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CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM
MAINA MENDES DE MARIA VELHO DA COSTA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Adriana Monfardini
Santa Maria, RS, Brasil
2006
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CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM
MAINA MENDES DE MARIA VELHO DA COSTA
por
Adriana Monfardini
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração em
Estudos Literários, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Santa Maria, RS, Brasil
2006
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM
MAINA MENDES DE MARIA VELHO DA COSTA
elaborada por
Adriana Monfardini
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA:
___________________________________________
Profa. Dra. Sílvia Carneiro Lobato Paraense
(Presidente/Orientador)
_____________________________________________
Primeiro Argüidor
____________________________________________
Segundo Argüidor
Santa Maria, 13 de março de 2006.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela concessão da
bolsa que possibilitou minha dedicação exclusiva ao mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria,
que me permitiu continuar o percurso que iniciei na graduação.
À Profa. Dra. Sílvia Carneiro Lobato Paraense, pela orientação e, sobretudo, pelo
exemplo de competência e ética profissional.
A todos os professores do programa, pelo saber compartilhado.
A todos os que, de alguma forma e dentro de suas possibilidades, ajudaram a tornar
esse percurso menos difícil – funcionários, colegas, amigos.
Ratificando pois a inteireza do fragmento, há porém a considerar a remodelação da face das
coisas, pois que a via é, decididamente, não, fluidamente – restituição ao curso de água –, a
via é para a pedra. Quero dizer ocupando arestas e sulcos e furnas e derrocada. Maravilhosa
inimportância de desagregar-se a pessoa uma. Tudo o que espasmodicamente se aclara ratifica
a explosão. Guarda-se ajustado o peso das folhas no ar e o peso do ar na pele para sempre. E,
isto é o mais importante, transmissivelmente. O canto tem tradição oral matrilinear, a história
não, que alimenta a justaposição dos fragmentos por classes etárias na sucedaneadade das
gerações viris. Na reserva, retirante, a água entra pelo discurso.
(Maina Mendes)
Desde já se pode fazer entender que nem tudo se pode fazer entender já.
(Cravo)
Confundir é a única regra que convém, segundo o entendimento que tiverdes.
(Missa in albis)
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM
MAINA MENDES DE MARIA VELHO DA COSTA
Autor: Adriana Monfardini
Orientador: Profa. Dra. Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 13 de março de 2006.
As narrativas, onde personagens se constituem através do discurso e se afirmam como sujeitos
da história, desempenham importante papel no processo de construção da identidade, não só
individual como também coletiva. O presente estudo tem como objetivo verificar, mediante a
análise das personagens do romance Maina Mendes, de Maria Velho da Costa, como esse
processo aí se configura. Examinamos, para tanto, a construção das personagens, bem como a
relação entre elas e o meio (tempo, espaço e demais personagens), utilizando-nos dos
instrumentos teórico-metodológicos fornecidos pelas obras Discurso da narrativa, de Gérard
Genette, e Problemas da poética de Dostoievski, de Mikhail Bakhtin. Tendo em vista que o
problema da identidade nacional é uma das linhas de reflexão que perpassam a obra de Velho
da Costa, procuramos agregar à análise narrativa uma reflexão sociológica, servindo-nos
também de estudos do campo da sociologia. A análise evidenciou o caráter dialógico do
discurso narrativo, onde vozes díspares se distinguem tanto nas relações interpessoais quanto
no seio do próprio indivíduo. A contraposição de vozes e o questionamento de referências
hegemônicas foram aspectos observados no processo de construção da identidade individual
que podem ser verificados também no nível coletivo.
Palavras-chaves: Identidade, Narrativa, Discurso, Voz, Diálogo.
RÉSUMÉ
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
CONSTRUCTIONS IDENTITAIRES DANS
MAINA MENDES DE MARIA VELHO DA COSTA
De: Adriana Monfardini
Directeur de recherche: Profa. Dra. Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Fait à Santa Maria le 13 mars 2006.
Les récits, où les personnages se constituent à travers le discours et s’affirment comme sujets
de l’histoire, jouent un rôle important dans le processus de construction de l’identité, non
seulement individuelle mais aussi collective. Cette étude a pour objectif de vérifier,
moyennant l’analyse des personnages du roman Maina Mendes, de Maria Velho da Costa,
comment se precessus s’y fait. Nous avons examiné pour cela tant la construction des
personnages que les relations entre eux et leur environnement (temp, espace et autres
personnagens), en nous servant d’instruments teórico-méthodologiques fournis par le oeuvres
Discours du récit, de Gérard Genette, et Problèmes de la poétique de Dostoievski, de
Mikhail Bakhtin. En considérant que le problème de l’identité nationale est l’une des lignes de
réflexion qui traverse l’oeuvre de Velho da Costa, nous avons cherché à agréger à l’analyse
du récit une réflexion sociologique, en nous appuyant sur des études du domaine de la
sociologie. L’analyse a mis en valeur le caractère dialogique du discours narratif, où voix
différents se distinguent tant dans les relations interpersonnelles qu’au sein d’un même
individu. La contraposition des voix et le questionnement sur les références hégémoniques ont
été des aspects observés dans le processus de constrution de l’identité individuelle qui peuvent
également se vérifier au niveau colletif.
Mots-clefs : Identité, Récit, Discours, Voix, Dialogue.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
9
CAPÍTULO I
MARIA VELHO DA COSTA
11
1 A autora e a Literatura Portuguesa
11
2 A obra e a crítica
20
CAPÍTULO II
MAINA MENDES, A NARRATIVA
32
1 A história
33
2 O discurso
34
CAPÍTULO III
VOZES: UM TENSO DIÁLOGO
43
1 Vozes femininas: conformação e rebeldia
46
1.1 Maina Mendes
47
1.2 Mãe de Maina Mendes
60
1.3 Hortelinda
62
1.4 Dália
66
1.5 Cecily
68
1.6 Matilde
71
2 Algumas considerações
74
CAPÍTULO IV
DO MONÓLOGO AO DIÁLOGO: UMA DIFÍCIL TRAVESSIA
79
1 Vozes masculinas: lei e contestação
79
1.1 Médico
80
1.2 Álvaro Mendes
82
1.3 Ruy Pacheco
82
1.4 Henrique
84
1.5 Fernando Mendes
88
1.6 Hermínio
103
2 Algumas considerações
104
CAPÍTULO V
CONSTRUINDO IDENTIDADES: RELAÇÕES DIALÓGICAS
108
1 O eco, a escuta
108
2 Ensaiando o diálogo efetivo
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
127
BIBLIOGRAFIA
129
INTRODUÇÃO
Nossa identidade é aquilo que somos, ou o que pensamos que somos, ou ainda (e
sobretudo) o que buscamos ser, a imagem que construímos ou que aceitamos de nós mesmos.
A busca identitária pode ser assim entendida como um processo em permanente movimento
de construção/reconstrução. Mas esse processo só pode se instaurar num tempo e espaço
dados, a partir de uma voz ou vozes que tomam a si a incumbência de, dizendo-se, constituir-
se. Daí o papel fundamental das narrativas, nas quais as personagens assumem seus lugares no
tempo e no espaço e desse modo se afirmam como sujeitos da história.
Tempo, espaço
1
, voz são, portanto, elementos que se conjugam na instauração do
processo identitário, e, por essa razão, serão considerados em nossa análise das personagens
do romance Maina Mendes, de Maria Velho da Costa. Observa-se nesse romance um
emaranhado de vozes e “lugares” sociais que se cruzam e se chocam num constante conflito.
É através desse diálogo, nem sempre efetivo, entre vozes legitimadas e vozes silenciadas ou
destituídas de valor que identidades se vão (re)construindo. Esse processo ocorre no espaço
heterogêneo que é Portugal, também marcado por uma posição de marginalidade em relação
ao centro europeu. Assim, a busca identitária individual anda a par com o processo de
construção da identidade cultural da própria nação, que também busca se afirmar ante uma
cultura hegemônica.
Objetivando verificar como a construção da identidade – individual e coletiva – é
configurada na narrativa, examinamos o modo como são constituídas as personagens, bem
como a relação entre elas e o meio (tempo, espaço e demais personagens). Partimos da
hipótese inicial de que a construção da identidade em Maina Mendes se opera através de um
processo de apropriação de espaços e valorização de lugares e discursos marginalizados,
numa relação de conflito com lugares e discursos legitimados, evidenciando a
heterogeneidade que caracteriza a nação portuguesa, bem como o próprio indivíduo. Isso
parece estar representado, no romance, pelo próprio modo de organização do texto – dividido
em partes em que diferentes vozes narrativas tomam a palavra, utilizando-se de diferentes
registros e códigos lingüísticos –, bem como pelas diferentes temáticas abordadas, e pelo
caráter fragmentário e heterogêneo do próprio discurso narrativo.
1
Quando nos referimos a “espaço”, neste trabalho, estamos considerando o espaço social; temos em vista,
portanto, não especificamente o espaço sico mas os elementos, humanos ou não, que preenchem esse espaço.
O presente trabalho estará dividido em cinco capítulos. O primeiro será reservado à
contextualização da obra de Maria Velho da Costa no âmbito literário, bem como à revisão da
fortuna crítica da autora. Já os capítulos subseqüentes serão destinados à análise e
interpretação do romance Maina Mendes.
Dividindo o processo analítico em dois momentos, abordaremos, no segundo capítulo,
os aspectos relacionados ao discurso narrativo, e, no terceiro e quarto, aqueles relacionados à
construção das personagens. Nesta etapa buscaremos explicitar os elementos que atuam no
processo de construção da identidade, bem como as tensões/conflitos que nele se manifestam.
A análise terá como instrumentos teórico-metodológicos a obra de Gérard Genette, Discurso
da narrativa, na qual o crítico aborda sobretudo as categorias de tempo, modo e voz; e
também o estudo de Mikhail Bakhtin acerca do dialogismo e da polifonia no romance,
desenvolvido na obra Problemas da poética de Dostoiévski.
No quinto capítulo, apresentaremos uma tentativa de interpretação dos elementos
analisados levando em conta também dados oriundos do campo da sociologia. Nesse
momento nos concentraremos nas relações dialógicas verificadas no romance, atentando,
sobretudo, para a heterogeneidade constitutiva das identidades individuais e coletiva. Aliando
os procedimentos da análise estrutural à análise sociológica, trilhamos um caminho
interpretativo que nos permite estabelecer uma aproximação entre o modo de construção das
personagens e o processo de construção da identidade cultural portuguesa.
CAPÍTULO I
MARIA VELHO DA COSTA
O entendimento de uma obra exige mais do que a simples leitura do texto na sua
materialidade lingüística. Uma obra específica – no nosso caso, o romance Maina Mendes
é apenas uma parte da produção literária de seu autor – aqui, Maria Velho da Costa. O
conjunto de uma obra, por sua vez, relaciona-se com outras obras de outros autores, e com
elas dialoga, configurando tendências. Essas tendências, por seu turno, ligam-se a fatores
externos, a um momento histórico e cultural que de modo mais ou menos evidente se deixa
entrever na produção literária de um dado período. Em função disso, julgamos oportuno
proceder à contextualização da obra de Maria Velho da Costa no âmbito da Literatura
Portuguesa Contemporânea, buscando delinear o seu percurso literário. Em seguida,
apresentaremos alguns estudos realizados sobre Maina Mendes, a fim de detectarmos os
caminhos interpretativos já trilhados pela crítica.
1 A autora e a Literatura Portuguesa
Maria Velho da Costa
2
é hoje um dos nomes de referência na Literatura Portuguesa
Contemporânea. Sua produção é comumente situada no seio do experimentalismo literário e
lingüístico; entretanto, o trabalho com a forma não exclui as incursões pelas questões sociais e
políticas de seu tempo, o que confere à sua obra um caráter de crítica social bastante evidente.
2
Maria de Fátima Bivar Velho da Costa nasceu em Lisboa, em 26 de junho de 1938. É licenciada em Filologia
Germânica pela Universidade de Lisboa e tem o curso de Grupo-Análise da Sociedade Portuguesa de Neurologia
e Psiquiatria. Além de dedicar-se à literatura, vem desempenhando diversas funções no âmbito da educação e da
cultura: foi professora do ensino particular; funcionária do Instituto Nacional de Investigação Industrial; membro
da direção e presidente da Associação Portuguesa de Escritores de 1973 a 1978; leitora do Departamento de
Estudos Portugueses e Brasileiros do King’s College, Universidade de Londres, entre 1980 e 1987; adjunta do
secretário de Estado da Cultura em 1979; adida cultural da Embaixada de Portugal em Cabo Verde; membro da
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Atualmente, trabalha no Instituto
Camões.
Para situar a autora no âmbito da Literatura Portuguesa, entendemos ser necessário
refazer dois percursos distintos: o da literatura de autoria feminina em Portugal
3
; e o do
movimento surrealista português. Um e outro constituem fatores que interferiram em sua
obra: o primeiro, quando menos, pelos temas abordados sob um novo ponto de vista – o
feminino; e o segundo, sobretudo pelas inovações no tratamento formal da matéria
romanesca.
Tradicionalmente, a voz e a visão masculina preponderaram na Literatura Portuguesa,
sendo a voz da mulher praticamente inaudível. É ilustrativo desse fato o caso de Irene Lisboa,
que, já no século XX, assinou suas primeiras obras literárias sob o pseudônimo João Falco
(além de ter publicado textos de pedagogia sob o pseudônimo Manuel Soares), como se o
direito à palavra fosse um privilégio concedido apenas aos homens e como se o espaço
literário fosse um domínio exclusivamente masculino. As primeiras obras de Irene Lisboa,
como apontam Saraiva e Lopes
4
, “exprimem uma angústia de uma deserdada e que, alheada
da intelectualidade, se afaz à convivência crítica dos meios populares” (p. 1028). Segundo os
mesmos autores, “tudo o que produziu reage a uma desolada situação de mulher culta e livre
num atrasado meio provinciano” (p. 1028).
Talvez esse provincianismo – melhor dizendo: esse conservadorismo do meio – tenha
mesmo obrigado uma geração inteira de escritoras a reivindicar o seu espaço, o seu direito à
escrita, antes de expressar a sua palavra literária propriamente dita. Daí o caráter de
reivindicação e protesto de muitas obras de autoria feminina que irromperam na primeira
metade do século XX. A situação social e política das mulheres é temática predominante
nesse período, que é marcado pela denúncia dos problemas por elas enfrentados em Portugal e
no mundo. A atividade literária aparece, portanto, ainda bastante ligada a lutas pela
emancipação da mulher.
Com o desenvolvimento da literatura de autoria feminina, aos poucos as escritoras
foram se desprendendo dessas questões iniciais, mais ligadas à realidade social, e passaram a
manifestar em suas obras preocupações mais estéticas, bem como uma significativa
qualificação literária, sobretudo a partir da década de 50. Saraiva e Lopes apontam a obra de
3
Apresentar um quadro exaustivo da literatura de autoria feminina em Portugal é tarefa que ultrapassa os limites
desta dissertação. Portanto nos restringiremos à literatura de ficção, sobretudo aquela produzida nas décadas de
50-60, por ser esse o período imediatamente antecedente à publicação de Maina Mendes (1969), obra cuja
contextualização interessa diretamente ao nosso trabalho.
4
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 2001.
Para evitar acúmulo de notas, as páginas dos trechos citados de mesmo autor e obra anteriormente referidos
serão apontadas no corpo do texto, entre parênteses.
Judite Navarro como o marco inicial do “mais recente e melhor surto do romance feminino”
(p. 1029) em Portugal. Seu primeiro romance, Esta é a minha história, é de 1947.
No ano seguinte, Agustina Bessa-Luís, escritora apontada como uma das mais
importantes ficcionistas da atualidade, inicia sua produção literária com Mundo fechado. Em
1954, publica A sibila, obra que, segundo Maria de Lourdes Netto Simões
5
, pode ser
considerada “marco de uma renovação fundamental ocorrida no discurso da ficção portuguesa
do século XX”.
A literatura produzida por mulheres torna-se um campo prolífero, e muitos estudiosos
apontam a emergência dessas novas escritoras como verdadeiro “surto” da ficção de autoria
feminina em Portugal. Como ficcionistas que iniciaram sua produção nas décadas de 50-60,
podem ser destacadas: Ilse Losa, Ester de Lemos
6
, Celeste de Andrade, Patrícia Joyce, Luísa
Dacosta, Fernanda Botelho, Maria da Graça Freire, Graça Pina de Moraes, Maria Judite de
Carvalho, Natália Nunes, Isabel da Nóbrega, Yvete Centeno, Maria Isabel Barreno, Maria
Ondina Braga, Maria Gabriela Llansol e Maria Velho da Costa. Despontariam nas décadas
seguintes outras escritoras, como Eduarda Dionísio, Olga Gonçalves, Lídia Jorge, Teolinda
Gersão, Hélia Correia, Clara Pinto Correia, Helena Marques, Luísa Costa Gomes, Wanda
Ramos, entre muitas outras, que, na esteira de suas predecessoras, iriam compor o quadro
atual da literatura de autoria feminina em Portugal.
Maria Velho da Costa surge para a literatura em 1966, com o livro de contos O lugar
comum, mas é com Maina Mendes, romance de 1969, que se consagra definitivamente como
escritora. Para Eduardo Lourenço
7
, esse romance constitui a “reivindicação de uma palavra
total em boca de mulher” (p. 9). Segundo o autor, no cenário das Letras Portuguesas a
“palavra feminina” só passa a ter ressonância em princípios dos anos 50, quando se instaura
uma nova ordem de discurso,
uma ordem feminina com a sua legalidade própria, a sua audácia, os seus valores, a
sua fala cada vez mais centrada na escuta de uma diferença assumida como signo do
mundo. É a primeira etapa na construção de um universo autônomo que mais tarde
dispensará como norma o outro que desde sempre lhe permitiu existir. (p. 11-12)
Em 1972, três escritoras – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da
5
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Para não dizer que não falei dos cravos. 1960-1990: o contexto histórico-
cultural português. Disponível em: <
www.uesc.br/projetos/literatura/cravos.htm>. Acesso em: 20 abr. 2004. O
texto disponibilizado em meio eletrônico encontra-se publicado em: SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. As
razões do imaginário. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado / Editus, 1998.
6
Na verdade, Ilse Losa e Ester de Lemos iniciaram sua produção em 49.
7
LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: COSTA, Maria Velho. Maina Mendes. 2. ed. Lisboa, Portugal: Moraes,
1977.
Costa – juntam-se para escrever um romance que movimentará não só o cenário literário, mas
sobretudo o sócio-político português e mundial: Novas cartas portuguesas. Por conta do teor
erótico e contestatório do escrito, as autoras foram levadas a tribunal, por desacato ao pudor e
aos bons costumes. O fato gerou manifestações em várias partes do mundo em favor das
escritoras, que foram absolvidas apenas depois do 25 de Abril. Os episódios que envolveram a
publicação do livro, bem como o próprio conteúdo deste, claramente protestatório,
contribuíram para elevar a obra a ícone da resistência feminina.
Para muitos estudiosos, essa literatura, pelo fato mesmo de ser escrita por mulheres,
reveste-se de traços tipicamente femininos, embora muitos deles possam ser encontrados
também em obras escritas por homens. As mulheres, constituindo uma classe biossocial
específica, apresentariam algumas afinidades passíveis de serem reduzidas ao que Julia
Kristeva chamou de “denominador simbólico comum”
8
. Isabel Allegro de Magalhães
9
explica
que
Trata-se de um denominador simbólico definido pela forma como as mulheres,
condicionadas por elementos fisiológicos, antropológicos, sócio-econômicos,
culturais, “deram respostas aos problemas de produção e de reprodução, material e
simbólica”. Haverá, pois uma afinidade natural e cultural, historicamente construída,
a ligar as mulheres entre si. (p. 152)
10
É justamente a expressão literária desse “denominador simbólico” que Magalhães
procurou identificar em um conjunto de cerca de quarenta romances de diversas escritoras
portuguesas contemporâneas
11
. Foram analisados três aspectos: 1) temas abordados, universos
criados e meios sociais em presença; 2) posicionamento das narradoras/autoras e criação de
suas personagens femininas; e 3) linguagem e construção narrativa.
Quanto ao primeiro aspecto, Magalhães observa que, no que se refere aos temas, não
há aparentemente qualquer elemento que indicie a autoria feminina. Os textos abordam, por
exemplo, a guerra colonial, o 25 de Abril, temas históricos, problemas sociais atuais – temas
tratados igualmente por outros escritores. Há, no entanto, uma diferença no enfoque, o que
confere a esses textos “um ambiente próprio”. Segundo Magalhães, os mesmos fatos são
narrados sob um outro ponto de vista – o feminino – que, devido ao próprio lugar ocupado
8
KRISTEVA, Julia. Le temps des femmes. Cahiers de recherches de sciences des textes et documents, 1979.
Apud MAGALHÃES, Isabel Allegro de. Os véus de Ártemis: alguns traços da ficção narrativa de autoria
feminina. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 125/126, jul./dez. 1992.
9
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. Os véus de Ártemis: alguns traços da ficção narrativa de autoria feminina.
Colóquio/Letras, Lisboa, n. 125/126, jul./dez. 1992.
10
O trecho citado por Magalhães é de Julia Kristeva (op cit. nota 8).
11
As escritoras analisadas por Magalhães foram: Agustina Bessa-Luís, Eduarda Dionísio, Fernanda Botelho,
Hélia Correia, Isabel Barreno, Joana Ruas, Lídia Jorge, Luísa Costa Gomes, Maria Gabriela Llansol, Maria
Velho da Costa, Olga Gonçalves, Teolinda Gersão, Teresa Salema, Wanda Ramos e Yvete Centeno.
pelas mulheres, difere muito do masculino, revelando uma percepção atenta a detalhes
mínimos. Para a pesquisadora, “os meandros na análise de situações, de sentimentos, de
atitudes [...] revelam uma paciência e uma atenção claramente femininas” (p. 158). Também
no que se refere aos meios sociais presentes nos romances, Magalhães observa uma maior
variedade de ambientes,
numa atenção repartida por pessoas de classes sociais que não aquela a que
pertencerão as narradoras, classes espezinhadas, sofredoras, mas de grande riqueza
humana, tendo essas pessoas uma presença na narrativa que é em si mesma
importante e não apenas subserviente em relação às personagens centrais. (p. 158)
Quanto ao posicionamento das narradoras, reiterando a observação já feita a propósito
do primeiro aspecto analisado, Magalhães constata que a maior diferença consiste na atenção
pormenorizada que se dispensa aos fatos narrados. Observa também a “corporização da idéia
de uma escrita feita com o corpo”, que tem a ver com uma “percepção interior”, que permite
expressar o corpo a partir de dentro, e com uma “captação redonda, não vectorial, da
realidade”, ou seja, “uma captação plural da vida”, em que a percepção predominantemente
visual alarga-se aos demais sentidos (p. 159). Isso se reflete na linguagem, que, segundo
Magalhães, é perpassada por uma “semântica sensual”. Para ela, há em muitas das escritoras
estudadas uma espécie de “erotismo difuso, ligado a essa forma disseminada da sensualidade
feminina” (p. 159). Outro aspecto observado é a expressão de uma ligação especial com a
terra, a natureza e seus ritmos. “Trata-se de uma relação corpórea, telúrica, com a vida, suas
fontes e seus lugares” (p. 160). Também se verifica em muitos romances a centralidade da
casa:
por um lado, a casa como lugar assimilado à natureza, com o ritmo das estações do
ano a transformar a sua configuração [...]; casa, por outro lado, como lugar de
passagem, carregada de memórias, lugar secreto, de uma intimidade quente, quase
uterina, onde decorre o presente e sobretudo onde o passado permanece, vivo nas
coisas de que falam [...]. Casa sempre pivot do universo, lugar fixo de onde as
mulheres constantemente partem para as viagens no tempo [...]. (p. 160)
Segundo Magalhães, é basicamente a relação das mulheres com o tempo o que torna as
personagens femininas especiais: “As mulheres personagens estão inseridas num presente que
quase nunca lhes é significativo. Um presente sempre insatisfeito e sempre afectivamente
habitado pelo passado ou por um porvir utópico.” (p. 161). A vivência linear é substituída
pela circularidade, ou por um “contínuo ziguezague entre momentos diferentes”, e por uma
“permanente viagem interior” (p. 161). Instaura-se, portanto, uma ruptura, caracterizada pelo
tempo vivido por dentro (“a intratemporalidade”) e pluridirecionalmente. Quanto à criação
das personagens, observa-se também uma atenção às relações intersubjetivas:
“problematizadas e reflectidas” entre mulheres e homens, “com os silêncios e as palavras
impedindo ou ensaiando pontes de diálogo”; “buscando redes de solidariedade” entre
mulheres, ou, quando se trata da ligação com a mãe, “relação sempre difícil, não pacificada
(p. 162).
Por fim, a análise da linguagem e da construção do discurso revelou que entre os
recursos utilizados estão: a integração de aspectos próximos da oralidade – frases inacabadas,
elipses, formas interrogativas, pausas, reticências, espaços em branco, etc.; fragmentação e
aparente desordem, que “manifestam a associação constante de várias redes semânticas não
hierarquizadas na memória”; ausência de “fecho”, ou fechamento “em espiral” ou “em
aberto” de muitas narrativas; combinação da racionalidade com a afetividade, que acusa a
presença de uma “inteligência afectiva, mais preocupada com a força de correlações e de
analogias do que com estruturas de coerência, ou com uma síntese, ou com a chegada a
quaisquer conclusões”; utilização plástica da linguagem, com invenção de palavras ou
alterações nos sentidos convencionais, através de procedimentos paródicos ou da
intra/intertextuais; e utilização de vocabulário típico de atividades femininas (p. 164-165).
Vários dos procedimentos observados por Magalhães são apontados por outros
estudiosos como traços da influência surrealista sobre a prosa contemporânea, de modo que se
pode estabelecer um paralelo entre os dois percursos – o da literatura de autoria feminina e o
do Surrealismo em Portugal. Ambos desenvolveram-se aproximadamente à mesma época; e
as escritoras emergentes também se apoiaram nos pressupostos surrealistas, dando início ao
processo de renovação que se observou posteriormente no campo da ficção.
Quando o Surrealismo surge como movimento poético em Lisboa, em 1948, a
produção literária em Portugal é predominantemente marcada pela estética neo-realista.
Segundo Fernando Mendonça
12
,
O movimento neo-realista é, como se sabe, de contestação. Literatura participante,
pretende intervir na construção do mundo, e a sua primeira denúncia de uma
sociedade dividida entre os que têm tudo e os que não têm nada começa por fazer-se
através do romance e do conto [...]. O Neo-realismo, que só era novo porque
apresentava a velha e dolorosa realidade de maneira nova, trouxe para a literatura
um universo de protagonistas e lugares que ainda não haviam obtido aí cidadania. (p.
63)
12
MENDONÇA, Fernando. A literatura portuguesa no século XX. São Paulo: HUCITEC, 1973.
Podemos observar a relação dos pressupostos neo-realistas com a literatura de autoria
feminina produzida na primeira metade do século XX. Sendo uma estética de denúncia da
realidade, o Neo-realismo se preocupou em mostrar as mazelas da sociedade, suas
incoerências e desigualdades, a fim de alterar a situação vigente. Segundo Saraiva e Lopes
13
,
essa era uma característica básica do movimento: “uma nova focagem da realidade
portuguesa” tendo em vista “a conscientização e dinamização de classes sociais mais amplas”
(p. 1032).
Entretanto, o que se verificou no âmbito histórico foi o desenrolar de uma grave crise
e um período sensivelmente angustiante, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial com o
apogeu da Guerra Fria. Refletindo esse clima de angústia, tendências alheias ao Neo-realismo
passam, conforme Saraiva e Lopes, “por uma evolução em que se tornam dominantes os
temas existencialistas da universal náusea e céptica indiferença a respeito dos credos e ideais
de progresso” (p. 1034). Os mesmos autores assinalam que “ao longo da década de 50, o Neo-
realismo e certas vanguardas estéticas convergem” (p. 1035).
A ressurgência dessas vanguardas evidencia a busca por um novo modo de apreensão
da realidade, ou uma nova maneira de atuar sobre ela. Essa situação é explicitada por
Mendonça
14
:
A realidade exibida, sem dúvida corajosamente, pelos neo-realistas era afinal uma
coisa tão inegável, tão visível, tão sem remédio, que o seu melhor remédio poderia
ser talvez a outra face da moeda, o reverso do realismo, ou seja, o irrealismo, o
oposto da realidade poética organizada no catálogo das convenções, o sonho. Em
suma, alguma coisa que, livre dos preceitos da razão e do estatuto admitido, voasse
sobre a realidade. (p. 67)
Mendonça procura explicar assim as razões do florescimento tardio do Surrealismo em
Portugal, em meio ao apogeu neo-realista, justificando esse fato pela necessidade de um novo
código poético para expressar a sensação de angústia e desesperança frente à realidade. É
certo que o autor se reporta à poesia, pois o Surrealismo português foi, em primeira instância,
um movimento poético. No entanto, as inovações, as possibilidades introduzidas por esse
movimento repercutiram em toda a literatura posterior à década de 50, tanto que Mendonça
distingue os diversos neo-realismos na prosa, apontando as mudanças ocorridas a partir dos
anos 50, no sentido de “um enriquecimento residual do homem açoitado pelos ventos que
sopraram de uma Europa violentada e perplexa” (p. 99).
13
Op. cit. (nota 4, p. 12).
14
Op. cit. (nota 12, p. 16).
Maria Lúcia Lepecki
15
, entretanto, sugere uma relação mais próxima entre as
mudanças na produção romanesca e o Surrealismo. Para ela, a escrita e o “modo imaginante
surrealista” têm conseqüências marcantes na prosa portuguesa posterior à eclosão desse
movimento. A autora observa que:
No decorrer dos anos 50 deu-se uma mutação de tal ordem na escrita literária [...]
que será talvez viável falar-se de uma ruptura nos modos do imaginário. Nessa
ruptura, penso, está indelevelmente inscrito o cariz do sobrerreal, no encontro de
novas formas de dizer e pensar, na invenção de outros modos de construir o texto.
(p. 31)
Lepecki acredita que essas mutações, se não foram determinadas, foram pelo menos
intensificadas com o advento do Surrealismo em Portugal. O movimento, apesar de ter sido
relativamente efêmero e circunscrito ao espaço de Lisboa, desencadeou, “uma série de
reflexos da maior importância na produção narrativa subseqüente” (p. 33).
O cinetismo, a total união dos mundos real e imaginário, a ausência de valores
absolutos, a noção de contradição, a apetência do maravilhoso, do fantástico, do insólito e do
mítico e o mecanismo lúdico são alguns traços surrealistas selecionados por Lepecki para
demonstrar as relações entre a escrita surrealista e as mutações sofridas pela narrativa
contemporânea. Conforme a autora, esses traços podem ser observados, em conjunto ou
separadamente, em escritores como Vergílio Ferreira, Fernanda Botelho, Rubem A., Cardoso
Pires, Alberto Ferreira, Maria Velho da Costa, entre outros.
Nelly Novaes Coelho
16
, em texto que aborda a ambigüidade na ficção portuguesa
produzida a partir da década de 50, também filia o surgimento dessa “atitude narrativa” à
“eclosão surrealista”, que, segundo ela, “embora de natureza poética, [...] vai actuar também
no domínio da prosa, alterando-a pela base” (p. 68). A partir do Surrealismo, a realidade é
posta em questão, levando à rejeição da atitude anterior – que pressupunha a possibilidade de
representação e interpretação de dados objetivos, estáveis e indiscutíveis – em favor de uma
atitude lúdica, que considera a realidade como “algo movediço e ambíguo que precisa ser
redescoberto em suas faces ocultas ou fraudadas” (p. 69).
Subitamente conscientes de que a arte jamais poderia expressar a Verdade global do
mundo [...] mas apenas fragmentos que jamais corresponderiam à verdade do Todo,
15
LEPECKI, Maria Lúcia. O surrealismo em Portugal: uma ruptura no imaginário. In: ENCONTRO
NACIONAL DE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS DE LITERATURA PORTUGUESA. 7.
Anais... UFMG, Belo Horizonte, 1979.
16
COELHO, Nelly Novaes. Linguagem e ambigüidade na ficção portuguesa contemporânea. Colóquio/Letras,
Lisboa, n. 12, mar. 1973.
os escritores pós-surrealistas gradativamente recusam o binômio verossimilhança-
verdade que alimentava a novelística anterior, conscientemente desfazem a aparente
ordenação do cosmos que aquele binômio tentava expressar, e tentam fixar o caos
resultante pelo fragmentarismo duma linguagem-estrutura que, ao expressar aquele
caos, torna-se simultaneamente um valor-em-si: gera um novo cosmos pela
linguagem criadora. Desse momento em diante a literatura deixa de ser resposta ao
Homem [...] para se tornar interrogação. (p. 71)
Uma vez que a realidade se revela como instável e ambígua, essa ambigüidade é transposta
para o campo da linguagem e da estruturação narrativa, permitindo que o texto se desdobre
em vários níveis interpretativos.
Cotejando algumas peculiaridades estilísticas da ficção pós-surrealista, Nelly Novaes
Coelho, aponta as seguintes: fragmentação do tempo convencional, com a tentativa de
anulação das fronteiras temporais; fragmentação da estrutura narrativa, com a anulação ou
descentralização do enredo; estilo dubidativo, decorrente de uma imagem do mundo incerta e
cambiante; desmistificação das convenções do gênero; despersonalização das personagens;
interpenetração do diálogo e do monólogo, com a utilização de “diálogos aparentes” – em que
a primeira pessoa se dirige a uma segunda que não se manifesta – e também do monólogo
interior ou do fluxo de consciência; “nova objetividade”, que consiste na “fusão da exigência
de ‘desagregação’ do real (imposta pelo Surrealismo) e da rigorosa ‘constatação’ do mesmo
(exigida pela école du regard do novo romance francês)”, que deságua no acúmulo de
pormenores descritivos; e presença do “realismo mágico” (p. 73-74).
Maria Velho da Costa, ao mesmo tempo em que pode ser filiada a uma tradição de
cunho reivindicatório, ultrapassa a divisa do feminismo, produzindo uma obra eclética,
marcada não apenas pela recorrência à temática social, mas sobretudo pelo trabalho com a
linguagem.
Maria Velho da Costa situa-se numa linha de experimentalismo lingüístico que
renovou a literatura portuguesa na década de sessenta, destacando-se no entanto na
sua geração de novelistas pelo virtuosismo único com que manuseia a língua,
associando à transgressão formal uma forte relação dialógica com obras da tradição
literária portuguesa desde a Idade Média até à contemporaneidade.
17
Esse diálogo com a tradição tem sido apontado por vários estudiosos como aspecto
recorrente na produção ficcional da escritora. Isso se revela nos textos de muitas maneiras,
como, por exemplo, nas citações, ou no pastiche paródico de diversos autores do cânone
17
Biografia de Maria Velho da Costa. Disponível em: <instituto-camoes.pt/escritores/mvelhocosta/
biografia.htm>. Acesso em: 31 mai. 2003.
literário. Em Maina Mendes (como também em outras obras), chama ainda a atenção um
certo teor poético, acentuado pelo uso de epígrafes que antecedem cada uma das várias partes
em que se subdivide o romance. Essas epígrafes são trechos de poemas, muitos de poetas
surrealistas.
O “virtuosismo lingüístico”, tão apontado na obra de Maria Velho da Costa, pode-se
dizer que denuncia certa influência surrealista, como também as inovações ao nível formal e
ao nível da estruturação romanesca. Veja-se, por exemplo, o uso de diversos pontos de vista
para referir o mesmo fato, que assim se desdobra em suas várias faces, o que de resto se
coaduna com a proposta das novas escritoras: mostrar a realidade sob um prisma outro, seja
ele o feminino ou o de outras classes marginalizadas. Desse modo, os dois referidos percursos
se cruzam para promover um amplo e complexo exercício de reflexão: sobre o dado sócio-
histórico, sobre a inscrição do sujeito na História, bem como sobre sua escrita. Estes são
alguns aspectos que perpassam toda a obra de Maria Velho da Costa, desdobrando-se em
vários temas, entre eles: a alienação, a busca identitária (individual e coletiva), a
opressão/submissão da mulher (mas não só desta), a subversão da Lei – social, política,
lingüística. Também podemos perceber em seus romances a reincidência de vários
procedimentos, que em alguns textos se refinam ou intensificam, de modo que certas técnicas
narrativas e certos temas esboçados em uma obra são desenvolvidos em outras numa espécie
de prolongamento, num diálogo incessante no seio da própria obra, a par do diálogo
implementado com a tradição. Cada obra torna-se, assim, interlocutora de outras (próprias ou
não), ou extensão delas, de forma que se pode mesmo dizer que os textos se explicam e se
complementam uns aos outros.
2 A obra e a crítica
A produção literária de Maria Velho da Costa é bastante significativa, compondo-se
sobretudo de romances, contos, crônicas, com incursões na poesia e no teatro
18
e também no
18
O lugar comum (1966, contos); Maina Mendes (1969, romance); Novas cartas portuguesas (1972,
romance); Desescrita (1973, crônicas); Cravo (1976, crônicas); Casas pardas (1977, romance); Da rosa fixa
(1978); Corpo verde (1979, poesia); Lúcialima (1983, romance); O mapa cor-de-rosa: cartas de Londres
(1984, crônicas); Missa in albis (1988, romance); Dores (1994, contos); Madame (1999, teatro); L’oiseau rare
e autres histoires (2000); Irene ou o contrato social (2000, romance).
cinema
19
. Seus livros já receberam alguns prêmios, entre eles: Prêmio Cidade de Lisboa, em
1978, por Casas pardas; Prêmio D. Dinis, em 1985, por Lúcialima; Prêmio de Ficção do Pen
Club Português, em 1988, por Missa in albis; Prêmio da crítica da Associação Internacional
de Críticos Literários, em 1995, e Prêmio Conto Camilo Castelo Branco, em 1996, por Dores;
Prêmio Virgílio Ferreira, da Universidade de Évora, em 1997, pelo conjunto da obra; Grande
Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2000, por Irene ou
o contrato social; e Prêmio Camões, em 2002.
Embora tenha sido comumente festejada pela crítica, sua obra já sofreu restrições –
impostas não pela comunidade acadêmica, que a tem acolhido e reconhecido seu mérito, mas
pelo poder oficial – como foi o caso das Novas cartas portuguesas, que lhe custou um
processo judicial. De modo geral, seus romances figuram entre os mais representativos da
ficção portuguesa contemporânea e têm sido objeto de vários estudos. É o caso de Maina
Mendes, romance cujo caráter revolucionário é constantemente apontado pelos críticos, não
só pela qualidade do texto, como também pelas técnicas narrativas utilizadas, as quais,
embora não promovam um total alheamento do cânone romanesco, chegam a provocar uma
desestabilização dentro dos limites do gênero.
Eduardo Lourenço
20
, no prefácio que fez à segunda edição do romance, afirma que a
história da heroína “é, sobretudo, e porventura com mais fundo entendimento dela, a aventura
da ficção que a inventa, e que tem no espelhismo permanente entre a peripécia e sua poética, o
seu fulcro mais revolucionário” (p. 16). O crítico concentra-se, portanto, na palavra
romanesca e no modo como ela encena a reivindicação de uma “palavra total em boca de
mulher” (p. 9). O romance é inserido, assim, na “história real e textual da moderna
consciência feminina” em que se verifica a “passagem da mulher como «objecto» à sua
conversão em «sujeito»” (p. 12). Para Lourenço, “Maina Mendes não existe para nós com a
autonomia clássica das heroínas investidas pelo olhar masculino, mas na opacidade irredutível
e fragmentada da voz que a evoca e evocando-a a constitui como sujeito” (p. 13). No entanto,
19
Inferno (roteiro cinematográfico, com António Cabrita, 2002); Que farei com esta espada? (filme de João
César Monteiro, textos de Maria Velho da Costa, 1975); Veredas (filme de João César Monteiro, textos de
Maria Velho da Costa, Carlos de Oliveira, Euménides de Esquilo, José Gomes Ferreira e João César Monteiro,
1978); Ninguém (encenação de Ricardo Pais, texto de Maria Velho da Costa e Alexandre O’Neill, 1979);
Silvestre (filme de João César Monteiro, argumento em colaboração com Maria Velho da Costa, 1982); As
damas do longe (roteiro televisivo de Maria Velho da Costa e José Fanha, 1991 [Não realizado]); Rosa negra
(filme de Margarida Gil, argumento de Maria Velho da Costa e Margarida Gil, 1992); Anjo da guarda (filme de
Margarida Gil, argumento de Maria Velho da Costa e Margarida Gil, 1998); Mal (filme de Alberto Seixas
Santos, argumento de Maria Velho da Costa, António Cabrita, Luís Salgado de Matos e José Dias de Souza e de
Alberto Seixas Santos, 1999); Adriana (filme de Margarida Gil, argumento de Maria Velho da Costa e
Margarida Gil, 2003); A cama do gato (filme de Margarida Gil, argumento de Maria Velho da Costa e
Margarida Gil [em preparação]).
