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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO
A EDUCAÇÃO NA FESTA: TECITURAS DA CULTURA POPULAR NA
FESTA DE SÃO BENEDITO EM CUIABÁ
DEJACY DE ARRUDA ABREU
CUIABÁ
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO
A EDUCAÇÃO NA FESTA: TECITURAS DA CULTURA POPULAR NA
FESTA DE SÃO BENEDITO EM CUIABÁ
DEJACY DE ARRUDA ABREU
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação do Instituto de Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso, como requisito final para
obtenção do título de Mestre em Educação na Área de
Concentração Educação, Cultura e Sociedade e na Linha
de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação
Popular.
ORIENTADOR:
PROFESSOR DOUTOR LUIZ AUGUSTO PASSOS
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DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UFMT
Professores Componentes da Banca examinadora
_________________________________
Prof. Dr. Danilo Streck
Examinador Externo
___________________________________
Profª. Drª. Maria de Lourdes Bandeira De Lamônica Freire
Examinadora Interna
___________________________________
Prof. Dr. Luiz Augusto Passos
Orientador
Cuiabá, 22 de junho de 2007.
Foto l - Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito Cuiabá/MT. ( Após o restauro).
Fonte: Acervo Maria Teresa Carracedo, 2006.
Foto 2 - Flor que porta ao centro a relíquia de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
DEDICATÓRIA
Em especial dedico de coração este trabalho a meu pai, Darcy Gomes de
Abreu, à minha mãe, Aidê de Arruda Abreu, ao meu único irmão, Darcy de Arruda Abreu
Filho, à minha cunhada, Jane Vargas, e à minha avó cuiabana (in memoriam) Maria Izabel de
Arruda Chaves, família sempre presente a me animar e incentivar principalmente nos
momentos mais difíceis dessa trajetória. É para eles mais essa conquista.
Dedico, com o coração em festa, a todos os devotos do Glorioso S. Benedito
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito de Cuiabá, Mato Grosso.
Também a todos os pesquisadores e participantes do Grupo de Pesquisa
Movimento Social e Educação (GPMSE) do Instituto de Educação da Universidade Federal
de Mato Grosso.
E finalmente a todos os colegas de Mestrado em Educação, companheiros de
pesquisa.
Foto 3 - Nicho de devotos de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Agradeço primeiramente a Deus pela saúde e determinação interior durante todas as etapas do
Mestrado.
Agradeço aos meus pais pelo apoio cotidiano, pelo incentivo e pelo amor incondicional.
Este trabalho é resultado do esforço generoso de várias pessoas amigas ou simplesmente de
inúmeros companheiros que encontrei na caminhada. Foram essas pessoas que me
incentivaram a percorrer com coragem toda esta jornada até a produção final desta pesquisa.
Com amizade e reconhecimento, sou grata ao Prof. Dr. Luiz Augusto Passos, meu orientador
e grande amigo. Sua paciência e generosa sabedoria me incentivaram a crescer e a acreditar
no meu potencial. Muito obrigada!
A distância sempre transponível possibilitou conhecer a Profª. Drª. Rita Amaral, da USP, que
co-orientou este trabalho. Sua preciosa contribuição e atenção enriqueceram a proposta
desta pesquisa. Assim estou agradecida a ela também.
Em especial agradeço ao Prof. Dr. Danilo Streck que aceitou de coração ser membro externo
da banca de defesa. Seu gesto de acolhida e sabedoria humana iluminaram as páginas dessa
pesquisa. Obrigada!
À Profª. Drª. Maria de Lourdes Bandeira De Lamônica Freire, examinadora interna, cujas
contribuições foram fundamentais para o resultado final deste trabalho.
Agradeço a pronta disponibilidade do Prof. Dr. Darci Secchi na leitura do meu trabalho e
participação na minha qualificação. Estou para sempre reconhecida.
Agradeço de coração aos funcionários da secretaria da Pós, à Luiza, Dionéia, Mariana e ao
Geison, sempre prontos para atender-nos com atenção e paciência. Obrigada!
A todos os colegas do Mestrado, mas em especial ao Adriano, Aline, Clayte, Iracy, Maristela,
Micheli e Sueli Nobre. A vocês, queridos amigos, meus sinceros agradecimentos.
Agradeço aos devotos de S. Benedito que colaboraram diretamente com esta pesquisa e a
todos os padres jesuítas que atuam na Igreja do Rosário e S. Benedito, em especial ao Padre
Moura.
A todos os companheiros de luta pela cidadania e educação, meu muito obrigada!
Foto 4 – Imagem de S. Benedito.
Fonte: Acervo da Paróquia N. S. do Rosário, 2005.
Hino a São Benedito
1. Feliz mil vezes quem preserva Imaculada Santa flor
E desde jovem se conserva no santuário do senhor
Tal como lírio alvenitente
Que ao sol desponta em plena luz
Assim abriste adolescente
O coração para Jesus
Protege o povo brasileiro
Que vem, feliz, te agradecer
Ó nosso São Benedito,
A fé não nos deixe perder!
2. Desde a tua juventude
O Deus que a terra tanto amou
Te acolheu pela virtude
E ao seu amor te consagrou
Para os aflitos consolar
Eras tu mesmo que choravas
Se outro irmão vias chorar
3. E com coragem decidida
Sem se guardar para viver
Antes perdesse tua vida
Que a outro perecer.
Belas mãos negras consolavam
O irmão aflito em sua cruz
Quem via ao longe perguntava
“É Benedito ou é Jesus?”
4. Em nossa vida encontramos
Uma tarefa bem maior
Unir as forças que possamos
Em construir mundo melhor
Os BENEDITOS desta vida:
Negros, mestiços e os sem pão
Clamam por outro Benedito
Para fazer um mundo irmão.
(Folheto do Tríduo da Festa de São Benedito de 2006)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
18
CAPÍTULO I - EDUCAÇÃO E PRODUÇÃO DE HUMANIDADES:
QUEM ENSINA, O QUE SE ENSINA E QUEM APRENDE COM A
FESTA?
1.1 Nas tecituras e trilhas percorridas: Fundamentação teórica
27
1.2 De que educação se fala?
37
1.3 O aprendizado no espaço festivo: tradição e cidadania
52
1.4. Negro, frade, cozinheiro e santo: vida de São Benedito
60
CAPÍTULO II - SÃO BENEDITO, DEVOÇÃO DA CUIABANIDADE: O
TEMPO DA FESTA
2.1 Um olhar etnográfico sobre a Festa: nos passos da devoção
72
2.2. O encontro do santo com os devotos nas madrugadas e noites das
missas das terças-feiras cuiabanas: a busca do ritual da memória
simbólica
79
2.3. A cuiabanidade em tempos de festa: solenidade como inserção
social
90
2.4. Brasil mostra a sua cara: a diáspora espaço/tempo das senzalas
em analogia aos espaços/tempos míticos da devoção
92
2.5. A grande procissão: manifestações sociais e devoções
101
2.6. Temporalidade, devoção e resistência: a conquista popular da
Festa
115
2.7. Ritual preparativo da festa da cuiabanidade:levantamento do mastro, o santo
que peregrina e a bandeira que pede esmolas
133
2.8. A economia gerada pela Festa movimenta: pastorais sociais e comunidades
de base da Paróquia Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
185
CAPÍTULO III - O “FESTAR” NA ORIGEM DOS TEMPOS
3.1 Origem, sentido e significado da Festa: a Festa nas tramas do
tempo/SYn
196
3.2 O sagrado e o profano: continuidade e descontinuidade na Festa
208
3.3 Irmandades (ambivalência), espaço/tempo da contradição,
inclusão social ou outra faceta da escravidão?
215
CAPÍTULO IV - NA PRAÇA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E
SÃO BENEDITO: REVIVENDO MARCOS HISTÓRICOS
4.1 O nascer de um templo religioso: Igreja Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito
234
4.2 Uma nova presença popular da Igreja do Rosário na década 80 no
cenário político autoritário
242
CONSIDERAÇÕES FINAIS
253
REFERÊNCIAS
263
ANEXOS
288
LISTA DE FOTOS
Foto l - Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito Cuiabá/MT. (Após o restauro).
Foto 2 - Flor que porta ao centro a relíquia de S. Benedito.
Foto 3 - Nicho de devotos de S. Benedito.
Foto 4 – Imagem de S. Benedito.
Foto 5 - Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito Cuiabá/MT.
Fotos 6 e 7 – Brasil turismo. Vista aérea de Cuiabá Em destaque Igreja S. Benedito (16, 06)
Foto 8 – Livreto da Festa de S. Benedito 1981.
Foto 9 – Tríduo de S. Benedito.
Foto 10 – 4º. Dia da Festa de S. Benedito.
Foto 11 – Livreto da Festa de S. Benedito 1982.
Fotos 12, 13, 14 e 15 - Festa de S. Benedito.
Foto 16 - Seu Nono e sua esposa dona Chica.
Fotos 17, 18 e 19 – Imagem do santo conservada em família.
Foto 20 - Missa na cozinha de S. Benedito, durante o restauro.
Foto 21 - 1ª. Missa na terça-feira dentro da Igreja após o restauro.
Fotos 22 e 23 - O interior da capelinha dedicada a S. Benedito das curas após o restauro.
Foto 24 - Vista da lateral mais baixa da estrutura que mostra a ala dedica a S. Benedito.
Foto 25 - Interior da nave central da Igreja N.S. do Rosário e S. Benedito, após o restauro.
Fotos 26 e 27 – Missa na madrugada do 2º. dia do tríduo.
Foto 28 - Encontro dos devotos com S. Benedito após a missa do tríduo.
.
Fotos 29, 30, 31, 32, 33 e 34 - Devotos entrevistados. (dona Juja, seu Geraldo, dona Helena
,seu Miguel, dona Sebastiana ao lado de esposo e seu João Grosso.
Fotos 35 e 36- Procissão de entrada da Festa de S. Benedito.
Foto 37 – No tríduo da Festa seu Geraldo conduziu o Círio Pascal até o altar.
Fotos 38, 39, 40, 41, 42 e 43 – A grande procissão de S. Benedito.
Fotos 44, 45 e 46 – Retorno da procissão à Praça do Rosário.
Foto 47 - O encontro do devoto com o santo após a procissão.
Foto 48 - Homens de azul e branco - carregadores do andor.
Foto 49 - Terreiro em homenagem a S. Benedito.
Fotos 50, 51 e 52 – Cartazes anunciando que é tempo de Festa.
Foto 53 – Descida do Mastro, término de um reinado e começo do outro.
.
Foto 54 - Reinauguração da Igreja de N. S. do Rosário e S. Benedito.
Foto 55 - Parede interna da Igreja feita de taipa socada.
Fotos 56, 57 e 58 – Fiéis peregrinam com as imagens.
Foto 59 – Encontro das imagens dos dois santos.
Foto 60 – Peregrinos no ônibus em viagem pelas comunidades rurais.
Fotos 61 e 62 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades.
Fotos 63 e 64 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Foto 65 – Peregrinação dos festeiros nas comunidades rurais.
Foto 66 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Fotos 67, 68, 69 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Foto 70 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Foto 71 – Momento de descontração e do lanche.
Fotos 72, 73, 74 e 75 – Visita na última comunidade, já à noite.
Fotos 76 e 77 – Devotos em peregrinação na zona urbana.
Fotos 78 e 79 – Peregrinação das imagens de uma comunidade urbana a outra.
Foto 80 – Encontro dos devotos com o santo na peregrinação
Foto 81 – Bandeira de S. Benedito.
Foto 82 – Visita dos devotos com a bandeira.
Foto 83 – Visita da bandeira ao Palácio Paiaguás.
Foto 84 – Bandinha acompanhando o tríduo
Foto 85 – Devotos trabalhando na cozinha de S. Benedito.
Foto 86 – Devotos trabalhando na cozinha de S. Benedito.
Fotos 87 e 88 – Devotos trabalhando na cozinha de S. Benedito.
Foto 89 e 90 – Devotos trabalhando na produção da paçoca.
Fotos 91 e 92 – Devotos trabalhando na produção da paçoca
Fotos 93, 94, 95 e 96 – Jantar servido logo após a missa.
Fotos 97, 98, 99, 100 e 101 – Chegada dos fiéis para a missa da madrugada.
Foto 102 – Missa de madrugada no 1º. Dia do Tríduo.
Foto 103 – Foto do cartaz da Campanha da Fraternidade 2006.
Fotos 104 e 105 – Momentos de manifestação social na missa do tríduo.
Fotos 106, 107, 108 e 109 – Encontro dos devotos com o santo após o tríduo.
Fotos 110 e 111 – Rei e rainha da Festa colocam a coroa do santo na cabeça dos fiéis.
Fotos 112 e 113 - Reza Cantada puxada por dona Ana.
Foto 114 - Coleta das oferendas na missa do tríduo.
Fotos 115, 116 e 117 – Segundo dia do tríduo. Os devotos se vestem de amarelo.
Fotos 118, 119 e 120 – 2º. Dia do Trído, à direita Juizinha de Ramalhete.
Foto 121 – Cartaz do 3º dia do Tríduo.
Fotos 122 e 123 – Encontro dos devotos com santo na Praça do Rosário.
Foto 124 – Devotas servem o jantar durante o tríduo de S. Benedito.
Fotos 125 e 126 – Apresentação cultural no palco 1 da Festa.
Fotos 127 e 128 – Participantes da Festa durante a noite.
Fotos 129, 130, 131 e 132 – Participantes da Festa durante a noite.
Fotos 133 e 134 – Início de um novo reinado e descida do mastro na última terça-feira do mês
da Festa.
Fotos 135, 136 e 137 – Encontro dos dois reinado e descida do mastro na última terça-feira do
mês da Festa.
Fotos 138, 139 e 140 – Descida do mastro na última terça-feira do mês da Festa.
Foto 141 – Insígnias de S. Benedito.
Foto 142 – Livreto da Festa de S. Benedito 2005.
Foto 143 – Livreto da Festa de 2006.
Foto 144 - Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito Cuiabá/MT, 1771-1780, 1910,
1950-1959 e 2006.
Fotos 145, 146, 147 e 148 – Encontro dos devotos com as imagens de S. Benedito na Igreja
do Rosário.
Fotos 149, 150 e 151 – Encontro dos devotos com a imagem de S. Benedito na Praça do
Rosário.
Foto 152 – Imagem de S. Benedito na ala central da Igreja do Rosário.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ACRIMAT - Associação dos Criadores de Mato Grosso
AMAM - Associação Mato-Grossense dos Magistrados
AME – Associação Mato-Grossense de Estudantes
CPP- Conselho Paroquial Pastoral
CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
DCE – Diretório Central de Estudantes
GPMSE- Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação
IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPESP - Instituto Pastoral de Educação em Saúde Popular
NDIHR - Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional
NEPRE - Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Relações Raciais e Educação
N.S.R. - Nossa Senhora do Rosário
PADCT - Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
S.B. - São Benedito
RESUMO
Este trabalho é fruto de uma pesquisa que se situa na área de Educação entrelaçada à de
Movimentos Sociais. Seu objeto de análise está focado na Festa de São Benedito, evento que
ocorre anualmente em Cuiabá, no Estado de Mato Grosso. Trata-se de uma Festa religiosa e
centenária, considerada um dos movimentos sociais que, mediante o seu compartilhar de
ações, contribuem com o desenvolvimento da dimensão educacional dos sujeitos partícipes e,
por conseguinte, promovem autonomia e solidariedade, elementos centrais da cidadania. A
pesquisa foi desenvolvida no espaço da igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito,
local onde a Festa é realizada, quase três séculos. Foi importante compreender as relações
educacionais que se dão entre espaços sociais e atores populares mediante o seu protagonismo
sociorreligioso. Os dados foram coletados mediante as técnicas de entrevistas semi-estruturas,
observações, questionários e diversos documentos bibliográficos. Segundo os registros do
livro Tombo, cerca de dez mil devotos provenientes do Estado de Mato Grosso participam do
evento, anualmente. As análises dos dados encontrados aconteceram com base em uma
concepção que compreende a educação como devir ontológico, em que os sujeitos, ao
vivenciá-la, são aprendizes, ensinantes e construtores de sua própria humanidade, mediante
interlocuções com os outros, demandando relação epistêmica, ética, estética e pluralidade
política (aberta). Por este veio de análise, a educação não tem uma forma predefinida, única; é
no seu movimento, em diálogo com o tempo histórico e com as condições concretas, que o
aprendizado se define de forma dinâmica e dialógica. A fenomenologia de Merleau-Ponty
(1999), no que tange à temporalidade, a educação emancipatória de Paulo Freire (1987; 1999)
e a “descrição densa” de Clifford Geertz (1989; 1998) contribuíram para o estudo. Também
foram de grande ajuda os conceitos básicos de Rita Amaral USP (1996; 1998) sobre a festa
e sua significação no país. Cuiabá, colonizada por brancos portugueses marcados por uma
singular cultura européia periférica de catolicismo popular e devotos/as do santo negro,
possibilitou que se congregasse na sua singularidade religiosa uma rica diversidade com forte
representação simbólica que se explicita nos festejos, onde a cada ano conflitos raciais são
atualizados e revividos, acenando que a aparente harmonia mal esconde a luta por liberdade,
livre expressão e reconhecimento. Os resultados apontam que a Festa constitui manifesto
público afirmativo da cultura do povo negro, mestiço e dos empobrecidos que, ao “festarem”,
autoproduzem (autopoiéses) as raízes de sua identidade afro-brasilíndia dada à forte presença
negra e à etnia bororo em Cuiabá.
Palavras-chave: Educação. Movimentos Sociais. Festa. Temporalidade.
ABSTRACT
This paper is the fruit of a research situated in the area of Education interlaced with the area
of Social Movements. The object of its analysis is focused on the feast of Saint Benedict, an
event occurring each year in Cuiabá, State of Mato Grosso. It is a centenary religious feast,
considered as one of the social movements which, by the sharing of actions, contributes to
develop the educational dimension of its participants and, consequently, promotes autonomy
and solidarity, the central elements of citizenship. The research has been developed within the
space of the Nossa Senhora do Rosário and o Benedito churches, the places where this
feast is being held for more than three centuries. It was important to understand the
educational relations occurring between social spaces and popular actors through their socio-
religious protagonism. The data were collected through the techniques of semi-structured
interviews, observations, questionaries and various bibliographical documents. According to
the records of the Tombo (register of charters) book votes coming from the State of Mato
Grosso take part on that event annually. The analysis of the data found were conduced with
basis on a conception understanding Education as an ontological duty in which the subjects,
by experiencing it, turn into apprentices, teachers and constructors of their own humanity,
through the interlocution with other people, demanding epistemic, ethic, esthetic relations and
(open) political plurality. By this means of analysis, Education has not a sole, predefined
form; it is by its movement, in dialogue with the historical time and the concrete conditions
that the learning is defined in dynamic and dialogic form. The phenomenology of Merleau-
Ponty (1999), in what regards temporality, the emancipating education of Paulo Freire (1987,
1999) and the “dense description” of Clifford Geertz (1989, 1998) contributed to the study.
Also of great help were the basic concepts of Rita Amaral (USP, 1996), 1998) about that
feast and its significance within the country. Cuiabá, colonized by Portuguese white people
marked by a singular peripheral European culture of popular Catholicism and devoted to the
black saint (Benedict) allowed, in its singularity, for the congregation of a rich diversity with
strong symbolic representation explicit in thet festivities, where each year the racial conflicts
are updated and revived, indicating that the apparent harmony barely conceals the fight for
liberty, free expression and acknowledgment. The results show that the feast constitutes an
affirmative public cultural manifest of the black, miscigenated and impoverished peoples,
which, in the course of such festivities, auto-produce (autopoiesis) the roots of their Afro-
Brazilian-Indian identity, due to the strong black and Bororo ethnic presence in Cuiabá.
Key words: Education. Social Movements. Feast. Temporality.
INTRODUÇÃO
Fazer uma pesquisa, tendo por objeto de estudo a Festa de S. Benedito,
principalmente quando procuro estudá-la como espaço e tempo oportuno para o aprendizado,
pode parecer curioso. Como num sobressalto, perguntaram-me: afinal, o que esta Festa tem a
ver com Educação?
Educação de banco escolar, livros didáticos, lousa, horários, professores e
alunos uniformizados ou não, parece que muito pouco. Ao contrário, para alguns viajantes
estrangeiros dos séculos XVIII e XIX e outros tantos intelectuais, a festa lembrava ócio sem
regras, lazer livre de convenções, barulhenta, um tempo improdutivo e de fuga da realidade.
Tempo modernamente concebido como de alienação. Eduardo Hoornaert et al. (1992)
afirmam que todas essas dimensões e dinamismos se revelam por ocasião da festa. Ora,
acontece que o enfoque dado na historiografia brasileira à festa e à cultura popular, em geral,
é condicionado pelos relatos de visitantes estrangeiros que aportavam esporadicamente no
Brasil, sobretudo nos portos de Salvador, Recife e Rio de Janeiro durante os séculos XIX e,
principalmente, XVIII. O “lugara partir do qual os visitantes estrangeiros descrevem a festa
brasileira é o iluminista, da Europa do Norte. Estes protagonistas viajantes tomados por uma
cultura exterior à nossa tinham dificuldades para entender a vida religiosa mais exuberante
tanto da Europa do Sul como da América Latina. No nosso caso, o Brasil.
Para discordar ou concordar e quem sabe manter uma interlocução com os
nossos visitantes e intelectuais, é que me atrevi a entrar no mundo no qual inseparavelmente
encontra-se o sagrado e o profano da Festa articulados. Estranho é falar que, num mesmo
espaço, seja possível conviver com dois mundos, onde nenhum dos dois pareça estranho ao
festante, nos quais e para os quais essa separação é meramente formal. Ninguém vive
dissociadamente dimensões sagradas e do cotidiano, dimensões de educação formalizada e
educação socializadora do cotidiano, as quais também não passem por dimensões de crença.
Esta pesquisa tem como foco de análise a Festa de S. Benedito. Foi
desenvolvida no espaço da Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, sediada em
Cuiabá, Mato Grosso, no período de 2005 e 2006, cujo recorte temporal investigado remete
aos anos de 1980 a 2006, período que, segundo relatos escritos e orais, pontuou a década de
80 como momento cósmico, de fortes mudanças na estrutura organizativa e celebrativa da
Festa.
Pretendo com esta investigação compreender o sentido da Festa de S.
Benedito, num contexto cuiabano intercultural, quando emerge, reiteradamente, uma
simbologia espaço-temporal de diáspora que nega e afirma, bem como produz e reproduz,
educacionalmente e de forma coletiva, identidades que carregam interesses contraditórios do
ponto de vista econômico, simbólico e político.
Os estudos realizados possibilitaram compreender a Festa como estratégia de
educação e formação para a cidadania. Ela, de diversas formas, ensina aos festantes um
aprendizado que tem a ver com seu próprio cotidiano, sua participação e atuação social, seu
estar no mundo. Dentro desse espaço, chamo esse aprendizado via Festa de ações educativas
socializadoras compreendendo que é esse o papel da Educação, seja ela formal ou não, de
estabelecer diálogo comunicativo dos seres humanos entre si, com os outros e com o mundo,
de forma a fazê-los membros de sua sociedade, integrando-os, homens e mulheres, no seu
meio social e cultural como atores e protagonistas de sua própria cidadania.
No aprendizado efetivado nesses espaços, família, igreja e rua convivem com a
produção do sagrado que sustenta os vínculos destas relações, estreita os elos espirituais de
todos com todos, inclusive com o santo da devoção, derivando disso uma troca estabelecida e
uma continuidade geradora do compromisso muitas vezes assumido como legado de herança
de pais para filhos. A devoção e suas práticas possuem muitos aspectos formalmente não-
religiosos, a submissão aos mais velhos, o acolhimento e a reiteração da tradição familiar
local, a circunscrição dos novos devotos na esteira da visão do mundo, dos valores e de
deveres contraídos com a comunidade; o compromisso com a vida, com o respeito aos outros,
com o reconhecimento dos mais pobres, e de justiça distributiva, valores estes que são
reconhecidos pela sociedade e ligados a “pessoas de bem”.
Para entender o que aqui acontece no sentido de aprendizagem não-formal, mas
da convivência, apoio-me na visão e percepção do antropólogo Brandão (2002 a):
[...] todo acontecimento da educação existe como um momento motivado
pela cultura. Mas toda cultura humana é um fruto direto do trabalho da
Educação. [...] aprendemos na e da cultura de quem somos e de quem
participamos (p. 141, grifos do autor ).
Apoiada em Brandão, no que se refere à Festa, concebo-a como tempo e
espaço de aprendizagem. O aprender na Festa pode estar misturado com as coisas da vida e se
apresentar como cultura do cotidiano, não do rotineiro, mas como movimentos que transpõem
para algo mais, os quais fazem com que os envolvidos valorizem o que aprenderam e queiram
fazer dela a sua experiência, o seu aprendizado. O aprendizado aqui está grávido de
continuidade.
Conforme esclarece Rita Amaral (1998), o festejar brasileiro, por suas
características peculiares, pode ser considerado até mesmo contrariamente à idéia de
“alienação” que envolve uma dimensão do aprendizado da cidadania apropriada de sua
história por parte do povo. Teço, assim, um olhar no processo de relação do campo simbólico
da Festa adentrando nas relações de força, ordem, submissão, libertação, educação e
cidadania.
Espaço e tempo: chão da pesquisa
Foto 5 - Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito Cuiabá/MT.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Fotos 6 e 7 – Brasil turismo. Vista aérea de Cuiabá. Em destaque a Igreja de S. Benedito ( 16, 06).
Acervo Cândido Mariano, [21--].
A pesquisa foi desenvolvida no espaço da Igreja Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito, em Cuiabá, Mato Grosso, lugar no qual a Festa de S. Benedito é realizada
tradicionalmente quase três séculos. Sendo uma Festa da tradição da cuiabania, fui
entendendo, com o auxílio de fontes documentais e também de relatos atuais dos devotos
desse rito cuiabano, que a Festa nasceu em terras mato-grossenses juntamente com a
conquista
1
. E o tempo desta Festa, em Cuiabá, é atípico. Segue o calendário da Festa do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá, atualmente celebrado na Igreja Matriz, a Catedral
Metropolitana.
A Festa veio, provavelmente, com as levas de migrantes que, pouco a pouco,
ocuparam a região que hoje é denominada Mato Grosso. Estes se instalaram no centro de
maior circulação de pessoas e da exuberância do ouro, ou seja, em Cuiabá. Essas levas de
migrantes provenientes dos quatro cantos do país e tantos outros grupos de estrangeiros,
especialmente portugueses, certamente trouxeram em sua bagagem diferentes costumes, ritos
1
Em Cuiabá chamavam-se conquistas as invasões de territórios ameríndios.
e jeitos peculiares de ser e viver. A Festa de S. Benedito reflete certa síntese cultural dos
vários grupos étnicos, resultado da mestiçagem que vai revelando as características próprias
do povo mato-grossense: afro-ameríndio, negros trazidos para preação de índios, numa terra
da etnia bororo, com suas diversas denominações, paiaguá, guaicuru, chapadense e tantos
outros que ocupavam desde o atual Estado de Mato Grosso do Sul, nos limites do município
de Camapuã, prolongando-se ao norte até próximo ao que hoje chamamos Nortão, a mil e
duzentos quilômetros acima de Cuiabá. A Festa de S. Benedito evidencia a inclusão de
elementos culturais advindos do branco e do negro, presença do modo de sentir bororo, na
grande maioria dos seus devotos. Cuiabá expressa uma certa síntese dos diversos segmentos
culturais vivos em Mato Grosso, através do folclore, literatura, artes plásticas, teatro, música,
artesanato ou mesmo nos apetitosos pratos da tradicional culinária cuiabana, os quais recebem
especial atenção, como referência e chamariz nas Festas de S. Benedito.
É nesta voragem de mergulho numa humanidade singular, cuiabana, mestiça,
sincrética, que se derrama no corpo e na alma, que o processo de criação de humanidade flui:
processo educacional profundo, artesanal, que supera as linhas de produção em série da
educação escolar, encharca o cotidiano das casas, dos povoadores e emerge no espaço e
tempo da Festa.
Para tanto, fiz um recorte temporal mais recente da Festa, baseada num breve
passeio nos relatos históricos da sua origem em Cuiabá. Esse contato levou-me à década de
80 do século passado e posteriormente saltei para o ano de 2005 e 2006
2
, quando lanço o
olhar para dar início à construção etnográfica mais contemporânea da Festa, sem perder de
vista todo o processo vivido pelos devotos, principais protagonistas dessa tradição cuiabana.
O recorte etnográfico, portanto, será o da Festa de 2006, porém a década de 80
foi o ponto de partida mais significativo da sua história. Dados encontrados pela pesquisa
indicam que, a partir dessa data, a Igreja Nossa Senhora do Rosário “mexeu” com o cenário
social da cuiabania, trazendo relevantes contribuições no que tange ao direito e à cidadania,
em face do cenário político nacional, com o longo desfecho da ditadura militar e a penosa
reconstrução do Estado de direito, ainda em construção.
Estar no lugar onde a Festa se manifesta, ouvir os relatos orais oferecidos pelos
devotos da tradição e manusear a documentação guardada no arquivo da Igreja ou nos acervos
2
Elegi a Festa de 2005 e 2006 como objeto empírico para desenhar a etnografia, mas também fiz um passeio no
tempo histórico da Festa com a ajuda da memória dos devotos e dos relatos históricos do Livro Tombo da
Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito. Isso possibilitou um diálogo não-linear com a história da
Festa.
do município e do Estado possibilitou-me entender que a Festa nasceu com os excluídos
negros não-alfabetizados, aqueles que não gozavam de nenhuma representatividade social, e,
com o passar dos anos e mediante certas alianças, se transformou também numa Festa da elite
cuiabana que, devotamente, participa do evento oferecendo donativos como integrante
reconhecida, cujos membros são eleitos, inclusive, como festeiros centrais, na condição de
reis e rainhas da Festa.
Originalmente a Festa nascida da devoção ao santo negro constitui a expressão
de fé da comunidade cuiabana e mato-grossense negra, pobre e simples.
Apesar do preconceito de raça e classe operante no Brasil, encontrei na Festa
devotos brancos descendentes de portugueses, alemães, italianos junto com a população negra
e indígena, bem como membros da elite cuiabana festejando lado a lado com os excluídos
socialmente. Todos celebram a devoção a um santo que não admitia racismo e discriminação,
num mesmo tempo e num mesmo espaço.
Utilizei a vertente da fenomenologia de Merleau-Ponty (1999) no que tange à
temporalidade. O conceito de educação emancipatória foi buscado em Paulo Freire (1997;
1999) e a descrição densa, em Clifford Geertz (1998; 1989). Também recorri à etnografia
realizada pela Professora Maria de Lourdes Bandeira de Lamônica Freire (UFMT) em Vila
Bela da Santíssima Trindade (1988) e aos conceitos básicos de Rita Amaral, USP (1996;
1998) sobre a festa e sua significação no país.
A pesquisa está organizada em quatro capítulos, tratados como dobras que
carregam sentidos e significados que teceram as tramas da história da Festa.
Essa
organização
nos permitiu fazer uma tecitura
3
da cultura popular na Festa de S. Benedito em Cuiabá.
No primeiro capítulo, Educação e produção de humanidades: quem ensina,
o que se ensina e quem aprende com a Festa?,
apresento a Festa como um tempo e espaço
de aprendizado, de trocas de saberes e de construção de humanidades em vista da cidadania.
Relato nesse mesmo capítulo a memória biográfica da vida de S. Benedito, o santo que os
cuiabanos adotaram como protetor da cidade, e adentro a história da vida de um homem
3
Tomei a palavra Tecitura no sentido de fios que se cruzam formando um tecido que se desdobra em pequenas
dobras. Todavia, no dicionário Aurélio, não encontrei registrado Tecituras com “c”, mas com “ss” de tessitura.
Por isso apoiei-me no dicionário de Laudelino Freire (1957, 5 v.) que registrou o vocábulo Tecitura, s. f.
Conjunto dos fios que se cruzam com a urdidura. E no dicionário Houaiss (2001) que também apresenta vários
significados para este verbete.
aparentemente comum, nascido na bela Itália, filho de pais escravos provenientes da África
que, em vida, foi admirado e tido como santo. Após a sua morte foi reconhecido oficialmente
como o primeiro santo negro da Igreja Católica.
No segundo capítulo, São Benedito, devoção da cuiabanidade, exponho o
tempo da Festa. Embora não seja antropóloga, trabalhei dentro dos evidentes limites de uma
tecitura etnográfica da Festa de S. Benedito em Cuiabá, porém sem descrevê-la do ponto de
vista diacrônico e linear, mas estabelecendo uma interlocução com o seu tempo histórico em
diálogo com rios entrevistados. Assim mostro que a Festa de S. Benedito em Cuiabá é um
movimento festivo circular carregado simbolicamente de continuidades vivas e atualizadas
pela tradição desse povo devoto do santo negro.
No terceiro capítulo, “Festar” na origem dos tempos, estabeleço um diálogo
entre a vida de S. Benedito e a celebração de sua Festa, tendo como foco o povo que o festeja,
adentrando-a na busca dos sentidos e significados que se expressam na Festa que acontece na
Praça do Rosário e S. Benedito. Dialogo com o sagrado e o profano da Festa no espaço da
Praça. Investigo ainda as origens e as festas como eram celebradas antes, compreendendo que
ela se ressignifica, se reitera e se refaz a cada momento próprio da história, em diálogo com o
sentido do sagrado e do profano, em cada época. Assim procuro entender que o povo celebra
o tempo todo a vida, preserva o tempo e o espaço da Festa, demarca o espaço da Festa e o
distingue dos demais espaços da cidade. Foi difícil, embora não fosse o eixo central,
compreender as Irmandades, posto que a Festa de S. Benedito estava nas mãos delas. As
Irmandades eram formadas por grupos de pessoas leigas, organizadas, que legalmente
assumiam o cotidiano de vida das capelas, constituindo, de fato, o poder local religioso e
social. Em Cuiabá, essas Irmandades foram responsáveis pela Igreja do Rosário e S. Benedito,
uma vez que os padres, à época nessa região, constituíam-se em um número pouco
expressivo, e a Igreja do Rosário não era considerada ainda Paróquia, mas sim uma capela de
devoção.
No quarto capítulo intitulado Na Praça de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito: revivendo marcos históricos, faço um rápido mergulho no surgimento dos
primeiros templos religiosos em Cuiabá com acento na Igreja do Rosário e S. Benedito
considerada a única igreja setecentista que preservou suas características originais, mas que
não ficou presente no seu tempo histórico. Ganhou visibilidade local, estadual e nacional
como espaço articulador, organizador e defensor dos movimentos sociais de Mato Grosso.
Esta pesquisa de caráter científico é relevante, pois faz emergir a festividade
dentro do espaço que compreende o Estado de Mato Grosso e se soma às inúmeras pesquisas
do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) da UFMT, que estuda
espaços e atores educacionais populares sob o ponto de vista da cidadania. Finalmente se
justifica pela importância da Festa de S. Benedito, em Cuiabá, se constituir como parte
integrante no cenário social, espaço do tempo vivenciado por diversas significações que
mobilizam a população cuiabana.
Vários estudos têm sido realizados sobre esta Festa. Entretanto o enfoque
utilizado neste trabalho talvez seja diferenciado, pois salienta mais o lado subvertedor e a
memória perigosa de S. Benedito do que a ideologia do congraçamento de todos, a qual dilui
intencionalmente ativos processos racistas em curso.
CAPÍTULO I - EDUCAÇÃO E PRODUÇÃO DE HUMANIDADES: QUEM
ENSINA, O QUE SE ENSINA E QUEM APRENDE COM A FESTA?
Foto 8 – Livreto da Festa de S. Benedito 1981.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
As pessoas e suas culturas se deterioram no isolamento,
porém nascem ou renascem em contato com outros homens e
mulheres de outra cultura [...] Se nós não reconhecermos
nossa humanidade nos outros, nós não reconheceremos a nós
mesmos (FUENTES, 1992 apud MACEDO, 1996, p. 109).
1.1 Nas tecituras e trilhas percorridas: fundamentação teórica
A pesquisa exige parcerias, diálogo com outros autores, sujeitos que nos
precederam. Assim foi com esta pesquisa, busquei um imprescindível e ora surpreendente
caminho para a sua elaboração cuidadosa. E foi nessa interlocução com o outro ou os outros
que o aprendizado fluiu e se movimentou continuamente ao tecer as tramas deste trabalho.
Nesse movimento cíclico contínuo e descontínuo no qual é localizada a Festa,
objeto desta pesquisa, verifiquei que ela não se constituiu como um acontecimento que é
“congelado” pelo tempo, e, no seu tempo de realização, “descongela-se” e faz emergir as
tramas conflitivas que se põem em curso na sociedade. O ritual que culmina na Festa
pesquisada é precedido de um tempo contínuo e vivenciado que permanece ligando uma Festa
na outra.
O importante aqui é dizer que, para esta pesquisa científica, foi preciso eleger
alguns teóricos que melhor fornecessem conceitos e processos de abordagem que permitissem
a análise e a compreensão sobre a Festa em epígrafe.
Nesse caminho encontrei na fenomenologia de Merleau-Ponty (1999) os
conceitos teórico-metodológicos de tempo e temporalidade aos quais recorro para dialogar
com o tempo da Festa. A leitura de obras do mesmo autor me abriu um olhar interpretativo
numa perspectiva heurística a iluminar a compreensão da Festa de S. Benedito a partir do que
consegui capturar, vislumbrando um tempo que é artefato humano que põe em curso o próprio
coração humano e suas tramas.
Verifiquei ainda que Merleau-Ponty, por sua maneira de dialogar com a
pesquisa das coisas vividas, abole verdades fechadas e o pensamento idealista. Ele como que
põe a fenomenologia de no mundo em construção carregado de contradições que são
estabelecidas pelo nosso próprio olhar, donde pesquisador e pesquisado mutuamente se
constituem no processo. Dessa forma, para ele, o conhecimento dinâmico, progressivo,
sempre inacabado, não permitirá um saber absoluto e terminal.
Compreendo que a busca de significado da experiência a partir desse olhar será
sempre o fim último da pesquisa fenomenológica, e toda interpretação será sempre aberta e
susceptível de poder ser superada sob outros olhares. Como ensina Merleau-Ponty (1963, p.
71):
Pensadores contemporâneos admitem prontamente que o mundo sensível e a
consciência sensível deverá ser descrita em termos do que é original para
eles. Mas tudo continua como se estas descrições não afetassem nossas
definições de ser e nossa subjetividade.
Na busca de compreensão, procurei um olhar aberto a partir de uma dialética
cíclica que Merleau-Ponty (1984) entendia como “a boa dialética”.
Educação, cultura popular e cidadania me levaram a Paulo Freire, educador
brasileiro com interlocução na fenomenologia e cujo pensamento, registro e obras se
constituem como grandes instrumentos de luta pela libertação de homens e mulheres
oprimidos e colonizados, por dentro e em busca da autonomia e do protagonismo de suas
vidas e país.
Nesse caminho solitário da pesquisa, muitas vezes sentei e pensei a partir das
obras de Paulo Freire. Torres (1979, p. 6) foi referência para mim ao se referir a Paulo Freire:
Quem pretender seguir o itinerário intelectual de Freire se defrontará com
um conjunto de caminhos diversos, amalgamados numa estranha conexão.
Deverá transitar por textos filosóficos, mais especificamente gnosiológicos
ou, às vezes, epistemológicos. Deverá indagar-se sobre sociologia do
conhecimento [...] deverá considerar as implicações psicossociais do seu
método. Deverá opinar sobre o projeto educativo-pedagógico que Freire
postula sob o nome de ação cultural libertadora. Deverá, principalmente, em
seus últimos escritos seguir o fio condutor de suas reflexões sobre a união
dialética da liderança com as massas, os projetos de organização política do
oprimido, vistos à luz da ciência política. [...] E acrescentaria a prioridade
dada aos movimentos sociais como contexto político-educativos [...].
Associado a essa reflexão de Torres, ao pontuar a vida e o legado de Paulo
Freire, está também o alicerce no qual se pautaram as obras desse educador brasileiro, a
construção da democracia e da justiça social no contexto latino-americano e brasileiro, bem
representadas pela obra de Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”. Esta pesquisa procurou
entender a Festa de S. Benedito como paradigma e manifesto, à luz dos valores vividos pelo
santo, como direito ao reconhecimento social, à igualdade econômico-política, à diferença
étnica, à cidadania e à participação social.
No legado vivenciado como um homem público, Paulo Freire me ajudou a
pensar, ao assegurar que "[...] a educação é o fator mais importante para se alcançar a
felicidade". Felicidade do homem e da mulher que participa da roda da vida, que tem
consciência de sua própria existência e de sua condição e posição subordinada na cultura do
capital e contra a qual se rebela. É o que também pude encontrar na afirmação de Dalai Lama
a respeito da felicidade de que “[...] o próprio objetivo da vida é perseguir a
felicidade”(Bstan-‘DZIN-RGYA-MTSHO; CUTLER, 2000, p.13).
Na proposta de participação social popular de Paulo Freire, encontrei a
legítima possibilidade de criar e recriar espaços de trocas de saberes para além dos reservados
oficialmente, como os sistemas escolares, pois a felicidade é concreta, faz parte do
movimento da vida, revela o gosto de viver num cotidiano pleno de lutas, sentidos e
significados, redefinido pela luta por libertação e contra toda a forma de escravidão que avilta.
E a vida carece de sentidos e o aprendizado também. Como expressou Paulo
Freire, “[...] democratizar o acesso ao saber exige que a escola partindo da pitomba permite o
Ivo conhecer a uva” (apud SANTOS, 2000, p. 85). Uma educação que toma o chão cultural de
cada pessoa, educação localizada na raiz da cultura do educando para depois, exatamente
nesse diálogo com os de perto, conhecer os de longe. Partir do que se sabe para depois chegar
ao desconhecido.
Esse diálogo com o de perto, que é a realidade onde a escola está enserida,
provavelmente a ajudaa construir conhecimentos que façam sentido ou encontrem sentido
no cotidiano dos envolvidos, para depois ou concomitantemente abrir-se ao desconhecido, ao
distante. É o que tão bem nos esclarece Paulo Freire (1999, p. 84-85) a respeito do senso
comum:
O que não é possível é o desrespeito do senso comum; o que não é possível
é tentar superá-lo sem, partindo dele, passar por ele [...] subestimar a
sabedoria que resulta necessariamente da experiência sócio-cultural é, ao
mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca da presença de
uma ideologia elitista [...] essa ‘miopia’ que, constituindo-se em obstáculo
ideológico, provoca erro epistemológico.
Com isso a escola valorizará os conhecimentos prévios de seus educandos e
reverterá a idéia de ser ela um paradigma de produção e reprodução material em vista tão-
somente do mercado de trabalho.
Seguramente afirmo que é essa a educação transformadora, comprometida com
a vida que foi gestada nos 70 anos de vida de Paulo Freire, uma educação que foi capaz de
transformar aquilo que tocou em algo ainda melhor, a ponto de ele assegurar que:
Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério,
com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o
sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a
sociedade, sem ela tampouco a sociedade mudará
4
.
Baseada n
a consciência de uma Educação transformadora mais tempo
pensada, sonhada e vivida por Paulo Freire, busco tecer e interpretar as costuras e dobras
deste trabalho, num diálogo plural com autores que realizaram suas pesquisas enraizadas na
cultura local sem perderem de vista a realidade global como aporte imprescindível para uma
vida social significativa e emancipatória. Esse diálogo me levou até Clifford Geertz, onde
meu olhar buscou quiçá descortinar-se na mesma direção desses informantes, compartilhando
4
Um dos seus últimos textos redigido em abril de 1997 refletindo sobre a morte do índio Pataxó Galdino, pois
Paulo Freire morreria em 2 de maio de 1997.
de suas teias de significado e procurando reconhecer parte do mundo vivo e vivido. Como
ressalta o autor:
Acreditando, tal como Max Weber, que o homem é um animal suspenso por
teias de significação por ele próprio tecidas, vejo a cultura como sendo
essas teias, e a análise dela não como uma ciência experimental em busca
de leis, mas sim uma ciência interpretativa em busca de significados
partimos da mesma concepção ou sentidos (GEERTZ, 1991, p.VII).
A Festa de S. Benedito, uma expressão forte da cultura cuiabana, exigiu um
rico e fundamental diálogo com Clifford Geertz, para com ele me atrever a adentrar a
experiência dos atores envolvidos, percorrendo, assim, o sentido que suscita o humano que
festeja e que deixa a vida festejar, prenhe de uma cultura com forte traço popular.
Com Geertz, fiz uma observação mais apurada em cada dobra das tramas da
Festa e com ele fui desdobrando uma a uma para deixar capturar, de certa forma, a
experiência dos festantes ou a essência do que foi revelado ou, ainda, do que foi possível ver e
sentir, perfilando, como num filme, ao longo do contato direto que tive com a Festa.
Com esse olhar mais demorado e através de repetidas vezes poder fazer a
retomada do mesmo ponto observado anteriormente, fui compreendendo a importância da
descrição densa do fenômeno que Geertz tão bem salienta em seu trabalho como antropólogo.
E tal olhar não se constituiu de um único olhar, por isso a importância de voltar ao fenômeno
tal como ele apareceu, independentemente de qualquer idéia preconcebida.
Nas falas dos entrevistados e nas observações, encontrei elementos que
ilustraram os significados que foram construindo a pesquisa.
O olhar interpretativo que busquei fazer desta rica diversidade cultural que é a
Festa exigiu adentrar o conceito de cultura. Para tanto, fiz um mergulho na antropologia
interpretativa de Clifford Geertz, a qual implicou uma descrição densa feita por uma
abordagem onde o autor busca, mais do que sentido, do que código, fazer uma interpretação.
Mantive, ainda, um diálogo com as obras de Renato Ortiz (1991; 2006) para compreender o
processo de mundialização da cultura na qual a Festa está inserida.
O interpretativismo geertziano, segundo Passos (1998, p. 315) esclarece, é
[...] uma concepção teórica que implique em procedimentos metodológicos a
ela ligados organicamente. Resolve, pois, a seu nível o problema teórico-
prático. Mais ainda. Não somente sublinha a necessidade de estarem
articuladas teoria e prática, mas equipa instrumentalmente o pesquisador
com os procedimentos adequados ao campo.
Para essa feita, elegi a pesquisa etnográfica tendo a Festa de S. Benedito como
objeto, a ser descrita densamente, mas não de uma forma linear, pois a Festa por ela mesma já
é movimento. Como a Festa de S. Benedito até então não havia sido descrita densamente, foi
fundamental mostrá-la etnograficamente situando-a no tempo histórico até chegar à forma
como ela se apresenta atualmente.
Utilizei a etnografia, pois ela se constitui numa forma específica de
instrumento da Antropologia, que tem por fim o estudo e a descrição dos povos, sua língua,
raça, religião e manifestações materiais de suas atividades, sendo também a forma de
descrição da cultura material de um determinado povo. A referida palavra vem do grego
graf(o) e significa escrever sobre um tipo particular - um etn(o) ou uma sociedade em
particular. Dentro dessa proposta, é interessante saber que o investigador, antes de se ater a
um estudo mais sistemático, busca fazer o registro cuidadoso de todos os tipos de informações
dentro do horizonte do outro, o desconhecido. A etnografia geertziana bebe, sobretudo, na
fonte da linguagem como representação, e desta especificamente a fala, onde os sentidos
adquirem múltiplos coloridos e expressam a seu modo, singularmente, mundos antes não
visualizados por completo.
Geertz ajudou a entender o que é praticar etnografia dentro do campo da
pesquisa:
[...] praticar etnografia não é simplesmente estabelecer certas relações,
elencar informantes, escrever ou, ainda, transcrever textos, levantar
genealogias, mapear campos, manter um diário.[O autor diz que] [...] Mas
não são essas coisas, as cnicas e os processos determinados, que definem
o empreendimento, o que define é o tipo de esforço intelectual que ele
representa: um risco elaborado para uma descrição densa (GEERTZ, 1989,
p. 15).
Dessa forma fui compreendendo que a maior preocupação da etnografia é obter
uma descrição densa. A etnografia é a escrita do que se pode entender: do campo visível e
com o olhar fenomenológico, captar o não dito, o campo simbólico permeado de significados.
Por isso foi percebido que essa descrição proposta pela visão etnográfica dependerá
grandemente das qualidades de observação do observador. Finalmente, de sua sensibilidade
diante do esforço de buscar lugares simbólicos, imagens sintéticas que permitam
circunscrever o mínimo no máximo, o micro no macro.
Etnografia se faz em campo, diz Geertz. Foi imprescindível a observação direta
do objeto pesquisado dentro de um período de tempo significativo para captar as formas
costumeiras dos diversos grupos ou pessoas que em particular vivenciaram a Festa, pois a
etnografia tem por objetivo estudar padrões, estilos, costumes, rituais que de certa forma em
uma dada cultura fazem parte das manifestações humanas e são explicitadas na sua rotina ou
cotidiano vivo.
Nas trilhas deste trabalho, busco meios para realizar uma interpretação do
tempo que precede, inaugura e culmina na Festa. O tempo não do relógio, regulado, guiado,
mas o tempo da Festa, como ela se manifesta.
Dessa forma mergulho no tempo da Festa para descrevê-la e não meramente
explicá-la. Carmo (2000, p. 22) me ajudou a entender este aspecto:
[...] explicar implica interferir no fenômeno, introduzindo nele nossas
categorias lógicas. Assim explicar é um ato artificial, enquanto descrever
supõe abordar o fenômeno da perspectiva do homem que vivência tal como
ele se apresenta à consciência.
A trilha da elaboração foi intensa e longa, mas como foi dito o a percorri
sozinha, pois a cultura da Festa e tudo que nela emana exigiram cautela, paciência, reverência,
olhar revisitado. Por isso contei, além dos teóricos e dos entrevistados/devotos, com a
orientação dos professores Luiz Augusto Passos (UFMT) e Rita Amaral (USP), como co-
orientadora.
O trabalho foi desenvolvido seguindo os caminhos da pesquisa etnográfica na
condição de caminho instrumental, posto que não seja antropóloga, e da pesquisa qualitativa,
com ênfase na proposta descritiva e interpretativa numa visão fenomenológica
merleaupontyana. O trabalho resultou num ensaio marcado por diálogos mesclados pela visão
de diferentes autores.
A pesquisa qualitativa situou a importância do objeto desta pesquisa, como
esclarecem Bogdan e Biklen (1994, p. 49):
Na pesquisa qualitativa, a fonte direta de dados é, então, o ambiente natural,
constituindo o investigador o instrumento principal. Nesse caso, os
investigadores qualitativos freqüentam os locais de estudo porque se
preocupam com o contexto. Entendem que as ações podem ser melhor
compreendidas quando são observadas no seu ambiente habitual de
ocorrência. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo
do que simplesmente pelos resultados ou produtos. Como é que as pessoas
negociam os significados? Como é que se começaram a utilizar certos
termos e rótulos? Como é que determinadas noções começaram a fazer parte
daquilo que consideram ser o ‘senso comum’?
Imbuída da pesquisa qualitativa, consegui interpretar os dados recolhidos e
agrupá-los a partir de muitas informações coletadas, que se inter-relacionaram e ajudaram a
costurar o trabalho. Cheguei, portanto, no que se designa por teoria fundamentada (GLASER;
STRAUSS, 1967).
O processo de interpretação dos dados foi norteando o caminho que se
desencadeou no processo que fiz.
E é nesse processo que a visão fenomenológica explicou o significado que os
acontecimentos e interações tiveram para situações diversas no cotidiano dos festantes e
devotos, contribuindo numa tentativa de apreender o objeto estudado.
Com essa inter-relação desencadeada no processo da pesquisa, os
pesquisadores que utilizam a fenomenologia acreditam que “[...] temos a nossa disposição
múltiplas formas de interpretar as experiências, em função das interações com os outros, e que
a realidade não é mais do que o significado das experiências” (GREENE, 1978).
A experiência com e na Festa de S. Benedito aconteceu em meio a um rico
diálogo com a história da própria Festa, que ao longo dos anos passou por inúmeras
mudanças, tanto na sua estrutura religiosa como na parte físico-social.
Olhares Metodológicos
Interpretar essas experiências que emergem da Festa com seus significados
múltiplos, históricos, sociais, políticos, antropológicos, religiosos, foi o que procurei como
pesquisadora realizar. Focar o olhar na imensidão desse objeto estudado para aprender com os
que já viveram tais experiências, compartilhando o olhar como co-autores.
Com a colaboração de inúmeros devotos, fui dando conta da necessidade de
entrar no movimento da Festa para descrevê-la densamente. Eles foram relatando como se
estivessem lendo um livro de sua própria vida acerca de suas participações na Festa de S.
Benedito, como se chegassem à origem do próprio evento, circunscrito em suas vidas. A Festa
não era um acontecimento longínquo e exterior, falavam dela como se falassem de si próprios.
Com o andamento da pesquisa, fui entendendo que, para descrever ou
simplesmente falar dessa festividade dos cuiabanos, eu precisava como que descer no chão da
Festa, colocar os pés nessa realidade com mais freqüência e auscultá-la demoradamente, sem
pressa.
Essa escuta resultou de um envolvimento maior com o objeto pesquisado e
com a multidão dos devotos. Eu não era uma pessoa a mais, tornei-me um rosto conhecido
que, quando estava ausente em algum momento que lembrava o santo, logo alguém cobrava a
minha presença
Tudo que envolveu o objeto pesquisado foi tratado com respeito e atenção. Por
isso percebi que os devotos mais antigos foram como que permitindo a minha presença em
todos os espaços, sem olhares de desconfiança.
A abertura e a espontaneidade dos devotos e de todos que estavam implicados
com a Festa me conduziram a entrar no movimento festivo. Um rico universo de sucessivos
momentos de preparação dos quatro dias festivos.
Para coletar as informações percorri o caminho dos devotos. Iniciei
participando das missas da madrugada (5h) e da noite (19h) nas terças-feiras, a conhecida
missa do glorioso S. Benedito. Antes das missas e após, eu ficava observando o vaivém dos
devotos aos pés do santo, tanto dentro da Igreja como fora dela. Aproveitava, então, para
conversar com um e com outro. Sempre que era possível fazia uma visita na cozinha de S.
Benedito para conversar com as cozinheiras, principalmente com as devotas mais antigas e
com os festeiros.
No final da manhã ou da noite, registrava tudo que estava sentindo e o que
tinha ouvido e presenciado. Assim fui me aproximando dos devotos e chamando-os pelo
nome. Após esse “contato” no espaço da Festa, agendei com os devotos as entrevistas,
marcadas por inúmeras conversas na casa deles.
Nas casas dos devotos pude verificar a presença de S. Benedito em família.
Nelas, o santo tem um lugar reservado, geralmente na sala de visita, num nicho para devoção
familiar. No ambiente familiar encontrei S. Benedito cercado de muitos outros santos da
devoção popular.
O santo aparece de várias formas na vida da família: no nome de algum
membro da família, num nicho com a imagem do santo que, na maioria das casas, é colocado
na sala de visitas, na fita de promessas ou compromisso amarrado no braço, nas camisetas
com a estampa do santo e nas inúmeras invocações que aparecem nas falas dos entrevistados
colocando o santo como grande protetor, cuja história de vida muitas vezes acontece de cor na
boca do povo. Nesses momentos pude entender que a devoção está fortemente presente no
cotidiano da família devota.
Um pouco mais à vontade na casa do devoto, iniciava quase sempre com uma
conversa em torno da devoção para, posteriormente, chegar às entrevistas, feitas de forma
aberta, uma parte delas gravada, quando possível, outras apenas escritas, e grande parte do
material é fruto da minha observação. O encontro com os devotos não aconteceu somente em
suas casas, mas também no pátio da Igreja nas noites de terças-feiras, após a tradicional missa
de S. Benedito, degustando um prato típico cuiabano.
É preciso ressaltar que o passo mais interessante foi a coleta dos registros orais
por meio das entrevistas abertas feitas com os devotos de tradição mais antiga. Essa foi uma
experiência fascinante, ir à casa dos devotos, entrar no seu espaço familiar, ouvi-los.
Os momentos de maior relevância para a pesquisa foram registrados por meio
de fotografias e filmagens.
Com os devotos, subi várias vezes a colina do Rosário para chegar à imagem
de S. Benedito seguindo a programação dos preparativos da Festa e vivenciando, dia-a-dia
com os devotos, a festividade.
O santo foi levado nas 27 capelas da Paróquia, foram vários dias de
peregrinação com a imagem, de capela em capela rezando e convidando os paroquianos para a
Festa. Em seguida a bandeira tomou as ruas de Cuiabá, passou pelas lojas, famílias e
repartições públicas. Todos queriam tocar na bandeira, beijá-la e dar uma contribuição para a
Festa.
Foram vários meses carregando o santo e sua bandeira; à medida que o santo
peregrinava, mais e mais doações chegavam à cozinha ou na secretaria permanente da Festa.
O objeto pesquisado demandou várias leituras, assim houve momentos que me
colocava no espaço físico da pesquisa e, no outro, partia para a pesquisa empírica. Para tanto,
realizei um levantamento no acervo histórico da paróquia Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito. Infelizmente não foi possível encontrar nesses arquivos documentos sobre a
referida Festa, só alguns folhetos litúrgicos sobre ela e o estatuto de seu funcionamento, numa
evidência de que o principal arquivo da Festa não guarda sua memória.
Assim tive que recorrer com mais freqüência ao Instituto Histórico de Mato
Grosso, ao Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR) da UFMT,
ao Arquivo Público Estadual e a outras bibliotecas particulares onde se encontram preciosas
contribuições e menções às festividades em questão. Coletando, assim, registros de memórias
escritas, perscrutei documentos das Irmandades que permearam a Festa desde sua origem até
o tempo presente.
Nos dias mais próximos da Festa, pude acompanhar por meio de entrevistas
informais todo o processo de seu encaminhamento, ouvindo, fotografando e recolhendo
documentos e relatos dos festeiros e pessoas envolvidas, sobretudo aqueles que faziam parte
central da equipe promotora da Festa do ano 2006.
Assim, esclarecido o percurso acima enunciado acerca desta pesquisa, é
possível dar continuidade de forma mais aprofundada ao estudo dessa festividade.
Convido os leitores a conhecer mais detalhadamente o resultado desta pesquisa
que é fruto da contribuição da memória e vida do povo cuiabano, guardião dessa tradição e
cultura centenárias que vêm gerando humanidades e ensinando gerações.
1.2 De que educação se fala?
O grande papel da Educação, diante da cultura
de um povo, é revelar a seus educandos o
encobrimento da ideologia dominante que
tende à ‘reprodução de uma ordem social
globalizada’ (ORTIZ, 2006, p. 97).
Quando comecei a pesquisar e escrever o que se entende sobre educação, achei
um tanto difícil, pois, quando falamos em educação quase sempre imaginamos coisas
complexas, distantes de uma dada realidade, descoladas do cotidiano, ligadas ao senso
comum, ao comum de todo e qualquer ser humano, a família, a casa, o trabalho, o lugar do
lazer e do prazer.
Com o tempo passei a entender que educação não é algo complexo ou
complicado, pois de certa forma ela evoca algo natural que lembra a nossa própria
sobrevivência, que garante a nossa existência e prolonga a nossa permanência. Ela carrega
singularidades próprias de cada cultura, embora esteja aberta para dialogar com outras
significações que estão fora dela.
Para pensar em educação e dar conta de falar sobre ela, tive que primeiro
compreender como ela se deu e vem se dando na minha própria vida. De repente me dei conta
e senti necessidade de falar, descrever o processo da minha educação, seja familiar seja fora
dela, ou melhor, como eu fui educada na minha família até os meus 15 anos.
A pretensão aqui é partir da minha educação para escrever sobre a educação de
uma forma mais ampla e, assim, localizá-la no espaço dos aprendizados e aprendizes da Festa
de S. Benedito.
Atrevo-me a falar de educação a partir da minha própria experiência, pois só se
pode falar do que é conhecido, vivenciado. O que me levou a pensar e enxergar assim foram
as leituras de várias obras de Paulo Freire, que me ensinaram a valorizar o conhecimento da
nossa própria cultura, o círculo familiar e social, pois sempre partimos de um dado espaço
carregado de temporalidades. Na compreensão de Freire (1967, p. 109), a cultura
[...] é o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não o fez. A
cultura como resultado do trabalho [...] A dimensão humanista da cultura
como aquisição sistemática da experiência humana. Cultura é toda criação
humana. É cultura a construção do boneco e do vaso de barro como também
as obras dos grandes músicos ou escultores. A objetividade e a
subjetividade constroem a cultura.
Falar primeiro do que sabemos valorizar, para então alçar vôos mais longe e,
assim, aprofundar o conhecimento conectando-o à realidade, dando-lhe sentido e significado.
É o que buscarei fazer em algumas poucas páginas, porém entendo que a educação não
acontece isoladamente, fora de um contexto. Portanto a pesquisa sobre a Festa de S. Benedito
está prenhe de educação.
Esculpindo no tempo as reminiscências
Daquilo que a vida me ensinou, posso dizer o que aprendi. Assim posso
dizer que nasci numa família de origem social simples, sendo meu pai e avô migrantes do
Estado do Maranhão, aventureiros à procura de uma terra prometida. Essa procura trouxe-os a
Mato Grosso, nas proximidades da atual capital do Estado, Cuiabá, onde se casaram e
constituíram família.
Nesse lugar ainda hoje chamado Baús, distrito de Acorizal, eu nasci e vivi até
os meus dois anos. Meu pai, conhecedor das coisas práticas da vida, proprietário de terras e de
comércio, era bem-aceito pelos moradores. Como um viajante e conhecedor da vida, sabia
indicar ao povo daquele lugar remédios caseiros para seus males físicos, aplicando injeções
quando necessário. Ao fazer uso da sabedoria popular, chegava até a curar as feridas do povo,
conhecimento que aprendera, segundo ele, com a vida, observando e agindo quando a
necessidade aparecia.
Minha mãe sempre esteve lado a lado com meu pai, como esposa, mãe e
trabalhadora. Mudamo-nos para Aldeia, próximo de Baús, lugar um pouco mais
desenvolvido. Como meu pai tinha estudado até a 4ª. série do ensino fundamental de hoje, ele
foi aceito pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) de 1973 para ministrar
aulas naquele lugar e ficou conhecido como professor. Passou a ensinar o que ele sabia,
porém não seguiu a profissão, constituindo-se essa tarefa como mais uma de suas
experiências.
A vida era tranqüila, não havia problemas com o barulho, trânsito, tudo ficava
muito próximo e todos se conheciam pelo próprio nome. Meus pais foram padrinhos de
casamento e batizado de muitas pessoas, por isso, por todo lugar que passavam, tinham
compadres, comadres e muitos afilhados, o que todos levavam muito a sério, pois seus
afilhados, com muito respeito, apresentavam-se aos meus pais pedindo-lhes a bênção.
