Seus mecanismos,
maquinismos, são conhecidos, muito antigos, aliás. E, querendo enganar a todos, inventou
uma superfície aquosa, líquida, que, por muito tempo, escondeu seu engenho mais precioso.
Aquele que produz uma nova terra vinda do interior, das mais profundas entranhas, já que daí
pode resplandecer seu sabor e arrastar tudo que está por perto. É aí que o original se apresenta.
A Terra possui um “ser problemático”, um problema que a renova. Impregnada de uma
força que a empurra em direção ao novo. Um redemoinho prestes a irromper. A qualquer
momento.
É como na ciência onde o “problema é afectivo e inseparável das metamorfoses,
gerações e criações” (DELEUZE; GUATTARI, p.26, 1997a). Também as metamorfoses
fazem parte desse planeta misturado. Será que a Terra é um pouco de tudo? Alguns pedaços
soltos cujas forças se uniram e resultou nisso? E depois algumas modificações drásticas,
transformando tanto a superfície do planeta que parecia irreconhecível!
Disso surgiram alguns problemas, é certo. Disso também surgiram soluções, a vida
não poderia ter se estabelecido neste planeta? A vida seria um conjunto de soluções propostas
neste planeta e distribuídas somente nessas condições?
A Terra preocupa-se pouco com as conseqüências ou soluções.
Nada disso é melhor do que o risco de lançar um germe, um firmamento, só para gozar
a sensação do intervalo. Mas do profundo nada se pode esperar a não ser possibilidades. Do
profundo, do fundo não há certezas. Conta-se mais com as superfícies. Já que a Terra, a pouco
profunda, prefere as exposições, as chagas, as querelas, enfim as humanidades.
Se és humana Terra, demasiado humana, ainda não temos bem certeza, muitas vezes
deste indícios dessa possibilidade.
Em outras mostraste o caminho da vontade, da força, já que és necessariamente
protensiva, assim como os indivíduos.
Como nunca és a mesma, transpiras essa originalidade a todo o momento.
A Terra, a própria individuação, o ser e não-ser, o virtual, o imponderável!
Quantas vezes tantas tentativas: de cercar-te, medir-te ao máximo, criar leis que
pudessem te descrever inteirinha, sem deixar escapar nada. E o que adiantou? Escapas sempre
que a tentativa chega perto, que a prisão se aproxima. Mesmo dentro de uma prisão não
poderias ser fixada, pois, como já constatamos, poderias não chamar-te Terra e sim Água.
Se a Terra toda fosse um cientista preocupado com descobertas fascinantes, novas
teorias e novas tecnologias poder-se-ia atribuir a ela esse estatuto de inovadora e
surpreendente. Sabe-se todos os atributos destinados a te elevar à condição de planeta único,
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como se não estivessem também esquecendo de ti como componente de um sistema planetário
complexo onde seu lugar está fixado há tempos. Aí permaneces por tempos infinitos, no
tempo atual, dizem-se bilhões de anos, aproximadamente.
Como a Terra possui variadas facetas, talvez até pudesse ter outro nome antigamente e
só agora possuir essa aparência.
Muitas vezes já se disse da condição frágil que a Terra possui. Mas, sabe-se que és
infinitamente inventiva. Então não demores mais, cientista por excelência! Conta teu
procedimento!
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VII. METAMORFOCIÊNCIA
Toquem: A sinfonia das águas,
O lamento das folhas ao vento
Um tirintintim tíbio, vindo de longe.
Deixem passar tudo
Tudo está preenchido.
Dos montes ao horizonte.
Uma ciência desmedida pede passagem...
A beleza que se esconde nesses meandros, interstícios de uma ciência desorientada,
desnorteada.
Seria esse um provável “papel” das ciências ditas menores? A preocupação com o
outro da ciência?
A ciência não-dita, mal-dita, escondida atrás dos balcões das experiências no
laboratório. Um burburinho da vida na fecundação artificial. Um encontro com hora marcada,
uma agulha introduzindo um espermatozóide em um óvulo. Os genes rastreados, a verificação
de possíveis falhas genéticas, a análise de prováveis doenças. Quando a ciência é mal-dita e
quando ela salva vidas? A ciência depende do que se diz dela. A ciência, assim como qualquer
conhecimento, contém muitos meios de entendimento. Trata-se das enunciações coletivas e
dos agenciamentos maquínicos que envolvem uma ciência. Conforme observam Deleuze e
Guattari (1997a) “eis, portanto, a primeira divisão de todo agenciamento: por um lado,
agenciamento maquínico, por outro, e ao mesmo tempo, agenciamento de enunciação. Em
cada caso é preciso encontrar um e outro: o que se faz e o que se diz?” (ibid, p. 219).