20
Op. cit. (nota 7, p. 13).
a construção da personagem mediante a sua evocação pelo marido e pelo filho, afigura-se,
para o crítico, como um recurso que faz da investidura da palavra masculina um “uso
dominador”: ao ser revestida de poder, essa palavra é usada como “máscara a esse ofício
reduzida e que se pode jogar fora depois de utilizada” (p. 14).
A temática feminina é um dos aspectos que mais chamaram a atenção dos críticos no
romance, sendo recorrente não apenas na obra da autora, mas também na das demais
escritoras de sua geração. Óscar Lopes
21
sintetiza o romance Maina Mendes dizendo que ele
acompanha, através de três gerações de uma família, outras tantas formas (ou fases)
de radical inconformismo feminino (psicótico, tolerantemente permissivo e
abertamente rebelde), com uma exuberância nas mutações de focagem, nas
gradações entre a referência objetiva e a deformação conotativa de subjectividades
várias, e nas próprias microestruturas estilísticas – que de facto fazem época na
nossa arte de romancear. (p. 1104)
Essa “exuberância” assinalada por Lopes também é apontada por Américo António
Lindeza Diogo
22
, que atribui ao romance o designativo de “manual de caligrafia”.
O estilo, original, tem todavia suas feições de “gramática histórica”. Como escreve
Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa “redistribui (...) as experiências mais
criadoras da prosa portuguesa, de Fernão Lopes a Guimarães Rosa” [...]. Dir-se-ia
que há um português que foi sendo posto a usos artísticos e que assim foi assumindo
coerência e globalidade expressivas. Patrimônio a apropriar, acha-se agora tão
disponível como as técnicas de caligrafia literária.
O crítico também observa a ocorrência da “problematização da forma romanesca”.
Contudo, afirma que nessa obra, como em outras da década de 60 (refere Almeida Faria,
Cardoso Pires, Augusto Abelaira e Nuno Bragança), o destacamento dos códigos do gênero,
“a desnaturalização da representação”, não chega a prejudicar a representatividade do
romance.
Desse modo, sem sacrificar a representação do mundo característica da forma
romanesca canônica, Maina Mendes utiliza-se de uma diversidade de “técnicas literárias”,
entre as quais Lindeza Diogo aponta: a descrição ao modo do nouveau roman, a citação, a
pluralidade de focos narrativos, o contraponto, o jogo lingüístico, o exagero descritivo, o
enquadramento teatral das cenas, tudo isso aliado a uma grande diversidade temática, que não
esconde uma atitude de reflexão sobre a realidade sócio-cultural.
Atentando nas epígrafes, o autor assinala o caráter de “voz oracular” desses excertos,
21
Op. cit. (nota 4, p. 12).
22
DIOGO, Américo António Lindeza. Massa és, missa serás. Disponível em <ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk6
/ensaios/mainamen.htm
>. Acesso em: 31 mai. 2003.
que antecedem todas as várias partes do texto de forma aforística, ao mesmo tempo em que
expressam uma homenagem à literatura como forma de dizer a essência das coisas. Desse
modo, chamando atenção para a “essência oracular da literatura”, o romance coloca-se por sua
vez como “uma palavra que soberanamente diz a essência da realidade”.
Quanto ao plano temático, segundo o crítico:
estamos perante um romance histórico, em construção modernista, que trata de
destinos nacionais desde fins de Oitocentos até ao consulado marcelista, focando
especialmente a família burguesa pelo lado, até aí pouco menos que ignorado, da
dominação patriarcal.
Lindeza Diogo refere ainda o “nivelamento das técnicas literárias [...] e a estaticidade global
posta na perspectiva do fim da civilização burguesa patriarcal, a qual [...] faz do romance
como gênero o palco onde as classes e os gêneros sexuais se disputam os bens e o sentido”.
Desse modo, o autor chama a atenção para a aliança entre arte e revolução.
Maria Alzira Seixo
23
, em análise comparativa entre Maina Mendes e A noite e o riso
de Nuno Bragança (comparação, aliás, feita também por outros críticos), retoma a
aproximação realizada por Manuel Gusmão
24
entre A noite e o riso e Casas pardas, de
Maria Velho da Costa, afirmando que
se trata nos dois romances de vida e morte, e, sobretudo, do modo de as dizer e de as
calar, como de respiração liberta e de opressão social e política se trata, e literária e
vivencial também, numa relação experiencial aguda [...] entre a convenção e a
inovação nas suas formas mais diferenciadas.
Essa aproximação pode ser estendida a Maina Mendes, em que a relação entre convenção e
inovação, como em A noite e o riso, evidencia-se, conforme Seixo, tanto no plano semântico
quanto no plano sintático. Como Lindeza Diogo, também Maria Alzira Seixo atenta no caráter
tutelar das epígrafes, uma das manifestações da intertextualidade presente, aliás, tanto em
Maina Mendes como em A noite e o riso.
Atentando ainda na intertextualidade que se observa também em outras obras da
escritora, Maria Alzira Seixo lembra, a título de exemplo, o primeiro capítulo de Casas
pardas, “Casa de Elisa: vaga”, cuja designação da casa retoma o título do último capítulo de
23
SEIXO, Maria Alzira. Desencaminhados (Maina/Nuno). Sobre A noite e o riso, de Nuno Bragança, e Maina
Mendes, de Maria Velho da Costa. Disponível em
<ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk6/ensaios>. Acesso em: 31
mai. 2003.
24
Segundo Maria Alzira Seixo, no prefácio à 3ª edição de A noite e o riso, Manuel Gusmão, que prefaciou
também a 3ª edição de Casas pardas, afirma que ambos os romances realizam o mesmo movimento de
“mergulho na tradição (de imediato, na tradição literária portuguesa) e o regresso à superfície vivo” (Gusmão
apud Seixo, 2003).
Maina Mendes, “Vaga”, sugerindo um prolongamento do primeiro romance no segundo.
Essa relação entre os dois romances é apontada também por Manuel Gusmão
25
, para quem o
termo “vaga” aponta para um espaço à espera de preenchimento. A ocupação desse espaço,
que fica em suspenso em Maina Mendes, é efetivada em Casas pardas, romance que,
segundo o autor, se move “entre uma casa Vaga [primeiro capítulo] e uma casa Atrium
[último capítulo]”, “entre uma abertura em suspenso e um final de abertura”; “Atrium”
representaria o início do preenchimento desse espaço – casa – antes “Vaga”.
Observando a questão da focalização em Maina Mendes, Seixo verifica que a heroína
do romance, mesmo após ter abandonado o silêncio voluntário a que se submete, não assume
o ponto de vista narrativo. Em lugar disso, toma a palavra o seu marido, fato que, nas palavras
da autora, “faz deste livro o veículo agudo da anulação da voz feminina em qualquer das suas
formas”. Comparando a heroína Maina ao narrador do romance de Nuno Bragança, Seixo
constata que:
O narrador de Nuno liga-se sem dúvida à convulsão, Maina à evasão; o narrador de
Nuno mantém a distância da testemunha participante e comprometida, mas algo
separada, discreta, [...] por seu lado, Maina não se distancia, não se afasta, apenas se
detém, pára, e guarda no sentido dessa paragem a medida de todas as possíveis
distâncias [...].
Convulsão e distância – em A noite e o riso –, evasão e paragem – em Maina Mendes – são,
para Maria Alzira Seixo, direções diferenciadas que “contrapõem alguns dos efeitos centrais
nos dois romances”. Seixo assinala ainda a “vagueza” de Maina Mendes em contraposição à
plenitude de A noite e o riso:
A “vaga” de Maina não parece, pois, dividir-se entre a plenitude dolorosa da noite
de Nuno e a sua oscilação dramática de sofrimento e riso, de hesitação e de riscos,
antes embraia o conhecimento difuso de um lugar disperso e heteróclito (a rua, o rio,
a cidade, o mar, na paisagem; a mãe, a criada, o filho, a neta, as criadas, nos
humanos), porém afirmado como necessidade de rejeição e expectativa frustrada. O
lugar da espera.
Para Maria Alzira Seixo, Maina Mendes, em sua vagueza, em sua “perfeita quietação de
irrelevância parada”, constrói-se como “uma erecção de opacidade banal face à vagueza
generalizada da mulher cuja inoperância e tentames malogrados representa e cuja
negatividade concretamente aduz”.
O problema da opressão/marginalização da mulher na sociedade patriarcal portuguesa,
25
GUSMÃO, Manuel. Prefácio: Casas pardas – a arte da polifonia e o rigor da paixão: uma poética da
individuação histórica. In: COSTA, Maria Velho da. Casas pardas. 4. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1996.
abordado no romance, é um tema que perpassa toda a obra de Maria Velho da Costa, sendo
por isso abordado, com maior ou menor destaque, em vários estudos. O feminismo ou as
questões a que o movimento deu relevo aparecem, na maioria das vezes, através do protesto
não só contra a opressão das mulheres pela sociedade mas sobretudo contra a submissão delas
ao papel que lhes é imposto, traços da produção romanesca da autora que a crítica,
notadamente a feminista, não tem cansado de apontar.
E é sob uma ótica feminista e pós-moderna que Tereza Isabel de Carvalho
26
aborda os
romances Maina Mendes, de Maria Velho da Costa, e Ema, de Maria Teresa Horta. Depois
de efetuar um histórico da opressão e discriminação da mulher através dos tempos, analisa os
dois romances buscando em ambos “ver refletida a consciência de suas autoras, em relação
não só à transformação do papel da mulher no contexto histórico atual, mas principalmente à
natureza experimental da escrita que singulariza a arte ficcional de cada uma delas” (p. 8).
Carvalho situa tanto o feminismo como o experimentalismo no âmbito da pós-modernidade,
destacando como traços pós-modernos dos referidos romances os seguintes:
fragmentação das idéias de espaço e de tempo; multiplicidade de focos narrativos e
recursos de duplicidade ou multiplicação de imagens; verdadeiro jogo com a
ambigüidade do espaço, de forma a transformar os espaços-limites (como o da casa
para a mulher) em espaços de reclusão ou mesmo em espaços de devaneio das
personagens. (p. 127)
A multiplicidade de focos narrativos é, do ponto de vista formal, outro aspecto
bastante abordado pelos críticos que se ocupam com Maina Mendes. Esse é o centro de
atenção de Ana Maria Gottardi Leal
27
, que verifica no romance uma homologia entre
linguagem e estrutura social, destacando a “insólita e peculiar natureza renovadora [de Maina
Mendes]: a que se caracteriza pela tentativa de substituir certos modelos convencionais de
romance, a começar pela organicidade lógica da narrativa” (p. 194). Leal busca “alcançar o
significado essencial do texto estudado” procurando “relacioná-lo com o universo social” (p.
194); para tanto, vale-se do princípio de “homologia” estabelecido por Lucien Goldmann em
Sociologia da literatura.
Partindo da tripartição do romance, Leal relaciona cada uma das partes a uma
personagem e a um momento histórico distinto. Para ela, a primeira parte, centrada em Maina
26
CARVALHO, Tereza Izabel de. Feminismo e pós-modernismo em Maina Mendes e Ema. 1999.
Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. [Dissertação
orientada pela Profa. Dra. Nelly Novaes Coelho.]
27
LEAL, Ana Maria Gottardi. Maina Mendes: homologia entre linguagem e estrutura social. In: ENCONTRO
NACIONAL DE PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS DE LITERATURA PORTUGUESA. 7.
Anais... UFMG, Belo Horizonte, 1979.
Mendes, caracteriza-se “pela polioscopia, com predominância da narração impessoal” (p.
194). Acredita que o texto “reflete a sociedade burguesa liberal” de fins do século XIX, início
do XX, a qual é revelada em um “universo narrativo dominado por objetos e seres humanos
reificados” (p. 194). A segunda parte, centrada em Fernando Mendes, corresponderia a uma
outra época, a do capitalismo multinacional. Verifica aí a “anulação da autonomia do
indivíduo”, cujo discurso revela a crise de consciência diante das formas de degradação
humana, o vazio que caracteriza os homens, bem como a impossibilidade de comunicação
entre eles. A última parte, centrada em Matilde, “reflete uma época de crise de ideologia: a
crise econômica provoca a desestruturação dos valores baseados na matéria, e há a busca de
novos valores” (p. 195).
Estabelecendo a relação entre texto e sociedade, Leal constata que ambos apresentam
estruturas homólogas, o que se manifesta na narrativa tanto no plano do conteúdo como no
plano da forma. Assim, a “reificação das personagens e [a] figuração de um mundo em que os
objetos ganham autonomia” é homóloga “à reificação do ser humano na sociedade retratada
pelo texto”, da mesma forma que “a estrutura fragmentária do texto constitui uma homologia
à estrutura social fragmentária” (p. 195). Já as diferentes posturas das personagens Maina,
Fernando e Matilde constituem-se, para Leal, como “três tipos de resposta diante da
reificação”: a primeira caracterizada pela alienação e pela inconsciência, a segunda pela
consciência e pela angústia, e a terceira pela consciência e pela esperança. Assinala ainda que
as duas primeiras personagens constituem-se como seres deslocados no mundo em que vivem,
enquanto a última aparece como ser que “na sua busca de auto-afirmação adere a grupos” (p.
195).
Em outro estudo, Leal
28
retoma e aprofunda a análise do foco narrativo. Levantando
os vários tipos de narração e de focalização presentes no romance, constata que este se
caracteriza pela “focalização variável e múltipla, [...] o que, em termos de significação,
constitui um dos fundamentos da ambigüidade que atravessa todo o texto” (p. 68). Segundo
Leal, essa ambigüidade se intensifica pela conjunção de diferentes registros da fala e pelo
entrecruzamento, ou até mesmo fusão, do discurso direto, do indireto, e do indireto-livre.
Conclui que a técnica narrativa utilizada no romance “possibilita a apresentação da realidade
em várias camadas: a aparente e as subjacentes, o confronto entre elas e o desmascaramento
das convenções” (p. 72).
28
LEAL, Ana Maria Gottardi. A multiplicidade de focos narrativos em Maina Mendes. Estudos portugueses e
africanos, Campinas, n. 5, 1. sem. 1985.
José Ornelas
29
, sem desconsiderar os problemas de voz e foco narrativo, interessa-se
pela inter-relação entre linguagem, ideologia e poder verificada no romance. Para ele, Maina
Mendes “é uma obra de arte cujo objetivo fundamental é a desconstrução ideológica da
cultura patriarcal” (p. 8). Segundo o autor, a “reestruturação dos espaços textuais do
masculino e do feminino se assemelha à de revolução de classes” (p. 8-9). Como “outros
objetivos” do romance, arrola os seguintes:
Debilitar o espaço do discurso masculino, descentralizar o sujeito autopresente e
racional do humanismo, realçar a luta da mulher para criar a sua própria linguagem
e, no processo, libertar-se do discurso falo-logocêntrico, suplantar a ordem simbólica
existente [...]. (p. 8)
Apoiando-se em postulados do feminismo e da psicanálise, Ornelas parte da distinção
entre o “simbólico” (Lacan) e o “semiótico” (Kristeva), para observar de que modo essas duas
ordens atuam no romance. O autor alinha a postura textual de Maria Velho da Costa à ordem
semiótica, representada pela mulher, a qual, situando-se no espaço anterior ao
estabelecimento da linguagem racional, desestabiliza os sentidos e, assim, promove a
subversão da ordem simbólica, representada pelo homem. O espaço da lógica, da
racionalidade, dos significados estabilizados é solapado pela utilização dessa outra linguagem,
a semiótica, que se manifesta no texto de Velho da Costa através do “imprevisto em termos de
criação lingüística, caracterização, estrutura discursiva, tema” (p. 13).
Já Gislaine Simone Silva Marins
30
, tomando a mudez deliberada de Maina e a fala
incessante de Fernando como ponto de partida para a análise do romance, pretende
demonstrar que tanto o alheamento da primeira quanto a expressão do segundo revelam “uma
busca em comum pela felicidade” (p. 59). Mostra como, no caso de Maina Mendes, a mudez e
o alheamento podem servir como forma de resistência, renúncia e protesto diante da opressão.
No caso de Fernando, a partir das idéias deste acerca da linguagem, Marins sugere que a
busca do autoconhecimento através da fala e da recuperação da figura materna “visa o
surgimento de um eu fortalecido, à semelhança dela [Maina], porém em oposição, ou seja,
uma recriação do mito da horda, de Freud” (p. 62). Segundo Marins, “na recriação do mito,
Maina está na origem, portanto, representa o insondável da existência de Fernando” (p. 63).
Tendo recebido do pai a linguagem racional – que questiona – e buscando a linguagem da
mãe – que lhe é inacessível –, Fernando decide-se pelo suicídio, já que descobre ser
29
ORNELAS, José N. Maina Mendes de Maria Velho da Costa: linguagem, ideologia e poder. Letras de hoje,
Porto Alegre, PUCRS, v. 24, n. 2, p. 7-26, jun. 1989.
30
MARINS, Gislaine Simone Silva. Maina Mendes e a busca da felicidade. Letras de hoje, Porto Alegre,
PUCRS, v. 31, n. 1, p. 59-64, mar. 1996.
impossível a inteligibilidade do feminino através do uso da razão. Desse modo, Marins
conclui que “Maina, buscando o caminho da mudez, e Fernando, optando pela fala, expressam
o desejo da reconciliação consigo próprios e com os que os rodeiam” (p. 64).
No que se refere a Maina Mendes, vemos que a maior parte da crítica se ocupa com
questões relacionadas, no nível temático, à problemática feminina: a opressão da mulher, sua
submissão, resistência ou insurgência diante da ordem patriarcal. No nível da estruturação
romanesca, o aspecto mais comumente estudado é sem dúvida o foco narrativo. De fato,
qualquer estudo acerca desse romance provavelmente levará em conta esses dois aspectos,
uma vez que as questões que eles suscitam quando da leitura da obra dificilmente serão
ignoradas pelo analista.
Entretanto, a interpretação acerca da função, dentro do romance, da multiplicidade de
focos narrativos, por exemplo, pode divergir de acordo com a perspectiva adotada. Ana Maria
Gottardi vale-se do princípio da homologia para estabelecer relações entre o modo de
construção das personagens e o quadro sócio-histórico em que se inserem. José Ornelas, por
sua vez, associa o embate entre diferentes espaços discursivos à revolução de classes (ou de
gêneros). A primeira, relacionando cada parte do romance a um momento histórico distinto,
organiza sua análise considerando a narrativa como sendo representativa de uma progressão
na linha do tempo, adotando uma perspectiva que poderíamos chamar “dialética”. Já o
segundo, pressupondo o embate entre duas ordens – a semiótica (feminina) e a simbólica
(masculina) –, defende que o texto tem como “objetivo” a suplantação dessa por aquela,
sugerindo a existência de um confronto bilateral.
Uma outra opção de análise seria observar essa multiplicidade de focos
narrativos como uma das manifestações do diálogo entre diferentes vozes que buscam ocupar
o seu espaço, sem necessariamente suprimir o espaço alheio. Ao invés de uma síntese, ou de
um combate que visaria à aniquilação de um dos lados, teríamos um conjunto de vozes,
tempos e espaços distintos, que, na tensão do diálogo que implementam, promovem a
construção de uma identidade – individual e coletiva – marcada pela heterogeneidade interna.
Essa opção se aproxima de estudos feitos acerca de uma outra obra de Maria Velho da
Costa: Casas pardas, de 1977. Analisando o romance, Maria Alzira Seixo
31
chama a atenção
para o encadeamento narrativo, complexificado, em primeiro lugar, pela seriação e pelo
31
SEIXO, Maria Alzira. [Resenha crítica de Casas pardas, de Maria Velho da Costa.]. Colóquio/Letras,
Lisboa, n. 47, jan. 1979.
agrupamento triádico das casas
32
, “que subordina a casa à figura (personagem), o espaço (da
escrita, da vivência) ao seu preenchimento humano, literário” (p. 90). Alternam-se assim os
pontos de vista, e o uso das três pessoas narrativas (1ª, 2ª e 3ª pessoa), que vão sendo
consagradas no romance às diferentes personagens, “indigita um complexo processo de
assunção da subjectividade (Elvira), da sua retenção (Mary) ou transferência (Elisa)” (p. 90).
A despeito dos vários mecanismos de desconstrução presentes no romance, Seixo
assinala que ainda se evidencia ali um funcionamento baseado na representatividade. A
linguagem, porém, passa a representar “uma força primordial de organização, não
propriamente como estilo [...] mas como fundamento do próprio segmento narrativo” (p. 91).
A ambigüidade atravessa o sentido instituído e dá lugar a uma proliferação de significações.
Daí, Seixo afirmar que o romance deve ser lido “como construidíssima teia de sentidos” (p.
91), citando como exemplos os títulos dos capítulos, cujos termos constituintes podem ser
recuperados no texto, através de leitura anagramática.
Vários dos aspectos apontados por Maria Alzira Seixo são retomados e aprofundados
por Manuel Gusmão
33
, tais como a organização incomum dos capítulos, a multiplicidade de
vozes, registros, modos literários e gêneros narrativos, a intertextualidade, a polissemia do
discurso, a alternância das pessoas narrativas, entre outros. Para Gusmão, essa multiplicidade,
observada em vários níveis, constitui o diálogo em que participam várias vozes, conferindo ao
romance o seu caráter polifônico. Essa “multiplicidade polifônica”, segundo o autor,
desempenha pelo menos três funções:
– mostrar o discurso como atividade plurivocal no interior de uma única voz;
mostrar como a individuação de uma voz se tece de uma inúmera audição de várias
outras; como o discurso literário potencia a socialidade individuante da linguagem
humana;
– mostrar a dramatização da linguagem, do discurso, como drama de linguagens
diversas que se acumulam, cruzam, chocam, combatem, ironizam, questionam, em
suma, dialogam [...]. E mostrar essa diversidade como resposta e homenagem à
diversidade sensível do mundo e da cultura;
– de exigir como direito comum e individual a sumptuosidade; de a propor não
como adereço ou marca de classe, mas como inalienável apoteose da trabalhada
individuação social. (p. 37)
O “trabalho de individuação” como mecanismo de busca/construção da identidade é,
portanto, um dos aspectos explorados por Gusmão. Segundo o autor, cada uma das casas
32
O romance é composto por treze capítulos, assim organizados: três capítulos I, três capítulos II, um capítulo
intitulado “A terça casa”, três capítulos IV, e três capítulos IV. Cada capítulo corresponde a uma “casa” (Ex.:
“Casa de Elisa”), sendo que essas casas distribuem-se igualmente entre as três personagens centrais do romance:
Elisa, Elvira e Mary, com exceção da “terça casa” (escrita em modo dramático), em que as três “contracenam”.
33
Op. cit. (nota 25, p. 24).
representa “o espaço dos gestos de um corpo individual e social” (p. 19); e o processo de
individuação ocorre num “espaço multiplamente clivado”, num lugar “compósito” – social,
cultural e simbolicamente.
Manuel Gusmão não deixa de chamar a atenção para a dimensão sócio-histórica do
romance. Para o autor, a “intersubjectividade como espaço de individuação” determina-se
social e historicamente (p. 47), pois a “construção do sujeito é uma construção na comunidade
e de comunidade(s)”, a qual, por sua vez, é igualmente “dividida e heterogênea; não é um
dado fixo, mas um processo também” (p. 48). Assim os sujeitos individuais e coletivos se
(con)fundem nesse processo de individuação, que “é ao mesmo tempo movimento de
separação e de assunção; mas também de reunião de comunidades divididas” (p. 49).
Também estudos realizados sobre Missa in albis, de 1988, apresentam abordagens
que se aproximam das anteriores. Numa perspectiva sócio-histórica, Jorge Fernandes da
Silveira
34
, reconhece no romance uma clara reflexão sobre os anos 60. Alçando a escritora ao
estatuto de intelectual, Silveira assinala que poucos têm colocado de modo verdadeiramente
revolucionário, como o faz Maria Velho da Costa, a discussão sobre “a doença da censura, o
salazarismo, a guerra colonial, o feminismo, a luta das minorias, numa palavra, o início da
história portuguesa contemporânea” (p. 116).
Em Missa in albis, a ação se desenvolve no espaço da média/alta burguesia lisboeta,
onde a tensão existente entre diferentes personagens – fascistas, liberais e revolucionários –
traduz “em ficção a história da diferença” entre eles (p. 116). A multiplicação das vozes que
se observa no romance sinaliza, conforme Silveira, a descrença na “possibilidade de se
construir facto ou ficção tendo como ponto de vista a unidade e como conseqüência o relato
uniforme” (p. 116-117). Assim, para Silveira, a identidade do narrador torna-se a questão
mais enigmática da narrativa, e a organização do romance, com sua ancoragem na liturgia da
missa in albis, e com as relações de contraste que isso engendra, tem, para Silveira a função
de deslocar juízos fixados.
O deslocamento ou contestação de juízos preestabelecidos é um aspecto do romance
também assinalado por José Ricardo Nunes
35
, para quem a multiplicação das instâncias
narrativas – que se encontram ora em sintonia, ora em contradição – permite caracterizar
Missa in albis como uma obra polifônica. Nunes entende que essa pluralidade de vozes
reflete “a emergência de valores essenciais de liberdade aos níveis religioso e ético-político”
34
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. [Resenha crítica de Missa in albis, de Maria Velho da Costa].
Colóquio/Letras, Lisboa, n. 109, mai./jun. 1989.
35
NUNES, José Ricardo. Missa in albis: o aviltamento do leitor. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 143/144, jan./jun.
1997.
(p. 230). Assim é que, conforme Nunes, a narrativa de Xavier (cartas que dirige à filha Sara),
ao mesmo tempo em que se apresenta como “verdade”, põe a si mesma em questão,
questionando, em última análise, a verdade histórica:
O que se questiona também, no fundo, é a validade da narrativa única, a fé na
narrativa única enquanto texto que se enraíza no passado e condiciona presente e
futuro: ou seja, o que se desacredita é o texto da História. E o paralelo com os
Evangelhos estende essa “crise” ao plano fundamental do religioso. (p. 230)
A contestação da “verdade” é também corroborada pelo caráter duplamente ficcional da obra,
na qual muitas das instâncias narrativas se colocam como escritores, dando a ler uma história
que se apresenta como ficção.
Beatriz Weigert
36
, ao abordar o mesmo romance, também atenta no diálogo dos
discursos, apontando, entre outras, a referência histórica que perpassa a narrativa. Segundo
Weigert, “[a] História esclarece o romance” (p. 52), pois nele “[o] real visível traduz-se em
simbolização litúrgica” (p. 52). O romance – apoiando-se na organização do texto litúrgico da
missa in albis (celebração da Páscoa e do batismo: rito de entrada, portanto) – representaria o
“Batismo de Portugal, na entrada dos novos tempos políticos” (p. 38). Weigert utiliza-se da
teorização de Bakhtin sobre a carnavalização, e de Margaret Rose e Linda Hutcheon sobre a
paródia, apontando a manifestação desses procedimentos no romance. Concentra-se, todavia,
nas relações de proximidade entre o texto literário e o paratexto, sem estender-se no exame da
função da carnavalização e da paródia dentro do romance.
Em nossa análise do romance Maina Mendes, não nos afastaremos muito dos
caminhos já trilhados pela crítica. Ao examinar o modo de construção das personagens,
naturalmente nos ocuparemos com as questões relativas ao foco narrativo. Contudo,
realizaremos nossa análise com base numa perspectiva polifônica, já que partimos da hipótese
de que as personagens do romance se constituem através da tensão dialógica que se estabelece
entre elas. Assim, os estudos sobre Casas pardas e Missa in albis também nos servirão de
suporte.
36
WEIGERT, Beatriz. Maria Velho da Costa em Missa in albis. Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, 2. sem.
2003.
CAPÍTULO II
MAINA MENDES, A NARRATIVA
Para que haja narrativa é necessário que haja uma história a ser contada. Mas uma
narrativa é sobretudo constituída através do discurso, entendido aqui não só como o texto
narrativo mas também como o ato que o produz. Em vista desses diferentes (ainda que
interligados) aspectos da narrativa, Gérard Genette
37
propõe que se utilizem os termos
história
38
, narrativa e narração para designar respectivamente: “o significado ou conteúdo
narrativo”; “o significante, enunciado, discurso ou texto narrativo em si”; e “o acto narrativo
produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar”.
Genette parte do pressuposto de que toda narrativa pode ser tratada como o
desenvolvimento de uma forma verbal, consistindo, portanto na “expansão de um verbo”.
Tendo isso em conta, organiza suas categorias de análise de acordo com as categorias
gramaticais do verbo, quais sejam: o tempo, o modo e a voz.
As questões concernentes ao tempo da narrativa têm a ver com as relações que se
estabelecem entre o tempo da história contada e a organização espacio-temporal do texto que
a conta. As discrepâncias entre história e narrativa se evidenciam mediante a observação de
aspectos como a ordem temporal, a duração dos acontecimentos e da narrativa, e a freqüência
narrativa.
A categoria de modo abarca as modalidades de representação na narrativa. Conforme
Genette, a informação narrativa sofre, através do modo como é apresentada, uma espécie de
regulação, cujas modalidades essenciais são a distância e a perspectiva.
E finalmente, sob a categoria da voz, Genette situa os problemas referentes à situação
ou instância narrativa, que envolvem o narrador e seu destinatário, bem como as relações
destes com a narrativa e com a história. São questões relacionadas com a narração, em que se
encontram implicados cinco elementos: o tempo de narração, os níveis narrativos, a pessoa
narrativa, as funções do narrador, e o narratário.
37
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, 1973. p. 25.
38
Genette usa, como sinônimo do termo técnico “história”, também o termo “diegese”.
Apoiando-nos nas categorias propostas por Gérard Genete, apresentaremos a seguir
algumas considerações acerca do romance Maina Mendes. Tendo em vista os dois planos da
narrativa – o diegético e o discursivo –, abordaremos, num primeiro momento, a história, para
em seguida nos ocuparmos com o discurso.
1 A história
Os eventos narrados no romance recobrem três gerações de uma família da burguesia
portuguesa, tendo como personagem central Maina Mendes, cuja vida é apresentada desde a
infância até a velhice. O período abarcado pelo romance vai de fins dos oitocentos até a
década de 60 do século XX. A história se passa em Lisboa, mas se confina ao ambiente
familiar burguês da época. Embora a narrativa se assente sobre aspectos pessoais das
personagens principais, não deixa de tocar em questões de ordem sócio-política, econômica e
cultural.
A história não é contada de modo linear: há muitas elipses e pontos obscuros que só se
esclarecem na segunda parte da narrativa, quando o filho de Maina Mendes retoma sua
própria história de vida e a de sua mãe. O resumo que segue é, portanto, uma tentativa de
reorganização, em ordem cronológica, dos fatos e informações dispersos na narrativa.
A história se inicia pelos fins do século XIX, durante a infância de Maina Mendes,
uma menina alheia ao meio ao qual pertence e cuja única companheira é a cozinheira da casa,
a rude Hortelinda. Punida pela mãe por ter feito um gesto obsceno, Maina Mendes sofre uma
convulsão, após o que entra num estado de mudez voluntária. Deixa o mutismo quando o
primo Ruy Pacheco, a quem estima, retorna de batalhas em solo africano. Mais tarde, casa-se,
por livre escolha, com Henrique, um rico industrial, por quem ela não tem qualquer afeição.
Um filho varão é o único fruto desse casamento infeliz, que de resto não dura muito. Farto das
excentricidades e dos costumes rudes da esposa, Henrique decide divorciar-se dela. À mesma
época, Hortelinda adoece e morre, provocando o desespero de Maina Mendes, que, depois
disso, tranca-se com o filho num quarto e com uma pistola do marido dispara três tiros pela
janela. É então internada por cinco anos como doente mental, ficando o filho, Fernando
Mendes, com o pai. Maina Mendes retorna a casa quando Fernando já conta oito anos.
Henrique morre dois anos depois.
Fernando Mendes aparece, na segunda parte do romance, já na meia idade, como um
indivíduo psicológica e emocionalmente atormentado que procura tratamento na psicanálise.
É através de suas falas ao psicanalista que se tem acesso à sua história e a parte da história de
Maina Mendes e demais personagens. Assim são relatados episódios como as temporadas de
férias com o grande amigo de juventude, Hermínio, que vem a morrer de tuberculose; o
conhecimento da futura esposa, Cecily, em Londres, estando ele em estudos na Europa; o
casamento, a vida familiar e profissional; o nascimento da filha Matilde e o seu
desenvolvimento; os cuidados com a mãe já velha.
Ao final da história, na terceira parte do romance, tem-se notícia do suicídio de
Fernando, ao mesmo tempo em que Matilde, que se encontra em viagem, anuncia o seu
retorno. O romance finaliza focalizando a rotina de espera da anciã Maina Mendes.
2 O discurso
A narrativa divide-se em três partes, intituladas, respectivamente: “A mudez”, “O
varão”, e “Vaga”. Estas são subdivididas em partes menores – blocos
39
sem titulação, cuja
abertura é feita por epígrafes localizadas sempre na folha imediatamente anterior a cada
bloco. Junto a cada um dos títulos há também uma epígrafe ao fim da página. Todas as
epígrafes consistem em trechos de poemas de autores diversos, sobretudo autores ligados ao
movimento surrealista
40
. A primeira e a segunda parte da narrativa constituem-se cada uma de
doze blocos; a terceira, de dois.
39
Se levarmos em conta a fragmentação dessas partes menores, teremos que admitir que “bloco” certamente não
é um termo exato para designá-las. Todavia, por falta de outro mais adequado, e para evitar mal-entendidos,
reservaremos o termo “parte” para as seções intituladas, e “bloco” para as demais.
40
Não é objetivo deste trabalho, discutir a função das epígrafes no romance. Isso demandaria uma pesquisa mais
abrangente, com o exame detalhado da obra de cada um dos autores citados, bem como sua contextualização no
âmbito mais geral da cultura portuguesa e/ou ocidental, pesquisa essa que os limites desse trabalho não
comportam. É inegável, no entanto, que as epígrafes desempenham um papel relevante no texto, podendo-se
através delas antever temas/motivos que serão desenvolvidos na narrativa. Além disso, o uso das epígrafes é
revelador, também, de um aspecto bastante saliente na obra de Maria Velho da Costa: o diálogo com a tradição
literária que a escritora efetiva em vários níveis: através da paródia, da estilização, da citação, etc. As epígrafes
consistem em citação explícita do cânone ao qual a autora sempre recorre, seja para dele se alimentar e também
alimentá-lo, seja para subvertê-lo.
Atentando nessa divisão e na intitulação das partes, é possível perceber que a primeira
e a segunda apresentam certa homologia: as duas ocupam uma extensão mais ou menos
aproximada; ambas têm 12 blocos; ambos os títulos são compostos por artigo definido mais
substantivo; e, quanto ao desenvolvimento da história, os fatos narrados na segunda parte
retomam ou esclarecem muitos dos da primeira.
Já a última parte do romance não apresenta a mesma estruturação: subdivide-se em
apenas dois blocos, os quais ocupam uma extensão muito reduzida na narrativa. O título
apresenta outro diferencial: “Vaga” carrega uma indeterminação que não se observa nos
títulos da primeira e segunda partes, indeterminação essa atestada não só pela ambigüidade do
termo – não é possível saber se se trata de um substantivo (onda) ou de um adjetivo (vazia) –
como também pela ausência de qualquer partícula determinante. O conteúdo narrativo
também apresenta uma dissimilaridade em relação ao restante da obra: não há nenhum
acontecimento na última parte
41
; o romance termina tão vago como o título de sua parte final.
A história, pode-se dizer então, desenvolve-se de fato nas duas primeiras partes, que,
apesar das homologias, contrastam entre si em vários aspectos. Uma rápida visada sobre os
respectivos títulos já é suficiente para levantar alguns traços que as distinguem.
Confrontando-se os substantivos que compõem cada um dos títulos, pode-se observar que, ao
contrário do substantivo “varão”, “mudez” não designa um ser, ou um indivíduo, mas uma
situação, uma condição vivenciada pelo sujeito. A presença do artigo definido indica que o
termo que ele acompanha já foi nomeado ou já é conhecido. Daí depreende-se que essa
“mudez” consiste em uma condição já dada, previamente determinada. Tais elementos
apontam para aquilo que de fato se verifica na primeira parte da narrativa. No nível da
história, tem-se uma personagem principal cuja voz praticamente não é ouvida, e que, em
dado momento, de fato emudece. Mesmo depois de deixar o mutismo, suas falas são exíguas,
assim como as das demais personagens femininas. Essa situação é, pois, sugerida já pelo
título.
Quanto ao substantivo “varão”, constata-se que, além de apresentar gênero distinto, a
sua natureza concreta se opõe à natureza abstrata de “mudez”. Enquanto este último oculta o
sujeito, designando um estado, o primeiro designa o próprio sujeito, evidenciando assim um
caráter ativo. Esse caráter ativo de fato se verifica no momento em que Fernando Mendes
assume a instância narrativa. Assim cada um desses substantivos – “mudez”, feminino e
41
Estamos considerando “acontecimento”, aqui, como fato envolvendo uma ação concreta. No caso do primeiro
bloco da última parte, a nota de falecimento de Fernando Mendes e a carta anunciando o retorno de Matilde,
apesar de apresentarem fatos novos, não constituem o acontecimento propriamente dito, pois o primeiro refere
um fato já consumado e o segundo um fato que ainda não se consumou.
designativo de uma condição, e “varão”, masculino e de valor ativo – antecipam e resumem
aspectos desenvolvidos em cada uma das partes, da mesma forma que o final em aberto da
narrativa já está anunciado na indeterminação do último título.
A primeira parte – “A mudez” – é a mais fragmentada do romance, devido,
principalmente, a mudanças de foco e alterações na linha temática. Embora haja uma certa
linearidade – já que os eventos apresentados são sucessivos cronologicamente –, há elipses
temporais entre um bloco e outro, o que pode, às vezes, dificultar o encadeamento dos
segmentos narrativos. A cena e a pausa descritiva dominam a narração; seqüências de sumário
praticamente não são observadas. Isso torna a narrativa mais lenta, lentidão que, de certa
forma, é compensada através das elipses, que constituem verdadeiros saltos na história. É
interessante observar que a duração diegética que essas elipses ocultam varia até chegar à
grande elipse temporal que separa as duas primeiras partes. Embora não se possam precisar os
períodos elididos, uma vez que não há datação explícita, podem-se situar os primeiros cinco
blocos no período da infância de Maina Mendes, as elipses recobrindo espaços temporais de
dias, semanas ou meses. Entre o quinto e o sexto bloco há uma elipse temporal de maior
amplitude, pois se passa imediatamente da infância à adolescência da personagem – o que de
certa forma justifica o sumário verificado no sexto bloco. Daí em diante, os períodos elididos
se ampliam gradualmente. Essas elipses da primeira parte são retomadas através das analepses
da segunda parte do romance.
O tempo verbal que predomina na primeira parte é o presente: os eventos vão
acontecendo concomitantemente à narração, o que Genette chama narração simultânea:
Húmido na manhã, o prédio de azulejo resuma estrias de água que descem com
lentura. Os vidros das janelas estão opacos e desenha-se com a ponta do dedo um
arco de correr e o pau de guiá-lo. Em cima da cadeira pesada de arrastar, de assento
aveludado e sombrio, estão as botinas de pelica de Maina Mendes, [...]. (p. 23)
42
As anacronias observadas são completivas, como a maior parte das analepses; ou iterativas,
como nos casos em que se verificam, num mesmo segmento, analepses e prolepses que
remetem a aspectos ou fatos recorrentes, constituindo, assim, segmentos de narrativa iterativa.
No primeiro caso, o tempo verbal utilizado é ainda o presente, o recuo temporal sendo
marcado por outros elementos, conforme se pode observar a partir do fragmento a seguir:
42
Costa, Maria Velho da. Maina Mendes. 2. ed. Lisboa: Moraes, 1977.
Neste, assim como nos capítulos seguintes, todas as citações do romance serão referidas apenas pelos números
das páginas correspondentes, entre parênteses, no corpo do texto.