Desse lugar mudamo-nos para Cuiabá, onde o meu único irmão nasceu, depois
seguimos para Rosário d’Oeste, a 130km de Cuiabá, e finalmente regressamos para Cuiabá
em 1999, onde vivo atualmente.
A vida em meio a essas andanças seguia seu curso, e eu crescia. Segundo os
meus pais, eles nunca precisaram me ensinar propositalmente a cuidar da casa, a cozinhar e a
estudar. Dizem que eu aprendia sozinha e gostava de ficar observando, até a decisão de entrar
para o convento aos quase 15 anos.
Com esses relatos, que não são meus, mas dos meus pais, não quero dizer que
sou um exemplo, só quero utilizar a minha experiência para entender como a educação
acontece ou não na vida das pessoas.
Um dado aqui curioso é que os meus pais não eram freqüentadores da igreja,
eram católicos, porém não praticantes, atualmente são evangélicos. Eu conheci na escola,
através do Ensino Religioso, algumas irmãs e me identifiquei ou me apaixonei pelo estilo de
vida delas e pelo o que elas falavam.
Fiz a catequese
5
tornei-me catequista e depois passei a conviver dentro da
proposta de uma congregação religiosa que tinha duas casas nesse lugar.
A partir do ano de 1987 a minha vida deu uma grande guinada, pois foi nesse
ano que entrei num convento.
Um outro estilo de vida me esperava, uma mudança radical em todos os meus
hábitos, no falar, andar, vestir, comer, pensar, em ver e sentir o mundo também. Lembro-me
das inúmeras vezes que o meu linguajar era corrigido por pronunciar flor com som de r (fror)
e problema (probrema). Era motivo de gozação, me diziam que eu estava falando errado e
era mocinha, precisava falar corretamente. Eu não sabia me defender e nem sabia se podia.
5
A catequese é uma formação religiosa da Igreja Católica que prepara seus fiéis através do ensinamento da
Bíblia, dos mandamentos, sacramentos e vivência em comunidade a participarem diretamente da vida da igreja.
Os católicos batizados ou acima de 10 anos começam essa preparação que vai culminar com o sacramento da
Crisma.
Então passei a me policiar para poder aprender a falar direito. Era só o começo dessa
história...
As minhas dezenas de calças compridas foram aos poucos sendo substituídas
pelas saias, as minhas blusas sem mangas, postas de lado. Blusas bem-acomodadas foram
substituindo as sem mangas, e o cabelo, sempre bem curtinho, rosto natural, sem nenhuma
maquiagem. O dia foi sendo retalhado pelos horários que religiosamente tinham que ser
cumpridos, do levantar ao deitar.
Aprendi que havia uma superiora, uma irmã que era a minha mestra
6
, e que eu
era tão-somente a aprendiz de freira.
A obediência, pobreza e castidade, lições diariamente ensinadas, eram
condição de ser aceita nesse grupo. E dia após dia, fui aprendendo e defendendo as lições
aprendidas. Ora achava difícil, me cansava, queria dormir um pouco mais, porém uma voz
dentro de mim ecoava: o sacrifício traz o crescimento e o amadurecimento. Aprendi a ter
resistência e até um certo autocontrole sobre as minhas próprias vontades e desejos.
Aquele mundo não me era mais estranho, passou a ser o meu próprio mundo.
Todavia foi esse estilo de vida que me possibilitou olhar a realidade ao meu redor de forma
mais crítica, principalmente as questões sociais. E com quase 15 anos de opção pela vida
religiosa institucional, decidi deixá-la, trazendo como que colada em meu corpo a educação
ali recebida como se fosse parte dele, pois, quando eu deixei o convento, não me despi dele
imediatamente, da mesma forma quando entrei nele.
Por muito tempo me sentia vigiada por ele, meu pensamento policiado. Minhas
ações cuidadosamente pensadas, meu corpo muito devagar vai se despedindo, quase que em
conflito diante do novo mundo, o lado exterior, o lado de fora, inseguro, da sobrevivência.
Encontro o outro lado, a outra realidade, um outro grupo, uma outra cartilha a
ser seguida, outras lições a serem aprendidas como condições para serem aceitas e
assegurarem a minha sobrevivência.
É nesse ínterim da minha história que discuto a educação, como ela acontece,
por onde ela passa, numa tentativa de mais tarde conceituá-la dentro do pensamento de muitos
autores educadores da nossa contemporaneidade.
6
Uma irmã responsável diretamente pela minha formação religiosa. Ela era chamada de mestra, ou madre
mestra.
Dentro dessa experiência relatada, busco compreender a educação como parte
íntima da experiência do ser humano, fortemente marcada por suas escolhas diárias, escolhas
condicionadas ou não pela realidade onde ele se insere ou pretende se inserir.
Apoio-me em Peresson (2006, p. 68), quando ele ressalta a construção do
conhecimento no processo da experiência humana inserida numa dada sociedade:
Com a experiência acumulada, a sociedade e, dentro dela, cada indivíduo
vai construindo sua maneira própria de ver, sentir, interpretar e valorar a
realidade e, nela, a específica práxis social, mediante a qual busca, como ser
inteligente (de intus+legere= ler o que está dentro), entendê-la em
profundidade, em seu conjunto, compreendê-la e apreendê-la (apropriar-se
dela) e dar sentido e nome a cada elemento (significar e nomear). Está-se
diante do processo epistemológico de construção do conhecimento e da
acumulação do saber mediante o qual a experiência é objeto de reflexão e
interpretação
7
.
Sendo assim, a educação simplesmente acontece em qualquer espaço de
vivência das muitas experiências humanas, como uma celebração de trocas simbólicas de
signos e significados para um determinado grupo. E para esse grupo ela representa mais que a
fala ou a escrita, ela provoca movimentos no corpo por inteiro, envolvendo-o de tal maneira
que o conduz a expressar, a comunicar o que a ele acontece. Por isso, o corpo dança, canta,
pinta, sorri, experimenta, alimenta, chora, contrai-se, atrai, distrai-se, lança-se, abraça,
silencia-se... O ser humano como que comunica a outro humano o que lhe acontece com
palavras e na ausência delas.
Parece-me que de certa forma o cotidiano de nossas famílias, ruas, escolas,
igrejas, clubes e outros tantos espaços permitem tecer relações de aprendizado, onde a vida e
as experiências se misturam. Seja num ambiente festivo informal seja formal, desenhamos
definições de identidades que nos identificam com o que acreditamos ou não, pelas quais
lutamos ou não.
O homem ou a mulher, uma vez expostos à experiência do outro ou do grupo,
buscam fazer a sua própria experiência como condição que vem confirmar o seu lugar num
dado grupo, ou seja, os indivíduos passam a pertencer a este ou àquele grupo, quando os
membros aceitos no grupo confirmam ao outro, ao de fora, a capacidade de adesão e
incorporação da ritualização que ordena e garante a sobrevivência do grupo.
7
Membro da equipe de Dimensión Educativa (Bogotá/Colômbia).
Acontece que o outro, o exterior, é introduzido como um “personagem que
entra em cena teatral”. O exterior passa ser interior e membro do grupo ou uma extensão do
próprio grupo.
Essa adesão assegurará a existência do grupo e de toda a encenação, a ponto de
se pensar que enquanto um membro do grupo existir, todo o grupo existirá. E aquele que
aderiu como que faz um movimento de saída de sua experiência primeira, como diria Larrosa
(2003), “[...] apagando-a como que riscando por cima”, utilizando as novas experiências para
fazer novos registros que dali para frente o seguirão como a extensão do seu próprio eu, como
depositários de suas crenças e valores.
O que estou buscando dizer é que a educação acontece primeiramente longe de
um espaço fechado, demarcado, ensaiado e institucionalizado.
E para melhor explicitar de qual educação estou falando e como estou
compreendendo-a, reporto-me à civilização grega, pois, sem sombra de dúvidas, a Grécia
possui um histórico processo de educação e formação humana que mais se aproxima dos
aspectos educativos que busco mostrar na Festa de S. Benedito em Cuiabá, como estratégia de
educação e cidadania.
O direito ao exercício da cidadania foi uma categoria que subjetivamente
permeou esta pesquisa. Ocorre que a Festa abriu fortemente a compreensão de um espaço
social que suscitou nos devotos e envolvidos com o santo um processo de tomada de
consciência de igualdade para todos perante a lei.
O movimento social que é percebido nos dias da Festa e na sua preparação,
parece revelar o avanço na compreensão do direito à cidadania que emergiu reiteradamente
dentro da sociedade contemporânea cuiabana.
Chauí (1984) afirma que a luta pela cidadania implica uma conquista social e
política diferenciada, ampliando assim a análise sobre o tema no tocante à democracia, com o
que concorda Benevides (1994, p. 9) ao dizer que a cidadania ativa é aquela que institui o
cidadão como portador de direitos e deveres, mas, essencialmente, criador de direitos para
abrir novos espaços de participação política.
Isso me levou a compreender que cidadania carrega ações diversificadas de
sentidos, pois ela emerge dos direitos e deveres de toda sociedade, reconhecendo a todos
como iguais perante a lei, devendo possivelmente mover a sociedade para um processo de
participação e compromisso social.
Nessa costura da história, portanto, não podemos negar a herança histórica dos
gregos, pois foram eles quem, pela primeira vez, colocaram a educação como problema e
condição de formação para os homens de seu país. Através da literatura grega podem se ver
sinais de questionamentos sobre o conceito de educação, seja na poesia, na tragédia, seja na
comédia. Mas foi somente no século V a.C., com os Sofistas e depois com Sócrates, Platão e
Aristóteles, que o conceito de educação alcançou o sentido filosófico.
Nessa porta que se abre e nos reporta até à Grécia, é interessante ressaltar aqui,
nessa esquina do tempo vivido, os ideais educativos da Paidéia que vão ser desenvolvidos no
século V a.C. baseando-se em práticas educativas muito anteriores. Como considera Jaeger
(1995, p. 25), grande estudioso da cultura grega, num célebre estudo justamente intitulado
Paidéia:
Não se pode utilizar a história da palavra Paidéia como fio condutor para
estudar a origem da educação grega, porque esta palavra só aparece no
século V.
Segundo o mesmo autor, o conceito que originalmente exprime o ideal
educativo grego é o de arete (αρετε). A sua formulação está primeiramente explicitada nos
poemas homéricos, a arete é então entendida como um atributo próprio da nobreza, um
conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais tais como a bravura, a coragem, a força, a
destreza, a eloqüência, a capacidade de persuasão, numa palavra, o que consagramos como
herói. É preciso explicar que herói é, nesse caso, aquele que vence, ultrapassa o que está
posto, é capaz de avançar e inaugurar novas conquistas. Uma educação perseguida e
construída pela experiência das coisas vividas e não das coisas impostas.
Apoiada na reflexão de Arroyo (2002), foi possível também compreender o
movimento de aprendizado que é suscitado com a Paidéia, quando o autor argumenta que:
A Paidéia não ensina como o mestre vai educar seu aluno. É a arte de
construir humanos dentro de uma cadeia de processos, dentro de um projeto
social, político, cultural, concreto: e isso é muito importante! Essa matriz,
esse paradigma de que todo ser humano se constitui em algo mais. Por isso a
relação pedagógica por excelência é sempre uma relação entre gerações, os
que aprenderam a ser humanos, os que estão sentados aprendendo a ser
humanos com aqueles iniciantes nas artes de ser humanos (PASSOS, 2004
apud ARROYO, 2002, p. 133).
Assim verificamos que o ideal educativo grego apareceu com a Paidéia,
formação geral que tem por tarefa construir o homem como homem e como cidadão. Homem
no sentido de ser humano independentemente de classe, etnia ou sexo.
Platão define Paidéia da seguinte forma:
[...] a essência de toda a verdadeira educação ou Paidéia é a que ao
homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a
mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento (JAEGER, 1995,
p.147).
Nesse sentido, Jaeger (1995) considera que os gregos deram o nome de Paidéia
a “[...] todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição”. E nós
ocidentais poderíamos defini-la pela palavra latina cultura, embora ela não dê conta de
explicitá-la na sua totalidade de sentidos.
Diante da profundidade do sentido da Paidéia para os gregos, torna-se limitado
traduzi-la numa única palavra, pois corremos o risco de empobrecer o que nela está contido,
como esclarece Jaeger (1995, p. 1):
[...]
não se possa evitar o emprego de expressões modernas como
civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas coincidindo,
porém, com o que os Gregos entendiam por Paidéia. Cada um daqueles
termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global. Para
abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de
uma só vez.
Assim podemos dizer que, à medida que o ser humano evolui, ele próprio cria
dependências e necessidades de estilizar o espaço oficial onde se aprende e se ensina. Esse
espaço se apresenta como um legitimador de algum tipo de experiência (conhecimento) que
passa a ser entendida como comum ou universal a todos os grupos, onde de repente homens e
mulheres que desejam entrar no grupo, precisam conquistar a marca registrada da ordem do
saber cientificamente ou do estilo de vida que é comprovado e aceito pela sociedade e pelo
poder institucionalizado, seja ele religioso, seja político do grupo.
Com o processo civilizatório, ocorreu que, ao institucionalizar o saber, a escola
por sua vez se tornou a principal responsável por essa marca de luxo que, de certa forma, vem
dividindo a sociedade em grupos e criando condições de aceitação de pessoas em um dado
grupo social, cultural ou econômico. Afinal a escolarização tornou-se um privilégio e não um
direito adquirido, um rito de passagem que abre as portas de tantos outros ritos que emanam
da vida social.
Nesse jogo entrou o sistema para legalizar e controlar o processo da
experiência educativa formalizada, o qual apresenta a escola como um processo sem
neutralidade. Mas de fato sabemos que, desde o surgimento da escola, ela não é neutra, pelo
contrário, carrega a marca da intencionalidade colonizadora de um sistema social seletivo,
com o firme propósito de formar grupos subalternos de fácil controle e alienação, chegando
ao ponto de ser capaz de silenciá-los, ocultá-los e ignorá-los negando a diversidade cultural
com sua peculiar singularidade.
Foi em nome dessa realidade dividida em classes e da existência de um único
saber como válido e absoluto que as escolas teceram currículos que afirmam e confirmam o
saber legítimo para o povo. Dessa forma vale refletir sobre a argumentação de Chauí (1994, p.
35): [...] os conhecimentos como saberes que cada um de nós deve possuir, se quiser
participar da validade da vida social.
Lendo e quase trocando idéias com Marilena Chauí, Paulo Freire, Gramsci e
tantos outros autores da nossa contemporaneidade, entendo que não pode haver dois modelos
de escola, um para atender à classe dominante e outra para atender à classe dominada, um
saber erudito para os ricos e um saber popular aos moldes de um ensino frouxo, sem exigência
para os pobres.
Esse afrouxamento recebe crítica tanto de Paulo Freire como de Gramsci:
Deve-se convencer a muita gente que o estudo é também um trabalho, e
muito fatigante, com um tirocínio particular próprio, não muscular
nervoso mas intelectual: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido
com esforço, aborrecimento e mesmo sofrimento. A participação das mais
amplas massas na escola média leva consigo a tendência a afrouxar a
disciplina do estudo, a provocar ‘facilidade’ [...] Se se quiser criar uma nova
camada de intelectuais [...] própria de um grupo social que tradicionalmente
não desenvolveu as aptidões adequadas, será preciso superar dificuldades
inauditas (GRAMSCI, 1989, p. 138-139).
A importância real da escola é que ela venha valorizar a cultura da classe
trabalhadora desligada da cultura elitizada. Porém, na realidade, o estudante da classe popular
precisa dominar a gramática, os códigos culturais da classe dominante, quando deveria
acontecer o contrário, haver uma luta concreta para uma possível apropriação daquilo que é
próprio de sua camada social, para depois ir além dela. O que Paulo Freire diria: “[...] partindo
da pitomba, permite o Ivo também conhecer a uva”:
[...] não outro caminho se não o de partir precisamente do lugar em que a
classe trabalhadora se acha. Partir do ponto de vista da sua percepção do
mundo, da sua história, do seu próprio papel na história, partir do que sabe
para se saber melhor, e não partir do que sabemos ou pensamos que sabemos
(SANTOS, 2000 apud FREIRE; GADOTTI ; GUIMARÃES, 1986, p. 69-
71).
Nesse prisma a educação oferecida ou promovida nas escolas não liberta, não
sensibiliza e, pior ainda, não provoca conflitos que gritam por mudanças. Pelo que estamos
assistindo no atual cenário social e político, o povo, que somos todos nós, é empurrado para
dentro desse sistema educacional como condição para assegurar a nossa própria
sobrevivência, e não estou falando de uma sobrevivência coletiva, pelo contrário, de uma
sobrevivência individualista e solitária.
O atual sistema educacional, movido pelas leis e pressão do mercado
capitalista, suscita uma falsa cultura que produz o medo no cidadão, que se sente obrigado a
buscar um curso após o outro em nome da atualização profissional competitiva.
A busca não mais se acentua no desejo de aprender, conhecer e ser, mas na
força do ter mais uma certificação para nesse mesmo mercado não deixar de ser obsoleto.
Uma neura humana que vem acompanhada do medo de passar fome, de ficar desempregado,
de não poder pagar um plano de saúde, de não poder comprar e pagar e pagar... Isso parece
que domina a mente do trabalhador e controla as suas ões, a ponto de muitos assumirem a
justificativa “válida” de que sempre foi assim, quem quiser ter ou ser alguma coisa tem que
sofrer, e se eu não for trabalhar hoje, amanhã tem outro no meu lugar. O senhor da casa
grande, o colonizador de ontem, passou a ser o patrão de hoje.
Essa realidade gerou o fracasso da luta coletiva e da resistência, produziu
sentimentos de acomodação, conformismo e dependências, onde a carteira do trabalhador
passou a ser sua garantia, sua salvação e sua prisão.
Foi nessa realidade de cansaço, de lutas e de resistências que a teimosia do
povo cuiabano e mato-grossense encontrou espaços na Festa de S. Benedito ou os criou para
manifestar sua indignação e negação da ordem imposta. Esses espaços, seja da Festa seja da
Praça do Rosário em si, são lugares de fortalecimento da luta, de descarrego das tensões, de
medo e de toda forma de poder que produz a morte.
Como espaço do vivido e do aprendizado, menciono a Igreja Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito, espaço da Festa de S. Benedito.
Para esse diálogo no espaço chão do tempo da Festa, peço licença para os
homens e mulheres pensadores como Paulo Freire, Carlos Rodrigues Bandão, Gramsci,
Bourdieu, Marilena Chauí, Gabriel Chalita e tantos outros, para conversar sobre educação no
seu sentido e significado mais amplo.
A educação está presente na vida do ser humano, faz parte ontológica da sua
natureza. Ela acontece de formas diversas, espontâneas e de alguma forma carregando
intencionalidades. Como pondera Brandão (1995, p. 7):
Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um ou de muitos, todos
nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar,
para aprender-e-ensinar.
A educação nesta pesquisa foi entendida como aquela que invade a vida e é
aprendida através de concepções diferentes, em mundos e culturas diversas. Com isso afirmo
que a educação não deve ser concebida numa forma única, institucionalizada. Observando a
Festa pesquisada e participando de sua pedagogia organizacional, entendo que a Educação na
Festa e para além da Festa é a soma da “tecitura” de diferentes processos, podendo ser os
mesmos, pessoal, interpessoal e outros que culminam na construção de “valores diversos”,
valores estes que poderão ser válidos para um dado grupo de acordo com sua experiência, sem
que haja um único grupo guardião do saber válido, pronto e acabado, pois a educação ou o
conhecimento é a soma de experiências que podem ser válidas para um grupo, mas para o
outro pode não ter o mesmo valor. Nessa experiência com o diferente, reconhece-se a
importância da diversidade cultural.
Como ilustra tão bem Brandão (1984, p. 18):
A educação forma a personalidade do indivíduo médio e o prepara para
viver a cultura: é pela educação que a gênese da cultura se opera no
indivíduo. Pode-se descrever a cultura mostrando como o indivíduo a
assimila e como nele se constitui, à medida que ele a vai assimilando. Isto
porque a educação é, ao mesmo tempo, uma instituição que o indivíduo
encontra e o meio que ele tem para encontrar todas as instituições.
Dessa forma a educação não pode ser prisioneira de um sistema centralizado
de poder, que produz, reproduz e controla a autonomia individual em nome de um falso
processo que Bourdieu chama de civilizatório, o qual imprime a marca de uma cultura
dominante.
Pelos estudos acerca da educação e pelo aprendizado que emerge na e da Festa
de S. Benedito, entendo que a educação pode acontecer em espaços distintos, já mencionados.
Dessa forma não a concebo como um objeto que é produto final da escola ou de
universidades, instituições credenciadas como lugares privilegiados da oficina do “saber”,
saber esse medido, fracionado pelo tempo cronológico, aonde o cidadão vem absorver, dentro
de um tempo previsto, todos os conteúdos historicamente acumulados, em reiterados aplausos
à modernidade, mas ela está presente em todos os ambientes.
Em vista disso é preciso concordar que não educação escolar que não esteja
amalgamada com o local, com as significações mais abrangentes da grande simbologia
popular. Para tanto é importante que os currículos escolares sejam adequados às
peculiaridades de cada localidade e valorizem a cultura como seu patrimônio histórico,
artístico, cultural e ambiental, compreendida como tarefa paidêutica imprescindível.
Como menciona Passos (1998, p. 485):
Construir-se-ia uma escola, mediada por reações de respeito e interesse, por
modos culturais diferenciados entre as pessoas, plural e solidária, que
identifique todos/as e cada uma como pessoas de direitos iguais na expressão
de seus valores e teias simbólicas. Afinar-se-iam relações que implicariam e
postulariam uma nova sociedade, onde as relações entre as pessoas se
pautassem por um programa mínimo de quatro pontos: a) uma economia
justa, b) uma pluralidade cultural, c) uma democracia política e d) uma
solidariedade social.
A educação, portanto, possui múltiplos significados, defini-la foi e é uma
aventura complexa e atrevida. Por isso que me debruço num diálogo plural com as muitas
formas de conceber e empregar a educação no nosso “tempo”, com o firme propósito de tentar
apreender o seu sentido legítimo e o direito primeiro de todo o povo devoto de S. Bendito que
encontrou na Festa ações educadoras.
São tão legítimas essas ações educadoras que Brandão (1984,
p.18
) as vê
dentro de um processo histórico que cada grupo assume, e de tanto retomá-las como
experiências coletivas são finalmente incorporadas como conteúdo válido a ser sistematizado:
A educação existe na história e nas sociedades do homem. Não é anterior a
ele e, em todos os sentidos, é uma construção social do homem. A educação
existe em formações sociais concretas, faz parte de suas estruturas de saber-
e-poder e participa de inúmeros processos e inúmeras situações coletivas que
têm a ver com questões de reprodução do saber e de manutenção do poder.
Neste sentido se diz que, como tantas outras, a educação é uma instituição
social .
Educação, portanto, pode ser entendida como uma grande colcha de retalhos,
formada por pedaços distintos, descolados do todo. Concordo com Brandão (1995) que “[...]
não uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar
onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o
professor profissional não é o seu único praticante”.
A Festa aqui estudada foi entendida como instrumento educacional, dado que
nela se constituem identidades, finalidades, processos, projetos, congregando a diversidade
numa certa unidade precária, que se encontra explicitada por suas formas e conteúdos que
geram, sustentam e garantem a vida, a autonomia e a liberdade. Afirma o universal que somos
e o singular de que nos fazemos. De alguma forma o povo que a festeja, une-se e se identifica
com os elementos, símbolos ou espaços que a congregam. algo que os tornam diferentes,
únicos e por isso universais, enquanto humanidades concretas e empíricas.
Ribeiro (1982, p. 44) evidencia que:
A festa como instrumento, representada pelo cotidiano, pelas famílias, pela
experiência de vida, é uma escola, cujo sujeito pedagógico é o próprio povo,
que orienta e revigora comportamentos, faz participar de crença e valores,
perpetuando um universo simbólico.
A Festa da Igreja do Rosário e S. Benedito não é uma exceção. Constitui um
via fundamental de produção de vidas sociossimbólicas que se entrelaçam em relações
ressignificadas por teias de sentidos que possuem alguns arrimos e tecituras no transcendente.
Tem sido, ao que parece, expressão de negação, de alienação, de fuga do conformismo, da
individualidade vazia, mas que se inspira na solidariedade, na luta de grandes projetos
humanos e políticos.
O espaço da Igreja do Rosário e S. Benedito onde acontece a Festa produziu e
continua a produzir humanidades marcadas pelo desejo de democracia, de participação e de
igualdade. Produziu humanidades solidárias, algumas delas nossas contemporâneas, as quais
continuaram a ser inspiradoras da melhor humanidade, como Padre Emílio, Padre Teodoro
Weber, Padre Ten Cate, Vicente Cañas, mais recentemente Ari, Lourenço Fernandes, e muito
recentemente Maria Benvinda e Eudson de Castro Ferreira
8
. Estas humanidades não nasceram
da forma como viveram e se expressaram. Foram geradas no movimento de luta, de
engajamento, provocado pelos conflitos e na resposta generosa a eles.
Após um longo trajeto que também se expressava na compreensão da Festa e
dos seus aspectos pedagógicos intencionais e espontâneos de aprendizado, a pesquisa
concluiu que a educação aqui referida esteve e está presente de forma marcante nos processos
que medeiam a Festa, justamente porque ela celebra o que se vive, celebra a vida do ser
humano, possui um caráter ético, estético, político e constitui ontologicamente o ser humano
convidado a se criar (autopoiésis) pelo chamado de estar a cada dia sendo. Portanto não tem
forma prévia definida, única, porque se move no e ao ritmo do tempo, como um quadro sem
8
As pessoas (in memoriam) nomeadas aqui foram e continuam sendo força emblemática da memória de luta,
atuação e resistência da Igreja do Rosário e S. Benedito. Dentre elas temos os padres jesuítas, o missionário
jesuíta Vicente Cañas que foi assassinado na luta pela demarcação das terras indígenas em MT, ex-jesuítas,
professor universitário, leigos comprometidos com as causas sociais e políticas em Mato Grosso.
moldura, sem a inscrição de um(a) único(a) autor(a), mas com a inscrição de todos(as) os(as)
autores(as). E no movimento da Festa, o aprendizado acontece.
As pessoas aprendem e ensinam no movimento da Festa, são trocas mútuas de saberes
sobre o meu limite e o limite do outro, saber ouvir o diferente, acolher as experiências e o
respeito com a tradição. Assim eu também fui ensinada no aprendizado da Festa, comecei a
aprender com ela, afinando-me, iniciando-me nela, sendo educada por ela, educada em minha
sensibilidade, em meu acolhimento, em minha espiritualidade, em minha dimensão
comunicativa e expressiva para a solidariedade e o trabalho conjunto. Olhando-a por dentro e
ao seu avesso, lembrei-me de Carlos Rodrigues Brandão (1986,
p. 9-17
) quando ele se refere à
cultura do outro, o diferente de mim, numa troca mútua de experiências, sem que um se
sobreponha ao outro, mas que se comunique na cultura:
[...] é que o outro se a compreender quando nós formos capazes de
decifrá-lo a partir do seu próprio ponto de vista. Isto significa que devo ser
capaz de, primeiro, pensar a cultura do outro, através dos termos com que ela
se pensa a si própria para, depois, então, a partir daí, ser capaz de associar a
compreensão de tal cultura, com base em seu próprio ponto de vista, a minha
lógica.
Com este estudo do aprendizado da Festa, foi possível entender que aquilo que
não trazemos ao nascer e de que impostamente ou de livre arbítrio precisaremos quando
adultos, é-nos dado pela educação situada numa dada cultura. Ela, a educação, acontece e vai
se dando num mundo exterior, interior e concreto para um dado grupo. Essa educação nos
vem da natureza ou dos seres humanos ou das coisas, mas, sobretudo, das relações de tudo
com tudo, vivida no momento pela consciência e pelos significados éticos que se constituem
pelas opções. O desenvolvimento interno de nossas faculdades acontece nessa relação
homem/mulher e natureza:
[...] por cultura é entendido tudo o que o ser humano faz, seja como
indivíduo, seja como coletividade. Fala-se de cultura, em referência ao
produto resultante da ação estritamente humana; ela surge das condições
naturais dadas, mas transcende-as, modificada pela invenção ou práxis
humana [...] A vida humana, como tal, é sempre cultural; arraigada na
natureza, transforma-a em cultura, que compreende o mundo criado pela
práxis humana (trabalho produtivo, prática social e política, criação
simbólica), do mundo da natureza do qual o ser humano faz parte. E tudo o
que ele faz e agrega ao mundo dado, transformando-o. A história humana
inclui o processo pelo qual um grupo humano, mediante sua práxis, opera a
transformação da natureza em cultura, realizando a passagem de um mundo
que lhe é dado a um mundo por ele construído (PERESSON, 2006, p. 66-
67).
1.3 O aprendizado no espaço festivo: tradição e cidadania
A educação proposta pela própria identidade e pela matriz cultural parte da
clara consciência de possuir um riquíssimo acervo comum, que foi
construído dialeticamente durante séculos e deve ser reconhecido,
resgatado, discernido, valorizado, conservado, transmitido e desenvolvido.
A educação dinamizadora das culturas deve, então, partir de uma
recuperação crítica do passado como patrimônio cultural (PERESSON,
2006, p. 91).
Olhar para uma Festa popular e capturar dela a sua intenção de aprendizado
exigiu estar mais corpo a corpo com os seus meandros, sair do meu lugar como mera
espectadora para observá-la bem de perto a ponto de tocá-la.
Esses olhares permitiram entender que a Festa de S. Benedito em Cuiabá
produz educação e é prenhe de aprendizado, não do saber formal ensinado nas instituições de
ensino, mas da educação informal que tem a ver com o cotidiano do povo que festeja e
participa ano a ano de todo o seu ritual preparativo. Para capturar o sentido da educação
presente na Festa, observei-a bem de perto.
Durante quase quatro anos no passeio que fiz no tempo da Festa de S.
Benedito, pude vivenciá-la diretamente. Embora a conhecesse desde 87, foi somente em
2005 e 2006 que tive a oportunidade de acompanhá-la mais de perto.
Afinal uma coisa é participar do ritual, outra é acompanhá-lo com o olhar de
pesquisadora. Nesses dois anos intensos da pesquisa, cheguei à Igreja Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito como quem quer ver algo mais de perto. Então vi a Festa do lado de
dentro e do seu avesso, observei-a cuidadosamente sem interferir em nada, deixando ela se
mostrar.
O lugar da Festa se apresentou mais do que um mero espaço ou território,
percebi que esse espaço que une duas realidades, um misto de sagrado e profano, é para o
devoto como a extensão ou o lugar de esperança, onde o povo se alimenta, enche-se de forças
para lutar suas batalhas cotidianas. Parece que cada devoto chega como que a desenrolar aos
pés do santo sua vida, confiando a ele suas misérias, dores, na esperança de um grito de alívio,
à espera de uma graça.
Em meio a essa realidade subjetiva, simbólica da Festa, às vezes tão concreta,
pois tem a participação do povo, é complexo tomá-la meramente nas mãos como um objeto de
pesquisa e escavá-la como um fenômeno da expressão cultural do povo cuiabano, a qual se
realiza tradicionalmente em quatro dias de cada ano, quase três séculos, numa
demonstração da cultura viva, dinâmica e sazonada!
Quero com isso dizer que a Festa contribuiu para o aprendizado de quem a
festeja devotamente. Digo devotamente porque existem várias categorias de festantes.
Observei que no período dos quatro dias do evento acontece algo curioso, quando o espaço da
Festa e da devoção parece que se amplia para dar conta de receber no seu interior diversas
categorias de festantes, as quais já foram mencionadas neste trabalho.
Alguns são chamados devotos de carteirinha, outros apenas se sentem atraídos
pelo ambiente festivo, não estão envolvidos com a tradição, estão de passagem. Afinal a Festa
é pra todos, e não só para um pequeno grupo.
Uma importante pergunta que muitos leitores desta pesquisa farão certamente
é: O que estamos entendemos por aprendizado, educação? Uma pergunta que perseguiu esta
pesquisa do começo ao fim.
Quando digo que a Festa de S. Benedito educa é porque reconheço e identifico
nela o que chamo aqui de educação socializadora, capaz de desenvolver livremente valores de
forma autônoma e pessoal e pôr chão na sensibilidade, significado nas relações, compaixão
nos conflitos, sede de justiça diante da maldade, solidariedade na solidão, coisas que somente
podem ser compreendidas como ações formatadas pelas ações educativas que orientam as
humanidades concretas no sentido da solidariedade, do acolhimento do outro/diferente: a
organização solidária; a troca; a mútua ajuda; a tolerância nos conflitos; a afinação no
“timbre” da Festa; a doação do trabalho para o santo; o compartilhamento da alegria, da e
da humildade exigida por S. Benedito aos fiéis; a caridade com os pobres; o compromisso
ético-político cotidiano.
O que estou dizendo neste trabalho é que, quando penso em educação, estou
entendendo-a como processo inclusivo entrelaçado em dimensões decorrentes de processos
sociais globais diversos, longe de centrar o seu sentido último em educação escolar
institucionalizada que age, na maioria das vezes, como uma agência de controle, produção e
reprodução utilizando mecanismos talvez inovadores ou conservadores que reproduzem
orientações dos grupos que as instituem
9
.
Esse pensamento e olhar interpretativo da Festa de S. Benedito levaram-me à
leitura do texto clássico de Durkheim (1955), trabalhado no livro Educação e Sociedade de
Luiz Pereira e Marialice Foracchi (1976), o qual me ajudou a compreender como a educação é
9
O grupo hipoteticamente pode ser uma instituição como a igreja, a escola, a família e outros.
concebida por esse autor em relação à sociedade: “Se a Educação deve ser sociologicamente
analisada como processo social inclusivo, é legítimo conceber a sociedade como sendo, toda
ela, uma situação educativa” (p.31).
Sob a perspectiva dos escritos Durkheimiano, a educação é concebida como
processo socializador, entendendo-se que uma geração se coloca no “tempo” histórico, social,
político, econômico e cultural como mediadora da outra geração, considerada mais nova, ou
como quer chamá-la Durkheim (1955), geração imatura, para com ela e nela concretizar ou
inaugurar processos educacionais.
Todavia essa socialização reconhecida pelo autor não é passiva e de fácil
conformidade às gerações “imaturas”. Afinal, decorrente da pressão de uma geração sobre a
outra, ocorrem reações de não-passividade, as quais desencadeiam o processo de socialização
envolvido concomitantemente com o processo de interação num aprendizado ao mesmo
tempo uno e múltiplo. Como esclarece o autor:
[...] Quando se estuda historicamente a maneira pela qual se formam e se
desenvolvem os sistemas de educação, percebe-se que eles dependem da
religião, da organização política, do grau de desenvolvimento das ciências,
do estado das indústrias etc. separados de todas essas causas históricas,
tornam-se incompreensíveis (DURKHEIN, 1955 apud PEREIRA;
FORACCHI, 1976, p. 31).
Como se pode constatar, não estou tratando da educação escolar formal, ainda
que dialogue imprescindivelmente com ela, pois acredito que ela passe pelos mesmos
caminhos da vida e da experiência que percorri nesta pesquisa. Mas ela não tem a centralidade
da produção das humanidades de cada pessoa. A produção da humanidade se na vida
concreta, que precisará ser trabalhada pela escola.
E nesse espaço de aprendizado, a cultura é resgatada e afirmada publicamente
através das danças, músicas, símbolos e manifestações de indignação presentes nas bandeiras,
nos temas trabalhados na Festa e nos conflitos, nas lutas, nas avaliações, no retempero da
comunhão.
A cultura é o lugar onde cada grupo social constrói coletivamente sua vida,
permanentemente transformando o mundo da natureza, rejeitando relações e
estruturas sociais geradoras de injustiças, de sofrimento e de morte, lutando
por afirmar, defender e promover a vida, buscando alcançar uma qualidade
de vida sempre maior, uma vida digna para todo ser humano. Portanto a
cultura é como o lugar específico de tudo que é humano, lugar de identidade
e de diferença, de encarnação de seu verdadeiro projeto global de vida, em
oposição às estruturas da morte (PERESSON, 2006, p.73).
Foi possível perceber ainda que no decorrer da Festa aparecem confrontos
entre identidades: eu e o outro, modos de ser e existir (a difícil questão da alteridade, como
diria Brandão). Nesse sentido a Festa parece que busca trabalhar o processo de inclusão
dentro de uma perspectiva de identidade inclusiva como um ritual.
Os devotos se sentem na obrigação de fazer a Festa e acolhem todos que
desejam entrar no ciclo pra festar, o que independe das diferenças sociais. A devoção está
colada na vida do devoto de forma íntima, como escreve em sua pesquisa José Carlos Pereira
(2004, p. 45):
[...] a devoção tem como característica a fidelidade, o pacto entre o santo e
o devoto. Usando uma expressão de Pierre Bourdieu, diríamos que ela está
inserida numa ‘economia de trocas de bens simbólicos
.
também algo que nos remete à criação de “limites”, pela vingança do santo
aos fiéis que romperem com os compromissos e com as exigências feitas, ou seja, o sentido de
continuidade da Festa e da devoção, em que um sistema de trocas simbólicas entre o santo
e os devotos, pois ano após ano a tradição continua, ninguém ousa quebrá-la e ainda é passada
de pais para filhos que, desde pequenos, são iniciados na tradição. Na Festa os festantes
são sujeitos, exercem o protagonismo da sua história.
Há um aprendizado no acolhimento do diferente, em deixá-lo seguir sem
querer prendê-lo nesse espaço, o tempo de permanência do festante na Festa é a relação que
este tem com o santo ou com os grupos envolvidos.
Na Festa os devotos aprendem e ensinam construindo a sua subjetividade na
perspectiva da cidadania, e a ação educativa se orienta no sentido da solidariedade.
O que percebi na atualidade do “festar” da cuiabania é que a devoção a S.
Benedito vem conseguindo trazer ou devolver para o cotidiano festivo expressões culturais da
nossa brasilidade, onde é comum a realização da dança da congada, siriri, cururu e expressões
da contemporaneidade, do modo de ser indígena e africano. Principalmente a explicitação
litúrgica e celebrativa dos valores da cultura afro na Festa prestando reconhecimento e
promovendo a centralidade dela na sua manutenção. Tudo isso numa tentativa quase teimosa
de retomar e reaprender as origens da Festa.
É nesse local de cansaço, de lutas e resistências que observo a teimosia do
povo que vem encontrando espaços ou os cria para fazer suas manifestações de indignação e
negação à ordem imposta, espaços esses que se constituem em lugares de fortalecimento da
luta, do descarrego das tensões e do medo.
No diálogo com outros pesquisadores compreendo que a educação não é um
atributo apenas das escolas ou das universidades, ela está presente em todos os ambientes.
Podemos, entretanto, aproveitar os espaços escolares e universitários para
oportunizar a todos um local do tempo de conviver com a diversidade superando a cronologia
imposta pela rigidez dos calendários escolares, prenhes de formalidades, “ocos e secosde
relações plenamente humanas.
Quero com isso dizer que a educação pode ter um conceito genérico que
abranja processos educacionais diferenciados imediatamente ligados à vida. É nessa rica
diversidade, sem o artificialismo das agendas escolares necessárias, mas insuficientes - que
localizo e situo a Festa, no sentido mais profundo do que ela possa (re)apresentar,
principalmente quando ela irrompe dentro do cenário das lutas do povo, celebrando vitórias,
conquistas e atualizando a memória histórica.
Pensar na educação nessa perspectiva, entendendo-a como a idealizou nosso
saudoso Paulo Freire. Uma educação que nasça do chão e da raiz cultural do povo. Em outras
palavras, é o povo que constrói seus saberes através das relações com o mundo das coisas
objetivas que o cercam, construindo, assim, uma simbologia subjetiva de valores, crenças e
leis.
Partindo desse encontro de olhares com Paulo Freire, localizo a educação que
atravessa vários espaços, trabalho, família, escola, igreja, mídia, clubes e outros lugares.
Porém, em todos esses lugares, quase sempre os aparelhos reprodutores ideológicos do Estado
infiltram-se e conseguem repassar a sua ideologia, infundindo valores e crenças elitistas que
assombram a educação brasileira criando modelos educacionais que visam repassar
“ideologias da classe dominante” através das escolas e dos seus projetos pedagógicos, muitos
deles verdadeiros esquemas educacionais que impedem a emancipação do cidadão.
Contudo a escola não é somente a expressão de reprodução do Estado sob a
hegemonia do capital, mas também expressão da luta e da contra-hegemonia dos setores
oprimidos.
A escola, como o “lugar” oficializado da produção e reprodução do saber, precisa
contribuir para a construção de uma nova cultura pedagógica, como força formadora de um
espírito humano, crítico, dinâmico, criativo, ético-político, e de uma nova cultura política
voltada para intervir no espaço-tempo social, fazendo-se valer dos valores coletivos e
democráticos que podem ser chamados de prática pedagógica construtora de uma cidadania
cultural para além dos livros e materiais didáticos.
O livro didático dissemina uma realidade alienante que entra sutilmente na
banalidade do cotidiano dos espaços escolares. Desqualifica o professor. A grande maioria
desses livros possui um caráter mercadológico que reproduz a cultura dominante e não raro o
senso comum dos próprios autores. Não condizem com a realidade do educando e,
principalmente, com a realidade da região, o chão onde ele está sendo aplicado.
De certa forma a educação formal “formaliza” a ordem das classes dominantes,
estabelecendo uma ideologia.
Podemos pensar que existe então uma educação ideológica que é usada pelas
sociedades juntamente com o Estado para assegurar a hegemonia do poder. Essa é uma prática
que pode ser encontrada em qualquer tipo de governo em qualquer parte do mundo, marcada
pela cultura ocidental, um mundo que se apresenta globalizado criando um fosso que separa
cada vez mais as classes sociais, gerando profundas diferenças e acentuando grandes
desigualdades sociais.
Tendo presente essas desigualdades, de certa forma elas me encorajam a
buscar uma educação menos opressora e alienadora, a encontrar brechas que possibilitem
vislumbrar uma educação libertadora voltada para o cidadão e localizada no seu tempo e
espaço social.
A Festa, que se apresenta inserida nesse espaço social, presente na vida de
todos os grupos sociais formais ou informais da sociedade cuiabana, cada vez mais vem
ganhando espaço e sofrendo influências da cultura moderna, gerando mudanças que nem
sempre mantêm a sua origem primeira.
Contudo ela foi entendida como espaço organizado, que segue um sistema que
vai ano a ano infundindo valores, construindo identidades e possibilitando a formação
política, educacional e social do povo cuiabano.
A Festa foi concebida como espaço dinâmico, longe de uma concepção
arqueológica, nela há movimentos que fecundam, que criam, que reiteram e recriam as
tradições consolidando a raiz dos costumes do povo com os sentidos de suas vidas, mediada
pela cuiabanidade. Como assinala Peresson (2006, p. 101), ao ver na educação o
fortalecimento da cultura:
[...] a educação, partindo das identidades culturais, deve ser vista não
somente como resgate do patrimônio do passado, que se deve descobrir e
defender, ou como uma realidade presente, que se deve discernir, mas
também como projeto, que é necessário construir. A identidade cultural não
se caracteriza pela imobilidade, tampouco é a pura e simples transmissão e
repetição da tradição do passado, mas deve ser enfocada como uma
realidade viva em permanente gestação e construção, como uma identidade
histórica e dinâmica
.
A afirmação de Peresson (2006) me ajudou a sustentar o que já havia
conseguido constatar na Festa de S. Benedito, que ela está na memória e ao mesmo tempo no
cotidiano vivido pelo povo cuiabano e mato-grossense, para além de um sentido de
patrimônio tombado e congelado no tempo. Por isso a devoção a um santo ou orinegro se
constituiu em Cuiabá em um traço forte de identidade e cultura para toda a cuiabanidade.
Os devotos encontram ainda na vida de S. Benedito e sua festividade um
exemplo de luta e resistência e se identificam com seu jeito simples, acolhedor, gerador de
vida. Afirmação semelhante pode ser encontrada no Almanaque Abril (2003) que registrou:
São Benedito é o protetor dos negros e dos que exercem atividades na
cozinha. Protetor dos oprimidos e humilhados, como foram os escravos. Sua
história coincide com as qualidades de Omulu, que também é tido como o
orixá dos fracos e perseguidos. Sua festa católica tornou-se popular entre os
negros, sendo que aproveitam para reverenciar Omulu/Abaluaê. Juntamente
com a festa do Rosário, são festas criadas pelos negros, como forma de
resistência cultural e religiosa (ALMANAQUE ABRIL, 2003 apud
PEREIRA, 2004, p. 27).
Em cada Festa essa manifestação de luta do povo se concretiza em forma de
denúncia e anúncio profético de justiça e dignidade contra toda forma de ordem e poder que
ainda escraviza o povo cuiabano.
Os traços físicos, sociais e culturais característicos do santo rememoram, na
Praça do Rosário, a mãe África que se indigna e clama por justiça social através de seus
filhos, os cuiabanos que querem romper com todos os males da escravidão, discriminação e
todo tipo e forma de preconceito, os quais degeneram a vida e suas múltiplas expressões
culturais e religiosas.
A memória viva do sofrimento do povo negro reinventa o que chamarei aqui
de uma “contramemória”, pois é rememorado e se levanta no chão da Praça do Rosário em
forma de luta e identidade resgatada. Sobre isso Ortiz (1991, p. 189-190) argumenta:
Os negros, arrancados à força de seus territórios, têm de reinventar sua
cultura num solo distante. A memória coletiva desempenha neste caso um
papel fundamental. Para existir, ele deve se encarnar, se materializar, sem o
que as lembranças se pulverizariam. O candomblé é o espaço que abriga
essas lembranças, um nicho que recolhe a tradição, protegendo-a do
esquecimento. [...] Mas o que importa sublinhar é que o esforço de
rememorização cria um espaço e um tempo específico aos grupos de origem
afro, distintos do ritmo das sociedades que os abrigam.
A Igreja do Rosário e S. Benedito, na pesquisa, foi tratada como esse espaço-
tempo específico que acolheu e acolhe as manifestações que trazem a memória do povo afro-
ameríndio.
Na continuidade das dobras deste capítulo, somos convidados a conhecer
rapidamente a história de vida de S. Benedito.
1.4 Negro, frade, cozinheiro e santo: vida de São Benedito
Foto 9 – Tríduo de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Ó Glorioso São Benedito, que pobre e sem letras guardastes os rebanhos, lavrastes os campos,
vos retirastes aos ermos, vos recolhestes ao convento, onde socorrestes os indigentes e
enfermos, onde fizestes em grau elevado, a ponto do Altíssimo ter-se dignado a operar
milagres por vosso intermédio, e em vida e após a sua santa morte. Ó meu excelso protetor
São Benedito, sempre humilde e sem outra pretensão do que servir a Deus e ao seu próximo
por amor a DEUS, alcançai-me pela vossa profunda humildade a graça que agora imploro e
que necessito para minha eterna salvação[o devoto faz o seu pedido ou compromisso com o
santo].
Fazei que, a vosso exemplo, despreze a mim e a vaidade deste mundo, tenha comiseração com
o próximo, aspire sempre à maior santidade, tornando-me amigo da cruz e da solidão, a fim de
que, depois de uma morte semelhante a vossa, mereça entrar na bem-aventurada mansão dos
justos e em vossa companhia glorificar por toda a eternidade aquele que, exaltando e
enaltecendo os verdadeiros humildes, disse: ‘Bem–aventurados os pobres em Espírito,
porque deles é o Reino do Céu’. Amém.
Benedito Santo de Deus amado, sede no céu nosso advogado. Tudo vos pedimos que nos
alcanceis, favores e graças que tudo podeis. Se nos concedeis que vos imitemos, na vida e na
morte felizes seremos. Ave Maria....
Foto 10 – 4º. dia da Festa de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Esta pesquisa se refere à Festa realizada em torno de S. Benedito, negro, filho
de escravos, nascido na Itália, o qual é festejado também em Cuiabá de maneira muito
significativa quase três séculos, de forma que um cenário e um espaço diferenciado no
que tange à Itália e a realidade brasileira, mato-grossense e cuiabana.
Dedicarei algumas páginas para relatar brevemente a história de vida de um
jovem negro, conhecido mundialmente como S. Benedito de Filadelfo ou S. Benedito, como é
conhecido entre os brasileiros. Para tanto utilizarei relatos de sua biografia apresentando a
história da forma como ela se tornou conhecida.
O filho da África
Benedito nasceu em Filadelfo próximo de Messina, precisamente na ilha da
Sicília, Itália, por volta de 1526. Ter nascido na Itália não fazia de Benedito um italiano com
os traços físicos dessa localidade, pois antes de ser cidadão italiano era filho de negros
escravos provavelmente trazidos da África como peça de mercadoria.
A cor de sua pele, o fato de ter nascido na Sicília, de pais escravos,
permitem-nos concluir, sem medo de nos enganar, que esses pais tinham
sido aprisionados nas costas da África negra, única região aonde negreiros
iam, nesse tempo, procurar sua lastimável mercadoria (ALBARET, 1989, p.
12).
O homem e a mulher de pele negra comprados na África nem sempre
conseguiam chegar vivos, após a longa viagem nos porões dos navios, devido às condições
desumanas da viagem, o que fazia a escravidão ainda mais cruel. Viagem longa e privação de
tudo, contavam com a “sorte” para chegarem vivos no destino desconhecido. Certamente
os pais de Benedito foram um desses sobreviventes. “Os cronistas da época nos dizem que,
freqüentemente, uma dezena dos capturados chegaram vivos ao fim da interminável
travessia”
(ALBARET, 1989
).
Pais escravos e negros, filho escravo, era essa a lei que vigorava à época. Mas
Benedito, devido à integridade de vida de seus pais, foi libertado dessa condição de escravo
quando completou dez anos de idade. Todavia era uma liberdade legal no papel, mas isso não
garantia uma condição digna de vida para ele, pois seus pais nada possuíam para ajudá-lo.
Mesmo assim Benedito não era diferente das crianças de sua época, cresceu ao lado de seus
pais e com eles aprendeu tudo o que sabia.
Benedito convivia com crianças de sua idade, mas por ser uma criança negra
foi tratado de forma diferente, era muitas vezes ridicularizado em público por causa de sua
origem e cor. Sua cor e condição social deixavam-no mais arredio das rodas de conversas e
brincadeiras de sua época. “Não obstante a ‘raça’ de Benedito não lhe permitia na verdade ser
confundido com seus amiguinhos” (ALBARET, 1989, p. 15).
Sem condições financeiras, Benedito não pôde freqüentar a escola, o pouco
que sabia era porque freqüentava uma igreja cristã de S. Filadelfo. A escola era para os ricos e
aqueles que entravam para a vida religiosa para se tornarem padres.
Sua vida de trabalho
Em todas as páginas da vida desse homem histórico, simples e de grande fé,
encontramos passagens de uma vida dedicada ao trabalho. Seus pais, ainda sob a condição de
escravo, nada possuíam, eram considerados como parte dos bens de seus senhores. Por isso
teve que enfrentar a dureza que as condições sociais lhe impunham. Desde cedo aprendeu a
trabalhar e a economizar para garantir a sua sobrevivência. Do seu jeito, soube enfrentar os
preconceitos decorrentes principalmente de sua cor, realidade que iria persegui-lo ao longo de
toda a sua vida.
Um convite inesperado
O comportamento do jovem Benedito não era comum aos jovens de sua época.
Por isso chamava a atenção das pessoas que com ele conviviam ou que por acaso tinham
algum contato com ele. Uma dessas pessoas merece aqui destaque, Jerônimo Lanza
10
,um
fidalgo da Sicília que decidira viver uma vida de recolhimento em estilo monástico, longe do
cotidiano da vila de São Filadelfo. Esse homem, ao que parece, despertou algo diferente no
coração de Benedito.
Conta-nos a história que, depois desse encontro de Benedito, com 21 anos, e
Jerônimo, ele vendeu o pouco que possuía, deu aos pobres e passou a viver como um ermitão
nas montanhas com um grupo que havia mais tempo decidido viver um estilo de vida
austero, no silêncio e na oração.
Foi com essa vida que Benedito passou a se identificar enquanto viveu. Com o
passar dos anos Benedito ficou conhecido como frei Benedito e era procurado pelo povo
que pedia orações e conselhos. “O eremitério estava a ponto de se transformar em lugar de
peregrinação popular”
(ALBARET, 1989
).
Essa situação de constante peregrinação do povo até o eremitério forçou a
mudança desse grupo para um outro local ainda mais afastado.
10
Jerônimo Lanza ocupava lugar especial na sociedade, pois descendia de uma nobre linhagem.
Com a morte de Jerônimo Lanza, Benedito foi escolhido para ser o seu
substituto, ou seja, a autoridade de referência desse grupo. Como já era de se esperar,
Benedito resistiu ao convite, mas o aceitou:
Ele tentou se esquivar demonstrando a cada um ser impossível que ele, o
pobre negro, o filho de escravos, iletrado, se tornasse chefe de uma
comunidade onde se encontravam tantos homens que o superavam pela sua
virtude e pela sabedoria. Foi trabalho perdido, e Benedito teve que se
render. Ele tinha então 31 anos
(ALBARET, 1989, p. 25).
A vida dura e pobre desse grupo, de extrema dedicação às orações, e a
insistente procura de pessoas por ele forçaram a Igreja Católica, por meio de alguns
religiosos, a levar ao Papa da época, Pio IV, um pedido para que esse grupo não viesse a se
tornar um dia uma nova ordem religiosa. Assim nos conta Albaret (1989, p. 26) sobre essa
história:
Um dia chegou ao Monte Pellegrino um enviado do arcebispo de Palermo,
que notificou Benedito da decisão papal e lhe entregou cópia do decreto que
a notificava. Esse decreto declarava que os eremitas estavam dispensados
do quarto voto, que haviam emitido - o de observar jejum rigoroso. Eles
deviam se dispersar entrando cada um deles numa Ordem existente e
aprovada pela Igreja.
O grupo que havia se consolidado, agora por obediência à decisão imposta
pela igreja, foi obrigado a se separar. Seus membros tentaram recorrer da decisão, porém sem
sucesso. Benedito, fazendo uso de seu voto de obediência, decidiu logo procurar um grupo
que mais se aproximasse de seu estilo de vida. Benedito já estava com 36 anos. Ele escolheria
a dos Frades Menores da Observância.
Benedito pediu para ser recebido pelo Padre Provincial. Expôs-lhe sua
petição. Ele queria se tornar frade menor. Admissão a uma Ordem religiosa
sempre coloca para o superior problemas delicados. [...] Eis que ele tinha
diante de si um homem de 36 anos, antigo escravo, pertencente a uma raça
diferente da de todos os seus outros religiosos, que havia vivido a vida
monástica durante 16 anos e durante muitos anos havia exercido a
autoridade sobre uma comunidade
(ALBARET, 1989, p. 30).
Benedito foi aceito como frade desse grupo e passou a viver no convento de
Santa Anna de Giuliana como frade converso
11
.
11
Segundo Albaret (1989, p. 31), nas Ordens ditas “ativas”, como a Ordem dos Frades Menores, certos frades,
de acordo com os estudos que fizeram e suas aptidões, serão sacerdotes e se dedicarão ao apostolado; outros
usarão seu tempo num trabalho útil à comunidade.
Nesse convento Benedito assumiu os serviços mais simples e se destacou
como cozinheiro. Com o passar dos anos a vida do frade Benedito naquele lugar já era motivo
de admiração, o que o levou, contra a sua vontade, mais uma vez a assumir a autoridade de
superior dos padres que viviam no convento de Santa Maria de Jesus, um grande e importante
convento da época. Frei Benedito ficou como guardião desse convento por 3 anos, condição
que não alterou o estilo de vida do cozinheiro negro e iletrado.
A hagiografia de Benedito conta-nos que ele se tornou conhecido pelo seu
estilo de vida. De longe e de perto vinham pessoas simples e importantes socialmente
procurá-lo para pedir orações. Em poucos anos Frei Benedito era conhecido como um frei
milagroso e atraía centenas de pessoas.
Durante o dia todo, o sino da portaria de Santa Maria de Jesus soava, tocado
por inúmeros visitantes que vinham ver o ‘santo negro’ para lhe pedir
consolo e coragem, suplicando-lhe que fizesse um milagre, que lhes
obtivesse de Deus uma cura. Pobres e ricos acorriam, tratados da mesma
maneira, os primeiros com ainda mais cortesia, gentileza e amabilidade do
que os últimos (ALBARET, 1989, p. 64).
Frei Benedito tornou-se conhecido mundialmente, inúmeros milagres foram
atribuídos a ele. Após sua morte a devoção ainda era maior. Assim viveu Frei Benedito, uma
vida inteira dedicada à oração e a atender aos mais necessitados, até sua morte. “Era 4 de
abril de 1589, terça-feira de Páscoa, 7 horas da noite. Benedito tinha 63 anos”
(ALBARET,
1989
). Conforme o calendário católico romano, o dia consagrado a São Benedito é 4 de abril
(SGARBOSA; GIOVANNINI, 1983).
O primeiro africano declarado santo
Após a morte de Frei Benedito, inúmeros milagres foram atribuídos a ele, e em
virtude disso a Igreja Católica estava sendo pressionada a tornar oficialmente público o seu
culto, uma vez que o povo já o tinha elevado à condição de santo ainda em vida.
Enfim, a 31 de julho de 1743, o Papa Benedito XIV beatificou Benedito, o
africano. Faltava ainda proclamar, diante de toda a Igreja Católica, sua
santidade. Essa seria a tarefa do processo de canonização começado a 3 de
julho de 1780, terminou pela proclamação, a 25 de maio de 1807, pelo Papa
VII, que o bem-aventurado Benedito era digno de ser chamado São
Benedito. Era o primeiro africano, de raça negra, que a Igreja canonizava
tão solenemente (ALBARET, 1989, p. 79).
S. Benedito é cultuado no Brasil
O Brasil do período Colonial cresceu economicamente pela utilização da força
do trabalho escravo do negro africano que provavelmente trouxe para o Brasil junto com a sua
cultura a devoção ao santo africano S. Benedito.
As festas realizadas dentro e depois fora das senzalas, além de um momento de
descarrego das tensões do cotidiano de trabalho forçado, possibilitavam a rememoração da
pátria distante.
É bem provável que dentre os orixás evocados pelos negros africanos estivesse
S. Benedito, que passou a ser conhecido como o padroeiro dos negros e escravos, espalhando-
se a sua Festa e o seu culto por todo o Brasil:
Sobre seu culto no Brasil as referências históricas remontam ao século
XVII, quando ‘já em 1686 festejava-se, na catedral da Bahia, o nosso santo
com toda a pompa, e neste mesmo ano seguiram para Roma os estatutos da
irmandade do bem-aventurado frei Benedito de Palermo, já aprovados pelo
bispo da Bahia, a fim de o serem também pela Santa Sé’
12
. Filho de
escravos, negro e analfabeto, foi pastor em sua infância e, adulto,
cozinheiro em seu convento franciscano (CÂMARA NETO, 2000, p. 214).
A irmandade negra multiplica-se em várias regiões do país, e São Benedito e
Nossa Senhora do Rosário passam a ser os padroeiros homenageados com festa. Nas festas
não faltavam danças e ritmos africanos, a coroação dos reis congos, grupos de congadas e
muitas outras agremiações similares.
O santo dos negros escravos cuiabanos
Na historicidade da fundação de Cuiabá, deparei-me logo de início com o
surgimento de devoção aos santos trazidos pelos portugueses, mas é intrigante que dentre
esses santos se encontrassem os de crença africana.
A devoção a S. Benedito em Cuiabá tem seu marco inicial, segundo os relatos
históricos, entre os anos de 1719 e 1722. Como assegura José Barbosa de Sá (1975, p. 15):
Quando em 1722, se ergueu em Cuiabá uma igreja ao Senhor Bom Jesus
também ‘os pretos uma capelinha a São Benedito, junto ao lugar chamado
Rua do Sebo, que daí a poucos anos caiu e não se levantou mais’.
12
Confronte a obra de ODULFO, Frei. São Benedito, o preto e seu culto no Brasil, Revista Eclesiástica
Brasileira, v. 1, fasc. 4, p. 824, dez. 1941.
A devoção a S. Benedito em Cuiabá é tradição dos negros escravos e ex-
escravos, pessoas simples e pobres que parecem ter encontrado no santo um alento de
esperança diante da vida dura que levavam nas terras cuiabanas. O culto a S. Benedito e a
tradição da Festa nasceram junto ao povo sofrido, pobre e negro de Cuiabá.
Na pesquisa do historiador Rosa (1976, p. 9), encontrei a seguinte passagem
que confirma o que estou dizendo:
Assim, apesar de cultuado desde os primórdios cuiabanos, S. Benedito
parece ter tido como primeiros devotos pessoas desprovidas dos recursos
que permitiram a construção da capela e depois igreja de Nossa Senhora do
Rosário onde o Santo tem sido invocado desde o século XVIII.
Ocorre que o culto ao santo negro em Cuiabá cresceu e se organizou a ponto
de, em 1897 com o advento da República, os Irmãos de S. Benedito pedirem ao bispo de
Cuiabá autorização para o funcionamento da Irmandade de S. Benedito.
Com o funcionamento da Irmandade de S. Benedito, em Cuiabá na Igreja do
Rosário, aconteceu um fato curioso. O santo negro passou a ser reconhecido e popularizado
em Cuiabá e em outras cidades do Estado de Mato Grosso, e a missa dedicada ao santo, que
acontecia na madrugada de terça-feira, passou a acontecer também na terça-feira à noite. E
a Festa de S. Benedito se expandiu, a devoção passou a ser de toda a sociedade cuiabana.
Padre José de Moura e Silva (2007, p. 2-3) assevera que:
A devoção a São Benedito cresceu mais do que a de Nossa Senhora do
Rosário e Nossa Senhora do Carmo. Além de ser necessário destinar duas
missas (às 5 da manhã e às 7 da noite) aos devotos de São Benedito às
terças-feiras com chá com bolo de manhã e a ceia à noite.
Falar da devoção a S. Benedito em Cuiabá e de sua Festa na Praça do Rosário é
falar da cultura mato-grossense. Foi nessa mistura de diversidades culturais que localizei os
devotos do santo negro. Paulo Pitaluga Costa e Silva, em Aspectos Históricos da Cultura
Mato-Grossense (apud FERREIRA, 1997) registrou:
Formada pela intrepidez do bandeirante, pela bravura do negro escravo e
pela inocência do índio aguerrido, é a nossa cultura o que há de mais
representativo da herança congênita dessas três raças. Representa a nossa
história, a nossa memória social, as tradições, técnicas, experiências,
crendices e acúmulo de conhecimento de quase três séculos de
miscigenação racial. Nessa simbiose de civilização está a cultura mato-
grossense.
