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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Ana Carolina Rios Simoni
A FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE NAS EQUIPES
MULTIPROFISSIONAIS:
Sobre a invenção de modos de trabalhar em saúde mental
Porto Alegre
2007
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Ana Carolina Rios Simoni
A FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE NAS EQUIPES
MULTIPROFISSIONAIS:
Sobre a invenção de modos de trabalhar em saúde mental
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
Orientador(a):
Prof. Drª. Simone Moschen Rickes
Porto Alegre
2007
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AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, pela aposta
À minha mãe, pelo cuidado
Ao Pablo, pela presença
Aos meus irmãos Clarissa, Jonathas e Guilherme, pela alteridade
À Simone Lerner e Thoya Mosena, pelo compartilhamento
À Denéia Cemin, my real friend
Aos professores Eduardo Mendes Ribeiro, Maria Cristina Poli e Ricardo Burg Ceccim, pelas
perguntas
Aos residentes e preceptores do GHC, pela acolhida
Em especial, a Simone Moschen Rickes, pela hospitalidade
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O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: – “Pai, o senhor me leva junto,
nessa sua canoa?” Ele só retornou a olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me
mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai
entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual,
feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só
executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro
da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de
todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. (...) Não pojava em nenhuma das duas beiras,
nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. (...) Sou homem, depois desse
falimento? (...) Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem
também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo,
rio afora, rio adentro – o rio.
A terceira margem do rio
João Guimarães Rosa
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A FORMAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE NAS EQUIPES
MULTIPROFISSIONAIS:
Sobre a invenção de modos de trabalhar em saúde mental
RESUMO
A presente pesquisa buscou problematizar as possibilidades de produção de novos modos
de trabalhar em saúde mental a partir da criação de dispositivos multiprofissionais de formação
em saúde. Para tanto, elegeu-se como campo empírico os espaços de formação em serviço do
Programa de Residência Médica (ênfases em psiquiatria e em medicina da família e comunidade)
e do Programa de Residência Integrada em Saúde (ênfases em saúde mental e saúde da família e
comunidade) de uma instituição da rede pública de saúde da cidade de Porto Alegre. Os
participantes da pesquisa foram preceptores e residentes dos programas e ênfases mencionados. A
construção do objeto de investigação partiu, por um lado, de uma perspectiva histórico-crítica que
colocou em relação a constituição da família moderna e a inscrição da loucura no registro da
doença mental. E, por outro, da consideração das novas diretrizes, construídas a partir da
Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica brasileiras, que buscam inserir as práticas em saúde
mental nos espaços de atenção à família e à comunidade, como possibilidade de efetivar a
desinstitucionalização da atenção ao sofrimento psíquico. O estudo organizou-se em torno de três
eixos. No primeiro, construiu-se uma possível história dos modos de trabalhar em saúde mental.
Discutimos as relações entre os discursos científicos sobre saúde e os modos de vida
contemporâneos, a partir, principalmente, dos aportes de Michel Foucault sobre o biopoder e de
Hannah Arendt sobre a tomada do espaço público pela esfera social. Situamos o contexto de
reformas na saúde pública brasileira, bem como contextualizamos a implementação dos espaços
de formação multiprofissional na instituição pesquisada. Em seguida, passamos a uma reflexão
acerca do campo de experiência dos profissionais em formação. Nesse momento do trabalho, os
aportes de Freud, Lacan, Todorov e Derrida foram decisivos, inclusive, para a apresentação de
nosso método de pesquisa. Por fim, buscamos realizar uma discussão em torno da ética, que
incluiu a apresentação dos percursos singulares dos residentes, construídos a partir das suas
narrativas sobre as vivências nos espaços de formação. A construção desse terceiro eixo contou,
principalmente, com as contribuições do pensamento lacaniano a respeito da ética, articulado às
elaborações dos demais autores presentes no estudo. Nesse ponto, sublinhamos a dimensão
trágica da clínica em oposição aos saberes e práticas normativos e totalizadores para, por fim,
delinearmos desafios e possibilidades para a invenção de modos de trabalhar em saúde que
acolham a existência.
PALAVRAS-CHAVE
ética – saúde mental – educação – dispositivos multiprofissionais
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THE EDUCATION OF HEALTH PROFESSIONALS IN THE
MULTI-PROFESSIONAL DEVICES:
About the invention of ways to care mental health
ABSTRACT
The present study aims to question the possibilities of production of new ways to care mental
health, since the creation of multi-professional devices of education. The empiric field was the
education spaces of Medical Residentship Program (emphases in psychiatry and in medicine for
the family and the community) and of Health Integrated Residentship Program (emphases in
mental health and health of the family and community) of a public health institution in Porto
Alegre city. The participants of this research were mentors and residents of the mentioned
programs. The construction of the investigated object came from a historic-critical perspective
that approached the constitution of the modern family and the registration of the madness as
mental disease. It also came from the analyses of the new guidelines of Brazilian Sanitary and
Psychiatric Reform, which intends to insert the practices in mental health in the spaces of
attention to the family and the community, as a possibility to construct the deinstitutionalization
of the mental health care. This study was organized around three directions. First, we constructed
the history of the manners to care mental health. We discussed the relationship between scientific
discourses about health and the current way of life regarding Michel Foucault's contributions
about the bio-power and Hannah Arendt’s contributions about the differences between public
space and social sphere. We analyzed the reforms in Brazilian public health, as well as, the
implementation of the multi-professional devices of education in this institution. After, we
reflected about the field of the professionals' experience during residentship. At this moment, the
contributions of Freud, Lacan, Todorov and Derrida were very important, as well as, for the
presentation of our research method. Finally, we discussed about the ethics, which included the
presentation of the residents' singular courses, from the narratives about their experience. This
third direction was based on the contributions of Lacan’s thought about ethics, articulated to the
other authors presented in this study. And then, we underlined the tragic dimension of the clinic,
in opposition to the normative knowledge and practices, aiming to draw challenges and
possibilities to invention of ways to care mental health that holds the existence.
KEYWORDS
ethics – mental health – education – multi-professional devices
6
SUMÁRIO
ÍNDICE DE SIGLAS 9
NOTA DE ABERTURA 10
1. UMA HISTÓRIA DOS SABERES E PRÁTICAS EM SAÚDE 13
1.1 da vida política à política da vida 15
1.2 a atenção em saúde se reforma 29
1.3 novas perspectivas para a formação em saúde 41
1.3.1 da criação de um espaço multiprofissional de formação 46
1.3.2 a história narrada por seus atores: montando cenários de formação 50
2. A EXPERIÊNCIA 77
2.1 experiência, alteridade e apropriação 77
2.2 de como o outro se registra 83
2.2.1 um encontro paradigmático 83
2.2.2 do encontro como método 88
2.3 narrando uma experiência: das perguntas que guiaram o percurso pelo campo 94
3. EM TORNO DA ÉTICA 106
3.1 a ética e o bem 107
3.2 a ética e o trágico 111
3.3 personagens e suas histórias: a formação em cena 116
3.3.1 o filósofo 119
3.3.2 o arquiteto 128
3.3.3 a alquimista 141
3.3.4 o maestro 151
3.3.5 a astronauta 163
3.3.6 o artista de rua 173
4. PERCURSOS REVISITADOS 185
4.1 um olhar para a integralidade: a astronauta e o lúdico 189
4.2 ensaiando a resolutividade: o filósofo e o tempo 192
4.3 construindo a rede de atenção e o laço terapêutico: o arquiteto e a cidade 195
4.4 efeitos de uma presença na clínica e na formação: a alquimista 199
7
4.5 desconstruindo o lugar de especialista: o maestro 203
4.6 nos limites da clínica: o artista de rua 207
5. PALAVRAS FINAIS 215
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 218
6.1 legislação 224
ANEXO 226
8
ÍNDICE DE SIGLAS
CAPS ad – Centro de Atenção Psicossocial Álcool Drogas
CAPS adulto – Centro de Atenção Psicossocial para adultos
CECOBI – Centro Comunitário do Bairro Ipiranga
CID – Código Internacional de Doenças
CNRMS – Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde
COREME – Comissão Regional de Residência Médica
CRP/07 – Conselho Regional de Psicologia 7
a
região
GEP – Gerência de Ensino e Pesquisa do GHC
GHC – Grupo Hospitalar Conceição
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
NAPS – Núcleo de Atenção Psicossocial
OMS – Organização Mundial da Saúde
OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde
PAM 3 – Posto de Atendimento Médico n°3 – Plantão de Saúde Mental
PMPA – Prefeitura Municipal de Porto Alegre
PSF – Programa Saúde da Família
RIS – Residência Integrada em Saúde
R1 – residente de primeiro ano
R2 – residente de Segundo ano
RM – Residência Médica
SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SES – Secretaria Estadual da Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
TO – Terapeuta Ocupacional
UBS – Unidade Básica de Saúde
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
VD – Visita Domiciliar
9
NOTA DE ABERTURA
Uma pergunta só pode emergir de uma vivência. Nesse caso, os interrogantes que levaram
à realização desta pesquisa nasceram, como não poderia deixar de ser, de um percurso vivido. É
difícil situar um ponto de partida, mas os rastros e restos de meu percurso foram a matéria prima
dessa escrita. Primeiramente, me refiro à vivência de habitar um espaço-tempo em que os
sentidos da vida são buscados numa racionalidade que a existência através da lente bipolar
normal-patológico, riscando uma linha de continuidade entre estes pólos e classificando modos
de ser, de sentir, de se relacionar. Razão que não é mais privilégio dos discursos científicos, mas
que parece dar formas, contornos aos modos de vida em nossos dias, aproximando lugares
longínquos, identificando culturas distintas. Pois é com espanto e estranhamento que me conduzo
nesse mundo, em que os nomes próprios importam menos que as nomenclaturas diagnósticas.
Acrescenta-se a isso o fato de eu ter escolhido como prática profissional a escuta do sofrimento,
das inquietações, das dores dos outros. Prática que me coloca, diariamente, diante do impasse de
ocupar um lugar suposto de saber sobre o bem viver, a saúde, a felicidade e, ao mesmo tempo,
saber das impossibilidades inerentes a essa posição.
Recorrendo aos rastros de meu percurso, lembrei do tempo em que iniciei minha
formação clínica em psicologia, realizando estágio num dos serviços de atenção a sujeitos em
grave sofrimento psíquico da rede pública de Porto Alegre. Ali me deparei com os primeiros
dilemas do trabalho em saúde mental. A referida instituição passava por uma reestruturação,
buscando adequar seu funcionamento às diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Entrava o século XXI
e a nova Lei nacional que regulamentava a atenção em saúde mental seria aprovada no ano
seguinte. E embora, no Rio Grande do Sul, uma lei dessa natureza existisse algum tempo,
tal serviço organizava-se ainda a partir de uma lógica centrada no acompanhamento de patologias
e muito dependente da figura do psiquiatra como condutor dos tratamentos. A equipe ocupava-se
então da tarefa de fazer de um serviço, eminentemente, ambulatorial, um Centro de Atenção
Psicossocial. Vale sublinhar o termo tarefa, que, não raras vezes, a missão de construir um
CAPS operava no campo do dever e não encontrava ressonâncias no desejo dos profissionais o
que era possível de ser percebido nas discussões das reuniões de equipe. Falava-se da necessidade
de se criar oficinas terapêuticas e espaços de convivência para os usuários do serviço, porém de
uma forma protocolar: “devemos fazer”, “a prefeitura exige que façamos”, e quase nada de
10
“queremos fazer”. Tratava-se de colocar em prática uma norma vertical, da qual poucos
profissionais da equipe estavam apropriados.
O primeiro grupo de convivência do serviço foi construído pelos estagiários. Tentávamos
construir com os pacientes atividades, que lhes interessassem, pelo espaço da cidade. Lembro-me
que um dia, eles com muito custo, que escolher não lhes era muito fácil demonstraram a
vontade de ir assistir um filme na Usina do Gasômetro: Hans Staden. A primeira colocação das
supervisoras foi a de que devíamos assisti-lo antes para se certificar se era ou não adequado que
os pacientes o vissem. Nem lembro porque, mas não o fizemos. Talvez porque havia sido muito
difícil construir uma escolha que partisse deles e, diante de sua emergência, sentimos que não
podíamos recuar. Fomos então com o grupo de pacientes ao cinema da Usina. Hans Staden conta
a história de um alemão que se perde na costa brasileira na época colonial. Passa maus bocados
nas mãos dos índios até que logra um espaço para viver entre eles. A língua falada no filme era o
tupi guarani e o figurino dos personagens era a nudez. Diante de tal estranheza, nos pusemos
muito atentos, mais aos pacientes que ao próprio filme. Porém, tudo ocorreu de forma tranqüila e,
após essa experiência “inaugural”, seguimos trabalhando naquele espaço saídas possíveis pela
cidade com os usuários do serviço.
Se, nessa vivência, a língua estrangeira, a nudez, a estranheza bateram à porta,
poderíamos também contar momentos em que uma alteridade de outra ordem pediu entrada.
Atualmente, trabalho na Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, no serviço de entrevistas iniciais espaço em que são acolhidos sujeitos que
pedem atendimento. Muitos chegam com formulários de referência e contra-referência,
preenchidos por profissionais da rede pública de saúde, sem saber porque vieram. Referem que
“o médico do posto mandou”, pedem medicação, pedem “palestras” e se apresentam a partir de
seus diagnósticos: “eu sou esquizofrênico”, “eu sou bipolar”, “meu filho é hiper-ativo”. Muitos
trazem consigo o registro de seu atendimento no único serviço de emergência em saúde mental de
Porto Alegre, referindo que foram medicados e encaminhados. Estes, não raras vezes,
apresentam-se à deriva, quase sem podem narrar o que lhes passou. Outras vezes, aqueles que
chegam contam sobre sua maratona pela rede de saúde, apontando todos os lugares pelos quais
passaram em busca de uma escuta. Por outro lado, poucos são os profissionais que fazem contato
conosco para falar sobre algum encaminhamento. E muito poucos são aqueles que conhecem o
11
espaço da Clínica. Contradições de uma rede de atenção em saúde destramada, frouxa, não
efetiva.
Vivências como estas constituíram nosso percurso e determinaram a escolha por realizar
uma pesquisa que colocasse questões para o trabalho na atenção ao sofrimento psíquico. Desse
modo, poderíamos dizer que a interrogação que norteia esse estudo nos acompanha algum
tempo e pergunta pelas possibilidades de produção de novos modos de trabalhar em saúde mental
que acolham a existência. É preciso sublinhar que essa não é, de modo algum, uma questão
neutra. Nossa pesquisa em torno da temática da formação multiprofissional em saúde parte da
idéia de que é preciso reinventar saberes e fazeres nesse campo. E quando dizemos que algo se
inventa, quer dizer que se inventa em relação a alguma coisa que está. Uma invenção introduz
um furo, um sulco, uma ruptura numa superfície constituída. Foi com intuito de pensar com o que
se tratava de romper, que superfície se tratava de furar, que trabalhamos, no primeiro capítulo, na
construção de uma possível história dos modos de organização e concepção do trabalho em saúde
mental. E que, em seguida, apostamos na criação dos dispositivos multiprofissionais de formação
em saúde como o que teria potência de criar um campo de experiências capaz de operar essa
espécie de ruptura.
Para pensar as condições desse rompimento e das possibilidades de produção do novo no
campo da atenção em saúde mental, no segundo capítulo, discutimos o que está em jogo em uma
experiência e contamos sobre nossos primeiros movimentos de inserção nos espaços de formação
dos residentes. Na mesma direção, no terceiro capítulo, problematizamos o tema da ética no
universo da clínica e trouxemos a experiência dos residentes em seus percursos de formação. Das
histórias singulares retiramos algumas conseqüências de conjunto, as quais são apresentadas no
quarto capítulo. Porém vale a pena mergulhar pelas histórias dos personagens (profissionais em
formação) [cf. 3.3], seus percalços, sobressaltos, dilemas e invenções. Foi o encontro com cada
um deles que abriu possibilidades para a travessia que lhes conto a partir de agora.
12
1. UMA HISTÓRIA DOS SABERES E PRÁTICAS EM SAÚDE MENTAL
Neste capítulo, passaremos por uma possível história dos modos de organização e de
concepção do trabalho em saúde mental. Esta é uma forma de começar. Não pelo início, pois não
pensamos com aqueles que fazem da história uma linha evolutiva, que permite resgatar o passado
ou alguma origem. “A história não é o passado. A história é o passado na medida em que é
historiado no presente” (LACAN [1953-1954] 1986, p.21). O que nos faz eleger esta forma de
começo diz respeito a uma aposta no historiar como recurso que potencializa e recoloca
questionamentos, produzindo uma outra condição de pensar-experimentar o presente. Trata-se
então de construir um passado a partir do presente e de retirar, dessa construção, suas
conseqüências. Construir implica também realizar escolhas. É assim que, ao trazermos para
discussão uma história do pensamento e das práticas em saúde mental, tentaremos dizer de nossas
escolhas, retirando delas seus efeitos para a temática que iremos abordar. De nossa primeira
eleição falamos. Trata-se de construir uma história que nos permita interrogar o presente, que
nos permita colocar questões para os modos de concepção e organização do trabalho em saúde
mental na atualidade. Para tanto, escolhemos ainda a companhia de alguns autores que nos
sinalizaram possibilidades.
A problematização de Michel Foucault (1988) sobre o biopoder, na qual ele aborda os
efeitos de subjetivação produzidos pelos modos modernos de tratar da saúde das populações é
uma dessas possibilidades. Assim como também o é, a analítica de Hannah Arendt em relação à
constituição da esfera social na modernidade e a elevação da vida ao estatuto de bem supremo do
homem moderno. Partindo destas duas entradas principais o biopoder e a tomada do espaço
público pela esfera social trataremos de encaminhar a discussão para um universo mais
específico. Um universo que colocará em relação a constituição da família moderna e a inscrição
da experiência da loucura no campo da doença mental. Aqui, serão de grande interesse a
construção foucaultiana em torno da História da Loucura na Idade Clássica, bem como a
discussão de Jurandir Freire Costa acerca das condições de emergência de uma progressiva
normatização da vida familiar moderna.
Seguindo nossa reflexão histórica, traremos elementos acerca das primeiras aparições de
políticas de formação em saúde, articulando-as à idéia de que suas condições de emergência
correspondem às mesmas que operaram no campo da organização familiar moderna e na
13
construção da categoria da doença mental. Nessa discussão, não iremos até as últimas
conseqüências, deixando-a como abertura para a ela voltarmos adiante. A discussão histórica nos
levará ainda aos movimentos mais recentes do campo dos saberes e práticas em saúde – momento
em que se farão visíveis questionamentos acerca dos modelos de atenção vigentes. Nesse ponto,
colocaremos em relação saúde comunitária e saúde mental como espaços de trabalho em saúde
que se ocuparam, respectivamente, da saúde da família e da doença mental no século XX.
Buscaremos mapear os impasses das Reformas Sanitária e Psiquiátrica brasileiras, retirando,
por fim, das novas propostas de formação em saúde possibilidades de encaminhamento dos
mesmos.
Iniciaremos aqui a apresentação de operadores conceituais importantes de nossa pesquisa,
que seguirão produzindo outras formas de se fazer texto, mas que encontram, neste primeiro
capítulo, espaço privilegiado de elaboração.
14
1.1 DA VIDA POLÍTICA À POLÍTICA DA VIDA
No intuito de fazer uma história dos diferentes modos de subjetivação em nossa cultura,
Foucault (1988) tomou as relações entre saber e poder como objeto de investigação, nos legando,
entre outras questões, o conceito de biopoder. Trata-se de uma forma, eminentemente,
moderna de poder que se inaugura com a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie
humana na ordem do saber científico. Se antes o poder se exercia através da figura do soberano
que decidia sobre dar a morte e deixar viver, no biopoder se trataria de uma forma de gestão da
vida, que passaria por fazer viver e deixar morrer.
não se espera mais o imperador dos pobres, nem o reino dos últimos dias, nem mesmo o
restabelecimento apenas das justiças que se crêem ancestrais; o que é reivindicado e serve de objeto é a
vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas
virtualidades, a plenitude do possível (FOUCAULT, 1988, p.136).
Esse biopoder teria duas formas principais de incidência: as chamadas práticas
disciplinares, tecnologias do corpo, “no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na
extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade” (ibid, p. 131); e a
gestão política da espécie humana a partir de categorias científicas, centradas no “corpo espécie,
no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos”
(idem). As disciplinas do corpo estariam presentes na moderna divisão do trabalho, na
intimização da vida familiar e em instituições como a escola e o exército, por exemplo. a
gestão política, alicerçada nos saberes científicos, se situaria nas regulações da população pelo
controle da natalidade, mortalidade, dos níveis de saúde e etc. Estas duas formas de apresentação
do biopoder, como modos de gerir a vida, teriam reorganizado todo o espaço da existência.
Um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos,
reguladores e corretivos. não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir
os vivos em um domínio de valor e utilidade. (...) Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de
uma tecnologia de poder centrada na vida (ibid, p. 135).
Essa sociedade que se inaugura com o advento da modernidade também será objeto de
reflexão de Hannah Arendt ([1958] 2005) no livro A Condição Humana. Longe de produzir
qualquer superposição entre uma elaboração teórica e outra, o que queremos é visibilizar um
15
ponto de interlocução que nos pareceu bastante interessante entre Arendt e Foucault. Trata-se,
justamente, do ponto em que ambos sublinham a entrada de questões relacionadas à vida, no seu
sentido biológico, no domínio da política. Foucault nos dirá: “o homem, durante milênios,
permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência
política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”
(ibid, p. 134). Em Arendt, por outro lado, encontramos a idéia de que a sociedade moderna
desloca para o público a organização de atividades que dizem respeito à sobrevivência da espécie,
o que até então estaria restrito à privatividade da vida familiar. Como exemplo, temos o
deslocamento do labor, que na Antigüidade era a atividade relacionada às necessidades vitais e,
nas sociedades industriais, ganhou lugar na moderna divisão do trabalho em torno da produção
em massa. Essa migração do que era específico do privado para o espaço público acabou por
produzir a emergência de uma esfera da vida que não é “nem privada nem pública no sentido
restrito do termo”: o espaço social (ARENDT, [1958] 2005, p.37).
A esfera privada da família era o palco no qual as necessidades da vida, da sobrevivência individual e da
continuidade da espécie eram atendidas e garantidas. (...) Desde o advento da sociedade, desde a admissão
das atividades caseiras e da economia doméstica à esfera pública, a nova esfera tem se caracterizado
principalmente por uma irresistível tendência de crescer, de devorar as esferas mais antigas do político e
do privado, bem como a esfera mais recente da intimidade (ibid, p. 56).
Para a autora, o público diz respeito a um espaço onde o que se diz e se faz pode ser visto
e ouvido por todos. Na Antigüidade greco-romana, a esfera pública em si, a polis, seria o lugar
onde cada homem devia distinguir-se dos outros, através de seus feitos e realizações singulares.
Ao mesmo tempo em que o espaço público seria o lugar da instauração das diferenças, seria
também nele que o compartilhamento de uma realidade, a criação de um mundo comum se faria.
“Os homens ingressavam na esfera pública por desejarem que algo seu, ou algo que tinham em
comum com os outros, ganhasse permanência para além de suas vidas biológicas” (ibid, p. 65). Já
no mundo moderno, a esfera social teria conquistado o espaço público e a distinção e a diferença
ter-se-iam reduzido a questões privadas do indivíduo. Hannah Arendt dirá que a esfera social
constitui-se como uma grande família, permeada por variadas regras, tendentes a normalizar os
seus membros, a fazê-los comportarem-se como iguais.
Esse deslocamento do campo da ação, como modo de diferenciar-se no espaço público,
para o terreno do comportamento e da busca de uma igualdade no espaço social teria ainda outras
16
inflexões. As sociedades modernas teriam começado a operar com a premissa de que “a vida e
não o mundo comum é o bem supremo do homem” (ibid, p.332). Nesse sentido, trata-se de
comportar-se de forma a preservar, aperfeiçoar, alongar a vida biológica; e não mais de agir para
produzir um mundo comum e inscrever uma existência simbólica que transcenda a duração da
mesma. Arendt coloca que sem essa busca de uma imortalidade simbólica, pela produção de um
mundo comum que permaneça e se transmita, não há espaço público que se sustente.
Na verdade, os feitos perderão cada vez mais a sua capacidade de opor-se à maré do comportamento, e os
eventos perderão cada vez mais a sua importância, isto é, a sua capacidade de iluminar o tempo histórico.
A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo, e sim o ideal político, já agora
não mais secreto, de uma sociedade que, inteiramente submetida na rotina do cotidiano, aceita
pacificamente a concepção científica como inerente a sua própria existência (ARENDT, [1958] 2005, p.
53).
Na esfera social de Arendt e na sociedade disciplinar de Foucault, guardadas as
especificidades de suas elaborações, encontramos elementos importantes. Seria característica da
modernidade uma tendência à normalização dos modos de existir, sustentada na premissa da vida
como bem maior da humanidade (ARENDT, [1958] 2005). Desde então é o saber científico que
vem gerir a vida na cidade, instaurando uma racionalidade política biopoder
1
que incide
1
A questão do biopoder é trabalhada por Foucault (1988) em A Vontade de Saber, volume 1 da obra História da
Sexualidade. É também neste livro que o autor trava um debate intenso com a psicanálise, a partir do que ele chamou
de dispositivo da sexualidade. Nesse debate, Foucault formulou o conceito de biopoder, pensando a psicanálise
como um de seus possíveis e inscrevendo-a no registro moral. Parece-nos importante colocar algumas questões a
esse respeito nesse momento, que fazemos uso do conceito de biopoder neste ponto do trabalho e, mais adiante,
nos serviremos das contribuições psicanalíticas (principalmente de Freud e Lacan) acerca da ética. Em A Vontade de
Saber, Foucault se propõe a realizar uma arqueologia da psicanálise. A arqueologia é uma forma de história que
pergunta pelas condições de possibilidade do surgimento de um certo campo de saber ou de um certo discurso de
verdade. A psicanálise teria encontrado as condições para sua emergência numa época em que haveria uma
proliferação de discursos sobre o sujeito e sua sexualidade. Foucault busca desconstruir a “hipótese repressiva sobre
o sexo”, ou seja, a idéia de que teria havido uma forte repressão da sexualidade a partir do séc. XVII e de que a
psicanálise, através da escuta da sexualidade, teria libertado o sujeito desse poder repressor. Foucault irá dizer que
desde a Idade Média, o cristianismo, mais do que promover uma repressão da sexualidade, teria incitado a
proliferação dos discursos sobre o si mesmo, a sexualidade e os desejos mais íntimos através do dispositivo da
confissão. O dispositivo psicanalítico, para o autor, seria então um desdobramento do dispositivo da confissão e,
desse modo, a psicanálise faria parte do rol de discursos modernos, que colaram a verdade do sujeito à verdade sobre
sua sexualidade, sobre seu desejo. Por sua vez, a sexualidade seria o principal instrumento de expansão do biopoder,
na medida em que se insere, simultaneamente, em dois registros: “dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles
constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todo
um micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções
que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e
à vida da espécie” (FOUCAULT, 1988, p.137). É assim que Foucault, nesse momento de sua produção, inscreve a
psicanálise no campo das políticas normativas da vida, do biopoder. Dosse (1993-1994), em História do
Estruturalismo, coloca que o confronto entre o pensamento foucaultiano e o de Lacan, presente em A Vontade de
Saber, diria respeito a uma busca de Foucault de “emancipar-se da psicanálise e problematizar a identidade que ela
estabelece entre a sexualidade e o desejo” (DOSSE, 1993-1994, p. 378). Essa problematização seria menos uma
17
individualmente, ao mesmo tempo em que produz intervenções em todo o corpo social
(FOUCAULT, 1988). Nesse sentido, nos modos de vida nascentes na modernidade alteram-se as
condições de compartilhamento e de inscrição de diferenças entre os sujeitos. Interessa-nos
pensar a incidência destas questões, especificamente, no que se refere à configuração da vida
familiar e da experiência da loucura na modernidade, apostando numa possível relação entre
ambas e na relevância desta para a constituição do campo da atenção em saúde mental.
Jurandir Freire Costa (2004) refere que, no século XIX, a insipiente medicina social
brasileira produziu discursos sobre a saúde e o bem viver, extremamente, ligados a um discurso
sobre a loucura, que contribuíram para importantes transformações nos modos de vida da época.
É também na segunda metade do século XIX que se a construção do primeiro manicômio no
Brasil, seguida da constituição da psiquiatria como uma especialidade médica autônoma no início
do século XX. Recorrendo ao pensamento de Michel Foucault, quando, em sua obra História da
Loucura na Idade Clássica, ele problematiza as condições de possibilidade do surgimento do
discurso médico sobre a loucura na Europa, também encontramos referências à normatização do
universo familiar. Desse modo, passaremos agora a uma discussão acerca dos efeitos da
emergência da esfera social (ARENDT, [1958] 2005) e de uma gestão científica da vida
(FOUCAULT, 1988) no universo familiar e no campo da loucura.
Segundo Foucault (1990), na Idade Clássica, os loucos compartilhavam a mesma morada
de outras figuras da desrazão. Pobres, ociosos, doentes venéreos, criminosos, libertinos
habitavam os mesmos locais que, desde a Idade Média até o fim das Cruzadas, haviam sido
reservados para os leprosos. Viviam confinados no que teria sido uma invenção institucional
explicação de Lacan do que uma explicação com Lacan. Foucault, para a autora, seria muito sensível à ascese
lacaniana, considerando-a mais como paralela do que alternativa a sua. Além disso, ele estaria ao lado de Lacan na
medida em que a psicanálise fundasse uma ética, assim como em sua preocupação de desmedicalizar a psicanálise.
Por outro lado, o esforço de Lacan foi mesmo o de pensar a psicanálise como uma ética, combatendo o que ele
chamou de o ideal da autenticidade, o ideal da genitalização do desejo e o ideal de não-dependência. (Sobre isso ver
LACAN, J. [1959-1960] O Seminário Livro 7
A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.) De nossa
parte, optamos por trabalhar com os dois autores sem buscar resolver o impasse teórico que isso implica, mas sim
mantendo vivas no texto sua heterogeneidade e suas tensas proximidades. Tanto a noção de biopoder de Foucault
quanto o que Lacan pôde enunciar, num retorno a Freud, sobre a questão da ética são muito caros às questões que
tentaremos desdobrar nesse trabalho. No terceiro capítulo, abordaremos a leitura lacaniana de Freud e suas
conseqüências no que diz respeito à ética. De qualquer forma, adiantamos algo: trata-se de uma leitura que inscreve a
psicanálise no campo de uma ética trágica, distanciando-a do âmbito normativo. Nesse sentido, também essa
psicanálise colocará em questão as políticas normalizadoras de gestão da vida. (A respeito da relação entre o
pensamento foucaultiano e a psicanálise, consultar BIRMAN, J. Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a
Psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000; ERIBON, O. Michel Foucault 1926 –1984. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990; MEZAN, R. Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanálise. In: Recordar
Foucault. Ribeiro, R. J. Org. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985).
18
própria do século XVII: espaço de exclusão, que se configurou por conta de questões econômicas
e de precaução social. Nesse momento, a loucura foi percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade de trabalhar e de adaptar-se ao grupo, começando a ser assimilada aos problemas da
cidade. Para Foucault, a casa de confinamento na época clássica foi símbolo de uma tentativa de
edificar uma cidade perfeita, sustentada pela idéia burguesa de que a virtude da população
também é questão de Estado. Trata-se da insipiente emergência daquilo que Arendt ([1958]
2005) chamou de esfera social, onde as questões privadas passam a ser de interesse da cidade.
Cidade que, em pleno desenvolvimento industrial, começava a colocar no seu centro uma
racionalidade fundada no trabalho e no progresso econômico. Nesse sentido, o confinamento
clássico, sustentou-se numa visão moral: limpar o espaço social da ociosidade considerada
responsável por todos os males.
No Renascimentotempo que podemos situar como de passagem entre a vida medieval e
o que Foucault chama de época clássica a morada dos alienados também desenhava um fora do
espaço da cidade. Conta-se que estes eram embarcados nas “naus dos loucos” para viver uma
existência errante. Eram prisioneiros em meio a mais livre das rotas, passageiros por excelência.
Não se sabia de onde vinham, onde iriam desembarcar e tampouco quando. Habitavam um entre
margens, nas quais não podiam aportar, um entre terras, às quais não podiam pertencer. Viviam
sobre uma superfície flutuante, que lhes podia levar a mil caminhos. No entanto, trata-se de
uma experiência distinta da experiência clássica. Foucault (1990) refere que é impossível precisar
seu significado, porém lança a hipótese de que talvez, em tais viagens, se tratasse de buscar a
purificação, e que o simbolismo da água e a crença no destino provavelmente ocupassem lugar
importante nesse intento. Além disso, nesse tempo, a experiência da loucura teria exercido uma
atração desmedida sobre o homem, ao contrário do que se deu no classicismo, quando ela perde
seu valor.
A loucura, nessa época, tinha a ver com os estranhos caminhos do saber, pois o alienado
era tido como inocente possuidor de uma força primitiva de revelação. Algo temível na medida
em que era revelador da desordem que escapava ao homem razoável. A personagem do louco
teria ocupado o centro do teatro renascentista, recordando a cada um sua verdade: explicando o
amor aos apaixonados, a verdade da vida aos jovens, a medíocre realidade das coisas aos
orgulhosos. Enunciando os defeitos e os aspectos ridículos do ser humano. Desse modo, a
19
experiência da loucura, na Renascença, teria sido vivida como a força viva e secreta da
racionalidade, como momento essencial através do qual a razão se manifestava e triunfava.
no classicismo, as figuras da desrazão ganharam estatuto de sujeito moral. Pois se a
Idade Média havia santificado a miséria e feito da caridade aos pobres, signo da virtude e
salvação espiritual para os ricos, e se havia ligado a loucura às grandes potências trágicas do
mundo; o classicismo, por sua vez, teria dessacralizado e desmistificado estas figuras, passando a
vê-las como perturbadoras da ordem social. Nasce então o hospital geral, como espaço de
encerro. Estrutura semi-jurídica e administrativa, que decidia, julgava e executava. Lugar de
corrigir e não de curar. Dispositivo de reforma moral, na medida em que buscava a adesão dos
internados a uma verdade universal (FOUCAULT, 1990). É assim que a experiência da loucura
foi confinada, desenhando um fora da cidade distinto daquele produzido na época renascentista.
Nesta época, o que devia estar fora possuía valor de verdade e despertava atração e medo, desde
um lugar fronteiriço que afetava a vida no interior da cidade. No classicismo, por outro lado, o
fora que se produz para a loucura é circunscrito, fechado, pelo qual a cidade não quer se deixar
afetar. É lugar de deposição e de correção daquilo que não tem serventia.
Machado (2000: p. 17), a esse respeito nos diz que Foucault, em História da Loucura na
Idade Clássica, coloca que
o grande enclausuramento clássico constitui, produz uma população que para nossos olhos modernos,
medicalizados, antropologizados, humanizados, aparece como heterogênea, mas que para a percepção da
época é perfeitamente coerente, porque agrupa o que aparece como outro, como diferente, como
estrangeiro aos olhos da razão e da moral e classifica como desrazão, desatino, o que pretende
desclassificar.
Na época clássica, acabou-se então por produzir uma exterioridade para a região
homogênea e estrangeira da desrazão que, mesmo em posição marginal, circunscrevia um núcleo
excluído dentro do espaço da cidade.
Século XVIII adentro, inicia-se o que Foucault (1990) chamou de individualização da
loucura. Uma operação que teria recortado da região homogênea da desrazão, habitada por tantos
rostos indiferenciados, a figura do doente mental. Nesse momento, o doente mental aparece como
inassimilável ao conjunto das disciplinas que compõe a sociedade e caberá ao médico encontrar
um modo de enquadrá-lo. Foucault (1990) refere que Pinel foi investido de um extraordinário
poder moral: o de operar a separação entre os loucos e os demais e entre si mesmos. Essa
20
separação teria feito aparecer, para o conhecimento discursivo, a loucura como uma unidade, com
sua verdade objetiva, que não se confundia mais com as figuras jurídicas do crime, da
libertinagem, da ociosidade. Foi assim que a loucura foi ganhando um estatuto próprio, passando
a demandar um espaço de confinamento puro. O internamento e o pensamento médico, que,
durante muito tempo, haviam estado alheios um ao outro, se encontram então para fazer coincidir
o sentido da loucura com a noção de enfermidade. Surge a psiquiatria positivista, propondo um
tratamento humano para os alienados. E, nesse furor humanista, a experiência da loucura ganha
casa própria: o hospital, universo do discurso da razão médica. Trata-se de calar o que até
então se concebeu como desrazão para escutar, dentro de um enquadre médico, as vozes da
doença. É nesse sentido que Foucault situa o gesto de Pinel como o que libera a loucura de suas
correntes para confiná-la em sua evidência objetiva, fazendo do doente mental uma das figuras de
objetivação do homem.
Este movimento que colocou o homem no lugar de objeto de um conhecimento científico
não está isolado, mas tecido a outros quadrantes da produção humana. Para Figueiredo (1997),
em meados do século XVII, inicia-se a produção de um lugar duplo para o homem: o de sujeito e
objeto do conhecimento e da ação. Ele nos diz que:
[...] a partir do século XVII pode-se observar claramente uma redefinição das relações sujeito/objeto, seja
no plano da ação, seja no do conhecimento. A razão contemplativa, orientada desinteressadamente para a
verdade e concebida sob o modo receptivo de uma apreensão empírica ou racional da essência das coisas,
cede lugar, progressivamente, à razão e à ação instrumental. (FIGUEIREDO, 1997: p. 13).
Nas palavras de Elias (1994), trata-se da produção de um novo relevo para a
experiência humana que ganhou altitude no pensamento cartesiano, quando os homens passaram
a se perceber como aqueles que “têm condições de saber que sabem; são capazes de pensar sobre
seu próprio pensamento e de se observar observando.” Nesse sentido, as reflexões de Descartes
expressariam a experiência de alguém que começou a se perceber como pensando e observando
sem depender das autoridades, mas apenas de si mesmo, e que se percebia como parte daquilo
que observava, como um organismo entre outros. A dificuldade desse pensamento, segundo
Elias, estaria na tomada dessas diferentes percepções como sujeito e objeto do conhecimento
como se fossem diferentes componentes do si mesmo. Ou seja, na tomada das posições de sujeito
e objeto como entidades separadas, como dois modos de ser. Na condição de sujeito, se
experimentava o mundo como ser livre e desprendido das coisas inanimadas e das coisas
21
humanas. Na condição de objeto, o ser humano fazia parte de um processo natural, parte dos
fenômenos físicos.
Esse ato de desprendimento ao observar e pensar condensou-se na idéia de um desprendimento universal
do indivíduo; e a função da experiência, do pensar e observar, passível de ser percebida de um nível
superior de auto-consciência como uma função da totalidade do ser humano, apresentou-se pela primeira
vez, sob forma reificada, como um componente do ser humano semelhante ao coração, ao estômago, ou ao
cérebro, uma espécie de substância insubstancial no ser humano, enquanto o ato de pensar se condensou
na idéia de uma “inteligência”, uma “razão” ou, no linguajar antiquado, um “espírito”. Os dois aspectos do
duplo papel das pessoas em relação a si mesmas e ao mundo em geral como conhecedoras de si e
conhecidas por si, como experimentando a si e aos outros e sendo experimentadas por si e pelos outros,
como desligadas do mundo na contemplação e indissociavelmente emaranhadas nos acontecimentos do
mundo –, esses dois aspectos foram tão hipostasiados nos hábitos do pensamento e do discurso que se
afiguraram objetos diferentes, como “corpo” e “mente”, um dos quais se abrigava no interior do outro
como o caroço numa ameixa. (ELIAS, 1994, p. 91).
É nesse sentido que Foucault (1990) refere que a experiência moral da desrazão serviu
como base e condição de possibilidade para o surgimento do conhecimento científico da
enfermidade mental. Para ele, o saber médico da loucura se sustenta sobre um solo constituído
dessa experiência anterior. Foi preciso que o homem se pensasse como capaz de um
conhecimento racional sobre o próprio homem, e excluísse aqueles que não estivessem se
valendo do uso dessa suposta capacidade, para posteriormente dar conta dessa diferença via
discurso científico. Um discurso que lançou um novo olhar sob o que poderia haver de não
racional na experiência humana. Olhar, pautado por uma racionalidade científica, que localizou
no indivíduo e não mais no espaço social os motivos para o internamento. É para curar o sujeito
de sua doença e não mais para curar a doença da cidade que o hospital como asilo se
justifica. Assim, enquanto a desrazão constituiu-se como figura de exclusão, a loucura foi
capturada como objeto de conhecimento da ciência.
Desse modo, na produção do hospital enquanto espaço de confinamento com objetivo
médico, a modernidade reafirmou a inserção de um ser psicológico, com sua verdade particular,
no centro da experiência humana. Um ser psicológico que, como doente mental, estava
impossibilitado de acessar sua verdade própria, a qual lhe seria devolvida pela ação médica que
iria curá-lo. Foi assim que o discurso psiquiátrico sobre a loucura inscreveu um fora no interior
mesmo do indivíduo, na medida que haveria nele uma verdade interior que lhe seria alheia.
Porém esse fora, ao ser objetivado pelo olhar médico, perde sua potência de colocar a existência
como enigma.
22
É assim que, no século XIX, a doença mental é pensada como conflito psicológico,
relativa ao indivíduo, e que tem sua origem no seio da família. Daí em diante, a loucura passa a
ser considerada assunto privado. Migra do lugar que obtinha na época clássica, momento em que
era tomada como algo que dizia respeito à ordem social, ao espaço da cidade, para um “porto
seguro”: o doce lar da família burguesa. Quanto a esse deslocamento nos diz Foucault (1990: p.
145-6):
En el siglo XIX, el conflicto del individuo con su familia se convertirá en asunto privado, y tomará
entonces aparencia de problema psicológico. Durante todo el periodo de internamiento, ha sido, por el
contrario, cuestión que tocaba al orden público; ponía en causa una especie de estatuto moral universal;
toda la ciudad estaba interesada en el rigor de la estructura familiar. Quien atentara contra ella caía en el
mundo de la sinrazón. Y, al convertirse así en forma principal de la sensibilidad hacia la sinrazón, la
familia podrá constituirse un día el lugar de los conflictos de donde nacen las diversas formas de la locura.
Nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade, na medida em que individualiza a
loucura, suspende a reflexão sobre a experiência humana da desmedida em sua relação com o
laço social. Algo que podemos encontrar na relação entre cidade e desrazão presente no
Renascimento, bem como na Antigüidade grega. E que foi desaparecendo à medida que emerge
uma esfera social. Assim, o homem, então indivíduo e ser social, passa a sujeito e objeto do
conhecimento científico. Temos a idéia de indivíduo e sociedade como entidades separadas.
Elias (1994: p. 106) nos diz que nesse movimento de individualização crescente, que encontra
seu solo propício na modernidade, o indivíduo passa a perceber-se como um eu interior isolado
do “mundo lá fora” – a sociedade – como que por um “muro invisível”.
Costa (2004), em Ordem Médica e Norma Familiar, ao fazer uma história do
conhecimento científico sobre a saúde da família no Brasil desde o período colonial, também
aponta para os enlaces entre a constituição da família moderna e a produção da loucura como
unidade de análise da racionalidade médico-científica. O argumento de Costa, que
particularmente nos interessa nesse estudo, está na proposição de que o discurso higienista que
influenciou a vida da família moderna seguiu a linha do discurso psiquiátrico que inscreveu a
loucura no campo da doença mental. Em ambos, encontraríamos a aparição de uma forma de
gestão da vida que alia ciência e Estado. Nesse sentido, uma bio-política estaria entre as
condições de possibilidade da reorganização do espaço urbano e dos modos de vida que se
operou na época. Reorganização sustentada num discurso sobre a vida que demandava da família
23
e do sujeito a promoção de sua própria saúde. Um dos pontos fundamentais desta política teria
sido a incitação ao gosto pela vida ao invés do cultivo e do medo da morte.
Conforme nos diz Costa (2004), a cidade colonial brasileira, que funcionava como
prolongamento da propriedade das famílias rurais, sustentava-se no dispositivo religioso-
paternalista, associando a imagem de Deus-pai à figura do latifundiário paternal e bondoso. A
vinculação entre os membros da família se dava exclusivamente na forma de uma dependência ao
pai, marcada por uma indiferenciação emocional entre os membros. Estes eram destituídos de
interioridade psíquica, não havendo o indivíduo introspectivo voltado para sua verdade interior.
Havia uma indiferenciação de interesses individuais e os fatos emocionais privados eram tidos
como externamente determinados. A quantidade de pessoas estranhas dentro da casa colonial
pulverizava os relacionamentos afetivos, e a solidariedade da família antiga inibia a
individualidade.
Quando o Estado nomeia-se guardião da saúde, bem-estar e progresso da população, cria-
se gradativamente uma nova atmosfera moral para a vida. Ares que modificaram a prática dos
cuidados com o corpo, com a casa e com a educação. O discurso higienista teria prescrito regimes
alimentares, modos adequados de vestir-se, normatizado o tempo livre dos indivíduos e veiculado
regras de conduta para o espaço familiar e social. Nessa atmosfera, pairava também um discurso
humanista de zelo para com as liberdades individuais. O espaço da casa colonial se transformou.
Através do argumento de que as casas antigas eram insalubres e responsáveis pelas causas de
muitas doenças, as famílias foram aconselhadas a localizar suas habitações em lugares elevados,
secos, com peças arejadas e claras. Prescreveu-se também a necessidade de minimizar a
quantidade de pessoas que compartilhavam o espaço da casa colonial. A presença do escravo,
antes imprescindível ao funcionamento da família, foi pensada como desnecessária e até mesmo
perigosa, pois também se atribuía aos mesmos a causa de aparição das doenças.
Uma certa ênfase teria sido conferida à importância das figuras da mulher e da criança,
através da regulação da sexualidade feminina e da normatização do cuidado e da educação dos
filhos. Com isto o pai poderoso teria perdido força. De proprietário de terras, escravos, mulheres
e filhos, a quem impunha sua lei, o patriarca teria passado a funcionário do Estado. Com o
enfraquecimento do discurso religioso
2
e a ascensão do conhecimento científico, as velhas e
2
Hannah Arendt irá dizer que no próprio cristianismo encontramos uma elevação da vida ao estatuto de bem
supremo. Entretanto, tratava-se de cuidar da vida na terra para alcançar a vida eterna, o que era garantido pela figura
de Deus como legislador: “a justiça divina”. Com a emergência da esfera social, o cuidado com a vida transformou-
se, porém um elemento teria permanecido: o desaparecimento da vida política e a manutenção de uma política da
24
precisas regras do certo e do errado dependentes de Deus e do pai teriam caído em desuso dando
lugar a um discurso sobre o bem viver e a saúde, minucioso, complexo e mutante, que efetuava
diferenciações entre os indivíduos. Encontramos aqui uma referência ao que Hanna Arendt
chama de ascensão da esfera social sobre os espaços público e privado, onde a inscrição das
diferenças entre os sujeitos não se faz mais pelas possibilidades da ação compartilhada no espaço
público, mas através da produção de normas que incidem nos comportamentos dos indivíduos
(ARENDT, [1958] 2005).
Nessa medida, o espaço familiar, organizado contra as impurezas da vida colonial, teria se
transformado em um lugar saturado de cuidados físicos e emocionais. A casa colonial abre as
portas para a cidade, ao mesmo tempo em que o grupo familiar passa a prestar cada vez mais
atenção em si mesmo. Erguem-se dentro da família as paredes que garantem a intimidade. Assim,
substitui-se o dispositivo arquitetural que fazia barreira entre a família e o exterior por um
dispositivo moral que, de um lado, incitava a sociabilidade e, de outro, difundia a idéia de que o
ambiente externo era perigoso. A família colonial temia o mundo externo, enquanto que a
moderna já não podia estar tranqüila nem fora nem dentro de casa (COSTA, 2004).
Kehl (2002), em seu livro Sobre Ética e Psicanálise, também trata dessa espécie de
individualização da experiência humana da desmedida, ou, sendo mais moderno, do conflito.
Refere que, nas organizações sociais anteriores a esse tempo, a tradição, que precedia a entrada
dos indivíduos no mundo, designava e garantia os lugares a ocupar na vida. Lugares prescritos
no código da cultura. Podia-se escolher transgredir as prescrições, porém se sabia o que se
estava transgredindo e que preço se haveria que pagar por tal ato. O conflito ocorria, sobretudo,
entre os homens e as regras estabelecidas no grupo em que viviam.
A autora situa como um divisor de águas nesse processo a Reforma Protestante, que,
segundo ela, ao propor o fim da tutela das autoridades eclesiásticas sobre as manifestações da fé e
a livre interpretação das escrituras, veio a individualizar a relação do homem com a palavra de
Deus, ou melhor, com a verdade. Nomeia esse fenômeno como quebra na unicidade do discurso
do Outro o que teria produzido a necessidade de uma autofundação das escolhas subjetivas
(KEHL, 2002). A interpretação da conduta humana teria então passado a sustentar-se em
vida. “A era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida, e não o mundo, é o bem supremo do homem;
em suas mais ousadas e radicais revisões e criticas dos conceitos e crenças tradicionais, jamais sequer pensou em pôr
em dúvida a fundamental inversão de posições que o cristianismo trouxera para o decadente mundo antigo. Por mais
eloqüentes e conscientes que fossem os pensadores da era moderna, em seus ataques contra a tradição, a prioridade
da vida sobre tudo mais assumira para eles a condição de verdade “axiomática”e como tal sobreviveu até o mundo
atual [...]” (ARENDT, [1958] 2005, p. 332).
25
causalidades internas, via valorização dos sentimentos e atenção ao psiquismo. Cresce o valor do
indivíduo e de sua história sócio-emocional, explicada psicologicamente. E somente o médico,
autorizado pela incompetência e desconhecimento dos sujeitos, sabia sobre a alma humana e suas
paixões desordenadas, prescrevendo as normas do ser saudável, da boa família, do bem viver e da
sanidade (COSTA, 2004).
Palombini (2004: p. 1271-2) coloca que
[...] em sua origem, a psiquiatria se constitui sem referência à família, ou mesmo contra sua soberania
(pois a internação se decidia à revelia da família e o tratamento proposto inspirava-se não no modelo
familiar mas na disciplina militar e no modelo de guerra). Contudo, na medida em que a família é, ela
própria, psiquiatrizada, tornando-se sua soberania permeável ao discurso disciplinar, uma relação estreita é
estabelecida entre o espaço familiar e os dispositivos disciplinares: de um lado, a família se encarrega de
designar o indivíduo anormal no seu interior, aquele que não se submete ao regime disciplinar que passou
a reger também a vida doméstica; de outro, a disciplina psiquiátrica acolhe os anormais apontados pela
família sob a promessa de refamiliarizá-los, de devolvê-los dóceis à disciplina reinante no seio da família.
É nesse ponto que se constitui o que Foucault chama de função-psi, descrita como um discurso que
assinala o fracasso da soberania familiar, evidenciado no caráter indisciplinado do indivíduo.
Paradoxalmente, é a soberania da família que se constitui, através da função-psi, em instância teórica de
todo o dispositivo disciplinar. E a psiquiatria, que se iniciou como instrumento fundamental de
esvaziamento do poder do pai (substituído pelo poder disciplinar), passa, no final do século XIX, a buscar
sua restauração, como fonte de retro-alimentação de todo sistema disciplinar.
Como efeito dessa nova configuração dos modos de vida, produz-se uma espécie de
desequilíbrio familiar estruturante e um sujeito em conflito consigo mesmo. Cria-se, segundo
Costa (2004), uma alma que, diferentemente da alma religiosa pensada enquanto essência
separada da matéria, enraizava-se no corpo; e produz-se uma outra sociabilidade, alicerçada
numa suposta maior autonomia dos desejos individuais. É disso que se ocupará posteriormente a
função-psi, de que nos fala Palombini (2004), em referência a Michel Foucault. A função-psi se
inaugura com a psiquiatria, a psicologia e segue transbordando às profissões que vão surgindo
como efeito da demanda de cuidados em saúde mental produzida na configuração moderna dos
modos de vida. O indivíduo como ser bio-psico-social, objeto do saber dos discursos psi, teria
então encontrado no enfraquecimento da tradição, na emergência do conhecimento científico
sobre a vida e na ascensão da esfera social suas condições de subjetivação.
Nesse sentido, Costa (2004), com Foucault (1988), pensa os discursos sobre a saúde do
homem, que emergiram na modernidade e produziram as condições de aparecimento da função-
psi, como produtores de uma relação de tutela. Relação produzida por um discurso moral,
sustentado numa razão instrumental, que “libertou” o indivíduo do poder do soberano, ao mesmo
26
tempo em que o inscreveu no campo das tecnologias normativas, produzindo sua subjetividade
objetivada. Nos dois universos, o da loucura e o da família, assistiu-se a um duplo
movimento: a migração do lugar do saber para a figura do especialista, e a produção de um
lugar de objeto de conhecimento tanto para a família quanto para a loucura.
Essa normalização da vida, entretanto, não se deu apenas com relação aos sujeitos dos
cuidados médicos e psicológicos: o indivíduo e a família. Foucault refere que, em alguns países,
“a medicina e o médico são o primeiro objeto de normalização. Antes de se a aplicar a
noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao médico” (FOUCAULT, 2004: p. 83),
através da regulação da prática e dos saberes profissionais. Surge então, concomitantemente à
organização do espaço social, toda uma organização administrativa para controlar as políticas de
saúde, inclusive a formação médica.
No Brasil, simultaneamente à organização da psiquiatria como especialidade médica
responsável pelo saber sobre a loucura, ou melhor, a doença mental, e à ocupação dos espaços
estruturados para o tratamento do doente mental pelo psiquiatra, se inicia a normatização do
ensino médico e a regulamentação das práticas profissionais. Em 1886, a direção do primeiro
hospício brasileiro, inaugurado em 1852, foi assumida por um médico psiquiatra, época que
coincide com o início do ensino de psiquiatria aos médicos generalistas. É de 1903 a primeira Lei
Federal de Assistência aos Alienados, substituída em 1934 pela Lei Federal de Assistência aos
Doentes Mentais que dispunha “sobre prophylaxia mental, a assistência e a proteção à pessoa dos
psicopatas e a fiscalização dos serviços psychiatricos”. A psiquiatria torna-se especialidade
médica autônoma em 1912 (COSTA, 1989).
Um pouco mais adiante no tempo, a regulamentação das práticas e do ensino médico é
reformada nos Estados Unidos pelo Relatório Flexner
3
, seguindo os ideais cientificistas, o que
produziu reverberações em outros países, inclusive no Brasil. Ceccim e Capazzolo (2004)
afirmam que a concepção de formação de profissionais de saúde sustentada pelo Relatório
Flexner estabeleceu uma hierarquia para as aprendizagens (do básico ao clínico), situou o espaço
hospitalar como lugar por excelência da formação e legitimou a hegemonia do modelo
3
Relatório apresentado por Araham Flexner, em 1910, resultado de uma pesquisa realizada nos EUA e Canadá,
seguido de novo estudo, então comparativo entre EUA e Europa, em 1927, que reformulou o ensino médico. Antes a
formação médica durava até um ano, era acessível a qualquer pessoa interessada e não se baseava em pressupostos
científicos. Após, esta foi ampliada para quatro anos de ensino universitário, com aprendizagem em laboratório e
ambiente hospitalar, orientação biológica e controle por órgão coorporativo da profissão. A educação desses
profissionais passou a ser pensada a partir dos critérios metodológico-científicos da época (CECCIM &
CAPAZZOLO, 2004).
27
biologicista nas ações em saúde, bem como, reforçou a fragmentação dos saberes (lógica das
especialidades). Assim, esse projeto de profissionalização do ensino médico teria retirado a saúde
do campo das humanidades para situá-la no campo natural.
A saúde, segundo a racionalidade cognitivo-instrumental da modernidade, estaria em relação com as
ciências naturais (a física, a química e a biologia), mais especificamente com a biologia, por ser esta a
ciência dos fenômenos da vida, não se incluindo nesse contexto de vida a produção da existência
individual e coletiva dos seres no mundo. Todo o acontecimento no corpo-máquina biológico teria uma
história de evolução biológica em um corpo com órgãos em ajustamento sistêmico. A formação médica
passa a estudar a “história natural” das doenças, na qual estas são compreendidas como natureza
possuindo uma linearidade de evolução (os primeiros sinais e sintomas, o horizonte clínico, o adoecimento
e a cura com ou sem seqüelas ou a morte), determinada apenas por fatores biológicos. Não se tratou de
esquecer os famosos fatores emocionais, tanto que a psiquiatria também descreveu sua história natural das
doenças mentais e dos distúrbios de comportamento. (CECCIM & CAPAZZOLO, 2004, p. 348)
Podemos então pensar as primeiras formalizações acerca da formação e do trabalho em
saúde como efeito da lógica disciplinar que produzia os modos de vida algum tempo. Ou
ainda, que a mesma lógica que produziu o manicômio como lugar de abordagem da doença
mental e esta como objeto da ação médica, também prescreveu os modos de inserção do
profissional nesse espaço, instrumentalizando sua forma de atuar diante do objeto de seu
conhecimento. O mesmo saber que definiu o normal e o anormal, prescrevendo as normas de
abordagem desses fenômenos, produziu as possibilidades para ação médica e para o ser médico
diante da doença mental. Noutras palavras, para empreender uma ação que diz respeito a uma
norma, é preciso que se esteja atravessado por ela.
A normalização e o controle do ensino médico aponta para a incidência das
normatividades em toda a sociedade. Como iguais todos se incluem na esfera social. Pouco
escapa ao modo moderno de gerir a vida. O que ficaria fora? Se há uma exterioridade, que escape
a esta gestão, talvez ela tenha passado a habitar o próprio sujeito. Nesse sentido, o médico e o
paciente, o psiquiatra e o doente mental, o profissional de saúde e o sujeito desses cuidados
se produziram a partir dos efeitos do mesmo ideal ordenador: aquele que fundamentou o
espaço social moderno, fazendo do sujeito, habitante da cidade, um habitante de seu
próprio espaço psíquico. O ideal de cidade limpa, perfeita, plenamente governável, que
começou a operar na Europa Clássica e no Brasil do final do período colonial, deslocou-se
para outro lugar. Nesse deslocamento, não se trata mais de edificar uma cidade, mas sim
um sujeito plenamente governável.
1.2 A ATENÇÃO EM SAÚDE SE REFORMA
28
O século XX “avançou” permeado por uma racionalidade técnica produtora de desvios e
normalidades. As ciências da saúde, em sua face ainda eminentemente médica, seguiu ocupando-
se da experiência adoecer/curar-se encampando um ideal de saúde, os modos de alcançá-lo e
fixando identidades profissionais e pacientes. Se até aqui apresentamos uma discussão em torno
da incidência do biopoder e da emergência de uma esfera social nos âmbitos da família e da
experiência da loucura; daqui a diante, trataremos das relações entre saúde comunitária e saúde
mental, na medida em que estes vão se configurar efetivamente como campos das normas de
saúde endereçadas à família e à loucura no século XX. O que nos interessa trabalhar, neste
capítulo, diz respeito aos desdobramentos dessa lógica, até o momento em que ela é, de alguma
forma, interrogada. Pois, nas últimas décadas do século passado, emergem movimentos que
pretenderam reformar o campo dos saberes e práticas em saúde, pelo questionamento dos ideais
normativos e seus efeitos. Sigamos mais um pouco com a história, agora bastante recente, e
deixemos que ela nos leve até lá.
Três discursos teriam sustentado as práticas psiquiátricas no século XX. Nas três
primeiras décadas, a loucura era explicada exclusivamente por causalidades biológicas, que
abarcavam fatores de hereditariedade e raça, e justificaram ações médicas como as lobotomias,
bem como, condutas racistas dentro e fora dos manicômios (COSTA, 1989). Nessa mesma época,
as ações de saúde pública se basearam em campanhas sanitárias de combate a epidemias,
impulsionadas pelas recentes descobertas em bacteriologia (NUNES, 1989). Via higienização das
cidades buscava-se evitar todo tipo de doenças. A cidade se queria sana: nada de epidemias e
nada de “loucura” pelas ruas. Até aí nada também de muito novo.
Por volta dos anos 1930, os psiquiatras começam a operar com uma certa noção de
prevenção, herdada da lógica campanhista, que fundamentou as ações sanitárias do período.
Trata-se do segundo discurso psiquiátrico sobre a loucura nascido no solo do século XX no
Brasil. Neste, a ação médica deveria exercer-se, também no que se refere à doença mental, no
período pré-patogênico (COSTA, 1989). Na carona do ideal de prevenção, cria-se o termo saúde
mental. E o psiquiatra vai ser, acima de tudo, um higienista, que opera também no terreno social.
Porém é importante sublinhar que ainda aqui a noção de causalidade das doenças mentais se
restringia a aspectos biológicos, como os de hereditariedade e raça, o que faz com que a idéia de
29
prevenção que surge nesse tempo difira da que surge mais adiante, onde os aspectos biológicos a
considerar serão outros.
Entretanto, a nomeação saúde mental, nesse início de século, alarga as fronteiras da
psiquiatria. Se antes se tratava de intervir sobre a doença, o que recortava um terreno que deixava
fora uma série de grupos sociais; a partir daí, o saber psiquiátrico, se lança sobre a cidade, e os
indivíduos tidos como normais passam também a objeto de suas ações. A idéia de saúde mental
aparece como mais uma face do processo de higienização das cidades, ao qual nos referimos no
início deste capítulo. A criação do termo saúde mental, embebida do ideal da prevenção, aponta
para um movimento das ciências da saúde na direção de cobrir a totalidade do espaço da vida.
Trata-se não mais apenas de curar, mas de prevenir a doença mental através de ações sobre a
cidade, sobre as famílias. Um latifúndio do saber científico sobre a saúde vai se formando num
lento e contínuo arrastar de cercas, cada vez mais fazendo do fora um dentro.
No que se refere à saúde pública, a partir de 1930, as ações campanhistas passam a dividir
espaço com ações curativistas em larga escala, pela criação dos institutos de previdência social e
dos programas e serviços de auxílio e atenção médica, nascidos da parceria do Estado com os
sindicatos (NUNES, 1989). É possível situar no Brasil, a partir dessa época, a intensificação de
um terceiro discurso sustentador das práticas psiquiátricas no século XX: o discurso psicoterápico
(COSTA, 1989). Se, no início do século, tratou-se de tomar a doença mental como algo
relacionado ao organismo biológico e à raça, cuja cura passava pelo tratamento moral e por
intervenções invasivas no corpo; e se mais adiante, tomou-se o modelo das campanhas de
prevenção em saúde pública para inventar um parâmetro de normalidade em saúde mental, bem
como formas de prevenção de doenças mentais; trata-se agora, no discurso psicoterápico, de
recolher daí alguns elementos para produzir algo novo. A novidade é a aliança entre o ideal de
cura da doença mental agora não mais através de ações invasivas no corpo, mas de operações
que incidirão no psíquico – ao de saúde mental, importado do campo da prevenção.
Surgem, a seguir, interpretações acerca das condutas humanas baseadas em sócio e
psicogêneses, o que coincide com uma discussão emergente no campo da saúde pública sobre as
relações entre desenvolvimento econômico, problemas sociais, pobreza e doenças (NUNES,
1989). Na década de 1970, a Organização Mundial de Saúde definiu a saúde como um estado de
completo bem estar físico, mental e social e não somente a ausência de doenças
(DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA, 1978), conferindo legitimidade ao paradigma das sócio e
30
psicogêneses na explicação das enfermidades, bem como incitando o mundo a uma reflexão
sobre as condições de vida da população. Inicialmente, tal paradigma deslocou o saber
psiquiátrico para um lugar mais periférico no campo da saúde mental. Entretanto, a psiquiatria
acabou por encontrar uma forma de retomar sua centralidade, fazendo ressurgir o ideal
preventivista, agora desdobrado. “A solução encontrada foi a de declarar que o indivíduo não era
nem biológico, nem psicológico, nem sociológico, mas um todo indivisível, uma unidade
biopsicossocial” (COSTA, 1989, p. 27).
Nesse momento, a psiquiatria toma para si um conceito ampliado de saúde, o que no
campo do saber psiquiátrico funciona como uma espécie de superconceito, com uma super
abrangência explicativa. E se é possível pensar que considerar a saúde como algo amplo poderia
trazer para esse campo de intervenção a presença de outros saberes e práticas para dar conta de tal
amplitude, não foi o que ocorreu. Essa norma renovada, que produziu outro objeto de intervenção
para a ação em saúde mental o indivíduo como unidade biopsicosocial –, acabou por
incrementar a centralidade do discurso normativo da psiquiatria no campo da saúde. Porém se,
por outro, criaram-se com isto possibilidades para o surgimento de práticas de saúde mental em
espaços alternativos, colocando-se em questão a prevalência do manicômio. Através de uma
proposta de ampla intervenção na comunidade, a psiquiatria comunitária, se propôs a organizar o
espaço social de modo a evitar o adoecimento mental e as internações psiquiátricas. Parece ter
havido uma tentativa de retirada do hospital psiquiátrico do lugar de referência para o trabalho
em saúde mental.
Configura-se então no campo da atenção em saúde um clima favorável à conjugação
entre o trabalho em saúde mental e em saúde comunitária, o que se sustentava na proposição de
políticas públicas dessa ordem pelos organismos internacionais. Acompanhemos agora alguns
trechos da Declaração de Alma-Ata e da Carta de Otawa documentos produzidos a partir de
Conferências Internacionais de Saúde que nos falam um pouco desse solo fértil para a
aproximação entre saúde mental e saúde comunitária.
Os cuidados primários de saúde requerem e promovem a máxima autoconfiança e participação
comunitária e individual no planejamento, organização, operação e controle dos cuidados primários de
saúde, fazendo o mais pleno uso possível de recursos disponíveis, locais, nacionais e outros, e para esse
fim desenvolvem, através da educação apropriada, a capacidade de participação das comunidades
(DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA, Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde,
1978).
31
A promoção da saúde apóia o desenvolvimento pessoal e social através da divulgação de informação,
educação para a saúde e intensificação das habilidades vitais. Com isso, aumentam as opções disponíveis
para que as populações possam exercer maior controle sobre sua própria saúde e sobre o meio-ambiente,
bem como fazer opções que conduzam a uma saúde melhor. É essencial capacitar as pessoas para aprender
durante toda a vida, preparando-as para as diversas fases da existência, o que inclui o enfrentamento das
doenças crônicas e causas externas. Esta tarefa deve ser realizada nas escolas, nos lares, nos locais de
trabalho e em outros espaços comunitários. As ações devem se realizar através de organizações
educacionais, profissionais, comerciais e voluntárias, bem como pelas instituições governamentais
(CARTA DE OTTAWA, Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, 1986).
Nos termos auto-confiança e participação comunitária e individual percebemos um
esforço em fazer com que o indivíduo e a comunidade passem a promover sua própria saúde.
Ainda nas expressões desenvolver capacidades, aprendizagem adequada e preparação para as
fases da existência pode-se observar que essa auto-promoção passa por desenvolver a capacidade
certa, ter acesso ao conhecimento adequado sobre si mesmo, prever e prevenir-se contra os males
da vida futura. Nesse sentido, é preciso educar para a saúde, fazendo chegar na população a
informação sobre os modos adequados de cuidar da própria vida. Trata-se de um projeto de
melhora das condições mundiais de saúde, que aposta no acesso a um conhecimento específico
como promotor do bem de todos; e de que todas as comunidades, toda a sociedade (escola, lares,
locais de trabalho) deve implicar-se nessa tarefa global.
No que tange a saúde mental, este projeto também produziu seus efeitos. Campos (1992,
p.52) refere que “equipes locais de saúde mental foram propostas pela OMS/OPAS como forma
de inserção da saúde mental na atenção primária à saúde” e que estas ações foram pensadas nos
termos da velha visão preventivista de Alma Ata. Tais proposições produziram mais do mesmo
no plano da atenção em saúde mental, não modificando efetivamente o modelo que caracterizava
a atenção. Mesmo na atenção comunitária, o sujeito da atenção em saúde mental continuava no
lugar de objeto de um conhecimento normativo. A saúde mental do indivíduo, como unidade bio-
psico-social, foi submetida a ações que tinham por objetivo a adaptação aos ideais sociais. A
intervenção na comunidade acabou, desse modo, por perpetuar a lógica que fundamentava a
atenção em saúde até então, na medida em que transpôs a racionalidade biomédica normal-
patológico para a dimensão psicossocial. Tenório (2001) nos diz, com relação à assistência
psiquiátrica dessa época, que dos recursos utilizados pelo INAMPS em serviços psiquiátricos
contratados junto a clínicas privadas, 81,96% destinavam-se à área hospitalar e apenas 4% à
ambulatorial. O que nos remete a uma manutenção da lógica manicômio-centrada, e ao fracasso
32
das ações de prevenção em saúde mental na comunidade. Talvez, mais do que prevenção, tenha-
se promovido uma medicalização do espaço social.
Diante da insistência do modelo manicomial que no espaço cidade encontrava
sustentação nos discursos sobre saúde, desvios e as normalidades surgem, no final dos anos
1970, movimentos em favor de uma reformulação das práticas de atenção em saúde pública, com
ênfase na saúde mental. No campo da saúde pública, a crítica recaiu sobre a inadequada gestão
dos recursos, dificuldade do acesso da população à assistência, bem como ineficiência dos
serviços prestados organizados segundo o olhar clínico dissociante das especialidades médicas.
Em relação à saúde mental, a crítica endereçava-se principalmente à exclusão dos sujeitos
diagnosticados como doentes mentais e à lógica tutelar de abordagem da loucura. Assim, em
tempos de redemocratização do país, emergiram movimentos que queriam reestruturar
profundamente a atenção em saúde no Brasil.
A crítica teórica às políticas de saúde do Estado autoritário e a elaboração de propostas alternativas
constituíram o que veio a se chamar movimento da reforma sanitária: um movimento pela reformulação
do sistema nacional de saúde. Deu-se ênfase à administração e ao planejamento dos serviços e à ampliação
do acesso da população à assistência em saúde. Apostava-se que o aperfeiçoamento técnico e o
gerenciamento honesto e competente dos recursos da ciência médica pela gestão pública resolveriam o
problema da má assistência em saúde, inclusive do setor psiquiátrico. (TENÓRIO, 2001, p. 30).
Os ensejos de transformação ganharam maior consistência com a VIII Conferência
Nacional de Saúde de 1986 e a Constituição Federal de 1988. Estas determinaram que a saúde é
direito de todos e dever do Estado, que os serviços de saúde devem ser organizados em rede
regionalizada e hierarquizada, com acesso universal e igualitário, direção única em cada esfera de
governo, prioridade para ações preventivas, sem prejuízo das ações curativas, necessidade de
haver controle social das políticas adotadas e prestação de atendimento integral. O tom do texto
aponta para uma forte critica ao aspecto da gestão de políticas, mas também para uma
reformulação da assistência, levantando a bandeira da atenção integral. Na mesma direção, mais
a diante, o Sistema Único de Saúde, criado constitucionalmente, foi regulamentado pelas leis n
° 8080/90 e 8142/90.
33
Desde então, a noção de integralidade
4
da atenção foi colocada no horizonte das práticas
em saúde e tem sido tematizada por muitos pesquisadores da área. Camargo (2005) refere que a
idéia de integralidade emerge de um vazio paradoxal. Vazio produzido pela tecno-ciência
biomédica que, ao preencher o terreno do trabalho em saúde com tecnologias de diagnóstico e
tratamento, o esvazia de práticas endereçadas ao sujeito e seu sofrimento. Tecnologias que
representam avanços importantes na abordagem de doenças, porém, na mesma proporção,
estariam reduzindo a experiência de sofrimento ao domínio biológico. Nesse sentido, a
integralidade nasce querendo dar conta desse vazio produzido e ignorado pela multiplicação
exponencial das tecnologias biomédicas. Parece também buscar oferecer resistência ao avanço da
lógica dos especialismos no campo dos saberes e práticas em saúde. A ênfase no modelo das
especialidades potencializaria a ação fragmentada em direção à pessoa atendida, o que ofereceria
um risco maior ainda de se fazer do sujeito mero objeto de uma ação técnica. Nesse sentido, a
noção de integralidade parece colocar-se de forma a colocar em questão esse governo tecno-
científico da vida.