Aqui, pode-se verificar uma ciência produzida no encontro: uma máquina abstrata
chamada bionomadologia. Uma máquina que atravessa os agenciamentos científicos,
tecnológicos, as expressões propriamente científicas e produz um conjunto original do ponto
de vista científico. Cada vez que um agenciamento é atravessado pela máquina abstrata dita
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bionomadologia tem-se uma novidade produzida nesse meio, nesse encontro: uma ciência dita
e feita em termos da máquina, ou seja, atravessada pelas novidades que se produzem nesse
contato.
Via de regra, a ciência e a cultura científica contam com alguns aspectos que são
produzidos no seu interior e que depois este se volta para uma conjunção com o exterior, com
as condições ditas externas. Nessas circunstâncias, existiria uma ciência voltada para as puras
possibilidades, para as descobertas; e uma outra ciência voltada para os saberes restritos,
apropriando-se dessa primeira ciência e fazendo dela sua própria fonte. Isso se faz visível na
história da ciência, quando se observa que tantos cientistas visionários foram considerados
loucos perante a ciência da ordem. A mesma ciência, a da ordem, propõe, muitas vezes, como
nova teoria, como novo paradigma, os mesmos saberes produzidos por uma ciência
inicialmente desprezada, a ciência nômade.
Poder-se-ia separar em cada ciência esses agenciamentos de enunciação e os
agenciamentos maquínicos produzidos e verificar se esses contornos produzem novidades no
encontro. Que cada ciência só, sozinha, causa arrepio!
Onde está inserida essa ciência que se diz nova? Quais são os agenciamentos
produzidos por ela? Quais são seus agenciamentos maquínicos e seus agenciamentos de
enunciação? Se uma ciência se contrapõe a outra, percebe-se o caráter invariante das ciências
ditas régias que, através de sentenças interpõe a morte (morte no sentido de que a palavra de
ordem impõe constantes e sentenciam a morte). Já nas ciências ditas nômades a palavra de
ordem é fuga, metamorfose e “um continuum de variações” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a,
p.57). Ao mesmo tempo, as ciências nômades retiram da própria ordem a fuga. A
metamorfose produzida por ela não está desligada dessa mesma sentença que se produziu nas
ciências da ordem ou “já não se trata exatamente de extrair constantes a partir de variáveis,
porém de colocar as próprias variáveis em estado de variação contínua” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997a, p.36).
Numa bionomadologia também se percebem regimes de signos, enunciações ditas
novas e regimes de corpos, novas ligas. Estão sempre na borda, num limiar. Tudo depende de
seus enunciados e de como se misturam os corpos e vice-versa. Nesse sentido, os fios são
emaranhados produzindo esse agenciamento: uma máquina abstrata chamada bionomadologia.
Percebe-se que uma ciência está na borda, traçando linhas, formando elos. Ora distanciando-se
da rigidez, ora conjugando-se a ela, tentando produzir um atravessamento. É nesse sentido que
Deleuze e Guattari (1997a) dizem que
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as duas ciências diferem pelo modo de formalização, e a ciência de Estado não para de
impor sua forma de soberania às invenções da ciência nômade; só retém da ciência
nômade aquilo de que pode apropriar-se, e do resto faz um conjunto de receitas
estritamente limitadas, sem estatuto verdadeiramente científico, ou simplesmente o
reprime e o proíbe. (ibid, p.26-27).
Uma ciência e outra conjugam um repertório de saberes ditos científicos, que se
alteram conforme o estatuto. Ser científico do ponto de vista rígido é seguir uma forma
estabelecida para as ciências de Estado. Do lado das ciências nômades, um estatuto também se
estabelece, à medida que se desenvolvem os movimentos dessa ciência. Ela também possui
um rigor propriamente científico, que permanece vivo e atuante.
O cientista pode ser aquele que será “capturado” ora por uma força, ora por outra e
experimentar por vezes até mesmo situações ambíguas. Como dizem Deleuze e Guattari
(1997ª), “o mais importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a ciência nômade
exerce uma pressão sobre a ciência de Estado, e onde, inversamente, a ciência de Estado se
apropria e transforma os dados da ciência nômade” (ibid, p.27). As oscilações entre uma e
outra, os fenômenos limites, os limiares produzem contornos, vizinhanças trazendo consigo as
novidades produzidas pelos cientistas. O jogo entre a máquina de guerra e a ordem das razões.
O cientista ficará nesse duelo constante, produzindo sua ciência e tentando escapar do senso
comum. Luta para transbordar, produzir invenções. Um perigo espreita-o: o de ser impedido a
qualquer momento.