Como vimos, na formação da sociedade cuiabana não se pode negar ou
ignorar, na sua história social, cultural e religiosa, a presença da mistura dos grupos étnicos
que para Cuiabá vieram, se formaram e continuam se formando, com jeito singular e ao
mesmo tempo diverso, diferente.
É possível dizer com convicção que a história dos antepassados que deram
origem ao povo cuiabano, está viva neste mesmo povo, nessa mesma gente que todas as
terças-feiras de madrugada ou à noite participava e participa da missa tradicional de S.
Benedito na colina do Rosário, justamente onde toda essa história de conquista começou.
não mais reluz o ouro, mas uma forte tradição e resistência que rememoram a cultura e
festejam o santo negro. Um povo que vem encontrando ou inventando formas de continuar
suas lutas diárias.
Talvez seja por isso que, quando olhamos para a sociedade cuiabana e,
particularmente, para o congraçamento realizado durante os festejos de S. Benedito, na Igreja
do Rosário, encontramos nela não somente os traços afro-indígenas, mas visivelmente a
composição dessa mistura ou a convivência silenciosa desse (des) encontro racial. Em face da
expansão e ocupação das terras mato-grossenses, podemos hoje encontrar uma diversidade
cultural em cada esquina da Capital.
Com um olhar mais acurado, encontraremos, após quase 300 anos, os traços do
negro e do índio determinando as características físicas, espirituais e religiosas da população
local, reveladoras da mestiçagem cultural, guardando, quem sabe de forma implícita, a
herança milenar dos nossos antepassados.
O resgate da história de S. Benedito abriu passagens para diversas
interlocuções com a história de sua Festa em Cuiabá, o que possibilitou tecer e costurar trama
a trama a sua etnografia histórica. Assim, darei mais um passo na construção desta pesquisa
conhecendo, quem sabe, o interior dessa devoção através dos olhos, memória e percepções
dos devotos.
Mas antes é oportuno dizer que, à medida que me aproximei do objeto de
pesquisa, percebi que algo está como que mudando de cor ou sendo transformado diante de
meus olhos. No ano de 2005 percebia a Festa mais fria, distante, mas com a aproximação
maior e mais freqüente do objeto pesquisado, foi me permitido capturar algo mais. Esse algo
mais, procurei apresentar na etnografia.
De tanto observar e estar nos mesmos lugares mais de uma vez em momentos
diferenciados, pude reter o não dito, dialogar com o tempo vivido, entrar no seu movimento e
capturar a sua essência ou aquilo que me foi revelado.
O que sinalizo nas páginas que seguem são somente olhares e percepções,
deixando claro que o objeto estudado se revelou de várias maneiras, por isso menciono
somente o que consegui compreender com todas as limitações de uma pesquisadora e do
tempo que me foi reservado para fazer a pesquisa.
Como observei mais de perto duas Festas de S. Benedito (2005 e 2006), ou
dois anos festivos, não afirmo, mas pude sentir, com a contribuição dos entrevistados, que as
pessoas envolvidas com a Festa de 2005 estavam mais ligadas ao espetáculo, uma Festa mais
profissionalizada, terceirizada, distante da tradição, como que querendo fazer dela o que ela
não é, apropriando-se dela sem ouvir a sua história, sem ouvir o tempo da Festa.
O que percebi e me foi revelado pelos devotos é que a Festa de 2006, na
realidade, trouxe uma forte abordagem guerreira dos mais enfraquecidos, e a de 2005 tinha
uma atmosfera de vitória dos mais fortes. Pareceu-me que os festantes de 2006 assumiram na
Festa as características do Cristo sofredor, voltando à dimensão religiosa como fiel de sua
organização. As celebrações e as liturgias buscaram fazer resgate de uma memória de lutas e
sofrimentos de um povo guerreiro. Esse traço marcou fortemente as manifestações e, no
discurso dos festeiros e no conteúdo organizacional do folheto do evento, podia-se perceber o
resgate da Festa religiosa.
A etnografia da Festa o foi escrita de forma linear. Concluí que ela pode ser
vista para além de um encontro espiritual, de confraternização popular, de consolidação de
uma unidade indistinta e pacífica. Ela não é um mero espetáculo turístico religioso,
folclorizado, que se mantém estática no tempo, emoldurada como num museu, como na
crítica de Ortiz (1991, p. 37) ao se referir aos folcloristas:
Os folcloristas criam museus de tradições populares com o intuito de
‘salvar’ os resquícios de uma época primeva. Mas, assim fazendo, eles se
contentam em mirar ‘a beleza do morto’, pois seu objeto de estudo é o
passado em vias de extinção.
Ela é fruto de uma trama em curso numa sociedade dividida em classes, com
conflitos raciais vivos, com conflitos políticos expostos a nu. Ela está prenhe de vida.
A Festa se constituiu também num espaço privilegiado que fecunda, cria,
reitera e recria as tradições consolidando a raiz dos costumes do povo com os sentidos de suas
vidas, mediada pela cuiabanidade e pelas necessidades e desejos postos à mesa pelo tempo.
CAPÍTULO 1I - SÃO BENEDITO, DEVOÇÃO DA CUIABANIDADE: O TEMPO DA
FESTA
Foto 11 – Livreto da Festa de S. Benedito 1982.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007
.
Assim, na raiz de toda a criação cultural está a Transcendência,
resultando daí um processo ininterrupto de ocultamento-
desvelamento: quanto mais a cultura ilumina o desconhecido
mais este insiste em continuar a se manifestar, exigindo novas
decifrações (BRASIL, 1997).
2.1 Um olhar etnográfico sobre a Festa: nos passos da devoção
A relação do homem com o mundo é sempre mediada por suas
ferramentas. Ele constrói, apreende e interpreta a realidade a
partir dos instrumentos que lhe são fornecidos pela cultura.
Tecelão quase compulsivo de si próprio, borda sem cessar teias
de significação para dar sentido ao mundo. Essas teias, onde se
misturam pontos abertos e fechados, novos e antigos, linhas de
todas as cores, formam a cultura. É a partir desse véu da
cultura, dessas lentes, que vemos então as coisas, os outros, e a
nós mesmos
13
.
Festa de São Benedito
14
Fotos 12, 13, 14 e 15 - Festa de S. Benedito, o encontro do povo com o santo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005 e 2006.
13
Fragmento do artigo de Adilson da Silva Mello (2003) interpretando as variações culturais presentes em um
grupo de Moçambique da cidade de Lorena, parafraseando Geertz, 1989, p. 15.
14
Desde o ano de 1721, os negros em Cuiabá cultuavam a devoção a S. Benedito, possivelmente trazida de
Portugal ou da Bahia. Assim, apesar de ser cultuado desde os primórdios cuiabanos, S. Benedito teve como
primeiros devotos pessoas desprovidas de recursos que permitiram a construção da primeira capela ao Santo
Negro. (Cf. Festa de São Benedito de 2001 (Livreto) - Lucilo Libânio de Souza Nonô. Cuiabá, maio 1997.
Esta pesquisa nasceu quando, curiosa, participava do tríduo
15
da Festa de S.
Benedito em Cuiabá, no coração da Capital de Mato Grosso.
Naquele ano de 2002 cheguei à Festa, como todos os outros anos, admirada
com tanta gente chegando e rapidamente tomando todos os lugares, a não sobrar mais
nenhum. A multidão ia se concentrando por todos os lados e no entorno do altar. Era o
terceiro dia do tríduo da Festa. Ao meu lado estava Luciano Libânio de Souza, conhecido por
todos por seu “Nonô”, um paroquiano devoto antigo de S. Benedito e que desempenhava
“imemoriavelmente” um papel imprescindível na coordenação geral dos eventos e na
organização da paróquia. Fiz a seu Nonô uma pergunta que ecoava dentro de mim: "Quando
tudo isso começou a acontecer? Essa Festa, desde quando existe? O que atrai tanta gente para
um mesmo lugar?" Ele virou-se rapidamente para mim, com um certo sorriso, dizendo que
tudo a que eu estava assistindo era pequeno diante do que realmente era a Festa. E ainda
concluiu: - "Essa manifestação tão grandiosa merece ser pesquisada" (CADERNO DE
CAMPO 1, 2005).
Foto 16 - Seu Nono e sua esposa dona Chica.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
15
Trata-se de três dias consecutivos de preparação ao grande momento festivo.
Depois simplesmente olhou para mim, deu um sorriso e não me lembro dele ter
dito nada mais e nem eu a ele.
Descrever essa Festa é uma aventura muito ousada, tudo que vou tentar passar
para o papel será pouco para dar conta de explicar a natureza da Festa em seu tempo
cronológico. Buscarei expressar então a Festa que flui no tempo dentro de cada ano. Uma
“outra” festa é parida dentro da própria Festa. A de 2006, por exemplo, começou a ser
preparada, pensada e “gestada” ainda dentro da Festa de 2005. No quarto dia da Festa é hora
de anunciar os novos festeiros que terão a oportunidade de participar da fruição da nova Festa
no ano seguinte, ocupando oficialmente o lugar que lhes fora destinado para a Festa do
Glorioso S. Benedito, na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Cuiabá.
É uma corrente que se abre para agregar mais um elo, que mais tarde se abrirá
para recolher mais outro elo. O novo elo, contudo, é como se fora o primeiro elo de uma
interminável corrente. A Festa de amanhã rememora os acontecimentos em conexão com o
ontem e preanuncia o amanhã: é mimesis (RICOEUR, 1978; 1997).
Buscarei, em algumas poucas páginas, a descrição do que vi, ouvi e senti, o que
se deixou capturar ou exteriorizar nesse tempo vivo da Festa de S. Benedito. Comunicar o que
foi dito e o que não foi dito. Não pretendo descrever uma mesma Festa, a partir da anterior,
sempre outra inteiramente nova, a cada ano, com sua singularidade. A Festa não é um
episódio único e repetitivo, não sendo, por isso, possível descrevê-la de uma vez só, num
mesmo tom. Ela será descrita mediante uma etnografia densa, carregando dimensões
universais com as intencionalidades singulares que se traduzem em cada Festa, sua novidade e
ressignificação. Ela não se deixa capturar num espaço de formalidade, ela é única em cada
ano, sem deixar de ser a mesma, cada uma delas a cada ano é celebrada sem cópias e
repetições.
Cada Festa carrega uma singularidade própria. Os festantes envolvidos com a
devoção fazem dentro desse movimento festivo uma mimese da primeira aparição desse
evento religioso no espaço e no tempo. Podemos dizer que a Festa é marcada por dois grandes
momentos que se desdobram em vários outros momentos, um tempo forte e concentrado e
um grande tempo extensivo e disperso que se estende pelo ano inteiro.
O primeiro momento formal da organização é marcado pelo plebiscito
16
que
escolherá o nome dos novos festeiros, posteriormente aprovados, sob a consulta do Conselho
16
O plebiscito na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, segundo seu Nonô, é uma forma de
democratização na escolha dos festeiros. As capelas ou comunidades dessa referida Paróquia e devotos em geral
Pastoral Paroquial (CPP). A partir daí faz-se a convocação dos novos festeiros pelo pároco
para as reuniões permanentes até a prestação de conta da Festa; a corrida em busca de
patrocínio; a participação nas missas de terças-feiras tendo, muitas vezes, promoções pela
manhã; o tradicional tchá co bolo e jantares; a preparação das liturgias; a composição das
equipes de trabalho; um grande baile para angariar fundos para a Festa.
O segundo momento formal é marcado pelo início da peregrinação das imagens
dos santos (Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito); a visita da bandeira de S. Benedito; a
armação da estrutura da Festa demarcando todo o entorno da igreja; o levantamento do mastro
que anuncia que é tempo forte de Festa, os três dias que a precedem, nos quais se celebra o
tríduo, respectivamente quinta, sexta-feira e sábado, que culmina com o quarto dia a Festa
maiorno qual ocorre a missa campal pela manhã, a grande procissão às dezessete horas e os
festejos à noite. O tempo da Festa, por assim dizer, fecha-se com a descida do mastro e a
posse plena e de fato dos novos festeiros na última terça-feira, às cinco horas da madrugada,
também em julho, o mês da Festa (SILVA, 2006, p. 2-3)
17
.
A Festa, como vimos, é um movimento contínuo, de sorte que, para
compreendê-la ou me aproximar desse movimento, foi necessário acompanhar a Festa de
2005, para buscar descrevê-la etnograficamente em seu desenrolar na Festa de 2006, onde
acumulava um conhecimento dos seus processos mais gerais e específicos. Deixo claro que,
em primeiro plano na minha descrição, terei sempre a Festa de 2006, não sem contrapô-la, de
certa forma, à Festa de 2005.
Esta aventura foi possível quando iniciei uma certa viagem à temporalidade
da Festa de S. Benedito, tendo sempre presente nas duas últimas Festas seu tempo mais forte,
os três dias de tríduo e um dia dedicado ao tempo alto da Festa, ou seja, o dia “D”.
Atrevo-me a colocar um marco divisor simbólico entre uma Festa e outra,
embora ele não aconteça, pois o sentido é de continuidade ininterrupta da presença do
sagrado, mediado pelo Santo. Portanto não um momento do fim de uma Festa para o
de S. Benedito podem ajudar na escolha através de uma cédula de votação que é posteriormente depositada numa
urna.
17
A devoção a S. Benedito cresceu mais do que a de Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora do Carmo,
sendo necessário destinar duas missas (às 5 da manhã e às 7 da noite) aos devotos de S. Benedito, às terças-feiras
com chá com bolo de manhã e ceia à noite [...] a imagem de São Benedito percorre as comunidades no mês de
maio, a bandeira visita as casas no mês de junho com banda de música e grandes festejos ocorrem no tempo forte
da festa: tríduo preparatório e dia solene na 'primeira domingueira' de julho”.
começo de outra, apenas um ritual de mudanças de personagens que alimentarão o novo fluxo
e a continuidade dela.
Nessa devoção, segundo Nonô, podemos encontrar quatro categorias de
cuiabanos: os primeiros, aqueles que nasceram dentro da devoção; o segundo grupo são os
filhos de pai ou de mãe cuiabanos e o(s) filho(s) que nesta cidade nasceu(eram); o terceiro
conjunto diz respeito àqueles nascidos cuiabanos, cujos pais não são de Cuiabá; e, por último,
o quarto grupo, os cuiabanos por adoção.
Existem também algumas categorias que chamarei de festantes. São aqueles
que, no período exato dos quatro dias da Festa, vêm trazer suas famílias e participar das
missas, porém não se envolvem com a Festa em si, pois para eles a Festa acaba após o quarto
dia.
também os curiosos, trazem donativos, dançam, comem, divertem-se,
pagam suas promessas aos pés do santo e seguem aliviados para suas casas e vidas. Outros, os
chamados devotos de S. Benedito, estão ali dedicadamente todas as terças de madrugada ou à
noite participando das missas tradicionais do santo. Neste grupo, pessoas da elite que são
bons colaboradores fixos com donativos, porém não se envolvem, obviamente, com o
trabalho pastoral ou social da igreja. São pessoas influentes da sociedade, políticos,
advogados, médicos, grandes comerciantes, empresários, dentre outros.
Finalmente existe um outro grupo formado por devotos fixos grávidos da
tradição. Participam das missas, estão envolvidos com o trabalho pastoral e social da igreja
durante todo o ano, peregrinam com o santo em família, misturam suas vidas com o cotidiano
da caminhada e proposta dessa Paróquia.
É importante também ressaltar a presença da imagem do santo que vai sendo
passada de pais para filhos, imagens antigas que atravessaram gerações dentro de uma mesma
família.
Fotos 17, 18 e 19 – Imagem do santo conservada em família.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Após dois anos participando dessa Festa e acompanhando uma de suas
liturgias, decidi pesquisá-la, entendendo que algo tão duradouro, expressivo e popular, com
fortes traços da cultura cuiabana poderia se constituir num trabalho relevante tanto no
sentido da memória como das significações culturais que esta Festa possui. Assim nasceu a
presente pesquisa, do íntimo (de dentro) da Festa para dentro da academia no espaço do
Mestrado em Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT).
A relevância do trabalho se justifica pela Festa de S. Benedito em Cuiabá se
constituir como parte integrante do cenário social, um espaço do tempo vivenciado por
diversas significações, que mobilizam a população cuiabana, trazendo a cada ano, no seu tema
e lema, expressões das lutas contemporâneas, sobretudo as sociais e políticas. Essa realidade
não era comum na origem da Festa, pois de certa forma ela própria se constituía num
espaço vivo de reiteração cultural.
Alguns temas foram muito relevantes e mobilizadores como: São Benedito:
Fraterno com os pequenos e pobres; São Benedito: Educador da vida e da esperança; É tempo
de Festa. É dia de Santo. É festa de São Benedito; São Benedito: Mestre da Vida e da Fé; São
Benedito: Fé e tradição da gente cuiabana; São Benedito: símbolo da humildade; “São
Benedito hoje, vida sim, drogas não”; Nas águas da salvação: São Benedito Nosso Irmão; São
Benedito: União de credos e raças; Fé e tradição de um povo: Festa de São Benedito; De mãos
dadas com São Benedito, buscaremos solidariedade e paz (2005); São Benedito: Ajude-nos a
curar as deficiências (2006).
2.2 O encontro do santo com os devotos nas madrugadas e noites das missas às terças-
feiras cuiabanas: a busca do ritual na memória simbólica
Foto 20 - Missa na cozinha de S. Benedito, durante o restauro.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Foto 21 - 1ª. Missa na terça-feira dentro da Igreja após o restauro.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A Festa segue de ano a ano como um instrumento que atualiza a memória
histórico-educacional e as tradições da raiz da cuiabanidade, conceito que encontrei no
historiador cuiabano Lenine Póvoas.
Nos meados da década de 80 do culo passado, ainda na minha adolescência,
pude com um grupo de jovens conhecer algumas igrejas de Cuiabá.
Nessa ocasião, conheci a Igreja do Rosário e S. Benedito. E o mais interessante
é poder dizer que, por mais ou menos um ano, morei nos fundos dessa paróquia. Nas muitas
madrugadas das terças-feiras participava da missa de S. Benedito. Eu achava cedo demais
aquela missa que tinha início às 5 horas da madrugada, no entanto seu Nonô (CADERNO DE
CAMPO 4, 2006, p. 47) afirma que a missa da madrugada ocorria mais cedo ainda, às 4 horas
da manhã.
A missa era às 4 horas da manhã, a minha avó passava por aqui com a lata
de água na cabeça. Primeiro ela ia à missa, depois ela ia buscar a água num
lugar chamado de Buracão
18
Passou para as 5h possivelmente no final dos
anos 50. Com Pe. Emílio
19
já era às 5h. A mudança foi assim, o Pe. Ivo ainda
estava aqui, tinha missa 4h, muitos perdiam e vinham à noite, no final da
missa rezava a oração de S. Benedito. Assim a missa da noite passou
automaticamente sendo de devoção a S. Benedito, isso por volta de 86 a 87.
A partir de quase duas décadas, a missa das terças-feiras começou também a
ser celebrada à noite, dedicada também a S. Benedito, de sorte que os devotos que dela não
podem participar pela manhã, oportunamente o fazem a noite.
Muitos devotos me afirmaram que a vida deles só tem sentido após a missa das
terças-feiras, seja de madrugada seja à noite, e até que chegue o momento de assisti-la é como
se estivesse faltando algo; no dia seguinte, tudo corre com a maior tranqüilidade, pois o
compromisso foi selado no encontro com o santo.
Na Festa um espaço íntimo e público onde se compartilham, além das
disputas, dimensões de e sentidos que permitem ao povo manifestar-se, divertir-se. Nas
barracas, comendo, bebendo, jogando, brincando, os devotos equivalem-se aos que se
pretendem poderosos, através de transações com os poderes simbólicos.
Nas madrugadas de terça-feira eu chegava à Igreja quase dormindo, mas o
povo se encontrava, e bem-acordado. Então eu via aquele povaréu aclamando, pedindo e
agradecendo ao santo as graças recebidas. No final da missa, mais acordada, por várias
18
Na Prainha a gente ia pegá água quando não tinha ali no poço buracão [entre a Igreja do Rosário e o Morro
da Luz]. Entrevista de Ana Alexandrina (54) em ago. 2000. In: ROMANCINI, Sônia Regina. Cuiabá: paisagem e
espaços da memória. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005, p. 83.
19
Os jesuítas da Província do Brasil Central não assumiram logo a Paróquia, mas somente a 3 de abril de 1948 o
Pe. Emílio Faure, da Província do Brasil Central dos Jesuítas, tomou posse da paróquia na presença de
autoridades civis tanto do município como do Estado (SILVA, José de Moura. Apontamentos sobre a Paróquia
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, 2000).
vezes ficava vendo e lendo as centenas de manifestações que os devotos traziam e
dependuravam na capela lateral da igreja, espaço este reservado, antigamente, para os negros
fazerem suas devoções, isto é, fora da sua nave central, até então tomada pelos brancos.
Ocorre que essa separação acontece dentro da Igreja do Rosário, como
esclarece Cristiane dos Santos Silva (2003, p. 52):
No entanto, a segregação realizada no espaço sagrado da igreja do Rosário
delimita o local ocupado pelos cativos, situando-os na parte baixa da nave
nos cultos divinos, independentemente do fato de serem irmãos do Rosário
ou não.
A segregação que havia nessa época dentro da Igreja do Rosário me levou a
entender que essa situação empurrou os fiéis negros livres ou cativos para a ala leste dedicada
a S. Benedito. Por isso muitos dos antigos devotos negros e afro-descendentes ainda sentem-
se atualmente mais ligados a essa capela, embora a segregação tenha sido abolida.
Fotos 22 e 23 - O interior da capelinha dedicada a S. Benedito das curas após o restauro.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
Foto 24 - Vista da lateral mais baixa da estrutura que mostra a
ala dedica a S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O espaço da nave lateral leste da capela de S. Benedito era, até recentemente,
como se fosse um verdadeiro museu, pois guardava centenas e centenas de oferendas como
fotos, mensagens, objetos relativos à cura, evidenciando, assim, as diversas expressões da
do povo cuiabano ao santo negro
20
.
Naquela época, em 1989, eu observava que nas paredes não cabiam mais
tantos símbolos de gratidão, demonstração visível da graça alcançada. Tudo tinha que ficar
visível, dependurado nas paredes, não podia ser tirado. Parecia dizer a quem olhasse o quanto
se podia confiar no poder do santo. Podia ser uma dor física, espiritual ou financeira, quem
por ali passasse se sentiria mais aliviado e de esperança renovada. Curiosamente nela havia
uma imagem antiga de S. Benedito que, segundo os devotos, “se olharmos fixamente, ela
pisca os olhos”.
Após o restauro
21
da igreja, que teve início em 10 de agosto de 2003, com
término em 2006, seus administradores tiraram todas aquelas manifestações do povo,
devolvendo-lhe somente a capela na sua aparente originalidade. Segundo seu Nonô, a
administração da Paróquia assegurou que pretende "colocar tudo de volta".
20
Esse espaço é chamado de Capela de S. Benedito das curas que fica na ala leste da Igreja; era ali que ficavam
expostos os sinais da graças recebidas através de objetos depositados na parede. As paredes dessa capela,
segundo o Pe. José de Moura e Silva, é provavelmente de 1760-70, com espessuras chegando até um metro.
Nessa capela, após o restauro, ainda ficou exposta uma imagem de S. Benedito em terracota, anterior às imagens
de madeira, portanto muito antiga, do século XVII. Essa imagem é diferente do retábulo central da Igreja.
21
Efetivamente não houve restauração, conceito estrito quando se recuperam com material original e similar
peças.
Essas fotos [diz seu Nonô] estão guardadas, e é intenção da administração da
Igreja passar para a sala especial, colocar esses símbolos na ala da Igreja de
S. Benedito junto com as fotos do restauro. É interessante que para muitos
essa capela é ainda hoje chamada de S. Benedito das curas [uma referência à
ala onde os negros assistiam à missa]. Os mais velhos, mais antigos, tinham
preferência em assistir à missa na capela lateral (CADERNO DE CAMPO 4,
2006, p. 21).
A preferência dos devotos em participar da missa nessa ala talvez seja porque
ainda hoje, em pleno século XXI, haja a discriminação de negros no Brasil e pelo fato de eles
serem testemunhas oculares dessa apartheid dentro da própria igreja, uma segregação racial
ou política que vai ter continuidade com a segregação religiosa.
Lendo uma transcrição feita pelos historiadores Rosa e Jesus (2003, p. 195),
encontrei nela um dado curioso sobre o porquê dos negros e pobres não poderem edificar uma
igreja com o nome do santo de sua devoção, tendo que estar agregados a outras igrejas
edificadas:
Acordam que nunca esta Câmara desse licença e chão para se formar outra
igreja, ou Capela, e principalmente aos pretos e mulatos que regularmente
são os que andam com Nossa Senhora do Rosário fora da Paróquia, e que
havendo devotos desse ou daquele Santo a quem quisessem formar capelas
ou Igreja, reduzissem essa despesa em lhe fazer altar na Matriz, com o que
viria esta a compor-se e adornar-se, e que desta proibição era isenta a capela
de Nossa Senhora Mãe dos Homens que presentemente se fabrica com
esmolas do povo, por ser devoção intentada ainda antes da criação desta
Vila; e assim no caso que pelos anos futuros se queira reedificar, ou
acrescentar a dita capela, não haja dúvidas alguma em consentir a Câmara
22
.
Esse trecho citado do 1º. capítulo do Estatuto referido na nota de rodapé parece
revelar uma realidade que foi comum tanto em Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira
Capital de Mato Grosso, como também na Vila do Bom Jesus de Cuiabá, atual Capital. As
capelas nesse período histórico eram ainda de controle do poder público. As Câmaras que
representavam nas cidades o poder da Coroa aprovavam ou desaprovavam as edificações de
bens públicos que, posteriormente, seriam mantidos por esse mesmo poder. Assim a capela
para os negros e mulatos era um gasto que podia ser evitado.
Para ilustrar temos como exemplo a capela dedicada a Nossa Senhora do
Rosário que pôde ser edificada devido à grande insistência dos fiéis e também pelos
poderes públicos da época entenderem que os devotos, estando num mesmo local e
22
Confronte Mss, Avulsos, Lata 1753 A, APMT. Capítulo 1º. Sobre o culto Divino e Festividade da Câmara e da
Igreja desta Vila. Estatutos Municipais ou Posturas da mara da Vila Bela da Santíssima Trindade para o
Regimento da República nos casos em que há lei expressa segundo o Estado do País.
obedecendo às normas da Igreja, seriam mais fáceis de controlar. Vejamos a contribuição que
aparece na pesquisa de Cristiane dos Santos Silva (2003, p. 158):
Por conta das dificuldades enfrentadas no período colonial, a igreja do
Rosário teve de edificar seu espaço sagrado, envidando esforços para
aprová-lo. Dependeu, muitas vezes, da benevolência das autoridades para
encaminhar a requisição. Ressalve-se, ainda, o número reduzido de
religiosos para ministrar as missas e os cultos divinos.
Esse controle e restrição para a construção de templos permite-me entender
que, com a queda da capelinha de palha dedicada a S. Benedito em 1722, possivelmente os
negros sem recursos e prestígio não puderam edificar um novo templo, por isso foi permitida
a construção dessa capela anexa à Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Conforme argumenta Cristiane dos Santos Silva (2003, p. 83-85):
Sem dúvida, dentre os santos existentes São Benedito se destaca pela
devoção e pela difusão na religiosidade dos não-brancos. [...] A irmandade
de São Francisco de Paula não se distancia do contexto existente, mesmo
pertencendo à igreja do Rosário, configurando uma irmandade sem um
templo próprio. Sua busca por um templo deve ter gerado conflitos internos.
Entretanto apenas a irmandade de São Benedito edificou a capela ao lado da
igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Posteriormente, devido ao número expressivo de devotos de S. Benedito e à
grandeza da Festa, a paróquia foi aos poucos sendo chamada de Nossa Senhora do Rosário e
S. Benedito, atualmente conhecida por esse nome. “Neste caso, a irmandade de São Benedito
conseguiu não um templo alheio como também inverter a situação de hóspede para
possuidora de direitos, excedendo aqueles pretendidos pela irmandade do Rosário” (SILVA,
2003, p. 87).
É interessante dizer que a Igreja do Rosário e S. Benedito foi construída pelos
negros escravos que não podiam edificar, sem permissão das Câmaras, uma capela com o
nome do santo de sua devoção. No caso da Igreja do Rosário, não podiam nem participar das
missas tomando os lugares da frente, na ala central, pois no início de sua edificação ainda não
tinham sido construídas as chamadas alas ou naves laterais.
Os negros que freqüentavam a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, devido à
segregação de espaços no seu interior, como foi mencionado, podiam participar das
missas na ala esquerda que constituía a capela lateral dedicada a S. Benedito, e este espaço
acabou demarcado como um espaço étnico, de sorte que recentemente podem ser
encontradas capelas autônomas cujo padroeiro é S. Benedito
23
.
Possivelmente, com a abolição da escravatura e com a vinda dos padres
jesuítas (1948) para assumirem a Missão Indígena no Estado de Mato Grosso, foi a eles
destinada, como espaço de articulação da Missão de Mato Grosso, a referida igreja, de sorte
que essa separação de espaços foi sendo abolida. A separação, antes desses padres, se estendia
também para dentro da igreja na nave central, sendo que os brancos tomavam os lugares mais
à frente. Havia, ademais, dentro da nave central da Paróquia, uma "cerca ou cancelo”
(AVELA, [20--], p. 13-14)
24
.
Tomemos essa realidade mencionada sob o olhar de Berger (1985), que nos
esclarece: a) o sagrado se apresenta como opus alineum... mostrando que há uma cola entre as
estruturas políticas de dominação e a ordem sagrada (realissimum aeternum); b) o sacerdote é
o dono dos meios de produção do sagrado... expropria os fiéis dos meios de produção... E
esses ficam com a fé.
Os ricos e brancos, por sua vez, como que se soldam ao sacerdote,
apropriando-se dos meios de produção do sagrado, buscando legitimação e expropriando.
Lendo Berger (1985), posso entender as formas de apropriação do sagrado as
quais aparecem mascaradas nos espaços interiores da arquitetura das igrejas, em especial da
Igreja do Rosário e S. Benedito. Em Cuiabá essa apropriação se deu especialmente com a
presença das Irmandades (SILVA, 2006, p. 14)
25
, as quais foram instituídas bem antes do
clero assumir a direção da Igreja Nossa Senhora do Rosário
26
e S. Benedito.
Segundo Eduardo Hoornaert et al. (1992, p. 234):
23
Segundo Padre Moura, essa separação ou distinção de grupos e pessoas que havia dentro da Igreja do Rosário
e da capela de S. Benedito se originou devido à forma como as Irmandades se organizavam, pois na ala central
estava Nossa senhora do Rosário e sua Irmandade e na Ala leste da Igreja foi colocado S. Benedito. Portanto os
devotos se acomodavam onde estava seu santo de devoção. Essa constatação foi possível a partir do estudo
arqueológico de 2003 a 2006 no período do restauro. A ala Oeste (onde está a imagem de Nossa Senhora do
Rosário à esquerda de quem entra na Igreja e a de S. Benedito à direita) é mais antiga do que a ala Leste (onde
está a imagem de S. Benedito na capela a ele dedicada). Assim pode-se constatar o movimento social e religioso
de poder que exerciam as Irmandades, segregando espaços (Conversa com padre Moura, 2007).
24
Cancelo (ê), grade nobre, em balaústres torneados ou trabalhados em talha, que separa a Capela-Mor do corpo
da nave, ou esta dos altares laterais. Costuma-se falar, de modo mais simples, em “grade de separação” ou
“balaustrada de separação”. Exemplos notáveis são as balaustradas em madeira torneada, de autoria do
Aleijadinho, que antecede os altares do arco-cruzeiro e a capela-mor da nave da Igreja do Carmo em Sabará e a
nave da matriz de Conceição do Mato Dentro.
25
Antes da criação da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, as Irmandades eram as responsáveis pelo templo.
26
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila Real já existia pelo menos desde 1745. Para um
estudo sobre as origens das festas de S. Benedito na cuiabania, ver ROSA, Carlos Alberto. Chácara do Coxipó.
Almanaque de São Benedito, 1976.
As irmandades são de origens medievais, elas constituem uma forma de
sobrevivência na esfera religiosa das antigas corporações de artes e ofícios.
[...] tiveram seu período áureo no período do Brasil colonial e perduraram
fortes ainda na época imperial.
Na Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, as Irmandades perduraram
até o início da década de 80 do século passado, sendo a última a atuar nessa Igreja a
Irmandade de S. Benedito.
Fica visível na realidade dessa igreja a separação entre ricos, pobres e negros.
Essa divisão de espaços mostra que um lugar natural reservado ou demarcado para cada
camada social, fato que, por dezenas de anos, foi aceito sem conflito explícito, ficando cada
um no seu lugar com a bênção da igreja.
A cancela de balaústre “[...] se abria para os ricos da sociedade cuiabana e
fechava-se para os negros e pobres”. Esse é o sentido semiótico da leitura feita por seu Nonô
(CADERNO DE CAMPO 4, 2006, p. 21).
Nas missas o mesmo povo estava devotamente rompendo todas as cancelas,
cancelos e porteiras para se colocar aos pés do santo pedindo ou agradecendo, não querendo
aparecer e nem ser visto, pois o encontro era pessoal e íntimo. Os fiéis participavam de tudo,
muitas vezes sem entender por que eram tratados de forma diferente, mas sua manifestação
era sentida nas suas preces, nas bandeiras de luta, cartazes de indignação, onde expunham
publicamente sua opinião.
A realidade do cancelo é minimizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) que quer devolver a cerca ao seu lugar original. Na fala de seu
Nonô pude perceber as marcas que esse tempo deixou: "[...] querem colocá-la de novo, mas
Padre Roque está resistindo. Porque era um tempo de segregação, rico na parte de cima e
pobre na parte de baixo. Agora voltar a essa história triste” (CADERNO DE CAMPO 4,
2006, p. 22).
Pela arquitetura da Igreja do Rosário e S. Benedito pode-se verificar ainda que
ela foi construída com uma parte de piso mais alto e outro mais baixo, criando uma parte
superior e outra inferior, evidenciando visivelmente a separação de corpos e de classe.
No livro Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito: Guia de
Visitação, Silva, (2006, p. 34) esclarece:
A capela-mor tem início, ao sul, no arco-cruzeiro. Acima do espaço que vem
da parte do sul e ultrapassa o arco-cruzeiro eleva-se o piso, para dar lugar ao
espaço do sacerdote. A capela-mor, parte destinada ao sacerdote e às pessoas
mais próximas dele no serviço religioso, contém níveis: prolongação da parte
anterior ao arco-cruzeiro, destinada aos membros grados de Irmandades,
nível seguinte mais elevado destinado ao sacerdote, hoje contendo um altar
moderno. Mais acima, o retábulo.
Foto 25 - Interior da nave central da Igreja N.
S. do Rosário e S. Benedito, após o restauro.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A geração mais jovem de devotos que freqüentam a Igreja sequer imagina que
essa separação existiu, eles a percebem como uma arquitetura antiga, sem vinculação com
a vida social e política de uma época. No entanto, para os sectários antigos, essa separação,
embora tenha sido retirada da parte física desse templo cristão, ainda continua na mimesis
imitação e memória do povo cuiabano mais antigo.
Semelhante leitura faz dona Helena, paroquiana devota antiga de S. Benedito:
[...] essa capela foi feita pelos pobres, negros e escravos para S. Benedito. Para eles
assistirem à missa e continuarem a devoção ao santo, já que não podiam se misturar aos ricos.
Até hoje tem pessoas que não se sentem bem em assistir à missa na nave grande"
(CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 42).
Seu Nonô reforça dizendo que não a capela dos negros como toda a igreja
foi levantada pelos negros escravos.
Nos dias da Festa, o que mais chamava a atenção era ver o povo de madrugada
chegando, muito cedo, ainda escuro. As pessoas vinham rápido, sozinhas ou em grupos, de
todos os cantos da cidade. De repente, as centenas de cadeiras estavam todas cheias, e tantas
outras centenas de pessoas acompanhavam a missa em pé, cantando e rezando. Parecia que
todos se conheciam, pois havia muita troca de sorrisos e abraços. E na frente do altar, nas
primeiras fileiras – reservadas - se colocavam os festeiros (rei, rainha, juízes de vara e
ramalhete e toda a coordenação da festa com seus familiares).
Fotos 26 e 27 – Missa na madrugada do 2º. dia do tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Curioso, ainda, que nesses primeiros lugares se concentrava um outro estilo de
classe social, que chegava cedo e ia reservando os lugares para os demais integrantes do
grupo, os chamados tradicionalmente de cuiabania, pessoas de famílias mais influentes na
sociedade, principalmente na política ou devotos mais antigos.
O testemunho de seu Nonô, bem como de outros entrevistados, traz explícitos
nomes de pessoas e de famílias da cuiabania que serão aqui identificados pela inicial de seu
nome.
Como testemunhou seu Nonô:
Antes os cuiabanos estudavam no Rio de Janeiro, no período da festa esses
cuiabanos vinham, figura muito marcante pra mim Al. de M.., seu J. A.
Barbeiro, Dr F.. Eles vinham! A família C., A. de M.... O lugar deles era
marcado, o pessoal, os amigos marcavam, como lugar deles na frente parecia
que eles tinham uma cadeira cativa. Isso ainda hoje acontece. Chegam as
famílias C., dona O. C., H. C., ou alguém dessa família, parece que eles têm
o direito de sentar na frente. São aqueles cuiabanos que lutaram por essa
Festa, eles receberam uma graça grande, por eles defenderem essa Festa
(CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 49).
A realidade acima descrita ainda está visivelmente presente na Festa de 2006, a
posse dos primeiros lugares. Estar na frente reafirma, pelo espaço, a importância social, ao
ponto de ser possível perceber murmúrios de outros devotos que chegam ainda de madrugada
na Igreja do Rosário e S. Benedito e não podem usufruir desses privilégios, tendo que se
contentar com os bancos ou cadeiras não reservadas.
O que parece "natural” para esse primeiro grupo, que afirma publicamente que
esse espaço tem dono, na verdade denuncia a hierarquização. Ouvi falar que aquele espaço
pertence “aos cardeais”, eles não estão aqui, mas logo irão chegar (num tom refinado de
comunicar ou lembrar aos desavisados), referindo-se às pessoas importantes da sociedade,
como prefeitos, algum político antigo ou um outro nome de família conhecida.
Por ocasião de uma das Festas, fui convidada a fazer o comentário de uma das
liturgias. Aceitei prontamente e passei a acompanhar a preparação para essa cerimônia. No dia
em que fiquei responsável pelos comentários da liturgia, coloquei-me diante do ambão”,
local reservado para o comentarista, e fiquei frente a frente com centenas de devotos. Estava
eu diante de olhos fitos no altar, pareciam pequenas lâmpadas acesas iluminando todo aquele
lugar, pois ainda era madrugada.
Fiquei impressionada com tanta gente. Eram pessoas de todas as idades e
classes sociais. Via agora que as autoridades locais faziam questão de se colocar bem à
dianteira. Como esclarece seu Nonô:
A alta sociedade cuiabana envolvida com S. Benedito tem a tradição de ficar
na frente, os primeiros bancos reservados. No caso de J.A. G., A. ... Esse
pessoal tem essa tradição. diminuiu essa multidão. Porque antes a
sociedade cuiabana usava muito desse espaço para politicagem...
(CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 74).
Observando todo aquele povaréu, a sensação era de que por um instante o chão
do pátio da igreja tocava no céu. O povo cantava, louvava, pedia, agradecia, anunciava e
denunciava. No dizer do professor Luiz Augusto Passos, doutor em Filosofia, como que no
lugar, vestido de festa, o povo se “empodera”.
Foto 28 - Encontro dos devotos com S. Benedito após a missa do tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
2.3 A cuiabanidade em tempos de festa: solenidade como inserção social
Fotos 29, 30, 31, 32, 33 e 34 - Devotos entrevistados (dona Juja, seu Geraldo, dona Helena,
Seu Miguel, dona Sebastiana, ao lado do esposo, e seu João Grosso.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Circulam conflitos na Festa de S. Benedito, afirmação de negritude em
contraponto com a “ordem” branca, espaço e tempo festivo soam como ameaça ao poder que
se coloca por cima da Festa. A manifestação popular nesta cerimônia chama e revigora - de
volta pela revivescência uma outra ordem que põe em evidência a memória da opressão
histórica que as comunidades negras e indígenas sofreram nessas terras. A manifestação
étnico-racial ligada à própria origem do negro Benedito nega esse controle branco tão forte,
poder este que a cada ano quer se reapropriar de forma definitiva, institucionalizando e
trazendo a Festa para seu âmbito de determinação e poder, passando a limpo aquilo que a
mantém viva, autônoma, surpreendente, como memória perigosa de luta e de rompimento
com as cancelas da segregação, do espaço da cultura afro-brasilíndia conquistada e
confirmada.
Na Festa e no seu espaço, os excluídos
27
socialmente encontram formas de
estar presentes e ser ouvidos através da simbologia presente nas missas ou nas apresentações
culturais. O que parece ser um ritual celebrativo formalizado da Igreja Católica assume,
através dos grupos que preparam a liturgia dos quatro dias de Festa, uma consciência que traz
à tona a realidade local e nacional.
Os devotos lutam permanentemente pelo retorno da Festa para as mãos do
povo. Muitos da elite branca não se sentiam tranqüilos de ser devotos de um santo negro, mas
os que assumiram a devoção e a tradição ainda hoje se colocam na frente, como se
expressassem: Esse lugar é nosso! Lutamos por uma Festa que não existiria sem nós! Estamos
aqui assumindo, publicamente, como brancos da elite que somos!
um lugar de destaque social na Festa. Muitos filhos de cuiabanos voltam a
Cuiabá exclusivamente por ocasião dela, quando sua família expressa as relações simbólicas
de poder e status.
27
Por excluídos entendemos não somente os negros, mas todo o povo que vive em Cuiabá e Mato Grosso e se
encontra desempregado,os doentes, dependentes químicos e de álcool, analfabetos, população de rua,
trabalhadores bóias-frias e todos que são discriminados por algum tipo de preconceito de cor, credo ou sexo. E
finalmente os que não têm nenhuma representação social.
Verifiquei que a simbologia negra foi e está sendo conquistada a duras penas.
O espaço da Festa era das figuras cuiabanas, políticos interessados no controle social.
À sua retomada, esse confronto dos setores populares com a elite continua. A
cada ano existe uma briga continuada, quando muitos dizem: “Cada ano a elite vai
conquistando alguns espaços, cada ano tem alguém mandando na Festa como se fosse o dono
dela” (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 75). Esse foi o desabafo que ouvi de dezenas de
devotos com os quais conversei ao longo da pesquisa.
2.4 Brasil mostra a sua cara: a diáspora espaço/tempo das senzalas em analogia aos
espaços/tempos míticos da devoção
Dialogo nesta etnografia com a diáspora judaica
28
. Diáspora é uma palavra de
origem grega que significa dispersão. Na língua hebraica foi traduzida como uma negação do
outro na sua própria terra. Sujeito repudiado era tirado do chão como que desterrado e
arrancado de suas origens e a identidade negada. Na bíblia dos cristãos (Jeremias 52,31) a
diáspora aparece no sentido de exílio, o que para estes correspondia ao cativeiro ou
deportação.
Da mesma forma essas pessoas estão fora de seu espaço de origem. A história
do povo judeu helenista com o tempo abandona possivelmente a tradução e sentido atribuído
à diáspora pelos hebraicos. Esta tradução parece não mais pesar sobre os ombros dos judeus
de forma negativa, trágica, de estarem desterrados. O que houve foi uma ressignificação do
sentido da palavra, que foi sendo traduzida no sentimento social e religioso como benefício,
“e suscitava até sentimentos de orgulho”.
Diversos foram os motivos da dispersão do povo judeu, tanto por conflitos
econômicos como religiosos. A Jerusalém que era e é entendida como o lugar da pátria
terrestre do grande culto aos céus, com as deportações geradas por estes conflitos com o
tempo assistiu ao desaparecimento do culto em seu templo.
Avançando um pouco mais para entender essa mudança de sentidos, encontro
no Novo Testamento a palavra diáspora ligada a uma condição do ser cristão, o que equivale
28
Diáspora judaica (no hebraico tefutzah, "dispersado", ou תולג galut "exílio") refere-se à dispersão dos judeus
pelo mundo e à formação das comunidades judaicas fora da Palestina. Os judeus dirigem-se para diversos países
da Ásia Menor e do sul da Europa, formando comunidades que mantêm a religião e os hábitos culturais judaicos.
Empurrados pelo islamismo, os judeus do norte da África vão para a Península Ibérica. Expulsos no século XV,
migram para os Países Baixos (Holanda), os Bálcãs, a Turquia, a Palestina e, estimulados pela colonização
européia, chegam ao continente americano. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/ADngua_hebraica>. Acesso
em: 25 jun. 2006.
dizer que o cristão da diáspora é aquele que é peregrino, que está espalhado por toda a Terra
como que cumprindo a frase de Jesus Cristo Ide por todo mundo e pregai o Evangelho”
29
,
significando ser o enviado do filho de Deus presente nas terras estrangeiras.
A pátria aqui é entendida como pátria celeste e não mais terrestre, concepção
que permitiu a expansão do cristianismo pelo mundo. Contribuiu ainda para o
desenvolvimento e fortalecimento do culto nas sinagogas. O povo vai como que encontrando
espaço para o culto, festas, romarias ou cerimônias religiosas importantes que tinham o
templo de Jerusalém como referência. Agora aconteciam nas pequenas sinagogas que vão aos
poucos crescendo em número e se espalhando por diversos lugares, distanciando-se cada vez
mais de Jerusalém. Outras microestruturas do culto da fé iam sendo edificadas fora de
Jerusalém. Há uma expansão do pensamento religioso judeu.
Assim a diáspora possibilitou assistir ao surgimento de uma concepção nova do
culto sagrado. De certo que essa realidade até os presentes dias ainda não é aceita pelos
judeus. Todavia é possível encontrar judeus israelitas, árabes, asiáticos, americanos, europeus,
brasileiros, bolivianos, africanos e tantos outros povos dividindo quase o mesmo espaço em
todos os continentes. Cada um desses povos com o seu culto, expressando sua cultura com
liberdade em terras estrangeiras. Há nesse caso um espaço aberto onde se negocia uma reserva
simbólica para a vivência dos sentidos e significados da herança que cada grupo étnico
carrega consigo.
Não posso dizer que com isso ausência de conflitos identitários de
pertencimento. Possivelmente eles existam e são também negociados no sentimento da raça
humana ou da nação humana. Essa negociação de pacificação entre uma identidade e outra
possibilita a convivência de várias nacionalidades e culturas distintas num mesmo espaço
nacional.
É o que ocorreu nas senzalas do Brasil, sobretudo em Cuiabá, a diáspora
assumiu o sentido do lugar onde os dispersos, despatriados, agora juntos num mesmo grupo
de sangue irmão, podiam reportar-se ao chão da África no sentido mimético, ou seja o que
René Girard (1990, p. 87) chama de "desejo mimético": “Assim, o imitador torna-se, ao
mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de seu imitador”, compreendendo esses
espaços reservados das senzalas como espaços de diásporas, local das significações e
ressignificações das raízes identitárias do povo afro-indígena.
29
Citação Bíblica. Marcos 16:15.
Fotos 35 e 36 - Procissão de entrada da Festa de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Posso afirmar que essa compreensão de diáspora e “desejo de imitação”
ocorreu e ocorre na Praça da Igreja do Rosário e S. Benedito, quando diversos grupos étnicos
que formam a identidade cuiabana, colocando-se no espaço da Festa de S. Benedito, como
que acordam a mãe África através de suas manifestações culturais, sociais, políticas e outras
formas e ressignificam o sentido da diáspora hebráica do desterro, da despatrialização.
Avançam para além do cativeiro judaico e assumem ali uma identidade de afirmação de ser
cidadão de uma pátria maior, como seres humanos sem preconceito de origem racial, credo,
classe social, opção sexual, cultural. Expressam-se, a seu modo, contra a ordem social
imposta no país que soa para os empobrecidos como a ordem daqui é passar fome, mendigar
um pedaço de pão e chão... E os que ali se colocam na praça da Festa se levantam com
bandeiras de uma contra-ordem social: a ordem daqui é ninguém passar fome; progresso é o
povo nas ruas, casas, emprego digno, saúde, alimentação e educação, povo feliz...
Essa é a tônica maior dos temas
30
que passaram a compor a liturgia da Festa de
S. Benedito a partir da década de 80 e são trabalhados durante os seus quatro dias. Esse realce
de luta que rememora o sentido da primeira Festa é marcado também pelos conflitos de
resistência por grupos de festeiros que muitas vezes querem fazer da solenidade um evento
turístico local que rompe com a tradição.
30
O Livreto da Festa de 2000 e 2001 que segue abaixo, ilustra um exemplo de temas que são abordados nas
missas da Festa.
Foto 37 – No tríduo da Festa seu Geraldo conduziu o Círio
Pascal até o altar.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O povo negro escravizado tanto no Brasil como em Cuiabá, através de suas
festas, danças, manifestações aos orixás, aproxima-se da mãe África. Ali, na Festa de S.
Benedito, ele pode fazer suas manifestações, uma memória do vivido.
O toque acelerado dos tambores, a batida ritmada dos pés no chão, evocam a
falange de espíritos vinculados à corrente dos orixás, permitindo que eles se sintam ligados ao
axé, ao destino de um grupo coletivo e, assim, se identifiquem como um povo, um grupo.
Com o andamento da pesquisa, fui entendendo que a Festa de S. Benedito se
constitui em espaço físico e simbólico de diáspora junto com todas as outras microfestas que
se dispersam em muitos lugares e tempos diversos e acontecem nas comunidades, casas de
famílias católicas, nos terreiros de candomblé ou de umbanda, constituindo-se em
reverberações da mesma e única Festa do santo.
Desta forma salta aos nossos olhos a concepção bantu de que cada um de nós
forma uma unidade numa grande corrente de forças pela qual subsistimos: elos desta grande
corrente de uma energia com identidades e faces que se exprimem numa representação
cósmica, em forma de sons, cores, objetos, pessoas, alimentos, necessidades, gostos...
De outra forma, a Festa de S. Benedito, na verdade, oportuniza um grande
momento onde os devotos também se entrosam e se inter-relacionam com outras “correntes”,
outras representações culturais que possuem na divindade ou no santo formas que se integram
numa grande diversidade cultural. A Festa manifesta possibilidade legítima de retornar às
origens ancestrais negro-indígenas junto com uma simbologia branca portuguesa popular. O
clímax da Festa é o momento em que se cruzam temporalidades do vivido com
temporalidades de outra natureza, onde os devotos encontram conexões com forças sagradas
que lhes permitem continuar vivos para lutar por sua liberdade e dignidade.
Assim nas senzalas os estados chamados de transes, danças, cantos nas festas
dos negros, foram, apesar das desconfianças dos senhores, sendo mantidos por motivos
práticos, porque os negros, no dia seguinte, rendiam muito mais no trabalho. Assim
justificavam à Inquisição portuguesa de que na verdade não se tratava de religião, mas de uma
festa semelhante à dos fados em Portugal.
O mesmo se verificou nos diários dos visitantes em Cuiabá, os quais, mesmo se
irritando com o batuque
31
e as cantorias noturnas dos negros, não as proibiam, justificando
que, no dia seguinte, eles estariam mais animados. Porém, para não passarem a noite toda na
farra, determinaram um toque de recolher, conforme se pode ler no texto transcrito de Rosa e
Jesus (2003, p. 207):
Capítulo 5º. Por inquietações que fazem os ouvidos dos moradores da Vila,
em regularmente doentes aos quais se fazem insuportáveis os batuques
dos negros de noite, e não querendo, todavia, que eles deixem de ter essa
diversão por pequeno alívio do seu trabalho e cativeiro: Acordam que os
senhores dos escravos lhes não consintam batuque, por mais horas que as de
recolher, que são às nove da noite, porque também não é conveniente que
eles nesse folguedo levem toda a noite estafando-se e sucedendo como se
31
“Batuque” é uma designação genérica de cultos afro-brasileiros. Uma variedade sincrética da babuçuê que
atualmente mescla elementos jejes-nagôs com divindades dos candomblés-de-cabloco, da pajelança, do catimbó
e da umbanda (Cf. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete batuque, p. 419). No Rio Grande do Sul é
um termo bastante popular, utilizado em algumas religiões para denominar as religiões de influência africana.
tem visto nesta vila amanhecerem neste vício, ou fadário, e o senhor que o
consentir por mais das horas taxadas, será condenado em 6 oitavas para
Câmara pela primeira vez e pela segunda em dobro, e sendo caso que o
senhor não presencie por estar ausente, sejam logo presos os que constarem
armaram o batuque e na falta de averiguação destes, alguns dos que
assistiram a ele, e com três dias de cadeia levarão quarenta açoites no
pelourinho.
A Festa, mesmo misturando os corpos e vidas indistintamente, ainda abria e
abre espaço para o descarrego das tensões, dos medos. Misturar os corpos nesse espaço
cuiabano é importante, mas nem sempre foi assim, afinal ser devoto de um santo negro dentro
de uma cultura fortemente marcada por traços europeus dominantes é uma realidade que
chama atenção. O próprio seu Nonô e outros devotos disseram: "Parecia que os ricos tinham
meio vergonha de ser devoto de um santo negro” (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 48).
A devoção maior que nasceu com a Vila Bom Jesus de Cuiabá foi ao Divino
Espírito Santo e, com ela, as Touradas que, em todo o Brasil, eram uma grande festa da igreja.
Assim explicita Antônio de Arruda (1995, p. 124):
Cuiabá cultivou muitas das festas e tradições coloniais, comuns a outras
regiões do País. Dentre elas, manteve até pouco tempo a cavalhada e
touradas e ainda mantém algumas festas religiosas, como a do Senhor
Divino e de São Benedito, sempre animadas [...] Mas, de todas as festas
antigas, foram as touradas as da maior singularidade. O campo d' Ourique,
onde se realizavam, atraía praticamente toda a população[...] Desapareceram
ante a mudança dos costumes e, em parte, por causa da Lei de Proteção aos
Animais, que as proibiu em todo país.
Brandão (1991 apud ROMANCINI, 2005, p. 42) também se refere aos
costumes da cuiabania:
[...] entre os costumes da população cuiabana, no século XIX, as festividades
tanto profanas como religiosas eram realizadas com grande participação
popular. A festa do Divino Espírito Santo era precedida pelos mensageiros,
mascarados, que percorriam, a cavalo, as ruas da cidade convidando o povo
e anunciando a realização de baile, iluminação e o coreto de música,
enquanto grupos visitavam as casas, recolhendo esmola, que podia ser em
espécie ou em prendas para serem leiloadas. Rezavam-se as missas nas
madrugadas; ao encerramento realizavam-se as touradas e cavalhadas de
tradição ibérica.
O professor Carlos Rosa, no Almanaque de São Benedito (1976), por sua vez,
salienta que a Festa de S. Benedito, em Cuiabá, antigamente não tinha a magnificência das do
Senhor Divino. As festas do Espírito Santo eram grã-finas, usando a terminologia de hoje,
eram festas de gente bem”. A atração popular da “Cavalhada e da Tourada” é reforçada na
festa do Divino. “E na festa de S. Benedito, festa de pobres, apenas dança de Congos”. No
entanto ele traz como dado importante a presença da tourada na Festa de S. Benedito
“somente em 1936”.
Essa mesma constatação das primeiras Festas de S. Benedito também é
salientada no livro Cultura Mato-Grossense de Roberto Loureiro (2006, p. 45), quando o autor
esclarece que a antiga Festa de S. Benedito, em Cuiabá, era uma festa de negros, a grande
maioria escrava, mas já apresentava a beleza e a riqueza da sua cultura de origem africana.
O esfriamento da festa religiosa do Divino parece que se deu com o fim das
Touradas e Cavalhadas. Segundo Pe. Moura (2006), com o fim das Touradas, iniciam-se as
festas públicas de S. Benedito.
As Touradas, consideradas atos profanos, aconteciam logo após a procissão do
Divino, e arras tavam toda a população cuiabana.
Possivelmente a Festa de S. Benedito, de devoção dos negros, escravos e
pobres, acontecia logo após a festa do Divino como é atualmente. A festa do Divino era a de
maior importância para a classe branca mais favorecida, também assim reconhecida pela
igreja local da Vila, por isso ocorria antes daquela. O que sabemos é que a data da Festa de S.
Benedito em Cuiabá difere da data da festa de outros lugares do país e do mundo, tradição que
foi sendo mantida pelos devotos, que não faziam questão de negociar essa data, marcada
na vida desse povo.
Os acontecimentos registrados pela história de Cuiabá e os depoimentos dos
devotos revelaram que houve pouco a pouco um crescimento devocional a S. Benedito dentro
da sociedade cuiabana, que foi atraída ao santo e à Igreja do Rosário devido aos inúmeros
milagres ou favores atribuídos a ele. Assim o santo pobre, simples, negro, iletrado, foi se
tornando popular e presente nas famílias da cuiabania, que vêm fortalecendo essa tradição
quase três séculos, como ficou registrado na fala das cuiabanas Maria Müller e Dunga
Rodrigues (1994, p 75), esta última ocupante da cadeira número 7 da Academia Mato-
Grossense de Letras:
As festas religiosas do Espírito Santo e de São Benedito, principalmente a
primeira atraindo grande número de famílias de fazendeiros, agricultores e
criadores da ‘serra acima’ e do ‘rio abaixo’, transcorriam com muito zelo,
com uma programação demorada por vários dias, incluindo três dias de
‘esmolas’ com almoço nas casas dos festeiros (imperador e imperatriz do
Divino), as ‘touradas’, leilões, missa solene, procissão e baile finalizando os
festejos, congregando povo e sociedade num turbilhão de alegria. Proibida
pelo Revmo. Arcebispo as festividades profanas, desapareceu o esplendor,
mas continuam as comemorações.
Prosseguem as autoras:
As festas do glorioso S. Benedito foram tomando o lugar da outra, e o povo
festeja ruidosamente as três missas do amanhecer, iluminação do adro da
Igreja do Rosário e da Capela contígua, antecipados dos dias de ‘esmola’
percorrendo os bairros de Cuiabá.
A afirmação das autoras pode ser reafirmada e confirmada pelo resultado de
uma pesquisa
32
, uma enquete dirigida aos cuiabanos sob o título O Santo e a Festa que tem a
cara de Cuiabá, feita pelo Jornal Diário de Cuiabá e publicada no seu Caderno Especial de
Cidades, trazendo o seguinte resultado:
A reportagem termina dizendo que “São Benedito não é o padroeiro de Cuiabá
- essa função décadas foi atribuída ao Senhor Divino” -, mas carrega nos ombros” o peso
do título de “protetor da cidade”. A enquete ilustra bem o que pude evidenciar através desta
pesquisa sobre a Festa e a devoção a São Benedito em Cuiabá.
No movimento da Festa, como pesquisadora, me movimentei e me movimentaram os
movimentos da Festa
Com o andamento da pesquisa, vi que realmente tinha que me colocar no
movimento da Festa, misturar o meu corpo com todos esses outros corpos.
32
A missão de descobrir qual é a “Cara de Cuiabá” ficou por conta do instituto UP-Unidade de Pesquisa.
No fundo são misturas. Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as
coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e é assim que as pessoas e as coisas
misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente
o contrato e a troca (MAUSS, 1974, p. 71).
E nesse movimento gerado pela Festa pude acompanhar os seus preparativos,
seja na cozinha, na secretaria, na casa dos devotos, nas peregrinações com a imagem, nas
missas de terças-feiras, seja nas páginas escritas sobre ela, e finalmente entender a sua
pedagogia organizacional.
Foi aí que comecei a perceber que a Festa de S. Benedito parecia ser uma Festa
circular. Se pudesse dar forma a ela, daria o formato do nosso próprio planeta, pelo fato de ela
ser contínua, sem interrupção ou corte. Ela não está presa no tempo, ela simplesmente flui no
tempo e se apresenta como um grande tecido que tem suas tramas bem-tecidas uma na outra,
uma dependente da outra, ou seja, na origem, a primeira trama se remete à segunda e assim
por diante...
Desse modo procurei compreender que a Festa não se constitui em um
acontecimento congelado” pelo tempo, pois no tempo da Festa ela se “descongela”. O ritual
que com ela culmina, é precedido de um tempo contínuo, vivenciado, que permanece ligando
uma Festa na outra, “tempo ontológico se sobrepondo ao tempo cronológico”.
2.5 A grande procissão: manifestações sociais e devoções
Fotos 38, 39, 40, 41, 42 e 43 – A grande procissão de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A grande procissão acontece no último dia da Festa, quando o povo toma as
ruas, são milhares de devotos que trazem nas mãos velas, bandeiras, faixas, entoam cantos de
luta e de louvor ao santo. A noite chega, por onde a procissão passa vai ficando tudo
iluminado e, ao subir o morro da Prainha, os fogos rasgam os céus anunciando a chegada de
todos, noite de luz, de brilho, de santidade e de salvação.
A Grande Procissão de São Benedito
Olha, lá vai passando a Procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão,
As pessoas que nela vão passando,
Acreditam nas coisas lá do céu,
As mulheres cantando tiram versos,
Os homens escutando tiram o chapéu,
Eles vivem penando aqui na Terra,
Esperando o que Jesus prometeu.
E Jesus prometeu coisa melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor,
Só depois de entregar o corpo ao chão,
Só depois de morrer neste sertão,
Eu também tô do lado de Jesus,
Só que acho que ele se esqueceu,
De dizer que na Terra a gente tem,
De arranjar um jeitinho pra viver.
Muita gente se arvora a ser Deus,
E promete tanta coisa pro sertão,
Que vai dar um vestido pra Maria,
E promete um roçado pro João;
Entra ano, sai ano, e nada vem,
Meu sertão continua ao Deus-dará,
Mas se existe Jesus no firmamento,
Cá na Terra isso tem que se acabar
(Gilberto Gil, 1967).
“Tudo” acontece logo após o trajeto da grande procissão
33
de S. Benedito,
quando o povo se coloca na rua, como escreve Gil em sua música Procissão: Olha, vai
passando a Procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão.
A paróquia, durante a Festa de 2005, teve de resolver um dilema sobre que
imagem sairia na procissão, pois a imagem mais antiga de S. Benedito foi restaurada, e o
pároco, temendo que ela fosse danificada, argumentou: "Que diferença faz sair uma ou
33
Esse tipo de comemoração, na qual um desfile de fiéis acompanha o pálio sob o qual segue o sacerdote, ou
seguem andores e charolas, foi instituído no Brasil desde o governo-geral de Tomé de Souza, quando chegaram
aqui os primeiros jesuítas. Conta Câmara Cascudo que a primeira solenidade celebrada com esplendor, em
Salvador, no dezesseis, foi a procissão do Corpo de Deus. Logo os jesuítas adotaram e programaram esse tipo de
ato devocional com caráter penitencial ou festivo, para atrair índios e edificar colonos (DEL PRIORE, 1994, p.