Porém, poderia a atenção integral, ao suturar o corpo despedaçado pelas especialidades
médicas e se interessar por sua vida para além do biológico, fazer dique à onda totalizante e
normatizadora? Em que medida a noção de atenção integral se difere da de assistência
biopsicossocial que reformou sem renovar? Em que medida escapa à lógica disciplinar? Sobre
este ponto, Camargo (2005) atenta para a confusão que se pode fazer entre a idéia de atenção
integral e atenção total. Coloca a questão de se é possível e até mesmo desejável que a atenção
em saúde se dirija à totalidade das necessidades de um ser humano. Para este autor, integralidade
não se constitui como um conceito, mas como um ideal regulador, impossível de ser plenamente
atingido, mas do qual busca-se constantemente se aproximar. Fica a pergunta: o que então a
assunção de um ideal regulador como a integralidade produz na configuração do campo dos
saberes e práticas em saúde?
4
A integralidade da assistência, na Lei Federal 8.080 de 19 de setembro de 1990, é pensada como um dos princípios
e diretrizes do Sistema Único de Saúde, que diz respeito ao “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do
sistema”. O texto legislativo, como podemos ver, permite uma diversidade de interpretações acerca do princípio que
estabelece. É nesse sentido que muitos autores do campo da saúde coletiva têm se ocupado de pensar a integralidade
e que, neste trabalho, também nos ocuparemos de sua problematização especialmente a partir de uma interrogação
sobre a forma com que a diretriz ganha formas no cotidiano das práticas profissionais. Ao longo de nosso texto,
construímos os vetores a partir dos quais a noção de integralidade pode aparecer nas ações dos profissionais, porém
ela é abordada, de forma mais direta, no item 4.1 do quarto capítulo.
34
Acompanhando a Reforma Sanitária, com seu ideal de atenção integral, surge a luta por
uma Reforma Psiquiátrica. A partir da Segunda Guerra Mundial, iniciaram-se pelo mundo
experiências de transformação das práticas psiquiátricas, pelas quais a psiquiatria brasileira foi
afetada: psiquiatria preventiva-comunitária norte-americana, psiquiatria institucional francesa,
desinstitucionalização italiana e comunidades terapêuticas inglesas (TENÓRIO, 2001). Todos
estes intentos de mudança partiram de um questionamento, em maior ou menor grau, das relações
entre a doença mental e a esfera social, propondo espaços de tratamento alternativos ao hospital
psiquiátrico. A comunidade como alternativa à instituição apareceu em muitas dessas
experiências.
A respeito da Reforma Psiquiátrica brasileira, Tenório (2001) refere que ela teve como
marca fundamental o resgate da cidadania do louco, principalmente pela reivindicação de seus
direitos. A cidadania como valor central da reforma teria produzido dois discursos que operaram
posições a princípio incompatíveis: uma em que se tratava de reorganizar a clínica de modo a
colocar a promoção da cidadania no horizonte do trabalho clínico e outra que sustentava a
superação do paradigma clínico em favor da dimensão cultural, política e social de abordagem da
loucura. Este segundo discurso coloca em xeque a perspectiva clínica, tomando-a como
antagônica à promoção da cidadania. O fazer clínico foi associado à produção de manicômios
mentais, à lógica da tutela e ao imperativo da normalização. A idéia de reinserção do louco, ou
doente mental, ou, desde então, portador de sofrimento psíquico, no espaço da cidade como um
cidadão ganhou intensidade. Estava então lançado o desafio de criar um modo de fazer loucura e
cidade conviverem.
Para Amarante (apud RAMMINGER, 2005), a Reforma Psiquiátrica é um processo
complexo em que se articulam quatro dimensões: a epistemológica, que se refere à reconstrução
teórica nas áreas da saúde mental e psiquiatria; a da assistência, que convoca à invenção de novos
dispositivos de cuidado; a jurídico política, com a revisão da legislação civil, penal e sanitária; e a
cultural, que implica iniciativas para a transformação do imaginário social acerca da loucura.
Desde esta perspectiva, a reforma psiquiátrica parece querer intervir nas paisagens e modos de
vida citadinos. E a cidade, que conservara uma relação de exclusão com o manicômio, passa a ser
problematizada como espaço da loucura. O louco, desde a Reforma Psiquiátrica, como cidadão,
passa a ter direito de acesso a um tratamento que não lhe retire da comunidade. Porém talvez isso
não lhe retire da condição de natural de outro lugar, de estrangeiro no espaço da cidade – posição
35
produzida e naturalizada ao longo da história. Como então a ação comunitária, sugerida pela
reforma, irá lidar com essa estrangeridade? Estaria uma tentativa de inversão na relação entre
cidade e loucura que desde muito se configurou? Não mais a cidade questionando e
produzindo uma circunscrição da loucura, depositando-a entre muros, mas a própria loucura,
desde o seu lugar estrangeiro, interrogando a vida e os muros da cidade? A esse respeito Tenório
(2001, p. 29) coloca que
a idéia de uma ação “comunitária”, igualmente cara à reforma, exige permanente atenção aos riscos de
psiquiatrização e “normalização” do social. Nesse aspecto, a diferença recai sobre a concepção do que é a
doença mental (ou a experiência da loucura) e do que é o tratar em psiquiatria (ou ao que visamos em
nossa prática junto aos loucos). Adiantando uma única referência, ao propormos um tratamento que
mantenha o paciente na comunidade e faça disso um recurso terapêutico, operamos no intuito de, sem
deixar de responder ao mandato terapêutico que nos é outorgado, recusar o mandato também a nós
delegado de operar e legitimar a exclusão social do louco.
Na década de 1980, iniciam então algumas experiências institucionais de modificação do
modelo de atenção em saúde mental: os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), como serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Assistiu-se
também uma ampliação da participação de trabalhadores, usuários e familiares no movimento de
reforma e uma primeira iniciativa de reformulação legislativa – projeto de lei do deputado federal
Paulo Delgado n. 3.657/89 foi proposta. A chamada Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei Federal
10.216) foi aprovada apenas no ano de 2001, após um longo período de debates e
reformulações de seu texto.
Os NAPS
5
e CAPS
6
, como unidades de cuidados intermediários entre os regimes
ambulatorial e de internação, aparecem como uma saída possível do sistema de atenção à saúde
mental manicômio-dependente. Organizam-se devendo funcionar de cinco a sete dias por
semana, em horário diurno ou integral, contando com equipe multiprofissional e diversos
5
Tais formatos de atenção passaram a fazer parte do SUS a partir da Portaria 189 do Ministério da Saúde, de 1991, e
seu funcionamento foi regulamentado pela Portaria 224, de 1992.
6
Mais recentemente, a Portaria 336 do Ministério da Saúde, de 2002, estabelece modalidades de serviço para os
CAPS de acordo com as características da população atendida e da abrangência populacional dos atendimentos. Cria
a seguinte organização: CAPS I, CAPS II, CAPS III (são serviços de atenção psicossocial para adultos portadores
transtornos mentais severos em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo com capacidade
operacional de acordo com sua abrangência populacional. Oferecerão serviços mais complexos quanto maior for seu
raio de abrangência no território, dividindo-se nos níveis I, II e III) CAPS ad II e CAPS i II (o primeiro é responsável
pelo atendimento de pacientes com transtornos decorrentes de uso e dependência de substâncias psicoativas e o
segundo se encarrega do atendimento de crianças portadoras de transtornos mentais). A portaria estabelece ainda que
os CAPS podem funcionar em área física independente de qualquer estrutura hospitalar, com acesso privativo e
equipe multiprofissional própria.
36
dispositivos terapêuticos, inclusive lazer assistido e trabalho protegido. Devem estar inseridos em
uma “rede de cuidados”, que organizará a demanda segundo a “lógica do território”.
Segundo Delgado (apud Tenório, 2001, p. 71), o conceito de território, inspirado na
psiquiatria democrática italiana, estaria para além do espaço físico de circulação do sujeito,
excedendo a idéia de bairro ou região de domicílio. Tratar-se-ia de “um conjunto de referências
econômicas e sócio-culturais que desenham a moldura de seu cotidiano, de seu projeto de vida,
de sua inserção no mundo”. O conceito de cuidado, por sua vez, provavelmente viria substituir a
idéia de cura, que o plano terapêutico deixaria de focalizar a doença para se endereçar à
complexidade da existência. Desse modo, uma rede de cuidados, que organiza a demanda
segundo a lógica do território, estaria para tentar imprimir uma diferença em relação à idéia de
intervenção na comunidade e seus conseqüentes efeitos de normatização do espaço social.
Quando surgiu como novo objeto da psiquiatria, a noção de saúde mental estava estreitamente associada a
um processo de adaptação social, denotando um padrão de normalidade externo à singularidade do sujeito
e à clínica em seu sentido mais generoso. Pelo aspecto da crítica do asilo que a acompanhava, essa
expressão veio a ser privilegiada pela Reforma Psiquiátrica brasileira. O lugar estratégico que hoje ocupa
no discurso da reforma está relacionado a dois aspectos: servir para denotar um afastamento da figura
médica da doença, que não leva em consideração os aspectos subjetivos ligados à existência concreta do
sujeito assistido, e permitir demarcar um campo de práticas e saberes que não se restringem à medicina e
aos saberes psicológicos tradicionais (TENÓRIO, 2001, p. 29).
A idéia de que a ação terapêutica não deve endereçar-se à doença, mas a existência como
um todo da pessoa atendida, recorta então outro objeto para a atenção: nem doença, nem saúde,
mas a existência. A definição de existência como objeto da ação terapêutica pode trazer como
conseqüência a insuficiência da técnica no que se refere à configuração dessa ação. Pois, a
existência, pensada como múltipla, sempre surpreende os saberes estabelecidos. Por sua vez, a
equipe multiprofissional, como responsável pela terapêutica, aponta para a impossibilidade de
que qualquer núcleo de saber se proponha como absoluto. Desse modo, o CAPS como portal de
saída do hospital psiquiátrico e de entrada para um trabalho que se ocupe da existência, emerge
como potência para produzir novos modos de trabalhar em saúde mental. Que lugar profissional e
que saberes e práticas se produzem aí?
Os textos das conferências nacionais de saúde falam sobre as condições de uma adequada
gestão da atenção em saúde, veiculando princípios para a gestão do SUS. Nessa direção, alguns
37
autores têm pensado o profissional de saúde como um gestor do cuidado (MERHY, 1998)
7
, o que
nos faz pensar num certo paradoxo presente no termo. Cuidar parece querer introduzir uma
diferença em relação aos tradicionais objetivos clínicos tratar e curar. Se a ação de cuidar não se
dirige à doença, mas à existência que não é passível de cura alguma, ou ainda como nos diz
Lacan ([1954-55] 1985, p. 292) “a vida não quer sarar” tratamento e cura perdem qualquer
sentido. Nessa perspectiva, o cuidado parece inscrever uma ruptura em relação à lógica
normativa. Entretanto, a idéia de gestão aponta para uma posição inflacionada desde onde
empreender uma ação, um lugar que pressupõe demasiado controle sobre efeitos e nos remete à
idéia de administração. Nesse sentido, também Lacan ([1955] 1988, p. 404), ao criticar a leitura
americana da psicanálise, produz uma interrogação que cabe colocar aqui.
É retornar ao princípio reacionário que recobre a dualidade daquele que sofre e aquele que cura pela
oposição entre aquele que sabe e aquele que ignora. Como não se justificar por tomar essa oposição como
verdadeira quando ela é real, como não deslizar daí para tornarem-se administradores de almas, num
contexto social que lhes requer este ofício?
Em que medida ser um gestor do cuidado pode se distanciar da posição tão criticada do
profissional de saúde como senhor do conhecimento, sustentado por saber a priori sobre o normal
e o desvio, que trata um sujeito em posição de objeto de uma ação técnica? Como o gestor do
cuidado escapa da demanda a ele endereçada pela esfera social de ser um “administrador de
almas”?
8
7
Emerson Merhy (1998), em Saúde: a Cartografias do Trabalho Vivo, trabalha a noção de gestão do cuidado
deslocando-a da idéia de uma gestão normativa da vida. O autor sublinha, na concepção de gestão do cuidado à que
se refere, o cuidado como um processo usuário-centrado, permeado por relações acolhedoras. De nossa parte, ao
problematizarmos o termo gestão do cuidado, nos perguntamos pela prevalência de uma certa idéia de gestão, no
campo da clínica da saúde mental, que viria na contra-mão escuta da existência. Interessa aqui discutir quê
possibilidades de gerir o cuidado com a vida podem escapar à objetivação da subjetividade. É com este intuito que
tomamos o termo gestão do cuidado em sua literalidade, sem fazer uma alusão maior à teorização de Emerson
Merhy, à qual, por outro lado, nos parece bastante potente no sentido da ruptura com um certo modelo hegemônico
de gestão científica da vida.
8
Nesse ponto, interessa-nos sublinhar o aspecto bilateral presente nesse modo de gerir a saúde dos indivíduos e das
populações que vem se reproduzindo e se relançando, de modos distintos, desde o advento da modernidade. Trata-se
de uma via de mão dupla. Assim como o conhecimento científico se encarrega de colocar-se no lugar da verdade
sobre o bem viver, os indivíduos e comunidades, de certa forma, demandam das instâncias políticas e do saber da
ciência a verdade sobre si mesmo e sobre a vida humana. Em nossa opinião, este fato complexifica ainda mais a
tarefa do profissional de saúde mental de renunciar a esse lugar de administrador de almas. Mehry e Franco (2005),
no texto A produção Imaginária da Demanda e o Processo de Trabalho em Saúde, trabalham essa questão de como
se constitui a demanda dos usuários dos serviços de saúde e propõe modos de intervir nessa construção. Não
abordaremos essa temática neste estudo, porém gostaríamos de sublinhar sua importância e enviar o leitor às fontes
que consideramos interessantes. Nesse sentido, o texto referido aparece como uma delas e está situado num livro que
aborda a temática em questão a partir de diferentes autores e perspectivas. Ver: Construção Social da Demanda
Pinheiro, R. & Mattos, R. (Orgs.), Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ:ABRASCO, 2005.
38
No âmbito da saúde das famílias, também se buscaram alternativas para a organização dos
serviços. Uma das ações que apareceu como desdobramento mais tardio da Reforma Sanitária foi
a implementação do Programa Saúde da Família (PSF), que, segundo divulgação oficial do
Ministério da Saúde, prioriza ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde das pessoas,
de forma integral e contínua. O atendimento pode ser prestado na Unidade Básica de Saúde ou no
domicílio pela equipe de saúde da família, composta por médicos, enfermeiros, auxiliares de
enfermagem e agentes comunitários de saúde. A Unidade Básica aparece então como a porta de
entrada do sistema de saúde e com a responsabilidade de realizar os encaminhamentos
necessários para os demais serviços da rede, estruturados em uma complexidade crescente das
ações de cuidado. No que se refere à saúde mental, a UBS é pensada como espaço de prevenção e
acompanhamento do sujeito em sofrimento psíquico leve.
Ceccim (2004) critica tal forma de organização dos serviços, sublinhando que não
entre a UBS e o hospital geral complexidade crescente das ações em saúde. Para este autor as
questões de que se ocupa a equipe da unidade básica de saúde são tão complexas como às do
hospital, já que a complexidade da atenção não estaria na utilização de tecnologias duras
9
, mas no
modo de acolher a pessoa atendida. Uma clínica que visa abordar a saúde como fenômeno
complexo deveria se ocupar da escuta à existência, dando guarida a histórias e projetos de vida, e
priorizando o cuidado com as pessoas inseridas no território.
Na mesma direção referida por Ceccim (2004), aponta um dos nortes do programa, que
enfatiza a necessidade da produção de um laço de co-responsabilidade entre os profissionais e a
população acompanhada. Porém, se por um lado, nessa proposição de trabalho junto às
famílias um intento de produzir relações mais horizontais entre profissional e pessoa atendida,
dando lugar também ao saber desta; por outro, uma série de indicadores biológicos da saúde
da população que precisam ser manejados pelas equipes de PSF. Como operar então com esta
dimensão de vigilância em saúde, mais afeita à posição de gestor da qual falávamos
anteriormente, sem reproduzir uma normatização dos modos de vida?
Nesse sentido, há muitos pontos em comum entre o trabalho que se produz nos espaços da
atenção básica, organizada segundo uma lógica de atenção às famílias, e a saúde mental, pensada
como âmbito de abordagem do sujeito em sofrimento psíquico, que colocam questões aos
9
Segundo Merhy (1998), tecnologias duras se referem ao uso de equipamentos e exames sofisticados de diagnóstico
e tratamento, tecnologias dura-leves dizem respeito à clínica a partir de referenciais teóricos estruturados e as leves
seriam as tecnologias relacionais.
39
intentos de reforma. Muitos autores têm defendido uma certa conjugação entre as ações em saúde
realizadas numa e noutra área como saída para estes impasses. A própria Organização Mundial da
Saúde, que declarou 2001 o Ano Internacional da Saúde Mental, com o slogan “Cuidar Sim,
Excluir Não”, lançou o Relatório Sobre a Saúde Mental no Mundo 2001: Saúde Mental Nova
Concepção, Nova Esperança, propondo:
A atenção baseada na comunidade tem melhor efeito sobre o resultado e a qualidade de vida das pessoas
com transtornos mentais crônicos do que o tratamento institucional. A transferência de pacientes dos
hospitais psiquiátricos para a comunidade é também efetiva em relação ao custo e respeita os direitos
humanos. Assim, os serviços de saúde mental devem ser prestados na comunidade, fazendo uso de todos
os recursos disponíveis (p.16)
10
.
Nesse sentido, tem sido defendida a concepção de que é preciso promover ações de saúde
mental através das equipes de PSF. Lancetti (2002) propõe que haja equipes volantes de saúde
mental junto às equipes de PSF, com vistas a evitar o que ele chama de processo de geração de
demanda que começa na consulta e termina no hospício e radicalizar a desinstitucionalização da
loucura. Alguns autores pensam tais equipes volantes como apenas prestadoras de consultorias,
outros afirmam a importância de intervirem de forma conjunta com as equipes de PSF. Casé
(2002), relatando a experiência realizada em sua cidade, coloca que se optou por iniciar a
implementação de práticas de saúde mental através das equipes de PSF, o que ela definiu como
uma estratégia de intervenção que tinha como norteador a necessidade de se investir em uma rede
de atores e serviços mais do que em especialistas em saúde mental.
Três são os argumentos mais enfatizados por estes autores que propõe a atenção básica
como lugar privilegiado das ações em saúde mental. O primeiro diz respeito a uma premissa de
que para transformar a atenção ao sujeito em sofrimento psíquico é preciso intensificar o estatuto
ontológico da cidadania. O segundo se refere à necessidade de pensar a atenção em saúde mental
como algo que deve se realizar nos lugares existenciais do sujeito. O terceiro afirma a
necessidade de se compreender o sofrimento humano como algo que não é exclusividade do
saber de nenhuma disciplina, pois é multideterminado
11
. Desse modo, tal compreensão implicaria
10
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório sobre saúde mental no mundo: 2001 saúde mental: nova
concepção, nova esperança, 2001. Em: http://www.who.int/es/index.html. Consulta realizada em junho de 2007.
11
Lançando um olhar mais atento aos textos normativos que instituem os CAPS e às equipes de saúde da família,
percebemos um certo tensionamento existente entre o almejado pelos teóricos da saúde coletiva e o que efetivamente
o texto das leis propõem, principalmente em relação à inclusão da diversidade dos saberes nas práticas em saúde. No
que se refere à composição mínima dos grupos de trabalho, segundo a normativa do CAPS, devem compor as
equipes técnicas, com obrigatoriamente, apenas o profissional médico e o enfermeiro. O restante da equipe deve ser
40
incluir, nas ações de cuidado, saberes e fazeres também múltiplos, legitimados ou não pela
ciência, reconhecendo assim a importância do papel das redes sociais, das famílias e do próprio
indivíduo na produção de sua própria saúde (LANCETTI, 2002).
Desse modo, Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica trouxeram consigo
questionamentos aos modelos de atenção em saúde vigentes e à lógica normatizante que os
organiza. Existência como foco da atenção e atenção integral com promoção da cidadania como
norte para o trabalho desenham o horizonte da desejada transformação. Que possibilidades se
criam para a experiência adoecer/curar-se, sofrer/cuidar-se? Temos o médico da família e o louco
de volta ao espaço da cidade. E, se tanto os lugares de trabalho quanto o objeto da ação
terapêutica se modificam, também o profissional precisará se modificar. Que profissional de
saúde daí emergirá?
1.3 NOVAS PERSPECTIVAS PARA A FORMAÇÃO EM SAÚDE
Mesmo com as reformas e com a criação de dispositivos de atenção como os Centros de
Atenção Psicossocial e o Programa Saúde da Família, muitos autores, que se ocupam do tema da
saúde coletiva, referem que as práticas no campo da saúde pública têm perpetuado a lógica
reinante nos antigos modelos. Alguns alertam para o fato de que muitos CAPS não passam de
mini-manicômios e de que as ações na atenção básica, por exemplo, no PSF, seguem
reproduzindo lógicas normativas aparentadas à da medicina comunitária e seu discurso
preventivista. Desse modo, dessa história que construímos, no intuito de que dela se retirassem
questões para o presente, emergem as seguintes perguntas: Como fazer o que é da ordem do
discurso tomar corpo? Com que as reformas empreendidas na esfera macropolítica, ganhem
composto por profissionais de nível superior de um grupo de categorias profissionais, sem que haja a obrigatoriedade
da presença de uma ou outra especialidade. Algumas delas são: psicologia, terapia ocupacional, serviço social,
pedagogia. Há também a necessidade de que se componha a equipe com profissionais técnicos de nível médio, e para
tanto também são dadas sugestões, sem que haja obrigatoriedade de presença de uma ou outra área técnica. As
profissões mencionadas devem variar, segundo o texto da normativa, de acordo com a característica da população
atendida no serviço. Da mesma forma, a equipe mínima do PSF é composta pelo médico, enfermeiro e agente
comunitário de saúde. As demais profissões aparecem apenas como possibilidades de oferecer consultoria quando da
necessidade da equipe. Diante disso saltam aos olhos algumas questões. A não distinção entre os campos
profissionais soa como se não houvesse especificidade entre os seus fazeres e saberes. Ou melhor, como se as
especificidades entre os fazeres e saberes de cada profissão não fizessem diferença quando se trata da atuação nos
dispositivos terapêuticos que compõe o trabalho em saúde. Além disso, a obrigatoriedade de permanência na equipe
apenas das figuras do médico e do enfermeiro nos leva a pensar que talvez o modelo de atenção esteja distanciando-
se da lógica hospitalocêntrica, mas esteja reproduzindo a centralidade do saber médico nas ações de cuidado, pelo
menos no que se refere ao âmbito das regulamentações e normativas.
41
densidade nas micropolíticas? Ou ainda, com que os profissionais de saúde se apropriem dos
novos desenhos dos dispositivos de atenção e se lancem em atos terapêuticos a partir deles?
Seguir a direção dessas perguntas nos leva à proposição de que a transformação dos
modelos de atenção ao sofrimento psíquico pode ser pensada como efeito de dispositivos que
agenciem novos modos de pensar-experimentar o trabalho naqueles que com seu fazer produzem
o campo da saúde mental. Desde essa perspectiva, a invenção de outras formas de se conduzir
nesse terreno estaria intimamente relacionada a uma ruptura com modos de subjetivação pelo
trabalho que colocam o trabalhador no lugar de reprodutor de uma ação técnica. Com Foulcault
(cf. 1.2), vimos que o conhecimento científico, na incidência de suas verdades, fixou identidades
profissionais e pacientes. Desse modo, mesmo com legislações, normativas e instituições
“reformadas”, se as transformações não afetarem a subjetividade dos trabalhadores, a antiga
lógica hegemônica seguirá se reproduzindo no cotidiano do trabalho. Ceccim (2003) é um dos
autores que olha nessa direção, afirmando que a renovação e reforma na saúde pública brasileira
não se faz sem uma política criadora de novos dispositivos de educação profissional para o setor.
Entretanto, no relatório da II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em
dezembro de 1992 (após a implantação do SUS), a necessidade de se garantir práticas de ensino,
pesquisa e extensão que "favoreçam novas atitudes dos futuros profissionais em relação à
doença mental e que estimulem o desenvolvimento do potencial dos indivíduos com sofrimento
psíquico" como forma de produzir mudanças nos modos de trabalhar é apontada. O Relatório
incentiva a criação de grupos de reflexão e supervisão, para que os profissionais de saúde mental
possam repensar suas práticas, bem como a mudança na lógica das Universidades formadoras de
profissionais de saúde.Tais mudanças passariam pela introdução de temas de saúde mental e de
saúde coletiva em seus currículos.
O relatório da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, “Cuidar,
sim. Excluir, não. Efetivando a Reforma Psiquiátrica com acesso, qualidade, humanização e
controle social”, também afirma que a consolidação dos princípios da Reforma Psiquiátrica passa
pela proposição de uma nova política de recursos humanos em saúde. Uma política que “valorize
e considere a importância do trabalhador de saúde mental na produção dos atos de cuidar,
possibilitando o exercício ético da profissão”. O Relatório sublinha ainda a importância do
trabalho interdisciplinar e multiprofissional, “na perspectiva do rompimento dos ‘especialismos’
e da construção de um novo trabalhador em saúde mental, atento e sensível aos diversos
42
aspectos do cuidado”. Aponta também para a valorização da experiência de familiares e usuários,
superando a centralidade daquele saber científico que desconsidera o saber popular.
Assim, em ressonância aos abalos estruturais produzidos com a Reforma Sanitária e
Reforma Psiquiátrica, inicia-se a proposição de novas modalidades de formação de profissionais
de saúde. Cria-se a Residência Integrada em Saúde
12
, uma proposta de educação profissional de
pós-graduação organizada em torno do trabalho educativo multiprofissional e interdisciplinar.
Entre as ênfases da Residência Integrada estariam a atenção básica e a saúde mental. Ceccim
(2003) propõe que o termo “integrada” aponta para um redesenho da formação, onde haveria
integração entre trabalho e educação, entre diversas profissões da saúde e entre ciências
biológicas e sociais para alcançar a tão mencionada atenção integral em saúde.
A principal novidade da Residência Integrada foi a abertura de vagas de residência para
outras profissões. O que havia sido oficialmente previsto pela X Conferência Nacional de Saúde
(1996) que, além do aumento de vagas para a residência médica, apontou a necessidade da
“criação de programas de residência e de estágios de enfermagem, psicologia, nutrição, farmácia,
serviço social, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional e demais profissões de nível
superior ligadas à saúde”. Mais recentemente, a Lei Federal n° 11.129/05 que regulamenta a
Residência em Área Profissional da Saúde além da Comissão Nacional de Residência
Multiprofissional em Saúde (CNRMS) e a Portaria 2.117/05 que institui a Residência
Multiprofissional em Saúde, destinada às categorias profissionais da saúde, excetuada a médica
legitimaram, em âmbito nacional, a diretriz apontada pelas Conferências, bem como, as novas
experiências de formação já iniciadas.
Na observância dessas proposições, chama a atenção a separação entre os Programas de
Residência Médica e de Residência Multiprofissional. Da mesma forma que é impossível ignorar,
o constante combate da corporação médica à criação de residências para as demais profissões da
área da saúde, sob o argumento de que este formato de educação pós-graduada seria exclusivo da
área médica. Entretanto, embora, no âmbito legislativo, a Residência Médica não participe da
mesma regulamentação das residências das demais profissões de saúde, os espaços de formação
em serviço serão compartilhados e também os médicos farão parte das equipes multiprofissionais.
A pergunta que fica diz respeito aos efeitos que essa separação no âmbito da regulamentação,
12
A Residência Integrada em Saúde foi criada pela Portaria SES/RS n.16, de 1° de outubro de 1999, e pela Lei
Estadual n. 11.789, de 17 de maio de 2002. Ela estabelece a integração dos Programas de Residência Médica com os
Programas de Aperfeiçoamento Especializado (especialização em área profissional) e iniciou seu funcionamento na
Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul em 1999.
43
atualizadora de duelos coorporativos, produz no cotidiano de práticas das equipes e o que do
cotidiano das equipes pode reverberar no âmbito legal.
Desse modo, o que surge, à primeira vista, como novo na proposição da Residência
Integrada ou da Residência Multiprofissional é a produção de um espaço de formação de
profissionais de saúde compartilhado por várias profissões e disciplinas. Profissões e disciplinas
que podem ou não se posicionar nesse campo como racionalidades regionais. Buscamos a idéia
de racionalidades regionais em Lebrun (apud MEZAN, 2002), quando ele propõe que cada
disciplina possui sua própria racionalidade. Nesse sentido, não existiria a ciência, mas as ciências
e as especificidades de suas montagens racionais, o que excluiria a possibilidade de uma razão
universal e verdadeira. O termo regionais diria respeito ao fato de que cada disciplina, ao recortar
seu objeto, produziria uma certa região para a experiência, que se avizinha, mas nunca é a mesma
produzida pelos outros campos do conhecimento.
Assim, a criação da Residência Integrada parece desenhar lugares de encontros regionais,
na medida em que cada profissão e cada disciplina seguiriam com seus conhecimentos e técnicas
próprios e se veria lançada num campo de atividades interdisciplinares e multiprofissionais.
Justamente, na configuração desses lugares de encontros regionais, surgia a aposta na
possibilidade de invenção de outros modos de trabalhar. Nos termos do Ministério da Saúde, o
trabalho multiprofissional e interdisciplinar pode potencializar a produção de outros conjuntos de
competências e de conhecimento, que redimensionariam o trabalho e seu potencial educativo
13
.
Para Ceccim (2005), a região da experiência produzida pela formação em equipe
multiprofissional não seria apenas lugar de cruzamentos e intersecções. Tratar-se-ia de uma zona
de tensionamento de fronteiras, mais do que de superposições ou dissolução de diferenças. O
autor coloca que com esse dispositivo de formação busca-se a emergência de uma
[...] ética entre-disciplinar à estética multiprofissional do trabalho e educação da equipe de saúde. No lugar
interdisciplinar podemos encontrar não o cruzamento ou a interseção entre os profissionais, mas a
produção de si e dos cenários de trabalho em saúde, onde cada fronteira pode percutir na outra como
intercessão por sua mudança, resultando em alteridade e aprendizagem. Surge, então, a terceira margem,
não a interseção da interdisciplinaridade, mas a emergência do entre. Não o desenho da intersecção que
constituiria uma terceira identidade, mas um lugar de efeitos, de defasagem de si, de sensibilidade
(CECCIM, 2005, p. 265).
13
Conforme divulgado no site oficial do Ministério da Saúde do Brasil, www.saude.gov.br. Acesso em abril de 2006.
44
A residência multiprofissional carregaria então consigo essa potência de transformação
pela aposta na produção de espaços intervalares, de entre-lugares de onde algo novo e singular
pode irromper. Buscaria a superação do paradigma de educação em saúde fundamentado no
enfoque da especialidade e da segmentação do processo de trabalho, reprodutor de um modelo de
atenção em que predomina uma razão instrumental, fundada no olhar de profundidade, que
penetra e manipula o corpo, colocando o sujeito em posição de objeto. Essa razão instrumental
como racionalidade hegemônica se sustenta na idéia de que uma ciência autêntica, colocando-
se como modelo para os demais núcleos de conhecimento. Desse modo, a residência
multiprofissional, como espaço de formação, buscaria a invenção de novos modos de ser
profissional de saúde, pela produção de outras racionalidades. Por fim, estaria propondo, pela
formação desse novo profissional, um meio importante de introdução, no campo de trabalho em
saúde, de um objeto metamorfoseado como foco da atenção. Aquele definido desde as reformas
como a complexidade da vida do sujeito: a existência.
Em que medida a introdução de racionalidades regionais no campo da formação em saúde
pode romper com a racionalidade hegemônica de trabalho que faz da pessoa atendida objeto de
uma ação técnica? Como pode contribuir para a produção de atos terapêuticos que levem em
conta a complexidade da vida do sujeito? Ou ainda, de que modo, o encontro entre diversos
núcleos de conhecimento pode potencializar encontros entre sujeitos, tanto no espaço da equipe
quanto no espaço da produção dos atos terapêuticos? E por fim, o que garante que o campo de
formação e trabalho em saúde, mesmo habitado por diferentes profissões, não acabe por
reproduzir a racionalidade hegemônica, dando relevo a conhecimentos e técnicas em detrimento
da singularidade dos encontros?
A partir dessas perguntas recortamos nosso campo empírico de pesquisa e decidimos pelo
acompanhamento de duas equipes multiprofissionais e interdisciplinares de profissionais em
formação, uma de atenção básica em saúde e outra de saúde mental. Desse modo, nossa pesquisa
caminha na direção da interrogação acerca dos efeitos produzidos pelos dispositivos
multiprofissionais de formação em saúde na produção dos modos de trabalhar em saúde
mental. Daqui a diante duas interrogações se desdobram de nossa questão inicial sobre as
possibilidades de transformação do trabalho em saúde mental através da criação de novos
desenhos de formação profissional. A primeira pergunta pela colocação em cena das
diretrizes que regulamentam a Residência Multiprofissional em Saúde. Ou como o texto
45
legislativo ganha vida, dimensão e forma no cotidiano dos espaços de formação e trabalho?
A segunda pergunta pelos efeitos desta posta em cena ou como esses dispositivos de
formação atuam na constituição do lugar de profissional de saúde. Melhor dizendo, de que
maneira os residentes são afetados pela experiência de trabalho nessa equipe heterogênea
na atenção aos usuários?
Seguindo nossa montagem histórica, para colocar em ação a pergunta pela colocação em
cena das diretrizes que regulamentam a Residência Multiprofissional em Saúde, trataremos agora
da história de constituição de um programa de residência integrada, numa instituição de
reconhecida importância na rede pública de saúde de Porto Alegre. Contaremos essa história de
duas maneiras. A “história oficial” – a partir de uma pesquisa documental sobre a implementação
desse dispositivo de formação de profissionais de saúde na instituição. E a história narrada pelos
atores construída a partir de entrevistas com 13 residentes e 14 preceptores dos Programas de
Residência Médica (ênfases em Psiquiatria e em Saúde da Família e Comunidade) e de
Residência Multiprofissional (ênfases em Saúde Mental e Saúde da Família e Comunidade).
1.3.1 Da criação de um espaço multiprofissional de formação
A Residência Integrada em Saúde foi implementada no Grupo Hospitalar Conceição, a
partir de um projeto financiado pelo Ministério da Saúde, em julho de 2004. Foi instituída pela
Portaria GHC nº 109/04
14
, como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu,
multiprofissional e interdisciplinar, caracterizada pela educação em serviço, sob supervisão
docente-assistencial, destinada às categorias profissionais da área de saúde, excetuando-se a
medicina. Considerando que o GHC é uma instituição vinculada ao Ministério da Saúde, a RIS,
em sua portaria instituinte, afirma sua inserção no rol de ações que compõe as políticas de
ordenamento e formação de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde, buscando atender
os princípios norteadores desse sistema, quais sejam, a integralidade, a eqüidade e a
universalidade da atenção com controle social, conforme previsto pela Lei Orgânica de Saúde
8080/90 e pela Constituição Nacional (Portaria 037/07 GHC-DS 247/07). Segundo o projeto da
Residência Integrada em Saúde/GHC, o estabelecimento desse dispositivo de formação responde
a uma preocupação da instituição em oferecer “uma formação diferenciada que qualifique os
14
Portaria GHC nº 109/04, expedida em 31 de março de 2004.
46
profissionais para um olhar e uma escuta ampliada quanto ao processo saúde-doença-cuidado-
qualidade de vida, bem como em relação à orientação terapêutica, ao uso das tecnologias,
disponíveis ou a serem criadas, para o cuidado da vida, além do desenvolvimento de pesquisa em
atenção integral em saúde”
15
.
No texto desse projeto, alguns aspectos chamam especialmente atenção. Traremos então
alguns recortes do mesmo, com o intuito de dar visibilidade às palavras do texto original
16
. Em
primeiro lugar, é preciso dizer que o Projeto RIS/GHC busca clarear a que visão de saúde se
opõe. Nele, a RIS afirma-se enquanto proposta de formação que se distancia “da visão em saúde
direcionada ao individual e ao biológico, descontextualizados de sua produção social, cultural e
histórica”. E “propõe a agregação de outras bases de produção de conhecimentos, através da
inclusão das ciências sociais e das ciências humanas à temática da formação em saúde”. Enfatiza
a importância de uma “formação que estimule a curiosidade e a experimentação”, bem como vise
“desestabilizar conceitos rígidos e produzir novas práticas de atenção em saúde”. Coloca-se ainda
como uma proposta de formação que, ao propor espaços multiprofissionais de trabalho educativo,
quer “romper com o ‘especialismo’ dos saberes e com a hegemonia da tecnociência para
apreensão do real”. Para tanto, privilegia o estabelecimento de planos de trabalho
“inter/transdisciplinares” que possibilitem a “experiência de abertura recíproca e de comunicação
entre conhecimentos”, assim como a “troca sistemática e contínua entre saberes”.
Ainda em relação aos objetivos desta modalidade de formação em saúde, que se configura
no projeto RIS/GHC, destacam-se como questões relevantes a consideração da “realidade local”
das comunidades e pessoas atendidas, bem como dos “saberes populares”, em paralelo ao
conhecimento científico, para a o estabelecimento de ações ampliadas em saúde. Nesse sentido,
“compreender os indivíduos, famílias, comunidades e os diversos grupos sociais como sujeitos do
seu processo de viver e ser saudável” coloca-se como fundamental. Por fim, sublinha-se como
objetivos específicos da RIS a capacitação dos profissionais para o “planejamento e gerência em
saúde” e a construção de uma visão de trabalho que contemple “ações intersetoriais”. Segundo a
proposta de formação descrita no Projeto RIS/GHC, todos estes aspectos devem ser
desenvolvidos através de atividades de formação que se orientem por uma “metodologia
problematizadora”.
15
Projeto RIS/GHC, consultado em http://www2.ghc.com.br/GepNet/ , em junho de 2007.
16
Ibid.
47
Desde a implementação da Residência Integrada em Saúde no Grupo Hospitalar
Conceição, em 2004, como previa o projeto original da RIS/GHC, foram realizadas rearticulações
e reorganizações dos serviços, que privilegiaram a composição multiprofissional dos mesmos e
adequação de sua estrutura física
17
.
A Residência Integrada em Saúde contempla três áreas de ênfase para a formação: saúde
da família e comunidade, intensivismo e saúde mental. A distribuição de vagas para as diversas
profissões da saúde é variável em cada uma das ênfases, podendo ocorrer de as profissões
estarem presentes em apenas uma, duas ou em todas as ênfases existentes. Tal distribuição atende
às especificidades da atenção em saúde oferecida em cada campo/ênfase e é avaliada pela
Gerência de Ensino e Pesquisa da instituição. Atualmente, a ênfase de saúde da família e
comunidade, recebe residentes de enfermagem (6), farmácia (3), nutrição (2), odontologia (8),
psicologia (3) e serviço social (6). No ano de 2004, primeiro ano de funcionamento da RIS,
oferecia-se, nesta ênfase, apenas vagas para as profissões de enfermagem (5), odontologia (5),
psicologia (2) e serviço social (5). Em 2006, inseriu-se a farmácia no grupo de profissões que
compõe a ênfase de saúde da família e comunidade. E, no corrente ano, agregou-se ainda a
nutrição. Já a ênfase de saúde mental recebe residentes de enfermagem (1), psicologia (2), serviço
social (1) e terapia ocupacional (1), não tendo ocorrido aumento do número de vagas oferecidas
desde o início do funcionamento da residência. Por fim, na ênfase de intensivismo, o
oferecimento de vagas de residência para as profissões fisioterapia (2) e enfermagem (6). E,
assim como na saúde mental, o número de vagas e a diversidade das profissões seguem os mesmo
desde a implementação. Chama atenção, o fato de a RIS ter tido uma importante ampliação
apenas na ênfase de Saúde da Família e Comunidade. De todo modo, é digno de nota que, em sua
quarta edição, o Programa da Residência Integrada em Saúde do GHC ofereça 41 vagas para
profissionais de saúde em formação de oito profissões diferentes.
A RIS/GHC se organiza através de atividades de reflexão teórica módulos teóricos
integrados e módulos teóricos específicos de campo e núcleo e atividades de formação em
serviço. Tais atividades são distribuídas em uma carga horária anual de 2880 a 3200 horas, o que
corresponde à cerca de 60 horas semanais, das quais 10 a 20 % é reservado para atividades
17
Além do Projeto RIS/GHC, a Portaria n° 037/07 GHC-DS 247/07, que regulamenta a Residência Integrada em
Saúde/GHC, em seu art. n° 7, assegura que as atividades da RIS-GHC serão desenvolvidas em ambiente de
trabalho, dotado de corpo Técnico–Científico possuidor de experiência e/ou titulação profissional ou acadêmica
reconhecida e de instalações apropriadas ao ensino e a aprendizagem”.
48
teóricas. Com relação às atividades de formação em serviço, uma organização que prevê que,
no primeiro ano da residência, o residente realizará sua prática, exclusivamente, na sua área de
ênfase. Já, no segundo ano, realizará estágios também “em áreas afins e/ou complementares, na
própria instituição ou em outras instâncias do SUS”
18
.
As ênfases da RIS, abordadas nesta pesquisa, têm as seguintes temáticas previstas no
projeto para a formação no campo:
1. Saúde da Família e Comunidade: “atenção primária em saúde e o SUS; contexto político-
social da saúde; controle social em saúde e o SUS; gerenciamento dos serviços de saúde -
planejamento; abordagem de famílias; educação em saúde no cuidado à família; o
processo de trabalho em equipe multidisciplinar; interdisciplinaridade; corpo e saúde -
dimensões sócio-antropológicas; vigilância à saúde; saúde mental na saúde da família;
vigilância epidemiológica e as doenças infecto-contagiosas”
19
.
2. Saúde Mental: “legislação em saúde mental; políticas de saúde mental; abordagens
teóricas em psicoterapias; terapia de família; arteterapia; álcool e outras drogas;
psicofarmacologia em saúde mental; clínica ampliada em saúde mental”
20
.
Quanto à avaliação do residente da RIS, o projeto entende que se trata de um meio e não um
fim em si para a formação, prevendo diversas possibilidades de realizá-la. Uma delas é o trabalho
de conclusão, que é condição para o recebimento da certificação do título de especialista. Tal
trabalho deve contemplar uma pesquisa, adequada às linhas de investigação definidas, e que leve
em consideração os eixos transversais da RIS (atenção integral, educação permanente,
humanização). O projeto da RIS prevê ainda que os programas de residência médica existentes
na instituição devem integrar-se ao dispositivo multiprofissional de formação criado, através de
atividades de reflexão teórica, como os módulos teóricos integrados.
1.3.2 A história narrada por seus atores:
montando cenários de formação
Um cenário se monta de personagens e histórias. São as palavras e gestos dos personagens
que lhe dão corpo e movimento. Tentaremos agora fazer um trabalho de montagem dos cenários
18
Idem ao 2.
19
Idem ao 2.
20
Ibid.
49
de formação a partir das narrativas de seus preceptores, coordenadores, orientadores e dos
próprios residentes. Narrações que versam sobre a constituição do Programa da Residência
Integrada em Saúde, em suas duas ênfases, Saúde da Família e Comunidade e Saúde Mental, e do
encontro desse programa com a Residência Médica em Psiquiatria e Medicina da Família e
Comunidade nos espaços de discussão das políticas institucionais e nos da assistência.
Buscaremos colocar em cena os roteiros simultâneos, os roteiristas personagens, as mudanças de
roteiro. Também os elementos cênicos, suas distâncias, seus tempos e modos de aparição.
Tomando, arbitrariamente, a criação da RIS como um ponto de partida, nos perguntamos pelos
movimentos que a inserção de um novo roteiro de formação produziu nos espaços de trabalho
educativo em saúde: cenários de formação.
Iniciaremos a montagem pelo campo da Saúde Mental para, adiante, nos ocuparmos da
ênfase Saúde da Família e Comunidade. A escolha por esse começo diz de uma tentativa de dar a
ver o que consideramos como um importante movimento de cenários, a saber, a ampliação dos
espaços de formação em saúde mental para além dos lugares tradicionalmente instituídos de
atenção hospitais e ambulatórios. Desse modo, a forma que tomará o texto, nesse momento, se
assemelhará ao percurso que trabalho e formação em saúde mental realizaram, escapando pelas
frestas das instituições totais para os espaços porosos das comunidades. Movimento de encontro
entre os cenários de formação em saúde mental e os de saúde da família e comunidade, do qual os
residentes e profissionais dos programas aqui abordados começaram a se apropriar.
Cenários de formação em saúde mental
A implementação do Programa da Residência Integrada em Saúde no Grupo Hospitalar
Conceição aconteceu simultaneamente a modificações na estrutura dos serviços de atenção em
saúde mental. Na fala dos profissionais que participaram do planejamento dessas transformações,
a criação da RIS aparece como um dos fatores que impulsionou as mudanças nos serviços, na
medida em que estes deveriam estar organizados de maneira a oferecer espaços de formação
adequados. Ou seja, espaços de trabalho em saúde mental consonantes com as diretrizes de
desmanicomialização previstas pela Reforma Psiquiátrica. É possível dizer que as propostas de
criação de uma residência multiprofissional e de serviços como os CAPS atendiam às diretrizes
50
das políticas nacionais em saúde mental e foram implementadas simultaneamente, embora a
residência como projeto tenha se efetivado primeiro.
Uma das coisas que a gente tentou aliar foi ter dentro da instituição uma estrutura que
desse conta minimamente, num primeiro momento, da gente implantar a residência. Então uma
equipe que acolhesse, um serviço qualificado, profissionais empenhados e dispostos pra questão
do ensino, mas também pensar na realidade loco regional e quais eram as necessidades de
formação pra essa nossa realidade. (...) Na saúde mental, a escolha também tinha a ver com
uma questão de organização interna do hospital, da estrutura do GHC, em função de que existia
naquele momento aqui no GHC, além dos ambulatórios de psicologia e de psiquiatria, um
serviço de hospital dia, que pretendia atender os usuários do SUS dentro de uma lógica
antimanicomial. Existiam alguns problemas em relação a esse serviço, ou seja, uma certa
dificuldade de fazer um trabalho em rede e poder dar alta pra esses usuários e ter acesso pra
novos usuários. Era um serviço que tinha uma certa dificuldade de se movimentar porque
inchava, inchava, inchava de pacientes e não conseguia dar alta. Mas também se estava num
processo de discussão dentro da instituição de uma política de saúde mental pro GHC. Se tinha
na época alguns leitos de internação psiquiátrica no hospital Cristo Redentor. E tinha uma
proposta, discutida com o ministério público, que tava em projeto, agora ta efetivada, de
abertura de alguns leitos de internação em saúde mental, aqui no Hospital Conceição. Agora
foi implantado. E também tinha a proposta de transformar esse hospital dia em CAPS. A
proposta era transformar o hospital dia em CAPS adulto, transformar o Serviço de Atendimento
a Alcoolismo e outras Drogas em um CAPS ad e também de transformação do ambulatório de
psiquiatria e psicologia infantil num CAPS i. Isso ainda era naquele momento, que se estava
montando a residência, um projeto político da nova gestão do GHC (psicólogo).
As primeiras turmas da residência multiprofissional testemunharam a metamorfose dos
serviços: a desativação do Hospital Dia e do Serviço de Atendimento ao Alcoolismo e outras
Drogas, a criação do CAPS adulto e do CAPS ad e, mais recentemente, a abertura de leitos de
internação em hospital geral no Hospital Nossa Senhora da Conceição.
Tinha um grupo de residentes que entrou no CAPS ad, quando o CAPS ad tava saindo de
dentro do hospital pra se estruturar. E esse mesmo grupo de residentes no ano seguinte veio pro
hospital dia e acabou participando da mudança de lá pra cá também. Então eu até brincava com
uma das residentes que a formação dela ia ser muito boa em como se estrutura, como se cria um
CAPS. Porque tu participar... nem sempre tu faz do melhor jeito que se tem... mas tu participar
daquele processo na prática é diferente de tu ver como é que tá feito (assistente social).
A referência aos efeitos de formação que uma tal experiência, em serviços em franca
transformação, pode produzir foi referida por muitos entrevistados. Porém, segundo contaram, os
efeitos de formação atingiram também preceptoria e orientação. As modificações produziram a
51
necessidade da contratação de novos profissionais que dessem conta das novas demandas na
assistência, bem como das demandas de formação com a inserção dos residentes nos serviços.
Esses novos profissionais, não raras vezes, nas entrevistas, se colocaram como principiantes.
Quando eu entrei no GHC, eu fui chamada pra saúde mental e estava sendo inserido o
projeto da residência. Ou melhor, elas entraram um semestre antes de mim, quer dizer, já estava
em andamento esse processo e aos poucos eu fui me adaptando, no sentido de um
desconhecimento por essa questão, por essa área. Então a princípio então comecei a poder estar
junto com as residentes num trabalho tanto de seminários, de supervisão local, de orientação.
Eu fui tendo sim uma série de dificuldades pelo meu próprio despreparo, falta de experiência,
que aos poucos tu vais buscando. Até pela própria questão da GEP do GHC estava muito
imaturo ainda, de uma proposta pedagógica ainda não concluída. Então isso foi aos poucos
tomando um rumo, como ainda continua num processo, mas que bom que está havendo essa
questão de capacitação pros profissionais. Porque o momento que tu está dando a formação pro
residente, tu estás, como diz a palavra, formando. Pra mim, muitas incertezas, algumas
inseguranças, mas também buscando de uma certa forma, a minha própria formação pra poder
transitar melhor nesse campo como orientadora (terapeuta ocupacional).
Como podemos ver, os novos profissionais contratados relataram pouco ou nenhuma
experiência anterior em dispositivos de atenção como o CAPS. Contaram sobre o desconforto de
estar numa posição de quem ensina, na medida em que sentiam que tinham muito o que aprender.
E, principalmente, contaram de seu esforço em investir na própria formação para de alguma
forma dar conta do lugar a que a instituição em transformação os convocava. Embora a referência
à convocação à aprendizagem aparecesse de modo mais explícito nas falas dos novos
contratados, os profissionais antigos também referiram tal experiência. O que nos faz pensar que
um cenário em movimento, em que as posições desde onde atuar na cena estão por se marcar,
convoca todos os atores a alguma medida de improviso e de revisão de papéis.
Eu cheguei no hospital dia meio ano depois que começou isso. (Mudança de Hospital Dia
para CAPS adulto). Eu me senti muito perdida, porque é um conteúdo completamente diferente
teórico do que eu sabia. E aí tu tem que estudar, tu tem que ir atrás e aí tu não sabe nem pra ti e
tu tem que ensinar alguém. É super complicado, eu me vi muito perdida. E a enfermagem não é
uma área inata da parte da saúde mental. O psicólogo tem todo uma formação voltada pra isso.
O assistente social, de certa forma também, o TO, mas a enfermagem tem a ver com a parte
clínica. É dentro do hospital que o enfermeiro trabalha. (...) E eu fui aprendendo por mim
assim, fui aprendendo com a Carla que fazia os seminários com os psiquiatras, fui lendo, fui
fazendo os erros com os pacientes e o pessoal foi me avisando que tinha que ser diferente,
como é que tinha que ser. E aí eu me coloquei na frente da residente desse jeito. Eu disse: “olha,
eu também to aprendendo junto contigo”. Não tem como tu mentir isso, porque por mais que tu
tentes não passar a insegurança, ela existe e isso não pra tentar burlar. Então foi bem
complicado. Ainda hoje eu acho difícil, porque é uma área que tu não aprende de um dia pro
52
outro. (...) A aprendizagem não terminou ainda. Acho que não termina nunca, mas tu tem um
período que tu começa a ter uma segurança maior (enfermeiro).
Essa mescla de profissionais experientes, novos profissionais e profissionais em formação
constituiu o elenco de preceptores e orientadores que recebeu os residentes. Entre os
protagonistas, afetações recíprocas: profissionais impelidos a atualizar seus conceitos e práticas,
movidos pelos questionamentos dos residentes. Residentes buscando referências em alguma
tranqüilidade dos profissionais experientes. Antigos profissionais reformulando ou enrijecendo
modos de trabalhar como resposta ao chamado das transformações ao improviso.
Mudou bastante a minha rotina, porque os residentes trazem muitos questionamentos. Tu
tem que te reciclar muito, estudar muito, tu tem que estar... a gente tem que fazer um processo de
reflexão muito importante, porque não é fácil. São dez residentes, cinco R1 e cinco R2. Eles
questionam coisas que às vezes tu conta e tem coisas que às vezes a gente não conta. E
como lidar com as coisas que a gente não conta? Porque eles questionam e eu acho que eles
estão aqui pra isso, pra questionar o que eles estão vendo. Mas foi uma coisa bem importante na
minha vida, acho que teve um significado bem importante (assistente social).
O Programa de Residência Médica, que tinha uma longa história dentro do Grupo
Hospitalar Conceição, passou a dividir os seus espaços de práticas com os recém chegados
residentes de outras profissões. Na percepção de um dos preceptores da Residência Médica em
Psiquiatria, este fato não provocou mudanças na rotina da formação médica. Como se
compartilhar a cena com novos personagens não exigisse novas performances.
Começou a residência em psiquiatria do Conceição eu acho que foi em 99, então sete
anos. Na verdade, a residência foi acompanhando o serviço. A gente começou com dois
residentes, um R1 e um R2 e a partir do ano retrasado aumentaram pra três vagas, então tem
três R1 e três R2. E a partir do ano que vem são nove residentes, porque a residência em
psiquiatria passou pra três anos. (...) Na verdade, a residência acompanha o serviço e não ao
contrário. Até porque não tem condições, porque o hospital não me ofereceria assim condições
de “ah o que eu quiser, me dá”. Por exemplo, a internação psiquiátrica foi uma coisa que a
gente conseguiu esse ano, a duras penas, que era um desejo muito grande, até pra residência e
principalmente pra ter um atendimento digno pros pacientes. Então várias mudanças nesses
anos todos. (...) Acho que a entrada da RIS não mudou a rotina da RM. São COREMES
diferentes. A gente tem uma outra COREME. Então acho que na questão teórica não. Na prática
sim porque as atividades são... por exemplo, nessas mini equipe os pessoal da RIS participa,
alguns seminários são juntos, a maioria é separado, mas alguns são juntos. Quando a gente vai
dividir tarefas, então se divide. Agora eu vejo muito que isso tem a ver com como o serviço
funciona. E o serviço funciona assim, a gente sempre trabalhou em equipe. Então como a gente
53
trabalha em equipe isso é meio automático pra eles né, trabalharem juntos assim, dividindo
tarefas (psiquiatra).
A referência ao trabalho em equipe como algo que não seria nenhuma novidade diz
respeito ao funcionamento do Hospital Dia, que possuía profissionais não médicos em sua
equipe de saúde mental. Nesse sentido, o CAPS e a RIS não viriam introduzir grandes diferenças
na rotina do trabalho. Chama a atenção a afirmação são COREMES diferentes, o que nos sugere
que, como são órgãos diferentes que regulam a formação da RIS e da RM, não como as
mudanças em uma área afetarem a outra. Porém, o órgão regulador da RIS não se chama
COREME
21
. Este regula apenas a Residência Médica. Produz-se um apagamento da diferença,
inclusive no momento em que se tentava marcá-la, com o intuito de negar o impacto do que
emergia como novo.
Como referido, o novo que a Residência Integrada introduzia fazia série com a
novidade que representava a criação dos CAPS. Porém também essa diferença estava em fase de
elaboração. Na opinião de alguns preceptores da RIS, havia uma certa dificuldade em assumir
que o CAPS exigia uma dinâmica de trabalho em equipe e de organização da atenção distinta
daquela que se produzia no Hospital Dia. No relato da preceptoria médica, se trabalhava em
equipe antes da criação do CAPS, tratava-se então de dar continuidade ao trabalho. Entretanto,
para um orientador da RIS, era preciso assumir rupturas importantes com a antiga lógica do
Hospital Dia. Esta tensão entre romper com o antigo roteiro e dar continuidade a ele esteve
presente em muitas entrevistas.
Eu também não entendia muito o que é um CAPS. Como eu trabalhei cinco meses num
hospital dia, tu via que os pacientes chegavam as oito e saiam às três horas da tarde. Me parece
que tinha pacientes graves, tinha, mas como que isso se acomodava? O que eu percebo é que o
CAPS tem um outro lugar de abrangência, de poder receber os pacientes mais em crise pra que
eles não vão pra lugares de internação. Que isso pudesse ser um lugar que a gente recebesse sim
pacientes em crise, não totalmente assim, mas que... pacientes bem mais comprometidos do que
muitas vezes eu vejo chegar num CAPS. Que poderia ser mais a nível ambulatorial, que poderia
estar mais no posto. O CAPS seria algo um pouco maior, que poderia receber pacientes bem
mais graves. No Hospital Dia, eram pacientes acho que sim graves, seguia a mesma avaliação
assim, a permanência deles é que eu acho que era maior. Que era isso assim de não ter esse
fluxo “ah, veio, foi, trabalhou e se aonde tá... que posto inserido”. Acabava o hospital
dia mais como... as pessoas que trabalharam muito mais tempo no Hospital Dia colocaram a
coisa como um paternalismo de mais assim, e uma coisa mais como um assistencialismo. Eu
acho que um pouco são essas as diferenças (terapeuta ocupacional).
21
Comissão de Residência Médica.
54
Da mesma forma, para um dos profissionais do CAPS, este dispositivo de atenção em
saúde mental, ligado a um programa de formação multiprofissional, produziu a visibilidade das
diferenças, dando lugar, melhor dizendo, dando existência a outros fazeres e saberes.
O que eu acho assim que a gente está conseguindo é o respaldo de que outros
profissionais existem no CAPS que não a questão da psiquiatria, que é fundamental, mas que
os outros também o são no sentido de que estão ali diariamente fazendo essa continência, esse
certo limite, intervenção, diariamente. Seja nas oficinas, seja no decorrer do café da manhã.
Porque a cada momento que tu estás ali no CAPS tu pensa tudo como sendo terapêutico. Aí cada
residente, cada área tem um ou dois residentes. Então eu acho que isso está começando a
aparecer que estes profissionais sim existem e atuam diariamente no CAPS (terapeuta
ocupacional).
O CAPS deu existência também a espaços alternativos de intervenção, que, segundo outro
componente da equipe precisavam ser mais valorizados como espaços terapêuticos. No relato que
segue, aparece a percepção de um preceptor em relação a como estes espaços clínicos das
oficinas terapêuticas são percebidos pela equipe. As oficinas teriam um lugar de não valorização,
na medida em que os profissionais médicos resistiram a participar das mesmas. cerca de
dezoito oficinas terapêuticas neste CAPS. Para citar algumas delas: oficina de música, oficina de
maquetes, oficina de sabonetes, oficina de fotografia, oficina de relaxamento, entre outras. Não é
nosso objetivo aqui discutir o que está em cena, como dispositivo terapêutico, em cada uma
delas. Mais adiante, quando apresentarmos o percurso singular de formação de alguns residentes,
traremos as narrativas dos mesmos acerca de suas experiências nestes espaços e então poderemos
tomar como questão que espaço de clínica e de formação tem se produzido aí. Por hora, nos
limitaremos a situar o lugar das oficinas na constituição dos cenários que estamos nos propondo a
montar.
Eu acho que aí é uma questão que a gente tem que poder... que eu acho que só vai mudar
pra eles (preceptores médicos e residentes) se mudar pra nós. Eu acho que uma oficina tem que
ter o mesmo valor terapêutico que um atendimento. Então o serviço é um serviço novo, o CAPS é
uma coisa nova pra nós e eu acho que se veio muito com uma idéia de que bom o hospital dia
funcionava, era um espaço bem menor do que a gente tem hoje, mas a gente dava conta. Era
uma oficina de manhã outra de tarde, aqui tem muito mais oficinas. (...) Não sei, eu fico até
receosa de falar, mas a idéia que passa assim é de que é um lugar aonde o paciente vai, tem um
valor terapêutico, mas ele não tem o mesmo valor terapêutico que uma consulta. E eu acho que
isso só muda se a gente muda o conceito que a gente tem disso. E se a gente muda o conceito que
a gente tem disso, vai existir uma preocupação maior em estar podendo fazer isso como parte da
55
tua formação. Se discute pouco isso quando se fala dos pacientes. Eu acho que se a gente
conseguisse discutir com o grupo todo mais o resultado das oficinas eu acho que teria um
outro... um outro olhar (assistente social).
Colocar em discussão na equipe o valor terapêutico das oficinas em sua especificidade
clínica, na visão deste preceptor, produziria algum movimento na própria equipe. As oficinas
acabam sendo o lugar de intervenção dos não médicos e nesse sentido repetiriam a hierarquia
estabelecida entre as profissões na equipe. A hipótese deste preceptor é a de que dar visibilidade
aos resultados destes dispositivos para os pacientes integraria mais a equipe e faria com que as
oficinas terapêuticas ganhassem legitimidade como lugar de produção de importantes
experiências de formação clínica. Entramos aqui no tema da distribuição de valor e das relações
de poder entre as profissões que compõe as equipes de saúde mental.
A inserção de um programa de formação multiprofissional e de uma série de mudanças
estruturais nos dispositivos de atenção em saúde mental, no seio de uma instituição de tradição
eminentemente médica, não poderia se fazer sem colocar em cena jogos de poder. Muitos
preceptores, orientadores e coordenadores fizeram menção a estes tensionamentos. Vejamos que
tensões se produziram, de um modo geral, no GHC, especificamente, em relação à proposta da
Residência Integrada.
No início, foi bastante provocativo. A inserção da residência multiprofissional dentro da
estrutura do GHC não foi sem conflitos, porque na mesma época em que estava efervescendo a
discussão do ato médico, a gente vinha então discutindo a inserção de residência. Aí a gente teve
muitas resistências internas do grupo da medicina, assim entendido como a corporação médica,
não como... a gente tinha apoio de vários colegas médicos, a gente tinha a inserção de vários
colegas médicos na discussão da proposta. A gente formou um conselho gestor que era formado
por representantes de vários grupos, inclusive da COREME. Na saúde mental, a gente tinha a
formação em psiquiatria, então a gente também trazia eles pra dentro da comissão. Na saúde da
família e comunidade, tinha a residência em saúde da família e comunidade, então a gente fazia
essa discussão aí. Mas foi bastante difícil, particularmente, em algumas áreas. A terapia
intensiva, por exemplo, foi um campo muito difícil. (... )E tinha então uma disputa bastante
intensa no sentido de entender... tinha uma frase padrão que eles usavam de discutir se a gente
tava fazendo uma residência multiprofissional ou criando um profissional multifunção. Uma
discussão equivocada de que nós queríamos que todo mundo aprendesse tudo. E a lógica da
residência não era essa né, nós fazíamos uma proposta de sim uma formação multiprofissional
numa lógica interdisciplinar. (...) Então, na lógica da atenção integral, tinha uma perspectiva de
que sim a gente entendia que a gente queria uma formação que num momento pudesse pensar as
situações que eram atendidas, as pessoas que era atendidas, os grupos pelo conjunto de
profissionais que tavam atendendo, mas também a gente entendia que tinham que ter momentos
de formação específica de cada uma das áreas profissionais. Por isso a gente constituiu a
56
residência numa lógica de campo e núcleo. (...) Enfim, teve um movimento bastante intenso no
sentido de barrar, de tentar frear essa proposta (psicólogo).
A proposta inicial de que a Residência Médica se incluísse no Programa de Residência
Integrada não encontrou ressonâncias na categoria médica, sob o argumento de que se formaria
um profissional multi-função, perdendo-se as especificidades de cada profissão. Nesse sentido, a
categoria médica sentiu-se ameaçada e um grupo de profissionais resistiu ferrenhamente à
implementação da RIS, apesar dos esforços dos proponentes da mesma em garantir a organização
de dispositivos de formação que resguardassem as especificidades profissionais. A lógica de
campo e núcleo, tomada da teoria de Gastão Wagner de Souza Campos, buscava mesclar espaços
de interlocução entre as profissões, de aprendizagem de conteúdos comuns e de trabalho
interdisciplinar, com espaços que mantivessem a especificidade das profissões os núcleos. Tal
preposição encontrou receptividades diferentes nos três espaços de inserção da RIS: Terapia
Intensiva, Saúde Mental e Saúde da Família e Comunidade. Na Saúde Mental, esta proposta se
efetivou, porém não sem desconfortos, o que é possível perceber no relato que segue de um
preceptor da psiquiatria.
O que acontece é que eu costumo adaptar um seminário que eu daria pras pessoas da
medicina e eu tenho que dar pra RIS também e até por comodidade minha eu dou junto.
Porque o pessoal da medicina não participa muito dos seminários com o pessoal da RIS não.
Apesar de ter sido um pedido da direção do hospital, e tal. Até porque eu acho que tem as
particularidades de cada área e às vezes é mais complicado assim. Algumas coisas ficam mais
complicadas de estudar junto e até porque tu num ritmo com uma turma e entra outra
turma. Então eu vejo algumas atividades junto, mais por comodidade minha do que realmente eu
ache que isso seja interessante. Eu acho que a prática sim é interessante, a teoria eu já acho que
fica meio capenga, porque até o pessoal da psicologia acompanha mais, mas tu o pessoal
da enfermagem que não tem nenhum contato com... o serviço social... Eu acho que às vezes fica
assim uma misturança né. (...) Até porque eu acho que é seminário e não é aula. E daqui a pouco
o residente de psiquiatria ta com uma dúvida que ele não quer perguntar na frente da assistente
social ou da psicóloga, porque ele pode ter constrangimentos de perguntar, né?(...)De mostrar
que não sabe, acho que tem muito isso. Acho que eles não se sentem à vontade, principalmente
os R1 que tão entrando. Então eu acho que eles ficam mais à vontade... às vezes a gente fica em
discussões intermináveis assim... Que que a gente discutiu esses dias? Sobre identificação
projetiva. Daí ele não conseguiu entender bem o que que era identificação projetiva. (...) Daí eu
fiquei brincando com ele dias assim “olha a identificação projetiva” pra ele ir aprendendo a
identificar. E é uma coisa que talvez ele não me perguntaria se tivesse mais gente. Talvez
dissesse que entendeu na primeira vez que eu expliquei e ele na tinha entendido (psiquiatra).
O problema que a introdução de espaços de encontro entre as diferentes profissões
oferece, segundo este preceptor, diz respeito aos distintos níveis de apropriação do conhecimento
57
em saúde mental entre médicos e não médicos. Seria preciso situar à qual conhecimento ele se
refere. Ao que tudo indica, trata-se do conhecimento médico acerca da saúde mental, que
envolveria noções de teorias psicodinâmicas e de aspectos orgânicos relacionados às
psicopatologias. Se as aulas “integradas” se organizarem em torno da abordagem de temas que
dizem respeito a apenas um núcleo profissional, produzir-se-á uma homogeneidade, mesmo com
a presença de profissões diferentes. O preceptor se coloca a questão de como transmitir um
conhecimento para um grupo tão heterogêneo de profissionais, entretanto uma interrogação mais
potente poderia ser: como fazer dessa heterogeneidade, efetivamente, um propulsor de
aprendizagens? O nivelamento do conhecimento todos saberem mais ou menos sobre os
mesmos temas, no mesmo nível poderia trazer um certo apaziguamento, uma harmonia para os
cenários de formação. No entanto, talvez a questão não seja garantir a harmonia, mas poder
renunciar a ela. Trazer à cena de aprendizagem elementos teórico-práticos de cada um dos
núcleos profissionais de forma a potencializar a produção de conhecimentos novos, a partir dos
embates.
Por outro lado, no relato do preceptor, o problema do encontro entre diferentes
relacionava-se também ao desconforto dos residentes de medicina colocarem dúvidas e
mostrarem seu não saber diante de profissionais de outras áreas. O encontro com esse outro
inibia, enrijecia fronteiras, bloqueava a assunção de uma posição de não saber, imprescindível
para qualquer aprendizagem. O que os contornos de um espaço de trocas, interdisciplinar, é a
possibilidade de que o não saber apareça. Como então produzir uma experiência interdisciplinar,
se os sujeitos se preocupam em sustentar uma posição de saber sem vacilação? Inicialmente, era
nesta direção que apontavam os efeitos iniciais do encontro entre Residência Integrada em Saúde
Mental e Residência Médica em Psiquiatria. Desse modo, podemos dizer que, entre as principais
componentes dos cenários que se montavam com a introdução da RIS, estavam perguntas caladas
e o desconforto diante da alteridade que pedia passagem.
Eles vem muitas vezes com a questão assim “ah, isso aqui é pra TO?” ou “Ah, isso aqui
não é pra TO?” Ou, muitas vezes, “ah, a gente tinha que fazer mais isso”. Não sei se se poderia
dizer um coorporativismo. Acho que muitos residentes se perdem quando eles chegam, muito
com isso assim, muito fragmentados. “Isso é meu, eu não divido”. Isso eu acho que é uma
coisa que a gente tem que mais ou menos orientar assim (terapeuta ocupacional).
A dificuldade inicial que o encontro com a alteridade relativa às profissões ofereceu,
aparece no discurso de vários preceptores. Principalmente, quando a pergunta é sobre a chegada
58
dos residentes e o início da formação em serviço. Esse desconforto com a presença estranha
daquele com quem não me identifico se traduzia no impulso inicial de sentir-se invadido em seu
espaço. O interessante é que muitas das reações observadas pelos preceptores nos residentes
encontravam par nas suas próprias experiências. A regionalização da atenção aparece como um
dos elementos novos nos cenários de trabalho e formação em saúde mental que provocou certo
estranhamento do lado de residentes e preceptores.
Acho que a maior dificuldade que os residentes chegam é a questão do atendimento na
rede de saúde mental. Porque é uma lógica muito municipal, está dentro das políticas, mas... e
eu te digo isso porque quando eu trabalhava no hospital a gente não tinha noção de
regionalização, de o que que era referência pra o que. O paciente tava no hospital e tu
atendia. No momento ... como a gente atende muito paciente de fora de Porto Alegre, bom no
momento da alta ele vai pra secretaria de saúde do seu município e eles dão conta disso. Então
assim não existia uma idéia de que esse paciente pode acessar esse serviço porque ele porque
ele pertence a tal região. (...) E foi uma dificuldade muito grande em relação à equipe de saúde
mental, quando essa gestão começou a fazer uma contextualização de município, de regionalizar
vários serviços. Isso é novidade pro hospital. Os profissionais que trabalham no hospital não
têm noção disso. O paciente chegou ali, bom eu atendo, e na hora de devolver “vá pro seu
postinho”. Bom agora a gente é referência pra essa região e se a gente não conta de atender
as demandas dessa região, qual é a relevância que nós temos pra essa região? Se eu vou atender
de outra região porque eu acho que o outro não atende, porque eu acho que ele não vai
conseguir acessar o serviço, é uma conduta que eu to tomando até sem saber se o outro vai
conseguir acessar o serviço ou não (assistente social).
A questão da regionalização introduz uma mudança fundamental de roteiro que pede uma
revisão de posições dos personagens. Regionalizar os serviços implica não poder atender toda a
demanda espontânea, não poder atender todo e qualquer paciente que busca o serviço, porém não
significa não acolher todo e qualquer usuário que pede entrada no serviço. Acolher também é
referenciar o usuário com responsabilidade, oferecendo o serviço adequado da rede. É nesse
sentido que regionalizar significa, em alguma medida, parcializar. Negar atendimento a um
paciente é uma cena indesejada dentro do hospital. O paciente tava no hospital e tu atendia.
No momento em que se passa a atender apenas usuários que moram em determinada região de
responsabilidade do serviço, surge a necessidade de se conhecer a rede de saúde para poder
referenciar os usuários que não serão atendidos. A regionalização força os profissionais a se
descentrarem da própria instituição e estabelecerem contatos com o que está fora: outras
instituições, outras equipes e profissionais, outros modos de trabalhar. Como se o novo roteiro
59
incluísse a produção de cenas de trabalho em movimento centrífugo
22
. Isso é novidade pro
hospital. Diante dessa novidade, dois pontos de angústia: e se a gente não dá conta de atender as
demandas dessa região? E se o outro serviço não estiver tão preparado como o meu para atender
o usuário que eu encaminho? Desse modo, a regionalização, assim como outras mudanças
estruturais nos serviços de saúde mental, tocou profundamente os modos de organização até
então instituídos, colocando profissionais contratados e residentes em posição de pergunta no
cenário da atenção em saúde.