A mulher ri-se e pára, consentida por aquelas duras falas do cabreiro seu pai, pasma-
se de ter lembrados o cajado e o peso e o gosto do marmitão comum. As mãos
cieiradas onde a farinha se enterra aliviam-se no avental. Hortelinda não mexe.
Sorve demoradamente o que lhe parece companhia ou passado vivo. (p. 33)
O fragmento nos dá informação sobre o passado de Hortelinda; é aí que temos notícia a
respeito da origem do bordão (“Albarde-se o burro à vontade do dono”) que Maina Mendes
toma de empréstimo à cozinheira: “aquelas duras falas” pertenciam ao “cabreiro seu pai”. O
recuo ao passado, no entanto, não é textualmente enfatizado, embora possa ser percebido
através do uso de certos itens lexicais: o demonstrativo “aquelas”, que marca a distância
(nesse caso, temporal) em relação ao sujeito; o complexo verbal “ter lembrados”, que denota
recuperação de fatos através da memória; e a própria palavra “passado”, tempo no qual se
localiza o fato rememorado. Em outras passagens, a identificação da analepse torna-se ainda
mais difícil, como no fragmento seguinte:
que a enche do temor esquecido, ora volvido imperecível gula e sufocante ódio, o
temor da cabeça entrapada em burel e dos olhos negros e da mão que não bate que
olhos bastam e que a deixa partir em recatada mágoa sem choro: ‘Cidália, come-lhes
quanto bonde, amaldiçoada sejas se te cegam’. (p. 41)
Nesse fragmento, que se refere ao passado da serviçal Dália, o recuo é indicado apenas pela
palavra “esquecido”, a partir da qual se depreende que a personagem sofreu a maldição da
mãe, a esqueceu, e agora torna a lembrá-la.
Os dois exemplos citados consistem em analepses externas, assim como as que
aparecem no quinto bloco, em que episódios de batalhas são intercalados no diálogo entre
Ruy Pacheco e os tios. É nesse bloco que se encontram os segmentos analépticos de maior
extensão na primeira parte da narrativa.
Nos casos em que ocorrem concomitantemente analepses e prolepses, observa-se o uso
do tempo futuro, juntamente com elementos que indicam continuidade. Esses segmentos,
normalmente dão conta de aspectos relacionados ao caráter das personagens:
[Maina Mendes] distingue-se por uma qualidade de fero amuo marcado desde o
início, pela firme constância em desapontar, não pela vivacidade, mas pela
parcimônia e pela contenção levadas até ao absurdo.
[...]
Apenas Maina Mendes jamais seria amante em espaços curtos, nos climas sóbrios
dos tempos e da zona de gentes em que nascera, criatura demasiado habitada por
heranças outras, tenaz na ímpia solidão e avessa à domesticidade. (p. 23- 24)
Nesses trechos, são apresentados aspectos do caráter de Maina Mendes que remetem ao
mesmo tempo para o passado e para o futuro. Palavras como “firme constância” e “tenaz”
apontam para um traço invariável da personagem, que não é momentâneo. Os verbos no
futuro antecipam a história, notificando que a personagem não sofrerá mudança em seu
caráter. As preposições “desde” e “até”, no primeiro trecho, marcam uma trajetória que
principia na infância e que, num desenvolvimento gradual, terá uma continuidade “até ao
absurdo” – a mudez, o comportamento excêntrico, o retraimento, a loucura. O advérbio
“jamais” junto ao verbo no futuro “seria”, reforça a idéia de que a personagem não se
adequará aos padrões do meio a que pertence, antecipando, assim, o desenvolvimento da
história.
São iterativas também as analepses que ocorrem nas falas de Henrique, quando ele
refere o comportamento de Maina Mendes depois do casamento. É interessante observar,
entretanto, que, na grande maioria das incidências de analepses, é usado o tempo presente,
indistintamente, para referir ações habituais, aspectos imutáveis do caráter das personagens,
ou episódios pontuais. Esses últimos, de modo geral, constituem fatos marcantes (ou
traumáticos) da vida das personagens, o que pode explicar o retorno à memória no tempo
presente e não no pretérito. Vejam-se, por exemplo, os episódios da guerra rememorados por
Ruy, ou os relativos ao passado de Hortelinda, que essa relembra no leito de morte.
Na primeira parte do romance há também um maior números de personagens
atuantes
43
: Maina Mendes, a mãe, o pai Álvaro Mendes, o primo Ruy Pacheco, o marido
Henrique, a cozinheira Hortelinda, a serviçal Dália, o médico da família. Todas elas
pronunciam-se em discurso direto em algum momento do romance, e duas delas assumem a
instância narrativa: Henrique, no sétimo, nono e décimo primeiro blocos; e Hortelinda, no
último. Nesses blocos ocorre o direcionamento do discurso das personagens a uma segunda
pessoa – Maina Mendes. Nos demais blocos o narrador é extradiegético-heterodiegético. A
focalização, entretanto, é, em grande parte, interna
44
, como no primeiro, segundo, terceiro e
quarto blocos, por exemplo, em que se adota a perspectiva de Maina Mendes, ou no quinto,
em que se observa uma espécie de fluxo de consciência de Ruy Pacheco. Desse modo, temos
acesso à consciência das personagens de maneira mais ou menos direta, por meio de suas
próprias falas ou pensamentos. Pode-se dizer, portanto, que, quanto ao modo de
43
Consideramos “personagens atuantes” aquelas que atuam, elas mesmas, ativa e diretamente na história, e não
aquelas que figuram no discurso de um narrador segundo, como acontece na segunda parte da narrativa.
44
Chamamos a atenção para o fato, também referido por Genette, de que a focalização interna só pode ser
perfeita no monólogo interior, quando se tem acesso ao fluxo da consciência da personagem. Aqui consideramos
interna a focalização na medida em que é a partir da perspectiva da personagem que os fatos são narrados, as
cenas descritas estão dentro do seu campo de visão.
representação, nessa parte do romance, temos uma narrativa mais mimética, em função da
predominância da cena e da focalização zero ou interna, verificando-se, no que se refere à
distância narrativa, uma proximidade maior em relação aos fatos narrados, mesmo nos blocos
em que há mediação do narrador extradiegético-heterodiegético.
Entre a primeira e a segunda parte do romance – “O varão” –, há, como já foi
mencionado, uma grande elipse temporal que abrange mais de quarenta anos. Centrada em
Fernando Mendes, que assume a voz narrativa, a segunda parte retoma muitos pontos da
primeira, ao mesmo tempo em que dá continuidade à história. Há que se observar, entretanto,
que a narrativa aqui se desdobra em dois níveis: o diegético e o metadiegético.
No nível diegético, encontra-se a personagem Fernando Mendes, que se pronuncia em
discurso direto, enquanto indivíduo submetido à análise psicanalítica. Além desse sujeito que
fala, nesse nível verifica-se também a presença do analista que o escuta, seu interlocutor. O
tempo é o da enunciação; a narração é, portanto, simultânea, e o tempo verbal utilizado é o
presente.
No nível metadiegético, encontra-se a história narrada por Fernando, que se converte
em narrador intradiegético-homodiegético. Nesse nível, todas as personagens são
apresentadas mediante o discurso do narrador, através de cuja visão são filtradas as
informações. A narração aqui é ulterior, e o tempo verbal utilizado é o pretérito, embora se
observe, em várias passagens, o deslizamento para o tempo presente, quando a personagem
parece transportar-se para o passado, presentificando, assim, os episódios rememorados.
Na segunda parte do romance verifica-se, portanto, uma “deslinearização” da
narrativa, provocada pelos avanços e recuos no tempo da história que a narração aleatória de
Fernando promove. As analepses, que constituem o nível metadiegético, têm aqui sobretudo
função completiva. Ao lado dessa “deslinearização”, temos a uniformidade no que diz
respeito ao foco narrativo: é apenas através da visão de Fernando que a história é contada,
sendo a focalização interna, quando a personagem fala de si mesmo, mas externa quando fala
das demais personagens.
Considerando-se os dois níveis separadamente, pode-se dizer que o primeiro
apresenta, quanto à distância narrativa, o máximo de proximidade, uma vez que se pode
considerar toda a segunda parte do romance como uma grande cena dialogada, sem mediação
de narrador extradiegético. Já o segundo nível, completamente narrativizado, apresenta o
máximo de distanciamento. As poucas passagens em que se verifica o discurso relatado
consistem em frases, em discurso direto, que Fernando reproduz através da memória. A única
personagem cujo discurso não é filtrado pelo narrador é Matilde, que, através de uma carta e
de uma redação escolar, é apresentada sem mediação. Todas as demais informações são
mediadas pelo narrador, cujo distanciamento dos fatos – inclusive dos que ele mesmo
vivenciou – se dá em função do tempo transcorrido entre o vivido e o narrado.
Na última parte do romance – “Vaga” –, observam-se três segmentos narrativos
constituídos de maneira distinta. O primeiro é a nota de falecimento de Fernando Mendes,
impessoal e sumária, com narração ulterior e focalização externa. O segundo é uma carta de
Matilde, apresentando, portanto, caráter subjetivo e dialogal, e focalização interna. O terceiro
segmento constitui o último bloco do romance, e consiste numa descrição detalhada, feita por
um narrador extradiegético, com narração simultânea e focalização interna: a perspectiva
adotada é a de Maina Mendes. Grosso modo, pode-se dizer que, na última parte da narrativa, a
história é suspensa – nada acontece: a nota refere o que já aconteceu, a carta anuncia o que
está para acontecer, e o último bloco representa a espera do acontecimento.
A partir dos aspectos analisados, é possível fazer algumas generalizações acerca da
organização do discurso narrativo em Maina Mendes. A primeira parte, como vimos, é
cronologicamente (ao nível da história) mais linear do que a segunda e a terceira partes. As
anacronias, quando ocorrem, têm fundamentalmente a função de contrapor pontos de vista ou
posturas divergentes. Há predominância da cena e da pausa descritiva. A narração se
caracteriza pela variação da instância e do foco narrativo. Desse modo, ao lado do narrador
extradiegético-heterodiegético colocam-se os narradores intradiegéticos-homodiegéticos. Isso
significa que os fatos são apresentados a partir de pontos de vista distintos, os quais, na
primeira parte da narrativa, encontram-se em contraposição ou em manifesto conflito.
Na segunda parte do romance, as analepses praticamente dominam a narração,
constituindo uma narrativa em segundo nível. O narrador é intradiegético-homodiegético; a
focalização é interna, mas agora fixa, e não variável como na primeira parte. Os fatos não são
apresentados de forma direta, mas, ao contrário, são intermediados pelo narrador, que os
interpreta. As oposições entre diferentes vozes que se observavam na primeira parte
interiorizam-se, na segunda, no discurso do narrador intradiegético, que se apresenta como
uma personagem em conflito consigo mesma.
A terceira parte do romance distingue-se das anteriores pelos vários aspectos já
apontados: o título, a extensão, o conteúdo (a história aí nem avança, nem se repete:
suspende-se). Do primeiro bloco, composto pela nota de falecimento e pela carta de Matilde,
pode-se dizer que não apresenta narrador, pois os textos, como objetos físicos – nota e carta –,
apresentam-se a si mesmos. No último bloco reaparece o narrador extradiegético, mas ainda
com focalização interna.
Podemos generalizar dizendo que a focalização interna é predominante no romance.
Também a forma dramatizada, a cena, pois mesmo na segunda parte, quando há maior
incidência de segmentos puramente narrativos, sumários, esses se apresentam através do
diálogo entre o narrador-personagem e o analista, seu interlocutor. A referência a uma
segunda pessoa é também freqüente: em todas as partes em que há narração intradiegética-
homodiegética há o direcionamento do discurso a um interlocutor, mesmo que este esteja
ausente. Isso nos leva a considerar que o romance obedece a um modo de construção
dialógico, segundo o qual cada personagem que toma a palavra dirige-se sempre a uma outra,
com quem dialoga. Esse tipo de construção se reflete no discurso narrativo, que se organiza de
maneira contrapontística, opondo/justapondo tempos, espaços e discursos.
Tomemos como exemplo apenas o primeiro bloco da primeira parte do romance. O
texto começa com a descrição do espaço – a sala – em que se encontra Maina Mendes. Entre
esse primeiro parágrafo e o seguinte há um espaçamento. O segundo parágrafo, sem maiores
transições, inicia: “No quarto...”, e apresenta a mãe de Maina Mendes (veremos que estas
duas personagens adotarão posturas divergentes no romance). Num terceiro parágrafo,
separado do anterior também por um espaçamento, voltamos à sala, de cujo espaço se alude
ao que acontece na cozinha, onde está Hortelinda (“Os arranques da mãe chegam à sala quase
intactos. Maina Mendes sabe que [...] a Hortelinda secou as mãos [...] e caminhou da cozinha
para aquelas massas fluidas”, p. 25). Maina e Hortelinda são personagens bastante próximas,
o que no entanto não é explicitado discursivamente. No quarto parágrafo, temos ainda a
descrição da sala. Mas o parágrafo seguinte começa: “A rua...”, estabelecendo a oposição
entre os espaços descritos. Segue-se a cena em que Maina observa um rapaz da rua através do
vidro da janela – “O rapaz sem sapatos, que prende ali a arreata...” (p. 26). A descrição se
estende por mais um parágrafo. A caracterização do rapaz é feita em oposição a Maina
Mendes, embora entre eles se verifiquem afinidades. Já no parágrafo seguinte, aparece uma
figura oposta à do rapaz: “No passeio de lá, da capelista [...] sai uma mulher...” (p. 26); veja-
se também a contraposição de espaços (“ali” e “lá”). No oitavo parágrafo temos a oposição
rua – sala. E o último culmina com a oposição da própria personagem Maina Mendes ao
espaço doméstico.
Percebe-se, nesse primeiro bloco e também nos demais, que todas as relações, mesmo
as que sugerem afinidades, se estabelecem por contraposição. Isso vale também para o
encadeamento dos blocos, entre os quais não se observa qualquer transição. Assim vamos
“saltando” de um espaço a outro, da mesma forma que se vão alternando os assuntos, os
modos de representação do discurso (do discurso narrativizado para o relatado), os focos e as
vozes narrativas – abruptamente, às vezes desconcertando, por instantes, o leitor.
Uma outra forma de oposição ocorre no quinto bloco, onde os fragmentos que
representam a visão de Ruy Pacheco sobre a guerra se intercalam no diálogo com os tios, em
franca oposição à visão destes. Mesmo que não haja aqui uma referência explícita à segunda
pessoa (ou à outra visão), o modo de organização desses fragmentos, como se fossem turnos
de fala, realçam o seu caráter dialógico. Esse diálogo se formaliza a partir do quinto bloco,
através da inserção do discurso direto das personagens ou da narração em primeira pessoa
com referência à segunda – como as falas de Henrique e Hortelinda, que se dirigem a Maina
Mendes, ou as falas de Fernando Mendes, dirigidas ao analista, ou ainda as cartas de Matilde,
endereçadas ao pai –, revelando um tipo de construção dialógica do discurso narrativo, o que,
de resto, se verifica de uma maneira geral, em todo o romance.
CAPÍTULO III
VOZES: UM TENSO DIÁLOGO
Já explicitamos que, em nossa análise, partimos da hipótese de que a identidade em
Maina Mendes se constitui a partir da tensão entre discursos conflitantes. O embate ou a
coexistência de vozes díspares foi um aspecto observado por Mikhail Bakhtin
45
na obra de
Dostoievski, cuja análise serviu de ponto de partida para a formulação da teoria da polifonia
no romance. Passando em revista a literatura crítica sobre a obra do escritor russo, Bakhtin
mostrou que as “contradições” ali presentes, que a maior parte da crítica insistia em
uniformizar mediante o enquadramento em um discurso monológico, na verdade, só poderiam
ser compreendidas dentro de uma concepção polifônica. Para Bakhtin, “A multiplicidade de
vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes
constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski.” (p. 4, grifo
do autor). A imiscibilidade dessas vozes impossibilita sua redução a um discurso monológico:
representando consciências independentes, elas implementam o diálogo sempre inconcluso e
que não se resolve por dialética alguma.
A observação da ausência de uma formação dialética em Dostoievski permitiu a
Bakhtin perceber que o princípio fundamental da visão artística do autor é o da coexistência e
interação. As contradições não se resolvem no decorrer do tempo; ao invés disso, elas se
dramatizam, através de vozes que dialogam entre si, apresentando-se em contigüidade e
simultaneidade num mesmo tempo-espaço.
Mas a interação de consciências, para Bakhtin, não se dá apenas ao nível das relações
entre os homens (ou personagens), pois “cada idéia da personagem é internamente dialógica,
tem coloração polêmica, é plena de combatividade e está aberta à inspiração de outras [...].
Cada idéia [...] sugere desde o início uma réplica de um diálogo não-concluído.” (p. 32, grifo
do autor). Assim, subjacente a todo diálogo, ou mesmo ao monólogo, podemos perceber
sempre a presença de um “microdiálogo”, que pode se manifestar ao nível da frase, ou mesmo
da palavra. O caráter dialógico do romance não se esgota, portanto, nos diálogos propriamente
ditos entre personagens, pois, segundo Bakhtin, no romance polifônico há “relações
45
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2002. Para evitar acúmulo de notas, as páginas dos trechos citados dessa obra serão referidas no corpo do texto,
entre parênteses.
dialógicas entre todos os elementos da estrutura romanesca, ou seja, eles estão em oposição
como contraponto” (p. 42). O crítico explica que esse tipo de romance é construído como um
grande diálogo, em cujo interior ecoam os diálogos composicionalmente expressos das
personagens, os quais se adentram em cada palavra do romance, tornando-o bivocal.
Se o diálogo é infindável, permanecendo sempre inconcluso, e se a personagem
incorpora esse diálogo, assim como o incorpora o próprio discurso romanesco, pode-se
concluir daí que a personagem da narrativa polifônica assume (como a própria narrativa em
sua totalidade pode assumir) um caráter inconcluso. As personagens do romance polifônico
não são definidas rigidamente, nem interessam pelos seus traços típico-sociais, mas
interessam, sim, enquanto “ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma,
enquanto posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade
circundante” (p. 46, grifo do autor).
Desse modo, o que assume importância fundamental não é a personagem como ser
determinado, mas a sua consciência e autoconsciência sobre o mundo e sobre si mesma. A
personagem emerge, assim, como discurso, como pura voz, permanecendo sempre inacabada,
porque “o homem nunca coincide consigo mesmo” (p. 59). Para Bakhtin, em Dostoievski, “a
autêntica vida do indivíduo se realiza como que na confluência dessa divergência do homem
consigo mesmo, no ponto em que ele ultrapassa os limites de tudo o que ele é como ser
material” (p. 59). O autor, no romance polifônico, não fala da personagem, mas com a
personagem, a qual se constrói por meio desse diálogo. O ponto de vista racional e neutro da
terceira pessoa sobre a personagem dá lugar ao que Bakhtin chama “discurso da segunda
pessoa e não da terceira” (p. 64, grifo do autor). Esse “clima de segunda pessoa” tem por
finalidade provocar a personagem, obrigando-a revelar-se; o discurso volta-se para ela, “como
discurso acerca de um presente e não acerca de um ausente” (p. 64, grifo do autor).
Bakhtin também chama a atenção para o estatuto de ideólogo que o herói assume em
Dostoievski. Na constituição da personagem, o discurso sobre si mesmo funde-se com o
discurso sobre o mundo, ocorrendo, assim, a “fusão artística [...] da vida com a visão de
mundo” (p. 77). Como a idéia parte da personagem, e não do autor, não há uma estruturação
monológica em cima de uma única idéia a ser afirmada, enquanto as demais são negadas. Ao
contrário da cosmovisão sistêmico-monológica do próprio autor, encontramos a representação
da idéia do outro. Assim, a idéia por si só não ocupa nenhum papel preponderante na obra: o
verdadeiro herói da obras de Dostoievski é o “homem de idéias”, sendo a “imagem da idéia
[...] inseparável da imagem do homem” (p. 84).
Importa lembrar que a idéia, assim como o discurso e o próprio homem, apresenta um
caráter sempre inacabado, já que só se corporifica a partir do diálogo infindável com outras
idéias. Segundo Bakhtin, Dostoievski teve a profunda compreensão “da natureza dialógica do
pensamento humano, da natureza dialógica da idéia” (p. 86). As idéias, vozes, consciências
que dialogam nos romances de Dostoievski, segundo Bakhtin, não são inventadas pelo autor,
mas sim auscultadas e representadas artisticamente. Para o crítico, o romancista tinha o dom
de “auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só as vozes isoladas
mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas” (p.
89). Nessa ausculta, percebia não apenas as vozes-idéias dominantes, mas também as
incipientes, fracas ainda, “idéias latentes”. Além dessas, o escritor auscultava também “os
ecos das vozes-idéias do passado” próximo ou distante, e também procurava adivinhar as do
futuro. Dessa forma, “no plano da atualidade confluíam e polemizavam o passado, o presente
e o futuro” (p. 89).
Ao abordar o discurso em Dostoievski, Bakhtin demonstra como o dialogismo e a
polifonia se convertem, ao nível da linguagem, em microdiálogo. Mostra, por exemplo, como
várias vozes-idéias podem ecoar em um único enunciado, ou até mesmo em uma única
palavra. O diálogo das vozes penetra assim no interior do discurso, provocando a bivocalidade
discursiva.
Em nosso estudo, procuraremos explicitar os mecanismos desse diálogo, em suas
várias manifestações, através da análise das personagens. É necessário, entretanto, que se faça
antes um breve esclarecimento com relação a dois termos que serão constantemente
utilizados: “discurso” e “voz”. Esses termos assumem sentidos diferentes em Bakhtin e
Genette. Para evitar mal-entendidos, neste trabalho, quando nos referirmos aos sentidos que
Genette lhes atribui, diremos “discurso da narrativa” e “voz narrativa”; para retomarmos os
sentidos atribuídos por Bakhtin, utilizaremos apenas “discurso” e “voz”.
Uma primeira leitura do romance mostrou que as personagens podem ser agrupadas de
maneira a formarem conjuntos em oposição. Esses conjuntos são representativos de
ideologias ou consciências díspares, denotando um quadro de heterogeneidade e conflito
dentro do espaço abarcado pelo romance. Esse quadro de oposição consistiria num primeiro
plano do grande diálogo que se estabelece entre as personagens. Num segundo plano,
podemos encontrar um outro tipo de relação: algumas personagens – através de seu discurso,
comportamento, postura frente à realidade, etc. – têm uma espécie de ressonância na
narrativa. As relações dialógicas que se estabelecem entre as muitas vozes que atravessam o
romance vão se propagando, até interiorizar-se no discurso do indivíduo, que se constitui a
partir desse diálogo. Interessa-nos, portanto, analisar o modo como as personagens (discursos)
se apresentam na narrativa, como se associam e como se contrapõem, e finalmente como
ressoam nas demais para construir a identidade.
Neste capítulo, abordaremos as personagens femininas; no capítulo seguinte, as
masculinas. As relações entre os dois grupos serão examinadas no quinto capítulo, onde
buscaremos também estabelecer relações entre a representação romanesca e o contexto sócio-
cultural.
1 Vozes femininas: conformação e rebeldia
O romance, afora os aspectos sócio-históricos mais gerais, toca na questão da
identidade feminina e no papel da mulher numa sociedade patriarcal. Excluída desde sempre
do centro do poder, a mulher se constrói a partir da margem. Porém a marginalidade, aqui,
assume um caráter diferenciado: deixa de ser simplesmente o espaço para onde são
impelidos os destituídos de poder e passa a ser um espaço de resistência, não mais imposto,
mas exigido. Entretanto, essa rebeldia não marca todo o segmento excluído (no caso, o das
mulheres). Pode-se perceber, no romance, uma oposição entre um tipo de personagem que
está conformada ao seu papel social
46
, e por isso mesmo não tem consciência de sua
marginalidade, e um segundo tipo que não se amolda ao papel social que lhe é imposto e
que, consciente de sua posição marginal, a assume numa atitude de confronto e diferenciação
em relação aos padrões estabelecidos
47
. Examinaremos esses diferentes comportamentos
mediante a análise das personagens femininas do romance.
46
O papel social, segundo Peter Burke, é “definido com base nos padrões ou normas de comportamento que se
esperam daquele que ocupa determinada posição na estrutura social”. (BURKE, Peter. História e teoria social.
São Paulo: Editora da Unesp, 2002. p. 71.)
47
Desde já esclarecemos que as personagens consideradas no romance não são excluídos sociais; ao contrário,
são elementos que possuem um papel social dentro da ordem instituída. No romance, as personagens estão
marginalizadas não pelo fato de estarem à margem do sistema, sem uma função social definida, mas pelo fato de
essa função ter um valor secundário dentro desse sistema. No caso de Maina Mendes e Hortelinda, a
marginalização se dá pelo fato de elas frustrarem as expectativas com relação ao cumprimento de seu papel
social. Além disso, a marginalização contestada no romance diz menos respeito à classe que ao gênero. É o papel
da mulher e a sua marginalidade dentro do centro da sociedade que é o objeto de reflexão.
1.1 Maina Mendes
Maina Mendes é a única personagem que figura nas três partes do romance: a narrativa
começa e termina com ela. Contudo, seu perfil só pode ser traçado considerando-se os vários
pontos de vista sob os quais é apresentada, uma vez que, por suas próprias palavras, ela pouco
se manifesta, e suas ações, na maior parte, são referidas apenas por outras personagens.
Assim, é caracterizada, sucessivamente, por um narrador extradiegético-heterodiegético e
pelas personagens Henrique, Hortelinda e Fernando, que assumem temporariamente a
instância narrativa. Há ainda que considerar os juízos de Cecily, Hermínio e Matilde,
fornecidos através do relato de Fernando Mendes, além das falas da própria personagem.
Ao narrador extradiegético-heterodiegético cabe apresentar a infância e a adolescência
da personagem. Já no início da narrativa, Maina Mendes, ainda menina, é caracterizada
psicologicamente:
De compostura grave, paramentada de boneca limpa, Maina Mendes desenha a dedo
fugas moventes na névoa que da boca seca cai no vidro. Muitas crianças o fazem
[...], mas nenhuma com tão pouca alegria e tão quieta ira. [...], e não há crianças a
estar por sobre uma cadeira de sala tempo tanto, desenhando no vidro com tal
rancor, coisas que embora de lâminas e rodas e rápidas [...] não são do rapaz oculto
na menina sã a desbravar, mas antes de uma fúria de fêmea e atilada, de uma
persistência maior em ir-se ou acabar o em torno. Maina Mendes distingue-se de
todos os pregados na manhã detrás de um vidro numa casa que não lhes é lição de
vida, por sua lama escorraçada e seus insectos mortos, por tão conhecida em suas
leis e odores, crianças de gente vivendo a minúcia de preservar-se, distingue-se por
uma qualidade de fero amuo marcado desde o início, pela firme constância em
desapontar, não pela vivacidade, mas pela parcimônia e pela contenção levadas até
ao absurdo. (p. 23)
Observa-se já nesse fragmento uma tensão entre a personagem e o espaço que a circunda. O
descontentamento em relação ao meio burguês é marcado por várias expressões relativas ao
seu estado de espírito: “tão pouca alegria e tão quieta ira”, “tal rancor”, “fúria de fêmea e
atilada”, “fero amuo”. Os seus desenhos de “fugas moventes”, revelam o desejo de romper
com a posição social que a obriga a estar “pregad[a] na manhã detrás de um vidro numa casa
que não [lhe] é lição de vida”. A “firme constância em desapontar”, a “parcimônia” e a
“contenção levadas até ao absurdo” surgem assim como atitude de rebeldia diante de uma
realidade que a personagem não pode transpor: entre ela e a rua há o vidro da janela. O
distanciamento de Maina Mendes em relação ao próprio ambiente é, no entanto, evidente,
podendo ser percebido até pelo modo como o narrador a situa em meio aos objetos:
Em cima da cadeira pesada de arrastar, de assento aveludado e sombrio, estão as
botinas de pelica de Maina Mendes, cujos dedos põem ainda entre si e o vidro, por
sobre a rua, os círculos do barco a vapor e depois as lâminas de uma tesoura aberta.
(p. 23)
Note-se que o nome próprio não aparece como sujeito da sentença, mas como adjunto
adnominal: são as botinas de pelica de Maina Mendes que estão sobre a cadeira. Essa
sinédoque acentua o distanciamento da personagem, apresentada desde o início como não
pertencente ao seu tempo e lugar: sua índole indócil não provém “dos tempos e da zona de
gentes em que nascera, criatura demasiado habitada por heranças outras, tenaz na ímpia
solidão e avessa à domesticidade” (p. 24).
Outro indício desse afastamento em relação ao meio pode ser observado no episódio
do contato visual da menina com a rua. Olhando através do vidro da janela, observa um
verdureiro que passa com sua carroça entoando o pregão. O movimento da rua aparece em
contraste com a quietude e gravidade da sala: “a rua oscila para lá do bafo e do vidro
desenhado” (p. 25); “tudo oscila e bate cavo na madeira estalada e chiam as rodas no bradar
rouco do pregão junto aos brandos haustos da mãe lá dentro” (p. 26). A oposição dentro/fora
fica bem marcada: espacialmente, pelos advérbios “para do vidro” (a rua) e “lá dentro” (a
casa); e qualitativamente, pelo contraste entre duas realidades distintas, evidenciado pelo jogo
entre as palavras “bradar” e “brandos”, a primeira sugerindo a rudeza da rua, e a segunda, a
contenção, a mesura do ambiente doméstico.
Segue-se a caracterização de um rapaz que acompanha o verdureiro:
O rapaz sem sapatos, que prende ali a arreata do burro e levanta a cabeça às manchas
da janela, tem um lenho seco na cara e a jaqueta estripada e as calças sobre a perna,
onde há desenhos de água com terra e palha presa, acabam em fiapos e troços de
linha de outra cor. O homem brada para o outro lado da rua, ao ar alto, a mão em
garra mal aberta. O rapaz está agora muito quieto, decifrando a janela como pode e
interroga, apenas a narina não serena. (p. 26)
Observe-se a aproximação do rapaz e do homem a um estado mais primitivo, não só pela sua
própria natureza rude e tosca, apontada na descrição dessas figuras humanas, mas pelo uso de
palavras que remetem ao mundo animal: “mãos em garra”, “narina não serena”, esta última
expressão fazendo lembrar um animal que fareja.
Aparentemente a figura do rapaz se contrapõe à de Maina Mendes: ela de botinas, ele
sem sapatos; ela limpa, ele sujo; ela na sala, ele na rua; ela rica, ele pobre. Há, no entanto, um
momento de reconhecimento entre eles, o momento em que há a reciprocidade do olhar e, em
seguida, a comunicação efetiva através do gesto obsceno que ele lhe envia e que ela devolve.
Rijo momento sem estima, rijo momento o do embate vero das criaturas sem
pertença e sem partilha, centelha do movimento, isenção da falsa paz do
reconhecido. [...]
[...] A carroça vai chiante no peito de Maina Mendes que repete, batendo a dor que
tão rara lhe é, presa aos tropeços do burro e do verdor e à ida da jaqueta coçada e da
cabeça curta onde os cabelos se agregam por grumos tenazes: ‘rapaz da rua, ó rapaz
da rua, rua, rua...’ (p. 26)
Evidencia-se nesse trecho a proximidade, a despeito das diferenças exteriores, entre essas
duas “criaturas sem pertença e sem partilha” – o rapaz, pária da sociedade, e Maina Mendes,
estranha e hostil em relação ao meio em que vive –, aproximando-se ambos pela
excentricidade (marginalidade) que lhes é inerente. Maina reconhece no rapaz elementos de
identificação consigo mesma; por isso prende-se ao ir da carroça e do rapaz, ida que
representa, do mesmo modo que o barco e a tesoura desenhados no vidro, o movimento de
afastamento e ruptura com relação à realidade conhecida e repudiada pela personagem.
A rua e a sala surgem como espaços representativos de realidades distintas, distinção
manifesta pela contraposição entre o movimento da primeira e a estagnação da segunda:
A rua para ali vai e por trás dela as coisas estão paradas de uma maneira fixa e
precisa, de sempre, pois o espanador de arrancadas penas passa e passa o pano
peloso, mas mantêm-se os braços em meio abraço negro dos cadeirões na
obscuridade, os crochets que protegem e estiolam na luz parca, as volutas
trabalhosas dos pés das mesas, as porcelanas azuis onde se assentam tristes criaturas
esperando e do tamanho de um só dedo, as velas onde a cor esmorece e os búzios
ventando secretamente. (p. 27)
A mobilidade da rua é marcada principalmente pelo verbo de movimento “vai”. Já a fixidez
da sala é denotada pelos adjetivos “paradas”, “fixa”, “precisa”. A locução adjetiva “de
sempre” e a repetição do verbo passar, “passa e passa”, intensificada ainda mais pela
aliteração do fonema /p/ (o espanador de arrancadas penas passa e passa o pano peloso),
marcam a continuidade de uma realidade de estagnação há muito vivenciada. Todo o
ambiente é obscuro, a luz é parca, e essa penumbra assume um caráter ainda mais opressivo
na imagem do “meio abraço negro dos cadeirões na obscuridade”. Observe-se, também, a
personificação dos objetos da sala, que, na estrutura oracional, passam de uma posição
sintática objetiva para uma subjetiva. Esse recurso, ao suprimir a presença do indivíduo que
de fato age, confere maior relevo aos objetos, que representam, nesse caso, uma situação – o
ambiente de inércia, obscuridade e opressão que a sala reproduz.
O elemento humano é apagado da cena, e a sala assume, assim, o caráter
representativo de uma situação de opressão (ou mesmo de supressão) do sujeito pelo meio.
Esta situação, no entanto, não é dada como intransponível, pois, em meio à inércia, “tristes
criaturas” estão “esperando” e os búzios estão “ventando secretamente”. Os búzios
apresentam uma significação importante, pois é dentro deles que Maina Mendes, em uma
passagem anterior, identifica o “ulular do vento longe” (p. 25), o movimento secreto dos
ventos, que podem revirar as coisas ou transportar para um outro lugar. É na possibilidade
desse movimento que reside a espera.
O afastamento em relação ao lugar próprio e a integração da personagem a um espaço
paralelo ao burguês evidencia-se também na forte relação afetiva com a cozinheira, e
sobretudo no contentamento que experimenta, ainda menina, no espaço que é de Hortelinda: a
cozinha:
Assim é o contentamento de Maina Mendes. Nada na casa se conserta tanto com seu
humor habitual como os crepitares e fumegares e derrocadas hostis da lenha, as
frituras e águas ferventes, as muitas bocas de apelo do fogão negro. Janelas ao
desejado lhe são também as fendas e forno aberto para um movimento ateado. (p. 31,
grifo nosso)
As palavras grifadas no fragmento acima apontam para aspectos já destacados anteriormente:
a índole hostil, indócil, como o fogo; e o desejo de abertura, de movimento, em oposição ao
fechamento e à estagnação do mundo em que vive a personagem. É enfatizado o espírito
agressivo e rústico que a anima: diante do fogão ela é “sem medo”, as “entranhas estorcidas
em labaredas” do fogão “lhe solicitam a conivência”; é com prazer que vê gravetos e moscas
“enchamear-se aos poucos”, por sua mão, “até o limiar do grito” (p. 31). Esse espírito rude
explica-se pela sua origem mais remota:
Maina Mendes vem sobreviva do montante e da acha de armas e mais ainda da furna
cantábrica e da mão de felpas, do olho pisco e cru na apaixonada desconfiança às
fogueiras do início, da seriedade sem lhaneza e intacta na península que ainda não
tinha nome, do brutal desrespeito por tudo o que não é elementar e inteiro. Como
poderia herdá-la o acatado tempo de tremura menor, tremura de vidro fino, de
contada loiça, o susto do contado, não do pilhado ou feito, das trincheiras mal
sabidas e ao longe, e tão quieta a pobreza de perto. (p. 32)
Nesse trecho fica patente a incorporação da ancestralidade, desconsiderada no “tempo de
tremura menor”. No tempo de contenção e retraimento, em que é “tão quieta a pobreza de
perto”, a personagem surge como um eco do passado, incompreendido num mundo que não
mais reconhece o valor da aventura e da liberdade.
A ligação de Maina Mendes com os elementos da natureza bruta se evidencia em
muitos momentos da narrativa. Observe-se, a título de exemplo, um fragmento em que se
descreve um temporal. Perfeitamente harmonizada com a “chuva brutal”, Maina aparece
“encantada das torrentes de água bruta e solta, da luz sempre surpresa no carregado do céu e
do quarto, da quebra do trovão que parece acontecer sob a casa, sob a rua, lá onde há rocha
viva, quiçá solta” (p. 41). Em seguida, “dormita em meio sorriso” (p. 42) e sonha:
Está contando, e seriamente a escutam, que nasceu num castro esboroado e negro e
que na alba desse dia, os cavaleiros eram em pousio e os troços da ponte levadiça
boiavam pejados de salamandras sobre o fosso varrido do temporal.
E tagarela bem e ouvida com justeza, do mofo e vento que aí eram e vai crescendo
no berço de loureiro, entre linhas e mastins guardadores das ratas que virão ao cair
das sobras. E as pernas, enquanto outrem amado a ouve sem rosto certo, e os braços
vão crescendo, e largados já das fendas abertas na muralha, vão arrancando de todo
o penedio em torno o tojo, a giesta e a hera de mil patas. (p. 43)
O primeiro aspecto que pode ser ressaltado nesse sonho é a ênfase no fato de a personagem
estar falando e sendo ouvida: “Está contando, e seriamente a escutam”, “E tagarela bem e
ouvida com justeza” (note-se que, nesse momento da história, a personagem se encontra em
mudez voluntária). Essa ênfase pode estar indiciando uma necessidade interna da personagem
de se fazer ouvir “seriamente” e “com justeza”. Outro dado a se considerar é o local do seu
nascimento – “um castro esboroado e negro” – e o fato de ter crescido – depois do temporal e
enquanto os homens “eram em pousio” – e se ter largado pelas “fendas abertas na muralha”.
A fim de depreendermos o sentido dessa passagem, consideremos a simbologia do “castelo
negro” apresentada por Chevalier e Gheerbrant:
O castelo negro é o castelo definitivamente perdido, o desejo condenado a
permanecer para sempre insaciado: é a imagem do inferno, do destino marcado, sem
esperança de retorno ou de mudança. É o castelo sem ponte e para sempre vazio,
habitado somente pela alma solitária, que vaga infindavelmente entre seus muros
sombrios.
48
Aliada à imagem da muralha – que remete aqui à prisão e à limitação –, a simbologia do
castelo negro pode bem apontar para a já referida situação em que se encontra a personagem.
Se levarmos em conta o panorama sócio-histórico da época, não é difícil fazer uma relação
com a situação de opressão vivenciada sobretudo pelas mulheres. O temporal pode referir-se a
uma mudança, uma reviravolta nesse contexto, mudança essa tão esperada pela personagem, e
que, no sonho, ela leva a cabo largando-se pelas fendas da muralha. O “largar-se” de Maina
Mendes pode simbolizar, dessa forma, a libertação (ou desejo de libertação) da personagem
em relação ao meio que a oprime.
48
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. p.
199.
Forma de libertação, rebeldia, ou protesto é também a mudez voluntária de Maina
Mendes. Lembremos que, ao ser punida pela mãe por ter executado um gesto obsceno (o
mesmo gesto feito pelo rapaz da rua), a menina sofre uma convulsão e depois disso deixa de
falar. A repetição do gesto pode ser tomada como um alinhamento da personagem àquelas
esferas marginalizadas da sociedade, enquanto que a punição da mãe, que se escandaliza
diante da grosseria da filha, pode ser interpretada como censura desse alinhamento. A mudez,
estendendo à fala os efeitos do cerceamento do gesto, constitui-se como ato de protesto sem
palavras.
O caráter protestatório dessa “mudez”, e o perigo que esse tipo de comportamento
representa, é percebido pelo médico da família, que examina a criança e diagnostica:
a menina é sobremaneira [...] uma grande nervosa, [...] se não encontra privada da
fala, [...] finge está-lo. [...] A má vontade, as ruins inclinações desse tipo, como direi,
de comportamento, compreensíveis aliás, sendo uma grande nervosa, o
comportamento histérico, [...] a histeria numa criança de tão tenra idade deve até ser
tomada a pulso. (p. 42)
Desde o início, a personagem é caracterizada – pelo representante da ciência e da lógica –
como uma histérica, criatura anômala, que não deixa de ser perigosa, pelos “vícios de caráter”
que pode disseminar. Creditando a afirmação do médico segundo a qual “são frágeis os
pulmões dos grandes nervosos” (p. 42), a mãe entende que “a menina é débil” (p. 54).