22).
outra?". Os devotos, no entanto, queriam que a imagem antiga saísse. O pároco então
replicou: "Essa discussão é secundária".
Assumir uma instituição que tem uma tradição de quase trezentos anos sem
conhecer os meandros de sua história acarreta o risco de ter uma imagem distorcida da
realidade que salta aos olhos. É o que parece que acontece nesse episódio da imagem, pois o
padre em questão estava ainda sendo iniciado na tradição da Festa e pouco conhecia para
poder opinar. Por isso fez-se ouvir e valer a voz do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) que propôs restaurar e guardar a imagem e fazer uma réplica para
ocupar o seu lugar.
Dona Helena, devota antiga de S. Benedito, manifestou a sua indignação diante
do dilema criado em torno da imagem mencionada e fez a seguinte leitura do acontecimento:
Acho que foi um pouco de vaidade da cúpula dos festeiros, também
influência de pessoas que está ali dentro da Igreja que tem muita coisa que
eles fazem para mostrar que tem poder. ele vai e chega lá no roco que
geralmente não é daqui da tradição [...] E é mais fácil pra você manipular ou
enganar uma pessoa de fora. ‘Olha essa imagem daqui ela é uma relíquia,
ela não pode mais sair na procissão que ela pode estragar’. Claro que o
pároco também quer zelar do patrimônio [continua]. Foi uma troca que não
tinha por que trocar a imagem de S. Benedito, ela estava perfeita, muitos
anos ela está daquele jeito. Contrariou todos cuiabanos, mas ninguém quer
mais confusão, ninguém fala nada. Assim, opinar! Porque se eu dou a
minha opinião, vem um Rosarinho igual a esse aqui (CADERNO DE
CAMPO 1, 2005, p. 48)
34
.
Pergunto: - O que mesmo acontece aqui?
Dona Helena desabafa diante da ameaça explícita que recebeu em sua casa
através de frases escritas
35
a caneta no Rosarinho, possivelmente enviado por alguém que não
aceitou sua forma de perceber a organização da Festa de 2005.
O dilema sobre que imagem sairia na procissão atravessou a Festa de 2005 e
possivelmente ficará como algo não resolvido no sentido da não-compreensão do que venha
representar a imagem antiga de S. Benedito para a vida da cuiabanidade.
Para melhor compreender o sentido da fé do povo cuiabano no santo que
parece ter conseguido suplantar o sentido simbólico da imagem, recorro à palavra "maná”
36
.
34
O Rosarinho é um jornalzinho de circulação interna da Igreja do Rosário e S. Benedito em Cuiabá. Dona
Helena faz referência a ele porque o recebeu em sua casa enviado pelo correio de forma anônima com frases
ofensivas escritas a caneta.
35
No anexo 1 está a cópia do Rosarinho que foi enviado para dona Helena em 2005.
36
Segundo o Dicionário Bíblico (1971, p. 930), a palavra maná que aparece no Antigo Testamento é o nome do
alimento miraculoso que os israelitas comeram no deserto (Êxodo 16, 4-35). Ele tinha a aparência branca,
"
Maná” é uma representação material que a transcende. O que se estabelece
com o conflito com o pároco é que, para a Igreja Romana, a representação de um santo é
apenas uma imagem de um poder que é espiritual, que não está restrito nem circunscrito à
representação. São duas lógicas e dois mundos. Houve na Festa de 2005 a proposta de
substituir a primeira imagem por um clone. Mircea Eliade (1992, 18) afirma que
[...] não se trata apenas de veneração da imagem como imagem. A imagem
sagrada não é adorada como imagem, mas justamente porque é hierofania,
porque ‘revela’ algo que não é imagem, mas o sagrado. Nos faz ver que,
manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo,
continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico
envolvente.
Os representantes da cuiabanidade também tomaram a palavra e publicamente
disseram que, apesar de tudo, entendiam a preocupação do pároco e do Patrimônio Histórico,
e por isso a réplica da imagem iria tomar o lugar da mais antiga. Mas no fundo era possível
perceber um ar de indisfarçável descontentamento que soava fundo como dizendo a quem
quisesse ouvir ou sentir que a não estava na imagem, mas naquilo que ela representava, e
seu desgaste era devido ao tempo vivido junto a gerações inteiras da cuiabanidade, o maná.
De alguma forma a cuiabanidade estava ali representada na voz do senhor
Leopoldo, que tentava assegurar a presença da primeira imagem na Festa, pois era ela que
todos os anos ganhava as ruas de Cuiabá e agora estava sendo como que tomada, arrancada do
seu espaço devocional, colocada longe dos olhos e das mãos dos devotos. É um clone, foi o
grito desesperado que ecoou da tradição.
De certa forma, os devotos foram tomados por um sentimento de indignação ao
ouvirem do representante eclesial um "tanto faz" ter ou não imagem, pois a no santo
independe dessa imagem. Sendo assim, com uma ou outra imagem, a devoção seria a mesma,
ou seja, o importante era a ser interna. Tudo isso para justificar que a imagem primitiva
transparente e doce. Na base da narrativa sobre o maná está um fenômeno natural do deserto do Sinai; uma
variedade de tamareiras segrega um líquido transparente que depois endurece; os beduínos de hoje ainda o
chamam man. Depois maná aparece no Novo Testamento (João - 0 discurso sobre o pão da vida, 6,22-51;
Hebreus 9,4; Apocalipse 2,17). Na literatura rabínica havia-se desenvolvido a idéia do maná como alimento dos
tempos messiânicos. Os judeus alegam que Moisés mostrou ser um salvador, dando o maná no deserto, e pedem
a Jesus um milagre semelhante. Jesus responde que o alimento ideal do futuro messiânico não é o mado
deserto, mas o pão que Ele vai dar. Jesus já estava apontando o que futuramente seria chamado de eucaristia que
apareceu mais tarde em Coríntios 10,1-22: “a comida espiritual” do deserto é prefiguração da refeição sacrifical
eucarística.
fosse, posteriormente, enjaulada nas alturas, negando de certa forma, ou de todas as formas,
uma vida religiosa popular dos sentidos à coisa mesma, àquela imagem histórica.
Parece-me que isso soa como uma nova expropriação, uma dominação branca
das elites eclesiásticas e do capital, fazendo do espaço a extensão religiosa que a imagem tem
expressado, correndo o risco de tornar truncada a simbologia que percorreu o tempo vivido.
Sai então em 2005 às ruas a réplica da belíssima imagem que foi trazida de
Portugal. Na justificativa do dia da procissão o pároco como que se atrapalhou com o
improviso do proponenteLeopoldo Fortunato de fazer uma imagem substitutiva, como que um
clone.
Em conversa com o Pe. Moura (2007), ele me disse que, após longo diálogo
com os representantes dos devotos, chegaram à conclusão e ao consenso de fazer uma réplica
da imagem de S. Benedito que hoje se encontra na nave central da Igreja do Rosário e S.
Benedito. Foi tirada uma foto da imagem e enviada a São Paulo para sua reprodução. Sendo
assim a imagem antiga ficará restrita ao altar para ser cultuada somente dentro da Igreja.
É chegada a hora da procissão
Fotos 44, 45 e 46 – Retorno da procissão à Praça do Rosário.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A procissão se aproxima lentamente da Igreja do Rosário. São milhares de
pessoas que vêm chegando na hora marcada. São grupos diversos de pessoas, famílias, casais
de namorados, pessoas idosas, jovens e até crianças de colo, cadeirantes. Todos vão se
achegando e entrando no ritmo da procissão. muitos devotos de pés descalços, trazendo
nas mãos flores, terços, velas, água, fotos ou uma pequena imagem de S. Benedito.
Outros grupos carregam faixas anunciando ou denunciando alguma realidade
social. Outros ainda trazem bandeiras de diversas cores, e juntos com todos seguem os
andores dos santos. Os rostos de alguns ou de muitos parecem cansados, envelhecidos pela
luta diária, porém não desanimam, cantam, rezam e prosseguem, pois As pessoas que nela
vão passando, acreditam nas coisas lá do céu...
Nas faixas escritas milhares de devotos atualizam mitos, simbolismos, como
também revivem e colocam em cena a própria história, contada sob seu ponto de vista e
experiência. Lendo Amaral (1998), verifiquei que nas manifestações pelas ruas, seja nos
carros alegóricos seja nos andores dos santos populares, aparece a riqueza, o privilégio dos
devotos em relacionarem-se com as divindades que ouvem suas preces e lhes entregam
milagres. Nas procissões cada um se reconhece e se encontra como pessoa que se referencia
como indivíduo para uma entidade que o conhece e compartilha a fundo de sua vida.
Na medida em que a procissão avança, o número de pessoas vai crescendo, e
aos poucos, como em uma grande coreografia não ensaiada, mas vivenciada, todos vão
seguindo em direção ao morro da Colina do Rosário até alcançar as escadarias da Igreja. De
repente todos estão de volta à Praça do Rosário como para brindar com exaltação e devoção o
compromisso honrado com o santo. Os devotos acreditam na fidelidade ao santo, passam isso
para seus filhos como uma missão que acabam assumindo como tradição.
Acreditam que, se houver um rompimento, não terão um ano feliz e, de certa
forma, é o santo castigando a quebra de fidelidade na continuidade da atuação do devoto junto
a ele. O que os devotos chamam de obrigação com o santo tem matizes fortes com o culto aos
orixás. Percebe-se a criação de espaços tabuados, “limites” estabelecidos na relação que, se
rompida, pode ocasionar a vingança do santo, tendo em vista os compromissos e as exigências
contraídas pelos fiéis.
Segundo Mauss (1974, p. 59), a obrigação de retribuir deve-se, portanto,
[...] à existência do hau, poder espiritual de todas as coisas. Todo presente
dado e trocado cria uma obrigação pelo fato de que a coisa doada ainda
mantém alguma coisa no seu doador. Não é a coisa em si que se troca, pois
nela vínculos espirituais, pois tudo ‘vai-e-vemcomo se houvesse uma
troca constante de uma matéria espiritual compreendendo coisas e homens,
entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as categorias, sexos e gerações.
Parece que um sistema estabelecido naturalmente de trocas, que entram em
um ciclo contínuo entre a coisa doada e o presenteado, como na relação de muitos devotos
fixos de S. Benedito que afirmam ter uma obrigação com o santo.
As festas e as procissões religiosas, portanto, possibilitam o acesso a territórios
da vida social que, dado o seu caráter extraordinário, “extralógico e extratemporal”, revelam
toda a sua complexidade, uma vez que a Festa
[...] faz entrar a sociedade numa relação consigo própria, diferente daquela
de 'todos os dias'. Para a infirmar ou para a confirmar, para a fazer existir
num duplo que poderá ser ela própria ou outra, ela própria e outra
(SANCHIS, 1983, p. 36, grifos meus).
O sentido da continuidade está presente em cada Festa de S. Benedito, mesmo
sendo ela uma outra no ano seguinte, seao mesmo tempo a mesma a rememorar a primeira
Festa.
A procissão, quando ganha as escadarias da Igreja do Rosário e S. Benedito,
sintetiza a volta da Festa para o seu espaço e temporalidade ininterrupta. À medida que os
devotos festejam o santo com seus familiares, o tempo flui, não uma mera recordação do
passado festivo. O canto, a dança, a oração, o santo, o lugar, vão se constituindo em fontes
simbólicas que emanam da devoção, é a vivência de um tempo aberto, continuado, cada um
experimenta o tempo a seu ritmo. O tempo não do relógio, regulado, guiado, mas o tempo da
Festa como ela se manifesta.
Conforme assevera Eliade (1978, p. 79):
Os participantes das festas tornaram-se contemporâneos do acontecimento
mítico. Dito de outra forma: ‘saem’ de seu tempo histórico, isto é, do tempo
constituído pela soma de eventos profanos, pessoais e intrapessoais, e
reúne-se ao tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à
eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no tempo mítico
e sagrado. Reencontra o tempo da origem, aquele que não se escoa, porque
não participa da duração temporal profana, porque é constituído por um
eterno presente, indefinidamente recuperável. O homem e a mulher como
religiosos sentem a necessidade de mergulhar periodicamente neste tempo
sagrado e indestrutível.
O tempo que flui, que acontece, é percebido ou capturado e, portanto,
vivenciado ano a ano pelos devotos. Tem sentido do vivido, de não ser uma sucessão de
momentos. Essa devoção foi sendo atualizada no tempo presente da história e cotidiano de um
povo. De um “agora” onde o que é tomado como passado de certa forma permanece “ali”
grudado nas pedras gangas, nos paralelepípedos, nas paredes da igreja, na figueira centenária
e nos rostos esperançosos dos filhos e filhas grávidos da tradição: processo educativo.
A tradição vai sendo relida como um texto e ganhando novas interpretações,
podendo ser fortalecida ou ressignificada pelas vivências das gerações contemporâneas da
cuiabanidade que a Festa carrega em si.
Assim, nesse elo de continuidade, com a caminhada feita até aqui ao encerrar
a procissão, chega-se ao auge de um longo tempo de muito trabalho para o santo, de poder
agora reintegrar-se no tempo cronológico certo da missão cumprida e da graça recebida. Isso
pode ser observado no depoimento de seu Nonô:
Mas ainda a procissão, o encerramento da festa tornou-se o ápice da festa.
Naquele momento que chega a procissão de São Benedito vem
acompanhando, liberam o pessoal tocando na imagem de São Benedito,
aquilo comove qualquer um. Eu dificilmente me comovo em uma
celebração, seja ela a mais bonita eucaristia, eu não fico assim, emocionado.
Mas pra mim, quando sai a procissão de S. BENEDITO e quando chega é
um momento que eu tenho que me segurar bem. Parece que lembro de tudo
que aconteceu na minha vida. Graças que eu recebi de S. BENEDITO.
Penso, parece que S. BENEDITO sai pra passear e abençoar toda a cidade de
Cuiabá. E quando sai a procissão, fico parado sempre num lugar só, só
olhando o povo, aquela multidão. Quando sai e chega, são dois momentos
que me emociono...Também de uns tempos para cá, quando todas as
cozinheiras - mais ou menos 20 anos -,saem para saudar S. BENEDITO
(CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 51).
Foto 47 - O encontro do devoto com o santo após a procissão.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
São devotos que, olhando para S. Benedito, acreditam em dias melhores, como
canta Gil: “E Jesus prometeu coisa melhor/Pra quem vive nesse mundo sem amor”.
Todos se sentem no direito de ir ao encontro dessa esperança como que
roubada. Todavia as procissões nem sempre foram tão expressivas como agora com a
participação das camadas populares cuiabanas, que se sentiam acanhadas diante do
comportamento do público que as procissões tradicionais de S. Benedito atraíam. Nelas a elite
cuiabana comparecia em peso. Dona Helena nos relata como antigamente via a procissão:
Agora a procissão não era tão grande mas era tão chiques, as pessoas que
iam parecia que estavam indo para um casamento, uma recepção da alta
sociedade. Era chique demais! Eu chegava de ter vergonha de ir na
procissão, eu achava que estava tão simples. Eu ia atrás, eu era uma das
últimas pra ninguém ficar...Você sabe que na igreja tem isso, né? O povo
olha tudo, como você está vestido, o que você está calçando. Mas quando foi
em 87, nasceu a Núbia (neta). A Núbia nasceu com problema mental,
síndrome de DAWN, então eu fiz uma promessa a S. BENEDITO que ia
descalça durante 7 anos. Eu não sei, tem algumas pessoas que andavam
descalço, mas muito pouco, uma, duas, três daqueles devotos bem
fervorosos, que às vezes estava com o cabelo todo bonito com traje de linho
e estava descalço. Comecei a ir, eu vou, independente da roupa que eu
estiver, do jeito que eu estiver nas minhas condições. Hoje, você calçado
de havaiana, calçado de qualquer jeito, não se vê mais aquele exagero. O
laquê no cabelo das madames, chegava parecer uma árvore de natal, jóias
pra todo lado... Imagina eu no meio desse povo (CADERNO DE CAMPO 1,
2005, p. 27).
O que dona Helena relata talvez seja ainda uma herança cultural do
posicionamento na hierarquização da sociedade cuiabana com resquícios oriundos da tradição
portuguesa, realidade que aparece expressa em Rosa e Jesus (2003, p. 119) sobre as
procissões em Cuiabá:
Realização das procissões e festividades encenava a ordem estamental do
Antigo Regime, pois cada um tinha espaço definido nas alas, oficiais
mecânicos e irmandades de africanos, pretos e pardos, por exemplo,
situavam-se sempre nas últimas filas. Além disso, câmaras e irmandades
gastavam nas festividades religiosas, e mesmo que dispendioso, fazer parte
desse corpo social era sinônimo de honra e prestígio.
Isso também pode ser constatado em Del Priore (1994, p. 23):
As procissões são simultaneamente fenômenos comunitários e hierárquicos.
Elas exprimem a solidariedade de grupos sociais subordinados a uma
paróquia, reforçando tanto os laços de obediência à igreja e aos poderes
metropolitanos quando internos, entre os membros de uma comunidade.
Ao longo do trajeto, o povo ganha as ruas seguindo o percurso decidido pelos
festeiros. As pessoas seguem cantando, fazendo orações costumeiras (Pai-Nosso, a reza do
terço, as ladainhas dos Santos).
Com o correr do tempo, a procissão vai ganhando uma tônica de reflexão, de
pensar o modo de vida da sociedade cuiabana e brasileira.
Uma equipe de liturgia prepara a procissão utilizando textos bíblicos e de
autores que estão envolvidos com os movimentos sociais, que acreditam na manifestação
coletiva do povo. São expressões de repúdio às perseguições de mulheres e homens que se
colocam à frente da luta social, como no ano passado e neste ano, quando a ênfase foi em
relação à morte da Irmã Doroty Stein. Este fato desencadeou uma lista de nomes de pessoas
que morreram na luta pela dignidade da terra, como Vicente Cañas, Josimo, Ezequiel Ramim,
Chico Mendes...
A procissão segue como cobra se arrastando pelo chão, fazendo algumas
paradas para um momento que os fiéis denominam de reflexão. No meio do povo está o santo
da devoção da cuiabania. Segue S. Benedito trazendo uma coroa brilhante. Quando a noite
chega, mesmo de longe, pode-se ver que é S. Benedito que vem se aproximando. Com ele
também segue o andor de Nossa Senhora do Rosário.
Foto 48 - Homens de azul e branco - carregadores do andor.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Um grupo de homens trajando mantos azuis carrega o santo. À frente se
encontram crianças vestidas de anjos, de franciscanos como S. Benedito, as quais seguem
acompanhadas por seus pais. Prosseguem outras pessoas vestidas de branco (angélicos
negros...), com os pés descalços, trazendo nas mãos uma vela acesa, flores, água ou pequenas
imagens de S. Benedito.
Aqui aproveito para mencionar rapidamente que, nessa forma ritualizada de
organização procissional da igreja, o lugar de destaque maior ainda é reservado ao homem,
pois as mulheres, mesmo estando presentes, não são mencionadas. Elas continuam, na maioria
das vezes, atualmente, ocupando um espaço na igreja de menor destaque, estão envolvidas
com o canto, os cuidados com os paramentos litúrgicos, são elas que preparam o altar ou mesa
santa.
Atualmente, na Igreja do Rosário e S. Benedito, podem-se encontrar as
mulheres como animadoras dos cultos, ministras da Eucaristia, coordenadoras de
comunidades de base e de pastoral, administradoras da igreja etc. Mas, na procissão lado a
lado do andor do santo, a guardá-lo, protegê-lo e tocá-lo, o destaque ainda é dado ao homem.
Quando o santo alcança a Praça do Rosário, ela está toda tomada por fiéis,
curiosos e visitantes de lugares diferentes, atraídos por vezes pela devoção ou pelo turismo
cultural. No altar são feitas as orações que encerram a procissão e a bênção, seguidas de
agradecimentos a todos aqueles que trabalharam e colaboraram pelo bom êxito da Festa. Ali
anunciam-se, finalmente, os nomes dos novos festeiros do ano seguinte.
Importa destacar aqui o que representa ao devoto ser indicado e acolhido
como Festeiro de São Benedito. É um misto de emoção e temor tão
indescritíveis por todos que viveram esta experiência. Assumir o cargo
como Festeiro significa dedicação e trabalho durantes os 365 dias do ano,
intercalados de renúncias, erros, acertos. É um aprender constante
(LIVRETO ..., 1988, p. 8).
Os festeiros e toda a organização, dispostos no altar do santo, são
parabenizados pelo êxito de mais uma Festa. Na seqüência, após a fala do rei ou da rainha, o
reinado do presente ano conclama os novos reis do ano seguinte, chamando-os à frente.
Contudo, apenas com a descida do mastro e da bandeira, é encerrado, definitivamente, um
período, quando então abre-se um novo, mediante outra coordenação.
O que pude perceber é que a Praça do Rosário se alegra com a expectativa da
continuidade da Festa, que já se faz presente com os novos festeiros.
Esse momento é precedido de vários outros acontecimentos até chegar, enfim,
aos novos festeiros.
Para explicitar como atualmente é feita a escolha dos festeiros, dando um
passeio pela história da Festa como quem olha um negativo de fotografia, um filme. Este
olhar me foi revelando a Festa, até chegar à forma específica que hoje ela possui.
Como é feita a escolha dos festeiros e festeiras de São Benedito?
Segundo os entrevistados, a escolha dos festeiros tem sido um processo
variável, dinâmico e tem muito a nos contar. Afinal, quem mesmo podia e pode ser rei e
rainha de S. Benedito?
Essa longa história tem a ver com as irmandades e, de certa forma, com a
tradição cuiabana que, para Padre Moura, tem forte peso na hora da escolha dos festeiros,
como que preservando a presença dos cuiabanos mais antigos à frente da Festa.
A história tem desvelado que a Festa, embora nascida com os negros, passa a
ser propriedade da irmandade de S. Benedito, mas não necessariamente mostra o sentido da
continuidade que indicava, nomeava e aprovava os festeiros.
Em longa entrevista, Moura (2005) disse-me que até 1981 eram os festeiros
que indicavam os novos festeiros, ou seja, os membros da irmandade é que decidiam. Como
em um ano faltaram festeiros novos, a irmandade resolveu fazer um rodízio entre os festeiros
antigos.
Segundo o entrevistado, esse foi o último ano que a irmandade indicou
festeiros, e a realização da Festa foi na casa de um deles. Antes de culminar o momento alto
da Festa na casa de um dos festeiros, aconteciam várias delas, ao mesmo tempo, significando
que ela não era unificada. Cada festeiro fazia a sua própria Festa com seus convivas. Aqueles
que podiam, faziam uma grande Festa, voltada menos à dimensão religiosa e mais como um
ato tipicamente social. .
Com o andamento da pesquisa, fui entendendo melhor os meandros da história
da Festa, com a ajuda de seu Nonô (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 49):
Antes dessa festa organizada pela paróquia era as irmandades de São
Benedito que organizava, esse espaço todo aqui, no sábado da festa servia
para o Padre Emílio distribuir carne, distribuir alimento, então a sociedade
cuiabana fazia isso, o que eles conseguiam traziam para cá para Padre Emílio
dar para os pobres, eles achavam que estavam fazendo muito. O melhor,
contudo, ficava pra eles. [Como assim, o melhor? perguntei.] Um mês
antes da realização da festa iniciava a preparação dos bolos. Esse um mês de
preparação da festa, era festa quase noite toda, comiam, bebiam, dançavam,
tudo de graça para alta sociedade. No dia da festa eles distribuíam, no tríduo
também chá com bolo, a pessoa que ia trabalhar com os festeiros, mas à
noite membros da alta sociedade tinham jantares, eles ficam com desculpa
de preparar o outro dia da festa, ficavam lá, festando, bebendo, na casa
escolhida pelos festeiros, na qual iriam fazer a festa unificada (a festa
estava unificada) por eles, num único espaço, chegava ocasião de festeiro vir
pra missa de São Benedito, madrugada 5 horas, chegava a ter que segurar no
passador do cinturão do festeiro para não deixá-lo cair no chão, de sono e
cansaço da farra da noite.
Seu Nonô relata como era a escolha dos festeiros na época da irmandade:
Essa irmandade de São Benedito, ela tinha uma ligação muito forte com a
Maçonaria, muitos da irmandade pertenciam também, era uma época que
igreja excomungava também, hoje que não, hoje é mais leve, é em 40
[década] era assim, isso era bastante visível, você pega aquele manual da
irmandade de São Benedito de 1919, a
irmandade de São Benedito tinha
uma constituição própria. Se você pega no final do documento, muitos deles
pertenciam à maçonaria, depois conversando com pessoas influentes da
maçonaria, cuiabanos, diziam: - ‘Puxa, fulano, olha lá, eslá! [referindo-se
ao manual ligando-o como maçom] (CADERNO DE CAMPO 4, 2006,
p.48).
Para assegurar a continuidade do evento dentro dessa tradição estabelecida pela
irmandade de S. Benedito, é possível perceber mais uma vez, na fala de seu Nonô
(CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 53), o cuidado na hora de fazer a escolha dos festeiros:
Eles buscavam normalmente pessoas da sociedade de boa aquisição
financeira. Que pudesse bancar a festa. Porque a despesa era grande. Eles
davam de comer pra muita gente, tudo de graça, não cobrava nada. A igreja
não via nada do resultado financeiro. Eles não prestavam conta para a
paróquia, parecia que era uma coisa desligada da paróquia. A irmandade não
prestava conta, parecia que a festa de São Benedito era uma propriedade da
irmandade de São Benedito a qual já vinha capengando.
Os irmãos de mesa sentavam e iam decidir se a indicação que o rei fez era
boa ou não, se não fosse boa pra eles, irmandade e para os membros da
mesa, eles podiam indicar outra pessoa. Essa irmandade das pessoas da alta
sociedade de Cuiabá e vários era maçons... Tinha a bendita jóia dentro da
categoria. Porque o boato que corria antes sobre a festa quando estava na
mão da irmandade, é que tinha aquela bendita 'jóia’
37
. O rei tinha que dispor
de um certo valor pra bancar a festa, a rainha tinha que dar um certo valor
para bancar a festa. E o juiz, aí vinha diminuindo esse valor [o valor seguia a
posição de cada festeiro na festa].
2.6 Temporalidade, devoção e resistência: a conquista popular da Festa
A saída da Festa das mãos da Irmandade de S. Benedito
Em 1981 foi aquela festa polêmica em que João Balão foi festeiro. A festa dos
ricos foi no clube Dom Bosco e a dos pobres, no Ginásio de Esporte do bairro Lixeira.
naquele ano, 1981, o conselho paroquial resolveu assumir a Festa. A
Paróquia, seguindo o Código de Direito Canônico recentemente aprovado, gerou um
regimento interno disciplinando as instâncias, o organograma e as relações entre dimensões
pastorais, eclesiais, administrativas internas e junto à diocese.
A partir disso, a Paróquia, tendo expressão colegiada, mas sob coordenação do
Pároco, designou o conselho paroquial para realizar a indicação dos festeiros de 1982.
No dia 4 de janeiro o Conselho Paroquial se reuniu para elaborar as normas
para os novos festeiros de São Benedito. Ocorreram impasses na reunião. O
Conselho Paroquial não aceitou os festeiros indicados para 1982. [indicado
pela Irmandade de S. Benedito] (LIVRO TOMBO, 1981).
Na seqüência
,
apresento alguns depoimentos que recolhi dos entrevistados
sobre esse momento de mudança da Festa:
37
A “jóia” nessa época representava a contribuição em dinheiro que os festeiros davam para a Festa. Conforme o
cargo ocupado no grupo dos festeiros, era estabelecido o valor a ser doado, como se houvesse uma hierarquia de
poder onde o Rei e a Rainha contribuíam com o maior valor e os demais conforme seu cargo.
Nesse ano [1981] passamos a preparar a celebração. Nós éramos
acostumados com o folheto dominical, nunca a gente viu ninguém preparar a
celebração e da forma como a gente preparava era até melhor do que o
folheto. Foi difícil para entrar na nossa cabeça, que a gente podia preparar,
que a gente tinha condições de preparar uma celebração, aí o padre foi
deixando e nós assumimos sozinhos, e isso foi passando às outras
comunidades para outras paróquias de Cuiabá (CADERNOD E CAMPO 2,
2005,p.47 ).
No Livro Tombo (abril de 1994, p. 131-132) da Paróquia, encontrei que
assumir um estilo celebrativo próprio vai sendo cada vez mais difundido em todas as
comunidades, sem eliminar totalmente os folhetos dominicais:
Viu-se também a necessidade da Paróquia orientar os festeiros de São
Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, porque a Paróquia tem uma linha
de pensamento e ação continuada, enquanto os festeiros mudam cada ano.
Verificou-se ainda o impasse nas comunidades a respeito de produção de
escrito próprio para as celebrações. Decidiu-se que cada comunidade
assuma a forma que pretender, no entanto, os folhetos dominicais ficam por
conta de cada comunidade.
Segundo relatos da senhora Helena, de outros entrevistados e de informações
retiradas do Livro Tombo da Paróquia (1981), foi a partir de 1982 que esta diocese começou a
preparar a Festa de S. Benedito, que passou a se configurar como um momento forte de
evangelização.
Dona Helena expressa-se com um ar de alegria:
Desde os anos 80 a festa de São Benedito criou uma cara nova. Eu considero
que ela mudou toda aquela roupagem daquela elite, daquele povo que
dominava e mandava e que tinha o poder na mão. E os padres obedeciam
porque a gente percebia que ele tinha aquela repressão. Vai brigar com o juiz
no regime militar, vai brigar com o prefeito da capital, vai brigar com alta
sociedade, com a cúpula mesmo que domina e que manda. É claro que vai
acabar expulso e preso. O que aconteceu, a juventude que ainda tava
começando formar o grupo da juventude começou a fazer pressão para essas
mudanças. Também chegaram na época os jesuítas mais jovens, mais
abertos. Estava Passos, padre João Manoel Lima Mira, padre Ivo... Padre Ivo
também batia duro nessa questão de divisão, pobre pra lá, rico pra cá. Ele
não aceitava isso, isso contrariava muito ele. E nós tínhamos na época o
apoio desses dois jesuítas que achavam que s estávamos certos. E padre
Teodoro foi corajoso de assumir essa transformação, essa mudança. Eu sei
que isso custou caro para ele, pois o pessoal perseguia muito ele
(CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 29).
Em uma das entrevistas com seu Nonô, ele relata que não foi tão simples fazer
as mudanças, ou melhor, trazer a Festa para a sede da Paróquia. Afinal, como estavam
interferindo num costume de uso de poder sobre a Festa que estava quase cristalizado nas
mãos da Irmandade de S. Benedito e com grande respaldo da elite social, tinham que ser
convincentes na argumentação. Assim ele expôs:
Nós usamos esse argumento [disse seu Nonô]:- CPP a partir de 1980, vai
assumir a festa. Ou seja, a partir de hoje, fica extinta a irmandade de S.
Benedito. Vocês não têm mais o direito de nomear festeiros, a paróquia que
vai nomear. Foi uma reunião que o CPP fez com a Irmandade. A irmandade
chegava no sábado na festa de S. Benedito com o livro debaixo do braço,
eles nem vinham mais aqui. Antes até a sede deles era aqui, mas de uma hora
para outra passaram a reunir na casa do festeiro. Eles chegavam aqui no
sábado, fazia uma reunião nas dependências para falar para o padre que ano
que vem os festeiros será fulano, beltrano. Só informavam...
A grande surpresa foi quando chegaram com o livro debaixo do braço,
chegou o Passos, Joca [João Manoel Mira], Moura [José de Moura Silva]. O
mandato de vocês encerra aqui. O Joca superinteligente, ele buscou a
irmandade de 800 anos atrás, ele até exagerou muito. Até João Balão
abaixou a cabeça e disse: Esse negro entende...Depois o Pe. Moura saiu
pra fora pra acalmar os ânimos, o pessoal queria sair até pra briga. Pe. Moura
acalmou, pediu que eles fossem conversar com o bispo Dom Bonifácio.
Ainda nesse ano fizeram a festa dessa forma, rico de um lado e pobre do
outro. Terminou a festa foram entregar as insígnias para Dom Bonifácio.
Saiu no jornal da época, saiu na TV naquela época. Os movimentos da festa
de S. Benedito da paróquia. No fundo Dom Bonifácio pra não levar a coisa
muito pra frente, ele não deu razão pra alta sociedade, mas não deixou de dar
razão para paróquia. Ele recebeu as insígnias e veio entregar para o Pe.
Teodoro dizendo: - ‘É de vocês, vocês fazem o que bem entender’...
(CADERNO DE CAMPO 4, 2006, p. 50-51).
O acontecimento da entrega das insígnias ao bispo foi registrado no Livro
Tombo da Paróquia:
Depois da festa, os festeiros foram entregar as insígnias ao Sr. Arcebispo. A
Paróquia se reuniu com o Sr. Arcebispo e ali ficou estabelecido que os
festeiros seriam escolhidos de entre os devotos de São Benedito, que
participam da Missa de São Benedito nas terças-feiras às 5 horas da manhã.
Dessa maneira os festejos passaram para o pátio da Paróquia (LIVRO
TOMBO, 1981).
Em uma longa conversa com dona Helena, foi possível apreender um dos
significados da Festa de 1981, quando ela salientou que “aconteceu “normal”, os ricos no
Dom Bosco, e os pobres se alojaram no Ginásio de Esportes da Lixeira, os quais comiam
bolachinha e tomavam todinho. Assim dona Helena relata sobre o evento:
Então, nesse ponto o Padre Teodoro, ele fez uma coisa muito grande, com
apoio da grande população que é pobre, ele teve apoio. Não teve quem não
bateu palmas no dia que ele disse na praça na festa de S. Benedito, no ano
que João Balão foi rei, que foi o último ano que essa festa foi separada, é
rico no Dom Bosco, no uísque, no filé mígnon, no tudo de bom...E os
pobres tomando coca-cola quente, que estava péssimo mesmo lá. Eu estive...
eu não fui no Dom Bosco. No Dom Bosco eu não fui, porque eu nunca
gostei também ficar assim. Acho que não ia sentir bem. Eu não cheguei de ir
no Dom Bosco. no lazer da Lixeira eu fui, e era péssima qualidade da
comida, horrível, e a bebida quente. Mas nesse mesmo dia que o pessoal teve
por lá, Pe. Teodoro estava tão revoltado, que fez a procissão normal da rota
da procissão de S. Benedito. Depois que chegou aqui na praça, ele mandou
pôr S. Benedito no ombro e mandou entregar lá no lazer da Lixeira com todo
o povo acompanhando. Passou aqui nessa rua, foi nessa ou na Benedito de
Mello, eu o me lembro bem. Mas eu acho, acredito que foi nessa rua que
na época nem tinha asfalto. Era aquele poeirão, aquelas madames,
aquilo... todos enchendo o pé de poeira, zangados, não tinha quem não
queria brigar com ele. Ele não estava nem , ele estava bufando também,
pois, quando ele zangava, ele zangava mesmo. Ele era bravo! Aí nós fomos,
foi todo mundo acompanhando S. Benedito com velas na mão, outros com
velas no prato. Nós andamos, andamos tanto que até eu que era jovem na
época fiquei cansada porque nós andamos a procissão inteira, saímos da
Igreja e fomos lá no lazer da Lixeira entregar S. Benedito lá. Até hoje eu não
entendi por que ele teve essa atitude de ir levar. Porque antes ele fez um
discurso que desse ano em diante a festa de S. Benedito ia ser na praça. Ia
ser uma festa popular onde todo povo pudesse festar. Eu acredito que foi
entre 81 e 82. Foi por aí, não deve ter sido antes 81 ou 82, nós ainda estava
no regime militar. Por isso, que eu falo, pra mim foi um ato de muita
coragem, assim de muita ousadia dele enfrentar aquela elite que mandava,
que até hoje manda (CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 31-32).
O Livreto da Festa de S. Benedito (2001, p. 12-13), num breve relato
sobre a sua história, resgata a mudança do local e de sua organização, ocorrida em 1981:
em 1981, por força do Código de Direito Canônico, a Paróquia Nossa
Senhora do Rosário, chamada também de Paróquia Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito, assume toda a questão organizativa da festa através
do Conselho Paroquial, com os seguintes objetivos:
a) Celebrar a fé católica pela devoção a S. Benedito;
b) Manter e revitalizar a cultura e tradições da gente Cuiabana, quanto à
festa de São Benedito;
c) Constituir um espaço de confraternização e lazer de cunho religioso; d)
Proporcionar solidariedade e compromisso com as atividades paroquiais,
pautando-se pela opção preferencial pelos pobres; e) Arrecadar fundos para
investimentos paroquiais.
Essa mudança foi introduzida a partir da Festa de 1982, pois a de 1981,
como já foi noticiado, ocorreu da forma como a Irmandade de S. Benedito havia organizado.
Segundo seu Nonô e outros entrevistados, em 1981, a Paróquia escolheu os
festeiros para 1982 entre as pessoas comprometidas com a devoção a S. Benedito. "Em 1982
que nós indicamos os festeiros” (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 52). Na Festa de 2007,
será comemorado o 25º. ano do evento, nos moldes que a paróquia planejou.
Assim a Festa avança no tempo junto com seus devotos como que com eles se
reconciliando. um encontro entre os devotos e o santo, agora sem mediação direta das
irmandades que ditavam o lugar de cada um e estabelecia muito bem o lugar dela nesse
espaço.
O fato curioso desse acontecimento de mudança significativa da Festa é que
parece ser um divisor de tempos, tempo vivido sobre o manto da irmandade de S. Benedito e
o novo tempo do santo com os fiéis. Foi o que encontrei no Livreto da Festa de 2001 que
esclarece os encaminhamentos da sua organização a partir de 1982, com relação aos festeiros
e aos benefícios que seriam realizados como compromisso da Festa:
em 1982, a Festa de São Benedito é realizada na Igreja Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito, e os festeiros passam a ter nova visão da nossa
Paróquia, conhecendo melhor a realidade das comunidades. A partir daí, os
festeiros procuravam deixar no período de suas administrações benefícios
nas comunidades e na Sede da Paróquia, tais como: Creches, Salões
Comunitários, Capelas, Cozinha de S. Benedito, Banheiros-WC, e Reforma
Geral do telhado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, bem
como a ajuda de aquisição de alimentos para trabalhos sociais de Fé e
Alegria, instituição esta que trabalha com creches e escola de deficientes
físicos e mentais na Paróquia (LIVRETO..., 2001, p. 15).
Um elemento importante é levantado por seu Nonô no que respeita ao fazer a
Festa. A preocupação pairava no ar: será que essa nova Ordem daria conta de fazer a Festa?
Era essa a pergunta dos festeiros indicados dessa época. Mas seu Nonô dizia que a
argumentação, para convencer os novos festeiros, era que eles não estavam sozinhos, teriam
que ir ao encontro dos devotos e contar com a ajuda deles, e certamente eles não iriam negar.
Se os festeiros quisessem fazer uma festa de qualidade não precisava, eles
meterem muito a mão no bolso. Porque a devoção de São Benedito é grande.
Eu me lembro quando o Leopoldo foi festeiro de S. BENEDITO. Leopoldo,
ele não é assim, de grande poder, ele não tem grande patrimônio... Mas ele
aprontou a festa dele uns três a quatro meses antes da festa. Estava tudo
preparado. Ele se preocupou até com a quantidade de hóstia que seria
consagrada nos dias da festa. Mas com ajuda de outras pessoas, os devotos
(CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 52).
Antes a Festa não tinha caráter evangelizador. Tratava-se de um evento, onde a
missa constituía a parte formal da igreja. A irmandade atuava de forma independente e
mantinha o controle sobre o evento.
A paróquia, por ser a responsável, assume a Festa juntamente com uma
proposta pastoral de evangelização, tendo a questão social como um elemento importante,
porém não como um eixo central. Assim aqueles que estão sempre na missa de S. Benedito e
todas as comunidades podem participar.
No dia 8 de janeiro reunião do Conselho Paroquial com o Sr. Arcebispo no
Palácio Episcopal. Decidiu-se que a Paróquia assuma a festa de São
Benedito também com pessoas de outras Paróquias de Cuiabá e mesmo do
Estado, pois os devotos de São Benedito não moram apenas na Paróquia de
Nossa Senhora do Rosário. O Conselho convocará uma reunião com os
devotos para escolher a Comissão da festa de São Benedito (LIVRO
TOMBO, 1982).
Foi nesse período que se iniciou a procissão de S. Benedito pelas comunidades
(LIVRETO..., 2001, p.15)
38
. A Festa não era mais restrita somente ao centro. As comunidades
da Paróquia do Rosário e S. Benedito e outras paróquias da Arquidiocese de Cuiabá
começaram a se envolver com a Festa. Vejamos o depoimento de seu Nonô:
Agora já que a gente quer uma festa simples de pobres, que os ricos
participem também... Mas que estejam disponíveis a trabalhar. O L., ele
faleceu, ele foi fraco em trabalhar, em angariar fundos através dos
devotos.
Mas dona Vanildes, ela foi pontual, deve ter gastado, mas ela conseguiu
muitas adesões dos devotos... Seu Dito Canjica, quando ele podia fazer uma
festa?! (pois era uma pessoa simples das demais das comunidades da
paróquia). Mas foi uma festa muito bonita, não fez a obra, quanto o
acontecimento aqui...[referindo-se ao local da Festa]. Teve alimento para
depois distribuir nas creches, para dar aos pobres (CADERNO DE CAMPO
2, 2005, p. 52).
As autoridades tradicionais locais se posicionaram em relação à mudança da
Festa que foi trazida para o pátio da Igreja do Rosário e S. Benedito e saiu das mãos da
Irmandade. Um desembargador aposentado escreveu uma matéria sobre a Festa fazendo uma
denúncia muito forte contra a igreja por causa dessa mudança. As demais pessoas assinaram
um manifesto distribuído por toda a Cuiabá, justificando seu posicionamento sob a alegação
de que estavam destruindo a Festa. Os jornais da época noticiaram a mudança, argumentando
que os padres e os leigos envolvidos iriam interferir negativamente na sua tradição. Mais
ainda, com essa mudança a grande expressividade da Festa não iria perdurar e, portanto,
deveria voltar para as mãos da Irmandade de S. Benedito.
38
Como prenúncio da Festa de S. Benedito, o saudoso companheiro Geraldo Henrique Costa idealizou no ano de
1985 a peregrinação da imagem de S. Benedito pelas comunidades, sendo que o retorno de S.B. para a sua igreja
se na quarta-feira que antecede o . dia do tríduo da Festa. Nesse período no conjunto dos festeiros surge o
cargo de Alferes de Bandeira. Ver o anexo II - Programação da Peregrinação das Imagens (2006).
Apesar das forças contraditórias, a Festa foi um espaço aberto de diáspora, uma
sucessão de momentos de manifestação das singularidades da cultura que forma o povo
cuiabano.
Cada ano um esforço de lutas para que a Festa resgate as suas origens no
sentido do envolvimento popular, de expressões culturais e religiosas. Todavia também,
me parece, um movimento que argumenta que a Festa cresceu e precisa ser inserida no
contexto das novas tecnologias, ou seja, profissionalizá-la como um evento show.
Como pude perceber, a Festa e a escolha dos festeiros sempre foi um campo
muitas vezes de disputas e conflitos. O rei da Festa era geralmente alguém do meio social
mais influente, pois ser rei ou rainha da Festa de S. Benedito era um prestígio para poucos.
Sendo assim foi difícil a composição dos festeiros da primeira Festa
39
realizada
no pátio da igreja, pois as pessoas que foram convidadas pela paróquia se sentiam
despreparadas financeiramente. Então foram avisadas de que podiam contar com ajuda dos
devotos, que eram muitos, e não precisavam arcar com toda a despesa como aentão havia
sido.
Dona Helena, devota antiga de S. Benedito que vivenciou bem essa época, um
tanto ainda insatisfeita, falou que
antes
a rainha podia escolher sua sucessora e os demais
festeiros também. Não havia a interferência da igreja. A partir de 80 houve mudanças, porém
ainda há influência de alguns caciques na escolha dos festeiros atualmente.
Isso é reforçado pela fala de Pe. Moura (2006) quando diz que os cuiabanos
mais antigos, que sempre preservaram a tradição, “[...] têm influência decisiva na escolha dos
festeiros”, porque, segundo ele, esses cuiabanos se sentem responsáveis pela Festa bem como
pela sua existência até hoje.
Um outro aspecto importante na escolha dos festeiros é o CPP (Conselho
Paroquial de Pastoral), criado, segundo Moura (2006), no começo da década
de 80, quando assumiu com as comunidades a escolha dos festeiros novos.
Segundo dona Helena, ‘[...] mesmo assim, não é tão democrata essa escolha’
(CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 46).
39
Pegaram pessoas comprometidas com a devoção a São Benedito. Rei Lourival, pessoa simples, humilde. Você
quer ser rei, a proposta é essa, vocês não gastarão de seu bolso. Vocês trabalharão com os devotos de S.
BENEDITO, vocês fazem uma obra na paróquia para ajudarem a paróquia a desenvolver o trabalho pastoral.
Chamaram dona Vanildes Curvo, no começo ela não aceitou, depois voltaram e aceitaram. Seu Dito Canjica foi
festeiro, eles pegaram gente bem pé no chão. Eles fizeram aquela creche do bairro Canjica, eles que construíram.
Mas até hoje a comunidade não aceita porque a coisa caiu dentro dali um elefante branco. Por final, aquela
creche até hoje quase todinha é mantida pelos luteranos (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 51).
Às vezes um nome não indicado na urna é buscado em forma de consulta. Ela
disse que é uma opinião pessoal.
Segundo ela, as pessoas podem se auto-indicar e indicar outras pessoas, os
nomes são colocados na urna. Por um período a urna percorre as comunidades (27), depois os
nomes são apreciados pelo CPP, que determina os festeiros tanto para Nossa Senhora do
Rosário como para S. Benedito.
Seu Nonô ainda menciona que a consulta, através do plebiscito, está
diminuindo a influência dos devotos em indicar os festeiros. Em 2006 havia dois candidatos a
rei:
Eles estão indicando menos, são mais de meses que fica a urna para os
devotos indicarem. Na época que foi lançado, foi boa, como uma
democratização da escolha. Mas a gente está percebendo que parece que está
havendo um descaso com a indicação da consulta. Parece que querem
escolher a dedo (CADERNO DE CAMPO 4, 2006, p. 54).
Nesse vaivém da história é interessante pensar que a Festa nasceu com os
negros que viveram em Cuiabá, é bom lembrar que nas senzalas, certamente, eles também
elegiam seus representantes. Cuiabá abrigou muitos escravos, como uma grande senzala, o
que aparece claro na fala dos historiadores Rosa e Jesus (2003, p. 38): “Africano e seus
descendentes vieram para o Cuiabá desde os primeiros anos de 1720. vários casos de
senhores trazendo 14 a 28 escravos cada um, antes de 1727. Só em 1726 entraram na
freguesia do Cuiabá 373 escravos”.
Como relata Antonil (1968, p. 132):
Portanto, não lhes estranhe os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar
por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se
honestamente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa
Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho, sem
gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade aos juízes, e
dando-lhes algum prêmio do seu continuado trabalho. Porque se os juízes e
juízas das festas houverem de gastar do seu, será causa de muitos
inconvenientes e ofensas de Deus por serem poucos os que podem
licitamente ajudar. [Referindo-se aqui Antonil aos ‘reisados’ ou ‘reinados’
do Congo].
A interpretação de Eduardo Hoornaert et al. (1992, p. 390) nos ajuda a entender
que a citação de Antonil leva ao entendimento de que houve toda uma estrutura na
organização das festas dos africanos, com reis, rainhas, juízes, juízas, governadores etc., o que
denota uma certa formação de comunidades entre os escravos. Tudo isso ameaçava o
sistema colonial, pois a pouca liberdade e a ínfima organização dadas aos escravos eram
consideradas perigosas. Daí a repressão a essas festas em nome da ordem, da moral, da
decência.
Com base em Eduardo Hoornaert et al. (1992, p. 388), posso afirmar que o
clero mantinha um certo interesse nas festas de negros, por isso apoiava a sua realização.
Vejamos o caso de Antonil, jesuíta italiano que esteve no Brasil no século XVII, estimulava
os senhores de engenho, donos de escravos, a permitirem tais festas: "Negar-lhes totalmente
os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e
melancólicos, de pouca vida e saúde”.
As principais festas celebradas pelas irmandades de negros eram a de véspera
de Reis, a da noite de Natal, a de Ano Novo e os três dias de carnaval.
A existência legal das irmandades negras mostra que o cristianismo luso-
brasileiro soube dar um lugar ao culto dos escravos, meio de controle é claro. Para alguns
analistas, ferramenta de disciplina, pois nas irmandades "[...] os escravos se reuniam em
grupos em que aprendiam a disciplina com 'reis do Congo' exercitando sua autoridade sobre
'vassalos'" (FREYRE, 1984, p. 355-356). Mas não é isso. Como bem observa Gilberto
Freyre (1984, p. 356), "[...] a religião tornou-se o ponto de encontro e de confraternização
entre as duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível ou dura barreira”.
Olhando um pouco mais de perto, vou percebendo o reflorescer de um espaço aberto para o
sincretismo, para a hibridação de códigos, realidades, percebida pelos viajantes europeus e
pela própria Igreja Católica.
No texto Ensaio fotográfico de João Urban e Suzana Ribeiro sobre a Festa de
S. Benedito em Aparecida do Norte (2000), pude encontrar algumas semelhanças com a Festa
de S. Benedito de Cuiabá, principalmente no que diz respeito ao seu espaço simbólico, de
manifestação e afirmação da cultura local, envolvido por um misto de simbolismo sincrético:
Verificamos a realização da Festa de São Benedito, a festa do Santo Negro
que acontece também em outros lugares do Brasil, na segunda semana
depois da scoa, sempre na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, protetora
dos escravos. Implica, como bem descreve o antropólogo Carlos Rodrigues
Brandão, um complexo sistema de trocas de ações de serviço que envolve
tipos de participantes e modos de participação, tanto nas esferas amplas de
relações entre a sociedade promotora e a festa do santo, quanto nas esferas
restritas das trocas entre ‘irmãos’ dançantes de Congadas e Moçambiques de
cidades do Vale do Paraíba e de Minas Gerais, os encarregados da
irmandade do Rosário e outros agentes responsáveis pela festa. A festa nesse
caso tem a duração de sete dias, é organizada com inúmeros rituais: desfile
dos ternos de Congo e Moçambique, missas com destaque para a Missa
Conga, cerimônia em torno à coroa e ao festeiro. Paralelamente a estes
festejos, desde 1909 acontece na cidade a Festa de São Benedito, que teve
origem tanto nas práticas da Igreja Católica escravocrata em suas tentativas
de absorver as religiões africanas, quanto na resistência dos escravos para
manter os cultos a suas entidades, adequando-as aos santos e ritos católicos.
Promovida pela Irmandade da Igreja do Rosário e pela população local, a
festa se caracteriza como um ciclo religioso-folclórico de festejos do
catolicismo popular que preservam alguns elementos dos cultos africanos e
também pela adaptação à diversidade cultural da região
.
Isso faz de certa forma entender a realidade da Igreja do Rosário e S. Benedito,
quando verifico a presença sincrética dos devotos de S. Benedito, conforme relataram vários
devotos, muitos deles tradicionais negros ligados a um terreiro de umbanda, realidade que
apareceu desnudada na fala de pelo menos 5 devotos e dois ex-padres jesuítas que atuaram
por vários anos nessa paróquia.
Conversando com uma devota, ela me disse:
Eu sou católica, mas não só católica, eu freqüento o centro Espírita, ajudo na
igreja da Graça. Pois Deus é um só, nós que inventamos as igrejas. em
casa 20 anos participamos da festa de S. Benedito como festeiros de
Promessa. Todo ano é um que é. Sabe moça, eu sou tão feliz, tenho saúde,
tem gente que acha que a felicidade é só com dinheiro, riqueza. A riqueza é a
continuação de nossa felicidade, não é a nossa felicidade. Eu me sinto tão
bem aqui [referindo-se à peregrinação da bandeira].
O sincretismo na Igreja do Rosário, aqui em Cuiabá, ainda é muito forte,
muitos antigos não ficam sem dar um passo, uma orientação espiritual, eles são médiuns,
participam da celebração e, à noite, vão para o terreiro consultar o pai de santo.
Foto 49 - Terreiro em homenagem a S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Essa contribuição de resgate da identidade cuiabana apareceu visivelmente na
fala de entrevistados que estão envolvidos com a devoção a S. Benedito e mantêm seus
trabalhos espirituais no terreiro.
Ocorre que, após a grandiosa Festa de S. Benedito, as outras comunidades se
sentem autorizadas para também fazer homenagem ao santo em festas menores
Após a Festa maior de S. Benedito, por exemplo, seu Miguel faz a Festa dentro
de um terreiro de umbanda com o nome de S. Benedito. Todos participam, pra eles (os
devotos) é como se fosse uma reserva, eles podem ali manifestar-se, sentem-se autorizados, é
espaço sem controle do catolicismo, sentem-se livres: o espaço da diáspora se ramifica.
As dispersões em pequenas e grandes senzalas onde os negros à noite faziam
suas festas se transformam nos espaços dos terreiros e em Centros Espíritas diversos
espalhados pela cidade de Cuiabá e interior, normalmente sem anúncios públicos. Mais uma
vez como diz seu Miguel (2005): “O povo devoto de S. Benedito comparece, a festa é bonita
no terreiro”.
Nas microfestas, as pessoas envolvidas ao mesmo tempo em que traduzem a
sua fé, também acentuam a parte espiritual, elas estão no entrecruzamento de duas fronteiras.
De ambos os lados há totalizações diferenciadas da experiência com o santo ou a entidade.
Nesse território do festá percebem-se negociações com as entidades espirituais,
as quais possibilitam o sincretismo e uma certa mestiçagem. S. Benedito é um Orixá
guerreiro, uma entidade extremamente vingativa, as pessoas têm medo da vingança do santo.
Não se quebra uma promessa, a Festa no terreiro ou na Praça de Nossa Senhora do Rosário e
S. Benedito não pode ser quebrada. O santo é fiel, exige fidelidade, o devoto é grato por toda
a vida.
Esse comportamento diante da promessa ao santo faz parte da cultura
devocional brasileira, como ressalta José Carlos Pereira (2004, p. 44-45):
Na relação devocional a promessa é algo fundamental e ela precisa ser
cumprida. O devoto não pode ficar em débito com o santo, porque da
próxima vez não será mais atendido, ou o santo poderá mudar de idéia e
retirar a ‘graça’ concedida ou até castigar.
O cumprimento da promessa é a certeza da graça alcançada e da continuidade
da devoção. Por isso encontramos os devotos de S. Benedito em todas as ocasiões do ano na
sua igreja pagando promessa
.
Por ocasião de uma das missas de S. Benedito, uma mãe de santo foi convidada
para participar da liturgia. Quando ela se apresentou entoando um canto a iemanjá, os devotos
presentes se incomodaram, e um som de cochichos tomou conta da igreja feito um enxame de
abelhas alvoroçadas. Mas a mãe de santo permaneceu tranqüila e disse para os que estavam
próximos dela: “Muitos dos que estão aí se incomodando com minha presença, participam das
missas e depois vão para o meu terreiro à noite” (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 76).
Parece-me que a divisão de espaços na realidade de Cuiabá no tocante às
manifestações religiosas é tranqüila ou aceita quando cada grupo manifesta sua ou
expressão de em seu próprio espaço. Assim os espaços são negociados, o que me levou a
constatar que em Cuiabá a Festa vem junto do que é proibido.
Cuiabá é um dos poucos lugares do Brasil onde os terreiros de congá não
expõem seu endereço publicamente, ou seja, uma manifestação religiosa meio encoberta, pois
o cuiabano liga o terreiro, seja ele qual for, com a macumba, que faz despachos e muitas
vezes a feitiçaria.
Ortiz (2006, p. 76) esclarece sobre o que ocorreu no Brasil com os santos
africanos que foram encobertos pela cultura branca fazendo florescer o sincretismo religioso
em todo o país:
Neste sentido o sincretismo entre santos católicos e orixás africanos revela
apenas a máscara cristã. Seu verdadeiro rosto esconde a persistência da
‘essencialidade’ africana. Portanto a especificidade da matriz cultural
permanece enquanto diferença, cada uma delas atuando como filtro seletor
do que é trocado. As culturas seriam assim definidas internamente, tendo a
capacidade de reinterpretar os elementos estranhos, oriundos ‘de fora’.
Na verdade Nossa Senhora do Rosário marca as origens negras, todas as igrejas
dedicadas a ela estão associadas com a devoção a S. Benedito, constituindo-se num grande
apelo à liberdade e educação no resgate da cultura que forma o povo cuiabano. Na Festa há,
direta e indiretamente, um desejo concreto de aprendizado dessa cultura afro-indígena.
Em uma das minhas inúmeras subidas e descidas na escadaria da colina do Rosário
Numa manhã do mês de maio de 2006 passei na Igreja do Rosário e S.
Benedito, resolvi, antes de chegar à secretaria, dar uma passadinha no seu interior para ver o
trabalho de restauração. Então subi pela escadaria da frente. A sensação, ao subir aquela
escadaria, era que eu estava adentrando outro espaço. Então olhei para trás e comecei a mirar
até onde a vista alcançava, pois o ponto de onde eu estava era alto.
Lembrei-me da professora Elizabeth Madureira, minha professora de História
da Educação no curso de Pedagogia. Ela contava vivamente, como se estivesse estado lá,
como foi o início do povoamento de Cuiabá. Ou dizendo de outra forma, para usar o relato de
Karl Von Den Stein (1942): "O turista, ao chegar à idilética Capital de Mato Grosso, procura
em primeiro lugar visitar a colina do Rosário e sai convencido de que foram ali reunidos os
bandeirantes de Pascoal Moreira Cabral que lavrou, a 8 de abril de 1719, a ata de fundação da
cidade”.
Ah! Esse espaço debaixo dos meus pés sendo parte do cenário da fundação de
Cuiabá. Não conseguia subir mais nenhum degrau. Então olhei para a frente e mirei a igreja,
testemunha viva da nossa história, pois foi nessas proximidades que o sorocabano Miguel
Sutil descobriu ouro em abundância.
Naquele momento não podia entrar devido ao trabalho de restauro, segui até a
secretaria onde tomei nas mãos a programação da Festa de 2006. Voltei até o pátio da igreja
com a programação e sentei-me no murinho feito de pedra canga na lateral da capela de S.
Benedito. Naquele momento, embora estando no centro de Cuiabá, parecia que existia um
silêncio, não aquele programado ou forçado pelo final de semana onde um número
significativo de cuiabanos vai descansar nos arredores de Cuiabá, e a cidade também descansa
dos movimentos e barulhos do cotidiano corrido... Observei longamente a capa do convite da
programação, lá estava a igreja e a imagem de S. Benedito tendo nos braços o menino Jesus e
os pés quase como suspensos na escadaria lateral da igreja. Li o tema da Festa e me recordei
do tema de 2005: De mãos dadas com São Benedito, buscamos solidariedade e paz.
Os temas são escolhidos num plebiscito feito em toda a paróquia, onde os
paroquianos são convidados a escolher, dentre quatro temas, um que irá tecer e entrelaçar toda
a Festa. Os demais temas ficam como reflexão para os três dias do tríduo.
O plebiscito começou a ser utilizado nos preparativos da Festa de 1997,
segundo o Livreto da Festa de S. Benedito (1998), e com ele surge o Concurso de Cartaz da
Festa: “Na parte organizacional, o avanço se deu através de participação popular (devotos,
comunidades) com a realização do Plebiscito para a escolha do Tema Central da Festa e do
concurso de cartaz, introduzido a partir de 1997” (LIVRETO DA FESTA..., 1998).
Possivelmente após essa data, o plebiscito também tenha passado a ser usado
para realização da escolha dos festeiros.
Conversando com o padre Roque, ele me disse que o tema do ano de 2005 foi
voltado para o compromisso social, da mesma forma que o tema de 2006 .
Segundo ele, “Precisamos aproveitar do espaço da Festa para trabalhar a formação. Beijar o
santo sem compromisso é complicado. Precisamos trabalhar o tema da Festa”
(CADERNO DE
CAMPO 1, 2005, p.101).
Na fala do padre é possível perceber que a Festa de S. Benedito possibilita
bases de ações e reinterpretações que foram fundadas na teologia da libertação.
Ao ler a programação, deparei-me com os festeiros, oito no total, e cinco
chamados de festeiros de promessa. Esses últimos não são escolhidos por votação da
comunidade, são aqueles que, ao alcançarem uma graça, dedicam-se de coração à Festa. É
uma forma pública de agradecer ao Santo pela graça recebida.
Numa animada e longa conversa com o senhor João Grosso (CADERNO DE
CAMPO 2, 2005, p. 86-89), que é assim conhecido por todos na cuiabania, ele falou o quanto
seria importante o resgate na Festa da presença dos devotos de promessa
40
, sugestão que vem
insistentemente apresentando aos padres da Paróquia Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito. Perguntei-lhe como assim, aproveitá-los? Então ele retoma a história da Festa para
esclarecer que:
Falei pra padre Roque, tem que voltar como era antigamente, nós mesmos
que limpávamos, fazia a paçoca. E a paçoca desse ano quase ninguém comeu
[referindo-se à Festa de 2005, quando terceirizaram a paçoca] Você deve a
S. Benedito o milagre, o que você recebeu e está recebendo. Esse tempo
você vai dedicar a S. Benedito. A gente? Pago! -Fazer barraca? Pago!
Antigamente não pagava, o pessoal recebia a graça e ia trabalhar pro santo.
Tem que voltar as pessoas de Promessa. Pergunto à comissão: - Banheiros?
está tudo completo diz a comissão. Agora põe um pessoal pra trabalhar
que a gente nunca viu dentro da igreja...
[...] a gente faz o trabalho em prol da igreja. Se pedirem pra mim fazer tal
coisa, eu vou! Vai limpar a privada, carregar isso, eu vou! São Benedito me
salvou de várias coisas na minha vida, ele me vigor no corpo. Faço todos
os dias as minhas orações.
O reinado de 2006 na dança do tempo da Festa
40
Os devotos de promessa são aqueles que receberam alguma graça do santo e, para agradar ao santo, passam a
fazer algum trabalho durante os preparativos ou nos dias da Festa. Geralmente no livreto da Festa de cada ano
podemos encontrar uma lista de devotos que costumam estar inseridos na comissão de Festa do ano que se
inscreveu. A maioria prefere realizar algum trabalho considerado de maior sacrifício ou humilde a exemplo de S.
Benedito, como limpar banheiro, recolher o lixo, arrumar as mesas e cadeiras da Festa... Muitos fazem uma vez e
depois continuam atuando no ano seguinte.