Produzir uma ciência dita nômade de um modo escorregadio, deslizante, que não esteja
restrito aos enunciados, mas que também faça aparecer nessa ciência conteúdos novos.
Quando uma nova teoria é proposta é somente com um conjunto associado ao seu contexto, à
sua condição atual e real. E se a linguagem é um mapa, a ciência régia ataca com suas
sentenças, mas também pode produzir deslocamentos infinitos. Propõe novas fugas, novos
horizontes, já que uma ciência nômade é forjada a partir de cada comando, a partir de cada
ordem, cada vez que o organismo se estabelece. E, nesse aspecto, a linguagem se torna
invenção. Uma máquina abstrata chamada bionomadologia, que atravessa a linguagem
propriamente científica para produzir um híbrido, um saber saltitante, onde as forças e as
lanças valem muito. Nesse sentido, forjar um novo território, um novo agenciamento. Um
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conjunto híbrido e pulsante, cujo registro se diz bionomadologia, produz num agenciamento,
um novo território.
A ciência também é mapa e não decalque Deleuze e Guattari (1995). Como tal, ela ora
ela se volta para a morte, para a sentença de morte, para a ciência régia; ora se volta para a
fuga: uma ciência da fuga ou uma ciência nômade. As sentenças de uma ciência régia seriam
como a “fonte” da fuga nas ciências nômades. Esse mapa consiste em atos, em agenciamentos,
produzidos numa dada situação. Num mapa científico, temos a implicação tanto dos
agenciamentos maquínicos, os corpos envolvidos, quanto dos agenciamentos de enunciação,
as sentenças proferidas. Nesse momento cria-se um território propriamente científico, com
suas enunciações, em uma dada sociedade.
Uma ciência não existe separada dos seus inventores, de seu tempo e de suas condições
de existência. Tampouco existe somente uma ciência e um saber científico apropriado. É
preciso pensar numa “política das ciências” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 102) segundo
a qual as ciências, elas próprias, possuem abismos, correntes internas oscilantes. As condições
externas não atingiriam as ciências se elas mesmas não possuíssem “seus próprios pólos, suas
oscilações, seus estratos e suas desestratificações, suas linhas de fuga e suas recolocações em
ordem” (ibid, p.103). A ciência com sua própria demanda, sua máquina de guerra própria.
Interessante seria aproximar-se dos caminhos percorridos pelas ciências ditas
‘nômades’, itinerantes, que propõem novas fendas, novos corpos, onde normalmente se
esperaria uma regra ou fixidez. Sem esquecer que as ciências nômades retiram daí mesmo, da
ordem, da regra, suas próprias aventuras, sua própria fuga. Incorporar uma bionomadologia,
uma ciência híbrida. Uma aproximação com o sistema radícula referido por Deleuze e
Guattari (1995), uma vez que “a realidade natural aparece no aborto da raiz principal, mas sua
unidade subsiste ainda como passada ou por vir, como possível” (ibid., p.14).
Para que um traço surja, como numa pintura, também a ciência, entendida como uma
bionomadologia, necessita de pintores, que estarão dispostos a embriagar-se com o que está
prestes a aparecer. Muitas vezes o cientista mal sabe o que o espera mais adiante e, no entanto,
é necessário pintar. É da ordem do inusitado o que vai ocorrer logo a seguir. Os espíritos se
embriagam da incerteza. Pode ser até incerteza probabilística, mas a sensação não pode ser
descrita. Do sabor do acontecimento surgirão as novidades. Aventuras, desmedidas,
encantamento. O cientista sai encantado de seu sonho! Quando a pesquisa se transforma em
teoria, quando esta é divulgada e todo um conjunto de ações perpassa esse novo saber, a
ciência já se tornou ajustada a essa ou aquela regra, aos saberes produzidos no momento, junto
a outros enunciados que ajudam até mesmo a torná-la legítima no meio social. Mas quantos
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caminhos podem ser percorridos por essas ciências e quantos outros ainda estão por fazer-se?
Um conhecimento poderá perpassar diversos campos de ação, da realidade ou da fantasia, do
virtual ao atual.
Os passos podem ser guiados pelas intempéries próprias das passagens e não se chega
a qualquer atributo científico ou tecnológico, à maneira de uma crítica a certa ciência
dominante. Seria como acompanhar as novidades contadas no anonimato das idéias, onde a
ciência se faz viva e auspiciosa e se confunde com ficção (desta vez científica).