Opinião não compartilhada pelo primo Ruy, que diverte a menina com brincadeiras vigorosas
que contrariam as recomendações prescritas. É junto a Ruy Pacheco que Maina Mendes
expressa os mais vivos traços de alegria e contentamento:
É preciso bem ver, que ali está retornado em escorrido vulto o que a erguera e
balouçara no vácuo, alçando-a pelos pés às bandeiras vidradas das portas e,
pendurada numa só botina, a casa ficara e é ainda outra, inventada, vista ao invés
perto dos pés de mesa, o sangue na cabeça grosso e batido nos olhos junto aos roda-
pés, às borlas das colchas apavonadas onde acaba por cair lançada com doçura
brava, e exausta num riso raro e agudo, e a mãe diz ‘Ruizinho, que a menina é
débil’ [...] e mal se ouve, que o riso dele é vindo do arco cheio dos braços e garganta
fartos e a cara é toda funda de uma terna paciência onde caem desmanchadas
madeixas e uma água de esforço na pele lisa da confiança perfeita, mestre da
perfeita liberdade de uma malícia vulgar que Maina Mendes a ele só oferta, rindo
grave em espanto no riso dele que fora grosso como um jarrão oco de sala que
vacila de empurrado. (p. 54, grifo nosso)
Nas cenas de Maina com o primo, distingue-se o riso da personagem, o que em nenhum outro
momento se verifica. Mas a alegria junto ao primo não é gratuita. No simples ato de erguer e
balançar a menina – criança presa numa casa que lhe “não é lição de vida” (p. 23) – e
pendurá-la de cabeça para baixo, mostrando-lhe a casa invertida, Ruy Pacheco lhe descortina
toda uma possibilidade de ver a realidade de forma diferente, pois, depois disso, “a casa ficara
e é ainda outra, inventada, vista ao invés”. O próprio vigor da brincadeira contrasta com o
comedimento dos hábitos recomendados para a menina, tanto que a mãe entende ser
necessário repreender o excesso. O sentimento de liberdade experimentado junto ao primo é o
que aproxima a “guerreira menina” (p. 61) do guerreiro Ruy Pacheco.
eram ali as trevas onde pousar oculto um contentamento perfeito. Era ali, onde os
braços se enrolavam moles um no outro e se sustêm mal, que a história embalada da
bela Magalona e da padeira Brites aconteciam, e o corpo ancho de durezas se volvia
covil de guerreira menina. Era ali o riso farto da lição do possível, seu soterrado elo
com seus pares, seu perfeito outro, seu bravo querer. (p. 61)
Assim, para Maina Mendes, Ruy Pacheco – o soldado que combateu em África, que conta
histórias, que ri com ela e que a lança aos ares – vem a ser um elemento distintivo no tempo
em que ela vive. O primo representa o lugar do possível, possibilidade de movimento, de
liberdade, de ida para o desconhecido. É em sua presença que Maina retoma a fala,
pois Maina Mendes gastou já seu susto, sua demanda aos mais próximos de respeito
ou retorno. [...] dali, Maina Mendes se continua e recupera, mais duro que o
estrondear da cadeira do pai, mais fácil que o choro já da mãe, mais largada dali que
seu primo ficado longe, ‘albarde-se o burro à vontade do dono’. (p. 63)
O bordão tomado de empréstimo a Hortelinda explicita aqui o sentido do retorno à fala. O
burro, que não pode agir por conta própria, deve se submeter à vontade do dono; da mesma
forma, Maina Mendes, sendo peça de um sistema mais forte, deve se submeter às suas regras.
Porém, depois do seu protesto sem palavras, é “largada dali” que ela “se continua e recupera”.
Fica claro, assim, que seu “retorno” é artificioso, pois na interioridade fica marcado o seu
distanciamento: “mais largada dali que o primo ficado longe”.
Na adolescência, tendo já abandonado o mutismo, aparece como que acomodada aos
padrões da época. Na sala, em meio ao luxo interior da casa, executa um trabalho de agulhas:
O dedal aqueceu e o anelar parece assim estar-lhe colado pela película de suor que
os tem húmidos a ambos. Tudo foi pois trabalhado por forma a que sua carga de
remota, incontrolável ira haja tomado feição de exigência ao que faz, ao que a cerca.
Uma exigência porém, morosa, precisa. Coisa alguma fitada por longo tempo e
porém visto tudo. E, como todos os ocultos de seu tempo, exigente de seus
invólucros, e de suas moradas. (p. 67)
Observe-se, porém, nesse trecho, que a acomodação aos padrões de comportamento da época
aparece como um artifício, pois a ira da personagem é “incontrolável”, não se tendo aplacado
ou transformado, mas simplesmente tomado “feição de exigência ao que faz” (grifo nosso);
ou seja, trata-se de parecer, e não ser. A caracterização da personagem após a mudez reforça
essa idéia: “Maina Mendes persevera na sua mudez de corpo, tal como a besta fera sobrevive
cordata entre os humanos, no mandamento que a tem escolhido – crescerás entre os seus teres
e cuidarás em desprazer da riqueza dos túmulos que lhes enviei” (p. 67). Esse “mandamento”,
num procedimento proléptico, explicita o comportamento que será adotado pela personagem
ao longo da narrativa: sem se opor drástica ou enfaticamente ao seu meio, permanecerá,
contudo, alheada da realidade burguesa que a cerca, manifestando seu desprezo através não só
de sua mudez de corpo, mas sobretudo através dos hábitos rudes que adotará de forma cada
vez mais extremada.
O alheamento de Maina Mendes em relação ao modo de vida burguês vai-se
intensificando aos poucos, começando pela ligação afetiva que a prende à cozinheira
Hortelinda, e acabando com o alheamento total, na demência. A ligação entre as duas
personagens aparecerá – aos olhos do esposo, por exemplo – como sinal de degradação e de
distanciamento dos padrões morais e sociais legados pela família. Distanciamento cuja
promessa se formaliza nas palavras de Maina Mendes a Hortelinda: “– Havemos de ir embora,
minha rosa velha.” (p. 69). O “ir embora” aqui significa o abandono da vida burguesa e de
tudo o que ela implica: padrões, luxo, bens materiais. A promessa se cumpre quando Maina se
casa com Henrique, desvirtuando completamente os hábitos adquiridos em família. A
“degradação” de Maina já está aliás prenunciada na cena em que ela arruma os baús que
acondicionam os seus pertences, escolhendo “do fato o que tem de mais reles” (p. 82),
causando espanto à própria Hortelinda: “para que estas pobrices de ir cumprir pena, de ir
fugida a convento, de deixar aqui o rico como roupa de defunto” (p. 83). O seu
desprendimento em relação aos bens materiais, nesse ponto da narrativa, exterioriza-se,
causando escândalo à família e inquietando até mesmo a cozinheira, que alerta a ama sobre os
rumores que põem em dúvida sua sanidade mental.
No decorrer da narrativa a proximidade de Maina Mendes com as camadas populares
se torna cada vez mais evidente. A cultura popular, com suas crendices e superstições, é
assimilada pela personagem, que recorre à bruxaria para fazer com que o filho nasça varão;
depois faz-lhe roerem as unhas para que fale cedo. O distanciamento das normas de conduta
burguesa contribui para acentuar o caráter maligno que Maina vai assumindo aos olhos dos
outros, caráter esse que se vai evidenciando gradualmente: primeiro ela é “nervosa”, aos olhos
do médico (p. 42); depois da mudez ela é dita “apagada e severa no trato” (p. 67); aos olhos
do noivo ela é comparada às “águas turvas da noite” (p. 78), convertendo-se em seguida no
seu “desgosto” (p. 90); aos serviçais consta que “ela não é certa”; até que finalmente, ela é
comparada às bruxas (p. 96; p. 138). A própria personagem demonstra aceitar (ironicamente)
essa designação quando sugere a Hortelinda – em represália à resistência desta em ir à
feiticeira – que volte para Alcântara, onde servirá “dama sem pé de cabra” (p. 96).
A filiação “popular” de Maina Mendes, evidenciada sobretudo pela relação com a
cozinheira, também é assinalada em outra fala, em que apresenta esta última como
responsável por seu caráter: “Tens medo do cardo que amanhaste?” (p. 97). Maina coloca-se,
assim, como fruto do lavor de Hortelinda. No entanto, o cardo amanhado, erva daninha,
aponta para o destino que a aguarda: Maina será como o inço que deve ser extraído para não
comprometer a plantação.
É esse o ponto de vista de Henrique, o qual entretanto, num primeiro momento,
destaca apenas o aspecto distintivo de Maina Mendes em relação às demais mulheres e ao
meio de um modo geral. Veja-se o modo como Henrique desenvolve a descrição/narração do
sarau em que encontra Maina Mendes. Nas suas primeiras observações, salienta
principalmente a cor dourada e afogueada do ambiente, dando relevo às mulheres. No trecho
que compreende os dois primeiros parágrafos, aparecem mais de 40 palavras que remetem a
“ouro” e a “fogo”. No terceiro parágrafo há uma cisão, marcada pela locução conjuntiva “no
entanto”, que aliás aparece repetida, dando maior ênfase à imagem que será contraposta à
anterior: “E no entanto, no entanto, há outra luz em torno àquela ali e acerada. Negro dos
olhos e no jais do busto e, muito embora como pesado fruto ameixa, não me parece de carne
loira mas antes pedra.” (p. 74, grifo nosso).
Ao ouro e ao fogo das imagens anteriores contrapõem-se o aço e a pedra na imagem
de Maina Mendes, que, diferenciando-se das demais, chama a atenção do narrador-
personagem e o fascina:
Ali é como barca veleira e parece vasta na delicadeza dourada das outras [...]. Já vi
esta mulher. Conheço essa luz branca que lhe fica perto, pois não é novo este temor
[...]
[...] Sem dúvida é o ameixa uma cor surpreendente e deveras rara casada a pele tão
branca que suporta este ouro e devolve aço. (p. 75)
Observe-se aí o contraste que se evidencia com relação às demais mulheres, essas ligadas aos
materiais ricos e nobres, em oposição a Maina Mendes, que se liga aos materiais brutos –
pedra e aço. A solidez e severidade da figura da personagem é ressaltada nas palavras do
narrador, para quem aqueles braços “poderiam britar pedra, brancos, firmes”, as coxas
deveriam ser como “duas colunas”, a cabeça é “imóvel” na “largueza dos ossos salientes”, e a
laçada de veludo nos cabelos “não adeja” “ao andar solene” (p. 74).
Contudo, o perigo iminente que Maina representa é já indiciado na imagem que se
afigura, na qual sobressaem a rijeza da pedra, a frieza do aço e o negro dos olhos, perigo
pressentido pelo futuro marido, que recorre às imagens do “promontório” e das “águas turvas
da noite” para referir o fascínio ante o qual sucumbe: “vou estando já na clareza perfeita
daquele negro de olhos, onde estão e entrego como a promontório donde me vou largando e o
corpo me cai leve e sem ruído ou temor nas águas turvas da noite que sei nos fundos” (p. 77-
78).
Depois do casamento, é ainda através do ponto de vista de Henrique que Maina
Mendes é caracterizada, mas agora são os aspectos negativos de sua personalidade que são
enfatizados. O caráter maligno a ela atribuído é apontado pelo marido quando este se refere
“ao volume adejante do berço” em que o filho dorme: “Como adejante se a casa é tão fechada.
Esta casa que o vento percorre sem lhe ser feito aso [sic], casa agora na noite conhecida por
maligna” (p. 101). Aqui o “vento” e a “noite”, elementos comumente associados às bruxas,
associam-se, como em todo o romance, a Maina Mendes. O boato para o qual Hortelinda já
chamara a atenção – e o qual Maina ironicamente endossara autodesignando-se, de modo
indireto, como dama com “pé de cabra” (p. 96) –, na narração de Henrique, recebe uma
espécie de fundamento, pois o vento percorre a casa “sem lhe ser feito aso [sic]”, de forma
extraordinária, portanto. O fato de objetos adejarem inexplicavelmente, visto que “a casa é tão
fechada”, torna-se, assim, indício de uma sobrenaturalidade maligna aos olhos de Henrique.
Entretanto, ao se considerar o valor simbólico do vento, percebe-se que, se por um lado este
fenômeno natural se pode ligar a um tipo de movimento destrutivo, por outro, este mesmo
movimento pode representar uma renovação – dependerá, portanto, da perspectiva adotada.
Assim, do ponto de vista de Henrique, personagem cujo espaço é desestabilizado, revirado
por esse “vento”, este “adejar” só pode ser percebido como algo extremamente negativo.
Segue-se um rol de queixas do marido face ao desleixo de sua esposa, à “incúria” da
casa, ao “descalabro” da criança, ao descaso dela pela sua saúde:
Cresce a incúria, os panos azedam na cozinha de gordurosos sem a vigília da
austeridade que te emprestei. [...] Desoeuvrée, a ama contratada costura infatigáveis
crochets de ponta e linha, sorridente do descalabro da criança sem horários de
lavagem ou amamentação. [...] Deserta a sala de jantar, zebrado o lustre das teias
que oscilam de noite, farroupentas e antigas, deserto o rosto de meus amigos. [...]
[...] Nem inquires jamais da minha saúde, comendo teus manjares, dessa mulher tua,
asco feito gente, que te cozinha os guisados brutais, chouriçadas e sardinha ventruda
sobre o pão negro. Como pude consentir-te tal séqüito e tal derrelicção. (p. 102)
Junto às queixas, na maioria, relacionadas a tarefas domésticas não cumpridas, Henrique
enumera os “costumes rudes” da esposa, motivos de espanto e indignação. A ligação da
esposa com a cozinheira e a influência desta sobre a educação do filho é um outro fator que
acende ainda mais a cólera do marido. Maina Mendes – desprezando a “austeridade que [o
marido lhe] emprest[ou]”, adotando hábitos em tudo contrários aos costumes da família
burguesa tradicional, fazendo vigorar uma nova ordem – exime-se de desempenhar o papel
social que lhe é imposto e assume a qualidade de “matriarca disforme”, segundo as palavras
do próprio Henrique. Este, percebendo o risco de “tal derrelicção”, resolve retomar o mando e
destituir a esposa de seu posto:
Podes ir, Maina Mendes, onde te afoguem mênstruas e te corrompam os costumes
rudes que te aprazem [...] mudem-me as roupas, mudem-me o quarto. Preparem-me
a parelha, que não mais vagueará entre nós como dona e senhora a que me infestou
as carnes e a casa e me arredou do trilho firme que singram as nações e as famílias
por bem. (103-104)
Maina Mendes, desviando-se das normas estabelecidas, aparece como uma verdadeira praga,
capaz de “infestar” e fazer ruir a estrutura não só da família, mas também da nação. Aliás,
para este perigo já havia alertado o médico da família quando a personagem, em menina,
apresentara os primeiros sinais de desvio. Ante a iminência de ver os seus valores
corrompidos pelos “costumes rudes” da esposa, Henrique tentará neutralizar os efeitos do seu
comportamento desviante, apoiando-se num padrão de “normalidade” socialmente aceito que
inevitavelmente situará o desvio no espaço da insanidade mental: “E que seja a senhora
servida no quarto. A partir de hoje a senhora não está bem, como não se via que a senhora não
está bem?” (p. 104). Note-se que o marido não constata que a esposa é insana, ele assim o
decide: “A partir de hoje a senhora não está bem”.
Entre a resolução de Henrique e o internamento de Maina Mendes há o episódio da
agonia e morte de Hortelinda, representada sob a forma do monólogo interior. A relação entre
as duas mulheres é aí novamente ressaltada nas palavras da cozinheira, antes da sua morte:
[...] não chorei a lavar das fraldas do nosso menino nem a cozer-le a si as papas de
broa ah Maininha que nunca me foi senhora só que não le vinha proveito doutro
pasto que não o que eu lhe aprontava menina das minhas carnes que não na deixei
finar-se do pasto ralo em que a tinham e que pariu um rei a minha vista [...] (p. 111)
Percebe-se aí o tipo de ligação existente entre as duas personagens: ao invés da relação
patrão–empregado, com o convencional distanciamento entre a “senhora” e a “serviçal”,
observa-se uma intimidade própria da relação mãe–filha, o que se evidencia de modo ainda
mais explícito na fala de Maina Mendes, quando se dirige a Hortelinda chamando-lhe “MÃE
DE SANGUE” (p. 112). Desse modo, a personagem filia-se deliberadamente à cozinheira,
colocando-a no lugar de sua mãe natural. No entanto, essa substituição faz com que o fruto de
uma tal relação seja qualitativamente diferente daquele que se originaria da relação entre mãe
e filha naturais. A mãe de Maina Mendes obedecia ao “dever de que as que lhe nascessem
fêmeas fossem senhoras a ajeitar” (p. 33); Hortelinda, ao contrário, não quis ver a menina
transformada em senhora: “senhora não mulher a fazer-se não na quis senhora” (p. 112). A
contraposição de “mulher” a “senhora” evidencia o deslocamento do foco do objeto para o
sujeito, pois, enquanto o termo “senhora” pressupõe a existência de um bem do qual se é
dono, já que só se pode ser senhora de alguma coisa, o termo “mulher” prescinde do objeto,
uma vez que remete exclusivamente ao indivíduo. Com esse deslocamento, tem lugar a
primazia do sujeito sobre o objeto. Dessa forma, o sujeito desvincula-se do objeto ou
condição que o determina e volta-se para si mesmo, instaurando o processo de construção de
uma identidade – a de “mulher a fazer-se”.
O desprezo de Maina Mendes pela objetificação do mundo burguês fica mais evidente
no fragmento em que a personagem responde indignada à ironia de Henrique diante da morte
de Hortelinda:
ah quem te encornara maldito e te afogara no mel com que me tentas a que fale um
raio caia sobre ti que fazes morte de gado desta morte dela e no menino vais tendo
posta de vaidades dessas ventas de enchido vai-te esterco fino bosta de palácio
maldito sejas hortelinda hortelinda hortelinda hortelinda (p. 112-113)
Nessa fala, ainda que de forma interiorizada, pois se trata de um monólogo interior, a
personagem expõe toda a sua cólera e desprezo em relação ao marido e sobretudo ao seu
status social. Em “esterco fino bosta de palácio”, a adjetivação indica a condição social
elevada, porém os substantivos acusam o caráter desprezível dessa condição. A cólera da
personagem é ainda acentuada pelo desespero de ver-se impotente e sozinha num meio que
lhe é hostil, daí o desabafo diante da morte de Hortelinda: “ELES TÊM TODAS AS
CHAVES E ATÉ JÁ O MENINO SE ME APARTA FICA MULHER HORTELINDA” (p.
112).
O “menino” Fernando Mendes, que em adulto tentará reconstituir a história da mãe e a
sua própria, caracterizará Maina Mendes de forma totalmente diferente do pai. Ainda que se
refira à mãe como mentalmente insana, deixa transparecer em seu discurso o sentimento de
admiração e também inquietação diante da figura materna, que se lhe apresenta como algo
estranhamente superior e enigmático. Isso pode ser percebido, por exemplo, no relato de um
episódio da infância de Fernando – a queda da escarpa que escalava, na praia, estando em
companhia da mãe:
[...] minha mãe vendo-me subir, as duas mãos assentes no cabo da sombrinha
ensopada, cravada na areia, e nunca mais pude ver cavaleiro medievo tomando essa
postura com sua arma que não me alagasse da presença de minha mãe nessa hora, de
um intenso temor. Sei que foi então que caí e oiço meu grito, que curiosamente me
parece apenas [...] como um pio pobre de ave marinha enquanto o sei porém
verdadeiro rugido e o temor da queda é hoje ainda o maior que guardo da infância.
(p. 122)
A imagem de Maina Mendes se erige aos olhos do filho sob um halo de imponência e
temibilidade, e, contudo, sem que isso seja percebido pela criança (e pelo adulto) como um
aspecto negativo. O ato temerário do menino é apoiado pela mãe. O cenário – o céu
carregado, “todo de uma só cor metálica”, “o dia sombrio”, “o mar e sua ondulação agreste
naquelas costas durante a invernia”, a “pedrania negra”, o vento, o “rasgão fragoroso da onda”
(p. 121-122) – intensifica a temeridade do menino, que sobe a escarpa, e mais ainda da mãe,
que o deixa subir. No momento da queda, a mãe não se abala e antes incita a criança a subir
novamente: “[...] subo de novo, e sua fala áspera na bruteza do mar e do vento e de meu nome
inteiro. ‘Sobe Fernando Mendes, sobe. Sobe Fernando Mendes’.” (p. 122).
Na velhice de Maina Mendes, é ainda Fernando que relata aspectos do seu cotidiano.
Nesse momento, as duas personagens convivem no presente da narrativa. Maina já se
encontra em idade avançada e, segundo Fernando, “deteriorou-se muito, desde que [Matilde]
saiu para Londres” (p. 193). Seu dia-a-dia resume-se a sentar-se junto à janela a olhar a rua, ir
de três em três horas à casa de banho, ajudada pela enfermeira, fazer as refeições no quarto, às
vezes olhar televisão. Entretanto, apesar da aparente tranqüilidade em que tudo repousa,
Fernando sabe que a mãe odeia a enfermeira, odeia o quarto, percebe-o nos “maxilares ainda
possantes sob as quebras da pele, retesos, fecundos de cólera” (p. 194), cólera que a
personagem manifesta do início ao fim da narrativa.
São relevantes também as opiniões de Hermínio, Cecily e Matilde sobre Maina
Mendes, não só pela relação que se estabelece entre eles, como também pelo valor que essas
personagens assumem no decorrer da narrativa. Observe-se a princípio que os três
demonstram afeto e consideração por Maina Mendes. É Hermínio que lhe atribui o epíteto “a
Justa”. Na visão de Cecily, Maina Mendes não é louca, como lhe diz o marido. Quanto à
Matilde, depreende-se, através dos relatos de Fernando, a forte influência da avó sobre a neta
bem como a afeição que une uma à outra.
Em suma, pode-se dizer que o distanciamento em relação ao meio burguês e a
descendência de uma tradição ancestral são aspectos da identidade da personagem ressaltados
pelo narrador extradiegético-heterodiegético, aspectos esses que podem também ser
entrevistos nas falas de Maina Mendes e de Hortelinda. Portanto, as visões do narrador, de
Hortelinda e da própria Maina Mendes estão em consonância, todas elas ressaltando o caráter
de ruptura com a ordem estabelecida assumido pela personagem, bem como sua filiação a
uma outra tradição. Ao mesmo tempo, essas visões apontam para um processo de
transformação da realidade, cuja força motriz se encontra latente nas camadas populares da
sociedade. Já a visão de Henrique, assim como a dos médicos, é totalmente oposta: da
perspectiva desses homens, Maina Mendes não passa de um elemento de corrupção do mundo
estabilizado, um elemento que perturba a ordem vigente, e por isso, deve ser submetido ou
tratado – de qualquer maneira, posto à margem. Para Fernando, a figura materna é ainda
perturbadora, não mais por ser uma ameaça, mas por ser ainda incompreensível. É através de
Cecily, Hermínio e Matilde que Fernando poderá vislumbrar um outro significado para Maina
Mendes, atribuindo a ela não mais um caráter negativo, mas revolucionário, transformador.
1.2 Mãe de Maina Mendes
A mãe é apresentada por um narrador extradiegético-heterodiegético, logo no início da
narrativa, em seguida à caracterização de Maina Mendes, o que contribui para acentuar o
contraste entre as duas personagens. A apresentação se efetua num pequeno parágrafo – o
menor dos três fragmentos que compõem o primeiro bloco. A mãe não é designada nunca por
nome próprio: é nomeada simplesmente como “mãe de Maina Mendes”. Sua apresentação se
dá a partir dos objetos que manuseia ao fazer a toalete pela manhã, e sua ação é esvaziada de
toda subjetividade:
No quarto, os ganchos de ligar cabelos vão da pedra mármore à altura dos seios já
presos, acima dos músculos já hirtos no cingir das barbas de baleia e dos colchetes,
vão da pedra aos dedos escorrentes e ao cabelo tombado da nuca e que vai sendo
erguido [...]. (p. 24)
A posição de sujeito da ação é ocupada pelos objetos, e a descrição minuciosa desenvolve-se
ao longo de três extensos períodos nos quais o real sujeito da ação – a mãe – é nomeado
apenas ao final. Salienta-se assim a passividade da personagem, enfatizando-se, ao invés da
pessoa, os objetos que a cercam, os quais, por sua vez, marcam uma condição, uma posição de
mulher/mãe burguesa. Essa posição distingue-se pela contenção, sinalizada pela própria
seleção vocabular: os seios estão “já presos”; os músculos “já hirtos” no “cingir” das
barbatanas; o cabelo, preso também, é “já concertado” num “aperto enredado”. Note-se a
reiteração do advérbio “já”, que denota uma situação dada, anterior ao momento presente. A
contenção no plano corporal aponta para o espaço restrito que cabe à mulher nesse contexto.
Ao contrário do que se passa com Maina Mendes, não se observa entre a mãe e o seu
meio social nenhuma tensão, há, sim, conformidade com a situação a que ela se sujeita, ainda
que não perceba essa sujeição, pois “o pensamento ali não é”. O estado de não-consciência é
ainda reforçado pela comparação da mãe com um “animal cordato”: “os olhos sem presença,
como se foram só a retina de um animal cordato que se afina a pelagem, diariamente acossado
pela mesma carga de seu encanto e mansidão” (p. 24). Note-se, no entanto, a presença das
palavras “acossado” e “carga”, usadas como para sinalizar que esse “encanto e mansidão” não
é algo natural, mas algo que se impõe como um peso flagelante. A idéia do peso e da
contenção reaparece mais adiante no mesmo trecho, com a imagem da “cabeça que se
avoluma de pesos presos” (p. 25, grifo nosso), em que a aliteração e o jogo das palavras
chamam a atenção para essa condição a que a mulher está submetida.
Na qualidade de responsável pela educação dos filhos, sobretudo das filhas, a mãe
aparece não apenas como aquela que é contida mas principalmente como aquela que deve
conter, constituindo-se, assim, como um elemento censurador:
Vacilante e pensado com vagar, em meio em muitas outras linhas de pensar
inacabado, o dever de que as que lhe nascessem fêmeas fossem senhoras a ajeitar, a
mãe diminui-lhe o nome, encolher a quer e tolhê-la ao fofo e à compostura, os
bandós pesados e afinal em seu lugar medido. ‘E paio, filha, Maininha, paio, ó
Hortelinda’. E avança lenta, jogando-se o peso sobre os dois pés tão pequenos e na
cama sugados, e vem com seu amor e cuidado em verdade doces como o açúcar que
Maina Mendes não pode suportar.
E já a mão em cone mole se estende ao folho de goma esfacelada, já o tafetá do laço
será entesado com a demora de um quarto de manhã, já sonegado o paio, já Maina
Mendes com futuro acatado. (p. 33-34)
A mãe, cumprindo o seu dever, aparece como a mantenedora da ordem vigente, da ordem que
reduz ao “lugar medido” aquilo que teima em se expandir, em transbordar. O caráter
censurador/repressor da presença materna se revela ainda no episódio em que a mãe pune com
uma bofetada um ato vil praticado pela filha, do que decorre a convulsão de Maina Mendes,
que antecede o seu mutismo voluntário.
Contudo, apesar de seu caráter aparentemente controlador, a mãe se constitui como
indivíduo submisso e insignificante. Aos olhos de Hortelinda é “a criatura enorme e cálida lá
dentro, a patroa nem amada porque de fraco pulso, larga rédea, apenas a patroa de falas em fio
de água pousona e tão manhosa de doçuras” (p. 33). Nas palavras de Henrique, é “tão mole e
intimidada” (p. 90). A imagem da mãe é, portanto, minimizada: não tem sequer um nome
próprio, e mesmo o designativo “mãe” é reduzido através do diminutivo “mãezinha”. Suas
ações restringem-se aos trabalhos de agulha, aos passeios ao ar livre, às compras. É marcada
pela fragilidade, pelo vagar, pela delicadeza, pelo asseio.
O asseio quanto à aparência é significativo dentro de um espaço social ocupado pela
mulher. Simone de Beauvoir já destacara o duplo caráter da toilette: “destina-se a manifestar a
dignidade social da mulher (padrão de vida, fortuna, meio a que pertence), mas ao mesmo
tempo concretiza o narcisismo feminino”
49
. Em suma, pode-se dizer que a mãe de Maina
Mendes constitui-se como personagem feminina conformada ao papel que lhe é imposto:
mantenedora da ordem doméstica e ornamento da sociedade.
1.3 Hortelinda
No primeiro bloco da primeira parte da narrativa, aparece, depois da caracterização de
Maina Mendes e de sua mãe, a primeira caracterização de Hortelinda, feita pelo mesmo
narrador extradiegético-heterodiegético que caracteriza as outras duas:
Hortelinda secou as mãos ao pano de quadrados já tão trapo de águas torpes e
caminhou da cozinha para aquelas massas fluidas, capazes de ruir se lhes não acode
a bruta mão de batedeira de outras, de esfregadeira, da Hortelinda com sua cabeça de
martelo sem cabo. (p. 25)
As “massas fluidas, capazes de ruir” são as da mãe de Maina Mendes; e aí se dá a primeira
distinção entre as duas personagens – a mãe/patroa e a cozinheira. A primeira, cujos “grossos
flancos moles”, “as fartas, redondas carnes” “oscilam” (p. 25), caracteriza-se como uma
mulher frágil, lânguida, dependente. A segunda, ao contrário, aparece marcada pela rudeza,
força, determinação. Importa observar que essa distinção é percebida por Maina Mendes, pois
49
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 295.
é a partir de sua perspectiva que a cena é descrita – “Maina Mendes sabe que os grossos
flancos moles...” (p. 25, grifo nosso). Contraposta à lentidão da patroa, Hortelinda aparece
sempre em movimento, imersa no trabalho, “com azáfama” – e sempre na cozinha,
preparando alimentos, junto ao fogo. A cozinha, seu ambiente de trabalho, aparece em nítido
contraste com a sala, espaço social, onde os patrões e familiares circulam.
Não é por acaso que a rude cozinheira será convertida na “mãe de sangue” (p. 112) de
Maina, verificando-se entre as duas uma relação de perfeita harmonia. Eduardo Lourenço,
considerando a personagem Hortelinda e sua relação com Maina Mendes, refere o “vasto
continente matriarcal, o império rude e terno de Hortelinda, a serva ancestral e redentora,
marginal e sibila de tempos futuros não demarcados pela castradora omnipresença
masculina”
50
. Maina Mendes absorve essa herança e, assimilando as falas de Hortelinda, dá
prosseguimento a essa tradição matriarcal que subjaz nas camadas mais populares da
sociedade. É de Hortelinda o bordão que Maina repete até o final da narrativa: “Albarde-se o
burro à vontade do dono”. Essa filiação é atestada pela cozinheira em uma de suas falas:
Não tenho outra gente, nem outros quereres que as falas que me deitava de nos
irmos as duas. ‘Havemos de ir à Índia, Hortelinda, eu faço contigo os comeres e tu
fazes comigo os lutares’. Nem dei pelos anos e mudanças, que as falas eram as
mesmas depois nos luxos e caganças em que andava, que a mim pouco se me davam
os senhorios, bem na sabia cria do meu redil e que não nos havia de faltar. (p. 83,
grifo nosso)
Num outro diálogo, Maina Mendes retoma esta fala, quando, em represália ao espanto que a
serva aparenta diante das suas atitudes, lhe diz:
– Cala-te já de mentir, mulher. Eras tão loba como eu, em lura de cerdo. Comi da tua
mão e as carnes fizeram-se-me ao teu colo. Escondeste-me as febres no encharco
dos panos e saraste-me com o mel da cozinha para que eu soubesse estancar a pé os
meus males. Fizeste por mim os choros e as manhas para que me fora água choca o
que não prezas. Deste-me as tuas falas para cuspir ao redor o teu grão. Tens medo do
cardo que amanhaste? (p. 97)
Maina ratifica a afirmação da serviçal – “bem na sabia cria do meu redil” –, colocando-se
como “cardo” amanhado por ela. Hortelinda aparece, assim, como a grande nutriz; e, através
dos verbos na voz ativa, ela ocupa a posição do verdadeiro sujeito, o agente, enquanto Maina
aparece como o instrumento através do qual Hortelinda pode “cuspir ao redor o [s]eu grão”. O
papel de nutriz é indiciado ainda pelo nome da personagem, no qual se pode divisar a palavra
50
LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: COSTA, Maria Velho. Maina Mendes. 2. ed. Lisboa, Portugal: Moraes,
1977. p. 14.
“horto”, lembrando a noção de terra-mãe. Ao destacar sua filiação à cozinheira, Maina
Mendes põe em evidência esta face da serviçal: a de arquiteta e verdadeira responsável pela
constituição do seu caráter. É Hortelinda que prepara Maina para que esta possa prolongar o
seu matriarcado.
Contudo, Hortelinda se apresenta, por suas próprias palavras, como totalmente servil e
desinteressada:
Bem sabe que os atavios nunca me tiveram préstimo [...] que eu sempre estive aqui à
espera de nada, não era pela soldada ou pelos asseios, não conheço homem para
quem juntar, a minha gente livrada de bocas como a minha lá se amanha, e se depois
de me largarem a servir tive quereres, só em vê-la medrar, só nesta hora que havia
de vir de casar-se alto e estimada sem devenças a ninguém e de lhe criar os filhos
como se os fizéramos ambas. Quem na ninou, menina, às esconsas da ama, sem a
mãezinha saber, quem na guardou da ruindade da Dália, quando emudeceu? (p. 83)
Sob um véu de servilismo, Hortelinda encobre sua verdadeira face. A “loba” astuta se
transveste de “cerdo” e, assim, vai condicionando o comportamento de Maina sem que os
demais possam dar por isso.
Esse aspecto do caráter de Hortelinda é, todavia, intuído por Henrique, que percebe a
influência, funesta para ele, dela sobre a esposa: “Não te terei. Não o soubesse e mo haveria
dito o escárnio feito obséquio dessa mulher amatronada [...]” (p. 89). Aos olhos de Henrique,
Hortelinda assume o mesmo caráter maligno atribuído a Maina Mendes, com quem forma,
segundo ele, uma “mole confusa de carnes”:
[...]essa mulher tua, asco feito gente [...] Como pude consentir-te tal séqüito e tal
derrelicção? Mole confusa de carnes que formas com essa mulher e a criança suja da
criação, de lama, os bibes logo encardidos, as pequenas unhas irregulares dos dentes
dessa mulher que te afirma roendo-as ser a única forma de não cortares a fala a teu
filho. Crosta de carne quando vos vislumbro no pátio [...]. (p. 102)
Daí a necessidade de separar a esposa dos influxos maléficos da cozinheira: “que a senhora
seja no quarto e a cozinheira na cozinha” (p. 104) – numa tentativa manifesta de recolocar
cada uma no espaço que compete ao papel social que lhes cabe.
Esse papel, aliás, é bem compreendido por Hortelinda, em cujo discurso se podem
distinguir as convenções sociais que aparenta respeitar. Assim, repreende a menina Maina,
quando esta entoa sua “cantilena torpe”: “’Ai menina, que se lhe ouve a mãezinha’,
compradamente” (p. 32, grifo nosso); repreende ainda o comportamento de Maina com
relação ao noivo, ressentindo-se por “vê-la engeitar [sic] o mimoso” (p. 82), censurando seu
desleixo, “a escolher do fato o que tem de mais reles” (p. 82), como se ignorasse a razão
daquelas “pobrices”. Aparentemente Hortelinda cumpre o papel que lhe compete, dizendo o
que deve ser dito. Porém quando fala, por exemplo, do desejo de ver a ama “casar-se alto e
estimada [...] e de lhe criar os filhos como se os fizéramos ambas” (p. 83, grifo nosso), põe à
mostra o conflito entre duas posições: uma que parece valorizar o homem e o casamento; e
outra que desconsidera a figura masculina, justamente naquilo que ela é fundamental, na
concepção dos filhos (“como se os fizéramos ambas”)
51
.
O contraditório do discurso de Hortelinda é o que permite a Maina Mendes fazer-lhe a
reprimenda: “Cala-te já de mentir, mulher. Eras tão loba como eu, em lura de cerdo.” (p. 97,
grifo nosso). O fingimento da cozinheira, a encenação do dizer, mediante o uso de falas
“compradas”, é marcado, aliás, na formalização do discurso narrativo. Note-se que essas falas
aparecem em dois blocos (oitavo e décimo da primeira parte) nos quais prepondera a cena
dialogada, ou seja, o modo mais dramatizado. No oitavo bloco, a forma narrativa e descritiva
comum ao gênero romanesco cede lugar à didascália. Verifica-se, assim, uma dicção
visivelmente teatral:
O sol deve deslocar-se, em relação ao espaço do corredor sobre o qual directamente
incide, por forma a que esse espaço se reduza, sem perder porém [...] seus remates
em ângulo recto. [...] Quanto a Hortelinda, necessário é que, num movimento
também gradual, mas este perceptível [...], é necessário que , depois de coberta a
cara com o avental, lentamente se vá sentando sobre os próprios calcanhares e chore.
(p. 85- 86)
Esse procedimento põe em evidência a teatralização (fingimento) do discurso da personagem,
que se apresenta como persona, sujeito mascarado encenando convenções.
A última aparição ativa de Hortelinda na história acontece no último bloco da primeira
parte do romance, onde se observa o monólogo interior da personagem à beira da morte, o
qual se estende por quase quatro páginas. Segue-se um pequeno parágrafo em que Henrique
toma a palavra, e, em seguida, interrompendo a fala anterior, aparece um monólogo interior
de Maina Mendes, compreendendo também apenas um parágrafo incompleto. O monólogo de
Hortelinda compreende um único parágrafo sem outra pontuação que o ponto final, o qual
coincide com a morte da personagem. Pode-se dizer, portanto, que o ponto ao fim do
monólogo representa a finalização da existência de Hortelinda; já os finais das falas de
Henrique e Maina não são marcados por ponto, permanecendo, assim, em aberto.
51
A destituição (simbólica) do homem da sua função de gerador é recorrente no romance. Acontece com
Hortelinda e Maina, que juntas “criam” Fernando Mendes; e se repete com Maina e Cecily, quando do
nascimento de Matilde (ver, neste capítulo, o item 1.5, p. 69).
Entrecortando o monólogo de Hortelinda, aparecem frases curtas, em caixa-alta,
representando as falas que Maina Mendes lhe dirige, enquanto vela a seu lado. Não é possível
saber que mal acometeu a cozinheira, uma vez que é através do seu próprio ponto de vista que
se tem notícia dos fatos. Segundo ela, foi vítima de um “olhado”; mas podemos inferir que foi
vitimada por algo como um derrame, em vista da sua imobilização involuntária: “má rais
partam o olhado que não hei-de finar-me nisto mexe mão mexe pé anda tronco pernudo sem
préstimo boca estorcida de besugo morto” (p. 109).
A linguagem utilizada pela cozinheira é recortada num registro dialetal, cujo
vocabulário, em alguns momentos, torna-se mesmo incompreensível, dificultando o
entendimento do segmento narrativo. De um modo geral, Hortelinda evoca fatos do seu
passado, remoto e próximo, refere a infância de Maina Mendes, os cuidados que a ela
devotou, bem como ao seu filho, encarecendo a relação afetiva existente entre ambas.
A morte de Hortelinda é toda ela representada por imagens simbólicas – que vão da
aranha, que aparece desde o início e que ao final ela já não vê, até a “luz que leveda” e ela
“nela caída calhada livrada” (p. 112). Como se vê, são imagens do fio da vida que vai se
puindo, bem como da luz que salva, elevando a um plano superior.
Pode-se dizer que o caráter de Hortelinda é marcado por uma ambigüidade: se, por um
lado, ela é a serviçal cumpridora do seu dever, por outro, sub-repticiamente ela é a terra –
horto e húmus – que fará germinar a semente nova. Sua identidade se constitui, portanto, na
confluência de duas posturas distintas: uma que finge se conformar ao papel e ao lugar que
lhe é imposto, outra que faz desse mesmo lugar o espaço da subversão e da postulação de uma
outra ordem.