Regionalizar diz respeito a inserir o usuário em uma rede de serviços, o que quer dizer
tanto referenciá-lo ao serviço de saúde mental de sua região, quanto conectar os usuários da
própria região de abrangência que estão no CAPS, para os serviços de atenção básica. A essa
altura, um simples Vá pro seu postinho torna-se insuficiente. Trata-se da introdução de um pensar
em rede. Pude acompanhar no Centro de Atenção Psicossocial em que realizei este percurso de
pesquisa uma série de discussões em torno desse tema. O ponto de maior desconforto dizia
respeito ao momento de reencaminhar os pacientes para as Unidades Básicas de Saúde, quando
alcançado o objetivo do trabalho terapêutico no CAPS. Esse reencaminhar ou referenciar ao
posto, não raras vezes, foi trazido em discussão através da palavra devolver. Surgiam questões
como: o paciente não é nosso, a gente tem que devolver o paciente pro posto. Ou ainda a gente
trata, estabiliza o paciente e depois manda pro posto e eles não tem a mínima estrutura para
acolher a pessoa. Não demora muito ela vai estar aqui de novo em surto.
A área correspondente ao CAPS adulto é composta de apenas quatro Unidades Básicas de
Saúde administradas pelo GHC, as demais (número) são de responsabilidade da Prefeitura de
Porto Alegre. Segundo a equipe do CAPS, o trabalho com as unidades da PMPA lhes preocupava
mais do que o trabalho com as unidades do GHC por vários motivos. Referiram que as equipes de
atenção básica da Prefeitura não têm estrutura para dar assistência adequada às demandas de
saúde mental, que, em sua maioria, são compostas apenas por médicos e enfermeiros, não
possuindo profissionais de saúde mental. Outra crítica dizia respeito à formação dos médicos
nestas equipes que, muitas vezes, não têm especialidade em saúde da família e comunidade, fato
raro nas equipes do GHC. Neste, muitas das equipes das Unidades Básicas possuíam
22
A questão da organização da rede de atenção será trabalhada de forma mais ampla no quarto capítulo, a partir do
percurso de um dos residentes entrevistados, numa interlocução com a proposição de Ceccim (2005) sobre a rede
pensada desde a perspectiva de uma mandala. Nos limitaremos aqui a situar tal problemática como um dos pontos de
tensão presente nas equipes acompanhadas e a visibilizar os sentidos enunciados em torno da mesma nos relatos dos
preceptores.
60
profissionais da área de saúde mental em suas equipes, como psiquiatras e psicólogos,mais de
dez anos. E, entre 2003 e 2006, um grande número de novos profissionais foram contratados.
Este investimento na qualidade das equipes dava, de alguma forma, uma maior tranqüilidade para
a equipe do CAPS, quando o assunto era receber e encaminhar pacientes ao Serviço de Saúde
Comunitária do GHC, o que não ocorria em relação aos serviços da Prefeitura.
Aos poucos, produziu-se uma discussão cujo centro era a relação entre CAPS e Unidades
Básicas de Saúde. A equipe começou a dar-se conta da importância de ir até as unidades de sua
região de abrangência para conhecer a realidade das mesmas e, na medida do possível e do
demandado, dar alguma assessoria em relação à atenção em saúde mental. Um cronograma de
visitas foi realizado, com prioridade para as UBSs da PMPA, onde os profissionais inseriam seus
nomes de acordo com sua disponibilidade. Durantes muitas reuniões de equipe, discutiu-se sobre
a dificuldade de cumpri-lo, na medida em que muitos referiam que as suas várias outras
atividades os impediam de gastar um turno de trabalho numa visita ao posto. Todos reconheciam
a importância de fazê-lo, porém tal projeto avançou lentamente.
Se o projeto de visitas avançou lentamente, não se pode dizer o mesmo dos espaços de
debate acerca da temática. Os espaços de discussão sobre o laço do CAPS com a rede de saúde
proliferaram, sensivelmente, durante os quatro meses que acompanhei a rotina do serviço. Criou-
se, por exemplo, uma comissão de profissionais da equipe que se ocuparia de pensar o fluxo de
usuários entre CAPS e UBSs, já que além da preocupação com a chamava devolução do paciente
pro posto havia também importantes questões sobre a forma de ingresso dos usuários no CAPS.
Muitas UBSs queixavam-se da dificuldade de conseguir vaga para seus pacientes e acusavam o
CAPS de ser um serviço fechado, que selecionava pacientes. Os profissionais do CAPS sentiam-
se angustiados com tais queixas e com a crescente demanda, o que lhes levava a questionar seu
funcionamento.
A questão do ingresso de usuários no CAPS merece alguma atenção de nossa parte. A
equipe do CAPS funciona através de três micro-equipes, compostas por um profissional ou
residente de cada núcleo, o que dizia de um esforço em contemplar a multiplicidade de olhares na
composição das equipes. A cada semana cada uma das três equipes recebia um paciente novo
para uma entrevista, que é chamada de avaliação. O encaminhamento de usuários das Unidades
Básicas de Saúde da Prefeitura é mediado por uma equipe de interconsultas da PMPA,
responsável por discutir o caso com os profissionais das unidades e repassá-lo para a equipe do
61
CAPS. Trata-se de uma espécie de assessoria que teria o objetivo de trabalhar com as equipes das
Unidades Básicas de Saúde o que se consistiria em demanda para CAPS. Desse trabalho,
constrói-se uma lista de espera que o CAPS vai atendendo à medida de suas possibilidades.
Situada, brevemente, a dinâmica interinstitucional, voltemos às questões relativas aos
cenários de formação. É nestes cenários em movimento que os residentes vão constituindo seu
lugar nas cenas e vão sendo constituídos a partir da atuação a que o cenário lhes convoca. A
construção da Jornada de Saúde Mental do Grupo Hospitalar Conceição, que segundo um
residente foi uma criação dos mesmos no sentido de unir CAPS e UBSs na discussão da atenção
em saúde mental, diz um pouco dessa dinâmica. A tomada da diretriz regionalizar serviços como
uma questão para a formação e o trabalho em saúde mental tem tido efeitos importantes de
formação e de reinvenção de práticas. Talvez uma delas esteja no fato de que se responsabilizar
por um território implica inserir-se como ator da rede.
Então agora a gente teve a Jornada de Saúde Mental, onde a gente tentou se
aproximar bastante dos postos. A gente está fazendo contato, visitando os postos. E um dos
estágios de rede, o primeiro é internação, que eu não entendo muito bem ainda o que se faz lá,
na internação do São Pedro nesse contexto da reforma psiquiátrica, mas o segundo estágio de
rede é através dos postos. É dando esse gerenciamento, essa consultoria pra eles. Tentar
mostrar pra eles que eles fazem saúde mental sim, que eles não sabem valorizar isso. Que a
saúde mental depende mais deles e que o funcionamento do CAPS também depende muito deles,
porque se for como acontece hoje de mandar qualquer caso, daqui pouco a gente está
atulhado, a gente não vai conseguir fazer realmente uma rede. Vai ficar um manda e devolve,
dentro do possível. Eu acho que nesse sentido que se pode fazer diferente na residência. Pensar
saúde mental em equipe. E não dentro do CAPS, mas principalmente fora do CAPS (residente
de psicologia).
Essa preocupação em sensibilizar e preparar as equipes de atenção básica para o
atendimento das demandas de saúde mental convivia dentro do CAPS com a dúvida a respeito de
sua viabilidade. Ao mesmo tempo que alguns profissionais pensavam em um encaminhamento
para a questão, através do estabelecimento de laços entre serviços e assessorias, outros tratavam
de sublinhar o choque entre lógicas de atenção, entre concepções de terapêutico, marcando as
impossibilidades.
Eu não conheço muito a atenção básica, mas eu acho que tem uma diferença grande. Até,
bom, obviamente, porque a atenção básica é pulverizada. Eu acho que a saúde mental é um dos
elementos da atenção básica. Mas eu acho que a formação profissional de quem trabalha com
saúde mental é completamente diferente, inclusive a nível de condições internas de trabalho, de
62
disponibilidade interna. Eu acho que a gente trabalha muito mais com o que a gente... com a
bagagem da gente como pessoa do que às vezes como profissional, porque aquela pessoa... o teu
trabalho é muito em cima da tua pessoa. A gente tava descrevendo algumas características, até
minhas... então eu acho que o que eu faço dentro do trabalho... to falando de mim né, mas acho
que serve pra todos... tem a ver com toda a minha história. A minha formação teórica com
certeza, mas o que que eu disponibilizo pras pessoas. Então isso... eu acho que a formação na
atenção básica, vejo muito assim com a questão da resolutividade, de resolver problemas. E a
gente não trabalha com essa lógica né. Muitas vezes o problema é a solução ou não se resolve o
problema (psiquiatra).
Aqui aparece uma questão interessante a partir da reflexão de um preceptor da psiquiatria
sobre o princípio da resolutividade. Na saúde mental, a lógica da resolução entraria em questão,
que não se trataria de resolver problemas, mas de tomá-los em consideração. O furor
curandis seria um dos perigos do trabalho em saúde mental. Entretanto, nos perguntamos se a
diferença entre atenção básica e saúde mental, marcada no discurso dessa preceptora, estaria
apontando para a impossibilidade do encontro. Nesse sentido, não haveria uma lógica de
resolutividade como resolução, no sentido de uma busca por resolver a tensão que as diferenças
entre a atenção básica e na saúde mental colocam?
Eu acho que o enfoque é muito diferente. Por exemplo, eu tava fazendo uma supervisão
de um pessoal que veio da rede básica, das médicas e tal, elas me trouxeram um caso de um
paciente... Era um menino que morava numa casa em que o irmão era drogadicto pesado, a mãe
tava preocupada, ele tinha dezesseis anos, ele dizia que não tinha nada ruim com ele, mas ele
também não tava estudando, não tava fazendo nada. ele foi, a médica fez uma consulta e
outra consulta e deu fluoxetina pra ele. E daí a minha dúvida foi assim. “Mas tu achou que
tinha sintoma de depressão?” “É, eu achei.” “Mas assim... que motivação ele tem? Que que ele
quer? Porque que ele foi na consulta? Ele foi com a mãe? Alguma vez ele foi sozinho? Ele quer
se tratar? Que que ele quer mudar?” Um enfoque assim, “bom, ele com sintoma depressivo,
eu vou resolver isso.” Mas a queixa era da mãe, a mãe trouxe ele a todas as sessões. Então
vamos ver que que esse guri... deixa ele falar, deixa ele se aproximar, vamos ver o que ele tem
pra dizer. Deixa ele vir uma, duas, três, quatro vezes. Não tem urgência de medicar, a gente não
precisa medicando os pacientes. Porque é uma angústia do profissional, dos médicos, do
médico ter que medicar. Então vem uma, duas vezes pra conversar... do colégio... É que essa
paciência, se é que a gente pode chamar de paciência, acho até que o pessoal da atenção básica
têm esse interesse, mas é diferente o enfoque. Eu acho absolutamente diferente e uma coisa que
me incomoda muito é essa coisa de que tem que mandar pro posto. Por quê? porque é mais
perto de casa? (psiquiatra)
Nesse relato, estão presentes questionamentos às diretrizes de resolutividade e de
regionalização. No que se refere à primeira, o preceptor se pergunta, de muitas formas, pelo lugar
do sujeito, na escuta dos médicos da atenção básica. Identifica uma diferença na forma de se
63
pensar o que seria ser resolutivo num e noutro espaço de assistência. Endereça-nos, nesse ponto,
uma questão: como ser resolutivo sem agir de forma a excluir o sujeito? Sugere que a
resolutividade estaria mais do lado de uma clínica que visa esbater o sintoma do que a escuta da
subjetividade. Como pensar então a resolutividade no campo da atenção em saúde mental? E no
campo da atenção básica? Que diferenças existem na apropriação desse conceito num e noutro
campo? Que especificidades e que traços em comum a formação na atenção básica e na saúde
mental guardariam entre si? E como pensar uma aproximação possível entre cenários que
colocariam em cena roteiros talvez inconciliáveis? Por fim, como produzir modos de trabalhar
que apontem para a existência, abandonando visões morais e normativas, a partir dessa
aproximação?
Com relação à regionalização, a pergunta (essa coisa de que tem que mandar pro posto.
Por quê? porque é mais perto de casa?) do preceptor é instigante e nos impulsiona a cruzar
uma linha. Desde o início, nossa pergunta apontava para que possibilidades de invenção de novos
modos de trabalhar em saúde mental estariam se produzindo em espaços de formação
multiprofissional de profissionais de saúde. No percurso que fizemos até aqui, vimos que os
profissionais que trabalham nos espaços mais legitimados de práticas em saúde mental (CAPS)
atrelam a questão da renovação de suas ações a um trabalho em parceria com as equipes de
atenção básica. Alguns por considerar imprescindível esse laço, outros por desacreditar na
capacidade de as Unidades Básicas de Saúde atenderem os usuários egressos do CAPS, outros,
ainda, por tomar para si a tarefa de investir na sensibilização e qualificação dos profissionais da
atenção básica para um trabalho em rede com o CAPS. De um modo ou de outro, a questão da
saúde mental na atenção básica está presente no cotidiano do CAPS, interrogando profissionais e
residentes. O que também é possível observar se atentarmos para movimento que a Residência
Multiprofissional vem fazendo de aproximação aos espaços de formação em saúde da família e
comunidade, através da criação de estágios nas Unidades Básicas de Saúde.
Como já dissemos, buscamos fazer uma montagem que diga da história e dos movimentos
dos espaços de formação em saúde, partindo das narrativas dos sujeitos dessa experiência,
personagens dessa história. Cruzando a linha, a partir de agora, nos ocuparemos dos cenários de
formação em saúde da família e comunidade, inserindo nesses contextos nossas perguntas.
Cenários de formação em saúde da família e comunidade
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Comecemos por tentar situar como a especificidade do fazer em saúde mental se insere
no cotidiano dos profissionais que trabalham nas Unidades Básicas de Saúde, espaços de
formação dos residentes de saúde da família e comunidade. Lembrando que a formação numa
residência prioriza atividades práticas ou seja, a experiência na atenção aos usuários e no
trabalho em equipe dentro dos serviços, o que faz com que o cotidiano dos mesmos seja
determinante para a aprendizagem dos residentes buscamos iniciar a montagem dos cenários
partindo dos elementos trazidos pelas narrativas dos profissionais sobre esse cotidiano.
Tentaremos dar visibilidade, nesses cenários, aos lugares a partir dos quais os saberes e práticas
em saúde mental se produzem e sobre os efeitos disso na formação profissional.
44% das consultas pelo CID, que a gente bota no boletim, 44% é depressão, tristeza,
enfim, mas tem algum grau de sofrimento. Não uma ação sistematizada, por exemplo assim,
saúde da mulher, saúde materno-infantil, daí saúde mental infantil. Acho que é uma falha. A
gente não tem nenhuma idéia mais clara sistematizada da população em relação à saúde mental,
é um atraso. Nós temos sérios problemas no manejo da questão da dependência química que
seria um dos problemas, alcoolismo talvez seja um pouquinho menos, muito pouco menos,
mas os usuários de drogas injetáveis por exemplo, a gente não tem redução de danos, sabe? Isso
é o SUS todo, mas enfim, ruim mesmo. Existem vários grupos, nas unidades, de saúde mental de
diversos... desde assim de, não sei se diz ainda, de psicóticos até pessoas de diversos graus de
sofrimento psíquico. E o CAPS é... Às vezes a gente tem dificuldade assim, essa coisa, por
exemplo, da violência contra a mulher, do abuso infantil também, ah, é difícil, pra manejar,
sabe? E os recursos inter-setoriais também são difíceis. O CAPS tinha uma época que... é difícil
também porque não tem vaga. A internação psiquiátrica é também um caos, muito
complicado. A nossa referência pra internação é a emergência psiquiátrica que é o PAM3.
Recentemente eu tive uma experiência ali que foi muito ruim assim. Foi um mês atrás, uma
paciente com tentativa de suicídio a gente encaminhou pro PAM3 e o PAM 3 disse que não
era. Ela voltou pra casa e a mulher tentou de novo, levaram ela inconsciente pro PAM3 de
novo. bom, ela ficou uns dias lá, outros dias aqui naquele salão ali, sabe, e depois foi pro
Espírita, dopada, completamente dopada. dopam pra não ficar incomodando. Acho que a
gente teria que estruturar melhor isso assim, saúde mental na atenção primária. Isso está
caindo de maduro. E tem a banalização, bota Fluoxetina na água, né? (médico de família e
comunidade)
As dificuldades cotidianas diante das demandas de saúde mental, relatadas por este
preceptor, são interrogadas desde uma perspectiva sistêmica. De um lado, faltaria aos serviços de
atenção básica um projeto de trabalho em saúde mental sistematizado como política, de outro não
haveria a instalação de uma rede efetiva de trabalho que conectasse os diversos espaços de
atenção. Essa desarticulação da rede estaria deixando profissionais e usuários à deriva,
65
produzindo cenas de sofrimento e (des)cuidado. Diante disso, as intervenções do ponto de vista
medicamentoso aparecem como possibilidade de anestesia: bota Fluoxetina na água, né?
Entretanto, a necessidade de se fazer algo que transforme, que movimente o cenário constituído
aparece como uma emergência, caindo de maduro.
No relato que segue, outro preceptor aborda a questão dos impasses que as demandas de
saúde mental colocam para as equipes de atenção básica, a partir de um olhar que foca os
tensionamentos e questionamentos produzidos dentro da própria UBS a partir das tentativas de
modificar a dinâmica de trabalho em saúde mental instituída. Ao mesmo tempo que seria preciso
ter uma política de atenção em saúde mental, seria imprescindível movimentar cada membro da
equipe para debatê-la e construí-la coletivamente.
Qualquer profissional que lida com o ser humano vai se defrontando com as questões
de saúde da mente e do corpo, né... o quanto a gente disposto, o quanto a gente podendo
fazer isso é o que eu acho que tem que ser debatido, que tem que ser ampliado e poder ser
pensado como política. Eu vivi isso e é possível as ações em saúde mental estarem nas ações
de outros profissionais. Mas isso vai se dar de uma forma melhor se houver uma política, um
jeito de fazer isso pensado coletivamente, não na dependência do desejo individual. (...) Ainda
muito fragmentado. A unidade que eu trabalho é privilegiadíssima: três psicólogos, um
contratado, dois residentes mais um psiquiatra que vai duas vezes por semana. Mesmo assim,
internamente, tem dificuldades. A agenda de demanda de psicologia que daqui a pouquinho é
uma lista de espera gigante que tinha que poder ser pelo menos escutada e agora eles tão
conseguindo fazer isso. Mas essa escuta é um problema da psicologia. A equipe, de modo geral,
não chegou a debater. Agora a gente com uma reunião agendada pra isso. Acho que existe
um grande esforço dos profissionais de psicologia pra poder fazendo esse debate, tentando
inserir essas questões. Existem alguns princípios como o vínculo, possibilidade de
acompanhando as pessoas ao longo do tempo, a questão do território que permitem aos
profissionais de saúde serem mais ousados no sentido de poder tá dando uma assistência a essas
necessidades sem necessariamente ser um profissional graduado nessa formação (enfermeiro).
Aqui ganha destaque a questão da disposição, do desejo dos profissionais de tomarem
para si a problemática da atenção em saúde mental, inserindo-se numa construção com os outros.
A pergunta pelo desejo vem acompanhada da aposta na possibilidade de os atos terapêuticos em
saúde mental, em alguma medida, transcenderem as fronteiras entre as profissões. Uma aposta na
ampliação do lugar da saúde mental nos cenários da atenção básica, pela extensão da
responsabilidade da escuta ao sofrimento psíquico a todos os profissionais da equipe. Essa
reinvenção de roteiros e papéis, com a inserção das questões de saúde mental nos cenários da
atenção básica, se faria pela convocação da equipe ao debate, cena que estaria começando a se
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produzir no local de trabalho desse preceptor. Contrastando com essa forma de pensar o trabalho
na atenção básica, que aponta para uma porosidade das fronteiras entre as profissões, aparece a
visão de um outro preceptor, que, quando convocado a falar do trabalho na equipe de saúde, traz
as seguintes cenas.
Dificilmente, hoje, qualquer profissional consegue trabalhar sozinho. Essa é a primeira
definição né. Um médico de família mais ainda, tá? Primeiro porque ele tem uma população de
duas mil e quinhentas ou mais pessoas e que, bom, alguns dos cuidados não são nossos. Se uma
criança tem que ser vacinada, eu posso dizer pra mãe que tem que levar a sua criança pra
vacinar, mas não sou que vou fazer a vacina. Então ela tem que ir pra alguém que faça isso.
Então esta visão mais global é que a gente tenta ver com as pessoas e as famílias no sentido da
utilização de outros recursos que a gente tem dentro da equipe. Então se uma mulher, que
precisa fazer um preventivo, mas ela não se sente confortável de fazer comigo, mas ela sabe que
tem que fazer. Então seguramente ela pode fazer com a enfermeira. Ela faz, coleta e depois vem
me trazer o resultado. Não muda nada. Então isso é uma adequação dos recursos de outros
profissionais no sentido de ajudarem no cuidado. Então esses são alguns exemplos de... E
mesmo na área de saúde mental, algumas vezes, a gente sabe que a gente tem um limite. Bom, se
tem uma situação que é muito grave ou muito complexa, do ponto de vista... bom precisamos de
um psiquiatra. O psiquiatra vai fazer uma avaliação, vai medicar e nos devolve. E talvez ele,
uma ou duas vezes por ano vai no psiquiatra e o resto do tempo fique conosco. Bom, mas são os
recursos que a gente tem pra gente poder encaminhar e retornar. Então seria a questão da
referência e contra-referência. Eu acho que a gente tem isso em mente que a gente tem limites e
que precisa trabalhar em equipe é muito importante (médico de família e comunidade).
A equipe de saúde a que o médico de família deve referenciar-se, quando surge algo de
um limite de sua intervenção, aparece como muito importante. Porém trata-se de uma equipe
composta pelo médico de família, pela enfermeira e pelo psiquiatra, embora a unidade na qual
esse preceptor trabalhe seja umas das que mais possui profissionais e residentes de vários núcleos
profissionais. Chama atenção também a referência ao trabalho em saúde mental como uma
prática de referência e contra-referência entre médico de família e psiquiatra, o que sugere, por
um lado, a configuração de cenários de formação e trabalho em saúde mental na atenção básica
centrados no saber médico. A partir desse relato, é possível supor que nesta equipe de saúde a
questão da atenção ao sofrimento psíquico não é algo que se insere numa discussão mais ampla
que atravessa os fazeres dos vários profissionais da equipe, ou, se atravessa, é algo que aparece
como desconhecido ou desconsiderado na experiência desse preceptor. A posição deste
profissional em relação à criação da Residência Integrada também aponta para uma não
valorização de espaços de encontro entre residentes e profissionais de profissões distintas. O
argumento que a justifica é o da perda das especificidades profissionais.
67
Eu acho que tem uma questão que é filosófica e que eu discordo, como eu te coloquei da
outra vez. A gente sempre pensou que as outras áreas, por exemplo, enfermagem, que trabalham
muito próximo de nós, depois que terminassem a graduação fizessem algo semelhante aos
médicos. Uma residência, que não seria a residência médica, mas a residência em
enfermagem, que elas pudessem aprender todas essas coisas que não são discutidas na
graduação. E que o serviço social, a psicologia, a odontologia, fisioterapia, todas essas áreas
afins pudessem ter uma pós-graduação em serviço, que nem a residência médica, pra poder
aprofundar coisas que não foram tratadas na graduação. A discordância é que botaram tudo
junto. Eu não concordo com isso. No hospital existe a RIS, né, a Residência Integrada em Saúde,
que eu não sei muito dela. Sobre os referenciais teóricos, não é pra mim que tu tem que
perguntar, porque eu não sei o que que é tratado. Eu não me envolvo e não quero me envolver,
porque eu acho que eu tenho muito trabalho com a Residência Médica. Então eu acho que
essa é uma questão que cada área tem que cuidar das suas coisas. Eu acho que as enfermeiras
têm que cuidar da formação das enfermeiras e etc. Então basicamente eu acho que é um espaço
interessante porque junta saberes, mas o meu receio é que as especificidades deveriam ser mais
bem trabalhadas. Claro, vem a residente de enfermagem aqui “ah, eu to atendendo não sei o
que, bababa”, eu sento “papapa”, mas eu não acho que seja função minha. A minha função é
com o residente médico (médico de família e comunidade).
Não fica claro em que medida o encontro entre profissões produziria a perda das
especificidades. Como resposta à convocação a explicar melhor como se daria isso, a resposta
que aparece é uma espécie de “é assim porque é assim”: enfermeiro ensina enfermeiro e médico
ensina médico. Como se este modo de trabalhar não fosse uma escolha, mas a única
possibilidade, algo tão natural que não necessita de explicação. Além disso, a posição do
preceptor é, de certa forma, impactante na medida em que ele em nenhum momento coloca em
questão seus pensamentos. É um discurso que fala de certezas. A certeza maior que dele se pode
apreender é: do outro eu nada quero saber. Nesse sentido, temos aí um modo de pensar o trabalho
em saúde, que coloca em cena elementos fixos, um roteiro que não pode ser rasurado ou
reescrito, personagens possibilidade de improviso. Porém, não montagem cênica que não
possa ser interrogada, em que pese a tensão que se produza. E assim aconteceu, como nos conta
outro preceptor da residência médica.
Quando começou a residência integrada, a residência multiprofissional, eu acho que isso
provocou uma tensão nas equipes muito importante que está em processo ainda que eu equiparo
à mesma tensão que teve em 93 no serviço. Em 93, entrou um grande grupo de profissionais e a
maioria de todas as categorias. Naquela época, também entraram assistentes sociais,
psicólogos, enfermeiros, dentistas, técnicos de higiene dental, acho que o dobro do número que
entrou agora. Acho que agora entrou trinta e seis, na época foram setenta. Então também foi
assim bah, teve um salto, obviamente com muita tensão. E a RIS eu acho que está fazendo isso
agora também e fez isso também com o currículo integrado, que é um espaço multi, vamos
68
dizer assim, de reflexão teórica, tanto teórica como de campo dentro da atenção primária. Então
acho fundamental assim pra ampliar teu olhar, pra ampliar tua prática é uma outra percepção
né do processo de saúde. (...) Quando a multi entrou no segundo ano provocou um caos, foi uma
tensão assim, tão grande que a perceptoria médica perdeu seu norte, eu não era perceptora ali...
eu não sei bem o que aconteceu, mas assim, não teve mais programa do núcleo na medicina,
houve assim um recolhimento do núcleo da medicina, talvez pela própria tensão provocada pela
multi nas unidades, nos médicos e tal que o programa de núcleo da medicina sumiu e sumiu até
hoje, ele só vai começar em março (médico de família e comunidade).
Algo interessante de ser apontado é a questão de que, nas entrevistas dos preceptores do
campo da saúde da família e comunidade, aparecem mais referências às tensões que se
produziram pela criação da Residência Integrada do que nos relatos dos preceptores do campo da
saúde mental. Neste último, parece ter havido uma certa cautela por parte dos entrevistados em
dar visibilidade a estas tensões, seja porque nos momentos em que este tema entrava em pauta se
fazia referências ao gravador que eu utilizava e ao sigilo dos nomes dos entrevistados, seja por
simplesmente relatarem que não houve conflitos. Trago esta questão, pois me parece que os
conflitos, os tensionamentos, os jogos de poder entram mais em discurso e tem mais espaços no
universo da atenção básica e, talvez, este seja uma diferença importante entre os dois cenários de
formação. O relato que segue traz um pouco da história do serviço de saúde comunitária e de seus
programas de formação profissional, fazendo uma referência explicita à dinâmica das relações de
poder que tem colocado essa história em movimento.
O serviço surgiu em função da residência médica, né? Eu acho que assim o processo era
muito mais centrado no médico. A partir da residência multiprofissional, eu acho que houve um
certo equilíbrio na relação do próprio poder dentro da... dentro do serviço. Foram contratados
mais profissionais, então os outros núcleos também tiveram que se mexer, poder se pensar.
Inclusive mexeu com o processo da formação da residência médica, porque aquele poder
hegemônico médico, ele acabou, não sendo mais o único espaço de formação. Também se
buscou uma certa aproximação naquilo que poderia ser comum, apesar de toda resistência de
alguns profissionais, apesar da resistência da própria corporação médica, que luta
ferrenhamente contra isso, não dentro do serviço, mas fora. Eu acho que o próprio desejo de
muitos profissionais médicos, que tão em formação, levou à essa aproximação. Então eu acho
que assim, a residência, ela trouxe uma vitalidade pro serviço que se tinha perdido fazia
muito tempo, tava assim num certo lutar para sobreviver. O nosso campo de luta era a gente
se manter vinculado ao Conceição. A gente não queria ser repassado pro município, porque a
gente considerava que a questão da formação era diferencial para nós. Hoje o serviço
fazendo movimentos de se pensar...(odontólogo)
Merece destaque aqui a ligação entre formação e a criação/reestruturação dos serviços de
atenção. Como se a primeira funcionasse como motor das últimas. Questão esta que havia
69
aparecido no discurso de um preceptor da psiquiatria, quando discutimos os cenários de formação
em saúde mental; porém, ao revés. Naquele relato, a residência é que acompanha o serviço.
Aqui, pelo contrário, é o serviço que acompanha a residência. Diferença que talvez mereça uma
atenção maior de nossa parte mais adiante. Por agora, vale sublinhar a fala deste preceptor em
relação à vitalidade que os programas de formação trazem para os serviços pela reconfiguração
do que ele chama de os campos de luta. É como se a configuração de espaços de formação nos
lugares instituídos da assistência, introduzisse uma tensão que movimenta o serviço na direção da
vida e não da sobrevivência. A cada ano o Serviço de Saúde Comunitária do GHC recebe em
torno de quarenta novos profissionais de sete profissões distintas
23
que vem realizar sua formação
em serviço e se distribuem nas doze Unidades Básicas de Saúde do Serviço. O impacto dessa
renovação anual é referido pela maioria dos entrevistados.
Acho que eles chegam com questões assim... claro, tu também te recorda um pouco do
tempo que... Que nem um pouco o filho reaviva as lembranças da infância da gente. Acho que o
residente ele reaviva um pouco as questões de quando a gente saiu da faculdade, da
universidade. Porque a academia, na nossa área, ela uma formação muito tecnicista, né?
Quando tu chega num espaço público tu não tem, tu não pode... O espaço de formação era um, o
espaço da clínica é outro. Alguns residentes tinham assim uma certa, uma dificuldade em se
deparar com a questão da demanda, abrir mão de alguns passos da técnica. Tanto que a gente
teve um momento que a gente fez um seminário no nosso núcleo abordando realidade acadêmica
e realidade do serviço. Tinha alguns que vinham com um certo desejo de transcrever aquilo que
acontecia na universidade pra cá. A gente sempre tem que estar permeável pra essas coisas, mas
algumas coisas são praticamente inviáveis de a gente fazer no mesmo formato que se no
espaço de formação dentro da universidade. Eu acho que a gente fica assim... a nossa
convocação burocrática da instituição tem que se adequar àquela coisa aí”, não, isso não
dá” (...) Pensando no processo de formação, ele é dialógico, eu também não sou mais o mesmo
profissional de quando começou a residência e acho que talvez os residentes não sejam os
mesmos profissionais de quando entraram. Então acho que é um processo que a gente tem que
estar permeável pra poder fazer movimentos, né? E eles também têm que estar permeáveis pra
poderem fazer movimentos. Eu sempre digo tanto pras pessoas que estão entrando, os colegas
novos que entraram, quanto pros residentes que assim o espaço que a gente é um espaço em
permanente construção (odontólogo).
Este preceptor narra um certo (des)encontro que se produz quando da chegada do
residente ao serviço. Esse estranho recém chegado reaviva a história do preceptor, que nem um
filho reaviva as lembranças de infância de um pai. A presença do residente conecta o preceptor
com marcas antigas, esquecidas, rastros dos caminhos que o levaram ao lugar de hoje. Trata-se de
23
Na ocasião da coleta de dados desta pesquisa, eram seis as profissões que se incluíam nas Unidades Básicas de
Saúde para fazerem sua formação em serviço. Neste ano de 2007, incluiu-se uma mais: a nutrição.
70
um (des)encontro onde se presentifica um estranhamento familiar. Do lado do residente, o serviço
aparece como desconhecido, quase um monstro, que na voracidade de atender a demanda acaba
por deturpar a técnica de uma dada profissão. Diante disso o residente resiste, tentando transpor a
experiência da academia para o espaço que está adentrando, encontrando-se com uma primeira
convocação a repensar sua posição. O preceptor que recebe esse residente precisará, de alguma
maneira, acompanhá-lo em uma passagem. Encontrar um ponto que não seja nem se deixar
engolir pelo monstro voraz da demanda, nem o de continuar intervindo desde a academia. Isso
não se fará pela transposição completa de uma experiência anterior para o momento presente,
porém tampouco se produzirá na ausência de alguma permeabilidade entre o antes e o agora. É a
esta permeabilidade que se refere o preceptor quando diz que não é mais o mesmo, é outro. Esse
“tornar-se outro” se potencializa também com a entrada dos residentes que, com suas demandas
“impossíveis”, possibilitam movimentos de resistência à convocação burocrática da instituição.
Como efeito desse (des)encontro também os residentes não são os mesmos de quando
chegaram. Um dos elementos constitutivos de um cenário de formação em que lugar para a
invenção é a permeabilidade. É preciso estar permeável para poder fazer movimentos, para
desacomodar os lugares instituídos. Na fala de outro preceptor, novamente aparece o desejo de
desacomodação: na equipe que eu trabalho as pessoas, na sua maior parte, estão a fim dessa
desacomodação, mas elas não conseguem mais sozinhas se desacomodar e a residência faz isso.
É preciso lembrar que a referência dos preceptores ao efeito que se produz pela presença
de profissionais em formação nos espaços da assistência apareceu, freqüentemente, também no
campo da saúde mental. Nas narrativas dos profissionais entrevistados, principalmente da RIS em
saúde mental, falou-se muito do medo de não dar conta dessa posição de quem deve ensinar,
transmitir o conhecimento. Contaram que passaram a estudar como nunca na busca de dar conta
desse lugar. Alguns referiram que optaram por não dar aulas. No cenário que montamos agora
algo disso também está presente, porém não da mesma forma.
Me lembro de alguns sentimentos. Primeiro, o medo, a sensação de “como é que vai ser
isso? A partir de agora eu tenho alguém aqui comigo que em formação, tem certo grau de
dependência ou não, como é que é isso assim de se relacionar com alguém diferente?” E, no
meu caso especial, se referia a ter alguém numa unidade de saúde onde eu era a única
enfermeira quinze anos. Então elaborar esse processo de que eu tinha uma enfermeira
comigo, mas numa condição diferente, em processo de formação, com algumas necessidades pra
dar uma atenção... era a perspectiva de concretização do ideal, a materialização de algo que eu
acreditava que era importante. (...) Eu diria que agora, com uma certa bagagem, ainda me
71
um friozinho na barriga cada vez que troca a turma. Mas não é aquele medo inicial de “nossa,
como é que vai ser isso?” Mas a satisfação vem aumentando, porque têm turmas que tão
concluindo, têm pessoas indo pro sistema de saúde, têm pessoas atuando e te dando retorno
assim: “bah, aprendi muito”. Tem uma coisa que eu falo muito pros residentes e que eu falo
como uma troca de vivencia. Digo assim “olha, eu fui me dar conta de tudo que eu tinha
aprendido, e que foi um monte, no Murialdo, muitos anos depois que eu tinha saído de lá. Um
dia tu vai poder avaliar a dimensão do teu aprendizado, não agora” (enfermeiro).
Há o medo, o frio na barriga, a pergunta sobre como vai ser, seguido de um movimento de
apropriação. É possível identificar a produção de um lugar de transmissão. Talvez de transmissão
da experiência singular mais do que propriamente de um conhecimento duro, desencarnado. É a
mencionada troca de vivência que ganha a cena e a idéia de que o efeito disso se faz sentir num
tempo posterior. Surge outro elemento importante num cenário de formação: a singularidade
da experiência, o conhecimento como aquilo que se corporifica. Escutando alguns dos
preceptores da saúde da família e comunidade, esta noção da importância da experiência de cada
sujeito e de suas perguntas para a produção de aprendizagens aparece bastante. No fragmento de
entrevista a seguir, algo disso aparece. A chegada ao conhecimento precisa ser desejada, não
obrigada.
A minha formação teórica ela é fragmentada né. Até foi engraçado quando eu recebi o
convite do Ricardo e ele me deu o tema que a gente ia abordar em aula. Eu “ah, pode deixar,
que eu tava trabalhando esse tema, tenho meio pronto”. Aí ele ficou me olhando e disse. “Não é
assim.” “Mas como não é assim?” E ele disse “não, olha, a perspectiva érealmente fazer com
que as pessoas sejam sujeitas do seu aprendizado, não é bem aquela coisa de dar uma aula”. E
eu, macaca velha, dezesseis anos de saúde, superando, achando que tinha superado o
modelito palestra. Eu digo “tá, olha ó, impor um problema, é o problema que vai instigar,
né?” A chegada até o conhecimento não é de mão beijada. É um processo de aprendizagem que
envolve uma necessidade, um interesse, uma aproximação desejada, não obrigada (enfermeiro).
Este preceptor nos fala de um espaço onde um problema é o ponto de partida para a
aprendizagem. Quem se sentir convocado pelo tema inicia um processo de aproximação em
direção a ele. Não se trata aqui de um espaço de formação que pensa a resolutividade como a
resolução mais rápida e menos trabalhosa de um problema, conforme a experiência relatada pelo
preceptor da psiquiatria em supervisão de residentes de saúde da família e comunidade. Trata-se
de acercar-se ao problema, tomá-lo em consideração, estabelecer uma relação de interesse em
direção a ele e de criar uma forma de abordá-lo. Nesse sentido, parece que os esforços de
problematizar o que seria resolutividade estão presentes, por momentos, em ambos os espaços de
72
formação pesquisados. E essa problematização passa por introduzir na cena tanto a subjetividade
do profissional (preceptor e residente), quanto a do usuário. Passa por colocar em cena o desejo.
Saúde da família e comunidade já tinha um desejo de ter residência há muito mais tempo.
Existia um projeto de residência em enfermagem. Mais ou menos 93, 94, existia também um
grupo de pessoas que se juntaram pra pensar também uma proposta de residência
multiprofissional, que naquele momento não se concretizou. Então com o serviço de saúde
comunitária foi muito fácil implantar a residência no sentido que tinha um grupo disposto,
tinha um grupo também com experiência em formação, porque a saúde comunitária tem
experiência com a residência de medicina de família e comunidade muitos anos e os demais
profissionais se envolviam com a formação dos residentes. Porque a formação se em
equipes multiprofissionais, então os residentes de medicina tinham uma convivência com os
demais profissionais e trocavam com os demais profissionais. Então tinha ali um espaço fértil
pra se montar a residência multiprofissional (psicólogo).
Alguns preceptores da ênfase em saúde da família e comunidade, tanto da Residência
Médica quanto da Residência Integrada, tiveram, na sua história, experiências de formação em
equipe multiprofissional. Entrevistei preceptores que passaram pela Residência Multiprofissional
do Centro de Saúde Murialdo, na década de 80, assim como preceptores que fizeram sua
residência médica no GHC, em uma época em que havia algumas experiências de trabalho
multiprofissional na atenção básica. Inclusive, alguns profissionais não médicos participavam
da formação dos médicos na residência em algumas equipes. Um preceptor de serviço social, por
exemplo, nos contou sua experiência de dar supervisões para residentes médicos em assuntos
específicos, como abordagem de famílias de risco, intervenção na comunidade e outros. Foi
assim que a proposta da Residência Integrada em Saúde encontrou as condições para iniciar sua
construção com grande participação dos profissionais que atuavam na atenção básica. E estes,
referiram que, em muitos momentos buscaram referências no Programa da Residência Médica,
sempre se questionando sobre as especificidades de uma formação multiprofissional. Desse
modo, se a formação médica serviu, em alguma medida, de modelo, também serviu como
parâmetro para pensar a diferença que se queria produzir.
Naquele momento quem estava escrevendo a proposta da residência era o grupo da
saúde comunitária, era muito específico, foi um grupo de profissionais bem variado enquanto
categorias, mas o grupo era da saúde comunitária. Nosso gerente na época disse “toquem a
residência, escrevam a proposta”. O modelo mais próximo que a gente tinha era a residência
médica que tradicionalmente existe no GHC. Fomos atrás de informações da residência do
Murialdo, de outras residências no país que a gente buscou informações, vimos como
73
funcionava. Então a gente estruturou meio recortado assim, com o modelo oriundo um pouco da
residência médica, um pouco de outras residências da psicologia que a gente teve acesso. E a
gente sabia que ia ser um processo em contínua construção, como tem sido (psicólogo).
A pergunta pela diferença ecoou na novidade que se introduziu pelas atividades de
formação de campo. O campo como lugar de encontro entre os núcleos (e não de adição)
profissionais convocava à montagem de cenários inéditos. A organização de um currículo
integrado, trazido da formação médica, foi uma resposta à pergunta sobre a integração, como
podemos observar no relato abaixo.
Então assim, algumas coisas a gente teve que criar, porque eram questões que da
formação médica eram muito específicas. A gente teve uma dificuldade muito grande de pensar o
que seria o campo, porque talvez fosse o nosso maior nó. Porque assim, a gente pensar do ponto
de vista de cada núcleo, elaborar uma formação parecia algo interessante, agora, que era
comum pra gente pensar que essa residência fosse integrada? Isso pra mim foi o maior desafio...
Eu acho que aí o currículo integrado veio com uma proposta. (odontólogo)
O surgimento do currículo integrado se deu no Programa de Residência Médica, segundo
um preceptor, na busca de integrar o conhecimento e conter um pouco a formação modular de
ensino. O modelo modular dizia respeito à organização das atividades teóricas a partir de
módulos de conteúdos: módulo família, módulo epidemiologia... Esse modelo deu lugar a uma
aprendizagem baseada em problemas: tendo por base um problema, um território e seus
problemas, tratava-se de fazer com que os módulos ou os conteúdos surgissem no aprendizado
de uma forma integrada. A criação da RIS teria fortalecido a construção do currículo integrado,
na medida em que também os profissionais em formação nesse programa passaram a participar
desse espaço de formação.
Durante quatro meses acompanhei as reuniões de equipe do CAPS e participei também
das aulas de campo do currículo integrado na 6enfase de saúde da família e comunidade. Esse
último, que é dispositivo de formação que se organiza em aulas semanais das quais participam
residentes de todos os núcleos, funciona como uma espécie de roteiro sempre em aberto de
estudos. Seu objetivo é a abordagem de conteúdos referentes à atenção primária em saúde,
comuns a todas as profissões da atenção básica, partindo de problematizações de questões de
saúde que surgem em um determinado espaço-tempo da experiência de assistência. Talvez o
elemento mais interessante que se introduza nos cenários de formação em saúde da família e
comunidade pela criação do currículo integrado seja o encontro sistemático entre diferentes
74
modos de trabalhar em saúde em um espaço de discussão. Nos serviços, algo desse encontro já se
produz, mas o que está no centro do cenário é a prática. O currículo integrado, por outro lado, é
um espaço teórico, que põe em cena a fala acerca das experiências. Diálogo e reflexão ganham
centralidade. Os jovens profissionais são convocados a assumir posicionamentos e a questionar
os modos de trabalhar dos outros e os seus próprios diante de seus pares. É um lugar onde os
profissionais em formação se identificam e se diferenciam, se conhecem e se estranham e, acima
de tudo, repensam suas posições.
Não raras vezes as discussões no currículo integrado versaram sobre saúde mental. Mas se
eu pudesse apontar uma constante nesse espaço seria a pergunta: como organizar as equipes de
saúde para conhecer as reais necessidades da população? Pergunta complexa que, formulada
pelos participantes logo de início, serviu como disparador de muitas discussões. Poderíamos
apontar dois eixos principais nessa pergunta. O primeiro seria aquele que aparece mais perto do
ponto de interrogação: uma preocupação com as reais necessidades dos sujeitos atendidos. O
segundo refere-se à equipe e pergunta como organizá-la. De um lado, a suspeita de que sobre as
reais necessidades não se sabe e de que é preciso criar formas de alcançá-las. De outro, o
pressuposto de que um tal alcance não se produz sem um rearranjo do trabalho em equipe. O
currículo integrado introduzia então talvez um dos elementos mais importantes nos cenários de
formação em saúde que dão lugar a invenção: a tentativa de alcançar o outro, ou ainda, a
consideração da alteridade.
algumas diferenças nas formas como os espaços de formação se configuraram no
campo da saúde mental e no da saúde da família e da comunidade. Mesmo que nos dois campos
estejam operando dispositivos multiprofissionais, os cenários de formação constituíram-se de
modo bastante distinto. Tais diferenças talvez digam respeito tanto às diferenças das demandas
que batem à porta de um e de outro serviço, quanto à história de constituição dos mesmos. O fato
é que existem pontos diferenciais que fazem com que a formação em um e noutro espaço ganhe
tintas particulares. Esses elementos diferenciais talvez impliquem também a produção de
distintos modos de trabalhar em saúde mental num e noutro cenário de formação.
Na saúde mental, não a sistematização de um espaço de discussão acerca das
experiências na atenção aos usuários que seja comum a todos os núcleos profissionais que
compõe a equipe. Os espaços de encontro e de narrativa de experiências são as reuniões de
equipe, onde o que está em pauta é a discussão do caso clínico. A formação, nas reuniões, não
75
estaria no centro cena, entretanto, também a perpassaria assim como a todos os espaços de
práticas. Entretanto, não um espaço-tempo instituído que faça função de problematizador das
experiências. As cenas de trocas experenciais aparecem nas frestas do roteiro, de improviso. Na
sala da equipe, entre um atendimento e outro, tomando um cafezinho, fazendo um lanche. No
corredor, na saída de um atendimento angustiante, quando o colega passa e empresta a escuta, o
olhar, a presença. Há algumas aulas que são comuns a todos os núcleos, porém não acontecem de
forma planejada. Acontecem na informalidade, como, por exemplo, quando um professor é
convidado para falar sobre um tema aos residentes da RIS e os residentes médicos são
convidados a participar. Ou quando um preceptor da psiquiatria resolve, por conta própria, dar
aulas juntando os dois programas de residência, por comodidade, como ele mesmo referiu. O que
contrasta com o campo da saúde da família e comunidade, onde se organizou o currículo
integrado, que vem cumprindo a função de lugar oficial de encontro e de problematização de
experiências.
Essas diferenças dizem de uma história. E poder montar essa história pode funcionar
como possibilidade de repensar a construção dos cenários. Foi nesse intuito que trouxemos aqui a
história narrada por seus atores. Como bem nos diz uma residente de enfermagem da ênfase em
saúde da família e comunidade:
Tu começa a refletir mais sobre as coisas antes de julgar elas, sabe? Antes de “ah, pô,
que droga! Essa equipe não funciona!” As pessoas têm uma história. As pessoas, a equipe, tudo
tem uma história que leva as coisas a acontecerem de um jeito. E eu acho que eu aprendi muito
aqui a pensar nisso pra poder propor modificações (residente de enfermagem).
2. A EXPERIÊNCIA
Durante todo o primeiro capítulo, buscamos por em relevo às formas de abordagem da
loucura e da família que se produziram no campo da atenção em saúde. Jogamos com a hipótese
de que a loucura como alteridade teria sido encerrada não apenas nos hospitais psiquiátricos, mas
também na captura operada pela nomeação doença mental. Discutimos a regulação da saúde da
população e a disciplinarização da vida familiar. E propusemos que os profissionais de saúde,
desde há muito formados num espaço de hegemonia da técnica, não escaparam à lógica produtora
da objetivação da subjetividade. Problematizamos as possibilidades de ruptura, com essa lógica
76
normativa, que as Reforma Sanitária e Psiquiátrica trariam consigo. Feito isso, daqui para frente,
nos ocuparemos da discussão sobre as possibilidades de experiência que os espaços
(re)formados – da atenção em saúde oferecem para os profissionais em formação.
Para tanto, será preciso esclarecer a que nos referimos quando falamos de “possibilidades
de experiência”. Assim no intuito de trazer ao leitor algumas coordenadas a esse respeito,
buscaremos, na própria história da formação em saúde, como uma certa noção de experiência foi
utilizada. Nesse momento, algumas aproximações e distanciamentos entre experiência e técnica
serão propostos. A seguir dedicaremos algumas páginas à construção, com alguns autores, da
idéia de experiência, como nós a pensamos, e dos elementos que consideramos que entram em
cena quando se trata do experenciar. Dentre estes elementos, destacam-se alteridade e
apropriação, que entrarão em cena, cada um a sua vez. A seguir e para entrar propriamente na
questão de um método para a pesquisa, colocaremos no centro da discussão o tema do encontro
com a alteridade e de suas possibilidades de registro. Por fim, narraremos nossas primeiras
incursões pelo campo empírico de nosso estudo, os espaços de formação dos residentes, bem
como traremos algumas cenas que possam dizer, em alguma medida, de nossa estada neles.
2.1 EXPERIÊNCIA, ALTERIDADE E APROPRIAÇÃO
A idéia de que é a partir da vivência no cotidiano de trabalho que um profissional de
saúde é formado não é uma novidade. O componente da educação em serviço, desde o início do
século passado, aparece nos dispositivos de educação na área. Uma série de reformas, às quais
nos referimos, iniciadas nos Estados Unidos nos anos 20, que buscou unir os modelos de
formação de médicos e enfermeiros aos princípios da pesquisa experimental da época, organizou
a formação do profissional de saúde dentro do hospital a partir do contato direto com os
pacientes. Surge um ideal tecno-científico de educação profissional a ser alcançado, que define
experiência como o momento de aplicação da técnica aprendida. A técnica ganha centralidade e,
a reboque, assiste-se a produção de uma política de atenção em saúde que focaliza a “doença do
sujeito” e não o “sujeito da doença”. Disso, de alguma forma, já falamos.
A Residência Multiprofissional, por sua vez, parece vir questionar esse ideal tecno-
científico, situando a formação em dois espaço-tempos: um, que se configura pelo encontro com
77
a pessoa ou família atendida e outro, pelo encontro com a equipe multiprofissional. Temos
duas direções possíveis a seguir. A primeira, que diz respeito ao que seria uma experiência na
atenção, e a segunda, perguntaria pela experiência produzida no trabalho entre os profissionais da
equipe. Entretanto, somos levados a considerar algo que não segue nem uma linha nem outra,
mas quer abordá-las em seu ponto de enlace, a saber, a questão da experiência na produção da
formação. Ponto em que um espaço-tempo adentra o outro: a experiência na equipe que se
expande ao trabalho de atenção e a experiência na atenção que se faz presente no trabalho em
equipe.
Para iniciar, nos parece importante pensar de que se trata em uma experiência e qual a
relação da mesma com o que é da ordem da técnica. Considerando o que nos diz Benjamin
(1994)
24
de que na contemporaneidade nos tornamos mais pobres em experiências transmissíveis,
produzindo-se uma nova forma de miséria, o que ele chamou de “monstruoso desenvolvimento
da técnica”, perguntamo-nos sobre os encontros e desencontros entre experiência e técnica e
sobre como elas se apresentam nos espaços de formação que pretendemos pesquisar. A colocação
benjaminiana sugere que técnica e experiência apontam caminhos opostos, e carrega um certo
tom nostálgico em relação à experiência tal como se produzia antes da modernidade. De nosso
lado, perguntamo-nos pelas possibilidades de produção de experiências em nosso tempo. E ainda
pela diferença entre a formação pensada a partir da produção de experiências ou a partir da
aprendizagem de habilidades técnicas.
Experiência é definida, no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, como a aquisição de
conhecimentos obtida através dos sentidos. Em uma de suas dimensões, se refere à aquisição de
um conhecimento abrangente, não organizado, ou sabedoria, adquirida de maneira espontânea
durante a vida. Em outra, diz respeito a um conhecimento específico ou de perícia, que, adquirida
por meio de aprendizado sistemático, se aprimora com o decorrer do tempo. Experienciar aparece
como igual a experimentar, concernente a experimento e relativa ao método científico.
(HOUAISS & VILLAR, 2001).
A própria definição do termo abarca, de um lado, algo relativo à dimensão singular:
sabedoria adquirida a partir do vivido, assistemática, não organizada; e, de outro, o que é da
ordem da aquisição de habilidade técnica ou conhecimento sistemático, e, em alguma medida,
24
A alusão a “Experiência e Pobreza” de Walter Benjamin é realizada aqui como forma de fomentar a discussão
sobre o lugar da técnica na formação dos profissionais de saúde. Neste capítulo, não utilizaremos o termo experiência
apenas na acepção benjaminiana. Buscaremos, inclusive nos usos correntes do termo, elementos que possam
contribuir para nossa problematização.
78
generalizável e objetivável. Curiosamente, a própria idéia de habilidade técnica cabe dentro de
uma das definições de experiência. Entretanto, em ambas acepções da palavra, esta aparece como
o que provém de fora e é incorporado, possibilitando ao sujeito a constituição de um modo de
conceber e de operar sobre o mundo. Estamos novamente, a primeira vista, diante de uma
bifurcação: de um lado, pensar a experiência como sabedoria que emerge singularmente do
vivido; de outro, como o que faz surgir o conhecimento sistematizado, generalizável. Porém, o
problema que nos ocupa, pelo menos da forma como o concebemos, insiste em se apresentar para
nós para além das bifurcações. E aqui é a idéia de fora, de exterioridade, que parece amarrar essas
duas rotas. Mas à que exterioridade nos referimos? Como podemos pensar esse fora que parece
intimamente relacionado com a possibilidade da experiência? Ou ainda, que estatuto assume esta
exterioridade quando se trata da experiência de formação de profissionais de saúde? Nesse ponto,
nossas perguntas nos enviam a uma consideração da temática da alteridade e de suas implicações
para a questão da experiência.
Larrosa (2002) nos lembra que a palavra experiência vem do latim experiri e designa o
encontro com algo que se experimenta, que se prova. O radical periri encontraríamos também na
palavra perigo, periculum. E a raiz indo-européia per, estaria relacionada à idéia de travessia e,
secundariamente, à de prova. Em grego, encontraríamos o radical per em peirô, que também se
refere a atravessar, pêra, que designa mais além, ainda em peraô, traduzida por passar através,
peras, que quer dizer limite e, por fim, em peiratês, pirata. A palavra experiência teria ainda o ex
de exterior, estrangeiro, exílio, estranho, existência. Nesse sentido, poderíamos dizer que a
dimensão da alteridade, de algum modo, lhe concerne.
A retomada das possíveis origens da palavra experiência realizada, de forma minuciosa,
por Larrosa nos leva inevitavelmente ao texto de Freud ([1919] 2003) Das unheimlich, traduzido
por O Sinistro, escrito durante a Primeira Guerra Mundial. Neste escrito, Freud se interroga
sobre uma das qualidades de nosso sentir que, segundo ele, se situaria em uma posição marginal
em relação ao que até então teria sido material de reflexão do campo da estética: a sensação de
estranhamento. Ao longo do texto, ele se pergunta sobre o que despertaria tal qualidade do sentir.
Particularmente, nos interessa articular essa temática à discussão sobre experiência, não apenas
porque trata de uma questão concernente à estética, mas também pelo fato de que a saída que
Freud encontra para respondê-la leva-o a recorrer à literatura. Freud examina imagens do
estranho narradas em produções literárias, principalmente na obra O Homem da Areia, de
79
Sämtliche Werke Hoffmann. Parece-nos especialmente interessante que Freud tenha buscado
material em narrativas ficcionais para pensar o que entraria em cena na sensação de
estranhamento. Voltaremos a esse ponto mais adiante. Traremos agora algumas passagens do
texto freudiano que nos parecem relevantes para a discussão alteridade/experiência.
Freud começa por definir o estranho como uma qualidade do sentir que é uma variedade
do terrorífico e dentro da qual o sujeito se desorienta. Em seguida, observa o fato de muitas
línguas carecerem de uma palavra para designar esse matiz do terrorífico, o que poderíamos
pensar como uma certa dificuldade de transpor para o registro da palavra o que é da ordem dessa
qualidade de sensação. Tratar-se-ia então de um vivido que resiste à apreensão pela linguagem.
Freud segue retomando um dos autores que se dedicou a abordar tal tema, o qual relaciona o
estranho à emergência do novo, lembrando que este pode tornar-se facilmente terrorífico. E
avança, ao examinar os possíveis significados de heimlich, oposto de estranho na língua alemã.
Temos um ponto alto do texto, no qual Freud observa que o termo heimlich se desdobra em
muitos sentidos até coincidir com um dos significados de unheimlich. Heimlich designaria
íntimo, familiar, mas também clandestino, que se mantém oculto, ou ainda algo subtraído do
conhecimento. E unheimlich pode significar além de estranho, sinistro, terrorífico tudo o que
estando destinado a estar oculto, escondido, veio à luz. Nesse momento, Freud constrói a hipótese
de que unheimlich seria uma variedade de heimlich, ou melhor, que o estranho é uma nuance do
íntimo, e que o un seria a marca do recalcamento.
Essa proposição lhe permite construir uma leitura bastante original acerca da
subjetividade: na intimidade, algo de uma estranha exterioridade, uma extimidade (LACAN,
[1959-60] 1997). Desde então o sujeito pode ser pensado como atravessado pela alteridade.
Na sensação do estranho haveria uma suspensão disso que separa, que faz limite entre o íntimo e
o estranho, o sujeito e o Outro. Como se, por um movimento de torção, o dentro e o fora
estivessem em continuidade. O que nos interessa sublinhar nas tramas do pensamento freudiano é
o ponto em que ele enuncia que aquilo que faria limite entre interior e exterior seria sempre uma
construção incerta e cambiante. Uma das conseqüências dessa enunciação é a posta em xeque das
lógicas binárias interioridade/exterioridade, pensamento/experiência, eu/realidade empírica, que
conferem a estes elementos uma natureza substancializada.
Para Lacan (ibid.), Freud produz uma reviravolta ética, ao conceber o sujeito como
atravessado pela alteridade, habitante de um mundo unheimlich, em que o eu não pode mais ser
80
concebido como interioridade pensante que opera sobre o externo como senhor de sua vontade. O
sujeito, desde então, não é idêntico a si mesmo, mas se presentifica num intervalo, pulsando nesse
limite dentro-fora. É nesse lugar limítrofe, excêntrico, não substancial, que o sujeito ex-sistiria
(LACAN, [1964] 1998) e, desde que poderia produzir uma experiência. Esta, longe de ser o
que acontece num exterior e é introduzido no interior do sujeito, é aquilo pelo qual se produziria
um redefinir constante de contornos. O aparecimento de um novo contorno se faria pela
passagem do vivido à linguagem, de forma que o experenciar estaria relacionado à realização
dessa passagem. Nesse sentido, construir uma narrativa sobre a vivência apareceria como
possibilidade de produção de uma experiência.
Algumas conseqüências decorrem dessa proposição. Se o que desenha o contorno
sujeito/Outro não está presente, estamos diante de um sujeito completamente jogado no campo do
estranho. Tudo no mundo lhe diz respeito e, paradoxalmente, ele não pode reconhecer-se em
absolutamente nada do que faz. Todas as coisas vêm de fora e não apropriação possível. No
conto de Hoffmann, trabalhado por Freud, o personagem Natanael encontra-se jogado nessa
dimensão aniquilante da vivência do estranho. Entretanto, se, por outro lado, não lugar para o
estranhamento o que pode ser observado no discurso da ciência, em que tudo pode ser
reconhecido e passível de explicação também não experiência possível. A região em que
tudo é estranho é vizinha daquela onde nada de estranho pode emergir, na medida em que ambas
colocam em cena o princípio aniquilante da totalidade.
Queremos aqui apontar para uma certa tomada da técnica pela ciência que, ao colocar o
conhecimento no lugar da verdade absoluta, funciona como barreira à alteridade. E, como efeito
disso, temos o que Sousa (2000, p. 59) denominou “fixidez narcísica que não se cansa de indicar
ao sujeito o seu lugar de uma forma unívoca”. Agamben (2003), na mesma direção coloca que o
método científico teria deslocado a experiência para o mais fora possível do homem: os
instrumentos, os números. A busca da certeza teria produzido o ideal da experiência autêntica
como a construção de um caminho certo, metódico, controlado, em direção ao conhecimento. Um
caminho que, ao excluir sensibilidade e fantasia, acaba por desconsiderar uma das dimensões da
experiência: a singularidade. A autoridade, em nossos dias, estaria então baseada nesse
conhecimento absoluto, abstrato e desconectado do sujeito. Para o autor, “o que caracteriza o
tempo presente é que toda autoridade se fundamenta no inexperienciável e ninguém poderia
aceitar como válida uma autoridade cujo único título de legitimação fosse uma experiência”
81
(AGAMBEN, 2003, p. 9-10).
Em relação ao nosso tema, podemos pensar que diante de tecnologias de atenção em
saúde, que se sustentam em prescrições generalizantes e princípios normativos, desvinculadas do
sujeito que as opera, resta ao profissional a posição de reprodutor de uma ação. Nessa
perspectiva, não seria apenas a pessoa atendida que estaria em lugar de objeto, mas também o
próprio profissional, na medida em que, referenciado a um conhecimento absoluto, ou seja, a uma
alteridade que em nada lhe diz respeito, não teria possibilidade de reconhecer-se naquilo que faz.
Aqui a interrogação benjaminiana faz muito sentido: qual o valor de todo nosso patrimônio
cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?
Começamos assim a delinear uma possível resposta à pergunta que nos colocamos no
início deste capítulo sobre a natureza do fora que constitui uma experiência. Se a exterioridade é
pensada como a realidade empírica e o sujeito da ação como interioridade psíquica, estamos ali
onde a racionalidade aprisiona a potência de uma experiência. Isto, na medida em que conferir
transcendência a uma realidade, independentemente de quem a experimenta, reduz a experiência
ao experimento. Uma ação em saúde, que se sustente nesse chão, cria um espaço onde não
lugar para o sujeito, a não ser como objeto. Retorna aqui a questão discutida no primeiro capítulo:
o ideal científico de edificação de um sujeito plenamente governável.
No entanto, por outro lado, se entendemos o fora relativo à experiência como sendo, em
alguma medida, a exterioridade íntima a que se referiu Freud em Das unheimlich, desenhamos
uma zona onde lugar para o desconhecido, o não sabido, o incalculável. Espaço em que
uma região estrangeira a atravessar (peirô). Travessia que implica, em alguma medida,
desorientação, estranhamento e leva a um mais além (pêra) que suspende e presentifica um limite
(peras), retraçando um contorno. Nessa perspectiva, uma experiência não se faria sem algum
perigo (periri periculum), na medida em que será preciso encontrar-se com o novo,
apropriando-se de uma parte dele, para que o caminho não se torne terrorífico. Trata-se da
dimensão produtiva do encontro com a alteridade, quando se é afetado pelo estranho e um
movimento de apropriação se produz.
Desse modo, a dimensão de apropriação seria condição da produção de uma experiência.
Experimentar teria a ver encontrar um sentido para o que atravessamos e nos atravessa. Agamben
propõe pensar a experiência não como o que tem seu correlato necessário no conhecimento, mas
sim na autoridade produzida pela palavra e pelo relato. Para Ana Costa (2001) é também da
82
experiência que a autoridade surge. A experiência comportaria então uma dimensão de ignorância
pois o sujeito desconhece a alteridade que o atravessa e outra de produção que ele se
apropria de uma parte desse desconhecido para produzir algo próprio. Nas palavras da autora, “o
conhecimento pode permanecer como uma representação exterior à experiência”, enquanto que
no saber se trataria de “uma apropriação da representação pela experiência (apropriação que
sempre traz uma medida de criação)” (COSTA, 2001, p.48). Assim, para que o sujeito se
reconheça em sua ação e se autorize a produzir algo próprio, reinventando saberes e práticas, algo
de uma experiência no sentido que acabamos de colocar precisaria se produzir.
2.2 DE COMO O OUTRO SE REGISTRA
2.2.1 Um encontro paradigmático
Para desdobrar a temática da experiência, tomaremos a questão da alteridade a partir da
obra de Tzvetan Todorov, A Conquista da América: a questão do outro, que trata dos cem anos
que se seguem à viagem de Colombo às Índias e à chegada à América (séc. XVI). Desde que
situamos as condições de uma experiência, a problemática de como se faz o registro da alteridade
entrou na ordem do dia. E na medida em que nosso campo de pesquisa também se apresentou, em
algum momento, como “terra a vista”, a análise de Todorov nos será cara não apenas para pensar
sobre o modo como os residentes fazem das vivências de trabalho experiências de formação, mas
também para refletir sobre o tratamento de nossos próprios achados de pesquisa. Assim, de nossa
parte, interessa trabalhar a questão do registro do outro, de como se a passagem do estranho
para o campo do sentido. É, nesse intuito, que trazemos as construções de Todorov sobre o que
ele chamou de um encontro “extremo e paradigmático” (TODOROV, 2003, p. 7): o encontro dos
espanhóis com o mundo desconhecido dos índios e terras americanos. Na visão do autor, a
conquista da América teria sido fundadora de nossa identidade de hoje, na medida em que os
homens teriam descoberto a suposta totalidade de que fariam parte.
Duas razões fundamentaram a escolha deste tema como primeiro passo no mundo da descoberta do outro.
Em primeiro lugar, a descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o encontro mais
surpreendente da nossa história. Na “descoberta” dos outros continentes e dos outros homens não existe,
83
realmente, este sentimento radical de estranheza.[...] Deles (os índios americanos) nada se sabe, ainda que,
sejam projetadas sobre os seres recentemente descobertos imagens e idéias relacionadas a outras
populações distantes. O encontro nunca mais atingirá tal intensidade (ibid, p. 5).
Logo no início de sua análise, Todorov sugere que as viagens de Colombo estiveram
subordinadas aos relatos de viagem, afirmando que tais registros teriam sido “o ponto de partida e
o ponto de chegada das viagens” (ibid, p. 17). É então que a partir da leitura dos relatos escritos
de Colombo e de outros conquistadores o autor propõe uma tipologia dos modos de relação à
alteridade, situando três eixos, nos quais a questão do outro poderia ser pensada. Um primeiro
diria respeito ao julgamento de valor (ou plano axiológico)bom ou mal, rebelde ou dócil, gosto
ou não gosto dele –; um segundo, se relacionaria com a questão da ação em direção ao outro (ou
plano praxiológico) adotar ou não os valores do outro, identificar-se ou não ao outro, ou ainda,
posicionar-se com indiferença –; e, por último, haveria um plano epistêmico, que teria a ver com
os graus de conhecimento do outro. Assim, numa relação à alteridade estariam sempre presentes
os elementos da valoração, da ação e do conhecimento. A tomada desses três planos como
possibilidade de pensar o registro do outro nos pareceu especialmente interessante.
Principalmente, por ter se construído a partir da leitura de narrativas, de relatos de experiência.
Nesse sentido, pensamos que se trata em Todorov de uma análise que recai sobre a dimensão da
nomeação do outro e de como essa apropriação acontece. Sigamos um pouco mais com A
Conquista da América para voltarmos a isso adiante.
Segundo Todorov, haveria, em Colombo, distintas posições na relação ao outro. Algumas
mais características de seu modo de observação da natureza e outras de sua atitude em relação
aos índios. O que haveria de comum entre ambos seria a ausência de um desejo de conhecer e a
presença de uma espécie de apreciação do outro onde o que interessava era a confirmação de
teses estabelecidas a priori. Em relação à natureza, haveria desde uma interpretação pragmática,
relativa aos assuntos da navegação, passando por uma interpretação finalista, em que os sinais
eram lidos a partir do que se queria encontrar, até uma contemplação intransitiva das belezas
naturais, marcada pela recusa da interpretação. Por outro lado, diante da língua estrangeira,
Todorov observou, em Colombo, dois posicionamentos: “reconhecer que é uma língua, e recusar-
se a aceitar que seja diferente, ou então reconhecer a diferença e recusar-se a admitir que seja
uma língua” (ibid, p. 42). Estas duas variantes da relação de Colombo com a língua do outro
teriam se mantido presentes até o século seguinte nas relações colonizador/colonizado.
84
Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar esses termos) são seres completamente humanos com os
mesmos direitos que ele, e considera-os não somente iguais, mas idênticos, e esse comportamento
desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros, ou então parte da
diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso,
obviamente, são os índios os inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra,
que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. (ibid, p.58).
Se, em Colombo, haveria a prevalência de um assimilacionismo ingênuo do outro, nos
colonizadores posteriores, apesar da manutenção do par igualdade/desigualdade, poder-se-ia
identificar algumas nuances. Com Cortez, chefe de uma das expedições espanholas ao México,
ter-se-ia produzido uma novidade no que até então era a atitude corrente dos europeus frente aos
americanos. O que lhe interessava, primeiramente, na chegada a terras estranhas não era o ouro,
mas a busca de informações sobre o povo do lugar. Cortez buscava conhecer para conquistar e
teria sido autor de um gesto paradigmático da relação ao outro pela procura de um intérprete
entre os índios. “A conquista à informação leva à conquista do reino” (ibid, p. 149). É assim que,
o conquistador teria se utilizado do conhecimento (plano epistêmico) dos mitos indígenas em
favor de seus objetivos (plano praxiológico), fazendo-se passar por um dos deuses dos astecas.
Quetzalcoatl é uma personagem simultaneamente histórica (um chefe de Estado) e legendária (uma
divindade). Em um dado momento, é obrigado a deixar seu reino e partir para o leste (o Atlântico);
desaparece, mas segundo algumas versões do mito promete (ou ameaça) voltar um dia para recuperar o
que é seu (ibid, p. 170). [...] A diferença radical entre espanhóis e índios, e a relativa ignorância de outras
civilizações por parte dos astecas levaram à idéia de que os espanhóis eram deuses. Mas quais deuses? É
aí que Cortez deve ter fornecido o elo que faltava, estabelecendo a relação com o mito, um tanto marginal,
mas totalmente pertencente à “linguagem do outro”, da volta de Quetzalcoatl (ibid, p.171).
Se, com Colombo, o outro era reduzido ao estatuto do objeto, em Cortez não prevalece
esse ponto de vista, mas, segundo Todorov, “nem por isso os índios tornam-se sujeitos, no
sentido pleno, isto é, sujeitos comparáveis ao eu que os concebe” (ibid, p. 187). Conhecer o
universo do outro estava a serviço da ocupação de territórios.
Outra possibilidade de relação à alteridade aparece na análise dos escritos do colonizador
e evangelizador Las Casas, que teria produzido uma apreensão do outro, eminentemente,
axiológica, pela reedição do mito do “bom selvagem” de Colombo. Ele descreveu os índios
como, naturalmente, meigos, tranqüilos e bons, assim como desapegados do mundo material.
Tais nomeações afirmavam estados psicológicos, mas nunca algum aspecto cultural ou social que
pudesse evidenciar diferenças. Os estados psicológicos teriam sido identificados aos valores
85
cristãos: “se essa gente é indiferente à riqueza, é porque tem uma moral cristã” (ibid, p. 240).
Nesse sentido, Las Casas teria conhecido os índios menos do que Cortes, embora tivesse gostado
mais deles. O que se poderia apreender de seus relatos seria então efeito do amar, que se fez,
inicialmente, a partir do “preconceito da igualdade”. Nesse preconceito, se trataria, justamente, da
identificação do outro a um “ideal do eu”
25
(idem).
Nesse ponto, a análise de Todorov nos leva a uma reflexão sobre os impasses da relação
ao outro que vivenciamos em nosso campo de pesquisa. Estar presente, como pesquisadora, nos
lugares de formação dos residentes, não raras vezes, nos colocou perguntas sobre como agir,
como interpretar e, principalmente, como escapar do lugar de juiz do outro, pela valoração de
suas condutas. É preciso lembrar que adentramos tais espaços levando conosco uma construção
apriori. Buscávamos encontrar formas inventivas de atenção ao sofrimento subjetivo, que
escapassem aos modelos normativos em que o saber está todo do lado do especialista. Nesse
sentido, como não valorar de forma negativa o fazer do outro, à medida que encontrássemos
exatamente aquilo que não gostaríamos de ver? Ou ainda, como não idealizar os modos de
trabalhar que se parecessem com aqueles que desejaríamos encontrar? Relendo nossos escritos no
diário de campo, deparamo-nos com uma pergunta muito freqüente: de que forma escapar do
perigo de ficar categorizando modos adequados e inadequados de trabalhar em saúde sem cair
num relativismo absoluto onde todo ato é equivalente?