Destaca-se uma proto-ciência que se acerca das essências vagas, quer dizer, folgadas
ou nômades, já que “as essências se distinguem das coisas sensíveis” (DELEUZE;
GUATTARI, p.33, 1997a) e, nesse sentido, não há necessidade de exatidão, padrão ou mesmo
controle. No entanto, essa ciência produz-se num rigor que forma figuras “problemáticas
vagas e, contudo rigorosas” (Ibid, 1997a, p.33). Essas ciências formam variáveis dentro das
variáveis, procuram não uma constante e sim um continuum, uma variação. E parece
inevitável esse contato já que
estamos diante de duas concepções da ciência, formalmente diferentes; e,
ontologicamente, diante de um só e mesmo campo de interação onde uma ciência régia
não pára de apropriar-se dos conteúdos de uma ciência nômade ou vaga, e onde uma
ciência nômade não pára de fazer fugir os conteúdos da ciência régia (DELEUZE;
GUATTARI, p.34, 1997a).
É dessa interação entre as ciências que surgem as condições vistas nos diversos
modelos, nos quais essas ciências compõem, ora de uma maneira, ora de outra, um novo
conhecimento. Produz as novidades que modificam aqui e ali as formas de ver o mundo. Mas
nem uma ciência nem outra podem dar respostas fáceis para a problemática que as envolve, já
que “as ciências ambulantes contentam-se em inventar problemas, cuja solução remeteria a
todo um conjunto de atividades coletivas e não científicas, mas cuja solução científica
depende, ao contrário, da ciência régia” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p.42). Aí surge um
intermédio, uma entrecena: uma bionomadologia. Um bionomadismo que rejeita as
polaridades e possui um plano, um plano para compor.
Num campo mais abrangente, uma ciência pode ser vista junto a outros saberes.
Outros conjuntos que provocam encontros e desencontros, aproximações e colisões nos
diversos campos do conhecimento. Isso vale para a arte, para a filosofia e para a ciência. De
resto é comum observar-se uma armadilha que se limita à explicação, à comunicação e à
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opinião sobre algo, sobre um conhecimento. Percebe-se assim que a opinião pode ser um
problema, pois “é da opinião que vem a desgraça dos homens” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 265). No entanto, muitas coisas saltam dessa opinião dita comum. Às vezes se
estabelecem como regra, ditando determinados padrões em determinadas circunstâncias.
Podem ser confundidas com novidades, quando não passam de velhas teorias disfarçadas com
outros dizeres, com outros discursos. Na ciência, a opinião busca a unidade, busca unificar as
leis. Na opinião, podem estar contidos muitos elementos: nela busca-se, principalmente,
proteção, “uma espécie de guarda-sol que nos protege do caos” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p.260). É que o cientista está em luta com o caos, voltando muitas vezes cansado de seu
esforço. Precisa descansar. Quando percebe, foi envolvido pela opinião.
Deleuze e Guattari (1992) sugerem que estamos envoltos por duas lutas: uma contra o
caos, outra contra a opinião. Com isso, os autores destacam que “a filosofia, a ciência e a arte
querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a esse
preço” (ibid, p.260) e contaremos com o filósofo, o artista e o cientista que irão “retornar do
país dos mortos” (ibid, p.260). Esse procedimento produz as inúmeras novidades contidas na
filosofia, na arte e na ciência. Deste procedimento, cria-se algo diferente, inusitado e novo.
Mas trata-se de um procedimento que contorna o caos e no qual se guarda certo parentesco
com o inimigo, já que “a luta contra o caos implica em afinidade com o inimigo, por que uma
outra luta se desenvolve e toma mais importância, contra a opinião que, no entanto, pretendia
nos proteger do próprio caos” (ibid., 1992, p.261).
O cientista circunda o caos atrás das novidades que dele podem ser retiradas. O
cientista faz suas investidas atrás não apenas da opinião, mas “das variáveis que são traçadas
numa função sobre um plano de referência” (ibid. 1992, p.261). O procedimento do cientista,
a escavação que ele faz no caos, procura retirar as novidades que parecem estar escondidas ali.
O caos não seria, nesta perspectiva, um afundamento ou uma antiprodução, mas, pelo
contrário, seria a fonte de inspiração, o lugar onde novas possibilidades estariam circulando.
Nesta perspectiva, também é necessário contar com uma prudência para que o caos não seja
comparável ao senso comum, que vê aí as desgraças dos seres. O caos abre, com isso, novas
possibilidades. Passar de um estado caótico para um estado caóide. Rasgar o caos: uma roda-
viva de virtualidades. O cientista seria como um peneirador, em busca das novidades contidas
neste caos incessante. Se o cientista é esse ser que “apreende num sistema de coordenadas, e
forma um caos referido que se torna Natureza, e com o qual produz uma função aleatória e
variedades caóides” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 260), vê-se já uma propriedade que o
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inspira: a multiplicidade crescente do caos. O cientista procura desfazer esse crescente caótico
e retirar dele suas leis. Traça um corte na multiplicidade, o caóide. O cientista como conector.