Destaco os novos festeiros de 2006: Rei: Joaquim Curvo de Arrua; Rainha:
Leda Maria da Silva Sguarezi; Capitão de Mastro: André Artur Ferreira Almeida; Alferes de
Bandeira: Ana Julieta (in memoriam); Juiz de Vara: Nelson Maurício de Souza; Juíza de
Vara: Benedita Rosa Costa Campos; Juizinho de Ramalhete: Pedro Henrique Queiroz Coelho;
Juizinha de Ramalhete: Lorhaine de Luzia Pereira; Promessários: Rei Diocles de Figueredo;
Capitão de Mastro: José Carlos Loureiro da Silva; Alferes de Bandeira: Alessandra Conceição
de Faria Lopes; Juizinho de Ramalhete: Alberto e Milton Akerley Bumlai Ferreira Mendes;
Juizinha de Ramelhete: Ana Claúdia S’antana Nunes Serra. Estes portam os símbolos
41
que os
identificam e evocam todos os outros símbolos que compõem toda a festividade.
São esses homens e mulheres devotos e devotas de S. Benedito que durante um
ano assumem a Festa mais diretamente. Conseguem nesse período de intenso trabalho para o
santo conjugar a vida particular com todas as exigências da Festa.
Cada ano um grupo de festeiros o tom da Festa. Os devotos, alguns de perto
outros de longe, ficam acompanhando o ritmo de cada ano, tentando resguardar aspectos
importantes da tradição. De certa forma avaliam o desempenho dos festeiros.
O corre-corre dos festeiros é grande, estão quase sempre fazendo algum tipo de
contato por telefone ou pessoalmente em função da Festa. Os papéis legais do funcionamento
da Festa são logo agilizados. Os festeiros estão quase sempre apressados para mais uma coisa
fazer.
41
Segundo Jode Moura e Silva (2003), o Rei porta a coroa que representa o poder máximo religioso e civil.
Lembra o poder religioso recebido pelo Rei português e passado ao Imperador brasileiro no tempo do padroado;
a Rainha porta uma coroa que representa o poder civil entendido como também religioso; o Capitão do Mastro
porta o quadro que é levantado no mastro, sinais do começo do tempo forte da Festa e seu encerramento; o
mastro levantado representa a glória de S. Benedito e suas bênçãos sobre Cuiabá; o Alferes de Bandeira porta a
bandeira de S. Benedito, a percorrida da bandeira representa a bênção de S. Benedito; o Juiz de Vara porta uma
vara que lembra o poder misto de civil e religioso do tempo do padroado. A figura do juiz lembra o tempo dos
Juízes do Antigo Testamento; a Juíza de Vara porta uma vara e representa o poder feminino no povo. Lembra as
grandes mulheres do Antigo Testamento, que salvavam o povo; o Juizinho e a Juizinha de Ramalhete portam um
ramalhete que lembra o louvor das crianças. O altar de S. Benedito na nave principal significa a glória do santo,
onde os fiéis depositam sobre ele os objetos para serem abençoados. No sacrário deste altar se encontra a relíquia
da pele incorrupta de S. Benedito; o Andor representa a exaltação de S. Benedito; a Banda de Música, a
exaltação pela arte, a música lembra os coros dos anjos no nascimento de Jesus Cristo; os Cantos representam a
alma do povo, um conteúdo de viva; a Capela de S. Benedito, a devoção forte do povo; os Comes e Bebes, a
bênção dos santos sobre os alimentos; o Cruciferário vai à frente da procissão como memória da paixão e morte
de Cristo; as Esmolas, a doação a S. Benedito; o Foguetório, a expressão forte de alegria; a Imagem de São
Benedito representa o santo; o Entorno da Matriz é entendido pelo povo nos dias de Festa como o lugar
especialmente religioso e não simplesmente profano; a Vela Acesa significa a fé; o Toque Sagrado na Imagem é
usado pela pessoa para significar um ato de veneração e oração. O ato lembra que as pessoas tocavam até o
manto de Jesus para se curarem; a Procissão é um modo de rezar solene, lembra a entrada de Jesus em
Jerusalém.
Os festeiros entram no movimento do tempo da Festa e, pouco a pouco, a Festa
Maior sai do tempo intenso e se aproxima do tempo forte. Os festeiros diariamente podem ser
vistos ou encontrados na Praça do Rosário, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito, na cozinha do santo, na secretaria da Festa... Se quisermos falar com um deles, por
um desses lugares precisamos passar.
Ainda sentada na pedra canga, olhei todos os dias da programação da Festa e
naquele momento senti a intensidade da sua grandeza. Faltavam ainda muitos dias para ela
começar, porém parecia-me que ela estava ali, presente e atuante. O papel não falava nada,
mas expressava muito, afinal aqueles dias bem-programados eram ansiosamente esperados,
pois algo mais iria torná-los únicos, como que premiados dentro do calendário civil deste ano.
Acompanhando a rotina dos preparativos da Festa, vi que o corre-corre dos
festeiros e das pessoas envolvidas com ela não era pequeno, pois uma Festa desse porte não
fica barata, por isso quem assume a sua coordenação tem que buscar o que eles chamam de
patrocinadores e articular com vários grupos de pessoas que irão trabalhar voluntariamente.
Já soa a Festa no pedaço...
Fotos 50, 51 e 52 – Cartazes anunciando que é tempo de Festa.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005 e 2006.
Rapidamente parece que os dias passam e majestosamente a Festa é anunciada.
Assim foi na abertura da Festa de 2005. Onze dias antes, na noite de sexta-feira do dia 17 de
junho, é anunciado o baile de abertura no clube Monte Líbano, espaço de outras festas sociais
como casamentos, formaturas etc.
Nesse ano (2005) as pequenas promoções das terças-feiras na Praça do
Rosário, onde dezenas de famílias ficam, depois da tradicional missa, para jantar com seus
familiares e amigos, foram em menor número, priorizando-se as promoções maiores.
em 2006, os coordenadores organizaram promoções de grande porte em
diversos locais: Associação dos Criadores de Mato Grosso-ACRIMAT (boi no rolete),
Associação Mato-Grossense dos Magistrados-AMAM (feijoada), participação num evento no
Centro de Eventos do Pantanal, depois baile no clube Monte Líbano.
Segundo os festeiros de 2006, as promoções maiores, como o baile, têm o
objetivo de arrecadar fundos. Mas primaram pelas promoções menores, após a missa das
terças-feiras. Essas promoções são oferecidas pelos próprios festeiros, eles têm que correr
atrás para viabilizá-las. Para isso é feita uma agenda entre eles.
Conversando com a devota dona Helena, ela me disse:
As promoções da festa como existe hoje começaram na década de 90. Nessa
promoção é vendido após a missa da manhã de todas terças-feiras o bolo de
arroz (tchá co bolo). À noite, após a missa da noite no mesmo dia, é vendido
o tradicional almoço de S.B. Antes não havia nada disso. Cada festeiro
decide como será feita essa promoção. Os festeiros de 2005 resolveram não
fazer esse tipo de promoção das terças-feiras. Optaram por fazer grandes
promoções, pois dá mais resultado do que as pequenas.
Após a mudança da Festa para a Paróquia Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito, a proposta era que os festeiros não fossem pessoas de grande poder aquisitivo, mas
devotos do santo e trabalhassem com os demais para a sua realização.
Por fazer parte da cultura cuiabana, desde a criação da Lei Hermes de Abreu
42
de apoio à cultura, a Festa de S. Benedito obteve ajuda financeira no tocante às despesas.
Através dos projetos apresentados e sempre aprovados, era liberado um valor definido para
pagar a parte cultural da Festa, e o restante dos gastos eram cobertos por patrocinadores. No
ano de 2006, segundo as pessoas envolvidas com a organização, houve muitos patrocinadores
e um lucro bem maior do que nos anos anteriores, informou seu Nonô.
2.7 Ritual preparativo da Festa da cuiabanidade: levantamento do mastro, o santo que
peregrina e a bandeira que pede esmolas
Levantamento do Mastro
42
A Lei n. 5.893-A, de 12/12/91, de autoria do deputado Hermes de Abreu, foi modificada pela Lei n. 7.042 de
15/10/98 e regulamentada pelo Decreto n. 179, de 20/5/99. A Lei prevê até 100% de isenção do ICMS para as
empresas que patrocinarem um projeto cultural. Através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, vários edifícios,
tombados pelo Patrimônio Histórico do Estado de Mato Grosso, passam por obras de conservação.
Foto 53 – Descida do Mastro, término de um reinado e começo do outro.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Na Praça do Rosário e São Benedito, o galo cantou já é madrugada ...
No espaço caracterizado como sagrado, no calar da madrugada cuiabana do dia
28 de junho de 2005, uma alvorada de fogos rasga o céu da Capital anunciando os sinais do
andamento da Festa. Logo após a missa, presidida neste ano pelo Padre Pedro Canísio, os
devotos de S. Benedito saem em procissão até o pátio da igreja e dão continuidade à
cerimônia de Levantamento do Mastro
43
. No mastro está pintada a imagem de S. Benedito
que, em sua simplicidade, é erguido numa estampa que conclama a continuidade da Festa.
Interessante é lembrar que, geralmente, quando conquistamos alguma coisa, um prêmio, um
lugar, ou comemoramos algo importante, é comum a elevação do símbolo maior que expressa
o que estamos evocando...
O Mastro indica a marcação do tempo e, quando é erguido, sinaliza o começo
da Festa ou um momento forte dela. Quando o mastro desce indica o término desse tempo
forte da Festa que, enquanto tal, não pára. Assim aconteceu com a de 2005 que se abriu para
acolher a Festa de 2006.
No movimento da Festa, um marco histórico da cuiabania veio ao seu encontro
No meio do caminho da Festa de 2006 me deparei com a esperada
reinauguração da Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito que ocorreu em 21/6/06
44
.
Uma longa espera marcou o ansioso encontro dos devotos e paroquianos em geral com a
igreja restaurada.
A Praça do Rosário estava vestida de festa, o povo compareceu para conferir ao
vivo e com seus próprios olhos a riqueza centenária. O clima era de intensa alegria e de muita
curiosidade para ver a preciosa obra em detalhes recuperada.
43
O levantamento do Mastro aconteceu em dias diferentes da semana. Na terça-feira da semana da Festa, na
quinta-feira, o 1°. dia do tríduo, um mês antes dela. Seu Nonô disse-me que se seguisse a tradição seria na
quinta-feira do 1°. dia do tríduo.
44
Anexo V – Livreto convite da Festa de S. Benedito 2006.
Foto 54 - Reinauguração da Igreja de N. S. do Rosário e S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A reinauguração foi marcada por momentos bonitos, e esse bonito a que me
refiro tem a ver com o sentido simbólico do ato em si. Além dos devotos que compareceram
em peso, havia a presença de várias autoridades políticas locais, estaduais e federais. A
reinauguração foi marcada por vários discursos, muitos deles vazios de sentido da realidade
festejada. Na verdade, foi o espaço de que muitas figurinhas ilustres da sociedade cuiabana e
mato-grossense se aproveitaram. A política, como bem lembrou o nosso Arcebispo, faz parte
da vida em todos os sentidos, e eu arremato, uma política quem sabe a exemplo dos grandes
homens e mulheres da nossa história, essa sim não pode estar separada da vida.
O pronunciamento de alguns dos nossos políticos foi do tipo boa fala,
galanteador e populista, com rimas da poética histórica de Mato Grosso, que diz o que o povo
quer ouvir e não o que precisa ouvir. Essa sim é uma marca do nosso cenário social,
diariamente, a preço de vidas, embora escamoteada de uma forma indisfarçável, uma certa
negação da realidade local que oculta o feio descaso com as obrigações desses mesmos
políticos com esse mesmo povo.
Nesse momento em que autoridades políticas se fazem presentes, pude
constatar formas escamoteadas de apropriação oficial dos espaços eleitos e respeitados pelo
povo. Porém a solenidade pública precisava deles, como para explicar de onde e quem
conseguiu os recursos que, de fato e de direito, são do povo, desvelando, assim, certa
submissão ao dono do capital, a Casa Grande, como que estendendo sobre nós todos uma
grande senzala, ampla e um tanto enfeitada, colorida (devido às raças), pois antes era
somente pintada de uma única cor, a negra.
Nesse espaço, a voz da pastoral social da igreja ficou guardada ou foi negada,
pois não fazia parte da formalidade, do protocolo da noite.
Questiono por que o Chão dessa Igreja tem memória marcada por lutas que
são capazes de atravessar o sentido do monumento tombado. “Ah! Aquelas paredes
descobertas de ‘taipa socada’! Assim eram levantadas: estendiam-se duas tábuas em paralelo,
distantes um metro, colocava-se entre elas terra, molhava-se apenas um pouco e socava-se,
donde o nome ‘taipa socadaou ‘taipa-de-pilão’”
(SILVA, 2006, p. 28). Se elas pudessem
falar, talvez ouvíssemos gemidos de dor, devoção, opressão e resistência.
Foto 55 - Parede interna da Igreja feita de taipa socada.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006
.
Como diz o poema: “[...]Vamos replantar as flores e as sementes
Que séculos estão em cio!”
45
. Essas paredes têm sentido duplo de resistência, elas são um
prenúncio de liberdade.
Passamos horas aplaudindo um grupo que se colocou num espaço reservado,
formalizado, mas não fomos, o povo, aplaudido. Só quando cheguei em casa comecei a
recordar e fui separando uma coisa da outra. Recordo que muitos féis e devotos do santo nem
chegaram a se aproximar do ato/momento tão esperado, alguns foram vencidos pelo cansaço,
outros pela própria idade, outros pelo tumulto, esses todos sem o botton que permitia a
entrada e sinalizaria com um certo poder ou privilégio.
45
VICENTE. É por amor! Disponível em: < http://www.cebi.org.br/noticia. 9 set.2006> . Acesso em:
mar. 2007.
Na oportunidade, aproximei-me de algumas pessoas, alguns devotos, outros
admiradores do espaço religioso e percebi uma certa indignação em estarem ali ouvindo
aquela cúpula política discursar.
O povo foi hóspede dentro de sua própria casa, não foi convidado a dar o tom
do momento. Verifiquei mais uma vez que a hierarquia e a instituição são estruturas que se
apropriam do poder em nome muitas vezes de uma falsa ordem. Infelizmente, parece que não
conseguimos viver fora delas. Como diria Foucault (1975), "[...] corpos vigiados, melhor para
controlar e punir".
O patrimônio da igreja, por ser tombado, gerou um espaço controlado, e os
corpos transitam por esses espaços, vigiados. Os lugares marcados pareciam dizer: aqui pode
acender uma vela, ali não. Parece-me que estas características apontam para o que posso
chamar de branqueamento da Festa e controle da produção do sagrado pelo mercado. Que tipo
de educação está em vigor nesse processo educacional em curso? Que afinidade tem isso com
a vivência do ato de religiosidade do fiel? Que tipo de fiel se define nessas relações?
Aparece aqui mais vez uma forma implícita de negociação de espaços e de
identidades como uma forma de sobrevivência do próprio povo e de suas raízes de tradição e
devoção. Com isso não estou dizendo que o povo se deixa manipular, nem posso afirmar,
embora sinta, que, na emergência da Festa como prática popular, a igreja e os poderes
públicos são como que secundários, conquanto a negociação com essas formas de poder
garantam a continuidade da tradição.
No dia anterior e seguinte pude acompanhar, nas manchetes dos jornais e TV, o
noticiário acerca da reinauguração, bem como os nomes de homens ilustres da política (na sua
maioria) e da sociedade cuiabana e seus aliados no agronegócio nacional e internacional.
Muitos daqueles que estavam na praça conseguiram entrar na igreja depois
que todas as autoridades estavam se retirando, ou seja, o espaço era cedido, era a vez do
povo, esse mesmo povo que todos os dias, nas missas de terças-feiras ou de outros dias da
semana, sempre esteve ali.
Após o restauro e reinauguração, a Igreja passou a ficar aberta ao povo durante
o dia para visitação. um funcionário encarregado desse trabalho, como um zelador ou
guarda de plantão da igreja.
A Festa segue seu movimento, vai o santo ao encontro do povo
Peregrinação das imagens de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito
.
Fotos 53 e 54 – Fiéis peregrinam com as imagens.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Fotos 56, 57 e 58 – Fiéis peregrinam com as imagens.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
No período de 3 de maio a 4 de junho de 2006 aconteceu a peregrinação
Na peregrinação
46
pude observar o encontro de duas devoções que de certa
forma sempre ocuparam o mesmo espaço ou território devocional. Desde os espaços
demarcados das senzalas até os espaços religiosos aprovados pela igreja para o culto ao santo,
em ambos encontramos, lado a lado, Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito.
Acredito que não é mera coincidência, e sim força de uma tradição negra e
escrava que encontrou no rosto materno o consolo e a esperança de libertação das amarras da
dura servidão, pois conta-nos a história que a cada ano da Festa de Nossa Senhora do Rosário
um negro era alforriado e passava a ter a santinha, como era chamada, de sua madrinha.
Fato interessante, o corpo de Frei Benedito (S. Benedito) foi colocado num
ataúde de vidro para que pudesse ser visto, à esquerda do altar da Santíssima Virgem
(ALBARET, 1989, p. 77), na igreja do convento de Santa Maria de Jesus de Palermo, Itália,
em três de outubro de 1611, 22 anos após a sua morte, pois três anos após a sua morte o corpo
de Benedito foi posto num ataúde precioso em um nicho na sacristia da mesma igreja, onde se
encontra até hoje.
46
A peregrinação segue um programa de visitação das imagens. Ver o Anexo 2.
Foto 59 – Encontro das imagens dos dois santos.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Voltando à Igreja do Rosário e S. Benedito, verifiquei, na peregrinação que
antecede a Festa de S. Benedito, o povo carregando em andores os dois santos, ou seja, lado a
lado estavam S. Benedito e Nossa Senhora, pois o povo parece que sempre arruma um
jeitinho para que haja esse encontro.
Dizem os devotos que a festa do Rosário é após a Festa de S. Benedito, em
outubro, e antes as imagens peregrinavam cada qual com seus festeiros de comunidade em
comunidade. Há quase três anos as duas imagens e os festeiros de ambas as festas peregrinam
juntos.
A imagem de S. Benedito (S.B.) vai à frente indicando que a Festa que se
aproxima é de S.B. e não de Nossa Senhora do Rosário (N.S.R.). Na época da festa de N. S.
R., a sua imagem aparece na frente.
Acompanhando a peregrinação, observei todo o ritual festivo e simbólico que
encobre essa forte devoção.
Aqui vou pegar carona no ônibus dos peregrinos que carregam os santos da devoção
Foto 60 – Peregrinos no ônibus em viagem pelas comunidades rurais.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Logo cedo o ônibus que vai trasladar as imagens, estaciona nos fundos da
igreja na rua denominada S. Benedito. De repente começam a chegar grupos de senhoras,
algumas crianças, jovens e senhores. Desse grupo de pessoas algumas se dirigem até a igreja
para buscar os andores dos santos. Na frente entra uma cruz média de madeira e a bandeira do
santo festeiro. Em seguida entra N.S.R. que é amarrada nos dois primeiros bancos, à esquerda
do ônibus, depois vem o andor de S.B., que é também amarrado nos primeiros bancos à
direita do ônibus. Tudo pronto, todos alegres, falando alto, envoltos em algumas brincadeiras,
entram no ônibus. Os festeiros levam lanches, algo para comer e beber nas paradas da
peregrinação.
O ônibus vai aos poucos se transformando numa pequena capela, pois durante
toda a viagem são feitas várias orações, entoam inúmeros cânticos exaltando os dois santos
presentes. Nessa altura da viagem, o calor do sol a pino é intenso, e a poeira da estrada é
grande, porém nada disso tira o ânimo e a alegria dos peregrinos.
É interessante ressaltar que a paróquia possui 27 comunidades sendo 8 na zona
rural. Sendo assim as imagens chegam a visitar três comunidades por dia. Geralmente uma
pela manhã, uma pela tarde e uma à noite. O padre costuma presidir duas missas, uma seguida
da outra.
Fotos 61 e 62 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Quando as imagens chegam à comunidade visitada, o povo vem ao seu
encontro e logo se ouvem os fogos que rasgam o céu anunciando a chegada dos visitantes.
Assim, com cantos e muitos vivas, as imagens o entronizadas na pequena capela e postas à
frente ou ao lado do altar e, ao lado delas, ainda vem o santo padroeiro da comunidade
anfitriã. Os responsáveis pela comunidade fazem a acolhida, agradecem a visita, apresentam
pedidos, orações e entoam cantos festivos.
Fotos 63 e 64 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Os responsáveis pela peregrinação com folhetos próprios dão início a algumas
horas de intensa oração que é permeada por testemunhos de devotos que receberam algum
tipo de graça/milagre de S.B. No final os festeiros de S.B. e N.S.R. são apresentados à
comunidade. Nesse momento os festeiros reforçam o convite para a grande Festa que se
aproxima.
Foto 65 – Peregrinação dos festeiros nas comunidades rurais.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Quando as orações cessam na capela, os devotos se preparam para o almoço
oferecido pela comunidade visitada. Os anfitriões fazem questão de oferecer a todos algo para
comer e beber. O almoço é festivo, tudo de graça, parece que todos se conhecem, pois a
prosa é boa em todo canto do salão onde é servido o alimento. Ali surgem muitas histórias.
Logo após o almoço, é feito um pequeno descanso. Todos se encostam para
descansar, uns debaixo de árvores, nos bancos do salão... Alguns chegam até a tirar um bom
cochilo, após muito prosear.
Geralmente a capela na zona rural fica distante das casas da redondeza,
algumas à beira da estrada envoltas por algumas árvores ou em pleno cerrado. A distância da
comunidade em relação à sede da paróquia é de cerca de 20km, a estrada, em grande parte, é
de chão e, mesmo assim, essas comunidades recebem cerca de duas visitas do padre por mês.
No horário marcado todos se preparam para continuar a peregrinação. Os
santos são conduzidos ao ônibus, e a comunidade anfitriã irá entregar o santo à próxima
comunidade.
Foto 66 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Quando o ônibus aponta na comunidade, bem depressa os fogos são acionados,
e as bandeirinhas de cores azuis e brancas são acenadas e distribuídas aos peregrinos.
Fotos 67, 68 e 69 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Fonte: Arquivo da pesquisadora, 2006.
Cada comunidade tem a liberdade de preparar do seu jeito e costume a acolhida
aos santos. Percebi que a tradição vai sendo passada de pais para filhos, pois, ao lado de um
adulto, sempre a presença de uma criança ou de um jovem. Eles começam a imitar seus
pais e avós, fazendo os mesmos gestos devocionais.
Foto 70 – Peregrinação dos fiéis nas comunidades rurais.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Mais uma vez os santos entram na capela acompanhados de um cortejo que aos
poucos vai se aglomerando em torno das imagens, pois todos querem tocar no santo. Após a
missa, ninguém sai sem saborear o tradicional lanche oferecido pela comunidade, tudo muito
simples, organizado e com muita fartura. Fome pela estrada, ninguém passa. Pelo contrário, a
comilança se estende, e em cada parada uma pequena festa é oferecida.
Foto 71 – Momento de descontração e do lanche.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A noite começa a cair. A tarde está findando. É hora de recolher o santo e
dirigir-se à última comunidade de mais um dia de intensa peregrinação.
Já é noite, de todos os lados da estrada só mato e muita poeira. O ônibus segue,
não se ouvem lamentos de canseiras. Vejo senhoras e senhores de idade e de meia-idade há
dias nessa peregrinação, deixando em “suspenso” o cotidiano familiar, o ganha-pão, para
nesses dias somente se dedicarem ao santo. Na sua maioria muitos assumem isso como uma
obrigação, ano após ano, sem falhar um ano sequer.
Quando o santo chega na última comunidade é noite. É interessante dizer
que os peregrinos não fazem cara de cansados, repetem tudo de novo como se fosse pela
primeira vez .
Fotos 72, 73, 74 e 75 – Visita na última comunidade, já à noite.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Todos da comunidade visitada vêm ao encontro do santo. Ouvem-se cantos
novos ou não, conhecidos, pacientemente ensaiados, até que tudo esteja arrumado para a
missa. Muitos preferem participar da missa em pé, mesmo sendo pessoas de mais idade. O
semblante é de festa, cara lavada, barba feita, cabelo penteado e roupa bem-engomada. Para
aquela comunidade é dia de festa. devotos que caminham vários quilômetros até chegar à
capela. Após a missa, algumas comunidades realizam um tipo de leilão ou bingo em prol da
comunidade, aproveitando o grupo ali reunido.
É chegada a hora de retornar à sede da paróquia. Dentro do ônibus se ouvem
os peregrinos combinando como será o dia seguinte. Então aproveito para perguntar para um e
outro devoto: - Amanhã você estará na peregrinação? Sem titubear me respondem,
unanimemente, “se Deus quiser e S. Benedito permitir, sim!”
Não ouvi ninguém dizer que tinha algum impedimento ou motivo maior para
não participar da peregrinação. Pelo contrário, percebi que todos se sentiam vitoriosos e
confortáveis em dizer que puderam participar de todos os dias da peregrinação. Soava como
um compromisso/pacto entre o santo e o devoto, como uma corrente que não podia ser
rompida.
Peregrinação de S. Benedito e Nossa Senhora do Rosário nas comunidades da zona
urbana
Fotos 76 e 77 – Devotos em peregrinação na zona urbana.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Na peregrinação realizada nas 19 comunidades da zona urbana, o seu ritual não
se diferencia daquele realizado na zona rural, mas se repete, com exceção da distribuição de
alimentos nessa última. Na peregrinação urbana, pelo fato de todos estarem próximos de suas
casas, a comunidade anfitriã não precisa preparar nenhum alimento. A visita acontece nesse
caso por volta das 19 horas.
Fotos 78 e 79 – Peregrinação das imagens de uma comunidade urbana a outra.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O ônibus chega um pouco mais cedo na sede da Igreja N.S.R. e S. B. para pegar
os peregrinos e levá-los onde o santo está em visita. Dali, entre uma comunidade e outra, a
procissão segue a levando os santos e, com ela, os peregrinos com suas bandeiras no ritmo
de cantos e orações. Pela rua a procissão vai pedindo passagem entre um carro e outro, não há
tumulto, devagar ela vai avançando. Por onde passa, chama a atenção de todos. Pude, às vezes
ouvir, ao fundo, vozes perguntando: - “É S.B. e N.S.R. que estão levando?” Alguns abrem
suas janelas ou as portas para ver a procissão, outros olham e acham estranho carregarem o
santo de barro. Porém a procissão segue até o seu destino, onde mais uma vez é acolhida com
fogos, palmas, vivas, cantos e orações.
Foto 80 – Encontro dos devotos com o santo na peregrinação.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Dessa forma o santo, através de seus fiéis, segue peregrinando até alcançar
cada comunidade, convocando todas para os quatro dias da Festa Maior.
A bandeira que visita e pede esmolas
Foto 81 – Bandeira de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
[...] a imagem de São Benedito percorre as
comunidades no mês de maio, a bandeira visita as
casas no mês de junho com banda de música, e
grandes festejos ocorrem no tempo forte da festa:
tríduo preparatório e dia solene na ‘primeira
domingueira’ de julho (SILVA, 2006, p. 3).
Interessante compreender na vivência da peregrinação de bandeiras de santos,
neste estudo, a bandeira de S. Benedito, pois para mim é a extensão do significado de toda e
qualquer bandeira.
Trata-se de um símbolo, é um sinal ou um signo que carrega um sentido
construído socialmente, um artefato, cuja significação pode ser inteiramente compreendida
pela vivência das pessoas e pelo grupo para os quais esta bandeira está carregada de carga
emocional. Quem a vê, apenas entende parcialmente o que ela de fato significa. Normalmente
o seu sentido transcende o significado evidente e apreensível. Por onde passa a bandeira de S.
Benedito, em Cuiabá, o povo entende o que ela quer representar, ela anuncia algo, a relação
de um sagrado que penetra a vida e sustenta e nutre o coração. Geralmente, nas Festas, ela é
colocada de forma visível aos olhos, esvoaçando ao ar de uma forma livre e imponente.
Todas as bandeiras contêm um anúncio. No descobrimento do Brasil,
provavelmente, estava ela como o marco que anunciava, mais uma vez, os conquistadores
ou invasores aos dominados e colonizados. Da primeira feita, os indígenas foram expulsos da
terra, na segunda, eram novamente expulsos pelas “bandeiras” que os conquistadores
carregavam, porque agora havia ouro e diamantes sob seus pés. Já se dizia, em Mato Grosso,
acerca dos bandeirantes que vinham rasgando a mata virgem, tomando posse das imemoriais
terras indígenas.
As bandeiras peregrinam e fervilham nos caminhos dos homens. Quando o
homem pisou na lua, estava uma delas. Também nos jogos, cerimônias e nos céus
brasileiros ou estrangeiros, lá elas estão. Trazem uma estampa que recorda, quem delas se
aproximar, quem elas vêm ou vieram representar. O coração desta significação maior do
símbolo pode ser uma grande incógnita àqueles que não têm fé.
A bandeira de S. Benedito, no ano de 2005
47
, algumas semanas antes da Festa,
percorria as ruas, comércios, lojas, instituições governamentais e casas de família.
47
Roteiro da visita da Bandeira de S. Benedito, 2006 . Anexo 2.
Foto 82 – Visita dos devotos com a bandeira.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
A sua saída é sempre anunciada, preparada
48
. Ela nunca chega silenciosa, pelo
contrário, por onde ela passa, o clima é de festa, ao som de músicas religiosas ou de
bandinhas de épocas e fogos. Assim foi a saída da bandeira. Saiu do Palácio do Governador,
do centro do poder político. Lembrava-me a aliança do modelo de cristandade, aliança entre
Estado e Igreja, dois poderes que em Mato Grosso, de certa forma, ainda se afinam. Trata-se
de um mútuo reconhecimento da legítima autoridade de um pelo outro, com vantagens para
ambos os lados.
A foto de Marcos Bergamasco/Secom-MT mostra o governador Blairo Maggi
com festeiros da Festa de S. Benedito de 2006, promessários, devotos e a presença do pároco
com a bandeira e as insígnias em visita ao Palácio Paiaguás.
Foto 83 – Visita da bandeira ao Palácio Paiaguás.
Fonte: Marcos Bergamasco/Secom-MT,2006.
Segundo seu Nonô, quando a Festa estava nas mãos da irmandade, a
peregrinação da bandeira de S. Benedito:
48
No Anexo 4 pode ser encontrada a programação das Bandas que tocaram em cada dia de peregrinação da
bandeira e os locais da sua visitação.
Era uma atividade da paróquia, a bandeira não tinha nada a ver com a
irmandade [...]. Talvez no início devia ter uma relação. Mas desde que eu
estou aqui, 1957, [dizia ele], dessa data, teve administração própria de
paróquia, a paróquia que distribuía o roteiro. Formava grupo para sair com a
bandeira. Sempre teve uma bandinha, sempre teve que pagar. Este ano
[2006], o Joaquim Curvo
(rei) conseguiu diferentes bandas com a Prefeitura,
sem que precisasse pagar (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 55).
No dia que se iniciara a saída da bandeira da Festa, no Palácio Paiaguás, seu
Nonô esclarece, havia participado da reza do Ofício das Horas
49
das comunidades, na qual
estava inclusive presente o governador. Ocorreu que, quando houve a abertura da saída da
bandeira de S. Benedito para as comunidades, ela percorreu o Centro Político Administrativo
(CPA) deixando espaço para alguns coquetéis. No Tribunal de Justiça, como em outros
lugares, os devotos que trabalham se empenham em receber S. Benedito e sua bandeira.
Assim acontece em outras repartições, secretarias e autarquias, como relata seu Nonô:
[...] houve uma festinha e sempre tinha uma celebração (Ofício Divino).
Quando ia num espaço do Governo ou prefeitura. E no dia que foi na
prefeitura, nesse dia eu não pude ir, o prefeito perguntou por que eu não
tinha ido, porque parece que rezaram o terço... A lá, no Palácio,
escolhemos um evangelho que dava para entender sobre o compromisso do
governo com o povo, dele ser um homem público. Depois, Padre Roque que
estava junto, falou. Depois dali [a bandeira] tomou as ruas da cidade
(CADERNO DE CAMPO 2, 2006, p. 55).
A bandeira de S. Benedito, antigamente, não tinha trânsito livre. Isto foi o que
me contou seu Nonô. Isso significa que, se os devotos quisessem sair do espaço limitado da
Igreja do Rosário e S. Benedito, a comissão de Festa tinha que pedir autorização ao bispo
local, realidade da época que mostra a demarcação de espaço e o seu controle oficial. A
autorização evitava o conflito e assegurava a ordem, como relata seu Nonô (CADERNO DE
CAMPO 2, 2005, p. 56):
Antes, a esmola de S. Benedito era feita só dentro do perímetro da Paróquia,
no território da Paróquia. E quando tínhamos que ultrapassar, pedíamos
49
Ofício Divino, ou Liturgia das Horas, é a oração pública que os clérigos fazem em nome da Igreja. Leva
este nome por ser considerado o cumprimento de um dever (em latim, officium) para com Deus. É
chamado também de Liturgia das Horas por repartir-se em diferentes horas do dia. Wikipédia, a
enciclopédia livre. 30/3/2007.
autorização ao bispo Dom Orlando (bispo da época), e ele dava. Agora nem
mais pede, S. Benedito vai abrindo passagem...
A doação em dinheiro, sobretudo naquela época relatada por seu Nonô, era
geralmente amarrada nas fitinhas coloridas que ornavam o mastro. No dia de recolher a
esmola, havia pessoas que acompanhavam a bandeira com pote d’água na cabeça
50
e
amarravam nela cachos de frutas que produziam em casa. Enquanto S. Benedito não passasse,
eles não podiam pegar nada que fosse produzido por aquela árvore ou de animais nascidos.
depois, quando S. Benedito passava, amarravam na bandeira o mais bonito cacho de laranja
ou banana e ofereciam agradecidos para S. Benedito. Uma vez que o santo havia levado o
dele, os devotos já podiam tirar para consumir
51
.
Hoje é usada uma urna, porque o pessoal levava o dinheiro amarrado nas
fitinhas do mastro.
Na verdade o mais comum, na cidade, eram as pessoas, durante a visita de S.
Benedito, oferecerem esmola em dinheiro, que normalmente era amarrado nas fitinhas
coloridas que decoravam o mastro. O fato de haver pessoas que se apropriavam do dinheiro,
deve ter ocasionado a transformação deste costume no depósito do valor numa urna.
Seu Nonô (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 56) explicou que, na verdade,
todo o trajeto da coleta de esmolas da bandeira é uma grande disputa entre os arrecadadores.
É uma disputa não agressiva, também hoje, você viu, você estava lá. [de fato
eu presenciei]. Cada dia uma equipe escalada para a peregrinação. A
disputa é grande para cada equipe ter um rendimento financeiro maior que a
outra. Tinha festeiro que quando não tinha um resultado financeiro bom,
tirava do próprio bolso.
Após um popular chá com bolo Tchá co bolo cuiabano , orações e alguma
música, a bandeira e suas insígnias seguem percorrendo um trajeto preestabelecido.
Antigamente ela passava de casa em casa e cada vez arrastava consigo mais devotos. Hoje
inúmeras pessoas seguem-na, algumas até chegam a pedir dispensa no trabalho para que
nesses dias fiquem totalmente à disposição do santo. Conversei com um devoto que obteve
dispensa para sua participação nesta Festa de 2006. Ele disse-me que não se importava se
fosse despedido, mas o fato é que, no local de trabalho, as chefias estão cientes dessa
devoção, e os dias da visitação da bandeira já são negociados sem conflitos.
50
É provável que se tratasse de uma forma de obter a bênção da água.
51
Trata-se da antiga instituição popular de oferendas das primícias, dos primeiros frutos da terra e do trabalho.
Importante destacar que se compreende a peregrinação da bandeira com
música tocada por fanfarra popular ou com os ritmos de músicas cuiabanas, músicas de época,
cantos religiosos, afinados nos instrumentos de uma pequena banda de músicos, a qual é
contratada ou patrocinada para essa finalidade.
Foto 84 – Bandinha acompanhando o tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Os festeiros conseguiram intermediação da Prefeitura Municipal para que
várias bandas diferentes realizassem o toque de peregrinação da Festa (2006) de forma
gratuita. Havia, segundo eles, um gasto muito grande, que queriam eliminar, para pagamento
dos músicos. Entre estas havia a Banda do Bolinha, a tradicional; Banda da Polícia Militar;
Banda do Exército, Banda da Prefeitura Municipal; e Banda do Corpo de Bombeiro Militar.
Maior ainda era o gasto com as Bandas dos Shows e do Baile, as quais animavam a Praça.
A cada ano uma comissão trabalhava para fazer, segundo eles, “uma Festa
melhor que a outra”.
Esse ano de 2006, acho que os festeiros foram felizes, eles procuravam estar
falando a mesma língua. Houve uma certa reclamação, do Joaquim, que ele
era um pouco ditador. Quando ele queria fazer uma coisa, mesmo que os
festeiros ficassem meio duvidosos, ele assumia sozinho. É de personalidade
forte [relatou a mudança do local da celebração, que antes acontecia do lado
esquerdo da igreja em uma rua que até foi desativada para carros e montou
um projeto que até o pároco achou que não ia dar certo. O projeto trouxe a
missa para um palco montado de estrutura metálica (bem permanente para
festa) do lado direito da igreja, onde o espaço é maior e que, segundo seu
Nonô, foi uma idéia boa, pois até o pároco foi parabenizar o rei pela
mudança] (CADERNO DE CAMPO 2, 2006, p. 54).
Primeira domingueira do mês de julho
A história da domingueira será relatada através da memória do cuiabano seu
Nonô que, em uma tarde nos bancos da Igreja do Rosário e S. Benedito, assim se pronunciou:
Ainda se fala 1ª. domingueira do mês de julho, 1º. domingo de julho, isso
nunca mudou, tradicionalmente a festa de S. Benedito sempre foi nessa data.
Mas não coincide com a data de morte de S. Benedito, 4 de abril, não
coincide com a data de nascimento, 5 de outubro, e nem com a data de
canonização. [Ele conta uma de suas conversas com o escritor Carlos Mestre
que esteve aqui em Cuiabá fazendo um trabalho]: Trouxemos ele para
conhecer a igreja e, conversando, ele disse que a festa de S. Benedito no RJ é
em janeiro. Mas por que janeiro? É que no final de ano é festa de Natal, 1º.
do ano. Os senhorinhos, donos dos escravos, vinham para a cidade para
festejar o final de ano e faziam suas festas, o que sobrava e não era
consumido, eles deixavam para os negros fazer a festa do protetor S.
Benedito. No RJ é na primeira domingueira de janeiro (CADERNO DE
CAMPO 3, 2006, p. 61).
Aqui em Cuiabá a festa do Divino sempre foi da alta sociedade. Como ela era a
maior, a mais festejada pela sociedade cuiabana, pude entender que deve ser bem por isso que
a data da Festa de S. Benedito vem depois do Divino, onde os escravos também faziam seus
festejos a este santo com a sobra da festança do Divino.
Essa suposta versão é levantada pelo prof. Passos (2005). O que percebo é que
a Festa de S. Benedito acaba sendo hoje maior que a do Divino. “O Divino é o padroeiro da
cidade e S. Benedito, o protetor; a proteção da cidade vem de S. Benedito” (CADERNO DE
CAMPO 1, 2005)
Brandão (1978) parece ajudar a interpretar o que ocorreu em parte com a Festa
de S. Benedito em Cuiabá, no que se refere à festa do Divino. O autor investigou a
concentração das festas dos santos, em um dado período do ano, em Pirinópolis, Goiás.
Segundo o seu estudo, a comemoração do Espírito Santo que envolve os festejos do Divino
Império –, naquela realidade, é conduzida por um grupo da elite local, enquanto a de S.
Benedito e de Nossa Senhora do Rosário Reinado –, foi conduzida no passado pelos negros
e, atualmente, pelos brancos e pobres da “roça” e da periferia da cidade. O devoto se
identifica com o santo negro e pobre.
Em Cuiabá as Festas do Divino Espírito Santo, S. Benedito, Nossa Senhora do
Carmo e Nossa Senhora do Rosário acontecem nessa seqüência, começando a se concentrar a
partir de final de junho até outubro.
A pesquisa de Brandão (1978) remete a uma possível compreensão do que
ocorreu com a Festa de S. Benedito em Cuiabá, no que tange aos grupos de pessoas que a
foram assumindo e reassumindo ao longo da sua história.
Os estudos me levaram a entender, como já foi mencionado, que os festejos do
santo em Cuiabá nasceram com o povo negro, escravo, ex-escravo e pobre, depois, devido à
popularidade do santo e aos inúmeros milagres atribuídos a ele, ocorreu algo curioso, pois
pessoas brancas da cuiabania, na sua maioria mais favorecidas socialmente, passaram a
cultuar o santo negro. Assim, com o crescimento da população e da religiosidade popular, S.
Benedito foi se tornando uma grande expressão de em toda a sociedade cuiabana, motivo
pelo qual as camadas populares começam a sentir que a Festa foi apropriada por esse grupo
que quer como que branqueá-la e profissionalizá-la. Por isso, segundo os devotos mais
antigos e fixos, a cada ano uma retomada dessa tradição pelas camadas populares e pelos
grupos de expressão dos movimentos sociais que nasceram nessa Igreja ou foram promovidos
por ela.
Sobre a origem da devoção tão forte em Cuiabá, seu Nonô (CADERNO DE
CAMPO 2, 2005, p. 50) relata que seu pai, de mais de 90 anos, conta que bateu uma peste,
doença dos bexiguentos, logo após a 2ª. Guerra Mundial, quando foi construído o cemitério
dos bexiguentos na Rua São Sebastião. Nessa época morreu tanta gente que todos tinham que
ser enterrados nesse cemitério. O povo começou a rezar para S. Benedito e, a partir daí, a
devoção começou a aumentar. Ele continua o relato, dizendo que
[...] essa igreja não mais comportava a grande quantidade de gente que vinha
pedir graças para S. Benedito. Papai conta que só depois que o povo aderiu a
essa devoção que foi diminuindo as mortes. Pois não tinha vacina, não tinha
remédio. Morria diariamente 2, 3, 4 pessoas. Cuiabá, cidade pequena, morrer
duas pessoas com a mesma doença era alarmante. Papai conta que S.
Benedito que salvou a cidade (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 50).
José Carlos Pereira no seu livro Sincretismo religioso e ritos sacrificais (2004,
p. 26) assegura que o calendário das festividades católicas ganham destaques com São
Sebastião, S. Benedito, São Lázaro e São Roque, santos que correspondem ao orixá Omulu
(ou abaluaiê) do candomblé, divindades das enfermidades, das pestes como a varíola e outras
epidemias. Possivelmente foi por isso que os cuiabanos invocaram S. Benedito, na esperança
de que o santo fizesse a cura das enfermidades que perseguiram o povo, na época mencionada
pelo pai de seu Nonô.
Na verdade, também segundo Virgílio Correa Filho (1969), houve a estratégia
de tirar o pus da bexiga e passar de braço em braço na busca da imunidade contra a doença.
Sobre a doença da bexiga, encontrei-a nos relatos da história de Cuiabá,
todavia a data não coincide com o relato que foi encontrado no livro Maruá, de Müller e
Rodrigues (1994, p. 112):
Quanto à varíola, transcrevemos a ‘Lenda de Manoel Cova’, que Firmo
Rodrigues publicou no jornal A Cruz. ‘A varíola que assolou e dizimou
quase a totalidade da população de Cuiabá, após a guerra do Paraguai (1865
a 1870), provocou vários incidentes’; dramáticos uns, caricatos outros,
lendários e inverossímeis, por vezes. O chá de erva-de-cão, feito de fezes de
cachorro, segundo acreditavam na época, era tido como tiro-e-queda para
curar bexiga, até varíola negra, se tornara inóquo para debelar a peste.
[Continua o autor] Morria gente como farinha. E o cemitério do Cai-Cai,
onde enterravam os bexigueiros, não chegava a comportar tantos cadáveres,
nem era possível abrir covas suficientes, num só dia, para todos os mortos.
Resolveu-se, então, incinerar aqueles, para os quais não houvesse jazigo
suficiente.
Na cozinha do santo
Foto 85 – Devotos trabalhando na cozinha de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
É interessante ressaltar o trabalho na cozinha de S. Benedito, quando “[...] em
outubro de 1982 construiu-se a cozinha da paróquia nos fundos da Casa Paroquial, encostada
no muro, ao lado da lavanderia”.Esta informação pode ser encontrada no Livro Tombo da
Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito (1982), que ainda está sendo transcrito
pelo Padre Moura.
É um espaço disputadíssimo. São homens e mulheres que há décadas estão ali e
não abrem mão de sua função na cozinha. Os mais idosos fazem o revezamento nos trabalhos
da cozinha, mas muitos, mesmo com dificuldades, estão ali firmes.
Foto 86 – Devotos trabalhando na cozinha de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Os mais jovens e outros que quiserem trabalhar na cozinha têm que entrar
numa lista de espera, pois inúmeros devotos fazem do serviço da cozinha do santo uma
tradição de família. Assim, pela cozinha, passam gerações de uma mesma família. Mesmo
assim o espaço é restrito e disputado.
Muitos se comprometem com S. Benedito de diversas formas, alguns fazem
promessas ligadas à cozinha do santo, por isso, quando alcançam a graça, vão pagá-la
trabalhando na cozinha do santo, executando, com atenção nos dias da Festa, inúmeros
trabalhos.
Entrevistando seu Geraldo, um dos responsáveis pela cozinha, ele me relatou
que:
Na cozinha sempre aparecem pessoas para integrar ou reintegrar, alguns
estavam aqui, foram morar fora e voltaram e querem voltar a trabalhar
novamente. Eu sei que é todo mundo voluntário, ninguém recebe nada.
A pessoa que trabalha esse ano, faz uma promessa e diz: - ‘Quero cumprir,
quero trabalhar um dia na cozinha de S. Benedito pra lavar vasilha, cortar
verduras...’ Eu sei que essa pessoa vai nesse dia e todo ano ela está lá, não
tem jeito, vai todo ano, é uma devoção (CADERNO DE CAMPO 1, 2005,
p. 73 ).
Ao mesmo tempo em que a cozinha representa um serviço aos outros, ela se
configura como forma de imitação do santo, vez que ele foi um exímio cozinheiro. Assim o
ato de cozinhar é sempre considerado uma ação de humildade. Muitos trabalham na cozinha
com sentimento de estar rememorando a vida de doação de S. Benedito.
A cozinha, por ser um espaço importante da Festa, passou por várias reformas.
Cada grupo de festeiros, segundo o Livro Tombo da Paróquia, acaba fazendo alguma
melhoria na cozinha. Segundo Chica
52
(2006), como gosta de ser chamada, a cozinha
atualmente é um espaço mais amplo e arejado.
Seu Geraldo Vitorino (72 anos) mais de 10 anos atua na cozinha da Festa,
ajuda na liturgia e, segundo ele, faz tudo que precisar. Informou-me ele, em entrevista, que a
cozinha de S. Benedito funciona bem, pois tem uma coordenação geral, com várias
subcoordenações, que encaminham todos os trabalhos, a fim de que tudo possa dar certo, os
quitutes saírem gostosos e todos saírem satisfeitos:
A cozinha tem uma coordenação, tem reuniões, eu sou um dos
coordenadores, tem uma coordenação geral que é a dona Terezinha e temos
mais 4 coordenadores, eu, Natalina, Marisa e dona Francisca. Agora as
cozinheiras, têm várias (CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 80).
O espaço da cozinha passou por várias modificações. Até algumas
décadas, em meio à realização da Festa, as pessoas cozinhavam felizes da vida, debaixo de
umas mangueiras, sobre pedras cangas. “Em maio [de 1982, segundo o Livro Tombo], fez-se
a construção de um fogão de lenha para as comidas da Festa de São Benedito”.
O modelo que temos atualmente da cozinha da Festa foi construído aos poucos
com a ajuda dos devotos, pois, quando houve o rompimento com a irmandade, trouxeram a
Festa para a Praça do Rosário e S. Benedito e, portanto, foi necessário a organização de
espaços, quando a cozinha recebeu especial atenção.
É grande a organização da cozinha, e trabalhar nela é uma honra, ela sempre
está cheirosa, limpa e o tempo todo em atividade. Na parede mais alta está o altarzinho de S.
Benedito, que nunca está vazio, pois nele sempre oferendas, alimentos, café, bolinhos,
velas
53
.
52
Dona Chica é a esposa de Seu Nonô. A mãe de Chica ainda hoje trabalha na cozinha de S. Benedito e todas as
terças-feiras de madrugada participa da missa dedicada ao santo. O filho de Seu Nonô toca e canta no coral da
Igreja. Uma devoção bem familiar.
53
Na pesquisa de Bandeira (1988), Território negro em espaço branco, realizada em Vila Bela, primeira capital
de Mato Grosso, a pesquisadora mencionou o culto doméstico de santos ligados à tradição popular portuguesa,
ressaltou que alguns traços desse culto ao santo de casa, como a oferta de cigarro e comida, estão fortemente
ligados a práticas religiosas de origem africana. No nosso caso aqui a oferta da comida é feita na própria cozinha
do santo, como se o santo fizesse parte da família. Quem for à cozinha de S. Benedito em Cuiabá certamente vai
encontrar aos pés do santo algum tipo de comida.
Fotos 87 e 88 – Devotos trabalhando na cozinha de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O interessante é que as cozinheiras, na sua maioria negras ou descendentes,
identificam-se muito com o santo cozinheiro. Na cozinha encontrei homens com a mão na
massa, os quais estão sempre ali, principalmente na hora de socar a carne seca frita com
farinha de mandioca no pilão, para fazer uma das comidas cuiabanas mais gostosas, a paçoca
de pilão.
Na ocasião da Festa de S. Benedito, algumas pessoas costumam comprar a
paçoca de carne seca em quantidade maior e enviá-la para seus parentes que moram no Rio de
Janeiro, São Paulo e em outros lugares do país. A paçoca é muito saborosa, porque é feita de
forma tradicional, socada no pilão.
Interessante é que, na Festa de 2005, resolveram terceirizar a paçoca pela
grande quantidade produzida e pelo fato de o trabalho ser manual, pesado e voluntário.
O resultado não foi o esperado, como conta o devoto e cozinheiro dedicado de
S. Benedito, seu Geraldo (CADERNO DE CAMPO 3, p. 2005). Ele me disse em entrevista
que até tentou interferir nessa decisão, porém não foi ouvido:
Vendo a paçoca que estava chegando do serviço terceirizado, eu achei que
não tinha qualidade da paçoca de S. Benedito. Tentei até barrar, mas não
resolveu, falei com os responsáveis da Festa da época e propus fazer um
pouquinho de paçoca para fazer a comparação. Fiz a paçoca, mas o
responsável não quis nem comparar. Conclusão, nos dias da Festa que serve
a paçoca, eles viram o que aconteceu com a paçoca terceirizada, sobrou
muito no frízer. A paçoca de S. Benedito não sobrava um caroço [...].
“Este ano a paçoca foi feita aqui, no ano passado foi terceirizada, mas as
pessoas estranharam e não gostaram dessa paçoca”, foi o que esclareceu também dona Chica (
2006).
Fotos 89 e 90 – Devotos trabalhando na produção da paçoca (dentre eles dona Juja, dona Chica e seu Deodato).
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Fotos 91 e 92 – Devotos trabalhando na produção da paçoca.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Alguns meses antes da Festa, a cozinha funciona em vista das pequenas
promoções que acontecem tradicionalmente todas as terças-feiras. Logo após a missa da noite
de S. Benedito, é servido um jantar para a comunidade com o objetivo de arrecadação de
fundos. As cozinheiras preparam pratos tradicionais da cozinha cuiabana e servem em
panelões. Assim muitas pessoas compram a comida de sabor incomparável a preços bem
populares.
Fotos 93, 94, 95 e 96 – Jantar servido logo após a missa.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Nas terças-feiras o jantarzinho é feito em prol da Festa. Isso logo após a festa
de Nossa Senhora do Rosário e do Carmo que acontece no mesmo espaço da Festa de S.
Benedito, ou seja, geralmente na última terça-feira de outubro. Após a festa de Nossa Senhora
do Rosário, os festeiros de S. Benedito começam a servir o tradicional jantar após a missa.
Alguns desses jantares são animados com música ao vivo e, em todos eles, a imagem do santo
sempre está bem próximo dos alimentos.
Nossa Senhora do Carmo é a padroeira da comunidade da Igreja do Rosário,
igreja principal, sede da paróquia, cuja comunidade tem santo padroeiro próprio, neste caso
Nossa Senhora do Carmo.
Vejo que nesse pedaço de chão - Igreja do Rosário e S. Benedito - a Festa está
presente praticamente o ano inteiro, revelando a alegria, a malícia, o canto, a dança feliz e
alvissareira do povo cuiabano.
Todos os que atuam na cozinha da Festa são voluntários, parece que o número
de pessoas é grande; o espaço é pequeno, se colocassem todo o pessoal que quer trabalhar não
caberia na Festa.
Nos outros anos, na avaliação de seu Nonô e outros devotos (CADERNO DE
CAMPO 2, 2005, p.90), fazer a comida na cozinha da Festa não dava lucro, pois era
distribuída muita comida de graça aos próprios voluntários, às vezes a amigos, às pessoas que
doam alimentos e julgam-se no direito de não pagar, bem como ao pessoal da polícia, às
pessoas que apresentam shows, cobram e ainda comem com suas famílias.
Nesse ano de 2006 foram convidadas famílias devotas que colocaram barracas
de comida para vender com custo zero para a comissão da Festa. Em cada dia da Festa era
anunciado o nome das várias famílias devotas de S. Benedito que estavam oferecendo um
prato X em suas barracas em prol do evento
54
.
54
É o que pude verificar no Livreto da Programação da Festa de S. Benedito de 2006. Anexo 5
A cozinha do santo funcionou normalmente, mas a comida feita nela foi em
menor quantidade. Além de ser vendida, foi distribuída também para os que estavam
trabalhando na Festa. As comidas tradicionais da Festa foram feitas na cozinha do santo,
como paçoca de pilão, farofa de banana, Maria Izabel etc. Segundo seu Nonô (CADERNO
DE CAMPO 2, 2005, p. 57):
Foi mais trabalho entre os devotos em geral. se fala em lucro da festa de
80 mil reais. Ano passado acho que deu ainda com a Lei Hermes de Abreu.
Mais ou menos 4 anos as comunidades são convidadas para colocarem a
barraca na festa, no final de cada noite as fichas são contadas e a
comunidade recebe um ticket e na somatória final do último dia da festa
recebem todo o valor integral. A barraca das comunidades é integral para a
comunidade. Não era assim mais ou menos há 4 anos atrás.
A paçoca de 2006 foi feita mais ou menos 700 quilos. Com relação aos anos
anteriores estava dentro da base. A comissão quis que o mais forte da festa
fosse a Paçoca de carne seca e a Maria Izabel, feita na da cozinha da festa.
No céu de junho e início de julho capturei o movimento da Festa de S. Benedito de 2006
O tríduo da Festa
A Festa se veste de cores, e cada dia é marcado por uma tonalidade. As cores
usadas atualmente nas missas de S. Benedito entraram na liturgia para o trabalho das equipes,
podendo mudar conforme a equipe quiser. cores que não são litúrgicas (amarelo, azul).
Assim, no tempo forte da Festa, usa-se, por exemplo, o vermelho (cor que celebra os mártires,
no domingo, pois às vezes a Festa de S. Benedito coincide com a de São Pedro e São Paulo,
então o tom litúrgico é vermelho. Segundo seu Nonô (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p.
56), a equipe de liturgia nesse dia não usa o vermelho, pois começaram a dizer que ali
estava o “pessoal do PT”. Então colocam o vermelho com branco, embora tenham usado as
7 cores, lembrando o ecumenismo: as 7 igrejas cristãs.
As cores dão um colorido maior na missa, e o povo cuiabano parece que
entende que elas fazem parte do seu ritua. Por isso, conforme a cor do dia, os devotos
assumem uma peça de roupa ou acessório com aquela cor.
Esse tríduo trazia os melhores oradores como Padre Pombo, Dom Luciano
Mendes, D. Helder Câmara, Padre Clóvis do Carmo, jesuíta da Bahia, e Frei Toninho,
coordenador da Pastoral do Negro nacional. Procurava-se o pregador mais famoso, com a
intenção de iniciar um momento forte de evangelização.
Primeiro dia do tríduo, o tom da Festa é marcado pela cor verde
Fotos 97, 98, 99, 100 e 101 – Chegada dos fiéis para a missa da madrugada.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Foto 102 – Missa de madrugada no 1º. dia do Tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O galo cantou. São 4h da manhã, o foguetório rasga a madrugada, ele vem
avisar que hoje é dia de S. Benedito, e cuiabanos, devotos todos, vamos juntos à Praça do
Rosário, é S. Benedito quem está convidando.
É assim o amanhecer dos quatro dias da Festa maior, madrugada animada, se
num dia tem muita gente, no outro tem ainda mais.
A Praça do Rosário e S. Benedito amanhece pintada de verde; o altar e toda a
ornamentação, bem como a equipe de liturgia, exibem a cor do dia, os devotos trajam uma
peça ou outra do vestuário com a cor verde. É verde de todos os tons!
A cor verde canta e celebra a esperança do primeiro dia do tríduo, trazendo
para a abertura da Festa um tema e três subtemas que tecerão os três dias do tríduo e o quarto
dia da Festa.
Foto 103 – Foto do cartaz da Campanha da Fraternidade 2006.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
São Benedito: Ajude-nos a curar as deficiências Tema da Festa de 2006 -
Tema da campanha da Fraternidade 2006. Foi essa a tônica maior da Festa de 2006, um
pedido ao santo e à sociedade cuiabana e mato-grossense para a sensibilização social com os
portadores de necessidades especiais e com os mais pobres e doentes, chamando atenção na
liturgia para as necessidades físicas, psicológicas, espirituais e sociais, que soavam como uma
batida no tambor social da consciência do cidadão e dos governantes.
Tema do dia: Levanta-te e venha, com S. Benedito, para o nosso meio, como tu
és.
A celebração teve início com o seguinte comentário:
Segundo dados estatísticos, o Brasil ‘possui uma das maiores populações de
portadores de deficiências do mundo e uma das menores taxas de
participação no mercado de trabalho’. Isto acontece, naturalmente, pela falta
de políticas públicas que ofereçam e dêem condições adequadas aos
portadores de deficiências para o desenvolvimento de suas capacidades
profissionais. Que a Campanha da Fraternidade de 2006, com a intercessão
do glorioso São Benedito, desperte em nós o espírito de fraternidade e
solidariedade para com os irmãos portadores de qualquer deficiência física
ou moral (LIVRETO..., 2006, p. 1).
O altar do santo, de repente, ficou colorido e gritante diante dos inúmeros
cartazes e frases que colocavam em evidência a situação social, econômica, política e cultural
que vive o nosso país. Uma batida de indignação, presente na música, nas leituras bíblicas e
nos símbolos que perfilaram pelo altar
Fotos 104 e 105 – Momentos de manifestação social na missa do tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O celebrante do dia foi o Pe. Roque, sacerdote jesuíta, pároco da Igreja do
Rosário e S. Benedito. Dele advinha uma fala acolhedora aos devotos, alguém que parecia
estar mais afinado com a devoção tradicional do povo, a qual não consegui constatar no ano
passado, pois havia um descaso, um descompasso... Hoje parece que a sua fala, em entrevista
a mim concedida por ocasião da Festa de 2005, está mais incorporada, encarnada...
O espírito comunitário é muito fraco devido ao padroado. Precisamos
aproveitar do espaço da festa para trabalhar a formação. Beijar o santo sem
compromisso é complicado. Precisamos trabalhar o tema da festa de forma
mais comprometida (CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 101).
Uma pessoa que não conhecia a tradição, foi sensibilizada por ela, como pude
testemunhar ao acompanhá-la no trajeto de um desses anos. Pude presenciar sua manifestação
como a pedir, por favor, que a deixassem falar, dar seu testemunho, pois S. Benedito a havia
cativado com o fervor de seus devotos. Foi o que eu ouvi no momento de testemunho aberto
na peregrinação da imagem de S. Benedito pelas comunidades rurais.
Naquele momento entendi o seu desabafo, bem como todos que ali estavam,
pois o povo celebra nesse chão que compreende a Paróquia do Rosário e para além dela,
carregando o santo dia e noite, seja no andor, no colo, no bolso (Beneditinho de metal), nos
nichos familiares, seja no peito dizendo: “sou devoto e esse santo tem nome: - É Benedito!” E
isso chama a atenção de quem se coloca no movimento da Festa e da devoção. Acredito que
foi isso que fez com que o pároco lá do Sul do Brasil, que pouco conhecia estas paragens com
sabor pantaneiro, não entendesse a devoção desse povo cá de Cuiabá.
No final de todas as celebrações da Festa é rezada a tradicional oração a S.
Benedito e o hino dedicado a ele. Os devotos rezam e cantam todos com muita empolgação.
Esse momento parece que é esperado por todos, pois ele anuncia o término do ponto alto do
encontro dos devotos com a presença do sagrado na Festa e abre o sentido de continuidade do
“festar” popular até a madrugada do dia seguinte.
A imagem do santo sai da praça e entra na igreja, onde poderá receber
visitações dos devotos durante todo o dia. Mas antes, logo após a chamada bênção final,
mediada pelo padre, a imagem de S. Benedito recebe uma multidão de fiéis. Todos querem
tocá-lo e levar consigo uma flor que ornamenta o seu andor.
A multidão de devotos se comprime e se auto-organiza para não acontecer de
alguém ser pisoteado.
Fotos 106, 107, 108 e 109 – Encontro dos devotos com o santo após o tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005 e 2006.
Fotos 110 e 111 – Rei e rainha da Festa colocam a coroa do santo na cabeça dos fiéis.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Ao lado da imagem de S. Benedito e Nossa Senhora do Rosário, o rei e a
rainha estão com as coroas nas mãos. Todos querem receber sobre a cabeça a coroa e não
deixam a praça ou a área da igreja até que se cumpra o ritual do encontro com o santo, para
mais tarde voltarem para o almoço e a noite festiva.
Fotos 112 e 113 - Reza cantada puxada por dona Ana.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005 e 2006.
Muitos devotos jovens e idosos voltam ou ficam na igreja para participar da
tradicional Reza cantada
55
. Neste ano aconteceu às 19h, durante os três dias do tríduo, como
nos relatou seu Geraldo (CADERNO DE CAMPO 1, 2005, p. 56):
A reza cantada é de tradição, no caso aqui tínhamos um único capelão
(Seu Adolfo Vilela) que faleceu e não deixou ninguém pra substituir ele,
digo assim substituindo à altura porque tem eu por exemplo ajudo, a dona
Ana Cruz que é uma senhora que tira a reza. Esse ano (2005) não saiu
bonito, não foi por nós, convidaram umas pessoas lá do morro de São
Jerônimo, e veio dois rapazes e um senhor, mas parece que eles ficaram
55
Ver o Anexo 6, folheto com os cantos e orações da tradicional reza.
muito inibidos não sei, não saiu legal. Acho que o grupo do nosso lado saiu
bem melhor, o grupo interno daqui, daqui. Em São Jerônimo tem uma equipe
boa, que esses rapazes fazem parte. Parece que eles são uns dez ou doze mas
não deu deles virem.