Todorov nos disse que Colombo, ao ser indiferente à língua do outro, acabou por produzir
um assimilacionismo ingênuo da alteridade. De nossa parte, também nos encontramos com as
línguas do outro e nosso desafio era mantê-as, em alguma medida, na alteridade. Lançando um
olhar talvez reducionista sobre o campo da atenção básica, pelo qual passamos na pesquisa,
diríamos que a língua mais falada era a da promoção de cuidados primários em saúde, com ênfase
na participação da comunidade no processo. Dessa língua, pouco ou nada conhecíamos, o que
fazia com que fosse mais fácil manter o trabalho produzido ali num lugar de alteridade, fonte de
perguntas. No campo da saúde mental, isso se fazia mais difícil. À primeira vista, ele nos pareceu
bilíngüe: havia o discurso da psiquiatria psicodinâmica, bem como o discurso da Reforma
Psiquiátrica e da promoção da cidadania. Estes nos eram menos estrangeiros e víamos em ambos
25
O termo “ideal do eu” não é empregado aqui em uma perspectiva psicanalítica. Ele foi utilizado por Todorov em
sua construção sobre os modos de relação à alteridade e optamos por mantê-lo na acepção dada pelo autor. Desde a
psicanálise, talvez fosse mais adequado dizer que o “preconceito de igualdade” a que Todorov se refere se desdobra
no quadrante do eu ideal e não do ideal do eu. (Ver: LACAN [1954-55] O Seminário, Livro 2: o eu na teoria de
Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1985).
86
um certo risco de apagamento da singularidade da pessoa atendida
26
. Se seguíssemos
privilegiando a escuta desse bilingüismo, não produziríamos mais que uma categorização a
priori, fazendo o sentido chegar antes da vivência e da pergunta. Como saída para esse impasse,
optamos por tentar suspender esse olhar que partia do mesmo em direção ao outro, buscando
atentar para nossas perguntas, mais do que para as constatações. Tentamos escutar as línguas
periféricas, as significações estrangeiras, os discursos e cenas de difícil apreensão. Ou ainda, as
línguas dentro da língua, a estrangeirice na domesticidade (DUFOURMANTELLE, 2003). Desse
modo, buscávamos também escapar do perigo da igualdade, que se fazia presente sempre que
testemunhávamos uma experiência que se assemelhava à nossa. Para Todorov, o postulado da
igualdade acarretaria um conhecimento do outro ainda menor que o da inferioridade, onde algo
de uma diferença se coloca.
Nas relações colonizador/colonizado observadas nos textos de Sahagún
27
, por exemplo,
teria prevalecido a figura do outro como inferior. Os ritos, a idolatria, os sacrifícios humanos, as
superstições eram considerados prova dessa inferioridade. No entanto, em seu estilo de escrita,
ele teria inovado, fazendo aparecer no texto narrativas e desenhos dos índios (seus informantes).
Porém, tais registros se fizeram em espanhol. É então que Todorov nos alerta que, ao tentar fazer
a voz dos índios aparecer no escrito, Sahagún não teria realizado se não a tradução de uma
alteridade intraduzível. Contudo, sua obra teria sido produto da interação entre duas vozes, duas
culturas, dois pontos de vista. E embora não pareça nada interessante a tradução da diferença
como inferioridade, Todorov sublinha a presença, nestas formas de relatar, de uma tentativa de
apreender e transmitir algo do universo estranho e desconhecido do outro. Nesse momento, a
análise aponta para a questão da transmissão questão central no que diz respeito à reflexão
acerca das formas de apresentar os achados de uma pesquisa. De um vasto campo de vivências, o
que incluir e o que deixar fora? Incluir de que forma? Como fazer as vozes e a língua do outro
aparecerem no texto? Estas são apenas algumas perguntas que nos ocorrem nesse momento em
que se trata de fazer do vivido um texto.
No fim das contas, A conquista da América a questão do outro nos apresenta um vasto
campo de reflexão ética na história e na cultura, no qual tentamos buscar elementos para pensar a
relação experiência/alteridade na formação em saúde e em nosso próprio modo de relação com o
26
A questão relativa aos riscos de apagamento da singularidade da pessoa atendida foi trabalhada no primeiro
capítulo. Não voltaremos a ela nesse momento, mas sim nos terceiro e quarto capítulos, quando entrarão em debate
os temas da ética, da promoção do “bem” e da produção de atos terapêuticos.
27
Espanhol franciscano que permaneceu no México de 1529 a 1590 e escreveu sobre a religião dos índios.
87
campo de pesquisa. A conquista da América foi tomada por Todorov como uma espécie de mito
de origem da descoberta do outro. Descobrir, conquistar, amar, conhecer teriam sido possíveis
nomes desse trajeto, que atravessou o oceano em direção ao outro, e que, paradoxalmente, em
muitos momentos, acabou por produzir um apagamento ou uma desapropriação de suas insígnias.
Com relação às questões de pesquisa, a leitura de Todorov nos leva a perguntar pelos
modos de relação à alteridade produzidos nos espaços de formação dos profissionais de
saúde, pelas formas de registro do outro nesse campo e pelos nomes dos trajetos em direção
ao desconhecido que nele se fazem. Quanto à nossa relação com o campo, continuamos com
questões, as quais buscaremos trabalhar a seguir.
2.2.2 Do encontro como método
Lancei-me no campo de pesquisa, espaços de trabalho em saúde que acolhem os
profissionais em formação, pensando minha entrada nele como sendo também da ordem de uma
experiência. Desde essa perspectiva, uma questão insistia: como produzir um conhecimento
acerca do encontro com o outro sem apagar seu lugar de alteridade? De que forma dar lugar à
língua estrangeira no texto sem realizar a tradução de uma alteridade intraduzível (TODOROV,
2003)? Como dizer do outro sem assumir uma postura moral? E ainda, de outra parte, de que
modo escapar do perigo de se omitir à análise, pelo temor de uma possível violação do universo
do outro?
Derrida (2003), em seu trabalho sobre a hospitalidade, nos forneceu algumas
possibilidades de encaminhamento para isso que não cessava de nos interrogar. O autor constrói
sua reflexão, a partir da questão do estrangeiro: de como dar guarida ao estrangeiro, ou ainda, de
como esse estranho visitante pede morada. O estrangeiro seria “aquele que ameaça o dogmatismo
do logos (DERRIDA, 2003, p. 6), que põe em cena “a guerra interna ao logos” (ibid, p. 9).
“Como se o estrangeiro fosse, primeiramente, aquele que coloca a questão” e, ao mesmo tempo,
aquele a quem se endereça a primeira questão” (ibid, p. 5). A hospitalidade é pensada então a
partir de duas perspectivas indissociáveis e inconciliáveis: numa estariam em jogo leis da
hospitalidade e, na outra, uma hospitalidade absoluta.
Na primeira, haveria um pacto, onde a hospitalidade seria oferecida ao estrangeiro, que se
apresenta pelo nome. “Um nome próprio não é nunca puramente individual” (ibid, p. 23) e, desse
88
modo, a condição da hospitalidade seria a de que o estrangeiro não chegasse anônimo, mas se
apresentasse a partir de sua origem. Somente assim ele teria direito à hospitalidade. Não existiria
estrangeiro fora desse pacto, contrato ou aliança coletiva. Por outro lado, a hospitalidade
absoluta, romperia com o direito ou dever de guarida. A diferença entre o estrangeiro e o outro
absoluto estaria no fato de que, enquanto o primeiro é alguém que, para ser recebido, começa-se
por perguntar seu nome, sua identidade; o último seria aquele que não pode ter um nome.
A hospitalidade absoluta exige que eu abra minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de um
nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido,
anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que
ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (a entrada num pacto), nem mesmo seu nome. A lei da
hospitalidade absoluta manda romper com a hospitalidade de direito, com a lei ou a justiça como direito.
A hospitalidade justa rompe com a hospitalidade de direito; não que ela a condene ou se lhe oponha, mas
pode, ao contrário, colocá-la e mantê-la num movimento incessante de progresso; mas também lhe é tão
estranhamente heterogênea [...], no entanto, está tão próxima (na verdade, indissociável) (DERRIDA,
2003, p. 25).
Ao se perguntar sobre as condições da hospitalidade, Derrida aponta os problemas que a
noção jurídica coloca. “A hospitalidade não se institui por dever”, nos diz (ibid, p. 73). É assim
que ele irá “opor Édipo em Colono à figura do estrangeiro” (ibid, p. 31). Édipo chega em
Colono
28
(parricida, cego, carregado pela filha Antígona fruto de uma união incestuosa), depois
de uma caminhada errante. Ele pede um lugar sem poder dizer de sua origem. Estranha
28
“Édipo em Colono” é a segunda parte da Trilogia Tebana escrita por Sófocles. Dela também fazem parte Édipo Rei
(primeira parte da trilogia) e Antígona (terceira e última parte). Édipo Rei é, certamente, a tragédia mais conhecida
de Sófocles. Contaremos então, de forma breve, a história de Édipo em Colono já que a construção de Derrida (2003)
sobre a hospitalidade evoca, em muitos momentos, trechos dessa obra. A peça começa com Édipo e sua filha
Antígona saindo de Tebas em direção a Atenas, após Édipo ter furado os próprios olhos em razão da descoberta de
que desposou a mãe (Jocasta) e matou o próprio pai (Laio). O enredo da peça – que tem como cenário, na maioria do
tempo, a fronteira entre Tebas e Atenas coloca em evidência o sofrimento de Édipo e sua decisão de manter-se
longe de Tebas. Creonte, seu sucessor no trono, busca convencê-lo a voltar à cidade em que reinou. Édipo nega-se e
pede a proteção de Teseu rei de Atenas para que ninguém o conduza de volta a Tebas. Teseu acolhe seu pedido.
Nessa caminhada errante até Atenas, Édipo encontra também Polínices, um de seus filhos, que lhe pede apoio na luta
contra o irmão Etéocles pelo governo de Tebas. Ao que Édipo responde lançando sobre os filhos uma maldição:
Tebas. Ouve bem: jamais poderás conquistá-la; antes morrerás sangrentamente e teu irmão cairá contigo (a cena de
combate entre Etéocles e Polínices, antecipada pelas palavras de Édipo, abre a terceira parte da trilogia tebana
Antígona). Édipo pede, por fim, a Teseu que lhe conceda um lugar em suas terras para morrer sozinho e se despede
de suas filhas Ismene e Antígona. Pede ainda que o rei não revele a ninguém o sítio de sua sepultura, nem faça nela
qualquer marca que a identifique. A peça termina com Antígona e Ismene tentando descobrir o local em que jaz o pai
e sendo barradas por Teseu. Vale a pena reproduzirmos os diálogos finais entre Antígona e Teseu: Antígona Ele
morreu em solo estranho de acordo com sua própria vontade. Seu leito está oculto para sempre e ao nosso luto não
faltarão lágrimas. (...) Teseu O próprio Édipo deu-me a incumbência de não deixar qualquer mortal chegar às
vizinhanças daquele lugar e de impedir que até com sua voz alguém pudesse perturbar a paz do túmulo sagrado
onde ele jaz; terei, se respeitar a sua ordem, uma Pátria livre de provações. Dessas promessas foram testemunhas o
nosso deus e o próprio Juramento, filho do grande Zeus que ouve tudo. Tradução de Mário da Gama Kury, A
trilogia tebana, de Sófocles, Jorge Zahar, 6 ed. 1997.
89
experiência da hospitalidade em que Édipo solicita a Teseu uma última morada (a sepultura) e
pede segredo absoluto sobre ela:
Suplico-te pela hospitalidade [...] O lugar onde devo morrer, levar-te-ei ali eu mesmo sem que qualquer
guia me tenha pela mão. [...] Mas tu, não o indiques tu a nenhum outro, não reveles nem onde se esconde,
nem o lugar onde se encontra, se queres que um dia eu te valha uma ajuda igual a mil escudos, a uma
armada de reforço mandada por um país vizinho.
Édipo, estrangeiro que se dirige ao estrangeiro, é antes a encarnação da alteridade absoluta
que pede morada incondicional, sem insígnias, sem nomes, sem marca. Ao mesmo em tempo que
é hóspede, Édipo guia seu anfitrião Teseu (levar-te-ei ali eu mesmo sem que qualquer guia me
tenha pela mão), que nesse estranho encontro não é mais tão senhor de suas terras. É assim que
Derrida, valendo-se da polissemia da palavra (hôte), que em francês significa, ao mesmo tempo,
hóspede e anfitrião, de forma instigante, dialoga com o unheimlich freudiano (cf. 2.1), na medida
que ambos falam da chegada do estranho na morada do sujeito. E de que nessa chegada o dono da
casa não mantém sua soberania. As fronteiras entre lar e terra estrangeira se esmaecem para em
seguida encontrarem um modo de se refazer. Édipo inscreverá no país do outro o não lugar, o
fora de lugar que, enquanto resguardado, garantirá as fronteiras, sustentando a possibilidade de
existência da cidade (se queres que um dia eu te valha uma ajuda igual a mil escudos). Atenas
estará protegida se Teseu mantiver o lugar do enigma.
Durante toda sua construção, Derrida tensiona hospitalidade de direito e hospitalidade
absoluta, fazendo o leitor crer, em alguns momentos, que ele elege uma em detrimento da outra,
para, logo a seguir, dar lugar a ambas, sustentando sua confrontação.
A hospitalidade consiste em interrogar quem chega? Ela começa pela questão endereçada a quem vem
[...]: como te chamas? [...] Ou será que a hospitalidade começa pela acolhida inquestionável, num duplo
apagamento, o apagamento da questão e do nome? É mais justo e mais amável perguntar ou não
perguntar? chamar pelo nome ou sem o nome? dar ou aprender um nome dado? Oferece-se
hospitalidade a um sujeito? a um sujeito identificável pelo nome? a um sujeito de direito? Ou a
hospitalidade se torna, se ao outro antes que ele se identifique, antes mesmo que ele esteja (posto ou
suposto como tal) sujeito, sujeito de direito e sujeito nominável por seu nome de família, etc.? (ibid, p.
27).
Desse modo, a hospitalidade falaria dessa morada como um lugar partilhado (que acolhe
o estrangeiro na pergunta por seu nome), e, por horas, não compartilhável (que lugar à
alteridade inominável). Assim, o problema da hospitalidade, nos remeteria a questão da ética e da
90
linguagem. A linguagem seria a própria hospitalidade, na medida em que colocaria em cena a
dimensão hóspede-anfitrião (DERRIDA, 2003) ou estranho-familiar (FREUD, [1919] 2003)
presente no encontro com o outro. A linguagem seria desde sempre língua do Outro, língua
estrangeira. Por outro lado, a hospitalidade absoluta, em que o sujeito não teria perguntas a
colocar-se sobre o nome do outro, seria, em alguma medida, a suspensão da linguagem. Desse
modo, dar lugar ao outro implicaria uma tomada da hospitalidade na suas duas dimensões. Seria
preciso permitir a existência de lugares para a inutilidade das palavras, assim como lugares de
pergunta e de convite. Haveria aí um jogo entre nomear e deixar de nomear, perguntar e deixar de
perguntar, falar e calar. Mas como poderíamos pensar a questão da hospitalidade em relação ao
trabalho de pesquisa?
Em O pesquisador e seu outro, Amorim (2004) busca discutir as modalidades de relação à
alteridade na produção do saber e no texto da pesquisa. Para a autora, é em torno da questão da
alteridade que se tece o trabalho do pesquisador. O outro seria, ao mesmo tempo, aquele que se
quer encontrar e aquele cuja impossibilidade do encontro cria as próprias condições de
construção de uma pesquisa. “Todo o objeto de pesquisa é um objeto construído e não
imediatamente dado, o que implica um trabalho de negociação com os graus de alteridade”
(ibid, p. 29). Esta questão é apresentada pela autora, inicialmente, a partir dos filmes do cineasta
iraniano Kiarostami, os quais ela nomeia de “quase-documentários”.
O nome chama atenção pela marca de incompletude que porta. O “quase” anuncia um
modo de relação com aquilo que se produz, seja num filme ou noutra produção, que fala de uma
relação não-toda com a verdade. Um documentário por vezes se propõe a apresentar os fatos, o
que remete à existência de uma verdade originária a partir da qual se produzem interpretações.
Um quase-documentário talvez possa ser pensado como uma versão de uma quase verdade
originária. Seria uma verdade sobre a origem se a palavra pudesse dizer tudo sobre o vivido.
Seria uma verdade originária se não fosse ficção de origem, que no começo era o verbo: seja
ele descobrir, conquistar, amar, conhecer. É então na produção dessa nomeação que Amorim
acolhe a obra de Kiarostami e nos incita a tomá-la em consideração.
Um de seus filmes, O gosto da cereja, conta a história de um homem que busca
incansavelmente alguém que se proponha a enterrá-lo após seu possível suicídio em troca de uma
boa quantia em dinheiro. Possível, já que o pedido é de que, na manhã seguinte ao acordo feito, o
contratado até o local combinado e verifique se o contratante está morto, chamando seu nome
91
três vezes. O contrato prevê que, no caso de uma não resposta, o contratado cubra o morto com
terra, dando-lhe sepultura. O desenrolar do filme põe em cena diferentes modos de recebimento
desse estranho pedido de hospitalidade. Vários personagens (alguns bastante assustados) se
negam à tarefa, até que um a acolhe. Porém, o que aceita não se furta à tentativa de fazer o
suicida desistir da idéia, esforçando-se por convencê-lo a viver. Sem fugir do estranho encontro,
como fizeram os demais, e, tomando o pedido como enigma, ele dirige ao homem uma pergunta:
você vai renunciar ao gosto da cereja?
O que o filme encena é o encontro com o outro, a chegada de um estrangeiro, e o que daí
poderia emergir. A pergunta sobre o gosto da cereja não é exatamente um pergunta pela
identidade do outro, como o que poderia sustentar a possibilidade de uma acolhida. Também não
se trata de uma acolhida incondicional, sem perguntas, sem nomes, sem contrato. A menção ao
gosto da cereja recoloca o enigma para o suicida. um fluxo um vai-e-vem em relação ao
lugar da pergunta. Ela não é propriedade nem de um, nem de outro personagem, mas está entre
eles, nesse fluxo, nesse encontro. E, no fim das contas, é o espectador que fica com ela: você vai
renunciar ao gosto da cereja?
Na mesma direção, o livro de Carlos Heitor Cony Quase memória quase romance
(1996), conta a história de um homem que recebe um estranho pacote, uma curiosa encomenda,
sem remetente. Aos poucos aquele objeto estranho, fora de lugar, vai se tornando familiar. O
papel utilizado, a forma de enrolá-lo, a corda usada, o nó: todas marcas estranhamente familiares.
Até que o homem reconhece o pacote como sendo de seu pai já falecido. A partir das insígnias do
pai, encontradas na encomenda, o personagem constrói suas memórias, suas lembranças: uma
história de vida que o reposiciona frente à existência. A acolhida da encomenda como enigma diz
de um encontro-pergunta, que não se resolve, nem para o leitor (que termina sua leitura sem saber
o que havia dentro do pacote), mas que produz suas conseqüências. Lembrando Lacan ([1956]
1988), quando ele diz que uma carta sempre chega ao seu destino, talvez possamos dizer que a
possibilidade de uma produção está em acolher a carta, a encomenda, o pedido, que chega do
outro, e torná-lo, em alguma medida, um enigma próprio. Seria esse o destino do outro.
Para Amorim (2004), o que Kiarostami filma é sempre o encontro com o outro (o que
poderíamos dizer também da escrita de Cony). Um encontro que “nada tem de fácil ou
idealizado” (ibid, p 24), na medida em que o outro é sempre “posto como enigma” (idem). Desse
modo, a referência ao quase, em ambas as produções, não estaria para marcar nenhuma
92
insuficiência que suponha a possibilidade de alcance do originário, mas para indicar justamente a
impossibilidade de se estabelecer uma relação justa com a realidade. O quase viria então marcar
o lugar do outro como enigma e indicar que a verdade desse encontropoderia ter “estrutura de
ficção” (LACAN, [1956] 1988). Sua emergência se faria pela via de uma construção ficcional:
quase memória, quase romance, quase documentário. Construção que possibilita a produção do
si no Outro e cria as condições para a edição sempre diferente do encontro com a alteridade.
Em seu cinema (o de Kiarostami) o jogo de proximidade com a realidade está sempre presente e seus
filmes são uma espécie de quase documentários, freqüentemente baseados em histórias reais,
freqüentemente interpretados por artistas amadores que, por sua vez, foram personagens da história real
que o cineasta quer contar. Mas tudo está no quase: seus filmes não pretendem ser a realidade e isso fica
claro pelo modo como mostram diretamente o filme se fazendo: uma câmera que aparece no canto da
imagem, uma aparelhagem de som que falha, a filmagem da mesma cena em diferentes perspectivas, etc.
Do mesmo modo, os finais são sempre inconclusivos, muitas vezes ambíguos... [...] No final inconclusivo,
reaparece a presença do cinema se fazendo. Em O gosto da cereja, o despertar do protagonista deixa a
pergunta: morte ou sono/sonho? E simultaneamente ao despertar, o personagem vira ator e aparecem as
cenas da filmagem. Não se busca a resposta na história real, e sim decide-se a hora de terminar o relato da
história (AMORIM, 2004, P. 23-24).
Nesse sentido, nos quase documentário, quase memória, quase romance, articulam-se
elementos que nos são muito caros para pensar nosso método de pesquisa. Poderíamos dizer que
o pesquisador seria alguém que é hóspede e anfitrião (DERRIDA, 2003) num encontro com o
outro. Na condição de anfitrião, ele o acolhe, em sua língua estrangeira, e lhe endereça perguntas.
Na condição de hóspede, pede acolhida, deixando-se afetar pelas perguntas a ele endereçadas.
Dessa posição limítrofe, hóspede-anfitrião, um pesquisador vida ao objeto de pesquisa
nomeando-o, mas também o faz viver curvando-se ao que nele resiste à significação. É então que
se é preciso nomear, pois “não se vida ao outro deixando-o intacto” (TODOROV, 2003, p.
365), também o outro não terá lugar sem que se reconheça os limites dessa nomeação. O quase
estaria aí, ainda e mais uma vez, para nos lembrar disso.
Existe um olhar que parte da mesmidade. Outro que se inicia no outro, na expressividade do seu rosto.
Talvez essa distinção seja uma forma para poder olhar entre aquelas representações, aquelas imagens que
tomam como ponto de partida e como ponto de chegada o eu mesmo, o mesmo – o sumidoro, o refúgio do
próprio corpo e do mesmo olhar –, e aquelas que começam no outro e se submetem a seu mistério, seu
distanciamento, sua rebeldia, sua expressividade, sua irredutibilidade. Uma imagem do mesmo que tudo
alcança, captura, nomeia e torna próprio; outra imagem que retorna e nos interroga, nos comove, nos
desnuda, nos deixa sem nomes (SKLIAR, 2003, p. 68-69).
Kiarostami, no filme O gosto da cereja, de alguma forma, produz em nós essa qualidade
93
de efeito: ele nos interroga, ao mesmo tempo em que nos deixa sem nomes. Desse modo,
pensamos que nos pistas de o que poderia ser entrar numa relação ao outro que não o prive de
sua alteridade. Seria preciso explicitar desde onde parte o olhar/escuta e o que se nesse trajeto
daquele que olha/escuta para o que é olhado/escutado. As visibilidades e invisibilidades seriam
efeitos conseqüentes dessa trajetória. Uma produção que acolhe o outro daria a ver o movimento
que a realiza pelo rastro que ela deixa. A verdade estaria nesse rastro e não no suposto conteúdo
encontrado. Pensando nisso, em nossa pesquisa, tentaremos narrar o encontro, pela sua trajetória.
Ao falarmos das vivências no campo, buscaremos narrar a pesquisa se fazendo: a alteridade se
produzindo e produzindo nosso lugar de fala. E, mais do que dizer dos caminhos que trilhamos na
busca por encontrar, tentaremos construir o rastro daquilo que nos encontrou, do que nos chegou
como encomenda, como pedido, como pergunta, como enigma. E de como pudemos dar ou não
lugar a isso. É, nesse sentido, que propomos o encontro como método. Ou, talvez se pudesse
dizer, como um quase método.
2.4 NARRANDO UMA EXPERIÊNCIA:
das perguntas que guiaram o percurso pelo campo
Inicio contando um fragmento do percurso de negociações que precedeu e produziu as
condições de minha entrada no campo de pesquisa. Através dessa narrativa, penso que seja
possível começar a dizer dos desenhos que delinearam os lugares de nossa experiência. Desenhos
que começaram a definir seus contornos, a partir dessas primeiras aproximações aos espaços de
formação em serviço, que iniciaram com a apresentação de um projeto por escrito aos
coordenadores das ênfases da Residência Integrada em Saúde, recortadas como campo de
pesquisa. A idéia inicial era a de realizar uma aproximação aos serviços, que se constituíam como
espaços de formação de residentes, para, posteriormente, propor um projeto mais estruturado de
pesquisa, que meu contato com a residência passava apenas pelo âmbito legislativo. Isto não
foi possível, pois para entrar nos serviços de saúde como pesquisadora se fazia necessária a
autorização do comitê de ética da instituição.
Em uma das instituições que contatamos instituição em que efetivamente se realizou a
pesquisa – o trâmite para a aprovação do projeto seguia a seguinte rota: antes de ser encaminhado
94
ao comitê de ética, deveria ser aprovado pelas chefias dos serviços, por onde o pesquisador
passaria. Se por um lado, essa organização, de certa forma, impediu que fizéssemos uma espécie
de ensaio no campo antes da proposição definitiva de um projeto; por outro, ela acabou
possibilitando a desejada aproximação inicial aos serviços. Contaremos agora como se deu a
negociação da proposta na instituição, buscando pensar os nosso primeiros contatos com o campo
atentando para as linhas que condicionaram, constrangeram e possibilitaram, nossos caminhos de
pesquisa.
Organizamos então o projeto a ser apresentado, que se constituiu como um roteiro a
priori de inserção no campo de pesquisa. Esse roteiro teve como bússola as perguntas que nos
fizemos acerca da formação em saúde e que mencionamos nos capítulos anteriores. Para
retomar algumas delas:
1. Como as diretrizes que regulamentam a Residência Integrada em Saúde ganham
vida, dimensão e forma no cotidiano dos espaços de formação e trabalho em
saúde?
29
2. Como esses dispositivos multiprofissionais têm afetado os modos de pensar-
experimentar o trabalho dos profissionais de saúde? Ou ainda, de que maneira
os residentes são afetados pela vivência de trabalho em equipes heterogêneas na
atenção aos usuários?
3. Que zonas de tensão e estranhamento se configuram no território
multiprofissional de formação em saúde?
4. Como estes espaços são negociados?
5. Como a proposição desses lugares de formação afeta a dinâmica produção do
novo/reprodução do mesmo na atenção em saúde mental? Em que medida têm
possibilitado a invenção de outros modos de trabalhar?
Partindo dessas questões, configuramos um projeto de pesquisa amplo o suficiente para
ser redesenhado à medida que fosse necessário. O projeto previu um primeiro tempo de
aproximação aos espaços de formação dos residentes de Saúde Mental e de Saúde da Família e
Comunidade, que duraria cerca de dois meses, como forma de experimentar um pouco do
cotidiano desses lugares. Nesse tempo inicial, foi prevista minha eventual participação, enquanto
pesquisadora, em alguns espaços instituídos de encontro da equipe multiprofissional de
29
Questão cujo encaminhamento iniciou no item 1.3.2, intitulado “A história contada por seus atores: montando
cenários de formação”.
95
residentes, como seminários teóricos e reuniões de equipe, bem como visitas às Unidades Básicas
de Saúde e ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS adulto) no intuito de conhecer os espaços
de trabalho e as atividades de atenção aos usuários neles realizadas.
Um segundo tempo de pesquisa foi previsto, onde seriam realizadas entrevistas com os
residentes de primeiro ano e com os preceptores e coordenadores das ênfases da residência a
serem abordadas. Nessa etapa, a pesquisa encontraria um dos seus momentos mais relevantes,
que nela os atores narram seu percurso de formação e de trabalho. Desde nossa perspectiva, o
recurso às narrativas é uma aposta na possibilidade dos atores realizarem, também através da
participação na pesquisa, a produção de experiências a partir de uma apropriação de suas
vivências. As entrevistas com preceptores tiveram como temáticas norteadoras:
1. a organização dos espaços de formação;
2. objetivos dos modos de configuração dos espaços formativos;
3. os impasses experimentados e os encaminhamentos decorrentes.
As entrevistas com os residentes seriam desdobradas em dois momentos com um intervalo
de cerca de seis meses. Esse intervalo relaciona-se ao objetivo de poder escutar possíveis
mudanças nas formas dos residentes conceberem o trabalho e de pensarem seus lugares de
atuação, produzidas com o decorrer do tempo de vivências no percurso de formação. Propomos
então a realização de entrevistas abertas que partiriam de questões norteadoras e que
privilegiaram a narrativa do residente acerca de suas vivências na atenção e na equipe
multiprofissional. Como temáticas norteadoras definimos:
1. como o residente pensa seu papel enquanto profissional de saúde;
2. os papéis dos demais profissionais de saúde que integram as equipes;
3. o trabalho em equipe multiprofissional;
4. as demandas de saúde mental;
5. cenas do percurso de formação em que se configuraram impasses e dificuldades.
O segundo momento de entrevistas abordaria, em princípio, as mesmas temáticas,
podendo, ainda, novas temáticas serem acrescentadas a partir da consideração da primeira
experiência de entrevistas.
Previmos ainda um terceiro tempo, em que se realizaria um encontro entre pesquisadora e
participantes, de formato a ser combinado posteriormente, onde se faria uma “apresentação dos
resultados” da pesquisa e uma conversa em torno de como os participantes avaliaram o
96
andamento da mesma. Não definimos se este momento de encontro seria realizado de forma
conjunta entre as duas ênfases da residência (saúde mental e saúde da família e comunidade) ou
se ocorreria separadamente. Finalmente, com o roteiro constituído, contatamos uma das
coordenadoras da Residência Integrada em Saúde a da ênfase de comunitária e entregamos o
projeto. A indicação de entrega do projeto a essa coordenadora ocorreu por recomendação de um
dos profissionais do serviço de saúde da família e da comunidade, o qual referiu que essa
coordenadora teria sido alguém bastante importante no processo de elaboração e consolidação da
proposta da RIS na instituição. Desse modo, a primeira leitura do projeto foi realizada pela
coordenadora mencionada que, posteriormente, nos apresentou à coordenação da ênfase em saúde
mental para a qual também apresentamos o projeto.
Após a leitura do projeto pelas coordenações da RIS ênfase em saúde da família e
comunidade foram sugeridas algumas alterações. Entre elas a de que deveria ser anexado à
proposta um roteiro para as entrevistas a serem realizadas, pois, apenas uma listagem de
temáticas abordadas, como trazia inicialmente o projeto, seria insuficiente para a aprovação do
comitê de ética. Percebi que o meu esforço de construir um certo roteiro de inserção no campo de
pesquisa que fosse aberto o suficiente, a ponto de poder ser redefinido à medida que o percurso
demandasse, encontraria alguns obstáculos pelo caminho. Pediam-me, no entanto, que a proposta
de pesquisa desenhasse um mapa mais bem definido, menos indeterminado, com um roteiro de
percurso. Risquei então, na superfície do mapa desenhado, um roteiro mais objetivo a percorrer,
que isso se apresentava como a condição de entrada naquela terra estrangeira. Embora eu
soubesse que, no encontro com o campo, outros caminhos poderiam se traçar e outras direções
poderiam se mostrar possíveis. Em seguida a essa primeira reformulação da proposta, obtive a
autorização da coordenação do Serviço de Saúde Comunitária (que inclui a rede de unidades
básicas de saúde, onde os residentes de saúde da família e comunidade realizam sua formação em
serviço). Tal autorização não encontrou muitos obstáculos para se efetivar, o que me fazia pensar
que talvez a coordenação do serviço de saúde da família e comunidade não teria apenas permitido
a realização pesquisa, mas talvez tivesse interesse de que ela acontecesse. Isso, de certa forma, foi
enunciado pela coordenadora quando ela me disse que a pesquisa seria importante para avaliar os
efeitos do trabalho com a formação nas equipes e nos residentes, bem como, para visibilizar a
própria Residência.
Em relação à ênfase de saúde mental, a recepção da pesquisa teve outros desdobramentos.
97
Quanto a isso, me parece importante narrar alguns acontecimentos iniciais. A coordenadora da
ênfase em saúde da família e comunidade, conforme dissemos anteriormente, apresentou-me à
coordenação da ênfase em saúde mental como pesquisadora interessada em investigar a formação
na RIS. O encontro aconteceu nos corredores do Hospital Conceição, onde se realizava, na época,
uma feira com as produções artesanais dos usuários do CAPS adulto – local em que pretendíamos
realizar a pesquisa. A coordenadora da RIS em saúde mental estava junto aos pacientes na tal
“feirinha”, o que fez com que nosso contato inicial fosse bastante rápido. Esse primeiro encontro,
entretanto, deu pistas de que as negociações com a ênfase não seriam tão tranqüilas, pois, logo
de início, a coordenadora da saúde mental foi colocando empecilhos para a realização da
pesquisa. Dizia que o CAPS adulto era muito recente, que estavam começando a organizar o
trabalho e que não sabia se seria possível uma pesquisa nesse momento, mas que discutiria a
questão na equipe. Anotei o telefone do CAPS, entreguei o texto do projeto e fiquei de entrar em
contato em uma semana.
Ligo e a coordenadora me diz que ainda não tinha sido possível discutir a proposta na
reunião da equipe, pois havia muitos assuntos na pauta. Pede-me então mais uma semana. No
tempo combinado, ligo novamente e me é então proposto um encontro com preceptores e
coordenadores da RIS em saúde mental, onde se discutiria a viabilidade de realização da
pesquisa. A reunião com a equipe se colocou como possibilidade e como condição para que o
coordenador do Serviço de Saúde Mental (que inclui o CAPS adulto, um dos espaços de
formação em serviço dos residentes de saúde mental e psiquiatria) autorizasse o estudo. Vale a
pena nos alongarmos um pouco nas idas e vindas que se produziram nesse período de conversas e
negociações, até o momento de obtenção da autorização da pesquisa pela coordenação de saúde
mental.
Preparei-me então para a esperada reunião pensando em poder responder questões em
relação ao projeto e ouvir sugestões de reestruturação do mesmo a partir das possibilidades do
serviço de acolher a pesquisa. Nesse dia, uma primeira surpresa. A primeira pergunta feita, ou
ainda, a primeira dúvida enunciada sobre o projeto não era sobre o projeto. Um dos preceptores
perguntou-me: “em primeiro lugar, qual a tua formação?” Surpreendo-me com a urgência da
pergunta, mas também com o fato de eu haver esquecido de escrever na folha de rosto do projeto,
espaço em que eu deveria me apresentar, através de meus dados de identificação, qual era minha
profissão. Escrevi apenas meu nome e logo abaixo: “mestranda em Educação pela UFRGS”,
98
omitindo meu campo disciplinar de origem. Respondi à pergunta ainda um pouco desorientada,
estranhando aquele esquecimento. No final da reunião, após cruzar o portão que dava entrada e
saída à instituição, passado um pouco o susto, e me sentido um pouco mais dentro de mim
mesma, pensei: “como assim ‘em primeiro lugar, qual é a tua formação?’” Dei-me conta de que
meus pensamentos e questionamentos, materializados no texto da proposta de pesquisa, não eram
suficientes para a equipe no sentido de me apresentarem enquanto pesquisadora. Ou ainda, que a
questão da identidade profissional era algo bastante importante naquele espaço que eu começava
a adentrar.
Outra surpresa se deu ainda durante a reunião no momento em que eu percebi que os
preceptores de medicina não estavam entre os presentes. Fato que adquiriu um sentido apenas no
momento em que os demais preceptores colocaram que, se eu tinha interesse em incluir os
residentes de medicina na pesquisa, o projeto teria de ser reformulado, justamente, na parte em
que eu identificava quem seriam os participantes da mesma. Isto porque acabei por definir como
participantes da pesquisa os profissionais em formação e os preceptores da Residência Integrada
em Saúde, sem dar-me conta de que este recorte excluía os médicos residentes e seus preceptores.
Eu havia participado, em um momento anterior à escrita do projeto, de uma aula do chamado
currículo integrado da residência (aula que integra os dois programas de residência – RM e RIS
realizada na ênfase de saúde da família e comunidade), onde estavam presentes residentes de
todas as profissões, inclusive os médicos. A partir daí, talvez a questão da dissociação dos
programas de residência no âmbito legislativo a residência médica e, em separado, a
residência multiprofissional tenha ficado periférica para mim. Quando da escrita do projeto,
acabei definindo os “sujeitos de pesquisa” como se a Residência Integrada em Saúde (RIS)
incluísse a Residência Médica. Entretanto, o que pude perceber nessa reunião apontava para algo
contrário: o programa de Residência Médica não se via incluído na denominação Residência
Integrada.
Encontrei-me assim diante da necessidade de reescrever o projeto, incluindo no item
“sujeitos de pesquisa” os profissionais em formação na Residência Médica (ênfases em Saúde da
Família e Comunidade e em Psiquiatria) juntamente com os que eu havia incluído, ou seja, os
residentes da RIS (ênfases em Saúde da Família e Comunidade e em Saúde Mental). A partir
desse apontamento incluí uma pergunta mais à bússola de entrada no campo de pesquisa. Como
interagem Residência Multiprofissional e Residência Médica para constituírem os dispositivos
99
multiprofissionais de formação em serviço? E reformulei a primeira pergunta: Como as diretrizes
que regulamentam a Residência Multiprofissional e a Residência Médica ganham vida, dimensão
e forma no cotidiano dos espaços de formação e trabalho em saúde? Marcamos então outra
reunião com preceptores, para discutir o projeto reformulado, onde estariam presentes os
representantes da área médica.
No segundo encontro, com a presença da preceptoria da residência médica, voltamos a
algumas questões discutidas na primeira reunião: o tempo da pesquisa, a inserção nos espaços
instituídos de encontro das equipes de residentes, o roteiro das entrevistas. Assim como da
primeira vez, também nesse dia me foi endereçada uma pergunta que seguiu ressonando, mesmo
após minha saída da instituição: “onde tu queres chegar com essa pesquisa?” Se a questão sobre
minha formação, que perguntava por de onde eu vinha, me surpreendeu pela urgência com que
pedia uma resposta: o “em primeiro lugar”; esta mereceu destaque por sua insistência. Falamos
sobre vários aspectos do projeto, entre eles: o porquê da escolha das ênfases saúde mental e saúde
comunitária, dúvidas sobre as perguntas colocadas no roteiro das entrevistas, a idéia de não se
limitar às entrevistas, apesar delas serem o que a priori se colocava como um momento decisivo
da pesquisa, na medida em que os profissionais narrariam suas vivências.
Porém, entre um assunto e outro, a pergunta teimava em retornar: “mas, ainda não ficou
claro onde realmente tu pretendes ir com essa pesquisa”. Sossegou apenas quando eu disse que
quem iria me dizer onde chegar eram os próprios participantes do estudo, que a pergunta que
me levava até ali tinha a ver com os efeitos do trabalho em equipe multiprofissional na
formação dos profissionais de saúde e na produção dos modos de trabalhar em saúde
mental. E somente os participantes da pesquisa poderiam me dizer algo acerca destes efeitos.
Percebi que o fato de eu ter enfatizado a importância das entrevistas, dos relatos de vivências,
como o que definiria o ponto de chegada da pesquisa, deu algum destino para a tensão que se
atualizava a cada vez que a teimosa pergunta ressurgia.
A questão sobre o ponto de chegada, impossível de ser respondida quando da partida, me
exigia além do desenho do mapa e do roteiro traçado, a descrição, ou melhor, a construção de um
saber sobre um lugar que eu ainda não havia experimentado, que ainda não havia sequer se
constituído. E tudo que eu queria com a pesquisa era chegar a algum lugar desconhecido e me
surpreender com ele. Tudo o que eu não queria era encontrar algo que eu imaginava desde o
princípio. Acredito que, ao dividir com os participantes da reunião e da pesquisa a
100
responsabilidade pela constituição desse lugar a que a mesma nos levaria, se introduziu a própria
possibilidade de realização da pesquisa. Assim, depois das muitas idas e vindas, fechamos a
versão final do projeto com as alterações sugeridas. E após a autorização da coordenação de
saúde mental, a proposta foi encaminhada à avaliação das instâncias necessárias.
Acredito que as questões que se produziram nos primeiros contatos com o campo
merecem alguma reflexão, para que, em seguida, possamos melhor trabalhar os seus
desdobramentos ao longo da estada no campo de pesquisa. O primeiro ponto que pede destaque
diz respeito às formas como a proposta de pesquisa foi recebida por uma e outra ênfase da
Residência Integrada em Saúde. Se a coordenação da ênfase em saúde da família e comunidade
recebeu com curiosidade nossa proposição, ao mesmo tempo em que propôs alterações que
teriam o intuito de facilitar a aprovação do projeto pelo comitê de ética, demonstrando certo
desejo de que o estudo se realizasse; o mesmo não pode ser dito sobre a ênfase em saúde mental.
Nesta, a primeira reação foi de certa desconfiança. Os interrogantes endereçados a mim, enquanto
pesquisadora, a partir desse encontro com o campo da formação em saúde mental dizem um
pouco disso que apareceu como reação e que tento agora nomear.
De um lado, a pergunta pelo ponto de partida; de outro, pelo ponto de chegada. Ambas
guardam entre si uma estranha relação, talvez, melhor dizendo, um curioso encaixe. Relação que
pôde fazer-me algum sentido após algum tempo de vivências no cotidiano dos serviços
pesquisados e mesmo, após algumas entrevistas realizadas. É como se a resposta esperada para
uma questão, por exemplo, a que perguntava ¨qual tua formação¨, tornasse desnecessária a
resposta da seguinte ¨onde tu queres chegar¨, na medida em que uma resposta garantiria a
suposição da outra. Como se, sabendo de qual campo profissional parte o sujeito, se pudesse
saber onde ele chegará com seu trabalho, e como será sua posição diante dos outros. Ou vice-
versa: sabendo onde o profissional quer chegar, o que ele quer produzir com seu trabalho, se
pudesse deduzir de onde ele vem, qual seu campo profissional de origem.
Nessa hipótese que construímos, tudo se passa como se houvesse uma anterioridade que
garantisse os efeitos de um encontro. Ou ainda, como se essa anterioridade garantisse a previsão
dos efeitos, e, desse modo, de antemão, se pudesse controlar o rumo dos acontecimentos e evitar
sua dispersão. Saber de onde vem o outro e daí deduzir para onde o encontro com ele me levará,
ou ainda, saber onde ele quer ir para poder saber quem ele é, de uma certa forma, tornaria tal
encontro menos ameaçador, menos perigoso, menos dispersivo. Se por um lado, para que um
101
encontro, nos seus efeitos produtivos, aconteça que se organizar um espaço, de algum modo,
protegido, um laço de confiança, pois, do contrário, não encontro que se arme; por outro, eu
me perguntava porque a proteção era buscada, justamente, no campo profissional (como o que
garantiria um saber sobre a identidade do outro) e no telos da pesquisa (como o que garantiria um
saber sobre os efeitos de um encontro).
De todo jeito, a busca de uma estabilidade pela colocação em cena de uma racionalidade
linear entre anterioridade e posterioridade, entre origem e telos, entre profissão e resultado do
trabalho dizia algo do universo que eu começava a vivenciar. Talvez se tratasse de afastar da
cena de encontro com o outro a dimensão do imprevisível. Ou melhor, da tentativa de produzir
um encontro com o mesmo. O que se coloca como um paradoxo, que o encontro carrega
sempre em si uma alteridade. De nossa parte, era preciso retirar, da pergunta que encontrava
espelho, efeitos de diferença.
Aprovado o projeto de pesquisa, iniciamos legitimamente nossas incursões pelo campo.
Combinamos nossa participação na reunião semanal de equipe do CAPS adulto, na parte da
reunião em que os residentes também participavam. Acordamos nossa participação nas aulas do
currículo integrado da ênfase em saúde da família e comunidade, momento em que residentes (da
RM e da RIS) discutem sua prática, articulando conceitos com as vivências nos serviços. E
iniciamos algumas visitas às unidades básicas de saúde, com o objetivo de conhecer os espaços
de trabalho desses residentes. Dessa vivência no contato com as equipes, teria para contar alguns
fragmentos. Frases soltas, diálogos travados aqui e ali, imagens a pedir lugar na história.
Comecemos pela experiência de apresentação da proposta de pesquisa aos residentes, que
contamos como isso se deu em relação aos preceptores. A apresentação aconteceu em dois
momentos. Primeiro na ênfase de saúde mental, no CAPS, na ocasião de uma reunião de equipe.
Depois, na ênfase de saúde da família e comunidade, em uma aula do currículo integrado.
Cheguei ao CAPS adulto, para apresentar a pesquisa aos residentes, num dia de reunião de
equipe. Expliquei os objetivos do estudo e eles me endereçavam perguntas. “Então a tua pesquisa
é uma avaliação da RIS?” – pergunta um residente médico. “Não é bem uma avaliação e nem é só
em relação à RIS. É um estudo sobre os efeitos do trabalho multiprofissional na residência e
inclui toda a equipe, inclusive os médicos.” Outra pergunta, dessa vez de uma residente
psicóloga: “e qual é o nome da pesquisa?” “Bom, isso vai depender do decorrer da pesquisa, mas
imagino que vai ter algo a ver com o trabalho em equipe multiprofissional e a formação em
102
saúde”. Ainda uma dúvida sobre o método: “É uma pesquisa qualitativa?” Vacilando um pouco,
concordei com a pergunta. E por fim surgiu a questão sobre se eu tinha experiência de trabalho
em saúde mental, se trabalhava na área. Daí em diante, eles mesmos passaram a sugerir os
espaços em que seria interessante que eu me inserisse: as reuniões de equipe, as avaliações de
pacientes nas mini-equipes
30
, os seminários teóricos que aconteciam em conjunto entre RM e
RIS.
No currículo integrado, apresentei a pesquisa em uma das aulas. Não na primeira que
participei. Circulei por um tempo anônima naquele espaço (talvez durante umas três aulas),
momento em que eu era conhecida por um dos preceptores, com quem eu tinha feito o
primeiro contato. Nos intervalos dessas aulas, sempre havia um ou outro residente ou professor
que perguntava quem eu era, de onde eu vinha, o que fazia ali. A apresentação oficial foi
realizada nos minutos iniciais de uma das aulas (o que correspondia a logo depois do almoço) e
os residentes iam, aos poucos, chegando e se agregando ao grupo que me escutava. “Quais postos
tu vais visitar? São doze. Tu vais a todos?” foi a primeira pergunta. “A minha idéia é visitar
alguns” respondi. “Qual vai ser teu critério de escolha? Cada unidade é bem diferente das
outras.” “Penso que o critério vai ser a composição das equipes. Vou naqueles que tenham uma
equipe multiprofissional (de residentes) maior, com mais residentes de diversas áreas”
respondi. Como reação, ouviu-se um burburinho, do qual eu pude distinguir algum pedaço de
frase: “ih, na minha ela nem vai, só tem médico e enfermeiro”. Percebi um certo
descontentamento com o critério escolhido. Como se eu estivesse colocando num lugar de menor
importância as unidades e equipes pequenas. Tomei o burburinho como questão para seguir
pensando. No fim da conversa, os próprios residentes me indicaram cinco unidades que teriam
equipes compostas por todas ou quase todas as profissões. Ficou combinado também que eu
acompanharia um dos grupos, que as aulas do currículo integrado aconteciam em duas etapas:
em pequenos grupos, formados no início do semestre; e no grande grupo. A lógica de formação
dos pequenos grupos seguia dois critérios: misturar residentes de distintas unidades, bem como
de diferentes profissões.
30
A equipe do CAPS adulto se organiza em três mini-equipes e cada uma delas é referência para um número
determinado de usuários. Participam das mesmas profissionais e residentes dos vários núcleos profissionais que
compõe a grande equipe do CAPS adulto. O primeiro contato dos usuários com o CAPS acontece, usualmente,
através de uma entrevista realizada nas mini-equipes, onde todos os profissionais que as compõe participam, embora
um deles fique responsável pela condução da entrevista.
103
Esses contatos iniciais com os residentes abriram os caminhos para minha estada no
campo de pesquisa. A partir das perguntas que me foram endereçadas e das reações que pude
perceber, redefini alguns critérios estabelecidos a priori com relação às observações de campo.
Na ênfase de saúde da família e comunidade, em relação às unidades a visitar, optei por conhecer
aquelas em que os residentes do pequeno grupo que acompanhei estavam inseridos,
privilegiando, menos a configuração das equipes e mais o laço que eu havia estabelecido com os
mesmos. Na mesma linha, dos sete residentes em saúde da família e comunidade que foram
entrevistados, quatro haviam participado do grupo que acompanhamos. Os demais foram
convidados a participar, pois pertenciam a unidades de saúde com equipes amplas, às quais
também visitamos.
Conheci então três unidades de saúde, duas delas tinham em sua equipe representantes de
todos os núcleos profissionais e uma delas tinha, no início da pesquisa, uma equipe mais
reduzida, à qual foram se agregando outros profissionais. Na ocasião do segundo momento de
entrevistas com residentes, essa equipe estava composta por profissionais ou residentes de
todos os núcleos
31
. As idas as Unidades básicas de Saúde, foram concomitantes com as
entrevistas dos residentes. É importante dizer que não estabelecemos um laço mais próximo com
tais equipes. As visitas aos postos foram sempre mediadas pelos residentes que iríamos
entrevistar, os quais nos apresentavam as unidades e contavam sobre seu funcionamento.
Na saúde mental, por outro lado, como participamos de reuniões da equipe, durante cerca
de quatro meses, um laço mais próximo pôde se configurar entre pesquisadora e equipe. A
possibilidade de realização das entrevistas foi aberta, em princípio, para os residentes de primeiro
de formação. Posteriormente, optamos por oferecer tal possibilidade também para os residentes
de segundo ano, que alguns deles se mostraram interessados em participar da pesquisa. Outro
motivo que nos levou a incluí-los na pesquisa foi o fato de que continuamos considerando
importante realizar entrevistas com residentes de todas as profissões presentes na RIS. O que não
seria possível se entrevistássemos apenas os R1, pois não havia representantes de todos os
núcleos profissionais, no primeiro ano de residência, realizando a formação em serviço no CAPS
adulto.
Desse modo, nossa estada inicial no campo de pesquisa foi delineando nosso percurso,
produzindo desvios, abrindo novos caminhos e fechando outros. Entrevistamos então sete
31
Mencionamos no item 1.3.1 que estava previsto, no projeto da Residência Integrada em Saúde, o aumento das
equipes de modo a contemplar a participação do maior número possível de núcleos profissionais nas mesmas.
104
residentes de primeiro ano da ênfase de saúde da família e comunidade dos dois programas de
residência. Na saúde mental, foram entrevistados seis residentes, também dos dois programas,
dois quais dois estavam no segundo ano da residência. Das treze entrevistas, elegemos seis para
discutir aqui. Apenas uma das seis foi realizada com um R2. No capítulo seguinte,
apresentaremos nosso diálogo com os residentes, a partir das entrevistas escolhidas.
3. EM TORNO DA ÉTICA
Até aqui montamos os cenários nos quais pensamos que a formação em saúde tem se
produzido e trabalhamos em torno da temática da experiência. Propusemos que ela é
potencializada pela configuração de encontros fronteiriços entre campos heterogêneos. Como
efeito desse encontro com a alteridade poderíamos ter a produção de um alargamento das
fronteiras. Ao invés de uma linha, se desenharia uma zona intervalar, onde interior e exterior se
conjugariam para desenhar um mais além, nem dentro nem fora e, ao mesmo tempo, dentro e
fora. A experiência emergiria na apropriação dessa vivência fronteiriça e teria na narrativa uma
forma de apresentação. Desde essa perspectiva, sugerimos nossa entrada no campo de pesquisa
como também da ordem de uma experiência e trouxemos alguns recortes das negociações que a
entrada no terreno estrangeiro da pesquisa exigiu, bem como das cenas que vivenciamos quando
de nossa estada nele.
105
Nosso percurso nos leva agora a uma problematização acerca da ética como um modo de
se conduzir no campo do vivido. Interessa-nos trabalhar a questão de o que poderia governar as
ações que se produzem nos espaços multiprofissionais de formação e trabalho em saúde – lugares
de encontros, tensionamentos e negociações. Para realizarmos o que estamos nos propondo,
tomaremos a direção do horizonte apontado por Lacan ([1959-60] 1997), quando ele trabalha a
ética da psicanálise. Não se trata de buscar transpor a teoria psicanalítica para o campo da
formação em saúde, postura que desmancharia tudo o que tentamos construir até aqui a respeito
da zona que se produz entre presenças estrangeiras. Trata-se antes de buscar alguns elementos na
teorização lacaniana acerca da ética e endereçá-los como interrogantes ao campo da formação em
saúde.
Nesse sentido, primeiramente, apresentaremos algumas questões teóricas no intuito de
situar nossa posição em relação à ética; e, em seguida, partiremos para o que mais importa: a
narração dos percursos singulares de formação. Nesse momento, os interrogantes acerca da ética,
em sua relação com a formação, encontrarão seu ponto privilegiado de apresentação. Nos
percursos dos residentes, história, experiência e ética se entrelaçam para trazer à tona possíveis
encaminhamentos à pergunta pelas possibilidades de invenção de novos modos de trabalhar em
saúde mental.
3.1 A ÉTICA E O BEM
A ética, segundo Lacan ([1959-60] 1997), comporta, em alguma medida, um juízo sobre
uma ação, que a ação mesma traz consigo algum juízo ainda que implícito. Desse modo, falar
de ética, implicaria abordar a dimensão em que a ação humana se desenrola e do que a governa.
A reflexão de Lacan em torno dessa temática remonta a Aristóteles, em sua obra Ética a
Nicômaco. Nesta, o filósofo enuncia que o bem seria o fim de todas as ações do homem. Esse
caminho em direção ao bem e à virtude implicaria, além de um evitamento de todos os excessos,
fazer a razão acompanhar às ações. O Bem Supremo seria a felicidade, alcançada somente pelos
homens virtuosos, que escolheriam razoavelmente seu bem próprio (ARISTÓTELES, 2003). Em
relação à disciplina da felicidade proposta por Aristóteles, Lacan vai retomar o discurso freudiano
para questionar o Bem Supremo como ideal ordenador da conduta humana. “A questão do Bem
Supremo se coloca ancestralmente para o homem, mas ele, o analista, sabe que esta questão é
106
uma questão fechada. Não somente o que se lhe demanda, o Bem Supremo, é claro que ele não o
tem, como sabe que não existe”(LACAN [1959-60] 1997: p.359).
A concepção de que um bem que deve organizar as relações humanas é desconstruída
por Lacan ao longo de sua reflexão em torno da ética. Seu interlocutor mais presente é a
psicologia do ego americana, que, segundo ele, ao colocar a normalização psicológica como meta
terapêutica, não passaria de uma moral racionalizante. Quando discutimos a questão do biopoder
e da disciplinarização da vida com a emergência de uma esfera social (cf. 1.1), apontávamos,
para uma série de práticas em saúde mental que estariam a serviço da normalização psicológica e
da adaptação aos ideais sociais. Pensamos a denúncia da lógica do serviço dos bens, enunciada
por Lacan, na medida em que nela estaria em jogo um ideal de harmonização da vida e de
conforto individual, como bastante próxima às questões trabalhadas no primeiro capítulo com
Hanna Arendt e Michel Foucault.
Se Foucault interrogou a psicanálise, inscrevendo-a na série de discursos de verdade sobre
o sujeito, promotores da normatização da vida; Lacan, em sua discussão sobre a ética também
escolheu como alvo uma certa psicanálise que se colocava a serviço da normalização da
existência. Quando Foucault definiu a psicanálise de Freud como “injunção a eliminar o
recalque” (FOUCAULT, 1988, p. 123) parece-nos que ele partiu de um inconsciente freudiano
como reservatório de representações a serem recuperadas. Como se o bem do sujeito estivesse
nas profundezas de seu inconsciente e como se o próprio sujeito, auxiliado pelo analista, pudesse
acessá-lo. Ora, o esforço de Lacan foi, justamente, o de propor um inconsciente ético e não
ôntico. Desde aí, tratar-se-ia, mais do que de resgatar alguma significação verdadeira, de produzir
uma significação que, ainda que transitória, fosse minimamente sustentadora. Para Lacan, no
serviço dos bens, a falta que constitui o sujeito, seria tomada como carência. A idéia de carência,
por sua vez, pressuporia um bem capaz de supri-la, harmonizando a existência. Nesse sentido, a
lógica dos bens se distanciaria da noção de falta que Lacan em Freud, relativa à dimensão de
dessimetria e de não conciliação que marca a relação do sujeito com o Outro. Nesse sentido,
colocar-se como garante do encontro do sujeito com seu bem, para Lacan, seria desde sempre
uma trapaça. Não haveria possibilidade de encontro com uma representação que dissesse a
verdade sobre a identidade do sujeito, nem tampouco com um bem perdido que garantisse o
sentido da vida.
107
Para Lacan ([1955]1988), o caminho em direção a uma ética envolve uma
responsabilidade de nos posicionarmos em oposição às lógicas que coisificam o sujeito, onde este
é falado mais do que fala. À objetificação do sujeito nos discursos da civilização científica,
deveríamos responder oferecendo um espaço de escuta para o sujeito e restituindo-lhe o valor de
sua palavra. E essa experiência de encontro com a própria palavra estaria muito longe de um
possível encontro com qualquer bem, na medida em que falar atualizaria a dimensão de
dessimetria existente entre o vivido e a linguagem. Desse modo, poderíamos dizer que a
interpretação foucaultiana empreende uma leitura do conceito psicanalítico de falta no quadrante
imaginário, na medida em que coloca a ênfase na construção freudiana do drama edípico
32
.
Porém, essa tensão entre Foucault e Lacan não pode ser resolvida tão facilmente, sob o
argumento de que o segundo teria sido mal entendido pelo primeiro. Ao contrário, se tomamos a
posição de tensionar ambos discursos nessa reflexão é porque as proposições foucaultianas nos
parecem, especialmente, instigantes e enriquecedoras para a temática que intentamos desdobrar.
Seguindo com Lacan e sua construção em relação à ética, chegamos ao ponto que o autor
interroga o lugar do bem no laço ao outro e na clínica. Ele afirma que “a cada instante temos de
saber qual nossa relação efetiva com o desejo de fazer o bem, o desejo de curar” (ibid: p. 267).
Haveria uma armadilha nesse paradoxo de querer fazer o bem ao outro. No que se refere ao
próximo, nos diz Lacan, estaríamos sempre diante de uma margem irredutível e intransponível,
na medida em que se trata de uma alteridade que não pode ser apreendida, objetivada. A
armadilha se faria na medida em que a busca pelo bem do outro fatalmente nos remeteria ao
nosso próprio bem. Lacan nos diz que queremos o bem do outro à imagem do nosso próprio,
imaginamos suas dores e suas dificuldades no espelho das nossas, queremos lhe proporcionar um
conforto que vale na medida em que pensamos que ele serviria para nós mesmos. Uma ação
dirigida pelo dever de promover o bem-estar do próximo nos conduziria facilmente ao quadrante
das relações narcísicas, em que a alteridade não se coloca.
Ainda levado pela questão de o que orienta a ação humana, Lacan dirige-se a Kant,
quando ele propõe que a ação moral é orientada por princípios universais. "Age de tal modo que a
máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja para
todos" (Kant apud Lacan, [1959-60] 1997, p. 98), nos diz o filósofo. O central na ética proposta
32
Foucaul (1988) afirma que a psicanálise inscreve o poder no campo da interdição e se coloca como meio de
“eliminação de seus efeitos patogênicos” (p. 121). Para o autor, a interdição do incesto seria fundamento da
elaboração lacaniana entre a lei e o desejo. É, nesse sentido, que tendemos a pensar que a leitura foucaultiana do
conceito psicanalítico de falta inscreve esta no campo de uma carência que se produz pela interdição.
108
por Kant, na leitura de Lacan, está em sustentar a ação moral de forma radical num universalismo
e numa transcendência do bem. Esta interpretação do texto kantiano permite a Lacan situá-lo
muito próximo de seu contemporâneo: o marquês de Sade. Sade, em Filosofia na Alcova,
também propõe um princípio ordenador da relação ao outro, qual seja, que se tome como máxima
universal de toda ação o direito de gozar de outrem como um instrumento de prazer. Se, de um
lado, esse imperativo ataca os fundamentos da lei moral, preconizando o incesto, o adultério, o
crime; de outro, se aproxima de Kant, pois também propõe como ideal da conduta um princípio
que apaga a dimensão da alteridade. Kant e Sade, em suas aporias éticas, supostamente
longínquas, a partir de Lacan, tornam-se vizinhos. O mesmo limite que separa seus lugares
enunciativos também os une. Ali onde não renunciar a nenhum gozo e renunciar a todo e
qualquer gozo apontam para o absoluto. Em ambas as proposições, cada uma a sua maneira, o
lugar do outro em sua singularidade é desconsiderado.
Assim, Lacan sustenta que definir o campo de das Ding (Coisa) aparece como algo
central quando se trata de avançar no terreno da ética. Das Ding concerne ao que, em outro
momento, chamamos de exterioridade íntima. Lacan nos aponta que o sujeito não é apenas o
sujeito intersubjetivo, submetido à mediação significante, mas também alguém defrontado
constantemente com um real que causa a estruturação psíquica. A noção de Coisa, em Lacan,
aparece associada ao conceito de real. O real é aquilo que se produz como resto na emergência
do significante, na medida em que a palavra não recobre o campo do vivido, mantendo sempre
um intervalo. É este intervalo que torna possível o esquecimento e a lembrança. A trama
simbólica que constitui a subjetividade se sustenta, desde Lacan, nesse real do qual nada se sabe e
que entra em jogo na relação ao Outro. Seria justamente que se colocaria a interrogação
freudiana acerca da ética: na admissão desse real, das Ding, dessa hiância significante como o
que sustenta a experiência subjetiva.
O discurso da ciência, por sua vez, na medida em que rejeita essa dimensão inapreensível
presente na relação ao Outro, essa hiância que impossibilita qualquer saber absoluto, também
tropeçaria na questão ética. Lacan refere-se à ciência como um discurso que nada esquece.
Considerar a subjetividade implicaria dar lugar ao esquecimento. Nesse sentido a ciência
prometeria uma relação justa com o real, caindo na armadilha da relação narcísica, em que a
dimensão da alteridade se apaga. No discurso do bem geral da comunidade, ou ainda, no discurso
normativo da saúde como bem, da “vida como bem supremo” (ARENDT, [1958] 2005, p. 326),
109
para Lacan, lidaríamos com as conseqüências do discurso da ciência um discurso que, por
estrutura, coloca-se como Outro absoluto do sujeito. Desse modo, seria sempre de um ideal que
se trataria no discurso moral de promover o bem, onde surgem os imperativos, as normas e as
exemplaridades de conduta.
Entretanto, se não bem que organize a relação ao outro, e ainda, se sempre uma
margem intransponível presente nesse laço, que impossibilita o acesso ao bem próprio do outro,
então as ações de cuidado ou a terapêutica seriam da ordem do impossível? O que torna possível
a produção de atos terapêuticos? O que seria um cuidado, em direção à pessoa em sofrimento,
que não se desdobrasse no plano de um exercício narcísico do cuidador? Que não cedesse à
tentação de colagem a um ideal de saber absoluto?
Lembremos aqui de Hanna Arendt (cf. 1.1), quando ela nos diz que a moderna esfera
social “exige sempre que os seus membros ajam como se fossem membros de uma enorme
família dotada apenas de uma opinião e de um único interesse” (ARENDT, [1958] 2005, p. 49).
Na interrogação dessa moral da igualdade, realizada pela autora, encontramos uma proximidade
com a denúncia da moral dos bens, efetuada por Lacan. Desse encontro entre Arendt e Lacan,
talvez possamos começar a construir possíveis respostas às nossas perguntas. Parece-nos que em
ambos, trata-se de produzir um discurso que introduz uma reflexão sobre o lugar da diferença.
Arendt ([1958] 2005) irá pensar a diferença como condição essencial do espaço público e de uma
vida política (cf. 1.1). O espaço público de que ela nos fala é o lugar por excelência do exercício
da diferença e do compartilhamento dessa condição. É apenas pelo compartilhamento da
diferença que podemos falar de igualdade e de produção de um mundo comum.
Se Arendt nos fala de mundo comum e de espaço público, Lacan irá nos convocar a
pensar o campo da ética, espaço que também não se institui a partir de normas ou imperativos
morais. O autor nos fala de uma ética orientada pelo real, que admite a presença de uma
alteridade que sempre escapa ao compartilhado. Apenas a partir dessa admissão poderíamos
pensar na possibilidade de compartilhamento, que se opera no registro simbólico. Um mundo
comum se constrói a partir da transmissão simbólica, que sempre deixa um resto não
compartilhável e, ao mesmo tempo, condição do compartilhamento. Nesse sentido, o exercício da
diferença implicaria a consideração desse resto e o distanciamento das formas totalizadoras de
relação ao Outro. Para situar então o que poderia ser um terreno em que as ações terapêuticas se
fariam acompanhar da dimensão ética, faremos uma entrada no campo tragédia antiga. Lacan nos
110
sugere a consideração da ação trágica para articular o problema da ética no universo da clínica.
Para ele, a posição do herói trágico nos diria algo dessa zona difícil que se configura pela posta
em cena do ato clínico, em seus limites e seus pontos de ultrapassamento.
3.2 A ÉTICA E O TRÁGICO
A primeira questão importante a ser colocada diz respeito à origem da tragédia. Em
muitos autores, como Nietzche (O Nascimento da Tragédia) e Aristóteles (Poética), a origem da
tragédia foi buscada em Dioniso. Essa hipótese não diz respeito apenas à etimologia da palavra
tragoedía, união de tragos (bode uma das formas de aparição dionisíaca nos mitos), oidé
(canto) e o sufixo ia, mas também à idéia de que a Tragédia teria se desdobrado do Drama
Satírico, que, em sua origem, consistia em danças e rituais em honra a Dioniso. Na mesma
direção, Brandão (2001) refere que encontramos em Dioniso uma das forças vivas que
impulsionaram a emergência do drama trágico.
As referências mais antigas a Dioniso na literatura estão na Ilíada e referem-se ao
episódio da perseguição do deus por Licurgo, rei dos edônios. Contam que o deus possuído da
loucura sagrada (mania), diante das ameaças do rei, lançou-se ao mar. A perseguição de Dioniso,
segundo a versão mítica, faria parte de um ritual iniciático e catártico: a purificação pela água.
Numa perspectiva política, tal perseguição falaria de uma longa oposição à penetração de seu
culto na pólis aristocrática da Grécia Antiga. A inserção dos cultos dionisíacos teria acontecido
apenas na Grécia democrática do século V A.C. Dioniso enquanto deus estrangeiro, de origem
agrária, deus da vegetação e das potências geradoras, não teria sido bem vindo na Atenas
aristocrática. “Com seu êxtase e entusiamo o filho de Sêmele era uma séria ameaça à pólis
aristocrática, à pólis dos Eupátridas, ao status quo vigente, cujo suporte religioso era os
aristocratas deuses olímpicos” (BRANDÃO, 2001, p. 117).
O surgimento da tragédia estaria então relacionado ao momento em que os cultos
dionisíacos se inseriram na pólis grega. Ao momento em que esse deus estrangeiro, em sua força
transbordante, encontrou lugar no espaço da cidade. Dias (2005) coloca que Dioniso teria sido o
único personagem representado na tragédia antiga. Todos os heróis trágicos seriam avatares desse
111
deus, que, sob forma humana, se submetia às vicissitudes inerentes à vida dos mortais e, como os
homens, purificava-se pelo sofrimento.
Para Maurano (2001) é justamente dessa dimensão transbordante que se trata no trágico,
onde o que se encena indica sempre um ultrapassamento dos limites da normalidade. A autora
situa o campo propriamente “trágico como um mundo de antimonias radicais, não conciliáveis
dialeticamente, como o universo da afirmação da heterogeneidade das forças que intervêm nas
escolhas humanas” (ibid: p. 25). Segundo Lacan, a dimensão trágica
33
, na medida em que
colocaria em relevo a hybris, a desmedida, o desconhecimento como próprio do humano, teria
lugar extremamente relevante na problematização acerca da ética.
Gondar (1995) estabelece uma distinção entre o drama e a tragédia que nos parece
relevante à questão que pretendemos trabalhar aqui. Segundo a autora, na perspectiva dramática,
o “inimigo” se apresentaria como uma exterioridade que viria intervir na vida do sujeito e, sem a
qual, se poderia ter uma existência harmoniosa. O drama, nos propõe o autor, ao situar o inimigo
desse modo, estaria garantindo uma certa permanência e solidez ao sujeito. Dessa forma, estaria
implícito, em todo drama, a afirmação de um bem-estar originário e a promessa de uma vida livre
de padecimentos. Nos enredos dramáticos, as personagens se deparariam com uma falta que
supõe um conteúdo capaz de preenchê-la. Poderíamos dizer que há a expectativa de encontro com
o bem. Ou ainda, com um objeto que suspenda a dessimetria própria à existência. O que o drama
encena é a eterna insatisfação das personagens com os objetos perdidos. Seria então a
transitoriedade dos objetos e não a da vida que entraria em questão.
Na tragédia, por outro lado, a personagem se defrontaria com um “inimigo” que está
também em si mesmo e lhe é, ao mesmo tempo, íntimo e estranho. A ação trágica não
pressuporia um encontro com o Bem Supremo, o Outro absoluto que poderia garantir a harmonia
da vida. O outro, na perspectiva do trágico, se apresenta como um campo de dispersão, de forças
transbordantes. É desde esta visada que Lacan se relança na discussão em torno da ética. Ele
retoma a proposição freudiana de que o próprio processo de pensamento e ação humanos seriam
33
Seria possível realizar uma reflexão sobre o trágico e a clínica a partir da obra de Friedrich Nietzsche. Entretanto,
optamos por realizá-la com o pensamento lacaniano, que é nesse solo conceitual que nossa experiência clínica se
desdobra e que nossa intenção foi articular a dimensão trágica à questão da ética (o que foi realizado por Jacques
Lacan). Pensamos ser importante sublinhar que a concepção de Nietzsche sobre a tragédia guarda muitas diferenças
em relação à forma como Lacan pensa o trágico. E, desse modo, uma construção a partir das duas perspectivas
exigiria a realização de uma pesquisa à parte, que fizesse justiça à originalidade da produção de ambos autores. Os
interessados no tema da aproximação entre Nietzsche e Lacan a partir da questão do trágico podem recorrer a obras
como: Lacan & Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer, de Mario Bruno, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004; Ressentimento, de Maria Rita Kehl, São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
112
atravessados pelo desconhecimento, pelo não saber, pela experiência do estranho e a associa ao
trágico. Para Lacan, o discurso freudiano teria reintroduzido a dimensão trágica no território da
vida. Dimensão em que é a transitoriedade da existência que entra em questão (GONDAR, 1995).
Assim, Lacan elege a tragédia Antígona, para abordar a questão da ética no universo da clínica.
A história se arma em torno do tensionamento entre as posições de Creonte e Antígona.
Creonte, o governante da cidade, aparece como aquele que dirige o estado, administra as leis e se
declara defensor do bem-estar dos cidadãos: aquele que está para promover o bem de todos.
Ele proclama, em nome de tais princípios, os destinos dos corpos de Etéocles e Polinices - filhos
de Édipo, ambos mortos num combate travado um contra o outro. Um merece sepultura e honras;
o outro, dito inimigo da cidade, nem sepulcro, nem lágrimas. Acrescenta-se a isso que quem se
atrever a desobedecer tais ordens receberá pena de morte. Diante desse imperativo, surge
Antígona, que defende e realiza o sepultamento do irmão.
O governante a acusa: "ousastes transgredir minhas ordens?" Ao que Antígona responde
que seu ato foi governado por uma legalidade de leis não escritas.
não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as
estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de se superar as leis não-
escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre
vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem,
expor-me à sentença divina. Sei que vou morrer. Como poderia ignorá-lo? E não foi por advertência tua.
Se antes da hora morremos, considero-o ganho. Quem vive num mar de aflições iguais às minhas, como
não de considerar a morte lucro? Defrontar-me com a morte não me é tormento. Tormento seria se
deixasse insepulto o morto que procede do ventre de minha mãe (SÓFOCLES, 1999, p. 35-36).
Hemon, filho de Creonte e noivo de Antígona, dirige-se ao pai e governante, tentando
alertá-lo de que sua decisão não se encontra em consonância com a vontade do povo da cidade de
Tebas:
Eu, no entanto, ouço, às escondidas, como a cidade lamenta a sorte dessa jovem, de todas as mulheres a
que menos merece morte extremamente aviltante por ação inquestionavelmente bela como a de não
consentir que o irmão tombado em combate sumisse insepulco, exposto à voracidade das aves e dos cães.