Mas o que seria esse estado caóide? O que de positivo o cientista pode retirar de um
caos muitas vezes já voltado para a opinião, que confere aspirações religiosas a uma ciência
que procura uma novidade na fonte caos? Sabe-se que a ciência “volta-se contra a
opinião...e assim ela se volta, em si mesma, contra a opinião propriamente científica”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.265), uma desordem que requer um procedimento. Uma
ciência de opinião, uma ciência rígida também é real. Ela existe e está sendo produzida a todo
o momento. Não diríamos que uma ou outra ciência seja melhor. No entanto, uma ciência
menor, vagabunda, nômade, rondaria a Doxa ou a opinião, toda vez que esta tentasse se
afirmar como uma condição propriamente nova, já que o novo não se afirma pela opinião, mas
pelos agenciamentos produzidos num dado campo no real, num dado momento, num dado
contexto social.
Do caos à ciência. Este é o trabalho do cientista. Esse é o trabalho do conector. Junto a
isso, um bionomadismo trabalhando com o corpo do cientista. Os cientistas estão nesse
processo, nesse procedimento.
Pode-se considerar que boa parte da ciência se fez ou se faz na ficção. A ciência
visionária, precursora dos novos movimentos, amedronta as almas. Os homens serão
engolidos pela tecnologia? A sombra do robô atrás da porta. As casas controladas por controle
remoto a distância. Essa distância aparente da máquina ao homem, do homem à máquina
pertence ao imaginário humano. Mas, como se vê, é mais aparência. Máquina e homem, sob a
perspectiva do desejo, podem ser confundidos, embaraçados, indiscerníveis.
A ciência não produz ou inventa nada que não seja desejo. Desejo de um povo. As
falhas podem ser humanas, e o desejo é máquina (humana ou não). Embrenhados no desejo
estão os cientistas, os passageiros, até mesmo os consumistas de máquinas poderosas, mas
tudo é desejo.
Todo dia novidades. Novas máquinas, novos hardwares, novos motores, Tevês de
plasma! Meu olho está cada vez mais sensível e agora não vejo mais nada que não seja
filtrado, muito bem limpo. Meu corpo está tão adaptado a um motor potente que não consigo
mais andar num carro lento e esta máquina não me acompanha mais, este teclado não desliza
como meus dedos, preciso de um teclado novo!
Será que o cérebro humano é essa malha lenta que não acompanha as mudanças sociais
com a mesma velocidade a ponto de precisar de um novo computador? Que paradoxo é esse
que se vive? Um romance é menos tecnológico do que um computador? Faríamos muitas
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tentativas até sabermos quais regiões do cérebro comanda nossos passos em direção a ações
cotidianas. E por que existem pequenas ações e grandes ações? Quem estipula tais medidas?
Quando um cientista “apresenta” uma teoria é bem provável que sua descoberta tenha
ocorrido de forma banal, quer dizer, simples demais. Simplesmente não há uma dimensão ou
uma grandeza associada às novidades científicas ou tecnológicas. São os desejos que brotam
do olhar do cientista e de seu tempo e, portanto, o cientista não é nem visionário nem monstro.
Pode ser um contador de histórias ou até mesmo um louco!
O cientista é um conector.
Como conector está colado à ciência, está a sua volta, no seu contorno, não se sabe
mais quem é quem. Conta estórias de seres tão diferentes e vasculha suas vidas, às vezes
mente, às vezes conta a verdade, muitas outras não diz tudo que sabe. Muitos não suportariam
toda a verdade. Sabem quantas estórias um cientista deve guardar em segredo? Se fossem
desvendadas, muitos não suportariam. Muitos nem fazem questão de saber.
Esse conector leva seu pensamento longe demais. É por isso que muitas teorias
cientificas só irão fazer sentido muito tempo depois. Não que o cientista veja antes, mas ele
espalha redes que podem conduzir a outros mundos. Mundos que não existem ainda. O
cientista é aquele estranho, desconectado do mundo dos vivos, pois a vida para ele não é
orgânica, é muito orgânica, demasiado orgânica!
Estar ao lado da vida é essa sensação de abandono e retomada. É necessário tomar
conta do organismo, transformar-se em orgânico, ser totalmente orgânico, organizar-se
totalmente, para depois abandonar a idéia.