1.4 Dália/Délia
A serviçal Dália aparece no terceiro bloco da primeira parte da narrativa, caracterizada
pelo narrador extradiegético-heterodiegético:
Perfeita no serviço, vê-la em remanso é saber lá dentro uma cesta de vime, baixa e
larga, onde se acamam os lençóis sem vinco e por igual dobrados, os guardanapos de
linho, o monograma em todos acertado, os panos de cozinha como guardanapos, os
naperons gomados, todas as pontas tesas e cada rima com seu lugar previsto. (p. 40)
Sobressaem as qualidades da serviçal, sua extrema organização e perfeccionismo com relação
aos afazeres da casa, asseio e cuidado que a aproximam da patroa, ambas trabalhando no
controle da ordem, zelando para que tudo esteja no “seu lugar previsto [medido]”.
Entretanto, o zelo de Dália não é despretensioso; moça gananciosa, de origem
humílima, é movida pela cobiça:
Seus tabuleiros de roupa são lições fátuas da certeza de sempre os haver de haver e
são-no sem paz ou distância mas por vício e cobiça, Dália é a imagem e semelhança
de seus patrões muitos, pois partirá sempre à proposta de casa de melhor talher e
mais fino luxar. E como tudo o que é à imagem e semelhança, tensa de desejo e
grotesca. Com recato lhes cobiça os proveitos e lhes odeia com cuidado os filhos
menores. Com os maiores e pais tem gasta sua donzelia perdida e deles aguarda,
com cautela ainda, que a tornem dona. [...] Agradada da fartura da casa a mau
recato, do torso ancho e farto pelo do patrão, do acanhado siso da companheira, só
lhe é senão a garota que nem a olha, nem a teme. Que a morde se preciso, que a
esmurra com insuspeitada gana nos mamilos e nos olhos, se a ameaça de perto. (p.
40)
A hipocrisia de Dália e a rebeldia de Maina geram entre as duas um ódio recíproco. A
segunda, compreendendo os desígnios da primeira, representa um empecilho e uma ameaça,
além de presentificar para a serviçal “o temor esquecido” (p. 40), o temor da mãe, que a
amaldiçoou quando deixou a casa, seduzida pelos atrativos da cidade.
Em Dália mesclam-se cobiça, fraqueza moral e inconsciência acerca de sua real
condição. Querendo ascender a um nível mais elevado na escala social, não percebe que, seja
qual for o lugar ocupado, permanecerá submissa e passiva, pois em vez de agir de forma
autônoma, antes espera “que a tornem dona”, colocando-se numa situação de dependência do
elemento masculino.
Dália encarna a figura da serviçal gananciosa e falsa que bajula os patrões fingindo
fidelidade, quando na verdade seu único desejo é ocupar o lugar daqueles a quem serve. Junto
à patroa, aparenta zelo pela filha: “’Quer o seu pãozinho, menina? Tem marmelada’. [...] ‘Que
lindas cores tem hoje o anjinho, benza-a Deus, minha senhora’, e caídas da boca as palavras
do compromisso [...]” (p. 48); mas, sozinha com a menina, destrata-a:
Dália [...] tem-lhe raiva. ‘Outra vez coirinha?’ E, vendo o chão coalhado dos detritos
de ocupar tempo, ‘rais parta o emplastro, a lontra da mãe a empestar que vem aí hoje
outro cheira-cus ver-lhe as goelas e a curtinha nisto!’ (p. 40)
A serviçal hipócrita, que mostra a face sinistra apenas aos que julga não poderem
atingi-la (no caso de Dália, a Maina muda), reaparece na segunda parte do romance na figura
da enfermeira Adélia, que cuida de Maina anciã e demente. A semelhança dos nomes
Dália/Adélia já indica uma aproximação entre as duas, aproximação que Maina intensifica ao
chamar a segunda apenas Délia. Entretanto, a enfermeira é considerada “muito eficaz” pelo
patrão (Fernando Mendes):
Muito eficaz. Minha mãe, desde que ela está, não voltou a molhar-se durante a noite.
[...] Quando esta [Adélia] veio, não pareceu estranhá-la. A rapariga ajuda-a em
silêncio sempre, muito rapidamente, e vai sentar-se a janela. Chama-lhe Délia. (p.
193)
Não é por acaso que Maina não a estranha e seu desprezo aqui se repete: “minha mãe odeia a
rapariga, odeia o quarto. Sinto-o. Vejo-lhe os maxilares [...] retesos, fecundos de cólera” (p.
194). Adélia também mostra a outra face apenas a Maina: “e a voz de antes sempre destemida
e amarela, Dália, Délia, ‘Come velha’.” (p. 237). A justaposição dos nomes da serviçal e da
enfermeira aqui também favorece a correlação entre as duas, que se caracterizam ambas pela
hipocrisia.
1.5 Cecily
A caracterização de Cecily, feita por Fernando, evidencia aspectos que a aproximam
tanto de Maina Mendes como também de Hermínio. À primeira, a personagem se liga pelo
consentimento recíproco que regeu a relação das duas desde o começo: “Sempre se deram
bem, se dar-se é consentir-se naquele segredo em que elas se consentiam, como se duma e
doutra não houvesse novidade a qualquer delas.” (p. 166).
Além da compreensão mútua que une as duas mulheres, há traços distintivos de Maina
Mendes que se verificam também em Cecily. Lembrando a esposa, Fernando diz: “ela gostava
do sal sob todas as formas” (p. 169), e “não conhecia o medo” (p. 170); com isso faz lembrar
Maina Mendes, que “chupando o sal na pia do baptismo berra por mais” (p. 33), e também é
“sem medo” (p. 31). A intimidade de ambas com o mar também é marcada na narração de
Fernando. Assim a esposa, que no mar era “arteira e robusta”, é vista por ele a “saltar ao seixo
na praia, grávida” (p. 169), como Maina, que “tão adiante a prenhez” se atrevia a “bordejar a
vaga pelo areal” (p. 96). E é depois juntas que Fernando as vê levarem a filha à praia: “eu
partia e ela já havia saído com a criança à ilharga a caminho da praia, minha mãe com elas”
(p. 170).
A “inconseqüência” de Cecily lembra também a excentricidade de Maina Mendes, que
afrontava a honra de Henrique e dava azo à maledicência, tal como se dá com Fernando, que
suporta o escárnio dos próprios empregados: “ouvi que aquilo que além ia era a Cilinha do
patrão Mendes e que com tanto naco que há por aí bem escusava eu de ir a estranja buscar
aquele nico” (p. 170). Importa anotar, contudo, que, no caso de Cecily, esta não assume o
caráter maligno atribuído a Maina. De qualquer forma, a escolha da esposa em ambos os
casos – no de Henrique e no de Fernando – surge como uma escolha infeliz, pois ambas as
mulheres acabam por frustrar as expectativas dos respectivos maridos.
A aproximação de Cecily e Maina evidencia-se ainda mais no relato de Fernando
acerca dos episódios que antecederam o nascimento de Matilde, quando Cecily preparava-se
para dar a luz.
Cecily não parecia dorida, mas eu jamais lhe conhecera dores que ela não tivesse o
poder de iludir. [...] Assim, como o sinal de parto só fora pôr-se quieta e acordar
lento e preferir penumbra, deixei a parteira sentada onde ela queria, fora, e acedi a
ver também o animal, afinal tão raro naquelas costas. Ela disse ‘Go and stay there’
numa voz aguçada, má, hirta de maxilas. (p. 175-176)
O alheamento de Fernando em relação à esposa aqui adquire reciprocidade, pois parte dela o
pedido para que ele se retire do quarto. Na iminência do parto, Fernando é assim excluído da
cena, permanecendo ausente até o nascimento da filha. Essa exclusão é sentida pela
personagem, que percebe nas palavras da mulher – normalmente doces, leves – uma voz
“aguçada, má, hirta”. Esse sentimento de exclusão (ou mesmo de traição) é reforçado ainda
pela presença de Maina Mendes junto a Cecily:
Virei-me surpreso e vi, vejo [...] minha mãe [...] sentada junto à cama à contraluz
[...]. [...] vi as duas mãos delas, a delicada na outra rude e belíssima ainda, grumo de
apertada carne, e nem sequer se viraram a mim [...]. De certa forma me pareceu
então quase obsceno o que se passava ali, [...] a obscura paixão em que as duas me
pareciam postas, minha mulher [...] hostil a mim [...]. Fitando-se ambas [...].
Monstruosas no espelho onde estavam de novo, enquanto eu lentamente me fechava
de fora, luzindo no escuro como animais ungidos e empalhados na postura duma
cópula ou duma presa comum a consumar. (p. 176)
A inquietação de Fernando ao perceber a cumplicidade entre as duas mulheres, a sensação de
estar na presença de algo “obsceno” não é um sentimento novo para a personagem: ele já
experimentara a mesma sensação ante a relação afetiva de Hermínio e Maina. O sentimento
de exclusão também se verifica nos dois casos (veja-se, no capítulo seguinte, o item 1.5, p.
93). Contudo, com as duas mulheres se apresenta um dado novo: há um terceiro elemento que
emerge como fruto dessa relação. Os aspectos ressaltados por Fernando – a penumbra, as
mãos unidas, como “grumo de apertada carne” (tal como se afiguraram a Henrique Maina e
Hortelinda: “mole confusa de carnes”, p. 102), a obscenidade da cena, “a obscura paixão” e o
fitar-se das duas mulheres – realçam a idéia de uma “cópula”, a criança convertendo-se em
fruto dessa união e não da outra, entre marido e mulher. Esse ato, excluindo o elemento
masculino fundamental para a procriação, investe-se de um aspecto sagrado, reforçado pela
imagem dos corpos “luzindo no escuro como animais ungidos”. A unção, segundo Chevalier e
Gheerbrant, “infunde a presença divina”. Conforme os autores,
Todos os povos tinham, aliás, o costume de verter óleo sobre as pedras
comemorativas. Derramar óleo santo sobre a cabeça adquiria o valor de uma
consagração, como nos ritos empregados para a consagração do grande sacerdote e
a sagração dos reis.
52
Dessa forma, a preparação ritual e a comparação das mulheres a “animais ungidos” trazem
consigo essa idéia de rito sagrado, de consagração, idéia que pode ser recuperada nas palavras
do próprio Fernando quando, mais adiante na narrativa, refere-se à filha como “Holly Matilde,
holy Matilde, Matilde sagrada pomar e horta” (p. 223, grifo nosso).
Também alguns traços que singularizam a figura de Hermínio reaparecem em Cecily.
A natureza “fluida”, que fazia com que Hermínio parecesse “flutuar por entre as coisas” (p.
127), verifica-se na esposa de Fernando sob forma de um caráter ondulante, “dançante” (p.
170):
Cecily descia a escada comigo, pulando, mas sempre à minha beira, as mãos sempre
prestes a tocar-me, o corpo ligeiro a vaguear-me em torno durante toda a descida, as
saias leves e o cabelo num desatino, solta pela escada sem carecer porém qualquer
apoio [...]. (p. 166)
A destreza nos movimentos, a soltura de ambas as personagens é um reflexo de seus espíritos
livres, que não se deixam subjugar pelas pressões externas. Entretanto, aos olhos de Fernando,
eles são apenas inconseqüentes, como Cecily, ou anômalos, como Hermínio. Observe-se a
propósito a deformação do nome da esposa efetuada por Fernando: ele reduz o nome “Cecily”
a apenas “Silly”, cujo significado em inglês é “bobo, estúpido”, enquanto que Maina Mendes
a chama simplesmente “Scila”, termo que não guarda qualquer relação com o termo inglês.
Cecily é, portanto, compreendida de forma diversa por mãe e filho, o que se confirma pelo
tipo de relação que se estabelece entre eles: de cumplicidade entre sogra e nora, de
52
Op. cit. (nota 48, p. 51), p. 919, grifo dos autores.
distanciamento entre marido e mulher – veja-se, a título de exemplo, a atitude de Fernando em
relação à esposa quando “a abraçava para a deixar mais breve” (p. 167).
Outro fator de aproximação entre as personagens Cecily e Hermínio é a similaridade
da relação que Fernando estabelece com cada uma delas. Em ambos os relacionamentos –
tanto com o amigo quanto com a esposa – Fernando atua com uma “impaciência surda” (p.
167), sentindo-os como um “entrave supérfluo” (p. 169), e só passando a se inquietar com o
caráter singular deles quando já não estão mais ao seu lado: “E eu só cuidei de tudo isso, só
me inquietei de quem ela era depois de ela não estar” (p. 169). Com relação a Cecily,
portanto, novamente se verifica o sentimento de frustração (e de vazio) experimentado por
Fernando ao descobrir, tardiamente, que aquelas pessoas significavam mais do que ele
supunha, e que ele havia desperdiçado a oportunidade de compreendê-las.
De modo geral, Cecily constitui-se como sujeito livre de preconceitos, que não se
submete a padrões de conduta e nem protesta contra eles, simplesmente os ignora. Na relação
que estabelece com a filha, distingue-se pelo caráter não-cerceador. Veja-se, a propósito, a
resposta de Cecily ante a preocupação de Fernando com relação às experiências sexuais de
Matilde: “’Why, the child was only necking with a friend. Can’t you see, they were only
learning each other by heart, can’t you see?’” (p. 214). O não-cerceamento da mãe permitirá a
Matilde seguir livre sem precisar reivindicar essa liberdade, nem protestar na marginalidade,
como o fizera Maina Mendes.
1.6 Matilde
Matilde aparece no discurso de Fernando Mendes, mas é também por sua própria voz
que se dá a conhecer, através das cartas enviadas ao pai. Este relata o episódio do nascimento
da filha, seus primeiros anos, a adolescência. O presente da personagem, entretanto, é
fornecido por ela própria, em uma linguagembrida que mescla o português e o inglês. Na
voz do “varão”, Matilde aparece como um elemento desestabilizador, porém não se apresenta
como objeto de escárnio, como o fora Maina Mendes para Henrique, mas como objeto de
admiração:
Foi a surpresa, creio, a base de tudo, a impossibilidade de a educar no sentido estrito
do termo, de conduzi-la, de dizer-lhe o que se faz, tão mestra a vi surgir e medrar na
arte de bem viver e continuar perante o murchamento do mesmo espaço que me fora
dado. (p. 222)
O “murchamento” do espaço de Fernando se contrapõe ao “medrar” de Matilde, sinalizando o
princípio de uma nova ordem. O tema do (re)nascimento aparece novamente com a gravidez.
Numa carta endereçada ao pai, conta que está grávida e que vai retornar. Refere também um
sonho: sonha que procura o pai à fábrica mas ele não está mais lá. Encontra-o na praia:
Sigo-te. Tu a três metros, talvez quatro, à minha frente. Calados. Não creio ver tua
sombra nem minha. Em frente, sempre, até uma imensa onda sem cor, ou cinza, em
frente. No fear, though. Nenhum sentimento de inquietação. Vou atrás, é tudo. Onda
de dois, três metros. Parada no ar. [...] Entramos pelo portal-onda em semicírculo e
cal, agora cal. Tu em frente. Não nos vejo cortar à direita ou subir, mas fizemo-lo
para chegar à entrada também em semicírculo duma pequena cripta-igloo, sempre
gesso ou cal, onde estamos, tu sentado, eu de pé. Tu dizes ‘Agora ficamos aqui até
que a água suba’. (p. 230)
O sonho de Matilde assume um importante significado se tomado no seu aspecto simbólico, e
é através dos símbolos que veicula que ele deve ser compreendido, já que, como afirmam
Chevalier e Gheerbrant, “todo símbolo participa do sonho e vice-versa”
53
. Os mesmos
autores, ao abordar as diferentes possibilidades de análise e interpretação dos sonhos referem
o método freudiano – etiológico e retrospectivo – e o método junguiano – teleológico ou
prospectivo. O primeiro busca o sentido no passado, nas causas do sonho; o segundo
considera o sonho como uma antecipação ou um projeto (nascido no inconsciente) de uma
atividade futura. É por esse viés que se pode considerar o sonho de Matilde, e é a própria
personagem que autoriza esse procedimento de análise (embora mencione Freud) quando diz
que “a matéria dos sonhos nos faz” (p. 230).
Assim, atentando-se nas imagens do “portal-onda”, da “cripta-igloo” percebe-se que
elas remetem a símbolos como a porta e a caverna. A porta, segundo Chevalier e Gheerbrant,
simboliza o local de passagem mas também de chegada
54
. Desconsiderando o caráter
transcendental dessa simbologia, tomaremos a imagem da porta apenas como lugar de
passagem, visto tratar-se aqui não de uma porta mas de um portal, que não é aberto pela
personagem mas simplesmente atravessado por ela. De qualquer forma, a travessia do portal
põe o sujeito frente a algo novo, diferente, sinalizando assim não só uma mudança de espaço
mas uma alteração no estado das coisas. A simbologia da onda corrobora essa interpretação:
segundo Chevalier e Gheerbrant, “o mergulho nas ondas indica uma ruptura com a vida
53
Op. cit. (nota 48, p. 51), p. 844.
54
Os autores salientam o valor transcendental da porta como lugar de passagem “do domínio profano ao
domínio sagrado” (p. 735), ou como “símbolo da iminência do acesso e da possibilidade de acesso a uma
realidade superior” (p. 736).
habitual: mudança radical nas idéias, nas atitudes, no comportamento, na existência”
55
.
Contudo, há que se levar em conta que as personagens não mergulham nas ondas mas
atravessam um “portal-onda”. Ainda assim, a presença do elemento marítimo (lembre-se que,
conforme os autores citados, o mar é também o lugar das transformações, símbolo da
dinâmica da vida), conjugado à imagem do portal, traduz a idéia de renovação, de passagem
de um estado a outro.
A caverna, aqui assimilada à imagem da “cripta-igloo”, simboliza o retorno à origem.
Entretanto é o viés mais psicológico dessa simbologia que pode servir ao entendimento da
imagem presente no sonho de Matilde. Conforme Chevalier e Gheerbrant:
A caverna simboliza o lugar da identificação, ou seja, o processo de interiorização
psicológica, segundo o qual o indivíduo se torna ele mesmo, e consegue chegar à
maturidade. Para isso, é-lhe preciso assimilar todo o mundo coletivo que nele se
imprime com risco de perturbá-lo, e integrar essas contribuições às suas forças
próprias, de modo a formar sua própria personalidade e uma personalidade adaptada
ao mundo ambiente em vias de organização. A organização do eu interior e de sua
relação com o mundo exterior é concomitante. Desse ponto de vista, a caverna
simboliza a subjetividade em luta com os problemas de sua diferenciação.
56
Assim, em vista da condição real da personagem – em retorno à terra natal –, a imagem da
“cripta-igloo” se reveste de um duplo sentido: se por um lado representa um retorno às
origens, por outro aponta para aquela “interiorização psicológica” de que falam Chevalier e
Gheerbrant, pois, o movimento de ida e volta de Matilde representa justamente esse processo
de dispersão e reintegração necessário à afirmação do eu. O retorno ao “lugar da
identificação” sinalizaria, portanto, um momento desse processo, momento em que o sujeito
assume o seu lugar, para a partir daí constituir a sua identidade.
No entanto, esse processo de construção da identidade não inicia e nem termina com
Matilde. Note-se, a propósito, que ela segue o pai, que vai alguns metros à frente: “I will
follow thee, I am what follows” (p. 230). Contudo, à determinação do pai de ficarem ali até a
água subir, Matilde se opõe: “No father, I will not stay whith thee, thou art what stays. Sim
pai, contigo, porque à tua vista fui. Não, pai, despeço-me porque te prossigo.” (p. 230). Dessa
forma, a atitude de Fernando, “sentado”, esperando a água subir, indica a finalização de um
percurso, ou a desistência dele, o que se confirma pelo suicídio da personagem. Já a posição
de Matilde indica uma atitude oposta: ao permanecer “de pé” demonstra a disposição de
55
Op. cit. (nota 48, p. 51), p. 658.
56
Idem, p. 217.
seguir em frente. Fernando fica, mas Matilde o prossegue, entendendo-se bem que prosseguir
aqui implica não apenas aproveitar a “art” que fica, mas sobretudo ultrapassá-la.
Além do sonho narrado na carta, outro dado interessante é o tipo de proteção
requisitado por Matilde:
Não preciso de ti, mas de abrigo a mim fêmea. Para fazer raízes pelo ventre ao que
está no ventre. Raízes no tempo tem, por morte de pai e guerra de mãe. Mas no
barro, pai, no barro. I must go back to you and Vómaina. He must cry his anger and
his hunger within walls to be one of us. (p. 230)
A fala de Matilde de certa forma retoma a fala de Maina Mendes, na primeira parte do
romance: “não é do querer dos homens [...] que espero. [...] não busquei homem mas guarida
segura para seguir sendo sem dono e sem repouso que me quebre.” (p. 84). Em ambas as
falas, o homem aparece simplesmente como abrigo para a “fêmea”, mas não para o sujeito-
mulher. É de se notar que, no caso de Matilde, a presença masculina é tão esvaziada de
sentido que a figura do pai da criança nem mesmo aparece na narrativa.
O regresso ao pai e à avó significa não só a busca do “abrigo”, mas o retorno ao
“barro”, ou seja àquilo que constitui o sujeito. “Raízes”, “ventre”, “barro” são termos que se
inter-relacionam, remetendo todos ao espaço de origem – Portugal. A identidade de Matilde
caracteriza-se, pois, pelo movimento de dispersão e reintegração, pelo trânsito entre o diverso
e o mesmo que lhe permite definir-se como sujeito plural.
2 Algumas considerações
A análise das personagens femininas mostrou que há diferentes formas de
conformação ou inconformação diante da realidade circundante. Maina Mendes, por exemplo,
pode ser considerada um elemento destoante no meio em que vive, devido ao não
cumprimento do papel social que lhe cabe na sociedade. A não-ocupação do lugar próprio
revela-se, assim, como tática de resistência frente a uma ordem instituída, o que contribui para
a construção de uma “identidade de resistência”, definida por Manuel Castells como aquela
criada por atores sociais que se encontram em posições/condições desvalorizadas
e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de
resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as
instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos.
57
Maina Mendes aceita a sua marginalidade, fazendo dela um espaço de diferenciação e de
resistência. Assim, a subtração do direito à palavra é convertida em mudez voluntária, assim
como é voluntária a sua exclusão do convívio social. Desse modo, Maina se nega a praticar o
jogo das convenções – em que a mulher é necessária como presença figurativa, mas não
atuante –, entrando em choque com as regras estabelecidas, segundo as quais à mulher não é
permitido jogar, mas muito menos sair de campo.
Já o inconformismo de Hortelinda assume características diferentes. Ela também
ocupa sua posição marginal como espaço de resistência, mas nesse caso não há omissão
explícita quanto ao papel social: a cozinheira está na cozinha, no seu lugar. No entanto, é dali
que ela dissemina o “seu grão”, através da senhora que “amanhou”, menos senhora que
seguidora. É, assim, na relação com Maina Mendes que se dá o inusitado: a ligação que se
verifica entre elas rompe com a norma vigente, não condizendo com o padrão de
comportamento normalmente observado entre patrão–empregado.
O conformismo também se manifesta diferentemente na mãe de Maina Mendes e em
Dália: enquanto a primeira se ocupa em manter a ordem familiar, perfeitamente ajustada ao
seu papel, a serviçal se mostra insatisfeita com sua posição na escala social, almejando a
ascensão; mas em nenhum momento há uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade.
Dália não pretende mudar a ordem das coisas; deseja apenas ascender, pela mão de um
homem que assim deseje, a uma posição mais confortável, ainda que igualmente marginal e
secundária. Ambas se caracterizam, portanto, pela passividade, pela submissão. As próprias
atividades com que se ocupam em momentos de distração (o bordado, o crochê) são marcadas
pela quase inércia. Mesmo no caso de atividades de utilidade prática, como a organização da
casa, essa se apóia na necessidade de deixar ou recolocar as coisas nos seus devidos lugares,
limpas e certas (veja-se, a propósito, a descrição de Dália em serviço). Esse cuidado em pôr
no lugar, em conter, se estende também aos cuidados com a aparência pessoal, o que pode ser
verificado no asseio da mãe de Maina Mendes.
Os dois pares analisados representam, respectivamente, duas maneiras diferentes de se
inconformar e conformar à realidade, cada uma das personagens podendo ser igualmente
contraposta a outra. Observando Maina Mendes e a mãe, vemos que elas são essencialmente
diferentes, assim como Hortelinda e Dália. Veja-se, por exemplo, o descompasso de Maina
57
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. vol. 2. A era da informação: economia, sociedade e cultura.
São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 24.
com relação às convenções: a personagem não demonstra vaidade, nem asseio, nem qualquer
preocupação quanto à sua imagem pessoal. Esse despojamento voluntário de Maina Mendes
marca sua recusa a esse papel ornamental imposto à mulher. Registre-se, porém, que,
enquanto a atitude de Maina implica uma consciência crítica acerca de sua real condição, na
mãe, “o pensamento ali não é” (p. 24), evidenciando que não há consciência acerca dos atos já
involuntariamente praticados, de tão repetidos e solidificados na tradição. Em oposição à
“mansidão” da mãe vemos a “ira” da filha. Também o ódio a Dália nutrido por Maina é
significativo dessa ira contra a falta de consciência feminina diante de sua realidade social.
A cozinheira e a serviçal por sua vez, embora pertençam ambas a uma classe social e
economicamente desfavorecida, diferem radicalmente quanto ao seu caráter. Contrariamente à
terna e servil Hortelinda – a “serva ancestral” –, Dália é marcada pela cobiça e pela hipocrisia
burguesa, pois é à “imagem e semelhança de seus patrões”. No que se refere à cobiça de
Dália, o que à primeira vista poderia parecer um impulso da serviçal no sentido de uma
mudança, revela-se, na verdade, como conformidade com o que é imposto às mulheres: a
submissão e a passividade. Dália não é agente de seu destino, por isso espera que “a tornem”
dona; a decisão é masculina, e à mulher cabe a atitude passiva da espera. Neste aspecto, Dália
é tão “cordata” quanto a mãe de Maina Mendes, pois aspira não à independência e autonomia
feminina, mas simplesmente à ascensão a esse “lugar medido” que cabe às mulheres.
Enquanto a mãe e a serviçal vinculam seus destinos à proteção masculina, Maina e
Hortelinda renunciam a essa proteção em favor de sua autonomia. Contudo, para ser “sem
dono”, é preciso renunciar a todas as convenções e talvez, como Maina Mendes, chegar à
loucura, ao espaço em que impera uma outra ordem, que jamais obedece à ordem legítima. O
silêncio de Maina é também uma outra ordem de discurso. Tanto a loucura como o silêncio
não podem ser dominados ou manipulados, podendo, por isso mesmo, ser utilizados como
táticas de resistência. “Tática” é definida, aqui, a partir de Michel de Certeau, como “a arte do
fraco”, determinada pela “ausência de poder”. “A tática é o movimento dentro do campo de
visão do inimigo [...] e no espaço por ele controlado”
58
. Segundo de Certeau, o indivíduo que
se acha submetido a uma lei imposta pode subverter essa lei, tirando proveito dela, sem no
entanto contrariá-la. Da mesma forma que há estilos ou maneiras de utilizar uma língua, por
exemplo, há o que o autor chama “maneiras de fazer”.
Esses estilos de ação intervêm num campo que os regula num primeiro nível [...],
mas introduzem aí uma maneira de tirar partido dele, que obedece a outras regras e
58
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. p. 100; 101.
constitui como que um segundo nível imbricado no primeiro [...]. Assimiláveis a
modos de emprego, essas “maneiras de fazer” criam um jogo mediante a
estratificação de funcionamentos diferentes e interferentes.
59
Desse modo, usando o silêncio, Maina Mendes não contraria a norma imposta, mas a
subverte: faz do silêncio imputado à mulher um uso que distorce a sua função própria,
transformando-o em protesto sem palavras. É pelo silêncio que Maina se afirma. Diante de
uma sociedade em que a mulher é figura ornamental e sem voz, Maina Mendes, obedecendo à
norma até o extremismo da mudez, chama a atenção para a posição marginal e secundária da
mulher dentro da estrutura social. Quando há conformidade com a norma, essa marginalidade
geralmente passa despercebida, pois é escamoteada pelas estratégias do poder hegemônico.
Ao contrário das táticas de resistência, as “estratégias”, segundo de Certeau, são
ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio),
elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um
conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três
tipos de lugar e visam dominá-los uns pelos outros.
60
Ignorando os “lugares teóricos”, Maina Mendes instaura uma “antidisciplina”, utilizando-se
de procedimentos sub-reptícios que acabam por minar as estratégias do poder. A figura de
Maina representa, assim, mesmo permanecendo à margem, um espaço de resistência que
sinaliza a necessidade de uma tomada de consciência crítica frente à realidade incontestável
da exclusão da mulher.
A antidisciplina instaurada por Maina Mendes renderá frutos mais tarde, na figura de
Matilde, que antes de si teve não só a avó, mas também a mãe. É importante assinalar a
diferença do último par de personagens femininas – Cecily e Matilde – em relação aos
demais. As duas, ao contrário do que ocorre com Maina e sua mãe, não se contrapõem uma à
outra: não há hostilidade por parte da primeira, nem cerceamento por parte da segunda; ambas
circulam nos mesmos espaços (a praia, a sala onde se contam histórias), acompanhadas por
Maina, sem animosidade ou ruptura entre elas; ao invés de confrontação, há cumplicidade.
Contudo, observando os momentos em que as personagens interagem no romance,
vemos que as filhas aparecem juntamente com as mães numa parte para na subseqüente
aparecerem sozinhas: a mãe vai sendo assim suprimida, permanecendo somente o fruto que
gerou. Porém com Maina Mendes (a única a gerar um filho varão), isso não acontece: é o
filho que é suprimido, enquanto a mãe permanece (veja-se a propósito que, na última parte, a
59
Idem, p. 92.
60
Idem, p. 102.
única com apenas dois blocos e duas personagens – Maina e Matilde –, não há presença
masculina.).
PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE
Maina
Mãe
Hortelinda
Dália
Maina
Cecily
Matilde
Maina
Matilde
Unindo as três personagens – Maina, Cecily e Matilde – podemos perceber uma linha de
progressão que vai da ira contida sob um mutismo protestatório (Maina); passa pelo gozo
inconseqüente da liberdade (Cecily); e chega na consciência crítica aberta e livremente
expressa (Matilde). Nesse percurso, Cecily adquire importância não só pela atitude não-
cerceadora em relação à filha, mas sobretudo pelo fato de representar o elemento externo, a
alteridade que irá intervir na constituição híbrida de Matilde.
CAPÍTULO IV
DO MONÓLOGO AO DIÁLOGO: UMA DIFÍCIL TRAVESSIA
Falo apenas porque não desapareci ainda [...]
Que mais posso temer senão que outras mãos e outras falas que
não minhas consintam? [...]
Que posso desejar senão ter a delicadeza de deixar expressas
as mãos e armas do delito afinal consumado [...]?
(Maina Mendes)
1 Vozes masculinas: lei e contestação
Entre as figuras masculinas do romance também podem ser observadas discrepâncias
quanto à postura assumida diante da realidade, embora a diferença apareça marcada mais no
discurso que nos atos dessas personagens. Assim podemos situar num primeiro grupo
personagens como Álvaro Mendes, o médico e Henrique; e, num segundo grupo, personagens
como Ruy Pacheco, Fernando Mendes e Hermínio. Atente-se para a representatividade dos
primeiros: Álvaro Mendes representa a alta burguesia; o médico representa o conhecimento
científico; e, por fim, Henrique representa a classe industrial. Já os outros não têm a mesma
notabilidade: Ruy é um soldado raso, sem nenhuma proeminência; Fernando Mendes, um
industrial decadente, psicologicamente desequilibrado; e Hermínio, um boêmio tuberculoso.
O primeiro grupo é representante da ordem instituída e apresenta uma postura tradicional; o
segundo efetua a contestação da ordem e se caracteriza por uma consciência mais crítica
diante dos fatos. O tipo de relação que estabelecem com o elemento feminino também varia
de acordo com a concepção – tradicional ou contestatória – que cada grupo encarna. Os
homens do primeiro grupo desenvolvem uma relação de confronto com as figuras femininas
marcadas pela rebeldia, relação essa caracterizada pelo exercício estratégico do poder deles e
pela resistência tática delas. Já o segundo grupo abre espaço para a interação e para o diálogo,
o que permite às vozes femininas ecoarem para fora de seus círculos, alterando pelas bases a
ordem vigente.
1.1 O médico
A figura do médico aparece três vezes no romance: a primeira, por ocasião da mudez
de Maina; a segunda, na figura do psicanalista de Fernando; e a terceira, como o médico que
examina Maina Mendes já na velhice. Embora não se trate dos mesmos atores, as três figuras
podem ser consideradas igualmente como representantes do saber científico. O que vai variar
é a posicionamento das outras personagens diante dos postulados da ciência.
O médico da família, que aparece na primeira parte do romance, introduz-se em
discurso direto, em um longo parágrafo sem interrupções dos interlocutores, o Sr. e a Sra.
Mendes, que atendem ao diagnóstico sobre o estado da filha. Na prescrição da conduta a ser
adotada pelos pais diante da histeria da menina, o médico acentua o perigo que esse tipo de
comportamento representa:
A má vontade, as ruins inclinações desse tipo, como direi, de comportamento, [...] a
histeria numa criança de tão tenra idade deve até ser tomada a pulso. Choques
violentos são a evitar, mas tomar a pulso, vergar, sr. Álvaro Mendes. [...]
Perigosíssimo, sr. Álvaro Mendes consentir em que estes, como direi, vícios de
caráter, pequenos escolhos de início, tomem vulto. (p. 42)
A mudez voluntária de Maina Mendes, é tomada, assim, desde logo como um ato de
rebeldia que precisa ser reprimido, antes que tome vulto. Importa salientar que a tarefa de
“vergar” cabe ao pai, representante da lei, da ordem a que se deve adequar a criança
insubmissa. O alinhamento moral, portanto, deve ser implementado pelo pai, enquanto que à
mãe cabem os cuidados com a alimentação, com a manutenção da saúde física.
O psicanalista, cuja presença vai permear todo o discurso de Fernando Mendes na
segunda parte da narrativa, ao contrário do médico da família, não se pronuncia diretamente.
A sua voz, no entanto, é perfeitamente audível nas réplicas de Fernando, e suas falas elípticas
representam, como no caso anterior, as concepções científicas da época, o que pode ser
atestado pelas palavras de Fernando Mendes:
Ah acha então que a alienação, como diz, não é sobrevivência nenhuma, mas antes
desistência? Que a perturbação mental é retirada que o sujeito não comanda? Isso o
preocupa, pois, o que o sujeito comanda? Mas oiça, ela sempre escolheu quem
deveria morrer e quem não. Reconhece direito de assistência a certos rostos. Alguns,
mantém-nos como se vivos – Hermínio, Cecily, Hortelinda. Seus pais, meu pai,
nunca existiram. Pode dizer-me, com ciência, claro, não lhe peço mais, mas o que é
a sua ciência, não são estas questões objeto de sua humana ciência, pode dizer-me se
não carecemos do que ela mantém e da forma como o pode fazer e se poderia outra?
(p. 220)
A diferença é que o saber científico, no primeiro caso, é respeitado e acatado e, no segundo
caso, é contestado, questionado. Observa-se aí a quebra do monologismo da ciência, com a
instauração de uma tensão dialógica.
Além de representar o saber psicanalítico, o analista aparece como um direcionador da
narração, e não apenas como ouvinte, pois, a partir das questões que coloca – questões essas
apenas inferidas pelas respostas de Fernando –, o analista conduz a narração e determina
quando, quanto e sobre o que se vai falar. Assim é quando Fernando inicia a sua história,
dizendo: “Sim, creio bem que falei cedo.” (p. 120). O advérbio de afirmação no início da frase
pressupõe a pergunta do analista, que o paciente retoma para dar início à narração de um
episódio da sua primeira infância. Da mesma forma, quando diz “Sim, também creio que, por
hoje, é tempo.” (p. 122), Fernando retoma a fala do médico, o que se pode perceber pelo uso
dos advérbios “sim” e “também”, os quais denotam a concordância do falante com o que foi
dito anteriormente. Desse modo, ainda que não esteja expressa literalmente, a voz do analista
pode ser percebida como um fator de controle da narração, a qual fica submetida aos limites
que ele lhe impõe, tal como o próprio Fernando Mendes observará depois: “Começo a
aperceber-me de como me movo nesta penumbra e neste tempo que afinal lhe pertence, pois a
si venho não o contrário” (p. 133, grifo nosso).
O terceiro médico é apenas referido por Fernando Mendes em seu relato ao
psicanalista. A referência ao episódio da consulta da mãe evidencia, porém, o descrédito (ou o
desdém) de Fernando em relação aos postulados científicos. O médico é retratado por
Fernando como um “rapaz” ingênuo, do qual ele fala com um tom visivelmente irônico:
O último chegou mesmo a interrogá-la e a interessar-se muito particularmente pelo
caso, dando-lhe tratamento de grande dama lúcida e apenas com o leve toque de
dolência que se reserva aos inválidos idosos. ‘Por que não nos diz como se sente,
minha senhora?’, ao que ela volveu com a ironia paciente de quem já muito o
repetiu, ‘albarda-se o burro à vontade do dono’, palavra com que lapida o que
definitivamente não parece interessar-lhe e que eu já conhecia, mas que deixou o
rapaz interdito e com muitas questões a pôr-me sobre minha mãe [...]. (p. 189, grifo
nosso)
As palavras grifadas denotam, na visão de Fernando, o exagero da atenção ingênua do
médico, ingenuidade pressentida até mesmo por Maina, que lhe responde com “ironia
paciente” a pergunta tola; ingenuidade ainda no fato de ele ter-se impressionado com o dito
banal, “mas que deixou o rapaz interdito”. Embora Fernando diga em seguida que o médico
pareceu-lhe “inteligente e sensível”, essa afirmação não desfaz a imagem anterior, imagem
carregada de um certo desdém: note-se a propósito que em nenhum momento Fernando o
designa como “médico” mas sim como “o último”, “o rapaz”, deixando entrever um certo ar
de complacência superior em relação à inexperiência do jovem médico.
Podemos considerar que, diante da visão da ciência, há um movimento das
personagens que vai do respeito e acatamento (na primeira parte) à contestação (na segunda
parte), para finalmente acabar em completa desconsideração.
1.2 Álvaro Mendes
O pai de Maina, Álvaro Mendes é a figura mais discreta do romance: aparece poucas
vezes e praticamente não é referido no discurso das outras personagens. Pela deferência com
que lhe fala o médico da família, depreende-se que é homem respeitado na sociedade e na
família, idéia, aliás, reforçada por Henrique – “Teu pai, que eu conheci possante, aos ecos de
seus passos as casas eram em abundância e as mulheres assentiam” (p. 89). Trata-se, pois, do
homem forte da sociedade patriarcal, ajustado ao sistema e às concepções oficiais. A figura de
Álvaro Mendes, no entanto, não aparece sem máculas, o que se verifica indiretamente, através
da caracterização da serviçal Dália: “Com os maiores e pais tem gasta sua donzelia perdida
[...] Agradada da fartura da casa a mau recato, do torso ancho e farto pelo do patrão [...]” (p.
40). A prevaricação de Álvaro Mendes fica, portanto, aí subentendida, contribuindo para
derrubar a imagem de retidão passada pelos homens do romance. Encarnando os valores da
família burguesa, o comportamento do pai põe a nu o jogo das aparências sociais, sua
identidade sendo marcada pelo caráter dúplice: publicamente honrado, e intimamente
indecoroso.
1.3 Ruy Pacheco
Ruy Pacheco, o primo de Maina Mendes que combateu em África, aparece de forma
ativa apenas no quinto bloco, o mais extenso da primeira parte do romance. Somente em mais
dois momentos seu nome será mencionado: no oitavo bloco, quando Hortelinda a ele se
refere, e no último bloco do romance.
Ativamente, Ruy aparece em visita aos tios, com quem estabelece um diálogo que
versa sobre os combates travados em solo africano. O bloco inicia-se já com o discurso direto
– a pergunta de Álvaro Mendes a Ruy Pacheco: “E em Magul?” (p. 53). Entretanto a resposta
virá apenas três páginas depois. Entremeando uma fala e outra há descrições da cena presente
e de cenas passadas, em analepse, e, também uma espécie de fluxo de consciência de Ruy
Pacheco. O bloco apresenta, assim, um caráter não linear no que se refere à cronologia dos
eventos.
O diálogo que se estabelece desenvolve-se em dois planos: um que é manifesto
externamente no discurso direto; e um outro que transcorre subliminarmente, ao nível da
consciência de Ruy. No primeiro, a personagem aparece conformada ao seu papel,
respondendo às perguntas de acordo com uma visão oficializada; no segundo, verifica-se uma
visão pessoal, mediante focalização interna.