Em 2006 a reza cantada aconteceu dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário
e S. Benedito. No ano de 2005, ela ocorreu ainda na cozinha de S. Benedito. É uma cerimônia
religiosa com cantos, ladainhas em forma de invocações, súplicas e louvações, tanto em latim
como em português. Um ritual que dura entre uma hora, uma hora e meia de relógio. Ao final,
quando o padre está presente, este dá a bênção aos fiéis. Seu Adolfo Vilela era o único
chamado de capelão mais antigo dessa tradição que acabava também indo puxar a reza
cantada em outras comunidades e paróquias. O grupo de 2006 esteve sob a coordenação de
dona Ana Cruz, uma devota antiga de S. Benedito.
A reza cantada é uma das tradições antigas que acompanha a Festa de S.
Benedito.
A coleta de dinheiro no ofertório da missa
Foto 114 - Coleta das oferendas na missa do tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
No momento das chamadas oferendas que fazem parte do ritual da missa, os
devotos, na sua maioria, colaboram com a igreja doando uma quantidade em dinheiro que é
recolhida publicamente. Geralmente nas missas essa coleta vai para uma mesa ou aos pés do
altar junto com outras oferendas (frutos, sementes, cartazes, livros, mbolos diversos que
entram na procissão junto com o pão e o vinho).
Mas, na missa da Festa, esse dinheiro fica sob a guarda de uma pessoa
responsável. Para a coleta em espécie é organizada uma equipe de devotos mais antigos sob
uma coordenação, os quais circulam com uma sacola grande estampada com o nome de S.
Benedito.
Todos depositam as doações em espécie nas sacolas, que têm a boca amarrada
e serão colocadas dentro de uma sacola maior.
Seu João Grosso (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 88), um cuiabano
antigo e devoto de S. Benedito, em entrevista conta que a coleta também já foi e é motivo de
conflitos.
Só pra você ter uma idéia, uma vez pegaram uma sacola de dinheiro e
esconderam, eu saí e achei a sacola, estava escondida. Alguns me
perguntaram: Como você conseguiu pegar o dinheiro? Sabe dentro da igreja
tem gente pra fazer coisas boas e outras pra fazer coisas ruins. Mas tem mais
gente positiva do que negativa. É assim!
O dinheiro é levado para a secretaria da paróquia, onde ele é contado. Sempre
tem mais de duas pessoas para contar o dinheiro e confirmar o resultado. Ninguém faz nada
sozinho, tudo isso porque, em anos anteriores, arrecadava-se muito, mas no final aparecia um
resultado bem menor.
Segundo dia do tríduo, o tom da Festa é pintado de amarelo
Fotos 115, 116 e 117 – Segundo dia do tríduo. Os devotos se vestem de amarelo
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Tema do dia: Com São Benedito em nosso meio, estaremos em comunhão com
os irmãos.
A celebração teve início embalada pelo canto de entrada, Baião das
Comunidades, de Zé Vicente, um cantor cearense:
Vou convidar os índios que ainda existem, as tribos que ainda insistem no
direito de viver/e juntos vamos, reunidos na memória, celebrar uma vitória
que vai ter que acontecer, ê, ê...
Convido os negros, irmãos no sangue e na sina; seu gingado nos ensina a
dança da redenção/de braços dados, no terreiro da irmandade, celebrar uma
vitória que vai ter que acontecer, ê, ê...
56
A missa foi bonita, foi presidida por um padre recém-chegado a Cuiabá que
conseguiu transmitir uma mensagem num tom mais forte e oportuno. Imaginei, contudo, que
ele fosse aprofundar um pouco mais sobre as misérias públicas, onde os pobres, tantos
Beneditos e Beneditas dessa vida, estão jogados às traças. Para bom entendedor, o que ele
falou disse tudo. Pena que não consegui parabenizá-lo e pegar a “cola” da homilia, pois ele
desapareceu na multidão.
Como de costume, o que venho observando em inúmeras Festas é que, após a
missa, segue um grupo de pessoas (clero presente, autoridades locais e outros convidados)
para aquela sala vip tomar o chá com bolo de S. Benedito, o que de certa forma me faz
lembrar dos privilégios de um pequeno grupo, em nome do santo, comer bem sem pagar, o
que acontecia antes da Festa ser realizada na paróquia.
Ao contrário, o povo, que durante o ano todo contribuiu com a Festa, tem que
tirar do bolso, se quiser, os suados reais para salgar ou adoçar a boca com toda a fé...
Essa situação aparece com um certo lamento na fala de dona Helena
(CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 36), quando ela se refere ao tchá co bolo oferecido a
um grupo restrito:
Que esse café da manhã é dos festeiros, os amigos dos festeiros, aquelas
pessoas da elite. Esse aí, pobre, se for vai ser barrado na porta, vai ser
expulso dela. Então, se você não tiver com convite ou autorização. Nesse
ainda tem essa barreira que eu acho que isso é uma barreira dentro da igreja.
Dentro da igreja tem que ser espelho e não ser vidraça. nesse café da
manhã é servido é Tody, servido mate, guaraná, refrigerante, bolo de arroz,
bolo de queijo e outros bolos também que é servido esses tipos que é da
tradição cuiabana. É bolo de queijo ainda sai no café da manhã.
56
2º. e 3º. versos da música Baião das Comunidades. Livreto da Festa de S. Benedito, 2006, p. 1.
O chá com bolo durante os 3 dias é vendido, colocado na sacolinha, é
vendido, o chá ou café ou mate, o que as pessoas queria lá pro povão, eu falo
povão, mas é vendido nos 3 dias. Às vezes acontece que no domingo estarem
vendendo. Agora, para nata, eu falo a nata, a sociedade, mas esse entram
numa sala ou salão, aí esse aí é tudo grátis sem pagar.
Ainda emendou dona Helena dizendo:
Eu vejo desse lado. Não sou contra ninguém que queira fazer uma reunião
ou uma festa e convidar seus amigos, mas na sua casa. Na igreja não, a igreja
é pública, é do povo, é patrimônio do povo, dos católicos, de Cristo. A igreja
é de Cristo, não é de meia dúzia de pessoas que vai lá e... Eu em minha
opinião esse chá com bolo é uma berração (
CADERNO DE CAMPO 2,
2005, p. 37).
Como pesquisadora e conhecedora de alguns rituais da Festa ano após ano,
às vezes é possível presenciar o que aparece nas falas de alguns devotos entrevistados, como a
situação das cadeiras reservadas, no segundo dia do tríduo.
Antes de começar a missa presenciei uns devotos por demais de cheios de si,
como diz o cuiabano. Aquela história de espaço/banco/cadeiras reservados não me desce bem,
como no episódio de duas senhoras que queriam se sentar na frente, então um dos devotos da
tradicional cuiabania disse-lhes: - Esses bancos são para os cardeais, eles não estão aqui, mas
logo vocês vão vê-los.
Logo os cardeais foram chegando, eram alguns grupos de autoridades e outras
pessoas mais chegadas da sociedade cuiabana. Observei que um ou outro grupo de pessoas,
ao perceberem os bancos livres e reservados, foram chegando e arrebentando a fita de
isolamento indignadas.
O relógio marcava 4h da manhã, aos poucos vinham surgindo numa esquina e
na outra os devotos, muitos vinham a pé, de carro, em grupos e até sozinhos na busca de um
espaço na Praça do Rosário para o encontro com o santo, e muitos não podiam escolher um
lugar desejado.
Por volta das 4h10min da madrugada, se podia, de longe, ouvir o início da
leitura das intenções
57
que só terminava mais ou menos às 5h10min da manhã, cedendo
espaço para o som da banda que estava animando a procissão dos festeiros, trazendo nas mãos
as insígnias.
57
Antes as intenções começavam a ser lidas uns minutos antes de começar a missa, mas como eram muitas e
demoradas, acabavam atrasando o horário da missa, o fato de muitos devotos terem que ir para o trabalho após a
missa motivou a mudança do horário.
As intenções são várias formas de expressar a presença dos devotos na Festa. São intenções de agradecimentos
por graças recebidas de S. Benedito, uma lista imensa de agradecimentos. Intenções de pedido de proteção ao
santo, intenções pelas almas dos falecidos, intenções de aniversário.
Muitos dos devotos, que de madrugava chegavam, acabavam ficando o dia
todo e assumindo algum tipo de trabalho paro o santo, principalmente as cozinheiras e tantos
outros voluntários ou contratados para diversos serviços.
Terceiro dia do tríduo, o tom da festa é azul
Fotos 118, 119 e 120 – 2º. dia do Tríduo, à direita a Juizinha de Ramalhete.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005 e 2006.
Tema: Benedito, Santo de Deus Amado, convertei nossos corações à
fraternidade.
Os comentários e as leituras que perpassaram esse terceiro dia do tríduo, deram
grande enfoque à necessidade de atenção maior da igreja e seus segmentos à realidade social
gritante no Brasil, para não esquecer o exílio social de miséria em que o povo esteve e está
mergulhado pelos descasos das políticas públicas governamentais:
O livro da Lamentação, transportando-nos ao horizonte do exílio, faz-nos
viver com o poeta a situação do abandono e da desolação que se abateu
sobre o povo de Jerusalém e o povo de Israel. Convida-nos também a olhar
com atenção as situações desoladoras de nossos dias. Os gritos de tantas
mães que vêem seus filhos engolidos pelos sistemas. Com esperança cristã,
vamos alcançar a vitória e juntos venceremos as dificuldades (LIVRETO...,
2006).
A celebração foi presidida pelo Pe. Luiz Neis, provincial superior da regional
dos padres jesuítas de Mato Grosso.
Uma pregação foi marcada por vários apelos sociais, numa tentativa de
estender a devoção ao encontro da realidade de Cuiabá, marcada por muitas desigualdades
sociais que interferem na qualidade de vida dos cuiabanos.
Durante a homilia, o padre Luiz retomou a provocação que fez na missa da
Festa de 2005 em relação ao compromisso social dos devotos de S. Benedito. Nesse ano ele
fez um apelo para que os devotos ajudassem de forma comprometida uma Chácara (Beato
Anchieta) que desenvolve trabalho de recuperação de dependentes químicos e alcoólatras, a
qual está sob a coordenação do Padre Pedro (atual pároco da Paróquia Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito).
O apelo surtiu efeito, pois, na homilia, o padre não falou sozinho, ele convidou
três pessoas para que dessem depoimento do trabalho social que estão desenvolvendo para
além dos limites da paróquia, na Chácara Beato Anchieta.
O depoimento sensibilizou centenas de devotos que povoavam a missa de S.
Benedito.
Em entrevista com Pe. Luiz Neis (
CADERNO DE CAMPO 4,
2006, p. 63), após
a missa, pedi que comentasse a atuação dos jesuítas em Mato Grosso e sobre o porquê das
provocações que vem fazendo dentro da Festa de S. Benedito.
O jesuíta de hoje faz menos o ‘intelectual orgânico’ de Gramsci, como era
no período áureo’ da paróquia. uma clara busca de uma real encarnação
e transformação a partir de dentro. Isto é confirmado pelas inúmeras e
pequenas comunidades com muita autonomia e participação. A festa está nas
mãos dos cuiabanos, toda celebração é organizada e orquestrada por gente
daqui, é claro, formados e educados em sintonia com o projeto da paróquia.
Meu intuito primeiro é procurar canalizar e comprometer a força do
devocionismo na perspectiva de uma transformação da sociedade. Tenho
consciência que as ‘provocações’ apontavam para mediações estratégicas
(poderiam ser consideradas assistencialistas), mas creio que são as pontes
estratégicas que apontam ou levam estas pontes, ou seja, a realidade social
maior a ser transformada. A evangelização do político e do social. Creio
que a devoção pode ser educada para uma maior autonomia do devoto e da
devota frente ao seu mundo.
Quarto dia de Festa, o dia “D”. O tom da Festa é o vermelho e branco
Foto 121 – Cartaz do 3º dia do Tríduo.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Fotos 122 e 123 – Encontro dos devotos com o santo na Praça do Rosário.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2005.
Tema geral: São Benedito, ajuda-nos a curar as deficiências.
Madrugada chuvosa e fria: 4º. dia de Festa. Os devotos se vestem de vermelho
e branco, lembrando as cores dos mártires. A missa que era campal, teve que ser realizada
dentro da igreja recém-reinaugurada, cada espaço foi disputado pelos devotos que vinham de
longe e de perto, debaixo de chuva.
O celebrante do dia foi Dom Bonifácio, bispo emérito da Arquidiocese de
Cuiabá que, empolgado ao ver a igreja cheia, fez um celestial sermão, exaltando como em
vários de seus discursos a santidade, lembrando a vida dos seguidores de Jesus: Pedro, Paulo
e a própria vida de S. Benedito.
Falou muito da santidade desses homens e pouco de sua humanidade, da
relação deles com a realidade onde viveram, bem como com o seu comprometimento com as
necessidades do povo. Na fala empolgada esteve ausente, do meu ponto de vista, o
profetismo encarnado.
No vaivém da história da Festa, a noite cai...
Produção social da Festa, produção material da Festa
Uma vez que o alimento na Festa era cobrado, foram armadas barracas e
introduzidos pratos diversos da culinária cuiabana, bebidas e outros atrativos, a ponto de a
Festa atrair um público mais diversificado, gente que está acostumada na noite, que está à
procura de diversão, barulho de música eletrônica e de shows...
A composição dessas barracas é diferente das demais e diversificam-se muito
conforme a comunidade. No espaço físico da Festa não tinha nada terceirizado. uma parte,
contudo, histórica, que fica fora do espaço demarcado da Festa e não tem nada a ver com o
seu espaço. Este lugar é popularmente chamado Pelourinho. Uma moradora antiga, que tem
sua residência inserida no espaço tombado, geralmente assume a organização e negociação
desse espaço com os festeiros e o clero, negociação que nem sempre é tranqüila. Sobre isso
comenta seu Nonô (
CADERNO DE CAMPO 3,
2006, p. 63):
Essa dona trabalha com umbanda, candomblé, ela manda, ela briga com o
prefeito, devemos tirar o chapéu pela ousadia dela com os padres. Se a igreja
quisesse fechar ela pode, este ano o rei fechou, mas ela foi, ela com o e
derrubou. É um apêndice dentro da festa, isso aí como que acentua o profano
na festa. De madrugada quando vínhamos para arrumar a liturgia, sempre
têm muitos bêbados neste espaço.
Essa atitude do rei da Festa levanta uma questão: - Não será que o rei se sentiu
ofendido de disputar o espaço já tomado pela dona do candomblé e fez o altar fora do lugar
costumeiro levando a Festa debaixo do braço?
Os conflitos de várias formas vão surgindo no desenrolar da Festa, pois o seu
espaço sempre foi marcado por algumas tensões. Uma delas é com os moradores do entorno
da igreja, onde está demarcado o espaço tombado e o espaço físico expedido pelo Alvará de
funcionamento da Festa, ou seja, onde ela se realiza. O que acontece nesse entorno? Um ou
outro morador acaba colocando alguma coisa para ser vendida na Festa. E no espaço que o
seu Nonô chama de Pelourinho são postas inúmeras barracas de pessoas que aproveitam
desses dias da Festa para vender seus produtos. Quem olha entende e pensa que tudo faz parte
da programação da Festa.
Os almoços e jantares da cozinha e barracas da Festa de S. Benedito
Foto 124 – Devotas servem o jantar durante o tríduo de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Mesmo de longe já podemos sentir o delicioso cheiro dos pratos tradicionais da
gastronomia cuiabana da Festa de S. Benedito, a ponto de pesquisadores diversos terem
publicado vários livros e revistas pesquisados na cozinha da Festa e nas receitas das
cozinheiras de S. Benedito.
A Praça do Rosário é parada obrigatória para milhares de pessoas que vêm de
longe e de perto. Todas acabam comendo na praça ou levam para comer com os seus
familiares. Chegam famílias inteiras, sentar na Praça já virou tradição.
Quando a Festa não era na paróquia, segundo dona Helena e outros
entrevistados, não era bem assim, houve mudanças significativas:
Mas com uma outra visão. Que hoje é Maria Isabel pra pobre e pra rico, pra
preto, pra branco. É paçoca de pilão pra preto, pra branco, não tem mesa
separada, nem mais churrasquinho, filé mignon escondidinho e as costelas
para os pobres. Não tem mais isso, é tudo igual. Até mesmo na
confraternização que é feita pras cozinheiras depois da Festa. Hoje tem um
sentido diferente que tudo tem igualdade, nesse ponto da alimentação não ser
diferente. A bebida não é diferente (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p.
33).
Segundo seu João Grosso (
CADERNO DE CAMPO 2, 2
005, p. 86), todos
podiam comer de graça na Festa, que tinha gente que chegava a levar espeto inteiro de
carne assada para comer em casa, comia na Festa e ainda levava para casa. Ele achava que
isso era uma invasão, muitos não deixavam nem as bandejas chegarem às mesas, limpavam as
bandejas antes de serem servidas. “O pessoal acha que tudo é de graça, o camarada saía com
espeto nas costas”, realidade que acontecia quando a Festa ainda estava fora do espaço da
paróquia.
A Festa revela, ano a ano, um maior crescimento. Ela vem ganhando
proporções cada vez maiores.
A presença do agronegócio, uma realidade que não pode ser ignorada, esteve
presente de várias maneiras, com o pensamento capitalista de entender que a Festa tem que
gerar uma renda e seus serviços precisam ser terceirizados devido à dimensão que ela vem
tomando.
Com o andamento da pesquisa, fui constatando, na fala dos devotos, nos
escritos históricos e nas observações do cotidiano da Festa, que ela vem crescendo a cada ano,
tanto no seu espaço físico como na sua expressão material e devocional. Num mundo
globalizado e de rápidas mudanças, a Festa sofreu e vem sofrendo mudanças, o que me levou
a pensar que o ser humano, num desejo louco de padronizar e estilizar espaços/lugares unindo
as partes num todo, acelerando a tecnologia e encurtando distâncias, vem convivendo com o
preço do progresso técnico-científico. E a Festa não escapou das influências do pensamento
do homem moderno.
Para entender ou me atrever a pensar nesse movimento que traz mudanças,
apoio-me em Streck et al. (2006) que escreveu que a globalização, que começou a predominar
nas últimas duas décadas do século XX, constitui uma das características mais definitórias do
início do século XXI, é um fenômeno que, em processo aceleradíssimo, nos faz sentir
implicados, relacionados e interdependentes. Por isso o autor considera que:
É necessário, pois, pensar a globalização não como processo econômico,
mas também multicultural, inclusive intercultural, e constatar como as
culturas se entrelaçam, mesclam, hibridam e também como elas se rejeitam,
até mesmo fanaticamente (SCARLATELLI; STRECK; FOLLMAM, 2006,
p. 84).
E à medida que os avanços civilizatórios acontecem numa dada cultura,
mudanças são registradas como as que os devotos de S. Benedito assistiram e participaram. O
surgimento de novos elementos querem justificar que a Festa também teria que se submeter à
nova cultura social, o que me ajuda a entender Ortiz (2006, p. 104) quando salienta:
No seio de uma civilização que se consolida surgem novos hábitos e
costumes, que constituem a ‘tradição’ da modernidade-mundo. Este
movimento planetário não se restringe aos territórios nacionais, nem pode
ser compreendido como difusão cultural, à maneira como a velha história
das civilizações o entendia. As relações sociais mundializadas exprimem a
estrutura interna de um processo mais amplo. [...] Entendê-las é refletir
sobre as raízes de nossa contemporaneidade.
Esse compartilhar estava ligado à simplicidade do santo que compartilhava,
com o pobre e com quem mais fosse ao seu encontro, o sentido de ser fraterno.
Com o tempo, compartilhar tudo sem pagar nada foi parecendo impossível,
pois o santo não só atraía a sociedade cuiabana, mas também gente dos municípios da
redondeza. O que parecia ser local se transformou em universal, ou seja, a globalização do
sagrado da Festa. A gratuidade da alimentação e da bebida acarretou irresponsabilidades. Os
maus-tratos com os alimentos e a utilização da bebida na guerra entre meninos faziam
parte dos desperdícios nas festividades. O que foi possível fazer em comunidades menores ia
aos poucos sendo impossível na Praça do Rosário e S. Benedito, à medida que o santo se
popularizava.
A velocidade das técnicas leva a uma unificação do espaço, fazendo com que
os lugares se globalizem. [...] Nesse sentido o mundo teria se tornado menor,
mais denso, manifestando sua imanência em ‘todos os lugares’. Espaço
‘cheio do vazio’? Talvez pudéssemos resolver esta antinomia numa
afirmação comum: o espaço torna-se ‘cheio’ ou ‘vazio’. Isto significa que o
movimento da mundialização percorre os caminhos. O primeiro é o da
desterritorialização, constituindo um tipo de espaço abstrato, racional, des-
localizado. Porém, enquanto pura abstração, o espaço, categoria social por
excelência, não pode existir. Para isso ele deve se ‘localizar’, preenchendo o
vazio de sua existência com a presença de objetos mundializados. O mundo,
na sua abstração, torna-se, assim, reconhecível (ORTIZ, 2006, p. 106-107).
O local de alimentação da Festa, antes a céu aberto, devido ao número de
pessoas, ao clima muito quente do local e à higienização dos espaços, agora foi redefinido.
Criou-se um espaço semelhante ao que grupos de famílias cuiabanas costumam usar nas
reuniões para comer e conversar.
Neste ano (2006), a comissão de Festa resolveu construir um espaço de
alimentação a que eles deram o nome de Praça de Alimentação.
Segundos os entrevistados, devotos atentos às mudanças que vão acontecendo
a cada ano na Festa, no ano de 2005, em várias ocasiões, o altar do santo foi usado como
palco de atração de figuras político-empresariais, o que lembrou as festas relatadas por Del
Priore (1994) no período colonial, a ostentação do poder do Estado e da Igreja. Porém a
devoção de alguns devotos mais fixos ligados à tradição conseguiu superar o que estava sendo
posto no lugar da manifestação do sagrado.
Como relatou dona Helena, referindo à Festa de 2005 como aquela que era
cercada, fechada, como que querendo fazer um certo controle entre os de dentro e os de fora:
Olha, este ano (2005) foi uma festa atípica, ela não foi uma festa comum de
S. Benedito. Uma festa onde tem cercado e porteira (!) Eu falo, eles fizeram
porteiras, fecharam as entradas da Praça que é uma festa popular. Se é
popular, pra que porteira? Dentro do meu conceito, popularidade é coisa
que tem que ser aberta pra todos. A partir do momento que você chega num
lugar e você uma cancela, você, claro, vai pensar: Por que fizeram essa
cancela? Será que eu posso entrar? Será que eu não posso? E se ali estiver
aberto, você sabe que pode entrar que é uma coisa natural. Isso acho que
não foi uma coisa boa! (CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 40).
Fotos 125 e 126 – Apresentação cultural no palco 1 da Festa.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
No ano de 2006 os organizadores criaram dois palcos distintos, tendo um certo
cuidado em separar esses dois espaços dentro da Festa. Um grande palco (1) dedicado às
missas e aos andores do santo, onde à tarde ou à noite aconteciam apresentações culturais:
corais católicos do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso e da Câmara Municipal de
Cuiabá; várias bandas como a da Secretaria de Estado e Cultura, Polícia Militar, Corpo de
Bombeiros e do Exército. Um palco reservado para a arte das músicas sacras e do folclore
cuiabano, onde se apresentaram vários cantores da música mato-grossense.
Construíram o palco (2), espaço no qual o profano podia se manifestar
totalmente, a ponto de acontecer uma apresentação no palco (1), e os organizadores avisarem
que a próxima apresentação iria acontecer no palco (2) pedindo ao povo que quisesse
participar que para lá se deslocasse.
No palco (2) aconteceram os shows que animaram a Festa até a saideira que
indicava a hora de todos se recolherem. Na frente desse palco o povo em geral cantava e
dançava pra valer os mais diversos ritmos.
Assim a Festa estendeu-se pela noite, porém não entrou na madrugada, pois, no
máximo às 22 horas, todos se encaminharam de volta para casa. A noite foi preenchida por
uma animada e diversificada programação que aconteceu nos dois grandes palcos.
Fotos 127 e 128 – Participantes da Festa durante a noite.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Quando a Festa ganhava a noite, o cenário ia sofrendo alterações, havia a
presença de diversos grupos de pessoas, na maioria jovens acostumados na noite, os quais
circulavam pelo espaço da Festa. Muitos não entendiam o porquê da Festa acabar tão cedo,
saíam frustrados, querendo comer, dançar e beber mais um pouco.
Caminhando no interior da noite festiva, fui percebendo que ela aos poucos
passava a se identificar com o profano, e o dia era dedicado mais ao sagrado, ou seja, ao
religioso da Festa. De manhã o altar pertencia ao santo e à noite cedia espaço para as atrações
chamadas profanas.
Fotos 129, 130, 131 e 132 – Participantes da Festa durante a noite.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
O interessante é observar que são dois espaços num mesmo lugar demarcado
como espaço da Festa, o quê, para alguns devotos, parecia uma combinação mais tranqüila.
No ano de 2005 usaram o mesmo palco para as duas manifestações, sagrado e profano, não
havia separação. Uma das devotas chegou a dizer que numa noite, caminhando pela Festa, não
conseguiu seguir para frente, pois estava admirada e chocada com o tamanho baile que ocorria
no espaço dedicado ao sagrado no entorno da igreja.
O que a devota observou foi sinalizado por vários outros devotos sobre o que
acontece nas últimas horas da Festa. Muitos disseram que grupos diversos abusam da bebida
criando um clima de desconfiança e espantando as famílias do espaço festivo.
2.8 A economia gerada pela Festa movimenta pastorais sociais e comunidades de base da
Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito
O capital financeiro da Festa
Essa visão de cultura, muito unida ao progresso impositivo de
ocidentalização do mundo, nega as grandes contribuições de todas as
culturas para o progresso integral da humanidade e, unilateralmente, tende à
homogeneização cultural, definida pelo progresso capitalista e pela
vinculação à globalização do mercado neoliberal. Entretanto o progresso
histórico da humanidade é constituído e enriquecido pelas experiências e
contribuições de todas as culturas, e elas não podem ser desconhecidas ou
reduzidas a termos de mercado, consumo e eficiência (SCARLATELLI;
STRECK; FOLLMAM, 2006, p. 63).
A Festa, na sua origem, não visava ao lucro, não era esse o espírito que a
movia. Todavia, se tivesse esse propósito, a igreja não chegava a ver a cor do dinheiro.
Somente a bandeira do santo fazia a arrecadação, e o que era recebido em forma de esmola
ficava na igreja.
Quando a Festa de S. Benedito ficava sob a responsabilidade da paróquia, tudo
que era arrecadado também ficava restrito à paróquia, e, desse valor, um percentual
(MOURA, 2007)
58
era destinado à Arquidiocese de Cuiabá. O aspecto financeiro da Festa
parece que foi marcado por pequenas e grandes tensões, como relata seu Nonô
(CADERNO
DE CAMPO 2, 2005, p. 75).
O que era arrecadado mal dava para pagar as despesas da Festa, ou seja, era
uma Festa sem lucros, muitas vezes havia conflitos internos, pois o dinheiro
que parecia ser muito minguava na prestação de contas. Assim criava-se um
clima de desconfiança, com isso muitos devotos fixos, pouco a pouco, se
afastavam das comissões e até das missas tradicionais.
Na oportunidade perguntei para o Pe. Luiz Neis (
CADERNO DE CAMPO 4,
2006, p. 63) que está mais de seis anos como superior dos jesuítas em Mato Grosso e
mora em Cuiabá - "Parece que nessa paróquia tudo gira em torno da Festa, e ela gira a
paróquia. Que pensas?”
A festa é algo muito importante. Mas a paróquia é muito maior e tem
independência. Veja que o CPP (Conselho Pastoral Paroquial) define os
festeiros e delega a eles a preparação e a dinamização da Festa, e a paróquia
continua a sua vida nas suas 26 comunidades, aliás acho até que a maioria
das comunidades da paróquia participa muito pouco da Festa. Quanto ao
econômico, é uma fonte importante para a paróquia, e o extraordinário
58
5% do valor total da Festa são repassados à Arquidiocese de Cuiabá.
necessário para a administração ordinária da paróquia deve ser garantida
pelo dízimo e as contribuições das comunidades.
Dialogando com o pároco da paróquia Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito, ele me falou que o objetivo da Festa religiosa é garantir um serviço à igreja,
ressaltando que a Festa em si é um desafio para a paróquia. Hoje quem responde, paga ou
usufruiu o resultado da Festa é a paróquia. A Festa se torna complexa, pois em torno dela se
cria uma ilusão e vários “vícios” gerando outras devoções secundárias que cultivam demais a
tradição e castram o Espírito.
Segundo o pároco, a Festa criou uma estrutura muito cara (ilusória). Muitos
que não participam dela diretamente e até mesmo a mídia questionam através de jornais: “O
que a paróquia faz com tanto dinheiro?” Pensam que o resultado da Festa é grande, diz o
pároco. Sendo assim muitos reclamam por que vender coisas na Festa, se tudo é doado. O
pároco diz que cobra porque nem tudo é angariado. Muitas vezes não para pagar nem as
despesas geradas, o que já ocorreu em várias Festas.
Essa leitura perceptiva do pároco me fez lembrar Ortiz (2006) quando o autor
escreveu sobre a perda do sentido da centralidade, o que posso chamar de descentralização
dos espaços, quando o local passa a ser regional, o micro passa a ser macro. Salienta o autor
com isso que os sinais das mudanças decorridas do processo da globalização são visíveis e
tendem a exigir formas de gerenciá-las, articulando o específico com o geral.
[...] o processo de globalização implica a perda do sentido da centralidade, o
que significa, inclusive, a obsolescência dos quartéis-generais. Ele exige
mobilidade e descentralização. Uma companhia global opera em escala
planetária, procurando retirar de cada lugar o maior proveito. Sua estratégia
é sistêmica. As ‘subsidiárias’ já não podem ser pensadas como um elemento
estranho ao centro, elas fazem parte de uma rede, trabalhando para a
reprodução do todo. O sucesso gestionário significa, pois, a capacidade de
se administrarem, de forma coerente, as partes distintas de um organismo
tentacular (ORTIZ, 2006, p. 155-156).
A Festa de S. Benedito, diante da sua proporção e grandeza, passa a exigir um
maior gerenciamento na sua organização, capitalização de recursos para a sua execução, ano
após ano, realidade que aparece desnuda nas respostas do pároco e mais expressivamente na
organização da Festa de 2005.
Perguntei ainda se a paróquia depende financeiramente da Festa. Disse que
cresceu muito o número das barracas em torno da Festa, a ponto de os vizinhos da igreja
alugarem espaços em frente de suas casas para terceiros. Quem compra estes espaços, pensa
que esta comprando da paróquia. E quem olha de fora, pensa que tudo faz parte da
organização da Festa.
Lendo o Livro Tombo (1990; 1993) da Paróquia, encontrei pelo menos dois
momentos em que aparece a preocupação com o financeiro da Paróquia:
Finanças: Esmola; Festa. O lucro líquido vai para a Paróquia. É
praticamente a Festa de São Benedito que vem mantendo a Paróquia. No
ano passado o dinheiro não foi repassado para a Paróquia, por causa da
reforma da Igreja. repassaram uma parte este ano. Na organização da
Festa são formadas várias equipes. É aberto para as comunidades
participarem. É uma festa a nível de Cuiabá. Em preparação à festa são
realizadas promoções de todos os veis. Com o decorrer dos anos, a Festa
foi adquirindo patrimônios, hoje bastante considerável: vasilhame, som,
frízer... (1990, p.106).
Num segundo momento é frisada a importância em “Criar mecanismos para a
autonomia financeira na paróquia em vista da não-dependência do sustento da Paróquia a
partir da Festa de São Benedito” (1993, p. 129).
Com a pesquisa, fiquei ciente de que o Conselho Pastoral Paroquial (CPP) vem
repensando formas de redimensionar o envolvimento das comunidades da paróquia na Festa
de S. Benedito para garantir-lhes um percentual financeiro levantado nos dias do festejo. Por
isso, três anos, as comunidades da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito
vêm participando da Festa, colocando barracas, e o que arrecadam fica para a própria
comunidade. Dessa arrecadação, as comunidades não prestam conta para a comissão, ou seja,
não entra no financeiro da Festa, como já foi mencionado.
Resultado financeiro da Festa de São Benedito 2005=> R$ 51.008,68
(cinqüenta e um mil, oito reais e sessenta e oito centavos) conforme
prestação de contas da Festa de São Benedito 2005, página 01 de emissão
da Comissão de Festa de São Benedito 2005. -Participação da antiga Lei
Hermes de Abreu, Lei Estadual de Incentivo à Cultura: Festa de 2005=>
45.000,00 (quarenta e cinco mil reais)
Resultado financeiro da Festa de São Benedito 2006=> R$ 110.038,48
(cento e dez mil, trinta e oito reais e quarenta e oito centavos) conforme
prestação de contas da Festa de São Benedito 2006, página 01 de emissão
da Comissão de Festa de São Benedito 2006. Participação da antiga Lei
Hermes de Abreu, Lei Estadual de Incentivo à Cultura: Festa de 2006=>
40.000,00 (quarenta mil reais)
(ADMINISTRAÇÃO ..., 2007).
O dinheiro recolhido na Festa movimenta o trabalho pastoral da igreja.
Antigamente a Pastoral e os trabalhos viviam das esmolas, não das outras arrecadações e
doações de entidades, grupos, secretarias e serviços. Tudo ficava destinado para a parte
profana e em geral para a aplicação que o rei e sua equipe determinavam.
Segundo seu Nonô (
CADERNO DE CAMPO 2, 2005, p. 51
), a Festa não só ajuda
na pastoral, mas nos trabalhos da igreja em geral. “Eu acho que usou o dinheiro da Festa
pra pagar funcionário, colocar em dias contas de água, luz. Pra manutenção da paróquia em
geral.”
De acordo com os dados obtidos em 2007 junto à administração da Paróquia
Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, pude verificar as formas de gerar recursos no
decorrer do processo de preparação da Festa e durante a sua realização.
Fontes do recurso=>A renda da festa é originada principalmente das
promoções (aproximadamente 40% do líquido) que antecedem a Festa;
movimento durante os 4 dias da festa (aproximadamente 40% do líquido) e
complementada com o recurso do projeto da SEC
59
/MT (aproximadamente
30% do líquido) e destinação do mesmo (onde ele será investido na
Paróquia)=> Destinação do recurso=> conforme Regimento Interno da
Festa de São Benedito, os recursos são destinados para investimentos de
ordem pastoral e infra-estrutura material e física, sobretudo em
comunidades mais pobres da paróquia
.
Observei que os recursos capitalizados pela Festa e na Festa foram sendo
redimensionados conforme as necessidades da paróquia. O santo de maior expressão
devocional dessa igreja atraiu levas de devotos e, com eles, suas diversas formas de expressar
a gratidão pela graça recebida. Fazer a Festa, tradicionalmente todo ano, foi consolidando um
jeito sempre novo, aberto e contínuo de festar, sem se perderem os traços mais profundos da
tradição da Festa primeira, sem com isso negar as mudanças que ela sofreu ao longo desses
quase três séculos de tradição.
O resultado da Festa de 2006, segundo os devotos que participaram mais
diretamente da organização, passou por uma forma de gerenciamento mais apurado. Os
festeiros estavam preocupados em economizar, trabalhar com recursos oriundos de doações
diversas para conter gastos desnecessários, como, por exemplo, o pagamento de bandas para
acompanhar a bandeira do santo. Trabalhou-se mais a questão religiosa da devoção,
mobilizando os devotos a participarem de forma mais expressiva e direta nos trabalhos do
evento, como as barracas das famílias dos devotos, custo zero para o caixa da Festa, o que me
levou a entender que o resultado financeiro do evento de 2006 foi mais expressivo que o de
59
Secretaria de Educação e Cultura (SEC) de Mato Grosso.
2005. Diante do resultado financeiro da Festa de 2005, nasceu um pergunta: A quem o
resultado financeiro da Festa beneficiou?
No movimento contínuo da Festa é chegado o tempo da descida do Mastro
Fotos 133 e 134 – Início de um novo reinado e descida do mastro na última terça-feira do mês da Festa.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Fotos 135, 136 e 137 – Encontro dos dois reinados e descida do mastro na última terça-feira do mês da Festa.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Fotos 138, 139 e 140 – Descida do mastro na última terça-feira do mês da Festa.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
No dia 25 de julho de 2006, última terça-feira do mês, após a missa da
madrugada, acontece apresentação e posse dos novos festeiros, quando todo o povo sai para
acompanhar a descida do mastro.
O período de um reinado, na Festa, termina na madrugada da última terça-
feira do mês da Festa, quando o rei com todos os demais festeiros trazem em suas mãos as
insígnias que, segundo Passos (2006), “[...] significa adereços que identificam o caráter
originário de uma presença de poder místico ou religioso para aquele que a possui”.
Fotos141 – Insígnias de S. Benedito.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
Essas insígnias
60
são transferidas solenemente aos novos festeiros. Aqui
atrevo-me a interpretar que esse espaço-tempo de transferência culmina com uma Festa na
outra, um tempo que se fecha e outro que se abre, para então o movimento de continuidade
fluir. Portanto não consigo ver uma quebra de tempo, Kairós, possivelmente se pode dizer que
um novo tempo, Kronos, está sendo parturizado. É esse primeiro tempo que aqui chamo de
tempo da Festa.
Após a entrega das insígnias, é chegada a hora de descer o mastro que foi
levantado uma semana antes da Festa, no caso a de 2006. Após a missa, todos saem e se
voltam para o local do mastro erguido, rezam a oração de S. Benedito, acolhem os novos
festeiros, o sacerdote ali a bênção final da missa, assim o mastro é descido e desmontado,
retiram a bandeira de madeira e a coroa presa no mastro. Todos os símbolos desse reinado, ao
cumprirem seu objetivo, vão como que voltando ao seu lugar de origem, até novamente ser
convocados a reassumirem como na primeira vez o seu sentido originário.
Amarrando as tramas
[...] a educação, partindo da identidade cultural, deve ser vista, não somente
como resgate do patrimônio do passado, que se deve descobrir e defender,
ou como uma realidade presente, que se deve discernir, mas também como
projeto, que é necessário construir (SCARLATELLI; STRECK;
FOLLMAM, 2006, p. 101).
No percurso percorrido até aqui busquei com o material coletado de diversas
fontes, tanto materiais como de pessoas físicas, ir desdobrando e revelando o que foi possível
ser visto, sentido e ouvido sobre a Festa de S. Benedito em Cuiabá, para assim olhá-la quem
sabe do lado de dentro e do lado de fora.
Esse movimento foi mostrando principalmente algumas raízes matriarcais
fundantes que foram elaborando a Festa até chegar ao jeito de hoje, sem ser formatada.
A etnografia me orientou nas pegadas dos devotos mais antigos e fixos da
tradição para encontrar um certo fio condutor do caminho da história da Festa e sua singular
60
Segundo Moura (2003), as insígnias são mbolos, “[...] a história de insígnias é do tempo do Padroado, uma
pratica devocional popular. As insígnias são: a Bandeira com a estampa do santo, o Mastro com a bandeira e a
estampa do santo presa por uma coroa, o Crucifixo, a imagem de São Benedito, duas Varas de prata enfeitadas,
dois Ramalhetes, um Quadro de Estampas Votivas, a Coroa da rainha, a Coroa do rei, Velas...”
importância em tecer e alimentar as tramas da cultura cuiabana que com elas se identificou e
se misturou.
S. Benedito, com sua Festa e com sua simplicidade de vida e história de
superação e resistência, possibilitou um feliz e esperançoso encontro com as lutas do povo
cuiabano marginalizado e estigmatizado pelos poderes políticos, religiosos, econômicos e
sociais desde a conquista.
É nesse aspecto que aproveito para ressaltar o tratamento ou entendimento que
dei aqui às Irmandades, instituições conhecidas e operantes em Cuiabá até 1979, as quais
chegaram ou foram instituídas aqui num período de forte controle social, onde a religião e o
Estado eram a lei absoluta, e a própria coroa de Portugal se personificava nas restrições e
obrigações que pesavam sobre os ombros da população.
Como foram mencionadas, as Irmandades, com o tempo, foram se tornando
organizações maiores, mais fortes, mais numerosas e possuidoras de bens. Haviam assimilado
para dentro de sua estrutura muitas das formas de controle de poder, principalmente o poder
religioso. Em nome de Deus, algumas das Irmandades recebiam os membros, os alforriados,
os discriminados pela cor ou classe social. Com isso essas pessoas podiam ser batizadas na
católica e até ter um enterro digno, caso viessem a morrer.
Ocorria que o controle da produção do sagrado pelas Irmandades determinava
ou separava os santos dos pecadores, os justos dos injustos, os que podiam se aproximar da
mesa/altar do santo para tocar o sagrado e festejá-lo.
Essas ações das Irmandades revelavam um jogo confuso de poder que era
muitas vezes negociado com os outros poderes locais em nome da salvação das almas para
Deus. As ações sociais e religiosas muitas vezes se confundiam com o pensamento do
colonizador branco ibérico da época que explorava o povo dizendo que iria civilizá-lo,
trazendo a ordem e o progresso.
Todavia, com a presença da Festa de S. Benedito a partir de 1981 na sede da
Paróquia do Rosário, entendo que houve um enfraquecimento dos grupos de pessoas que
controlavam a Festa, e ela volta para o meio do povo e passa a ser organizada também pelo
povo. O povo cuiabano, de todas as etnias e camadas sociais, assume a Festa como devotos!
E na Festa vão se identificando as ações que chamamos de socializadoras e
educadoras. São esses movimentos de trocas simbólicas, que a Festa possibilita, que vão
nutrindo nos grupos populares a esperança de luta por direito e dignidade para todos. Assim,
dentro e fora do espaço da Igreja do Rosário e S. Benedito, nasceram e se fortaleceram os
primeiros movimentos sociais de organização popular. E na Festa eles encontraram ou foram
conquistando espaços para se manifestar.
Todos esses movimentos de resistência e luta carregaram e carregam o ser da
cuiabanidade com sua história, riqueza e cultura.
Nos passos que seguem, abro um diálogo com a história da Festa e sua
importância para a humanidade, sendo ela um veia viva de produção de cultura e educação. E
finalizo o trabalho identificando na Igreja do Rosário e S. Benedito, chão da Festa pesquisada,
a contribuição que ela teve e tem na formação e participação dos Movimentos Sociais,
Culturais, Políticos e Educacionais em Cuiabá.
CAPÍTULO III - O “FESTAR” NA ORIGEM DOS TEMPOS
“Há um tempo para cada coisa.” (Eclesiastes. 3,1-11)
Foto 142 – Livreto da Festa de S. Benedito 2005.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
3.1 Origem, sentido e significado da Festa: a Festa nas tramas do tempo/SYn
61
Cultura não é memória do que foi, nem explicação do que existe; é
constante revitalização, animada pela esperança e pela utopia, pelo que
ainda não existe, mas que se anela e projeta construir no futuro. As pessoas
e os povos não têm apenas memória ou esquecimento, mas alimentam
sonhos, aspirações, necessidades não -satisfeitas, esperanças, virtualidades e
se encontram permanentemente diante de novos desafios históricos, aos
quais propõem dar respostas criativas e inéditas (SCARLATELLI;
STRECK; FOLLMAM, 2006, p. 105).
61
Syn é prefixo grego, significando “junto”, e aisthesis, sentido”, “sensação”, “percepção”,
junto
com.
Pretendo compreender a Festa de S. Benedito dialogando com a origem do seu
sentido e para o entendimento do sentido dela para a humanidade cuiabana, isto é,
compreendê-la inserida na sociedade como conteúdo prenhe de significados e experiências
que ressignificam os saberes formalizados que foram e são historicamente concebidos como
válidos para uma determinada maneira de ser, maneira de ser cuiabana, ou seja, tomá-la como
meio de produção das humanidades e do conhecimento humano e aprendizado das produções
e sentidos destes mesmos conhecimentos.
Nesse caminho de estudo, verifiquei diversos relatos históricos que mostram a
presença da festa no desenvolvimento da humanidade.
Na pesquisa do exegeta padre jesuíta Peter von Werden (2005), que realizou
leituras de documentos de origem hebraica e outros, encontrei a tradução para festa da
seguinte forma: “Palavra de origem hebraica HaG, traduzida por festa, “[...] significa
circular, voltar; o verbo é HUG, fazer círculo”. Esta interpretação permite ainda reencontrar o
sentido dado aos textos de Mircea Eliade de que festa é memória, relembrança capaz de
retornar no tempo, refazer as coisas do princípio.
Na Bíblia pude encontrar também diversas passagens que fazem referência à
festa. Citarei algumas destas passagens e as demais seguirão em anexo.
Em Gênesis 11-12, deparei-me com o trecho onde Deus chama Abraão para uma
peregrinação festiva xodo 3). Relata a presença de Deus na Sarça ardente, propondo a
Moisés que retirasse o povo do Egito para fazer uma festa no meio do deserto, fato que
marcou a libertação desse povo exilado; a festa é demarcatória, é acontecimento alegre que
muda a vida do povo. Voltando à Gênesis 1,14, encontrei a passagem:
E Deus diz no quarto dia da criação haja MeORôT (luminárias) no
firmamento dos céus para separar entre o dia e a noite e para serem
sinais ULMOÀDIM (como para os determinados encontros), como para os
dias e para os anos. Observo: O sol e a lua são criados e postos no céu
com finalidade primária de determinar as ‘festas’ e para possibilitar isso,
também para (determinar os dias e anos)
62
.
Na verdade as luminárias estão a serviço do controle do tempo que modifica a
humanidade do povo.
62
Solicitei muitas vezes a mediação, como tradutor e pesquisador, do exegeta jesuíta Peter Von Werden (2005),
que forneceu em diversos momentos subsídios para este trabalho, revisitando os textos hebraicos, traduzindo-os
e interpretando-os no contexto da cultura hebraica.
Esse trecho traduzido do hebraico possibilitou entender que as primeiras festas
nos relatos bíblicos tinham o sentido de inteirar o indivíduo do acontecimento do mundo
exterior e natural e, neste sentido, permitir uma harmonia entre a subjetividade e os momentos
próprios afinados com a natureza. Essa inteiração coloca o Criador em relação com as
criaturas, o movimento da lua e os sinais visíveis no céu confirmam, na Terra para os homens
que os observam, o tempo certo para cada coisa no ciclo natural, na Terra. E a festa era a
manifestação feliz, diz Von Werden (2005), e certa do encontro de duas naturezas, humana e
divina. Por isso toda festa era sempre o reencontro da origem primitiva da humanidade
consigo mesma, no ato criacional de Deus. É um retorno à condição da primeira criação e a
possibilidade de renová-la. É sempre um acontecimento simultaneamente natural e
transcendente.
Nessa interpretação, Von Werden salienta que a festa está na origem do tempo
e é fortemente presente na vida do povo, ela se faz parte íntima do universo, pois é ele, o
universo, que determina a continuidade da festa e o motivo do “festar” por meio das
manifestações da natureza.
Observei, portanto, que a festa, para os hebreus, é uma manifestação antiga e
coletiva que tem origem na própria humanidade, pois só para ela a festa faz ou tem sentido. É,
pois, no encontro com o sentido atribuído pela humanidade que se esclarece o que a festa faz
para os homens e mulheres, na medida em que faz o que ela significa.
Alice Itani (2003, p. 11), pesquisando “Festas e Calendários”, esclarece a
profundidade que remonta à origem da festa, não apenas para os hebreus, mas para outros
povos:
Ela está presente nos costumes de vários povos, como manifestação popular
transmitida e transformada de geração a geração ao longo dos séculos. Os
registros históricos sobre as festas se perdem no tempo. mais de dez mil
anos já verificamos a presença de festas como celebrações sagradas
compostas por ritos e oferendas aos deuses.
Os diversos estudos sobre a festa me possibilitaram compreendê-la como um
fato social, histórico e político que esteve presente nas diversas etapas de transformação da
sociedade, acompanhando as suas formas de produção e sobrevivência. Dessa forma, se
fizermos um rápido passeio sobre a história da humanidade, encontraremos as atividades
festivas como expressão dos grupos de aldeamentos e comunidades tribais, passando pelas
chamadas cidades-Estado, as cidades feudais, e atracaremos finalmente na percepção do
recente modelo da sociedade burguesa. Nesse tempo vivido e percebido pelos povos antigos e
contemporâneos, encontramos ou nos deparamos com a festa, afirmando e reafirmando a
continuidade das diversas etapas da sociedade de todos os povos.
Isso é reforçado em Itani (2003, p. 39), ao dizer que a festa é parte integrante
da cultura humana:
Por isso elas subsistem como parte do processo de transformação das
sociedades, com bases em suas relações de produção e de seu processo de
criação diante das condições novas que enfrentam, tanto religiosas como
econômicas e climáticas.
Ela se imbrica nas mutações, nas retomadas, nas recriações e nos momentos de
alteração das sociedades, nas relações com os outros e o mundo. Neste sentido, toda festa é
um momento de descontinuidade, de atadura, de reorientação.
A presença da festa na vida da humanidade é inegável. Não pode ser
compreendida como descolada da história e das estórias. As festas ligam o homem ao
ambiente por meio dos ritos, dos simbolismos de um sentimento mimético. Chega-se a
concebê-la ou compreendê-la no processo de orientação do tempo cronológico, lógico, para
que se possa mergulhar no tempo ontológico.
Da ordenação do tempo marcado pelas festas consideradas pagãs e depois
religiosas nasceram ou se organizaram os calendários
63
, até chegar ao modelo que foi
introduzido no mundo ocidental. Elas não são exteriores aos homens em sua própria
compreensão, existência e ação.
Os povos, portanto, mantiveram e mantêm suas festividades como parte de
suas origens, de sua história e, principalmente, da sua consciência, de seus direitos e
costumes. Nesse sentido entendemos que, nesse processo de busca de ordem relacional, de
universo e natureza humana, um nítido aprendizado que é inegavelmente um legado para
todas as gerações futuras. Nessas trocas simbólicas se firmam a continuidade da festa para
uma determinada cultura ou modo de festar, um sentido ao mesmo tempo universal e singular
de um povo, o que me ajuda a entender Eliade (1992, p. 63) quando fala de “intervalos” entre
o tempo sagrado e o tempo das festas e como eles são negociados ou administrados no tempo
vivido do homem religioso:
63
As festas sazonais agrárias passaram a ter data certa. O calendário ritual da Igreja concentrava os eventos nos
meses do trabalho mais leve, que recaía, sobretudo, no início do inverno e da primavera, como é o caso do Natal
e da Páscoa. Contudo as festas das aldeias européias no século XVIII ocorreriam no verão e no outono. Eram
comemoradas logo após o fim da colheita como um calendário festivo emocional. A atividade sazonal agrária
subsiste como eixo das festas e manifestações populares (Cf. THOMPSON, 1998, p. 52).
[...] os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande
maioria, festas periódicas) por outro lado, o Tempo profano, a duração
temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado
religioso. Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução
de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode ‘passar’,
sem perigo, da duração temporal ordinária para o Tempo sagrado.
Assim a festa carrega o sentido de continuidade, como vimos na Festa de S.
Benedito, mas é uma continuidade problemática, pois implica uma cesura no tempo ordinário,
no tempo da vida cotidiana. Toda passagem implica um certo “perigo”, diz Eliade, a ser
superado no rito. Cada vez que S. Benedito é festejado inclui necessariamente um conjunto de
atividades rituais que cuidadosamente devem dar lugar a um outro tempo, cuja vivência
implicará uma recriação do tempo profano e cotidiano. Todo o tempo festivo é Kairós
tempo oportuno tempo de encontro, de um tempo natural com um sentido e uma vivência
sobrenatural. Todo Kairós é uma mimeses, uma recordação, uma simulação da primeira
atividade criadora e festiva assegurando a sua continuidade e renovação. Inclui participação
corporal plena da natureza humana na dança, na música, nas vestes, na demarcação do corpo,
no alimento consumido e oferecido, nas formas de sociabilidade que expõem os sentidos
celebrados entre os iniciados. Portanto implica um ritual simbólico - cerimônia - ,como se
voltassem à primeira origem da festa, recuperando-a no tempo vivido.
Reconheço, desse modo, que o tempo da festa é um tempo em que se anda no
fio da navalha de duas temporalidades contíguas, mas separáveis, problemáticas em sua fusão.
Toda experiência de transcendência põe em crise a ordinariedade temporal dos homens. Para
tal existe, na seriedade do rito, um núcleo de loucura, de transe, um brinquedo inocente na
provocação de forças poderosas; ali se constrói um território lúdico no qual o povo se
exprime, seja para reivindicar, alegrar-se, negar o poder que explora permitindo uma relação
de desiguais, seja para roubar para si um bocado do poder da transcendência. Essa
humanidade renovada e atrevida é sempre um problema para o poder, pois ela adquire uma
certa independência, uma certa distância crítica, uma certa consciência expressa de suas faltas,
concebidas como inerentes e conaturais ou como impostas pelo poder exterior dominante.
Identifico também nas festas populares, sobretudo, a introdução de conteúdos e signos de
resistência e luta contra as elites dominantes, seja a própria igreja seja o Estado, que encolhem
e vêm encolhendo ao máximo os tempos de festas, os dias santos, os dias de festas populares
e “esticando” os dias do trabalho e da produção do capital. Por outro lado, casam-se estas
duas iniciativas, que fazem com que os dias santos acabem por abrandar o controle, a
expressão e o patrocínio do poder do Governo ou do Estado autocrático e da classe
dominante e empresarial.
[...] a festa é capaz de se mostrar como apreensão do sentido da cidadania,
por meio do aprendizado da história do país ou de grupos particulares,
proporcionando um despertar da consciência dos direitos e deveres, do
relacionamento com a burocracia de Estado e do sentimento de brasilidade
em suas múltiplas facetas (AMARAL, 1998, p. 11).
Parece que o sentido do festar ligado à colheita e à sobrevivência foi ou está
sendo substituído pelo pensamento da ordem do mercado de consumo. Ora, a festa foi
entendida como tempo livre, ócio, improdutível, como uma suspensão da vida pública e da
produção. Talvez seja esse um dos motivos dos conteúdos das festas seguirem como estacas
fincadas no chão do tempo da luta por cidadania, alegria e aprendizado de um determinado
povo.
Como bem lembra DaMatta (1987
, p. 102),
[...] as festas populares seriam a
sobrevivência de um tempo antigo, guardadas por algum grupo especial, que as comemoram
porque é o costume”. Aqui está o sentido do mimético, do encontro permanente de uma
memória que está sempre viva e guardada, mas que se manifesta num “tempo oportuno”, onde
ela é evocada por um grupo distinto. E para esse grupo, “festar” faz sentido e dá sentido à sua
vida.
o jesuíta Raphael Bluteau (apud DEL PRIORE, 1994) por exemplo, em seu
Vocabulário português e latino do século XVIII, relaciona festa e história. Ele explica que o
termo festus, aqui nesse caso de origem latina, aplicava-se à celebração e ao culto de “falsos
deuses”. Para entendermos o que ele está falando, cito as festas religiosas “maometanas” e
“dos judeus” sublinhando, porém, que “as festas dos cristãos na Igreja Católica são sabidas de
todos os fiéis cristãos”: as dos patronos, as dos mártires, como “São Policarpo e outros”, as da
Epifania. Ressalva, contudo, a existência de festas profanas “[...] públicas como jogos e
torneios, canas e fogos...”. Emenda Del Priore (1994, p. 18-19) que a tentativa de objetividade
do taciturno dicionarista não funciona no sentido de separar as festas religiosas das profanas.
Elas, de “fato, caminham juntas”.
Jogos e torneios não eram benquistos pela igreja, pois eram um lazer fútil, um
desperdício de tempo que evocava sentimentos de falsa alegria e divertimento, isto é, não
tinha nada a ver com as coisas dedicadas ao espírito.
Talvez aqui possa me apoiar em Steinen (1942, p. 68) quando descreve Mato Grosso
como:
[...] uma terra plantada nos confins do mundo. Não é possível que haja outra
cidade no mundo onde se toque mais músicas, se dance mais, se jogue mais
baralho do que aqui... É impossível também que em algum lugar se alteiem
mais freqüentemente os estandartes da procissão e se saiba associar melhor
as missas com prazeres sociais.
Com ele concorda Siqueira (2000) quando escreve que, em 1881, os jogos,
diversões populares e atentados ao pudor e à moral foram englobados nas posturas municipais
de Cuiabá, no capítulo espacial, sob o nº. 17 e com o título de “Dos jogos e reuniões ilícitas,
vozeiros e ofensas a moralidades públicas, mecanismo legal que identificava o espaço da
pobreza como território da infração”
64
.
Talvez sejam essas inúmeras proibições e restrições tanto da igreja como do
poder público local instituído que incentivaram a criatividade do povo a inventar formas
novas de festejar, constituindo sua conquista coletiva na expressão livre e legal das festas de
santidades:
A festa só é possível com o envolvimento de todos, pois é triunfo do povo e,
portanto, sua característica principal é a coletividade a nível societário deste
culto católico, envolvendo um ciclo que percorre, ao longo do tempo,
paralelamente e de modo simbólico, o próprio ciclo de rotina e trabalho
(CASTRO, 2001, p. 64-65).
Assim, não podemos localizar a festa como um mero acontecimento fortuito,
“solto”, sem sentido para a história da humanidade, como salienta Hoornaert (1992, p. 388-
389):
[...] é necessário estudar a festa em relação à vida diária. A festa é diferente
da vida diária, é um espaço de liberdade, nunca vida de escravidão. [No
caso o Brasil e pra nós na pesquisa em Cuiabá] o escravo tem que trabalhar
para o senhor, mas dança para si. Como o trabalho não pode ser religião,
pois é um trabalho marcado pelo estigma de exploração e da injustiça, a
religião se realiza depois do trabalho, à margem do trabalho, como um
intervalo no meio do trabalho, um respirar livre no meio da opressão. Do
caráter essencialmente passageiro da festa brasileira: a sabedoria popular
sabe que o melhor da festa é que ela ‘existe’, apesar de tudo. Existe toda
uma sabedoria do passageiro, do provisório, do improvisado, da
importância do momento atual, na tradição das festas brasileiras. Ser gente
apesar do cativeiro. Viver o momento que Deus dá.
64
Decreto n. 577. Posturas Municipais de Cuiabá, 30 de novembro de 1880. IMPL- Livro de Registro dos
Decretos e Resoluções.
No intervalo entre o trabalho e a religião quem sabe possa se situar o sentido
da festa, da sua existência permanente na vida humana. Nela as pessoas se divertem, sentem-
se livres da rotina fatigante do trabalho que está implicado na garantia da sobrevivência. Por
outro lado, ela carrega a esperança, as dores revividas do cativeiro. Em momento algum o
devaneio é a perda do sentido doído da saudade, da luta, da perda, um cativeiro dos nossos
tempos modernos. Talvez seja bem por isso que a festa dos negros nas senzalas e os rituais
simbólicos dos índios o foram proibidos, somente controlados. O trabalho do dia seguinte,
apesar da noite agitada, estava garantido.
O que se explicita nas festas é que há de certa forma um sistema de controle de
corpos e costumes, de direito público de ir e vir. Todavia os diversos grupos subjugados
lentamente vão descobrindo o espaço da festa como um espaço de expressões e
manifestações, realidade que é assinalada na pesquisa de Del Priore (1994, p. 88):
Índios, negros, mulatos e brancos manipulam as brechas no ritual da festa e
as impregnam de representação de sua cultura específica. Eles transformam
as comemorações religiosas em oportunidade para recriar seus mitos, sua
musicalidade, sua dança, sua maneira de vestir-se e aí reproduzir suas
hierarquias tribais, aristocráticas e religiosas. [...] sabemos que os
comportamentos das populações coloniais eram simultaneamente violentas,
mas fortemente socializadoras.
É possível verificar no espaço da Festa de S. Benedito fortes expressões do
povo e caracterizá-las como manifestações sociais que se colocam na vida do povo cuiabano
mais pobre e explorado em cena. Os dados de pesquisa divulgados pelo Jornal Diário de
Cuiabá, Edição Especial, demonstram o caráter popular da Festa de S. Benedito e tornam
patente o sentido profundo da construção da identidade popular cuiabana via Festa.
Com as inúmeras leituras realizadas, bem como pelas observações colhidas por
mim na Festa, é possível dizer que o festejar está intimamente ligado à co-memoração. Trata-
se da exaltação de uma pessoa, a conquista de algo que seja importante para um dado grupo,
sobressai a expressão de força e poder de quem promove a Festa e, no caso religioso, está
ligado ao santo de devoção de um determinado grupo de devotos.
Cultuar festivamente um santo sempre fez parte da história do povo brasileiro,
forma que vem sobrevivendo apesar das mudanças permanentes de valores e, sobretudo, do
pensamento religioso no interior da sociedade globalizada. Em Cuiabá encontramos ricas
descrições enraizadas às vezes com um sentido crítico do gosto ilustrado pelos viajantes.
Diversos santos são por eles apontados e compreendidos como formas culturais extremamente
arraigadas à população local.
Uma dessas descrições pode ser encontrada em Cascudo(apud
STEINEN, 1942, p. 115).
O culto dos santos representa um fetichismo extremamente grosseiro para a
camada inferior da população e todas as mulheres de Cuiabá. [...] Ídolos
domésticos em forma de imagens e estatuetas de santos de toda a espécie, e
cheias de enfeites e adornos, não faltam mesmo no rancho mais pobre.
Avançando um pouco mais, pode-se falar que há um sentido para além do
simbólico da Festa, o qual é expresso na contribuição de Otto Maduro (1994):
Em certo sentido, pode-se dizer que a vida humana gira em torno da festa,
move-se no sentido da celebração. Nós lutamos de sol em sol para
conseguir aquilo que alimento e sentido à vida e que, portanto, mereça
ser festejado jubilosamente em companhia de nossos entes queridos:
trabalho, amor, alimento, lar, saúde, liberdade, paz, tempo para descansar,
brincar e desfrutar da amizade gratuita. Lutamos constantemente para
encontrar motivos, tempo, espaço e outros recursos para poder celebrar a
vida sem medo nem culpa; para poder festejar o bom da vida sem causar
sofrimento à vida dos outros.
Otto Maduro na verdade procura compreender a festa como “mapasonde a
humanidade e o sentido da vida cotidiana se alocam e se compreendem epistemologicamente.