Não seria ela, antes, merecedora de recompensa em ouro? (...) Não carregues em ti uma morada da
verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber exclusivo, possuir língua e mente
estranhas aos demais, nesse, se o abres, verás o vazio. Para o homem, ainda que seja sábio, aprender
continuamente a ser flexível não é vergonhoso. Observa que, nas torrentes de inverno, as árvores que
cedem salvam os ramos, enquanto as que resistem sucumbem, arrancadas as raízes (ibid: p. 53-54).
113
Creonte mantém-se irredutível em sua decisão: "por vontade de outro hei de governar essa
cidade ou por minha? A cidade não pertence a quem governa? Ao que Hemon responde: "Belo
governante serias, sendo único numa cidade deserta" (ibid, p. 56). Nesse momento, diante do
argumento confrontador do filho, Creonte decide sobre a condenação de Antígona: a pena de ser
enterrada viva. Hemon é quem situa o perigo que implica a posição de Creonte, qual seja, o de
que governar desde um lugar de saber absoluto, em nome de um "para todos" que enfim aponta a
um "para si próprio" produz um efeito de deserto ético.
Desde a posição de Creonte, a partir da visada lacaniana, trata-se da imposição de uma
norma ideal, um mandato que apaga a alteridade. Antígona seria quem defenderia isso que a
posição de Creonte desconsidera. Creonte se põe a querer legislar algo que não é de sua alçada,
algo que tem que ver com leis não escritas, com a lei dos deuses: as homenagens funerárias.
“Existem aqui duas dimensões muito nítidas que são suficientemente distinguidas por um lado
as leis da terra, por outro o que os deuses ordenam. Mas pode-se misturá-las. Não são da mesma
ordem, e se as confundimos, vai acabar mal”, nos diz Lacan ([1959-60] 1997, p. 334). Aqui nos
encontramos num ponto importante. Creonte ignora a fronteira que limita o alcance de suas
ordens.
Antígona, para Lacan, se situa num entredois
34
de dois campos simbolicamente
diferenciados – a lei da cidade e a tradição dos deuses – e, com sua posição, afirma essa fronteira,
enquanto Creonte a desconsidera. No entanto, segundo a leitura lacaniana, não se trataria em
Antígona apenas de uma defesa das leis dos deuses, mas da sustentação de uma posição que diz
respeito a sua singularidade e aos laços familiares que a constituem. Trata-se da defesa das
homenagens funerárias como marca simbólica da existência do irmão, para além de tudo o que
ele pode fazer de bem e de mal, contra a tentativa de Creonte de apagar a existência do inimigo,
negando-lhe a sepultura. É neste sentido que Lacan coloca que Antígona vai em direção a sua ate.
Brandão (2001) traduz ate por cegueira da razão e refere que as personagens trágicas são
sempre marcadas pela ate. O autor coloca que o enredo trágico teria uma dimensão pedagógica,
na medida em que enfatizaria que a ate (cegueira da razão) levaria inevitavelmente à moîra
(destino cego ou punição). Lacan a ate desde outra perspectiva. Para ele, ela é aquilo que
“provém do Outro, do campo do Outro”. Ir em direção à ate, desde esta visada, seria ir ao
34
Retorna aqui o ponto trabalhado no capítulo sobre a experiência (cf. 2), nos conceitos de unheimlich em Freud
([1919] 2003) e de hospitalidade em Derrida (2003): uma fronteira entredois que abre a possibilidade de um terceiro
espaço.
114
encontro da alteridade que nos atravessa. Nesse sentido Lacan propõe que a ate “não pertence a
Creonte, em compensação é o lugar onde Antígona se situa” (LACAN, [1959-60] 1997, p.336).
Creonte, por outro lado, ignora a fronteira que Antígona sustenta, forçando uma
transposição, ao condená-la a ser enterrada viva. Antígona leva sua posição às últimas
conseqüências e interrompe sua vida na tumba. Hemon, ao ver a amada enforcada e o pai
aproximando-se, também se mata. Creonte dá-se conta de seu erro, mas é tarde. Com o filho
morto nos braços o coro lhe canta Ora, aqui temos o rei em pessoa, traz nos braços prova
inequívoca, se podemos dizer assim, não de loucura alheia, mas de seu próprio engano
(SÓFOCLES, 1999, p. 91). Nesse ponto, o coro parece cantar o ato de Antígona como aquilo que
fez visível o erro no cálculo de Creonte: a hamartia. Para Aristóteles a hamartia diria respeito ao
erro, ao engano, que caracteriza a ação de todo herói trágico. Para Lacan, na tragédia Antígona, a
hamartia diria respeito apenas a Creonte, que guiado pela razão, lançou-se a querer governar em
um campo avesso às leis escritas, alheio às leis da cidade. Desde a posição de Antígona, não se
trataria da hamartia, mas da ate. Uma posição, onde o destino de uma vida articula-se com uma
morte certa, uma morte vivida de maneira antecipada: segunda morte, nos termos de Lacan.
A figura da segunda morte diz do limite entre o que se sabe e a impossibilidade do saber.
uma distância entre desconsiderar esse limite ou sustentá-lo, fazendo dele a possibilidade de
produção do novo. Antígona sustenta esse limite diante da posição de Creonte e o faz lançando-se
para além dele. Ali onde a fronteira se expande e desenha uma zona, nomeada por Lacan como
um entre-duas-mortes, região onde a morte invade a vida, onde a alteridade atravessa a
existência, onde há lugar para uma ate, cegueira da razão. A região que aí se delineia, para Lacan,
tem uma função singular no efeito da tragédia.
Da leitura lacaniana da tragédia Antígona, depreendem-se duas possíveis tomadas do
questionamento ético. Uma, que confere centralidade ao não saber e lugar à invenção em ato
de um modo de se conduzir no campo do vivido, a partir de uma posição singular no laço ao
Outro. E outra, que coloca um bem pré-concebido, universal e absoluto no centro do mesmo
questionamento. Bem que garantiria substancialidade, coerência e adequação à identidade do
sujeito. A perspectiva psicanalítica se inscreve na primeira vertente que enunciamos, apostando
na emergência do sujeito como efeito (do ato, da invenção, da apropriação do vivido), num
entredois que desenha um lugar terceiro.
115
3.3 PERSONAGENS E SUAS HISTÓRIAS:
A formação em cena
A partir de agora, são trabalhadas as entrevistas, realizadas com os residentes, através dos
interrogantes que nos levaram à realização da pesquisa. Para lembrar alguns deles: que
experiências os dispositivos de formação criados m oportunizado aos residentes? Que
tensionamentos, estranhamentos e interrogações suscitam e como eles emergem? Que efeitos essa
experiência tem produzido nos modos de pensar-experimentar o trabalho? E, por fim, que
invenções aparecem? Apresentaremos os percursos dos entrevistados pelo campo de vivências da
residência, a partir de fragmentos das suas narrativas. Escolhemos inserir neste capítulo as
histórias de formação contadas pelos residentes, na medida em que a ética abre um campo de
reflexão sobre as ações, ou ainda, porque as ações implicam um juízo, mesmo que implícito
(LACAN, [1959-60] 1997). Pensamos que se o questionamento ético se endereça ao modo pelo
qual o indivíduo se conduz na relação com o outro e consigo mesmo seria oportuno trazer aqui a
reflexão dos profissionais em formação sobre suas ações e seu modos de relação ao outro, para
dar andamento a nossa problematização acerca da ética no campo da formação e da clínica.
Não temos a intenção, de maneira alguma, de produzir um discurso de alcance universal
em relação aos modos de trabalhar em saúde. Buscamos, por outro lado, dar visibilidade à
singularidade dos sujeitos, como o que pode produzir distintos modos de trabalhar em saúde
mental e, como conseqüência, abrir possibilidades de trabalho, provisórias e incompletas, para o
campo da atenção em saúde. Ao sublinhar a dimensão da singularidade estamos,
simultaneamente, descartando de nossa forma de abordar as narrativas dos entrevistados,
qualquer tipo de análise que coloque em evidência a individualidade. Não estamos interessados
no drama individual, na história biográfica, nem em uma suposta explicação da gênese das
identidades profissionais. Nosso interesse diz respeito à produção de lugares subjetivos que
reverberaram da experiência: ali onde um estilo aparece como efeito de uma produção e indica o
lugar do sujeito. Indica um lugar, mas não explica sua condição, nem revela seu significado
último. Queremos dizer com isso que, em nossa análise, não buscamos na história do indivíduo
uma forma de explicar suas produções; mas sim buscamos as produções e seus efeitos de re-
configuração do lugar do sujeito e de construção de histórias.
116
que se trata aqui de empreender, de certo modo, um trabalho interpretativo (por mais
que a palavra não me agrade por todos os equívocos a que ela pode levar, por exemplo, quando é
pensada como revelação de uma verdade oculta), a partir das narrativas dos entrevistados, é
preciso dizer como concebemos a interpretação. Para tal, nos remeteremos a Lacan ([1954-55]
1987), quando ele discute a questão da interpretação do desejo: “não se trata de reconhecer algo
que estaria aí, já dado, pronto para ser coaptado. Ao nomeá-lo, o sujeito cria, faz surgir uma nova
presença no mundo. Ele introduz a presença como tal e, da mesma feita, cava a ausência como
tal. É apenas nesse nível que a ação da interpretação é concebível” (LACAN, [1954-55] 1987, p.
287). Porém é importante lembrar que não se trata nessa criação de sentido de algo que ocorre
livremente, ou seja, que se poderia atribuir qualquer sentido às palavras do sujeito. Trata-se de
uma construção que acontece condicionada pelo laço estabelecido entre os sujeitos em questão
(no caso, entre a pesquisadora e cada residente), condicionada pela transferência. É a
configuração desse laço que abre as possibilidades para a construção de sentidos.
Das treze entrevistas realizadas com os residentes, escolhemos seis para trazer aqui. Não
que as demais estejam excluídas do relato. Elas pulsam no texto, ainda que sem nome próprio.
Acerca dessas escolhas, é preciso dizer que procuramos trazer para a discussão aquelas que
pareceram representativas da diversidade de elementos com os quais nos encontramos no
encaminhamento das perguntas de pesquisa. O enredo das narrativas foi, sem dúvida, decisivo no
momento de fazer tais escolhas, embora a forma como elas aconteceram, o rumo que tomaram e
as sensações que suscitaram talvez tenham direcionado o recorte feito, mais do que se possa
dizer. Um enredo ou história não é algo morto, sempre vem carregado de intensidades. Como
dizer delas? Transformar as intensidades em letras não é nada fácil. Talvez elas se traduzam
melhor nas formas narrativas do que no sentido das palavras. É pensando nisso que apresentamos
o material das entrevistas, dando uma atenção especial às formas de contar, e não somente ao
conteúdo narrado.
Algumas entrevistas chamaram especialmente a atenção pelo modo como os entrevistados
recebiam e respondiam as questões: entusiasmados com a idéia de contarem suas descobertas.
Esse entusiasmo se fazia sentir, assim como se faziam sentir outros afetos: na sonoridade das
vozes, nos ritmos das narrativas, nos silêncios que irrompiam na falta de palavras. A intensidade
dos afetos que acompanharam os relatos talvez tenha se presentificado, principalmente, porque as
perguntas não eram apenas sobre o que eles pensavam acerca da experiência. Eram um convite a
117
contar o que estavam vivenciando, a trazerem cenas, a darem exemplos, a narrarem histórias:
seus percursos e percalços. Nesse sentido, em algumas entrevistas, esse “entusiasmo por contar”
foi substituído por um tom tenso, que, por hora, fazia pensar na necessidade de abandonarmos
algumas perguntas.
As entrevistas menos entusiasmadas, também terão lugar aqui, pois nos parecem bastante
ricas para a discussão a que nos propomos. Entre elas, houve aquelas em que ganhou intensidade
uma angústia por não lembrar por não lembrar experiências para contar. Mais do que uma
história, traziam a reflexão: a “moral da história”. Houve outras em que a angústia por lembrar é
que irrompeu: por lembrar apenas experiências com desfecho doloroso. Chamou-me também
atenção relatos sem entusiasmo e sem angústia. E, talvez não por coincidência, nessas narrativas,
não se percebia quase reticências, pausas ou interrogações. Elas tinham um tom happy end.
Infelizmente, essas nós não poderemos trazer, pois, coincidentemente ou não, seus protagonistas
acabaram optando por não realizar a segunda etapa da pesquisa (momento segundo de
entrevistas). Nesse sentido, na escolha das entrevistas, privilegiamos aquelas que aconteceram em
dois tempos, mantendo nossa idéia inicial de colocar em questão o efeito de um intervalo.
Houve ainda entrevistas em que foi possível escutar algo sobre o efeito da experiência de
narrar. Pensamos que estas não poderiam ficar fora. Ao final de algumas delas, seguiram-se
comentários do tipo: aquela pergunta sobre como eu mais aprendo eu vou ter que pensar mais
pra responder. Nunca tinha parado pra pensar nisso. Posso te procurar outro dia pra dizer o
que mais eu pensei? Ou: queria te agradecer, foi muito legal. Faz a gente pensar, faz a gente
refletir. O fato da gente falar faz a gente repensar tudo que viveu. Chega a dar meio que uma
emoção. Ainda: acho que era isso. Falei mais do que eu tinha pensado em falar.
É difícil escrever sobre o percurso de uma pessoa, pois não é possível incluir tudo o que
ela diz, transmite. Buscamos escrever sobre um traço de cada entrevista que consideramos
colocar questões importantes para a formação dos profissionais de saúde e, mais especificamente,
para as práticas em saúde mental. Desse modo, como referimos, tivemos o cuidado de não
produzir um meta-discurso, investindo no formato de um diálogo com os fragmentos de narrativa
escolhidos. Um diálogo guiado pelo percurso teórico que fizemos até aqui. Nesse sentido, o foco
foi mesmo naquilo que pensamos que a experiência de cada um poderia contribuir para uma
reflexão acerca da formação e do trabalho em saúde.
118
Além de dar um outro nome para cada entrevistado, lhes nomeamos também com outra
profissão. A idéia é a de que essa outra profissão aponte para a produção de um estilo. Seguem
então alguns personagens suas peripécias, seus dilemas e invenções criados a partir dos
residentes entrevistados. Tratam-se de personagens e suas histórias verdadeiras. Histórias
verdadeiras de médicos filósofos e maestros, terapeutas alquimistas, dentistas astronautas,
psicólogos arquitetos e artistas
35
. Verdadeiras, pois são feitas da única forma de verdade que se
poderia produzir: a verdade em forma de ficção. Assim sendo, lhes conto o que me contaram e
esperemos que essas histórias nos ensinem algo sobre como se produz um modo singular de
trabalhar em saúde.
3.3.1 O Filósofo
Rafael começou a carreira de médico longe do hospital. Foi num projeto... Como é que
era mesmo o nome do projeto?
Eu fiz um projeto que eu acho que foi a coisa mais legal que eu fiz em toda a faculdade. E
foi interessante porque foi no primeiro semestre da faculdade. Eu não tava nem em cadeira
clínica ainda, não era efetivamente medicina. Que foi um projeto chamado... como é que era o
nome daquele projeto? Tinha o rural e tinha o urbano. Eu fiz os dois. Fiz o rural em julho de 99
e depois fiz o urbano em janeiro de 2000. Era o projeto convivência, projeto convivência.
Foi conviver num Centro de Ensino Supletivo na zona rural do Rio Grande do Sul com
um grupo de jovens que tinham cometido algum delito e estavam cumprindo medida sócio-
educativa. Acompanharam Rafael dois estudantes de medicina do nono semestre, uma estudante
de letras, dois estudantes de agronomia, um estudante de filosofia, estudante da geografia,
estudante das ciências sociais e duas estudantes de pedagogia. A idéia era levar um pouco do
conhecimento de cada área para os que lá estavam.
E essa experiência foi muito marcante pra mim, porque eu desenvolvi um trabalho lá com
um estudante de filosofia, que era meu amigo da época de colégio, depois ele entrou na
filosofia, e a gente fez esse projeto junto. A gente fez um trabalho com eles de interpretação das
charges do Quino. Sabe o Quino? Que é o cara que criou a Mafalda, mas ele tem uma série de
outras charges de cunho político social muito forte. Então a gente fez o trabalho. E o trabalho
35
As profissões que utilizamos, como outra forma de nomear os entrevistados, foram escolhidas logo após a primeira
etapa de entrevistas. A única nomeação escolhida após a segunda etapa de entrevistas foi a da alquimista.
119
que era pra ser de quarenta minutos durou quatro horas. Foi uma coisa muito boa. A gente foi
elogiado por toda a equipe. E a possibilidade de eu, sob o respaldo da medicina, fazer um
trabalho muito mais abrangente, isso aí me tocou assim que eu nunca mais esqueci.
Para o estudante de medicina, amigo de filósofo, o contato com uma comunidade, ou
melhor, um trabalho numa comunidade, começava a ter um gosto especial. E poder fazer, sob o
respaldo da medicina, algo mais amplo, com um cunho político-social, o tocou de maneira que
ele nunca mais esqueceu. Mais tarde, formado, ele estava às voltas com escolher sua
especialidade. E eu comecei a pensar na possibilidade de exercer a medicina, mas ter tempo
pra mim também. Foi então que ele conversou com um professor, preceptor da residência em
saúde da família e comunidade. Ele me incentivou. Ele achava que eu tinha o perfil. E a escolha
se fez por aí: tempo, perfil.
Chegando na Unidade Básica de Saúde, Rafael se sentiu meio deslocado. Demorou pra se
sentir membro da equipe. Ficou um pouco frustrado por não conseguir organizar seus horários
de uma forma que pudesse fazer mais trabalhos fora da unidade. Entrou na rotina dos
atendimentos em consultório. Aparecia gente com pneumonia, com dor de garganta, até uma
senhora que nem era da área de cobertura do posto, que nem deveria ser atendida, afinal, a
demanda da área era bastante grande. Mas não teve jeito! A tal senhora estava num estágio
avançado de câncer e precisava de um encaminhamento para o oncologista. Aquela história doeu
no jovem médico e ele não teve como negar a consulta. O fato é que ele não tinha tempo pra
quase nada que não fosse o ambulatório e as aulas da residência. Ir à reunião de discussão de
casos complicados, que exigem um trabalho em equipe, estava no horizonte, mas nunca dava.
Lá na equipe a gente montou, fez um espaço pra isso, discussão de casos complicados, na
quinta-feira. Uma quinta sim uma não porque a sala é usada de quinze em quinze dias pelo
conselho local. Então quando a sala não é usada pelo conselho local tem esse espaço pra
discussão de casos complicados, mas esse espaço não foi bem aproveitado. A gente teve uns três
ou quatro casos assim e depois não teve mais. E eu não participei de nenhum deles.
Uma dúvida lhe acompanhava. Eu fico em dúvida, se isso é porque eu não consegui me
organizar ou se realmente a residência está organizada de uma forma muito louca assim, que
realmente não pra gente fazer. As dúvidas eram suas fiéis companheiras. E traduzidas em
perguntas, elas deram o tom à narrativa do jovem médico na entrevista. Uma narrativa ensaísta, já
que Rafael tomava as perguntas emergentes no trabalho como questões para sua vida e vice-
120
versa. Seu estilo de contar era mesmo filosófico: incluía o detalhe, a narração das sensações
vividas e o pensamento espontâneo sobre o que era dito. Era como se ele incluísse sua
experiência enquanto médico residente numa pesquisa maior. Talvez uma pesquisa sobre a vida.
Entre uma pneumonia e uma dor de garganta, o que lhe aparece? A agente comunitária, ao
fazer o recadastramento das famílias que moram na área de abrangência da unidade, descobre
uma família com condições de vida e saúde preocupantes. Chocantes.
É uma família que não incomoda ninguém porque todos os integrantes nunca saem de
casa, tem um integrante que sai de casa, todos as outras pessoas ficam permanentemente,
vinte e quatro horas por dia em casa. E se descobriu que tem um rapaz, o Paulo, que ele não sai
de casa desde os quinze anos. Ele está com vinte. Tem uma história psiquiátrica muito forte. A
irmã dele tem o mesmo caso. Eles têm um problema muito sério, eles acumulam cachorros da
rua. Então eles têm uns cinqüenta cachorros numa área de não mais do que cinco metros
quadrados, seis metros quadrados. O que inviabiliza uma abordagem da família ao Paulo, que
parece que é a pessoa mais doente que tem na família. Outro fato que chama atenção é que com
toda essa doença que tem também tem a questão do pai, mas o pai é uma pessoa que a
gente não tem muito contato com a história dele tem duas pessoas da família que saíram bem
saudáveis. E é uma coisa interessante né. Como é que esses pais criaram pessoas bem saudáveis
e ao mesmo tempo pessoas tão doentes?
Cinco anos sem sair de casa, convivendo com cachorros? Como que essa doença da
convivência aparece? Rafael ficou chocado com aquela história e foi até a casa da família pra ver
o que era possível fazer.
Eu cheguei na família, conheci a mãe de todo mundo e pedi ingenuamente pra ver o
rapaz, obviamente ela não deixou, disse que ele não ia deixar e ficamos de voltar outro dia.
Voltamos outro dia, pedi novamente pra ver o rapaz, novamente ela não deixou. no terceiro
encontro de tanto a gente insistir ela deixou a gente entrar na casa da frente e o que me tocou
muito, inicialmente, na casa, são três casas, que é uma casa cheia de lixo, em mau estado de
conservação, mas é uma casa que um dia foi muito bonita, porque é uma casa de madeira
antiga, com o direito alto, que tem uma varanda toda trabalhada de madeira, com um pátio
no meio e um canteirinho no centro. O muro da casa da frente é um muro todo bonito, antigo
também. Então me chocou ver uma coisa que um dia foi muito bonita e estruturada e virou um
caos. Isso de cara me tocou. Aí entrando na casa fiquei muito chocado com a livre circulação de
cachorros pulguentos pela casa. Fiquei chocado, a casa com cheiro ruim, cheiro de animal.
comecei a conversar com ela e logo em seguida veio o pai do rapaz que é marido dela e me
contaram a história deles. Que essa senhora, ela perdeu os pais muito cedo e os pais dele
pegaram ela pra criar pra ela casar com ele. E ela nitidamente revoltada com esse fato. Não
dizia isso em palavras, mas ela... E é interessante que contrastando com todo o cenário da casa
tinha, tem um quadro enorme na casa, que é o quadro do casamento deles. Ele, um cara robusto,
sorridente e ela com cara triste ali. Toda bonita de noiva, mas triste, uma face... Então esse
121
foi o último contato que eu tive até um certo momento. depois eu fiquei assim uns três meses
sem ter contato nenhum...
Depois de tanto insistir para entrar na casa, o médico filósofo não podia imaginar o que
iria encontrar. Não alcança o objetivo de chegar até Paulo, mas inicia uma aproximação à família.
É notável o esforço que Rafael faz para contar a cena que presenciou. A casa em detalhes, as
faces, os cheiros. Ele escuta a história do casal e um pouco daquele universo estranho passa a
fazer sentido. Algo começa a ganhar moldura. Um quadro na parede, uma face triste. Depois, foi
preciso tempo: uns três meses sem ter contato nenhum... veio a notícia dos cachorros, parece
que um vizinho reclamou dos cachorros e tal e a gente voltou a ter contato. Rafael toma a
decisão de voltar à casa, com a ajuda de uma das irmãs “sadias” de Paulo. Estava mesmo
decidido a fazer algo, embora não soubesse exatamente o quê.
...ela me convidou pra conhecer a casa dela, que é no terreno do lado. E eu fui e meti a
cabeça ali pra dentro pra ver a casa do lado. Nunca ninguém viu essa casa, a casa fechada a
sete chaves. E é o quadro da dor. Uma coisa assim... a questão dos cachorros né, foi daí que eu
vi então uma área assim um pouquinho menor que essa sala com uns trinta, trinta e cinco
cachorros no mínimo, mais os que estavam na frente deve fechar essa conta. E eu conversei,
dialoguei com essa irmã que é que nem ele. E é interessante que essa irmã muito tempo não
saía de casa também e ela me sugeriu... me apresentei pra ela assim pelo muro “tudo bem?
Meu nome é Rafael, sou médico” “ah tudo bem, eu sou a Paula” e ela me sugeriu de ir
conversar comigo na frente e ela foi pra rua e fazia muito tempo que ela não ia pra rua. E
convidei ela pra ir no posto e tal, mas ela no fim não veio, não quis ir.
Mas fazia anos que ela não saía de casa? E saiu pra falar contigo?
É... saiu pra rua uma vez. (...) Nunca ninguém tinha visto o pátio dessa casa, era tudo
mito, os cachorros são mito, o rapaz é mito, na verdade ninguém sabe se o rapaz está vivo, são
coisas que falam.
Rafael encontrou uma forma de fazer algo. Meteu a cabeça ali pra dentro e... o quadro da
dor! Como se pinta o quadro da dor? Imagens que não encontram palavras. Conversou com a
menina Paula, a que era como o irmão Paulo. Pelo que conta o filósofo, Paula o surpreendeu pela
receptividade. Saiu de casa! Mas parece que o médico não reconheceu isso como um efeito
importante do seu ato. Ela não aceitou meu convite, diz, referindo-se ao convite de ir ao posto.
Sempre há outro convite dentro de um convite: um desejado, o outro possível!
122
Pois é... o meu primeiro sentimento foi impotência. Esse foi um caso que fez eu me dar
conta que existem certas coisas que a abordagem não é tão simples quanto pressão alta e
pneumonia. Foi um dos casos que abriu a minha visão pro fato de que tem coisas mais
complexas do que coração e pressão, sabe? E eu me senti impotente, totalmente sem ferramentas
pra saber o que fazer. Então eu não sabia o que fazer. As únicas opções que me vinham na
cabeça eram opções autoritárias. “Ah, vou chamar a polícia pra entrar a força, pra ver o guri a
força”. Ou então coisa do tipo assim “não tem conversa, a gente tem que entrar e não tem
papo”. Foi o que a minha ferramenta me permitiu pensar na hora, mas no fundinho eu
imaginava que essa não era a coisa mais adequada a fazer.
O filósofo seguiu pensando, pensando no que fazer. A esta altura, parece que se sentia
bem parte da equipe, podia compartilhar suas dúvidas.
Acho que a coisa mais interessante é ver que existem intervenções que não partem
exclusivamente de dentro do meu consultório, comigo sendo o agente interventor ali, sabe? Tem
soluções que precisam de outras cabeças pensantes na prática, assim né, de fato precisam. Eu
nunca imaginei, se me dissessem na faculdade assim “olha Rafael, futuramente vai ter um caso
que pra tu resolver tu vai precisar de uma assistente social, de uma psicóloga e do centro de
zoonoses”. Eu não ia acreditar, porque o meu modelo era: o paciente entra, eu resolvo, o
paciente entra, eu resolvo.
(...)
E então a gente começou a função com o centro de zoonoses pra dar um jeito nesses
cachorros pra gente poder acessar o rapaz. E a gente encontrou muita resistência dela, da
Liliana, da mãe. E eu entrevistei a Liliana junto com a assistente social e ficou muito
interessante porque apareceu uma coisa que ainda não tinha aparecido, que o marido dela é
uma pessoa super autoritária, que ele manda em tudo, que ela não tem a menor voz. que ela
tem poder sobre os cachorros. Então ele manda ela se desfazer dos cachorros, ele odeia os
cachorros e ela bate o que “dos cachorros eu não me desfaço”. E agora chega o posto
querendo tirar os cachorros dela né, então parece que os cachorros é a fonte... assim... não sei
como dizer, é como se fosse uma resistência dela. Ela tem alguma coisa em que ela manda e
daquilo ela não abre mão, independentemente das repercussões sobre a saúde familiar que
aquilo tenha. E a gente quer se desfazer dos cachorros pra poder acessar o rapaz no fundo
que é o mais doente de todos, então isso gerou um reboliço.
A presença dos cachorros começa a entrar na leitura que o médico filósofo faz da situação
familiar. Os cachorros eram a voz da mãe de todos, da noiva triste do quadro na parede da casa
bonita que virou caos. Como dar lugar para essa voz sem a presença dos cachorros? Também
começa a entrar na narrativa uma certa reflexão sobre o impacto da experiência. Passado um
pouco o susto, Rafael se pensa, através do trabalho e o pensa, através de si mesmo. Mais
perguntas.
123
E eu acho que uma coisa que fez com que a gente se afastasse, eu é que estava
encabeçando o caso no início, foi o fato de que eu larguei de mão. Porque eu precisei flexibilizar
um pouco pra ver que não é por aí. Não é assim entrar a força na casa dele. Então acho que o
principal sentimento foi esse, sabe? Como abordar essa família? Quais são os problemas dessa
família? Até onde vai o meu papel? Ou até onde vai o papel do posto? Até que ponto o posto tem
que intervir ou até que ponto isso é a história de uma família e a gente não deve intervir porque
são pessoas enfim? Essa fronteira é uma fronteira muito nebulosa pra mim. Então foi isso que
me tocou muito assim, sabe? E aí o tempo passou um pouco, eu tive outras experiências de casos
psicossociais mais complicados, mas nem tanto, e eu acho que eu consegui flexibilizar isso ao
longo do tempo. Então eu não acho que a gente tenha que entrar a força pra abordar o guri a
força, mas eu acho que a gente pode começar por pequenas coisas que a gente não abre mão,
por exemplo, a questão dos cachorros. Então eu ainda não sei... ainda me sinto impotente frente
ao caso, mas acho que a gente fazendo pequenas coisas a gente vai conseguir ao longo da
abordagem ter um norte assim. Não sei se ficou claro?
Pequenas coisas, mais tempo. Que coisas? Quanto tempo?
Acho que administração do tempo é o principal fator estressor pra mim no momento. (...)
Acho que é uma questão de prática. Se eu, por exemplo, transportar a minha experiência com
pacientes com infecção de garganta pra pacientes psicossociais, eu acho que dá. Por exemplo,
um infecção de garganta, eu consigo fazer um diagnóstico se precisa de antibiótico ou não em
menos de dez minutos, porque eu tenho experiência nisso, estudei várias vezes. Então à
medida que eu vou tendo mais experiência em casos assim psicossociais eu acho que eu vou ir
diminuindo o tempo de abordagem e com uma abordagem mais eficaz. Eu acho, eu imagino.
Será que é possível administrar assim o tempo? E a atividade no Convivência que era
pra durar quarenta minutos e durou 4 horas? Essa questão do tempo é mesmo um problema a
ensaiar. Quando é tempo de voltar à casa de direito alto, que de bonita virou caos? Qual
tempo de Paulos e Paulas? De noivas tristes?
É eu penso muito nisso. (...) Fico pensando assim de onde é que vem esse meu conceito de
tempo, porque eu não estou acostumado com coisas que pra se concretizarem demoram muito
tempo. Não estou acostumado com isso. Isso requer uma habilidade que é a paciência. Então eu
fico muito perdido assim nessa coisa “ah eu preciso de paciência pra poder dar tempo ao
tempo”, mas por outro lado, “qual a quantidade de paciência adequada?” Será que se eu for
muito paciente eu não vou estar deixando me passar por alguma coisa que eu deveria estar
atuando com urgência? Então fica um dilema sem solução assim, mas que o tempo que eu tive
pra mim me fez enxergar isso de uma forma melhor. Eu acho que eu vou ficar muito feliz se ao
final da residência eu conseguir desenvolver essa questão do tempo. Assim, que tipo de
abordagem requer tal tempo? Ter um caso e dizer “ah eu acho que isso tipo de caso vai uns
124
seis meses de conversa” ou “pô, eu acho que esse caso tem que ser hoje”. Eu espero desenvolver
isso até o fim da residência.
Qual tempo da urgência? Da emergência? Da resolução? De quem é a emergência? Qual
tempo pra mim?
Então uma coisa que eu quero aprender com a residência é me dar de corpo e alma,
conseguir me dar de corpo e alma pra mais de uma coisa ao mesmo tempo. Isso eu espero pelo
menos começar a desenvolver. (...) Talvez um dia eu me conta que isso não é possível, sei lá.
Talvez seja isso.
Como era antevisto pela pesquisa, demos um tempo. Após seis meses, o reencontro para
segunda entrevista, que inicia com um relato de Rafael sobre uma mudança no seu trabalho de
conclusão da residência: a pesquisa mudou de nome.
O nome anterior era saúde ocupacional do médico de família. Eu tinha pensado nesse
nome porque... como é que eu vou dizer? Por que a minha idéia é abordar fatores gratificantes e
fatores estressores da profissão. Então por isso que o nome é saúde ocupacional do médico de
família. Mas depois, lendo mais sobre o assunto, como a saúde ocupacional, ela não
desinserida da saúde global do médico, né. Tudo se intercambia ali né. O médico leva a saúde
do trabalho pra casa. Leva a saúde de casa pro trabalho. É um grande intercâmbio de
experiências. Eu achei que o nome mais adequado era Saúde e Trabalho do Médico de Família.
(...) Pensando em ter uma visão mais ampla do que é saúde. Talvez isso não esteja muito claro
pra mim assim, agora pensando.
A mudança de nome falava do tempo. É o nome que nos diz da permanência e da
passagem das coisas. Para Rafael era e não era mais a mesma pesquisa de conclusão: efeito de
um tempo de vivências. E é também o nome que faz do vivido uma história para contar e dessa
história coisa sempre nova. Por falar em história, o que será que o médico ensaísta tem para
contar na segunda entrevista?
Tem umas coisas bem importantes que tão acontecendo assim. Ao longo do ano passado
todo, olhando retrospectivamente, eu acho que a minha residência do primeiro ano não foi de
fato uma residência de medicina de família. Eu acho que eu fiquei muito restrito ao consultório,
a casos clínicos. (...) Então eu comecei a ver mais a necessidade de ver como é que o posto
funciona como equipe. Da onde é que vem as decisões que a gente acata e tal. Então eu comecei
a ficar mais atento pra essas coisas, sabe? Assim, ler um pouco mais sobre leis, ver como é que é
o funcionamento da saúde fora assim dessa coisa médica. A partir de abril, de início de abril, na
verdade, que caiu como uma luva o meu estágio de gerenciamento, né. Então agora nessa uma
semana, que eu to recém começando, já foi muito proveitoso, porque eu to aberto pra isso assim.
125
Acho que essa foi a principal mudança, abrir o olhar pra outras coisas que não é só as portas do
consultório.
O filósofo fez movimentos no tempo. Da clínica de consultório para a abordagem de
famílias na comunidade. Daí para o recurso à equipe, que o transladou a uma reflexão em torno
do funcionamento da mesma. De volta ao consultório, a pergunta pelas leis, pelo gerenciamento.
Rafael fala de sua preocupação com a dificuldade de relacionamento entre a equipe de
saúde e a comunidade. Referiu que essa questão ganhou espaço para ser trabalhada em equipe e
que sua participação, através do estágio de gerenciamento, foi importante para que isso
acontecesse. Em plena experiência no gerenciamento, o médico residente se dedica à tarefa de
organizar a equipe em pequenos grupos que irão pensar ações para dar conta do problema de
relacionamento com a comunidade. Segundo Rafael, existe uma certa cultura de que a
comunidade nunca vem em peso, sempre tem vinte pessoas, vinte e cinco pessoas para as reuniões
com a equipe do posto. Reflete o filósofo: talvez isso não seja mera coincidência com o fato de
que quando a equipe tem um problema pra resolver, sempre dois se comprometem, quatro se
comprometem e a equipe tem mais quarenta. Então é um problema parecido da equipe com o
posto. Um espelhamento.
Rafael tem se dedicado também à tarefa de retomar o espaço de discussão de casos
complicados, agora educação continuada. Ano passado foi difícil por causa da desunião da
equipe né. Esse ano tem ido bastante gente, na última foi umas quinze pessoas. Talvez porque eu
enchi o saco das pessoas, falei umas duas ou três vezes nas reuniões. Eu me surpreendi! Achei
ótimo!
Vai-e-vens de perguntas no tempo. Vai-e-vens de filósofo.
A retomada do espaço de discussão foi, de certa forma, o (des)fecho de uma história ainda
aberta: a história da casa de pé direito alto.
Essa história teve dois desfechos. Teve o meu desfecho assim e teve o desfecho da família.
O desfecho da família foi que o caso não foi adiante assim. A gente ficou muito tempo sem
retomar o caso e a gente retomou o caso duas semanas atrás. Eu e a V., que é a assistente
social. Novamente o caso parado, a família não se mexeu pra tomar as providências, não
fizeram nada pra tirar os cachorros de lá. a gente falou que a gente vai acionar a vigilância
sanitária pra retirar os cachorros. E eu vou preparar o caso pra apresentar na equipe. Eu não
preparei ainda, porque eu preparei outro que foi apresentado, na semana passada, mas esse
caso é o próximo que vai ser apresentado. Isso é uma coisa que eu to organizando agora. (...) É
pra exercitar assim esse momento né, pra exercitar a discussão na equipe, a discussão de casos
complicados.
126
Não aqui também um certo espelhamento entre a paralisia da família e a paralisia da
equipe? Questão a pedir destino para o pensamento do filósofo.
Por fim e uma vez mais Rafael ensaia.
E eu vejo que existe um discurso ou uma tendência de achar que o mais importante não é
a bagagem pessoal, o mais importante é a administração, a gestão. Isso até eu vi agora, eu fiz
umas entrevistas preliminares na minha pesquisa e eu vi que existe uma tendência de achar que
a culpa é do gestor. (...) Então foi muito rica a entrevista com ela (médica de um PSF da
Prefeitura de POA, entrevistada por Rafael para sua pesquisa). E ela me trouxe algumas coisas,
uma delas foi essa de que, claro que eu não falei isso pra ela, mas no discurso dela ficava nítido
que se o gestor tomar rumo na vida, o trabalho dela garantido. Então, ela acha que um dos
principais fatores que influencia a saúde do médico e das pessoas que trabalham no posto de
saúde é a questão da violência nas unidades de saúde hoje em dia. Fora outras coisas assim, que
são mais comuns, mais antigas. O excesso de demanda. A exigência de um horário pra
educação continuada. A exigência de um horário pra que os médicos debatam seu ambiente de
trabalho. Tudo ela reivindicando junto à Prefeitura. Agora, eu perguntei pra ela “mas
Fulana, se o gestor atender todas as reivindicações de vocês, como é que fica o trabalho?” “Ah,
daí fica ótimo, daí nada a reclamar, fica perfeito”. que ela negligenciou ela, ela
negligenciou as dificuldades dela com o contato humano, a dificuldade dela em eventualmente
abordar um caso difícil. Ela acha que se o gestor der rumo na vida o trabalho dela tá garantido,
mas isso bate com a minha experiência curta, enfim, poucos anos de formado, mas bate né. Eu
consigo me adaptar melhor às dificuldades que o gestor impõe. Mas eu me inquieto muito mais
com as dificuldades de abordagem à pessoa que na minha frente. Eu tenho essa tendência
oposta. Então é isso assim. Eu to achando que eu vou encontrar nessa pesquisa pessoas que não
se perguntam como é que a sua abordagem. Entende? Pessoas que pensam que a culpa é do
gestor. (...) Eu aprendi a supor uma subjetividade no paciente. Que a pessoa chega com os seus
pensamentos, com os seus valores. A pessoa não é uma doença é uma pessoa. Parece óbvio, mas
muita gente não pensa assim. Eu acredito que um trabalho de saúde da família e comunidade
não é um médico carrancudo atendendo num postinho. pra fazer muito mais que isto, mas
muito mais.
3.3.2 O Arquiteto
Edson escolheu fazer a residência em saúde mental por tratar-se de uma formação que
está mais perto do que acredita: os princípios da Reforma Psiquiátrica de uma saúde mental
voltada a um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico. Para ele, sem um trabalho mais
próximo às unidades básicas de saúde não é possível efetivar a Reforma. Isso está se construindo
aqui e foi um dos fatores que fez eu vir pra cá, poder participar dessa construção. Disposto a
127
construir, conta que está participando de um trabalho recém iniciado no CAPS com as unidades
básicas de saúde de sua área de abrangência.
Os postos são muito mal estruturados pra saúde mental. Eles acham que saúde mental é
somente quem está delirando, quem está em surto psicótico, que esse é o louco, que esse é quem
tem a saúde mental abalada. Eles não se dão conta que a Dona Maria, que vai três vezes por
dia pra medir pressão, com a suas queixas, e que a equipe faz um acolhimento e, por mais que
encha o saco, eles conversam com ela, vai a enfermeira, vai o técnico, vai o médico, que isso é
saúde mental também. E que isso talvez ligue a Dona Maria ao posto e faça com que ela não
surte, com que ela não entre numa depressão e que enfim, se evite de ela vir pra cá. (...) Então a
gente pegou os postos que mais nos encaminham pacientes e fomos pessoalmente. Foi
interessante porque a reação deles... eles nunca esperavam que a gente fosse lá. Veio uma
reação de “que vocês fazem aqui?”, “que vocês querem?”, “estão aqui fiscalizando?”. Foi
interessante porque eles começaram a perceber que não era por uma fiscalização. Nem pra ficar
julgando “aqui não tem nada” ou dizer que eles tinham que estar estruturados. Grande parte
dos postos não tinha psicólogo e o psiquiatra passa por ali um dia determinado da semana.
Então, geralmente, existe no senso comum uma idéia de que saúde mental está aliada aos psis.
Então se não têm os psis nos postos, não tem saúde mental. Nossa proposta era chamar eles pra
conversar pra que a gente pudesse desfazer isso. É responsabilidade nossa, mas também deles.
Não é porque eles mandaram pra nós, que eles não tem mais que ver com o paciente. Então a
gente está tentando estar vendo com este posto como é que está a família do fulano que está
aqui, fulano vai ficar tantos meses, tais dias aqui e se vocês quiserem vir aqui fiquem à vontade.
Abrir esse espaço pra eles. Fazer o convite pra que eles possam conhecer o CAPS. Pra que eles
possam também ter uma outra concepção de loucura, ver que não é tão diferente da gente
quanto se imagina. Não é tão caricatural assim. E talvez isso assuste, por não ser tão diferente.
Com muito entusiasmo o jovem psicólogo afirma a importância de se trabalhar saúde
mental não dentro do CAPS, mas principalmente fora do CAPS. Engajado no projeto de
aproximação aos serviços de atenção básica
36
, Edson aponta para um redimensionar de espaços
nas edificações construídas em torno da idéia de saúde e doença mental. Fala em abrir espaços,
diminuir distâncias. E afirma que as ações em saúde mental não se confinam aos lugares onde
estão os psis, que uma visita de um serviço a outro pode não ser fiscalização e que a depressão
da Dona Maria do posto não necessariamente precisa ir parar no CAPS. Para ele, a
responsabilidade pelos cuidados em saúde mental pode ser compartilhada. Desconstruindo para
construir, Edson nos fala de um certo trabalho de arquitetura, em que a loucura passa a ocupar um
36
As unidades básicas de saúde da área de abrangência do CAPS em que Edson realiza sua formação são, em sua
maioria, de responsabilidade da Prefeitura de Porto Alegre. Entre cerca de 25 UBSs, apenas 4 são de
responsabilidade do Grupo Hospitalar Conceição. As visitas relatadas pelo residente de psicologia priorizaram as
unidades da prefeitura por terem menos estrutura para a tenção em saúde mental.
128
lugar diferente na rede de saúde e na cena da cidade. Assusta ver que a loucura não é tão
diferente da gente!
Quando eu cheguei no CAPS uma coisa que me marcou foi a estrutura física: é uma casa
com muitas grades. É uma casa que tem grades pelas escadas, grades do lado de fora, grades
pelas janelas, grades pelas sacadas, grades por tudo. E quando eu cheguei me dava uma
sensação ainda de mini-manicômio. Um manicômio numa casa.
Depois da chegada, mãos à obra!
É interessante porque a gente criou as oficinas, os residentes criam as oficinas que
querem. Por exemplo, numa conversa com os pacientes, a gente, eles falaram da idéia de
construir algo manualmente. E daí eu e a assistente social propusemos, “quem sabe a gente
constrói algo”. A gente foi ver os materiais e a gente decidiu junto fazer uma maquete. Então
hoje a gente tem uma oficina de maquetes, que foi fundada por mim e pela assistente social. A
idéia foi de um paciente e agora tem um grupo inteiro fazendo uma maquete única.
Nesse relato, duas questões chamam especialmente atenção acerca do modo como se
construiu o espaço de oficina: primeiro, que parte de um pedido do paciente, quer dizer, fala de
uma escuta; segundo, que Edson empresta seu desejo para efetivar a construção da idéia.
Construir algo com a mão? Uma maquete! E numa mescla a-gente-eles falaram da idéia
não se podia localizar num sujeito ou noutro a origem da idéia. Cria-se a oficina de maquete
cujos participantes se ocuparão da construção de uma cidade ideal. É o CAPS dentro da cidade e
a cidade dentro do CAPS.
Eles resolveram fazer uma cidade ideal. Uma cidade. Primeiramente a gente construiu
no pensamento deles como que seria essa cidade, tudo o que teria. Depois a gente passou isso
pro papel junto com eles. E depois a gente passou pro desenho, do desenho a gente passou pra
maquete. E daí é bem interessante pra eles verem o quanto que a cidade ideal deles é muito
próxima da realidade até. E que as coisas que eles gostariam que fosse diferente depende muito
deles também. E a gente trabalha com sucata, então são coisas que eles recolhem, que eles
trazem de casa, que vão trabalhando. Então eles construíram uma cidade que tenha praia e a
gente acabou trabalhando com eles que parece que... como se a saúde mental... como se a praia
lembrasse uma questão de descanso. Uma questão de férias, assim. E que é muito da história
deles aqui. Eles chegam no CAPS aqui e a maioria estão em benefício, quase como se realmente
eles saíssem da rotina deles e entrassem no CAPS, eles passam o dia inteiro aqui e voltam pra
casa de noite. (...) O CAPS é uma praia. A gente tenta aproximar esses dois mundos da realidade
do CAPS com a realidade deles, porque se não eles nunca vão querer sair da praia. Vão querer
ficar sempre na praia recebendo o benefício deles, recebendo as coisas... querendo ou não, o
129
CAPS é bastante maternal. A gente medicação, a gente atendimento, atendimento
individual, atendimento grupal, a gente oficina, pra maioria dos pacientes a gente
passagem. Então o CAPS é muito maternal.
Edson descreve o processo de criação: construiu-se em pensamento, traduziu-se para o
plano do papel, fez-se o desenho, e do desenho para maquete. Ao contar o modo como a cidade
foi ganhando corpo na maquete, o arquiteto psi se inclui no processo a gente construiu, a gente
passou. No entanto, o estatuto conferido à produção coletiva da oficina é o de uma representação
da realidade deles, da realidade do outro. Assim, Edson se inclui no processo, mas não se inclui
no objeto produzido, pois a cidade ideal é deles. Ou melhor, ele se inclui excluindo-se, o que
parece um movimento interessante na medida em que um entrar e sair de cena para que os
participantes da oficina emirjam como autores da maquete.
Por outro lado, a intervenção segue a direção de interpretar a produção. A praia é o CAPS.
Essa construção dos coordenadores da oficina a partir da maquete fala de quem? De uma
realidade experimentada pelos usuários do serviço ou de uma percepção da instituição acerca dos
mesmos? Novamente, as fronteiras entre uma e outra realidade se esmaecem. A idéia de que os
pacientes vão para o CAPS para tirar férias da realidade está bastante presente como discurso na
instituição. Na mesma linha e ainda mais presente, a de que o paciente no CAPS tira proveito da
sua doença. O CAPS, segundo Edson, aparece também como o colo da mãe, o berço. As duas
imagens (mãe e praia) apontam para um lugar (um dentro) confortável, protegido, tranqüilo.
Assim, o psicólogo arquiteto se empenha na tarefa de tentar mostrar que CAPS não é aqui
dentro. A gente diz “não, tem um mundo lá fora, vamos ver esse mundo então”.
Outra oficina que a gente criou foi a oficina de fotografia, que não acontece dentro do
CAPS. Acontece do lado de fora. A gente vai aos shoppings, a gente vai às praças, a gente vai
aos bairros deles, onde eles quiserem pra gente fotografar. Fotografar a realidade deles. É uma
maneira de trazer a realidade deles um pouco aqui pro CAPS. (...) A principal função é que
muitos deles têm medo, quer ficar no berço, quer ficar aqui no CAPS, quer ficar com a
enfermagem. (...) A gente foi com eles pro centro. É um trabalho difícil, são pacientes que
precisam de uma atenção. Na oficina de fotografia nós somos em quatro técnicos que
precisamos ter uma atenção grande com eles pra atravessar a rua, pra ir no mercado. Teve
paciente que surtou no centro, a gente teve que ter um manejo, a gente não tinha medicação, não
tinha nada, então teve que ter uma contensão maior. Mas a gente o quanto isso é importante
pra eles. São pacientes que chegam com medo e que aos poucos começam a se libertar, a pegar
ônibus. Teve uma paciente que tirou carteira de motorista e a gente acompanhou o processo na
oficina.
130
Edson se coloca na posição de acompanhar os sujeitos a circularem fora, a participarem da
vida da cidade. Topa ir conhecer qual é a cidade dos usuários: os bairros, o que eles quiserem
fotografar. Nesse momento, aparece a especificidade do laço que se estabelece entre o jovem
psicólogo e esse outro que, ao circular pela cidade, precisa de tanta atenção, de tanto cuidado.
Trata-se de um laço que media a relação do sujeito com o mundo fora, que sustenta esse
encontro com o fora, que faz disso uma experiência menos assustadora e invasiva. Nesse sentido,
chamam atenção as imagens que Edson nos traz: pegar ônibus, fazer carteira de motorista,
atravessar a rua. A participação de quatro técnicos na atividade também aponta para esse
trabalho difícil que é acompanhar o outro na produção de possibilidades de circulação pela vida.
Ou seja, os técnicos também sustentam sua prática na rede que se tece entre eles como equipe.
Quando nosso psicólogo arquiteto conta o modo como surgiu a idéia da Oficina de
Fotografia, novamente ele narra uma cena onde o que se destaca é o laço que faz emergir uma
mediação entre dentro e fora, casa e rua, sujeito e cidade.
E um dia, numa dessas caminhadas
37
, um dos pacientes falou que quando ele ficava em
casa, ele ficava lembrando das coisas e que ele tinha feito um desenho da praça onde a gente
tinha ido e trouxe o desenho pra nos mostrar. E falou “alguém podia um dia levar uma
máquina”. Daí a gente pensou: “bom então vamos levar uma máquina”. Então a gente levou
uma máquina minha e, como é uma máquina digital, eles tiram a foto e podem olhar a foto. A
gente trabalha as fotos no computador ali. E eles revelam as fotos deles, as fotos que eles
querem. A gente manda pela internet mesmo, eles têm que conseguir o dinheiro que é setenta
centavos. E é interessante o que eles acabam fazendo com essas fotos. A maioria deles já revelou
as fotos e são fotos que não são deles, são de uma paisagem, de alguma coisa que tem na rua. E
todos eles acabam colocando num lugar da casa em que é significativo. Ou no quarto, ou na
sala, por ter sido eles que tiraram. Isso é muito legal. É gratificante.
Ao longo da entrevista, Edson vai contando a história de um laço entre ele e os usuários e
entre ele e o fazer que vai criando, construindo. Conta-nos a história de uma troca de mensagens.
Ele as mensagens dos pacientes, e endereça as suas. Os pacientes, por sua vez, respondem seja
com o desenho da praça ou as fotografias na estante da sala. Essa sensibilidade da escuta me
chamava atenção no momento da entrevista, mas me fazia questão o fato de Edson contar a
história de um modo bastante explicativo, interpretativo, sem muitos interrogantes. É então que
pergunto se houve alguma situação na sua experiência na residência, em que ele se viu em
37
Caminhadas semanais coordenadas por uma voluntária no CAPS, professora de educação física, das quais Edson
participava junto com os pacientes e outros técnicos.
131
apuros, sem saber o que fazer e, se sim, peço que me conte como foi. Eu não havia usado essa
palavra – apuros – em nenhuma outra entrevista, mas é a forma como me ocorreu perguntar a ele.
Quer dizer, quando tu não sabes o que fazer... claro, tu sempre tens uma noção, mas
quando se falar em não-saber é porque tu não tem certeza se o que tu vais fazer vai funcionar.
Por exemplo, eu tenho uma paciente que surtou, surtou, surtou. Eu não sabia mais o que fazer.
Ela chorava, chorava, chorava. Ela dizia que ela estava vendo o mascarado, que o mascarado ia
pegar ela. Ela tinha passado por alguns assaltos. E eu não sabia o que fazer com ela. Parou a
oficina. Ela estava com um lápis na mão, eu peguei uma folha de papel e disse: “me desenha
então o que tu estás vendo”. Coisa que eu nunca aprendi na faculdade. E ela começou a
desenhar e começou a se acalmar. Depois que ela desenhou eu pedi pra ela perguntar pro grupo
o que o grupo achava, se aquela pessoa era feia, como é que era. E o grupo começou a dar uma
devolução pra ela. Não que a pessoa não era feia, que tinha até um rosto bonito. Desde aquele
dia, claro que isso não é regra, mas pra ela funcionou, ela não teve mais visões, não teve mais
vozes desse cara perseguindo ela. E foi muito mais pelo manejo do grupo, pela continência do
grupo do que pela intervenção. E foi uma intervenção que eu não sabia fazer. Se for parar pra
pensar, e eu parei depois pra pensar na supervisão porque eu fiz isso, na hora eu não pensei que
segundo fulano e cicrano funcionava. Eu fiz porque me deu o feeling e eu fiz e funcionou. Às
vezes quando não funciona, o outro técnico tenta outra coisa. Mas geralmente o socorro vem
depois. Tu faz e depois tu pensa sobre tu fez. Daí tu vai aprender, vai assimilar. Bom se o que tu
fez foi bom pro paciente ou se tu fez por tua causa. E se foi bom daí tu guarda como experiência.
Se não foi também guarda. Mas geralmente a gente fala disso em supervisão. Acho que a
supervisão é um pouco desse refúgio.
A forma como Edson narra o acontecido ela surtou, surtou, surtou, eu não sabia o que
fazer, ela chorava, chorava, chorava me faz pensar no impacto que a experiência lhe produziu.
Pra dizer dessa intensidade era preciso repetir, repetir, repetir. Espremido no meio de dois blocos
surtar, chorar estava Edson, ele e seu não saber. Combinando alguns elementos da cena
mascarado, assaltos, lápis e papel na mão – ele se lança: me desenha o que tu estás vendo.
Nessa narrativa, Edson nos fala sobre as condições de produção de um ato. Ele se faz
mesmo na impossibilidade da previsão de seu efeito. Não saber é não ter certeza, nos diz, e
mesmo assim algo precisa se realizar. Trata-se de algo que se faz em dois tempos tu faz e depois
tu pensa sobre o que tu fez. A cena contada fala de uma invenção e esta é a temporalidade do
inventar. O saber aparece como efeito do ato.
Porém, uma invenção não emerge do nada. O ato de Edson se fez a partir de elementos
que o acompanham algum tempo: a escuta (me conta sobre esse mascarado), o desenho ou a
superfície do papel como recurso para fazer de um pensamento, aterrorizante e invisível ao outro,
132
um objeto (desenha ele pra mim). Objeto do qual se pode falar, ver, pegar (o que o grupo acha
do mascarado?). Há fragmentos dos trabalhos com a maquete e com as fotografias nesse ato.
Em uma outra cena, algo dessa convocação à invenção aparece novamente.
Uma cena que eu me lembro marcante foi numa das oficinas que eu participei em que o
paciente começou num delírio bastante forte, ele era bastante grave, um esquizofrênico, em que
ele começava... tu vias que ele estava conversando com alguém e ele baixou as calças e tirou a
roupa no meio da oficina. Quem estava era eu e a técnica de enfermagem. E aquilo dali foi
comigo... bom talvez eu precisasse fazer alguma coisa e que a faculdade não tinha me ensinado
o que fazer nesse momento. (...) Mas foi bem difícil porque nisso os outros pacientes ficaram
bastante chocados e eu vi assim que ali eles tinham me mandado a mensagem que eu ia ter
que aprender tudo de novo. Foi que eu vi que a clínica de quatro paredes, de divã não
funciona. Eu ia passar por samambaia. Aqui ia ter que ser diferente, talvez eles iriam me ensinar
como fazer.
Edson nos conta as intempéries de uma prática que convoca o profissional como sujeito.
Não pra ser samambaia. E esse sujeito as mensagens do outro: ia ter que aprender tudo de
novo, eles iam ter que me ensinar. Aí o lugar do saber se desloca. É a pessoa atendida que ensina.
Na seqüência do relato, após a narração das cenas, começam a aparecer mais referências à equipe
e à dificuldade do trabalho em conjunto.
Acho que o maior choque foi esse, de ter certeza que nem sempre tu sabes fazer. E que às
vezes tu vais ter que construir esse saber com ele e com a equipe. (...) Eu participo ainda da
oficina de relaxamento, que eu participo mais pra dar um suporte, com a terapeuta ocupacional.
Isso foi uma coisa difícil na residência também: ter não que conviver com as outras práticas,
mas estar inserido nas outras práticas. São coisas que eu nunca tinha feito na minha vida. Eu me
formei em psicologia, mas nunca tinha pensado em fazer um relaxamento por uma via mais
energética, usando a imaginação. No início eu achava muito complicado. Fazer isso com um
psicótico, eu achava uma coisa tão psicótica quanto. E, quando eu entrei, uma das oficinas que
eu acabei me inserindo, por livre espontânea pressão, foi a de relaxamento, que é aonde os
pacientes vinham, ficavam deitados e a terapeuta ocupacional fazia um relaxamento com eles.
Fazia uma mentalização, de estar em outro lugar, de cores, de sensações, e que pra mim era
uma coisa muito nova. E foi bem difícil aprender a respeitar isso, porque no início era uma coisa
que eu não acreditava. Então nessa oficina eu faço muito mais um suporte, atendo os pacientes
quando eles estão mais agitados, teve paciente que surtou no meio da oficina. O meu papel é
muito mais de conter os pacientes, de conversar com eles, do que do relaxamento em si. (...) E
aos poucos eu vi que eu tinha que me permitir. Porque eu passei a ver que alguns pacientes
gostavam, talvez isso é que interessasse. Eu me permiti ficar, estou desde o início do ano na
oficina, mas foi o mais difícil e a aprendizagem maior até agora.
133
Aqui Edson narra o estranhamento diante do fazer do outro, do colega. Conta da sua
resistência em dar lugar a esse fazer tão diferente, principalmente porque não se trata apenas de
conviver com a diferença, mas de estar, em algum momento, inserido nela. É então na medida
que Edson passa a ver que muitos pacientes gostam e saem sentindo-se bem da oficina de
relaxamento que ele pode se reposicionar. Interessante que são os pacientes que lhe possibilitam
dar lugar àquele fazer estranho. É pela via dos pacientes, do efeito observado neles, que ele pode
se inserir na oficina com mais tranqüilidade. Não que fazer o relaxamento, mas pode estar
ali noutro papel.
Essa foi uma das minhas dificuldades, de eu chegar aqui e ver que não, que aqui se
acabava construindo junto coisas, que não era simplesmente a psicologia isolada. (...) Mas foi
bem difícil assim no início. Uma porque eu não sabia direito, eu nunca tinha trabalhado com
TO, eu não sabia o que TO fazia na saúde mental. E quando eu passei a ver, tinham algumas
questões, tipo essa oficina que eu comentei, que me incomodavam, por uma questão de
formação. (...) Trabalhar com a diferença, diferença dos pacientes e diferença da equipe...
Trabalhar sabendo que nem todos vão aceitar teu trabalho, nem todos... às vezes, vão
encaminhar pra ti porque o paciente não é tão grave. Como se... bom “tu estás chegando, tu é
R1, esse aqui tu conta”. Mas acho que com o tempo a gente vai conquistando espaço, vai
ganhando a confiança da equipe, mas no início foi bem difícil.
Edson se refere tanto à dificuldade de dar lugar ao outro, quanto à dificuldade de
conquistar um lugar de reconhecimento diante do olhar do outro. Parece que é isso que está em
questão no trabalho em equipe o tempo todo: os lugares dos diferentes saberes, a parcialização do
saber. Acho que o CAPS é um local onde o saber não tem dono, ele tem que ser compartilhado.
Bom, eu sou dono de uma prática que eu me aproprio, mas não do saber, o saber tem que ser em
comum. A prática tem dono, o saber não.
No que se refere ao lugar do saber, Edson nos descreve uma certa disposição arquitetônica
que precisa de reformas. Fala-nos de um certo muro que divide a equipe e distribui o saber no
espaço entre os que tratam e os que complementam. Em certo momento, os médicos estão de um
lado do muro e os demais profissionais do outro. É mais difícil tu chegar pra um profissional
médico e conversar, que realmente com essa conversa algo mude. Então eu acho que o grande
desafio nesse momento é acabar com esse muro. Um que trata e os outros que complementam.
Porém, em alguns momentos a psicologia ganha lugar ao lado dos médicos do outro lado do
muro.
134
Os psis, a psicologia e a psiquiatria, eu acho que ainda tem um papel médico-centrado,
de condutor do tratamento e, muitas vezes, as demais áreas são, eram subestimadas, eram
complementares. Eu acho que isso tem mudado, pelo menos nesse tempo que eu estou aqui, o
CAPS tem mudado essa visão. E acho que tem mudado pelo papel que cada profissão tem
ganhado, pelo destaque que tem ganhado. A psicologia tem um papel aqui ainda que é
possibilitar uma escuta do sujeito que não seja uma escuta do sintoma, que é a escuta médica. E
acho que nesses sentido a psicologia se liga... está do outro lado do muro, assim. Se liga aos
demais núcleos, ao assistente social, ao terapeuta ocupacional, à enfermagem, à arte terapia, ao
profissional de educação física. (...) A enfermagem é uma das que está em cima do muro. E é ao
mesmo tempo quem está mais perto dos pacientes, por uma questão física. Os pacientes ficam
geralmente na parte de baixo do CAPS, onde é uma área mais ampla, a garagem. E o posto da
enfermagem é do lado.
O muro a que Edson se refere divide, em alguns momentos, as práticas de abordagem do
sintoma das práticas de escuta da subjetividade e, em outros, os profissionais que curam daqueles
que complementam. A enfermagem aparece como em cima do muro, embora mais próxima
fisicamente dos pacientes. Um arquiteto psi trabalha no sentido da derrubada desse muro e da
instituição de uma outra qualidade de fronteira. Passagem que anuncia sua emergência quando
Edson nos diz que, na condução dos tratamentos no CAPS, as demais áreas são-eram
subestimadas. São-eram fala dessa possibilidade de passagem.
O muro, que faz menção aos lugares do saber – os que tratam e os que complementam, os
que escutam e os que não escutam também apareceu num debate sobre o trabalho em oficinas
no qual Edson se envolveu largamente. Sem dar-se conta, Edson fala de um muro entre os
profissionais da área da saúde e os de fora.
No início se tinha uma discussão muito grande aqui, porque se achava que todos os
oficineiros deveriam ser pessoas que dominavam uma técnica, uma arte. Então um artesão, um
pintor e, principalmente o pessoal da psicologia e o pessoal do serviço social não concordaram.
Os terapeutas ocupacionais oscilavam, por mais que não concordassem teoricamente, eles
acabavam fazendo isso na prática. Sempre tem que ter um convidado, pra fazer sabonete, pra
fazer uma oficina de marcenaria. Tinha que ter alguém que dominasse. Daí a gente começou a
tentar descobrir que, na realidade, mais importante do que a técnica era o que se produzia pra
aquele sujeito. Poderia ser um quadro horrível, poderia ser um sabonete sem cheiro, ou uma
caixinha que não seria a caixinha mais linda do mundo, mas que aquilo era o máximo ou o que o
paciente conseguiu fazer naquele momento. E que aquilo dali era uma maneira de o paciente
estar falando alguma coisa, que talvez o artista plástico ou o oficineiro artesão não iriam
conseguir captar.
135
Edson se preocupa em tirar do mapa a figura do dono do saber, do técnico, do que domina
o conhecimento. No trabalho em oficinas, o efeito da retirada do mestre da cena lhe foi uma
importante descoberta. Entretanto, será que retirar de cena o especialista em sabonetes ou em
marcenaria garante a exclusão do lugar de mestria? Afinal, resta o especialista em psicopatologia.
Edson quer também tirar do mapa aquele profissional que não escuta, que não consegue captar a
subjetividade em jogo numa produção em oficina. Entretanto, é justamente sobre a potencialidade
inventiva que o encontro entre os diferentes saberes carrega que versa a maior parte da narrativa
de Edson. Nesse sentido, a presença de um artesão ou artista num espaço de oficina terapêutica,
desde que não se colocasse a partir do lugar da mestria, do dono do saber, não poderia vir
também para compor o trabalho?
Por falar em potencialidade inventiva do encontro entre saberes, Edson constrói uma idéia
que me pareceu especialmente interessante no encontro com o núcleo do serviço social. Quando
se referia ao trabalho em equipe, deu um lugar de destaque a sua companheira de Oficina de
Maquete e de Oficina de Fotografia: a residente de serviço social. O que chamou mais atenção foi
o modo como ele o fazer da colega, construindo um conceito sobre o trabalho no serviço
social, que eu nunca havia escutado.
Bom, que, em saúde mental, ninguém trata ninguém sozinho. É idiotice a gente pensar
isso. Então, se ninguém trata ninguém sozinho, o CAPS também não vai tratar ninguém sozinho.
A gente vai precisar da rede e é a assistente social que vai tentar vincular os pacientes aos
outros níveis. Fazer com que o paciente que tem uma tendência a ficar dependente, dependente
do serviço, possa ficar dependente de outras questões. Porque de repente a dependência não é
diretamente o oposto da autonomia. Que a autonomia vai começar a depender de várias coisas
ao mesmo tempo e que o paciente não precisa ficar dependente apenas de uma...
Ter autonomia é depender de várias coisas ao mesmo tempo. Tal definição me era inédita.
O trabalho da assistente social, para o psicólogo arquiteto que ela conecta o CAPS com a
rede, com a cidade – vai nessa direção: pulverizar a dependência. Parece que o laço com a colega
tem funcionado como Oficina de Invenções. É no laço ao outro que se inventa.
Acho que as vivências, a prática, o dia a dia com o paciente isso ensina. Tipo, agora tem
uma paciente que passou a gestação inteira com a gente e agora vai ter nenê. O quanto isso é
importante pra ela e também pra equipe, que ela conseguiu se manter assim. Ela deu uma
aprontadinha, tentou suicídio, mas não fez. Estava com o pensamento e conseguiu chamar o
CAPS. Quando ela foi escolher o hospital, ela escolheu o Conceição aqui, em vez do Fêmina.
136
Ela escolheu aqui porque era mais perto da equipe e a equipe ia conseguir acompanhar ela.
Então é um vínculo importante que tu tem com o paciente. Acho que isso é o motor de qualquer
aprendizagem. Tu pegas um caso, tu não sabes nem por onde começar naquele caso. O sujeito
com a vida... com trinta internações psiquiátricas, uma família desestruturada, uma casa muito
pobre e daí tu ficas sem saber o que fazer, mas o convívio com o paciente faz com que tu
atrás, procurar livro, pedir supervisão, procurar bibliografia. Que tu possas construir
daí em cima disso.
A “aprontadinha” encontra destinatário, O CAPS é o endereço. Tu acompanha a angústia
dela, ela escolhe estar perto da equipe: fez-se o laço. Um laço motor de aprendizagens.
Em nossa segunda entrevista, encontro Edson em atividades no CAPS ad
38
, e nosso
início de conversa se justamente em torno dessa mudança, sentida como ruptura. Pra mim me
desligar da equipe foi muito... foi complicado, teve uma questão de gasto emocional. Ligação
com os pacientes, ligação com a própria questão da equipe... Havia-se construído um laço de
trabalho com os usuários, com a equipe, e interrompê-lo naquele momento para seguir a
formação noutro espaço foi bastante difícil para Edson. Principalmente, porque ele tinha
encontrado alianças de trabalho, além de um jogo de cintura próprio para lidar com a equipe e
fazer valer suas propostas.
No trabalho de entrevistas com o psicólogo arquiteto, essa espécie de ruptura também
pôde ser sentida. Era como se ele estivesse contando, não apenas dois momentos diferentes de
sua formação, mas duas histórias diferentes. Histórias que talvez precisassem figurar em itens
separados, tamanho o abismo que se colocava entre elas. Não fosse o modo muito próprio que ele
imprimia na forma de lidar com as duas histórias que ele contava, seria quase impossível
apresentá-las de uma vez. Essa extrema descontinuidade entre a experiência do primeiro ano
da residência, no CAPS adulto, e do segundo, no CAPS ad, se apresentava de muitas formas na
narrativa de Edson.
....eu sou o único R1, R2 daqui. (risos) Às vezes eu me sinto R1 ainda. (...) Eu acho que
por essas questões assim de que eu acho que toda uma construção que foi feita no primeiro ano,
que eu acho que isso é um problema específico da saúde mental da maneira que estruturado,
toda a construção que foi feita no primeiro ano não é valorizada no segundo. Então parece que
eu cheguei junto com os R1. Eu também não tenho... Toda a experiência que eu tive na
residência... Quando eu vim pra cá, toda a construção que eu fiz não parece ter nenhum olhar
38
A ênfase em saúde mental da Residência Integrada em Saúde oferece aos residentes um ano de estágio num dos
CAPS do GHC e outro ano no outro CAPS. E. fez seu primeiro ano de estágio no CAPS II, local onde nos inserimos
para realizar esta pesquisa, e seu segundo ano de estágio no CAPS Álcool Drogas.
137
diferente, nem... Eu acho que ganha um olhar diferente por parte dos residentes. R1 e R2, a
gente consegue trabalhar bem junto, de poder trocar, de poder construir.
Num clima de obra embargada pela burocracia, o arquiteto contava que saídas foi
encontrando para os impasses que foram lhe aparecendo. Em muitos momentos, disse Edson,
pensei em sair da residência. Entretanto deu-se conta de que em muitos espaços de trabalho
encontraria dificuldades daquela natureza e resolveu seguir construindo sua formação,
enfrentando os problemas. Durante a entrevista foi narrando as diferenças entre sua experiência
numa e noutra instituição. Se, na primeira entrevista, ele pôde transmitir algo da disposição de
lugares na equipe e dos obstáculos enfrentados pela existência, muitas vezes, de um muro entre
dois grupos profissionais. Um muro que estava para, aos pouco, ser colocado abaixo, porém que
ainda produzia seus efeitos no trabalho. Nesta segunda conversa, Edson trouxe-nos a experiência
de uma equipe mais homogênea, mas mais fechada em si mesma, em que também havia um
muro. Contudo, tratava-se de um muro que dividia equipe técnica e residentes. Eles dizem: vocês
vão passar, a gente fica. Um dia vocês vão entender porque as coisas são como são aqui
enunciado que apontava para um lugar, de certa forma, infantilizado, que era conferido aos
residentes. Desse modo, a diferença mais marcante entre os dois espaços de formação em serviço
experimentados, que Edson pôde enunciar, dizia respeito à questão da criação no trabalho.
O outro CAPS a gente podia muito bem fazer o trabalho que a gente... A gente tinha uma
idéia, a gente apresentava essa idéia e boa parte da equipe abraçava essa idéia com a gente e
deixava a gente criar seja oficinas, o que a gente achasse que os pacientes tavam precisando.
Aqui essa renovação não acontecia. A gente chegou e tinha as coisas prontas. Eu me sinto
muito solitário, as construções são muito individuais. Às vezes eu prendo o grito pra minha
orientadora pra continuar pensando essa construção. (...) Aqui não precisa pensar muito, tu faz
o que os outros te mandam. Então o que eu tenho conseguido nesses meses é dar um pouquinho
da minha cara pra essas coisas que me mandam fazer.
Em uma das suas tentativas de propor algo novo na instituição, encontrou
impossibilidades. Queria trabalhar com um grupo de qualidade de vida para portadores de HIV,
população bastante freqüente dentro do CAPS ad. A equipe, considerando que se tratava de um
demanda para a atenção básica recusou a proposta. Acham que isso não é trabalho nosso, que
isso tem que ser feito em outro local, que talvez na atenção básica. Se as fundações do projeto de
trabalho do arquiteto residiam no questionamento dos limites entre espaços de atenção em saúde
mental e espaços de atenção básica, o que lhe conduzia à invenção de pontes, de fluxos, de meios
138
de comunicação entre estes lugares; no segundo ano da residência, eram, justamente, essas
fundações que passavam a ser abaladas. Se a pergunta de Edson apontava, exatamente, para as
possibilidades de rarefação das rígidas fronteiras que separam dentro e fora, loucura e cidade,
saúde mental e atenção básica; era essa interrogação que não encontrava lugar naquele espaço.