Muitas conexões são experimentadas, pois quando se está às voltas com vírus no
laboratório percebe-se que a ciência e o cientista há muito já se confundiram, já se
combinaram. Os vírus há muito tomaram conta dos códigos humanos e de outros seres,
desfizeram muita coisa, compuseram outras, e se esses vírus fossem comparados às mais
poderosas máquinas de contaminação, talvez se aceitasse melhor uma condição de
acoplamento, que produz contíguos
e que produz continuidades. Os diversos seres na vizinhança entre si. Onde escalas de
superioridade ou inferioridade não fazem sentido já que os seres estão na dependência dos
encadeamentos e das ligas que produzem.
Apenas se produzem máquinas na ordem do contínuo, na sua continuação com os
homens. Os homens não são o contrário das máquinas, nem mesmo seu espelho. Nenhuma
máquina imita o homem. Homem e máquina poderiam ser comparados a vírus e corpo.
Encontro. Produção de novidades. A tecnologia pode apavorar muitas mentes. Mas a
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transgenia é pré-humana, é invenção da natureza. São fatos observáveis de transformações
ocorridas numa série de organismos. Num determinado momento, irrompe uma discussão
social, em que produzem discursos e enunciados na defesa ou no ataque a uma condição que
independe do que se diz. A transgenia, em condições naturais, continuará existindo
independente das decisões que uma sociedade possa tomar. A transgenia continuará existindo,
esculpindo o mundo, esculpindo-se nele.
Os vírus e os outros corpos já se misturam há muito tempo. Não se sabe quanto! Não
se sabe o quanto, nunca se saberá! Seus códigos estão invariavelmente incorporados uns nos
outros como montagens. E toda a ciência trabalha à procura desses mecanismos de ajustes,
ligações misteriosas que não são previsíveis, porque a novidade está aí mesmo, nesse meio
que liga heterogêneos. Liga corpos e motores. Ainda que os motores precisem de combustível.
As mistura de genes também podem produzir desconforto. Muitas doenças
degenerativas são originadas por esses encontros desordenados. Neste sentido, a vida procura
diversificar suas ações, seus campos de atuação, e muitos encontros genéticos são inviáveis,
não produzem nada, ou melhor, nada de positivo, se levarmos em conta que a vida ocupa-se
de viver e inventar.
Uma ciência menor não é aquela que necessariamente se opõe a uma outra ciência.
Nessa acepção, é interessante que se verifiquem as atuações dos diversos saberes científicos
produzidos constantemente por agentes que estariam, em princípio, distantes dos laboratórios,
das oficinas oficiais, das academias e que, mesmo assim, revelam certas circunstâncias que,
não são ditas científicas, pois não pertencem a um colegiado, mas produzem novidades e
saberes no cotidiano. Das leis naturais, dos ditos populares, das lendas, muitas produções. Pois
a ciência não é sinônimo unicamente de avental branco ou laboratório com
superequipamentos. Também não é verdade que qualquer coisa pode ser feita em seu nome.
Seria necessária uma prudência propriamente científica, já que a ciência produz seus próprios
códigos, seus próprios dispositivos.
Sob esse aspecto, pode-se considerar a ciência, assim como a literatura e a arte, um
desejo. É disso que se trata: de quanto desejo se constitui isso que se denomina ciência e de
quanto disso se produziu um conjunto de saberes. Da passagem. Do virtual ao atual
(DELEUZE; GUATTARI, 1997).
Um saber científico pode ser considerado como um conjunto de desejos. Não se tem
desejo pela ciência, a ciência mesma é desejo. Procuramos verificar, então, quanto disto foi
distribuído e produzido enquanto conjunto de desejos. Pois a ciência é uma lança, um
lançamento de idéias e funções que, como vimos antes, são retiradas do caos pelos cientistas.
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Ele destaca as conexões implicadas a partir de um fundo caótico que são capazes de oferecer
algumas possibilidades.
Se o cientista faz parte dessa dança, será como dançarino ou como conector que poderá
transforma certas forças em visíveis. O forte do cientista, sua força, “traduz-se” assim: a força
da ciência está nessa capacidade de autodestruição, de reconstrução constante. O cientista
conecta alguns pensamentos que não fazem mais sentido, reconstrói as variáveis do
pensamento e produz uma teoria. Ele, um mensageiro vivo, está caído, desfeito, suas imagens
já não são tão nítidas!
As verdades não podem durar muito tempo! Só o tempo da explosão da próxima idéia!
Tal como em Deleuze e Guattari (1995)
a ciência enquanto tal é como qualquer coisa, existe nela tanta loucura que lhe
é própria assim como operações de colocar e recolocar em ordem, e o mesmo
cientista pode participar dos dois aspectos, com sua própria loucura, sua
própria política, suas significâncias, suas subjetivações, mas igualmente suas
máquinas abstratas – enquanto cientista (ibid, p. 102).