Os espaços no interior da festa são espaços socializadores e sistematizadores das vivências
sociais. Não quero dizer com isso que o cotidiano social é transplantado no interior da festa ou
negado, mas sim que ele é ressignificado e ampliado. As relações na festa ganham novas e
maiores dimensões. E quanto maior a festa, maior a adesão e participação de representações
de figuras públicas da sociedade com o objetivo de ser reconhecidas e confirmadas nesses
espaços. Neste sentido, ainda que as festas sejam, no dizer de Hoonaert e Maduro, lugares de
recuperação do sentido da vida, de uma liberdade relativa e de alegria, elas por isso mesmo
padeciam desde suas origens no Brasil de espaço de luta e de hegemonia dos poderes não
populares.
Rita Amaral (1998), com a contribuição de Del Priore (1994), afirma que a
festa, no Brasil, desde o período colonial, constituiu importantes mediações entre os homens e
a natureza, entre eles e seus deuses, entre o povo e o Estado com seus representantes. A festa
era propriedade do Estado, e o povo era um convidado pagante, dizendo de outra forma, o
povo pagava para participar e, se não participasse, era obrigado a pagar o dobro (ROSA;
JESUS, 2003)
65
.
65
Capítulo . Como em todas as funções em que a mara saía fora, com o Real Estandarte, m obrigação os
republicanos que assistem, uma légua distante da vila, de acompanhar. Acordaram que todo o que faltasse às
ditas funções a que são obrigadas, fosse condenado em duas oitavas para despesas da mara, que cobraria o
procurador dela irremissivelmente, sob pena de as pagar por seus bens, para o que logo em mara se
Tudo era feito para atrair a população para a festa, pois a participação do
povo a partir da decisão oficial de realizá-la é imprescindível que ela só
se faz com muitas pessoas, e a importância e poder de fato da Igreja e do
Estado só poderia se expressar no número de pessoas que pudessem cooptar
(AMARAL, 1998, p. 76-77).
O controle sobre o povo era imenso. A população obedecia, apesar da
resistência, e muitas vezes, sem poder, era obrigada oficialmente a fazer reparos e a melhorar
a aparência de suas casas. As ruas vestiam-se de festa a qualquer preço. Como argumenta Del
Priore (1994, p. 37):
A festa efetivamente possibilitava ao grupo social o confronto de prestígio e
rivalidades, a exaltação de posições e valores, de privilégios e poderes.
Tudo é reforçado pela ostentação do luxo e distribuição de largueza. O
indivíduo ou o grupo de família afirmavam com sua participação nas festas
públicas seu lugar na cidade e na sociedade política.
Lendo Del Priore, Rita Amaral, Castro e Hoornaert, é possível entender que a
festa no Brasil foi campo de luta entre a expressão do lúdico festivo e a imposição dos nossos
colonizadores, ou seja, sua formatação como controle e esmagamento. Ela foi transplantada,
na sua formatação, de fora para dentro. Chegou na bagagem dos colonizadores, misturou-se e
se instalou como forma de controle, ordenação dos corpos e espaços de poder, sem sequer
levar em conta o jeito de viver e alegrar-se dos brasileiros. Apesar da imposição dos costumes
vindos da cultura européia, ocorre que, em cada região do país, podem-se encontrar festas
dentro de um universo singular carregado de expressões diversas, quer na melodia, na música,
nos movimentos dos corpos, quer nas roupas, com uma riqueza simbólica em cada motivo que
evoca a festa.
As danças profanas invadiram as festas na Colônia porque permitiam
também à população autóctone participar do culto católico, mesmo que
fazendo-o com duplo caráter ritual. Elas provocavam uma transformação
formal e estética, tanto nas festas quanto nas procissões, e permitiam, quer
ao negro, quer ao índio, identificar-se com o outro’, o colonizador. Elas,
finalmente, incentivaram a canalização da capacidade de resposta das
culturas dominadas frente à situação de conflitos criada com a escravidão
negra e o trabalho compulsório indígena (DEL PRIORE, 1994, p. 55).
averiguassem os culpados e se fizesse carga viva ao procurador das condenações deles. Os estatutos ou Posturas
Municipais de Vila Bela da Santíssima Trindade para o Regimento da República nos casos em que não lei
expressa segundo o Estado do País. Mss, Avulsos, Latas 1753 A, APMT.
A festa no Brasil é por excelência uma mistura da diversidade de inúmeras
culturas que fincaram nestas terras suas raízes, criando, a partir da espontaneidade,
criatividade, gingado de cada cultura, um sincretismo do festar, um jeito brasileiríssimo. O
que Mello Morais Filho (1979) diria, “[...] um poderoso sincretismo das práticas étnicas, que
começaram a se fundir no período colonial”.
Pergunto, seria um início, aqui, de um ritual sacrifical ou de libertação
cultural?
Houve nas festas uma certa quebra do que estava estabelecido como regras
impostas pelas autoridades locais. A regra vinha como controle e ordem devido à grande
participação de grupos sociais diversos. Era necessária, por isso, sua adesão. Esta adesão
implicava o espaço regulado de liberdade. É o que DaMatta (1987) aponta sobre o Carnaval,
que permite, em tempo extremamente exíguo, uma válvula de escape do chiste e da ironia,
para retornar ao controle habitual da situação de opressão dos pobres.
Amaral (1998, p. 47) esclarece o que ela chama de tarefa da festa no período
colonial.
Estabelecer a comunicação entre as culturas foi a tarefa principal da festa no
período colonial, ao mesmo tempo em que, através desta comunicação,
exercitou e estabeleceu o contrato social brasileiro e o nosso modelo de
sociabilidade, que é o da busca de semelhança dentro da diversidade.
Tanto no período Colonial como hoje, a chamada festa social ainda emerge
como oportunidade àqueles que nela se atrevem a participar ostentando e demarcando o seu
lugar no espaço/poder do território social. Nesse espaço, a pessoa, grupo ou família são
reconhecidos e localizados socialmente. Os grupos de pessoas que quiserem receber
publicamente algum reconhecimento, obrigam-se a pagar o preço do espaço de projeção.
Essas festas, pela natureza de sua estrutura organizacional, fazem naturalmente uma
seleção de quem pode e não pode nela adentrar, quem pode pagar as “jóias”, adquirir os
símbolos de status ou a capacidade de negociar com os que detêm o controle do poder de
produzi-las numa sociedade capitalista.
Quando comecei a ler a nossa história dentro de um período demarcado pela
conquista/apropriação das terras brasileiras pelos conquistadores, não pude deixar passar
despercebido a relevância de acontecimentos que imprimiram na nossa história a origem da
cultura do nosso povo, bem como a sua luta e a resistência contra a desapropriação de sua
cultura. Não foi nunca um território pacífico, no sentido que exprime Antonio Cândido (1964)
de que o povo cede ao imposto e resiste ao proposto. Deparei-me com um período marcado
pela opressão escravocrata. Ali encontrei os indígenas e africanos, nossos antepassados,
reduzidos ao controle do chicote e do trabalho forçado. Mas ali, justamente ali, florescia o
culto na senzala, o banzo da África, os terreiros que acessavam o chão da África e
despertavam os orixás nos corpos escravizados. A festa não foi somente a alegria do encontro.
Sempre se fez sentir na perda.
Nessas páginas que a história reservou aos índios e africanos, antes de dar
continuidade, peço licença aos negros para entrar nas suas senzalas e com eles, à noite no
batuque dos tambores da calada da noite, participar de seus cultos e de seu jeito de festar.
Aqui me apoio em Hoonaert (1992, p. 395):
Pode-se dizer que o dia pertencia aos brancos e a noite aos escravos. De
noite os caminhos do Brasil se fechavam aos brancos que se recolhiam nas
casas grandes com medo dos escravos. Estes aproveitavam da escuridão
para exprimir uma vida social que não podia enquadrar-se nos moldes do
sistema colonial e significava a sua identidade como pessoas e como povo.
Daí a grande importância dos cultos mais ou menos clandestinos, mais ou
menos ocultos.
Desses espaços-tempos de controle, de negação e de atrevimento do africano,
os negros ressignificavam o pesado jugo diário e, do seu jeito, batiam os pés no terreiro das
senzalas e evocavam seus orixás, fazendo do cativeiro, através do festar, um espaço aberto de
diáspora de busca legítima de identidade.
É desse rompimento do que estava e está posto como certo para o controle de
muitos, em detrimento da liberdade de poucos, que a festa ganha sentido e força de
representação social. O todo da festa deixa pegadas e sinais de resistências e conquistas que
emergem como um aprendizado libertador anunciando a possibilidade de uma educação
libertadora, como me ajuda a acreditar Marcos Sandrini (1993, p. 81) quando faz menção à
importância da educação libertadora e humanizadora que inclua os desumanizados:
A Educação Libertadora que se solidariza com os desumanizados passa
indignação ética diante da miséria que sofrem os empobrecidos e a injustiça
que isso significa. Se, conhecendo tudo isso, não sentíssemos esta
indignação, não teríamos o direito de ser chamados seres humanos. Não
podemos viver dando as costas a essa realidade, sem negarmos a nós
mesmos, sem abdicar de nossa dignidade humana.
Essa resistência/indignação e luta ganham eco na Festa de S. Benedito em
Cuiabá na Praça do Rosário, onde milhares de devotos são capazes, dentro de um processo
histórico de consciência social cidadã, de levantar bandeiras de luta, de indignação social e de
uma contra-ordem consentida. Suas preces
66
ao santo passam a limpo a vida social, cultural,
política e econômica do Brasil. Eles acreditam na possibilidade de um céu aqui na Terra, e de
que o inferno, repetidamente reiterado na (des)ordem, não está de acordo com Deus. um
juízo fora da história acerca desta história.
A figura do santo é, então, relacionada à sua capacidade de intercessão junto ao
Todo Poderoso, sendo seu seguidor e mensageiro e, desse modo, participa de algum modo do
poder divino de bênção e maldição. O poder sagrado, com sua ambigüidade, fascinosum et
tremendum. O poder é o que importa. Portanto a eficácia simbólica, a capacidade de atuar de
forma sobrenatural e de produzir realidades misteriosas fascinam e ao mesmo tempo assustam
(PARKER, 1995; MAUSS, 1974; CASTRO, 2001).
3.2 O sagrado e o profano: continuidade e descontinuidade da Festa
“É como se dentro de cada festa religiosa existisse uma profana e vice-versa”
(DEL PRIORE, 1994, p. 19).
Nessa seção da pesquisa, tomo a Festa como sentido de continuidade dos
acontecimentos importantes da vida da humanidade, os quais são atualizados na repetição da
Festa, como mencionei anteriormente. Aqui compreendo a Festa de S. Benedito no seu
sentido hebraico circular, como forma de continuidade, renovação e afirmação da cultura
cuiabana.
O sagrado e o profano o vistos na Festa como dois espaços que se interligam
e se comunicam garantindo uma interlocução entre o tempo rotineiro fatigante do trabalho
com o tempo religioso.
Para explicar melhor o que estou dizendo, apoio-me na afirmação de
Durkheim (1989, p. 68):
[...] todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas,
apresentam um mesmo caráter comum: supõem uma classificação das coisas,
reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em dois
gêneros opostos, bem designados geralmente, pelas palavras profano e
sagrado.
Dialogando com Durkheim e voltando o olhar para o período colonial, verifico
que as festas inseridas no calendário, sejam elas civis sejam religiosas, transformaram-se na
66
[...] o princípio de reciprocidade estabelece através da prece [...] rito religioso, oral, diretamente relacionada
com as coisas sagradas” (MAUSS, 1979, p. 146).
ponte simbólica entre o mundo profano e o religioso. Desta forma, quando pensamos na
separação entre profano e sagrado, impõe-se aqui, no que toca à relação com o outro, uma
reflexão sobre o limite. Mas este é sempre parcial, incompleto e, portanto, relacional. Mais do
que separar, ele pode comunicar.
O olhar vivenciado sobre a Festa de S. Benedito me permitiu capturar que o
espaço simbólico da Festa possibilita, muitas vezes, a dualidade expressa por Dürkheim.
polaridades em diálogo tenso, há privilégios a certos grupos que transitam entre os espaços do
sagrado e do profano.
Esses privilégios criaram condições que favorecem a afirmação de expressões
culturais dos grupos dominantes e a negação das devoções nas representações da
espiritualidade africana, geralmente do lado dos mais empobrecidos e da população afro-
descendente e indígena. É completamente desnecessário frisar o caráter racista em curso em
Cuiabá. Os estudos acerca das cotas, a situação de discriminação do trabalho, todas as
expressões têm mostrado o nível de reprodução da sociedade escravista vigente em Cuiabá. A
Festa de S. Benedito tem suas raízes nesta contradição. Os privilégios sociais ou religiosos
alimentaram motivos para os devotos ou simplesmente católicos de tradição assegurarem o
seu lugar no espaço sagrado. Assim foram ressignificando suas crenças por meio dos orixás
travestidos nas imagens dos espaços ritualizados pela liturgia romana trazida pela cultura
européia ou pela devoção popular portuguesa. E foram e são essas as formas de recriar a
própria crença e fortalecer o sentido de continuidade da Festa em meio às descontinuidades
que são impostas pela chamada modernização da Festa, realidade muitas vezes ligada ao seu
controle, aos festantes e aos espaços considerados sagrados.
O passeio pela memória cultural da cuiabanidade via Festa, na relação sagrado,
profano e vida social desse povo festante, revelou a sua teimosia, que resistiu e resiste à
substituição de sua cultura, resistência presente nas transformações sociais de cada época
através de suas manifestações culturais típicas. Lembro-me, por exemplo, das duras restrições
das Posturas Municipais (JESUS, 2002)
67
que se podem ler e entender em Volpato (1993, p.
76), quando ela esclarece:
O espaço do lazer, para as camadas mais pobres da população cuiabana se
resumia nos: Batuques e funções [que] eram controlados pelas Posturas
Municipais; podiam ocorrer com prévio consentimento das autoridades.
67
As posturas eram decretos ou regulamentos elaborados pelas Câmaras Municipais e estavam voltadas para o
benefício e utilidades das vilas, prevendo penas e multas aos infratores, inclusive se fossem “poderosos”. As
Posturas eram uma das dimensões essenciais da esfera de Jurisdição própria das Câmaras e representavam a ação
dessa instituição, traduzindo-se à margem da autonomia camarária.
Também era bastante controlada a realização dos cururus, manifestação
cultural típica das pessoas de Cuiabá, o cururu era visto com desprezo pela
classe dominante, que o criticava enquanto dança e buscava impedir sua
realização por considerá-lo como manifestação própria das classes baixas e,
além disso, motivador de brigas e disputas. Apesar do intenso controle e das
prisões insistentes por esse motivo, os cururus continuavam, reunindo em
seus folguedos pessoas pobres e escravas.
Com essas expressões vivas de sua cultura, o povo cuiabano conseguiu e está
conseguindo conquistar o seu direito legítimo de ser conhecido e valorizado por aquilo que é
próprio do jeito de ser mato-grossense, postergando um legado às novas gerações para não
cair num folclorismo tão-somente ilustrativo. A luta passa pelo sentido e significado dos
traços mais íntimos que formam a identidade do povo cuiabano de origem.
Essa constatação de luta aparece evidente na afirmação de Del Priore (1994, p.
89) quando argumenta que a festa na vida do povo brasileiro é um acontecimento oportuno
para assegurar a continuidade da devoção, do rito, quer do índio, do negro, quer do branco:
Índios, negros, mulatos e brancos manipulam as brechas no ritual da festa e
as impregnam de representações de sua cultura específica. Eles
transformam as comemorações religiosas em oportunidade para recriar seus
mitos, sua musicalidade, sua dança, sua maneira de vestir-se e reproduzir
suas hierarquias tribais, aristocráticas e religiosas.
Essas brechas no espaço da Festa de S. Benedito são caracterizadas como
manifestações culturais que transitam ora como sagradas, ora como profanas, ligadas às
atividades não-religiosas, voltadas para o divertimento.
O entorno da igreja é o lugar das manifestações, sejam culturais, sociais, sejam
políticas, mas em constante ligação com o espaço sagrado da igreja.
Reportando-se a Angela Ales Bello (1998, p. 124), Eliade entende o sagrado e
o profano como uma manifestação de algo que é “diferente” a respeito de uma dimensão
considerada natural, mas, na realidade, eles se concretizam intensamente nas coisas que
assumem desse modo uma conotação que ele define como “sobrenatural”.
Acompanhando a Festa de S. Bendito, percebo que a igreja faz parte de um
espaço diferente, e tudo que está em seu entorno não consegue mudar o que ela representa, ela
mesma representa para os devotos fiéis a S. Benedito uma certeza de continuidade, de
esperança de uma vida melhor mediada por uma força celestial. Trata-se de uma passagem,
como escreve Eliade (1992, p. 29):
A porta que se abre para o interior da Igreja significa, de fato, uma solução
de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo
tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso.
Na Festa de S. Benedito a presença das barracas, das danças e bandas de shows
evidencia a reserva de espaços e horas dedicados ao profano e ao sagrado. Não significa que
essa hora seja programada propositalmente, para os festantes e devotos essa separação não se
impõe, porque tudo faz parte da Festa e é feito para o santo. Como argumenta Sanchis (1996,
p. 199), “[...] uma realidade sui generis, na qual a dimensão religiosa e a dimensão profana se
articulam, para ascenderem juntas ao sagrado”. Isso ajuda a compreender o que acontece no
espaço físico da organização da Festa de S. Benedito e por que criar uma reserva simbólica de
espaços.
Observei que uma organização de espaços negociados dentro do que se
compreende “espaço da festa”, embora ela não esteja restrita à igreja, pois o povo continua
festando em família, “fora” do espaço público e social reservado a ela. Na verdade o tempo
que se abre tem dimensões de universalidade; abraça toda a realidade humana, o casebre, o
paço, a praça, a Igreja, as ruas, os dias e as noites; solda as relações sociais contraditórias,
ricos, pobres, poderosos e fracos, sadios e doentes; diluem-se no novo tempo as diferenças
para reforçá-las. Não é preciso mudança sob a ótica da eternidade. Mas sob a ótica do tempo?
Não uma única teologia, um único lugar social onde se lê a realidade social e política
contraditória.
Ocorre que, nos dias da Festa, os espaços sagrado e profano são mais visíveis.
A cada ano os espaços dedicado à Festa sofrem algumas mudanças, de acordo com a
comissão organizadora dos festejos, até porque a circularidade do tempo não é nunca a
manutenção de sua eternização, mas de sua dinâmica viva. Para além disso, esta mutação
demonstra também, na esfera social, um vel continuado de alianças negadas ou
consolidadas e confirmadas na obtenção de apoios, na realização social e econômica da Festa.
E isso inclui pactos políticos.
Em 2006 os festeiros ganharam o patrocínio de dois palcos de estrutura
metálica, que foram conhecidos como palco (1) e (2), que fazem, hoje, parte da estrutura sob a
administração da Paróquia do Rosário. No período da manhã, o palco (1) virava altar do santo
e, à noite, espaço de apresentações culturais diversas. Compreendo que para que essa
separação fosse mais tranqüila, a comissão da Festa de 2006 dedicou o palco (1) à missa e às
apresentações culturais, e o palco (2) para apresentações de bandas de shows, sendo este
liberado para dança e ritmos diversos. Havia sempre uma aura de sacralidade no primeiro
palco, espaço, portanto, demarcado, tabuado para atividades de cunho hierático ou
educacional, no sentido estrito. O palco 2 acabou tendo uma função pro-fana, pro (antes)
fanum (templo), isto é, antes, anterior ou fora do espaço do templo.
Durante o dia o palco (2) virava Praça de Alimentação. Percebeu-se que os
dois espaços, sagrado e profano, se cruzavam constantemente na Festa de S. Benedito e se
comunicavam. Todavia havia uma reserva e um limite simbólico que distinguia um do outro.
De alguma maneira o profano era contaminado pela presença transcendente do santo e dos
cultos sagrados, e como tal era tratado.
Voltando à igreja de S. Benedito como espaço religioso, observei que ela está
dentro do local da Festa, ou melhor, ela está no centro da Festa, que a desborda. Ela se
constitui no espaço dedicado exclusivamente ao sagrado, às coisas espirituais, ao rito
devocional e organiza os demais espaços ao seu entorno. Eliade chama de ponto fixo à reserva
simbólica dedicada para o encontro do santo com o devoto, pois desse ponto ele se comunica
com a divindade representada no santo. O templo é o espaço que permite esse encontro, pois
ele já é por excelência um espaço sagrado:
O templo constitui, por assim dizer, uma abertura’ para o alto e assegura a
comunicação com o mundo dos deuses. Todo espaço implica uma
hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um
território do meio cósmico que envolve e o torna qualitativamente diferente
(ELIADE, 1992, p. 30).
Para Durkheim (1989, p. 72):
A coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve, não pode
impunemente tocar. Certamente essa interdição não poderia desenvolver-se a
ponto de tornar impossível toda comunicação entre os dois mundos; porque
se o profano não pudesse de nenhuma forma entrar em relação com o
sagrado, este não serviria para nada.
Isso significa também a possibilidade de uma certa transgressão controlada
68
.
Entre um espaço e outro da Festa, não se pode negar que o imperativo de
um poder local da igreja ou de algum grupo como que por debaixo dela, querendo se impor e
controlar os “dois espaços” em nome de uma ordem, que lembra mais uma vez as velhas
Posturas das Câmaras Municipais. Como esclarece Câmara Neto (2000, p. 4):
68
Historicamente o espaço cúltico e religioso da Igreja do Rosário teve momentos inéditos de transgressão.
Voltarei a este ponto posteriormente, tanto no que se refere à Praça quanto ao interior da própria Igreja.
A Festa de São Benedito, ‘devoção por excelência do elemento servil de
todos os tempos’ referência natural ao negro e ao branco pobre assim
como tantas festas religiosas onde se constatava a mescla do sagrado com o
profano, atraiu em diversas regiões do Brasil a ira de uma igreja que
passava por um período de encerramento em sua redoma doutrinária.
Poderíamos compreender, à luz de Câmara Neto, que elementos classistas e
racistas formam o painel de luta, nada pacífica, que está em curso na Festa de S. Bendito,
tanto da parte eclesial como da cuiabania, pois o Conselho Paroquial da Igreja é responsável
pela palavra final anunciando os festeiros de cada ano, fruto de uma trama política delicada,
quando a cuiabania busca interferir na escolha dos nomes dos festeiros numa direção
explicitamente voltada para interesses de mercado e partidária. Todavia parece-me que esse
controle por parte dos representantes da Igreja é negociado e redirecionado com a intenção de
organizar a Festa com os devotos, num certo ponto de equilíbrio que oscila perigosamente
entre interesses antagônicos. A cada ano, o fiel da balança se movimenta com ganhos para um
lado ou outro.
No espaço festivo pode ser verificado que o devoto envolvido diretamente com
a Festa investiu em formas de garantir na Festa e pela Festa muitas das expressões da cultura
cuiabana, bem como fazer dela um momento oportuno para mobilização social dos
participantes.
Desse modo, quando olho para a Festa, posso capturar a riqueza de diversidade
cultural que ela traz, e é por isso que ela foi estudada e entendida como veículo educacional,
dado que nela se constituem identidades, finalidades, processos, projetos, congregando a
diversidade numa certa unidade precária que se encontra explicitada por suas formas e
conteúdos. De alguma forma o povo que a festeja, une-se e se identifica com os elementos,
símbolos ou espaços que a congregam. Há algo que a torna diferente, única.
Foi o que explicitou Geertz (1989), quando verificou que os símbolos sagrados
funcionavam para sintetizar o ethos de um povo, o tom, o caráter e a qualidade de sua vida,
seu estilo e disposições morais e estéticas.
Nesse sentido Ribeiro (1982, p. 44) evidenciou de modo demasiadamente
otimista que:
A festa como instrumento, representada pelo cotidiano, pelas famílias, pela
experiência de vida, é uma escola, cujo sujeito pedagógico é o próprio povo,
que orienta e revigora comportamentos, faz participar de crença e valores,
perpetuando um universo simbólico.
A festa sentido ao existir dos devotos envolvidos no movimento que ela
suscita, seja na perspectiva do sagrado seja do profano. É isso que levaria os festantes, na
minha percepção, à vivência de experiências de forma intensa, a ponto de alcançaram
milagres, uma experiência compreendida e circunscrita para além do horizonte das
possibilidades humanas.
3.3
Irmandades (ambivalência), espaço/tempo da contradição, inclusão social ou outra
faceta da escravidão?
A trajetória histórica da humanidade revela as formas concretas e simbólicas que
ela encontrou ou assumiu para dialogar com a realidade por ela também criada. Sendo assim,
nesta seção da pesquisa, dialogo com uma dessas formas, elegendo, para tanto, a Irmandade,
expressão de mediação organizativa que está inserida significativamente na história da Igreja
Católica no Brasil. Meu intento é mostrar, sinteticamente, que o surgimento da Irmandade que
se espalhou pelo Brasil, chegando em Cuiabá, Mato Grosso, como grupo de organização laica
responsável pelo poder religioso e como autoridade de expressão social local, está na raiz da
organização da Paróquia do Rosário. Para tanto farei apenas uma abordagem para
compreender, captar e localizar, através do trabalho das confrarias, o significado e a
contribuição ou ainda a sua referência na sociedade brasileira, de modo particular na
sociedade cuiabana e mato-grossense, de uma representação de poder laico negro que parece
negociar com o poder branco, em condições de desigualdades, resultando em grandes
contradições em nível social, simbólico, econômico e religioso.
Nas veredas da história da Igreja
A história do surgimento da Igreja Católica no Brasil me ajuda a entender a
formação da sociedade brasileira principalmente nos séculos XVI e XVIII. Não se pode
compreender a Igreja como ela existe historicamente hoje, sem equívocos graves. A igreja
entrou no Brasil sob o signo do Tratado do Padroado. Quem administrou a igreja desde esse
período até a República, em 1889, foi o Estado, melhor dizendo o Império. Portanto os
interesses do Império se convertiam também nos interesses da Igreja. Não havia por parte da
Igreja qualquer independência, nem simbólica, administrativa, nem de recursos para sua
manutenção. Quem sustentava os recursos, o pagamento do clero, o culto, era o Império.
Quem determinava a vida das Igrejas, transferências, controle moral, interesses na catequese,
era o Estado.
Nesse período, século XVI e XVII, o clero era pouco expressivo em número, o
que muitas vezes impedia a sua existência em todos os cantos do país. Por outro lado, aqui
não existia um clero secular ligado à igreja local, existia um clero formado pelas Ordens
Religiosas que tinham uma certa independência e interesses definidos em suas missões,
dominicanos, franciscanos, jesuítas etc.
As distâncias eram enormes e se levavam dias para se deslocar de um local
para outro. Os poucos sacerdotes que conseguiam chegar aos lugares considerados
incivilizados, levavam o pensamento do colonizador e de uma igreja formalista, ou seja,
conduzir a população dos espaços colonizados pelos portugueses ao controle do poder do
papa e do rei, ambos distantes da realidade brasileira, mas atuantes por meio de seus
representantes, o que impulsionou, deu força e poder às irmandades.
O controle forçado sobre a população, através da imposição de um poder único
a ser obedecido sem ao menos levar em conta a realidade da cultura local, permitiu que se
desenvolvesse um clima social de privilégios, financiados pela exploração do povo e das
riquezas da terra, e uma grande empreita, em Mato Grosso, que era a civilização dos
selvagens procurando a posse pacífica de seus territórios.
Os privilégios foram tantos que forçaram os leigos a se mobilizarem dentro de
uma vida laica religiosa formando confrarias (HOONAERT et al., 1992, p. 234)
69
,
irmandades, organizações que, pouco a pouco, direcionavam e ordenavam o cotidiano das
capelas e espaços religiosos.
Sob a bênção e proteção da igreja e, o mais importante, sob a submissão à
coroa portuguesa, inúmeras confrarias ou irmandades nasceram e se difundiram com vários
objetivos, dentre eles a dedicação aos cuidados das igrejas, construção de capelas e hospitais,
cuidados com os enterros, assistência social aos pobres necessitados, porta de inclusão no
sistema da época, reconhecimento social, direito de ser enterrado na igreja e controle do poder
local e do poder religioso.
69
As confrarias são associações religiosas nas quais se reuniam os leigos no catolicismo tradicional. dois
tipos principais de confrarias: as irmandades e as ordens terceiras. As irmandades possuem certa localização
específica, onde atuam, e são confirmadas e erigidas pelo poder eclesiástico e estatal local, ao passo que as
ordens terceiras são irmandades de caráter internacional ligadas às grandes ordens religiosas e que possuem
estilo de vida, estatuto, conforme seus fundadores.
Segundo Siqueira (1995, p. 74), as Irmandades ou Confrarias expressaram os
princípios das duas maiores forças comandantes do mundo colonial: a Igreja e o Estado
absolutista.
Já para Hoonaert et al. (1992, p. 387):
Todo espaço da Igreja convergia para a imagem e os percursos do povo
também. Em torno da imagem se construía a igreja, se celebrava a festa.
Toda a vida da confraria era uma caminhada, uma ‘procissão’ em torno da
imagem do santo ou da santa
.
Lendo Hoonaert et al. é possível entender que a força das irmandades no Brasil
foi mais acentuada no período colonial e se estendeu com vigor até a época imperial. As
confrarias nasciam com o objetivo de promover a devoção a um santo (a), articulavam-se
entre si e erguiam uma capela ou oratório em honra ao santo.
Conhecendo a história do Brasil e, de modo especial, de Cuiabá, vou
entendendo que as irmandades não nasceram como mera e simples organização de um grupo
que queria somente homenagear e venerar um santo, uma vez que ela tinha direito ao
reconhecimento público e carecia de aprovação e bênção do Rei de Portugal que se colocava
como um “legítimo” representante de Cristo na terra.
Parece personificar-se aqui, de antemão, uma forma hierarquizada de
distribuição de poder nada diferente do que postula DaMatta (1987) sobre a edificação na
terra da estratificação do mundo português. O rei, representante de Deus, não terá que ouvir o
povo nas suas necessidades e fará valer a sua decisão legitimando ou não os clamores do povo
como uma decisão dos céus. Uma vez legitimada a Irmandade, criavam-se meios para se
manter e desenvolver, com estatutos aprovados pelo papa, funcionando como uma instituição
pública reconhecida socialmente.
Como foi dito, para uma Irmandade funcionar, ela precisava ser aprovada e
reconhecida, foi o que ocorreu com a Irmandade de S. Benedito. A “Gazeta Official”,
publicada em Cuiabá no século XIX, tem exemplares guardados para fins de pesquisa no
Arquivo Público de Mato Grosso, os quais trazem o Pedido de funcionamento da Irmandade
de S. Benedito em Cuiabá.
Para melhor entendimento, acho oportuno transcrever o texto do documento
sobre a referida Irmandade, o qual veio a público na comemoração do 50º. aniversário da
Paróquia Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito em Cuiabá em 1995. Aqui me apoio no
livro Tombo da Paróquia (SILVA, 2003, p. 11-12) que oferece as informações mais precisas
da época: Em 1828, os Confrades de São Benedito pediram a Dom Pedro I licença para
funcionamento oficial. Vejamos somente a parte desse pedido
70
:
Dizem os Devotos, Rey, Juiz, Officiaes e Irmãos de Meza da Confraria do
Glorioso S. Benedito, cuja Veneravel Imagem se acha collocada em hum
dos altares Collateraes da Capella de Nossa Senhora do Rozario da cidade
do Cuiabá que 60 annos se congregarão os Devotos da mesma veneravel
imagem, construirão huma Confraria sem alcançar a Imperial Permissão
necessaria para isso, porem reconhecendo sempre ser a dita Confraria da
Jurisdicção Imperial, por ser pleno jure pertencente ao Grão Mestrado,
Cavallaria e Ordens de Nosso Senhor Jesus Christo, humildes, e submissos
prostão-se os Supplicantes ante o Throno de Vossa Magestade Imperial,
rogando que por bem do Serviço de Deos, Vossa Magestade Imperial se
digne Approvar a instituição da dita Irmandade, revalidando-a com a
Imperial Sancção, sem embargo da nullidade comque foi instituida, e
confirmando os vinte seis Capitulos de Compromisso, que com esta
apresentão para servir de regra à mesma Confraria.
Com o advento da República, os Irmãos de S. Benedito pediram também ao
Bispo de Cuiabá, Dom Carlos Luiz d’ Amour, autorização para o funcionamento da
Irmandade. Eis uma parte do texto:
Fazemos saber, que attendendo ao que por sua petição Nos requererão os
devotos do Glorioso São Benedito désta Cidade; Havêmos por bem
conceder-lhes licença, como pela presente Nossa Provisão lhes
Concedemos, para se consttituirem em Irmandade, sob a invocação do
mesmo Glorioso Santo; e assim mais para se reunirem, afim de que possam
em congregação formular o projecto de Compromisso, pelo qual se devem
reger, e que será submetido à nossa aprovação
71
.
É bom compreender a natureza de algumas Irmandades, que foram e ainda são
importantes para o cenário religioso e social brasileiro, como também corrigir o senso comum
de que elas nasceram propriamente com um caráter social, pois, na verdade, as razões
fundantes eram de caráter devocional e religioso. Com ressalva, por exemplo, a Irmandade de
Misericórdia (HOONAERT et al., 1992, p. 235)
72
que assistia o necessitado nas suas penúrias,
provavelmente aos moldes de uma política assistencialista.
As misericórdias eram Irmandades com estatuto próprio, com uma
finalidade religiosa e assistencial ao mesmo tempo. Pertencendo às
70
Confronte o Livro Tombo digitalizado da Igreja do Rosário e S. Benedito - Pedido de Licença feito a
Dom
Pedro I
para funcionamento da Irmandade de São Benedito em Cuiabá, 1828.
71
O texto inteiro de autorização para o funcionamento da Irmandade
encaminhada ao bispo de Cuiabá da época,
encontra-se no Livro Tombo digitalizado da Igreja do Rosário e S. Benedito, 1897.
72
A única irmandade que manteve um aspecto nitidamente social foi a Irmandade da Misericórdia.
Misericórdias, os leigos de modo ativo na vida da Igreja, e faziam jus a
benefícios de ordem espirituais. Ao mesmo tempo, porém, através de suas
esmolas e de sua atividade de assistência social aos pobres e enfermos
davam sua colaboração para melhorar de alguma forma as condições de
vida da sociedade (HOONAERT, 1992, p. 236).
A origem da Irmandade da Misericórdia, ou simplesmente da Misericórdia,
como era conhecida, remonta ao fim da Idade Média. No Brasil elas começaram a existir
desde o nascimento das principais localidades do país, como Rio de Janeiro e Bahia. No
nascedouro das cidades certamente existiam necessitados, pobres, e, pelas distâncias entre
uma cidade e outra, as dificuldades de sobrevivência eram enormes, como provavelmente a
falta de saúde. Por isso rapidamente as Misericórdias se constituam junto a hospitais. Em
Cuiabá existe a Santa Casa de Misericórdia. Outra entidade que tem o mesmo caráter social é
a Irmandade de S. Vicente de Paula, com um trabalho voltado para a periferia. Erigida no
Brasil por Francisco Ozanam, teve uma espiritualidade revolucionária próxima à
contemporânea Teologia da Libertação, mas caindo na inércia de um catolicismo formalista,
longe de seu berço de constituição.
Uma irmandade clássica no país e que aqui também teve sua expressão é a
Irmandade do Santíssimo Sacramento, formada basicamente por homens que tinham
privilégios, pois conforme Almeida (1957) “[...] esses homens ocupavam posições de
destaque nas missas em relação aos demais, por estarem mais perto dos ministros sacerdotes”.
Segundo as Constituições, na Bahia, nem sequer os homens podiam entrar
na capela-mor da Igreja sob pena de excomunhão, a o ser para cantar,
tanger e ajudar os ofícios. Esta era a função específica dos irmãos do
Santíssimo que se sentiam altamente honrados por essa forma de
participação no culto da igreja (ALMEIDA, 1957, p. 31).
Este fato pode ser constatado até na arquitetura das igrejas brasileiras, que
foram edificadas com espaços interiores que põem visível a separação de corpos, denotando
espaços de privilégio de alguns grupos.
Uma arquitetura hierarquizada na terra como no céu, os anjos e arcanjos,
santos... Homens de bem, considerados homens fortes, e homens fracos de poucos bens, estes
últimos geralmente discriminados pela cor da pele também.
Essa realidade aparece nitidamente na arquitetura da Igreja de Nossa Senhora
do Rosário e S. Benedito em Cuiabá, Mato Grosso, havendo espaços de privilégio na
apropriação do sagrado reservado para um dado grupo, onde se pode ver um piso superior e
outro inferior. Possivelmente seja por isso que os negros e pobres freqüentadores da capelinha
dedicada a S. Benedito, espaço geminado à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, costumavam
assistir à missa na capela dedicada a S. Benedito. Isso pela territorialização do espaço, pois
toda territorialização inclui e exclui, situação que já mencionei neste trabalho.
Encontrei em Mato Grosso, na Igreja do Rosário, a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário que surgiu e se difundiu desde o século XVI no Brasil, com o firme
propósito de propagar a devoção ao rosário de Nossa Senhora.
A reza das contas do rosário para o povo discriminado e marginalizado
socialmente era algo mais fácil de ser assimilado pelo fato da repetição da oração. Em torno
do rosário, a Irmandade congregava homens e mulheres de cor.
Desde o aparecimento das primeiras confrarias do Rosário, começa a haver
uma descriminação entre irmandades de brancos e irmandades de preto.
Progressivamente a ser constituídas exclusivamente pelos de raça preta,
sendo esses livres ou escravos (HOONAERT et al., 1992, p. 238, grifos
meus).
Junto de Nossa Senhora do Rosário, quase sempre vamos encontrar também S.
Benedito, o santo negro conhecido como milagroso, irmão e padroeiro dos negros e escravos.
Conhecido em Cuiabá como protetor da cidade, tamanha é a devoção dos mato-grossenses,
que o santo veio se tornando cada vez mais conhecido e acolhido em todo o Estado.
Algumas irmandades elegiam um santo negro como padroeiro, o que parece
ser uma identificação não somente pela cor, mas também pela sua resistência e luta em favor
dos pobres e injustiçados. O negro ou escravo via no santo a mediação entre os céus e a terra
na esperança de serem atendidos nas suas dores e lamentos e de serem reconhecidos na sua
dignidade como criaturas humanas e filhos de Deus. S. Bendito é tão amado quanto temido.
Como dizem os devotos do santo: - “Com S. Benedito não se brinca!”
De acordo com Torres (1968, p. 74), “[...] mesmo o padre podia ser preto.
Também os santos”.
As irmandades de pretos também se esforçavam para adquirir bens como as
irmandades dos homens brancos. Isso trazia alguns conflitos, pois a ostentação dos bens do
membro da confraria, por ser escravo, era vista como “luxo excessivo”. Nesse percurso pude
encontrar manifestações que me levaram a entender fatos ocorridos com mulheres negras que
lutavam pela dignidade de sua raça e classe na sociedade e, por isso, se expunham muitas
vezes publicamente com gestos simbólicos de pertencimento e de reconhecimento, a ponto de
“As negras, em Ouro Preto, polvilhar de ouro as cabeças e, contritamente, iam lavá-las na pia
de pedra à porta da Igreja do Rosário” (HOONAERT et al., 1992, p. 384).
Este fato me leva a entender que, se os brancos podiam ostentar riquezas e
privilégios, os negros também estavam exigindo e lutando por esse direito. Era uma forma de
se fazerem presentes e serem vistos para serem reconhecidos, que a ostentação colocava as
pessoas no seu devido lugar.
Verifica-se aqui que não se geravam conflitos somente em torno de classes e
raças. O que estava por baixo bem-colocado era o desejo de certas confrarias de serem
reconhecidas no espaço demarcado pelos portugueses como espaço brasileiro e assim escapar
do controle civilizatório lusitano imposto. Nota-se que uma negação ou repúdio contra a
acomodação em que viviam certas confrarias carregadas de privilégios, privilégios estes que,
ao logo dos anos, foram diluindo as confrarias e reduzindo-as a número cada vez menor.
Nunca houve tratamento isonômico. Esses conflitos faziam com que o branco
vedasse a entrada de homens pretos nas irmandades brancas, mas os brancos sempre forçavam
a entrada nas irmandades dos pretos. Ocorria que “o preto por ser escravo não tinha
personalidade jurídica”, e, por essa brecha institucionalizada, o homem branco queria entrar,
permanecer, controlar e mais uma vez se colocar como superior.
A presença do homem branco junto ao negro era niveladora (no sentido que
nivelava a diversidade das nações africanas existentes no Brasil) e hierarquizadora (no
sentido que introduzia a ética do privilégio e conseguia desta forma atrair os negros para o
sistema). Hoonaert et al. (1992, p. 386) conclui que, desta forma, fica bem claro que as
irmandades provocaram em parte a progressiva integração dos africanos na sociedade
colonial. As irmandades conseguiram em parte “salvar” a identidade e a dignidade dos
africanos no Brasil.
O que aparece salientado nas conclusões de Scarano (1976, p. 150) é que: “As
confrarias serviram de veículo de transmissão de diversas tradições africanas, que se
conservavam pela freqüência dos contatos, pela conservação da língua e outras razões
semelhantes”.
Com ele concorda Roger Bastide (1971, p. 79), ao argumentar:
O que sabemos é que em toda parte onde existiam confrarias de negros a
religião africana subsistiu, no Uruguai, na Argentina, no Peru e na
Venezuela, e essas religiões africanas desapareceram nesses países quando
a Igreja proibiu as confrarias de se reunirem fora da igreja para dançar.
As vidas das Irmandades se expressavam e se concentravam nas festas, ali elas
revelavam a sua força, e isso não significava ausência de conflitos, pelo contrário, eles se
acendiam, pois até a localização da igreja onde a festa acontecia era uma questão de
privilégio. Basta dar uma olhada na espacialização das igrejas no Brasil para entender de qual
confraria estou falando. Quanto mais alto o local da igreja ou centralizada ela for, maior era o
privilégio da Irmandade. De todas as formas o homem branco, o colonizador, buscava se
projetar e, junto com ele, os símbolos que representavam o seu poder. E a igreja não escapou
dessa projeção.
O Rosário dos pretos quase sempre perdeu esta questão do local, sendo que
o local mais em vista era reservado para as Ordens Terceiras do Carmo ou
de São Francisco que tinham gente de influência capaz de manipular as
doações de terrenos em próprio benefício. Por isso observamos que, nas
cidades Setecentistas do Brasil, as igrejas do Rosário dos pretos e as dos
‘moços pardos’ ocupam um lugar mais discreto, menos central
(HOONAERT et
al.
, 1992, p. 386).
Lendo o Livro Tombo da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito
e outros escritos setecentistas, encontrei que na referida igreja funcionavam outras confrarias,
dentre elas Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, S. Benedito e São Vicente de
Paula:
De três irmandades restam escritos: de Nossa Senhora do Rosário - a
imagem da santa encontra-se no centro do rétabulo da capela-mor-, de São
Benedito -,a imagem encontra-se no retábulo a leste do arco cruzeiro da
nave da igreja e a de o Francisco de Paula a imagem encontra-se no
nicho do altar-mor. Consta memória apenas oral de ter funcionado a
Irmandade de Nossa Senhora do Carmo, cuja imagem encontra-se no
retábulo a oeste do arco Cruzeiro ( SILVA, 2006, p. 14).
Uma observação que acho necessária e foi mencionada por alguns pesquisadores
da arte sacra é a luxuosidade das igrejas, parecia um contraste de dois mundos, o mundo do
povo pobre e a grandeza do espaço sagrado. Basta visitar algumas de nossas igrejas
construídas no período setecentista no Brasil para ver a sua suntuosidade. São verdadeiras
obras de arte, peças e objetos de pesquisas que permitem entender a história e a cultura do
povo, embora haja pesquisas que dizem que as igrejas de Cuiabá, de estilo barroco, não
chegavam a ser tão suntuosas quanto as de Minas Gerais.
O povo, marcado pela escravidão e a pobreza, do seu jeito encontra nas
irmandades a possibilidade de se expressar e continuar vivo. Nasce assim as irmandades
chamadas de “homens pretos”, como a que existia na Igreja do Rosário, em Cuiabá, a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
As confrarias tiveram sua fase áurea na Colônia e Império em razão de três
motivos, a saber: servindo de contraponto ao poder dos latifundiários, eram
as confrarias um local de influência para os comerciantes da região. Some-
se a isso a necessidade das pessoas pobres acorrerem a elas pela
necessidade de reconhecimento e convívio social. Por último o próprio
poder exercido na igreja local, poder esse muitas vezes conseqüência da
escassez do clero (CÂMARA NETO, 2000, p. 82).
As relações no interior das irmandades não eram sempre pacíficas, operavam-
se conflitos levando-as a se dividirem, nascendo assim as irmandades de pretos, brancos e
pardos. Para exemplificar tomo um fato que aconteceu na Bahia, onde a irmandade do
Rosário se dividiu em três: irmandade do Rosário, dos brancos e pretos e de Guadalupe dos
pardos, chegando esse último grupo a mudar até o nome da padroeira.
Essa separação, que não é por acaso, leva a entender, a partir da pesquisa de
Hoonaert et al. (1992), que o que representava tradição de passividade para os brancos, para
os “pretos” era uma leitura possível de liberdade, de ser visto como gente. E, talvez no limite,
dizer que a questão dos “santos” está menos para as questões dos céus do que as questões
econômico-sociopolíticas que vigem na terra. Poderia esta hipótese estar presente na
compreensão da Festa de S. Benedito, em Cuiabá?
Isso me permite entender por que Hoonaert et al. (1992) escrevem “[...] que
não era possível fazer irmandade de brancos com pretos”. As causas de organizações e lutas
não eram comuns, isso levava possivelmente a conflitos internos de toda sorte.
Diante dessa realidade, é possível verificar que desde os primeiros séculos
sinais de conflitos e embates sociais na formação colonial do Brasil sob o manto das
irmandades, como história de conflitos sociais.
Por debaixo dessas organizações, verificam-se as contradições de uma sociedade
dividida por classe e cor, uma com mais privilégio do que a outra até mesmo na hora da
construção da capela do santo padroeiro. “[...] divisões de irmandades pobres, como as dos
escravos, contentam-se em conseguir um altar lateral para cultuar seu santo numa capela ou
igreja já dedicada a outro santo protetor (HOONAERT et al., 1992, p. 235).
Foi isso que certamente aconteceu em Cuiabá na Igreja Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito. Ao lado da igreja dedicada a Nossa Senhora do Rosário encontra-se
geminada a capela dedicada a S. Benedito das curas. Uma igreja construída pelas mãos dos
escravos, porém não para os santos que representavam a sua fé.
Por outro lado, o branqueamento religioso anunciado pelas pesquisas de
Cartaxo Rolim et al. (1978) acontecia apenas ao nível das imagens e não das crenças, de sorte
que também o altar central da Padroeira da Paróquia do Rosário ostenta imagens que não se
hegemonizam com a crença dos fiéis, mas mesmo assim a Igreja continua marcada como a
igreja de S. Benedito.
Os negros concebiam a religião com os olhos e sentimentos de uma pátria
distante, a mãe África. Por isso o seu jeito de festar e se organizar em comunidades
certamente começou a mexer com o poder da época que armou diversos artifícios de regras de
boa convivência como forma de monitorar os passos dos negros, sem falar na entrada de
homens brancos nas irmandades negras com o objetivo de legitimação da irmandade perante a
sociedade local que não reconhecia juridicamente o negro, ex-escravo ou escravo.
Um outro dado importante é que as capelas hoje dedicadas a S. Benedito como
padroeiro datam de fundação muito recente. Porém a que está localizada na Igreja do Rosário,
embora tenha a arquitetura simples, nunca foi objeto de mudança para outro espaço. Parece
que o lugar foi consagrado ao culto do santo, sendo um território demarcado e restrito à
devoção. Afinal foi nessas proximidades que a cidade nasceu, nesse morro e no seu entorno
foi extraído muito ouro que deve reluzir ainda hoje nas terras portugueses.
Quem olha a Igreja do Rosário e não conhece a história, pode achar que no
espaço uma única igreja que parece ser mais de S. Benedito do que de Nossa Senhora do
Rosário. Por isso, atualmente, a igreja é conhecida como Igreja de S. Benedito, embora,
teimosamente, a pastoral da Igreja insista em divulgá-la como Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito.
Segundo os relatos orais e o Livro Tombo da paróquia de Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito, a Irmandade de S. Benedito assumiu e organizou a Festa até 1980,
quando então foi dispensada deste encargo, por conflitos óbvios de orientação pastoral e
política, pelo então Conselho Paroquial da época, formado com representação de todas as
comunidades da paróquia, entregando a partir de então essa obrigação à paróquia e aos
devotos de S. Benedito. É importante notificar que houve, com a edição do Código de Direito
Canônico, um poder centralizado no pároco por parte da igreja romana, de sorte que ele
passou a gerenciar e legitimar ou não as atividades no interior da paróquia, cuja intervenção
sanou algumas situações conflitivas, na época, entre as quais o fato de a festa se dar fora do
espaço da igreja, os recursos serem aplicados na reforma do Clube Dom Bosco, para
realização da Festa de pessoas ricas, e as missas do tríduo, celebradas na Igreja, receberem
grande parte dos festeiros em estado de alcoolização lastimável.
Um fato marcante da década de 80 repercute ainda hoje na organização da
Festa de S. Benedito. Como a Festa era uma atividade da Irmandade do mesmo santo, ela
tinha total liberdade para organizá-la, divulgá-la, fazer a escolha dos festeiros, sem nenhuma
prestação de contas à paróquia. Os padres vieram a assumir a organização e constituição
formal da Paróquia do Rosário e São Benedito em 1948, segundo o Livro Tombo, pois até
esta data as irmandades eram responsáveis pela capela e se constituíam no poder local
religioso e social. Como me informou o historiador jesuíta padre Silva (2006, p. 15), “[...] a
Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos levantou a primeira capela antes de 1727”.
Quando me pergunto, e as pessoas me perguntam: - A festa de S. Benedito
nasceu com os pobres e negros, como é que ela se transformou numa festa da sociedade
cuiabana com a presença dos mais privilegiados socialmente?
Ao longo das páginas desta pesquisa vou me aproximar da resposta e entender
os caminhos que os devotos da Festa foram tomando para chegar ao que ela é atualmente.
Possivelmente a história comece a ser esclarecida.
As muitas leituras feitas sobre a história dessa época apontaram que as
irmandades, formadas basicamente por negros, foram sofrendo o processo de branqueamento,
o que as levou a ceder o seu espaço às pessoas de representação social da cuiabania, os
chamados homens fortes, porque detinham ou controlavam algum tipo de poder da época. É
possível ainda que a necessidade de cobertura para legalização dos cultos afros tenha levado,
como é visível em todo o país, ao seu patrocínio por pessoas ricas, com prestígio e, sobretudo,
com poder político. As casas de umbanda ou de batuque sempre tiveram como patronos
políticos de renome. Há na Festa de S. Benedito uma dualidade, o seu caráter católico e
africano, por isso é possível que estes patronos brancos acabassem por integrar a irmandade
existente e assumissem o controle da Festa.
A Festa que, inicialmente, era de negros, promovida por pessoas simples e na
sua maioria negra ou afro-descentente, devido ao processo de branqueamento provavelmente
passou a ser uma “Festa de gente forte”, pois, segundo seu Nonô (CADERNO DE CAMPO,
2005), em depoimento para esta pesquisa, “[...] e muitas pessoas da sociedade cuiabana foram
atraídas ao santo por considerá-lo milagreiro”.
Pois bem: no contínuo processo de embranquecimento das festas de São
Benedito, que em Cuiabá, particularmente, se efetivou, ao longo da segunda
metade do culo XIX e em todo o decorrer do século XX, será justamente
aquele ‘ponto nevrálgico’, a congada
73
, que desaparecerá como
73
A congada constitui uma demonstração rica do folclore, versão similar à da luta entre mouros e cristãos, com
danças, adereços africanos, que sempre faziam parte, no Estado de Mato Grosso, das festas de santos. Não se
deve confundir com o Congá, forma africana de culto, similar à umbanda, que possui a reputação popular
componente das ditas festas. Por volta de 1868 ainda se realizam congadas
em Cuiabá
74
, nas festas de São Benedito. Depois elas vão raleando, até o
desaparecimento quase total (ROSA, 1976, grifos meus).
As danças do Congo (ROSA, 1976)
75
eram vistas como festa de gente pobre ou
miúda, enquanto as “Touradas e Cavalhadas
76
”, de gente bem (ou de bens), ambas fazendo
parte da festa do Divino Espírito Santo.
Segundo Rosa (1976), quando ocorre a suspensão do que se chamam “aspectos
profanos” na festa do Divino na década de 30 por ordem do bispo D. Aquino Corrêa, eles
paulatinamente foram transplantados para a Festa de S. Benedito. Assim esclarece Rosa
(1976) sobre as conseqüências das restrições do bispo:
Com as restrições episcopais, é quase certo que boa parte dos componentes
dessas festas tenha se deslocado para São Benedito. Enquanto o processo de
embranquecimento afirmava-se em Cuiabá, em Vila Bela a preservação das
raízes negras da festa de São Benedito era favorecida principalmente pela
predominância quase absoluta de negros em sua população. E hoje, a mais
pura congada da cuiabania de ser a de Vila Bela; o Rei Negro é o
vitorioso.
Na ocasião dos festejos, a igreja era somente o local da missa ou culto
religioso ao santo, o evento se dava mesmo era na casa da festa, um lugar dedicado ao baile e
aos comes e bebes. Cada festeiro promovia a sua festa e definia então onde gastaria os
recursos arrecadados, situação apresentada na etnografia da Festa de S. Benedito, neste
trabalho.
O que verifiquei no processo histórico de Cuiabá foi a presença da força das
Irmandades, de forma que a entrega da organização da Festa para o Conselho Paroquial da
Igreja do Rosário não foi pacífica. Houve, orquestradamente, a opinião de todos os associados
na manutenção da Festa tal qual antes existia, considerada Festa tradicional e histórica, que
era quebrada por inovações introduzidas por pessoas de fora de Cuiabá. A imprensa,
emissoras de TV, impressos entregues na Praça, repudiavam a retenção das relíquias. Para
essa ocasião houve um manifesto dos desembargadores a favor das irmandades.
negativa, na região, por razões racistas, de ser espiritismo que utiliza feitiçaria ou rituais sangrentos, tal como se
considera a quimbanda, preconceituosamente, no Brasil.
74
(Cf. MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a Província de Mato Grosso. In: SIQUEIRA, 2000, p. 32-
33).
75
A presença de congadas ou danças de congo, verdadeiros rituais profanos, em que a utilização do corpo como
instrumento de prazer se manifesta com força, remete-nos de volta a um outro nível do imaginário, numa síntese
da negritude possível em nosso contexto colonial.
76
Presentes até hoje na Festa do Espírito Santo de Poconé -MT.
Hoonaert et al. ressaltam que a igreja no Brasil português era da cristandade. É
importante compreender o significado de cristandade, que pode ser complexo, quando seu
conceito é utilizado no sentido lato. A cristandade é um modelo de poder hegemônico,
legitimado em cima de razões religiosas, no qual Estado e Igreja não se separam, e todo o
poder vem de Deus, este, por isso, é legítimo. Confunde-se, portanto, a ordem política
católica e sua hegemonia como a ordem divina na terra, o que me leva a entender que a
cultura medieval portuguesa formou o conceito de igreja no Brasil identificando religião e
sociedade. O povo estava no meio de dois poderes que, por sua vez, nem sempre
compartilhavam pacificamente as suas idéias, ou seja, um território de disputas e conflitos, e
quem acabava pagando por isso era sempre o povo, o lado da população mais desprovida de
recursos e representação social.
As irmandades eram instituídas com a finalidade de garantir aos seus membros
direitos que, enquanto indivíduos (aqui nem podemos dizer cidadão), lhes eram negados. Para
citar um exemplo, recorro à questão do enterro na igreja, ou seja, quem estivesse fora de um
esquema superior estava fora ou à margem desse privilégio.
As irmandades exprimem o desejo, por parte do povo, de formar
comunidades, de não se deixar reduzir a uma massa anônima e manipulação
segundo os ditames da cultura dominante. [...], estas comunidades surgem
para tentar salvar a dignidade humana diante do catolicismo que foi a
introdução do sistema colonial para os pobres, por vezes, a última dignidade
como seja o direito a um enterro decente: muitas sociedades surgiram no
Brasil para garantir o caixão para seus sócios (HOONAERT
et al.
, 1992, p.
383).
Este fato me faz pensar na vida dos escravos e ex-escravos negros da época,
pois a entrada numa irmandade representava para muitos a sua identidade enquanto gente e a
possibilidade de ser batizado pela Igreja Católica. Dessa forma não podemos olhar a história
das irmandades somente pelo âmbito do “branco”. Para entender essas organizações
comunitárias que vão surgindo, furando os esquemas da época, é necessário conhecê-las do
“lugar do negro, do índio e seus descendentes”, bem como no seu espaço e temporalidade.
Uma história carregada de contradições. Havia um sistema de trocas, o povo
doava tudo que as igrejas possuíam na esperança de ser aceito e reconhecido pela sociedade
que as formava, pois a igreja aqui representava o símbolo do grupo social.
Segundo estudos de Siqueira (1995, p. 79-80) sobre as Irmandades, a autora
lembra que:
[...] as Irmandades representavam, no mundo colonial, o espaço privilegiado
de manifestação liberdade e autonomia, porém não perderam o vínculo com
a política colonizadora, sendo dela agentes, uma vez que reproduziam as
discriminações geradas por essa mesma política, entre elas os preconceitos
de cor, sangue e posição na sociedade.
As contradições de resistência, luta e conflitos perpassaram a estrutura
religiosa construída pelas irmandades, seja de “homens brancos”, seja de “homens de cor”. O
fato é que a resistência maior das irmandades era contra a estrutura colonial, na luta para
escapar dela, situação que se propagou por todo o Brasil. Cuiabá não ficou de fora desse
movimento, como mostra Siqueira (1995), ao dizer que Mato Grosso, em especial Cuiabá,
reproduziu esta estratificação, manifestada pelas múltiplas Irmandades existentes. Sua fala se
fundamenta no trabalho de Conte (1992), para quem “[...] a do Senhor Bom Jesus
representava o espaço dos homens brancos, a de São Benedito, composta pelos pretos, as do
Senhor dos Passos e Boa Morte” espaço dos homens pardos (libertos ou alforriados).
Siqueira (1995) torna a ressaltar os espaços de Cuiabá onde o privilégio e o
poder estão em ascensão por meio das irmandades:
Os termos do Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
reforçam sua caracterização como uma instituição representativa da elite
cuiabana, composta por brancos e abastados (art. 5º.), os quais receando a
intromissão de outros grupos sociais
(pretos e pardos), vedaram suas entradas, garantindo para si o exercício
político no seio das irmandades. Fato que faziam questão de fazer
publicamente.
Como sinalizado, as irmandades representavam, nesse período da história
brasileira, o símbolo e o lugar de poder. Formadas pela base leiga da igreja, não puderam se
manter sempre como uma fortaleza inabalável diante do poder da igreja e seus membros
eclesiais. A igreja foi instituindo normas de ordem e, por que não dizer, de tomada de poder
em nome de uma renovação que vinha como uma rolha a conter as diversas manifestações de
religiosidade popular, substituindo-as por um catolicismo oficial e hierarquicamente
verticalizado na figura do padre, bispos, cardeais até chegar ao papa. Entre o santo e o povo
estava o padre, e entre Deus e o povo estava o santo. Era essa, posso dizer assim, a grande
meta da reforma Ultramontina
77
introduzindo na igreja do Brasil normas tridentinas de fins do
século XVI.
77
“Seja em virtude das próprias características de sua colonização, seja em virtude dos empecilhos provocados
pelo Padroado, as determinações do Concílio Ecumênico de Trento não foram impostas com vigor no Brasil.
Somente três séculos após eclode aqui a reforma ultramontana ou, como também é conhecido, o Movimento
Câmara Neto (2000, p. 146-147) mostra num sentido gradual a acomodação
do povo junto aos conceitos Universais do Vaticano, que os membros das irmandades foram
bebendo e assimilando:
As confrarias e irmandades significavam a presença ativa do leigo e forma o
sustentáculo de uma religião que, mesmo com todas as incoerências, vícios
e limitações, nunca negou sob o viés católico que ‘Jesus era o Senhor’.
Tentava-se, pois, substituir uma religião dos sentidos por uma religião do
espírito, certamente mais distante da índole brasileira.
Essas mudanças mais uma vez forçadas, com tom de controle, geram como
decorrência a falta de enraizamento cultural. O povo é novamente silenciado e sua cultura,
negada. O jeito do povo organizar e manifestar sua e indignação soava como ameaça de
perda de espaço e, por conseguinte, de poder. Mas o poder de convencimento da igreja,
através de suas normas e castigos atribuídos a Deus, colocava o povo numa situação
vulnerável. E assim ele era convencido e vencido.
O advento da República e a reforma ultramontana possibilitaram uma gradual
marginalização das irmandades, ou seja, o afastamento do leigo do comando da igreja, o qual
foi forçado a ceder seus espaços a outras associações, mas aos moldes dessa nova ordem
vaticanizada.
As inúmeras manifestações de religiosidade do povo, quer nas aparições dos
santos, quer nas preces e milagres:
[...] vão permear o imaginário do povo brasileiro em suas relações com o
sobrenatural, formando-se em nosso país um catolicismo extra-oficial, de
caráter pragmático, popular e tributário de superstições tomadas a outras
religiões. A este opor-se-á o catolicismo romano, clerical, tridentino,
individual e sacramental (CÂMARA NETO, 2000, p. 29).
Rapidamente a ordem local era calada, seja na reformulação dos estatutos das
confrarias, seja promovendo novas associações religiosas “[...] que desde a sua fundação
estivessem enquadradas nas estruturas hierarquizadas da Igreja” (WERNET, 1992, p. 57)
78
,
seja lendo na nova cartilha.
Brasileiro de Reforma Católica do século XIX. Terá como alvo a conquista de alguns objetivos, tais como a
‘expulsão dos leigos’ do comando das irmandades e confrarias, visando com isso torná-las mais submissas à
igreja, ‘purificação’ das práticas religiosas dos fiéis tidas como supersticiosas; maior enquadramento à disciplina
por parte do clero e das ordens religiosas; maior, senão total, sujeição à Roma e ao papa, mostrando com isso que
éramos ‘católicos romanos’ e não ‘católicos do Conselho do Estado’ (Cf. CÂMARA NETO, 2000, p. 12).