A figura de Álvaro Mendes desde o início aparece contraposta à de Ruy: a gravidade
do primeiro, “todo ele é esforço de pergunta pesada e seriíssima” (p. 53), não parece se
coadunar com a displicência pueril do segundo, que sequer atende à pergunta, entretido com a
prima: “Ruy Pacheco está porém sorrindo para baixo, pois Maina Mendes está sentada
composta na banquinha [...]” (p. 53). A pergunta é refeita e então vem a resposta, à qual se
seguem descrições de cenas das batalhas em que Ruy Pacheco teve parte. A narrativa, a partir
daí, se desenvolve nos dois níveis: o do diálogo, em que são enfatizadas as façanhas e glórias
portuguesas; e o dessas cenas, que denotam medo e espanto diante do horror e absurdo da
guerra.
Apesar de sua intensidade, os episódios “inverossímeis” e “sem razão” presenciados
pelo alferes Ruy Pacheco não se exteriorizam na conversa em nenhum momento. Assim, a
experiência traumatizante subjaz “no terrível silêncio e espanto que lhes iam dentro e, agora,
não mais têm resposta e sempre estão” (p. 57). A riqueza de detalhes, pode-se dizer, tem a
finalidade de mostrar aquilo que não é transmitido através da versão oficial dos fatos – a
experiência degradante dos soldados na guerra:
Não é crível, embora visto, que o que jorra feijão num vómito breve caia ali
agarrado à azagaia nodulosa no peito aberto em vulva. [...] ‘Que fazemos aqui, meu
senhor Deus, que tanto bailam’. O dedo no gatilho aquecido é dormente e nada é
doloroso e apenas em espanto espera que na fumaça perdure do outro lado e venha a
eles o primeiro vivo. O Neves larga a arma e chora. Couceiro esmurra-o uma e outra
vez [...]. E Couceiro é apenas a máscara escorrida de sangue da bala que lhe largou
sulco aberto no sobrolho esquerdo. ‘Está cego. Estamos todos cegos e hão de levar-
nos pela mão e comida escorrerá dos nossos queixos’. (p. 57)
Depois de tal experiência, o sujeito permanece indelevelmente marcado, pois a “sem razão”
de tudo aquilo acaba se revertendo “no perfeito ódio que os agüenta e em todos cai de manso
para os fundos e para sempre” (p. 60). Interessa observar, no entanto, que os fatos, apesar de
serem apresentados da perspectiva de Ruy Pacheco, não são narrados em primeira pessoa: a
degradação do sujeito é tão profunda que repercute no discurso, onde as marcas da
subjetividade são também apagadas. Além desses dois níveis da narrativa – o diálogo e as
cenas que lhes servem de contraponto –, há ainda um terceiro nível, que evidencia a relação
afetiva entre Ruy Pacheco e Maina Mendes, e que se apresenta através de fragmentos
intercalados entre o diálogo familiar e as cenas bélicas.
Pode-se dizer que Ruy Pacheco se constitui como sujeito ajustado ao sistema – afinal,
é um soldado, defensor da ordem instituída; entretanto, demonstra já certa inquietação diante
desse sistema, embora isso não seja expresso de maneira consciente e nem seja formulado de
forma crítica por parte da personagem. Além disso, a interação de Ruy com a prima
demonstra uma espécie de afinidade com o elemento transgressor, representado por Maina.
1.4 Henrique
No sétimo, nono e décimo primeiro blocos da primeira parte do romance, Henrique
assume a voz narrativa: temos aí, pois, uma focalização interna, com um narrador
intradiegético-homodiegético.
No sétimo bloco Henrique aparece descrevendo o sarau em que encontra Maina
Mendes. Coloca-se numa posição de observador distanciado do “brumoso e colorido
marulhar” dos círculos de pessoas que lhe “parecem tão jovens e intocáveis”, marcando a sua
condição de “homem feito”, distinção reforçada pela referência aos mais jovens, como a
“menina” de faces rosa que lhe sorri, os “sobrinhos febris” ou os filhos de amigos seus (p.
76). A figura de homem feito e proeminente no quadro social é enfatizada pelo narrador:
Vão-me abrindo espaços afáveis e já o saudar-me das mais tenras se compõe na
candura devida a seus amos. [...] me avolumo do murmúrio entre folhos de que aqui
vou [...], já desejado delas com temor ou recato, já há tanto quebrado o bulício dos
homens muito jovens a meu passo, não mais passando na indulgência ou ignorado,
não mais enternecendo, um homem grado, um homem caro. (p. 76-77)
Observa-se, no uso dos advérbios “não mais”, a trajetória do homem que ascendeu
socialmente e que por isso se regozija com a deferência à sua pessoa. A juventude de que
carece é, assim, compensada pelo respeito e consideração de que é objeto. Contudo, apesar de
não ser “tão jovem”, põe em relevo a sua robustez – “o sangue latejando-me nas veias da
cabeça que sei pujantes” (p. 75); “este corpo meu avolumado” (p. 77); “esta sageza e este
corpo sólido, este fácil vibrar de entranhas” (p. 77) –, evidenciando o vigor e virilidade que o
caracterizam, segundo o seu ponto de vista.
O último parágrafo do bloco descreve o sucumbir do narrador aos encantos de Maina
Mendes:
E entre as portas de salão a sala me aguarda e se me ocorre estranheza ainda de a ver
só, [...] a estranheza se pára perdida nos olhos, que por fitar-me, ao ir a ela me
parecem imensos, escuridão de apelo. [...] Ali está porém e ancorada tão firme que a
não tocam [...]. Apelo porém meu, que o rumor das entranhas [...] me galga agora ao
peito, mais marcado o pulsar e [...] vou estando já na clareza perfeita daquele negro
de olhos, onde estão e entrego como a promontório donde me vou largando e o
corpo me cai leve e sem ruído ou temor nas águas turvas da noite que sei nos fundos,
onde estão entregues e cumpridas todas as minhas posses de homem vão. (p. 77-78)
Ao mesmo tempo em que se evidencia a paixão fulminante do narrador pela personagem,
aponta-se também, numa imagem antecipatória, a ruína que ele experimentará ao seu lado. A
imagem do corpo que se vai largando do promontório simboliza assim a queda moral a que o
narrador irá se submeter unindo-se a Maina Mendes.
Note-se ainda, no fragmento citado, a referência às “posses de homem vão”. No oitavo
bloco, em sua visão sobre Henrique, Hortelinda também lhe enfatiza as posses: “Não me diz a
sua mãe que a casa é chegada ao mar mas de grandes teres e o senhor Henrique pessoa de
muito mundo [...]?” (p. 82). A cozinheira dirige essa fala a Maina Mendes, inquirindo o
porquê do seu desleixo em relação ao futuro marido.
Vejo-a a noivar sem gosto como se em toda esta mudança que se avizinha o homem
fora o que menos contara. Ele entra e sai e à sua beira é que nem pedinte, tudo lhe
vai bem se a menina o quer, todos os améns, mas nem esses olhos se riem, nem os
deles abrandam a paixão. (p. 83)
[...]
quem na obriga com este e não com aquele, se não lhe tem querer, se eram mais que
as moscas, todas as quintas-feiras? (p. 84)
A cozinheira informa a respeito das atitudes e sentimentos de Maina Mendes em relação ao
noive e vice-versa, o que o discurso de Henrique irá reiterar, no bloco seguinte, em que
Henrique se dirige a uma segunda pessoa – a noiva – durante a cerimônia de casamento. Na
fala de Henrique, Maina aparece como uma mulher forte e dominadora, a quem ele se
submete mesmo sabendo que isso representará a sua perdição, pois tem consciência da
indiferença da noiva face à sua paixão: “Que preparaste para que não te tenha nunca? E dizes
de novo, [...] como se todos os dias vieras a desposar o que não conta, dizes ‘Senhor, se assim
quer, case-me com seus temores’.” (p. 89). A certeza de infelicidade ao lado da futura esposa
provoca o desejo de aniquilamento do marido, que, molestado por uma “dor nauseante” e
“costumeira” nos rins, nela consente: “nesta dor consenti e agora me acompanha. E me
defende, apenas me defendo deixando o mal de mim, mal meu, crescer e corroer-me e assim
me terás menos.” (p. 91).
Henrique continua encarecendo sua posição social, suas posses:
Curtidos ainda os que manejam como eu há curtas gerações os teres de poucos. Mas
sobranceiros já, não de humilhado comércio, mas desta indústria que secreta e
metálica cresce comigo na cidade, com minhas latas, timbradas de meu nome, onde
num mar pequeno de azeite frio se acama o peixe, mil peixes de minhas traineiras
marcadas de meu selo, não já cavalo ferrado para servir, ou nau nossa, minhas
traineiras, minhas. (p. 90)
Note-se a profusão de pronomes possessivos, demarcando a qualidade de “senhor” de muitas
posses, por ele enfatizada, mas por Maina Mendes desprezada. A indiferença da esposa, em
cujo “negro de olhos” ele acreditava estarem “entregues e cumpridas todas as [suas] posses de
homem vão” (p. 78), gera o desgosto e a incerteza:
Meu desgosto. ‘Sim senhor’, ‘Não senhor’, o tratamento de senhorio que me dás e o
semblante fechado no chá que me serves, [...] teus sorrisos imóveis que rasgam a
parca paz de estarmos em terreno de homens, onde me levas? (p. 90)
Os dois fragmentos citados, justapostos no romance, mostram, por um lado, o encarecimento
de uma posição social que deveria trazer prestígio e reconhecimento, e, por outro lado, a
infelicidade gerada por essa mesma posição, que vai jogar contra a personagem em sua
relação com a esposa, que o considerará apenas como “senhor”, ou como “guarida segura” (p.
84) e não como homem a ser amado. A vaidade de Henrique é, pode-se dizer, punida por
Maina Mendes, punição que ele reconhece e aceita: “Vem, minha pomba justiceira, a que te
felicitem. Vem.” (p. 92).
No décimo primeiro bloco, a personagem refere-se à vida conjugal. A narração
recobre um período de tempo que vai da noite até ao amanhecer. Insone ao lado de Maina
Mendes que dorme, Henrique lembra os momentos de cólera passados ao lado da esposa,
decidido já a separar-se dela. Nas queixas em relação à mulher, bem como nos traços
extremamente negativos que nela ressalta, fica evidente a situação de conflito em que vivem,
cada um representando uma linha de força agindo no sentido de neutralizar a outra. É com
esse intuito que Henrique atribui a um estado de insanidade mental as excentricidades de
Maina Mendes, buscando reassumir o controle da situação:
Luz a casa do arrais, onde o mando é de homem. [...] Eis o alvor do sol
avermelhando a duna, eis o vigor e o mar rubro. [...] Relegada serás com teus odores
e falas taciturnas aonde a meus espíritos aprouver, tu e teu séqüito sórdido. O
menino diz pai em meu joelho, maldita podes ser, carne fecunda, ruída aparição,
desfeita construção de meus sentidos. Me retomo. (p. 103)
Observe-se a contraposição do dia à noite, o primeiro associado a Henrique, e o segundo, a
Maina. A retomada do “mando de homem” é, assim, assinalada pela entrada da luz do sol ao
amanhecer: “Luz a casa do arrais”, “Eis o alvor do sol”. A oposição dia/noite é marcada
ainda, mais ao final do bloco, num outro trecho – “Ide últimas sombras da madrugada. Sou eu
ainda que aqui comando o dia. [...] já rebrilham como pepitas na areia as conchas úmidas ao
sol [...]. Macio dia retomado e cálido gosto de mandar.” (p. 104). A focalização do alvorecer
contraposta à focalização da noite na cena inicial (“Eis a noite e o troar do mar [...], eis a
insônia ao teu lado”, p. 101) marca assim uma mudança de situação: destituindo a mulher de
sua posição, o homem reassume o controle da família. Esta situação, porém, aparece como
provisória, não definitiva, o que pode ser inferido pelo uso do advérbio “ainda” (“Sou eu
ainda que aqui comando o dia.”), ou seja: “ainda” (= por enquanto), mas não para sempre.
Maina Mendes só irá se referir ao marido no último bloco da primeira parte, depois da
morte de Hortelinda, embora não o faça diretamente, pois seu discurso é reportado em modo
de monólogo interior:
ah quem te encornara maldito e te afogara no mel com que me tentas a que fale um
raio caia sobre ti que fazes morte de gado desta morte dela e no menino vais tendo
posta de vaidades dessas ventas de enchido vai-te esterco fino bosta de palácio
maldito sejas [...]. (p. 113)
Palavras agressivas e insultantes tais como essas não se verificam em outras passagens do
romance, denotando, assim, a cólera profunda que Maina Mendes nutre por Henrique, do qual
ressalta a vaidade.
Já nas palavras de Fernando Mendes, o “pai era um homem amável e conversador” (p.
135). Entretanto, o filho deixa emergir, em seu discurso, aspectos do caráter de Henrique que
remetem ao seu apego aos bens materiais, às suas posses:
‘Então meu rapaz, sete e quatro?’ [...] Mas no pontão calava-se a ver o que vinha, e
contava até estarem todas as traineiras, uma mão a tirar-me da beira, bem sei eu se a
tirar-me da beira. Mais me parece que a puxar-me à outra, à que contava. ‘E aquela?
E quantos na campanha? E em cada lata destas, quantas, quantas?’ [...] ‘vês o teu
nome nelas, vês?!’ [...] ‘É tudo teu’ [...] ‘Tudo teu’. (p. 135-136)
A insistência na contagem dos bens aponta para o valor que Henrique lhes atribui. Veja-se o
uso acentuado de palavras que remetem à quantificação – “contava” (2x), “quantas” (3x) – e
ainda o uso reiterado da conjunção aditiva “e”, que reforça a idéia de soma. O pronome
possessivo também é usado, mas agora remete à segunda pessoa (Fernando). Desse modo, a
personagem é apresentada como “homem de posses”: posses que são o seu único legado ao
filho. Fernando, no entanto, não lhes atribui o mesmo valor, nem às posses, nem ao pai, ao
qual afirma nunca ter amado, embora lhe houvesse devotado sempre um cuidado e deferência
fingidos. É Fernando que noticia a morte de Henrique, no terceiro bloco da segunda parte do
romance, o único em que fala sobre o pai.
Pode-se dizer, portanto, que Henrique se constitui como “senhor de posses”. A
personagem é marcada pela vaidade, demonstrando apego aos bens materiais e obediência às
convenções sociais. Fruto da sociedade capitalista, tem sua identidade afirmada não a partir
dele mesmo, sujeito, mas a partir dos objetos/pessoas que ele pode dominar. Situado em um
lugar de poder, opõe-se radicalmente aos que podem perturbar o seu domínio, relegando-os à
marginalidade como estratégia para impossibilitar qualquer interferência.
1.5 Fernando Mendes
Fernando Mendes, filho de Maina Mendes e Henrique, aparece ativamente na história
ao encontrar-se já na idade adulta, quando se submete à análise psicanalítica. É por sua
própria voz que se dá a conhecer, ao assumir a instância narrativa na segunda parte do
romance. É, pois, como personagem e como narrador intradiegético-homodiegético que
Fernando se apresenta: no nível diegético, podemos considerá-lo como personagem, que, em
discurso direto, “dialoga” com o psicanalista, seu interlocutor; no nível metadiegético,
Fernando atua como personagem e como narrador da sua própria história e das demais
personagens.
Fernando caracteriza-se como um indivíduo de “humor taciturno” (p. 120). Entretanto
– ao considerar que as relações pessoais possuem uma linguagem própria, não
necessariamente verbal, e que a fala pode constituir um “muramento para esse contacto com
os outros” (p. 119), podendo tornar-se até uma “fórmula de oposição ao outro” (p.120) – a
personagem explica que o seu “calamento” tornar-se-ia, assim, uma forma de minimizar os
efeitos dessa “barragem” ao contato pessoal. Desse modo, a personagem opõe a sua
linguagem verbal e racionalizada a uma forma de linguagem de cunho afetivo, que prescinde
da lógica e mesmo das palavras. Considerando a propriedade que tem a linguagem (verbal) de
servir de “barragem” ou “fórmula de oposição ao outro”, a personagem põe em evidência as
relações de poder implicadas no uso da palavra. Abdicando do uso da fala, abdica, ao mesmo
tempo, do poder de barrar o outro, ou de opor-se através da linguagem, em favor de uma outra
forma de expressão que possibilite a proximidade entre as pessoas. A incapacidade de se
expressar dessa outra maneira e o desconforto ante a barragem imposta pela linguagem são,
pois, a causa do descompasso emocional da personagem e a razão de sua tentativa, ainda que
descrente, junto à psicanálise.
A inquietação de Fernando diante da terapia psicanalítica – colocada desde o primeiro
contato entre paciente e analista – é reiteradamente apontada:
Sim, não é impossível que a passividade com que me escuta não agrave o humor
pesado em que me encontro, culposo talvez ou surpreso de me não ver mais
firmemente argüido, instável de não poder opor-me a mais que suas quero crer
deliberadamente frouxas conjecturas. Não tenho, creio que em minha geração e
conjuntura, não temos o hábito de ser escutados sem que um improviso ácido e
volumoso não esteja já sendo forjado perante nós. [...] Sim, coisa perigosa, pois, a
atenção tardia. (p. 125)
Novamente aqui a linguagem é vista como instrumento de oposição ao outro, a linguagem
como campo de combate. A instabilidade sentida no contexto da análise psicanalítica decorre
justamente da não-argüição por parte do ouvinte, com a conseqüente impossibilidade de
oposição. A personagem se vê, desse modo, impossibilitada de exercer o seu poder através da
palavra, instável por perceber a vacuidade desse exercício. Nesse contexto, a fala perde seu
caráter combativo, desestabilizando o sujeito, acostumado a sofrer argüição, a combater, e que
de repente se encontra à mercê do próprio discurso. Essa “atenção tardia” de que se vê objeto
– e que ele compara a uma “lâmina acerada” – guarda o seu perigo justamente nisso: no
impelir o sujeito a expor a sua “guerra privada”: “como lâmina acerada e deposta e que porém
se volve, por nossa mão, arma de nossa guerra privada, desejo de buscar o onde em nós mais
vero e duro a ofertar a atenção assim” (p. 125-126). Dessa forma, o combate entre as pessoas
exteriorizado no diálogo, no discurso individual se interioriza. Através da fala, Fernando
procura resolver os seus conflitos internos e, assim, dar sentido à sua existência. Isso se torna
premente na idade madura, quando normalmente as questões existenciais afloram com maior
ímpeto – “idade em que nos repetimos”, em que se procura “provar com insistência que se foi,
que se soube [...] que não passamos em vão” (p. 126). Note-se, aqui, que a ênfase de Fernando
recai sobre o sujeito (o que se foi), e não sobre as posses, como ocorre com Henrique. Se este
último admitia seu estatuto de “homem vão”, o filho o nega, querendo provar a si mesmo que
não passou em vão.
A narração de Fernando não obedece a uma linearidade cronológica: os fatos vão
sendo relembrados e narrados aleatoriamente, recuando e avançando no tempo da história.
Freqüentemente, compara pontos de vista do passado com os do presente, explicitando as
mudanças em suas concepções. Ao falar de si, Fernando Mendes coloca-se sempre em relação
com um “outro” – a mãe, o pai, o amigo Hermínio, a esposa Cecily, a filha Matilde. É,
portanto, em oposição a outras personagens (e também a outros tempos) que Fernando se
define como sujeito, evidenciando seu distanciamento ou aproximação em relação a cada uma
delas.
Ao rememorar sua infância, a personagem põe em evidência sua relação tanto com o
pai quanto com a mãe, enfatizando a distinção entre ambos:
se quer que retome minhas penas de menino, lhe diria antes que ao menino apenas
dói ter pai sem contrapeso, servir o ordenador do caos vivo onde chegou nascendo,
ceder ao mestre do juízo e da palavra legítima. Não creia que na origem de meus
males está o menino órfão intermitente que fui. Meu pai era um homem amável e
conversador. Meu mal não é de carência, mas de excesso, de irreversível
contradição, porque bem ao início há-de haver sido uma outra pura fala, ao meu
início. ‘Olha, cheira, escuta comigo. Colhe, quebra, pasma. Sobe Fernando Mendes.
Cala. Não nomeies o que flui. A vida é água’. Órfão então, se o quiser, mas de
fêmea, órfão do limpo e mudo tempo de meus primeiros passos, do leite bebido
porque fome, da roca de prata tangida porque som, da flor comigo porque pura cor,
puro odor. (p. 135)
Aqui novamente a personagem opõe dois tipos de linguagem: a “palavra legítima” e uma
“outra pura fala”. Mediante o uso da “palavra legítima” o “caos vivo é ordenado”; o pai,
“conversador”, mestre dessa palavra, é pois o ordenador do caos, o “mestre do juízo”. A mãe,
ao contrário, figura no “mudo tempo” em que tem lugar a “pura fala”, uma fala em que as
palavras ocupam um espaço exíguo, porque não é propriamente através delas que a
comunicação se estabelece, mas antes através de uma linguagem outra. A partir dessa
oposição, pode-se identificar a “palavra legítima” do pai com aquela que serve de “barragem”
ao contato humano (p. 120), enquanto que a “pura fala” da mãe representaria a “linguagem
própria” criada pelas relações pessoais (p. 120), as quais prescindem da palavra. O “excesso”
mencionado por Fernando diz respeito ao excesso de ordem imposta pela presença paterna,
em função do afastamento da mãe, dos seus três anos de idade aos oito. O “caos vivo”, a vida
que flui, acaba por sofrer, assim, um excesso de controle, controle esse exercido pela palavra,
pela nomeação da realidade.
A relação de Fernando com o pai corrobora a idéia de que a fala pode de fato atuar
como barragem que impede a real aproximação entre as pessoas. No relacionamento entre pai
e filho, o que há é uma aproximação de superfície e não de fundo: não há afeição verdadeira,
mas simplesmente uma atitude que busca não quebrar expectativas, mas antes atendê-las,
mesmo que isso corresponda a uma formalização vazia de sentido.
Nunca o entendi, nunca soube que laços e se os havia entre nós.
[...] Porque fiz no entanto tudo quanto suponho haver-lhe agradado? Joguei às damas
como se não estivera apressado para outros jogos, imitei-lhe as posturas e deixei que
se rissem com ele da minha sisudez por ser igual à sua, que punha igual à sua,
enquanto que me sei espreitando todo o tempo, esperando na segurança e na
paciência. (p. 136)
Ao contrário do tempo dos “primeiros passos”, em que as ações respondiam a necessidades
próprias reais, na relação com o pai, as ações respondem a expectativas alheias; nesse
relacionamento, o sujeito não é ele mesmo, mas representa o papel que lhe é imposto. Desse
modo o filho simplesmente cumpre as “posturas prescritas” (p. 137) pelo pai, e ao mesmo
tempo pressente que essas prescrições não irão vigorar por muito tempo: “Nunca o amei,
entende? Creio antes que era o atentar num trajeto irreversível, o fascínio sereno de assistir ao
findar de um percurso trágico. O sentimento de justiça, enfim.” (p. 137). A trajetória de
Henrique rumo ao seu fim simboliza o enfraquecimento da lei que ele representa, assim como
o retorno de Maina Mendes, com a posterior morte do marido, sinaliza a emergência de uma
nova ordem. A conivência de Fernando com essa ordem que se insurge é evidenciada não só
no desprezo que ele devota ao pai como também na defesa, ainda que não incisiva, das
posturas adotadas pela mãe, as quais inconscientemente ele também adota. Assim o
“calamento” de Maina repercute nele na forma de um “humor taciturno”, como também se
prolonga nele o desprezo da mãe pelo pai.
Em sua narração, Fernando apresenta vários aspectos que opõem à figura de Henrique
a de Maina Mendes, filiando-se sempre a essa última. O caráter “conversador” do pai se
contrapõe ao silêncio da mãe, assim como a figura daquele, sempre a contorcer-se de dor,
contrasta com a desta, que aparece sempre impassível. Assim, ao compor a figura paterna,
Fernando lembra o pai a contar suas traineiras e a fazer-lhe as perguntas do costume – “’Então
meu rapaz, sete e quatro?’ [...] ‘E aquela? E quantos na campanha? E em cada lata destas,
quantas, quantas?’” (p. 135) –, enquanto que a mãe ele a vê “só olhos sem pergunta, sem
juízo, sem braço que se estenda mas toda ali bem mais inteira que a fachada da casa por trás
dela” (p. 139). O contraste também se evidencia no modo como se estabelece o contato físico
entre pai/mãe e filho.
Meu pai abria as duas pernas e de cada lado, no chão, ficava um sapato branco [...].
Eles e a dobra da calça vão crescendo até um cheiro um pouco doce. De óleo doce,
quando a fivela trabalhada do cinto já me está perto e na cabeça tenho um peso de
mão inteira, quente, mas que hesita. ‘Então meu rapaz, sete e quatro?’ (p. 135)
Observe-se a mediação dos objetos que se interpõem entre pai e filho (os sapatos, a dobra da
calça, a fivela do cinto), reduzindo o campo de contato, que efetivamente se restringe à mão
sobre a cabeça. No encontro com a mãe, o contato físico se dá de forma diversa: “Apertado a
ela entre o ventre e o seio, a ouvir-lhe o rumor da rugueza das roupas e do pulsar de dentro
dela ou meu e suas mãos de garra firme na minha nuca, sem palavras que ali fossem.” (p.
139). A extensão e a intensidade do contato aqui é maior; além disso, o sujeito, em relação à
mãe, não “está perto”, mas “apertado”, a ponto de lhe ouvir o pulsar interno. As mãos do pai e
da mãe à sua cabeça também se lhe figuram de forma diversa: enquanto a do primeiro
“hesita”, as da segunda são de “garra firme”. Outro fator de oposição consiste nas perguntas
do pai, que contrastam com a ausência de palavras da mãe. Assim, a fala atua no sentido de
opor pai e filho; o caráter “amável e conversador” de Henrique contrasta com o calamento de
Fernando; já as falas exíguas da mãe a aproximam do filho.
Atuando no sentido de aproximar Fernando de Maina surgem também as falas dos
meninos com quem costumava brigar quando criança. A personagem narra o episódio em que,
depois de haver-se atracado de dentes em um deles até sangrá-lo, e de haver sofrido o escárnio
dos outros, que o chamam “maricas”, abocanha um caranguejo e segura-o na boca enquanto
os meninos fogem apavorados em vista da atitude insólita. Nesse momento ele ouve-os dizer,
“de novo, como sempre, [...] ‘Filho de bruxa puta, filho de bruta puta’.” (p. 138). Dessa
forma, relacionam o comportamento de Fernando à sua ascendência, aproximando mãe e filho
no que respeita ao caráter considerado maligno de ambos. Note-se que Fernando age em
silêncio, e mesmo quando é humilhado pelos meninos, não responde com palavras mas com
ações silenciosas. Aí também se observa a similitude entre as atitudes dele e de Maina, a qual
também permanece em silêncio na maior parte da narrativa. Importa observar, entretanto, que
a aproximação de Fernando em relação a Maina não é constante em seu discurso; em vários
momentos, é marcado o afastamento entre os dois, a mãe aparecendo como “incógnita” para o
filho, que é incapaz de compreendê-la.
Ao falar da relação com o amigo Hermínio, Fernando também marca o distanciamento
entre ambos, acentuado ainda mais quando Fernando aproxima a figura do amigo à de Maina
Mendes.
Creio que ela o estimava muito [...]. Eu sentava-me perto deles, o chão de ladrilho
da sacada era duro nas nádegas [...]. Hermínio casava-se ao chão, escorria nele. [...]
Parecia muito mansamente ali, a vê-la, deitado [...]. Posto num sossego, num brando
pasmo, enquanto minha mãe parecia como sempre só [...]. (p. 128)
Pode-se perceber que Fernando se coloca ao largo do amigo e da mãe, como se não estivesse
inteirado com eles, como se estivesse sobrando ali e apenas assistisse à cena. Note-se que sua
posição não é confortável, e nisso também se distingue do amigo, pois enquanto Fernando
sentia o chão de ladrilho “duro nas nádegas” ao sentar-se, Hermínio “escorria nele” e parecia
“mansamente ali”, “deitado”. O desconforto parece ser decorrência da proximidade observada
entre Hermínio e Maina Mendes:
Sim, creio que os amava muito, se é isso o que quer dizer. Mas juntos, como... Bem
vê, eu tinha uma escolaridade perfeita, uma reputação escolar sólida, nomes para
muitas coisas. Mas não para o espanto, para toda a aprendizagem da insegurança, de
uma insegurança primordial. Quero dizer, eles não faziam nada, estavam ali, e o
rosto de minha mãe, de eu ver que Hermínio o via, ficava demasiado próximo, de
uma novidade aguda [...]. (p. 128)
Ao referir a afeição recíproca que aproxima Hermínio de Maina, Fernando se coloca fora do
foco de atenção, pois quando diz “Creio que ela o estimava muito”, não se inclui como objeto
de estima da mãe. Assim, o sujeito se vê numa situação duplamente desconfortável: ressente-
se da impossibilidade de uma verdadeira comunhão com a mãe, essa que “não era exatamente
uma mulher amável”, que parecia “sempre só”, com sua “postura firme, pedregosa” (p. 128);
e ao mesmo tempo percebe a afeição que aproxima a mãe do amigo, do qual ele visivelmente
se distingue, situando-se, assim, numa posição que o distancia de ambos.
O distanciamento de Fernando em relação ao amigo é ainda evidenciado no relato de
sua visita a Hermínio, antes de partir “para a Europa”
61
(p. 159). Relembrando esse episódio,
Fernando vai contrapor à imagem que ele fazia de Hermínio na sua juventude a que se
insinuou na sua madurez.
61
É interessante observar aqui que a personagem fala “a Europa” como se Portugal não fizesse parte do
continente europeu. Fica clara assim a posição marginal que o país ocupa nesse espaço, em que “a Europa” passa
a ser apenas o centro (econômico e cultural) europeu.
Suas cartas tinham então algo de cavalgada frenética de desacertos. Mas já em
Lisboa ele lia Breton com vagares de nefelibata rico, já em Lisboa eu preparava com
urgência a partida enfim para a Europa e o tinha na conta de anômalo. [...]
[...] Mais que nunca, [...] ele parecia um caule, um acidente histérico e final,
excrescência póstuma e vegetativa dum morgadio findo. E no entanto, como esta
última estadia em Monchique me parece hoje fustigante, um pequeno flagelar
contínuo daquela palavra rouca, incessante. [...] Achava-o afinal apenas febril,
livresco e dum pedantismo provinciano a carecer viagem e labor vigoroso. (p. 159-
160)
Ao situar o amigo num quadro de anomalia, Fernando pressupõe uma normalidade dentro da
qual ele próprio se enquadra, ao contrário de Hermínio, caracterizado como “anômalo”. A
própria doença do amigo contribuiria aqui para afastá-lo do padrão de normalidade. Os termos
usados na caracterização da personagem revestem-se de uma carga pejorativa, marcando um
descompasso ou uma fuga da realidade; o amigo é visto como “nefelibata”, cujas cartas
manifestavam “desacertos”; sua existência aparece como “um acidente histérico e final,
excrescência póstuma e vegetativa dum morgadio findo”. O estado “febril” do amigo
contrasta com a coerência e o comedimento de Fernando, como contrastam o “pedantismo
provinciano” daquele e o cosmopolitismo deste.
A figura de Hermínio, contudo, ao invés de findar-se, subsiste na memória de
Fernando, assumindo um aspecto completamente diferente do anterior. É esse aspecto, não
percebido na juventude, que na madurez passa a fustigar o sujeito, como “um pequeno
flagelar contínuo daquela palavra rouca, incessante”.
Que amargura póstuma, não em relação a ele, a sua morte, mas a minha juventude
tão pobre que nem soube interrogá-lo ao que ele ia, que me queria. Como se fora eu
agora, solitário e afinal envelhecendo perante si, submetido aos enigmas que ladeei
no percurso. Como se tivesse passado com prudência pelos detentores de algo
precioso, coeso mas multiforme, desviando-me de suas vias, resguardando a vista e
o coração e hoje me encontrasse apenas na memória de que foram, sem poder
interrogá-los de nada, sem saber ao que venho [...]. (p. 161)
Hermínio passa de “nefelibata” “anômalo” e “febril” a detentor de “algo precioso”, que por
“prudência” ou por pobreza de espírito Fernando não soube apreciar. Os “desacertos” do
amigo reaparecem como “enigmas”, cujo desvendamento forneceria a chave para a
compreensão do próprio ser. A impossibilidade de reaver esse tesouro perdido provoca a
angústia do sujeito, que se encontra à mercê de uma memória incapaz de fornecer-lhe
respostas. É como se, depois de muito ver e ouvir coisas a que não dava importância,
descobrisse que ali residia uma verdade, sem no entanto poder compreender qual. O enigma
persistirá, uma vez que está extinta a possibilidade de sua resolução, e tudo o que parecia tão
certo e normal na juventude converte-se na idade madura em um imenso vazio.
De um modo geral, Fernando se constitui como um sujeito solitário, o que pode ser
percebido não apenas no fato de ele se opor às demais personagens – salientando as diferenças
que o afastam delas – mas também em outros fatores, tais como: a orfandade, a perda da
mulher, do amigo, o distanciamento da filha, etc. O próprio “diálogo” com o analista, cujas
réplicas não se encontram explícitas textualmente, realça, na sua unilateralidade, o estado de
isolamento em que se encontra a personagem. A solidão se manifesta também no modo como
encara a prática psicanalítica, considerada ineficaz, uma vez que, segundo ele, não há
possibilidade de comunhão de sentimentos e emoções íntimas.
Pois não é certo que nunca saberei com que tramas de contos seus pega no que lhe
digo? Não mais sou que meada larga desfiando numa fala e não será apenas em
nossos freqüentes silêncios que nos ocupamos de coisas decerto distintas. [...] Há de
parecer-lhe entender o que temo ou estimo, enquanto mais não fará que temer e
estimar de novo o que é seu. (p. 133)
Os verdadeiros conflitos aparecem, assim, como impossíveis de serem partilhados, e a
linguagem, em vez de comunicar os sentimentos, não mais faria que presentificar para cada
um, isoladamente, a sua própria vivência. Evidencia-se, assim, a impossibilidade da própria
comunicação, já que o que é mais íntimo e próprio é incomunicável: “Sei hoje porém que tudo
o que haja feito, escolhido, não é mais que parcela aos olhos, como o que me dirá é parcela do
que jamais diremos e é porém tão grave.” (p. 134). Há, pois, submersa em toda a fala, sempre
a parcela que não é dita, talvez porque não possa ser compreendida nem mesmo pelo próprio
falante. Fernando percebe, assim, que a imagem que procura comunicar ao analista,
inevitavelmente, “ficará só, vogando entre nossos fantasmas, logo translúcida”, e conclui:
“mais do que atentar nela estarei atentando no que por certo não verá, não vejo, não
saberemos nunca.” (p. 134). Deste modo, evidencia-se a solidão da personagem diante de seu
próprio enigma. Reconhecendo-se “meada larga”, só lhe resta então tentar desfiar-se através
da fala, ou seja, contar-se a si mesmo como um exercício de autocompreensão. Para tanto ele
se utiliza do “espelho novo” ofertado pelo analista, mas sabe que a imagem jamais será
fidedigna: “Sei que me oferta um espelho novo, semblante outro que o meu e porém à mercê
da história que possa inventar-lhe de minha história.” (p. 134). A personagem tem consciência
de que inventa uma história, porque a constrói a partir daquilo que já não é, porque, ao contar-
se, substitui a vida que foi por palavras que não são mais que instrumentos ineficazes de
ordenação do “caos vivo” (p. 134).
A despeito da dificuldade em definir-se, Fernando aponta um aspecto invariável de sua
personalidade: a sua natureza “errática”, ou seja, sua inconstância, e a sua incapacidade de
“suportar o esgotado”, isto é, sua insatisfação constante. Essa insatisfação aponta para uma
cisão intrínseca da personagem, que se revela incapaz de definir-se ante duas inclinações
opostas. Isso fica evidente no episódio da ida ao bordel, que Fernando freqüenta
acompanhando a amigo. No trajeto até o prostíbulo, enquanto Hermínio parece à vontade no
gozo dessa rotina, Fernando aparece contrariado e farto, “num comprazimento repugnado,
testando [seus] poderes de exorcismar o sórdido” (p. 153). Na chegada ao bordel, Hermínio
deixa-se levar, como sempre, por uma “mulher muito volumosa”:
Lá ia como menino magoado e acenando-me brando num olhar então sem acinte
algum e como se não mais voltássemos a ver-nos. Como se fora eu a persistir no
trajecto invariável que ali se consumava, como se fora por mim que consentia em ir
levado por aquela mulher enorme, arrastado no bojo da grande onda de carne
flácida, para lá da cortina de chita. Eu ia com a minha, afligido daquele adeus de
Hermínio, até que aos poucos [...] a minha malquerença e desapego cresciam e o
queria definitivamente sufocado debaixo daquela mole de sorriso perene a quem ele
chamava com ufania ‘a minha putrefacta aurora boreal’. (p. 154)
O sentimento de culpa da personagem, que se vê mergulhada num mundo de prazeres torpes,
é transferida para o amigo, de cuja sujeição ao abjeto ele se sente culpado. Por inspirar-lhe
essa culpa, o amigo acaba merecendo a sua “malquerença e desapego”. Hermínio no entanto
parece, se não harmonizado, pelo menos acomodado com essa situação, ao passo que
Fernando parece fracassado na sua tentativa de “exorcismar o sórdido”. Depois da volúpia, ele
se apressa em retomar o juízo, em recobrar a retidão do costume: “De novo os nomes
fragorosos do que tinha por justo me ocupavam. Tinha frio e cobria-me.” (p. 155).
A personagem se apresenta, assim, como um sujeito pressionado por um padrão moral
rígido que lhe censura e limita o prazer. Ao deparar-se com situações que contrariam essa
moralidade, o sujeito é duplamente atormentado: se por um lado lhe desapraz o aviltamento a
que se expõe; por outro, cedendo ao desejo e aviltando-se, é fustigado pelo sentimento de
culpa, que lhe tolhe o prazer. Dessa forma, o sujeito não consegue nem renunciar ao desejo
nem gozá-lo: embora não obedeça à lei moral, não consegue libertar-se de seu jugo.
Fernando apresenta-se, assim, como um sujeito em conflito, e é no momento crucial
em que busca dar sentido à existência que se depara com a incompreensão de seu trajeto e de
sua razão de ser:
sem saber ao que venho, ao que permaneço se não for por eles que apenas repito e
me dançam em torno um baile que suspeito sardônico. Ah, porque fui guardado para
testemunho do onde não pude estar, porque me usam?
Compreende? Não pode oferecer-se-me como outro, porque eu sou outros, trilho
apenas, eixo de ausências. (p. 161)
Ao repetir aqueles que lhe “dançam em torno” – Maina, Hermínio –, ao servir-lhes de
“trilho”, Fernando surge como a palavra legitimante: “o varão”, assumindo as falas da
“bruxa” e do “nefelibata”, com sua autoridade, legitima essas mesmas vozes, as quais,
ironicamente, vão suprimir a sua própria. E aqui a fala de Hermínio, “na fauna intestinal da
baleia nova não prevalecerá a tênia da tua prudência” (p. 159), assume um caráter profético:
sinaliza a derrocada de um estado de coisas em vista do alvorecer de uma nova ordem.
Coaduna-se com essa idéia a reflexão, um tanto hermética, do último bloco da segunda parte
da narrativa, que antecede a notícia posterior do suicídio de Fernando Mendes:
[...] aquele que se mete a autorizar a autoridade de quem desautoriza não sabe no
que se mete. [...] Ratificando pois a inteireza do fragmento, há porém a considerar a
remodelação da face das coisas [...] Maravilhosa inimportância de desagregar-se a
pessoa uma. Tudo o que espasmodicamente se aclara ratifica a explosão. (p. 219)
Fernando Mendes se constitui, desse modo, como um sujeito cindido, que se desagrega, que
abre mão da sua unidade lógica e racional em favor da “remodelação da face das coisas”.
Ao lado do que acabamos de expor, há que se considerar também o estatuto de
ideólogo que a personagem assume na narrativa. O discurso sobre si mesmo, em certos
momentos migra da esfera individual para a esfera coletiva, como ocorre no quarto bloco, em
que a personagem, ao invés de discorrer sobre sua vida particular, considera aspectos relativos
à nação portuguesa, na sua atualidade. Incluindo-se numa massa representada pelo pronome
“nós”, que agora substitui o “eu”, a personagem contrapõe o presente ao passado, apontando
uma alteração no caráter português.