Então a minha designação aqui é fazer o que eles acham que eu tenho que fazer, os
grupos que eles acham. Então tem o grupo de motivação, tem o grupo porta aberta, tem o
“Prevenção à recaída”, “Preparação para o fim de semana”, o “Retorno do fim de semana”,
né. E aos poucos eu fui me inserindo nesses grupos que eu tinha que me inserir, era imposto
assim né. E isso me era muito difícil, tanto que a “prevenção do fim de semana” e o “retorno do
fim de semana” funcionava pra mim também, porque eu tinha que voltar aqui e lidar com aquilo
tudo de lá de novo.
Aqui, é interessante o efeito que a experiência provoca em Edson. Ele, numa mistura com
o outro, experimenta um pouco do lugar de usuário do CAPS. Talvez como forma de escapar de
uma posição que seria ainda mais angustiante: misturar-se com a equipe. Edson não encontra
nenhum ponto de contato entre sua forma de trabalho e linha de atenção oferecida aos usuários
pela equipe do CAPS Álcool Drogas. Uma das marcas da abordagem no CAPS ad é a exigência
da abstinência, que para Edson aparece como bastante problemática. Assim, esse estranhamento
absoluto, essa quase impossibilidade de conversa tem dificultado, sobremaneira, a estada do
arquiteto no CAPS ad. Contudo, parece que ele tem encontrado algumas frestas, alguns lugares
possíveis de construção.
Os pacientes são pacientes de longo prazo, são pacientes de mais de ano. Então
conhecem a lógica. sabem o que tem que dizer. Parece uma coisa paternalista assim, de
contar pros pais o que foi feito “me comportei ou não me comportei”. “Fiz tudo certinho ou não
fiz tudo certinho”, sabe? “Vou ganhar choque ou vou ganhar balinha.” E os pacientes também
não tem muito espaço. Existe uma assembléia, mas... até isso pra mim foi um pouco diferente
porque a lógica dos grupos aqui, das oficinas é muito mais o técnico que conduz e o paciente
tem um espaço determinado e no outro CAPS não. No outro CAPS, a gente construía as coisas
com os pacientes. Tipo, aqui o que a gente conseguiu fazer foi construir um grupo de
sentimentos, onde os pacientes pudessem falar de outras coisas que não eram a droga. Que era
uma experiência que tinha no outro CAPS e que sai um pouco dessa questão. Que que
quem usa crak, quem usa cocaína, existe ali um profissional que é frustrado ou alguém com uma
dificuldade amorosa, alguém com problema no casamento, um sujeito atrás daqueles discursos.
Tanto que no início eles se apresentavam “meu nome é fulano, sou maconheiro”. Como se
fizesse parte da identidade deles e era o jeito que os profissionais viam eles aqui no CAPS.
Montar um espaço em que se possa falar de outras coisas que não eram a droga surge de
uma das frestas que Edson encontra. Fresta para o aparecimento do sujeito que existe ali no uso
139
da cocaína, do crak, do sujeito atrás daqueles discursos. À medida que se abria um espaço de
fala para o pacientes, abriam-se também possibilidades de estada no CAPS ad para o arquiteto. À
medida que Edson encontrava formas de bancar que os sujeitos atendidos não eram a droga,
construía possíveis lugares de trabalho para si. Do contrário, a temporada no CAPS ad seria
insustentável.
O paciente pra entrar aqui no CAPS ad, ele é considerado paciente, se ele consegue
assistir quatro aulas sem faltar. E é uma aula onde o pessoal vai explicar teorias sobre drogas e
sobre o funcionamento do serviço também, mas é uma coisa que é desde aí pro paciente imposto.
“Se tu faltar uma delas, vai entrar no mês que vem no início da primeira aula”. E o paciente
é visto clinicamente e é feita uma escuta do sujeito, depois que ele conseguir as quatro
aulas. E são aulas porque o paciente não fala, vai e assiste. Então desde demonstra qual
que é o papel que tendo ali. É o papel do “eu sei o que é melhor pra ti”. (...) Antes dessas
quatro aulas, a gente faz uma entrevista inicial. O objetivo dessa entrevista inicial seria tu pegar
os dados dos pacientes, então a gente ganha uma fichinha que tu preenche nome, endereço,
nanana. Tu preenche e manda o paciente vir no grupo de motivação que são essas aulas, que pra
mim eu acho que mais desmotiva do que motiva. E daí o paciente vem, se ele conseguir passar
pelas quatro, ele tá dentro do CAPS. Caso contrário, a gente nem sabe mais o que o paciente fez,
porque a gente não liga pra unidade, nem nada. Os residentes agora tão conseguindo fazer isso
de ligar pra unidade, porque quem faz essas entrevistas iniciais são os residentes. Então o que
que a gente tem estabelecido? É que bom essa escuta é nossa então, esse espaço é nosso, vamos
aproveitar esse espaço que a gente tem. Então a gente tenta escutar um pouco o paciente, um
pouco dessas ansiedades no primeiro contato. Então o encontro que era antes de quinze
minutos, vinte minutos, marcado, a gente colocando quarenta minutos. E todos os
profissionais fazem, que é escutar, saber do paciente como que ele acha que a gente pode ajudar
ele e o que que ele espera desse serviço. E a gente tem conseguido fazer isso e preparar um
pouco o paciente pra que ele não... que ele vai ter que passar pelos quatro encontros,
preparar ele, motivar ele, mostrar pra ele o que há depois dos quatro encontros.
O arquiteto vem construindo espaços um tanto marginais e subversivos de trabalho, como
se estivesse cruzando uma linha, distendendo um limite, alargando uma fronteira. A imagem que
me ocorre é a da criação de um campo de refugiados em território estrangeiro. De todo modo,
talvez essa ousadia esteja sendo possível na medida em que Edson pôde criar novas alianças:
parcerias importantes de trabalho com seus colegas residentes. Porém e talvez, principalmente,
porque nem todos os laços com sua experiência inicial de residente se romperam. Aquela
experiência lhe imprimiu marcas e, com estas, ele segue enlaçado. Assim como seguem antigos
laços de equipe: às vezes eu prendo o grito pra minha orientadora (técnica do CAPS adulto que é
sua orientadora da pesquisa de conclusão da residência) pra continuar pensando essa construção.
Construção em que segue se ocupando da Reformas, como no trabalho final.
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É sobre atenção ao suicídio nessa região, que tem um número bem grande. A gente achou
melhor deixar num CAPS só. Me pareceu que aqui a equipe ia ter uma resistência maior com o
trabalho então até por uma questão de conseguir contemplar melhor os objetivos, eu consegui
focalizar num público, não deixar tão geral, de pegar a psicose. E o outro CAPS me uma
abertura maior pra esse trabalho. Então eu pegaria a psicose, a coisa da ideação suicida e veria
como que o CAPS é um dispositivo ou não de atenção a esse cuidado.
3.3.3 A Alquimista
Alice se encantou pelo trabalho em saúde mental ainda quando cursava terapia
ocupacional. No decorrer da faculdade, eu fui me voltando mais pra saúde mental e quando
apareceu o estágio eu “opa, vamos ver se é isso mesmo!” Fui fazer o estágio e me encantei,
gostei bastante. Era isso. No último semestre do curso, estagiou na internação feminina do
Hospital Presidente Vargas, onde atendia pacientes no leito. Depois dessa experiência, “tá, é
saúde mental que eu quero trabalhar”.
Foi bem legal assim, a gente sempre trocava com a equipe. Tinha rounds toda a quarta-
feira, daí a gente conversava, a gente podia... Era bem legal, porque a terapia ocupacional
era bem, assim, bem aceita e tinha vez assim. Nós conversávamos bastante e discutíamos. Foi
uma experiência bem boa. Eu gostava de trabalhar com mulheres. Eu gosto de trabalhar com
adultos.
A composição de vários elementos parece ter feito do resultado dessa experiência um
composto potente. A primeira referência é às relações com equipe: a gente sempre trocava, a
gente conversava, a gente podia... Ganha destaque a percepção de que a terapia ocupacional
tinha vez naquele espaço. Ter um lugar reconhecido diante da equipe parece ter sido um
componente essencial do encantamento. ainda uma referência ao gosto pelo trabalho com
mulheres e adultos. E, quando veio a residência, “ah, é isso que eu quero, residência em saúde
mental. Vamos continuar aprendendo, vamos continuar buscando e estudando e me
aperfeiçoando.”
Enquanto conta sobre sua escolha, Alice reproduz os diálogos que teve consigo mesma
na época. Diálogos, por exemplo, onde encoraja a si mesma. Movimento semelhante ao da
entrevista, quando comenta as próprias respostas: acho que é isso, é mais isso, era isso. Como se
141
ela mesma fosse mais de uma, falasse desde uma posição mista, híbrida, não idêntica a si mesma.
Essa multiplicação de lugares desde onde falar é marcante na escuta de seu percurso de formação.
Segue narrando sua trajetória a partir das histórias de constituição das oficinas
terapêuticas que participa no CAPS.
Tudo começou que era uma oficina temática. Temática significa assim dependendo... ah
tem dia das crianças, páscoa, natal, então nós vamos fazer coisas pra levar pra feirinha do
hospital. eu acho que passou a páscoa, não, no início do ano assim, tinha passado algum
evento que nós tínhamos feito e “daí agora, que nós vamos fazer?” Daí conversando com eles
surgiu a idéia “ah, mas eu tinha vontade de aprender a fazer sabonete, aprender a fazer velas”.
“Então tá, então vamos começar a trazer tudo o que tem de material, o que que vocês sabem,
como é que surgiu o sabonete, como é que foram feitos os primeiro sabonetes antigamente
né”. Daí todo mundo foi trazendo. A gente trouxe xerox, baixou coisas da internet e começamos
a estudar sobre. Daí todo mundo foi gostando. Foi meio assim, foi tudo uma construção. Daí,
daqui pouco começamos a fazer mesmo. A residente de enfermagem trouxe um vídeo sobre
como fazer os sabonetes. Eu sabia fazer também. a gente viu junto, até que fomos comprar
o material e começamos a fazer.
Na falta de uma data comemorativa, a pergunta. Foi preciso pensar no que fazer, foi
possível conversar, surgiu a idéia. A beleza do processo de composição da oficina ofuscou a
esquisitice dos primeiros sabonetes. Aos poucos, substâncias simples transmutavam-se em
elementos nobres – marca do trabalho de uma TO alquimista.
É uma oficina bem de produção. Claro que sempre pra trabalhar algumas coisas
deles. Sempre surge, em qualquer né, mas é mais voltada pra isso, pra geração de renda. Até
ontem na oficina, metade do grupo saiu pra comprar material, que eles que escolhem as formas,
as essências, as cores que eles querem, tudo. E a outra metade ficou aqui fazendo o livro caixa,
foi vendo o que que foi vendido, o que não foi. Alguns pacientes trouxeram de volta alguns
sabonetes que não conseguiram vender. Outros venderam, então tudo a gente anota no livrinho.
Tudo é o paciente, é o Paulo que... Cada paciente é encarregado por uma parte. Um é
encarregado pelo livro caixa, outro toma cuidado das fôrmas, outro... Tem uns que ... porque daí
depois o sabonete está pronto e é complicado de enrolar, passar aquele papel... daí tem alguns
que... cada um que consegue melhor, aquela partezinha ali.
Chama a atenção que nessa oficina o que está em destaque é a geração de renda, a
produção de sabonetes e não o tratamento de uma patologia. Cada participante tem um lugar
dentro do processo de produção, a partir do que consegue fazer de melhor. Cada um oferta
alguma qualidade de elemento à mistura da oficina, o que faz diferença no efeito da composição.
Nesse espaço, o que apresenta os participantes é o fazer de cada um e não seus diagnósticos. São
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as essências, as formas, as cores dos sabonetes. São os registros no livro, o estado das fôrmas, o
estilo das embalagens.
Acho que isso eu acho legal assim, isso me faz pensar enquanto saúde mental assim, o
quanto a gente é único assim, o quanto não pra generalizar, ou ver um diagnóstico assim, ou
ver... porque a gente não sabe... A gente se volta muito ou ao diagnóstico ou a alguma coisa “ah,
eles vão até ali”, né? E não. Cada caso é um caso. E daqui pouco não é até ali e eles
nos surpreendem. Eles nos surpreendem o tempo todo. (...) É eles que fazem, eles que... A gente
fica ali... Sou eu, que sou a residente de TO, a terapeuta ocupacional daqui e mais uma
residente de enfermagem. Então a gente fica mais pra dar o suporte assim, algum manejo,
alguma coisa.
Em meio às surpresas, a oficina foi prosperando. E parece que o componente
surpreender-se com a produção do outro é condição dessa prosperidade. Se são eles que fazem, o
trabalho do oficineiro é estar ali, dar um suporte e surpreender-se. Alice nos conta que faz parte
desse fazer ser uma presença. Uma presença que passagem a uma produção. De sabonetes, de
renda, mas sobretudo, produção de sujeitos, para além de qualquer que seja a patologia
diagnosticada. A referência ao trabalho como um certo fazer presença, um estar com é freqüente
na narrativa de Alice, tanto em relação aos usuários, quanto aos colegas de residência.
Eu acho legal assim essa coisa de poder estar com... Tem oficinas que eu faço junto com
a psicologia ou junto com a enfermagem ou... é legal assim. Essa coisa de eu daqui pouco eu
estou durante a oficina mais voltada de como é que eles estão fazendo, como é que eles estão
interagindo com o material, como é que eles estão se mostrando pra mim. Daí a psicologia está
vendo outro ponto de vista. Depois a gente faz um fechamento com o grupo. Eu puxando mais as
coisas da minha área, a psicologia mais da sua, um exemplo né, pode ser também a enfermagem.
E depois no final a gente poder conversar sobre isso. Eu acho isso bem legal assim.
Estar acompanhada de um outro no cotidiano do trabalho é estar na presença de mais de
um ponto de vista. Poder conversar é poder misturar um pouco estes olhares. Porém, ao mesmo
tempo em que Alice pensa o estar com como um componente essencial do trabalho, ela se
questiona a respeito das condições dessa companhia. Em relação à oficina de sabonetes, acredita
que não basta estar com, falta uma pitada de conhecimento específico da enfermagem.
Pena que... Tem alguns grupos, algumas oficinas que eu faço com determinada área que
daqui há pouco a área específica não aparece. Por exemplo, daqui há pouco eu faço uma oficina
com a enfermagem. Ela faz junto a oficina, mas daqui há pouco eu não vejo como é que ela pode
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estar engajando, fazendo ganchos com a área dela. Eu não consigo perceber assim onde que ela
pode estar. Daqui pouco podia estar trazendo... que seja um auto cuidado, daí eu não sei
assim... uma coisa mais de higienização, de não se machucar. Isso eu acho que a gente tem que
estar discutindo e pensando mais sobre isso. Porque realmente a gente faz trabalhos juntos, mas
um pouco se perde assim. Porque que em tal oficina está uma TO e uma enfermeira? Às vezes
não tem um porquê. Simplesmente “vamos fazer junto”, sabe? E eu acho que esse antes de fazer
junto é que a gente devia conversar um pouco mais, sabe? Qual o teu objetivo de estar ali? Qual
vai ser o teu papel dentro dessa oficina?
Em relação a esse estar com o outro, Alice faz-se muitas perguntas. Onde está o outro?
Onde está a enfermeira? Numa atividade de higienização? Em dicas de auto-cuidado? Por que
está ali, numa oficina de sabonetes? Enquanto se interroga, também me interroga. Talvez
justamente porque tenha feito retornar na minha direção uma das questões da pesquisa: por que o
outro – pensado como outra profissão – precisa estar ali?
Não era a enfermeira da higienização, nem a da promoção de auto-cuidado que estava na
oficina. Porém, quem sabe sua presença se estivesse produzindo de outra forma? Talvez no vídeo
trazido, no desejo de fazer acontecer a oficina de sabonetes, na disposição a acompanhar os
oficinandos nessa produção. Realmente, não algo específico do fazer do enfermeiro, mas,
possivelmente, haja algo singular dessa enfermeira oficineira. E, nesse ingrediente singular, a
possibilidade de uma nova combinação.
As questões de Alice não terminam, se transformam, se relançam. O que ela coloca em
relação a “por que o outro deve estar ali na oficina?” parece dizer respeito a um questionamento
aos modos de organização das atividades práticas da residência.
É uma coisa meio que assim da residência, por ser multiprofissional, teria que estar
trabalhando junto e tem que... no CAPS ad foi meio que uma imposição da equipe assim.
Todos têm que fazer oficinas, não a terapia ocupacional e fazer com áreas diferentes. Eu não
podia fazer eu e mais outra TO. Tinha que fazer eu e uma enfermeira ou uma psicóloga ou uma
assistente social, por exemplo. no CAPS ad era assim, tinha que ser assim. E aqui meio que
também ficou. Eu acho que eles vêem de estar sendo multiprofissional, de estar sendo uma
residência integrada é estar fazendo oficinas junto, um trabalho junto...
A alquimista questiona o que é integrar, misturar, compor.
Quando a gente se junta em equipe eu acho genial que quando a gente avalia um
paciente daí a gente faz a entrevista, daí pede pra ele voltar pra salinha, pra nós discutir pra
depois dar um retorno pra ele. Eu acho isso bem interessante. Eu acho que é o momento que é
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mais... assim que a gente tenta interagir mesmo, a equipe assim. cada um volta mais a sua
área, a gente conversa. Acho que é um dos momentos mais ricos assim. Fora isso, acho
complicado, no dia a dia assim... daqui pouco a psiquiatria está no consultório atendendo,
nós estamos aqui fazendo a oficina. cada um está... se perde um pouco, a gente não
conversa muito no dia a dia.
Integrar é conversar, discutir sobre o trabalho. Desde esse ponto de vista, é a conversa
que confere potência ao fazer junto. Um fazer junto sem conversa não passa do ter que. Fica-se
no registro moral todos devem e não no registro do eu e tu queremos, desejamos. Como nos
dizia a jovem TO, ainda no início da entrevista: discutir em equipe é ter vez. Então nos
perguntamos: o que permitiria a passagem, a transformação do ter que para o ter vez?
Esse ter vez, na narrativa de Alice, aparece relacionado a poder sustentar algo de um saber
ou fazer específico da profissão diante da equipe. O que é possível observar na sua experiência
inicial a TO tem vez no round ou ainda na lembrança das discussões em equipe no CAPS
depois da entrevista com o paciente, cada um colocava sua visão. Entretanto, a questão se
complexifica quando se está imerso num fazer mais híbrido, numa composição em que não é
mais possível separar os elementos originais, como pode ser o caso do trabalho nas oficinas
terapêuticas. Será que um trabalho mais híbrido, menos classificável em uma área ou outra,
também pode dar vez a um profissional? Quem sabe uma enfermeira em uma oficina de
sabonetes perca sua “essência original” e, tal como o produto da oficina, ganhe outras formas,
cores, modos de ser enfermeira? Nessa passagem do ter que para o ter vez talvez se trate,
sobretudo, da possibilidade de sustentar ou não a apropriação de um saber ou fazer diante do
outro, seja ele específico de uma profissão ou não.
Porém, a pergunta segue produzindo efeitos: por que o outro está ali?
Essa coisa assim do inesperado assim, de... daqui pouco a gente está ali numa oficina
conversando sobre alguma coisa e tem um paciente que tu julga que... ou ele vai ficar mais
quietinho durante o tempo todo e daqui pouco ele diz alguma coisa assim pra outro. Ele faz
uma intervenção assim que tu olhas e diz “bah, ele disse isso?” Sabe? E daí isso me faz pensar
assim, porque às vezes a gente não imagina... como é que eu vou explicar? Quando a gente está
ali numa conversa ou tentando manejar daqui pouco, do nada, dois pacientes começam a ou
discutir, ou alguma coisa e um outro paciente intervém falando... e tu “bah, genial o que ele
falou!” Isso eu acho muito interessante. Isso é o que me faz pensar bastante assim... na nossa
conduta...
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Até agora, conversamos com a TO alquimista sobre a questão da presença
multiprofissional na oficina partindo de uma antiga lógica. Aquela que pensa a relação do sujeito
com o trabalho como uma via de mão única: o trabalhador produz o trabalho, o profissional de
saúde mental faz o ato terapêutico, o saber-fazer do enfermeiro intervém na oficina. Até que
...dois pacientes começam a discutir e um outro paciente intervém falando... e tu “bah, genial o
que ele falou!” Fecha todas, cai certinho. Alice nos conta que, por vezes, nas oficinas, é o
paciente que intervém no profissional.
Ao narrar as surpresas que se criam dentro da oficina, a residente aponta para o potencial
de produção às avessas que nesse espaço. O feitiço vira contra o feiticeiro, o composto
transforma o alquimista, o trabalho produz o trabalhador, o ato terapêutico faz o profissional de
saúde. Que os profissionais possam experimentar algo disso, assumindo as conseqüências do
encontro com o inesperado, com o elemento surpresa, parece um bom motivo para que o outro
esteja ali, mesmo em um papel não relacionado à especificidade da sua profissão. Do contrário,
cada um na sua e nada de novo. Afinal, é a própria Alice que nos diz que no experimentar outros
lugares, outros espaços, outras posições de trabalho se muda a perspectiva e o foco do olhar.
A enfermagem acaba ficando muito centrada aqui em baixo, muito voltada pra
medicação e a psiquiatria fica muito em cima, mais nos atendimentos individuais assim, a
psicologia também nos consultórios. a TO está sempre nesse meio de campo. (...) A TO, ela
não consegue sozinha, a gente tem que estar sempre conversando com os outros profissionais.
Falar daqui há pouco com o psicólogo “ah, como é que está na consulta?” Porque na oficina
eu tenho visto que a gente começa a entrar em determinado assunto ou o paciente fica muito
deprimido, daí daqui pouco começa a chorar, daí tem que ir conversar com o psicólogo,
ver “ah, como é que está nos teus atendimentos? Será que é indicado estar agora na oficina?
Não está sendo muito sofrido estar na oficina?” Porque é isso que eu estava falando antes,
daqui pouco um começa a chorar alguma coisa, o próprio outro paciente vai ali e “ah,
porque eu passei por isso também, no início é assim, não sei o que, tu vai ver”. Eles mesmo,
daqui há pouco a gente dá uma recuada e deixa eles mesmo...
Um olhar de meio de campo atenta para os movimentos dos sujeitos dentro das oficinas,
expõe seu ponto de vista aos colegas de equipe, questiona suas visões, mas sobretudo, percebe a
hora de recuar e deixar que o outro guie o jogo. Trata-se de um olhar que, ao mesmo tempo, cria
(as condições para que de uma combinação de elementos emirja um elemento novo) e se
surpreende (com o que se produziu).
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Quando eles estão ali sem ser numa oficina, quando é um momento de descontração ou
de intervalo, não sei como é que a gente... é, entre as oficinas, que eles ficam mais ali na
ambiência assim eles são mais eles. E daí daqui pouco eles não precisam ficar querendo
chamar a atenção, porque às vezes eles fazem algumas coisas, alguns movimentos com a gente.
Então, esse espaço é legal assim. (...) Seja no café, no almoço, ou agora mesmo ir ficar um
pouco ali com eles, é bem rico assim. É onde eles estão sem nenhuma armadura assim. Como é
que eu posso te dizer? Como eles estão eles mesmos, estão ali conversando, estão ali tomando
um chimarrão. Daí daqui a pouco eu entro, começo a puxar um assunto, é ali que pra ver
bem assim. Mais a essência deles e eles conversando entre eles também. Acho que isso é bem
legal, essa hora assim. Não precisa ser na oficina, pode ser também nesse espaço assim sem
nada pra fazer, vamos dizer assim, que eles ficam ali soltos.
Para a TO alquimista, os espaços de intervalo, onde aparecem as essências, onde se está
sem armaduras, sem querer chamar a atenção, soltos, são interessantes lugares de descoberta.
Salta aos olhos algumas imagens do outro, enquanto paciente, que aparecem em sua narrativa. A
idéia de que no intervalo aparece a essência do outro sugere que durante atividades algo recobre
o verdadeiro ser. As armaduras remetem a um outro que precisa defender-se de um ataque. O
chamar a atenção fala de um, talvez infantil, pedido de olhar. E, finalmente, a referência ao
soltos faz pensar numa condição anterior de aprisionamento. Alice nos ensina que um território
de aprendizagem depende da perspectiva ou do foco a partir do qual abordamos o outro. A
novidade não se produz na presença de um outro aprisionado, infantilizado ou em posição de
defesa. Um espaço de aprender exigiria a aparição do outro em essência. E o que seria o outro em
essência? Como é que eu posso te dizer? Como eles estão eles mesmos, estão ali conversando,
estão ali tomando um chimarrão.
Interessante a referência ao chimarrão. Diz de um laço cultural, do compartilhamento de
uma tradição. Na roda de chimarrão, todos são gaúchos, cada um tem a sua vez e a autoridade
maior é o mate que circula de mão em mão. Esse laço que se faz na roda de chimarrão, nos
intervalos das atividades terapêuticas, parece tirar o sujeito em tratamento do lugar de um outro
previsível. Nos espaços terapêuticos, é previsível que o outro “atue” (algumas coisas de
manipulação), que seja infantil, “regressivo” (querendo chamar a atenção), que ofereça
resistência ao tratamento (a armadura). Todas estas são velhas conhecidas imagens do paciente
de saúde mental, ou mesmo, da loucura como doença mental. Porém quando a alquimista nos fala
do outro em essência parece referir-se à dimensão imprevisível, desconhecida, surpresa do outro,
essa coisa assim do inesperado.
E sobre o que será teu trabalho final?
147
É sobre uma coisa que me angustia muito: reabilitação psicossocial. O que que a gente
acaba fazendo ou o que a gente poderia fazer mais pra realmente estar reinserindo eles na
comunidade? Essa coisa da reforma, de tudo assim, o que que são os CAPS? Daqui há pouco,
pelas tantas, eu sinto que a gente assim... estou exagerando, mas... daqui há pouco eu sinto que é
um mini-manicômio aqui, que eles vêm, passam o dia inteiro, fazendo coisinhas, vão pra
casa... tá e aí? E a vida deles lá na casa deles? Sabe? Então eu acho que isso é muito importante
porque se não fica... fica... me fugiu a palavra... mas eles ficam retornando, ficam um período
aqui, depois melhoram um pouco, vão pra casa, passa um tempo e voltam pra cá. Porque a gente
não faz o vínculo deles mesmo no bairro? E aí? Então uma das coisas que eu penso é que eu
acho que dá pra fazer muita coisa. Coisas que eu ainda nem penso, sabe.
Ao final da entrevista, a TO, como que sentindo os efeitos da experiência, comenta o que
escutou de si mesma. Acho que eu passei a entrevista inteira falando isso de ter que conversar
mais. Realmente, a referência à conversa marcou o transcorrer da entrevista. Conversar apareceu
como um certo antídoto contra a fixidez dos lugares na equipe, assim como se surpreender com
as produções dos pacientes surgiu como o elemento essencial na composição dos tratamentos.
Estes, ao se experimentarem na produção de algo nobre, valoroso diante do olhar do outro iam
compondo novas condições de circulação pela vida. Trabalho, nada fácil, nada simples, nada
seguro. Assim, como nada fácil, nada simples, nada seguro mostrou-se a escrita da pesquisa de
conclusão da residência da TO alquimista. Coincidência ou não, nela se tratava, justamente, de
refletir acerca dessas novas condições de circulação pela vida para o sujeitos atendidos como uma
das finalidades do trabalho terapêutico. Questão que para Alice se inscrevia no campo da
reabilitação psicossocial. De todo modo, sua angústia com a escrita dizia da efervescência de um
fluido de perguntas, dos efeitos de uma composição em plena transmutação.
Em nosso segundo encontro, Alice me recebeu falando, justamente, de seu trabalho final.
Contou que estava em Porto Alegre para terminá-lo, pois não havia conseguido durante a
residência. Apresentei o trabalho em dezembro, apesar de não ter entregue ele ainda.
Atualmente, mora e trabalha em outra cidade. E pareceu bastante entusiasmada com o fato de
estar finalizando a escrita de sua pesquisa. Falou-me do quanto estava gostando das orientações.
E, naquele dia, tinha estado, desde de manhã, no local de trabalho da orientadora de forma que
recém havia chegado em casa (já eram 15:30 da tarde).
No início da entrevista, abordamos as mudanças que lhe aconteceram desde nossa última
conversa há mais seis meses atrás.
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O que que mudou de pra cá? Principalmente eu ter deixado de ser residente e ter
assumido o papel assim como técnica, com mais responsabilidade. Não ter que sempre tendo
que ter o aval de alguém. Eu podendo tomar partido nas coisas, tomar a iniciativa, fazer mais
como eu quero e dar a minha cara a tapa. Brigar pelas coisas que eu acho que são certas, nas
coisas que eu acredito assim nos tratamentos. Que quando eu era residente assim, muitas vezes a
gente é meio barrada.
Surge algo novo em relação à primeira entrevista: o residente como ocupando um lugar
barrado. Em nosso primeiro contato, Alice trouxe uma série de produções suas em parceria com
os outros, e em nenhum momento, mencionou dificuldades para realizá-las. Talvez isso fosse
algo que pudesse ser dito passado certo tempo e numa certa distância do local da experiência.
Começou então uma narrativa sobre as diferenças entre um espaço e outro de trabalho: entre a
residência e seu atual trabalho, o que lhe evocou lembranças do CAPS e dos rituais de despedida
com o final da residência. Aquela função de despedida assim dos pacientes, fica um pedaço da
gente. A gente tem aquela vontade de ver a continuidade, ver a continuação, como é que eles...
Fala, principalmente, da Oficina de Sabonetes, experiência abordada em seu trabalho de
conclusão, a partir da discussão sobre reabilitação psicossocial.
A oficina de sabonetes, que é onde eu to... eu focalizei meu trabalho de conclusão, é uma
coisa assim que eu fico bem curiosa pra saber como é que tá, se eles continuam. Porque era uma
coisa assim que era uma... bah eu idealizava um monte assim, eu acreditava muito assim na
oficina como geração de renda, vinculado à reinserção social, como um agente facilitador pra
eles. (...) Na despedida eles me fizeram uma festinha surpresa, me deram presente. Fizeram
cartão. Eu quase chorei, acho que chorei. (...) A oficina foi uma idéia que surgiu de mim, mas
daqui pouco era uma coisa deles. Eles foram se apropriando, porque começaram a contar
histórias da família deles de... a que fazia sabão em casa e coisa e tal. foram se
apropriando, depois virou um desejo deles. (...) Todo mundo ficava sabendo da oficina e todo
mundo queria participar. E era um espaço pequeno ali. tinha um fogão, dava pra quinze
pacientes, então tava sempre meio que cheio assim.
Por que tu achas que despertava o interesse de todos?
Eu acho que primeiro assim, o que chamava atenção é que “ah, foi vocês que fizeram?
Ah, que bonito!” Sabe aquela coisa assim de...? De uma coisa bonita que eles fizeram. Aquela
coisa de não se sentir mais capaz de produzir algo bonito, de... Então também queriam fazer e
daí os outros contavam que não era tão difícil e também queriam se experimentar. De poder
saber se “também sou capaz de fazer?” Acho que o primeiro impulso pra participar era isso.
Essa coisa mais da estética, essa coisa de produzir algo bonito. Uma coisa com fôrma, com
cheiro bom...
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O tema da Oficina de Sabonetes acaba nos levando a uma questão bastante delicada da
sua experiência e de qualquer que seja a experiência de formação. Uma primeira aparição desse
ponto acontece, logo no início, na referência ao lugar barrado do residente. O que retorna na
lembrança da colega de Oficina de Sabonetes, residente de enfermagem, que foi cortada da
residência, o que Alice considerou uma pena. Segundo ela, apesar das dificuldades que a colega
tinha, ela era bastante dedicada, tinha vontade de fazer as coisas, precisava de um
acompanhamento mais de perto da preceptoria. A lembrança da residente de enfermagem nos
parece bastante importante, que foi essa mesma colega, que acompanhou Alice na Oficina de
Sabonetes, experiência escolhida para a escrita do trabalho de conclusão. Por fim, surgem suas
próprias dificuldades, enquanto residente, na experiência de orientação de seu trabalho final. O
trabalho, fluido efervescente que precisava tomar forma, não encontrava as condições para tal.
Faltava nele um ingrediente, um elemento essencial que produzisse a liga.
A escrita não fluiu na sua primeira experiência de orientação, realizada no núcleo de
terapia ocupacional. Assim como não houve sintonia com sua preceptora no cotidiano de
trabalho, não houve para a elaboração da escrita da pesquisa. Como efeito disso, Alice sentia-se
mal e não conseguia fazer o que mais prezava: conversar para dar encaminhamento àquela
situação.
Parece que em cada encontro eu tinha um trabalho diferente. Era meio assim “essa
página aqui tira, não precisa, essa tira”, sabe? criticavam sem... Era uma coisa, era um
sacrifício pra mim “ah, tenho que fazer isso aqui!” Eu fazia sem gosto, não gostava dele.
Aqui a experiência da TO alquimista nos lança questões sobre a relação
residente/preceptor. Ou ainda, sobre a importância do laço ao outro para a emergência de uma
produção. Com a Oficina de Sabonetes, ela nos ensinou que para que uma produção encontre as
condições de acontecer é preciso, além do gosto pelo material a manipular (eles achavam os
sabonetes bonitos, lembraram que a avó fazia sabão), a presença de um outro que suporte,
que suponha capacidade no sujeito e se surpreenda com seus movimentos. Se não há, em algum
momento, um laço a um outro, que suporte, suponha e se surpreenda, talvez não haja condições
de produção possível. A relação residente/preceptor, experimentada por Alice, talvez carecesse
dessa substância de liga: laço de suporte, suposição e surpresa.
A segunda experiência de orientação de seu trabalho aconteceu após o término da
residência. Nessa experiência, que Alice se apressava em contar na ocasião da segunda entrevista,
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uma surpresa: designaram-lhe uma profissional experiente em pesquisa, porém odontóloga, para
orientar-lhe. Esquisitices à parte, o fluido efervescente de perguntas vem ganhando formas no
encontro com os interrogantes da orientadora. E Alice, por sua vez, segue se apropriando de seu
fazer de alquimia.
Eu também não imaginei. “Meu Deus né! Uma dentista!” Eu queria como orientadora
uma super TO. (...) Mas bem legal, agora eu to gostando de fazer o trabalho. (...) Ela me
pergunta muito. É muito bom. A última versão do trabalho cheia de perguntas que ela
escreveu sobre a Oficina de Sabonetes, sobre o que eu escrevi. Tudo em vermelho: “como
assim?”, “explica melhor isso?”, “o que isso quer dizer?”, “por que?” (...) A gente o
trabalho junto e ela me faz perguntas. Tu acredita? E eu respondo e escrevo. Eu penso “era
essa pergunta que eu queria responder”.
Alice narra o estabelecimento de um laço que se sustenta de presença (a gente leu junto) e
de perguntas (a última versão do trabalho cheia de perguntas). A pergunta é aquilo que marca
o intervalo entre os lugares de uma e de outra. A presença é o que suporta e mantém a existência
desse intervalo. É assim que orientadora odontóloga acolhe o texto da TO residente, deixando-se
afetar por ele. E esta última, por sua vez, ao encontrar destinatário para suas questões, pode
desejar formulá-las. Um trabalho de conclusão vai então ganhando formas.
Agora eu saio da orientação e chego em casa com vontade de escrever. To começando
a achar ele bonitinho, redondinho.
3.3.4 O Maestro
Gustavo entrou na faculdade de medicina pensando em ser psiquiatra. Durante a
graduação conheceu outras especialidades, mas persistia seu interesse inicial. Depois de formado,
teve uma experiência de trabalho no Programa Saúde da Família. Até que... tinha feito as provas
durante as férias que tirei e como eu não tinha passado em nenhum lugar, tava esperando.
eu voltei a trabalhar e me ligaram. Eu não esperava realmente, não esperava que fosse
passar aqui, então... acho que pra mim foi mais marcante isso, a notícia. O momento mais
marcante dos primeiros momentos da residência aconteceu antes mesmo de começarem as
atividades: foi quando recebeu a notícia. Notícia de algo que ele desejava muito e que havia
151
adiado por algum tempo. A entrevista começava num tom entusiasmado, no embalo dessa
agradável lembrança.
Daquele tempo de faculdade lembra que sua visão da psiquiatria era bem diferente da que
tem agora como residente.
Na verdade a gente não tem uma idéia clara, eu acho que nem antes de tu entrar, apesar
de ter feito estágio quando eu estava na faculdade, porque é uma coisa assim que tu “ah, eu
quero ser”. entendendo? Pra mim, né, tipo “ah, eu quero ser psiquiatra”, mas tu não tem
muita idéia, não tem muita idéia. (...) tu fica longe, tu fica... É diferente de tu estar fazendo a
residência, é diferente, é bem diferente assim o momento. (...) Eu pensava muito numa coisa
assim, meio mágica assim, vamos falar... Tudo pra mim ficava numa coisa muito assim “ah que
legal, bababá”. Entende? Não que agora não seja bom, mas mais florida, digamos assim.
Algo meio mágico como?
Não sei descrever sobre mágico, mas era assim que eu me sentia assim, que eu queria
psiquiatria porque eu achava legal, achava legal ser psiquiatra e tal.
Gustavo não pôde descrever de que se tratava nesse mágico. Talvez porque diga de algo
que estava tão longe na época da faculdade, que não podia ter muitos nomes nem muitas
explicações. Era uma visão, de longe, mais florida que a de hoje. A visão de uma imagem tão
fascinante quanto afeita a muitas leituras: o mágico. Que(m) é o mágico de Gustavo? Passado
algum tempo do início da residência, na ocasião da entrevista, Gustavo havia percebido que nem
tudo são flores. Pergunto a ele sobre como tem sido a experiência de trabalhar em equipe.
...eu sempre pensei em trabalhar dessa maneira, que eu acho assim, eu acho que tem
que ter isso, mas tem que existir dentro de uma equipe assim... cada um tem a experiência e a
técnica na sua área e isso não pode ser ultrapassado, eu acho que isso às vezes acontece aqui.
(...) Acho que esse limite assim, tipo, quando tu vai dar... “ah, todas as pessoas têm voto igual”,
mas quando tem características que tu está fazendo um tratamento com um paciente em que é
mais importante tu ver saúde bucal, ou é mais importante tu ver a parte bucal, estou falando de
PSF, mas acho que funciona pra aqui também, então, no caso, essa pessoa vai ter um voto maior
assim, nesse sentido.Tipo, quem entende mais de medicação no caso seria o médico, é o voto
final, acho que nessas situações. Ou ficar discutindo esse tipo de coisa, tu até pode dar uma
informação, acho, enfim, orientar colega enfermeiro, psicólogo, T.O sobre como é que funciona
as medicações, mas discutir com eles é diferente, acho que não tem validade.
152
Gustavo considera que, no trabalho em uma equipe multiprofissional, é preciso respeitar
as fronteiras que limitam a competência técnica de cada um. Traz sua experiência de trabalho em
uma equipe de PSF para dizer que, dependendo do que está em questão, um ou outro profissional
da equipe deve possuir um voto de maior valor. O médico teria um voto que valeria mais quando
se tratasse da prescrição da medicação. O questionamento de uma conduta médica, por um
profissional de outra profissão, seria uma ultrapassagem de limite. E uma discussão em debate as
ações específicas de cada um em relação ao paciente seria sem validade. É marcante, nesse início
de conversa, a preocupação com a fixação das fronteiras e limites profissionais.
Duas questões chamam especialmente a atenção no encadeamento da entrevista. Quando
Gustavo aborda a questão do trabalho em equipe, logo após a referência ao nem tudo são flores, o
lugar do psiquiatra parece que perde a magia. Gustavo narra o desaparecimento do mágico. Em
que medida esse desencanto, essa perda de magia, teria a ver com uma experiência, referida por
ele como difícil, de trabalho em equipe? A segunda questão que eu apontaria diz respeito à
referência à ultrapassagem de limites. A narrativa caminha na direção de um grande incômodo
com um certo movimento percebido e do qual era necessário defender-se: a invasão das fronteiras
do território médico. Talvez, nessa defesa, se trate de uma tentativa de sustentação desse lugar
mágico que se desfazia. E, nesse ponto, são as questões da prescrição medicamentosa e da
constatação da urgência que estão em evidência.
Medicação, às vezes alguma indicação que parecia bem clara, indicação de tratamento
assim, de ponto de urgência, vamos falar assim, do que era mais urgente agora, enfim, acho que
era mais isso assim. Medicação, principalmente medicação.
Pergunto porque ele acredita que essas invasões acontecem.
Sabe o que eu acho? (...) Eu acho que é muito mais de... tem um caráter pessoal nessa
história. Pessoal referente às profissões. Tipo ato médico. Acho que isso está sempre presente.
Não só aqui, mas acho que está sempre presente.
Gustavo traz à tona a lei do ato médico para explicar as invasões de fronteira. Coloca,
brevemente, em relação ao tema que se trata de algo pessoal e ao mesmo tempo referente às
profissões. Essa seqüência do seu relato sugere que ele esteja colocando num mesmo plano a
resistência das demais profissões da área da saúde em relação ao projeto de lei do ato médico e as
discussões de equipe que têm como eixo a questão da prescrição dos medicamentos.
153
No momento da entrevista, talvez coubessem mais perguntas a esse respeito: o que ele
conhece do projeto de lei? O que pensa sobre o mesmo? Acabei não entrando no mérito da
questão: o projeto em si. Limitei-me a tentar situar o que ele entendia por ultrapassagem de
limites, pedindo exemplos, que para Gustavo foi difícil trazer. Seguia falando de seu incômodo
com relação às discussões em equipe, não trazendo nenhuma cena em particular. Percebendo sua
angústia em relação ao assunto e também sua dificuldade em mudar o rumo da conversa, retomei
a questão a partir de algo que me pareceu especialmente importante: o que poderia ser
simultaneamente pessoal e referente à profissão?
...o que a gente nota é que uma distorção nisso e realmente, cada um puxa pro seu
assado, quem perde é o paciente. Briguinha de narcisismo e tal... Sei lá, aonde se deixa todo o
resto, por isso que é narcísico né, tu pensa só em ti e não pensa no paciente, entende? Então isso
atrapalha, por isso que eu acho que a figura de uma liderança em uma equipe é
importante, porque a liderança faz com que isso seja amenizado, então sabe dar o devido valor,
então aquela coisa de tu... tu bate e ao mesmo tu consola, entende? No sentido de que tu vai e
conversa, maneja com a outra pessoa, não, não é bem assim e tal.
O outro, enquanto outra profissão aparece no relato de Gustavo como uma ameaça, na
medida em que está sempre tentando puxar a brasa para o seu assado. Nesse sentido, o
questionamento de um colega aparece como um ataque ao seu saber, uma invasão agressiva e
com propósito narcísico. O trabalho em equipe, experienciado por Gustavo, tem um caráter de
jogo narcísico, onde quem mais perde é o paciente. A saída para isso seria amenizar as
briguinhas narcísicas. E, para tanto, uma equipe precisaria de liderança. Precisaria de um outro,
que desde um lugar de exceção, distribuísse valores de voto, distribuísse a palavra, organizasse a
esculhambação. Nesse momento, Gustavo conta sobre sua experiência em uma equipe, onde não
havia alguém que situasse os lugares, desse limites. Diante disso aconteciam discussões
desagradáveis e até mesmo agressivas.
...virava uma esculhambação assim. Sei lá, todo mundo falava tudo, todo mundo dizia o
que queria e ninguém chegava a uma conclusão, ficava tudo meio no ar, assim. (...) Eu via que
ficava um jogo de pessoas querendo ter razão ali, e aí a coisa não fluía, né?
Em relação ao que nos propomos a trabalhar, fica, do relato angustiado de Gustavo, a
questão de que, não raras vezes, o trabalho em equipe torna-se extremamente penoso. Trata-se de
um espaço que convida ao exercício da alteridade, com todas as dificuldades inerentes a isso.
154
Nesse sentido, escutar o que vem do outro traz uma boa medida de desconforto. Sustentar uma
posição própria, em relação ao conhecimento, sustentar algum saber diante do outro, é muitas
vezes, difícil.
Entretanto, Gustavo nos narra outro cenário de trabalho em equipe. O terreno onde impera
o saber inquestionável, cujo sustento, por vezes, é impossível. E porque não dizer que encarnar o
saber inquestionável é, de certa forma, agressivo? Agressivo na medida em que não lugar ao
outro. Fazer operar algo de um não-saber, mesmo em relação ao que mais se sabe, talvez seja
preciso. Do contrário, diante do saber inquestionável, o outro se faz entrar a força. A esta
altura, o motivo pelo qual se deu o encontro não importa mais. E quem perde é o paciente
como Gustavo bem disse.
Numa certa altura da entrevista, Gustavo passa a falar de sua posição no trabalho em
equipe, deslocando seu lugar de fala. Até aqui o foco do relato recaiu, freqüentemente, sobre as
ações e posições dos outros.
Eu não vou te negar que eu sou um pouco assim de delegar coisas assim... Tipo, tu faz
isso, tu faz isso, tipo, orquestra, cada um tem a sua partitura, leva pra casa e depois a gente toca
todo mundo junto, eu acredito assim. Então chega, a gente toca, bababá e a gente o que
funciona e o que não funciona, o que está bem e o que não está bem, bom, tu tem que estudar
mais isso aqui.
Meio maestro?
Eu penso assim. Eu penso que se tem alguém que conduz, as coisas vão bem. Às vezes a
gente tem que ser um pouco mais duro, às vezes a gente tem que, não, peraí, né. Da mesma
forma que tu tem que ser maestro, tu tem que passar meio desapercebido pra não ter essa coisa
de narcisismo e tal, porque senão começa a ter muito choque. Eu acho que tem que saber dosar
isso aí...
Eis que surge o maestro! Um maestro é essencial para uma equipe funcionar essa é a
tese de Gustavo – do contrário, o trabalho produzido vira um desafino só. A referência à música é
interessante, na medida em que coloca em cena a idéia de uma produção em conjunto. Cada um
com sua partitura, cada um com seu instrumento. Porém o produto final de uma orquestra a
harmonia da música no concerto – esconde todos os erros e conflitos do ensaio. Será que Gustavo
não estaria propondo a supressão desse tempo desarmônico do ensaio? E quem deve ser o
maestro?
155
Assim, tu tem a equipe, mas o que nota? Tu nota assim, quem é o responsável? É o
residente, não é o residente da RIS, é o residente médico responsável pelo paciente. Discute-se
vorazmente tudo a reunião, e, inclusive, as críticas, não são divididas, mas são colocadas em
alguém da equipe que fica com o médico residente, é a minha percepção. Então assim, e outra
coisa, acho que nada mais certo do que o médico residente assumir o paciente...
O responsável pelo paciente é o médico residente. Inicialmente, parece que Gustavo fará
uma crítica ao modo de distribuição da responsabilidade, depois parece que concorda que seja
assim: nada mais certo do que o médico residente assumir o paciente... Ele oscila entre a
percepção de que é natural que o médico seja o maior responsável e a de que os demais
profissionais deveriam se comprometer mais, dividir mais a responsabilidade com o médico.
A questão que Gustavo nos coloca não é, de forma alguma, simples. Sigamos um pouco
mais com ela.
Eu acho que tem que dividir o comprometimento, tem que dividir responsabilidade, pro
paciente acho que isso é importante, porque eu me sinto responsável por eles de uma maneira
que, às vezes, sozinho. (...) Mas tu que não tem comprometimento das outras pessoas em
relação ao paciente e talvez, eu sei... tu é psicóloga, né? E eu acho que isso... acho que em
medicina a gente tem muito disso, de te comprometer com o paciente e tal, e acho que nas outras
áreas isso é um pouquinho diferente.
Como é esse comprometimento?
É no sentido de que quando a gente pega um paciente, parece que o paciente é nosso,
peguei ele pra mim. Então, ele, eu cuido, tá? Na medicina, a gente é assim e talvez por isso até a
dificuldade de trabalhar com as outras pessoas, essa história de ato médico e blá, blá, blá. Mas
isso já vem desde o início da formação, tá? Então quando tu chegas numa equipe em que tu és o
responsável, eu me sinto responsável por tudo que acontece, inclusive as críticas, eu pego pra
mim. que, se tu estás numa equipe, crítica é pra todo mundo, porque todo mundo está
trabalhando em cima do paciente. Aí que está o problema.
Ao mesmo tempo em que a importância, para o paciente, de os profissionais dividirem a
responsabilidade dos cuidados é sublinhada, Gustavo diz que a relação médico-paciente dificulta,
de certa forma, a realização disso. aqui, novamente uma insipiente reflexão acerca da sua
posição diante dos outros, sejam pacientes, sejam membros da equipe. A fala Parece que o
paciente é nosso faz pensar num paciente-propriedade, na pessoa como um objeto de cuidado. O
156
outro aspecto que, sobremaneira, chama a atenção diz respeito à inflação do lugar de responsável.
Gustavo diz que pega o paciente pra si e pega toda a responsabilidade e as críticas também.
Não lhe ocorre convocar a equipe para assumir a responsabilidade sobre o tratamento do
paciente. Também não menciona nada no sentido de implicar a família e o próprio paciente no
seu tratamento. Durante a entrevista, está muito tomado pela questão de que diante de uma equipe
que não se compromete lhe resta assumir tudo sozinho: sucessos e reveses. Pergunto: e como
que é pra ti, que foi formado pra ser responsável pelo paciente, chegar numa equipe grande e ter
que dividir essa responsabilidade? Tu consegues fazer isso?
Depende da equipe.
Se, para Gustavo, uma equipe deve funcionar como uma orquestra, que orquestra se
apresenta com o maestro tocando todos os instrumentos? Porque tamanha dificuldade em trazer a
questão do compartilhar responsabilidades para discussão nessa equipe? Será pela posição de
residente? Será pela rigidez de lugares na equipe? Nesse sentido, Gustavo estaria esperando que
seu preceptor o fizesse?
Quem é que tem que fazer isso? Quem? Eu acho que é a pessoa que está... que está de...
Sempre tem aquela, tipo, grupo que a gente faz, grupo de paciente, né, tem aquele que toma
porrada, tem o cara que fala mais, enfim... Eu acho que se tem alguém que faça esse meio de
campo é essa pessoa que tem que fazer esse tipo de coisa, né, de discutir... Até porque vai ser
bem polêmico, dependendo com quem que for. Acho que tem que partir dessa pessoa.
Gustavo estaria se referindo a um porta-voz? E por que isso teria que partir do outro?
Mais uma pergunta não perguntada... Efeito que a entrevista produzia em mim. Fui cautelosa,
talvez porque eu quisesse tentar escapar desse lugar de quem ataca. Afinal, o que eu escutava é
que as perguntas eram ataques.
A desarmonia do trabalho em equipe marcou o compasso de grande parte da entrevista. A
gente sempre lembra mais das coisas ruins, diz. Seguiram-se, às minhas tentativas de pergunta,
exemplos e mais exemplos sobre a falta de engajamento da equipe e sobre sua solidão no
tratamento dos pacientes. Produziu-se uma narrativa intensa, repetitiva, permeada de angústia.
Era possível sentir que a experiência de formação, para Gustavo, estava sendo bastante difícil.
157
Como que era tua pergunta? Eu viajei tanto...
Viajaste do mágico ao maestro.
E, novamente, a referência ao maestro vem marcar uma mudança de compasso no
discurso.
É bem contraditório isso do que eu falei, de uma coisa boa, e depois eu falei mal.
Assim ó, lidar com pessoas acho que é desse jeito mesmo, tu tens expectativas e depois tu chega
e não é bem assim, acho que não é só pra psiquiatria. Não sei te dizer assim de...
Nesse ponto, Gustavo, como que se olhando de fora, falando de si como um outro,
comenta seu percurso na entrevista. Daí em diante, o relato penoso, lugar à lembrança de uma
cena importante de sua formação. Cena que vem cortar aquela série de frases doídas, sofridas,
cansadas da fila da emergência.
Era no início da residência, Gustavo era o único médico presente no CAPS. Chega uma
mulher muito mal, parecia estar psicótica. Gustavo não tinha certeza. Ele tinha que decidir sobre
se tratava-se ou não de um ponto de urgência. Decidiu por encaminhar a mulher para uma
avaliação em uma emergência vinte e quatro horas para que fosse internada. Até aí, muita tensão,
o peso da responsabilidade de ser o único médico, porém tudo andava conforme as partituras do
maestro. Foi então que a paciente pede que Gustavo fique com a foto de seu filho.
E aconteceu de… pô... de eu ficar naquela coisa “pego a foto ou não pego a foto?”
Né? Que foi uma coisa totalmente inesperada. eu “não”. Peguei a foto. Foi bem no início,
logo que eu iniciei assim. Eu fiz assim meio que no início, depois “bah será que eu deveria ter
pego ou não deveria ter pego?”
Que havia nesse pedido que não pudesse ser aceito? A partir dele, Gustavo tornara-se não
apenas responsável pela decisão de internação de um paciente, mas pela internação de uma
mulher que se preocupava com seu filho. Arma-se um impasse. O jovem profissional se coloca a
pergunta: o que deveria fazer? Ele age, mesmo sem certeza. Nesse ato, desloca-se de uma
posição de domínio, deixando que o desconhecido, em alguma medida, opere, encontre lugar.
Comenta: às vezes a gente faz as coisas mesmo sem saber.
Desse dia para o momento da segunda entrevista passaram-se quase seis meses. Quando
nos encontramos pela segunda vez, Gustavo começa falando, antes mesmo que eu pergunte, dos
158
efeitos desse intervalo. Tu vai ver que vai ser bem diferente da outra entrevista, me diz. Nesse
momento, suspiro aliviada, pois confesso que a primeira entrevista foi bastante difícil. Pergunto o
que mudou.
Eu vou partir da percepção de que eu que mudei e não as coisas que mudaram. Eu acho
que eu to muito mais... não... não me sinto mais atacado com as coisas que acontecem aqui
dentro. Eu consigo entender o porque que isso acontece. Consigo também discernir que, às
vezes, é por uma ansiedade, enfim, das pessoas que tão trabalhando. Talvez, de certa forma
antes, eu é que provocasse esses ataques.
Sou tomada por uma sensação estranha. Será que ele leu o que eu havia escrito sobre a
primeira entrevista? Não! Nem por mágica, nem por maestria! Mas era como se ele tivesse se
escutado e me escutado, embora eu não tivesse falado muito naquela ocasião, fazendo apenas
algumas perguntas.
Talvez eu, por algum motivo, na verdade tenho uma idéia assim de como funcionam as
coisas em termos coorporativistas, tinha uma resistência, uma resistência não, um certo... uma
predisposição a que me atacassem e eu sentisse isso como ataque e, de uma certa forma,
retornasse o ataque. E isso era visível assim porque eu ficava muito irritado com as coisas.
Agora é diferente. Eu não fico mais irritado. Não me sinto mais irritado, não me sinto mais
atacando. (...) Pode ser por coisas pessoais minhas, mas eu acho que tem muito a ver com como
eu comecei a entender como as coisas funcionam aqui. Tá? (...) Porque, querendo ou não, a
gente detém muitas coisas aqui, vamos falar em termos de poder assim. E que isso, às vezes, é, se
tu tem... dependendo da tua conduta, tu vai ser atacado. Porque tu detém um monte de coisas
que de repente tu possa dizer “ah, não preciso disso, que tu faça isso ou que tu faça aquilo. Eu
posso fazer sozinho.” E, em conduta médica, às vezes é assim mesmo, a gente tem essa tendência
a fazer, por vários motivos.
E o que ficou pra ti da outra entrevista?
Ficou pra mim que eu agredi. Ficou pra mim que eu fui muito mais agressivo do que
eu me sinto agora. Eu não me sinto mais agressivo e não me sinto com raiva. É isso que ficou
assim. Até eu acho que eu citei situações, situações em que eu fiquei irritado. Isso é que eu me
lembro.
O maestro se escutou. Agora sente uma certa estranheza.
Daí eu fiquei pensando que é estranho né, porque eu não me irrito, eu não tenho entrado
em atrito e do mesmo jeito os pacientes tão sendo tratados, tudo do mesmo jeito. Que que
acontece? Será que...? Alguma coisa tinha né? Porque mudou, mudou a relação. Não que as
pessoas antes não me tratas... não tivessem a mesma, a mesma, a mesma... o mesmo pensamento.
159
Porque eu sou uma pessoa que sou muito firme no que eu digo assim “não peraí, tu disse isso aí,
mas onde é que ta escrito isso aí?” Tipo, eu quero uma coisa palpável, eu quero uma coisa que...
não, pelo menos uma teoria que seja lógica pra nós fazermos tal tipo de tratamento. E era muito
de achismo e tal. E aí nisso talvez eu fosse mais chato. Agora eu não tenho sido mais chato nesse
sentido. Eu tenho escutado mais as pessoas, tenho discutido mais, mas não em termos tão mais
firmes, né. Mas no mais eu não tenho mais me sentido irritado com as pessoas. Eu não tenho
sentido as questões sobre os meus pacientes como um ataque pra mim. Eu acho que isso é
importante. (...) Dividir trabalho pra mim é difícil. Eu to conseguindo dividir trabalho. Antes eu
queria dividir, mas eu não conseguia porque eu achava que as pessoas não davam conta, não
faziam o que eu pedia pra fazer, não faziam. Então agora as pessoas tão fazendo, tão me
trazendo, eu to conseguindo juntar coisas, da mesma maneira que as outras pessoas tão
juntando com as minhas. Né? Então eu acho que isso repercute um montão assim no tratamento
dos pacientes. Eu não me sinto tão sozinho pra tratar os pacientes, que é uma coisa que eu
achava antes.
Não tomar as questões de forma tão firme, escutar mais, inclusive os achismos, dividir
trabalho, juntar as coisas: todos efeitos de uma experiência, inicialmente, muito angustiante de
encontro com a alteridade. Retorna aqui algo que apareceu bastante na primeira entrevista: a
solidão.
Claro. Muita, muita, muita. Porque? Porque eu não me sentia de alguma forma acolhido,
sabe? Não tinha uma equipe. Tu tem um ambiente, que na verdade é pra tu aprender, né? A
residência é pra tu aprender. Num ambiente que é hostil a ti, como é que tu vai querer
desempenhar alguma coisa sem querer fazer as coisas sozinho? E quando tu tenta mostrar as
pessoas te atacam. Ou talvez eu tentasse mostrar, mas eu não conseguisse mostrar da maneira
como deveria, enfim, por irritação, por irritado por me sentindo sozinho. E então “ah,
quer saber? Se as pessoas não me ajudam, eu vou fazer tudo sozinho então!” Entende? Então,
muito um pouco essa percepção. Tem o fato também de que eu me sinto bem mais seguro. Não
pra negar. Eu posso carregar mais sozinho as coisas. Mas, ao mesmo tempo que eu me sinto
mais seguro, como é que eu to me sentindo mais seguro e que eu poderia estar fazendo mais
sozinho, talvez, as coisas e agora eu to dividindo? É ao contrário. Seguro, de repente é pra fazer
as coisas mais sozinho, mas agora eu divido mais.
A pergunta pela sua implicação no movimento da equipe aparece, repetidas vezes nesse
segundo relato. Gustavo percebe-se como mais seguro, inclusive, para dividir trabalho. E eu
acrescentaria: para escutar o outro, para escutar-se e colocar-se perguntas. O maestro avalia que,
naquele momento inicial de formação, deixou-se influenciar por discursos correntes na equipe,
principalmente entre os residentes, de cunho corporativista. Pondera:
A minha turma dos três eram todos invocados com essa história de trabalhar
multidisciplinarmente. Às vezes a gente não dava muito valor assim. To sendo bem sincero. Eu
acho que a gente tava criticando de mais e tava, falo por todos, mas principalmente por mim,
160
criticava de mais e tava se irritando com coisas que eram nossas, nem eram dos pacientes. E
isso que tava dificultando o trabalho. Eu acho isso. Agora eu percebo isso. (...) Me serviu
naquele momento. Me serviu muito naquele momento porque eu tava me sentindo muito sozinho
naquela equipe. Me sentindo sozinho e, ao mesmo tempo, me sentia atacado também. (...)
Sinceramente eu boto muito a culpa em mim assim. Tá? Não consigo ver de outra maneira.
Culpa? Sugiro que talvez se trate de responsabilidade e não de culpa, no sentido de que
ele também era responsável pelo que acontecia. No momento que pode questionar seu lugar, as
coisas mudaram.
Uma responsabilidade compartilhada talvez? Culpa é uma coisa ruim, né? Tem a ver,
porque culpa e responsabilidade, nesse caso de ser agredido tem tudo a ver, né? Porque ao
mesmo tempo que eu era responsável por aquilo, pelos pacientes, né, que a gente é responsável,
de certa forma, tudo que acontecia de errado, eu pegava pra mim, como culpa. Então mudou
isso. Eu acho que essa transição entre culpa e responsabilidade. Que eu pude dividir a
responsabilidade e, ao mesmo tempo, dividir a culpa, ou melhor, conseguir com que essa
responsabilidade fosse compartilhada e diminuir minha ansiedade.
O cenário de trabalho em equipe narrado por Gustavo, nesse momento, difere daquele da
primeira entrevista, principalmente porque mudou sua posição na cena. O maestro não está mais
tão sozinho e não se incomoda tanto com a diferença. O que não quer dizer que mudou de
opinião quanto a questões de indicação terapêutica que geravam discordância na equipe, por
exemplo, a questão da autoridade médica em relação à prescrição medicamentosa e de internação.
Trata-se de uma mudança que se produziu em relação às formas e não, propriamente, aos
conteúdos.
O que eu consigo perceber assim de quando acontecia isso é que tava diretamente ligado
a ao meu poder de decisão. Tava diretamente ligado com um questionamento do que eu achava e
não propriamente assim de certo ou não. Eu acho que era mais isso. Ah, às vezes tinham
coisas muito erradas, tipo, indicação de internação. Tem tal coisa e tal coisa a gente tem que
internar. Vamos falar assim, às vezes, eu noto que quem não é assim da área médica tem uma
dificuldade de ver que internação é uma coisa boa e que não é um mal trato.
Essa percepção de que o outro a indicação de internação como um mau trato talvez
estivesse no centro da sensação de ser atacado. Talvez o maestro sentisse que o outro lhe
acusasse de maltratar. Porém, agora ele podia dar lugar às diferentes posições surgidas na
equipe em relação a uma ou outra conduta. Eu consigo ver que aquilo ali, realmente, é um
pensar diferente do meu. Por um tipo de formação diferente. Nesse sentido, já não precisava mais
assegurar um lugar de poder, de saber inquestionável, mas podia se aventurar num jogo de
161
diferenças, onde havia lugar para perguntas, para a discussão, para o outro. É a mesma música,
que tocada de um modo diferente, faz-se outra. E se a relação com a música era outra no
espaço da equipe, também era na oficina de música, da qual o maestro passou a ser o oficineiro
responsável.
O grupo de música, antes era o Fernando que fazia o grupo de música. Tá, daí a gente
mudou, aí não tinha mais o Fernando né, e eu não sei tocar violão, mas eu toco saxofone e canto
assim né. Daí tive que mudar um pouco né, tinha o Jurides, que é um paciente que toca violão.
a gente mudou um pouco o jeito da oficina, que antes eratocava e cantava, só. Agora não,
agora eles escolhem as músicas, a gente fala da música que escolheu, canta, a pessoa que
escolheu fala e daí a gente discute ali e depois se canta a música. E isso repercutiu um montão
assim. E como as músicas que se seguem é que nem um assunto durante uma terapia de grupo! É
interessante assi!. (...) O que que acontecia antes? Algumas pessoas ficavam ali cantando,
outras ficavam caminhando pra e pra cá. Não ficavam em grupo, em conjunto. E
cantava. Logo que eu comecei assim eu tive essa preocupação. “Pô, tem que ser um grupo coeso
se não não vai funcionar.” Daí que que aconteceu? No início, vinha ali e dispersava. Daí
começou... Olha só! Começou um movimento das pessoas começarem a ficar numa roda, mesmo
que fosse atrás da mesa, porque a gente põe os livros ali, as pessoas pegam e lêem. uns
conversavam pra lá, outros começavam pra cá. Começou a haver um grupo, em que as pessoas
falavam e os outros escutavam. E não tinha isso. E as pessoas escutaram a música, depois da
música, falam da música, mas todo mundo escuta e fala e ouve.é diferente. Isso me motivou a
fazer e me motivou a continuar. No início, eu tava meio desmotivado assim, não sabia como é
que ia ser. Mas enfim, acho que foi bem legal. E tinha essa coisa que o Jurides ficava muito,
como o Fernando canta bem e toca bem, e tal, e o Jurides não toca bem, ele desafina. E aí até eu
quis deixar ele, porque eu deixo só ele. Porque eu canto né e, às vezes, eu nem canto muito assim
porque... Ele desafina bastante e no violão também, mas enfim, pô, é o que eles podem fazer e eu
vou valorizar o que ele pode fazer. Então às vezes eu deixo ele desafinando, cantando, às vezes
eu me meto, canto um pouquinho mais forte pra tentar embalar assim ele um pouquinho. Mas eu
deixo muitas vezes ele cantando, valorizo ele, o que ele fazendo. Melhor do que eu ficar
cantando sozinho como se fosse cantor.
3.3.5 A Astronauta
Rosana entrou na residência de saúde da família e da comunidade buscando aproximar-se
do Sistema Único de Saúde, coisa que vinha realizando desde um certo momento da graduação.
Contou que teve uma vivência no VER SUS, que é um projeto do Ministério da Saúde, que
com iniciativas de estudantes, projetado por estudantes pra conhecer o Sistema e pra discutir
sobre o Sistema, pra avaliar, pra pensar sobre e pra se aproximar mesmo. Teve ainda a
experiência no Saúdes, projeto em que se faziam encontros entre estudantes de diversos cursos da
162
área da saúde e onde se discutia como sair do contexto interno de disciplinas para pensar a saúde
ampliada. Produziam-se discussões às vezes ferrenhas. Principalmente por causa das técnicas e
de como cada um escolhe a conduta.
Como efeito dessas experiências, Rosana percebeu que lhe interessava estar entre pessoas
que gostam do coletivo, que gostam de comunidade, de conhecer a família e não só, no meu caso
né, não a boca, os dentes, não as queixas das pessoas. Ver a saúde ampliada, não a da
boca, estava em seu horizonte. Com esta disposição a ampliar o olhar na proximidade com o
outro, Rosana entrou na residência no fim do verão.
Quando a gente entrou em março, estava correndo, a gente entrou com o bonde
andando. E a gente viu, as pessoas falavam nomes, falavam o nome da rua e nós ficávamos
completamente perdidos. Não sabíamos nem direito aonde era o posto. Então a gente ficou meio
boiando no início. (...) Porque na área de vigilância
39
, aquelas duas horas muito faltantes assim,
muito risco de não fazer nada. Chega “ah, não, planejado”, mas não está escrito. Cada
um trouxe um caso, se decidiu o que se ia fazer e saiu pra fazer a VD, pra ir e resolver.
Então a gente fica... No início a gente dizia “agora nós vamos sair?” “Agora nós vamos
discutir?” Porque ficava assim muito rápido, sabe? Eu penso que parece que está tudo muito
dado, tudo pronto. Que todo mundo sabe o que deve ser feito e saem caminhando, que às
vezes não resolve. Por quê? Porque não foi pensado ou porque não se pensou outras formas
talvez de abranger esse caso. (...) Não era uma discussão como a gente pensava...
Entre ruas e nomes desconhecidos, decisões de pouca conversa e muita caminhada,
Rosana se colocava muitas perguntas em relação ao trabalho da equipe. O que parecia
incomodar-lhe mais era o fato de que nas decisões da equipe estava tudo muito dado, tudo muito
pronto, todo mundo sabia o que devia ser feito. Faltavam horas de discussão, espaços de
reflexão. Para tentar dar conta das horas faltantes combinavam-se encontros entre os colegas,
fora do horário da residência, onde as experiências do dia entravam em pauta. A gente fez
janta, já foi em festa junto, a gente sempreum jeito de pegar e “tá, mas aquela família que tu
viu, tu lembra o que aconteceu?” Porque a gente pensa sobre o que que levou, faz
genograma, a gente pensa mais ampliadamente.
39
É que assim o conceito da consciência territorial tem a ver dentro da vigilância em saúde, de como a pessoa se
sente sujeito do seu problema, da sua comunidade. Pra intervir no problema, na doença, no lixo, nos ratos, nas
coisas que estão acontecendo dentro da comunidade. A vigilância tem... é outra coisa que eu me esqueci... mas a
coisa de construir dialogicamente assim, com a comunidade, de perguntar pra comunidade o que que ela acha que é
problema e de poder estudar isso com ela. Dizer “ó, nós podemos fazer isso, nós podemos construir isso com vocês,
a gente precisa que vocês também trabalhem com a gente”. Agora depois que tu falou eu me lembrei que também é
uma coisa do pessoal da psico que fala... Vigilância não é uma coisa dos caras que são guardas da saúde.
Vigilância no sentido de abranger o território e as pessoas que estão nele pra pensar sobre os seus problemas.
163
As discussões com os pares, os colegas residentes, possibilitaram a Rosana outra condição
de encontro com o desencontro entre suas expectativas e a experiência cotidiana no trabalho.
Entre pares, ela pôde colocar essa diferença em questão e construir leituras. Criava-se uma
zona de compartilhamento, que permitia a Rosana outra posição no retorno ao campo de trabalho.
Se de início o que aparece é um excesso de cenas de sofrimento (que a equipe se ocupa em sanar)
sem que houvesse possibilidade de entrada para Rosana (como participante de alguma
intervenção), na seqüência, um endereçamento de perguntas emergentes dessa experiência de
excesso ao coletivo de residentes. Esse segundo tempo lhe proporciona alguma apropriação
daquele universo, bem como, alguma possibilidade de entrada em cena. Nesse compartilhar,
Rosana decolava em direção a seu céu, que muito era mais amplo que o da boca. Pensar
ampliadamente e fazer disso uma reverberação no trabalho começava a encontrar vias de
realização.
Nessa trajetória, ela teve a companhia de alguém em especial: a psicologia está muito
dentro da odonto, diz. Parece que o encontro com a psicologia intensificou os questionamentos
que Rosana vinha se colocando sobre as fronteiras das profissões e sobre os limites dos atos
terapêuticos. Como efeito desse encontro, Rosana propõe uma topologia das profissões: uma cabe
dentro da outra.
Bah, com a psico assim, tem muito da odonto com a psico, que a psicologia está muito
dentro da odonto. A gente às vezes não consegue ouvir o paciente, mas tu percebes coisas dele,
mesmo de quando ele se apresenta pra ti. E a gente não tinha muito isso. Então quando vem a
psico e questiona, o Homero mesmo aqui me questiona muito aqui “tá, mas tu perguntou pra ela
sobre isso?” Eu digo: “ah, não sei como é que ela vai responder”. A gente fica num impasse,
sem saber muito como lidar com isso, porque a minha parte, ah vai ali arruma o dente, ou sei lá,
tira uma lesão na mucosa e vai embora. E aí... Mas eu ouço o paciente, expressões, eu percebo o
medo dele, quando ele se esquiva e tal, ou quando ele diz “não, hoje, não”. Então é difícil
problematizar, porque, dentro da faculdade, poucas disciplinas problematizam os problemas do
paciente, principalmente aquelas mais práticas, de prótese, de estética. Pô, a estética é o que o
paciente tem interno né, é o que ele escolhe, mas até tu buscar isso...
Rosana se mostra sensível ao outro, percebendo os pedidos de escuta e se perguntando o
que fazer diante deles. O sofrimento do outro emergia como desconhecido, estrangeiro,
misterioso. “Ah, não sei como é que ela vai responder”, diz, anunciando a dimensão do
imprevisível presente em toda escuta. Na companhia da tripulação, a residente lança-se então a
164
espaços não sabidos, órbitas desconhecidas. Sabia arrumar o dente, tirar a lesão da mucosa, mas
o que fazer com o que o paciente lhe dizia? E o que fazer com seu não saber?
Esse impasse frente à possibilidade de não saber o que fazer com o que o paciente diz é
justo. Justo, na medida em que confere importância à palavra do outro e deixa claro que é preciso
fazer-se responsável por aquilo que se escuta. Por outro lado, fala de uma paralisia diante do não
saber. Remete a uma posição do profissional de saúde como aquele que deve saber como agir,
aquele que sabe como resolver. Paralisia que Rosana se esforçou por combater, que seu
encontro com o desconhecido, com o estrangeiro, com o não saber, lhe impeliu a buscar o suporte
e a interlocução com a equipe.