78
Como, por exemplo, Koster: “[...] os reis do Congo eleitos no Brasil rezam a Nossa Senhora do Rosário e
trajam à moda dos brancos; eles e os seus súditos conservam, é certo, as danças do seu país; mas nas suas festas
Assiste-se, pois ao surgimento de numerosas associações, sob o afetivo
controle dos bispos, como, por exemplo, o Apostolado do Coração de Jesus,
as Conferências de São Vicente de Paulo, a Pia União das Filhas de Maria e
a Sociedade Católica Estudantil, Damas de Caridade, Congregação da
Doutrina Cristã e Círculos Católicos de São José, entre inúmeras outras
(CÂMARA NETO, 2000, p. 134).
Atualmente encontra-se em Mato Grosso um número pequeno de irmandades,
cujos membros acabavam entrando e aderindo às associações criadas pela ordem da igreja. Ao
visitar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, podem-se encontrar várias
associações que emergiram dessa época. A irmandade de S. Benedito está diluída, mas alguns
membros carregam consigo dedicadamente a cada ano a Festa de S. Benedito.
Nessa caminhada histórica de luta e resistência, na Igreja do Rosário e S.
Benedito surgiram novos grupos diferentes de associações, grupos mais envolvidos com o
trabalho social da igreja, as chamadas Pastorais Sociais, que serão tratadas num outro
momento neste mesmo trabalho.
O vigor da luta do povo arrebenta, pela e através da Festa de S. Benedito, os
grilhões da escravidão que pesam nos seus ombros do povo de diversas formas, fazendo da
sociedade dos marginalizados e empobrecidos uma grande senzala a céu aberto.
Na atual realidade da Capital de Mato Grosso, os devotos de S. Benedito não
estão institucionalizados dentro de grupo fechado para assegurar privilégios sociais e
religiosos. A luta continua, não para se igualarem aos ricos da elite cuiabana, mas com eles
gozar dos Direitos Humanos que dignificam cada pessoa como cidadã dentro de uma dada
cultura.
Quando, porém, a partir da segunda metade do século XVII os negros
começam a ser admitidos como classe dentro das irmandades [...] a troca
de informações culturais se tornou possível, e os africanos crioulos da terra
começaram a contribuir para uma síntese de cultura popular brasileira. E
como os negros escravos, ao contrário dos indígenas, preenchiam o requisito
básico de integrar-se no sistema de trabalho imposto pelo branco
colonizador, nada se mostrava realmente mais eficaz para estender a sua
integração no campo cultural do que a organização civil da Igreja. Por uma
herança medieval que respondia ao interesse de Roma de angariar adeptos
entre o povo ainda impregnado de conceitos pagãos, a estrutura da Igreja
funcionava de uma forma bastante aberta, o que correspondia a uma filosofia
apostolar baseada na conciliação para a conversão (TINHORÃO, 1972, p.
37-38).
admitem-se escravos africanos de outras regiões, crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira; essas
danças atualmente são mais nacionais do Brasil do que da África” (apud Freyre, 1984, p. 356).
CAPÍTULO IV - NA PRAÇA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
E SÃO BENEDITO: REVIVENDO MARCOS HISTÓRICOS
Foto 143 – Livreto da Festa de 2006.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2006.
uma tarefa bonita e essencialmente
importante que cabe aos educadores de todas
as culturas, ajudarem os educandos a perceber
a dimensão de vida e de conhecimento que
permeia as diversas tradições culturas com as
quais eles mesmos estão envolvidos
79
.
4.1 O nascer de um templo religioso: Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
Foto 144
-
Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito Cuiabá/MT, 1771-1780, 1910, 1950-1959 e
2006.
Fonte: Acervo Projeto Gráfico Helton Bastos, 2006.
As páginas que seguem serão dedicadas à história de construção ou fundação
da Igreja do Rosário e S. Benedito em Cuiabá, uma história que se cruza com várias outras,
79
Uma breve reflexão sobre educação/cultura desta pesquisadora.
mistura-se e se soma com as experiências do povo cuiabano que semanalmente para se
dirige nas madrugadas e noites de terças-feiras para a tradicional missa de S. Benedito.
Falar dessa igreja é falar de um povo alegre, simples, festeiro e lutador,
características culturais que se misturaram no chão da Praça do Rosário.
A importância de dedicar algumas páginas à história desse templo religioso se
justifica pelo fato de a Festa de S. Benedito se organizar e se realizar nesse espaço.
A história dos templos religiosos católicos setecentistas confunde-se com a
história da Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, ou mistura-se a ela, afinal quando os
bandeirantes se fixavam em um local logo erguiam uma capela em honra a um santo, como
que pedindo ao padroeiro ou à padroeira a proteção divina.
A Igreja do Rosário, segundo os relatos históricos, não foi a primeira a ser
edificada em Mato Grosso, foi a quarta, mas já era conhecida nos relatos dessa Província:
Notícia sobre a província de Mato Grosso, editada em 1869. Igreja Nossa
Senhora do Rosário, fica sobre um plano elevado em continuação do morro
da Prainha, notáveis as obras de esculturas sobre o trono da ala principal
está a imagem de Nossa Senhora do Rosário, duas irmandades de homens
negros conservam limpa a igreja. Ali se efetuam as festas de Nossa Senhora
do Rosário e de São Benedito. Estas se destacam pelos atos profanos, as
congadas, feitos com muito ruído (MENDES, 1979, p. 27).
As vilas e os arraiais eram projetados intencionalmente, de tal forma que as
construções públicas administrativas da vida civil do povo bem como as igrejas ficavam em
lugares estratégicos. Dessa forma era mais fácil exercer o controle social e moral sobre os
moradores.
O lugar onde a igreja foi construída fica na parte alta da cidade, conhecido
como Morro da Prainha, e ao seu derredor a cidade cresceu. Dizem que debaixo da igreja
ainda tem muito ouro, pois o lugar da sua construção fica muito próximo da grande extração
de ouro que foi muito cobiçado e atraiu levas de migrantes para Cuiabá. A historiografia
revela que o entorno da igreja era um reduto de homens e mulheres negras, a ponto de a rua
na proximidade da Igreja do Rosário ser conhecida como “rua das pretas”, isso porque, nessas
imediações, em inúmeras famílias de negros, as mulheres saíam às ruas com seus tabuleiros
para vender algum tipo de alimento.
Na Igreja do Rosário e S. Benedito, a qualquer hora é dia de santo
Fotos 145, 146, 147 e 148 – Encontro dos devotos com as imagens de S. Benedito na Igreja do Rosário.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
A qualquer hora do dia ou da noite, quem passar pela Praça do Rosário e S.
Benedito certamente encontrará um devoto aos pés de S. Benedito, seja dentro da igreja seja
fora dela, pois do lado de fora existem duas imagens, uma no espaço aberto e outra num estilo
oratório, criado bem recentemente, fechado por grades, mas permitindo acesso à oração pelos
fiéis. também uma imagem de S. Benedito de vidro aquecido ao fogo. A imagem anterior
era de madeira e pegou fogo. Como informou seu Nonô, é bem provável que o incêndio foi
devido às dezenas de velas que são acessas diariamente em honra ao santo. Essa última é à
prova de fogo.
Fotos 149, 150 e 151 – Encontro dos devotos com a imagem de S. Benedito na Praça do Rosário.
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
Muitas vezes passei pela Igreja em horas diferentes do dia e da noite, para
ver os devotos em algum lugar prestando a sua devoção ao santo. Aproveitava para conversar
com eles, alguns estavam indo e outros voltando do trabalho, outros, ainda, estavam ali de
propósito, não iam para lugar algum, o encontro era com o santo ou com os santos (Nessa
Igreja encontram-se vários santos: Nossa Senhora do Rosário, S. Benedito, Nossa Senhora do
Carmo, São Francisco de Paula, São José de Botas e S. Benedito em terracota de madeira,
todos ocupando um lugar especial dentro da igreja).
A devoção a Nossa Senhora do Rosário teve origem na Idade Média. Na
América Portuguesa, a devoção chegou com o colonizador ibérico, veio na bagagem dos
religiosos franciscanos, jesuítas e dominicanos e ganhou força com as Irmandades
principalmente as Irmandades de cor que ocorreram em Cuiabá.
A devoção a um santo remonta ao episódio do “descobrimento” do Brasil, na
verdade, uma invasão. O povo pobre e marginalizado socialmente ou de todas as formas
excluído encontrou no santo um alento de liberdade.
No Brasil a devoção a Nossa Senhora do Rosário se espalhou entre os
chamados “homens pretos escravos e ex-escravos” que, nas contas do rosário através das
orações mais simples e populares, como o Pai-Nosso e a Ave-Maria, encontravam seu alento.
A devoção era tão expressiva que chegavam a pendurar o rosário no pescoço.
Possivelmente depois de um dia de trabalho forçado, de volta às senzalas, reuniam-se em
torno de um "tirador de reza" e ouvia-se então, no seu interior, o lamento suplicante das
preces dos cativos que, nas contas do rosário, penduravam a sonhada liberdade e uma vida
digna de homens e mulheres livres.
Por todo o Brasil o rosário passou a ser conhecido como terço, devido aos três
mistérios (que lembram trechos bíblicos da vida de Jesus: nascimento, paixão e a subida aos
céus). O papa João Paulo II instituiu recentemente antes de sua morte mais um mistério com o
nome de luminoso que foi agregado à sua reza.
A liturgia dos pobres era, portanto, a recitação do terço, pois não sabiam ler
nem escrever, não tinham vida social, viviam segregados do convívio dos brancos que
cercavam a vida do escravo ou ex-escravo com preconceitos sociais de toda sorte.
Na dura vida do agreste mato-grossense e, em especial, de Cuiabá, o negro
estava impossibilitado de se expressar por meio do culto às divindades africanas, os orixás.
Talvez seja por isso que eles elegeram dentro da hagiologia católica três padroeiros e a eles
foram fiéis: Nossa Senhora do Rosário, S. Benedito e Santa Ifigênia, os dois últimos de
origem africana. Nossa Senhora do Rosário era como a memória da África, e S. Benedito e
Santa Ifigênia, a própria África. Uma negociação simbólica para rememorar a identidade
distante que evoca a memória, como escreve Maurice Halbwachs (1968 apud ORTIZ, 1991,
p. 189): “[...] considera que a memória coletiva é um conjunto de lembranças ativadas pelo
filtro do presente”. Elas constituem assim um patrimônio que, vivenciado por um grupo de
pessoas, se atualiza no momento de cada rememoração.
Na rememoração ocorre a atualização de uma memória guerreira coletiva do
povo negro ou afro-descentende que, na presença do santo evocado através dos gingados da
dança, do lamento, do batuque, da força dos orixás, aprendeu ou reinventou a sua liturgia.
As danças religiosas, além do objetivo de aplacar a ira das divindades ou
reverenciá-las, também se prestam a provocar o êxtase do devoto,
libertando-o do próprio ‘eu’ e potencializando-o espiritualmente.
A congada algumas vezes também chamada de congado, congo ou
cucumbi pode ser definida como um auto popular cuja origem remonta às
coroações dos reis do Congo, imbricadas com reminiscências de bailados
guerreiros africanos, teatro catequético, elementos portugueses e invocações
de lutas entre mouros e cristãos. Não é, portanto, exclusivamente de raiz
africana (CÂMARA NETO, 2000, p. 209-210).
Em várias localidades brasileiras, como Bahia, Vila Bela, Cuiabá, Minas
Gerais entre outras, os negros associaram-se em confrarias sob a proteção de um santo. A
Irmandade do Rosário aos poucos foi se tornando conhecida em vários lugares do país com
seu estatuto próprio, que rezava como exigência que os seus membros na sua maioria fossem
“pretos libertos ou cativos”.
As festas eram de estatuto obrigatório, todos os membros tinham que assistir
às missas e às festas com seus melhores trajes. É bem provável que seja por isso que nas
procissões, segundo a devota de S. Benedito dona Helena (CADERNO DE CAMPO 1, 2005,
p. 46), o povo tirasse do guarda-roupa ou do baú os seus melhores trajes e jóias.
Farei agora um rápido mergulho na memória histórica da Igreja do Rosário e S.
Benedito, agora em chão mato-grossense. Para isso recorro à pesquisa do padre José Moura
da Silva (conhecido por todos como Moura), conhecedor e estudioso da Igreja do Rosário e S.
Benedito, e de outros historiadores como Virgílio, Barbosa, Rosa, Madureira, lâmpadas para
clarear os caminhos dessa história.
A Igreja do Rosário e S. Benedito está na origem da cidade de Cuiabá, teve
início no tempo de vigor do Padroado, desde Pedro Álvares Cabral até o Decreto 119-A do
Marechal Deodoro da Fonseca de 7 de janeiro de 1890. Padroado era uma concessão que o
Papa fazia por meio de uma Bula a um Rei, especificamente ao português Infante D.
Henrique, de privilégio eclesiástico. Os reis de Portugal e os imperadores do Brasil gozavam
de prerrogativas eclesiásticas, criando Dioceses, Prelazias, nomeando Bispos, transferindo
religiosos. Até a República, Cuiabá ainda viveu esse tempo do Padroado. Uma das atribuições
do Padroado é a autorização do Rei ou do Imperador para funcionamento de Irmandade e de
Confraria.
Assim a história guarda os nomes de garimpos dos primeiros anos: São
Gonçalo Velho, Motuca, Forquilha, onde neste último Pascoal Moreira Cabral fundou Cuiabá,
no dia 8 de abril de 1719. Um garimpo mais rico que todos seria descoberto. José Barboza de
Sá, o cronista dos primeiros anos de Cuiabá, narra a respeito do ano de 1722 e, nessa
narrativa, aparece a cappela do Rozario”, ou seja, ela é nomeada no relato histórico da
primeira lavra garimpeira de Cuiabá. Uso a grafia original no trecho que para mim é
importante:
Apenas raiava a luz do dia, quando o Subtil, camarada e mais comitiva de
escravos com os descobridores por guias estavaõ postos a Caminho,
seguindo-lhes os passos, como mereciaõ meleiros, que taes Colmeas
descobriraõ, guidados por elles, chegaraõ ao lugar adonde se acha esta Villa
do Cuyabá, que era Coberto de mato Serrado, e grandiosos arvoredos, e no
lugar chamado hoje Tanque de Arnesto, escornado com a cappela de Nossa
Senhora do Rozario, mostrou o Indio o Seo invento, adonde logo foraõ
vendo ouro Sobre a terra, e apanhando ás maõs, recolheraõ-se à tarde aos
seos ranchos, o Subtil com meya arroba, e o Camarada JoFrancisco com
quatro centas, e tantas oitavas, era tudo ouro Cravado em Seixos (SÁ,
1975).
Cuiabá nasceu e se expandiu no brilho do ouro que foi descoberto em grande
quantidade nas proximidades do córrego da Prainha e da "Colina do Rosário", onde foi
construída a histórica Igreja do Rosário e S. Benedito. Nesse trecho citado está já mencionada
a existência da Igreja do Rosário. Cuiabá é cidade situada no Estado de Mato Grosso, no
Centro Geodésico da América do Sul, Capital do Estado.
No Livro Tombo da Igreja e em conversa com padre Moura (em várias
ocasiões em 2005, 2006 e 2007), pude verificar que, como a igreja se situou sobre um
garimpo, o povo imaginou coisas. Há quem diga que debaixo da igreja existe uma mina de
ouro riquíssima. Segundo ele, não é verdade, porque primeiro aconteceu a retirada do ouro até
a piçarra. Incrustado na piçarra ouro, mas não compensa a despesa com a lavra. Mesmo
assim alguns dizem que os padres guardam segredo de uma entrada para a mina subterrânea, a
qual ninguém é capaz de descobrir, e os padres sabem. Histórias similares se dão em todas
as igrejas antigas do Brasil e, inclusive, a mesma história se repete em relação à igreja de
Chapada dos Guimarães. Além disso os padres não foram aqueles que assistiram à construção
e manutenção por longos anos da Igreja do Rosário, ao contrário. Padre Moura reforçou sua
fala dizendo que quem cuidava da igreja no começo do povoado de Cuiabá era a Irmandade
Nossa Senhora do Rosário, que depois recebeu ajuda da Confraria S. Benedito, a partir de
1760. Os padres passaram a cuidar da igreja em 1948, 224 anos depois da sua construção.
Então temos aí muitas estórias que o povo conta sem conhecimento da história, diz Moura.
Perto da Igreja do Rosário havia um famoso poço de água. Dizia-se que uma
alavanca de ouro aparecia no fundo daquele poço, mas ninguém conseguia tirá-la. O poço
encontrava-se na confluência das duas pistas da Avenida Coronel Escolástico, acima e perto
da entrada da igreja. Essa é uma história dos caçadores de ouro.
Por um documento de 1750, concluiu-se que a construção da igreja do Rosário
pode ter ocorrido em 1723, pois, em 1750, os Irmãos de Nossa Senhora do Rosário pediram
ao Rei de Portugal autorização para o funcionamento oficial da Irmandade, argumentando que
ela funcionava desde o tempo do arraial. Para Pe. Moura, em 1724 Cuiabá deixou de ser
arraial, pois foi elevado a Distrito. Então a construção da Igreja do Rosário deve ter ocorrido
em 1723, pois, em outubro de 1722, Miguel Sutil abriu o primeiro garimpo em Cuiabá.
A Igreja do Rosário e S. Bendito, com a interferência do poder eclesial do
bispo Dom Francisco de Aquino Corrêa, em 1945 foi elevada à categoria de paróquia. Eis
parte do documento:
O Arcebispo de Cuiabá, Dom Francisco de Aquino Corrêa, por ocasião do
jubileu de sua ordenação, reestruturou territorialmente as paróquias da
Arquidiocese e criou a Paróquia Nossa Senhora do Rosário, que queria
entregar à cura dos jesuítas.
“DECRETO”
de 24 de maio de 1945, que fixa a nova divisão da Arquidiocese de Cuiabá
em 11 Paróquias
Dom Francisco de Aquino Corrêa
por mercê de Deus e da Santa Apostólica/Arcebispo Metropolitano de
Cuiabá,
E usando da atribuição que lhe confere o cânon 1427 do Código de Direito
Canônico:
DECRETA:
Art. III Ficam ipso facto elevadas à categoria de matrizes as igrejas filiais
de Nossa Senhora do Rosário de Cuiabá, de Nossa Senhora da Guia da
Várzea.
Os jesuítas da Província do Brasil Central, não assumiram logo a Paróquia,
mas somente a 3 de abril de 1948, o Pe. Emílio Faure, da Província do
Brasil Central dos jesuítas, tomou posse da paróquia na presença de
autoridades civis tanto do município como do estado (LIVRO TOMBO...)
80
.
A Igreja do Rosário é a única das quatro primeiras construções de Cuiabá a
resistir ao tempo, apesar das várias mudanças que ela sofreu na sua arquitetura original. “A
capela de palha dos negros dedicada a São Benedito caiu pouco depois de levantada, isso por
volta de 1722/23, segundo os escritos de José Barbosa de Sá (1975). A Igreja do Bom
Despacho foi destruída em 1914 para ser edificada a atual em estilo gótico. A Catedral foi
80
Extraído do Livro Tombo de 1723 a 2003.
demolida para construção da atual. Lançando um olhar no tempo vivido pela população
cuiabana, podem-se encontrar Nossa Senhora Rosário e S. Benedito como únicos
monumentos da memória dos primeiros anos de Cuiabá a conservarem as características
originais.
4.2 Uma nova presença popular da Igreja do Rosário na década de 80 no cenário político
autoritário
Este capítulo se propõe a responder à seguinte pergunta: Como se deu a
participação da Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito no cenário social, popular e
político da cuiabania? Ou seja, como esse espaço foi construído?
Para responder a essa questão, ater-me-ei ao período que marca o final da
década de 70 até a década de 90, considerando que foi exatamente nesse período que a Igreja
do Rosário e S. Benedito surge no cenário social, popular e político de Cuiabá como berço
dos movimentos sociais existentes na Capital, conquistando posteriormente representação e
reconhecimento estadual e nacional. Todos os acontecimentos aqui relatados encontram-se
detalhados no Livro Tombo da Paróquia Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito.
Parece-me que nesse período se desencadeia um processo de luta social,
popular e de formação política na Igreja do Rosário e S. Benedito, tais como o Movimento
Popular de Saúde; Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais
(ANAMPOS); Pastoral da Saúde Popular; Centro Pastoral do Rosário; Pastoral de Juventude
de Meio Popular; Grupo de União e Consciência Negra; Centro de Direitos Humanos
Henrique Trindade; Comissão Pastoral da Terra; Fraternidade Cristã de Doentes e de
Deficientes; Empregadas Domésticas, e Alegria; Movimento de Defesa dos Favelados;
Sistema de Intercambio Nacional, mais tarde Pastoral Operária, Grito dos Excluídos.
Os folhetos unificados usados nas missas foram sendo substituídos pelos
elaborados pelos grupos de liturgia que foram se formando e preparando as missas de acordo
com a realidade local. O leigo passou a responder também pelos serviços religiosos que eram
até então reservados ao clero. Surgem os ministros extraordinários do batismo, e os devotos
da Paróquia do Rosário propõem se organizar por meio de Assembléias com participação das
capelas ligadas a ela, transformadas em núcleos das Comunidades Eclesiais de Base.
Esse processo de formação, compromisso social, político, cultural e religioso
não era comum dentro da Arquidiocese do Bom Jesus de Cuiabá e nem fazia parte de sua
proposta de trabalho, naquela ocasião. Iniciativas similares tinham sido abortadas, até muito
recentemente, como a Comissão Pastoral da Terra. No entanto muitas das paróquias
localizadas na área urbana se concentravam nas missas, pastorais ou grupos mais ligados ao
aspecto religioso como a Legião de Maria, Apostolado da Oração, Movimento Mariano,
catequese, batismo, casamentos, grupos de jovens, vicentinos etc.
O que estava ocorrendo na Igreja do Rosário e S. Benedito provocava um
estranhamento questionador à Igreja Católica de Cuiabá, pois essas ações e manifestações
sociais, políticas e culturais da Igreja do Rosário e S. Benedito aconteceram em pleno período
do regime militar (1964 a 1985). A Igreja do Rosário abriu-se imediatamente, dando apoio à
Associação de Professores, utilizando as missas para divulgação das propostas políticas do
sindicato. Estabeleceram-se, na ocasião, pontes de comunicação com os movimentos
populares e sindicais em nível nacional, divulgando suas ações no jornal da Igreja da Região
Sé de São Paulo e no jornal O Movimento e estabelecendo uma aliança com a AME, que tinha
uma expressão importante na organização estudantil da época, e com o DCE, da
Universidade, ou seja, novos espaços de articulação num período de perseguições, controle
social e político. A posição dos padres e leigos que formavam essa igreja, trazia um
pensamento de articulação e posição social diante do controle, sanções e mortes, bem como o
fortalecimento dos empobrecidos no país. Mudou o teor do discurso, o que se ouvia na Igreja
do Rosário eram sínteses dos documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), estratégia de legitimação das posições de esquerda da mesma Igreja. Os documentos
bases eram o de Medellín, Puebla, do Vaticano II. As pastorais, entendidas como “serviço da
igreja ao mundo”, criavam um novo perfil de igreja de expressão militante, o qual tomava os
espaços dos movimentos. Houve, ademais, uma importante aliança com setores de esquerda,
marginalizados pelos setores dominantes em Cuiabá. A paróquia abriu-se ao diálogo com as
Associações de Bairro que tinham uma posição popular, investindo na formação de lideranças
e acolhendo os anistiados que vinham chegando a esta região.
Mais uma vez o cenário social da cuiabania traz à tona os sinais de um passado
recente, uma outra forma de escravidão e perseguição dos sem representação social e dos que
assumem essa causa. Tudo emerge na violência em nome de uma ordem coercitiva para
muitos e de privilégios para poucos.
Nesse período vários grupos espalhados por todo o país foram calados pela
força da repressão, porque fizeram oposição explícita à ordem imposta pelo governo militar, e
tantos outros encontraram ou criaram outras formas para reagir ao golpe de 64. E a geração
dessa época foi embalada e movida a manifestar o desejo de reconquistar os seus direitos
passando a limpo a história do país.
A geração dos novos padres jesuítas que assumiram juntamente com os leigos
a Igreja do Rosário e S. Benedito, nesse período, também engrossou as fileiras dos
manifestantes menos contra a ordem do poder militar e mais em favor dos desfavorecidos e
perseguidos.
A paróquia do Rosário e S. Benedito, diante do cenário social, político e
religioso da época, redireciona internamente os trabalhos pastorais, toma decisões que
possibilitam entrar num processo de construção e aprovação das novas estruturas de
funcionamento tanto do religioso como do político social da igreja.
O que se percebe é que um crescente interesse em despertar o leigo para o
envolvimento com os trabalhos que estão se organizando nesse período e uma inequívoca
opção pelos pobres e por sua causa. Trazê-lo para o centro do debate e da participação e tirá-
lo da posição de mero espectador ou ouvinte de missas, como ator social comprometido com a
libertação da miséria, da fome e da injustiça.
Essas articulações sociais e políticas que envolvem lideranças e formam outras,
não vieram por acaso, a situação de perseguição e de negação dos direitos humanos forçou
uma ala de padres da Igreja Católica no Brasil a desenvolver um novo pensamento de
retomada dos direitos, da dignidade e da vida em todo o país. Foi um grito de posicionamento
da igreja diante do sombrio cenário imposto a duras penas aos brasileiros. Esse pensamento
não foi aceito por toda a igreja, pois se configurava contrário ao evangelho, colocando em
confronto a Igreja e o Estado. Mas nem essa ameaça conseguiu calar a força que nascia dessa
luta, e foi a filosofia presente na Teologia da Libertação que ajudou a Igreja do Rosário e S.
Benedito na época a reestruturar e redimensionar suas ações:
O Pe. José Ivo Follmann [jesuíta, que chegou na Paróquia em 30/3/81], a
partir de reflexões sobre a Educação Popular e estudos sobre a Teologia da
Libertação, propôs uma reestruturação da Paróquia, procurando formas
mais ágeis das comunidades de reação contra a exploração crescente do
povo. O Pe. Inácio Neutzling [jesuíta] assessorou a Assembléia Paroquial
com o tema ‘Teologia da Libertação e Vida’ (LIVRO TOMBO, 1985, p.
76).
O momento de reestruturação dessa igreja soava como um grito na contramão
da história tanto dos poderes do Estado como da própria Igreja.
A Igreja do Rosário e S. Benedito, com a presença do novo grupo de padres
jesuítas, estava vivendo um momento forte de luta e organização política e social. Mas a
realidade histórica da época não permitia grandes movimentações sociais devido às
perseguições e prisões.
O que se percebe lendo o Livro Tombo é que a Igreja começa a trabalhar com
as conseqüências do sistema vigente da época. Para quem estava fora dessa luta, era isso que
parecia estar acontecendo, mas quem estava envolvido, fazia uma outra leitura, a de que os
agentes populares estavam trabalhando com as causas desses problemas sociais, pois se
multiplicavam as reuniões, momentos de formação em vários espaços da paróquia, atividades
com grupos diversos de paraplégicos, mulheres, crianças, jovens, saúde preventiva e
acompanhamento de grande número de famílias nos espaços que mais tarde foram se tornando
bairros de Cuiabá. Tanto os cuiabanos natos como os imigrantes dos quatro cantos do país
foram se organizando e conquistando direitos.
Diversas eram (são) as formas de exploração que pesavam sobre o povo,
sobretudo das camadas populares que sobreviviam em meio a uma situação de miséria
explícita. Todavia, apesar das condições desumanas e das poucas condições sociais dignas,
houve a consciência de que não bastava estar assentado, precisava garantir ali a sua
sobrevivência, não apenas de forma individual, mas coletiva. É nesse contexto que os agentes
de pastoral da Igreja do Rosário e S. Benedito entram no movimento como colaboradores
desse processo de luta junto com inúmeros grupos de famílias que começam a chegar à cidade
de Cuiabá e a se apropriarem das áreas afastadas do centro da cidade criando os aglomerados
urbanos.
Segundo o Livro Tombo, a Paróquia esteve presente nos assentamentos,
ocupações das famílias para formação de bairros na Capital, surgindo, com ou antes da
oficialização do bairro, uma comunidade ligada à Paróquia:
No prolongamento do Bairro Novo Paraíso surgiu uma nova ocupação de
povo. O nome escolhido foi Ouro Fino. A Paróquia ali se faz presente
especialmente com a Pastoral da Saúde e ação do agente de Pastoral
Lourenço [Fernandes]. Missa no dia 29 de outubro. O estudante jesuíta,
em estágio, auxiliou na Novena de Natal
81
(1988, p. 87).
Os trabalhos da Horta Comunitária motivaram reuniões pedagógicas,
visando à melhoria da alfabetização de crianças e adolescentes. As reuniões
de Saúde continuam nos bairros Leblon e Pedregal, para conquista do Posto
de Saúde. A equipe de Saúde elaborou o livrinho ‘Plantas Medicinais -
Saúde Caseira’ (1981, p. 65).
As iniciativas de pensar com o povo despertam o aprender a pescar, ou seja,
conquista a sua própria autonomia para garantir o sustento do grupo e autonomia dele.
provavelmente entendimentos que, juntos, são mais fortes, e dessa união nasce o poder da
81
A “Novena de Natal”, construída pela equipe paroquial (Centro Pastoral do Rosário), fazia parte de um
programa de subsídios para reuniões de grupo, organizada, neste caso citado, como pesquisa participante das
necessidades mais emergenciais e prioritárias de luta, de reivindicação e organização dos bairros.
força popular. Com essa nova visão e ação, algo começa a ser despertado nos bairros e no
interior das capelas que surgem junto com os bairros.
A sociedade política cuiabana que tomou o poder e o controlava, lia essa
movimentação com dificuldade e via como assistencialismo aos pobres ou ação comunista
dos padres, o que muitas vezes gerou situação conflitante que dividia. Alguns vinham em
apoio e ajudavam a afastar as perseguições às lideranças, outros as reacendiam. Não havia
neutralidade, nem se tratava de discursos. Desaparecimentos de crianças e jovens por ação
policial, morte de posseiros, despejos violentos, jagunços atuando livremente, armados, com
poderes paramilitares, não faltavam situações de confronto.
A transferência da Festa para a Praça do Rosário era apenas mais um dos
conflitos abertos e explícitos que a Paróquia do Rosário enfrentaria.
Alguns devotos mais antigos de S. Benedito, que chegaram a viver
intensamente esse período e sofrer na pele a ameaça de perseguição, afirmam que, logo após
as reuniões do Conselho da Paróquia ou qualquer outra reunião que acontecesse nas
dependências dessa igreja, os papéis de anotações eram todos rasgados, pois, se fossem pegos
reunidos discutindo sobre organizações populares, (política) podiam ser acusados de
incentivadores de motins contra a ordem, o que, certamente, acirraria as perseguições. As
primeiras assembléias paroquiais e depois as da Pastoral aconteciam com pouca divulgação,
principalmente o local da sua realização, pois temiam a infiltração de pessoas como espiões
do Serviço de Segurança do governo militar.
Parece que o movimento de articulação e formação funcionava ou partia da
Igreja do Rosário e S. Benedito. No entanto a adesão dos paroquianos foi acontecendo aos
poucos, pois muitos, como ainda acontece hoje, não conseguiam pensar uma igreja envolvida
ou engajada politicamente. Chegavam a dizer: “[...] política não se discute na igreja, e o padre
não pode falar de política na igreja”
82
.
A perseguição no período militar e fora dele e a não-adesão de todos os
paroquianos não intimidaram as lideranças da paróquia, que trouxeram para o espaço das
capelas e bairros da igreja debates em nível de formação diante do momento que o país estava
vivendo. Sucessivas ações sociais foram surgindo: “A Pastoral da Juventude do Meio Popular
elaborou um livrinho sobre as eleições 88. Foi criado o Instituto Pastoral de Educação em
Saúde Popular
(IPESP)”
(LIVRO TOMBO, 1988, p. 87).
82
Essa fala apareceu de formas diferentes nas conversas abertas que mantive com os devotos.
Dentre os inúmeros acontecimentos da vida cotidiana dessa igreja está também
a Festa de S. Benedito que, a partir de 1981, passa a ser organizada pela paróquia e assumida
por todos os devotos do mesmo santo, retornando à sua origem e se envolvendo com as
questões sociais. O povo devoto começa a participar mais diretamente da Festa, escolhem os
temas, fazem festival de música com o tema da Festa, buscando expressão artística local,
preparam os tríduos e as missas trazendo elementos que representam a cultura cuiabana, a
negritude. Promoveu-se o Concurso de Cartazes para divulgação da Festa. A grande procissão
de encerramento trouxe momentos para refletir e pensar a realidade atual do país e de Cuiabá,
o seu resultado financeiro passa a ser direcionado para ações concretas, construção de creches
e melhorias dos espaços da paróquia. Parece que a Festa se insere nas ações dos movimentos
sociais.
Dia 6 de junho, festa para angariar fundos para a Creche no bairro Canjica e
para conscientizar a população da iniciativa da Paróquia. A reunião do
Conselho Paroquial com os festeiros de São Benedito. Foi apresentado o
assunto da Creche do bairro Canjica. Os festeiros sugeriram o nome do Pe.
Emílio e prometeram ajuda financeira (LIVRO TOMBO, 1981, p. 64).
Nesse mesmo espaço de lutas, perseguições, contradições sociais e políticas, é
fundado o Partido dos Trabalhadores (PT) em Cuiabá. Ele nascia muito vinculado aos agentes
pastorais da Igreja do Rosário e S. Benedito e se expande para todo o Estado de Mato Grosso.
“Durante o mês de junho, primeiras reuniões de reforço à Comissão Pastoral da Terra (CPT),
com vistas ao surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT)”
(LIVRO TOMBO, 1981, p. 64).
Grandes lideranças políticas surgem no cenário cuiabano e mato-grossense, impulsionadas por
esses acontecimentos, e muitas ganharam reconhecimento no cenário político nacional.
No dia 26, Luiz Augusto Passos apresentou o surgimento dos movimentos
populares e sociais na Paróquia nas alas laterais da igreja: Partido dos
Trabalhadores-PT, Movimento Educacional e Alegria, Consciência
Negra, Cozinha de São Benedito, Centro de Direitos Humanos Henrique
Trindade, Associação de Solidariedade às Comunidades Carentes de Mato
Grosso (ASCCMT), Comitê Paroquial da Fome, Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes físicos (FCD).
Na noite desse dia, Márcio Coutinho coordena a Noite Cultural (LIVRO
TOMBO, 1994, p. 134, grifos meus).
A Igreja do Rosário e S. Benedito entra num processo de mudanças no cenário
local e nacional. O país, com suas lideranças, organizações sociais e populares e tantos outros
grupos, mobiliza-se para fazer o estudo em prol do movimento da “Constituinte”.
Os pesados anos da ditadura militar silenciaram de várias formas grandes
lideranças e as exilaram longe de sua pátria, mas não conseguiram “matar” a luta por um país
social, democrático e justo.
Fortalecer um pensamento cidadão não foi um processo fácil, como é
demonstrado no Livro Tombo. O cuiabano desse período, povo simples, hospitaleiro e de
baixa instrução escolar, estava intimidado pela força da sociedade vigente que, no discurso,
dizia saber o que era melhor para o povo. Então despertá-lo dessa condição de resignação era
um luta que devia ser enfrentada.
A Igreja do Rosário e S. Benedito mais uma vez não fica assistindo, mas faz
acontecer esse movimento político de mudanças. Folheando o Livro Tombo, pude encontrar
seguramente esse movimento articulando o povo cuiabano a tomar a sua cidade e seu país nas
mãos para repensá-los e assumi-los como causa própria de luta. Citarei agora alguns trechos
desse documento, quais demonstram essa participação:
Realização da 17ª. Assembléia Paroquial na Comunidade de São João dos
Lázaros, com 98 participantes. Foi escrito uma Moção de apoio ao 1º.
Encontro Nacional dos Sem Terra em Curitiba. E enviou-se carta ao
Presidente Tancredo Neves em apoio à Assembléia Nacional Constituinte,
com sugestões populares da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário.
Aconteceram vários Encontros sistemáticos para o tema ‘Constituinte’:
Reunião ampla de todas as Diretorias para discussão das sugestões para o
Conselho Pastoral. Também estudaram o tema ‘Por uma nova Ordem
Constitucional’. O envolvimento da Paróquia e dos devotos de São
Benedito com os Sem Terra caminhou bem. Os Sem Terra participaram de
discussão sobre a Constituinte nas comunidades e avaliação do VI
Intereclesial de CEBs. Houve reuniões sistemáticas da Comissão da
Constituinte. Iniciaram as reuniões dos festeiros de São Benedito
(LIVRO TOMBO, 1985; 1986).
A Praça do Rosário e S. Benedito foi se tornando o lugar da concentração,
formação e manifestação dos movimentos que começam a nascer e a se fortalecer. Menciono
algumas passagens importantes para ilustrar e fundamentar a importância desse espaço
organizador de lutas e de uma educação popular emancipatória:
Dia 7, Dia da Luta pela Saúde, celebrado com passeata de algumas
comunidades em direção ao Bairro Novo Guanabara, onde ocorreu Ato
Público, Comemoração da Semana do Índio com encerramento com Missa
na Praça do Rosário.
Dia 19, início da Semana dos Direitos Humanos, com abertura do Dr. Hélio
Bicudo, na Praça do Rosário. Segundo dia, na Comunidade de São Pedro do
Bairro Quarta-Feira, com a participação do Dr. Dalmo Dallari. E assim,
cada noite, num bairro. Encerramento na Praça do Rosário
, com presença de
Dom Luciano Mendes de Almeida e do Pe. Ivo Weber, Provincial dos
jesuítas da Província Meridional.
Na Semana do Índio, foi apresentado o filme ‘Meu Karpu’. A Semana foi
encerrada com uma concelebração na Praça do Rosário.
Encontro das comunidades para novas sugestões para o Regimento e
Organograma. Dia 26, VI Encontro de Catequistas. Culto Ecumênico pela
Paz, na Praça do Rosário. Ato Público na Praça do Rosário dos Sem Terra,
substituindo uma passeata pelo centro da cidade, boicotada pelo INCRA.
A Equipe Pastoral com a P.O. elaborava a Missa do Dia do Trabalhador
Rural, quando soubemos da Caminhada dos Sem Terra de Jaciara-MT, com
o intuito de acampar em Cuiabá. Aprovamos a idéia de acamparem na Praça
do Rosário. Dia 5, Festa com procissão e Missa do outro lado da Praça, uma
vez que os Sem Terra estavam acampados no lugar comumente destinado à
Festa (LIVRO TOMBO, 1983; 1985; 1986).
A Festa de S. Benedito, que acontece na Praça do Rosário, aos poucos
incorpora na sua estrutura temáticas sociais influenciadas pelos movimentos sociais populares
que fazem da Praça o seu “palco”, o seu chão de luta:
Cartaz da Festa de São Benedito, cujo tema é: ‘Terra e Trabalho, a luta pelo
pão. Serão confeccionados dois roteiros de celebração: um para a
caminhada e outro para o lugar na Comunidade. A equipe de coordenação
será composta por pessoas da Liturgia, por Lucilo (Nonô) e por festeiros. O
Tema é: ‘São Benedito, cidadão de Fé’ e o lema: ‘Fé e Vida se abraçam na
construção da paz, que é fruto da Justiça’. Para o primeiro dia do Tríduo da
Festa: ‘Missão do leigo no mundo’; para o segundo dia: ‘Construção da
Cidadania (terra e política)’; para o terceiro dia: ‘Negritude: resgate da
cultura de um povo’ (LIVRO TOMBO, 1996, p. 140).
Assim esse espaço de luta era localizado ou não na Igreja do Rosário e S.
Benedito, digo localizado ou não porque, como foi dito, nesse espaço se desencadeava o
processo, porém não se concentravam somente nele as movimentações que fluíam para outros
espaços, sobretudo porque os interesses estavam além da Igreja. Foi-se tornando espaço
emblemático do encontro e fortalecimento de muitos movimentos sociais locais e estaduais.
A mobilização social e política torna-se o centro impulsionador do trabalho
social e religioso dessa igreja no período investigado. Atualmente a Igreja do Rosário, por
meio dos padres jesuítas e leigos engajados nos diversos movimentos sociais, mantém o
Centro de Justiça e Padre Burnier, um centro que articula diversos movimentos locais,
estaduais, nacionais e até internacionais. Recentemente, diante do grande problema trazido
pela dependência química do álcool, nasce o sítio Beato Anchieta, trabalho articulado com a
Igreja do Rosário e S. Benedito e outros. Outras iniciativas surgem fomentadas dentro da
Festa de S. Benedito convocando o devoto a assumir a sua devoção também com ações
concretas.
A Igreja Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito é espaço e tempo oportuno,
Kairós (PASSOS, 1998, p. 403-404)
83
, construída por mãos de diferentes grupos de negros
escravos. E novamente reconstruída em prol da luta dos socialmente excluídos da sociedade
cuiabana e mato-grossense.
Devido a tantas formas de exclusão na sociedade cuiabana, nasce na Igreja do
Rosário a movimentação em torno da Semana Social Brasileira, iniciativa da CNBB, e, a
partir dela, um movimento nacional que questiona e desafia a data emblemática da pretensa
Independência Brasileira, o Grito dos Excluídos, que a cada ano conta com a participação de
lideranças de diversos movimentos e formas de organizações em defesa da cidadania e da
democracia, no Brasil e nos países da América Latina. Esse movimento, fragilizado com as
mudanças de governo no Estado Brasileiro, ainda assim persiste a cada ano, um grito contra
toda a forma de poder que discrimina, nega a diferença, mata o sonho de justiça e democracia
e concorda com uma sociedade de desiguais.
É nesse espaço chão de lutas e contradições que a Festa nasce e se prolonga. E com o
tempo ganha proporções e expressões maiores, onde o povo, do seu jeito, assume a Festa
como tradição da cuiabanidade e devoção ao “santo negro”.
83
Kairós, tempo da Festa e da loucura, da mutação. Tempo da revolução, da descontinuidade. Tempo do
Sagrado livre da religião e do dogma, tempo da arte e da loucura, da subversão. “Tempo oportuno”, favorável,
propício, evento. Ele se apresenta emergente e manifestativo.
Considerações finais
Foto 152 – Imagem de S. Benedito na ala central da Igreja do
Rosário ( restaurada).
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.
A Festa de S. Benedito é um importante instrumento educacional das pessoas
que moram em Cuiabá, precisamente porque instrumentaliza, está cercado de visões de
mundo, valores, avaliações, perspectivas de um modo de ser que se encontra representado
emblematicamente pelo santo. S. Benedito é um “cuiabano” de referência, com a pele negra
dos seus moradores, empobrecido, humilde, trabalhador, sensível às pessoas empobrecidas e
marginalizadas, pacífico e com sede de justiça, com atenção à alimentação como símbolo de
vida e de comunhão, dedicando sua vida a Deus.
A pesquisa oportunizou verificar que, para as camadas mais pobres e abastadas
da sociedade, as festas podem ser entendidas como espaço de reordenação ritualizada, de um
território cheio de símbolos que anunciam a insatisfação social que, de certa forma,
institucionaliza a sociedade em estamentos, ordenando um ritmo que se pretende “natural”, da
própria vida, institucionalizando a desigualdade. O jeito de ser do povo cuiabano, com suas
diversas formas de manifestar-se culturalmente, era vivido no cotidiano da vida do santo. Os
resultados da pesquisa mostraram que a cultura cuiabana, rica de simbolismo expressos na
Festa, atravessa significativamente a vida do povo festante, e não somente em dias de festa.
Os estudos sobre essa Festa, dentro do período que ela surge (1722), parecem
mostrar que sempre havia dois tempos, tempo da sociedade brasileira, dividida em metades
econômicas, sociais e políticas, e tempo dos opressores e dos oprimidos, dos exploradores e
explorados, dos brancos e dos negros. Embora esses tempos se cruzassem, não podiam ser
vividos ou concebidos pela cultura dominante num mesmo espaço e temporalidade idênticos,
de sorte que sempre eram reservados lugares reais e simbólicos específicos. Hoje, de certa
forma, essa mesma devoção ao santo negro permite observar o encontro de vários grupos
de procedências culturais e sociais diversas que vêm assumindo a Festa como “tradição”,
vinculados a promessas e graças recebidas por S. Benedito, como devotos do “santo negro”.
Nem por isso essa comunhão derruba as barreiras sociais, econômicas e políticas. Elas
subjazem e resistem reproduzindo a sociedade do capital. Como sinaliza Ortiz (2006, p. 203-
204):
O universal deixa assim de ser uma abertura, uma referência inatingível
para o pensamento e para a ação. Ele se materializa, sendo efetivamente
partilhado (os empresários diriam, consumido) por ‘todos’. O mercado-
mundo torna-se assim o único universal ‘verdadeiro’, diante do qual
qualquer outra manifestação seria simples sintonia de um localismo
incongruente.
Mais do que isso, a festa, conforme estudos da pesquisadora Rita Amaral
(1998), que julgo procedentes para a Festa de S. Benedito, não nega a realidade. Rita Amaral
contribuiu para entender que, pelo contrário do que possa aparentar, a festa no Brasil não
aliena, “[...] ela chama à consciência das massas” para essa falsa ordem emanada das classes
dominantes criadoras de oprimidos e opressores, as quais pretendem alienar e submeter de
toda forma à contra-ordem induzindo a uma “naturalização” da submissão pela falsa liberdade
de consumo, de direitos, de justiça e de cidadania.
Ainda assim verifica-se que, quando a elite toma conta da Festa no sentido de
promovê-la, não é na perspectiva de inclusão, é, freqüentemente, de apropriação excludente.
A igreja com seus representantes eclesiásticos também de certa forma apropriam-se da Festa e
desapropriam a tradição. Na perspectiva da elite dominante, o festar transforma diferenças em
desigualdades, emergindo conflitos e explicitando contradições, os quais, ao serem
compreendidos, podem criar novos meios ou condições para o festar.
As questões sobre a cerca utilizada para separar os convidados da elite na
Festa de 2005, as mudanças do roteiro da procissão (2004) com avião jogando pétalas sobre
os devotos; a pretendida “substituição” da histórica imagem de S. Benedito por uma imagem
sósia, a terceirização dos serviços da Festa que atingiram a alimentação marco ritual -
gerando uma comida via produção industrial da paçoca de carne seca, deixaram de ser
respondidas.
A paçoca, pela primeira vez, foi rejeitada. E a Festa de 2006 foi a resposta
antípoda da Festa de 2005. O que parecia secundário para os forasteiros que se atreveram a
organizar a Festa “profissionalmente”, feriu o sentido de participação direta e de controle do
espaço por aqueles que não têm representação social e política macro, mas têm o poder de
garantir a adesão de cada um, por sua expressão e reconhecimento, nos serviços relevantes da
Festa. A paçoca de carne seca é feita pelo menos um mês antes da Festa, revezando-se os
voluntários em socar no pilão carne seca com a farinha de mandioca.
A Festa é um tempo-espaço simbólico de privilégios diversos. Nesses tempos-
espaços da Festa “à brasileira”, as devoções da espiritualidade africana que ali estão hoje
publicamente presentes, foram e continuam sendo negadas. uma luta de afirmação
conflitiva e constante das culturas que se mesclam na cultura brasileira. A Festa de S.
Benedito vivida por cuiabanos de descendência bororo, ativos na sua celebração e
organização, demonstra que as manifestações da espiritualidade afro possuem maior
expressão do que as indígenas, escamoteadas, mesmo em Cuiabá.
O tempo-espaço ritualizado da liturgia romana trazida pela cultura européia ou
pela devoção popular portuguesa é, em nível íntimo e privado, ressignificado pela crença da
presença do sagrado nos símbolos africanos. A referência da imagem do santo e, sobretudo, a
sua identidade são expressas também pela identidade do orixá.
Na atualidade do “festar” da cuiabania, a devoção a S. Benedito vem
conseguindo negociar ou devolver para o cotidiano festivo da Praça do Rosário e S. Benedito
expressões culturais da nossa brasilidade. Na Festa os inúmeros grupos que carregam as
manifestações folclóricas da cultura mato-grossense encontram espaço para se expressar,
ainda que sob censura da grande maioria, sobretudo daqueles que, crendo nos orixás, pensam
que o espaço da igreja não é adequado para mexer com este “lado” espiritual. Revigoram
ainda nesse espaço a dança da congada, siriri, cururu, S. Gonçalo, carnaval de Poconé e tantas
outras expressões culturais regionais. A liturgia celebrada após a Festa de 1980 evoca valores
da cultura afro como que prestando reconhecimento e promovendo a centralidade da adesão
íntima da fé, conforme a consciência livre religiosa de cada fiel, na manutenção da
continuidade da Festa.
Essas manifestações todas, postas em curso no Brasil pelas missas-afros, são
uma tentativa quase teimosa de retomar e reaprender as origens da Festa e encontrar formas
do passado dialogar com o novo, o diferente que surge lado a lado com a tradição.
Em se tratando de cidadania, no que tange à formação do homem e da mulher,
a pesquisa evidenciou que a educação não é um atributo apenas das escolas ou das
universidades, ela está presente em todos os ambientes, sobretudo em momentos altos de
transcendência. A educação cuiabana, menos do que impositiva, tem no cotidiano sua forma
de persuasão e conselho, com o ponto alto na produção das humanidades. Valores e
identidades, na Festa, são propostos de maneira lúdica, mas não menos corretos.
Esta dimensão está ausente na maioria das propostas curriculares, impositivas
e autoritárias que se reproduzem na cultura escolarizada. Perde-se uma dimensão importante,
em qualquer processo educacional, não gerar nos ambientes escolares e universitários
espaços-tempos do conviver superando a cronologia imposta pela rigidez dos calendários
escolares, prenhes de formalidades, “secos e ocos”, impedindo relações plenamente humanas.
A Festa está inserida no movimento social e se caracteriza como um ato social
público. Engloba, por isso, as esferas de sentido, transcendência política, lazer, estética,
tradição, trabalho etc.
A festividade possibilita aos grupos sociais o confronto de prestígio e
rivalidades, a exaltação de posições e valores, de privilégios e poderes. O indivíduo e o grupo
familiar afirmam, com sua participação nas festas públicas, seu “lugar” na cidade e na
sociedade política. Neste sentido as festas oportunizam tempos e espaços dos quais emergem
movimentos sociais em busca de negociação do poder. Por isso as festividades são inseridas
nos calendários das cidades, das escolas, como uma trajetória que resgata e atualiza a
memória da construção de identidade do povo. Portanto um saber que cruza as fronteiras dos
currículos escolares demarcando tempos e espaços onde elas possam se confrontar,
explicitamente.
Como adverte Passos (2003): “Falta-nos um currículo para tempos de danças!
Falta-nos um currículo para os tempos da festa”. Acrescenta ainda que “[...] são estas
descontinuidades que nos ensejam um currículo dinâmico, encarnado, significativo,
expressivo e cidadão”.
Não pretendo colocar a Festa religiosa dentro do currículo formal institucional
intra-escolar, porém garantir que os currículos compreendam, tomem por referência as festas
populares que dizem respeito a um modus vivendi
84
, a uma identidade pretendida que reclama
debate público e representação nos estudos, pesquisas e, sobretudo, nas suas significações.
Carece ademais de ser compreendida democraticamente, com respeito à simbologia cultural
promovedora da dignidade social. É imprescindível compreender a Festa de S. Benedito em
Cuiabá como legítima expressão cultural e política do povo cuiabano.
O currículo desse modo não se constitui meramente num lugar formal, dentro
de um espaço demarcado como “lugar do saber e do aprender”. Esse espaço social se amplia e
se diversifica, vai onde o povo está e permanece com ele para aprender com ele. A Festa,
como manifestação do povo, insere-se nesse espaço dando a ele sentido e valor.
Todavia o conhecimento intitulado formal ou institucional força uma relação
de poder. E onde há poder existem subordinações de forças e obediências, que se justificam
dentro de um processo aceito como civilizatório que, de certa forma, no conhecimento
erudito a luz que traz à razão, ou seja, aquele que “sabe” o que é “bom” para o “povo” em
geral.
Para Chauí (1994 b, p. 35),
[...] os conhecimentos como saberes que cada um de nós deve possuir se
quiser participar com validade da vida social. Seu discurso sempre
discurso do especialista competente nos diz o que as coisas são
‘objetivamente’ e quais as ações que exigem de nós, se quisermos ser
‘racionais` e contemporâneos de nosso tempo.
84
Modo de vida.
.
É nessa realidade concebida como válida e absoluta que se organizam, nas
escolas, os currículos que afirmam e confirmam o que é legítimo para o povo saber e o que é
inadequado para ser conhecido. Em vista disso, Chauí (1994b, p. 17) propõe:
[...] cabe auxiliá-lo através da filantropia e educá-lo através da disciplina do
trabalho industrial, educação essencial para conter suas paixões obscuras,
supersticiosas, sua irracionalidade e, sobretudo sua inveja, que se exprime
no desejo sedicioso do igualitarismo.
Entende-se então que o que é próprio do povo tem que passar pelo crivo da
razão e da formalidade para educá-lo na sua sensibilidade tosca.
Nesse viés a cultura popular que se manifesta nos movimentos sociais (festa)
quer ser a “guardiã da tradição” que se coloca na contramão da totalidade dominante.
Para tanto, recorro a Cha(1994b, p. 124): “[...] as ações e representações da
Cultura Popular se inserem num contexto de reformulação e de resistência à disciplina e à
vigilância”.
A percepção da pesquisa e os estudos acerca da cultura popular vêm mostrando
que a escola não deve ser compreendida apenas como um espaço formal de aprendizagem,
mas sim onde se adquire o conhecimento por meio da reflexão, sistematização e avaliação das
experiências vividas. Entendo, pois, a impossibilidade, em Cuiabá, de ignorar o que ocorre a
partir da Igreja do Rosário, na Festa de S. Benedito.
A Festa em questão, por sua vez, circunscreve-se e qualifica experiências, uma
vez que faz parte da vida, das relações e da história do povo cuiabano. A Festa é o grande
instrumento de comunicação e expressão identitária, permitindo não apenas a manifestação
religiosa, mas a representação social dos oprimidos. Suscita elementos de reflexão, resistência
e luta, porque refere-se à Vida com toda a sua complexidade e contradição.
Os resultados que fui encontrando entre os diversos grupos que festejam,
permitem-me dizer que a Festa é campo de disputa, tomada por grupos diversos que fazem
dela muitas vezes o lugar simbólico de afirmação do poder político e econômico,
manifestações de forças, interesses políticos, tempo de denúncias, de confrontos e de
afirmações. Deslocam-se dimensões sagradas e profanas por interesses econômicos e de
hegemonia política, ganhando destaque, nos últimos anos, as multinacionais ligadas ao
agronegócio que vem colonizando a Festa. Esta realidade é assumida por grupos da elite
cuiabana que têm a Festa como um forte ponto turístico-religioso e, portanto, fator de
acumulação econômica e espaço de disputa de hegemonia política. Essa não é uma forma
contemporânea! As irmandades provavam isso. A tradição está envolvida” com a
modernidade do capital, ou seja, a Festa é também um evento inegavelmente capitalista.
Como esclarece Ortiz (2006, p. 184): “As festas, o artesanato e os divertimentos são
perpassados pela totalidade das relações capitalistas. A tradição é penetrada, e modificada,
nos seus elementos essenciais”.
O dialogo com a pesquisa de Ortiz (2006) fez nascer uma questão importante:
Como a festa sobreviveu e sobrevive? A cultura desse povo, definida pela religião, vai
sobreviver aos novos colonizadores e seus tempos? Até que ponto essa tradição devocional
religiosa conseguirá escapar de alguns caminhos sem volta, sem que ela mesma comprometa
sua continuidade e missão?
O propósito da pesquisa era compreender o sentido da Festa de S. Benedito,
num contexto cuiabano intercultural. Eu tinha ainda por tese que emergia, na Festa,
reiteradamente, uma simbologia espaço-temporal de “diáspora” que nega-e-afirma,
simultaneamente, os excluídos e a simbologia que dizia respeito à sua identidade. Na verdade
a diáspora tinha esta perspectiva, a situação de apartheid funcionava de início como signo
emblemático de estigma. Os sonhos dos negros cuiabanos, que escolheram o negro escravo,
porém liberto, apontavam a consciência da escravidão e a organização dos sonhos de
libertação. A Festa, como emergência destes sonhos, sempre trouxe à luz os sonhos de
liberdade, de alforria, de representação política. Contudo ficou patente que a memória
perigosa da Festa de S. Benedito trouxe, até como forma de controle, um número significativo
de brancos e de pessoas bem-sucedidas que a ela aderiram como estratégia de ampliar o
campo de legitimação de seus negócios e de seus propósitos. A diáspora foi ressignificada
quer pela presença de brancos, políticos, dirigentes, quer também pelo fruto da negociação
que afirmava a importância do negro e de sua simbologia. Os conflitos de hoje, na Festa de S.
Benedito, não parecem ser diferentes daqueles que sempre ocorreram. Conflitos de
representação, de uma afirmação étnico-racial que se produzem e reproduzem,
educacionalmente e de forma coletiva, e produzem identidades. Não produzem somente
identidades negras livres, mas também reproduzem formas de camuflagem, de negociação, de
submissão que carregam interesses contraditórios do ponto de vista econômico, simbólico e
político. Reproduzem também formas opressoras, legitimação religiosa da acumulação, das
pretendidas bênçãos do santo sobre a injustiça e a opressão.
Situação conflitante que certamente aparece nas demais formas de tradição
religiosa que se podem encontrar em todo o país e que aparecem na pesquisa de Ortiz (2006,
p. 184-185) onde o autor afirma que é no âmbito da cultura que se revelam mais límpidos
muitos dos sinais da mundialização que se acha em curso no fim do século XX:
Hoje, as mudanças são drásticas. O culto transformou-se numa festa, na
qual a tradição e economia monetária (inclusive com a exploração do
turismo) encontram-se amalgamadas. Algo semelhante ocorre com as
crenças indígenas ou afro-americanas. Ao longo da história da América
Latina, elas subsistem, mas em boa parte sincretizadas com as mais diversas
influências. Entretanto dificilmente elas poderiam ser reivindicadas como
sendo as únicas tradições das classes populares. Penetradas pelo
descentramento da modernidade, elas sofrem a concorrência direta de
outros credos (pentecostalismo, catolicismo popular, espiritismo de Allan
Kardec etc.) Pluralidade que, longe de confirmar a continuidade da tradição,
expõe um quadro atual de diversidade, no qual a autoridade religiosa se
fragmenta. Se as tradições populares entram em conflitos com as sociedades
industrialistas, a autonomia das artes decorre justamente do seu advento.
Apoiada na pesquisa de Ortiz (2006) e tantos outros autores pesquisadores da
cultura mundial, posso dizer que, com esse olhar e pensamento de mundialização cultural, a
cultura passou a adquirir outros significados e a reorientar as sociedades atuais.
Na costura da dobra da tradição ao santo negro num mundo globalizado percorrem-se
os caminhos da devoção
Sérgio Schaffer descreve, através de uma canção, as festas da baixada
cuiabana:
São festas de mil leilões
Que entristecem os padroeiros...
Intrigas e egoísmos que enaltecem politiqueiros.
É bem aqui, é bem aqui, que Jesus Cristo quer sua Igreja.
Humilde e forte, servindo a todos,
Que seja assim, que assim seja!
A Festa de S. Benedito é uma festa do mundo e no mundo. Mas também tem
uma educação para o mundo, para a vida concreta tal como se desenha nas contradições de
Cuiabá. Este é também seu potencial explosivo, não permitir a fixação do jogo do poder e o
fim da história, no mundo econômico-político de Cuiabá.
Como contraditoriedade que nasce de qualquer processo social e de sua
fecundidade, a Festa de S. Benedito é um instrumento educacional que funciona pela sua
própria vivência. Trata-se de um processo de educação pela Festa, como o título desta
pesquisa propõe.
A Festa de S. Benedito nos ajuda refletir, todavia, as tramas que se produzem e
reproduzem os sentidos das relações sociais, política, econômicas, religiosas e culturais no
contexto cuiabano de uma cultura tão diversa. Essa Festa ao mesmo tempo, como que
produz e reproduz, ela mesma, e revela nela os sentidos e as relações da sociedade cuiabana.
Por isso, quando propomos uma interlocução via festa como resgate, atualização da cultural e
movimento social com o espaço escolar queremos dizer que há diversas mediações que
produzem conhecimento, aprendizado e cidadania. Dessa forma quando saímos do espaço
restrito da escola e propomos à sociedade que existem outras mediações pedagógicas em
todos os processos sociais (ou que todos eles são mediações pedagógicas) estamos colocando
para nós mesmos a tarefa de aprofundar esta compreensão de Pedagogia quanto ensino e
aprendizado humano.
A que tive da Festa de S. Benedito me permite dizer que ela parece ser essa mediação
através de sua própria pedagogia organizacional e seu ritual preparativo. Pois, todavia em
cada rito da Festa um olho d’água nos direcionando para uma reflexão e uma ação concreta de
aprendizado. O que nos lembra as ações socializadoras.
A festividade dessa forma se revela maior do que ela se apresenta. Assim o que dela vemos,
ouvimos e capturamos é o quanto dela conseguimos objetivar através da nossa percepção.
Pensar a pedagogia da Festa como mediação pedagógica é quem sabe identificar nela sinais
do que poderia ser uma nova Paidéia para os nossos dias.
A proposta deste trabalho é mostrar o quanto é relevante que os educadores se
empenhem tanto em construir conhecimentos, quanto em ensinar relações humanas prenhes
de valores universais, que são a base para que, no futuro, o aluno seja um adulto feliz,
comprometido com a luta dos mais oprimidos, principalmente com a sua história e com a sua
cultura de origem. Para tanto parece-me importante que os currículos escolares sejam
adequados às peculiaridades de cada localidade, valorizando a cultura como seu patrimônio
histórico, artístico, cultural e ambiental. Com isso estou dizendo que uma educação escolar
precisa estar amalgamada com a localidade e a temporalidade das significações mais
abrangentes da grande simbologia popular, onde as festas de santo estão presentes.
É imprescindível dar visibilidade à grande simbologia popular nos currículos
escolares valorizando as peculiaridades de cada localidade como seu patrimônio histórico,
artístico, ambiental e educacional e, portanto, seu jeito de produzir as humanidades que lhes
dizem respeito.
REFERÊNCIAS
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VICENTE. É por amor! Disponível em: <http://www.cebi.org.br/noticia. 9 set. 2006> .
Acesso em: 1 mar. 2007.
ANEXOS
Anexo 1 - Jornal interno da Paróquia do Rosário e S. Benedito: Rosarinho (“Rosarinho”),
órgão informativo do CPR, com participação das comunidades (esse documento foi
enviado anonimamente como ofensa a uma devota.
Anexo 2 - Programação da visita da Imagem de S. Benedito e Nossa Senhora do Rosário às
comunidade urbanas e rurais de Cuiabá.
Anexo 3 - Programa de visitação da Bandeira.
Anexo 4 - Programação das bandas e locais da visita da bandeira de São Benedito
Anexo 5 - Livreto Convite da Festa de 2006.
Anexo 6 - Folheto da Reza Cantada da Festa de S. Benedito
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