Assim pode ser entendida uma máquina abstrata chamada bionomadologia, onde a
ciência se volta para seu lado mais alucinante e logo será captada por uma ciência que tentará
prendê-la, aprisioná-la, “essa tensão-limite entre as duas ciências, ciência nômade de máquina
de guerra e ciência régia de Estado” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p.29). Atravessando
isso, uma máquina abstrata chamada bionomadologia apontaria para os devires, para o
cósmico, para o molecular. Deleuze e Guattari (1997a) dizem que “as máquinas abstratas
operam em agenciamentos concretos: definem-se pelo quarto aspecto dos agenciamentos, isto
é, pelas pontas de decodificação e de desterritorialização” (ibid., p.227). Uma bionomadologia
estaria despontando no universo, talvez no universo de um tubo de ensaio!
Alguns saberes estranhos, algumas ficções da alma surgem como pontas para um novo
pensar. Uma produção científica pode estar carregada de um surto de ficção. Perguntar-se-ia,
então, quanto de ficção cientifica há na ciência, na produção científica? “A ficção científica
tem toda uma evolução que a faz passar de devires animais, vegetais ou minerais, a devires de
bactérias, de vírus, de moléculas e de imperceptíveis” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.32),
de devir em devir.
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Tudo isso é uma simbiose real, produzida no mundo vivo, sendo atravessado pela
máquina abstrata chamada bionomadologia. E, nesse aspecto, uma ciência é banhada por esses
pingos aleatórios, pingos de ficção.
Das simbioses surgem emaranhados indiferenciados que, logo em frente sofrem
modificações.
Encontros.
Simbioses.
Multiplicidades.
Outras formas de humanidades são produzidas no conjunto, nos encontros com outras
formas não-humanas. Disso tem-se uma mistura de produções ditas heterogêneas, pois produz
encontros insólitos, distribuição de seres num conjunto. Seres humanos, seres fantásticos,
seres minúsculos, seres de toda ordem.
Aqueles que queriam que o saber científico contivesse todas as respostas sobre a
natureza, toda a natureza, perderam o caminho. Na natureza nada é estrutural. Nesse sentido, a
natureza não é mãe, nem qualquer outra coisa do gênero. A natureza é batalha, guerra,
produção. Não estão vivos os mais aptos num mundo de competições, estamos vivos num
mundo de criação. E mesmo que a mídia se valha das belezas da natureza para se estabelecer
na mente dos homens não é por isso que um povo se torna menos inventivo. Não há beleza na
cópia a não ser que ela seja imperceptível. Mesmo que haja uma regra ditando ou dizendo
como se deve andar, como se deve vestir, comportar-se, que palavras se deve usar em tal ou
qual momento, mesmo que haja regras ditando as novidades que se pode seguir, nada é mais
novo que um redemoinho que brota a partir da própria ordem, o turbilhão que circunda esse
redemoinho. Ele te jogará tão longe que não vais querer afastar-te tão cedo. Ou melhor,
inventarás um turbilhão próprio!
E não haverá uma volta a uma natureza perdida, a um passado melhor, mais verde. Os
verdes estão mais perto do que nunca! Se não se apresentam mais na forma de árvores ou
matagais é porque desta maneira já não produzem encantamento. O desejo é outro.
Meus sonhos verdejam.
Nem o concreto tomou o lugar dos morros verdejantes, nem a humanidade ficou mais
afastada da natureza. Não há nada mais natural do que uma metrópole!
Uma natureza se desfaz enquanto outra surge. Não se sabe o que quer dizer um mundo
sem oxigênio, sem água. Haverá formas de vida nisso? Nessas circunstâncias? Muitos seres
vivem sem esse gás, mas necessitam de outros. Talvez ainda mudem todo seu metabolismo e
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numa mutação incrível transforme uma necessidade num acaso, ou vice-versa. Quantas vezes
os dados foram jogados?
Quanto tempo foi necessário para criar um ambiente restrito a um tubo de ensaio?
Talvez alguns meses ou dias. Mas isso modificou toda humanidade. Surgia daí, de um
romance, um paradigma novo no mundo. Bebês produzidos num tubo de ensaio. Se o autor do
romance, se o cientista estava preocupado em tornar verdade sua ficção, nunca se saberá. Mas
essa ficção produziu uma novidade tão louca que conseguiu mudar toda forma de ver a
reprodução, a sexualidade, o povoamento do mundo. Os bebês podem ser produzidos num
tubo de ensaio! Quando nascerem serão fotografados, filmados, seus pais serão entrevistados,
serão bebês-televisivos. E a ciência será essa projeção que afetará os corpos e produzirá novas
maneiras de agir, novos agenciamentos já que haverá outras formas de enunciação. A partir
disso, surgem novas medidas, novas regras, que vão permanecer até o momento em que outras
criações aparecem. Será que existe mesmo um clone humano sendo gerado num navio em alto
mar? Além disso, há aqueles entre nós que duvidam da chegada do homem à lua.