Às vezes é difícil de perguntar porque eu não sei o que eu faço com a resposta. Eu tenho
um paciente que... Ele é policial civil. E eu falei pra ele “bah, tu tem um bruxismo muito
severo”, de arranhar e gastar os dentes, de ficar se mordendo. E aí ele disse “pois é”. E eu “ah,
isso pode ser o estresse da vida”. Ele “é, eu já levei tiro”, não sei o que. E eu “ai meu Deus!” Aí
ele começou também... sabe? Ficou muito triste, muito abatido. “Pois é, talvez tu tenha que
procurar, um pouco pra relaxar, um momento pra ter pra ti, sabe? Como é que tu acha que tu
podes fazer?” “Ah, pois é, mas fica difícil”. Ele mora no beco. Tem essa coisa de ser policial no
meio do tráfico, ter levado tiro. Então, ele vinha aqui com a restauração quebrada. Eu digo
“ah, tu voltou a te apertar, tu voltou a fazer bruxismo, não vai resistir a restauração. Quem sabe
vamos fazer uma plaquinha?” ele tem o convênio da polícia que ele poderia fazer. Eu “ó, o
negócio é isso aí, eu te ajudo aqui da forma como eu posso”. Sabe? É difícil eu tratar uma coisa
que é a pressão diária que ele tem de ser morto, de estar na família deles correndo risco, sabe?
Com os filhos e com a esposa. (...) Por quê? Porque ele tem essa conversa, sabe? E eu aqui fico
nessa coisa de eu querer ajudar, mas não sei como. Tipo eu tento conversar com o Homero o
tempo todo, já conversei com o Ricardo.
É, sustentada nesse laço ao outro, nessa referência à equipe, que Rosana tem se lançado a
viagens desconhecidas, em que tem feito algumas “descobertas”.
Tem uma família que está toda a vida sendo citada na área de vigilância. Porque, assim,
é uma mãe... E tudo, assim, saúde bucal menos um. Ela não tem um dente superior, ela é toda
detonada. O pequeno tem quatro anos, está todo detonado também, cheio de cárie. E eu
pensei assim de “como que esse filho é autista?” Foi muito legal, porque foi um caso da área de
vigilância, de violência. A mulher, o marido batia nela e era muito rude, brigava com ela. O
menino tem um caso assim bem delicado de mielomeningocele. Ele tem... Sabe quando a coluna,
a parte de baixo, o coxis é aberto? O nenê nasce e não está bem fechado. Então ele não tem
direito o movimento das pernas, é atrofiado. Ele é um nenê assim. Ele está com quatro anos, mas
ele não anda, ele depende muito. Ele é um pedaço da mãe dele. E o Homero também...
Levamos pro Homero, o Ricardo também, todo mundo da área de vigilânciapensou um pouco
sobre esse caso. E no final das contas assim... Da parte da enfermagem... É um caso bem
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comprido. A gente foi no dia que o cara bateu nela, ele achou que ele ia ser preso, ele foi e
aí ela chorava, chorava, porque ela dizia que o carro era mais importante que ela e ela dizia que
estava com depressão, que ela não conseguia ir no posto e o guri chorava junto. o Homero
falou que possivelmente era porque ela deixava ele ser parte dela e não deixava se separar,
então esse pedaço é muito engraçado porque daí eles vinham na consulta no mesmo horário. A
mãe vinha com a J., aqui do lado, que é da enfermagem. E ele vinha comigo. E a gente ficava
aqui. Eu não conseguia fazer nada, tudo doía, tudo era ruim. E como ele é nenê assim, nenê no
sentido de... de ... da percepção, é difícil. Eu consegui escovar os dentes, não consegui fazer
muito mais coisa porque ele não deixava. A coisa da boca, ele não queria que eu fizesse nada.
Mas enfim, na primeira consulta veio ele e ela. E ele ficava o tempo inteiro perguntando “cadê a
mãe?” “A mãe conversando coisas de mulher ali com a Jane.” E a mãe também... Depois a
gente reuniu né. E eu aqui escovei os dentes dele. Aí todo esse maquinário era o máximo pra ele.
“A nave do dentista”, a gente brincando com as coisas da odonto e ele se entreteu. E a Jana
falando depois que a mãe ficou o tempo inteiro perguntando “mas será que ele com dor? Ela
ta machucando ele?” E a J. dizia “claro que não tá, fica tranqüila, é eu e tu.” (...) Não cuidava
dela pra poder cuidar da casa e do menino. E agora está mais calmo assim, ela tem vindo
aqui na consulta, ele tem ficado em casa. Ele não veio mais no dentista, tem que esperar ele
conversar um pouco mais, porque daí eu não podia...
A parceria de trabalho com a residente de enfermagem foi uma descoberta para Rosana. O
que ela nomeia como a parte engraçada parece ser o ponto alto da inusitada vivência. Uma
dentista e uma criança. A criança quase não falava e sem o corpo materno era só dor. A dentista a
escovar-lhe os dentes e a colocar palavras no vazio deixado pela ausência da mãe. A mãe
conversando coisas de mulher ali com a enfermeira. A gente brincando com todo o maquinário –
a nave do dentista. Uma brincadeira do espaço! Rosana menciona algo acerca do efeito da
intervenção espacial: ela tem vindo, ele tem ficado em casa.
tem outra... tem outra coisa ruim. Tem muito uma cobrança de eu não perder uma
consulta pra uma... porque eu não posso fazer nada. Mas é de mim também. Eu acho isso
horroroso assim. Eu tenho aprendido um pouco mais. A criança vem aqui, ela tem muito medo, a
gente vem aqui basicamente pra ela se adaptar ao ambiente odontológico. De entender que não
vai doer, que eu não vou fazer nada de mau pra ela e de entender de si, de ela gostar, de ela
querer ficar com um sorriso bonito e tudo isso. Então teve acho que três pacientes que eu
mandei embora sem fazer nada. Teve uma que eu cheguei a anestesiar... (...) Ai no início nossa!
No primeiro dia eu chorava. “Ai, que droga que eu não consegui! Sabe? Me sentia fracassada. E
depois eu comecei a pensar assim “tá...” Porque isso tinha muito na faculdade, sabe? De a
gente amarrar a criança pra atender, cinco pessoas na volta da cadeira e eu lá. Aqui não.
depois eu comecei a pensar assim “mas o quê? Não tem ninguém pra me ajudar, é eu. O
paciente mora aqui, eu sei onde ele mora. Eu sei quem é a agente comunitária, eu sei quem é o
médico dele, a pessoa que tá... tipo a enfermagem ou quem mais atende ele e ele vai voltar. Não
tem como fugir. Se ele se mudar, bom aí não tem como.”
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O dentista fracassa quando não consegue fazer nada. Em termos odontológicos, apenas
escovar os dentes não é muito. Porém, será que a invenção da jovem dentista não cabe dentro da
odonto? Adaptar-se ao ambiente odontológico. Querer ficar com um sorriso bonito. Brincar na
nave do dentista. Fabricar mundos no maquinário da odonto. Talvez Rosana não pudesse medir
o alcance do seu ato. O que a tranqüiliza é saber que não precisa amarrar o paciente à cadeira,
pois existe uma rede que o liga à UBS: ele vai voltar. Não tem como fugir. Se ele se mudar,
bom aí não tem como. De qualquer forma, voltasse ou não o menino, ele levara a nave consigo. E
ela já se tornara uma dentista astronauta.
A entrevista com Rosana marcou pela quantidade de cenas do cotidiano de formação que
ela pôde narrar. Cenas ricas em detalhes, que iam ganhando vida diante dos meus olhos,
animadas pela voz e gestos entusiasmados da jovem dentista. Uma cena seguida de outra e de
outra e de outra e de muitas perguntas. “Que que a gente vai fazer, sabe?” “Tá, mas aonde que
a verdade?” “E aqui como é que faz? Olha o que aconteceu! Como é que eu posso fazer?”
Um universo de histórias-pergunta.
O ritmo da narrativa de Rosana era acelerado. Ultrapassava a velocidade do som. Sempre
um fato novo, outra mudança, mais um risco, mais uma possibilidade de trabalho. É como se ela
quisesse, com a urgência, promover a irrupção de mudanças no campo da atenção em saúde
brasileira. Tudo se passa como se o profissional de saúde se visse convocado, todo instante, a
agir. Rosana narra a relação com um tempo condensado, fora de órbita, que interroga o tempo
burocratizado de um certo modo de trabalhar em saúde.
Às vezes eu me dou conta, às vezes não, às vezes vou me dar conta bem depois, mas
tem uma hora assim que o olho brilha assim “putz, não tem nenhum outro lugar que eu queria
estar além desse”. Uma vez que eu me dei conta assim... tava eu e o Homero fazendo uma VD e
três crianças que não estão mais participando do grupo de crianças. a gente foi pra
perguntar porque que eles não tinham ido. Porque aconteceu assim, a gente foi no parque, aqui
no Germânia, e eles fizeram uma chafurda, os dois assim... São dois irmãos e uma menina. Um
tem dez, o outro tem oito e ela tem seis, sete. E eles, os dois brigaram, se chutaram, chutaram
a bola. Nossa! Se espernearam. um saiu correndo na frente e a gente disse que a gente não ia
mais no parque se eles fizessem isso e que a gente ia conversar sobre isso no próximo grupo. E
aí eles nunca mais apareceram. Aí a gente foi lá, foi perguntar, daí o Homero perguntava se não
foram por causa daquele dia no parque. Eles diziam que não, porque eles estavam no CECOBI,
porque eles tinham muita coisa pra ver, que a que leva. Essa é outro caso de família
complicada. Eles moram com a vó, a mãe tem mais seis filhos. Não, eram sete, não oito daí um
morreu... A menina pequena adora falar “nós éramos oito, daí um morreu, agora a gente é
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sete”.(...) Essa coisa de que a tinha muito serviço, que não podia estar trazendo eles no posto
no dia do grupo e que daí eles estavam indo no CECOBI
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sempre, todos os dias.
E o que tinha de tão especial nesse lugar?
...nesse dia que a gente estava lá conversando sobre como... e aí cada coisa que eu via eu
“bah, como é que eu não pensei nisso antes?” Eram as coisas que mais me puxavam e que eu
via que não tinha outro lugar que eu pudesse aprender do que estando ali, sabe? Sentada do
lado da menina, no sofá da sala da casa deles, conversando sobre, descobrindo, entendendo
porque.
Conhecendo o planeta da menina do éramos oito, morreu um e ficou sete?
É... o Homero “fala uma coisa que tu gosta e uma que tu não gosta de cada um dos
teus irmãos”. E eles se descobrindo, eles pensando porque. Eles, entre eles, começaram a
pensar sorbe o que cada um tinha dito e se riam e diziam “ah, mas eu concordo”ou “eu
discordo”. Sabe? Então, esse pedaço assim não tem igual, de tu poder conversar. E eu
perguntava também sobre o que eles tinham falado. “Ah, mas como é que é bater?” “Como é
que é esse brinquedo que tu não gosta?” Porque os dois batiam nela e ela não gostava e o outro
porque jogava bola. Teve uma que foi um sarro, porque que eu levei a sério a história de que
tu fala e às vezes tu fala uma coisa que tu não queria ter dito, mas na verdade tu querias. Isso do
inconsciente. E eu “ah, ele não quis dizer isso” e o Homero “é, mas ele disse isso”. Disse...
como é que era? Porque um gostava de brincar de futebol com o outro. E o outro falou
“brigar de futebol”. E ele “tá, mas tu falou ‘brigar de futebol’”. E o outro falou assim “não,
não, eu disse brincar” e ele ficou meio, ele ficou assim pensando “não, não era isso”. E a
Brenda, que é a menina disse. “Mas ele disse”. E aí eu “nossa!” E aí o Homero “Ah, mas vocês
brigam no futebol?” E ela “ah, sim, eles ficam se batendo”. Ela que percebia muita coisa da
violência. Ficava um batendo no outro. E eles mesmos assumiram assim.
Rosana parecia mais menina que a menina, que brincando não via o tempo passar. O olho
brilhava. Nenhum outro lugar pra estar além daquele. Estava admirada com a “descoberta” do
colega residente e da pequena menina: irmãos precisam brincar, mas também brigar de futebol!
Rosana nos ensina que aprender também passa por ter um certo olhar infantil. Um olhar curioso,
desconfiado, encantado, arteiro. Olhar de astronauta se surpreendendo com o tamanho do
universo, de criança descobrindo o mundo e se encantando com ele.
O lúdico encontrava lugar no fazer de Rosana em muitos momentos.
40
É um centro de ensino, lá eles têm oficinas e eles estão indo.
168
Com as crianças eu falo muito sobre cáries. Sobre como vem o bicho da cárie e come...
um pouco das crianças entenderem e de levar um susto, de pensar que tem sim bactérias dentro
da boca e que pode prejudicar.
E como é que eles reagem? Não ficam com medo?
Ah, tem uns que nossa! Que na outra consulta chega dizendo que viu o bicho da cárie.
Porque daí eu digo pra passar a unha e enxergar e que enquanto tem, tu passa a escova. E eles
são muito... criança é muito experta. Tu fala e ela entra na hora. Isso tem bastante da faculdade,
porque a gente fazia muito grupos de educação e saúde. A gente ia nas escolas fazer escovação e
daí falava sobre cárie. Levava bichinhos, levava coisas. Aqui eu tenho mais o individual, daí eu
uso as figuras que eu tenho. Mostro. (...) quando a gente fala das frutas, as crianças chegam em
casa dizendo pras mães comprarem frutas. (...) Eu vejo as crianças voltando com menos cárie às
vezes, menos placa sempre. Criança volta sempre com menos placa na segunda consulta, porque
elas ouvem muito assim. (...) O problema maior é com a alimentação, quando tu vês que passa
comendo bolacha recheada, certo que vai ter cárie. Eu fico “olha aqui uma cárie de bolacha
recheada”. (...) Adolescente é mais complicado, a gente tem que entrar com a coisa da
namorada, do namorado, de como está no colégio, de ter um cheirinho bom na boca e tal. De
eles se aceitarem também. De mostrar, aonde que está, como é que tu percebes e assim eu
consigo. (...) E com a mãe eu tento muito pensar sobre como que é a alimentação deles, porque
que ela põe sempre bolacha na frente deles, porque não uma fruta. Ela fala “ah, pois é, não é
barato”. Mas uma fruta é quase o mesmo preço, sabe? E tu botas frutas a vista deles, é mais
fácil deles comerem frutas. Mas é difícil, eles chegam aqui com bolachinha na mão.
Rosana envia sua mensagem pensando no destinatário. É marcante sua sensibilidade em
perceber a diferença do outro e buscar um modo de fazer a mensagem chegar: cárie de bolacha
recheada... cheirinho bom na boca... fruta é mais barato... Essas experiências do cotidiano de
trabalho têm hora e lugar para serem compartilhadas e problematizadas: o currículo integrado.
Rosana se refere a essas tardes como momentos de discussão muito importantes para que ela siga
em frente.
Ah, no currículo integrado a gente muitas coisas que... porque daí tu tem medicina e
as outras profissões, tem a residência médica e a residência multi discutindo coisas, geral assim,
de conceitos. E eu nunca pensava assim em conceitos. (...) A gente pensa muito sobre como é o
trabalho. Consegue enxergar assim uma coisa organizada. Antes eu nem tinha noção disso e
agora eu consigo pensar assim numa comunidade. Como que ela se organiza? Onde estão os
líderes? Onde tu consegues referências em saúde dentro daquela família? Ou seja, dentro de
uma família problemática, que parece que está tudo acabado, não tem mais nada pra fazer, mas
não. Tem alguém, ou tem um vizinho ou tem uma pessoa que está ligada a essa família, no caso
dentro do genograma a gente enxerga bem claro isso, que tem um vínculo forte de saúde, ou
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seja, uma pessoa em que eles confiam, uma pessoa que é bem colocada ali dentro e é vista como
uma pessoa que ajuda e que é nessa pessoa que tu vais botar todas as tuas fichas.
A dentista astronauta conta uma história de aprendizagem a partir da qual ela vem
constituindo um modo próprio de trabalhar. Fala do trabalho como aposta (colocar as fichas),
como brincadeira (foi um sarro), como descoberta (bah, como é que eu não pensei nisso antes?),
mas, sobretudo, como disposição ao encontro com o outro.
Eu escolhi ser dentista porque eu gostava da estética, eu queria que as pessoas se
sentissem bem, então às vezes fica muito fechado no miolinho. pra ti integrar tem que
ampliar. Eu acho que a integralidade é muito um pedaço, um pedaço não, uma forma de tu
conduzir os teus pensamentos, as tuas atitudes, o teu planejamento de forma que tu consiga
enxergar a pessoa ou o que tu estás buscando que tenha integralidade de forma que tu perceba
não só como tu vê, mas como ela quer.
O outro tem centralidade no universo da dentista astronauta. Os efeitos dessa tomada da
alteridade como eixo do fazer não é sem conseqüências para as ações no campo da saúde. A idéia
de integralidade, que Rosana vem construindo, é um exemplo disso. Para ela, integralidade é um
pedaço e não uma totalidade. É ainda um pedaço que diz respeito ao que a pessoa atendida quer e
ao que ela deseja.
Passado algum tempo, em nosso segundo encontro, Rosana me recebe com a frase Tu deu
sorte de me pegar na minha primeira semana de estágio fora. Parece bem disposta, se não com a
mudança de local de estágio (dois deles no Hospital Conceição e um no Cristo Redentor), pelo
menos com o fato de ter histórias diferentes para me contar. Com sorte, pergunto então pelas
mencionadas experiências fora da atenção básica. Rosana logo me conta que as coisas mudaram,
os locais de estágio são outros, mas que ela segue levantando a bandeira da integralidade. Uma
bandeira à qual a dentista residente confere uma significação bastante própria. A de que
integralidade é o pedaço que diz respeito à escuta de um pedido, de uma demanda, de um desejo
que vem do outro. Na primeira hora de estágio tu que o hospital não traz o que o paciente
tenta pedir.
Conta-me então sobre suas primeiras incursões pela atmosfera hospitalar e os primeiros
efeitos disso. No hospital, eu levei esse susto assim! Outro ar! Um susto! E é sobre esse susto que
versa a maior parte de nossa segunda entrevista. Ela, tentando construir uma narrativa que desse
conta desse encontro dissonante. Eu, compartilhando o susto com ela. Tudo o que ela havia
170
experimentado no universo da atenção básica entrava em choque com a realidade hospitalar.
Rosana tecia comparações e comparações entre os diferentes espaços e se perguntava pelas
possibilidades de produção de alguma ruptura na lógica totalitária e sem lugar para o sujeito que
a atenção em saúde, dentro do hospital, produzia.
Agora essa tempestade foi quando eu entrei no hospital e ver aquelas pessoas
querendo muitas coisas e elas conseguiam remédio, sei lá, alguma coisa assim... prescreve,
carimba e... Muito triste assim, muito triste mesmo. E mesmo adulto né, eu acho que em outros
casos também acontece muito isso, porque não tem muita escuta, tu tem uma consulta de cinco,
dez minutos no máximo. Não tem muito o que ouvir né. “Ah, com dor, não? Então, vai
embora.” (...) porque tu fala muito em nevralgia, em dor reflexa, em dor irradiada, que é dor de
tensão, dores que tão envolvidas com outras coisas que não é só a dor de dente. Bom, ansiedade,
não vai tratar com relaxante ansiedade.Tu vai ter que fazer yoga, vai ter que pensar no seu dia a
dia, enfim ter um acompanhamento, não uma coisa pontual de dar um relaxante e o cara
curado, ou fenitoína, amitriptilina. Muita medicação, essas pessoas se entupindo.
Em meio à tempestade, ao susto, Rosana conta uma cena. Chega um rapaz, acompanhado
do pai, com duas baita cáries. Alguém que, segundo a residente, deveria ter levado essa dor para
a Unidade Básica de Saúde.
Mas não “ah, mas vocês têm tudo aqui.” E num desses casos que o guri tava... tu via
aquele guri com treze anos, várias coisas, aquele guri não tava com dor de dente. E isso eu
consegui entender depois assim, depois de eu ter passado por aqui. Isso modificou o meu olhar
do ano passado pra agora assim. Eu cheguei e vi que o guri com os hormônios à flor da
pele, o pai que fala por ele. Um guri de treze anos que não fala por si? Por quê? E o guri
gordinho assim, recluso. E o pai falando “ah não, aqui vocês tem todos os recursos, por isso que
eu vim pra cá”. “Não meu amigo, o mesmo recurso que a gente tem aqui o senhor ia encontrar
na atenção básica”. Mas eu não podia intervir muito porque a preceptora que tava ali, a
gente observa, é um estágio observacional. A gente fica sentada na maca e ela fica na
mesa. É bem aquela coisa de consultório, a mesa, um e outro cá. E ela prescreveu e
mandou embora. e esse guri hein? O que que vai acontecer com ele daqui há, sei lá, dois
anos?
Angustiada com a forma de atendimento que ela testemunhava naquele início de estágio
hospitalar, Rosana começa a tentar intervir no rumo das coisas.
depois desse momento que eu tava mais angustiada eu tentava conversar com a
paciente. porque tava assim ó, eu aqui, tu como a dentista e ali o paciente. Eu de frente pra
preceptora e de costas para o paciente. Então pro paciente falar comigo ele tinha que se virar
pra trás. E muitos acabavam se virando pra mim porque eu perguntava “onde é que tu
estuda?” “Mas o que que tu faz durante o dia?” “Que horas que tu percebe que tu assim
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ruim?” “Ah, no fim do dia, não sei quê...” E tudo ela tentava ficar adivinhando. Ai que raiva
que eu tenho disso agora! Antes eu era ensinada a fazer isso “Ah não, tu tem que saber o que o
paciente tem.” Eu não tenho, eu tenho que ouvir dele. “Ah, mas então tu faz isso por isso e tu faz
isso por isso.” Não, eu quero ouvir dele. “Ta, mas que hora tu sente? E porque tu acha que tu
sente isso nessa hora?” “Ah, pois é doutora, a senhora que sabe.” “Não, mas eu quero saber de
ti.”
Se, na primeira entrevista, a jovem dentista falava de seu medo em escutar o que o
paciente tinha para dizer e ver-se diante da possibilidade de não saber o que fazer. Se ela vacilava
diante do imprevisível dizer do outro, agora não conseguia pensar que um atendimento em saúde
pudesse acontecer sem que esse dizer encontrasse lugar na cena. Não esperava mais que o saber
estivesse de seu lado e podia apostar na emergência de um saber do lado do sujeito. Em nosso
primeiro encontro, essa questão aparecia formulada teoricamente, mas nesse momento
emergia, com toda sua radicalidade, na cena clínica que a astronauta narrava. Aparecia na sua
irritação com a postura da dentista preceptora em colocar-se a adivinhar a dor e os pensamentos
do paciente. Aparecia no ato de convidar o mesmo a falar, mesmo que para isso tivesse que se
atravessar na consulta coordenada pela experiente dentista. Aparecia no virar-se para trás dos
pacientes que respondiam suas perguntas. Nesse virar-se, uma torção no espaço. Efeitos que as
palavras astronautas de Rosana, ao colocarem o lugar de saber a funcionar “ao contrário”,
produziam naquela tradicional e recorrente cena clínica.
Tinha um que “eu já to estragado doutora, to pronto, não preciso mais ficar nessa vida”.
Bah, o cara tri né... O que que aconteceu? Ele levou um baita tombaço. Ele nem lembra, ele teve
uma crise de síncope. Ele nem mesmo soube explicar, mas também nem deu tempo de explicar,
porque precisava dar um rumo naquilo. E tu via que era uma pessoa que... Ah, outra! Ela
começou com amitriptila. “Ah, não mais os três primeiros meses vai ser pra te passar essa dor
crônica.” “E depois doutora, até quando que eu vou ter que tomar?” “Ah, não, nós não
podemos te dizer se tu vai parar de tomar.” Como é que...? Putz! É um antidepressivo, sabe? E
disse “ah, isso aqui é um antidepressivo que tu vai tomar por um tempo e vai ter um tipo de
ação e depois vai ter outra.” E tu diz pra pessoa que ela nunca mais vai parar de tomar,
sabe? Como é que fica isso? Tu dizer pra ela que ela depressiva que ela vai ter que tomar um
remédio tri forte, pode criar dependência. Às vezes ela não tem noção disso também, né. Nesse
caso tu que não é a medicação que vai resolver. Tem que acompanhar, né. “Ah, não, mas eu
to no hospital, não vou poder acompanhar, então vou dar uma coisa que vai suprir.” Ou “ah, ele
vai dormir muito bem”. Tá, e aí? Que vida que ele vai ter? Dormindo dopado, sabe? Bah, eu saí
querendo botar uma bomba nos dois hospitais. Tava indignada! Daí eu chegava aqui... Foi
muito ruim assim, porque quarta-feira eu tinha que atender e eu vi assim muitos casos de que
o que eu tava fazendo aqui deveria ter sido pensado pra aquelas pessoas. Daí eu tava
estressadíssima e uma criança ficou nervosa... Bah, ela tava muito detonada! Uma criança que
não toma banho, que não tem nada de condições de vida em casa. E ela tava muito sofrida. A
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gente tinha muit problema em trabalhar com ela no grupo de crianças e aqui ela não, não
agüentou. Quis ir embora no meio do procedimento. E eu também tava “ahhh!” Bom,
baixou as bruxas más hoje! Teve mais crianças que também deram bronca nos outros dentistas
que também tavam atendendo. Eu disse “bom, hoje é o dia das bruxas más! Vamos deixar!” Mas
isso, sabe? Foi pesado. Na quarta eu ter passado por um monte de coisa e na quinta ter
atenção aqui, assistência... e também aparecia isso, aparecia outras coisas. E eu pensei “ah,
será que eu devia ter falado com ela?” Mas bah, foi uma semana pesadíssima!
Tempestade no hospital, bruxas más no consultório odontológico da UBS: afetações de
uma experiência de formação de uma jovem dentista, que, como ela mesmo definiu, optou por
sair de dentro do céu da boca.
A integralidade é possível se tu te propor a escutar o paciente, a entender que ele
inteiro ali, que ele tem demandas pra ti, tem demandas que tu consegue e tem outras que vai
precisar conversar com outras pessoas.
3.3.6 O Artista de Rua
Homero entrou na residência em saúde da família e comunidade, levado pelo desejo de
experimentar outros modos de trabalhar na área psi e disposto a problematizar a identidade do
psicólogo. Na verdade não tem uma única identidade. Acho que é isso que a gente tem que um
pouco transitar. Com a entrada no campo da atenção primária em saúde, no início da residência,
os primeiros efeitos desse transitar já se faziam sentir.
Um desconforto assim, porque (...) porque a gente não tem, ou eu não tinha muito, ou é
difícil trabalhar tendo por parâmetros o trabalho em equipe [...] o que eu assim vim sentindo
é que o psicólogo nesse lugar não trabalha sozinho. Ele não trabalha sozinho tentando resolver
as coisas ou esperando que cheguem as coisas, mas sim meio que circulando e fazendo com que
toda a equipe tome um pouco alguns papéis pra si. E às vezes vendo que às vezes a equipe
resolve melhor algumas coisas do que a tua presença. Acho que tem esse desconforto porque a
gente não está... Acho que no início eu esperava muito mais casos, casos, pacientes ou que eram
encaminhados ou que deveriam ser encaminhados. Como é que pode o médico estar
acompanhando alguns pacientes e não passar pra psicologia isso, pro psicólogo? Como pode as
pessoas identificarem coisas e não encaminhar? E que... achando que não. Isso é coisa minha,
isso é coisa de outra pessoa. E agora eu já estou me questionando mais sobre isso. Achando que
tem coisas que sim que acho que têm que ser vistas por alguém da psicologia, mas tem coisas
que não. E hoje acho que eu procuro muito mais estar vendo isso com as pessoas da equipe,
estar discutindo mais sobre isso com as pessoas da equipe. que o difícil, o desconforto é: de
que forma é? Como trabalhar dessa forma? [...] E essas coisas ainda são desconfortáveis,
173
porque não tem padrão ou não se tem muita clareza do que que é isso. Eu não tenho né. Mas
acho que na atenção primária tem que ser dessa forma.
Conta que tem transitado por lugares de desconforto. Vale a pena, para nossa discussão,
retomarmos alguns deles. Vamos a eles:
1) Na atenção primária, não se trabalha sozinho, nem tentando resolver as coisas, nem
esperando que cheguem as coisas. É preciso circular disposto ao encontro com o outro. Para
Homero, a lógica da clínica clássica, centrada no saber de um profissional que, se não pode dar
conta da situação, encaminha, não funciona na atenção básica. Trata-se antes de um fazer onde
está presente o “mais de um”, que põe em cena uma clínica entre vários profissionais.
2) Fazer com que a equipe tome os papéis pra si. Homero pensa que faz parte do trabalho
a escuta e a intervenção na própria equipe. Nesse sentido, não apenas o usuário estaria em
questão no que diz respeito às ações de saúde, mas também a equipe e o laço que esta estabelece
com aquele. Assim, caberia ao profissional, desde a perspectiva que Homero nos aponta,
convocar o outro a entrar em cena e assumir papéis.
3) Ver que, às vezes, a equipe resolve melhor as coisas sem tua presença. Em outras
palavras, poder sentir e reconhecer que o próprio saber tem um limite. Esse item, que situamos
como o ponto 3 dos lugares de desconforto experimentados por Homero, relaciona-se com o
primeiro, na medida em que ambos apontam para as fraturas dos saberes. Porém aqui a ênfase
recai sobre algo diferente de um não poder sozinho e precisar da presença do outro. O que está
em questão é um dar-se conta da dispensabilidade da própria presença e do próprio saber em
determinados momentos. Homero alerta ainda que isso que parece muito simples na teoria pode
não o ser na prática.
De que forma lidar com estes desconfortos? De que forma a partir deles constituir um
modo de trabalhar em saúde? De que forma produzir um fazer mais nômade? Um fazer que não
fixe uma identidade aprisionadora? De que forma se não um padrão? Ele se pergunta.
Experimentar e ultrapassar esses três pontos de desconforto exige um descentramento de si
mesmo. Do contrário, nem desconforto, nem perguntas, nem...
Eu estava lembrando agora que eu te falava de uma paciente de ontem assim. Chegou a
agente comunitária relatando o caso né, que a irmã dessa pessoa, dessa paciente disse que...
relatando assim que ela não estava conseguindo dormir, estava... gritava à noite, chorava muito
durante o dia e a irmã dessa paciente dizendo que ela escutava vozes. As vozes indicavam pra
174
ela fazer coisas. Ela me descrevendo um quadro de psicose, crise. Que isso era do passado, que
ela já tinha feito um tratamento, meio que resolveu, mas que agora estava retornando de novo. E
como isso é diferente assim... do trabalhar dessa forma. Porque isso foi numa VD. Isso não foi...
não foi buscar o serviço, não foi bater lá na porta “ah, quero agendar uma consulta”. E aí eu fui
junto com essa agente comunitária pra ver melhor assim o que aconteceu. E se aproximando
dessa pessoa, claro, ela traz a tona a situação dela, mas traz outras informações né... Por
exemplo, ela não observa os problemas que a irmã observava, mas ela ia dizendo algumas
coisas. Que ela não estava conseguindo dormir à noite, chorava durante o dia, mas referindo
com relação às vozes, que ela escutava no passado, isso não acontece mais e trazendo assim que
não ia buscar... contradições né... que ela não ia buscar o posto porque o posto não tinha como
ajudar ela, ajudou como deveria ajudar. E ela tinha sido encaminhada... ela buscou a
ginecologia do hospital aqui e aí... o que ela traz assim essa pessoa é que a ginecologista retirou
todas as medicações dela, porque ela não precisava mais da medicação, que isso que ela estava
sentindo era coisa que toda mulher sentia. Então... E eu estou te trazendo isso porque no
prontuário dela tinha um contato que ela teve com a enfermeira do posto, que a paciente
referia como se ela também fosse ginecologista e estivesse no posto. E o que me pareceu
conversando com ela né, naquele momento, foi que assim a presença de um psicólogo lá não tem
sentido nenhum porque ela está muito mais interessada com essas coisas de mulher da
ginecologista.
...nem invenção.
A experiência de Homero na escuta da moça que não foi bater na porta do posto para
pedir consulta parece que lhe mostrou algumas possibilidades. De que forma? Saindo do lugar
de “resolver as coisas” ou de “isso é comigo”. Escutar o sujeito, buscando saber a quem, ou a
que outro, ele se endereça é uma forma. Ela estava muito mais interessada com essas coisas de
mulher, da ginecologista, do que a ginecologista disse, do que é importante, do que é ser uma
mulher e o que que sente uma mulher, que as mulheres choram. Aquilo não era comigo. Aquilo
era com a ginecologista. Chama a atenção o modo como se produz uma escuta sensível à
possibilidade de um endereçamento. Homero preserva isso, sustentando esse outro que a paciente
nomeia: a ginecologista”. O que menos importa é que a ginecologista não é ginecologista, mas
enfermeira. É com ela que a paciente tem algo pendente.
Uma tal escuta apenas é possível se o profissional renuncia o lugar de grande outro, a
quem tudo diz respeito, suportando não estar no papel principal e se disponibilizando a fazer
aparições coadjuvantes, porém não menos decisivas para o desfecho da história. A Laura pode
trabalhar muito mais esse retorno dela pra ver essa questão da medicação, as coisas que não
estão bem com ela agora do que eu. E eu acho que é essa ligação que eu vou fazer, essa
relação. Então, agendar um horário, conversar com a paciente disso que a gente esteve
conversando, das coisas que ficaram pendentes com a ginecologista lá do posto né, que foi como
175
ela referiu, pra que ela possa voltar... Por fim, estar atento ao tempo de entrar em cena e fazê-lo
no momento oportuno, não se isentando da responsabilidade é importante. Posteriormente, essa
pessoa, essa mulher, se começar a se indagar sobre algumas coisas ou se quiser falar sobre isso
ela pode chegar...
Mesmo que nosso residente consiga narrar algumas formas de transformar o desconforto
em possibilidades de trabalho, a questão lhe segue nebulosa. Mas algumas questões vão ficando
claras...
...o que fica mais claro é que quando tu não está numa equipe de saúde... o fato de estar
numa equipe de saúde mostra que tem várias necessidades de saúde, né, uma determinada
pessoa. E isso parece que fica mais claro o fato de que, que é óbvio, mas que às vezes não se
tem. Quando se está fora de uma equipe de saúde tu achas que o teu fazer conta de várias
coisas e que não é assim. Eu acho que é importante eu saber que tem essas outras coisas todas e
que a equipe também está vendo isso. Então pra meio que compartilhar o cuidado. E que
aquela pessoa também tem contato com outras pessoas da equipe e fora da equipe e que isso
também contribui pro seu estado de saúde. Que não é a tua função. Que o teu fazer não é
ilimitado, que tu não pode fazer tudo.
Uma equipe multiprofissional daria visibilidade às necessidades de saúde de várias ordens
que um indivíduo possui. Estar numa equipe faria então com que o profissional lembrasse, a todo
o momento, que algo fora da sua alçada, algo que ele desconhece, o que coloca em cena a
parcialidade dos saberes e das posições desde onde operar o cuidado. Nesse sentido se criariam
as condições para um compartilhamento do cuidado: outra possível reposta à pergunta que
Homero se faz no início da entrevista. Aqui, ele nos aponta algo interessante: se alguma medida
de alteridade se coloca, um compartilhar torna-se possível. Porém será que a consideração da
alteridade das várias profissões numa equipe de saúde bastaria para produção de modos menos
normativos de trabalho em saúde?
Eu acho que tem assim um paradigma bem claro definido que é o biomédico, a questão
biológica, corporal, pontual e tem alguém que sabe como é que tem que ser, alguém que
conhece, alguém que que prescreve, alguém que diz o que tem que ser feito. tem um outro
assim que é o que se tenta trabalhar que é o da co-responsabilidade, do procurar criar
autonomia, do procurar construir junto com a pessoa, que é o que se procura, que é o que se
tenta, mas muitas vezes eu vejo cair sempre no paradigma dominante, que é o que está mais forte
enraizado, que é o da tutela. “Nós sabemos o que tem que ser feito, faça como eu digo, tem que
ser assim se não não dá.” [...] E eu estava me lembrando... no trabalho em equipe às vezes
isso acontece também. Na hora de pensar ou na hora de dialogar a partir disso, isso também
predomina entre a equipe “não, as coisas tem que ser assim, tem que fazer isso, isso e isso”. O
176
que às vezes dificulta o ouvir a comunidade, dificulta planejar junto, dificulta construir as coisas
em conjunto. O que eu observo é que sempre tem uma tentativa pra que isso seja feito dessa
forma, mas que às vezes acaba caindo né pra esta postura de autoridade, autoritária, de que tem
alguém que sabe.
Mesmo tratando-se de uma equipe multiprofissional, muitos momentos de trabalho
acabam produzindo intervenções normativas, baseadas num saber a priori, que institui um dever:
tanto do lado do usuário, quanto do lado do profissional e da equipe. Impera o “ter que”, de que
nos falava a Alquimista. Nessa equipe, narrada por Homero, o saber está no centro, e as
profissões se unem não para compartilhar a partir de seus limites, mas para se colocarem como
bloco de saber total. Nesse sentido, uma equipe multiprofissional não seria garantia da produção
de modos de trabalhar não normativos, que dessem lugar ao usuário como sujeito, ou seja, a co-
responsabilidade de que Homero nos falava. O que então daria condições para que algo dessa se
produzisse?
Anteriormente, Homero falou-nos de uma equipe onde a alteridade não diria respeito
apenas à presença das outras profissões, mas também à consideração daquilo que fica fora da
alçada da equipe, fora do Sistema de Saúde, e que também opera como produtor de cuidados.
Aquela pessoa também tem contato com outras pessoas da equipe e fora da equipe e isso
também contribui pro seu estado de saúde. Como se a vida fora furasse o sistema todo
poderoso dos saberes e práticas em saúde. Nesse sentido, as possibilidades de cuidado, as
respostas para os pedidos de ajuda, de cura, de tratamento, não estariam apenas num sistema
fechado constituído a partir de uma acumulação de conhecimentos e técnicas, mas na escuta da
singularidade. Uma equipe que lugar ao sujeito em sua singularidade colocaria a alteridade, e
não o saber, em seu centro. Esta posição traz algumas conseqüências.
O objetivo do grupo é a questão da... trabalhar com as crianças o lúdico, o brincar em si
né. E aí trazendo pra questões de aprendizagem, a questão de saúde, mas não é o foco principal,
é mais a questão do lúdico assim. Esse espaço de socialização entre elas. (...) Às vezes é difícil
pras pessoas que estão coordenando sustentar, porque também é um trabalho diferente, é um
trabalho que exige uma certa flexibilidade, muita flexibilidade. Não tem uma estrutura definida
então cansa um pouco né. (...) Poder usar o lúdico pra expressar coisas e estar... Então eu acho
que é importante manter né, mesmo que a gente fique nesse lugar desconfortável das coisas que
acontecem. A gente nunca sabe que vai acontecer. É, isso é bom assim. O que é difícil é nunca,
às vezes a gente tem a sensação de que teria que estar mais previsto algumas coisas. Ter uma
forma de se preparar pra certas coisas que vão acontecer, mas não tem como, então a gente se
lança assim... “vamos ver o que que vai dar hoje.” (risos) O fato de a gente levar alguma coisa
177
pronta... Pode ser que a gente leve e que elas não queiram fazer nada daquilo assim. Mas a
gente pode criar junto.
É um fazer com um componente de imprevisibilidade grande...
Sim, muito grande. (risos) (...) Mas a estrutura pode aparecer aí, não tem como
estruturar previamente, mas tem uma estrutura, tem um modo. Tem que suportar o início que
não tem como planejar coisas, até a gente planeja, organiza, mas na hora é tudo diferente...
Homero vai trazendo, em seu relato, as tais formas, pelas quais ele se perguntava no
início. Em seu estilo de trabalho, opera uma temporalidade que se diferencia dos tempos
instituídos de trabalho burocratizado. lugar para o imprevisível, para a diferença entre o
planejado e o ocorrido, para que a estrutura apareça a posteriori, para a repetição criadora do
lúdico. Há um lançar-se no tempo.
teve aquela situação do paciente, que não está bem clara a estrutura, se é perverso ou
psicótico, que conta que teve um relacionamento com o sobrinho. O quanto é complicado eu
estar fazendo algumas coisas com ele, porque ele está vindo pra trabalhar... pra contar, pra ver
algumas coisas, tem o alcoolismo, tem o quanto ele também não consegue manter
relacionamentos com pessoas. E eu não tenho como estar interferindo nisso e dizer “então eu
vou te denunciar ao conselho tutelar”. “Vou te denunciar e tu não vai poder seguir aqui comigo,
porque...”, mastem pessoas da equipe que podem fazer isso. (...) Então tem toda uma história
conturbada, mas não sou eu que vou dizer se ele pode ou não ficar com a filha dele. E ele
conta que se envolveu, que está gostando do sobrinho dele, mas que agora... que teve uma
relação com ele. (...) Claro, não pode ser assim, mas nesse lugar é difícil de eu estar... Tem
coisas que é importante que algumas pessoas façam e outras não façam né. Esse caso está ainda
espinhoso, porque ele desaparece e ele volta. Agora ele desapareceu. (...) ...até agora eu não
sei o que eu faço. A gente vem discutindo direto com o psicólogo e com a assistente social. E
como choque isso, porque eu entendo o que o psicólogo fala, eu entendo o que a assistente
social fala, eu tenho a minha preocupação também com esse adolescente, mas a gente não
conseguiu avançar ainda em algumas coisas.
Há, nessa cena, um dilema. Um certo tensionamento de lugares: o terapeuta do homem
que está tendo um relacionamento com o sobrinho versus o profissional de saúde. Daí decorrem
muitas perguntas: seguir a escuta e deixar que outro profissional se encarregue da denúncia?
Seguir a orientação do psicólogo ou da assistente social? Encarregar-se da denúncia e encerrar a
terapia? Que haja posições divergentes em relação ao mesmo tema na equipe é interessante, pois
espaço para a pergunta, espaço para o dilema. É um bom começo. Como dar
178
encaminhamento à situação é que são elas. Em outra cena Homero nos narra seu impasse em
relação à notificação de um caso de HIV. Uma moça, sua paciente, não quer procurar seu ex-
marido que a infectou para que ele assuma isso e notifique sua doença. Homero, como
profissional de saúde, deveria orientá-la a fazê-lo. E como terapeuta da moça? Tratam-se de
situações em que as diretrizes de saúde contrastam com a escuta da subjetividade. Será que o
trabalho na atenção básica convoca o profissional de saúde mental a experimentar, algumas
vezes, um dilema que se poderia formular como: a escuta do sujeito versus o cumprimento da
norma de saúde?
Depende do modelo de atenção básica, porque eu acho que uma coisa é o acompanhar.
O que tensiona é o dever ou não. “Deve ser assim”. “Tem que ser dessa forma”. “Tu precisas
fazer isso”. Isso que tensiona, que é esse ideal assim. “Não, essa situação não é uma situação
adequada pela saúde, nós somos profissionais de saúde, sabemos... Então se tu continuar assim,
não dá. Tem que ser assim.” Agora enquanto acompanhar e poder estar junto, observando essa
situação, e procurando intervir nas possibilidades que vai se abrindo, é uma possibilidade.
Agora tu ter o ideal lá em cima e a todo momento ter que chegar àquele ideal lá em cima, parece
que é uma situação impossível, né. Mas a escuta é possível, que pra ti escutar tu tem que
esquecer um pouco os ideais. (...) Acho que um dos únicos “deve ser” é sair disso, sair desse
ideal que deve ser atingido e tentar pelo menos acompanhar e estabelecer aí o que que é possível
ou não. Claro que tem todas as questões de saúde envolvidas, mas as pessoas morrem também e
vão continuar morrendo... exagerando muito né. A gente não vai poder... tem coisas que nós não
podemos fazer. Que coisas é possível produzir pra que a pessoa possa também perceber a
situação em que está e tomar alguns cuidados quanto a isso. Mas o tensionamento que tem é sair
desse lugar de “eu sei o que que tem que fazer”.
Sair do lugar?
Uma cena em especial? (...) Não sei, me chamou a atenção esse processo que a gente
está vivendo essa semana na unidade. (...) Nesse período agora, que a unidade está
fechada,porque está em obras, outras atividades estão podendo ser feitas e até alguns
atendimentos não no posto, na própria casa das pessoas, que é possível muitas situações e que
eu não sei porque que não é feito. Porque às vezes eu acho que isso fica um distanciamento da
equipe com a comunidade e fica um distanciamento entre a equipe também. (...) A gente foi fazer
uma abordagem com uma família que a gente recebeu o relato da escola, foi um trabalho da
área de vigilância, daquele grupo que a gente se reúne, discute o caso e pensa estratégias de
intervenção. (... )E a gente chega e, sei lá, não é tudo isso assim que a escola traz ou na
escola ele é assim, mas ele não está assim. Eu imaginei que ia ser muito difícil se aproximar
desse menino. Ele foi abandonado pela mãe, ele passou a ser cuidado pela mãe das meia irmãs
dele. Então ele foi sofrendo abandonos, vários abandonos. O pai faleceu, a mãe que passou a
cuidar dele, mãe também das irmãs, faleceu. E as irmãs também não querem ficar com ele,
dizem elas que nunca quiseram ficar com ele. E a situação extrema de a pessoa que é
179
responsável por ele dizer que às vezes tem vontade de matar ele, que se ela pudesse ela mataria
ele. Essas coisas estão acontecendo, mas o quanto a nossa presença acho que vai servir de
suporte pra esse menino, que na escola parece que não está sendo possível ele ter um suporte
na escola com a professora. (...) E aí ele estava muito curioso pra saber o que que a gente estava
conversando dentro, a agente comunitária ficou brincando com eles fora, mas eles
começaram a entrar, foram entrando e aí... eu também encerrei a conversa, deixei outras
pessoas lá dentro e fuifora com eles, porque eles pegaram uma bola pra jogar. Ele, o menino
de onze anos, e a prima dele de dez anos e foram possíveis algumas coisas. consegui
agendar um horário com ele, ele topou me contar essas coisas que acontecem na escola. Ele
foi brincando com essas coisas que acontecem lá, dizendo que ele incomoda mesmo, mas daí tem
outro menino que incomoda e ele não muito problema nisso. E a prima dele estuda na
mesma sala que ele, também pode fazer parceria com ele pra poder ajudar nessas coisas que
acontecem na escola. E aí elefoi mostrando que sabe jogar futebol, que ele ensinou a prima a
jogar. (...) É que às vezes as coisas acontecem... Aconteceria também no consultório, mas que
essa coisa confinada eu acho que... não em espaço, mas do profissional, né, às vezes não ter
possibilidade de abrir, ver outras coisas. (...) Por isso que é bom que o posto está fechado...
Como sair do confinamento? Confinamento de olhar, de pensamento. Com o posto
fechado a rua pede passagem...
No segundo encontro, a seis meses da primeira entrevista, Homero começa por contar-me
que algumas das suas rotinas mudaram. Nas atividades teóricas, seguem os seminários do
currículo integrado, nos quais as discussões têm versado sobre as ações programáticas em saúde:
programa de saúde da mulher, programa da gestante, programa da criança. As maiores
mudanças ocorreram nos estágios. Eu acho que na primeira entrevista, eu não tinha passado por
um estágio que é o De Volta pra Casa
41
. agora esse primeiro semestre eu to fazendo um
estágio num serviço secundário, na atenção secundária, que é um CAPS.
Como tem sido a estada no CAPS?
Meu estágio é com morador de rua, com louco morador de rua. Tá sendo bem bom assim,
muito difícil, mas pra dar uma virada em muitas coisas, bem interessante. Então a gente tem
contato com o PSF sem domicílio, mas é muito mais com a equipe do CAIS. (...) A proposta é
trabalhar com situações invisíveis pro serviço de saúde. Porque o morador de rua, ele não é
visível e o louco de rua é mais invisível ainda.
Como é que tem sido essa experiência de rua e do invisível?
41
Neste estágio, os residentes participam de uma equipe multiprofissional responsável por planejar o pós-alta
hospitalar de crianças, referenciando-as aos serviços de atenção básica, bem como realizando outras ações de
cuidado que se julguem necessárias.
180
O contar eu acho que eu vou ficar muito impactado com isso porque tem sido muito
impactante. (Silêncio) O que é mais difícil assim é se deparar com a morte assim, isso é o mais
difícil. (Silêncio) Que até então a gente questões da morte enquanto sofrimento, enquanto...
não tão real assim e na rua fica muito... E aí eu fico muito impactado por algumas situações, por
exemplo, de uma moradora de rua, psicótica, que se tem tentado vínculo com ela sem muito
sucesso e se faz algumas ações, mas se perde, porque também os serviços não tão
estruturados ou também não têm um olhar pra atender. O serviço tem, mas o serviço de
precisa de uma rede que em Porto Alegre meio difícil. E fica uma situação... Uma cena... A
moradora de rua com uma toca na cabeça de bicho. Psicótica, circulando pela praça, com um
buraco de, sei lá, quatro dedos de profundidade, uma toca cheia de bicho. E aí circulando sem...
completamente autista, fechada. É possível fazer uma abordagem, a agente comunitária
conseguiu, nós conseguimos acionar a Brigada, a SAMU. Não foi necessário, ela entrou sozinha.
Se montou todo um aparato pra auxiliar a agente comunitária, ela circulando com aquela
pessoa, numa rua movimentada, no meio da praça. E aconteceu, mas aí vai num outro serviço, o
serviço entende que não, que ela tem que ir num outro lugar primeiro tratar daquilo pra depois
ver uma medicação que ajudar a conter ela também, um antipsicótico, uma coisa assim.
tem visões diferentes, tem “não, não é aqui, tem que ir pra outro lugar”, ou é a visão de
que tem que trancar ela, confinar, sem pensar depois ou largar tudo. (...) Então isso incomoda,
incomoda muito. Ela precisaria de uma internação, teria que ter uma internação. E teria que
pensar alguma coisa depois da internação, mas não tem né. Isso incomoda muito.
Nessa clínica a céu aberto, Homero, que desde o início se dispusera a transitar pelo
desconforto, talvez estivesse encontrando os impasses mais intensos de sua experiência de
formação. A dor invisível da rua, sem nome, nem endereço: corpo toca cheia de bicho no meio
da praça. Fez-se uma narrativa de silêncios e olhos cheios de água.
Que não cabe em nenhum lugar. na rua, solta, espalhada... Nenhum lugar cabe,
nenhum serviço consegue oferecer lugar. (...) É, e quando é possível tem que ter nome, RG, CPF,
nome do pai e da mãe, data de nascimento. Então é o que a gente se depara né. (Risos) É, então
a gente pega a Edite, que não sabemos se é esse o nome dela mesmo e vamos fazer um RG
pra ela. (...) Tem que comunicar a perda de documento... Acionar o Ministério Público...
Homero demonstrava sua indignação com os entraves da burocracia pelo riso, que logo
deu lugar à outra lembrança dolorosa.
logo na segunda semana eu presenciei um suicídio também. É presenciar entre
aspas, porque teve... A gente tava no serviço daí chegou esse morador de rua, que nós não
conhecemos, e foi se despedir. E no momento não... tentamos se aproximar dele, tentar ver o
que tava acontecendo com ele. Ele não queria ver nada disso, queria comunicar, não quis
falar mais nada. As únicas coisas que ele falava era enquanto certeza, enquanto decisão tomada,
que era isso que ele ia fazer. Aí ele... Não tinha como segurar ele lá. Ele seguiu e aí a gente já se
organizou pra em seguida ir pro lugar em que ele costuma ficar ou pro lugar onde conhecem
ele. Nós não conhecíamos, mas a equipe conhecia. A equipe ficou preocupada, do serviço.
181
Mas nós saímos, tinha engarrafamento, o trânsito tava complicado. E nós passamos e
vimos que tinha um atropelamento e que aí era ele. Daí fomos reconhecer o corpo, alguém tinha
que fazer isso. (Silêncio)
Uma última possibilidade: presenciar entre aspas a morte e reconhecer o corpo. Corpo
de um homem que, cheio de certeza, foi se despedir e que na morte se fez visível. É muito difícil
trabalhar com isso, dizia Homero, que reagia aos próprios silêncios colocando em questão a
organização da rede municipal de saúde.
E pensando como é que tão organizados os serviços, os serviços não tão organizados
pra receber, pra atender, pras emergências que tem. Então fica difícil, acho que um pouco
enquanto conhecimento, nas equipes, né, com as pessoas, mas também serviço, porque não tem
serviços. Não tem serviços substitutivos, não tem... hospital pra emergência é o PAM 3, que
agora tá fechado. Então isso incomoda muito. E aí tem o plano de saúde mental de Porto Alegre,
que bem escrito, diz as coisas que tem que ter, mas não tem né. Tinha um prazo, que acho
que era esse ano, mas não tem nada. Previa os CAPS, tinha os CAPS, tinha equipe de saúde
mental em cada distrito, que é o mínimo do mínimo, do mínimo e que não tem. Não foi
organizado. E se sabe das disputas políticas que tem, do quanto se montou um plano pra
também acho que não sair do papel, enfim. (Silêncio)
É um trabalho em que se lida com muitas impossibilidades...
Mas que é possível que se o que se produz também, se pessoas que não tinham
nenhum vínculo com ninguém e o quanto que se começa a ter vínculos e se começa a retomar
minimamente a sua vida ou ter a sua vida, tanto no CAIS, abrigos, albergues, pensões pagas. Se
consegue o benefício, a pessoa consegue. Acho que pra alguns é da ordem do impossível porque
não tem rede, porque a rede não sustenta. (...) Mas o interessante desse... que eu comecei em
março, passou dois meses né... esse acompanhar essas situações de rua e também acompanhar o
que uma equipe de saúde mental consegue fazer com as pessoas que tão na rua, também
mostram possibilidades de trabalho. O contato com o abrigo, montar um plano terapêutico, mas
também mostra um outro modo de trabalhar que não é... que acho que é mais comprometido
né, mais engajado. Porque... não sei bem... a gente um horário e tu vem, se tu não vem eu
vou pensar que é resistência e não vou mais te ligar e eu não sei o que aconteceu contigo né.
É de outra pessoa que a gente tá falando.
Se as impossibilidades eram muitas, por outro lado, havia também o que fosse possível.
Via inserção em espaços de problematização acerca da saúde pública o que Homero tem
procurado realizar, participando de uma comissão de discussão de políticas públicas no CRP/07 e
de reuniões no Conselho Municipal de Saúde – ou pelo engajamento num fazer clínico que aposta
na emergência de um sujeito, Homero visibilizava possibilidades.
182
tem um morador de rua que a gente acompanha na segunda de manhã e a gente ta
conseguindo assim... Acho que ele tem nos esperado já, na rua. Então é uma outra relação
que a gente ta conseguindo ter com ele, né. Depois que a gente sai de lá ele segue as caminhadas
dele, mas pelo menos ele nos espera. E a gente tem tentado inventar coisas com ele né. Levar
rádio pra escutar, porque isso é uma coisa que ele dizia. (...) É da música ele dizia muito do som,
falava... viajava um monte assim, música clássica. Começou com um jornal né. A gente sempre
levava um jornal pra ele. Então ele pega um jornal e fica lendo e nessa leitura ele fica
viajando em tudo quanto é coisa. E um dia ele ficou falando em música clássica e não sei
quê... falando um monte. Daí então vamos tentar um rádio. Falamos do rádio. Daí ele disse
“ah, faz tempo que eu não escuto...” Ele chegou a dizer que fazia tempo que ele não escutava
música, então “bom, vamos tentar aí”. E a gente conseguiu ver um dia a escrita dele, uma
escrita maluca pra mim. Pegamos um dia ele fazendo conta. “Dez gramas, vinte gramas, trinta
gramas, mil gramas.” Mas ele vai dando abertura né. essa abertura que ele acho que
tem muita coisa que dá pra fazer. O difícil é daí trabalhar, tentando, sempre tateando. (...) E aí a
gente leva música pra escutar com ele e conseguimos tirar uma foto dele já. Isso acho que fez um
efeito bom pra ele, ele conseguiu se ver, se reconheceu, não sabe o nome dele ainda mas...
vamos ver o que que sai daí né. (...) A gente chegou com a máquina, a gente explicou pra ele que
a gente gostaria de tirar uma foto dele, que ele poderia tirar foto das coisas que ele gostaria. Ele
não disse que sim nem que não. Não mostrou nada de “não não façam isso”. nós tiramos a
foto com a câmera digital e eu mostrei pra ele. ele olhou assim, não entendeu muito. eu
tirei uma foto da outra pessoa que me acompanha e também acompanha isso e conhecia ele
meio ano mais que eu, mas que também a gente não tava conseguindo acessar ainda ele, né.
Então tirei uma foto dela, mostrei a foto pra ele. Ele viu que era a ela. Aí ele já meio que quis
brincar com isso. ele quis ver como é que funcionava. ele associou com televisão. ele
olhava a foto dele e mexia os braços assim... “Não, parado”. Daí eu “tá parado, é uma
foto, não é uma televisão, é como se fosse”. E aí, a princípio ele se estranhou, ele disse “não, a
barba ali não”. Mas depois ele começou a ver que era ele. Mas nós “E o teu nome?”
“Não lembro”. (...) Então tá indo por aí. Imprimimos a foto, ele não quis ficar com a foto. Segue
por né. com a música, ele escuta a música, tem falado do balanço, do sentido do som, o
sentido do samba... Ele segue com o discurso dele, tem falado em dançar, fica se balançando.
Mas aí ele, a marca do radio é “live star” e aí ele diz que é “Livre Estar”. Então ele não sai daí,
a gente propondo algum passeio, algum lugar que ele queira ir. Tomar uma coca-cola, que é
uma coisa que ele diz, né. Tomar uma coca-cola, soltar pipa. Quem sabe? Mas é “Livre Estar”.
Nesse transitar, desejo de um jovem psicólogo que apareceu desde a primeira entrevista,
a rua e seus invisíveis têm lhe mostrado possibilidades de trabalho. Possibilidades de uma clínica
de música, de balanço, de som, de “live star”, coca-cola e pipa. Uma clínica de rua e de
invenção.
Por mim eu iria todo dia lá. Isso funciona assim. A gente que efeito, mas... tem um
limite também nosso. Mas a gente tem tentado inventar coisas com ele.
183
4. PERCURSOS REVISITADOS
Para pensar as possibilidades de produção de novos modos de trabalhar em saúde mental a
partir da configuração de dispositivos multiprofissionais de formação, construímos um
pensamento, à primeira vista, em três planos: história, experiência e ética. Entretanto, uma leitura
atenta dos capítulos anteriores permitirá ao leitor perceber que, em cada um deles, as três
dimensões estiveram presentes, embora apenas uma delas estivesse em relevo. Do encontro entre
história e experiência, surgiu a pergunta pelos modos de relação à alteridade presentes no campo
de formação e trabalho dos profissionais de saúde. Construímos a idéia de que a inscrição da
loucura no campo da doença mental teria operado no sentido da domesticação da alteridade, na
medida em que essa nomeação retirou da experiência da loucura sua condição de enigma.
Também afirmamos essa espécie de captura em relação à identificação do sujeito à unidade bio-
184
psico-social, bem como à concepção da formação em saúde como processo apenas de aquisição
de habilidades técnicas. Apontamos aí para a replicação do lugar de objeto no campo da atenção e
no campo da formação, sublinhando que os efeitos normalizantes incidiram em pacientes e
profissionais (FOUCAULT, 2004).
Desse modo, se através da história interrogamos o lugar de especialista do profissional de
saúde, posição de falsa soberania; discutindo as condições da experiência, propusemos que a
constituição de uma posição singular desde onde trabalhar poderia retirar o profissional do lugar
de objeto, em que é mero reprodutor de algo que não lhe implica como sujeito. Trabalhando o
unheimlich freudiano ([1919] 2003) e a hospitalidade de Derrida (2003) situamos o lugar de
produção do sujeito numa zona de fronteira, em que se conjugam o estranho e o familiar, o
anfitrião e o estrangeiro. Ali onde, do encontro com o outro, uma apropriação poderia emergir.
Essa qualidade de apropriação seria possível na consideração da alteridade e, desde então,
soberania alguma se sustentaria. Daí a diante jogamos com a hipótese de que a construção de um
modo singular de trabalhar em saúde e a produção de um lugar de sujeito para a pessoa atendida
estariam intimamente relacionadas. Apenas a tomada do outro como enigma, poderia reverberar
em uma posição singular desde onde escutá-lo.
Na articulação entre história e ética, o ponto de pergunta se fez em relação aos efeitos
moralizantes da promoção da vida biológica ao estatuto de bem supremo do homem (ARENDT,
[1958] 2005 e LACAN, [1959-60] 1997). As ciências da saúde estariam então a serviço da
manutenção da vida e da promoção dos modos adequados de se relacionar com ela. A colocação
das normas de saúde no lugar do bem e deste como ideal ordenador (LACAN, [1959-60] 1997)
dos modos de trabalhar em saúde teria sido um dos modos de apresentação do movimento que fez
do espaço social lugar de desdobramento das questões de sobrevivência. Sobre a esfera social
destacamos que seria um campo de produção de homogeneidades mais do que do exercício das
diferenças. Por outro lado, a esfera pública seria o espaço em que as ações produziriam as
distinções entre os homens, terreno habitado por um espírito, largamente, agonístico (ARENDT,
[1958] 2005). Pensando com Lacan as relações entre a ética e o trágico, sublinhamos que esse
espírito agonístico diria respeito à própria relação do homem consigo mesmo. Desse modo, a
ação, na sua dimensão trágica, colocaria em relevo a desmedida, a hybris, o desconhecimento
como próprios do humano. E, nesse sentido, uma ação que buscasse inscrever a diferença não
poderia partir do conhecimento a priori como garantia do encontro com o bem (ou da promoção
185
do bem), mas apenas de uma posição singular no laço ao Outro, de onde o saber apareceria como
efeito.
Nesse ponto, a pergunta se constituiu em torno de como introduzir a possibilidade do
exercício da diferença no campo da atenção e da formação em saúde. Ou ainda, de como fazer
desse terreno um lugar semelhante ao espaço público de que nos falou Hannah Arendt, onde os
homens são iguais na diferença e não nos comportamentos. Dito de outro modo, a pergunta recaiu
sobre as possibilidades de introdução da dimensão trágica da existência (LACAN, [1959-60]
1997) no universo de produção das ações terapêuticas. Desde então, construímos a hipótese de
que a configuração de um espaço de compartilhamento das diferenças nas ações de cuidado
poderia potencializar a produção de modos singulares de trabalhar em saúde. Nesse
compartilhamento, entraria em cena tanto a dimensão estrangeira do outro, quanto sua face de
alteridade absoluta (DERRIDA, 2003). Assim, compartilhar implicaria, de um lado, consensuar
sentidos e estabelecer contratos (dimensão simbólica) e, de outro, dar lugar àquilo que não entra
no registro do sentido (dimensão real) (LACAN, [1959-60] 1997).
Buscamos também na noção de cuidado à existência (TENÓRIO, 2001), trazida pelas
reformas mais recentes no campo da saúde, uma saída para a questão da introdução do exercício
da diferença nos espaços de formação e de atenção. Porém, discutimos o paradoxo que a
definição de existência como objeto da ação terapêutica coloca em cena. Por um lado, a
existência como foco da atenção poderia apontar para a insuficiência da técnica no que diz
respeito ao ato terapêutico, mas, por outro, correria o risco de inflar o ideal, pela criação de
formas ainda mais amplas de normalização da vida. Isso na medida em que a existência fosse
inscrita no campo dos fenômenos apreensíveis pela racionalidade científica. A idéia totalitária da
atenção ao indivíduo como unidade bio-psico-social (COSTA, 2004), trabalhada no primeiro
capítulo, operou nessa direção. O sujeito, pensado como unidade, seria então atendido por um
profissional capaz de intervir na totalidade de suas demandas. Nessa medida, se, por um lado, o
conceito de saúde teria deixado de ter uma conotação estritamente biológica; por outro, a inclusão
do psicológico e do social no campo do saber científico teria a potência de ampliar a ingerência
dos discursos normativos sobre a existência. Assim, algo que poderia romper com a apreensão
totalitária da subjetividade não teria feito mais que alargar esses domínios e suas conseqüências.
Na confusão entre a idéia de atenção integral e atenção total (CAMARGO, 2005) também esse
paradoxo pode ser conjugado. Pois, se a integralidade for pensada como forma de incluir a
186
totalidade das demandas do sujeito no campo do saber científico, ela se tornará mais um dos
possíveis da novidade a serviço do mesmo no terreno das práticas e saberes em saúde. Foi assim
que buscamos atentar para os efeitos contraditórios que uma mesma proposição, tomada de
diferentes perspectivas, poderia gerar. E que buscamos construir uma reflexão sobre o trabalho
em saúde dando visibilidade aos intentos de ruptura e seus avessos.
A pergunta sobre a introdução do exercício da diferença no campo da atenção encontrou
na tomada da existência como o que resiste à apreensão pela racionalidade um encaminhamento
possível. Novamente, colocamos o acento na dimensão trágica da clínica, em que o sofrimento do
outro pode ser acolhido como enigma. É oportuno recordar aqui que loucura ocupava na
Antigüidade esse lugar de enigma que interrogava a vida organizada na cidade. E que, ao passar a
signo de anormalidade, ela perdeu sua força de colocar questões para o laço social. Não se trata
de idealizar a experiência da loucura, mas de apontar a importância de se devolver ao sofrimento
humano seu lugar de alteridade, de diferença irredutível e sua potência de colocar questões para
os modos de vida. Aqui faz todo sentido pensar que a cidade como envolvida no cuidado. Não
apenas porque ela oferece diversas possibilidades de visibilidade para o singular, mas porque, ao
dar lugar a essa alteridade, ela mesma e seu próprio destino entrariam em questão. Dioniso e sua
entrada estrangeira na cidade, Antígona e sua oposição a Creonte como representante da
soberania e do bem, e Édipo em Colono sustentando a fronteira entre Tebas e Atenas estariam
para nos lembrar disso.
E, se a cidade pode ser um dos lugares de acolhida à existência, é porque ela é lugar de
encontro e de produção de laços. É no encontro e no laço singular ao outro que a diferença se
atualiza. Não se trata apenas de pensar que a pessoa atendida se apresenta como diferença diante
do profissional e de todos os outros sujeitos que ele atendeu. O próprio profissional pode
experimentar-se de um modo diferente de si mesmo a cada passo. Não ser indiferente à diferença
seria condição da constituição de um modo singular de intervir no sofrimento do outro e
começaria o cuidado. Nenhum conhecimento ou ação, fundamentados em uma norma, colocada
no lugar do bem apriori (LACAN, [1959-60] 1997), poderia acolher a existência. A norma, como
garantia da promoção do bem, parte da igualdade para agir na direção de prolongar a vida
biológica. É a isso que se opõe Lacan quando nos diz que “a vida não quer sarar” (LACAN,
[1954-55] 1985, p. 292). O que quer então? A vida quer entrar na existência. Dar hospitalidade
187
(DERRIDA, 2003) à existência seria a possibilidade do cuidado contra o ideal produtor de
“administradores de almas” (LACAN, [1954-55] 1985, p. 292).
Seguindo com a temática da configuração de lugares de produção de singularidades no
que diz respeito à atenção e à formação em saúde, nos perguntamos se os espaços
multiprofissionais de formação e trabalho, na medida em que fazem diferentes profissões
conviverem, teriam o potencial de inscrever o cuidado no terreno da existência. Em que medida a
presença do outro, como outra profissão, afetaria os modos de relação à alteridade, produzidos no
espaço da atenção? O que garantiria que o campo de formação e trabalho em saúde, mesmo
habitado por diferentes profissões, não acabasse por reproduzir a racionalidade normativa, dando
relevo a conhecimentos e técnicas em detrimento da singularidade dos encontros? Para seguir o
encaminhamento dessas perguntas tentaremos mapear elementos cuja presença poderia facilitar
ou inibir a produção de modos de trabalhar em saúde que acolham a existência a partir de uma
retomada das histórias e das experiências contadas pelos residentes.
Quando trouxemos a história (contada por seus atores) de constituição de um espaço
multiprofissional de formação no seio de uma instituição historicamente marcada pela hegemonia
do saber médico, tentávamos dar conta da questão de como as legislações (que buscavam
reformar a atenção e propor novas modalidades de formação em saúde) ganhavam vida no
cotidiano dos serviços. Montando cenários de formação, vimos que essa vida se produziu pela
abertura de espaços de encontro, mais ou menos desejados, em que os tensionamentos,
estranhamentos e desconfortos se fizeram presentes. Encontros que resultaram, por vezes, na
produção de posições de interrogação que convocavam os sujeitos à invenção, assim como,
outras vezes, na produção de respostas obturadoras que chegavam antes das perguntas. Dentre os
pontos agonísticos, encontramos: a criação de espaços integrados de formação para residentes de
todas as profissões, a assunção da função de ensino em relação aos residentes de todos os núcleos
por todos os profissionais dos serviços, as aproximações e intersecções possíveis entre os campos
de trabalho e formação da atenção básica e da saúde mental, a regionalização dos serviços, e
ainda, a diretriz resolutividade das ações em saúde. Estes pontos falam, sobretudo, dos impasses
que as ações que buscavam renovar os modos de trabalhar em saúde introduziram no cotidiano
dos profissionais. Trabalharemos então a partir dos percursos de formação narrados pelos
residentes, de forma a pensar como os pontos de tensão elencados operaram na produção dos
188
modos singulares de trabalhar, bem como nos elementos que facilitaram ou inibiram a construção
de formas de acolhida à existência no terreno da atenção.
4.1 UM OLHAR PARA A INTEGRALIDADE: a astronauta e o lúdico
Sobre o percurso de Rosana, poderíamos dizer que ele desdobrou uma pergunta: como
construir a integralidade da atenção? Vinda de movimentos estudantis que colocavam a questão
do Sistema Único de Saúde em debate, desde seu início de residência, ela se perguntava pelas
possibilidades de oferta de uma atenção integral aos usuários. Seu maior impasse residia na
transformação do seu universo de atuação: a atenção odontológica. A valorização da técnica, bem
como a preocupação com a finalização dos procedimentos fazia parte da forma de trabalhar que a
graduação em odontologia tinha lhe ensinado. A partir de alguns encontros sua pergunta sobre a
integralidade foi ganhando outras formas de se enunciar, até o momento em que se transformou
na questão “como escutar o outro?” Como introduzir uma escuta do sujeito num espaço reservado
para procedimentos, eminentemente, instrumentais e técnicos?
Lembrando a colocação de um dos profissionais de saúde mental, quando ele dizia que na
atenção básica não era possível abrir mão da resolução objetiva das demandas de saúde ali
emergentes (cf. p.63), o que, de certa forma, parecia estar a serviço da manutenção de um abismo
entre os dois espaços de atenção, poderíamos dizer que não foi isso o que a experiência de
Rosana nos mostrou. Atendendo a um policial imerso nas pressões da violência urbana e do
tráfico de drogas, alguém que sempre voltava à unidade de saúde com as obturações quebradas e
os dentes desgastados pelo bruxismo, ela construiu algumas questões: Como tratar uma coisa
que é a pressão diária que ele tem de ser morto? Demanda de saúde que não encontraria lugar
em um modelo de atenção centrado na prescrição de modos adequados de viver, mas encontrou
acolhida na escuta de Rosana. Nenhuma prescrição normativa daria conta de resolver a questão
que o sujeito lhe endereçava. A jovem dentista se questionara sobre as possibilidades de atender
àquele sofrimento singular e desconfiara que a resposta estava no que o sujeito lhe dizia. Porém,
o que fazer com o que o paciente diz? Essa pergunta, desdobrada da questão inicial sobre a
integralidade, colocou escuta e responsabilização lado a lado. Rosana nos mostrou que uma não
poderia existir sem a outra. Na posição de responsável por uma escuta e pelos limites de seu
189
próprio saber, a residente buscou a interlocução com a equipe. Encontrou na parceria do colega
psicólogo um horizonte de possibilidades de trabalho.