A nossa cólera volveu-se um discurso dela. A boçalidade de toque lírico e aguçado
que era a nossa cobriu-se afinal de uma modéstia atilada e verbosa e apressamo-nos,
os de melhores intenções, a que a ela se substitua o desejo de consumir o razoável
supérfluo. Onde antes a única fonte de corrupção era o luxo, o que era ainda
pujança, hoje corrompe-se pela afirmação do relativamente necessário. (p. 143)
Observem-se nesse trecho os verbos que, juntamente com os advérbios de tempo, denotam
uma modificação no estado das coisas – “volveu-se”, “era”, “cobriu-se afinal”, “antes [...]
era”, “hoje corrompe-se” –, atentando-se no fato de que esta modificação é vista pela
personagem como um aspecto negativo do seu momento presente. Daí, talvez seu gradual
afastamento do círculo social a que pertence, com a intensificação do “escárnio moroso e
mudo da [sua] adolescência” (p. 145).
A “verbosidade” do presente assume também um valor negativo, porque substitui a
atitude por palavras; o ímpeto desbravador do passado é assim substituído por uma vocação
discursiva:
Ah, digo-lhe que há um descontentamento que contenta, o tagarela, o que pode
dizer-se com justeza e ouvir-se com gravidade, há festins de descontentamento e que
bodo temos tido a esta vocação de carpidores que logo nos toma quando não
estamos de partida. Creio mesmo que a saudade é amargor de paragem, não de
distância. [...] que reles somos quando não temos para onde ir. Que reles é a nossa
lucidez de palradores serviçais quando nos não toma mais o silêncio da demanda do
novo. (p. 146-147)
Cessadas as partidas, cessam também as descobertas; e, em lugar de buscar o novo na
distância, fica-se na paragem de perto: o discurso substitui a ação. Entretanto, Fernando
observa: “são-nos mais próprios o silêncio e a distância” (p. 147); por isso esse tempo
“tagarela” se lhe assemelha com a morte. “Povo de suicidas”, porque troca o que lhe é próprio
– o lançar-se na distância na “demanda do novo” – por uma atitude evasiva, perdendo-se na
“grande evasão para um depois, um melhor e um outro” (p. 147). Evidencia-se aqui uma
crítica à inércia e à espera cega num futuro, sempre distante porque não forjado pela ação
presente.
Paira sobre nós o grande susto da nossa gravidade se haver apenas volvido
prudência, nosso amor de olhos certos ao delicado, tão-somente a cegueira no
mesquinho. [...] Onde era a afoiteza de alargar as vistas e ir com elas por onde o
espaço de água era amplo, apenas vai ficando a urgência de mascar os torrões
apanhados na grande ida que não mais o é. [...] E assim, em nome de nossas virtudes
nos perdemos delas e a força da violência que suportamos a suportamos por
semelhar-se ao que nos é mais alto e estou em crer que apenas por isso. (p. 147)
No nono bloco, Fernando reflete acerca do sentido, da finalidade última de uma
exposição narrativa de sua vida:
Falo apenas porque não desapareci ainda e porque me radico, me erijo afinal, apenas
na averiguação de entre quem fui e não mais do que vou devir. É que a inquietação
quanto ao que seremos resolve-se conosco, no orgulho e peso da mão própria. Para
saber quem fomos carecemos de testemunhas à nossa memória. Não, à nossa morte.
Não carecemos de mais do que fantasmas e de ter a esperança posta no já feito para
que nos surja a palavra afoita, o sermão tumular. (p. 187)
A narrativa surge, portanto, como um fio que, ao ligar os fatos uns aos outros, estabelece um
sentido, uma justificativa para o que foi. O sujeito prende-se então ao passado, buscando
encontrar aí o fundamento de sua existência. O passado envolve assim o presente e mesmo o
futuro, e a memória do que foi acaba por sobrepor-se à própria realidade. Através da memória
o sujeito se constrói e se justifica retroativamente.
Observa-se, entretanto, que o sujeito começa falando na primeira pessoa do singular e
em seguida passa ao plural. Esse “nós”, no qual o sujeito se inclui, é indicativo de um grupo
maior, que pode ser tomado aqui como a nação portuguesa. Pode-se perceber uma
similaridade entre as palavras de Fernando Mendes e as do crítico Eduardo Lourenço, que em
O labirinto da saudade afirma: “a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos
sido”
62
. Desse modo, a reflexão da personagem sobre a própria história converte-se em
reflexão sobre a História, o caráter e o destino português. Assinalando a própria morte
iminente, bem como um futuro que o “prossegue”, a personagem aponta para a emergência de
uma realidade outra, que virá consumar um processo lento de modificação da situação
presente.
Meu futuro é já legado. Que mais posso temer senão que outras mãos ou outras falas
que não minhas consintam? Que não mais me oiça? [...] Meu futuro é já legado,
digo-lhe. Que mais posso temer? Que posso desejar senão ter a delicadeza de deixar
expressas as mãos e armas do delito afinal consumado, quem me acabou desde meu
nascimento, quem me aproveita e prossegue? (p. 187-188)
Ao dizer (e repetir) que seu “futuro é já legado” a personagem enfatiza que sua contribuição
já está dada e que nada mais tem a oferecer. Depois dele, outras vozes se farão ouvir, e a
trajetória de Fernando surge apenas como “trilho” através do qual outros passarão. A
referência à filha Matilde é aqui implícita na figura de quem o “aproveita e prossegue”, assim
como a referência a Maina Mendes, para quem o filho varão foi não mais que um passo dado
na direção do “triunfo” final: o nascimento da neta.
No décimo bloco, Fernando estabelece nova relação entre passado (individual) e
presente (coletivo). Alude a uma redação escolar escrita por Matilde quando tinha dez anos,
cujos trechos vão-se intercalando na narração de um episódio atual presenciado entre o
Chiado e o Rossio:
[...] todo o Chiado é azul-pálido [...]. Estaquei porque um jorro polícromo, e que não
era dali nem daquela hora [...] veio para descer o Chiado. [...] transtornou-se o azul e
houve, quase que em imediato, um torpor, um resguardo. [...] Reparei que gritavam,
que sempre tinham vindo gritando, mas que o grito era sustido, as caras não o
cumpriam, os corpos ganhavam rigidez à medida que desembarcavam na Rua
Garret, e no Chiado afinal. (p. 202-203)
62
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 2000. p. 28.
Na cena que se apresenta, pode-se observar, a princípio, a oposição cromática ressaltada pelo
narrador-personagem: ao azul-pálido que recobre todas as coisas se contrapõe o polícromo
constituído pelos manifestantes que vinham descer o Chiado – a uniformidade do azul é assim
“transtornada” pela variedade de cores. Tendo em conta o caráter da manifestação, é possível
associar o confronto cromático à situação observada no plano sócio-político, no qual se
observa um movimento de oposição ao sistema ditatorial então vigente. O regime autoritário
estaria representado assim pela cor azul (em outra passagem da narrativa, Fernando já havia
lembrado as palavras de Hermínio: “O azul é uma cor que fecha”, p. 191); já o polícromo,
confrontado a esse azul, simbolizaria a abertura à diversidade, a quebra da hegemonia. Note-
se entretanto que o “grito era sustido” à medida que os manifestantes se aproximavam do
Chiado. O Chiado, sendo todo azul e sendo o azul uma cor que fecha, representaria, na sua
força uniformizadora, o próprio poder repressivo da ditadura, capaz de suspender os gritos e
enrijecer os corpos.
Os de trás, ainda os braços articulavam palmadas inteiriças nos da frente, mas o
cortejo era peado, não avançavam as frentes que rigidificavam na direção do homem
que adejava no crescente uivo do trânsito, na violenta vibração do apito. Mas através
da montra do Último Figurino viam-se cabeças retornar ao brocado [...]. Reparei
bem que a rapaziada [...] não cuidava de quem passava e esperava um sinal,
insistindo com uma patética carência de ênfase no grito ‘amnistia, amnistia’, rouco
nalguns, mas ali desprovido de gana em todos. Esperavam um sinal, esperavam
como o esperava o ar já maçado e desviado de vistas dos passantes e gente de
comércio. (p. 203)
À repressão ditatorial vem unir-se o descaso (ou descrença) da população em geral, que
tratando o protesto como coisa irrelevante, reduz ainda mais a sua força e eficácia. As cabeças
que retornam ao brocado bem como as vistas que se desviam são, portanto, indicativos da
ausência de um envolvimento global no intuito de alterar a situação vigente, caracterizando
um quadro de inércia generalizada que atua no sentido de enfraquecer o movimento de
oposição, que já possui contra si a força repressora da ditadura. Assim, o fracasso do protesto
aparece como decorrente sobretudo da falta de ênfase da manifestação – por extensão, da
população como um todo –, cujo grito suspenso, e em seguida disperso pela polícia que acorre
ao local, verte-se “pobre grito estilhaçado ante ao vidro azul do Chiado” (p. 204). Após
presenciar aquelas cenas, Fernando volta para casa,
[...] na urgência de encontrar um critério, uma correspondência ao menos, uma linha
integrativa que não fosse condenatória do futuro, um sinal que cruzasse o que me
afligia, o rosto de minha filha disperso, aquele grito incumprido só convicto nos
golpes. Olhe, como já me ocorreu noutros momentos assim agônicos e suspensos de
vacuidade, pus-me a arrumar papéis e fotografias. (p. 204)
Percebendo-se num momento agônico, o sujeito vislumbra a condenação do futuro, e contra
isso busca encontrar essa “linha integrativa” capaz de justificar os fatos e apontar um fim. É
ao passado então que ele retorna e, entre os papéis e fotografias, encontra a “redacção-
documento” de Matilde: “Ri-me muito onde hoje me comovi até as lágrimas, porque a
análise, a remissão ao purgatório e o programa da evasão, a esquiva promessa, já são aí.” (p.
204).
A redação, traçada numa “caligrafia acidentada” (p. 205), discorre sobre “Os
Descobrimentos” e refere personagens históricas como Bartolomeu Dias e Vasco da Gama.
Trata pois de um tempo áureo para a História de Portugal, tempo das grandes navegações e
descobertas territoriais. Porém, em contraposição a esse tempo glorioso há um “depois”
encenado por outras potências mundiais: “Quem fez depois o comércio foram os ingleses”,
“Quem depois galgou os mares na Mayflower foram os americanos” (p. 204). A
contraposição entre dois tempos distintos é marcada também pela conjunção “mas”, usada
junto ao advérbio “agora”: “Mas agora alguns são comunistas” (p. 206), “mas agora já não há
ilhas a sério” (p. 207). Além disso, há a oposição entre os “Descobrimentos” em maiúsculas,
realizados por Portugal e referentes à descoberta e exploração de territórios além-mar, e os
“descobrimentos” em minúsculas, tais como os realizados pelos ingleses – “Os ingleses
descobriram a máquina a vapor” (p. 206). Do mesmo modo se opõe a grandeza dos
“Portugueses” – em maiúsculas – à mediania dos demais, ingleses, americanos, espanhóis,
russos, chineses, negros – todos em minúsculas. Opõem-se assim duas atitudes: uma
grandiosa, mas que, uma vez descobertos todos os territórios (“mas agora já não há ilhas a
sério”, p. 207) e enfraquecidos os descobridores (“alguns ficaram fracos das especiarias”, p.
206), reveste-se de vacuidade; e uma outra que, embora sem a mesma dimensão territorial das
descobertas portuguesas, alcança uma projeção muito maior: “Os ingleses descobriram a
máquina a vapor e também foi um descobrimento bom por causa das fábricas que não
haviam” (p. 206). “Os Descobrimentos” portugueses convertem-se assim, na redação de
Matilde, num simples abrir de portas para as potências que, com maior senso do necessário,
efetivam realizações muito mais produtivas, ainda que sem o halo de glória atribuída (pelos
portugueses) aos feitos lusitanos. Daí Fernando perceber na redação da filha “o programa da
evasão, a esquiva promessa” (p. 204) que rege o destino português, o destino de um povo que
espera perdido entre um passado de glória efêmera e um futuro utópico. A suspensão do grito
na boca dos manifestantes reflete bem esse caráter de espera, assim como a dispersão do rosto
da filha pode ser tomada como representação da dificuldade de estabelecer “uma
correspondência” entre as várias peças dispersas da história que possibilite unir “numa linha
integrativa” passado e futuro da nação. A redação de Matilde, oferecendo uma análise
realística da história portuguesa, desestabiliza as narrativas míticas que pregam a
predestinação e a supremacia (ilusória) do povo português, e põe a descoberto a realidade
presente de Portugal.
Lembrando que a primeira parte da narrativa apresenta um caráter mais fragmentário,
com uma diversidade de focos narrativos, podemos considerar que a narração de Fernando
aparece, assim, como um discurso uniforme, que, contudo, não deixa de explicitar as suas
fontes e também o seu relativismo. Desse modo, a personagem deixa claro que está narrando
fatos dos quais não tem conhecimento direto: “cito a correspondência de meu pai” (p. 190);
“por criados e ditos fui sabendo” (p. 190); “o soube [...] de um filho de uma criada do tempo”
(p. 191). A utilização de expressões que denotam incerteza acusa a dúvida da personagem
acerca da confiabilidade das fontes e da própria história que conta: “creio que”, “ao que
parece”, “jamais saberei ao certo”, “pouco se infere de certo” (p. 190). O desconhecimento de
muitas partes da história impossibilita a compreensão dos episódios narrados, e a personagem
conclui: “talvez haja muitos elos perdidos e o que afinal conta é que continuo a interrogá-los
em vão” (p. 191).
É de notar também que, à medida que a história narrada vai se aproximando do tempo
presente, o discurso de Fernando vai se fragmentando, assumindo inclusive ares de um certo
hermetismo. Refletindo sobre os fatos bizarros (a loucura, as atitudes da mãe) e as figuras
excêntricas que o rodeavam (Maina, Hermínio), Fernando pondera sobre o sentimento de
normalidade do qual ele se imbuía ao defrontar-se com essa realidade anômala.
Experimentava o delicioso sentimento de me sentir intacto e razoável perante as
solicitações do aberrante e até a escolha deliberada do que inquieta. Era afinal a
inteireza hipócrita de procurar do lado de cá a invenção duma ficção sem risco, meu
romantismo. É hoje que posso indagar sem economia de palavras, oh não, mas com
meu edifício disperso perante aquele mar e aquele vento, hoje que posso indagar
deveras daquele quarto, sobre quê e quem atirou minha mãe. Que lhe faltou? Porq
a morte da cozinheira? Que significa cozinheira? Porque lhe não bastei? Que basta
para bastar a outrem? (p. 192)
A sua “inteireza hipócrita”, a sua ficção, não resiste ao tempo e o sujeito se desfaz – “edifício
disperso” – diante da incompreensão do absurdo. A personagem expõe assim dois momentos
de sua trajetória: o momento da ficção ilusória, no passado, e o momento da perda da ilusão,
no presente. A perda da inteireza é a causa da fragmentação dessa narrativa, ao mesmo tempo
em que a narrativa é o recurso último da personagem na tentativa de recompor sua
unidade/inteligibilidade. Sujeito e discurso assim se refletem. É dizendo-se, num processo de
re-escritura (e releitura) da própria história que Fernando emerge como sujeito. Sujeito
fragmentado, incerto acerca de si mesmo, Fernando busca definir-se a partir do ato mesmo de
narrar-se. Sua identidade é marcada, portanto, pelo seu caráter discursivo: como o discurso, é
inconclusa, inconstante, plurivocal.
1.6 Hermínio
Hermínio é o amigo íntimo de Fernando já morto – no nível diegético – quando este o
refere em seu relato ao psicanalista. A caracterização de Hermínio, portanto, é feita do ponto
de vista do amigo, que se ocupa longamente em descrevê-lo, salientando o modo como as
coisas tomavam um aspecto fluido, escorregadio, à sua presença ou ao seu contato:
Pois em Hermínio a roupa escorria. [...] tudo o que lhe era aposto ganhava uma
qualidade, uma textura como que fluida. E isso era ainda certo com a facilidade com
que parecia flutuar por entre as coisas. [...] as coisas arredondavam-se, flectiam,
perdiam inteireza. Ele dizia ‘vens?’ e não ir, não poder ir, tornava-se grotesco, a
banalidade de matérias, e como era embaraçante, o interessamento duma classe,
ruíam com o seu ‘o senhor acha?, a banalidade do meu quotidiano ensimesmado na
escola, o tijolo do internato eram risíveis, frouxo tudo. (p. 127)
Hermínio aparecia aos olhos do amigo como sendo ele mesmo fluido e escorregadio, com o
seu ondular de corpo constante, sua capacidade de contornar objetos (ou seria capacidade de
contornar situações?). A rigidez de Fernando aparece desde já contraposta à frouxidão de
Hermínio. Ao apontar tais aspectos, Fernando marca uma distinção entre o amigo e as demais
pessoas, distinção essa acentuada pela reiteração do nome próprio, o que ressalta o valor
distintivo de suas ações, as quais aparecem como próprias dele e não de outros,
singularizando-o: “Hermínio vestia-se de azul”, “em Hermínio a roupa escorria”; “Hermínio
saberia contorná-la”, “Hermínio saltitava” (p. 127). Essa singularização de Hermínio já
aponta para o quadro de anomalia no qual Fernando irá situá-lo. Nesse sentido a personagem
se aproxima de Maina Mendes e também de Cecilly, apresentando, do mesmo modo que
essas, um caráter anômalo.
A imagem de Hermínio já doente faz lembrar também a de Maina anciã:
Havia uma enfermeira que ele ignorava até no momento de lhe abrir a boca aos
medicamentos.
[...] ele sentava-se na varanda, aureolado da verga marfim do espaldar da cadeira que
rangia. Tinha enrouquecido muito, [...]. Mais que nunca [...] ele parecia um caule,
um acidente histérico e final [...]. (p. 159)
A mesma postura de Maina é retomada: o descaso com a enfermeira, o sentar-se na cadeira de
balanço. A alusão à rouquidão e à histeria também remetem a Maina Mendes – a menina de
voz rouca e, segundo os médicos, histérica. Ao fim da narração de Fernando, essa sua
percepção se altera, e Hermínio, tal como Maina, revela-se portador de um saber a que as
pessoas comuns não têm acesso, algumas de suas falas assumindo mesmo um caráter
profético.
São de Hermínio algumas reflexões instigantes sobre questões sociais e políticas,
como o nazismo: “Louco, o pequeno Adolf? Crês que a loucura ou a doença ou o crime são
alguma vez coisa de um homem só?” (p. 159); o caráter humano: “Somos criaturas de desejo,
não de necessidade” (p. 159); o futuro da humanidade: “l’avenir de l’homme c’est la femme”
(p. 189), frase dita por Maina e que Fernando atribui a Hermínio.
De modo geral, entre os homens do romance, Hermínio se apresenta como o mais
próximo das mulheres de caráter transgressivo, manifestando não apenas afinidades
comportamentais e afetivas, mas sobretudo uma compreensão acerca da psicologia feminina
não observada nas demais figuras masculinas. Por essa razão, Fernando o alinha com Maina e
Cecily, considerando as três figuras igualmente enigmáticas.
2 Algumas considerações
Diferentemente do que ocorre entre as figuras femininas, as personagens masculinas
representantes de concepções assimiladas a uma visão oficial, conservadora, patriarcal, ou
lógico-científica (o médico, Álvaro e Henrique) não encontram em nenhuma outra figura
masculina uma decidida contraposição. O que se verifica é uma reflexão sobre essas
concepções (Ruy, Fernando e Hermínio), com uma gradativa aproximação à postura assumida
por aquele grupo feminino desviante da ordem vigente. Assim, com Ruy Pacheco, temos
primeiro o espanto diante do absurdo, o que, se ainda não é consciência crítica, é já uma
inquietação frente à realidade. Em seguida, vemos um sujeito reflexivo, mas cindido –
Fernando, que interioriza o conflito entre duas ordens opostas, a do pai e a da mãe, embora
não consiga superar a primeira, nem se inserir na segunda. E finalmente a figura masculina
mais desviante, Hermínio, que é quase um teórico social e que apresenta afinidades tanto com
Maina quanto com Cecily, e por extensão também com Matilde.
Se atentarmos nas relações homem–mulher, veremos que ocorre um movimento de
gradual aproximação, com uma crescente interação entre os dois lados. Nessa interação
observa-se a insurgência do feminino como elemento preponderante, enquanto que o
masculino pouco a pouco vai perdendo espaço. Se observarmos a atuação das personagens
masculinas no romance, veremos que as quatro primeiras – o médico
63
, Álvaro Mendes, Ruy
Pacheco e Henrique – aparecem ativamente somente na primeira parte; Fernando aparece na
segunda, Henrique e Hermínio atuam somente no nível metadiegético; e na última parte,
nenhum deles aparece. Percebemos, assim que o romance vai gradativamente se esvaziando
da presença masculina, cujo discurso vai declinando do relatado ao narrativizado, até o
afastamento total.
PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE
Médico
Álvaro
Ruy
Henrique
Fernando
[Henrique]
[Hermínio]
-
Quanto ao posicionamento dos homens com relação ao centro ou à margem do
sistema, verifica-se também um comportamento diferente do das mulheres. Se considerarmos
dois espaços, a saber: a) o centro, espaço próprio daqueles que compartilham de uma visão
oficial (falologocêntrica), e b) a margem, espaço próprio daqueles que contestam essa visão e
que não são aceitos pelos primeiros, observaremos que todas as figuras masculinas ocupam o
primeiro espaço, mesmo quando contestam a ordem vigente. O quadro a seguir, onde (+)
indica conformidade com a ordem oficial, (-) indica contestação e (+-) indica ao mesmo
tempo conformidade e contestação, mostra que, independentemente da postura adotada,
nenhum homem é relegado à marginalidade. O mesmo não ocorre com as mulheres, cuja
posição marginal ou central depende da aceitação de suas posturas por parte dos homens. Isso
fica evidente se considerarmos a relação destes com as mulheres designadas pelo sinal (-).
63
A figura do médico que aparece na segunda parte não corresponde ao mesmo ator, e nem tem uma
participação ativa como na primeira, mas é referida apenas, ou se apresenta de forma implícita, no caso do
psicanalista.
centralidade marginalidade
pólo masculino pólo feminino pólo masculino pólo feminino
Parte 1 Álvaro Mendes (+)
Médico (+)
Ruy Pacheco (+-)
Henrique (+)
Mãe (+)
Dália (+)
Maina Mendes (-)
Hortelinda (-)
Parte 2 Fernando (+-)
Médico (+)
Hermínio (-)
Maina Mendes (-)
Cecily (-)
Parte 3 Matilde (-)
O comportamento de Maina Mendes, por exemplo, é considerado anormal pelos
médicos e também por Henrique. A atitude rebelde é assim neutralizada pelo estigma da
loucura, como uma forma de dizer que as transgressões da ordem não podem ser aceitas
dentro do sistema vigente. Relegar ao espaço da loucura é uma forma de marginalização e,
mais do que isso, de silenciamento, uma vez que as palavras do louco não são consideradas
num mundo onde impera o pensamento lógico.
Os hábitos de Hortelinda, dada a influência que têm sobre Maina Mendes, são vistos
como fatores de corrupção das “boas maneiras” burguesas, e a negatividade que a personagem
assume em vista disso, patente no discurso de Henrique, faz dela um elemento danoso à
sociedade. O “dono” do lugar que ela, por assim dizer, invade e “infesta” arroga-se o direito
de impugná-la e impeli-la à marginalidade.
Cecily, por sua vez, ainda que não tenha encontrado franca oposição às suas atitudes, é
vista pelo marido como uma mulher inconseqüente, desviada do padrão de esposa esperado
(exigido?) pela sociedade, que, se não a marginaliza completamente, a vê com
condescendência cedida por consideração ao marido.
Em todos os casos, é a aceitação dos homens (representativos também do senso
comum) o que determina o lugar das mulheres e a consideração que elas merecem ou não. A
loucura, a má influência, a inconseqüência são fatores de marginalização quando vistos sob
uma ótica falologocêntrica. Porém, esses mesmos fatores podem revestir-se de um outro
valor. O louco, em certos contextos, pode aparecer imbuído de um poder visionário ou
simplesmente de uma capacidade de enxergar além do real sensível. Nesse sentido, o louco
(ou anômalo) pode ser visto como um ser dotado de uma sabedoria superior ou como aquele
que está muito à frente do seu tempo e por isso não pode ser compreendido nem aceito. Esta
concepção pode ser percebida na visão de Hermínio (e também na de Cecily) sobre Maina
Mendes. Também Fernando Mendes, à medida que vai desenvolvendo sua reflexão sobre o
passado, passa a considerar de modo diferente a loucura da mãe, a anomalia do amigo e
mesmo a inconseqüência da esposa, a ponto de contestar a visão científica sobre a alienação.
No momento em que a contestação começa a partir de figuras masculinas, ela passa a
ser aceita também nas femininas. Matilde, apesar de sua postura contestatória, é uma figura
“avassaladoramente amável” (p. 220) para o pai, que não a relega à margem, mas é sim
“destronado” pela filha. Para Fernando, Matilde revela-se o seu sentido, aquilo que o
“prossegue”. Desse modo, o que segundo uma visão conservadora deve ser rechaçado e
reputado como desvio da norma, vileza, ou loucura, quando observado sob uma ótica que
aceita o diferente ou mesmo o marginal, pode mesmo ser tomado como parâmetro possível de
ser seguido. Assim, o elemento transgressor da ordem pode ser visto como uma possibilidade
(e mesmo uma necessidade) de se apreender a realidade de diferentes maneiras, abrindo
espaço para outras perspectivas.
CAPÍTULO V
CONSTRUINDO IDENTIDADES: RELAÇÕES DIALÓGICAS
1 O eco, a escuta
As observações que fizemos até aqui mostram que, para examinar o modo de
construção das personagens, é preciso levar em conta as relações que se estabelecem entre
elas. Essas relações, no romance, podem se dar de modo mais ou menos tenso. A idéia de
classificar as personagens por grupos em oposição pareceu-nos adequada. Contudo, a análise
mostra que algumas personagens são mais complexas, e resistem a esse tipo de classificação.
Por essa razão é mais adequado considerar o romance como um grande diálogo, no
qual vozes marginais vão tomando parte ao lado daquelas vozes mais proeminentes. Se
considerarmos essa estrutura dialógica, veremos que não é possível a delimitação de espaços
discursivos estanques, porque, na interação entre as vozes, discursos alheios vão sendo
absorvidos e reconfigurados. É possível, porém, alinhar concepções ou posturas consoantes,
bem como detectar pontos de conflito.
Observando a organização do discurso narrativo, verificamos que as oposições são
mais freqüentes que as consonâncias, fato que se evidencia também na configuração das
personagens, que se opõem através do diálogo. Note-se que esse diálogo é quase sempre
tenso, mesmo quando ocorre entre personagens afins – como Maina e Hortelinda. No oitavo e
décimo blocos, por exemplo, o diálogo entre as duas toma a feição de uma discussão, com
sinais de incompreensão, por parte da cozinheira, e de irritação, por parte de Maina Mendes.
Vejam-se os exemplos:
[Maina Mendes] – Não te disse já que ias comigo?
[Hortelinda] – Ora adeus, bem no sei, não desconverse, menina Maina, não me
troque as voltas. [...]
[...]
[Hortelinda] – [...] Não lho mereço, essa fala não lho mereço [...] Mas não na
entendo. (p. 83)
[Maina Mendes] – Queres voltar a Alcântara, asna turrona? [...]
[Hortelinda] – Credo, menina, se a ouviram, [...]
[Maina Mendes] – Cala-te já de mentir, mulher [...] Vai e não me moas, que até a
criatura já me bole cá dentro e te arrenega. (p. 96-97)
A afeição que une as duas personagens explicita-se perfeitamente em suas falas apenas no
último bloco da primeira parte, quando Hortelinda está a morrer e Maina Mendes vela a seu
lado, com cuidados e afetos só aí manifestados de maneira tão intensa.
Outro dado interessante é que os diálogos de fato, os de alguma extensão e
importância, dão-se apenas entre mulheres ou entre homens e nunca entre homens e mulheres.
Quando Henrique, por exemplo, dirige-se a Maina Mendes, ele não o faz diretamente, já que
suas falas apresentam-se como solilóquio. O mesmo ocorre com ela, que, quando se dirige ao
marido, no último bloco (1ª parte), o faz mediante um monólogo interior. Dessa forma, o
diálogo é quase sempre indireto, dando-se mais pela oposição dos pontos de vista do que pela
interação efetiva entre as personagens. Isso se observa, de certa forma, também na segunda e
terceira partes do romance. Vemos ali que Matilde se dirige ao pai através de suas cartas,
porém não há respostas diretas dele a ela. Apesar da estrutura dialógica do romance, podemos
dizer então que esse diálogo é quase sempre perturbado, ou pela falta de contato direto entre
as personagens, ou mesmo pela supressão do interlocutor, como nas falas de Henrique (em
que só ele fala a Maina) e de Fernando Mendes (em que a figura do psicanalista é elidida). Os
diálogos se estabelecem assim de uma maneira, pode-se dizer, unilateral.
Contudo, as vozes repercutem no discurso narrativo, através do discurso das
personagens ou mesmo através de imagens ou condutas que remetem a outras similares,
produzindo ecos. Podemos ver, por exemplo, como a imagem da mãe de Maina Mendes se
reproduz na imagem da mulher que sai da capelista,
da capelista [...] sai uma mulher de cara presa num véu que parece suportar-lhe
ainda as flores, lilases rijos tombados no chapéu. Depois do busto, sustentado alto
por sob o queixo aconchegado dos dedos nas mitenes a alijar as barbas da gola hirta,
depois da cinta mutilada à dimensão menor, são as laçadas que apanham as pregas
largas sobre a construção de nádegas duplas, as pregas que se erguem pontuando o
passo cuidadoso [...]. (p. 26-27, grifo nosso)
São praticamente os mesmos aspectos já apontados na caracterização da mãe: nos
objetos do vestuário, a mesma contenção, a mesma pressão para restringir o corpo a um
espaço limitado. Todo o aparato sustentado pela mulher, na verdade, apenas a comprime e
mutila, fazendo dela mero objeto ornamental. A passante, “guiad[a] sob o terrível desprezo da
janela que se afasta” (p. 27), alinha-se, assim, com a mãe e com Dália, desprezadas também
por Maina Mendes, o que permite considerar as três figuras como representativas de uma
situação a que a personagem central se opõe.
Pode ocorrer também a ressonância de vozes contraditórias no discurso de uma mesma
personagem, como acontece com Hortelinda, que parece, ao mesmo tempo, seguir as
convenções e ignorá-las. Vemos, nesse caso, a repercussão de ideologias distintas, gerando
uma polifonia de vozes: por um lado, a da tradição patriarcal, que preza os bens burgueses, o
casamento e a virtude da esposa; por outro, a de uma tradição “matrilinear”, que desconsidera
a presença masculina e se assenta sobre outros valores.
Mas é no discurso de Fernando Mendes que essa contradição parece mais evidente. A
tensão entre as vozes, observada na primeira parte do romance, aqui se interioriza no discurso
de um único indivíduo, que se apresenta como sujeito cindido e em conflito.
As duas figuras que mais repercutem através das palavras de Fernando são as de
Maina Mendes e de Henrique, cada uma simbolizando uma ordem distinta. José Ornellas já
atentara para a tensão que se verifica no romance entre as ordens simbólica e semiótica. Não
entraremos aqui no terreno da psicanálise. No entanto faremos uma distinção que não deixa de
ter similaridade com a proposta por Ornellas: a distinção entre a ordem estabelecida – a do pai
– e uma ordem subversiva – a da mãe. Interessa, entretanto, salientar aqui a anterioridade
dessa última, pois este é um aspecto cuja menção é recorrente no romance. A alusão a um
passado distante é freqüente tanto na primeira parte – onde é referida mais de um a vez a
ligação de Maina Mendes a uma tradição ancestral – quanto na segunda, em que Fernando
também alude a um passado remoto, anterior à fala (“bem ao início”, no “limpo e mudo
tempo”, p. 135). A tradição “matrilinear”, encarnada por Hortelinda, assume, assim, uma
significação importante no romance, pois é essa tradição, anterior e subjacente à ordem
patriarcal, que vai aos poucos desestabilizando o poder instituído, até abalar
irremediavelmente seus alicerces.
Importa salientar que a interiorização do conflito em Fernando Mendes não se dá de
maneira pacífica. Nele, as duas ordens – a representada pelo pai e a representada pela mãe –
encontram-se numa tensão desconfortável para o sujeito, que se quer uno, e que busca definir-
se em meio à dualidade. O questionamento acerca de sua identidade é constante, como a
incerteza de poder definir-se. Assim, temos em Fernando tanto traços que remetem a
Henrique quanto traços que remetem a Maina Mendes, os quais, por serem inconciliáveis,
geram o conflito interno da personagem.
De Henrique Fernando herda a postura:
Oiço-o querer-me tão fidalgo de dotes como desembaraçado no gerir da máquina da
indústria. ‘Dezoito com treze, meu rapaz?’ Cavalheiro de indústria e herdeiro de fino
trato com homens e bestas. Talvez de meu pai me venha então este senso de falta,
esta contabilidade de credor entre os meus, como que de centauro condenando a
manquejar. Brinca, brincando, com o que meu pai quis de mim bem posso rir-me
que o paguei de vida [...]. (p. 119-220)
E isso é risível porque Fernando sabe que as qualidades que o pai lhe atribuía não eram
espontâneas; admite que nunca o entendeu, nunca o amou, por isso se questiona:
Porque fiz no entanto tudo quanto suponho haver-lhe agradado? [...] imitei-lhes as
posturas e deixei que se rissem com ele da minha sisudez por ser igual à sua, que
punha igual à sua, enquanto que me sei espreitando todo o tempo, esperando na
segurança e na paciência. Dizia-lhe ‘Doem-lhe os rins, pai?’ e ficava ouvindo o que
lhe dizia, como se o som viesse de longe, eu alheio a mim ali diante a vê-lo
contentado agarrar-se aos quadris, quase gemer da candura que ali não estava [...].
(p. 136-137)
Com a ausência da mãe, o filho se vê impelido a seguir a ordem imposta pelo pai, mas não
sem rancor, não sem esperança de ver essa mesma ordem sucumbir: “[...] era o atentar num
trajecto irreversível, o fascínio sereno de assistir ao findar de um percurso trágico. O
sentimento de justiça, enfim. (p. 137). E aqui importa salientar a menção à “justiça”, na qual
ecoam tanto a voz do próprio Henrique, a chamar a Maina “pomba justiceira”, quanto a voz
de Hermínio, que a chamava “a Justa”. A justiça que Maina impõe à vaidade do marido, a
quem faz sucumbir, é testemunhada por Fernando, que assiste ao espetáculo do findar do
“império” de Henrique.
Fernando serve ao “ordenador do caos vivo onde chegou nascendo”, cede “ao mestre
do juízo e da palavra legítima” (p. 139), e até absorve seus valores e posturas; porém, é à
presença da mãe que o seu “silêncio obstinado achava finalmente e de novo graça diante de
alguém” (p. 140). Veja-se que a assimilação hipócrita das maneiras do pai por Fernando
assume, assim, um caráter similar ao mutismo de Maina Mendes. Fernando – cujo humor é
“taciturno” (e que no entanto se revela de uma verbosidade impressionante) – faz o uso do
“juízo e da palavra legítima” que compete ao “varão”, pois são os homens que gozam do
direito pleno à palavra. Inversamente, Maina se recolhe à mudez como protesto à
insignificância da palavra feminina num contexto em que a palavra legítima pertence ao
homem. Cada um à sua maneira, recolhendo-se ao espaço que lhe é imposto, superdimensiona
o aspecto que tradicionalmente se lhe atribui: o homem fala, a mulher cala.
Mas qual é o valor da fala, e qual é o valor do silêncio? No discurso de Fernando essa
discussão se impõe logo nos primeiros momentos, em que a personagem discorre sobre os
dois tipos de linguagem: a “linguagem decalcada de [seus] monólogos de orador” (p. 119), e a
linguagem sem palavras, própria das relações pessoais. A primeira pode ser associada ao pai,
detentor da “palavra legítima”. A segunda remete à mãe, ao “limpo e mudo tempo [dos]
primeiros passos” (p. 135). Esse aspecto distintivo é bem marcado no discurso de Fernando,
que apresenta o pai “amável e conversador” (p. 135), enquanto a mãe é apenas gesto “sem
palavras” (p. 139). O valor atribuído por Fernando a cada um desses dois tipos de linguagem
se revela em várias passagens em que ele refere a vacuidade da fala, e, sobretudo, no quarto
bloco (2ª parte), em que afirma o seu gradual distanciamento do diálogo social, onde se tece
“a teia da palavra vã” (p. 144), ao mesmo tempo em que sua atenção se volve para o “diálogo
mudo [...] entre a dona da casa e a criada” (p. 144).
A menção ao “diálogo mudo [...] entre a dona da casa e a criada” faz pensar no diálogo
entre Maina e Hortelinda, essas que tão pouco se pronunciaram no romance (de Maina
Mendes temos apenas frases esparsas e somente três falas de maior extensão), e que, no
entanto, permaneceram até o fim: Maina, em sua espera obstinada; Hortelinda, no apelido
dado a Matilde – “’Hortelinda, beatiful orchard, what lovely name, we shall call her Holly’.
Holly Matilde, holy Matilde, Matilde sagrada pomar e horta.” (p. 223). Já Fernando, tendo
herdado a verbosidade de Henrique – que para Maina não passava de “esterco fino bosta de
palácio” –, morre sem saber, segundo ele mesmo: “que estorvo ou esterco somos, aqui,
brandamente submissos a estas palavras, nesta sala, nesta terapia dum discorrer que
entendemos ambos, acadêmica paz da língua morta” (p. 183). Os impropérios da mãe contra o
pai ressoam, assim, na fala do filho.
O sentido das palavras de Fernando é, talvez, resumido nesta reflexão: “Que reles é a
nossa lucidez de palradores serviçais quando nos não toma mais o silêncio da demanda do
novo.” (p. 146-147). Essa reflexão nos reenvia para a primeira parte do romance, aos trechos
que remetem às origens de Maina Mendes:
Maina Mendes vem sobreviva do montante e da acha de armas e mais ainda da furna
cantábrica e da mão de felpas, do olho pisco e cru na apaixonada desconfiança às
fogueiras do início, da seriedade sem lhaneza e intacta na península que ainda não
tinha nome, do brutal desrespeito por tudo o que não é elementar e inteiro. Como
poderia herdá-la o acatado tempo de tremura menor, tremura de vidro fino, de
contada loiça, o susto do contado, não do pilhado ou feito, das trincheiras mal
sabidas e ao longe, e tão quieta a pobreza de perto. (p. 32)
Maina Mendes é [...] silenciosa e significante para muito tempo depois, como os
menhires tácitos donde é vinda, como as hordas sem castas e migrantes que, ao
tombar quase vermelho da noite aguardam na praia do gelo a ida para o jamais visto
[...]. (p. 68)
Esses fragmentos aludem a um passado que é contraposto ao presente, contraposição feita
também por Fernando, no quarto bloco da segunda parte, quando fala do povo lusitano:
Sempre fomos gente de minúcia, nossas raízes crescem pelos olhos e são-nos mais
próprios o silêncio e a distância. E no tempo em que todos são chamados a ser
meninos insaciados e tagarelas, isso muito se parece com a morte. Paira sobre nós o
grande susto da nossa gravidade se haver apenas volvido prudência, nosso amor de
olhos certos ao delicado, tão-somente a cegueira no mesquinho. [...] Onde era a
afoiteza de alargar as vistas e ir com elas por onde o espaço de água era amplo,
apenas vai ficando a urgência de mascar os torrões apanhados na grande ida que não
mais o é. (p. 147)
Veja-se, na última frase da citação, a alusão à dissolução do império português, que, depois
das grandes conquistas do passado, entra em declínio e se vê na contingência de perder as
últimas possessões – “os torrões apanhados na grande ida”. No tempo presente, “tempo de
tremura menor”, resta o “contado”, e o que antes era ação volve-se narração; conforme afirma
Fernando: “A nossa cólera volveu-se um discurso dela” (p. 143). E é aqui que se dá a
intersecção entre o individual e o coletivo. O discurso de Fernando sobre si ecoa no discurso
sobre a nação, um remetendo ao outro. A narrativa, no momento da dissolução do sujeito e da
nação, atua como meio de garantir uma identidade, ou uma história, mesmo que apoiada num
passado perdido e num futuro incerto. Essa tentativa de erigir a identidade através da
narrativa, é, contudo, malograda, porque a linguagem utilizada repousa na “acadêmica paz da
língua morta” (p. 183) – a linguagem do pai, que busca ordenar a caos, nomear o inominável,
integrar os fragmentos em uma unidade. Essa unidade a que Fernando pretende chegar revela-
se inatingível, pois ele mesmo se reconhece “fragmentário e roto” (p. 219), “porque eu sou
outros, trilho apenas, eixo de ausências” (p. 161).