Como se vê, uma ciência depende de muitas coisas. Ela é circunstancial. Vai ao sabor
dos intervalos, afetando aqui e ali, causando dúvidas, às vezes desconfiança, às vezes os dois
ou nenhum. Afirma-se como novidade, ou seja, possui as mesmas facetas de qualquer outro
modo de agir ou pensar da humanidade.
Uma bionomadologia será produzida no meio da ciência, para invadir e corroer, roer
feito rato qualquer tipo de estabelecimento, qualquer tipo de normalidade. Quando se
acompanha um ciclo da natureza é mesmo tentador dizer que este se repete e se repete. Sim, é
um ciclo e, além disso, segue um ritmo, uma lei. Mas como, se o ritmo é diferença? Nunca
conseguiremos dizer nada sobre um padrão da natureza. Mas que padrão? A natureza é pura
novidade. Num ciclo, o que mais se observa são os descompassos. Um átomo de Oxigênio a
menos pode produzir um buraco! Isto também é um ciclo. Ciclo de descompasso. Só que mal-
dito.
Num ciclo, pode-se esperar tudo, até transbordamentos, tais como ocorre com os
vulcões. Estes também possuem seus ciclos de ativação e repouso. Aparecem e marcam novas
terras. Espalham-se, trazendo um profundo para a superfície. Restabelecem a superfície e o
que era íntimo se torna aparente e o que era superficial desaparece. Quando se vê, o mar é só
na aparência, pois nem sempre esteve ali. Não é ali seu lugar. O mesmo com a cordilheira.
Toda natureza muda constantemente, seus habitantes também. Estão ligados nesse conjunto
cósmico. Até mesmo os animais de território sabem que suas moradas são temporárias, que
nada é definitivo. Carregam essa informação em seus genes por infinitas gerações e passarão
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adiante, pois essa característica talvez seja o que pode mantê-los inventando sempre. E se o
animal não possui território, estará ao sabor de um conjunto de circunstâncias onde uma
variável poderá alterar tudo. Uma tempestade de areia modifica tudo no deserto. Uma ventania
anuncia uma nova morada, teremos que ir todos juntos... E lá, se tudo parar, se não houver
mais tempo e o sol predominar ou a lua, os músculos serão poupados por alguns instantes, aí o
pulso se recomporá, as energias se voltarão para si. Depois deitarão ao ritmo das estrelas.
Nunca haverá céu mais lindo do que o céu do deserto.
Uma bionomadologia, a biologia-vaga, aquela que folga, a onda a cortar o horizonte,
está querendo passagem. Porque aguarda há muito esse momento. Sua existência é remota,
bordeja desde sempre estes cafundós. É bem verdade que prefere o anonimato, uma vivência
menos gloriosa. Desprezou muitas vezes honras e lauréis, não foi receber os prêmios que
ganhou. Não era o mais importante. Essa ciência queria uma passagem meio de lado, sem
tantas marcas, sem tanto resguardo. Ela quer dizer o que diz. Exatamente. Sem “talvez” ou
“provavelmente isso ou aquilo”. Se pudéssemos atribuir um “papel” às ciências ditas vagas,
uma bionomadologia poderia ser um “componente de passagem” (DELEUZE; GUATTARI,
1995a, p. 59) que extrai da ordem uma variação, transforma-se em fuga.
Logo adiante poderá ser capturada pela ciência da ordem ou de Estado e transformar-se
numa outra coisa. Não será mais novidade. Os conceitos serão transformados e apreendidos
numa ordem sistemática e acomodados. Novas verdades serão estabelecidas, novos ditos e
saberes-padrão, que terão valor até que algo original surja novamente.
Uma ciência híbrida não está preocupada com verdades, apesar de carregar consigo um
sufixo rígido.
Uma ciência híbrida não parte das premissas para chegar às conseqüências. Não há
premissas. As verdades já foram ditas de muitas maneiras e bem ao lado viu-se que quanto
mais verdades eram ditas mais falsas eram suas afirmações. É só na medida do falso que o
verdadeiro se estabelece.
Por isso, não se buscam verdades, e sim, uma prática. É mais um fazer do que um
ouvir dizer. Trata-se de vida, da vida, de uma vida e esta não possui nem verdades nem
julgamentos. Todos os que já foram inventados servem apenas para explicar o que não possui
explicação. Somente um verbo traduz a vida. Existir. Simplesmente.
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REFERÊNCIAS
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Termignoni [et al.]. Porto Alegre: Artmed, 1999.
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