inflexões. As sociedades modernas teriam começado a operar com a premissa de que “a vida e
não o mundo comum é o bem supremo do homem” (ibid, p.332). Nesse sentido, trata-se de
comportar-se de forma a preservar, aperfeiçoar, alongar a vida biológica; e não mais de agir para
produzir um mundo comum e inscrever uma existência simbólica que transcenda a duração da
mesma. Arendt coloca que sem essa busca de uma imortalidade simbólica, pela produção de um
mundo comum que permaneça e se transmita, não há espaço público que se sustente.
Na verdade, os feitos perderão cada vez mais a sua capacidade de opor-se à maré do comportamento, e os
eventos perderão cada vez mais a sua importância, isto é, a sua capacidade de iluminar o tempo histórico.
A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo, e sim o ideal político, já agora
não mais secreto, de uma sociedade que, inteiramente submetida na rotina do cotidiano, aceita
pacificamente a concepção científica como inerente a sua própria existência (ARENDT, [1958] 2005, p.
53).
Na esfera social de Arendt e na sociedade disciplinar de Foucault, guardadas as
especificidades de suas elaborações, encontramos elementos importantes. Seria característica da
modernidade uma tendência à normalização dos modos de existir, sustentada na premissa da vida
como bem maior da humanidade (ARENDT, [1958] 2005). Desde então é o saber científico que
vem gerir a vida na cidade, instaurando uma racionalidade política – biopoder
1
– que incide
1
A questão do biopoder é trabalhada por Foucault (1988) em A Vontade de Saber, volume 1 da obra História da
Sexualidade. É também neste livro que o autor trava um debate intenso com a psicanálise, a partir do que ele chamou
de dispositivo da sexualidade. Nesse debate, Foucault formulou o conceito de biopoder, pensando a psicanálise
como um de seus possíveis e inscrevendo-a no registro moral. Parece-nos importante colocar algumas questões a
esse respeito nesse momento, já que fazemos uso do conceito de biopoder neste ponto do trabalho e, mais adiante,
nos serviremos das contribuições psicanalíticas (principalmente de Freud e Lacan) acerca da ética. Em A Vontade de
Saber, Foucault se propõe a realizar uma arqueologia da psicanálise. A arqueologia é uma forma de história que
pergunta pelas condições de possibilidade do surgimento de um certo campo de saber ou de um certo discurso de
verdade. A psicanálise teria encontrado as condições para sua emergência numa época em que haveria uma
proliferação de discursos sobre o sujeito e sua sexualidade. Foucault busca desconstruir a “hipótese repressiva sobre
o sexo”, ou seja, a idéia de que teria havido uma forte repressão da sexualidade a partir do séc. XVII e de que a
psicanálise, através da escuta da sexualidade, teria libertado o sujeito desse poder repressor. Foucault irá dizer que
desde a Idade Média, o cristianismo, mais do que promover uma repressão da sexualidade, teria incitado a
proliferação dos discursos sobre o si mesmo, a sexualidade e os desejos mais íntimos através do dispositivo da
confissão. O dispositivo psicanalítico, para o autor, seria então um desdobramento do dispositivo da confissão e,
desse modo, a psicanálise faria parte do rol de discursos modernos, que colaram a verdade do sujeito à verdade sobre
sua sexualidade, sobre seu desejo. Por sua vez, a sexualidade seria o principal instrumento de expansão do biopoder,
na medida em que se insere, simultaneamente, em dois registros: “dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles
constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todo
um micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções
que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e
à vida da espécie” (FOUCAULT, 1988, p.137). É assim que Foucault, nesse momento de sua produção, inscreve a
psicanálise no campo das políticas normativas da vida, do biopoder. Dosse (1993-1994), em História do
Estruturalismo, coloca que o confronto entre o pensamento foucaultiano e o de Lacan, presente em A Vontade de
Saber, diria respeito a uma busca de Foucault de “emancipar-se da psicanálise e problematizar a identidade que ela
estabelece entre a sexualidade e o desejo” (DOSSE, 1993-1994, p. 378). Essa problematização seria menos uma
17