No encontro com um menino, Rosana construiu a nave do dentista e, embora tenha
sentido que fracassaram suas tentativas de levar a cabo os procedimentos odontológicos, ela se
descobriu intervindo nas possibilidades de construção de um mundo para a criança. Um mundo
em que poderia haver o faz de conta, a brincadeira e não apenas a dor da ausência do corpo da
mãe. Novamente, foi na parceria com um colega de equipe que essa descoberta se fez possível. A
residente de enfermagem estava junto com Rosana naquela construção. Desde aí, a dentista
astronauta inventou um modo próprio de pensar a integralidade. A integralidade é um pedaço, de
forma que tu perceba nãocomo tu vê, mas como ela (a pessoa atendida) quer. A integralidade
é possível se tu te propor a escutar o paciente, a entender que ele inteiro ali, que ele tem
demandas pra ti, tem demandas que tu consegue e tem outras que vai precisar conversar com
outras pessoas.
Quando nos perguntávamos qual o efeito da introdução de racionalidade regionais
(LEBRUN apud MEZAN, 2002) nos espaços de formação, buscávamos pensar quando o
encontro com o outro inibe ou potencializa o trabalho. Nos dois campos de formação
pesquisados, a questão dos espaços integrados de formação teve desdobramentos diferentes. Na
saúde comunitária, o potencial produtor das regionalidades parece ter encontrado lugar mais
facilmente. A experiência de Rosana nos fala, em alguma medida, disso, assim como a
construção de um currículo integrado também pode ser pensada desde essa perspectiva. A criação
de um espaço de encontro entre diferentes saberes (mais do que de hierarquia entre saberes) bem
como a valorização do não saber e da pergunta (mais do que do conhecimento e da resposta)
parecem ter se configurado como elementos decisivos no sentido de potencializar a produção de
modos de trabalhar como o de Rosana.
O percurso de Rosana nos ensina sobre como se constitui um modo próprio de pensar o
trabalho a partir do encontro com o outro. Seu modo de dar lugar à alteridade passava por um
certo olhar infantil. Diante do desconhecido: o susto, o medo, a admiração, a suspensão dos
sentidos estabelecidos, que permitiam o surgimento de perguntas simples, mas potentes. Aquele
tipo de perguntas que as crianças fazem e diante das quais se fica, muitas vezes, sem resposta.
Aquele tipo de perguntas que aqueles muito familiarizados com a vida não se fazem mais.
Aquele tipo de perguntas que conserva a estranheza da existência, que mantém o mistério e que
190
não se contenta facilmente. Era daí que partia o olhar da astronauta. E foi assim que Rosana
inseriu o lúdico no seu cotidiano de trabalho. Lúdico no sentido da produção de sentidos inéditos
e do questionamento das fronteiras estabelecidas. Ela fez uma profissão caber dentro da outra,
assim como fez uma nave espacial caber dentro do consultório odontológico. O outro, como
paciente, estava ali para fabricar perguntas com ela. E o outro, como outra profissão, ali estava
para sustentar um espaço de compartilhamento para as mesmas.
No fim das contas, em sua construção acerca da noção de integralidade
42
, Rosana retirou a
atenção integral do campo da totalidade para inscrevê-la como parcialidade, na medida em que
oferecer uma atenção integral também passaria pela constituição de um estilo próprio de escuta
do sujeito, bem como implicaria uma responsabilização por essa escuta. Quando falamos de estilo
sempre nos referimos à produção de uma apropriação, que coloca em cena, inevitavelmente, um
saber parcial. Quanto à responsabilidade
43
, Rosana nos mostrou que ela convoca a singularidade
do profissional, mas que é sustentada no laço com o outro (que pode ser a equipe de saúde). Seria
então nessas condições que a integralidade operaria como um facilitador da produção de modos
de trabalhar que acolhessem à existência, pois como ideal totalitário ela apenas inibiria esse
movimento.
4.2 ENSAIANDO A RESOLUTIVIDADE: o filósofo e o tempo
42
Alguns autores do campo da saúde coletiva têm buscado pensar a integralidade a partir da idéia de escuta das
necessidades dos usuários, levando em conta seus contextos e modos de viver, bem como da construção da
autonomia destes no cuidado com suas próprias vidas. É o caso da discussão realizada no texto As Necessidades de
Saúde como Conceito Estruturante na Luta pela Integralidade e Eqüidade na Atenção em Saúde (CECÍLIO, L. C.,
2001), situado no livro Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde, bem como no texto Entre
Tramas e Redes: Cuidado e Integralidade (JUNIOR, A. S., ALVES, C. & ALVES, M., 2005), que compõe o livro já
mencionado anteriormente Construção Social da Demanda. Desde nossa perspectiva, na interlocução com a
experiência de Rosana, buscamos desfazer a associação entre escuta e necessidade, já que esta última nos remete, em
psicanálise, a algo que diz respeito estritamente ao organismo biológico. Pensamos que a escuta se inscreve para
além do campo da necessidade, a saber, o registro da subjetividade e do desejo. A questão da autonomia, por outro
lado, nos parece mais interessante de ser trabalhada pela via da produção de uma responsabilização sobre o próprio
padecer e sobre os próprios modos de levar a existência. A responsabilidade seria então algo a construir de forma
diferente com cada sujeito escutado, dentro de suas possibilidades singulares. Foi nesse sentido que produzimos,
numa aproximação ao percurso de Rosana, um sentido possível para a noção de integralidade, sem pretender apagar
todas as outras possibilidades de sua interpretação. Trata-se antes de dar visibilidade a um modo singular de se
relacionar com as diretrizes do SUS no cotidiano do trabalho. Podemos pensar que a integralidade se apresenta como
um prisma que aqui foi a apresentado a partir de uma de suas possíveis faces. Não incluímos em nossa reflexão a
perspectiva da integralidade como indissociável da intersetorialidade, algo apontado por muitos pesquisadores da
área da saúde coletiva e que nos parece, extremamente, pertinente. Porém, no item 4.3, numa discussão acerca da
construção de uma rede de atenção capaz de acolher a existência, pensamos trazer para a discussão elementos que
estão na interface integralidade/intersetorialidade.
43
A questão da responsabilidade do profissional será discutida mais amplamente nos itens 4.5 e 4.6 deste capítulo.
191
Se a pergunta que marcou o percurso da astronauta se dirigia à integralidade, podemos
dizer que o filósofo pautou sua história de formação na construção de uma reflexão sobre o
tempo. Construção que lhe permitiu colocar questões para o tão mencionado princípio de
resolutividade das ações em saúde. Logo de início ele nos disse que sabia o tempo de resolver
uma dor de garganta, mas não sabia sobre o tempo em jogo numa intervenção psicossocial.
Deparou-se com uma família em sofrimento e em precárias condições de vida, quando seu
primeiro impulso foi o de resolver o que estava errado. Pensou em chamar a polícia, chamar a
vigilância sanitária e todas as instâncias normativas que se poderia imaginar. Aquela vivência de
caos, de dispersão lhe levava a querer pôr ordem naquele espaço, com urgência. Mas, que ordem?
Rafael deparou-se com uma fronteira nebulosa. Até onde vai o meu papel? Ou até onde vai o
papel do posto? Até que ponto o posto tem que intervir ou até que ponto isso é a história de uma
família e a gente não deve intervir porque são pessoas enfim? Essa fronteira é uma fronteira
muito nebulosa pra mim. Então foi isso que me tocou muito assim, sabe? Recuou, pensou de
novo, deu tempo ao tempo. Na constituição de uma posição de pergunta, introduziu-se um
intervalo entre o vivido e a urgência de agir.
Em que medida, simplesmente, retirar à força os cachorros da casa e “salvar” Paulo do
encerro de anos resolveria algo para aquela família? De que modo a simples prescrição de normas
de convívio e de cuidado com a casa e com a higiene traria saúde para aquelas pessoas? Que
efeito teria a entrada de uma polícia da saúde naquele espaço familiar? Por outro lado, como não
minimizar o fato de que naquela família os membros viviam de uma forma que oferecia muitos
riscos a sua saúde física? E como não esquecer que havia nela dois membros que estavam
isolados do convívio social anos, compartilhando seu espaço de vida apenas com animais?
Impasses do cuidado que uma demanda complexa como a daquela família imprimia em Rafael.
Em torno da problemática da resolutividade, podemos dar destino a esses impasses,
situando ainda algumas perguntas: como ser resolutivo, escapando do lugar de administrador de
almas (LACAN, [1954-55] 1985: p. 292)? Como trabalhar com a existência, como algo que
resiste à apreensão pela técnica, sendo resolutivo? Como ser resolutivo sem agir de forma a
excluir o sujeito? Lembremos a colocação de um dos profissionais da saúde mental quando ele
sugere que a questão da resolutividade (cf. p.63) estaria mais do lado de uma clínica que visa
esbater o sintoma do que daquela que busca escutar a subjetividade. Afirmação que marcou a
impossibilidade da introdução da resolutividade no campo da escuta do sujeito (tarefa que seria,
192
por excelência, pertencente ao campo da saúde mental) e que inscreveu esse princípio na clínica,
para ele, eminentemente, objetiva da atenção básica. Diante disso, nos perguntamos se haveria
diferenças na apropriação desse conceito num e noutro campo de atenção.
Voltando à experiência de Rafael, poderíamos dizer que, no desdobramento de sua
intervenção, ele pôde acolher a alteridade que se apresentava naquele momento de forma
absoluta: o quadro da dor. Em relação àquele universo desconhecido e “caótico” Rafael,
decididamente, viu-se sem recursos para intervir. Resolveu a questão não a resolvendo.
Renunciou a sanar o que ele enxergava como problema e pediu entrada na morada da família para
pensar melhor no que poderia ser feito. Encontrou cachorros habitantes da casa, uma foto de
casamento e uma conversa inesperada com a menina Paula que não saía de casa anos. Aos
poucos, aquele vivido intenso e disperso foi ganhando moldura, leitura.
A acolhida do sofrimento do outro põe em cena sempre algo inédito e, nesse sentido, uma
decisão clínica que se endereça à existência implica uma leitura. Uma leitura é algo muito
diferente de um cálculo. Ler e calcular implicam posições distintas. Enquanto, neste último, uma
resolução exige o encontro do resultado acertado, que está dado a priori; na primeira, trata-se
de uma construção a partir de possibilidades. Possibilidades que não se desdobram no campo do
“tudo pode”, mas são limitadas e constrangidas pela posição de quem lê, bem como pelo texto
que pede leitura. O resultado de uma leitura sempre coloca em questão o lugar desde onde se lê.
O filósofo nos fala disso, em seu percurso: eu me inquieto muito mais com as dificuldades de
abordagem à pessoa que na minha frente. Eu tenho essa tendência oposta. Eu to achando que
eu vou encontrar nessa pesquisa pessoas que não se perguntam como é que tá a sua abordagem.
Rafael se pergunta sobre sua posição de leitura ao longo das entrevistas realizadas. Em seu modo
de refletir sobre as ações empreendidas, ele sempre se inclui na reflexão. Inclusive em sua
pesquisa de conclusão, ele abordará a saúde do próprio trabalhador de saúde (os médicos de
família e comunidade) como algo que interage com seu modo de promover a saúde da população.
E se diante da família de Paulo, a primeira reação de Rafael foi a de querer calcular
rapidamente a intervenção, a segunda foi a de dar-se o tempo de poder constituir um lugar de
leitura. Foi então que o filósofo levou sua questão para a equipe: como ser resolutivo diante de
uma demanda psicossocial? E trabalhou no sentido da retomada de um espaço de discussão de
casos complicados na unidade, assim como na construção de possibilidades de a própria equipe
pensar sobre seu funcionamento. Aqui Rafael anos aponta o seguinte horizonte: um espaço de
193
compartilhamento acerca do trabalho deve incluir a possibilidade de os profissionais e a equipe
pensarem sobre suas posições de leitura.
É assim que a experiência de Rafael nos convoca a pensar sobre como a questão do tempo
interfere na construção de uma ação resolutiva. Seu percurso colocou em cena diferentes
perspectivas do tempo. De início, a suspensão da temporalidade, onde a vivência da dispersão
apontava para a urgência do agir. Em seguida, a emergência da posição de interrogação diante do
desconhecido, que na admissão de uma fronteira (nebulosa) introduziu um intervalo, fazendo a
temporalidade operar novamente na cena. Uma temporalidade retroativa, na medida em que sua
leitura construiu o vivido. A operatividade dessa construção implicava ainda a produção de um
outro tempo: um tempo de narrativa e de compartilhamento. A partir desse compartilhar, Rafael
foi construindo outras condições de ler e de agir, bem como de pensar sobre a resolutividade no
terreno da atenção psicossocial.
Poderíamos dizer, com Rafael, que se a resolutividade fosse pensada apenas como a
capacidade da ação de extinguir sintomas, ou seja, como correção de um desvio à norma, ela não
teria lugar em nenhuma clínica que se propusesse a dar lugar ao sujeito, seja ela no espaço da
atenção básica, seja no campo da saúde mental. Ser resolutivo implicaria fazer a subjetividade
atravessar o campo da objetividade. Pois se a resolutividade implica objetividade no sentido do
encaminhamento da problemática que se apresenta, o resultado disso não está dado a priori, mas
dependerá do percurso. O percurso é, justamente, isso que tem a ver com a intervenção da
temporalidade. Ele começa na suspensão dos sentidos pelo encontro com a alteridade podendo
desdobrar-se na produção de uma posição de pergunta e de leitura aposteriori até à configuração
de um tempo de compartilhamento. Tempos e momentos que, desde nossa perspectiva, criam as
condições de produção dos atos terapêuticos. Uma ação que desconsidera esses efeitos de
percurso, operando na lógica do cálculo mais do que da produção de uma posição de leitura,
excluiria o sujeito da cena do cuidado. Nesse sentido, a experiência de Rafael nos permite propor
que a resolutividade tomada como cálculo inibiria as possibilidades de se acolher à existência,
mas, se for pensada como leitura, poderia abrir um horizonte de formas para essa acolhida.
4.3 CONSTRUINDO A REDE DE ATENÇÃO E O LAÇO TERAPÊUTICO: o arquiteto e
a cidade
194
Edson entrou na residência com o objetivo de trabalhar na efetivação das diretrizes da
Reforma Psiquiátrica. Desde o início, preocupou-se em realizar uma aproximação entre atenção
básica e saúde mental, dedicando-se a um trabalho junto às unidades básicas de saúde. O eixo de
interrogação de seu percurso parece ter sido: “como ligar o CAPS ao mundo fora? Como
conectar serviços para construir uma rede de atenção? Como promover o encontro dos usuários
com a cidade?” Questões que ele levava consigo para as oficinas, para os atendimentos
individuais e para os espaços da equipe, mas que não eram de exclusividade sua, que, por
exemplo, a regionalização dos serviços foi um dos impasses das equipes de saúde relatado por
preceptores. Lembremos o relato de um dos profissionais do CAPS que dizia: regionalizar
serviços é novidade pro hospital. Os profissionais que trabalham no hospital não têm noção
disso de que a saúde é regionalizada. O paciente chegou ali, bom “eu atendo”, e na hora de
devolver “vá pro seu postinho”. Aqui a regionalização da atenção aparece colocando questões
para as lógicas de atendimento e devolução de pacientes que se perpetuam nas ações de
referência e contra-referência, onde o sujeito está num lugar de objeto.
Desse modo, algo interessante, no pensamento de Edson, era a forma como concebia a
relação dentro/fora da instituição. O CAPS não é aqui dentro. Tem um mundo fora, vamos
ver esse mundo! Como se a instituição não pudesse restringir-se às paredes de sua instalação, mas
precisasse estar presente no espaço da cidade. Edson acompanhava os usuários em atividades na
rua e trazia a rua para dentro do CAPS, através da Oficina de Fotografias, de Maquetes, etc. É
como se com seu fazer o arquiteto estivesse fazendo as fronteiras entre o CAPS e mundo fora
ganharem uma estrutura moebiana, onde o fora também passa por dentro e o dentro também está
do lado de fora. A presença da equipe do CAPS nas unidades de saúde, a presença dos
profissionais das unidades no CAPS, a circulação dos usuários pela rua, o convite para que
pessoas de fora da equipe realizassem trabalhos dentro do CAPS foram apenas alguns exemplos,
que apareceram nas falas dos residentes e preceptores, que poderiam ser pensados como modos
de tornar mais porosas as fronteiras institucionais. O reconhecimento do trabalho da atenção
básica como também sendo da ordem da atenção em saúde mental, questão que Edson trouxe
no começo da primeira entrevista, também aponta nessa direção. Reconhecimento que ganha
ainda mais importância se lembrarmos a colocação de um dos profissionais da atenção básica,
quando ele nos disse que 44% das demandas que chegam às unidades de saúde dizem respeito a
questões de saúde mental (cf. p.65).
195
Na relação que Edson estabelecia com os pacientes (e com as produções dos mesmos),
bem como com os colegas de equipe também algo dessa disposição de lugares se desenhava. A
fronteira entre o que era produção sua e dos oficinantes, por exemplo, era difícil de ser definida.
Da mesma forma que isso acontecia com suas idéias e as dos colegas. Ele, que tinha uma questão
com a organização da cidade, escutou a questão dos oficinantes sobre a cidade ideal e deu lugar a
ambas na Oficina de Maquetes. Ele, que se interrogava sobre as possibilidades de autonomia dos
usuários, escutou no trabalho da colega assistente social uma forma inventiva de pensá-la:
dependência não é diretamente o oposto da autonomia, ter autonomia não é ser independente,
mas depender de várias coisas ao mesmo tempo. Prestando atenção em seu modo de trabalhar era
possível perceber que o lugar da produção não estava nem nele próprio nem no outro, mas na
fronteira que se construía a cada encontro entre eles, nos nós que enlaçavam sua posição à do
outro. Fronteiras e nós que possibilitava passagens.
Seria essa uma saída para a construção de uma rede de atenção em saúde mental? Torcer
as delimitações que separam os serviços deles mesmos e dos espaços sociais de modo que o que
lhes seja exterior, em algum momento, encontre lugar no interior? De modo que a relação entre
exterior e interior não seja de ruptura, mas de continuidade, de porosidade? Seria possível a
transposição dessa disposição de lugares, presente nos laços terapêuticos construídos por Edson,
para as relações interinstitucionais e para a relação das instituições de atenção com o espaço da
cidade? Sobre a questão da construção de uma rede de atenção capaz de alojar a existência, pela
tecitura de laços com a cidade, em oposição ao agrupamento hierarquizado e fragmentado de
serviços que não fazem mais do que dar entrada e saída a quadros patológicos objetivados, seria
importante nos remetermos à reflexão de Ceccim (2005) quando ele propõe o modelo da mandala
como estruturante da rede de atenção.
Para o autor “como nas rodas de ciranda, o diagrama de uma mandala é uma coreografia
de dobras” (CECIM, 2005, p. 165). Nesse sentido, a figura da mandala coloca uma interpelação à
fixidez de modelos de organização dos serviços como o da pirâmide, por exemplo, que, para o
autor, é emblemático da racionalidade gerencial hegemônica no campo da saúde. A mandala,
como “um diagrama de linhas que estabelecem contato” (ibid) põe em cena a articulação entre
múltiplos pontos que se movimentam convergindo ou irradiando-se a partir de um centro. No
centro dessa rede de movimentos, deve estar o usuário. A regionalização, desde esta visada,
aparece como um desenho de zonas em torno dos pontos de ligação que se dobram e se
196
desdobram na estrutura da mandala. A hierarquização não responderia mais a uma estrutura fixa
de níveis de atenção, mas seria o desenho de eixos de comunicação, de linhas de cuidado, de
referências entre equipes em rede. A utilização da figura da mandala para pensar a organização
da rede de atenção em saúde nos parece, extremamente, interessante no sentido de que transmite
uma idéia de dança, de movimento, de contato e continuidade entre os diversos âmbitos da
atenção em saúde: um jogo de movimentos em torno da pessoa atendida (CECCIM, 2005).
No seu segundo ano de residência, o arquiteto encontrou problemas para seguir seu
projeto de construção de uma rede capaz de alojar a existência. A instituição que experimentou,
naquela ocasião, como ele mesmo disse, era muito fechada em si mesma. Difícil de entrar, difícil
de sair, quase sem pontos de ligação com a cidade. Se, no primeiro ano da formação em serviço,
o arquiteto encontrou na equipe parcerias no sentido da aproximação entre o trabalho do CAPS e
o trabalho na atenção básica, bem como entre o mesmo e a vida pulsante da cidade; no segundo
essa qualidade de parcerias se tornou decididamente mais difícil de se estabelecer. Apesar da
dificuldade imposta pela rigidez do funcionamento da equipe, Edson encontrou frestas para
construir, junto com os residentes de primeiro ano, um espaço de acolhida à existência na
recepção dos usuários do CAPS. Ação subversiva e marginal, que de alguma forma também
permitiu que ele suportasse a seguir a residência. Assim como, para seguir trabalhando, Edson
também teve de encontrar um ponto de contato com o mundo fora, através do laço com sua
orientadora de pesquisa (preceptora de seu primeiro local de estágio) e de sua participação nas
aulas integradas da RIS, onde os residentes de todas as ênfases reuniam-se para problematizar as
questões do trabalho em saúde.
Tudo se passa como se o residente estivesse tentando encontrar pontos de ligação e
possibilidades de movimento em seu cotidiano de formação e trabalho, sempre dando
centralidade à singularidade das pessoas que atendia. É nesse sentido que pensamos que a
experiência de Edson dialoga com a “disruptura” (CECCIM, 2005, p. 166) proposta pelo
diagrama da mandala, que coloca em movimento uma estrutura de dobras e pontos de articulação
entre “linhas de cuidado, nós de articulação locorregionais e interinstitucionais e múltiplos
agentes com voz e vez” (ibid.), entre estes, os próprios usuários. As linhas de cuidado vêm
desafiar a impermeabilidade das fronteiras institucionais, convocando à produção de pontos de
contato entre os serviços, entre as equipes e profissionais. A ligação em rede de múltiplos
agentes, por sua vez, aponta para a possibilidade de produção de novos modos de trabalhar em
197
saúde a partir dos encontros singulares e pela colocação da pessoa atendida no eixo desse
movimento. Desse modo, está relançado o desafio da construção que o arquiteto, desde sua
entrada na residência integrada, se propôs.
Finalmente, é preciso dizer que a experiência de Edson sublinhou que uma construção
se faz numa dança de lugares. Em seu modo de dar entrada à alteridade, sem dar-se conta, ele
oferecia algo próprio como elemento para a produção do outro e acolhia elementos vindos deste
para construir algo seu. A maquete da cidade ideal já não era mais sua, embora tivesse muito dele
ali. Assim como sua idéia de autonomia não era a mesma depois do encontro com a assistente
social. O estilo do arquiteto pareceu nutrir-se dessa flexibilidade de fronteiras que permitia
passagens, fluxos, afetações recíprocas. Passagens nas quais sempre se perde um pouco a medida
do próprio e do outro. Dizia Walter Benjamin (1995) sobre a experiência de andar na cidade que
nela orientar-se não significa muito, no entanto perder-se requer instrução. Seria preciso perder-
se, suspendendo em alguma medida os limites que nos separam do outro para voltar a desenhá-
los, e assim encontrar algo novo. Talvez o arquiteto tenha transmitido algumas coordenadas em
relação a como se deixar perder para poder encontrar.
Nesse sentido, a relação entre exterior e interior como movimento de torção ou dobra
(CECCIM, 2205) parece ser uma das condições da construção de um laço terapêutico que
lugar ao sujeito e de uma rede de atenção que aloja a existência. Quem sabe assim se possa
oferecer ao sujeito aquela autonomia de que o arquiteto falava. Não aquela autonomia que parte
de um ideal de independência e não faz mais que perpetuar uma lógica individualista e narcísica,
ignorando que é no laço ao outro que a existência se movimenta. Mas aquela que enlaça o sujeito
a vários pontos da rede, convocando-o a participar de movimentos e fluxos e inscrevendo sua
dependência nos diversos espaços da cidade.
4.4 EFEITOS DE UMA PRESENÇA NA CLÍNICA E NA FORMAÇÃO: a alquimista
O percurso de Alice, desde nosso ponto de vista, desdobrou a pergunta sobre a presença
do outro ou sobre o outro como presença: “porque o outro precisa estar ali?” Tal questão se
produziu tanto em relação às suas vivências nos espaços clínicos (de formação em serviço)
quanto em relação aos momentos estritos de formação (como as orientações do trabalho final da
198
residência). Logo no início da primeira entrevista, Alice falou sobre os efeitos de sua participação
numa equipe de saúde que dava lugar e voz ao fazer da terapia ocupacional. Poder expor seu
ponto de vista e a especificidade de seu fazer diante do testemunho da equipe foi marcante na sua
história de formação. Sua vivência nas oficinas terapêutica do CAPS, novamente, colocou em
jogo a questão do testemunho, na medida em que ela narrou os efeitos de seu fazer presença na
produção dos oficinantes. Posteriormente, quando nos contava sobre as dificuldades encontradas
na escrita de sua pesquisa, Alice referiu uma virada nas possibilidades de produção de seu
trabalho final da residência a partir do encontro com uma segunda orientadora. Alguém cuja
postura no acompanhamento da escrita de Alice também nos remete à discussão acerca de como
uma produção encontra caminhos para acontecer a partir da sustentação de uma presença. É nesse
sentido que a experiência da alquimista nos conduz a uma reflexão sobre as condições da
presença que carrega consigo a potência de dar passagem à produção de um sujeito. Desse modo,
convoca-nos a revisitar a questão das possibilidades de produção de experiências e a temática da
transmissão na clínica e na formação.
Gagnebin (2006), numa interessante reflexão sobre memória, história e testemunho,
recorre à experiência concentracionária de Auschwitz para pensar a questão da experiência e da
transmissão simbólica. Na abordagem dessa temática, a autora, se utiliza de várias figuras de
narração, entre elas o sonho de Primo Levi no campo de Auschwitz
44
, em que o mesmo sonha,
repetidamente, com uma cena em que está narrando os horrores pelos quais passou e, de repente,
percebe que os ouvintes se levantam e vão embora, indiferentes. Ao invés de colocar o acento na
questão da irrepresentabilidade e do inenarrável, o que muitos autores que se ocupam de refletir
sobre a literatura de testemunho fizeram, Gagnebin sublinha, em sua reflexão, a questão da
presença como suporte da produção de experiências, como suporte da transmissão. Nessa direção,
ela propõe uma ampliação do conceito de testemunho. A testemunha não seria somente aquela
que viu com os próprios olhos, como definia Heródoto, mas também “aquele que não vai embora,
que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras sejam levadas
adiante” (GAGNEBIN, 2006, p.57). Nesse sentido, a posição da testemunha aparece como
elemento essencial para a produção de sentidos sobre o vivido. Tais sentidos, porém, para que
imprimam sua marca no próprio narrador precisam encontrar uma escuta capaz de suportar as
suas peculiaridades, capaz de suportar ouvi-los.
44
Primo Levi, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 1988.
199
Embora os estudos de Gagnebin se desenrolem num campo alheio ao da reflexão que
propomos, suas contribuições parecem-nos de grande valor para pensarmos sobre algo que se
opera no espaço da clínica e da formação em saúde mental e que ganhou relevo, ao nosso ver,
especialmente, no percurso de Alice.Quando a residente narrou a história de constituição da
Oficina de Sabonetes, experiência sobre a qual escolheu escrever o trabalho final da residência,
Alice contou-nos: é eles que fazem. A gente só fica ali... Como oficineira, seu lugar era o de estar
com, dar suporte, testemunhar a emergência de uma produção. Porém, não se tratava de qualquer
presença. Tratava-se de uma presença que suportou a emergência da essência do outro.
E quem seria o outro em essência? Alice nomeou a essência do outro como o inesperado,
o inusitado, o inexplicável. E falou-nos sobre as condições de emergência do inusitado ou do
outro como essência. Ele aparece nos espaços de convivência, onde todos os nomes comumente
conhecidos dos pacientes (incapaz, infantil, manipulador, resistente) podem estar em suspenso. A
condição da emergência da alteridade seria então ser uma presença que renuncia à nomeação a
priori. Nessa renúncia, o encontro. Dos efeitos desse encontro, poderia surgir uma nomeação
nova. Assim, dar lugar à produção do outro, na experiência de Alice, começava por deixar-se
surpreender. A gente se volta muito ou ao diagnóstico ou a alguma coisa “ah, eles vão até
ali”, né? E não. Eles nos surpreendem o tempo todo.
A surpresa com a produção dos pacientes foi um elemento muito trazido pela alquimista,
principalmente quando essa produção era uma espécie de intervenção terapêutica na oficina.
Quando o profissional se via sem saber como manejar uma situação difícil no espaço terapêutico
e um usuário intervinha, segundo Alice, de forma genial na cena. Talvez o maior efeito tenha
se produzido para o próprio profissional, que se via interrogado pelo ato do paciente e encontrava
nele uma terapêutica de sua própria clínica, no sentido de que a produção do paciente lhe abria
outras possibilidades de existência para seu fazer. Foi assim que a alquimista nos falou sobre o
potencial de produção às avessas que poderia haver, talvez, especialmente, numa oficina
terapêutica, onde não é a patologia, mas o fazer que tem centralidade
45
.
Não ser indiferente à produção do outro seria então uma das condições de seu
acontecimento. Testemunhar implicaria sancionar, legitimar a emergência de uma produção. E
conferir legitimidade à produção de um sujeito não tem nada a ver com compreender ou explicar
essa produção, mas sim acompanhar seus desdobramentos e permitir que ela encontre formas de
45
Embora haja oficinas terapêuticas que funcionem dando centralidade à patologia, não parece ser o caso da oficina
que trazemos para discussão.
200
seguir se produzindo. Poder sustentar a apropriação de um saber ou fazer diante do outro é o que
estava em questão na clínica que a alquimista contracenava com os usuários do CAPS. E não
seria isso que estaria em jogo também em uma formação profissional? Sustentar a apropriação de
um saber-fazer diante do outro?
Presença, testemunho, surpresa, passagem foram elementos que apareceram no trabalho
da TO alquimista junto aos pacientes do CAPS. É possível pensar como esses elementos
aparecem em uma experiência de formação, na qual também está em jogo a emergência de um
lugar de produção. Na construção de seu trabalho final, Alice não encontrou as condições, num
primeiro momento, de produzir uma escrita sobre suas vivências. A relação que ela estabeleceu
com seus escritos dizia de um bloqueio de passagem. Um espaço de aprendizagem também
depende das possibilidades de uma passagem que encontra condições de se fazer a partir da
presença de um outro que deixe o conhecimento em suspenso e acolha o inusitado. Porém, ocupar
o lugar de uma tal presença não é algo que se institua por decreto. É preciso estar disposto a dar
lugar à produção do outro a partir do próprio desconhecimento. E se a dificuldade de dar lugar ao
próprio desconhecimento apareceu entre alguns dos residentes entrevistados, é preciso dizer que
ela também esteve presente entre os preceptores.
Muitos relataram uma inibição de ocupar o lugar de quem ensina, por considerarem-se
possuidores de conhecimentos insuficientes. Eu fui tendo sim uma série de dificuldades pelo meu
próprio despreparo, falta de experiência, que aos poucos tu vai buscando. E tu tem que
estudar, tu tem que ir atrás e tu não sabe nem pra ti e tu tem que ensinar alguém. É super
complicado, eu me vi muito perdida. Ensinar aparece aqui apenas como passar adiante
conhecimentos adquiridos e prontos. Entretanto, se, por um lado, a questão da aquisição de
conhecimentos faz parte da aprendizagem, por outro, trata-se também de constituir uma posição
subjetiva, que se faz através de outro tipo de passagem. A segunda orientadora de Alice não tinha
muitos conhecimentos na área da terapia ocupacional e da saúde mental, que seu campo
profissional de origem era a odontologia; porém, ela pode acolher a produção da residente e dar-
lhe legitimidade. O que passou, principalmente, por considerar seu texto digno de perguntas.
Perguntas que permitiram que a escrita de Alice seguisse se produzindo. A gente o trabalho
junto e ela me faz perguntas. Tu acredita? E eu respondo e escrevo. Eu penso “era essa
pergunta que eu queria responder”. (...) Agora eu saio da orientação e chego em casa com
vontade de escrever. To começando a achar ele bonitinho, redondinho.
201
É nesse sentido que pensamos que a experiência de Alice dialoga com a reflexão de
Gagnebin, na medida em que toda produção subjetiva, seja ela numa oficina terapêutica, num
espaço de formação ou num relato de experiências de outra natureza, carrega essa dimensão do
indizível e convoca o outro como presença e como lugar simbólico a sustentar seu acontecimento.
Uma produção, de palavra ou de objeto, é sempre um pedaço de história que pede passagem. A
história, por sua vez, é sempre aquilo que se produz no presente, pela emergência de uma
produção a partir dos vestígios do vivido, e não na recuperação de fatos que se perderam no
tempo. Nesse sentido, “o outro precisa estar ali” para permitir o andamento da história e, nesse
andamento, a abertura de possibilidades de existência. Decorre disso que testemunhar, desde essa
perspectiva, não passa por assistir à cena desde fora, mas por incluir-se, como presença, na sua
construção. Uma presença que pode encontrar muitas formas de apresentação, mas que precisa,
acima de tudo, preservar a dessimetria do encontro e a singularidade da produção em curso.
Pois bem, a partir dessa aproximação à experiência da alquimista, poderíamos dizer que a
presença do outro (ou o outro como presença) no campo da atenção e da formação em saúde
carrega a potência de produzir aberturas à existência desde que se posicione como testemunha de
uma produção no sentido que acabamos de enunciar. Do contrário, se uma presença se colocar
como detentora de alguma chave explicativa sobre o outro (desconsiderando sua dimensão de
alteridade) ou se for indiferente a ele (dando às costas a sua insuportável narração) nenhuma
abertura à existência encontrará as condições de acontecer.
4.5 DESCONSTRUINDO O LUGAR DO ESPECIALISTA: o maestro
O percurso de formação de Gustavo, desde nosso ponto de vista, levantou a questão sobre
o lugar do especialista e sobre a dimensão da responsabilidade. De certa forma, esse impasse
apareceu nas narrativas de outros residentes, mas na história do maestro nos parece que ganhou
uma intensidade especial. no início da primeira entrevista, Gustavo anunciou a expectativa de
ocupar um lugar meio mágico diante dos pacientes como o que estava nos primórdios de sua
escolha pela psiquiatria. À medida que ia narrando suas experiências na residência, que se
centravam no quão incômodo lhe resultava o trabalho na equipe multiprofissional, a posição de
Gustavo foi se constituindo as custas de um enrijecimento de fronteiras. Gustavo enfatizou sua
202
preocupação com a ultrapassagem dos limites entre os campos de saber, pela intrusão dos colegas
de equipe (de outras profissões) nas suas condutas clínicas. Sua postura diante do outro (como
outra profissão), apontava para uma desconsideração da língua estrangeira. Com o outro
haveria conversa possível, na medida em que este não questionasse a verdade de sua gramática e
semântica. Verdade que era a única possível.
O fato é que o maestro sustentava essa posição enfatizando os riscos inerentes à atenção
em saúde mental. Para ele, muitos dos atendimentos aos usuários colocavam em cena o limite da
vida e da morte. Como é que eu não vou internar a pessoa se ela corre risco de vida ou de
machucar alguém? Perguntava-se Gustavo. E porque as pessoas vêem isso como um maltrato?
Dizia ele sobre como percebia o olhar dos profissionais (não médicos) em direção ao seu fazer.
Essa significação que o maestro atribuía ao olhar do outro “me vêem como quem maltrata” lhe
atormentava sobremaneira. E, desse modo, a palavra do outro, ora era tomada como ameaça da
qual era preciso se defender, ora era, simplesmente, deixada de lado, sob o argumento da
inferioridade. De todo modo, o maestro percebia o outro como diferença e tentava dar conta disso
evitando o encontro. A questão é que, desse modo, Gustavo situava o inimigo do lado de fora
(GONDAR, 1995), encarnado nos outros núcleos profissionais que compunham o CAPS e
resistia a dar passagem à alteridade que habitava a ele próprio (FREUD, [1919] 2003 e LACAN,
[1959-60] 1997). Garantir a impermeabilidade das fronteiras de sua profissão funcionava então
como forma de sustentar uma posição de saber inquestionável um lugar de especialista. Porém,
por outro lado, essa impermeabilidade não fazia mais que produzir uma relação ao outro no
quadrante da paranóia. Para que uma fronteira não funcione como um limite paranóico, mas sim
como o que delimita um espaço outro, é preciso que ela tenha alguma permeabilidade.
Lembremos a fala de um dos preceptores da residência médica quando ele nos dizia de
sua posição diante da criação da residência integrada: a discordância é que botaram tudo junto.
Eu não me envolvo e não quero me envolver, porque eu acho que eu já tenho muito trabalho com
a Residência Médica (cf. p.68). Nesse relato que vem em defesa da manutenção de fronteiras
rígidas entre as profissões chama atenção a produção de um encadeamento de certezas. A
certeza de que a integração entre as disciplinas acarretaria a perda das especificidades
profissionais é antecipada a qualquer vivência que pudesse colocar isso à prova. O residente de
outra profissão não é bem vindo. A certeza maior que daí se pode apreender é: do outro (como
outra profissão) eu nada quero saber. A resposta vinda antes de qualquer pergunta opera dois
203
movimentos simultâneos: ao mesmo tempo em que o sujeito nesse dito se exclui da cena
(furtando-se ao encontro que poderia colocar sua posição em questão) ele também expulsa o
outro dela.
Voltando ao percurso do maestro, talvez pudéssemos dizer que aos poucos ele foi dando
lugar para o inimigo dentro de si mesmo (GONDAR, 1995). Foi reconhecendo o quanto lhe era
difícil compartilhar a responsabilidade pelo cuidado e a solidão que lhe resultava disso. Quando
a gente pega um paciente, parece que o paciente é nosso, peguei ele pra mim. Então, ele, eu
cuido, tá? Na medicina, a gente é assim e talvez por isso até a dificuldade de trabalhar com as
outras pessoas. (...) eu faço sozinho. Foi construindo uma posição duplicada de si mesmo,
onde podia pensar sobre as próprias ações, ao invés de apenas discutir sobre as ações dos outros
membros da equipe. Lembremos que, durante a primeira entrevista, também eu, como
entrevistadora, senti dificuldades de empreender qualquer entrada. O efeito que aquela vivência
produziu em mim foi o de quase não conseguir fazer perguntas. Elas escapavam do meu
pensamento. No segundo encontro, o maestro tinha outra história para contar, posicionando-se de
modo a pensar sobre sua posição anterior.
Ao contar seu percurso, Gustavo nos permitiu conhecer as conseqüências da
desconstrução da posição do especialista. Se antes o outro (como outra profissão) era visto como
desnecessário, inoportuno, inferior e até mesmo ameaçador e potencial invasor. Num segundo
momento, o maestro passou a pensar o outro como, simplesmente, diferente. Mas, o que teria
produzido essa espécie de deslocamento? Como é que eu to me sentindo mais seguro e que eu
poderia estar fazendo mais sozinho as coisas e agora eu to dividindo o trabalho? Gustavo deu-se
conta de que talvez estivesse se defendendo do desconhecido que habitava ele próprio. A evitação
do compartilhamento parece ter estado a serviço da tentativa de não se haver com a própria
insegurança e com os limites do próprio saber. Pois, na medida em que se sentiu mais apropriado
do conhecimento, na medida em que construiu uma posição própria desde onde trabalhar, o
maestro pôde conviver de forma mais tranqüila com as diferenças de posição dos colegas de
equipe. Nesse sentido, poderíamos situar a especialidade no campo do enrijecimento das
fronteiras a serviço da sustentação de um saber sem frestas, e a especificidade como a sustentação
da diferença a partir de fronteiras cambiantes e permeáveis.
Alguém busca ou é levado a um serviço de saúde mental, na maioria das vezes, quando se
encontra sem possibilidades de fazer algo com o lugar que habita na cena do mundo, quando não
204
pode mais manejar sua vida como o fazia antes. A urgência, o risco, de que risco se trata, com
que recurso se conta para oferecer a atenção são algumas das questões em que é preciso pensar
quando se está trabalhando no campo da saúde mental, como bem disse Gustavo. Porém, a
história do maestro dizia da assunção destas responsabilidades de uma forma solitária, até mesmo
individualista. Quem recebe a demanda de um sujeito que por algum motivo perdeu suas
referências em relação à cena da vida é colocado na posição daquele que sabe o que é melhor
para o outro, daquele que pode restituí-lo nesse lugar. Porém, afinal de contas, quem tem o poder
de decidir o que é melhor para um outro? Retorna aqui a discussão realizada em torno da ética e
do bem (cf. 3.1), em que situamos a armadilha narcísica intrínseca à posição de benfeitor. O
profissional diante de uma tal demanda encontra-se então com a difícil tarefa de acolher
impossibilidades a do sujeito e a sua e produzir algo. Pois, se saber o que é melhor para um
outro aparece como um pedido que não tem como ser atendido, ainda assim algo precisa ser feito.
Acontece, como referimos, que o maestro se posicionava de forma solitária e absoluta diante
dessa convocação. E essa espécie de inflação do lugar de saber e de evitação de qualquer vivência
de descentramento, por um lado, não produzia mais que uma sobreposição entre responsabilidade
e culpa; e, por outro, inibição a posicionar-se, quando ele esperava que o preceptor, desde um
lugar de exceção, apaziguasse os impasses da equipe.
Não é possível falar de responsabilidade sem considerarmos a questão do encontro com o
desconhecido e da conseqüente apropriação que daí poderia emergir. Por outro lado, se o
encontro com o não saber é evitado, nada próprio se produzirá (cf. 2.1). Nesse caso, a
responsabilidade não encontra o sujeito, ficando elidida da cena. Sobra ao profissional o lugar de
reprodutor de uma norma, de um dever, de um conhecimento sem nome próprio. Toda
apropriação implica uma relação parcial com o saber: sempre deixa um resto. Restam sempre
vivências por nomear, perguntas por fazer, atos por empreender. Se uma apropriação busca dar
conta do todo sem restos, o fracasso será seu destino mais certo. Daí só poderá advir culpa: efeito
da inflação de um eu que se ilude ao pensar-se soberano de si e de seus atos. Desse modo, a
responsabilidade diz respeito a um momento segundo, de apropriação e autorização, que
reconstrói o vivido. Nomear o desconhecido antes de dar-lhe lugar é uma forma de evitar o
encontro. É garantir as fronteiras da familiaridade, na tentativa de garantir o lugar de soberania.
Às custas de quê uma suposta soberania se sustenta? Às custas da expulsão do outro, quando não
205
se permite que ele se aproxime, ou ainda, às custas de sua domesticação, quando lhe dou um
nome antes que sua presença se imprima em mim (DERRIDA, 2003).
Em seu percurso, Gustavo evidenciou a distância que separa culpa e responsabilidade. A
primeira é efeito da busca de uma garantia para os atos: inibe o agir, na espera de um outro que
salve, ou torna o outro uma ameaça e lugar a um fazer solitário e angustiante. A
responsabilidade, por outro lado, leva o sujeito a agir sem garantias (LACAN, [1959-60] 1997),
na consideração do outro como diferença e na admissão da alteridade que atravessa o próprio
sujeito. Acompanhamos, na história do maestro, a desconstrução do lugar do especialista e
construção de um lugar de especificidade. E poderíamos, por fim, dizer que um fazer que se
desdobra no solo do especialismo, pela manutenção de uma rígida identidade profissional a
qualquer custo, não produzirá atos de acolhida à existência no campo da atenção, e sim apenas
objetivação do outro. De outra parte, se o risco do encontro com a alteridade for sustentado, as
especificidades dos fazeres poderão reverberar na abertura de diversas possibilidades de acolhida
à existência no terreno da atenção em saúde.
4.6 NOS LIMITES DA CLÍNICA: o artista de rua
Homero, na primeira entrevista, falou de sua disposição a transitar por identidades de
psicólogo, ao invés de confinar-se em uma identidade fixa. Apostava que o trabalho em equipe
poderia potencializar esse trânsito, na medida em que a consideração da diferença, ou seja, da
diversidade de formas de se encaminhar uma demanda de saúde, colocaria questões para as
identidades profissionais. Desse modo, se a pergunta de Alice constitui-se em relação à
necessidade da presença do outro, a de Homero começava na aposta na potencialidade dessa
presença e interrogava as formas de se realizar o trabalho a partir disso. Pertencer a uma equipe
multiprofissional, ao mesmo tempo em que abria um leque de possibilidades de trabalho para o
psicólogo, produzia também alguns desconfortos. O desconforto é não saber de que forma
trabalhar com o outro. A questão de Homero não lhe era propriedade exclusiva, mas encontrou,
com a criação da residência integrada na saúde comunitária, um solo fértil para produzir-se.
206
Lembremos do relato de um preceptor de enfermagem (cf. p.72), quando ela se
interrogava: como é que é isso assim de se relacionar com alguém diferente? Nessa pergunta, ela
se referia à presença dos residentes de enfermagem na unidade, aos quais teria o papel de
orientar. O preceptor da odontologia, na mesma direção, também se mostrou interrogado pela
presença dos residentes na equipe. Disse: que nem um filho reaviva as lembranças da infância
dos pais, o residente reaviva as questões de quando a gente saiu da universidade (cf. p.71).
Nesse sentido, a diferença introduzida com a entrada da residência integrada nos serviços não
diria respeito apenas aos distintos núcleos profissionais, mas também à chegada dos residentes.
Esses seres estranhamente familiares que, com suas demandas “impossíveis”, convocariam os
profissionais dos serviços a movimentos de reflexão e de resistência à convocação burocrática
da instituição. Desse modo, parece que a implementação da RIS inseriu a alteridade no seio dos
pares. Primeiramente, por transformar o espaço de trabalho em um lugar de formação, onde o
residente é, de certa forma, um estrangeiro recém chegado que pede pouso transitório. Depois,
por criar um espaço de convivência entre distintas profissões, onde diferentes línguas terão de
encontrar formas de conversa. Assim, se antes a alteridade se colocava, de forma mais direta,
com a presença dos pacientes, agora ela pedia espaço dentro da equipe, deslocando-se do seu
lugar canônico – a atenção – para um lugar onde impera, comumente, a igualdade.
O percurso de Homero, de forma interessante, visibilidade aos efeitos desse
deslocamento. Para ele, o conforto da identidade fixa e da posta em cena de um fazer
conhecido que não arrisque ser outro, à medida do demandado, diz de um profissional confinado.
A referência ao posto de saúde como lugar de confinamento e à rua como lugar de invenção,
desde nossa perspectiva, diz respeito mais ao encerro no enquadre e na reprodução de ações
burocratizadas do que, propriamente, às paredes da UBS; embora a experiência de Homero tenha
mostrado que a vida pulsante da rua tem uma potência particular para interrogar o fazer do
profissional de saúde, talvez mais do que tenha o ambiente protegido da unidade. De todo modo,
a pergunta de Homero apontava para como inventar formas de sair do confinamento. De que
forma sair do confinamento em si mesmo e do confinamento em uma clínica burocrática e
normativa?
Sair do confinamento de si ou de uma identidade fixa implicaria dar-se conta do outro e
dar-se conta que o próprio fazer não é ilimitado. A parcialiazação do saber seria então condição
dessa saída, embora não fosse suficiente. Tal saída implicaria ainda perceber que às vezes a
207
equipe resolve melhor as coisas do que com a tua presença, ou seja, perceber que o próprio saber
é, não raras vezes, dispensável. Posição que, decididamente, põe o narcisismo à prova. Nesse
sentido, seria preciso saber tanto a hora de sair de cena quanto a hora de entrar como coadjuvante.
Um profissional de saúde seria sempre um coadjuvante, já que a pessoa atendida é que ocuparia o
centro da cena. E atuar desde esse lugar se faria, algumas vezes, estando-se à frente do cuidado,
assim como, outras, dando suporte ao colega de equipe desde os bastidores. Mas o que decidiria o
lugar da ação: à frente da cena ou nos bastidores? Nesse ponto, Homero constrói uma forma,
extremamente, pertinente de decidir sobre onde se posicionar. É o paciente que irá indicar esse
lugar. Será então preciso respeitar os movimentos transferenciais aquilo não era comigo, era
com a “ginecologista” (cf. p.175) –, estar sensível aos endereçamentos dos sujeitos e preservá-
los.
Aqui Homero encaminha, a seu modo, um dos pontos de maior tensão que resultam do
trabalho em equipe. Ele nos diz que o profissional de referência num trabalho terapêutico não
será escolhido pela equipe, mas pelo próprio paciente. O que não quer dizer que será o único
profissional a intervir, mas que será, talvez, o ponto de articulação da equipe em relação
tratamento daquele sujeito. Essa possibilidade de dinâmica para o trabalho em equipe, apontada
por Homero, desafia modos instituídos de funcionamento nos serviços de saúde. No CAPS adulto
em que realizamos a pesquisa, por exemplo, um discurso de que a toda equipe é referência
para o usuário. Porém, na prática, a referência acaba sendo o psicoterapeuta, que poderá ser
um médico ou um psicólogo. Há, ainda, muitos casos em que não é indicada psicoterapia e a
referência, na prática, passa a ser o médico que é responsável pelo tratamento medicamentoso.
Por outro lado, em muitas UBSs, nas quais os residentes realizam sua formação em serviço, a
referência é sempre o médico. O usuário passa, primeiramente, pela avaliação médica e a partir
disso é encaminhado. Vemos que a dinâmica institucional centralidade ao conhecimento
profissional na decisão sobre quem será o técnico de referência. De outra parte, na experiência de
Homero, é o dizer do sujeito escutado que deve intervir com maior peso nessa decisão.
Entretanto, essa problemática não esgota aqui seus impasses. Homero contou-nos uma
cena clínica em que opta por referenciar uma mulher em grave sofrimento psíquico (possível
diagnóstico de psicose) para a enfermeira da unidade, a qual a paciente chamava de
ginecologista. Nessa nomeação, Homero escutou a possibilidade de um endereçamento: a
enfermeira “ginecologista” poderia ajudar a mulher em suas questões sobre o feminino. Para
208
alguns, essa decisão poderia ser vista como um disparate. Como uma enfermeira poderia ser a
referência para uma paciente psicótica? Haveria de ser um psiquiatra, um psicólogo os psis,
como nos falava o arquiteto ou mesmo o médico da unidade. Esse argumento está na raiz de
toda uma linha de pensamento sobre o trabalho em equipe que situou a RIS como dispositivo de
formação de um profissional multi-função. Voltemos a esse debate, por um instante, para depois
seguirmos, com as invenções de percurso do artista de rua.
A proposição de espaços de formação integrada entre residentes de todas as profissões
levantou a questão sobre os riscos da formação de um profissional multi-função. Uma das críticas
à RIS se fez sob esse argumento e sustentava um movimento bastante intenso no sentido de
barrar, de tentar frear a proposta. Alguns profissionais da instituição colocaram que a residência
multiprofissional estaria formando uma espécie de operário da saúde, pau pra toda obra. Nesse
sentido, essa formação, ao desconsiderar as fronteiras entre as profissões, estaria precarizando o
trabalho em saúde, pela formação de um profissional de qualidade inferior ao desejado. Alguém
que, ao saber um pouco de tudo, não saberia bem de coisa nenhuma. A resposta da RIS a essa
interpolação teria sido a de que não se tratava de formar um profissional que pudesse dar conta de
tudo e do todo, mas sim de alguém capaz de a partir da especificidade de seu fazer se lançar ao
trabalho mais amplo no campo. Por isso a organização da residência teria sido pensada numa
lógica de campo e núcleo.
De todo modo, esse ponto de tensão coloca novamente em pauta a questão de como os
ideais totalitários intervêm no campo da formação. Se a RIS objetivasse a formação de um
profissional multi-função não estaria fazendo mais que perpetuar o ideal de formação de um
profissional superespecialista ponto criticado no primeiro capítulo de nosso trabalho.
Entretanto, não foi nesse sentido que Homero apontou, ao sublinhar a importância de se preservar
o laço transferencial construído com a pessoa atendida. Ele apontou, justamente, no sentido
oposto. E sobre a crítica à RIS seria preciso dizer que menos que problematizar as possibilidades
de criação de novos dispositivos de formação em saúde, esse argumento talvez buscasse encerrar
a discussão e manter o status quo vigente. Tanto que o resultado desse debate foi a cisão entre os
dois programas de residência: a Residência Médica e a Residência Integrada. Ou ainda, a
manutenção do muro de que nos falou o arquiteto e o maestro. Dessa forma, parece que o
argumento sobre a multi-funcionalidade dizia da dificuldade de se abandonar antigos
funcionamentos institucionais, que colocavam em cena uma hierarquia de valor entre as
209
profissões da saúde. Estaria então, justamente, a serviço daquilo que criticava: a manutenção do
lugar de superespecialista.
Essa hierarquia entre as profissões apareceu no relato de muitos preceptores e residentes.
Lembremos da fala de um dos profissionais do CAPS que mencionou que a hierarquia entre as
profissões acabava se reproduzindo em relação aos espaços terapêuticos. Ele nos dizia que as
oficinas, na medida em que acabavam sendo o lugar por excelência de intervenção dos não
médicos, eram vistas como um espaço terapêutico menos importante que os atendimentos
individuais psicoterapia e acompanhamento da medicação. Nesse sentido, fica evidente que a
valoração das profissões na equipe repercute na organização da atenção e que intervir no sentido
de sua reformulação poderia produzir efeitos interessantes para essa organização. Assim como a
transformação dos espaços terapêuticos poderia reverberar em novas dinâmicas de equipe e na
reconfiguração das relações de poder. Parece que era isso que estava em jogo na criação dos
CAPSs e na extinção do Hospital Dia, bem como na regionalização da rede de atenção que
conferia às unidades de saúde um lugar de extrema importância no que diz respeito à atenção em
saúde mental. Nesse sentido, o que a experiência do artista de rua veio nos mostrar é que a
importância de um espaço terapêutico não se define pelo núcleo a que o profissional que o
coordena pertence, mas pelo lugar que este espaço oferece ou não para a pessoa atendida. A
valoração do espaço vai depender não de uma hierarquia a priori de saberes profissionais, mas do
laço que o sujeito em tratamento estabelece com aquele lugar e com os profissionais que se
ocupam dele.
Entretanto, uma ação que coloca o sujeito em sofrimento, e não o saber profissional, no
centro da cena carrega consigo um componente de imprevisibilidade grande, nos dizia Homero.
Dar lugar ao imprevisível, à diferença entre o planejado e o ocorrido, à estrutura que emerge no
aposteriori seria então condição do cuidado, que põe o usuário num lugar de sujeito e não de
objeto. Porém, talvez nem todos os profissionais e equipes estivessem dispostos a isso.
Falando de seu percurso, Homero listou uma série de situações em que as diretrizes de
saúde contrastaram com a escuta da subjetividade e em que o impasse entre agir em torno da
norma ou em torno da escuta se fez presente. Naquele momento de nosso texto, nos perguntamos
se o trabalho na atenção básica convocaria o profissional de saúde mental a experimentar um
dilema que se poderia formular como: escuta do sujeito versus cumprimento da norma de saúde.
Chegamos a nos perguntar se no campo da atenção em saúde mental se experimentaria menos
210
esse tipo de impasse, que nas narrativas dos profissionais da atenção básica ele apareceu com
mais freqüência e intensidade. Construímos a idéia de que a diferença estaria no fato de que, nos
serviços de atenção à saúde mental, a escuta seria uma ferramenta cotidiana de trabalho e as
normas incidiriam com menos intensidade. Talvez por isso tal impasse não se produzisse. E
que na atenção básica as normas de saúde fizessem mais parte do cotidiano do profissional, por
exemplo, nas ações programáticas de saúde, na epidemiologia como ferramenta de planejamento
das ações, entre outras questões. Uma olhadela rápida a essa questão poderia nos levar a
conclusão descuidada de que um fazer que escuta o sofrimento daria mais lugar ao sujeito do que
aquele que visa a promoção da saúde, pois lhe seria inerente um abandono das normas do bem
viver. Porém, seria preciso, antes, se perguntar por qual escuta e, ainda, por qual promoção de
saúde.
Após alguma caminhada na discussão dos elementos encontrados no campo de pesquisa,
poderíamos dizer que esse dilema encontrou condições para armar-se em ambos os espaços e que
a diferença entre eles, talvez, esteja nos modos de seu encaminhamento. Perguntamos a Homero
sobre sua forma de lidar com as normas de saúde presentes na atenção básica, ao que ele
respondeu que é preciso abrir mão do ideal a ser atingido para tentar acompanhar e estabelecer
o que é possível. Nesse sentido, a questão estaria muito mais em como se lida com o ideal num e
noutro campo. Nas narrativas dos preceptores à frente do currículo integrado
46
, bem como de
muitos dos residentes que dele participavam, inclusive de Homero, foi possível observar a
inclusão dos impasses institucionais na construção do pensamento. A reflexão acerca do trabalho
partia da consideração desses impasses. Na saúde mental, de outra parte, percebemos que a
consideração dos impasses encontrava mais dificuldades para entrar em discurso. Como se deles
não se pudesse falar, como se sobre eles não se pudesse pensar.
Nesse sentido, passamos a pensar que essa não aparição do impasse entre escuta e
prescrição da norma não diria respeito à ausência de normas de saúde no campo da saúde mental,
mas ao recuo diante desse tensionamento. Recuo que era mais evidente nos relatos dos
preceptores do que dos residentes, mas que também apareceu na narrativa do maestro, por
exemplo. Outra diferença que merece destaque e parece relacionar-se com a questão anterior é à
referência, por preceptores da ênfase em saúde mental, em relação à residência acompanhar as
46
Entrevistamos preceptores dos programas de Residência Médica e de Residência Integrada em Saúde, porém, entre
os entrevistados, estavam preceptores responsáveis pelas aulas do currículo integrado de ambos os programas e
preceptores que dele não participavam também dos dois programas.
211
transformações nos serviços. Na saúde comunitária, pelo contrário, o serviço apareceu como o
que acompanha os movimentos da residência. Articulando essas diferenças encontradas,
chegamos à proposição de que dar lugar aos impasses na reflexão sobre o trabalho potencializa a
produção de uma posição de autoria em relação às mudanças. De outra parte, abafar os impasses
seria talvez produtor de uma posição em que se sofre, passivamente, os efeitos de uma
transformação sem se sentir participante efetivo dela. É, nesse sentido, que a questão da
consideração dos impasses na reflexão sobre o trabalho nos leva a pensar sobre os modos de
relação ao ideal no cotidiano da atenção.
Para acolher um impasse é preciso não deixar que o ideal totalitário governe as ações,
que é de não saber que um impasse se alimenta. Um impasse é sempre a posta em cena de um
problema que não encontrará solução unívoca. Diz de um duelo entre perguntas, que pode
encontrar muitos desfechos. É sempre aquilo pelo qual se desafia a autoridade do conceito.
Assim, excluir o não saber e o imprevisível da cena seria produzir uma falsa soberania. Pois, estar
na impossibilidade de perguntar é não poder padecer de uma questão, não poder padecer de uma
vivência. E toda apropriação emerge de um padecimento. A produção de um saber encontra
condições de acontecer se o sujeito (profissional de saúde e paciente) e seu padecimento estão
incluídos na cena. Desse modo, mais do que garantir uma harmonia num espaço de
aprendizagens – o que um dos preceptores da saúde mental sublinhou como importante quando se
referia à dificuldade de um residente perguntar na presença de colegas de outros núcleos [o
pessoal da medicina não participa muito dos seminários com o pessoal da RIS não. Se o
residente de psiquiatria ta com uma dúvida que ele não quer perguntar na frente da assistente
social ou da psicóloga, porque ele pode ter constrangimentos de perguntar. (cf. p.57)] a
questão estaria em poder abrir mão dela. E em como fazer dessa desarmonia, dessa
heterogeneidade um propulsor de aprendizagens.
O constrangimento de mostrar o não saber diante do outro aparece, no relato do preceptor,
como justificativa para se evitar a integração entre os programas de residência nos espaços
teóricos. A questão dos distintos níveis de apropriação do conhecimento apareceu como o que
explicaria a inutilidade dos espaços integrados de formação. Um espaço que coloca em cena o
heterogêneo seria, na visão desse preceptor, um inibidor das aprendizagens. Primeiro, porque
barraria a exposição das dúvidas. Segundo, porque os que soubessem mais teriam de escutar
sobre o que sabem, sem avançar, e os que soubessem menos não acompanhariam os conteúdos
212
mais avançados. Nivelar os conhecimentos seria então a garantia de um espaço de aprendizagem.
Assim como separar por profissões, oferecendo um espaço de estudo entre iguais, garantiria a
exposição das dúvidas e perguntas. Ambos nivelamentos sustentariam a harmonia da cena,
garantindo um espaço seguro para a formação. A dificuldade de renunciar ao lugar de especialista
se anuncia como algo natural. Uma naturalização que bloqueia a assunção de uma posição de
pergunta. Fazer o lugar do profissional coincidir com o lugar do conhecimento sem fraturas barra
aqui qualquer possibilidade construção de um saber que tenha o outro (diferente de mim) como
interlocutor.
Nesse sentido, o não saber num espaço de formação pode ser pensado como o coro na
tragédia: ele visibilidade aos padecimentos ao cantar os (des)encontros e a desarmonia. E a
potência de uma formação estaria então no estabelecimento de uma relação com a norma que não
a colocasse como um ideal totalitário a priori e na abertura de espaços para os impasses
emergentes do convívio com a diferença. É disso que nos fala Homero com seu percurso. Ele
levou a pergunta sobre de que forma trabalhar com o outro às últimas conseqüências. A
residência na atenção básica, que incluiu sua estada na comunidade com os colegas da equipe e
sua participação no currículo integrado, foi seu trampolim. Dali ele lançou-se num trabalho em
saúde mental com os moradores de rua. Nessa vivência, seguiu experimentando o desconforto
dos limites inerentes a um trabalho que coloca o sujeito e seu padecimento no centro da cena.
Limites impostos pela insuficiência do conhecimento, pela burocratização da rede de saúde, pela
singularidade da pessoa atendida, pelo encontro com a morte subjetiva e com a morte real, mas,
principalmente, pela impossibilidade de sustentação das normas como ideais totais a priori. Foi
assim que a história do artista de rua inscreveu o trabalho em saúde mental num campo de
experiência dos limites. Apenas no enfrentamento deles se poderia inventar um modo singular
desde onde trabalhar. Homero falou-nos da precipitação que há em todo ato em oposição às ações
que partem de uma anterioridade de manual. Nesse sentido, seu fazer artista resistiu aos modos de
subjetivação pelo trabalho que colocam o profissional no lugar de reprodutor de normas e
mostrou a potência de um trabalho em saúde mental que parte da interrogação. Trabalho cujo
efeito pode ser a produção de um laço singular entre profissional e pessoa atendida que abrirá
novas possibilidades de saber e de fazer para ambos.
Ao dar lugar de valor à palavra e à ação dos sujeitos que atendeu, o artista de rua fez da
cidade um lugar de ouvir e de se fazer ouvir, de agir e de testemunhar os atos dos outros, de
213
compartilhar. Na constituição de um olhar sobre o sofrimento invisível da cidade, Homero
conferiu, aos seus recantos imperceptíveis, estatuto de espaço público: lugar de exercício
discursivo e de acolhida do outro como diferença. Em sua disposição a experimentar o
desconforto, mostrou que esfera pública não é um lugar de conforto algum, mas um campo tenso
e cheio de impasses. Marcou a distância que separa coletividade e espaço público, que nem
toda coletividade propicia esse tipo de exercício. E, no fim das contas, em sua clínica de rua, ele
nos reenviou à pergunta pelos efeitos do retorno do “médico” e do louco ao espaço da cidade.
Nesse sentido, mais do que à construção de uma cidade ideal, seu fazer deu visibilidade às outras
cidades que moram na cidade. E os trajetos trilhados em direção ao outro, em sua clínica, foram
de escuta, de acolhida, de testemunho e de invenção de formas de existência. Trajetos que
carregam em si a potência de transformar a atenção em saúde mental e de interrogar os modos
normativos de se relacionar com a vida.
5. PALAVRAS FINAIS
É chegada a hora de finalizar o trabalho. Seu ponto de partida foi a pergunta pelas
condições de invenção de formas de trabalhar em saúde mental que acolhessem à existência, em
oposição aos modos de trabalhar que objetivam a subjetividade. Tal questão nos levou aos
espaços de formação multiprofissional configurados com a criação da Residência Integrada em
Saúde numa das instituições de reconhecida importância no campo da atenção em saúde de nossa
cidade. Fomos então recebidos em alguns espaços de formação em serviço de residentes, nos
quais encontramos pessoas vivenciando os impasses inerentes ao trabalho com o sofrimento do
outro e construindo possibilidades. Fizemos laços importantes nesses lugares. Laços que foram
motores dessa escrita assim como aqueles que estabelecemos em nosso grupo de pesquisa e
possibilitaram a construção que precisamos finalizar nesse momento.
Desde o início, afirmamos que buscávamos mapear a emergência de fazeres inéditos,
inventivos, que desafiassem a estabilidade dos conhecimentos e saberes. Tivemos muitas
surpresas no encontro com vários percursos de formação, mas, inevitavelmente, pudemos trazer
214
aqui apenas algumas delas. Uma odontóloga atravessada pela pergunta sobre a integralidade,
entre muitas outras questões, que nos permitiu aproximar escuta da singularidade e atenção
integral em saúde. Um médico ensaísta tentando encontrar o compasso dos tempos das ações e
resoluções no âmbito psicossocial de atenção às famílias. Um psicólogo dedicado a tecer uma
rede de saúde e uma cidade, capazes de alojar existências singulares. Ainda um médico que
trilhou o difícil caminho da solidão de governar uma orquestra no deserto em direção a um
espaço de cantar com o outro. Uma terapeuta ocupacional que nos ensinou sobre a importância de
uma presença para a emergência de uma produção, no campo da clínica e da formação. E, por
fim, um psicólogo, tragicamente artista, desafiando e sustentando os limites da clínica da
subjetividade.
Assim, diante de um vasto campo de vivência no andamento da pesquisa, elegemos essas
histórias, instigantes, inconclusas, potentes. Da mesma forma que fizemos com as inúmeras
possibilidades de articulação conceitual que a riqueza da experiência possibilitava desdobrar.
Especificamente, quanto a nosso percurso teórico, é preciso dizer que ele nos colocou diante de
inúmeros impasses. Colocamos lado a lado autores que partiam de diferentes perspectivas,
sempre buscando preservar as especificidades de suas elaborações, porém também intentando dar
visibilidade aos possíveis tensionamentos. A produção que finalizamos agora é um resultado
dessas escolhas. Sobre algumas é possível falar dizer das ferramentas e materiais utilizados,
explicitando os motivos, encadeando argumentos exercício que buscamos realizar ao longo de
nosso escrito. Contudo, em toda eleição somos também escolhidos e, sobre essa face da escolha
que nos escolhe, nos escapam os argumentos e motivos. Porém, embora a escolha traga consigo
essa dimensão de desconhecimento, ainda assim é preciso responsabilizar-se por seus
desdobramentos. A finalização deste trabalho é o ponto mais alto da assunção dessa
responsabilidade.
O final de qualquer que seja a produção sempre nos coloca diante de uma difícil tarefa:
encontrar um fim para algo que não terminará, que as questões que nos impulsionam a
produzir, mesmo que de forma sempre diferente, seguem reverberando em nós. Nesse sentido,
não finalizamos aqui porque nada mais resta a dizer, ao contrário, pensamos que o final deve ter
uma estrutura de abertura mais do que de encerramento. Deve privilegiar articulações que
apontem possibilidades para que outras proposições possam ser enunciadas. Nesse sentido,
acolhemos o “conselho” de Kiarostami (cineasta iraniano que mencionamos no segundo
215
capítulo), que costuma terminar seus filmes sem que os impasses de seus personagens sejam
resolvidos. Ele opta por colocar os impasses em cena e abrir caminhos possíveis sem se
preocupar com sua resolução definitiva. Os pontos trabalhados no quarto capítulo de nosso texto
têm, para nós, exatamente, esse estatuto de caminhos possíveis. Possibilidades construídas a
partir de (des)encontros. Pois se a matéria do trabalho em saúde é a existência, a vida singular de
profissionais e usuários, conforme sustentamos, qualquer elaboração acerca desse universo
poder ter um caráter provisório e incompleto.
Foi com esse espírito que procuramos construir nossa pesquisa desde uma perspectiva
ética e, portanto, problematizadora da cotidianidade, buscando, na narração das cenas cotidianas
de formação, a dimensão enunciadora dos saberes e das práticas como potencialmente produtora
de formas de acolher à existência. E foi nesse sentido que situamos a produção da existência num
plano trágico, atentando para a dissimetria presente no laço ao outro e para o transbordamento
dos limites da normalidade próprio da subjetividade (LACAN, [1959-60] 1997); bem como no
plano político, no seu sentido mais primordial, da polis (ARENDT, [1958] 2005), ou seja, da
emergência de um espaço entre os homens de produção de possibilidades de diferenciação e,
portanto, de formas singulares de existir. Essa perspectiva apostou no risco da desestabilização
dos sentidos estabelecidos, da perturbação de toda natureza de fronteiras, bem como da
resistência aos modelos totalizadores do pensamento. Trabalhar a história como montagem, a
experiência como provocação ao método e a ética como lugar de dar voz a trajetórias singulares
de formação foram momentos necessários e constitutivos de nosso caminho. Caminho que, desde
o início, buscava construir um olhar sobre existências em curso, acolhendo singularidades e
preservando sua dimensão de alteridade para, de algum modo, poder interrogar e agir sobre o
presente.
216
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e dá outras providências. Diário Oficial da União.
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na gestão do Sistema Único de Saúde SUS e sobre as transferências inter-governamentais de
recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União.
BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário
Oficial da União.
BRASIL. Lei 11.129, de 30 de julho de 2005. Dispõe sobre a criação da Residência em Área
Profissional da Saúde e da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde -
CNRMS.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria da Assistência à Saúde. Portaria 224/92, de 29 de
janeiro de 1992. Diário Oficial da União.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria da Assistência à Saúde. Portaria 336/02, de 19 de
fevereiro de 2002. Diário Oficial da União.
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Estadual de Saúde. Lei n° 11.789, de 17 de maio de 2002.
Cria no âmbito da SES/RS o Programa de Bolsas de Estudo para a Residência Integrada em
Saúde. Diário Oficial do Estado.
224
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Estadual de Saúde. Portaria 16/99, de 1° de outubro de 1999.
Diário Oficial do Estado.
225
ANEXO
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Esta pesquisa, realizada pela mestranda Ana Carolina Rios Simoni e, orientada pela
Profª Drª Simone Moschen Rickes, membro da linha de pesquisa Ética, Alteridade e Linguagem
do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, tem como título “A formação dos
profissionais de saúde nas equipes multiprofissionais territórios, impasses e potencialidades
do trabalho em saúde mental”. Seu objetivo é analisar os efeitos do trabalho em equipe
multiprofissional na formação dos profissionais de saúde e na produção dos modos de trabalhar
em saúde mental.
Para a elaboração da pesquisa será necessária a realização de:
1. entrevistas semi-estruturadas, que serão gravadas e transcritas, com os
coordenadores da Residência Multiprofissional (ênfases em Saúde da Família e Comunidade e
em Saúde Mental) e da Residência Médica (ênfases em Saúde da Família e Comunidade e em
Psiquiatria) sobre a organização dos dispositivos de formação e seus efeitos.
2. entrevistas semi-estruturadas, que serão gravadas e transcritas, com os residentes da
Residência Multiprofissional (ênfases em Saúde da Família e Comunidade e em Saúde Mental)
e da Residência Médica (ênfases em Saúde da Família e Comunidade e em Psiquiatria). Estas
entrevistas serão abertas e terão o objetivo de revisitar a trajetória de formação do profissional
na residência.
3. observações de momentos de formação e/ou trabalho onde os residentes de todas as
áreas que compõe ambos os programas de residência estejam em uma atividade integrada.
Será assegurado ao participante desta pesquisa:
1. Que os dados e resultados individuais desta pesquisa estarão sempre sob sigilo ético,
não sendo mencionados os nomes dos participantes em nenhuma apresentação oral ou
trabalho escrito que venha a ser publicado.
226
2. Que a participação nesta pesquisa pode ser interrompida a qualquer momento, se o
participante assim o decidir, sem que isto implique em nenhum prejuízo para si ou para sua
formação.
Após ter sido devidamente informado dos objetivos desta pesquisa e ter esclarecido
minhas dúvidas, eu ___________________________________________ concordo em
participar deste estudo. Declaro que recebi cópia deste Termo, bem como recebi a informação
de que se houver qualquer dúvida poderei contatar com a pesquisadora Ana Carolina Rios
Simoni pelo telefone (51)32257977.
Porto Alegre, ____, de_____________ de 2006.
____________________________
Assinatura
____________________________
Testemunha
____________________________
Professor responsável
227
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