Face à dissolução da unidade do eu, o sujeito se encontra sem saída: diante da
vacuidade da “linguagem monológica” herdada do pai, e da incompreensão da linguagem da
mãe, resta a espera da morte:
Falar-lhe como o faço [...] obriga-me a parecer existir como sempre o fiz. E não terei
tempo já de inventar-me perante sua recusa a fala certa. [...] Eu não posso limpar-me
diante das coisas e minha presença as altera a falsas [...]. Convoco pois a morte
sobre mim, mas não em pura perda. [...] Para subsistir consigo é necessário uma
palavra para a qual já não temos corpo. Uma palavra dita entre a dança e o passo
vagabundo dos novos monges, mudos do que sabemos dizer [...]. (p. 214-215, grifo
nosso)
Pode-se perceber que os termos grifados acima remetem a traços característicos de
personagens como Maina, Cecily, Matilde, Hermínio, personagens que, desviadas da lógica
dominante, são no entanto as únicas capazes de fazer ecoar a “fala certa”, recusada pelo
pensamento hegemônico. Fernando, embora busque, tardiamente, empenhar-se na escuta
dessas vozes, não se encontra apto para dialogar com elas.
Com a morte de Fernando, o discurso lógico, unificador, dá lugar ao discurso híbrido,
aberto à heterogeneidade, não mais monológico mas dialógico – o discurso de Matilde, a filha
que Fernando vê medrar perante o murchamento de seu espaço, a neta que Maina Mendes
espera e através da qual triunfa. A heterogeneidade se manifesta na figura de Matilde através
de vários aspectos: a língua que usa – em parte português, em parte inglês; os vários lugares
de onde escreve – Londres, La Paz, São Paulo; as idéias que veicula. Suas palavras têm um
toque de insubmissão e afronta em relação ao pai:
This is not to tell you where I am, but the achanging times I stand upon, within you
and without you.
[...]
Anyway, sinto que suo a Europa para fora de mim. Teus vícios, que herdei, ou
fizemos ambos, o espírito lesto e de ademanes, o coração plangente.
[…]
‘Anything but the drugs, Holly. You’re free for life, not for death’. Lembras-te?
Sensato.[…] Drogas não. I took them. I took the thing. I am here. […] I took the
thing, I joined the lovely tramps.
[…]
This is time further out. This is the blow up. Father, I am many. I am busy burning
you. Em duas ou três fogueiras. So I may test my joy in the stillness of your words.
A alegria nossa. (p. 175; 179; 180; 182)
O primeiro fragmento aponta para o “levante” de Matilde dentro do espaço do pai e
independentemente dele. Note-se que o discurso da personagem surge na narrativa ao mesmo
tempo em que o de Fernando se torna cada vez mais pessimista em relação a ele mesmo,
consciente de que sucumbiu diante do “poderio” da filha. Matilde marca a sua independência,
e, em sua carta, ironiza a “sensatez” do pai, que fala sem conhecer (ou sem revelar) o outro
lado das coisas. O uso de drogas, por exemplo, torna-se não só um ato de afronta à ordem,
mas também um ato de desmascaramento: o discurso sensato fala da morte mas não do prazer
que a droga produz. Matilde vai até o outro lado: “I took them. […] I am here”. A queima do
pai em duas ou três fogueiras assume os ares de uma Inquisição às avessas, onde o eliminado
não é o transgressor da ordem, mas a própria ordem. A insurreição de Matilde, aliás, é
atestada nas palavras de Fernando, no último bloco da segunda parte:
Foi a surpresa, creio, a base de tudo, a impossibilidade de a educar no sentido estrito
do termo, de conduzi-la, de dizer-lhe o que se faz, tão mestra a vi surgir e medrar na
arte de bem viver e continuar perante o murchamento do mesmo espaço que me fora
dado. [...] Porque não esperar, sempre consentir ao vácuo que se me fazia antes de
repreendê-la ou avisá-la sequer de perigos, pois que a via tronando sobre adultos,
escadas, rochas e rebentação de mar [...]? (p. 223)
Enfim, as palavras de Fernando – “eu sou outros” (p. 161) – ressoam nas de Matilde –
“I am many” (p. 182) –, mas nestas se observa uma significativa alteração. Se em Fernando
temos o esvaziamento da subjetividade, com a posterior supressão do sujeito, que não é ele
mesmo mas “outros, trilho apenas, eixo de ausências” (p. 161), em Matilde, ao contrário,
temos a plenitude do sujeito, que incorpora a diversidade e se eterniza: “Ah, pai, quanta gente
somos. [...] te digo quanta gente é precisa para cada um de nós se ir fazendo, quantos passos
em nosso torno. [...] E não morremos nunca.” (p. 183).
Observa-se que Matilde não sofre como Fernando a falta de unidade do sujeito, ao
contrário, ela a assume como traço constitutivo do ser, e diz ao pai: “Do not worry” (p. 183).
O tempo eleito por Matilde também é outro: enquanto Fernando procura se erigir mediante a
reconstituição do passado, ela se situa no presente. De La Paz, Matilde escreve:
Em Londres vivi meu futuro [...] This is my present. […] The half buried stones of
Latin America are aglow. E as caras escuras onde ressuresce o conquistador. The
coloured face is alight with the answer. Brown is the Earth and brown is the joy. (p.
182)
Ao situar seu presente na América Latina, Matilde, assume a sua marginalidade, agora como
povo, em relação à Europa. A personagem, dessa forma, sai de uma suposta centralidade
européia, e se abre a outros espaços, outras realidades, situadas no presente, e que por isso
mesmo requerem novas palavras: “O que se passa não tem palavras de ontem, nossas, para.”
(p. 229). As “palavras de ontem” ficam com Fernando, que, no sonho de Matilde, espera que a
água suba. Ela, porém, prossegue com a palavra nova, como prenunciado por Fernando:
“Uma palavra dita entre a dança e o passo vagabundo dos novos monges, mudos do que
sabemos dizer” (p. 215). E à pergunta de Fernando – “quem me aproveita e prossegue?” (p.
188), temos a resposta de Matilde, em sua última carta ao pai: “I am what follows. No father,
I will not stay with thee [...]. Não, pai, despeço-me porque te prossigo.” (p. 230).
Em suma, podemos afirmar que as personagens se constituem através das relações que
estabelecem umas com as outras e de modo fragmentário, seu caráter nunca fixado de maneira
plena e unívoca. Mesmo Maina Mendes, cujo caráter parece estar determinado já no início da
narrativa, ao ser apresentada por outras vozes que não aquela do narrador extradiegético-
heterodiegético, se nos afigura de maneiras diversas. Assim, a caracterização das personagens
deve levar em conta os vários pontos de vista e as várias perspectivas temporais sob as quais
são apresentadas.
Um dado, no entanto, ressalta à análise: o fato de as personagens se constituírem
principalmente através do discurso, alheio ou próprio. Parece óbvio, já que tudo na narrativa
se constitui através do discurso. Mas aqui novamente chamamos a atenção para a distinção
que fazemos, neste trabalho, entre discurso da narrativa e discurso da personagem. É deste
último que ora tratamos. Em Maina Mendes, o que se verifica é a tônica no discurso da
personagem; não é a realidade em si que se nos apresenta, mas uma ou várias visões dela.
Assim, a identidade das personagens se constrói, de modo geral, não através de sua “real”
atuação, através de suas ações objetivas, mas através da narração destas. Ou seja: é a narrativa
da/sobre a personagem que se apresenta, e não ela mesma. Isso vale também para o discurso
direto em que a personagem fala de si mesma, como no discurso de Fernando. Em vários
momentos ele chama a atenção para o fato de estar contando uma história que não é a história
“real”, mas uma versão dela, ou pura invenção. O relato, ou a “invenção”, de sua história de
vida desloca o foco de atenção do presente para o passado. Diante de um presente mesquinho
e de um futuro incerto, o sujeito apela para a memória – memória do que fez, do que foi. O
“contado” toma o lugar do “feito”. A narrativa do passado preenche o vazio do presente, e o
diálogo efetivo fica suspenso na espera.
Após essas observações a respeito das personagens, acreditamos poder estabelecer
uma relação mais próxima entre o modo de construção destas no romance e a constituição da
própria identidade nacional.
2 Ensaiando o diálogo efetivo
O problema da identidade constitui uma linha de reflexão que percorre a produção
literária de Maria Velho da Costa. A questão do outro, as imagens que se formam desse outro,
assim como as que se constituem como próprias, são aspectos tematizados, com maior ou
menor ênfase, na maioria de suas obras. Interessa-nos, aqui, observar como, a partir de um
diálogo com a tradição, o romance põe em jogo os diversos elementos constitutivos do que
chamaremos “a identidade cultural portuguesa”, entendendo que essa identidade se constrói
justamente no confronto entre esses elementos. Valendo-se de discursos legitimados, o
romance põe em questão a legitimidade desses mesmos discursos, através da instauração de
espaços dialógicos em que o conflito entre elementos díspares se configura. A identidade é
constituída, assim, na relação que se estabelece entre o próprio e o outro. É necessário,
portanto, observar como as imagens/discursos vão-se coadunando no romance, para, a partir
daí, buscar entender como se processa a construção da identidade em Maina Mendes.
Vários autores apontam o sentimento de inferioridade dos portugueses em relação ao
centro europeu, “centro” aqui entendido não como centro geográfico, mas como centro de
irradiação sobretudo cultural. Maria Isabel Barreno
64
salienta esse traço do imaginário do
povo português, que tende a dimensionar as qualidades das outras culturas, minimizar ou até
mesmo ignorar as mazelas alheias, ao mesmo tempo em que subestima sua própria capacidade
criadora, superdimensionando não suas qualidades, mas seus defeitos. A cultura portuguesa é
vista, assim, não apenas externamente (pelos outros), mas também internamente (pelos
próprios portugueses) como inferior, rudimentar, primitiva, sempre devedora à alta cultura
européia. O português sente-se marginalizado dentro de seu próprio espaço cultural (europeu),
que não é sentido propriamente como seu, mas antes como de outro, superior a si. No
romance há indícios desse sentimento em algumas personagens. Henrique, por exemplo,
prouvera uma educação européia, fora de Portugal, para o filho, que “preparava com urgência
a partida enfim para a Europa” (p. 159), como se o próprio país se encontrasse fora dela. A
Europa surge como espaço outro, distante, desejável e melhor: “Tinha pressa em partir [...]
todo posto na etapa da minha formação que iria seguir-se, que meu pai deixara prevista, numa
escola de prestígio de uma Europa que não tinha afinal razões para ser pessimista” (p. 160).
Na maturidade, Fernando chamará a atenção para a supervalorização do que vem de fora.
Falando ao analista, a personagem diz, em tom irônico:
Jantei ontem com gente interessante. Gente que conhece o moderno teatro alemão.
[...], a evolução da cinematografia neobarroca italiana, as incidências da crise de
prestígio da política americana [...]. Jantei bem, no meu quadrilátero de algodão
escandinavo, vinho nos copos finlandeses e uma rapariga silenciosa, bem fardada e
de mise em plis a ir e vir com os pratos. As mulheres são, como sabe, bastante belas
e perfeitamente européias. (p. 143)
A profusão de referências a elementos estrangeiros põe em foco o valor que se lhes atribui nas
altas rodas sociais.
Eduardo Lourenço
65
, que em 1978, ano da publicação de O labirinto da saudade, já
denunciava o caráter ambíguo de Portugal, que se queria grande sem realmente acreditar sê-
lo, propôs, nesse mesmo estudo, o que chamou de “uma imagologia” da cultura portuguesa,
ou seja, um discurso crítico sobre as imagens dos portugueses que eles mesmos têm forjado,
64
BARRENO, Maria Isabel. Um imaginário europeu. Lisboa: Caminho, 2000.
Para evitar acúmulo de notas, as páginas dos trechos citados de mesmo autor e obra anteriormente referidos
serão apontadas no corpo do texto, entre parênteses.
65
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 2000.
as quais, segundo o crítico, são de duas espécies: uma é a imagem “condicionante do agir
colectivo”; a outra é a criada pela elite intelectual:
constituem-na as múltiplas perspectivas, inumeráveis retratos que consciente ou
inconscientemente todos aqueles que por natureza são vocacionados para a
autognose colectiva (artistas, historiadores, romancistas, poetas) vão criando e
impondo na consciência comum. (p. 18)
O estudo de Lourenço nos interessa aqui, principalmente por sua opção de centrar-se nas
imagens de origem literária, “que por uma razão ou por outra alcançaram uma espécie de
estatuto mítico, pela voga, autoridade e irradiação que tiveram ou continuam a ter” (p. 18).
Esses “retratos” forjados pela literatura vão constituindo um imaginário que atua no
processo de identificação da cultura portuguesa. Assim, imagens como a do povo desbravador
e predestinado corroboram sentimentos expansionistas e imperialistas; mitos como o de Dom
Sebastião reforçam a crença num poder divino (e externo) que possa vir a efetivar a redenção
do povo.
A maioria das imagens, entretanto, são calcadas na irrealidade, mas não deixam de ser
significativas, uma vez que, como afirma Lourenço tomando como exemplo o sebastianismo,
o mito “representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa
carência é real” (p. 28). Para o crítico, a grandiosidade do passado histórico português e a
incapacidade para manter-se nesse patamar fez com que o “viver nacional” se orientasse “para
um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva, do passado” (p. 28) – nas
palavras do autor: “a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido” (p. 28).
Sabe-se que a literatura desempenha um papel importante na formação de imagens que
alicerçam a consciência coletiva, imagens essas que, no caso português, contribuíram tanto
para a formação de uma mitologia gloriosa (Os lusíadas são exemplo disso) como para a
configuração de um presente mesquinho (como se observa, por exemplo, na obra de Eça de
Queiroz).
A tradição literária portuguesa está, portanto, crivada de imagens que, no entanto, não
apresentam correspondência com a realidade da nação. Segundo Lourenço, as autênticas
contra-imagens de Portugal foram forjadas pelo movimento surrealista,
que soube encontrar os gestos, as imagens, picturais ou poéticas, menos lusitanistas
no sentido tradicional do termo, não apenas as que se opõem àquelas que do século
XIX continuavam a escoar-se e a ecoar no subconsciente nacional, mas às clericais-
fascistas, aos arquétipos líricos do eterno Portugal meu berço (de) inocente que a
pedagogia do regime destilava como mel obrigatório desde o banco da escola
primária à universidade. (p. 37)
Dessa forma, de acordo com aquelas características que se evidenciaram na produção
romanesca sob a influência do movimento surrealista, pode-se dizer que, a partir desse
momento, uma visão menos parcial da realidade começa a se delinear na literatura, abrindo
espaço para a representação literária dos contrastes e heterogeneidades que marcam o país
social e culturalmente.
O sociólogo Boaventura de Souza Santos
66
também chamou a atenção para a
heterogeneidade cultural portuguesa e para a situação paradoxal da nação: européia e ao
mesmo tempo primitiva em relação à Europa. Segundo o autor, esse fato pode encontrar sua
justificativa na relação de Portugal com suas colônias: em relação a elas, o país é um centro
europeu; porém, dentro desse centro, ocupa uma situação de marginalidade. O espaço
ocupado por Portugal configura-se, assim, como um espaço ambíguo.
Como afirma Santos, essa ambigüidade pode ser observada não só na relação com a
exterioridade, mas também no espaço interno da nação. A confluência de elementos oriundos
de espaços distintos e aparentemente inconciliáveis lhe confere o seu caráter heterogêneo. Isso
foi viabilizado sobretudo por essa capacidade portuguesa de assimilação e incorporação de
culturas outras, a tal ponto que se cria uma indivisibilidade entre o que é próprio e o que é
alheio.
Para Santos, Portugal é um país semiperiférico que oscila entre dois mundos – a
Europa e as antigas colônias –, não se identificando totalmente com nenhum dos dois, nem
deles se diferenciando completamente. A heterogeneidade social e cultural, a coexistência de
elementos divergentes no interior do país promovem uma tensão interna que se evidencia em
vários setores. Ainda segundo Santos, esse caráter semiperiférico, essa apropriação de
elementos de origem tão diversa foram fatores decisivos para a formação de uma identidade
nacional caracterizada pela “cultura de fronteira”.
Nos termos de minha hipótese de trabalho, podemos assim dizer que não existe uma
cultura portuguesa, existe antes uma forma cultural portuguesa: a fronteira, o estar
na fronteira. [...] A zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contatos
se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias pouco susceptíveis de
globalização. Em tal zona, são imensas as possibilidades de identificação e criação
cultural, todas igualmente superficiais e igualmente subvertíveis [...]. (p. 152-153)
Daí se depreende que, em se tratando de uma identidade cultural portuguesa, deve-se
considerar não algo estanque e predeterminado, mas algo que constantemente se reconfigura,
num interminável processo de re/construção.
66
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2001.
Segundo Eduardo Lourenço
67
, muitos escritores vem “exprimindo uma vontade de
renovação da imagerie habitual da realidade portuguesa”, renovação que não se restringe
apenas ao nível da escrita, mas se verifica sobretudo no modo de apreensão de realidade
portuguesa.
O surrealismo, com os caracteres bem próprios que foram os seus entre nós,
redimensionava a imagem da nossa relação com a realidade portuguesa segundo
cânones, modelos, inspirações que procediam de uma das mais radicais
metamorfoses da cultura do século XX e retomava, agora sob um modo burlesco,
alógico, provocador, a tentativa ganha e perdida pela aventura sem herdeiro do
primeiro Álvaro de Campos. (p. 37)
Em Maina Mendes podemos observar vários aspectos que apontam para uma reflexão
acerca dessas imagens: o “diálogo” com a tradição literária, o cruzamento de consciências
díspares e de discursos contraditórios, a utilização de fórmulas canônicas do romance junto a
procedimentos inovadores, etc. Esses cruzamentos sinalizam (talvez) uma tentativa de se
repensar e re/construir a identidade nacional.
No romance – que, à primeira vista, pode-se dizer que questiona o papel da mulher na
sociedade patriarcal –, o problema da identidade individual se confunde com a questão da
identidade nacional. Nesse sentido, a obra pode ser entendida como a busca do lugar e da voz
de indivíduos pertencentes a uma nação que, por seu turno, também procura ocupar o seu
lugar e se fazer ouvir, configurando um discurso que procura se afirmar a partir da margem.
Para se afirmar como autônomas, essas vozes desprendem-se do discurso legitimado e
incorporam discursos marginais. O discurso do louco e das camadas menos valorizadas da
sociedade, os elementos da cultura popular (como a bruxaria, por exemplo) surgem, assim,
como o que Manuel Castells
68
chama “trincheiras de resistência e sobrevivência” (p. 24). No
processo de construção da identidade, em Maina Mendes, subvertem-se as instâncias
legitimadoras pela instauração desses “espaços de resistência”, e dessa forma se revela a
heterogeneidade constitutiva da nação portuguesa e do próprio indivíduo. A valorização de
elementos tradicionalmente marginalizados aponta para a possibilidade de revalorização da
cultura nacional e de diálogo entre identidade e alteridade em meio a um processo de
homogeneização cultural.
Boaventura de Souza Santos
69
observa que
67
Op. cit. (nota 65, p. 117).
68
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. vol. 2. A era da informação: economia, sociedade e cultura.
São Paulo: Paz e Terra, 1999.
69
Op. cit. (nota 66, 119).
as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados
sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades
aparentemente mais sólidas [...] escondem negociações de sentido, jogos de
polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação,
responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que
de época para época dão corpo e vida a tais identidades. (p. 135)
No romance, a figura de Maina Mendes pode bem servir de exemplo para ilustrar essa
afirmação, pois vimos que a personagem vai tendo o seu “sentido” alterado no decorrer da
narrativa, segundo as diferentes visões/reflexões que se formulam a seu respeito. Além disso,
o autor assinala que se questionar acerca da própria identidade implica “questiona[r] as
referências hegemônicas mas, ao fazê-lo, coloca[r]-se na posição de outro e, simultaneamente,
numa situação de carência e por isso de subordinação” (p. 135). Por essa razão, acredita ser
“crucial conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem, com que
propósitos e com que resultados” (p. 135).
Se considerarmos o romance Maina Mendes, veremos que quem realmente pergunta
pela própria identidade é Fernando Mendes: é dele que partem as reflexões acerca de sua
história, do sentido de sua existência, e sobretudo de seu destino. Vimos, através da análise,
que Fernando se apresenta como sujeito cindido, vagando no espaço intermédio entre duas
forças opostas, representadas uma pelo pai, outra pela mãe. Vimos também que a personagem
não se afasta nem se identifica completamente com nenhuma das duas, e que, não as
compreendendo no que têm de essencial, não absorve o conteúdo de nenhuma delas, mas
apenas as suas formas. Lembremos que, em vários momentos da narrativa, a personagem
refere a sua incompreensão tanto em relação ao pai quanto em relação à mãe, embora assuma
posturas de ambos.
Se retomarmos as observações de Santos acerca da identidade cultural portuguesa,
perceberemos algumas similaridades entre o que se verifica ao nível individual, no romance, e
o que o sociólogo observa, ao nível coletivo, no quadro sócio-cultural português.
Recapitulemos, a propósito, a hipótese levantada pelo autor de que “a cultura portuguesa é
uma cultura de fronteira, não porque para além de nós se conceba o vazio [...], mas porque de
algum modo o vazio está do lado de cá, do nosso lado” (p. 152). Essas considerações também
remetem às palavras de Fernando: “[sou] trilho apenas, eixo de ausências” (p. 161). Tendo
apenas forma e não conteúdo preciso, a personagem entra em conflito ao questionar-se acerca
da própria identidade. O conflito se intensifica no momento em que, ao procurar em si, em sua
história os elementos que o constituem, encontra apenas fragmentos, incompreensíveis e
impassíveis de homogeneização. Lembremos que a primeira parte do romance também não é
homogênea, mas antes se constitui a partir da representação de posições divergentes.
Isso aponta para a heterogeneidade cultural de que nos fala Boaventura Souza Santos.
Para o sociólogo, Portugal não oscila apenas entre dois pólos distintos – o centro europeu e as
antigas colônias –, mas oscila também entre tempos (históricos) diferentes – a modernidade, a
pré-modernidade e a pós-modernidade. Não nos ocuparemos da discussão acerca desses
conceitos. Interessa-nos, aqui, pensar a coexistência de tempos, sobretudo presente e passado,
que pressupõem racionalidades distintas, como, por exemplo, o saber popular contraposto ao
saber científico, ou a concepção mágico-mítica contraposta à lógica.
A heterogeneidade é representada no romance pela diversidade de vozes narrativas,
pelo uso de linguagens distintas (veja-se, a título de exemplo, o registro dialetal utilizado por
Hortelinda, e a língua híbrida usada por Matilde), pela confluência de tempos diversos, com
representações simbólicas específicas, e pela própria compartimentação do discurso narrativo.
No que se refere às personagens, podemos mesmo localizá-las em tempos diferentes: o tempo
ancestral de Hortelinda e Maina Mendes; o tempo atual, mas alicerçado no passado, de
Henrique e Fernando; o tempo presente, mas que aponta para o futuro, de Matilde.
Falamos de confluência de tempos porque, de fato, não há uma progressão temporal
necessária. Ao invés de uma evolução na linha do tempo, parece-nos mais que essa linha se
volve círculo. O caráter circular do tempo no romance está, de certa forma, também indicado
no modo como a narrativa se encerra, retomando a figura inicial da protagonista Maina
Mendes. Esta se situa, juntamente com sua predecessora Hortelinda, num tempo primordial,
que existe subjacente ao tempo presente. Os hábitos mudam, os costumes se refinam, mas dos
primórdios sobrevive a rudeza e a rigidez de Maina Mendes, tão alheia ao “acatado tempo de
tremura menor, tremura de vidro fino” (p. 32), de homens “de vinho fino e siso palavreiro” (p.
84). O tempo donde é vinda Maina Mendes, tempo do feito e não do contado, percorre o
romance, invade e solapa o tempo atual. Veja-se que, no discurso de Fernando, a figura de
Maina Mendes, embora muda e impassível, é a que maior força assume em seu relato. Fruto
de uma tradição patriarcal (com traços manifestos de enfraquecimento), Fernando não atende
ao significado profundo da figura materna, para ele tão enigmática; sua força e influência,
entretanto, é reconhecida ao longo da história. Ao falar da filha e da sua insubmissão a
códigos de conduta preestabelecidos, a personagem finalmente se questiona:
Como seriam estas coisas sem o consentimento de minha mãe e o seu odor a húmus
e sal naquela casa?
Como seriam estas coisas? Não seriam? Mas quer então dizer desnecessário, outros
males a cuidar? A crise de valores, a anomia? Fatigo-o, meu caro? A relação escapa-
lhe? Espera, não é verdade? É disso que nos ocupamos. (p. 224)
Nesse trecho podemos entrever uma síntese do que pode ser considerado o sentido da figura
de Maina Mendes e de sua presença constante no transcorrer da narrativa. Na referência a
“húmus” e “sal”, parece estar condensado esse sentido: “húmus” simbolizando o solo
fecundo, o “barro” para o qual Matilde retorna; e “sal”, a conservação das raízes, “raízes no
tempo” (p. 230). O sal que conserva e o húmus que fecunda é que vão permitir o “medrar” de
Matilde, o fruto esperado por Maina. A partir dessa interpretação, a imagem do círculo, por
nós vislumbrada, pode ser reconsiderada. Ao invés de um círculo fechado, teríamos em
verdade uma espiral, pois o romance não retorna pura e simplesmente ao tempo ancestral, mas
o aproveita: sob a influência de Maina, mas não unicamente, com Matilde alvorece um novo
tempo. A espera final de Maina também aponta para esse prosseguimento.
Chamamos a atenção, entretanto, para o diálogo com o pensamento hegemônico que,
no fragmento citado, se estabelece através da ponderação de Fernando com o analista. Veja-se
que, quando a personagem repete “Não seriam?”, está retomando a palavra do seu
interlocutor, o que fica ainda mais claro quando diz: “Mas quer então dizer desnecessário,
outros males a cuidar? A crise de valores, a anomia?”. A referência a “males”, “crise de
valores”, “anomia”, faz lembrar as palavras daquele primeiro médico que examinou Maina
Mendes na ocasião de sua crise convulsiva seguida de mutismo. Anos depois, as alterações
comportamentais ainda são vistas negativamente. Na pergunta – quase uma asserção – “A
relação escapa-lhe?”, fica evidente a incompreensão de um processo, necessário e inevitável,
de alteração do estado das coisas, processo esse que, incompreendido, só pode ser visto como
crise – individual e coletiva.
Considerando-se as alterações sócio-econômicas, políticas e culturais a que o romance
sutilmente alude, bem como o drama existencial de Fernando Mendes em meio a esse
contexto, podemos dizer que esse conflito representa, pois, a crise de identidade por que
passam, concomitantemente, sujeito individual e sujeito coletivo – o primeiro defrontado com
sua própria descentralização e fragmentação; o segundo desestabilizado em função do
processo de des/reterritorialização que a gradual dissolução do império e o movimento de
descolonização aos poucos vão impondo. Sujeito e nação, do mesmo modo, reconhecem-se
“fragmentário[s] e roto[s]”, percebem atônitos que o seu espaço se está alterando, reduzindo,
“murchando”. É, pois, perante a indefinição de seu lugar no mundo que o sujeito busca se
redefinir através da narrativa: no discurso sobre si mesmo, sujeito e nação se reinventam,
buscam sentido.
Eduardo Lourenço
70
, ao reclamar uma efetiva “autognose” da realidade portuguesa
presente, refere as imagens forjadas de Portugal, alicerçadas num passado mítico ou num
futuro utópico. O crítico lembra que “as «Histórias de Portugal», todas [...] são modelos de
«robinsonadas»: contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente
deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor.” (p. 24). Segundo o crítico, o
surgimento de tipo “traumático” da nação portuguesa e os vários “traumas” por que passou
em seu percurso histórico justificam um tratamento psicanalítico do seu comportamento
global, um tratamento que consista num exame crítico que possibilite “arrancar[...] as
máscaras que [os portugueses] confunde[m] com o rosto verdadeiro” (p. 24). A proposta do
crítico, baseada no “símile da cura psicanalítica”, faz lembrar a trajetória de Fernando Mendes
no romance, pois ao recapitular sua “história”, a personagem procede a um exame rigoroso
que o leva a constatar finalmente que tudo não passou de uma “fraude”. Suas crenças – na
educação, no trabalho, na família – aos poucos se vão desmoronando, conforme demonstra o
sétimo bloco (2ª parte), onde a personagem discorre sobre seus empreendimentos, sua
“paixão” e esperança depositadas no trabalho, que depois vieram a sucumbir ante a derrocada
financeira. Veja-se que Fernando fala de suas crenças, das possibilidades futuras que previa –
“me era lícito afirmar que faríamos grandes coisas” (p. 170); “Eu dizia-lhes afinal que era
possível caminhar em justiça no que vinha de nossos pais. Era um apostolado [...]. [...] eu cria
no trabalho” (p. 171) – deixando entrever, num tom entre irônico e melancólico, o caráter
ingênuo de suas ilusões: “Quem não teria que comer se se multiplicavam os ganhos e o
produto?” (p. 171). E em seguida fornece a perspectiva atual: “E depois a fraude de tudo isso.
Repare que eu digo fraude e não derrocada, que o foi” (p. 171). Note-se que o uso da palavra
“derrocada” subentende a existência de algo concreto que foi à ruína; “fraude”, por sua vez,
significa logro, engano. Daí se depreende que as esperanças de Fernando se assentavam sobre
ilusões, e não sobre a realidade concreta. Pode-se aí, novamente fazer uma analogia com a
nação portuguesa, cujas imagens de si mesma assentam-se, segundo Lourenço, num
“irrealismo prodigioso” (p. 23). A autognose de Fernando representa, pode-se dizer, uma
tomada de consciência. A crise enfrentada pela personagem sinaliza o desgaste de uma
postura europeizante, calcada numa cosmovisão logofalocêntrica, que pouco se adapta ao
70
Op. cit. (nota 65, p. 117).
contexto sócio-cultural português, marcado pela heterogeneidade e descentralidade apontadas
por Santos.
Uma tentativa de redefinir a identidade portuguesa com base numa imagem mais
condizente com a realidade passa, necessariamente, pelo reconhecimento dessa
heterogeneidade e descentralidade. Em consonância com isso, o romance põe em cena as
diversas personagens, com suas concepções, discursos, linguagens, nem sempre conciliáveis
entre si. Há que se considerar, no entanto, o modo como essas vozes vão assumindo espaços
na narrativa: trata-se de um processo lento, gradual, que se revela menos na superfície do
discurso que nos seus interstícios.
Interessa também observar o modo como se dá o questionamento de culturas
hegemônicas, ao lado da revalorização de culturas periféricas. Se observarmos a relação das
personagens com o espaço, veremos que personagens como Maina e Hortelinda ligam-se às
raízes da nação, à península ibérica; personagens como Henrique e Fernando desenvolvem
uma relação com o exterior centro-europeu; já Matilde relaciona-se com vários espaços
diferentes – centrais (Europa) e também periféricos (América Latina), além do espaço próprio
(Portugal) ao qual irá retornar. Matilde, ao “suar” a Europa para fora de si, e ao imbuir-se de
outras culturas, contrapõe-se à postura do pai (e por extensão à do avô) para o qual a Europa
se afigura como espaço superiormente interessante a que a cultura portuguesa parece sempre
tributária. A relação de Fernando e de Matilde com o centro europeu é, assim,
qualitativamente desigual. Enquanto o Fernando adolescente tinha pressa de evadir-se para
uma Europa prestigiosa, o que de resto já havia sido previsto pelo pai, Matilde, ao contrário,
ironiza esse prestígio:
‘nenhuma dessas coisas saberias, filha, se não fora a Universidade minha, que será
tua’, ‘já sei, já sei, a Universidade é um ovo, a igreja é um ovo, a pátria é um ovo e a
Europa é uma galinha choca’ (p. 212)
A chocarrice de Matilde já sinaliza o abalo de uma hegemonia que aos poucos vai sendo posta
em questão. A “alta cultura” européia é assim desapeada de sua superioridade. Também a
inclusão da “periferia” do mundo no itinerário da personagem representa uma espécie de
nivelamento: a Europa deixa de ser o destino único, passando a ser um entre outros. Essa
abertura para culturas outras permite a Matilde reconhecer-se como sujeito clivado:
Ah pai, quanta gente somos. Aqui, neste ar cálido, rodeada deste espanhol moroso e
paciente, te digo quanta gente é precisa para cada um de nós se ir fazendo, quantos
passos em nosso torno. E os melhores de nós são os que escutaram todas as
passagens, guardando o passo das mais rijas, a graça das mais leves. E não
morremos nunca. Apenas despelados, descarnados, seremos sem invólucro, enfim
cumprida a promessa de explosão em que sempre estivemos. Do not worry. (p. 183)
Veja-se que nada é dispensado – nem a tradição, nem a irreverência –, ao contrário, é
reconhecida a importância de “todas as passagens”. O processo de individuação passa, assim,
pela dispersão. Só quando o indivíduo se dispersa, renunciando à sonhada unidade, é que pode
definir sua identidade – mesmo que essa se funde na fragmentação. As palavras de Matilde,
porém, tranqüilizam: “Do not worry”. A Fernando resta assentir diante do inexorável: “Tudo
o que espasmodicamente se aclara ratifica a explosão” (p. 220). E Maina Mendes – “plácida
lama, intacto lodo” (p. 235) – espera impassível que a “promessa” enfim se cumpra.
Em nossa análise, pudemos observar que as visões divergentes se opõem não
diretamente, mas de maneira velada, subliminar. Na primeira parte da narrativa, as vozes se
fazem ouvir, mas ainda não empreendem um diálogo, elas apenas sinalizam a existência de
um conflito, não havendo uma interação produtiva. Na segunda parte, esse conflito,
interiorizado na personagem Fernando Mendes, começa a surtir os primeiros efeitos: a auto-
análise, a reflexão crítica sobre a própria história e sobre o discurso que a constitui, a abertura,
a escuta de outras vozes, ainda que incompreendidas. Com Matilde, temos a assimilação
dessas vozes numa promessa de diálogo produtivo. Dizemos “promessa” porque o diálogo de
fato não acontece. Temos sim o enfraquecimento de uma visão monológica, unificadora, em
favor de uma postura dialógica, mais pluralista. Se, no entanto, considerarmos que essa última
é a postura adotada por Matilde, deveremos levar em conta que a personagem se encontra fora
de seu país, embora o seu retorno já esteja anunciado. É significativo o fato de o romance
terminar com a figura de Maina Mendes à espera. O que/quem a anciã espera? Espera que
Matilde retorne para preencher um espaço vazio (lembremos a hipótese de Santos, segundo a
qual a cultura portuguesa tem apenas forma e não conteúdo). O título da última parte do
romance, “Vaga”, pode estar remetendo a esse vazio, que deverá ser preenchido por aquela
que, tendo “suado a Europa para fora de si” e assimilado culturas outras, será enfim capaz de
promover o diálogo efetivo mediante o qual se constituirá uma nova identidade cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, examinando a construção das personagens e as relações que se
estabelecem entre elas, procuramos observar como se opera, em Maina Mendes, o processo
de construção da identidade. As categorias de análise propostas por Gérard Genette nos foram
úteis na medida em que possibilitaram a separação dos diversos tempos, modos e vozes
intrincados no discurso narrativo. Percebemos que este se organiza de modo a contrapor
tempos, espaços, personagens, visões do mundo, o que salienta seu caráter dialógico. A partir
daí foi possível detectar a polifonia de vozes, no sentido bakhtiniano, que perpassa o romance.
Vozes que, num primeiro momento, pareciam próprias de determinadas personagens,
revelaram-se formações discursivas que se interpenetram no discurso de diferentes sujeitos;
ou seja, num mesmo indivíduo, vozes dissonantes podem ser ouvidas. À medida que a
narrativa avança, essa dissonância vai-se intensificando no interior das personagens, podendo
gerar conflito interno ou simplesmente coexistência de vozes.
A análise evidenciou que o problema da identidade transborda do campo individual
para o coletivo, o que nos levou a buscar subsídios para uma reflexão sociológica. Os textos
lidos, contrapostos a análise narrativa, apontaram para a possibilidade de aproximação entre o
modo de construção das personagens e o processo de construção da identidade nacional. O
caráter dialógico do discurso narrativo, o embate de vozes dissonantes e o questionamento de
referências hegemônicas foram aspectos observados no processo de construção da identidade
individual que podem ser verificados também no nível coletivo, no plano sócio-cultural.
Em suma, podemos afirmar que as personagens – tomadas seja como indivíduos, seja
como representativas da nação portuguesa – constituem-se através das relações interpessoais
(e interculturais) que implementam, ou seja: no processo de construção de sua identidade
congregam diferentes elementos, num incessante diálogo entre o mesmo e o diverso,
evidenciando a heterogeneidade que caracteriza tanto o sujeito individual quanto o sujeito
coletivo.
Essa constatação nos leva a retomar as palavras de Manuel Gusmão
71
, que em sua
análise de Casas pardas afirma que:
71
GUSMÃO, Manuel. Prefácio: Casas pardas – a arte da polifonia e o rigor da paixão: uma poética da
individuação histórica. In: COSTA, Maria Velho da. Casas pardas. 4. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1996.
A individuação é um processo comunitário. A construção do sujeito é uma
construção na comunidade e de comunidade(s). Tal processo não é puro efeito que a
comunidade de base [...] projecta; mas é um trabalho, uma busca, uma posição, uma
preferência. Aliás, a comunidade não é mítica e tranqüilamente homogênea, mas
dividida e heterogênea; não é um dado fixo, mas um processo também. (p. 48)
Desse modo, podemos dizer que o romance Maina Mendes (da mesma forma que
Casas pardas, como apontou Gusmão) representa artisticamente “a diversidade sensível do
mundo e da cultura” (p. 37). O caráter polifônico do romance, sua construção dialógica, põe
em relevo a multiplicidade de vozes que atuam na constituição de sujeito e nação, ambos
afirmando-se pelo discurso. Nesse processo, algumas vozes preponderam, enquanto outras
lutam para serem ouvidas. Mas a via que o romance parece apontar não é a do embate, a do
confronto, mas a da interação. Não o monologismo, mas o dialogismo. É no diálogo
(interação) entre elementos diversos que uma ordem outra pode emergir. Não uma ordem que
simplesmente destitua a anterior, mas uma ordem que a aproveite e prossiga. É nesse diálogo
efetivo – que o romance ainda não pôde representar – que reside a espera. Espera da nação,
espera de Maina Mendes, cuja pele puída “clama partilha e se divide e a consegue e contém”
(p. 239). “Eis onde. Eis como, inequívoca metáfora e sinal, rio farto de morna faina.” (p. 235).
BIBLIOGRAFIA
Obras de Maria Velho da Costa:
BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas cartas
portuguesas. São Paulo: Círculo do livro, 1974.
COSTA, Maria Velho. As férias. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 36, mar. 1977.
___. Casas pardas. 4. ed. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1996.
___. Cravo. 2. ed. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1994.
___. Lúcialima. 2. ed. Lisboa, Portugal: O Jornal, 1983.
___. Maina Mendes. 2. ed. Lisboa, Portugal: Moraes, 1977.
___. Missa in albis. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1988.
___. O mapa cor de rosa. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1984.
Textos sobre a autora e sobre o contexto literário português:
AMARAL, Ana Luísa. Desconstruindo identidades: Ler Novas cartas portuguesas à luz da
teoria queer. Disponível em <letras.up.pt/upi/ilc/port_info_texts_menu_on_line.htm>. Acesso
em: 31 mai. 2003.
BAPTISTA, Abel Barros. O surto da ficção e a capitulação da crítica. Cult. Prosa e poesia
de Portugal, out./1999.
BASTOS, Jorge Henrique. Vias e desvios. Cult. Prosa e poesia de Portugal, out./1999.
Biografia de Maria Velho da Costa. Disponível em: <instituto-camoes.pt/escritores/
mvelhocosta/biografia.htm>. Acesso em: 31 mai. 2003.
BITENCOURT, Sylvia Maria Corrêa Rocha Homem de. A exemplaridade da obra de
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